Puc-Ciencias Da Religião

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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Carolina Teles Lemos
José Reinaldo F. Martins Filho .............................................................................. 15

ST 1 – CAPITALISMO COMO RELIGIÃO – MERCADO, SAÚDE E


ADOECIMENTO
PENTECOSTALISMO SOB MEDIDA E CULTURA LÍQUIDA
Pedro Fernando Sahium ........................................................................................ 18
O SECULARISMO E O PLURALISMO RELIGIOSO: INFLUÊNCIAS NAS INSTITUIÇÕES
MANTENEDORAS DO SAGRADO
Adenilton Moises da Silva ...................................................................................... 25
Ana Margareth Manique de Melo
O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO E SUA EXPANSÃO DE FRONTEIRAS NO BUDISMO
MAHĀYĀNA BRASILEIRO
Patricia Guernelli Palazzo Tsai ............................................................................... 31
PUBLICADORES DE MAX MÜLLER: REVISTAS EUROPEIAS, PUBLICAÇÕES SOBRE O
ORIENTE E ECONOMIA DO CONHECIMENTO
Loyane Aline Pessato Ferreira................................................................................ 38
RELIGIÃO E INVENÇÃO CULTURAL: APONTAMENTOS SOBRE A CONSTRUÇÃO DO
CONCEITO DE RELIGIÃO NAS CIÊNCIAS HUMANAS
Thiago Schellin de Mattos ...................................................................................... 45
COVID-19 E ROMARIA DO MUQUÉM: IMPLICAÇÕES E INOVAÇÕES
Aldemir Franzin
Alberto da Silva Moreira ........................................................................................ 52

ST 2 – O RESPEITO À LIBERDADE RELIGIOSA COMO PRECEITO DE


CONFORMAÇÃO DA DIGNIDADE HUMANA
IPARUBÓ: O CONFRONTO ENTRE A ECOLOGIA AFRICANA E O MERCADO BRASILEIRO
DE ABATE HALAL
Davison Cardoso .................................................................................................... 61
A LIBERDADE DE CRENÇA NOS GRUPOS TERAPÊUTICOS PSICOLÓGICOS
Marineide Felix de Queiroz Brito
Lusival Antonio Bacellos......................................................................................... 68
DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UM CONCEITO RELIGIOSO GARANTIDOR DA
LIBERDADE RELIGIOSA
Moacir Ferreira Filho.............................................................................................. 75
6

EM NOME DE DEUS: A RELAÇÃO ENTRE PODER POLÍTICO, IGREJA E SOCIEDADE.


Neilson Xavier de Brito .......................................................................................... 81
TRADIÇÃO RELIGIOSA ANTE O PRECEITO DA DIGNIDADE HUMANA: A QUESTÃO DA
LIBERDADE RELIGIOSA
Raul Ié..................................................................................................................... 88
ESTADO TEOCRÁTICO: RESPEITO A LIBERDADE RELIGIOSA EM PERIGO
Sandra Aparecida Gurgel Vergne ........................................................................... 96

ST 3 – EXPERIÊNCIA RELIGIOSA COMO DIREITO HUMANO: LAICIDADE E


FORMAÇÃO PARA O CONTEXTO DA PLURALIDADE
A PRODUÇÃO DO BEM COMUM: O "BEM" COMO CONCEPÇÃO TEOLÓGICA EM UMA
SOCIEDADE PLURAL
Tiago De Melo Novais ............................................................................................ 103
ESPIRITUALIDADE E DIREITO PENAL
Marielza Nobre Caetano Da Costa ......................................................................... 110
A RELIGIÃO COMO VIRTUDE ANEXA DA JUSTIÇA EM SANTO TOMÁS DE AQUINO E O
ESTADO LAICO
Sérgio Ricardo Strefling .......................................................................................... 117
A PLURALIDADE DO MOVIMENTO ANABATISTA, DA REFORMA RADICAL AOS
NOSSOS DIAS, COMO EXEMPLO DE LAICIDADE, DIVERSIDADE RELIGIOSA E
TOLERÂNCIA
Angela Natel ........................................................................................................... 123

ST 4 – CURAS E ESPIRITUALIDADES NA DIVERSIDADE


A INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL COMO INSTRUMENTO DE CURA, EM CONTRAPOSIÇÃO
A NORMOSE QUE PROVOCA O ADOECER E A MORTE
Deusilene Silva de Leão.......................................................................................... 131
“LIVRAR-SE DO INIMIGO”, “EMPODERAR-SE”: CURA/SAÚDE ENTRE CATÓLICOS
CARISMÁTICOS EM PARINTINS/AM
Adelson da Costa Fernando ................................................................................... 137
TRANSCENDENTALISMO: O PODER CURATIVO EM TRÊS TESTEMUNHOS
Ana Maria De Sousa ............................................................................................... 146
O USO DA AYAHUASCA EM EXPERIÊNCIAS DE CURA: UMA REVISÃO BIBLIOGRÁFICA
Jéssica Martins Alves.............................................................................................. 152
UMA DOENÇA DE ÍNDIO EM UMA PESSOA BRANCA
Vanessa Coelho Moraes ......................................................................................... 158
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ST 5 – ESPIRITISMO, ESPIRITUALISMO E ESPIRITUALIDADES


ALLAN KARDEC, PENSAMENTO COMPLEXO E TRANSDISCIPLINARIDADE
Alexandre Avelino Giffoni Junior ........................................................................... 165
O MERCADO DAS NEUROSES E A RELIGIÃO MODERNA
Antônio César Martins Lopes
Djalma Barreto Neves ............................................................................................ 172
AS PESQUISAS A RESPEITO DA CONSCIÊNCIA E O ABISMO AXIOMÁTICO ENTRE
ARISTÓTELES E PLATÃO
Elias Inácio De Moraes ........................................................................................... 179
CONTOS DESTA E DOUTRA VIDA: O IMAGINÁRIO DAS ÁGUAS NO COMPARATISMO
LITERÁRIO ENTRE CHICO XAVIER/IRMÃO X E BERNARDO ÉLIS
Gismair Martins Teixeira
Maria Do Socorro Pereira Lima .............................................................................. 187
O “CONTRATURNO ESCOLAR VAMOS JUNTOS” DA SOCIEDADE ESPÍRITA TRABALHO
E ESPERANÇA (SETE): UMA PRÁTICA PEDAGÓGICA GENUINAMENTE ESPÍRITA?
João Paulo Godoy................................................................................................... 194
ESPIRITUALISMO: CONCEITO E PERSPECTIVAS DE PESQUISA VISANDO UMA
TRADIÇÃO DE CONHECIMENTO EM CIÊNCIAS DA RELIGIÃO
Luiz Signates ........................................................................................................... 201
AS FORMAS DE PRODUÇÃO DA VERDADE NO ESPIRITISMO: AS CONTRIBUIÇÕES DAS
TEORIAS DO DISCURSO
Ângela Teixeira De Moraes .................................................................................... 208
“NÃO TEMOS IMAGINÁRIO”: O SIMBÓLICO E A CIRCULAÇÃO DOS MUSEUS
ESPÍRITAS
João Damasio ......................................................................................................... 215
UMBANDA: RITOS E SAÚDE
Sandra Maria Chaves Machado ............................................................................. 223
UMBANDA ESOTÉRICA, UMBANDA INICIÁTICA, ESPIRITUALISMOS E
ESPIRITUALIDADE
Guilherme de Sá Pontes ......................................................................................... 230

ST 6 – AS REPRESENTAÇÕES DA MORTE E DO MORRER NAS NECRÓPOLES


BRASILEIRAS
CEMITÉRIOS, MORTE E SALVAÇÃO: REPRESENTAÇÕES DO CRER E DO MORRER NO
PERIÓDICO ADVENTISTA REVISTA MENSAL DURANTE A GRIPE ESPANHOLA (1918-
1920)
Allan Macedo De Novaes ....................................................................................... 239
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DA CASA AO TÚMULO: A SIMBOLOGIA ARQUITETÔNICA DE MORADA NAS FORMAS


TUMULARES DO CEMITÉRIO DE SANTA IZABEL
Amanda Roberta Botelho Menezes ....................................................................... 246
A CASA DAS SEPULTURAS: APORTES INICIAIS PARA A DOCUMENTAÇÃO DE UMA
ARTE CEMITERIAL JUDAICA NO BRASIL
Fabiana Comerlato
Juliana Vitória Brito Barbosa .................................................................................. 254
TESSITURAS DE TEMPOS: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA E ETNOLÓGICA DA
CULTURA MATERIAL INDÍGENA NAS PRÁTICAS FÚNEBRES EM SÃO VICENTE FERRER
– MARANHÃO.
Dimas Dos Reis Ribeiro
Maria Elizia Borges ................................................................................................. 260
ESTUDO SOBRE A DEVOÇÃO AO TÚMULO DO PADRE EUSTÁQUIO EM BELO
HORIZONTE MG
Leandro Evangelista Silva Castro
Marcus Vinicius Maciel .......................................................................................... 267
“O SILÊNCIO DOS TÚMULOS É ENCHARCADO DE LÁGRIMAS E SAUDADES”: ARTE
FUNERÁRIA NO CEMITÉRIO SÃO JOSÉ EM TERESINA-PI
Mariana Antão De Carvalho Rosa .......................................................................... 274
DA MORTE PRÓPRIA OU DA SUA MASSIFICAÇÃO NAS OBRAS DE RAINER MARIA
RILKE
Renato Kirchner ..................................................................................................... 282
NECRÓPOLES DE MADEIRA: A ARTE FUNERÁRIA NOS CEMITÉRIOS DO ESTADO DO
AMAPÁ
Tiago Varges Da Silva ............................................................................................. 289

ST 7 – CATOLICISMO(S) NA AMÉRICA LATINA: TRADIÇÕES, CRENÇAS E


REPRESENTAÇÕES POPULARES
A IGREJA CATÓLICA EM GOIÁS, NO FINAL DO SÉCULO XIX, E PLURALISMO
RELIGIOSO
Wolmir Therezio Amado
Carolina Teles Lemos ............................................................................................. 297
A REPRESENTAÇÃO DA MÚSICA SACRA NAS FESTIVIDADES CATÓLICAS EM
PIRENÓPOLIS/GOIÁS
Tereza Caroline Lôbo
Aline Santana Lôbo ................................................................................................ 304
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“SENHORA SANT’ANA QUANDO ANDOU PELOS MONTES, POR ONDE PASSAVA


DEIXAVA UMA FONTE”: O MOSTEIRO DE SÃO BENTO DE JUNDIAÍ E AS TRADIÇÕES
DO CATOLICISMO POPULAR NA VILA FORMOSA DE NOSSA SENHORA DO DESTERRO
DE JUNDIAÍ (1668-1764)
Rogério Fernandes Calheiros ................................................................................. 312

ST 8 – CATOLICISMO NO BRASIL: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS


CATOLICISMO CONTEMPORÂNEO: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS DA SUA
COMPREENSÃO DA SEXUALIDADE E SUA INFLUÊNCIA NO COMPORTAMENTO
SOCIAL
Áureo Nogueira De Freitas..................................................................................... 319
A IGREJA CATÓLICA NO BRASIL E AS PASTORAIS DOS SURDOS
Érica Nelcina da Silva
Alberto da Silva Moreira ........................................................................................ 326
O ‘CRER’ NA CONTEMPORANEIDADE: O CATOLICISMO À LUZ DA CRISE DAS
CREDIBILIDADES
Renan Gomes de Oliveira....................................................................................... 332
BREVES RELATOS: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS ALIMENTARES NA FOLIA DO
DIVINO ESPÍRITO SANTO DE PIRENÓPOLIS/GO122
João Guilherme Da Trindade Curado
Maria Idelma Vieira D’abadia ................................................................................ 338
A COMUNICAÇÃO POLIFÔNICA DA HOMILIA CATÓLICA NO BRASIL
Rita de Kássia Pontes Silva ..................................................................................... 345
A RUPTURA CONSERVADORA DO BISPO ANTÔNIO DE CASTRO MAYER COM O
CATOLICISMO ROMANO PÓS CONCÍLIO VATICANO II
Vinícius Couzzi Mérida ........................................................................................... 352

ST 10 – PESQUISA BÍBLICA: RELIGIÃO, ESPIRITUALIDADE E SAÚDE


MAS O JUSTO, PELA SUA FÉ, VIVERÁ: CONSIDERAÇÕES EXEGÉTICAS E
HERMENÊUTICAS
Taciana Brasil dos Santos ....................................................................................... 360
A SAÚDE COMO COMPONENTE DA ESPIRITUALIDADE: POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES
ENTRE AS PERSPECTIVAS JOANINA E WHITEANA DE ESPIRITUALIDADE INTEGRAL, A
PARTIR DE 3 JO 2
Carlos Flavio Teixeira ............................................................................................. 367
ESPIRITUALIDADE E (IN)FINITUDE: UMA REFLEXÃO A PARTIR DA CANÇÃO [SALMO]
“SE EU QUISER FALAR COM DEUS”
João Luiz Correia Júnior ......................................................................................... 375
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MUDANÇA DE ALGUNS NOMES NA BÍBLIA: MUDANÇA DE VIDA


Selma Marques De Paiva
Djalma Barreto Neves ............................................................................................ 383
ANGÚSTIA E EQUILÍBRIO EMOCIONAL À LUZ DOS NOMES BÍBLICOS CAIM E ABEL
José Geraldo de Gouveia ....................................................................................... 391
EX 1,15-22: O VIVER E O MORRER NAS MÃOS DE DUAS PARTEIRAS
Reginaldo de Abreu Araujo da Silva ....................................................................... 398
A FORMAÇÃO DOS REINOS DE ISRAEL E DE JUDÁ
Andréa Bernardes de Tassis Ribeiro ...................................................................... 405
RELIGIÃO E O CUIDADO COM A VIDA: UM OLHAR SOBRE O MODELO DE
SOLIDARIEDADE NO LIVRO DE RUTE
Gláucia Loureiro de Paula ...................................................................................... 410
O SIGNIFICADO DE XEOL NO LIVRO BÍBLICO DE PROVÉRBIOS
Valmor da Silva....................................................................................................... 415
ANÁLISE DO SENSO DE ETERNIDADE PRESENTE NO LIVRO DE ECLESIASTES
Jocinei Godói Lima ................................................................................................. 422
“PORQUE MELHOR ME É MORRER DO QUE VIVER” (JN 4,3): A RELAÇÃO
INTERTEXTUAL ENTRE O PEDIDO DE JONAS E O DE ELIAS
Lucas Alamino Iglesias Martins .............................................................................. 427
JONAS, SUA RELAÇÃO COM DEUS E COM A MORTE
Luciene Lima Gonçalves ......................................................................................... 434

ST 11 – SUICÍDIO E RELIGIÃO
OS DIÁLOGOS E EMBATES ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA NA ANÁLISE SOCIOESPACIAL
EM TEMPOS DE COVID-19
Diego Lopes da Silva............................................................................................... 441
ESPIRITUALIDADE, RESILIÊNCIA E DEPRESSÃO
Rosana Maria Ferreira Borges ............................................................................... 447
“O CACO ENTRE OS CACOS”: A SAÚDE MENTAL, ENTRE OS LIMITES DA CIÊNCIA E DA
RELIGIÃO NA ERA DO CORONAVÍRUS
Rosa Maria Pereira de Melo .................................................................................. 453

ST 12 – ESCRAVIDÃO NA BÍBLIA E A BUSCA DO VIVER INTEGRAL


ESCRAVIDÃO: UMA EXPERIÊNCIA NO EXÍLIO DA BABILÔNIA158
Karine Marques Rodrigues Teixeira
Rosemary Francisca Neves Silva ............................................................................ 460
APÓSTOLO PAULO IN: “E TU, QUE DIZEIS QUEM EU SOU?”
José Frederico Sardinha Franco ............................................................................. 466
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ST 13 – NOVOS MOVIMENTOS RELIGIOSOS E ESPIRITUALIDADES LAICAS


DISTANCIAMENTO SOCIAL E APROXIMAÇÕES INDIVIDUAIS: ESPIRITUALIDADE
CRISTÃ EM CONTEXTO DE PANDEMIA GLOBAL
Fabiane Behling Luckow......................................................................................... 474
A REALIDADE CONTEMPORÂNEA DAS TECNOEXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS: OS
SENTIDOS DE RELIGIÃO NO USO DAS TECNOLOGIAS DIGITAIS EM PERÍODOS DE
PANDEMIA
Wallace Thimoteo da Silva ..................................................................................... 480
ESPIRITUALIDADE E SAÚDE: REFLEXÕES, DESAFIOS E POSSIBILIDADES
Lorena Isabella Loureiro Freire Calvacanti
Marcos Lucena da Fonseca
Sergio Sezino Douets Vasconcelos ......................................................................... 487
A FUNÇÃO DA ESPIRITUALIDADE E DA RELIGIÃO NA RESSOCIALIZAÇÃO DOS
RECUPERANDOS DA ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS
DE PARACATU MG
Renato Paulino Borges ........................................................................................... 494
ESPIRITUALIDADE NAS ORGANIZAÇÕES BRASILEIRAS: RELIGIOSA OU NÃO
RELIGIOSA? UM CAMPO DE PESQUISA POUCO EXPLORADO
Jonathan Félix de Souza ......................................................................................... 501
O JOVEM UNIVERSITÁRIO E SUA EXPERIÊNCIA DE ESPIRITUALIDADE NA
CONTEMPORANEIDADE
Dênis Nunes de Araújo........................................................................................... 508
ECOLOGIA E ESPIRITUALIDADE UMA INTERDEPENDÊNCIA A SER RESGATADA
Débora Menezes Silva Ferreira .............................................................................. 515
A FILOSOFIA COMO EXERCÍCIO ESPIRITUAL NO PENSAMENTO DE PIRRE HADOT
Marcelo Gabriel de Freitas Veloso ......................................................................... 520
IGREJA: ENTRE A INSTITUIÇÃO E A AUTONOMIA
Danilo Kammers ..................................................................................................... 527
PENSANDO A RELIGIÃO E A CONTEMPORANEIDADE: ASPECTOS MILENARISTAS E O
TRANSUMANISMO
Adelaide de Faria Pimenta ..................................................................................... 534
O ETHOS DA NOVA ERA NAS RELIGIÕES TRADICIONAIS: O CASO DO COACHING
EVANGÉLICO
Fábio L. Stern
Silas Guerriero ........................................................................................................ 540
A “FÉ” DOS NOVOS ATEUS
João Paulo Reis Braga ............................................................................................ 547
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A COMPREENSÃO DOS OPERADORES DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO ACERCA DO


FENÔMENO DOS CRENTES SEM RELIGIÃO
Omar Lucas Perrout Fortes De Sales
Clóvis Ecco .............................................................................................................. 554
A ESPIRITUALIDADE DESPERTADA ATRAVÉS DO CORPO A PARTIR DA RELIGIÃO E DO
PROCESSO DE AUTOCONHECIMENTO
Marise Eterna Nunes ............................................................................................. 562
OS “SEM RELIGIÃO” NO BRASIL: ELEMENTOS PARA UMA LEITURA CRÍTICA
José Reinaldo F. Martins Filho ............................................................................... 573

ST 15 – EDUCAÇÃO, SOCIEDADE E SISTEMA DE CRENÇAS


AS PERFORMANCES DO CARIMBÓ: CULTURA POPULAR PARAENSE E RELIGIOSIDADE
Elyane Lobão da Costa ........................................................................................... 583

ST 16 – HERMENÊUTICAS E ESPIRITUALIDADE(S): O TEXTO ENTRE A VIDA


E A MORTE
A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DE DEUS NO COMBATE AO MAL A PARTIR DE ANDRÉS
TORRES QUEIRUGA
Paulo Sérgio Lopes Gonçalves
Felipe De Moraes Negro ........................................................................................ 591
O RITO COMO DOADOR DE SENTIDO À EXPERIÊNCIA DA MORTE EM BONACCORSO
Daniel Carvalho da Silva ......................................................................................... 597
A VIOLÊNCIA E A MORTE COMO ELEMENTOS DE RECRIAÇÃO TEOLÓGICA: HÁ A
PRODUÇÃO DE UM QUERIGMA TEOLOGAL NAS FAVELAS CARIOCAS?
Priscila Alves Gonçalves da Silva ............................................................................ 604
TILLICH E SUASSUNA NA REFLEXÃO SOBRE SAÚDE ESPIRITUAL E A ANGÚSTIA
EXISTENCIAL
Henrique Nilo da Silva ............................................................................................ 611

ST 17 – CRISTIANISMOS E MOVIMENTOS SOCIAIS: ATRAVESSAMENTOS E


IMPLICAÇÕES NAS LUTAS SOCIAIS
HINOS CATÓLICOS DA DÉCADA DE 1970/1980 – UMA HETEROGENEIDADE
DISCURSIVA
Adilson Skalski Zabiela ........................................................................................... 618
MOVIMENTO DE TRABALHADORES CRISTÃOS EM RECIFE – ESTRATÉGIAS E
DESAFIOS DIANTE DAS MUDANÇAS SOCIAIS E ECLESIAIS
Valmir Assis da Silva Filho ...................................................................................... 625
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ST 18 – ESPIRITUALIDADE E SAÚDE: PERSPECTIVAS E CONTRIBUIÇÕES


DAS CIÊNCIAS EMPÍRICAS DA RELIGIÃO E DA TEOLOGIA PARA A PRÁTICA
DO CUIDADO EM SAÚDE
O CONCEITO DE ESPIRITUALIDADE HUMANISTA E A QUESTÃO DA INDIFERENÇA À
VIDA COMO UMA DAS FACES DO MAL NA CONTEMPORANEIDADE: UMA
PERSPECTIVA A PARTIR DA COSMOVISÃO DE ERICH FROMM
Denis Cotta ............................................................................................................. 633

ST 19 – GÊNERO E RELIGIÃO
OS SENTIDOS DE VIDA E DE MORTE NA TEMÁTICA DO ABORTO
Amália Maria Machado de Oliveira ....................................................................... 641
CORPO, POLÍTICA E RELIGIÃO: A LUTA PELA DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO
BRASIL E ARGENTINA – UM DESAFIO AOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES
Ana Karoline Dirino
Margareth Pereira Arbués ..................................................................................... 648
REFLEXÕES SOBRE O ANDROCENTRISMO NA HIERARQUIA SACERDOTAL DA IGREJA
MESSIÂNICA MUNDIAL NO BRASIL
Breno Corrêa Magalhães ....................................................................................... 656
UM CORPO HERÉTICO NO RAP: RELIGIÃO E EROTISMO EM ALICE GUÉL
Bruno de Carvalho Rocha....................................................................................... 664
DADOS SOBRE OS SEM RELIGIÃO NA PESQUISA NACIONAL DO PERFIL LGBTI+ 2018:
APONTAMENTOS SOBRE O SENSO RELIGIOSO
Sandson Almeida Rotterdan .................................................................................. 671

ST 20 – INICIAÇÃO CIENTÍFICA
BANCADA RELIGIOSA, ELEIÇÕES E CONSERVADORISMO NO BRASIL: UMA ANÁLISE
DO FIEL PENTECOSTAL E NEOPENTECOSTAL E SEU IDEÁRIO ENTRE 2002 E 2016.
Logan Silva Fitipaldi ................................................................................................ 678
TEOLOGIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA E O DEBATE SOBRE A SOBERANIA
MODERNA.
Laís Ramalho Dos Santos
Douglas Ferreira Barros ......................................................................................... 684
O HOMO OECONOMICUS COMO EMPRESÁRIO DE SI MESMO E UMA INSTITUIÇÃO
NEOPENTECOSTAL
Natália Fernandes Mororó
Glauco Barsalini...................................................................................................... 691
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ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO: OS VENTOS DEMOCRÁTICOS


SEMPRE ESTIVERAM PRESENTES NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL?
Giselle Rocha Clemente ......................................................................................... 697
ESTUDO COMPARADO: EXPECTATIVAS DE FUTURO DOS ESTUDANTES DE ENSINO
MÉDIO NO BRASIL E NA COREIA DO SUL
Ana Paula Veloso De Assis Sousa
Helmer Marra Rodrigues ....................................................................................... 702
GOVERNO, PASTORADO CRISTÃO E CONDUTA NO CRISTIANISMO PRIMITIVO: UMA
LEITURA A PARTIR DE SEGURANÇA, TERRITÓRIO E POPULAÇÃO DE MICHEL
FOUCAULT
Gabriela Mariotto de Almeida Santos
Douglas Ferreira Barros ......................................................................................... 710
LEVANTAMENTO HISTÓRICO ARTÍSTICO DA MULHER NA PINTURA NO SÉCULO XV
Laura Beatriz Alves De Oliveira
Clóvis Ecco .............................................................................................................. 717
DIREITO RELIGIOSO: ANÁLISE DA ABORDAGEM RELIGIOSA NO ORDENAMENTO
JURÍDICO BRASILEIRO E A CORRELAÇÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA COM OS DEMAIS
DIREITOS E GARANTIAS CONSTITUCIONAIS
Beatriz Cunha Duarte ............................................................................................. 724
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APRESENTAÇÃO

O Programa de Pós-Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião (PPGCR) –


Mestrado e Doutorado – da PUC Goiás funciona há mais de duas décadas. Suas
atividades estão voltadas para a pesquisa, a produção científica sobre o fenômeno
religioso e a formação de docentes e pesquisadores/as. Dando seguimento a esse
trabalho, o Programa realizou, entre os dias 21 (19h) e 23 (18h) de outubro de 2020,
o seu X Congresso Internacional em Ciências da Religião, tendo como foco dessa
edição o tema: “Religião, espiritualidade e saúde: os sentidos do viver e do morrer”.
Este evento coloca-se na continuidade dos nove Congressos Internacionais
anteriores. Em relação ao espaço dedicado a esta temática no âmbito do PPGCR da
PUC Goiás, destaca-se que ela se constitui como tema transversal, fazendo-se
presente tanto em sua Área de Concentração – Religião, Cultura e Sociedade –
quanto em suas Linhas de Pesquisa: Cultura e Sistemas Simbólicos, Religião e
Literatura Sagrada e Religião e Movimentos Sociais. Tomando particularmente a
última Linha de Pesquisa mencionada, a presente iniciativa ancora-se de maneira
ainda mais explícita no Projeto titulado Pesquisas em Religiosidade, Espiritualidade e
Saúde, coordenado pela Prof.ª Dr.ª Carolina Teles Lemos. A reconhecida qualidade
científica dos congressos organizados pelo PPGCR da PUC Goiás foi atestada, nesta
décima edição, pela parceria estabelecida com diferentes e respeitadas instituições
brasileiras (UMESP, UFJF, PUC Minas), as quais participaram conjuntamente na
organização do evento.
Em que pese o fato de que o contato entre religião, espiritualidade e saúde
seja muito estreito desde os primórdios da civilização, há na atualidade uma
mudança na forma como é percebido tanto por pesquisadores/as da área das
Ciências da Religião, como por profissionais da saúde. Nas áreas da saúde, mudanças
ocorrem até mesmo na compreensão do próprio conceito “saúde”, com a entrada em
cena de novas tecnologias e de novos critérios definidores da relação médico-
paciente. No campo religioso, por sua vez, percebe-se a convivência, nem sempre
pacífica, entre teodiceias tradicionais e novas formas de espiritualidade e de
expressões religiosas, constituindo-se progressivamente em fontes de significados às
mais diferentes situações do viver e do morrer. Nesse contexto, grande parte das
investigações analisam as ofertas religiosas de sentido quando há a possibilidade de
restabelecimento da saúde. Mas o que ocorre com essas relações nos casos em que
esta possibilidade não está disponível? O que ocorre com os familiares daqueles que
perderam a batalha contra alguma doença? O que ocorre, além disso, com os
familiares de alguém cuja vida foi ceifada por uma morte violenta? Em resumo, quais
são os sentidos possíveis estabelecidos entre religião, espiritualidade e saúde para o
viver e o morrer nas mais diferentes circunstâncias? Como aparecem tais temáticas
nos programas de formação dos profissionais de saúde? Como tais aspectos são
considerados no âmbito das políticas públicas que provêm serviços de atendimento à
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saúde? A produção de reflexões ao redor dessas questões tornou este congresso


pertinente e oportuno, como demonstram as contribuições arroladas nestes Anais.
Desde 2007 o Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e
Tecnológico (CNPQ) e a Coordenação de Pessoal de Nível Superior (CAPES) têm
prestado significativo apoio aos congressos internacionais do PPGCR da PUC Goiás. A
partir do congresso de 2012 a iniciativa pôde contar também com a ajuda da
Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Goiás (FAPEG), que tornou possível dar
continuidade ao evento e garantir maior visibilidade às pesquisas desenvolvidas no
Centro-Oeste brasileiro, em âmbito nacional e internacional. Na sequência dos
congressos anteriores, a realização do X Congresso Internacional em Ciências da
Religião teve o intuito de contribuir para a consolidação do Programa de Pós-
Graduação e o amadurecimento de seus docentes e discentes envolvidos em
pesquisas interdisciplinares de interesse nacional e internacional. Além disso, quis
também viabilizar o esforço que tem sido feito para o fortalecimento dos laços de
cooperação nacionais e internacionais do PPGCR da PUC Goiás, ao envolver
instituições parceiras do Brasil – como é o caso da Universidade Metodista de São
Paulo (UMESP), da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF) e da Pontifícia
Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas) – e também do exterior e ao
motivar colaboração entre docentes, projetos de pesquisa e intercâmbio, fatores
extremamente importantes para a consolidação da pesquisa no Centro-Oeste
brasileiro. Por fim, ressalta-se a importância do evento para o cenário científico de
Goiânia e do Centro-Oeste como um todo, quando, em geral, eventos de tal
envergadura costumam acontecer no eixo sudoeste do país.
Por conta da pandemia da COVID-19, pela primeira vez em sua trajetória o
Congresso ocorreu de maneira remota, tanto na condução das conferências e mesas-
redondas, quanto no que se refere às exposições nas Seções Temáticas. Graças ao
empenho de tantos e tantas, consideramos exitosa a sua realização, como
testemunham as mais de setecentas páginas do material que segue, última
contribuição escrita resultante do Congresso – unida ao livro com as conferências e
palestras. A experiência com que chegamos ao leitor é, por isso, de gratidão e de
otimismo, oferecendo à leitura o rico panorama das vivências empreendidas, como
contribuição científica qualificada e capacidade de construção interdisciplinar.

Uma boa leitura!

Carolina Teles Lemos


José Reinaldo F. Martins Filho
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PENTECOSTALISMO SOB MEDIDA E CULTURA LÍQUIDA

PEDRO FERNANDO SAHIUM


Doutor em Ciências da Religião
Universidade Estadual de Goiás – UEG/GO – Campus CSEH Anápolis, GO
[email protected]

RESUMO: O movimento pentecostal se alastrou no Brasil com a chegada da


Congregação Cristã (1910) e da Assembleia de Deus (1911). Muitas transformações
ocorreram nesse campo da religião evangélica. O destaque foi para o avanço
numérico dos adeptos, constatados pelo Censo IBGE a partir de 1980, e as inovações
que o grupo de pentecostais estimulou no campo religioso brasileiro. Sociólogos que
estudam essa realidade religiosa em específico, como por exemplo Ricardo Mariano,
Paul Freston e Antônio Gouvêa de Mendonça, apontam não somente o crescimento,
mas a categorização especial de um grupo denominado neopentecostais, que
rompeu com os grupos que propugnavam um tradicionalismo sectário e com o
ascetismo puritano. Dentro desse grupo as inovações não pararam e podemos
perceber em igrejas neopentecostais, alvo de análise desse artigo, um constante
processo de inovação que busca atender as necessidades de grupos sociais ligados na
cultura do individualismo líquido do início do século XXI. Com atenção especial nos
trabalhos do sociólogo Bauman, mas com aporte teórico também em Weber (1991,
2014), Bourdieu (1998), Debord (2005) e outros, incluindo Hervieu-Lèger (2005),
Mariano (1999, 2008), e Moreira (2003, 2014, 2015), vamos mostrar a invasão
cultural individualista na formação de práticas religiosas evangélicas e o
aparecimento de um pentecostalismo prêt-à-porter que não dispensa participação
política conservadora no atual cenário político brasileiro.

Palavras-chave: Pentecostalismo; Religião; Modernidade Líquida; Cultura Líquida.

DE QUE PENTECOSTALISMO ESTAMOS FALANDO?

As variações e modelos diferentes do pentecostalismo, desde que chegou ao


Brasil oriundo dos Estados Unidos, apontam para uma variedade de adaptações e
bricolagens com a cultura brasileira e a situação histórica vivenciada no país ao longo
do século XX.
Ari Pedro Oro (2013, p. 85-89) enumera “algumas faces do pentecostalismo”
que merecem ser destacadas pois, na perspectiva sociológica, elas podem apontar as
causas da crescente procura aos cultos pentecostais no Brasil ao longo de sua
evolução histórica: 1) A inexpressividade do espaço sagrado em que acontecem os
trabalhos religiosos, que mais se assemelham a galpões ou auditórios mas que
permite alto grau de informalidade dos fiéis ao chegarem nos cultos, geralmente
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conversando, ao contrário de outras religiões e igrejas; 2) A falta de uma estrutura


rígida no culto, propiciando adaptações e dinâmicas variadas com a participação de
diversos fiéis na estruturação da programação desde a recepção na porta do templo;
3) A abundância de cantos e hinos com muita vibração e alto som permitindo o
protagonismo dos fiéis nesse momento de culto; 4) Uma ênfase que pesa mais no
“como” o pastor diz a mensagem do que “o que” o pastor diz; 5) A narrativa pública
de diversas experiências de vida, “testemunhos”, que marcam o processo de
mudança, “conversão”, de uma vida “mundana, infeliz, desgraçada e cheia de vícios”
para outra “abençoada, de salvação, de alegria genuína, harmonia e virtude” – coisa
possível e extensiva a todo aquele que fizer a “experiência” de conversão.
A tarefa de elencar pontos em comum que marcaram o movimento
pentecostal no Brasil tona-se difícil porque a variedade do modus operandi dessas
instituições foi grande. Freston (1994), distingue uma Primeira Onda do
pentecostalismo com a chegada e instalação das primeiras igrejas pentecostais
Congregação Cristã e Assembleia de Deus, e de suas experiências de glossolalia e de
batismo com o Espírito Santo; uma Segunda Onda em meados do século XX, advinda
com a fundação de igrejas como: Igreja do Evangelho quadrangular (IEQ), Igreja
Pentecostal o Brasil para Cristo (BPC), Igreja Pentecostal Deus é Amor (IPDA) e uma
dezena de outras Igrejas que passaram a enfatizar o dom de curas e a utilização dos
meios de comunicação, destaque para a Rádio – dentre outros programas o
programa A Voz da Libertação, dirigido pelo fundador da IPDA, o missionário David
M. Miranda. E, por último, a Terceira Onda de expansão do pentecostalismo,
chamado por muitos estudiosos da religião de neopentecostalismo, com as seguintes
ênfases: luta exacerbada contra o diabo - Guerra Espiritual – e contra os anjos do mal
que sabotam constantemente os homens; o sucesso, ou, prosperidade econômica e
social como direitos dos fiéis, para isso Deus é apresentado como dono de todas as
riquezas desse mundo e os fiéis da Igreja como legítimos donos dessas riquezas,
contanto que eles acreditem e se “apossem” dessas promessas – que são
apresentadas como bíblicas; e, também, “uma liberalização dos estereotipados usos
e costumes de santidade” coisas que eram próprias das ondas anteriores.
As igrejas neopentecostais apostam em mudanças de ordem litúrgica e
estratégica – com programações variadas e específicas para cada nicho do mercado
religioso bem como o uso intensivo do marketing, das novas mídias sociais e da
intensidade emotiva (com muita música Gospel e performances dos fiéis) e temática
dos seus cultos – estão incluindo a religião numa nova forma de construção de
identidade e de engajamento individualizado, com a mudança do eixo ético de
postura protestante para um eixo de fruição, de gozo, de aproveitamento, de prazer
com a vida.
É esse neopentecostalismo que nos interessa, esse de terceira onda, ou pós
terceira onda, que oferece experiências de fruição e de prazer alicerçados em
palavras de empoderamento e em espetáculos de música e som que dinamiza a
relação com a atualíssima Sociedade Informatizada, Global e em Rede (CASTELLS).
Uma Igreja que deve oferecer aos seus fiéis, sob o risco de os perder, uma constante
inovação nas programações. O bem estar deve vir, não de experiências supranormais
20

ou carismáticas, no sentido primeiro do pentecostalismo com o exercício da


glossolalia (falar línguas estranhas), ou, de profecias, mas no mergulhar num
ambiente espetacular de som e imagem em que o fiel se vê envolvido com doses
maciças de emoção e de construção cênica e a partir daí pode experimentar a
sensação de prazer e de gozo psíquico.

O QUE É ISSO DE MUNDO LÍQUIDO MODERNO?

O processo de modernização, que se registrou em termos históricos com as


inovações e desafios após o século XV, não parou seu movimento homeostático e
alcançou/alcança sempre maior velocidade. Daí o uso da metáfora da água como
elemento de mudança e construção de pensamento. Assim explica Bauman (2011)
sobre o que é a fase líquida da modernidade:

O que torna “líquida” a modernidade, e assim justifica a escolha do


nome, é a sua “modernização” compulsiva e obsessiva, capaz de
impulsionar e intensificar a si mesma, em consequência do que,
como ocorre com os líquidos, nenhuma das formas consecutivas da
vida social é capaz de manter seu aspecto por muito tempo.
“Dissolver tudo que é sólido” tem sido a característica inata e
definidora da forma de vida moderna desde o princípio; mas hoje, ao
contrário de ontem, as formas dissolvidas não devem ser substituídas
(e não são) por outras formas sólidas – consideradas “aperfeiçoadas”,
no sentido de serem até mais sólidas e “permanentes” que que as
anteriores, e portanto até mais resistentes à liquefação. No lugar de
formas derretidas, e portanto inconstantes, surgem outras, não
menos – se não mais – suscetíveis ao derretimento, e portanto
também inconstantes (BAUMAN, 2011, Posição164).

Para Bauman (2011) toda a cultura se apresenta na sua forma líquida


atualmente, mas de forma especial naquela parte do planeta em que os apelos da
própria cultura são formulados e transmitidos de forma ávida e insistente, desprovida
do papel de “aia de nações, Estados e hierarquias de classe...” (BAUMAN, 2011,
Posição, 171). Na modernidade líquida a cultura se concentra em atender as
necessidades dos indivíduos, resolver problemas e conflitos individuais (BAUMAN,
2011, posição, 174). Estar apresentando coisas novas, experiências novas, produtos
que trazem novas sensações. Esse favorecimento à busca incessante, ao consumo
renovado, imprime a ideia de que no mundo tudo se compra, que o desejo é mais
importante do que a necessidade, de que o desejo é o seu próprio propósito...
(BAUMAN, 2001, p. 87).
Esse quadro constitutivo da sociedade moderna e líquida já é o bastante para
fazermos um encontro que permita a sua aproximação com a instituição “geradora
de sentido por excelência: a religião”. Podemos adiantar que o fenômeno religioso,
que inclui alto grau de complexidade, envolve o fenômeno em si juntamente com as
suas características estruturantes – mitos, símbolos, ritos e dogmas -, e inclui uma
21

historicidade, uma sociologia e antropologia próprias. Como se já não bastasse a


complexidade e imbricamento dessas questões que envolvem a religião, soma-se
ainda a acertada observação de Hervieu-Lèger (2008):

De outro lado, esta mesma modernidade secularizada oferece,


geradora que é, a um tempo, de utopia e de opacidade, as condições
mais favoráveis a expansão da crença. Mais a incerteza do porvir é
grande, mais a pressão da mudança se intensifica e mais as crenças
proliferam, diversificando-se e disseminando-se ao infinito. O
principal problema, para uma sociologia da modernidade religiosa, é,
portanto, tentar compreender conjuntamente o movimento pelo
qual a Modernidade continua a minar a credibilidade de todos os
sistemas religiosos e o movimento pelo qual, ao mesmo tempo, ela
faz surgirem novas formas de crença. (HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 41).

A autora lança o desafio de entendermos como a religião se “despedaça” na


atualidade permitindo ao fiel, dependendo do sexo, da classe, do nível intelectual e
de outras características, realizar uma bricolagem de crenças distintas e, às vezes,
contraditórias, que negam por isso o fim das religiões como quiseram/querem os
propagadores da tese de secularização.

PENTECOSTALISMO PRÊT-À-PORTER E MODERNIDADE LÍQUIDA

Uma religião que se adapta ao modelo atual de produção, circulação e compra


de bens simbólicos1, pode ser chamada de religião “sob medida” - prêt-à-porter. No
caso desse pentecostalismo não percebemos que haja uma negação ou construção
histórica/teológica em conflito aberto com suas antecessoras. O que existe é uma
ênfase em outros aspectos – estéticos, espetaculoísta - que não os teológicos ou
éticos das “religiões éticas” estudadas por Weber (2014).
Vale lembrar que ao falar do surgimento da religião Protestante do século XVI
e XVII, Weber (2014) aponta para o surgimento de “seitas éticas que colaboraram
para o avanço do capitalismo”. Ele aponta o modo de vida metódico, moralmente
orientado e ascético dessas seitas possibilitando o desenvolvimento do capitalismo.
“Na América, a velha tradição respeitava mais o homem que se fez sozinho do que o
herdeiro” (WEBER, 2014, p. 356), com essa afirmação Weber (2014) aponta a força
do individualismo burguês ali presente na formação religiosa e na sua transferência
da Europa para a América. Ele ainda enfatiza que a concepção de um Deus que
distribui bens aos homens de acordo com o comportamento destes ou com
sacrifícios, e que controla todo o mundo se difundiu bem em todas as sociedades.

1
Na linguagem do sociólogo Pierre Bourdieu (1974) existe nas nossas sociedades a necessidade de provisão
material, e, de provisão daquilo que não é material, como sentido e felicidade. Esses últimos seriam bens
simbólicos. Os “bens religiosos”, ou, “bens de salvação” são “capital simbólico” e a igreja, ou Igrejas,
distinguem muito bem entre aqueles que estão desprovidos desses bens, os fiéis em geral, e aqueles que estão
de posse desses bens ou os manipulam. A gestão dos “bens de salvação”, “bens simbólicos” é realizada por um
corpo de sacerdotes que aparelham suas instituições para a disputa num mercado, o mercado religioso.
22

Nas seitas protestantes isso se difundiu amplamente e o exemplo desta “ética


tipicamente burguesa” pode ser dada nos princípios da seita metodista na América
que proibia: 1. Conversar enquanto compravam e vendiam (“regatear”); 2. Negociar
as mercadorias antes de pagos os tributos aduaneiros sobre elas; 3. Cobrar juro mais
alto do que o permitia a lei do país; 4. “Amontoar tesouros na terra” (significando isso
a transformação do capital de investimento em “riqueza consolidada”); 5. Tomar
empréstimos sem ter certeza de capacidade de pagar a dívida; 6. Luxos de todos os
tipos (p. 359, 360).
Na atualidade estamos diante de um “protestantismo” de outra modalidade. O
pentecostalismo que veio do movimento avivalista dos Estados Unidos no início do
século passado segue crescendo em número e em inovações. A ênfase na disciplina e
no ascetismo dos fiéis, tanto dos protestantes de origem histórica na Europa quanto
dos pentecostais no início do século XX, deu lugar para a estetização da fé aos moldes
da Modernidade Líquida: sede por novidades cúlticas (cultos temáticos com show
musical, emotividade intensa, uso de som e imagem); protagonismo intenso dos fiéis
e dirigentes via mensagens e postagens no WhatsApp, no Instagram e Facebook;
historicização instantânea dos cultos e programações da igreja por meio de imagens
feitas pelos fiéis, que ao mesmo tempo estão construindo uma identidade própria.
Essas características foram encontradas nas igrejas denominadas Church que se
encontram em Anápolis e em Goiânia – GO e foram instituições investigadas num
trabalho de doutorado concluído em 2018 na PUC – GO.2
Se antes, nas religiões analisadas por Weber (2014), os impulsos econômicos
ganhavam uma iluminação dada pelas seitas que louvavam o modo de vida ascético,
na atualidade o modo de vida individualizado, festivo, e com estilo para ser
“fotografado e filmado”, é que fazem “a cabeça” da juventude conectada às últimas
novidades do mundo cultural e tecnológico. As qualidades necessárias para participar
da religião-feita-sob-medida é estar pronto para a próxima novidade. É cultivar algo
que deverá ser descartado para dar lugar a uma nova programação, acontecimento
ou série cinematográfica. Não é a rejeição do mundo, como no pentecostalismo
anterior (de Primeira e Segunda Onda), nem fuga do mundo (como nas religiões
monásticas), o que parece estar ocorrendo é a máxima fruição da cultura mundial
globalizada. Aproveitar os eventos musicais, as séries de TV a cabo, o cinema, os
eventos esportivos e toda a cultura produzida pela Mass Media para “atualizar” a
transmissão e a mensagem religiosa numa programação comunicativa, alegre,
intensa e cheia de sensações.
Segundo Weber (2014, p. 279) a religião não está voltada para o extraterreno,
mas para a conquista de coisas neste mundo. Percebe-se que dentre as “coisas” que
são buscadas de forma intramundana, a fruição, o espetáculo, o show e o
empoderamento, ganhou o seu espaço. A vertente religiosa pentecostal que se
apresenta na forma sob medida oportuniza um tipo de empoderamento e também
uma forma de “aproveitar a vida” nos moldes dos pacotes turísticos ou parques de

2
SAHIUM, Pedro Fernando. Church in Connection: Igreja, Show Midiático e Juventude. Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião, Goiânia, 2018.
23

diversões temáticos, entretenimentos e outras fruições. Essa segunda via


oportunizada pelas religiões lembra a fala de Bauman sobre a cultura que ativa uma
“busca incessante”, ao “consumo renovado”.
Temos nesse ponto uma aproximação da religião com o mudo da moda. Na
mesma obra, sob o título de “Sobre moda, identidade líquida e utopia nos dias atuais:
algumas tendências culturais no século XXI”, Bauman lembra que o mundo da moda
sempre foi aquele mundo dos fluxos permanentes, e, como fenômeno social está
sempre se renovando e não conhece nenhuma lei de entropia. Na moda os indivíduos
vislumbram a possibilidade de verem realizados os seus desejos de singularidade, de
distinção das massas, e, de pertencimento. Para isso é preciso estar atento às
mudanças, “ao que já saiu de moda”, e permanecer no topo com aquilo que é novo e
atual. Estar na moda é um estilo de vida que exige “permanente e interminável
revolução” (BAUMAN, 2011, Posição, 311). Manter-se em movimento sempre,
progredir é não ser preguiçoso, nem indolente ou impudente.
Se “distinguir da massa” e, ao mesmo tempo, “fazer parte”, “pertencer”.
Parece uma tarefa improvável mas acontece no mundo da moda, enfatizado por
Bauman (2011), e que pode se estender às instituições religiosas. Na igreja que se
adequa à linguagem dos smartphones, que é ao mesmo tempo uma linguagem
imagética, escrita, falada e de fluxo constante, os serviços religiosos são construídos
pelos fiéis e pelos dirigentes concomitantemente e por meio de um aparato técnico
de som e imagem altamente profissionais. Constatamos que no pentecostalismo
prêt-à-porter os dirigentes não podem descansar nunca. Criar, montar, interpretar e
atuar numa programação cúltica temática, em que a cada domingo ou a uma série de
semanas mudam-se os cenários, figurinos, assistentes, trilha sonora e falas, dá um
trabalho hercúleo. Bauman (2011) observa:

O tempo realmente passa, e o truque é manter o mesmo ritmo dele.


Se você não quer afundar, deve continuar surfando, ou seja,
continuar mudando, com tanta frequência quanto possível, o guarda-
roupa, a mobília, o papel de parede, a aparência e os hábitos – em
suma, você (BAUMAN, 2011, Posição, 336).

O pentecostalismo prêt-à-porter oferecer serviços especializados. Nesse


sentido as instituições religiosas se renovam pelo viés do mercado cultural global. Se
esse “consumidor estético”, como no caso das igrejas Churchs, será apenas um tipo
superficial, pois prefere os câmbios constantes de cenário, performances e
linguagens ou aquilo que o mercado cultural apontar, nós não o sabemos. Poderá
uma gramática religiosa que se movimenta apenas na superfície, atender às
demandas de respostas existenciais dos seres humanos? Aquilo que é “sob medida”
poderá, concomitantemente, atender aos anseios do “aqui e agora”, duma sociedade
de consumo, enquanto prepara seus fiéis para a jornada moral e doutrinária da
religião cristã? Sabemos que uma religião precisa, dentre outras coisas, de emoções,
de dramas, de encenação – essa linguagem é fundamental existencialmente falando –
mas será isso um risco de transformação das igrejas em shoppings centers?
24

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zigmunt. Globalização as consequências humanas. Rio de Janeiro: Zahar,


1999.
_____. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
_____. A cultura no mundo líquido. Rio de Janeiro: Zahar, 2011.
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. Org. por Sérgio Miceli. São Paulo:
Perspectiva, 1974.
CASTELLS, Manuel. A sociedade em rede. São Paulo: Paz e terra, 1999.
CRAWFORD, Robert. O que é religião. Petrópolis, RJ: Vozes, 2005.
FRESTON, Paul. Breve História do pentecostalismo brasileiro. In: VV. AA. Nem anjos
nem demônios. Petrópolis: Vozes, 1994.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: sociologia do novo pentecostalismo no Brasil.
São Paulo: Loyola, 1999.
MARIANO, Ricardo; MOREIRA, Alberto da Silva. Expansão, diversificação e
transformação do pentecostalismo brasileiro. In: MOREIRA, Alberto da Silva;
TROMBETTA, Pino de Lucà (Orgs). Pentecostalismo globalizado. Goiânia: Ed. da PUC
Goiás, 2015, pp. 47-69.
NASO, Paolo. Pentecostalismo e protestantismo. In MOREIRA, Alberto da Silva;
TROMBETTA, Pino de Lucà (Orgs). Pentecostalismo globalizado. Goiânia: Ed. da PUC
Goiás, 2015. p. 257-271.
ORO, Ivo Pedro. O fenômeno religioso, como entender. São Paulo: Paulinas, 2013.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa.
Brasília: UNB, 2014, v. 1.
25

O SECULARISMO E O PLURALISMO RELIGIOSO:


INFLUÊNCIAS NAS INSTITUIÇÕES MANTENEDORAS DO
SAGRADO

ADENILTON MOISES DA SILVA


Mestre em Ciências da Religião
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
[email protected]

ANA MARGARETH MANIQUE DE MELO


Mestre em Ciências da Religião
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
[email protected]

RESUMO: Partindo das experiências pentecostais e neopentecostais, seja do universo


protestante ou católico, como a RCC (Renovação Carismática Católica), este artigo
teve como objetivos analisar o comportamento e as ações utilizadas pelas instituições
gerenciadores do Sagrado, a partir do pluralismo religioso e do secularismo; observar
as influências originárias do advento do relativismo contemporâneo e suas interfaces
mercadológicas; compreender os meios práticos que as instituições se utilizam para
concorrerem com o mercado consumista que promete em tempo real a felicidade e o
sucesso imediato e analisar do discurso religioso, que se nutri do marketing
capitalista, vendendo sonhos e esperanças de felicidade para seus fiéis – clientes,
como promessas de bens temporais e salvação eterna. Na intenção de alcançar
respostas para os objetivos traçados, este artigo se apoiou no método bibliográfico,
no qual se buscou material capaz de apresentar e descrever o Mercado religioso e
suas estratégias de vendas. Na tentativa de frear o pluralismo religioso ou
secularismo, nota-se que a própria instituição cria necessidades de consumo religioso
para o fiel, que numa visão mais aguçada, percebe-se que se trata de uma estratégia
para prendê-lo a si mesma, interrompendo desse modo a possibilidade do trânsito
religioso, tornando eficaz seu discurso religioso-mercantil, além de provocarem um
deslocamento no modo de atuar dessas igrejas. Porém, embora alguns fiéis tenham
se apercebido da presença de certa comercialização da fé, esta é aceita sem muitos
questionamentos, pois o momento atual, vivido por toda a humanidade como um dos
mais difíceis, reflexo da pandemia causada pelo COVID-19, faz com que os valores
monetários oferecidos pelos líderes religiosos para os produtos a serem
comercializados, tornem-se irrelevantes, e passaram a considerar que esta é uma
forma de se manterem conectados à proteção proveniente de Deus.

Palavras-chave: Pluralismo Religioso; Secularismo; Sagrado; Instituições; Economia.


26

INTRODUÇÃO

As instituições religiosas inseridas no contexto histórico, em cada época


experimentam as mudanças dos costumes e do pensamento das pessoas. As
mudanças trazidas pela pandemia através do Covid-19, revelaram ainda mais as
atitudes já existentes nas instituições gerenciadoras do sagrado, aqui, explicitamente,
abordam-se as oriundas do cristianismo, sobretudo, o pentecostal e neopentecostal.
Nesse contexto, dado que o pluralismo religioso e o secularismo são cada vez mais
realidades desafiadoras. Segundo Berger (2017), a teoria da secularização,
compreendida como um declínio necessário da religião, serviu durante algum tempo
como um paradigma para o estudo da religião. Mas ela não pode mais se sustentar
diante da evidência empírica, por isso seria necessário um novo paradigma: “Eu
penso que ele deve basear-se nas muitas implicações do fenômeno do pluralismo.
Proponho que um novo paradigma deveria ser capaz de lidar com dois pluralismos –
a coexistência de diferentes religiões e a coexistência de discursos religiosos e
seculares” (BERGER, 2017, p.9). Essa coexistência deve existir não apenas nas mentes
dos indivíduos, mas também no espaço social.
Na atual conjuntura podem ser observadas tentativas de apresentar uma
sacralidade arrebatadora no convencimento da compra de produtos oferecidos,
explícita, por exemplo, na atitude do pastor Waldomiro Santiago da Igreja Mundial do
Poder de Deus, quando este difundiu a existência de uma semente de feijão,
supostamente milagrosa, a qual seria recebida pelo fiel, em sua própria casa, desde
que realizasse um depósito no valor de R$ 1.000,00 em benefício daquela Igreja.
Depreende-se, então, que a logística institucional procura satisfazer e
favorecer o bem-estar da clientela, de modo a manter um público consumidor em ato
e potência, segundo as diretrizes preestabelecidas pela equipe mantenedora do
sagrado.

SECULARISMO E PLURALISMO RELIGIOSO

As novas tecnologias, os espaços virtuais, as relações híbridas impõem uma


releitura do tradicional, produzindo um deslocamento de eixo central para algo
pulverizado, por isso, “as religiões, cada uma delas, são totalidades complexas de
resposta ao divino” (QUEIRUGA, 2009, p. 16). O secularismo é, evidentemente, essa
situação favorável ao reconhecimento da laicidade das coisas e das pessoas para
prática do bem comum. Afirma Berger: “o pluralismo é uma situação social na qual
pessoas de diferentes etnias, cosmovisões e moralidades vivem juntas pacificamente
e interagem amigavelmente” (BERGER, 2017, p. 20).
Entende-se, então, que

A pluralidade e fragmentação religiosa, portanto, são frutos da


própria dinâmica moderna. A secularização multiplica os universos
religiosos, de forma que a sua diversidade pode ser vista como
interna e estrutural ao processo da modernidade. A secularização e a
27

diversidade religiosa estão associadas diretamente a um mesmo


processo histórico que possibilitou que as sociedades existissem e
funcionassem sem precisar estar fundadas sobre um único princípio
religioso organizador (STEIL, 2001, p.116).

Pode-se afirmar que a destradicionalização representa a crise de credibilidade


que tem surgido nos tradicionais sistemas religiosos, demonstrando a emergência
crescente de novos modos de crer. A ideia de uma religião única e verdadeira não
encontra ecos no cenário secularizado. Os múltiplos discursos das religiões, variando
o contexto sociocultural, elaboram suas definições teológicas a respeito de Deus, que
tanto serve para fundar a instituição sobre o primado da transcendência como para
tornar a ideia de Deus um objeto de manuseio interno e de veracidade das ações
religiosas, afirmando ser ele o fundador, conferindo caráter sagrado a mesma
instituição. Desse modo, o que caracteriza o tempo atual “não é a mera diferença
com respeito à crença, mas a perda de sua “regulamentação” por parte de das
instituições tradicionais produtoras de sentido. O que ocorre é uma “bricolagem de
crenças”, uma individualização e liberdade na dinâmica de construção dos sistemas
de fé” (TEIXEIRA apud HERVIEU-LÉGER, 2008, p. 9).
Portanto, as instituições cristãs têm fabricado, a partir de seus interesses de
gerência, novas experiências trazidas de outras tradições, produzindo a bricolagem, a
fim de se apresentarem como as mais abençoadas e, dessa forma, as que mais vão
suprir as necessidades dos frequentadores dos templos.

O DISCURSO RELIGIOSO E A VENDA DO SAGRADO

Tudo tende a ser fluído, transcendental segundo a propaganda, sejam coisas,


pessoas, sonhos, relacionamento. Por traz dessa fluidez social está a ideia da
aceleração mercadológica e seu jogo comercial, na qual se percebe a lógica do
consumo, que é “um certo tipo bem específico de convívio humano onde as vontades
e desejos são manipulados para que as pessoas consumam cada vez mais” (SANCHEZ,
2012 p.113). Logo, “o consumidor torna-se um religioso, pois quer algo além da
mercadoria; ele procura transcender a mercadoria e encontrar nela elementos que
estão ocultos: a felicidade e a salvação” (SANCHEZ, 2012, p. 126).
Dentro do universo religioso, sobretudo, neopentecostal, consumir é
sinônimo de poder. Torna-se uma demarcação de território, um status
sociorreligioso, onde o sujeito se apresenta emponderado de uma
representatividade, a partir de suas posses e de seu poder de compra. A força de
consumo garante um destaque social, além de lhe causar a sensação de bem-estar e
prazer, pois, imagina-se abençoado por Deus, que o enriquece em cada aquisição,
isto é, posse material e social. Pode-se pontuar que o universo simbólico, neste
contexto, é o areópago do utilitarismo religioso construído em cima das ruínas da
fantasia da não consciência que o fiel tem de si mesmo.
O comércio religioso não se restringe apenas às instituições mantenedoras do
sagrado. O mercado secular também usa de suas estratégias e desses produtos em
28

suas prateleiras. As investidas das instituições na venda de seus produtos religiosos


têm ganhado cada vez mais novos meios estratégicos de marketing comercial. Não só
a mídia impressa, como também a digital. A rede mundial dos computadores, isto é, a
internet se tornou o veículo mais eficaz de propagação desse comércio lucrativo.
Nesse ciberespaço são vendidos objeto, ideias, discurso, performances, tudo em
nome de Deus.
Diante do pluralismo religioso, a teologia da prosperidade surge como uma
válvula de escape para o enfrentamento da desregulação religiosa, onde cada vez
mais, na contemporaneidade, a identidade religiosa firma-se pela escolha individual e
não pelo conceito de comunidade participante. Por isso, para o convencimento dos
frequentadores se exige um discurso que promova bênçãos e prosperidades, segundo
as necessidades do clientelismo, pois é uma religião instrumental mais do que
sacramental e escatológica.

A INSTITUCIONALIZAÇÃO COMO UM ÍDOLO SACRIFICAL

O princípio ético-religioso, estabelecido no mandamento “amar a Deus sobre


todas as coisas, e ao próximo como a si mesmo” foi sacrificado nos altares
estabelecidos como bancadas de comércio, estabelecidas nos presbitérios das mais
diversas denominações cristãs.
Para Berger (2017, p.84), “Muitas instituições religiosas têm dificuldades com
a liberdade religiosa, especialmente quando reivindicam possuir verdades
divinamente reveladas, e ainda mais quando elas um dia tiveram uma posição de
monopólio numa sociedade”.
A idolatria do consumo não obedece ao princípio da conversão, pelo
contrário, impõem-se como um mercado desumano, onde as vidas são sacrificadas
independentemente das necessidades básicas da vida dos fiéis.
A partir dessa perspectiva, as novas diretrizes estabelecidas, a partir do
pluralismo religioso, buscam adequação às novas linguagens da contemporaneidade,
na tentativa de refazer novos trajetos de reordenação institucional. As investidas são
direcionadas, sobretudo, para os meios de comunicação, enviesados por programas
de rádio, TV, internet. Esse traçado comercial serve para combater o pluralismo
religioso. São tentativas internas para manter os fiéis sobre o mesmo credo, torná-lo
um “praticante regular”, assim, cada instituição lança suas estratégias perante o
poder da secularização, na tentativa de reordenar um mundo religioso fragmentado
por tantas ofertas e doutrinas.
Os eventos religiosos também acontecem nos espaços profanos, por
exemplo, aluguéis de estádios de futebol, arenas, ginásios, centros de conversões.
Outro investimento que apresenta poder social são as construções dos templos
megalomaníacos, que se traduzem em shoppings centers do sagrado. Esses exercem,
pelo víeis da religião, elementos compatíveis aos traçados pelo mercado de consumo,
lugar onde as pessoas buscam novos símbolos que ofereçam sentido para suas vidas.
29
Na sociedade de consumidores, os shoppings centers não são apenas
lugares de venda e compra de objetos que podem satisfazer. São também
lugares onde as pessoas compram o “sentido” para suas vidas, o alívio para
suas angústias e a resposta para seus desejos. São símbolos de uma
sociedade marcada pelo vazio e pelo desejo insaciável do ter (SANCHEZ,
2012, p. 127).

Para essa quebra de monopólio moderno contribui a razão secular, dada no


avanço da tecnologia e na produção do capital de mercado, onde os novos métodos
comerciais, por meio do marketing como modelo organizacional da sociedade, vão
quebrando a ideia de princípio único, tornando as coisas múltiplas e transitórias.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nessa múltipla paisagem social, o paradigma da religião deixa de ser o


elemento fundante da sociedade, torna-se mais um fator constituinte da experiência
sociocultural e do conhecimento, do consumo e da propaganda, que agora precisa
dialogar com outros saberes e experiências multiculturais e de uma pluralidade
teológica imensurável. A realidade sociorreligiosa se abre as exigências do pluralismo
como um fator inerente aos tempos modernos.
O mundo pentecostal e neopentecostal, seja de raiz protestante ou católica,
está enfrentando esse trânsito religioso que acontece a todo instante. O sagrado se
“viralizou” em vendas pela rede mundial dos computadores, pelo comércio de rua,
nas galerias dos shoppings centers, nas igrejas, nas ruas e suas esquinas, nas mesas
dos bares, onde as opiniões e as vendas do sagrado são diversas, podendo ser
parcelada em cartões de crédito. Talvez, por isso, o panorama do universo religioso
se reordenar segundo as implicações de cada época, sobretudo, num contexto de
experiências híbridas, mesmo que para algumas instituições o pluralismo se torne
uma ameaça a sua identidade, vindo a minar as estruturas basilares. Tais modelos
religiosos precisam reforçar suas identidades nesse momento plural, pois precisam
frear a perda dos fiéis, além da busca de controle dos mesmos, a fim de, administrar
seus recursos e seus desejos de consumo.
Por fim, as instituições mantenedoras do sagrado, nesse tempo de
secularismo e pluralidade religiosa, correm os riscos mais vulneráveis a uma
identidade, perder os pilares essenciais que as sustentam. Nesse contexto, faz-se
necessário revisitar a ética cristã, sobretudo, para reaprender o dever de se aplicar o
princípio evangélico de amor ao próximo na gratuidade do “ser” e não do “ter”.
A religião tende a virar uma produção de barganha, em vez de manter-se
como princípio ético norteador favorecedor do respeito, da caridade e do
reconhecimento do outro pelo simples fato de existir, e não cegar as consciências
para torná-las objetos de manipulação religiosa-comercial. É preciso que a relação
religião e economia seja reavaliada para que, como pilares da sociedade que são,
possa contribuir para o desenvolvimento desta de modo a que seus integrantes
vivam a religiosidade como genuína forma de transcendência e não como moeda de
troca.
30

REFERÊNCIAS

BERGER, Peter L. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da


religião numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.
QUEIRUGA, Andrés Torres. O diálogo das religiões. São Paulo: PAULUS, 2009.
SANCHEZ, W. Lopes; GUERREIRO, S. Espiritualidade do consumismo. In: VILHENA,
Maria Ângela; PASSOS, João Décio (org.) Religião e Consumo: Relações e
discernimentos. São Paulo: Paulinas, 2012.
STEIL, C. Alberto. Pluralismo, modernidade e tradição. In: Ciências Sociais e Religião.
Ano 3, nº 3, outubro de 2001.
TEIXEIRA, Faustino. Apresentação. In: HERVIEU-LÉGER, Daniele. O peregrino e o
convertido: a religião em movimento. Petrópolis: Vozes, 2008.
31

O CAPITALISMO COMO RELIGIÃO E SUA EXPANSÃO DE


FRONTEIRAS NO BUDISMO MAHĀYĀNA BRASILEIRO

PATRICIA GUERNELLI PALAZZO TSAI


Mestranda em Ciências da Religião pela UMESP,
Formada em Budologia pelo ITBC da Associação Buda Darma.
[email protected]

RESUMO: Benjamin afirma o capitalismo como uma religião, e não que seja uma
religião, o que nos traz que o capitalismo não é religião, mas assume funções e papeis
que antes eram próprias da religião. O presente artigo tenta demonstrar, através da
análise de como alguns elementos budistas foram introduzidos no Brasil e se
destacam como produtos essenciais na produção de bem-estar, que há uma
associação do capitalismo com um Budismo alterado de seus parâmetros fundantes.
Assim como aconteceu com o Cristianismo – guardadas as devidas diferenças – tenta-
se mostrar como acontece esse processo e como se dão as alterações na prática e na
concepção do Budismo que acabam gerando um desvirtuamento do sentido
soteriológico. O budismo Mahāyāna parte do pressuposto da busca do completo
despertar, samyaksaṃbodhi, não apenas para o próprio praticante, mas também
para o benefício de todos os seres sencientes; esse benefício passa pela compreensão
dos seres, não apenas por uma mera compra de artefatos ou pelo uso de textos
numa língua que as pessoas não compreendem. Os pilares fundamentais da tradição
budista Mahāyāna são contrários a essa ‘felicidade’ promovida pelo neoliberalismo,
da busca incessante de bens materiais e do individualismo atomizado. Por essa razão
é que produtos rentáveis ligados ao budismo são destacados de suas origens e do seu
sentido, e transformados pelo mercado religioso para reforçar os valores culturais
dominantes.

Palavras-chave: Budismo Mahāyāna; Bem-Estar; Mercado; Capitalismo; Budismo


brasileiro.

CAPITALISMO COMO RELIGIÃO E SUA RELAÇÃO COM O CONSUMO DA


“FELICIDADE”

A associação entre capitalismo e religião é algo que causa bastante celeuma


nas discussões tanto nas áreas de pesquisa em religião quanto nas ciências
econômicas, sendo um tema impactante, mas que merece bastante reflexão. Um dos
primeiros pensadores que trouxe grandes contribuições para pensar a relação entre
duas áreas aparentemente distintas, mas que muito se comunicam foi Walter
Benjamin (1892-1940).
32

Benjamin afirma sobre o capitalismo como uma religião, o que nos traz que o
capitalismo não é religião, mas assume funções e papeis que antes eram próprias da
religião: “O capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o capitalismo está
essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e
inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta”
(BENJAMIN, 2013, p. 21).
O capitalismo como religião passa a constituir uma área vasta da reflexão,
ainda mais pensando no aspecto de qual resposta as religiões tentariam oferecer a
esse sistema. Podemos utilizar uma pista deixada por Hannah Arendt, em seu texto
intitulado Ação e Felicidade. Arendt faz sua reflexão a partir da Declaração da
Independência dos EUA: “É um fato peculiar, constantemente notado, que Jefferson,
quando esboçou a Declaração de Independência [dos EUA], mudou a fórmula
corrente pela qual os direitos inalienáveis estão enumerados como ‘vida, liberdade e
propriedade’ para ‘vida, liberdade e busca da felicidade’ (2018, p. 138 e 139).
Essa declaração estadunidense, que serviu como uma das inspirações para a
elaboração da Constituição Federal brasileira, bem como a de outros países, é uma
das fontes para o surgimento do american way of life, em cuja base está o sonho de
vida através do consumo.
Se a felicidade está atrelada à propriedade, então o consumo é o meio para se
obter essa felicidade, ganhando cada vez mais destaque nos tempos atuais. Dessa
forma, seria detentor de direitos aquele que consome, aquele que possui condições
materiais para tal. Os que não tem as condições mínimas para consumir são excluídos
do sistema de garantias, por não se enquadrarem nos requisitos e pressupostos de
funcionamento da sociedade.

TRÊS RAÍZES AFLITIVAS E SUA RELAÇÃO COM A CRIAÇÃO DO MERCADO DA


“SAÚDE” E “BEM-ESTAR”

Segundo a tradição budista Mahāyāna, a ganância, o desejo sedento por


conforto e bem-estar através do consumo, é produzido pelas três raízes aflitivas:
avidyā (ignorância distorciva), upādāna (apego fixado ou aflitivo) e dveṣa (ódio-
ressentimento)3.
O apego fixado então é uma exacerbação das qualidades desejáveis do objeto,
que leva a um desejo sedento, tṛṣṇā, uma vontade de ter para si, mas de uma
maneira em que não é possível ver outra saída a não ser ter o objeto como posse, o
que pode ser entendido também como cobiça. E com isso é dado o início a um ciclo
vicioso na crença em ter, possuir objetos para ser único ou diferenciado, satisfazendo
os apetites que são intermináveis.

3
Os termos técnicos traduzidos do sânscrito foram baseados nas traduções elaboradas por Plínio Marcos Tsai,
como constam na obra Sermão do Grande Fundamento, pp. 421, 780 e 793. Na mesma obra há os equivalentes
no cânone chinês.
33

Dveṣa é o termo budista para ódio-ressentimento, que implica ter uma


aversão e repulsa aos objetos que provocam dor ou desprazer, ou que parecem
contribuir para que os objetos de apego se percam ou sejam tirados da posse.
Nem todo desejo é necessariamente ruim, entretanto. O desejo que provoca
uma fixação tal que acarreta uma busca incessante por conseguir aquele objeto, é
isso o que a tradição Mahāyāna chama de apego aflitivo ou fixado, upādāna.
Quando esse desejo não é satisfeito, e não é possível alcançar o objeto
desejado, aí ocorre a frustração, que leva para o desprazer e rapidamente, na mesma
intensidade em que foi estimulado e aumentado o apego fixado, dar-se-á o ódio-
ressentimento.
O mercado da “saúde” e do “bem-estar” acaba por produzir uma ansiedade
ainda maior por produtos cada vez mais novos e de ação imediata. Como se fossem
‘aspirinas’, que agem sobre os sofrimentos existenciais4 e sobre a insatisfação e o
descontentamento gerados pela compulsão da busca da felicidade através dos bens
materiais e das experiências sensoriais (como é mencionado um dos extremos dentro
do Sūtra do Giro da Roda do Dharma). Há uma necessidade de ação rápida, sem que
o modo de vida, de pensar e de se relacionar com o mundo mudem.

O QUE O BUDDHA PROPÔS

Após ter ensinado os seus cinco primeiros alunos o Sūtra do Giro da Roda do
Dharma (Dharma-cakra-pravartana-sūtra), o Buddha disse a eles para ensinar.
Mesmo após a morte do Buddha e a disseminação das comunidades budistas
pelo território indiano, com o rei Aśoka (séc. III a.C.), há uma expansão do Dharma
para os reinos vizinhos, o que ele chamou de dharma-vijaya ou conquista através do
Dharma5.
Os textos budistas eram compilados e escritos em outras línguas mantendo o
seu rigor para não haver alterações no que fora dito pelo Buddha, sendo que a
variedade de formatos de templos, vestes e ritos se devem à adaptação aos locais em
que o budismo foi disseminado6.
Porém, ao chegar no Brasil vemos uma segunda onda, diferente da ocorrida da
Índia para outros países: a manutenção das culturas estrangeiras (que por sua vez são

4
Por sofrimentos existenciais utilizamos a expressão que é da tradição, que se refere aos tipos de sofrimento
inexoráveis segundo o Buddha histórico ou Buddha Śākyamuni, que são os sofrimentos do nascimento,
envelhecimento, adoecimento e morte. Há outros sofrimentos que decorrem desses primeiros em combinação
com as aflições raízes e suas subsidiárias. O Sūtra mencionado é o do Giro da Roda do Dharma – Dharma-
cakra-pravartana-sūtra em sânscrito, ou 轉法輪經 (Zhuǎn fǎlún jīng, em mandarim tradicional), preservado no
cânone chinês, e ཆོས་ཀྱི་འཁོར་ལོའྱི་མདོ (chos kyi ‘khor lo’i mdo) no cânone tibetano.
5
Édito n° 13 de Aśoka, traduzido para língua inglesa por HULTZSCH, Eugen. Inscriptions of Asoka. India: Oxford
Clarenden Press, 1925.
6
Sobre os textos canônicos podemos mencionar por exemplo o caso da China, em que durante séculos
câmaras de tradução dos textos a partir do sânscrito e do páli foram traduzidos para o mandarim, com rigor
aos termos técnicos, de maneira a não perder o que fora dito pelo Buddha. O mesmo ocorreu em outros países
asiáticos e graças a esses esforços os cânones foram preservados até os dias de hoje. A adaptação cultural
também é algo interessante de ser observado diante da grande quantidade de escolas surgidas a partir das
primeiras divisões, a partir dos concílios budistas.
34

adaptações) com pouca tradução dos textos e pouca explicação sobre as


adaptações7.
Há de se mencionar ainda a proposta de manter os ritos em línguas não
compreensíveis pelo público brasileiro que, ao participar de tais cerimônias, sai como
entrou: muitas vezes sem entender, mas com a sensação de ter participado de algo
‘exótico’8. Podemos fazer um paralelo com a ideia de uma missa inteira em latim, na
qual somente o sacerdote compreende o que é dito, e o público está lá participando
sem entender o que deveriam fazer ou refletir nesses momentos.

MERCADO RELIGIOSO BUDISTA: MANTRAS MÁGICOS E MEDITAÇÕES


CONFORMISTAS

Com a ‘importação’ de produtos exóticos que promovem a espiritualidade dos


praticantes e que também servem para alcançar a ‘felicidade’ através do consumo
dos produtos, temos um estímulo para novidades no cenário budista Mahāyāna.
Nesse sentido, não causa espanto elementos como a vendas de mantras9 para os
toques de celular, que servem para afastar negatividades e aumentar o seu sucesso, e
outros produtos, como roupas exóticas e itens de prática ritual. Essas roupas e itens
têm uma razão de ser dentro do contexto do budismo indiano, chinês e tibetano, mas
para o mercado brasileiro são itens para demonstrar poder e não tem sentido algum.
Essa onda de mercantilização dos produtos religiosos guarda semelhança com
o período em que o Buddha histórico vivera, em que a classe, varna10, sacerdotal
brâmane vendia prosperidade material, colheitas fartas, sucesso na vida, boas
esposas que dão filhos homens à família, tudo isso através de práticas de rituais com
a recitação de mantras, como palavras mágicas e sacrifícios.
Ainda, é importante mencionar que todo o processo de aprendizado dos
textos védicos era para classes sociais específicas, as varnas, mais privilegiadas, em
uma língua de difícil acesso e exclusiva para a manutenção do poder. E foi com esse

7
Sobre esse fato há de se mencionar o esforço internacional para a tradução dos textos para o inglês, mas
pouco se fala para a língua portuguesa, sendo então uma religião em que há limitado acesso aos poucos textos
traduzidos e por isso há um reforço da ideia de exclusividade e ‘mágica’ pelo pensamento de mercado, quase
como um convite ao escapismo moderno das pressões.
8
O fator da preservação do budismo nesses países em que fora adaptado não pode ser descartado (sendo
importante em termos de história da tradição), entretanto, é necessário considerar que esse fechamento
dentro da cultura sem uma abertura para traduções, compreensão do que é adaptação e o que é parte do
budismo podem se tornar problemas para que uma compreensão adequada dos ensinamentos do Buddha
ocorra em uma adaptação ao país em que nos encontramos.
9
Mantra é uma palavra que possui muitos significados no sânscrito, mas uma das mais utilizadas é como
proteção mental, e não é uma palavra inerentemente mágica, apesar de ser assim vendida. Mantras existem
não apenas na tradição budista, mas também em outras religiões indianas. Os mantras seriam um método de
trazer à mente os ensinamentos do Buddha de maneira condensada em poucas sílabas ou versos, trazendo
proteção mental ao praticante através da reflexão sobre os sofrimentos e a aplicação dos antídotos. Vide
Dicionário Princeton de Termos Budistas.
10
A opção pelo termo classe ao se referir à varna se justifica diante de seu uso rotineiro por mais de um autor e
pesquisador na área do estudo do budismo, vide: TSAI, Plínio Marcos. História da Tradição Budista Indiana.
Valinhos: ATG, 2017. HIRAKAWA, Akira. A History of Indian Buddhism. Hawaii: University of Hawaii Press, 1990.
E também: HARVEY, Peter. An Introduction to Buddhism. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
35

sistema religioso que o Buddha histórico rompera, por inúmeras outras questões
além da mencionada.
O budismo Mahāyāna parte do pressuposto de buscar o completo despertar,
samyaksaṃbodhi, não apenas para o próprio praticante, mas também o beneficiar a
todos os seres sencientes e esse beneficiar passa pela compreensão dos seres, não
apenas por uma mera compra de artefatos ou textos em língua que não a que
compreendem.
O produto best-seller que foi extraído do budismo, removendo seus contextos
e sua finalidade se chama mindfulness e é um exemplo de como essa expansão de
fronteiras tem sido bem recepcionada nos mercados internacionais. Segundo Purser
(2019, p. 13)11 “Mindfulness é a mais recente iteração de uma espiritualidade
capitalista cuja linhagem remonta à privatização da religião nas sociedades
ocidentais. Isso começou há algumas centenas de anos como forma de reconciliar a
fé com o conhecimento científico moderno. A experiência privada não podia ser
medida pela ciência, então a religião foi internalizada.” Figuras importantes nesse
processo incluem o psicólogo do século XIX William James, fundamental para a
psicologização da religião, bem como Abraham Maslow, cuja psicologia humanística
forneceu o ímpeto para o movimento da Nova Era. Em Selling Spirituality: The Silent
Takeover of Religion, Jeremy Carrette e Richard King argumentam que as tradições da
sabedoria asiática foram sujeitas à colonização e mercantilização desde o século XVIII,
produzindo uma espiritualidade altamente individualista, perfeitamente acomodada
aos valores culturais dominantes e não exigindo nenhuma mudança substantiva em
estilo de vida.
Além disso, Purser traz mais elementos para pensarmos a questão do
capitalismo como religião e os produtos espirituais que tornam ainda mais
individualista e acomodada aos valores culturais dominantes que promovem
desigualdade social e conformismo: “Essa espiritualidade individualista está
claramente ligada à agenda neoliberal de privatização, especialmente quando
mascarada pela linguagem ambígua utilizada pelo mindfulness (PURSER, 2019, p. 14).
A ideia por detrás do mindfulness é o treino de atenção com o objetivo de
produzir mais, ser mais rápido nas tomadas de decisões além de um efeito de
relaxamento e aceitação de tudo o que ocorre. Enfim, é uma ferramenta excelente
para a produção de indivíduos isolados em suas visões próprias de mundo,
destacados do senso de coletividade, preocupados em produzir mais, obter mais e
serem úteis para o sistema capitalista. Tanto o é que o mercado dos aplicativos de
meditação para celulares teve um aumento considerável de rendimentos, chegando
aos 195 milhões de dólares em 201912 e em tempos de pandemia ainda mais13.
11
Todas as traduções do presente foram feitas pela autora, com o intuito de facilitar e promover o
entendimento.
12
Conforme matéria da Revista Forbes Brasil, n° 76, que pode ser acessada no sítio de internet:
https://www.forbes.com.br/forbeslife/2020/07/aplicativos-que-ensinam-a-meditar-viram-segmento-
bilionario/ (último acesso em 20/10).
13
Conforme matéria da Revista Veja que pode ser acessada no sítio de internet:
https://veja.abril.com.br/saude/o-sucesso-dos-aplicativos-para-meditacao-no-isolamento/ (último acesso em
20/10).
36

Como afirmado por Purser, “uma atenção plena verdadeiramente


revolucionária desafiaria o senso ocidental de direito à felicidade,
independentemente da conduta ética. No entanto, os programas de mindfulness não
pedem aos executivos que examinem como suas decisões gerenciais e políticas
corporativas institucionalizaram a ganância, a maldade e a delusão, que a atenção
plena budista busca erradicar. Em vez disso, a prática está sendo vendida para
executivos como uma forma de desestressar, melhorar a produtividade e o foco e se
recuperar do trabalho de oitenta horas semanais”. (PURSER, 2019, p. 14).
Mindfulness, então, é retirar um dos elementos do caminho óctuplo, que tem
uma finalidade interdependente por conta do Sūtra do Giro da Roda do Dharma
(Dharma-cakra-pravartana-sūtra), uma finalidade soteriológica14, que é revestida de
uma aparência de ‘aspirina’ milagrosa.
A atenção plena para ser válida segundo o Mahāyāna é atenção plena correta,
samyak-smṛti. E é correta porque busca eliminar os sofrimentos e causas dos
sofrimentos, como apontado por Purser, que se trata da ganância, da maldade e a
delusão nos termos usados por ele, que se tratam de desenvolvimentos que surgem a
partir das três raízes aflitivas, tri-akuśala-mūla, avidyā ou ignorância distorciva,
upādāna ou apego fixado/aflitivo e dveṣa ou ódio-ressentimento.
Os pilares fundamentais da tradição budista Mahāyāna são contrários a essa
‘felicidade’ promovida pelo neoliberalismo, da busca incessante por bens materiais e
individualismo atomizado, e por essa razão é que produtos rentáveis a partir do
budismo precisam ser destacados de suas origens e pensados a partir do mercado
religioso que reforça os valores culturais dominantes15.
Por fim, é importante trazer o que o XIV Dalai Lama tem de contribuição ao
assunto “Cultivar contentamento é especialmente importante, penso eu, no mundo
materialista de consumismo global, que vivemos hoje. A sociedade materialista
coloca as pessoas em constante pressão para querer mais e gastar mais, mesmo
quando suas necessidades básicas foram satisfeitas. Propagandas sofisticadas foram
feitas para excitar a imaginação e gerar a percepção de que bens materiais nos farão
felizes, e que enquanto não tivermos as últimas novidades de acessórios, dispositivos
e itens de moda, isso não ocorrerá. O materialismo da sociedade moderna faz com
que a prática da moderação e contentamento sejam uma necessidade diária se
queremos resistir ao sucumbir aos sentimentos de insatisfação pessoal, nascido do
desejo cobiçoso irrealista.”
Como resolver essa questão é algo a ser profundamente pensado não apenas
em uma das áreas do saber, mas de maneira interdependente e coletiva. A proposta
do presente é trazer à discussão o assunto do grande mercado que busca aliar as
respostas religiosas através de uma roupagem renovada, evidenciando a estreita
relação entre capitalismo e religião. Isso aparece especialmente dentro da
contribuição mencionada de Benjamin, Arendt e Dalai Lama, bem como a questão de

14
Por soteriológica entenda-se a finalidade de sair do ciclo de existências condicionadas pelo sofrimento
juntamente do ato de beneficiar a todos os seres sencientes.
15
Essa visão pode ser encontrada em diversos autores, como Matthieu Ricard e o próprio Dalai Lama.
37

que os ‘novos produtos’ acabam por desviar as pessoas do viés soteriológico,


especialmente no recorte proposto da tradição budista Mahāyāna, conforme
mostrou Purser.

REFERÊNCIAS

ARENDT, Hannah. Ação e a Busca da Felicidade. Belo Horizonte: Bazar do Tempo,


2018.
BENJAMIN, Walter. Capitalismo como Religião. São Paulo: Boitempo Editorial, 2013.
BRITO, Sabrina. O Sucesso dos aplicativos para meditação no isolamento. Veja Brasil,
publicado em 28 de agosto de 2020.
BUSWELL, Robert. JR, Donald S. Lopez. The Princeton Dictionary of Buddhism.
Princeton: Princeton University Press, 2014.
DALAI LAMA, Tenzin Gyatso. Beyond Religion. New York: Mariner Books, 2012.
HARVEY, Peter. An Introduction to Buddhism. Cambridge: Cambridge University
Press, 2013.
HIRAKAWA, Akira. A History of Indian Buddhism. Hawaii: University of Hawaii Press,
1990.
MARI, Angélica. Aplicativos que ensinam a meditar viram segmento bilionário.
Forbes Brasil, publicado em 11 de julho de 2020.
PURSER, Ronald E. McMindfulness: How Capitalism Became the New Capitalist
Spirituality. London: Repeater Books, 2019.
TSAI, Plínio Marcos. História da Tradição Budista Indiana. Valinhos: ATG, 2017.
TSAI, Plínio Marcos. Sermão do Grande Fundamento. Valinhos: ATG, 2019.
38

PUBLICADORES DE MAX MÜLLER: REVISTAS EUROPEIAS,


PUBLICAÇÕES SOBRE O ORIENTE E ECONOMIA DO
CONHECIMENTO 16

LOYANE ALINE PESSATO FERREIRA


Mestre em História, Doutoranda em Ciências da Religião
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP)
[email protected]

RESUMO: No contexto do Imperialismo do século XIX, que estabeleceu domínios na


Ásia e na África, Friedrich Max Müller atua na construção do campo da história
comparada das religiões, que depois se tornaria as Ciências das religiões e teve uma
atuação destacada. Estabeleceu metodologia para os estudos das religiões e
linguagem vindas do Oriente, sistematizou publicação de obras de outros autores e
traduziu textos. Seu trabalho se relaciona com questões políticas próprias do
momento, inclusive com financiamento dos empreendimentos coloniais. Fez parte
deste cenário o desenvolvimento de revistas que articularam o acesso ao
conhecimento, sobre filosofia, filologia, história e religiões, inclusive das religiões
orientais. Assim, o presente texto busca delinear um entendimento sobre uma
publicação de Müller em uma destas revistas, a Edinburg Review, articulando-a ao
cenário político e intelectual, bem como apresentando uma leitura sobre as
motivações de Müller ao escrevê-la. O material utilizado é a bibliografia que elucida
historicamente as revistas, e também o autor. O método e referenciais teóricos
principais são o conceito de economia de conhecimento e a teoria de campos de
Bourdieu. Verificou-se que a publicação de Müller na Edinburgh Review se envolve
não apenas com um modelo de trabalho intelectual da época, mas também com a
criação de condições para acessar e promover o conhecimento sobre as religiões
orientais, dentro de certos parâmetros europeus e cristãos. Neste sentido, autor e
revista colaboram com a economia de conhecimento, na qual estava implicada uma
noção de educação e instrução, de construção científica e valorização da cultura
europeia, bem como a comoditização do conhecimento. Estes aspectos ancoram o
pensamento colonial, fundamentam a pretensa hierarquia civilizacional europeia, sob
o ponto de vista intelectual e espiritual, produzindo imagens e símbolos
subalternizantes sobre o oriente, transformados em produto.

Palavras-chave: Colonialismo; Max Müller; História; História das religiões; Ciências


das religiões.

16
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 002.
39

MÜLLER: ENTRE CONHECIMENTO, ECONOMIA E POLÍTICA

Não basta compreender o conteúdo textual de uma produção cultural, seja ela
literária ou científica, mas também não é suficiente estabelecer uma relação imediata
e direta entre o texto e seu contexto (BOURDIEU, 2003, p.20). Na dimensão em que
estão “inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou
difundem” qualquer objeto cultural vindo da ciência, da literatura ou da arte (id, ibid)
– cada campo é um universo social, com leis próprias que podem ser mais ou menos
específicas, e que possuem uma autonomia, que não é isolada do campo maior, e
nem é estanque, mas sim está na relação com a forma como o próprio campo se
articula, com seus participantes e suas especificidades (id). Ainda que um
determinado campo faça parte de um “macrocosmo” as leis deste não são as
mesmas do campo, ainda que nunca exista uma inteira liberdade perante as
imposições dele.
O presente texto visa estabelecer uma relação entre uma publicação de
Friedrich Max Müller (1823-1900) sobre o Budismo, de 1857, e o ambiente intelectual
vitoriano proporcionado pelas revistas, tendo como pano de fundo o contexto
colonial britânico. Neste ambiente do século XIX, que estabeleceu domínios na Ásia e
na África, Müller atua na construção do campo da história comparada das religiões, e
inauguraria o campo epistemológico das Ciências da religião, da qual é considerado o
pai (GIRARDOT, 2002). Em conjunto com outros autores, Müller colabora para a
construção de certas noções gerais sobre as religiões orientais em diversos ambientes
intelectuais. Seu papel nesta questão foi muito grande.
De fato, se na relação entre o campo intelectual e o campo político, o
envolvimento de Müller é extenso e intenso, no que diz respeito aos temas das
religiões indianas, ele é considerado como um personagem predominante na Europa
de seu tempo (WELBON, 1965). Estabeleceu metodologia para os estudos das
religiões e linguagens vindas do Oriente, sistematizou o projeto Sacred Books of the
East, no qual atuou como editor e tradutor, deu aulas e palestras (BOSCH, 2002). Do
lado político, sua obra conta com financiamento dos empreendimentos coloniais. Sua
atuação intelectual mescla-se a um grande capital e prestígio político, circulando
entre e dialogando com figuras eminentes da época do que é exemplar sua
participação no conselho privado da Rainha e ter como apoiador o embaixador da
Prússia, Christian von Bunsen (id, ibid).
Os primeiros vinte e cinco anos do século XIX poderiam ser considerados como
a era das Revistas (RIED apud CHRISTIE, 2013, p. 115). Nestas ele também esteve
presente, tendo publicado na Ediburgh Review, Quartely Review, Oxford Essays,
Macmillan Magazines, Frasers Magazines, Saturday Review e Times (MÜLLER, 2020).
Tais publicações estavam engajadas em promover uma circulação de ideias e
informações pertinentes a formação de pessoas ou uma sociedade culta. Assim, a
produção e acesso a áreas do conhecimento tais como teologia, filosofia, filologia,
artes, literatura, na Grã Bretanha, se tornaram um investimento econômico e
também objeto de entusiasmo perante aquilo que fosse considerado conhecimento
de alguma utilidade ou importância (CHRISTIE, p.121). Em suma, o conhecimento era
40

um produto sob grande demanda, que estava sendo atendida em grande medida
pelas revistas, como as citadas.
Além disso, também abrangiam comunicações com a esfera política (id, p.116)
pois grandes revistas como Edinburgh Review (1802) e Quarterly Review (1809)
exerciam grande influência sobre a opinião pública, o que confirma seu papel na
cultura do conhecimento na Inglaterra do século XIX. Seu editor e colaboradores
estavam cientes deste movimento de dupla influência, em ambos os campos,
intelectual e político (id, p.115).
A Edinburgh foi responsável pelo estabelecimento de uma forma, que afetou o
cenário editorial, na organização e na sistematização de suas publicações – também
pelo fato de ser a mais antiga (CHRISTIE, 2013, p. 116). Na visão dos editores e
colaboradores tais como Francis Horner, conhecimento e economia não eram objetos
de esferas distintas, pelo contrário, deveriam ser vistas em conjunto, e um dos pilares
da revista seria também a questão política (id, p.122). Sua abordagem no que diz
respeito ao pagamento foi o que a colocou em lugar diferenciado: os valores
dedicados ao editor e aos colaboradores eram muito mais altos do que em outras
revistas, o que lhe concedeu um status de publicação profissional muito mais do que
uma publicação comercial (id, ibid). Isso dava ao editor um status de um indivíduo
esclarecido, intelectualmente diferenciado, da mesma forma, os textos publicados ali
adquiriam status de serem de autoria técnica (CHRISTIE, 2013, p. 121) e não de
jornalismo corriqueiro. Para a Edinburgh Review, segundo Mark Schoenfield, a
interpenetração entre valor econômico e intelectual era uma justificação primária
para a Revista e seu compromisso com os ideais de uma organização analítica de
conhecimento (apud CHRISTIE, 2013, p.120).
Um dos movimentos envolvidos nestas publicações era o de valorização de
resenhas de livros (CHRISTIE, 2013, p. 122). Leitores procuravam por seleção e
recomendação de livros, de maneira que as Reviews nascem atendendo essa
demanda. Desenvolveu-se então um determinado modelo de resenha: os autores
dedicavam um majoritário espaço do texto desde o início para referências às suas
próprias ideias, expondo-as exaustivamente, e somente ao final ou em segundo plano
falariam do livro em questão (id, ibid). Isso colocava o responsável pela resenha em
uma posição de leitor onisciente, dando a ele uma posição de autoridade frente ao
leitor mas também perante até mesmo o autor da obra em questão (id, ibid).
Somando-se status de linguagem técnica e pagamentos consideráveis, a Edinburgh
competia no cenário editorial com dois tipos de capital, e estava acima das outras.

TEXTOS ORIENTAIS COMO PRODUTO

É neste período de valorização econômica do conhecimento que os textos de


origem oriental ganham um lugar proeminente no cenário oitocentista e é
importante mencionar o processo de tomada e circulação por parte dos europeus. Se
o conhecimento não pode ser desassociado do meio em que circula e é produzido,
cabe notar que uma determinada visão de mundo é mantida sempre por um sistema
41

político, social e econômico que por sua vez dá sentido, alimenta e também
movimenta a produção de conhecimento (CHRISTE, 2013, p.120).
Desde o século XVIII, de acordo com William Christie, o conhecimento se
tornou cada vez mais uma moeda social de circulação, valorizando não apenas o
acesso a ele como também o seu estoque (CHRISTE, 2013, p.120). Isso joga certo foco
para interpretar a avidez no acesso ao estudo das religiões orientais. De fato, o
próprio Müller comenta que até a segunda década do século XIX o conhecimento
europeu sobre o budismo era um tanto quanto esparso e embora tivesse chegado
pelas mãos de alguns missionários e viajantes, não haveria clareza neste
conhecimento, que tampouco era mantido por uma profusão de textos (MÜLLER,
1881). Mudanças importantes ocorreram com o avanço das relações coloniais nos
territórios asiáticos. Neste ponto ele cita e valoriza as empreitadas de diferentes
personagens que cada qual em um território colonial movimentaram a circulação de
textos para dentro de bibliotecas e sociedades europeias, estabelecidas também no
período para o estudo da língua, cultura e religiões asiáticas (Id, p. 167).
É pela presença da Companha Britânica das Índias no território asiático que se
estabelece uma rota pela qual materiais e conhecimento sobre a Índia chegam na
Europa, em abundância monumental, para não dizer industrial. Com efeito, segundo
Beinorius, essa história tem seu marco inicial com Brian Houghton Hodgson, um
oficial da Companhia das Índias Ocidentais. Atuando no Nepal em 1837, ele
conseguiu acesso a mais de quatrocentos manuscritos budistas até então totalmente
desconhecidos, escritos em tibetano e em sânscrito (BEINORIUS, 2005, p. 14). Ele os
enviou para Calcutá, Londres e Paris, para relatar diretamente à coroa britânica o que
o Nepal tinha em sua cultura (id, ibid). Nestes esforços, Hodgson afirma
categoricamente não achar digno abordar em detalhes o significado de determinadas
palavras e conceitos (WELBON, 1968, p. 37). Autores tais como William Jones (1746-
1794) e Henry T. Colebrook (1765-1837) produziriam estudos de impacto a partir
destes manuscritos, levando a fundação de instituições tais como as Sociedades
Asiáticas da Índia, Londres e Paris (DAVIS, NICHOLS, 2016).
Este cenário de avanço sobre o estudo das religiões e as línguas orientais pode
ser visto em consideração com o cenário maior de uma economia do conhecimento.
Como exemplo de seu peso como moeda cultural, é interessante mencionar a
compra de alguns destes manuscritos pelo rei da Prússia, que em seguida os
depositou na Biblioteca da Universidade de Berlim. Cabe lembrar também a própria
existência de uma biblioteca de manuscritos no interior da sede da Companhia das
Índias Orientais – bem como o financiamento feito por esta aos trabalhos de
tradução do Rig Veda de Müller.
Na Inglaterra do século XVIII e XIX o acesso ao conhecimento em geral, no
sentido de sua produção e todas as ocupações e instituições dedicadas a
disseminação passa a envolver também a ação de personagens como os editores das
revistas e seus colaboradores, que estavam autoconscientes de seu papel, engajados
e envolvidos em atividades profissionais ligadas ao conhecimento. Tudo isso se
tornou certamente uma indústria complexa, interligada e largamente autônoma. Esse
também é o caso da produção do conhecimento sobre as religiões orientais. Se
42

revistas como Edinburg Review concedem capital cultural para leitores e autores,
então é possível que ter publicado ali tenha aumentado o capital cultural de Müller e
vice-versa. Além disso, o texto recebe status de ser autoritativo no assunto por seguir
o modelo de resenha do autor onisciente e com autoridade, com detalhamentos
exaustivos diversos, inclusive sobre a trajetória do Budismo na Europa até ali.
Republicado depois na coletânea Chips from a German Workshop, o texto teria uma
difusão grande.
Propunha ser uma resenha sobre um trabalho de Jules Barthélemy Saint-
Hilaire – sendo este autor também importante jornalista e político atuante. Seguindo
o modelo, Müller dedica uma parte da apresentação inicial do seu texto para uma
discussão sobre a utilidade de conhecer o Budismo, e sobre se mesmo um cristão
poderia considerar digno esse empreendimento. Como “gancho” inicial na
justificação desta empreitada ele utiliza uma referência bíblica: “examinai tudo,
retende o bem” (1 Tessalonicenses 5:2) e também afirma que não poderia haver uma
única religião no mundo que não contivesse uma centelha de verdade (MULLER,
1881, p.161). Nesse sentido, ele aborda a valorização da própria religião e terra natal
como motivador do conhecimento das outras (id, ibid):

Muitas são as vantagens a serem obtidas de um estudo cuidadoso de


outras religiões, mas a maior de todas é que isso nos ensina a
apreciar mais verdadeiramente o que nós temos em nossa própria
[religião]. Quando sentimos as bênçãos de nossa própria terra de
maneira mais afetuosa e verdadeira do que quando voltamos do
exterior? 17

Em toda essa digressão, percebe-se uma linguagem detratora inicial para falar
do Budismo e também do Hinduísmo. Ele chega a afirmar (MÜLLER, 1881, p.162):

Soa como uma degradação do próprio nome de religião aplica-lo para


os delírios selvagens dos iogues hindus ou as blasfêmias vazias dos
budistas chineses 18.

Apesar destas afirmações subalternizantes, o autor conclui que estas devem


ser estudadas, dizendo que é conforme se realiza o estudo, devagar e com paciência,
que os próprios olhos podem se abrir, e conseguir com isso perceber luz onde tudo
estava na escuridão, anteriormente (MÜLLER, 1881, p.162). É possível que Müller
estivesse discutindo concepções correntes em torno do Budismo ao fazer isso, ou
mesmo estivesse procurando “vender” a ideia de conhecer o Budismo. Mas uma
parte considerável de sua resposta positiva para essas questões se desdobram no

17
Tradução nossa. No original: “Many are the advantages to be derived from a careful study of other
religions, but the greatest of all is that it teaches us to appreciate more truly what we possess in our own.
When do we feel the blessings of our own country more warmly and more truly than when we return from
abroad?”
18
Tradução nossa. No original: “It sounds like a degradation of the very name of religion to apply it to the
wild ravings of the Hindu yogins, or the blank blasphemies of Chinese Buddhists”
43

sentido de que o conhecimento sobre outros povos irá colaborar para que de um
lado se valorize ainda mais sua própria religião, por ter como conhecer “o que é que
outros povos tem por religião” - e que isso permitiria ainda que eles se sentissem
abençoados por terem podido respirar desde o nascimento o “ar puro de uma terra
de luz e conhecimento cristãos” 19 (MÜLLER, 1881, p.161).
Por outro lado, fazendo parte de uma corrente de autores sobre religião que
visavam fazer para ela um campo de estudo científico (DAVIS, NICHOLLS, 2016),
Müller valoriza a empreitada também porque seria necessário, segundo ele, trazer
todo o conhecimento disperso no mundo para aquilo que ele chama a “língua da
ciência”; isto colaboraria para deixar para trás uma ideia fechada de nacional, para
superar o mesmo “impulso helênico”, ainda presente no cristianismo, o de querer
separar o mundo entre gregos e bárbaros (MÜLLER, 1881, p.162). Tal ideia de romper
com o desejo de não conhecer o mundo estrangeiro, somada à noção de trazer para a
“língua da ciência” (id, ibid) todo o conhecimento, parece se desdobrar em uma
explícita fala sobre a conquista espiritual do Oriente, quando Müller falasse nas
palestras “India What can it Teach us”, em 1882 (WIRTH, 2016).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Compreender este cenário com o conceito de economia de conhecimento é


considerar que além de fomentar um mercado, todos os processos de circulação de
textos e as religiões orientais nestas revistas, palestras e engajamento das sociedades
também tornaram-se uma commodity. Ganharam valor, tornaram-se moeda, algo a
ser adquirido e negociado por sua própria causa, ou por benefícios materiais ou
imateriais que viessem de sua aquisição (CHRISTIE, 2013, p. 119).
Se o conhecimento em termos gerais é valioso pelo que houver nele de útil, e
se de acordo com Müller as religiões cristãs possuem apenas uma centelha de
verdade, como se constrói um espaço para os temas religiosos orientais no “mercado
religioso” europeu? Considerando essa questão em relação à boa aceitação do
Budismo no cenário inglês já ao final do século XIX (ALMOND, 1988), é possível que
esse mercado editorial e essas publicações tenham fomentado alterações nas
conceituações budistas de modo a evidenciar certos aspectos, e desvalorizar outros,
e até mesmo alterar significados na tradução, para torna-lo um produto que
mostrasse aos intelectuais europeus o que eles queriam ver: uma imagem para
valorização de si mesmos.

REFERÊNCIAS

ALMOND, Philip C. The British Discovery of Buddhism. Cambridge: Cambridge


University Press. 1988

19
Tradução nossa. No original: “Let us see what other nations have had and still have in the place of religion;
(...) and we shall then understand more thoroughly what blessings are vouchsafed to us in being allowed to
breathe from the first breath of life the pure air of a land of Christian ligh and knowledge”.
44

BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo
científico. São Paulo: Unesp, c2003
BOSCH, L. P. Friedrich Max Muller: A life devoted to the humanities. Neitherlands:
E.J.Brill, 2002
CHRISTIE, William. "The Modern Athenians: the Edinburgh Review in the Knowledge
Economy of the Early Nineteenth Century," In: Studies in Scottish Literature: Vol. 39:
Iss. 1, 2013,p. 115–138. Disponível em :
https://scholarcommons.sc.edu/ssl/vol39/iss1/12 Acesso em 15 ago 2020
DAVIS, Davis. NICHOLLS, Angus. Friedrich Max Müller: The Career and Intellectual
Trajectory of a German Philologist in Victorian Britain. English Goethe Society, 85:2-3,
67-97, DOI: 10.1080/09593683, 2016. Disponível em:
https://pdfs.semanticscholar.org/71c4/c0b2b4cacde84ef8a919d1cfc566884d00dd.pd
f acesso em 15 nov 2020
GIRARDOT, "Max Müller's ‘Sacred Books’ and the Nineteenth-Century Production of
the Comparative Science of Religions," In: History of Religions 41, no. 3 (Feb., 2002):
213-250. https://doi.org/10.1086/463683 Acesso em 15 nov 2020
MULLER, Max. Selected Essays on Language, Mithology and Religion. Vol.II. London:
Longsmans, Green and Co. 1881, 615p. Disponível em:
https://ia800302.us.archive.org/15/items/selectedessayso02mlgoog/selectedessayso
02mlgoog.pdf Acesso em 15 nov 2020
MULLER, Max. Chips from a German Workshop. Vol I. Frankfurt: Outlook Verlag
GmbH, 2020.
WELBON, G. R. “Comments on Max Muller Interpretation of the Buddhist Nirvana”.
In: Numen, Vol.12 Fasc 3 (Sept 1965), 21p. Disponível em
https://www.jstor.org/stable/3269445?seq=1#page_scan_tab_contents Acesso em
27 dez. 2018.
WIRTH, Lauri “Religião e Epistemologias pós-coloniais” in PASSOS, João Décio.
USARSKI, Frank. Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas; 2013.
Reimpressão: 2016.
45

RELIGIÃO E INVENÇÃO CULTURAL: APONTAMENTOS SOBRE


A CONSTRUÇÃO DO CONCEITO DE RELIGIÃO NAS CIÊNCIAS
HUMANAS

THIAGO SCHELLIN DE MATTOS


Doutorando em Teologia
Escola Superior de Teologia (EST)
[email protected]

RESUMO: Uma observação diligente sobre alguns textos considerados fundadores


dos estudos de religião nos mostrará que a emergência de uma acepção
propriamente científica dos fenômenos religiosos esteve desde muito cedo ligada a
uma propensão em contrapor a religião à modernidade, vinculando-a à tradição,
muitas vezes num sentido obsolescente, adquirido dentro de um paradigma unilinear
e progressivo da história. Este contraponto, que se realiza diante de um plano de
fundo específico, formado pelo cristianismo como referência, sofrerá modificações ao
longo do século XX. No entanto, esta tendência será duradoura, a ponto de
permanecer influente no desenvolvimento dos estudos de religião até a atualidade.
Isso se demonstrará na construção de um conceito de religião que vai se descolando
da metafísica filosófica e teológica, passando a ser formulado no escopo dos
processos sociais mais amplos, ora como alienação e ideologia (Marx e Engels), ora
como um fundamento da organicidade social através de uma constituição moral
necessária (Durkheim), como representação de cosmologias ou até mesmo como
visão de mundo através de um ethos determinante dos processos de transformação
social (Weber). O estudo da religião na sua relação com o capitalismo não deixa de
ser uma variação dessa recorrência. A nova situação social que se configura na
modernidade com um sistema econômico “desenraizado” (POLANYI, 2000), permite
explorar esse aspecto do capitalismo como totalizante, organizador e produtor da
realidade social. Atribuições que se verificam, em outros modelos historicamente
demonstráveis de sociedade, reservadas a religião. Neste artigo faremos uma breve
retomada histórica da construção do conceito de religião nas ciências humanas, com
especial enfoque na antropologia, demonstrando os processos simbólicos de
extensão dos seus sentidos através da relação dialética de invenção cultural de
acordo com Wagner (2017). Com as reflexões que se seguem, pretendemos
desenvolver alguns apontamentos no nível teórico e metodológico, como condições
necessárias para a criação de um conceito de religião direcionado a uma perspectiva
heurística capaz de captar a transformação dos sentidos e dos contextos simbólicos
nos quais o fenômeno religioso se articula e se reproduz. Na sociedade ocidental isso
significará compreender como se dá simbolicamente os processos de invenção do
fenômeno religioso na dialética com o capitalismo. Alguns apontamentos nesse
46

sentido, demonstrarão que na convenção cultural ocidental, a religião inventa o


capitalismo ao mesmo tempo em que é inventada por ele.

Palavras-chave: Religião; Capitalismo; Invenção Cultural.

RELIGIÃO E MODERNIDADE

A emergência de uma acepção propriamente científica dos fenômenos


religiosos esteve desde muito cedo ligada a uma tendência em contrapor a religião à
modernidade, vinculando aquela à tradição, muitas vezes num sentido obsolescente,
dentro de um paradigma unilinear e progressivo da história. Este contraponto sofrerá
modificações ao longo do século XX. No entanto, esta tendência será duradoura, a
ponto de permanecer influente no desenvolvimento dos estudos de religião até a
atualidade. Nossa hipótese é a de que a permanência deste contraponto (e concreção
de suas variações) aponta para uma relação constituinte da própria modernidade e,
consequentemente, de suas formas de inventar a religião. A religião é uma espécie
de alteridade necessária para a modernidade; o outro a partir do qual se constrói a
própria identidade como diferenciação.
O clima intelectual da metade final do século XIX e início do século XX, envolto
numa atmosfera evolucionista por influência de Charles Darwin (1809-1882) e
Herbert Spencer (1820-1903), foi fundamental para as primeiras teorias científicas da
religião. Esse clima evolucionista criou as condições para o desenvolvimento das
teorias antropológicas de Edward Tylor (1832-1917) e, posteriormente de James
Frazer (1854-1941), bem como, para os estudos de Max Müller (1823-1900); mas
também propiciou uma indiscutível confluência com o materialismo histórico de Karl
Marx (1818-1883) e Friedrich Engels (1820-1895)20, e seguramente deu o tom para a
busca elementar da religião na investigação sociológica de Émile Durkheim (1858-
1917)21.
Além disso, embora o paradigma evolucionário vá se esboroando ao longo do
século XX, é importante mencioná-lo também, pois, não será exagero associá-lo à
origem da ideologia desenvolvimentista e sua crença no progresso da modernidade.
Sob certo ponto de vista, capturado ideologicamente, os pressupostos da teoria
weberiana que arrastam consigo uma relação de “afinidade eletiva” entre
protestantismo e capitalismo, não deixariam de evocar uma pretensa superioridade

20
Castro (2005) relata que Engels escreveu a “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” se
utilizando amplamente das notas que Marx realizou de sua leitura de “A sociedade antiga” de Lewis Morgan
(1818-1881), outro ilustre representante da escola antropológica evolucionista, que dividia a história humana
em três grandes períodos: selvageria, barbárie e civilização.
21
Durkheim em “As formas elementares da vida religiosa” (DURKHEIM, 1989), ao refutar o Animismo e o
Naturismo como concepções elementares de religião, para defender a tese do Totemismo como sistema
religioso mais elementar, embora não se possa inferir de sua tese alguma concepção propriamente
evolucionista da história religiosa, não deixa de estar às voltas com o interesse investigativo comum da época:
a origem da religião.
47

moral e cultural do protestantismo, ficando o entendimento da realidade social à


mercê de reducionismo e rigidez analíticos22.
Portanto, a partir das primeiras teorias científicas da religião, ocorrerá uma
mudança epistemológica e metodológica importante. À medida que o conceito de
religião vai se descolando da metafísica filosófica e teológica, passa a ser possível
compreendê-lo no escopo dos processos sociais mais amplos: como representação de
cosmologias (num primeiro momento dentro da perspectiva evolucionista); como
alienação e ideologia (Marx e Engels); como fundamento moral intrínseco à
organização social (Durkheim); ou como visão de mundo através de um ethos
determinante dos processos de transformação social (Weber).
As teorias evolucionistas pressupunham adotar um método científico e
histórico para compreender a religião: o método comparativo. Este ficou atrelado a
prática dos intelectuais de “gabinete” que analisavam e comparavam dados fora do
seu contexto original, dando origem às escalas gradativas e ascendentes do
fenômeno religioso, bem como o lugar da religião no processo evolutivo da
civilização.
Além das teorias evolucionistas, outra linha de pensamento sobre o fenômeno
religioso, contemporânea a mesma época, é aquela que podemos traçar a partir de
Feuerbach (1804-1872), passando por Marx (1818-1883), Nietzsche (1844-1900) e
Freud (1856-1939). Estes últimos três estabelecem uma ruptura radical com o cogito
cartesiano. Ao passo em que vão se distanciando do idealismo do primeiro e
rompendo com a relação imediata entre consciência e sentido da realidade, Marx,
Nietzsche e Freud, contribuem, cada qual à sua maneira, para uma hermenêutica da
vida aplicada ao rigor da suspeição do elemento religioso (cristão) na configuração
social, cultural e psicológica da realidade. Dando um contorno indiscutivelmente
negativo ao fenômeno religioso, esse viés crítico tornará evidente o papel da religião
na constituição de uma consciência falsa, produtora de alienação, niilismo e ilusão.
A ética protestante, como apontou Weber (2001), estabeleceu uma
correspondência muito peculiar com a ascensão do racionalismo ocidental.
Priorizando o individualismo metodológico, essa linha desembocará em propostas
como a da “modernidade religiosa” de Hervieu-Léger (2008). Religião e modernidade
estão dispostas numa relação complexa não mutuamente excludentes. Elas não
configuram apenas ruptura, mas também continuidade simbólica e prática.
As abordagens individualistas e a perspectiva microssocial vão suprir as
lacunas de um holismo metodológico à moda Durkheim e Malinowski, que se
evidenciará incontornável quanto mais se colocar o problema das sociedades
complexas. Diante da perda de poder “nomizador” (BERGER, 1985) da religião na
sociedade secularizada, o peso da construção religiosa tensiona para o lado da ação
do indivíduo, configurando uma situação de mobilidade religiosa que faz surgir a
figura do bricouler religioso, o “peregrino” de Hervieu-Léger (2008).

22
Quem pensa nesses termos é Jessé Souza sobre a tradição weberiana no Brasil, associando-a à ideologia do
atraso brasileiro (SOUZA, 1998).
48

RELIGIÃO E INVENÇÃO CULTURAL

Smith (2006) afirma que a evolução do conceito de religião no Ocidente passa


por um processo de reificação. Este processo, no entanto, após definir uma ideia
geral sobre religião, se desdobra na conceitualização particularista expressa em uma
série de nomes que visam designar a religião de diferentes tradições culturais
(culturas, elas mesmas, que não possuem conceitos equivalentes ao de “religião”). A
religião como “coisa eminentemente social” (DURKHEIM, 1989) ou “coisa” (sistema)
cultural (GEERTZ, 2008), com funções sociais específicas e significados dentro de uma
“teia simbólica”, ilustra bem as tentativas ocidentais de objetificar o fenômeno
religioso, abstraí-lo e torná-lo metodologicamente controlável e analisável dentro de
uma convenção linguística específica (a linguagem científica). Embora se pretenda
universal, os esforços da ciência caracterizam, de um ponto de vista antropológico,
um modo particular e circunscrito a uma tradição cultural específica (a ocidental).
Acerca deste aspecto queremos fazer alguns apontamentos sobre a construção do
conceito de religião.
Uma observação antropológica através da ideia de cultura nos parece
pertinente para pensar as formas como o conceito de religião é desenvolvido nas
ciências humanas. Nossa intenção com isso é indicar o caráter cultural dos processos
simbólicos que fundamentam e mobilizam a construção e as transformações do
conceito de religião. Roy Wagner nos mostra que uma das implicações acerca do
conceito de cultura para os estudos antropológicos é o modo particular de
compreender os fenômenos humanos a partir de uma cultura específica.
Para Wagner, o processo de reificação da cultura realizado pela epistemologia
ocidental faz parte de uma tendência simbólica e consequente limitação metódica
operada, porém necessária, para auxiliar o antropólogo no estudo de uma outra
cultura. Essa “objetividade relativa” (WAGNER, 2017, p. 26) é o que garante o
constante movimento de extensão dos seus sentidos, compondo uma história de
evolução e desenvolvimento conceitual.
Geertz (2008) falará em interpretação das culturas. Wagner (2017) vai
evidenciar que a cultura (nós inferimos também a religião) não apenas é
interpretada, mas também inventada23 através de processos de metaforização. Ele
mostrará que a experiência da comunicação e do entendimento acontece através da
dialética24 entre dois modos de simbolização: o “convencional” e o “diferenciante”.
Na situação de compreender, o simbolizador mobiliza todos os efeitos simbólicos
desses dois modos de simbolização simultaneamente, porém, atribuindo a um deles

23
A palavra “invenção” é tomada por Wagner no seu sentido de criação e não de falseamento, e é usada como
conceito para explicar uma experiência ordinária e constituinte da existência (e não uma ação extraordinária
produzida pela genialidade de um artista, por exemplo). Já o conceito de “metáfora” tomamos a partir da
crítica da linguagem de Nietsche (2009); ela é a primitiva mediação entre esferas heterogêneas e a
transposição significativa que ocorre entre elas (linguagem e realidade), e não como figura de linguagem no
sentido convencional.
24
O termo “dialética” será entendido de maneira indiferente à tipologia hegeliana e marxista, ressaltando o
que Wagner afirma sobre “uma tensão ou alternância, ao modo de um diálogo, entre duas concepções ou
pontos de vista simultaneamente contraditórios e solidários entre si.” (WAGNER, 2017, p. 88).
49

o controle simbólico para a definição do contexto da ação humana (no caso


ocidental, a cultura), enquanto que ao outro modo é atribuído a ilusão da realidade
“dada” ou “inata” (a natureza, por exemplo) que serve de motivação para a
simbolização “dominante”.
Portanto, existe um modo de simbolização orientado para a coletivização dos
símbolos (simbolização convencional), cujo efeito é formar contextos simbólicos que
associam significados dentro de uma convenção; e outro orientado para a
individualização dos símbolos (simbolização diferenciante), cujo efeito é formar
distinções através de processos de invenção. A cultura é o resultado da
transformação operada por esse jogo dialético. A teoria simbólica de Wagner irá
demonstrar que usamos o “controle” da cultura para inventar a “natureza” como
“inata”, e usamos esta como motivação para a nossa forma específica de
simbolização. Com as sociedades tribais acontece o oposto: o contexto da ação
humana é controlado pelo modo de simbolização diferenciante e motivado pela
convenção. No caso “deles” a convenção (a cultura) é o contexto do “inato” e a
invenção é a simbolização “dominante”. Em ambos os casos a simbolização se efetua
desta forma porque o simbolizador não está consciente do mascaramento que opera
ao enfatizar um dos modos de simbolização sobre o outro. Ficam evidentes, assim, as
condições sobre as quais se realizam os atos de interpretação em cada caso. A
situação do simbolizador, portanto, é dada de forma distinta de acordo com tradições
culturais diferentes. Ela é configurada culturalmente e define a motivação humana no
ato de compreender.
Voltamos a nossa questão: a construção do conceito de religião nas ciências
humanas. Se incorporarmos as implicações da teoria da motivação simbólica de
Wagner para entender como se desenvolve as condições práticas e simbólicas para a
construção da ideia de religião no ocidente, veremos que ela estará envolvida em um
processo de invenção cultural distinto. Este tipo de auto percepção poderá ajudar a
compreender as tendências reificantes, universalizantes e racionalizantes do
Ocidente, empreendidas também a partir de uma perspectiva interna, nas relações
de constituição entre as suas instituições modernas.

CAPITALISMO COMO RELIGIÃO (RELIGIÃO COMO CAPITALISMO)

Um dos efeitos da invenção da cultura é que ela se realiza através de


extensões metafóricas onde os diferentes contextos simbólicos assumem
significados e estendem seus sentidos em uma relação dialética uns com os outros
(WAGNER, 2017, p. 88). Deste modo, inferimos que as condições simbólicas para
compreender a religião como capitalismo (e vice e versa) estão fundamentadas a
partir de uma motivação simbólica específica, que estrutura a possibilidade de uma
mobilização simbólica consequente com o processo geral de invenção e reinvenção
da cultura ocidental. A relação dialética entre religião e capitalismo pode ser
entendida na produção de uma dialogia entre contextos que se constituem um a
partir do outro. Segundo a orientação geral de nossa cultura, esse processo aponta
para um modo específico de simbolização, que opera de dentro da dialética cultural
50

fundamental (convenção x invenção) como uma motivação convencional


coletivizante – o uso da dialética para convencionalizar (produzir uma síntese). O
contexto da religião convencionaliza no contexto dos símbolos e das práticas
político-econômicas e vice e versa. Nesse sentido, mediados pela invenção, a
religião convencionaliza práticas e sentidos capitalistas, enquanto o capitalismo
convencionaliza práticas e sentidos religiosos.
A “grande transformação” (POLANYI, 2000) operada na sociedade moderna
enraizou as relações sociais sobre a base do sistema econômico. O capitalismo no
ocidente cumpre funções sociais semelhantes aos que a religião realizava em
sociedades fechadas. Inventar o capitalismo como religião e a religião como
capitalismo são processos de entendimento legítimos, situados num modelo de
sociedade historicamente demonstrável como o nosso. Aproximar o sistema
econômico da religião, ambos na sua qualidade moderna de instituições e sistemas
simbólicos distintos, é um recurso da metaforização simbólica que dinamiza os
processos de invenção cultural no interior da sociedade ocidental. Deste modo, o
ocidente oferece as condições para a invenção de uma religião “não religiosa”,
assim como também, para os aspectos “religiosos” do secularismo.
Em Bourdieu (2007), por exemplo, de modo geral, a metáfora econômica
permeia a reflexão do autor sobre diversos campos sociais, através das
diferenciações articuladas pela noção de capital (capital econômico, capital simbólico,
capital social, capital cultural), estendendo o sentido da análise até as consequentes
variações para a utilização de um conceito de capital religioso. A metáfora
econômica, onde a evidência do pluralismo religioso é vista como uma expansão do
mercado religioso, admite o crente com um ethos de consumidor individualizado,
apto para reagir livremente diante da grande oferta de produtos religiosos, pondo em
movimento o seu poder de escolha (BERGER, 1985). Esse viés mercadológico impõe
sobre a religiosidade certa necessidade interna de uma divisão de classes e uma
finalidade objetiva que pressupõe uma disputa pelo monopólio religioso (BOURDIEU,
2007).
Já a metáfora religiosa para compreender o capitalismo, se desenvolve, por
exemplo, através da associação da religião com suas qualidades e funções, de um
ponto de vista teológico, idolátrico, e de um ponto de vista social-político-econômico,
alienante. O capitalismo como religião, assim pensados por Walter Benjamin e os
teólogos da Libertação, ressaltam este caráter negativo da religião e apontam para os
fundamentos mítico-religiosos de um sistema econômico que se pretende racional e
universalizante (quando não é). Compreender o capitalismo como religião, nesse
sentido específico dos termos, torna-se, não somente uma possibilidade simbólica
dentro de uma dinâmica cultural específica, como uma tomada de posição ético-
política frente aos poderes dominantes e conformadores da realidade.
Diante do exposto, poderíamos afirmar que Geertz, assim como todos os
outros antes dele, ao inventar a religião, contra-inventou dialeticamente outras
categorias para controlar o sentido do conceito a partir de fixativos teóricos.
Motivado pela ideia de segmentação e burocratização modernas, ele usa o conjunto
das outras instituições (política, ciência, economia, etc.) para inventar a religião como
51

um sistema simbólico que se diferencia do mundo secular. Nessa mesma linha


também andaram outros, como Durkheim, controlando o fenômeno religioso dentro
do fato social ao contrapô-lo ao individualismo da magia. Tylor, Frazer, Malinowski e
tantos outros que mantiveram pares de oposições semelhantes (“religião e magia” ou
“religião e ciência”), assim também o fizeram dentro de uma realidade discursiva
autoritativa específica. Cada um à sua maneira, resguardados por uma ficção
antropológica em vigência comum, de acordo com cada época, inventaram não
somente a religião, mas também a cultura, os seus nativos, a antropologia, os seus
leitores, etc.
Sendo assim, apontamos para a uma sugestão preliminar em que afirma ser a
“religião” e o “capitalismo”, termos colocados num processo dialético, dentro de uma
dinâmica simbólica culturalmente específica, estando passível das articulações e
extensões simbólicas que esta dinâmica de invenção cultural possibilita, assumindo,
via de regra, um caráter simbolicamente coletivizante, universal e reificante.

REFERÊNCIAS

BERGER, P. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da religião.


São Paulo: Paulus, 1985.
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007.
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52

COVID-19 E ROMARIA DO MUQUÉM: IMPLICAÇÕES E


INOVAÇÕES

ALDEMIR FRANZIN
Doutorando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

ALBERTO DA SILVA MOREIRA


Doutor em Teologia
Professor na Pontifícia Universidade Católica de Goiás
[email protected]

RESUMO: O objetivo da Comunicação é entender e apreender a relação entre COVID-


19 e Religião Popular, especificamente numa manifestação concreta, a Romaria do
Muquém. No desenvolvimento da Comunicação perguntamos: quais as implicações e
inovações que a pandemia do COVID-19 causou à romaria, e de que maneira os
romeiros responderam à pandemia e à romaria. A romaria acontece a cada ano no
Estado de Goiás, município de Niquelândia, entre os dias 05 a 15 de agosto. Os
romeiros se deslocam de diversas regiões do Brasil, especialmente do Centro Oeste, e
constroem na área do Santuário, durante o período da festa, uma cidade temporária
que abriga cerca de quinhentas mil pessoas. Num espaço geográfico denso de fé e
devoção, existe também um complexo campo simbólico, onde se manifestam
tradições, crenças e representações populares. A pandemia viral mudou
drasticamente esta manifestação religiosa popular. Na verdade, a pandemia mudou
drasticamente as maneiras como nos comunicamos, como realizamos nosso trabalho,
como convivemos socialmente, como vemos o próprio mundo e também como
praticamos a religião. Entre as sérias mudanças e implicações que a COVID-19 trouxe
à religião popular podemos elencar: interrupções das práticas religiosas externas,
suspensão das romarias e peregrinações em santuários e lugares sagrados do mundo
todo, fechamento dos lugares de culto e acompanhamento dos rituais religiosos
pelos meios de comunicação e pela Internet. No caso de Muquém a romaria não
aconteceu de modo presencial e inaugurou uma forma virtual inédita. O patógeno
interrompeu a romaria pela primeira vez em seus 272 anos de existência, deixando o
Santuário fechado e barreiras sanitárias e policiais instaladas nas estradas que dão
acesso ao Muquém. Diante do contexto pandêmico complexo e inseguro, dirigentes
do Santuário optaram por um novo desenho de romaria, chamada de “romaria em
casa”, e utilizaram ferramentas tecnológicas e rede de transmissão por Web TV,
transmitindo os ritos, práticas religiosas, motivações e mensagens aos romeiros e
romeiras no Brasil e àqueles residentes no exterior. Houve um acompanhamento
diário e numericamente relevante, o que fez levantar a questão de que trata este
53

artigo: que sentido e densidade tem uma romaria virtual para os romeiros do
Muquém? Nossa hipótese é que romeiros deram sentido à sua participação virtual
por meio de experiências religiosas também inéditas, pelas quais expressaram
necessidades, pedidos e expectativas, reafirmaram sua ligação com a romaria e
recompuseram sua identidade (religiosa).

Palavras-chave: COVID-19. Romaria; Muquém; Religião Digital; Identidade.

INTRODUÇÃO

A última pandemia que abalou o mundo há mais de cem anos é desconhecida


de nossa geração e de nossos pais; foi a gripe espanhola (1918-1920), que na época
infectou cerca de 500 milhões de pessoas no mundo todo. 25 O vírus Sars-Cov2,
descoberto na China em novembro de 201926, provocou uma crise mundial que
atingiu a política, economia, cultura, esporte, renda, comércio, religião e suas práticas
por toda parte. O contágio teria se iniciado no Brasil no final de fevereiro,
intensificando-se em meados de março de 2020. Em abril de 2020 a pandemia viral já
afetava 210 países e territórios, infectando mais de 2,4 milhões de pessoas em todo
mundo e tirando mais de 165.000 vidas (BENTZEL, 2020). Em 29 de setembro de 2020
a Organização Mundial da Saúde (OMS) alertava que o número de mortes já
ultrapassava 1 milhão e havia outras 32 milhões de pessoas infectadas ao redor do
mundo.
Essa comunicação faz parte de um projeto de pesquisa mais amplo, ainda em
desenvolvimento, que tem por objetivo entender e apreender o impacto da
pandemia da COVID-19 sobre uma manifestação massiva do catolicismo popular
tradicional em Goiás, a Romaria do Muquém. Também conhecida como Romaria de
Nossa Senhora d´Abadia, a festa religiosa e a grande movimentação de peregrinos
que ela provoca, acontece num santuário religioso entre as serras do município de
Niquelândia, no sertão de Goiás, entre os dias 05 e 15 de agosto de cada ano. No
desenvolvimento das questões centrais que orientam o projeto de pesquisa, partimos
das indagações: Que implicações traz essa pandemia para a realização da romaria do
Muquém? Como os romeiros e o santuário lidaram com a situação pandêmica? Que
sentidos e valor deram à sua participação distante e virtual nos rituais transmitidos
por TV e Internet? Nesta comunicação, que recolhe impressões iniciais, nos limitamos
a analisar algumas adaptações e inovações que a COVID-19 provocou na romaria do
Muquém e nas práticas religiosas dos seus seguidores.

25
A gripe espanhola, também conhecida como gripe de 1918, foi uma vasta e mortal pandemia do
vírus influenza. De janeiro de 1918 a dezembro de 1920. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Gripe_espanhola>. Acesso em: 20 de jul. 2020.
26
A cronologia e epidemiologia do vírus SARS-CoV-2 (2019-nCoV) durante o período de novembro de 2019 a
janeiro de 2020. Disponível em: <pt.wikipedia.org/wiki/Cronologia_da_pandemia_de_COVID-19>. Acesso em:
23 de jul. 2020.
54

OS IMPACTOS DA PANDEMIA SOBRE AS RELIGIÕES E PEREGRINAÇÕES

A pandemia da COVID-19 gerou enorme impacto na economia mundial, afetou


o mercado e o comércio internacional, prejudicou indústria, emprego, renda,
derrubou bolsas, cancelou eventos culturais e esportivos em todo o mundo. Ela
mudou drasticamente a maneira como nos comunicamos, como realizamos nossos
trabalhos, como convivemos socialmente, como vemos o próprio mundo e até as
maneiras de praticar a religião. Também os templos igrejas e denominações religiosas
se viram atingidas, enfrentando em geral forte declínio nas suas atividades e
campanhas. Também as doações financeiras diminuiram acentuadamente, o que
trouxe riscos para as populações desassistidas e os setores mais carentes que
dependem de iniciativas assistenciais vindas de organizações religiosas.
Além disso o corona vírus trouxe sérios impactos e consequências para a
religião praticada pelas massas populares ao redor do mundo: interrupção de
grandes cerimônias religiosas internas e externas, suspensão de romarias e
peregrinações em santuários e lugares sagrados do mundo todo, fechamento de
lugares de culto, acompanhamento simultâneo (ou midiatização) dos rituais religiosos
através dos meios de comunicação e da Internet. Peregrinações multitudinárias aos
lugares sagrados do Islã, como o Haj a Meca e a ida a Medina, foram suspensas em 4
de março de 2020. Em Roma, sede do catolicismo, houve suspensão das
peregrinações aos lugares santos e completo fechamento da Praça e da Basílica de
São Pedro em 10 de abril de 2020. Na Birmânia, os templos sagrados budistas e as
celebrações do ano novo budista foram canceladas. Governantes e autoridades de
toda parte entenderam que a aglomeração humana provocada pelas peregrinações,
festas religiosas e templos abertos poderia multiplicar por milhões a transmissão do
novo coronavírus, aumentando exponencialmente o número de infectados e de casos
fatais27. No Brasil, as romarias de Goiás, especificamente as de Nossa Senhora da
Penha, em Guarinos, a do Divino Pai Eterno, em Trindade, ambas marcadas para o dia
05 de julho, e a romaria a Nossa Senhora d´Abadia do Muquém, em Niquelândia,
marcada para 15 de agosto de 2020, foram suspensas e os três santuários
temporariamente fechados. Outras romarias e procissões de expressão nacional,
como a do Círio de Nazaré (Pará), em 8 de setembro, e de Nossa Senhora Aparecida
(São Paulo), em 12 de outubro, também foram canceladas.
As organizações religiosas sofreram ainda com a política secular de bloqueio
comunitário, reduzindo a porcentagem de fiéis nos templos. No Brasil, o Estado de
Goiás estabeleceu um limite máximo de 30% da capacidade de cada espaço religioso,
além de prescrever um distanciamento necessário de um metro e meio entre as
pessoas, e o uso de máscara a todos que ingressarem nos espaços de culto.28 Foi feito
um alerta global pela Organização Mundial de Saúde (OMS) em 22 de junho de 2020,

27
A crise pandêmica global já tem dez meses de existência (em setembro de 2020) e embora alcance tamanha
envergadura, continuamos sem um tratamento eficaz contra a doença, embora haja testes clínicos de vacinas
em seres humanos em fase avançada, como as vacinas de Oxford (Reino Unido), Coronavac (China), Sputnik
(Rússia), Pfizer (Alemanha), Moderna (USA) e a vacina desenvolvida pela Fiocruz no Brasil
28
Decreto no. 9653, de 19 de abril de 2020, do Governador de Goiás.
55

diminuindo ainda mais a presença de fiéis nos espaços religiosos para que as
denominações religiosas não fossem classificadas como lugares de transmissão do
corona vírus.
A quarentena forçada de isolamento social, a recomendação do “fique em
casa” e a restrição de movimentação para conter o avanço do novo corona vírus, não
trouxe apenas os seus evidentes benefícios na contenção da propagação da doença e
na diminuição do número de mortos. Infelizmente a nova situação tem facilitado
também o surgimento de doenças psicossociais em pessoas e comunidades, gerado
um índice alto de ansiedade, provocado um abuso do álcool por parte de muita
gente, medo, pânico, depressão, aumento da agressão contra as mulheres e até
mesmo suicídio. As mulheres novamente foram as mais afetadas e mais expostas ao
risco de contaminação, à vulnerabilidade social, ao desemprego, violência doméstica,
aumento da pobreza e falta de acesso aos serviços de saúde 29. No caso do Brasil, no
contexto da pandemia, uma mulher tem sido agredida a cada dois minutos. 30
Até que ponto a pandemia do COVID-19 diminui ou impulsionou a religião? A
cultura pandêmica impulsionou, de forma muito pragmática, a atividade missionária
das religiões no mundo inteiro. A pandemia levou muitas denominações religiosas a
utilizarem as novas tecnologias do Facebook, Instagran, Youtube, Twitter, Zoom,
Blogs e tantas outras plataformas de Internet, se tornaram espaços privilegiados para
líderes religiosos transmitirem a religião e suas práticas (CAMPBELL, 2006). Muito
parecido com a realidade das religiões em todo o mundo, o Santuário do Muquém
recorreu, a partir de 19 de março de 2020, à sua rede de comunicação virtual
WEBTVSANTUÁRIO para comunicar-se com os romeiros e fiéis, próximos ou
distantes. Através dessa rede de TV por Internet estabeleceu-se um fluxo de
comunicação de informações, uma modalidade de prática religiosa com o propósito
de fortalecer, apoiar e manter a vida religiosa dos romeiros. Desconhecemos na
história das romarias do Muquém, uma mudança tão abrupta e rápida no
oferecimento de serviços e no atendimento dos romeiros como os serviços on-line,
que de um golpe passaram a incluir todas atividades antes presenciais, como as
missas, orações, bênçãos, mensagens, leituras bíblicas, velas virtuais, novenas, leitura
de cartas enviadas por fiéis e outras atividades.
Em tempos de guerra, pandemias, catástrofes e crises, as pessoas recorrem à
religião para encontrar apoio, consolo, explicação e lidar com as adversidades e
incerteza, situações negativas e imprevisíveis, e as pessoas oram mais buscando uma
relação mais próxima com Deus ou explicam a tragédia através da referência a um
desígnio ou ato de Deus (BENTZEL, 2020). Janet S. Bentzel pesquisou dados diários do
Google em 95 países e identificou que durante a pandemia houve um aumento na
busca por orações, atingindo o nível mais alto já registrado até então. A pandemia, ao
que tudo indica, levou as pessoas a orar mais; segundo a autora, 85% da população

29
ONU: mulheres fazem chamado ao setor privado por igualdade de gênero na resposta à Covid-19. Acesso
em: 31 de jul. 2020. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/?post_type=post&s=Mulheres+no+centro+da+luta+contra+a+ crise+Covid-19>.
30
Violência doméstica contra a mulher. Disponível em:< https://oimpacto.com.br/2020/10/10/violencia-
domestica-a-cada-2-minutos-uma-mulher-e-agredida-no-brasil/. Acesso em: 20 de out. 2020.
56

mundial havia rezado pelo fim da pandemia ou para vencer o(s) medo(s) advindo(s)
dela (BENTZEL, 2020). Diante do cenário pandêmico, a oração amortece a ansiedade
e o sofrimento emocional; as pessoas recorrem à religião para encontrar alívio,
consolo e coragem para vida num contexto estranho, ameaçador e complexo.
Nesta mesma linha de pensamento, o estudo feito por Harold George Koenig
(2020) mostrou que a religião pode funcionar como uma ajuda poderosa na
manutenção da saúde e do bem-estar das pessoas. As práticas e a fé religiosa,
segundo Koenig, ajudam a manter o sistema imunológico ativo, protegendo de
infecções e doenças e outros sintomas, como ansiedade, medo, febre, falta de ar,
perda do paladar ou problemas intestinais. Para este autor, a oração em tempos de
pandemia pode criar nas pessoas emoções positivas e imunizantes, gerar disposições
espirituais que favorecem atitudes de alegria, paz, tolerância, bondade, controle e
autodomínio. A pesquisa de Koenig (2020) mostrou seis meios de resiliência
espiritual, mental e física para o enfrentamento de infecções ou doenças provocadas
pela pandemia: a oração a Deus, a meditação, a leitura de textos sagrados; a
audiência a programas religiosos no rádio, internet ou TV; e o serviço da caridade aos
necessitados.
A COVID-19 trouxe caos para boa parte do mundo, provocou implicações e
consequências profundas, mas não fez diminuir ou desaparecer a referência à
religião. Ela provocou inovações na metodologia do trabalho pastoral, nas formas de
transmissão da mensagem e nas práticas religiosas; para quase tudo isso as
organizações religiosas passaram a utilizar ferramentas tecnológicas. No caso da
romaria do Muquém, observamos que essa forma de devoção típica do catolicismo
tradicional e popular não desapareceu e nem parece ter diminuído com o uso, por
parte dos fiéis, da Internet. As práticas religiosas como as celebrações, ritos, missas,
bênçãos, orações, adorações e leituras bíblicas transmitidas via Web TV encontraram
boa receptividade e audiência significativa.

O IMPACTO DA COVID 19 SOBRE O SANTUÁRIO E OS ROMEIROS DO MUQUÉM

A crise pandêmica atingiu o santuário do Muquém nos meados de março de


2020, no auge das celebrações da Semana Santa e da Páscoa. Para atender às
políticas sanitárias de controle do novo coronavírus a administração do santuário
restringiu em um terço a presença de fiéis às celebrações, introduziu o uso
obrigatório de máscaras, o distanciamento social e disponibilizou a utilização de
álcool gel a todos os romeiros que visitaram o Muquém naqueles primeiros meses do
ano.
Mas como seria a situação quando chegasse a época da romaria anual, entre 5
e 15 de agosto, quando cerca de 500 mil pessoas se dirigem ao sertão do Muquém?
Como o santuário e os romeiros lidariam com a pandemia? Logo as autoridades
sanitárias decidiram que, devido ao grande risco de propagação da doença, a romaria
de 2020 deveria ser cancelada e que toda a área do santuário deveria ficar
temporariamente fechada. Essa medida era necessária, pois mesmo sendo a romaria
oficialmente cancelada, provavelmente algumas centenas ou talvez alguns milhares
57

de romeiros tentariam, mesmo assim, dirigir-se ao Muquém para visitar a área do


santuário. Foi o que aconteceu de fato, apesar das barreiras de contenção colocadas
na principal estrada de acesso. Mas dessa vez não houve romaria, pelo menos não
conforme os moldes das romarias anteriores. O santuário permaneceu fechado, não
houve atividades religiosas, nem festas e animados encontros de romeiros; os
brinquedos, os jogos e as centenas de barraquinhas dentro e fora do areal não foram
montadas, o sistema de acampamento para hospedagem dos romeiros foi cancelado.
Veículos ou ônibus de excursão foram proibidos de estacionar nas áreas reservadas.
Foram posicionadas barreiras sanitárias e policiais nas estradas que dão acesso ao
Santuário. No lugar do barulho alto, das conversas animadas e das músicas sertanejas
no último volume, nos dias da festa o silêncio envolvia todo o areal do Muquém.
Mas um outro tipo de romaria aconteceu afinal. Em parte, graças à experiência
adquirida como as atividades religiosas transmitidas pela Internet nos meses
anteriores, os padres do santuário criaram e implantaram durante o período de
duração da festa um novo formato de romaria: a “romaria em casa”. Para isso
adaptaram todas as práticas religiosas usuais, como missas, adoração, novena,
bênçãos, procissões, orações e outras para serem transmitidas pela plataforma
digital. O moto da mensagem foi: faça a romaria em sua própria casa.
Como o projeto de pesquisa está em pleno andamento, não temos ainda uma
resposta definitiva a essa e outras perguntas, se de fato e em que medida o novo
formato de romaria funcionou e se foi amplamente acolhido pelos romeiros. As
informações e dados estão ainda sendo colhidos e compilados. Na verdade, o próprio
qualificativo proposto no título original do projeto de pesquisa – A “romaria virtual”
do Muquém – está sendo rediscutido, pois para muitos romeiros não se tratou de
uma experiência virtual, no sentido de participar de algo apenas através das
transmissões de TV e de Internet. A pesquisa recolheu muitos relatos de romeiros
que montaram as barracas no quintal de sua casa, realizaram procissões com a
imagem pelos cômodos da moradia ou pelos arredores, e tentaram, enquanto
possível, reproduzir o ambiente, o cenário, os gestos e o envolvimento subjetivo
vivido quando da romaria no próprio santuário do Muquém.
Dessa forma, algumas questões mais antigas ainda precisam ser respondidas
como: A experiência religiosa virtual é real? Que sentido e densidade emocional os
romeiros atribuem às suas experiências religiosas vividas “em regime remoto”?
Enquanto isso, a própria dinâmica da pesquisa sugeriu questões novas, como essa, se
de fato pode-se falar, nesse caso pelo menos, de experiência “virtual” ou “remota”.
Estudos feitos parecem ter comprovado que a experiência religiosa virtual é
autêntica e real para aqueles que a fazem (CAMPBELL, 2006; CSORDAS, 2009;
HELLAND, 2020). Os romeiros do Muquém, segundo dados preliminares da pesquisa,
deram um sentido à sua participação mesmo se virtual na festa religiosa da romaria
de N. Sra. D´Abadia. As análises dos relatos e testemunhos dos romeiros indica que
através da participação em atividades religiosas realizadas “em regime remoto” pela
58

Web TV, como Missas, Terços da Divina Misericórdia31 e Novenas, manteve-se uma
relação de acessibilidade e confiabilidade entre romeiros e celebrantes, e esta
interação se deu por meio da comunicação ao vivo das mensagens, pois, os romeiros
enviaram pedidos de oração, depoimentos de milagres, fotografias, agradecimentos,
testemunhos curas e doações. Os romeiros acessaram com assiduidade o sistema de
transmissão do santuário (WEBTVSANTUÁRIO) pela Internet, e assim puderam
acompanhar as celebrações religiosas que o santuário organizou especificamente
para eles. Através do registro automático dos IPs dos aparelhos que realizam o acesso
à rede, é possível medir a duração, quantificar os acessos e até localizar em termos
mais amplos, de país, a origem dos acessos remotos. Todos esses dados serão
posteriormente analisados e cruzados com indicadores obtidos por outras fontes.

CONCLUSÃO

Estudos feitos por Stewart M. Hoover (2006) apontam que religião e mídia
existem como formas institucionais na esfera pública, se misturam, colidem e
ocupam os mesmos espaços de experiência cultural. Segundo Hoover, religião e
mídia se encontram num impressionante movimento histórico de convergência,
servindo a muitos dos mesmos propósitos e revigorando as mesmas práticas
simbólicas na modernidade tardia.
À medida que a pandemia do COVID-19 continua e influencia toda a vida
social, as organizações e denominações religiosas se verão diante do desafio de
encontrar adaptações e inovações, inclusive tecnológicas, para responder
adequadamente às novas condições, sob o risco de tornarem-se insignificantes no
campo da produção e internalização dos sentidos. Diante do enfrentamento da
pandemia global e da perspectiva mais ou menos realista de que as novas ameaças
pandêmicas vieram para ficar, as religiões e romarias, provavelmente, nunca
retornarão às suas práticas religiosas exatamente “como antes”. Dependendo dos
tipos e perfis dos seus romeiros e frequentadores – como imigrantes brasileiros e
goianos no exterior – as instituições religiosas precisarão imaginar novas formas de
encontro, novas modalidades para construir relacionamento e novas maneiras que
possibilitem aos seus fiéis expressar sua devoção, de forma à atender tanto às novas
condições sociais como às novas demandas subjetivas criadas pelas pandemias.
Há indícios consistentes na nossa pesquisa que apontam que através de sua
participação virtual no novo formato de “romaria em casa”, os romeiros, sobretudo
aqueles que vivem em contextos socioculturais instáveis ou distantes – como os mais
de mil imigrantes brasileiros nos Estados Unidos que seguiram a romaria do Muquém
pela Internet -, absorveram e integraram o recurso simbólico oferecido pela
mensagem online como modo de reafirmar um lugar de pertencimento, conferir um

31
O Terço da Divina Misericórdia é uma devoção religiosa católica baseada nas aparições que Santa Faustina
Kowalska (1905-1938) teria recebido de Cristo. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ter%C3%A7o_da_Divina_Miseric%C3%B3rdia. Acesso em: 10 ago. 2020.
59

sentido de orientação à vida e de repor sua identidade (religiosa e em todos os


sentidos), onde quer que se encontrem.
Indicamos também uma confirmação do diagnóstico de Hoover, de que
religião e mídia não podem ser mais claramente separadas em tempos de pandemia
do COVID-19. Mas os dados colhidos nos fazem continuar em busca de respostas para
entender melhor as mudanças culturais e religiosas emergentes e que estão
remodelando o futuro das romarias no mundo inteiro. Uma indagação nos persegue:
qual será o futuro da romaria do Muquém no contexto pós-pandêmico do COVID-19?
Responder a essa e às outras indagações mencionadas anteriormente, é o desafio do
projeto de pesquisa “Romaria Digital do Muquém em Tempos de Pandemia do
COVID-19”.

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STEWART, M. Hoover. Religion in the Media Age. Taylor & Francis e-Library. New
York, 2006.
60
61

IPARUBÓ: O CONFRONTO ENTRE A ECOLOGIA AFRICANA E O


MERCADO BRASILEIRO DE ABATE HALAL
DAVISON CARDOSO
Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
[email protected]

RESUMO: Está entranhado na sociedade brasileira o preconceito com as Religiões


Tradicionais Africanas, sobretudo quanto a imolação de animais nos rituais religiosos
(iparubó), que por vezes tem suas técnicas confrontadas sob o argumento da
crueldade, como nos emblemáticos exemplos dos Projetos Legislativos nº 4331/2012
e 8062/2017, em tramitação na Câmara dos Deputados, e do Recurso Extraordinário
nº 494601/RS, julgado pelo Supremo Tribunal Federal em 28/03/2019. No entanto, a
degola do animal, meio pelo qual se provoca a morte, não se mostra como técnica
exclusiva das Religiões Tradicionais Africanas, uma vez que é utilizada no abate halal
realizado em frigoríficos no Brasil, em respeito aos costumes da tradição Islã,
conforme instrução da Shariah. Todavia, o abate realizado nos frigoríficos não toma
uma repulsa social e não se torna alvo de atos de agentes do Estado. O texto
pretende demonstrar como técnicas similares de degola animal são observadas de
forma diametralmente opostas a depender do contexto social, político e econômico
ao qual estão inseridas. A perspectiva ecológica e de respeito à diversidade de crença
permanecem afastadas do campo de discussão. O viés de leitura escolhido se baseia
em consulta bibliográfica e análise do arcabouço jurídico, político, econômico e
ecológico atinente à matéria. Outro aspecto que merece observação é a comparação
teológica, pois tanto o Islã como as Religiões Tradicionais Africanas possuem como
princípio não provocar sofrimento ao animal. O debate destaca, como resultado
geral, a necessidade da observação crítica dos argumentos que sustentam
posicionamentos preconceituosos que se distanciam do real significado existente no
ritual de corte praticado pelas Religiões Tradicionais Africanas. O intuito é combater a
intolerância sofrida pelas tradições religiosas africanas. Técnicas similares utilizadas
para abater um animal tomam conotação diferente, quando realizadas nos terreiros
pobres das tradições de matrizes africanas ou quando realizadas nos frigoríficos
poderosos que movimentam o lucrativo mercado de exportação de carnes.

Palavras-chave: Halal; Mercado; Religiões Tradicionais Africanas; Ecologia.

No presente texto se fará uma comparação entre o abate halal realizado em


frigoríficos de acordo com a tradição islã e a imolação de animais realizada nas
Religiões Tradicionais Africanas, tendo como aspecto principal a técnica sacrificial.
Mas no que consiste o abate halal? Primeiro, importante entender a palavra
árabe halal, seu significado é lícito ou permitido. Não se trata apenas de uma
designação aos alimentos consumidos pelos muçulmanos, mas sim a um padrão ético
62

e moral de ações lícitas no ambiente social, na conduta, na justiça, nas vestimentas,


etc. (HALAL, [2019])
A carne halal trata-se do animal abatido com respeito e “humanismo” 32,
seguindo preceitos da Shariah que estabelece as normas orientadoras dos
muçulmanos.
A imolação de animais pelas Religiões Tradicionais Africanas, realizada em
cerimônia religiosa fechada aos iniciados, é conduzida por pessoa preparada para o
ritual. Aqui, como no abate halal, a degola 33 é o meio adotado, ambas possuem como
princípio não causar sofrimento ao animal, uma vez que a morte é instantânea.
O animal que será sacrificado no ritual de corte foi escolhido para servir de
instrumento que possibilitará aos praticantes comunicação com o plano espiritual, o
animal deverá ter ótimo aspecto físico e boa saúde, uma vez que será entregue como
vínculo entre homens, deuses, antepassados e natureza, após a imolação o animal
passa a ser alimento para a comunidade que se alimentará física e espiritualmente
(FERREIRA DIAS, 2019).
A imolação de animais de forma alguma se amolda ao senso comum que
demoniza a prática, pelo contrário, o que se busca é a purificação dos atores
envolvidos, além do aspecto solidário no partilhar da carne. O sacrifício é o fator que
ativa e possibilita o equilíbrio (BERKENBROCK, 1997, p. 203).
Para Reginaldo Prandi (PRANDI, 2005, p.74), “o sacrifício é o único mecanismo
através do qual os humanos se dirigem aos orixás, e o sacrifício significa a
reafirmação dos laços de lealdade, solidariedade e retribuição entre os habitantes do
Aiê e os habitantes do Orum”.
Aspecto divergente, entre as religiões analisadas, é a utilização do sangue, pois
para os mulçumanos o consumo do sangue é haram (proibido, impuro), entre os
adeptos das Religiões Tradicionais Africanas o sangue/menga é extremamente
importante, utilizado no cerimonial, pois representa a purificação, a vida, a
renovação.
Ocorre que a degola do animal, quando realizada no ambiente dos frigoríficos
brasileiros ou em festas da comunidade muçulmana34, não ganham uma repulsa
social. Todavia, quando realizada nos Terreiros ganham o caráter de maus-tratos aos

32
“Os animais devem ser saudáveis, em perfeitas condições físicas e aprovados pelas autoridades sanitárias
competentes. O abate é executado apenas por um mulçumano mentalmente sadio, que entenda, totalmente,
o fundamento das regras e das condições relacionadas ao abate Halal. A frase “Em nome de Deus, Deus é o
maior” (BismillahAllahuAkbar) tem de ser invocada imediatamente antes do abate.Os equipamentos e os
utensílios utilizados são exclusivos para esse tipo de degola e a faca do abate deve ser afiada porque a sangria
deve ser realizada apenas uma vez, diminuindo o sofrimento infringido. O ato do abate corta a traqueia, o
esôfago, as artérias e a veia jugular, para apressar o sangramento e a morte do animal.” (ZOGHBI, 2018)
33
A degola é o meio de sacrifício do animal, trata-se de método rápido que não provoca o sofrimento, uma vez
que o fluxo de sangue que iria para o cérebro é interrompido imediatamente, causando a morte instantânea e
eliminando a possibilidade de liberação de toxinas que contaminem a carne, portanto, além de não provocar
sofrimento ao animal produz uma carne de melhor qualidade para o consumo humano.
34
A festividade do Hajj, peregrinação a Meca, se encerra nas comemorações da Festa do Sacrifício – Eid Adhha,
neste dia deve-se sacrificar um carneiro ou outro animal relembrando a história de Abraão que foi ordenado
por Deus a sacrificar seu filho Ismael, tal festa é realizada pela comunidade muçulmana no Brasil (SACRIFÍCIO,
2007).
63

animais, de primitiva, de demoníaca, e passa a ser palco de eloquentes debates.


Então, por qual razão temos essa diferença de atitude na sociedade? O texto não
absorve toda discussão, apenas delineia alguns aspectos.

ASPECTO ECONÔMICO

O Brasil na década de 70 entra no ramo da carne Halal, no início para fornecer


carne ao consumidor interno, porém, atualmente o Brasil ocupa o primeiro lugar no
ranking mundial de exportação de carne Halal, sendo o principal exportador de
frango e o segundo maior exportador de bovinos (LÍDER, 2017), sendo 438 milhões de
toneladas de carne bovina e 3,8 milhões de carne de frango (ZOGHBI, 2019) com
faturamento na casa dos bilhões de dólares.
O pesquisador Gabriel Angel Jimenez Lopez (GABRIEL, 2019, p. 60) apurou que
em um frigorífico do Estado de Santa Catarina 220.000 frangos são abatidos ao dia,
por 38 sangradores muçulmanos, ou seja, 5.945 aves por trabalhador, no entanto, em
períodos de maior produção cada sangrador muçulmano realiza a sangria de mais de
10.000 aves dia.
Em contrapartida, nos Terreiros das Religiões Tradicionais Africanas, por
exemplo, dificilmente se terá um boi abatido, devido ao custo. Normalmente são
imolados galinhas, bodes e pombos, não é possível mensurar seu volume, todavia o
número de galináceos imolado no ano, provavelmente, não corresponde a 1 mês de
produção no citado frigorífico.
O fator econômico é determinante para que os políticos e a sociedade não
questionem uma enorme cadeia produtiva.

ASPECTO POLÍTICO-JURÍDICO

No cenário político há discussões sendo travadas pelo país com relação à


imolação de animais pelas Religiões Tradicionais Africanas, mas a principal delas é o
Projeto de Lei nº 4331/12 do Dep. Federal Marco Feliciano, do partido Republicanos
de São Paulo, pastor ligado à Assembleia de Deus, que tem o intuito de estabelecer
sanção penal e administrativa para quem pratica o sacrifício de animais em rituais
religiosos (FELICIANO, 2012).
Em 2017 o Dep. Federal Pastor Eurico, do Patriota de Pernambuco, apresenta
o Projeto de Lei nº 8062/17, também na tentativa de criminalizar o sacrifício de
animais em rituais religiosos, mas esta PL é peculiar, pois incrimina a utilização de
animais silvestres, domésticos ou domesticados (SILVA, 2017). No entanto, as
Religiões Tradicionais Africanas no Brasil não utilizam estes animais em seus rituais.
Além disso, em 2016 tramitou na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei nº
4618/16 de autoria do Dep. Federal Goulart, do PSD de São Paulo, que dispunha
64

sobre o abate humanitário de animais, na justificativa da proposta legislativa o


parlamentar argumenta que a técnica halal é “humanizada”. 35
O Decreto nº 9.013/2017 prevê no art. 112 do §2º o abate de animais de
acordo com preceitos religiosos, com claro intuito de assegurar legalidade ao abate
realizado nos frigoríficos, sobretudo da carne halal.
Os projetos legislativos deixam claro que, na interpretação dos deputados
federais, o sacrifício de animais nas Religiões Tradicionais Africanas é visto como
crueldade ao animal, no extremo oposto está o abate halal de animais, que é tido
como a melhor maneira de morte para um animal na produção de carne.
Recente decisão do Supremo Tribunal Federal no RE nº 494601/RS36, de
caráter inter partes, porém importante precedente do Pretório excelso, as PLs nº
4331/12 e 8062/17 continuam em tramitação na Câmara dos Deputados, causando
constrangimento à comunidade praticante das Religiões Tradicionais Africanas.
Por estes casos é possível perceber como a intolerância religiosa pode ser
materializada por meio da atuação política de alguns parlamentares e jurídica de
outros agentes públicos.

ASPECTO ECOLÓGICO

Na cultura brasileira a natureza é fonte de recursos. Mantemos a raiz de


colônia de exploração e observamos a natureza como extrativista.
Todavia, para Leonardo Boff (BOFF, 2008, p. 21), “Numa visão ecológica, tudo
o que existe coexiste. Tudo o que coexiste preexiste. E tudo o que coexiste e
preexiste subsiste por meio de uma teia infinita de relações onicompreenssivas”.
A cosmovisão africana se assemelha a esta percepção, pois a ecologia é
percebida como sistema do qual o ser humano faz parte, o homem ainda tem uma
conotação central, no entanto, integra um cosmo complexo, no qual elementos da
natureza passam a ter um caráter sagrado, incluído o animal. Na cosmovisão africana,
“a sacralidade da natureza insere vinculações interespécies, de modo a tornar a vida
não apenas um espaço e um tempo de realização do humano, mas da multiplicidade
de viventes e de suas relações vitais” (RODRIGUES; CAVALCANTE; SOUSA, 2016).
Para o antropólogo moçambicano Luís Tomás Domingos (2011):

35
Segundo o Dep. Antonio Goulart dos Reis “Um exemplo para o correto abate de animais é o seguido pelo
Islamismo. O Islã estabelece normas humanitárias de abate animal (abate Halal), que insiste que a melhor
maneira de abate deve ser aquela menos dolorosa para o animal, exigindo, entre outras coisas, que um animal
não seja abatido na frente do outro. Nunca, antes do Islã, o mundo tinha testemunhado tamanha preocupação
com os animais. De acordo com as técnicas do abate Halal, o abate deve ser feito o mais rápido possível para
que o animal tenha uma morte rápida. Há provas científicas de que, com a degola do sistema Halal, o animal
tem a interrupção sanguínea ao cérebro, que causa morte instantânea, não dando chance de liberação de
toxinas que contaminam a carne.Com a saída quase completa do sangue, se o animal estiver com alguma
moléstia, as chances do ser humano ser contaminado será menor.” (REIS, 2016)
36
Recurso Extraordinário nº 494601/RS do Supremo Tribunal Federal (STF), que julga em 28/03/2019 a
constitucionalidade de lei de proteção animal que, afim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício
de animal realizado pelas Religiões Tradicionais Africanas.
65
A cultura Africana pode nos ajudar a conceber e viver as relações do
homem com a natureza para que não sejam puramente relações técnicas,
mas estéticas; não relações do homem conquistador da natureza; mas sim
relações de respeito recíproco, de participação e de complementariedade. E
esta forma de relação íntima tem como finalidade realizar e manter um
equilíbrio harmonioso entre homem e o universo (...) Esta ontologia
antropocêntrica é uma unidade completa. É uma relação de solidariedade
na qual não pode haver ruptura ou destruição. E se acontecer o contrário,
causa desequilíbrio do próprio homem, da natureza, enfim, de todo o
Universo. (DOMINGOS, 2011)

Assim, o que se observa nos Terreiros das Religiões Tradicionais Africanas é a


utilização dos animais em cerimônias específicas na busca do equilíbrio. Neste
aspecto não há uma exploração do animal como produto de consumo. Distintamente
da compreensão dos mulçumanos, para o frigorífico que fornece a carne, há
cumprimento de obrigações exigidas por um mercado de consumo lucrativo.
E porque afirmo o impacto ambiental? O Brasil utiliza a técnica da pecuária
extensiva37 para produção do gado de corte, ou seja, cria-se animais em grandes
áreas, a pasto, para fins comerciais (AZEVEDO, 2015).
Desta forma, temos de um lado a ínfima quantidade de animais sacralizados
nas Religiões Tradicionais Africanas e do outro uma produção de milhões de cabeça
de gado que gera enorme impacto ambiental, porém enorme lucro a poucos
investidores.

CONCLUSÃO

Como se observa no texto, o abate halal segundo os preceitos do Islã e a


imolação de animais nas Religiões Tradicionais Africanas guardam similitude, quanto
a técnica.
Todavia, o mercado de carne halal destinado para exportação, é de bilhões de
dólares por ano, já quanto ao ambiente dos Terreiros não há movimentação
financeira considerável, portanto, não possui o forte argumento do lucro em uma
sociedade capitalista. O poder econômico corrobora para melhor aceitação social.
No campo político-jurídico, enquanto ocorre questionamentos legais para
criminalizar a imolação de animais nas Religiões Tradicionais Africanas, em
contraponto, regularizam o abate halal, que no Brasil, é exploratório e gera impacto
ambiental.
A Constituição Federal da República do Brasil no inciso VI do art. 5º preserva a
liberdade de crença e culto. E a degola do animal não pode ser vista como cruel
apenas quando envolta em cerimonial religioso das Religiões Tradicionais Africanas,

37
Segundo a reportagem de Ana Lucia Azevedo: Se hoje a pecuária é uma das atividades mais importantes do
país — representa 6,8% do Produto Interno Bruto ( PIB) — também é uma das mais ineficientes do mundo,
baseada na prática extensiva e, por isso mesmo, barata. Os lucros estão no tamanho da área usada e não na
eficiência produtiva. A pecuária brasileira tem um dos menores custos do mundo. Cerca de 60% menos que na
Austrália e 50% inferior ao dos Estados Unidos. (AZEVEDO, 2015)
66

tal perspectiva é preconceituosa e abdica da percepção ecológica da cosmovisão


africana.

REFERÊNCIAS

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em: https://www.youtube.com/watch?v=b9Aet6no7m4&feature=youtu.be. Acesso
em: 09 ago. 2020.
AZEVEDO, Ana Lucia. Com 1 boi por hectare, pecuária extensiva degrada cerrado. O
Globo, Rio de Janeiro, n. 29989, 15 set. 2015. Economia. P. 24. Disponível em:
https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/515844/noticia.html?sequenc
e=1. Acesso em: 01 ago. 2020.
BERKENBROCK, Volney J. A experiência dos Orixás: um estudo sobre a experiência
religiosa no Religiões Tradicionais Africanas. 2.ed. Petrópolis: Vozes, 1999.
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2008.
BRASIL. Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento. Decreto n. 9.013, de 29
de março de 2017. Regulamenta a Lei nº 1.283, de 18 de dezembro de 1950, e a Lei
nº 7.889, de 23 de novembro de 1989, que dispõem sobre a inspeção industrial e
sanitária de produtos de origem animal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9013.htm.
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BRASIL. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 494.601. Reclamante:
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Estado do Rio Grande do Sul e Governador do Estado do Rio Grande do Sul. Relator:
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67

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Goiânia, 28 maio 2018. Pecuária. Disponível em: http://revistasafra.com.br/como-e-
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Acesso em: 09 jul. 2020.
68

A LIBERDADE DE CRENÇA NOS GRUPOS TERAPÊUTICOS


PSICOLÓGICOS

MARINEIDE FELIX DE QUEIROZ BRITO


Mestra em Ciências das Religiões
Universidade Federal do Pernambuco
[email protected]

LUSIVAL ANTONIO BACELLOS


Mestre e Doutor em Educação
Universidade Federal do Pernambuco
[email protected]

RESUMO: O presente trabalho apresenta o conhecimento do fenômeno religioso


vivenciado na experiência pessoal dos participantes dos grupos terapêuticos
psicológicos da clínica Nossa Senhora da Vitória, em Goiana-PE. Tem como objetivos:
a) analisar o preconceito e a intolerância religiosa entre as pessoas que frequentam
as sessões grupais de psicologia; b) pesquisar quais as religiões existentes na
diversidade religiosa do grupo em evidência. As pessoas envolvidas nos grupos
terapêuticos têm diferentes crenças religiosas e torna-se imprescindível trabalhar o
respeito, a harmonia, a boa convivência e os valores éticos/estéticos presentes na
diversidade religiosa entre elas. Na terapia grupal, um dos aspectos importantes é
quando os relacionamentos ocorrem, sem atritos, havendo uma ajuda mútua entre
os participantes no contexto da terapia de grupos psicológicos, incentivada pela ação
do terapeuta coordenador do grupo respectivo. A harmonia dos trabalhos
terapêuticos depende das relações interpessoais, possibilitando, assim, a diminuição
dos conflitos, das desavenças entre crenças religiosas, das manifestações de
preconceito, intolerância, e de outras atitudes que não contribuem ou não dizem
respeito ao ambiente terapêutico psicológico. O presente artigo é resultado de uma
pesquisa descritiva, com abordagem qualitativa/quantitativa, que utiliza como
instrumentos de pesquisa questionários e entrevistas semiestruturadas, num
universo pesquisado com 40 (quarenta) participantes adultos de ambos os sexos. Os
resultados analisados são demonstrados através de gráficos e tabelas e nas análises
criteriosas dos conteúdos existentes no trabalho em evidência. Conclui-se que o
cuidado terapêutico é um dos fatores importantes para a orientação de soluções dos
problemas existentes nos grupos e propicia o bem-estar individual e coletivo de seus
integrantes, de forma satisfatória, para a obtenção do crescimento psicológico
almejado.

Palavras-chave: Diversidade Religiosa; Liberdade Religiosa; Preconceito; Tolerância.


69

INTRODUÇÃO

O presente artigo é resultado de uma parte da dissertação de mestrado em


Ciência das Religiões, pela Universidade Federal da Paraíba, recentemente concluído
(BRITO, 2020), sobre a Diversidade Religiosa e o Cuidado Terapêutico nos Grupos
Psicológicos de Goiana-PE.
As posturas dos participantes nas sessões grupais de psicologia se manifestam
em diversas formas, como por exemplo, diálogos acerca da natureza das percepções
pessoais e da espiritualidade em suas concepções filosóficas. As ações educacionais,
nos grupos, buscam a superação de desigualdades que atingem historicamente
determinados círculos sociais, muitas vezes discriminados pelos preconceitos social e
religioso.
Os encontros dos grupos acontecem em reuniões fechadas, nas quais cada
participante tem seu direito à fala, como também, de modo a expressar seus
sentimentos existenciais, na medida em que cada membro se sinta à vontade e em
segurança para dialogar.
As mudanças comportamentais constituem um dos pontos de partida no
processo de equilíbrio individual. Os indivíduos partem em busca das satisfações
pessoais. Os participantes dos grupos aprendem, através da educação emocional 38, a
enfrentar os medos e adquirir força de vontade para enfrentar os problemas.
Durante o processo terapêutico, dentro de um contexto cultural diverso, faz-se
necessário o diálogo entre os participantes. A partir dos posicionamentos de cada
um, a troca de experiências enriquece as forças pessoais.
A grande maioria dos pacientes que entram para os grupos de terapia tem um
histórico de uma experiência extremamente insatisfatória em seu primeiro e mais
importante grupo: a família primária. O grupo de terapia se parece com uma família
em muitos aspectos: existem figuras de autoridade/parentais, figuras de
irmãos/fraternas, revelações pessoais profundas, emoções fortes, e uma intimidade
profunda, bem como sentimentos hostis e competitivos. (YALOM, 2006, p. 33-34).
A psicoterapia de grupo apresenta a figura do psicoterapeuta, na análise das
motivações de seu grupo, movido pelo desejo de se ajudar, na busca de ampliar o
suporte interno, para o crescimento dos participantes do processo terapêutico de
grupo em prol dos benefícios manifestados pelos sentimentos, a fluir de suas próprias
emoções pessoais, ou seja, ser capaz de ter atitudes encorajadas ao qual ajudará a
ver o mundo de forma mais clara e realista, no enfrentamento do desconhecido, sem
medos ou inseguranças.
A vida humana sempre se processou em grupos. Os indivíduos nunca deixaram
de se transformar de acordo com as condições – geográficas, histórias, técnicas,
culturais. Da mesma forma, a ideia que a pessoa tem de si mesma, de seu grupo e da
relação entre ambos está sempre se transformando (MOLITERNO et al, 2012).

38
Segundo a prof. Drª. Elisa Gonsalves Possebon, a educação emocional significa conhecimento e
autoconhecimento de questões relacionadas ao universo emocional, abrangendo também a aquisição de
conhecimentos e habilidades que vem proporcionar a consciência e a modulação das ações, educando o
indivíduo para o bem-estar (2018, p.09).
70

A psicoterapia, portanto, é um processo de treinamento constante na busca de


mudanças, em prol do crescimento, valorização pessoal, consciência real de seu
pensamento, independência e maturidade na compreensão de si mesmo. Vários
serão os elementos que irão influenciar no processo da capacidade de ter atitude
positiva diante de fragilidades que possam vir a surgir no contexto de sua vida.
Qualquer forma de psicoterapia, fruto imediato de uma teoria do homem, será
sempre um instrumento frágil e poderá ser até perigoso, se o psicoterapeuta,
perdendo sua criatividade pessoal, imputar à sua teoria toda a responsabilidade pelo
seu pensar e agir. O processo psicoterapêutico necessariamente possui formas
diferentes, supõe também que as causas da psicopatologia humana tenham origens e
explicações diferentes (RIBEIRO, 1988, p. 40-41).
As liberdades de expressão, por parte dos participantes da pesquisa, foram
respeitadas no sentido de darem a todos o direito de responderem livremente aos
questionamentos nas entrevistas abertas, com suas ideias de conhecimentos e
pensamentos, sendo essa, uma maneira de valorizar com qualidade o desenrolar de
todo o processo da pesquisa científica.

METODOLOGIA

A metodologia utilizada foi de caráter descritivo, observacional, com análise


quantitativa e qualitativa, demonstrada com gráficos e tabelas. Os sujeitos da
pesquisa foram 40 (quarenta) participantes adultos, de ambos os sexos, dos grupos
terapêuticos psicológicos da Policlínica Nossa Senhora da Vitória, no Município de
Goiana/PE.
Os dados coletados revelaram que a diversidade religiosa é um fator
preponderante e pode ser compreendida, ou não, pelos sujeitos inseridos nos grupos
terapêuticos estudados.
O Brasil, é, de fato um Estado laico, como afirma a Constituição federal de
1988 (BRASIL, 1988) em seu artigo 5.º:

Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias.

Em teoria, deve ser independente, sem influências da Igreja. Isso assegura a


liberdade de escolha individual. A intolerância religiosa é tida como crime de ódio,
considerada inafiançável e imprescritível, sendo os ofensores sujeitos a pagamento
de multas e prisão. No dia 21 de janeiro comemora-se o Dia Nacional de Combate à
Intolerância Religiosa.
O preconceito e a intolerância religiosa são os principais obstáculos ao êxito
nos tratamentos dispensados por grupos psicológicos.
71

A liberdade religiosa se delineia no âmbito estatal e é assegurada pelo


princípio da laicidade. Na relação entre religião e política, o problema da liberdade
religiosa é uma questão fundamental para a sociedade livre, visto que se trata da
disponibilidade de os cidadãos terem o direito à liberdade de crença e de
pensamento, sem serem coagidos por isso, e da emancipação do ser humano.
Todos os métodos e mecanismos utilizados nesta pesquisa foram permeados
no âmbito da Diversidade Religiosa, com o intuito de que cada sujeito presente nesta
abordagem tivesse consciência de uma multiplicidade de gostos, vontades e crenças,
fazendo com que cada um se colocasse no lugar do outro, gerando nas sessões e fora
delas, uma cultura de paz, de respeito e unidade.

PRECONCEITOS E INTOLERÂNCIA

Uma das mazelas que acometem os grupos terapêuticos, dificultando o


andamento do tratamento e criando conflitos entre os membros de um grupo
psicoterápico, é o preconceito religioso. Pessoas de diferentes religiões, reunidas em
grupo, precisam trabalhar aspectos de tolerância e harmonia em busca de uma
cultura de paz.
Preconceito é um termo que delineia a atitude mental assinalada pela falta de
destreza ou vontade em reconhecer e respeitar diferenças ou crenças religiosas de
terceiros.
O preconceito se expressa em uma atitude mental passiva, negativa, de
aceitação acrítica de ideias irracionais, enquanto a tolerância implica uma atitude
mental ativa, positiva, de respeito aos direitos fundamentais do homem em
sociedade.
A comunicação favorece o respeito à espiritualidade e é construída por meio
do conhecimento esclarecedor de seus significados na compreensão do sagrado.
Quando nos permitimos conhecer as vivências e práticas espirituais das pessoas, não
estamos renunciando à nossa própria convicção ou crença. Quanto mais conhecemos
outras crenças que não são as nossas, maior discernimento e capacidade teremos
sobre nosso segmento. Em prol do diálogo, cabem atitudes de respeito, diálogo e
entendimento em benefício da cultura de paz e a grande consideração nas relações
entre as pessoas.
Percebemos, hoje, muitas pessoas que fazem questão de expressar
verbalmente, de forma bastante agressiva, do tipo não suporto fulano, por causa da
religião que tem ou frequenta. Vimos a dificuldade de alguns seres humanos em
saber separar a opção de escolha no que se refere a frequentar templos, igrejas,
terreiros nos impasses socioculturais.
72

Gráfico 2 – Preconceito religioso

Fonte: Dados da pesquisa, 2019.

Neste trabalho, ainda, demonstramos que a diversidade religiosa e a


interculturalidade contribuem para a aquisição do conhecimento no convívio dos
grupos terapêuticos e nas múltiplas manifestações do sagrado.
Alguns conflitos podem ocorrer entre os que possuem religião e os que se
declaram ateus. Muitos destes sofrem preconceitos diversos e enfrentam as
hostilidades e o afastamento por parte dos integrantes dos grupos que possuem e
defendem a sua religião perante os demais.
Apesar da grande diversidade religiosa entre os participantes do grupo e dos
conflitos existentes entre eles, que geralmente dificultam o andamento do
tratamento psicoterápico, a atenção terapêutica – como um olhar cuidadoso, no
sentido de encontrar os problemas, contornar as dificuldades existenciais, aparar as
arestas nos grupos, que poderiam acarretar algum prejuízo no andamento do
tratamento psicológico – propicia que ocorra o crescimento individual e,
consequentemente, o desenvolvimento coletivo de grande parte dos integrantes dos
grupos terapêuticos psicológicos, a fim de que o tratamento e o bem-estar deles
caminhem de forma satisfatória, independentemente das diferenças religiosas e
sociais, com foco no crescimento psicológico.
Concluímos que as tabelas e os gráficos apresentados nos mostraram dados
relevantes em relação a alguns posicionamentos por parte dos participantes,
inclusive, com a manifestação de preconceitos religiosos, acompanhados de um
desconhecimento do que vem a ser a diversidade religiosa. Foram registradas
diversas respostas no que diz respeito à convivência grupal. Na pesquisa, foram
apontados atritos, interferências, prejuízos e intolerância religiosa diante da opção de
religião e crença religiosa do outro, demonstrada nos grupos terapêuticos
psicológicos.
A diversidade religiosa é uma questão que não é nada fácil de se harmonizar,
na convivência das pessoas envolvidas na terapia grupal. Porém, precisa ser
trabalhada pelo dirigente dos grupos de forma a se evitar prejuízos pessoais,
desconhecimentos, desentendimentos e divergências que venham a prejudicar a boa
73

relação entre os membros dos grupos de psicologia. Esse cuidado é necessário para
que se possa dar continuidade ao processo terapêutico propriamente dito.

LAICIDADE

O respeito à dignidade humana é um dever de todos. As manifestações


religiosas não podem ser discriminadas nem reprimidas por parte da sociedade e suas
instituições. As práticas religiosas se manifestam nos espaços e nos tempos
adequados, definidos de acordo com as normas estabelecidas nas leis. Nos grupos
terapêuticos psicológicos, o respeito à liberdade religiosa também se manifesta como
preceito de conformação da dignidade humana, sempre direcionada para a busca do
crescimento psicológico.
A laicidade é uma forma de agir do Estado, manifestada pelo respeito e
tolerância às diversas escolhas religiosas dos cidadãos, caracterizada pela separação
entre as religiões e o Estado nas decisões administrativas.
Nossa Constituição federal é avançada no respeito à liberdade religiosa em
relação às demais constituições democráticas existentes no mundo; porém,
infelizmente, seus dispositivos são costumeiramente desrespeitados pela sociedade
brasileira, principalmente por aqueles que a deveriam proteger, os governantes,
legisladores e magistrados. O Brasil seria um país quase utópico, de exemplos
elogiáveis, se sua Constituição fosse cumprida, compreendida e mesmo conhecida
pelos seus conscientizados cidadãos. No entanto, o que vemos é um povo que não
exige seus direitos, pois não os conhece, e uma classe política sem disposição para
protegê-lo.
A laicidade é uma característica do Estado necessária para o desenvolvimento
de uma sociedade justa e solidária. Ela lembra aos seus cidadãos a necessidade de
respeitar as diferenças religiosas, incentiva a tolerância e combate o preconceito
religioso nas relações sociais.

CONCLUSÃO

Podemos salientar que as experiências vividas em todo o desenvolvimento da


pesquisa científica foram satisfatórias. As expectativas foram atendidas no contexto
grupal estudado, o respeito à diversidade religiosa esteve presente, auxiliando, tanto
no cuidado terapêutico quanto na boa convivência entre os participantes dos grupos.
Destacamos que, ao finalizar os escritos deste estudo, procuramos dar
respostas às nossas indagações por meio dos questionários aplicados. Não obstante,
isso não significa que esta pesquisa acaba por aqui, pois essa é uma temática que
abre espaço ofertando inúmeras oportunidades para que muitos pesquisadores
investiguem e possam dar continuidade ao tema em evidência.
74

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília,


DF: Senado Federal, 1988.
BLANCARTE, Roberto. O porquê de um estado laico. In: LOREA, Roberto Arriada.
(org). Em defesa das liberdades laicas. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2008. p.
19-32.
BOBBIO, N. Elogio da serenidade e outros escritores morais. Tradução de Marco
Aurélio Nogueira. São Paulo: Editora da Unesp, 2002.
BRASIL. Presidência da República. Secretaria de Direitos Humanos. Diversidade
religiosa e direitos humanos. Brasília, 2013.
BRITO, Marineide Felix de Queiroz. Diversidade religiosa e o cuidado terapêutico nos
grupos psicológicos no município de Goiana – PE. 102 f. Dissertação (Mestrado em
Ciências das Religiões) – Universidade Federal da Paraíba, João Pessoa, 2020.
MOLITERNO, Ian Marinho et al. A atuação do psicólogo com grupos terapêuticos.
Caderno de Graduação: Ciências Biológicas e da Saúde Fits, Maceió, v. 1, n. 1, p. 95-
98, nov. 2012.
POSSEBON, Elisa Gonsalves Pereira. Educação emocional: aplicações. João Pessoa:
Libellus, 2018. (Coleção Educação Emocional, v. 5).
RIBEIRO, Jorge Ponciano. Psicoterapia: teorias e técnicas psicoterápicas. 3. ed. São
Paulo: Summos,2017.
USARSKI, Frank. O espectro disciplinar da ciência da religião. São Paulo: Paulinas,
2007. (Coleção Repensando a Religião).
YALOM, Irvin. Psicoterapia de grupo: teoria e prática. Tradução de Ronaldo Cataldo
Costa. Porto Alegre: Artmed, 2006.
75

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA: UM CONCEITO


RELIGIOSO GARANTIDOR DA LIBERDADE RELIGIOSA

MOACIR FERREIRA FILHO


Doutorando e Mestre em Ciências da Religião
Universidade Metodista de São Paulo
[email protected]

RESUMO: O presente estudo pretende abordar brevemente a construção do


conceito de dignidade de pessoa humana passando por Aristóteles, Boécio, Tomás
de Aquino culminando na aplicação deste conceito na Declaração Universal dos
Direitos pelo filósofo tomista Jacques Maritain. Começando pela tese de que o ser
humano é dotado de uma alma racional. Ser racional significa ter poder sobre seus
atos. Analisando a teologia tomista, o medieval escreve sobre o termo pessoa para
Deus e por consequência disso é possível dizer sobre a existência de uma pessoa
humana. Deste modo, se Deus é pessoa e é digno no mais alto grau segundo tal
teologia, o ser humano também é pessoa e possui dignidade que significa um estado
de elevação perante as demais criaturas. A partir disto, analisar o efeito garantidor
deste conceito nascido no seio do cristianismo no século XIII que além de respaldar a
humanidade no que se refere a seus direitos e garantias fundamentais, também visa
dar o direito à liberdade religiosa como prevista no artigo 18 da DUDH. Um conceito
religioso que garante a liberdade religiosa. Não se trata aqui de se fazer uma
apologia, mas uma análise histórica da construção do conceito e sua aplicação ao
longo da história da humanidade. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de natureza
aplicada, de objetivo exploratório e procedimento bibliográfico. Em suma, a
pesquisa observa que o conceito da dignidade da pessoa humana passa por várias
fases ao longo da história, mas que é lapidada, principalmente, por Tomás de Aquino
no século XIII. Tal conceito nascido no cristianismo deste contexto, gera a Declaração
Universal dos Direitos Humanos e por consequência garante a liberdade religiosa de
toda a humanidade tutelada por esta declaração.

Palavras-chave: Dignidade; Pessoa humana; Pessoa divina; Liberdade religiosa.

SOBRE A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA

Segundo os estudos de Filho (2016 p. 50), as discussões acerca do conceito e


definição de pessoa a partir de Wojtyla (1961), remonta às discussões dos teólogos
da patrística que procuravam responder as questões que rodeavam a fé católica
iniciando pelo mistério da Trindade e da Encarnação da segunda pessoa da trindade
que implica na união das naturezas divina e humana. Ainda de acordo com Wojtyla
76

(1961), podemos destacar que nas obras de Tomás de Aquino seu personalismo
teológico antecede o personalismo humanista, pois vamos encontrar suas ideias
acerca de pessoa já no tratado da Trindade e da Encarnação. Tomás de Aquino, para
justificar-se, escreve que tudo aquilo que há de mais perfeito no mundo das
criaturas há num grau muito maior de perfeição em Deus, deste modo, a pessoa que
é considerada uma perfeição no mundo das coisas criadas deve realizar-se num grau
incomparável de perfeição no Criador.
Na questão 29 da Suma Teológica, Tomás de Aquino questiona se a definição
de pessoa de Boécio seria a mais cabível e adequada. O autor escreve que “entre as
outras substâncias os indivíduos de natureza racional têm o nome especial de
pessoa”. (ST I q. 29 a. 1)
Boécio (2005) define que pessoa é uma substância individual de natureza
racional39. É importante ressaltar que pessoa e indivíduo não são o mesmo, pois vamos
encontrar o termo indivíduo dentro da definição de pessoa, portanto são conceitos
distintos. Filho (2016 p. 51) escreve que de acordo com a análise das intenções
lógicas, temos gênero, espécie e indivíduo. Se esta substância individual possuir
natureza racional, pode ser considerada pessoa, caso contrário, não. Toda pessoa é
considerada indivíduo, mas nem todo indivíduo pode ser considerado pessoa.
Em sua resposta, o Doutor Angélico ensina que os indivíduos substanciais são
diferentes um dos outros devido a um nome especial, pois podem ser ditos como
hipóstases (para o latim “substantia”) ou substâncias primeiras. É nas substâncias
racionais que o individual e o particular são manifestados de forma mais perfeita,
isto se acentua devido ao fato de terem autonomia sobre seus atos, ou seja, para
Tomás, ser substância racional significa, além de possuir alma racional e captar o
inteligível, é poder dominar ou controlar suas atitudes e não somente agir de
maneira instintiva. Deste modo, pode-se dizer que a substância racional é senhora de
seus atos. A razão transcende os instintos. Segundo Wojtyla (1961), a pessoa, na
visão tomista, é sempre um ser concreto, um ser em quem se realiza uma
potencialidade própria de uma natureza racional, e esta potencialidade se realiza
por meio de um pensamento.
Tomás escreve que “o particular e o indivíduo se realizam de maneira ainda
mais especial e perfeita nas substâncias racionais que têm o domínio de seus atos e
não são apenas movidas na ação como as outras, mas agem por si mesmas. Ora as
ações estão nos singulares”. (ST I q.29 a.1)
Tomás, concordando com Boécio, destaca que os indivíduos de substância
racional recebem o nome especial de pessoa, utiliza-se substância individual nesta
definição para se referir ao singular no gênero da substância, e acrescenta-se

39
Disso tudo decorre que, se há pessoa tão-somente nas substâncias, e naquelas racionais, e se toda
substância é uma natureza, mas não consta (...) nos universais, e, sim, nos indivíduos, a definição que se obtém
de pessoa é a seguinte: “substância individual de natureza racional. (BOÉCIO, 2005. p. 165). Ambas propiedades
espirituales de la naturaleza – la razón y la libertad – se concretan en la persona, donde se convierten en
propiedades de un ser concreto, que existe y actúa en el nivel de una naturaleza que tiene tales propiedades. La
persona, por lo tanto, es siempre un ser concreto racional y libre, capaz de todas aquellas actividades que sólo la
razón y la libertad hacen posible (...) (WOJTYLA, 1961, p. 4).
77

natureza racional para se referir ao singular na ordem das substâncias racionais. O


termo individual é muito acentuado na definição proposta por Boécio e assumida
por Tomás, ele é utilizado para destacar o modo de subsistir das substâncias
particulares, ou seja, o indivíduo subsiste, isto é, existe em si e não em outro, como
exemplo, um acidente que não tem existência por si (não subsiste), mas somente
existe em outro coisa.
Subsistir, subsistência (subsistere, subsistentia): Subsistir é existir
separadamente, enquanto substância e como sujeito. Mais precisamente, é exercer o
ato de existência. Na linguagem de Sto. Tomás, significa geralmente o fato de
subsistir. Ou ainda, mas bastante raramente e por fidelidade a uma linguagem aceita
em sua época, simples tradução da hipóstase grega: aquilo que subsiste40.
Segundo o pensamento de Spaemann (2000), os homens estão incluídos na
classe biológica dos mamíferos, mas além disso, ele está inserido num outro grupo,
isto é o das pessoas, o qual nenhum outro animal participa, a não ser o homem 41. O
autor ainda destaca que o conceito de pessoa, como vimos até o presente
momento, encontra-se no núcleo da teologia cristã, portanto, tal fator o faz concluir
que sem a dimensão teológica, o conceito de pessoa desapareceria.
As substâncias racionais, de acordo com Spaemann (2000), exigem uma classe
determinada de respeito, uma maior elevação em relação aos demais seres, isto é, a
dignidade, portanto pessoa é alguém e não algo42. Filho (2016 p. 54) escreve que
todos esses fatores cooperam para que, concordando com Tomás, consideremos que
pessoa não é somente uma intenção lógica, mas se refere a um nome próprio.
Pessoa não é um indivíduo por sua natureza, mas um que subsiste em sua natureza
(per se). Portanto, pessoa não se limita a um conceito mas um nome próprio geral,
pois se referem às substancias individuais que existem por si e que tem domínio de
seus atos, isto é, para Tomás, são racionais pois não são movidos pelo instinto, mas
dominam e escolhem seus atos.
Segundo Wojtyla (1961), o personalismo de Tomás não trata de uma ciência
ou apenas uma teoria sobre o que é pessoa, mas seu significado abrange prática e
ética, não se preocupa com pessoa somente como um objeto de estudo, mas como
sujeito de objeto de atividade, um sujeito de direitos.7
No artigo 3 da questão 29 da Suma Teológica, Tomás discorre sobre o termo
pessoa em relação a Deus, mas não nos cabe neste momento nos aprofundar na
noção de pessoa divina, contudo, o autor ressalta que devemos nos desprender do
conceito de pessoa da sua raiz grega devido a possibilidade de uma interpretação
errônea as quais são tomadas por base na nossa contemporaneidade. A palavra

40
(NICOLAS, Marie – Joseph In: Suma Teológica I p.98).
41
En una primera aproximación hemos reunido algunas peculiaridades, que permiten entender por qué a los
hombres, es decir, a los seres que nosotros mismos somos, no nos limitamos a incluirlos em uma determinada
espécie biológica de mamíferos, sino además en una classe completamente distinta, en la classe de las
personas (...) (SPAEMANN, 2000. p. 37).
42
Ciertamente persona es también um nomen dignitatis. Las naturalezas racionales pueden exigir uma classe
determinada de respeto. Sin embargo, el sentido primero de la definición de Boécio es ontológico. La
naturaleza racional existe como identidad (...) Con otras palabras: su denominación no puede ser sustituida por
ninguna descripción. La persona es alguien, no algo (...) (SPAEMANN, 2000. p. 48).
78

pessoa, na origem grega era dita prósopa (máscara que esconde o rosto) e ainda
personare (ressoar) que faz referência às máscaras com certa concavidade específica
para que o som da fala do ator que a utilizasse durante a apresentação teatral fosse
transmitida a maiores distâncias.
O Doutor Angélico ensina que pessoa diz respeito àquilo que é mais perfeito
em toda a natureza (subsiste em uma natureza racional), contudo, quando falamos
em pessoa divina e pessoa humana, é necessário compreendermos que há uma
distinção entre essas pessoas, pois o termo pessoa quando relacionado a Deus quer
dizer o maior grau de perfeição entre todos os entes. Deus é a própria perfeição por
sua essência, pessoa no mais alto grau de excelência. Contudo, não devemos nos
referir a Deus usando o termo pessoa se considerarmos a origem da palavra, mas
sim, o que ela passou a significar. As máscaras eram utilizadas para representar os
célebres, as pessoas constituídas em dignidade, portanto é deste modo que
atribuímos o termo pessoa a Deus, pois, segundo a teologia deste contexto, Ele é o
mais digno, é o que possui mais dignidade, logo é pessoa no mais alto grau.
Considerado este aspecto da dignidade da pessoa divina, também é atribuída a
dignidade à pessoa humana.
Tomás escreve que é “por isso, alguns definem pessoa dizendo que é uma
hipóstase distinta por uma qualidade própria à dignidade. Ora, é grande dignidade
subsistir em uma natureza racional. Por isso dá-se o nome pessoa a todo o indivíduo
dessa natureza, como foi dito. Mas a dignidade da natureza divina ultrapassa toda
dignidade, por isso, o nome de pessoa ao máximo convém a Deus”. (ST I q. 29 a.3)

UM CONCEITO RELIGIOSO QUE GARANTE A LIBERDADE RELIGIOSA

Os ensinamentos de Tomás de Aquino sobre a dignidade da pessoa humana


influenciam no Direito até os dias de hoje. Como exemplos podemos citar a
Declaração Universal dos Direitos Humanos (DUDH), a Doutrina Social da Igreja (DSI) e
a Constituição da República Federativa do Brasil de 1988
Segundo Azevedo (2009), Jacques Maritain se utilizou de conceitos tomistas
como dignidade e liberdade para cooperar na construção de um estatuto que
assegurasse os direitos humanos e prevenisse a humanidade de outros atentados
catastróficos após a II Guerra Mundial. A DUDH foi adotada pela ONU (Organização
das Nações Unidas) e proclamada pela Assembleia geral em 10 de dezembro de
1948. Para observarmos a influência da filosofia tomista através de Maritain para os
dias de hoje podemos observar o preâmbulo e o artigo primeiro da DUDH.
Feita esta primeira observação acerca do preâmbulo da DUDH, é válido
ressaltar que os efeitos deste reflete, por exemplo, no artigo 18 desta mesma
declaração que traz que “toda a pessoa tem direito à liberdade de pensamento, de
consciência e de religião. Este direito implica a liberdade de mudar de religião ou de
79

convicção, assim como a liberdade de manifestar a religião ou convicção, sozinho ou


em comum, tanto em público como em privado, pelo ensino, pela prática, pelo culto
e pelos ritos.”. Neste sentido, portanto, pode-se notar que um conceito tal como o
da dignidade da pessoa humana percorreu a história desde Aristóteles, passando
por Boécio, Tomás de Aquino e Jacques Maritain. Nisto, observa-se que em Tomás o
conceito é lapidado no seio do cristianismo e aplicado no século XX na tentativa de
resguardar a humanidade inteira, não só os cristãos. Portanto, é um conceito
religioso que garante uma liberdade religiosa geral.
Filho (2016 p. 61) escreve que a obra de Maritain intitulada de Humanismo
Integral publicada em meados de 1936 influenciou também na elaboração da DSI.
Ainda mais, pode-se notar a influência das palavras de Tomás no artigo primeiro da
Constituição da República Federativa do Brasil promulgada em 1988 sobre os
princípios fundamentais da república.
Pode-se notar, portanto, que os escritos e os ensinamentos de Aquino
publicados há muito continuam a ter valor e serem até mesmo essenciais na nossa
sociedade contemporânea, pois a partir deles, ainda é possível garantir respeito e
dignidade às pessoas do mundo inteiro, e neste sentido é importante ressaltar que
sem a influência da filosofia medieval estaríamos vivendo num mundo muito mais
caótico.

CONCLUSÃO

A partir deste breve estudo, pode-se inferir que a filosofia grega e medieval
não estão tão ultrapassadas assim como defendem alguns radicais contemporâneos.
Muito pelo contrário, este estudo mostrou quão relevante são as teses e conceitos
fundados desde Aristóteles até Tomás de Aquino tendo sua aplicação maior por
Jacques Maritain no pós guerra. A pejorativamente chamada ‘idade das trevas’
produziu conteúdos que iluminam o direito universal até os dias de hoje
principalmente no que se refere à garantia de direitos fundamentais e também à
liberdade religiosa como descrita no artigo 18 da DUDH. O estudo é limitado no que
se refere à necessidade de ler e visitar outros autores, tal como Kant que possui uma
outra abordagem em relação à dignidade humana, contudo, abre caminhos para
que estudos futuros sejam feitos não só do ponto de vista da filosofia ou teologia,
mas também do ponto de vista das ciências da religião e do direito internacional. É
possível destacar como as garantias estão sendo aplicada pelos governos de cada
país, se de fato a declaração universal é respeitada e assim por diante. Em suma, a
pesquisa contribui para uma visão geral acerca da filosofia tomista, sua relevância
para a contemporaneidade e a aplicabilidade de conceitos tão básicos para o bem
comum da humanidade tal como a liberdade religiosa.
80

REFERÊNCIAS

AZEVEDO, Ferdinand. Jacques Maritain e a Declaração Universal dos Direitos


Humanos. Universidade Católica de Pernambuco. 2009. Disponível em:
<http://www.unicap.br/catedradomhelder/?page_id=56>. Acesso em: 4 mai. 2020.
BOÉCIO. Escritos (opuscula sacra). Trad. Juvenal Savian Filho. São Paulo: Martins
Fontes, 2005.
BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil.
Brasília, DF. Disponível em:
<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao.htm>. Acesso em: 5
nov. 2020.
DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS, ONU, 1948. Disponível
em: <http://www.dhnet.org.br/direitos/deconu/textos/integra.htm>. Acesso em: 5
nov. 2020.
FILHO, Moacir Ferreira. A ontologia da alma em São Tomás de Aquino. São Paulo:
Paulus, 2016. (Coleção e-book FAPCOM)
GARDEIL, Henri – Dominique. Iniciação à filosofia de São Tomás de Aquino:
psicologia, metafísica. Tradução: Cristiane Negreiros Abbud Ayoub, Carlos Eduardo
de Oliveira. 2ª ed. São Paulo: Paulus, 2013
HOUAISS, Antônio; VILLAR, Mauro de Salles. Dicionário Houaiss da Língua
Portuguesa. 1ªed. Rio de Janeiro: Objetiva, 2009.
PONTIFÍCIO CONSELHO JUSTIÇA E PAZ (2004). Compêndio da Doutrina Social da
Igreja (DSI) (em português) Santa Sé. Disponível em:
<http://www.vatican.va/roman_curia/pontifical_councils/justpeace/documents/rc_
pc_justpeace_doc_20060526_compendio-
dottsoc_po.html#Orespeitodadignidadehumana>. Acesso em: 4 de nov. 2015.
SPAEMANN, Robert. Personas. Acerca de la distinción entre algo y alguien.
Tradução: José Luis del Barco. 2ª ed. Universidade de Navarra, Pamplona: EUNSA,
2000.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. O ente e a essência. Tradução: Carlos Arthur do
Nascimento. Petrópolis, RJ: Vozes, 2013.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica I. São Paulo: Loyola, 2002.
TOMÁS DE AQUINO, Santo. Suma Teológica II. São Paulo: Loyola, 2002.
WOJTYLA, Karol. El personalismo tomista. 1961. Disponível em:
<http://www.jacquesmaritain.com/pdf/23_OA/4P-1.1.pdf>. Acesso em: 28 abr. 2020.
81

EM NOME DE DEUS: A RELAÇÃO ENTRE PODER POLÍTICO,


IGREJA E SOCIEDADE.

NEILSON XAVIER DE BRITO


Doutor em Teologia
Faculdades EST
[email protected]

RESUMO: A pandemia da COVID-19 tem estimulado a sociedade a refletir sobre


valores éticos, políticos, econômicos, religiosos e da saúde pública. Que modelo de
desenvolvimento socioeconômico o mundo busca para si? Somos desafiados a
encontrar uma resposta para o valor da vida diante da possibilidade da morte que se
avizinha. Qual a importância do ser humano para o sistema capitalista? Quais as
ações construídas pelo capitalismo antes do impacto da Covid-19 na saúde, na
economia, nas relações internacionais, na política, no direito, no trabalho e os seus
vínculos com a religião institucionalizada? Qual a participação da fé cristã com
projetos hegemônicos que incentivaram a “coisificação” do outro? Qual a práxis da
igreja cristã, e em especial dos movimentos neopentecostais no processo de
assimilação do modelo imperialista norte-americano? Quais os impactos da nova
cultura de poder político dos neoevangélicos? Como avaliar a práxis cristã quanto ao
respeito à liberdade religiosa? Este artigo busca refletir sobre o pensamento
fundamentalista dos protestantes evangélicos e a sua relação com o projeto de
dignidade humana, revisitando sua história e memória, sua relação com a política
norte-americana, aqui denominada imperialista, especialmente através dos
movimentos conservadores da The Family, Tea Party e The Send Brazil e a sua
influência na práxis da relação entre religião e política no Brasil e na América Latina.

Palavras-chaves: Neopentecostais; Fundamentalismo; The Family; Tea Party; The


Send.

INTRODUÇÃO

Indicadores históricos têm evidenciado que em muitos momentos o


cristianismo, através da práxis de muitos cristãos, se afastou da graça de Deus em
Cristo na busca de um empoderamento político na relação Igreja, Estado e sociedade.
A evangelização proselitista marcada pela pessoalidade (missão) seria então
substituída pela imposição de um Estado Cristão – “O Brasil é de Jesus”.
Em alguns períodos da história, a igreja tornou-se parceira de projetos
imperialistas, passando a ter “cumplicidade com esses projetos hegemônicos que
incentivaram o processo de coisificação do ‘outro’”. (NASCIMENTO, 2015, p. 45) Na
82

busca da salvação da alma, o corpo e todo o seu entorno em relação ao “outro”


tornou-se irrelevante.
É fácil percebermos essa busca pelo poder político nas palavras proferidas em
maio de 2016 pela atual Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos,
Damares Alves quando afirma: “Chegou a nossa hora, é o momento de a Igreja
ocupar a nação. É o momento de a igreja dizer à nação a que viemos. É o momento
de a igreja governar”. (FRANCO, 2018) Em razão da luta pelo poder temporal não
foram poucas as ocasiões em que a Ética Cristã foi e está sendo infectada por uma
Teologia do Domínio.43

REVISITANDO A HISTÓRIA NO PROCESSO DE ESTRUTURAÇÃO DO IMAGINÁRIO


RELIGIOSO E POLÍTICO DOS EVANGÉLICOS NO BRASIL.

Muitos dos comportamentos observados na sociedade estão ligados à


memória. (LE GOFF, 2013, p. 387) Por isso, interpretamos a práxis evangélico-política
atual em duas categorias: 1. Os que têm fundamentos ideológicos e apresentam
maior potencialidade para o domínio e 2. Os “herdeiros comportamentais”, que a
partir de comportamentos herdados e conceitos aprendidos e reproduzidos por
gerações, se tornam mais susceptíveis ao domínio dos que exercem poder ideológico.
Laurentino Gomes, em sua mais recente obra A Escravidão, evidencia em suas
narrativas o envolvimento da Igreja Católica Romana no contexto Portugal e Brasil, na
prática da escravização de homens e mulheres, e no caso do Brasil, em sua maioria,
vindos da Angola e do Congo. “É uma chaga aberta na história humana”. (GOMES,
2029, p. 34, 63) Sob o pretexto de evangelizar as almas pagãs, a Igreja e suas várias
Ordens não somente consentiram, mas também se tornaram proprietárias de muitos
escravos.
Nas vertentes protestantes, destacamos o fato de que nos Estados Unidos os
cristãos-protestantes desenvolveram a teoria de que a escravidão era essencialmente
boa e não má, se tornando uma possibilidade de evangelização (cristianizar almas
pagãs). (MARTINS, 2015, p. 120) “Quem condenasse a escravidão, como pecado,
como faziam os abolicionistas, atacava a própria Bíblia. Os abolicionistas eram tidos
como incrédulos, porque estavam se opondo à Bíblia”. (REILY, 2003, p. 2)
Interpretações textuais equivocadas e literalistas de que toda autoridade
emana de Deus, e por isso não haveria espaço para contestações (Romanos 13.1-4)44,

43
Teologia de Domínio - É caracterizada por um comportamento belicoso e ultraconservador. Surgida nos anos
90 nas igrejas neopentecostais norte-americanas, a Dominion Theology é uma declaração de guerra espiritual
do cristão contra o Diabo. Desigualdade social, injustiça, violência e guerras podem ser explicadas como
maldições hereditárias ou territoriais. Nada está fora da ação demoníaca e seus agentes: futebol, política,
artes, religião, poesia, música, intelectualismo, psicologia. Dessa forma é preciso combater através dos
“soldados cristãos”, e de forma agressiva. O poder político se torna então, uma arma de combate. (DIP, 2018, p
86-93)
44
Todo o homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as
que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se a
ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação. Os que governam incutem
medo quando se pratica o mal, não quando se faz o bem. Queres então não ter medo da autoridade? Pratica o
83

aliadas ao pensamento social de Calvino de que “ um mal governo é um chicote de


Deus para corrigir os vícios do povo [...] Mesmo que injusta, imoral ou antirreligiosa, a
autoridade política deve ser respeitada”, (BIÉLER, 1990, p. 373) serviriam como base
de apoio ao status quo do imperialismo norte-americano fundamentado em teorias
econômicas neo (liberais).
Nos países pobres, as igrejas, especialmente as neopentecostais, têm servido
de porta de entrada para estes sistemas de domínio. A partir da Revolução Cubana
(1959), a política externa dos Estados Unidos procurou através da Aliança para o
Progresso impedir a ameaça “comunista” na América Latina e o Brasil foi o país
prioritário nessa ação. J. F. Kennedy utilizou fartamente esse recurso. Na época, o
Nordeste brasileiro, considerado uma “região explosiva” foi o alvo principal da
Aliança no Brasil. Lincoln Gordon, embaixador americano no Brasil (1961-1966)
objetivava criar então através da Aliança, “Ilhas de Sanidade”, que serviriam de
demonstração daquilo que os Estados Unidos poderiam fazer de bom no Nordeste,
no Brasil e em toda América Latina. A ideologia do “anticomunismo” estava cada vez
mais fortalecida. (PEREIRA, 2005, p.1-8).
Leandro Seawright, em Messianismo protestante: a resposta de Deus no golpe
civil-militar de 1964 afirma sobre o imaginário messiânico protestante:

Os protestantes históricos brasileiros e os pentecostais renovados


desenvolveram paulatinamente um imaginário messiânico-milenarista
sobre a intervenção de Deus na história brasileira por meio das Forças
Armadas. Os ortodoxos anticomunistas reforçaram os seus imaginários com
Deus e o Diabo como opositores lógicos em suas tramas narrativas. Houve
um processo de demonização das esquerdas. [...] Assim, os protestantes
históricos brasileiros, e os pentecostais renovados, impuseram-se como
respostas divinas ao sistema “diabólico comunista” que pôs os brasileiros à
prova. (SEAWRIGHT, 2014, p. 148-149)

Portanto, foi nosso objetivo através dessa breve revisão histórica relacionada
com o protestantismo, levantar a hipótese que muitos dos conservadores e (ultra)
direitistas protestantes, estão mais alicerçados no “ouvi dizer” do que arraigados a
fundantes ideológicos, o que favorece a intervenção e influência de grupos
fundamentalistas e conservadores ideológicos norte-americanos.
Convém lembrar que até o Pacto de Lausanne (Suíça/1974), nas ocasiões em
que a igreja se envolvia com a política, havia sempre uma onda de protestos. “A
igreja não deve se meter com política. [...] Religião e política não se misturam”.
(STOTT, 1989, p. 27) Entretanto, essa prática vai mudar especialmente na região
norte-americana chamada Bible Belt - Cinturão bíblico, onde a fé cristã protestante
faz parte da cultura local. No Brasil isso acontece a partir de 1986, ano em que as
igrejas se organizaram para eleger políticos representantes na Assembleia
Constituinte. (ROCHA, 2011, p. 583)

bem e dela receberás elogios, pois ela é instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, porém, praticares o
mal, teme, porque não é à toa que ela traz a espada: ela é instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem
pratica o mal. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1973, p. 1486).
84

OS MOVIMENTOS FUNDAMENTALISTAS NORTE-AMERICANOS E SUA INFLUÊNCIA


NA POLÍTICA BRASILEIRA

O fundamentalismo representa grande influência na política dos Estados


Unidos e na América Latina através de três grupos principais:
1. The Family: movimento fundamentalista norte americano que se tornou
mais conhecido a partir do livro “The Family: The Secret Fundamentalism at the Heart
of American Power” de Jeff Sharlet, que já indicava a mediação do governo
americano com a ditadura brasileira de 1964-1985.45
Segundo Ariel Finguerut em Uma nação com alma de Igreja:

A direita religiosa é um movimento de conservadores sociais cujo objetivo é


a retomada da moralidade americana que, no século XX, esteve ameaçada
pelo avanço do homossexualismo, feminismo e uso de entorpecentes, além
do currículo evolucionista e do banimento da oração nas escolas públicas.
Seu maior inimigo é o Estado secular, humanista e liberal, que deu espaço
para a atual crise de valores - crescimento da promiscuidade, divórcio,
índices de suicídio, eutanásia e aborto - e da família americana.
(FINGUERUT, 2009, p.142)

Esse discurso também tem sido a base do movimento em toda América Latina
desde o surgimento desse movimento em 1920. Com a eleição de Jimmy Carter
(1977-1980) que frustrou conservadores com suas propostas progressistas, nos anos
oitenta o jogo político americano começou a mudar influenciado pela aliança entre os
neoconservadores e a direita religiosa. “Os cristãos conservadores iniciaram, então,
uma aproximação com o universo judeu americano, dando espaço para discursos
pró-Israel, e consolidando o sionismo cristão moderno”. (MATEO, 2011, p. 2) A partir
da eleição de Ronald Reagan (1981-1989), políticas econômicas neoliberais e
antitrabalhistas começam a ser implantadas. Essa política elege os republicanos
George Bush (1989-1993) e George Walker Bush (2001-2009). Nesse período, os
evangélicos cresceram em número e capacidade de influência e consequentemente
também, as ideias da direita religiosa.
2. Tea Party – TP é um movimento estadunidense criado entre 2009-2010
visando oferecer suporte a qualquer partido, mas preferencialmente o Partido
Republicano, visando o bloqueio de qualquer candidatura moderada. Sua liderança
(simbólica) é exercida por Sarah Palin, aliada a outros membros conhecidos como
Glenn Beck (mídia conservadora) e Donald Trump. O TP tornou-se uma grande
máquina de arrecadação através de grandes empresas.
Segundo Delcourt, a TP pretende ser a “guardiã das tradições fundadoras da
nação e uma resposta ao declínio dos valores e a erosão dos costumes”. (DELCOURT,
2016, p.127) Identificada também como sendo parte da terceira onda fascista sobre a

45
Fonte: https://brasilianismo.blogosfera.uol.com.br/2019/09/13/segundo-autor-brasil-foi-alvo-de-familia-
antidemocratica-tema-da-netflix/?cmpid=copiaecola
85

sociedade, reduziria o seu direito argumentativo. (PATSCHIKI, 2013, p. 1-2)


Considere-se também a sua política contra a imigração. (PATSCHIKI, 2013, p. 6)
Compreendemos que toda essa influência dos movimentos conservadores e
imperialistas estadunidense no Brasil e nos demais países da América Latina acontece
com a bênção dos protestantes fundamentalistas, que não se propõem a repensar as
relações com a sociedade em suas mais diversas expressões.
3. The Send (Brasil) – Ainda caracterizado pela escassez da produção de
pesquisa acadêmica, o movimento ultraconservador dirigido especialmente aos
jovens, necessita de um olhar investigativo. Implantado nos Estados Unidos em 2016
no estádio Los Angeles Memorial Coliseum – Encontro Azusa Now pelo Pr. Lou Eagle
do The Call Ministries/O Chamado) com líderes do Capitol Ministries – grupo
evangélico de extrema direita fundado pelo Pr. Ralph Drollinger com o objetivo de
converter políticos a uma visão evangélica de governança - Teologia de Domínio. (
https://revistaforum.co.br/politica/saiba-)
Segundo Jackson Augusto, crítico do movimento, trata-se de uma grande
tentativa de catequização norte-americana, de forma colonialista. A nova estética
(Church [igreja], cultura pop americana, franquias, paredes pretas, neon, fumaça)
esconde traços de individualismo e meritocracia da direita fundamentalista.
(https://theintercept.com/2020/08/02/thesend) Quanto à igreja, “somos um povo
que está cada vez mais lendo a Bíblia, entendendo que o que Bíblia não é o que
pregam esses partidos de esquerda”. (https://noticias.gospelmais.com.br/intercept-
the-send-rebate-criticas-)
No encontro de Brasília o presidente Bolsonaro fez o seguinte discurso:

É muito bom estar entre amigos. Melhor ainda é quando esses


amigos têm paz no coração. Estou aqui porque acredito no
Brasil. E, nós estamos aqui porque acreditamos em Deus. O
Brasil mudou. Palavras antes proibidas começaram a se tornar
comuns. Deus, família, pátria. Somos um só povo, uma só raça.
Queremos paz, tranquilidade, harmonia. Vocês decidiram.
Vocês mudaram o destino do Brasil. Devo a Deus a minha vida,
por ocasião das Eleições. Devo a vocês a missão de dar um
norte para o destino do nosso Brasil, iniciou. "O estado pode ser
laico, mas Jair Bolsonaro é cristão", completou, em seguida, ao
ser ovacionado pelo público presente. Neste momento,
Bolsonaro ficou emocionado.
(https://www.bol.uol.com.br/noticias.com.br/noticias.com.br/n
oticias/2020/02/08).

Contudo, na concepção de Krigner, “o The Send não nasceu para influenciar


políticos. [...] Nós queremos influenciar políticos, [...] a sociedade como um todo”.
https://noticias.gospelmais.com.br/intercept-the-send-rebate-criticas-)
86

CONCLUSÃO

Rubem Alves, em seu texto De dentro do furacão afirma que “há um ditado
zen que diz: ‘o dedo aponta para a lua. Mas ai daquele que confundir o dedo com a
lua’. Quem se deixa enfeitiçar pelo dedo nunca descobrirá a beleza da lua”. (ALVES,
1985, p. 19)
Claro que se olharmos para os “dedos” do poder político, da igreja, da
sociedade, do que se fez e se faz “em nome de Deus”, dos pastores lobos, da soberba
norte-americana, da manipulação midiática e religiosa que incita o povo a não
pensar, teremos grandes frustrações. Que Evangelho é esse? Quem é esse Deus
Encarnado? Mas se olharmos a “lua” teremos esperança e esperança se faz
educando, transformando as mentes pelo ensino da Palavra e suas afinidades.

REFERÊNCIAS

ALVES, Rubem. O Deus do furacão. In: De dentro do furacão. Richard Shaull os


primórdios da Teologia da Libertação. São Paulo: Sagarana; CEDI; CLAI, 1985.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Lé Editiond du Cerf. Paris, 1973. Tradução do texto em Língua
Portuguesa diretamente dos originais. São Paulo: Edições Paulinas, 1980.
BIÉLER, André B. O pensamento econômico e social de Calvino. São Paulo: Casa
Editora Presbiteriana, 1990.
DELCOURT, Laurent. Um Tea Party tropical: a ascensão de uma “nova direita” no
Brasil. Lutas Sociais. São Paulo, vl. 20. n. 36, p. 126-139, jan./jun.2016. Disponível em:
https://revistas.pucsp.br/ls/article/download/31852/pdf. Acesso: abril/2020.
DIP, Andrea. Em nome de quem? A bancada evangélica e seu projeto de poder. Rio
de Janeiro: Civilização Brasileira, 2018.
FRANCO, Bernardo de Melo. É o momento de a igreja governar. 06/12/2018.
Disponível em: https://blogs.oglobo.globo.com/bernardo-mello-franco/post/e-o-
momento. Acesso em: 15/04/2020.
FINGUERUT, Ariel. Formação, crescimento e apogeu da direita cristã nos Estados
Unidos. In: SILVA, Carlos Eduardo Lins da (Org.). Uma nação com alma de igreja:
religiosidade e políticas públicas nos EUA. São Paulo: Paz e Terra, 2009.
GOMES, Laurentino. Escravidão – Do primeiro leilão de cativos em Portugal até a
morte de Zumbi dos Palmares. Vl. 1. Rio de Janeiro: Globo Livros, 2019.
LE GOFF, Jacques. História &Memória. Trad. Bernardo Leitão, Irene Ferreira e Suzana
Ferreira Borges. 7. ed. rev. Campinas-SP: Ed. UNICAMP, 2013.
PATSCHIKI, Lucas. Tea Party: Integrantes, Ideologia e Metodologia Organizativa de
um Movimento Fascista na Contemporaneidade. Cadernos do Tempo Presente, Ed.
n.11, 10/03/2013. Disponível em: https://seer.ufs.br/index
.php/tempo/article/view/2762 Acesso: abril/2020.
MATEO, Luiza Rodrigues. A direita cristã e a política externa norte-americana
durante a administração W. Bush. Abril/2011. Disponível em:
www.proceedings.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttex&pid. Acesso: abril/2020
87

MARTINS, Jaziel Guerreiro. Biografia do Diabo brasileiro – Estudo e análise das


práticas e crenças da demonologia. Curitiba-PR: A.D. Santos Editora, 2015.
NASCIMENTO, Analzira. Evangelização ou Colonização: o risco de fazer missão sem se
importar com o outro. Viçosa-MG: Ultimato, 2015.
PEREIRA, Henrique Alonso de A.R. Criar Ilhas de Sanidade: Os Estados Unidos e a
Aliança para o Progresso no Brasil. 2005, p.1-8. Disponível em:
www.sapoentia.pucsp.br//tde_busca/aequivo-php?codArquivo=793 Acesso:
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REILY, Duncan. A história documental do protestantismo no Brasil. 3.ed. São Paulo:
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ROCHA, Daniel. “Ganhando o Brasil pra Jesus”: alguns apontamentos sobre a
influência do movimento fundamentalista norte-americano sobre as práticas políticas
do pentecostalismo. Belo Horizonte.v.9. n. 22 p.583-604, jul./set.2011. Disponível
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Acesso: abril/2020.
SEAWRIGHT, Leandro. Messianismo protestante: A resposta de Deus no golpe civil-
militar de 1964. 2014. Disponível em: www.
ufcg.edu.br/historia/mnemosinerevista/Revistas/vol.5. Acesso: abril/2020.
STOTT, John R.W. O cristão em uma sociedade não cristã. Trad. Sileda S. Steuernagel.
Niterói-RJ: VINDE, 1989.
88

TRADIÇÃO RELIGIOSA ANTE O PRECEITO DA DIGNIDADE


HUMANA: A QUESTÃO DA LIBERDADE RELIGIOSA

RAUL IÉ
Mestrando em Teologia
Faculdade Batista do Paraná
[email protected]

RESUMO: Princípio constitucional e um dos sustentáculos dos direitos fundamentais


dos cidadãos, a dignidade da pessoa humana é a base para as atividades do Estado
bem como do funcionamento da sociedade. Desta forma, ela faz parte do projeto
cuja finalidade é a defesa do indivíduo perante as autoridades e, outrossim, do
princípio de ações positivas para o livre desenvolvimento do homem. É verdade que
ideia de dignidade humana já estava presente nas sociedades tradicionais, mas foi se
evoluindo a partir delas até resultar no conceito da dignidade universal dos seres
humanos que temos hoje. Dentre os princípios que esse conceito como fundamento
ou pressuposto, encontra-se a liberdade religiosa que somente pode estar sujeita às
restrições previstas na lei e de modo absolutamente preciso por causa da segurança e
da ordem pública. À luz dessa compreensão da dignidade humana, o objetivo da
presente pesquisa é analisar, por meio da escala de Likert, a tradição religiosa e sua
relação com a liberdade religiosa. Trata-se de uma pesquisa quantitativa, na qual se
examina o grau de aceitação da liberdade religiosa diante das tradições religiosas das
igrejas evangélicas de uma cidade situada na região Sul do Brasil. A pesquisa
demonstra que os líderes religiosos com mais tempo de ministério, assim como os
líderes com poucos anos e em posse de formação secular ou que trabalham em
outras instituições além da igreja são mais predispostos a aceitar a liberdade religiosa
do que os líderes com poucos anos de ministério e que estão envolvidos somente
com a igreja. Portanto, é necessário que se ensine entre esses líderes a respeito da lei
da liberdade religiosa, mostrando-a como protetora e não limitadora da religião. Isso
pode evitar a resistência cujo fundamento é a suposição de que as leis afrontam a
religião e destroem a tradição religiosa.

Palavras-chave: Dignidade humana; Liberdade religiosa; Tradição religiosa; Líderes.

INTRODUÇÃO

A dignidade humana, como princípio e valor, rege as forças e os agentes da


política social em todo o globo, determina as condições para a unidade e a paz nos
âmbitos cultural, ético e espiritual das comunidades. Nestes aspectos, ela
fundamenta limites constitucionais ao poder na medida em que dá sustento à
democracia, liberdade e direitos humanos (LANDA, 2002). Atualmente, esse conceito
89

consiste na valorização do indivíduo pela sua humanidade, independentemente do


seu status socioeconômico, origem ou família, como era antigamente (ILLIE, 2004).
Da dignidade humana, inerente a cada indivíduo, emanam os princípios morais que
regem os membros duma comunidade, a ordem social, a liberdade e igualdade das
pessoas (HABERMAS, 2010).
Assim, à luz da dignidade humana, e porque o ser humano é livre para seguir
sua consciência escolhendo sua fé, sem coação, indaga-se: que relação a crença e a
tradição religiosa têm e como se harmonizam com a liberdade religiosa? Em torno
disso, este artigo busca analisar, com a escala de Likert, essa relação em
conformidade com a dignidade humana, que a base de todos direitos humanos, entre
os quais, a liberdade religiosa. Desse modo, o principal escopo desta investigação é
tecer uma análise da forma como a tradição religiosa e seus agentes se relacionam
com ou/e reagem aos preceitos da liberdade religiosa.

A DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E A LIBERDADE RELIGIOSA

Na Idade Média, quando os círculos intelectuais debatiam a relação entre Deus


e o homem, o conceito da dignidade humana foi usado como diferencial entre o
homem e os animais, como Cícero já fazia. A filosofia moral, que coloca os humanos
como os principais numa escala de importância, no centro do mundo, busca conciliar
o pensamento clássico e a teologia dogmática. Ela sublinha, portanto, o conceito da
dignidade como puramente intrínseca à humanidade, pois o homem foi feito à
imagem e semelhança de Deus, razão pela qual é diferente das outras espécies. A
dignidade da pessoa humana caracteriza o status da natureza e da existência do
homem (MCCRUDDEN, 2008). Em outras palavras, a dignidade concerne tão-só à
humanidade, visto ser ela a única em posse de moralidade, sujeita a agir por puro
dever. Segundo Kant, a moralidade é uma lei e a habilidade de se construir como ser
moral e de aceitar as pessoas como capazes de moralidade é o fundamento essencial
da dignidade humana. Sem a moralidade, não há dignidade (KANT, 1995).
Se ao homem é inerente esse valor ou qualidade, a humanidade passa a ser
incompatível com a violação da liberdade de vida, de pensamento, de crença de uma
pessoa. Assim também, torna-se inconcebível a tolerância com as explorações do
homem por outros, como vê-se com o escravagismo e outros males semelhantes,
bem como com a dominação do Estado e da sociedade sobre o indivíduo de maneira
a tolher e suspender sua liberdade de escolha, de crer, segundo sua própria vontade,
sem coações de nenhuma natureza. Se a dignidade humana é defensável
moralmente, ela será sempre incompatível, por exemplo, com a falta de liberdade de
crença religiosa. Dada a sua importância na constituição e funcionamento de toda
sociedade e cultura, pois eles influenciam a consciência de comunidades que
comungam o mesmo Estado e destino, não se pode ignorar o fenômeno religioso. E
como observa Miranda (2013), ele “tem influído constantemente não só na história
cultural, mas também na história política. Nenhuma Constituição deixa de o
considerar e repercute-se ainda no Direito internacional” (p.2). Como a religião é
plural, entende-se que o princípio da liberdade religiosa faz jus tanto ao fenômeno
90

propriamente quanto ao princípio da dignidade humana, que é idealmente a base de


tudo.
A liberdade religiosa já se encontrava no direito mais antigo e consiste no
direito de uma pessoa crer a partir de sua vontade, sem a intervenção do Estado.
Como houve muitas guerras e massacres para fortalecer certas religiões e
evidentemente o desaparecimento das outras, não é surpresa, na era moderna, a
Declaração Universal dos Direitos Humanos 1948, instituir a liberdade de religião
como uns dos direitos principais. De fato, após a Segunda Guerra Mundial, o projeto
da referida declaração, era fazer com que cada pessoa, por livre inciativa e
consciência, tenha sua crença sozinha ou em comum, tanto em público quanto no
privado, através da educação, práticas, adoração e ritos (BALDWIN, 2014, p.45).
No começo, o constitucionalismo brasileiro não observou a liberdade religiosa.
A primeira Magna Carta que vigorou a partir de 1824 tinha a religião Católica Romana
como a oficial do Estado. Entretanto, laicizado o Estado com a Constituição de 1889,
isto é, no momento da proclamação da República, levando consequentemente à
separação entre o Estado e a religião, a liberdade religiosa foi instituída e conservada
ao longo da história brasileira até a ditosa e actual Constituição da República
Federativa do Brasil, promulgada em 1988 (MORAIS, 2011). E ela, assegura que “é
inviolável a liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício
dos cultos religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias” (ARTIGO 5, INCISO VI, CF.1988).

METODOLOGIA

O corpus desta pesquisa foi composto por 173 pastores e líderes de 19


denominações das igrejas evangélica de uma cidade da região Sul do Brasil. O
trabalho é quantitativo, descritivo e a coleta de informações, deu-se através de um
questionário que considerou aspectos como posição na igreja, formação em teologia,
quantidade de formação, idade, experiências no ministério e a denominação. Foi
aplicado um questionário com sete perguntas, primeiramente, na reunião desses
pastores e líderes de ministérios e, em seguida, ele foi levado às igrejas locais. As
perguntas são as seguintes: 1. Os incisos equilibram a dignidade humana com a
crença e tradição religiosa? 2. Os filhos em menoridade são obrigados a seguir as
crenças dos pais? 3. Os filhos em maioridade não são obrigados a seguir as crenças
dos pais? 4. Dentro de sua casa, cada membro de sua família pode adotar novas
crenças? 5. Os pais devem apoiar os filhos que adotarem novas crenças/religiões? 6.
A pessoa que tirou direitos dos filhos porque não seguem sua crença merece a pena?
7. É inviolável a liberdade de consciência e de crença de todo mundo? O questionário
foi aplicado segundo a escala de Likert, na qual, como explica Gil (2014), deve-se
pedir determinado número de pessoas que declarem sua concordância ou
discordância com cada uma das questões, e especificando níveis de concordância:
Discordo Totalmente (1); Discordo Parcialmente (2); Neutro (3); Concordo
Parcialmente (4); e Concordo Totalmente (5).
91

ANÁLISE DOS RESULTADOS

Nesta secção será apresentada a descrição e análise dos dados desta pesquisa,
feita com base na escala de Likert, onde solicitou a especificação do nível de
concordância dos respondentes da pesquisa.
Na aplicação do questionário, primeiramente, pretendeu-se saber se os incisos
III do art. 1, VI e VIII do art. 5, todos eles da Constituição Federal, equilibram a
dignidade humana com a crença e tradição religiosa. Quanto a isso, a maior parte dos
participantes (60,69%) concorda totalmente que os dispositivos da Constituição
Federal supracitados equilibram a dignidade humana com a crença e a tradição
religiosa. Como ilustração, veja-se a tabela 1, em seguida:

Tabela 1: os incisos equilibram a dignidade


humana com a crença e tradição religiosa
Respostas Participantes Porcentagem
Discordo
13 7,51%
Totalmente
Discordo
35 20,23%
Parcialmente
Neutro 6 3,47%
Concordo
14 8,09%
Parcialmente
Concordo
105 60,69%
Totalmente
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa

Quanto ao grau de concordância relativamente à pergunta sobre a


obrigatoriedade de filhos menores de idade seguirem as crenças dos pais, nota-se
que mais de 55% dos participantes concordam totalmente. Por outro lado, tem-se
que 20,23% discorda parcialmente; e quanto às outras opções – i.e., neutro,
concordo parcialmente e discordo totalmente –, elas representam menos de 10%
cada. Ver tabela 2, em seguida:

Tabela 2: os filhos da menoridade são obrigados


a seguir as crenças dos pais
Respostas Participantes Porcentagem
Discordo
13 7,51%
Totalmente
Discordo
35 20,23%
Parcialmente
Neutro 12 6,94%
Concordo 17 9,83%
92

Parcialmente
Concordo
96 55,49%
Totalmente
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa

Quiçá explique essa concordância total com a obrigatoriedade de filhos em


menoridade seguirem a religião dos seus pais o fato de ser da responsabilidade deles
as ações daqueles. Contudo, como resposta à obrigatoriedade de filhos em
maioridade crerem como os pais não é a maioria que concorda totalmente com a
pergunta, mas totalizam 43,93%, enquanto quase um quarto discorda parcialmente
(ver abaixo a tabela 3). Diante disso, pode-se concluir que os participantes da
pesquisa não estão interessados em respeitar a liberdade religiosa dos seus filhos.

Tabela 3: os filhos da maioridade não são


obrigados a seguir as crenças dos pais
Respostas Participantes Porcentagem
Discordo
7 4,05%
Totalmente
Discordo
41 23,70%
Parcialmente
Neutro 25 14,45%
Concordo
24 13,87%
Parcialmente
Concordo
76 43,93%
Totalmente
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa

Quanto a pergunta é sobre se eles permitiriam que membros de suas famílias


adotassem crenças diferentes das deles, as respostas divergem: a discordância total
consiste em 6,94% e a concordância total, em 24,86%. Percebe-se que esses líderes
evangélicos não estão muito interessados em respeitar a liberdade religiosa dos seus
filhos. Mas, vale ressaltar, os respondentes com mais formação e mais experiência
nos ministérios são mais flexíveis nessa questão. Como ilustração, ver a tabela 4.

Tabela 4: dentro de sua casa cada membro de sua


família pode adotar novas crenças
Respostas Participantes Porcentagem
Discordo
12 6,94%
Totalmente
Discordo
33 19,08%
Parcialmente
93

Neutro 37 21,39%
Concordo
48 27,75%
Parcialmente
Concordo
43 24,86%
Totalmente
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa

Perguntados se os pais devem apoiar os filhos que adotam novas


crenças/religiões, houve também uma divergência, com em 27,75% no concordo
totalmente e 25,43% no concordo parcialmente (ver tabela 5). Nisto, pode-se afirmar
que embora seja difícil para alguns líderes permitir que os filhos sigam crenças
diferentes da deles, eles apoiá-los-iam, se aqueles assim fizessem.

Tabela 5: os pais devem apoiar os filhos que


adotaram as novas crenças/religiões
Respostas Participantes Porcentagem
Discordo
Totalmente 13 7,51%
Discordo
Parcialmente 26 15,03%
Neutro 42 24,28%
Concordo
Parcialmente 44 25,43%
Concordo
Totalmente 48 27,75%
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa

A inviolabilidade da liberdade religiosa não obtém unanimidade. Os


respondentes discordam sobre penalização da pessoa que violar direitos dos filhos
porque estes não seguirem a sua crença. Aqueles com mais formação, mais anos de
experiência no ministério e trabalho secular, concordam mais com a aplicação da
pena ao violador dessa lei, enquanto os restantes discordam mais (ver tabela 6).

Tabela 6: a pessoa que tirou direitos dos filhos


porque não segue sua crença merece a pena
Respostas Participantes Porcentagem
Discordo
13 7,51%
Totalmente
Discordo
23 13,29%
Parcialmente
Neutro 42 24,28%
94

Concordo
46 26,59%
Parcialmente
Concordo
49 28,32%
Totalmente
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa

Apesar de concordar que é inviolável a liberdade de consciência e de crença de


todo mundo na tabela 7 com uma percentagem de 61,85 dos participantes, os
respondentes não aceitam na tabela 6 que a pessoa que violar esse direito sofra
pena. Isto parece contraditório. Porque para fazer com que uma lei funcione e seja
respeitada, deve-se ter punição para quem a desobedeça

Tabela 7: é inviolável a liberdade de consciência e


de crença de todo mundo
Respostas Participantes Porcentagem
Discordo
1,16%
Totalmente 2
Discordo
5,20%
Parcialmente 9
Neutro 21 12,14%
Concordo
19,65%
Parcialmente 34
Concordo
61,85%
Totalmente 107
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa

CONCLUSÃO

Este trabalho objetivou analisar a relação da crença e da tradição religiosa à luz


dos preceitos que amparam a dignidade humana e como se sintoniza com a liberdade
religiosa. Os resultados demonstram que a liderança religiosa compreende que os
preceitos constitucionais equilibram a tradição religiosa com a dignidade humana.
Outrossim, concordam que não se deve violar a liberdade de consciência, assim como
a liberdade de crença de qualquer pessoa, visto ser contra a lei tal comportamento.
Inobstante isso, ainda estão muito apegados às suas tradições religiosas, o que
dificulta a convivência com o princípio da liberdade religiosa: têm dificuldades em
permitir que cada membro da família adote as práticas religiosas segundo sua
consciência e vontade. Essa posição dos entrevistados manifesta na pesquisa pode
ser a mesma em todo Brasil, EUA, Europa e África, e talvez se explique pelo desejo de
conservar certa imagem de líder perante as pessoas que lideram e para quem prega,
ao que a divergência de crença nas suas famílias não é adjutório.
95

Entretanto, se a dignidade humana fundamenta a ordem da sociedade, se é o


ponto de equilíbrio dos seus vários segmentos, a base da ética de respeito a todos os
seres humanos, visto que cada um foi criado com certos direitos inatos e se ainda é o
respeito a esses direitos que faz dos cidadãos indivíduos duma comunidade de
pessoas livres e iguais (HABERMAS, 2010, p.10), então essa postura dos líderes
religiosos é questionável e torna um peso para sociedade, pois viola a liberdade e a
dignidade humana das pessoas. Se a liberdade religiosa não vai ser exercida dentro
de casa, então ela precisa ser repensada, porque assassinatos brutais por causa de
crença diferente/divergente da família, acontecem entre os membros da própria
família.
Portanto, é preciso engajamento de cada Estado no ensino sobre a liberdade
religiosa, na tentativa de familiarizar os cidadãos com as suas leis, que são protetoras
e não limitadoras da religião, isso evitaria a suposição de que as leis afrontam a
religião; bem como dos seus benefícios na medida em que contribui para evitar
conflitos religiosos dentro da mesma comunidade ou até dentro a mesma casa.

REFERENCIAS

BALDWIN, Clive. Aux frontières de la liberté de religion. Revue Projet, n. 5, p. 45-52,


2014.
CAROZZA, Paolo G. Human dignity and judicial interpretation of human rights: A
reply. European Journal of International Law, 2008, 19.5: 931-944.
DO BRASIL, Constituição Federal. Constituição da República Federativa do Brasil de
1988.
GIL, Antônio Carlos. Métodos e técnicas de pesquisa social. 6. ed. São Paulo: Atlas
SA, 2014.
HABERMAS, Jürgen. El concepto de dignidad humana y la utopía realista de los
derechos humanos. Diánoia, 2010, 55.64: 3-25.
ILLIE, Antonio Pelé. Una aproximación al concepto de dignidad humana. Universitas:
Revista de filosofía, derecho y política, 2004, 1: 9-13.
KANT, Immanuel. Fundamentação da metafísica dos costumes. Paulo Quintela
[trad.] Lisboa: edições 70. 2007.
LANDA, César. Dignidad de la persona humana. Cuestiones constitucionales, 2002, 7:
109-138.
MCCRUDDEN, Christopher. Human dignity and judicial interpretation of human
rights. european Journal of international Law, v. 19, n. 4, p. 655-724, 2008.
MIRANDA, Jorge. Estado liberdade religiosa e laicidade. Gaudium Sciendi, n. 4, p. 20-
48, 2013.
MORAIS, Márcio Eduardo Pedrosa. Religião e direitos fundamentais: o princípio da
liberdade religiosa no estado constitucional democrático brasileiro. Revista Brasileira
de Direito Constitucional, v. 18, n. 1, p. 225-242, 2011.
96

ESTADO TEOCRÁTICO: RESPEITO A LIBERDADE RELIGIOSA


EM PERIGO

SANDRA APARECIDA GURGEL VERGNE


Mestre em Ciência da Religião
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
[email protected]

RESUMO: Pretendo neste artigo analisar, através de notícias impressas e de textos


que repercutem nas redes sociais, como o Brasil tem incorporado características de
um estado teocrático, mesmo com tendo em sua legislação federal o princípio
assegurado na a liberdade religiosa assegurada na Declaração Universal dos Direitos
Humanos de 1948. A incorporação no discurso de religião cristã, se apresenta como
salvo conduto socialmente aceito, que permite que os negros, pobres possam circular
no chão minado de uma violência estatal e paraestatal, de características teocráticas,
no Estado do Rio de Janeiro, em especial nos territórios de favelas e regiões de
periferia. A dinâmica social se dá em função do abandono das discussões dos direitos
humanos e o racismo estrutural, que nos impõe sua lâmina cortante, que atua no
cotidiano da região metropolitana. O consentimento da morte e a eliminação de
corpos negros, por agentes do estado, grupos paramilitares, ou ainda por marginais
“convertidos” se tornam os mediadores da ordem pública. As religiões
neopentecostais, que dialogam com este projeto, invadem terreiros, impedem o
culto aos orixás e até provocam a expulsão de suas casas. Fato, que em 2019 o disque
100 Disque (Direitos Humanos) registrou um aumento significativo de denúncia de
intolerância religiosa. O cenário de pandemia se torna uma lente de aumento, que
amplia a visão de como se perpetua a desumanização, mediada por um suposto
sagrado que decidiria por uma naturalização da morte. As cenas que apresento
podem ajudar na compreensão porque os discursos necrófilos e reprodutor do
epistemicídio da cultura religiosa de matrizes africana se naturaliza, em um em
território que por dados oficiais apresenta hegemonia do catolicismo e do
evangelismo neopentecostal, ferindo o princípio de liberdade religiosa. No entanto o
processo de resistência se dá no combate a opressão, e do racismo religioso que fere
o estado laico e a própria constituição. Para fazer este percurso utilizo como
arcabouço teórico Conceição Evaristo, Aimé Cesaire, Hampâté Bâ, Bosi, Gilroy,
Mariano dentre outras (os) autoras (es) pós-coloniais. Bem como o referencial teórico
da Ciência da Religião, que ajudam a desvelar o discurso, a produção de
silenciamentos, e o atravessamento entre os valores e identidades raciais e religiosas
que colocam o respeito a liberdade religiosa em perigo.

Palavras-chave: Liberdade religiosa; Racismo; Teocracia; Ciência da Religião.


97

Pretendo neste texto apresentar o cenário desafiador a qual vive o Brasil, e em


particular o Estado do Rio de Janeiro, que se apresenta com características de um
estado teocrática. Que podemos perceber em alguns discursos extremistas e
polarizados, amplamente divulgados em notícias impressas e em textos nas redes
sociais. Que por vezes refletem o comportamento ambíguo contraditório, defendido
pela sua própria doutrina.
Aquecendo o mercado religioso em disputa, em sua maioria ligadas a grupos
neopentecostais, há uma ampliação de adoção de modelo de organização
empresarias, pouco compatível com seus modelo eclesial, onde a fé se torna um
instrumento para alcançar a tomada de poder através da política e de arrebanhar
pessoas através da negação da ciência e da manipulação da magia.

A despeito do fato de que as pressões do mercado religioso vêm exercendo


crescente influência nos rumos do pentecostalismo, observa-se que
diversas igrejas desse movimento religioso muito diversificado
internamente nos planos institucional, organizacional e teológico, na
composição social de seus membros e na sua relação com a cultura e a
sociedade abrangente – se baseiam em princípios, tradições, doutrinas e
práticas dissociados, em boa medida, dos imperativos do mercado religioso.
(Mariano, página 05 Civitas, Porto Alegre, v. 3, nº 1, jun. 2003)

No plano organizacional e administrativo, o apóstolo Estevam Hernandes Filho.


Ex-gerente de marketing da Xerox do Brasil e da Itautec admite fala do projeto
empresarial, acentuando que a igreja deve ser “encarada como uma empresa no
mercado. Além de advogar a legitimidade da igreja “como fator gerador de auto-
sustento” de pastores, evangelistas e membros, Hernandes defende que “não é
vergonha obter lucro” para sustento próprio e para a “expansão do reino”. Inclusive
Jean-Pierre Bastian (1994, p. 126), falava da forma como esses “chefes”,”
proprietários”, dos movimentos religiosos criados por eles e passados de pai para
filho.

Não é à toa que Edir Macedo – que é a um só tempo um dos maiores


expoentes do televangelismo e dessa teologia no Brasil – considera que “o
dinheiro é uma ferramenta sagrada usada na obra de Deus” e, numa
inusitada analogia biológica, o “sangue da Igreja” (Macedo, 2000, p. 52;
1986, p. 97).

Ao fazer esse painel , não quero me deter longamente aos aspectos


conceituais de religião e mercado religioso, mas para levar ao leitor a perceber como
o Brasil que ao naturalizar o discurso de religião cristã, que se apresenta como salvo
conduto socialmente aceito, que permite que os negros, pobres possam circular no
chão minado de uma violência estatal e paraestatal, de características teocráticas, no
Estado do Rio de Janeiro, em especial nos territórios de favelas e regiões de periferia.
Nas regiões de periferia e favelas as famílias vivem a expectativa por não saber
se algum membro irá voltar. Enquanto isso há diversos discursos socialmente
construídos que justificativas as mortes de pobres e negros. O desejo de morte e
98

eliminação é abertamente falado por muitos através das redes sociais e, como diz
Hanna Arendt, é o homem achando que é detentor da vida e da morte do outro.
A dinâmica social se dá em função do abandono das discussões dos direitos
humanos, que na legislação federal de 1948, asseguram o princípio a liberdade
religiosa. Mas, este princípio parece estrar sendo destruído, pela imposição de uma
simbólica lâmina cortante, aliados ao projeto de demonização das religiões de
matrizes africanas. HAMPÂTÉ BÂ (2010) fala da negação da natureza, o respeito ao
equilíbrio das forças visíveis. Ao invadirem terreiros, impedirem o culto aos orixás e
até provocam a expulsão dos babalorixás e das babalorixás de suas casas. Acresce-se
a isso a situação de evangélicos aliados ao poder paralelo local e de traficantes que
“são de Jesus”. Provocam um desequilíbrio dessas forças vitais.

Em todas as comunidades dominadas por essa facção, os traficantes


impedem, quebram, ameaçam e expulsam frequentadores e donos de
terreiros de religiões afrodescendentes", diz o delegado. "Se
autoproclamam 'Bonde de Jesus'.( https://www.agazeta.com.br/brasil/
policia-prende-traficantes -evangelicos-que-atacavam-terreiros-no-rio-
0819)

Fato é que em 2019 o disque 100 Disque (Direitos Humanos) registrou um


aumento significativo de denúncia de intolerância religiosa, como veremos neste
gráfico.

Os dados do disque denúncia em 2019, aqui apresentados dizem que 60% das
denúncias de violências religiosa, são de matrizes africana sendo que o Rio de Janeiro
se coloca em primeiro ligar com 116, seguido de São Paulo com 96 casos o que
confirma a presença do racismo religioso, estruturado no Estado do Rio de Janeiro.
Vale ressaltar que motivados por suas lideranças um grande percentual de
evangélicos defendem que os adeptos as religiões de matrizes africanas cultual o
99

Demônio ou falsos deuses. Inclusive Edir Macedo, da URD reeditou o livro publicado
em 1990, Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônio.

Na denúncia feita registrou que os adeptos foram ameaçados e proibidos de


frequentarem o terreiro, pois o local segundo a reportagem do jornal o lugar virou
“quartel general” do tráfico na Baixada e a pesquisa feita entre os moradores , trago
aqui uma narrativa para que o leitor possa estar situado no território a qual estamos
caminhando.

As mães desses bandidos, desgraçados, sementes de demônios são todas


evangélicas. São ex-frequentadoras de terreiros, mas agora são todas
"abençoadas em nome de JESUS"

A tentativa de controle de corpos negros em processo de desumanização


presentes no campo subjetivo do valor dado a fazeres do dia a dia, onde o tronar-se
negro vai sendo moldado pelo negativo e pejorativo, ou melhor, pelas marcas de
silêncio falante na vida cotidiana, onde, a esperança e a religiosidade, se misturam
aos impasses e contradições que se dão na experiência pratica do ensino em um
território que tem sido de intensas transformações no campo da religiosidade
institucionalizada Mbembe (2015) nos ajuda a compreender quando fala:

Lidar com a morte é, portanto, reduzir o outro e a si mesmo ao status de


pedaços de carne inertes, dispersos e reunidos com dificuldade antes do
enterro. Nesse caso, trata-se de uma guerra corpo a corpo. Matar requer a
aproximação extrema com o corpo do inimigo. Para detonar a bomba, é
preciso resolver a questão da distância, por meio do trabalho de
proximidade e ocultação. (MBEMBE, 2016, p. 143)

E ao sermos atravessado pela pandemia que varreu o mundo, levou vidas pela
contaminação do COVID-19 e cerca de 55% dessas vidas eram de pessoas nega. A
lente de aumento imposta pela pandemia, amplia a visão de como se perpetua a
desumanização, mediada por um suposto sagrado que decidiria por uma
100

naturalização da morte e os discursos necrófilos. Nos primeiros meses de 2020 foi


registrado o maior números de mortes por ação policial em 22 anos, cerca de 78%
dessas mortes vitimaram as pessoas negras. Segundo o jornal
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2020/06/22/rj.
Estes vem sendo um canal reprodutor do epistemicídio da cultura religiosa de
matrizes africana se perpetua, em um em território de maioria negra, na região de
periferia e que por dados oficiais apresenta hegemonia do catolicismo e do
evangelismo neopentecostal, Movimentos que ganha força no século XX, que tem
como princípio a descida do Espírito Santo no dia de pentecoste.
Embora este movimento, venha formando liderança negra, reforçam os
estigmas contrários as religiões de matrizes africana como já falamos anteriormente.
O neopetencostalismo ainda vai mais longe, quando pregar em sua doutrina que os
negros seriam descendentes de Caim, que carrega em seus corpos a marca da
servidão ideia referenciada por Marcos Feliciano em seus tuites. E para ser redimido
desse mal, precisa ser ou estar convertido. É o perigo da alienação cultural, se faz ali
presente e a inculcação do medo e o servilismo (AIMÉ CESAIRE, 2010). Que vem
provocando o silenciamento dos tambores.

CONCLUSÃO

Este texto quero pensar como lidar com o pertencimento, até mesmo
resgatando a possibilidade de um cristianismo possível, e talvez mais originários, de
um Cristo mandingueiro, pobre, sem vestimentas de luxo (ou ternos) e não religioso.
O cristianismo não era uma religião em suas origens, e o cristianismo Romano acaba
por se distanciar do Cristo africano.
Todo território cercado está exposto a ocupações, a disputas, como todo
território sacralizado está exposto a profanações. As lutas históricas no campo do
conhecimento foram e continuam sendo lutas por dessacralizar verdades, dogmas,
rituais, catedráticos e cátedras. A dúvida fez avançar as ciências e converteu o
conhecimento em um território de disputas. (ARROYO, 2011, p. 17)
Pois o processo de resistência se dá no combate a opressão, e do racismo
religioso que fere o estado laico e a própria constituição. Ajudam a desvelar o
discurso, a produção de silenciamentos, e o atravessamento entre os valores e
identidades raciais e religiosas que colocam o respeito a liberdade religiosa em
perigo.

REFERÊNCIAS

EVARISTO, Conceição. Histórias de leves enganos e parecenças. Rio de Janeiro: Malê,


2016.
FREIRE, Paulo, A importância do ato de ler: em três artigos que se completam.
Coleção polêmicas do nosso tempo 4. São Paulo: Autores Associados: Cortez, 1989.
101

HAMPÂTÉ BÂ, Amadou, Amkoullel, O menino fula. São Paulo: Palas Athena: Casa das
Áfricas, 2003.
VERGNE, Sandra Aparecida Gurgel. Teceres, fazeres e narrativas no ensino religioso:
a cosmovisão africana como possibilidade de aplicação da Lei 10639/2003.
Dissertação de mestrado em Ciência da Religião, PUC-SP. São Paulo. 2016. Disponível
em https://tede2.pucsp.br/handle/handle/18919. Acesso em 01 de dezembro de
2017.
102
103

A PRODUÇÃO DO BEM COMUM: O "BEM" COMO


CONCEPÇÃO TEOLÓGICA EM UMA SOCIEDADE PLURAL

TIAGO DE MELO NOVAIS


Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

RESUMO: Refletir sobre o bem comum dentro de um contexto plural de um Estado


laico é um dos grandes desafios para muitas áreas do conhecimento, pois tem de
lidar com questões de fundamentação, como a noção moral sobre o bem. Contudo, a
produção do bem comum se apresenta como necessidade social, pois apesar das
concepções morais divergentes, a realização de ações concretas de maneira plural se
torna inevitáveis, indo desde iniciativas de assistência em direção ao vulnerável até
políticas públicas empreendidas por parlamentares no exercício institucional. Assim,
a problemática que propomos na presente comunicação é a de atentar, na dimensão
teórica, para a questão da categoria moral sobre o bem, presente em bem comum, a
qual deságua em visões concorrentes quanto ao seu significado – inclusive e,
sobretudo, num sentido religioso, remetendo ao que é último, como o Ser divino,
seus atributos e uma teleologia religiosa. Dessa maneira, nossa questão norteadora
pode ser entendida como se segue: como podemos compreender a relação da
produção do bem comum com as divergentes concepções de bem presentes na
sociedade? Seria a solução um tipo de agnosticismo penúltimo por parte das
religiões? Com os termos último e penúltimo, remetemos a uma definição utilizada
principalmente nas discussões da teologia prática (embora não exclusivamente) para
distinguir temas que pertencem ao âmbito da religião e política, respectivamente.
Assim, nosso objetivo é oferecer uma perspectiva teológica que problematize a
distinção último-penúltimo, ao mesmo tempo que tenha como alvo a produção plural
do bem comum a partir das vozes e peso das crenças religiosas. Em outras palavras,
embora sem possibilidade de esgotar a presente discussão, desejamos oferecer uma
visão religiosa (e teológica) das concepções de bem e bem comum num contexto de
pluralidade. Com as lentes da teologia prática, a presente comunicação fará uso de
método bibliográfico e objetivo exploratório. Para isso, incluiremos criticamente
como referência teórica a tradição neocalvinista, com autores relativamente não
conhecidos no Brasil, como Abraham Kuyper, James K. A. Smith e David Koyzis, em
seus textos dedicados ao recorte referido.

Palavras chave: Pluralidade; Bem comum; Estado Laico; Teologia prática;


Neocalvinismo.
104

INTRODUÇÃO

A fim de discutir o bem comum em contextos de pluralismo social, se faz


necessário refletir sobre as diferentes visões acerca do significado de bem carregadas
por grupos sociais diversos, sobretudo nas religiões. O que faremos nessa
comunicação é colocar o bem comum em análise, verificando como sua produção
pode ter pressupostos teológicos. A partir de uma perspectiva da teologia prática 46,
utilizaremos do método exploratório com fontes bibliográficas, traçando a discussão
através das seguintes questões norteadoras: como podemos compreender a relação
da produção do bem comum com as divergentes concepções de bem presentes na
sociedade? O bem no sentido teológico continua sendo bem comum?
Além disso, iremos recorrer a uma tradição teológica chamada Neocalvinismo
como referencial teórico. Por sua vez, o Neocalvinismo foi iniciado na Holanda por
Abraham Kuyper47 (1837-1920) e seus esforços podem ser resumidos na busca pela
compreensão das implicações da fé cristã na vida como um todo (BRATT, 2013). Além
disso, o Neocalvinismo nos será útil na discussão do pluralismo social, pois desde seu
início Kuyper a defendia em forma de combate ao efeito uniformizante do
modernismo48. No entanto, esta tradição ainda se encontra em construção através de
outros autores contemporâneos, que serão os principais atores deste trabalho.
O caminho desta comunicação será feito em dois passos. Primeiro, verificar o
pressuposto para o bem comum dentro de uma sociedade pluralista, como é o caso
do Brasil. Segundo, problematizar o bem (dentro bem comum) como uma categoria
moral e teológica, com o objetivo de oferecer uma relação da produção do bem
comum mesmo com perspectivas morais e teológicas diferentes acerca do que
constitui o bem.

SOCIEDADE PLURALISTA E A CONDIÇÃO PARA O BEM COMUM

Para explorar a questão do bem comum, iremos primeiro nos atentar para sua
singularidade dentro de um contexto socialmente pluralista e então evocá-lo pelas
vias teológicas da teologia prática na tradição do Neocalvinismo.
Com fins de definição, o pluralismo social que estamos nos referindo aqui é o
mesmo dito pelo o anglicano Robinson Cavalcanti quando afirma que "o pluralismo é

46
Subárea da área 44 da CAPES, "Ciências da Religião e Teologia". De acordo com o documento de área, a
"Teologia Prática" é responsável pelo diálogo entre fé e política, bem como teologia e sociedade. Documento
disponível
em:<http://www1.capes.gov.br/images/Documento_de_%C3%A1rea_2019/ciencia_religiao_teologia.pdf>,
acesso 18 de outubro, 2020.
47
Abraham Kuyper foi um profícuo teólogo, pastor, jornalista e político, que, com herança calvinista, elaborou
uma teologia própria e deu início ao Neocalvinismo no fim do século XIX na Holanda.
48
Kuyper argumenta em favor do pluralismo ancorado em sua noção teológica da Soberania das Esferas, a qual
reconhecia a necessidade de autonomia das diferentes esferas sociais, como o Estado, a família, a igreja, etc.
Diferente da proposta do Estado Laico, Kuyper se baseou na ideia bíblica de "organismo vivo" do "corpo de
Cristo" para defender a liberdade tanto das instituições em sua diversidade quanto dos indivíduos em suas
crenças. (BRATT, 2013, Edição Kindle).
105

a garantia da liberdade, da democracia." (2002, p. 259) Dito de outra forma,


pluralismo é certa condição onde há espaço para diferentes (e opostas) convicções –
de muitas naturezas. Por consequência, na dimensão epistemológica, o pluralismo
está em oposição ao monismo, pois este último pressupõe que certa proposta ou
grupo carrega a completa e verdadeira descrição das coisas para resolução do erro do
"outro" (CAVALCANTI, 2002, p. 259). Então, quando se nega o monopólio do poder e
da verdade completa numa sociedade por parte de certa proposta ou grupo, se abre
espaço para as diferentes opiniões e expressões. Este espaço é o pressuposto
inegável para a existência de pluralismo49 numa sociedade.
Por seu turno, o conceito de bem comum está intimamente ligado ao
pluralismo, ao menos para o neocalvinista Roel Kuyper. Em seu livro intitulado Capital
Moral, o professor holandês observa que a pluralidade é a condição necessária para o
surgimento do bem comum, uma vez que "bem comum, consequentemente, é o
resultado de inter-relacionamento de diferentes práticas e o bem que geram. Ao
partilhar esse bem particular e incluir uns aos outros, surge o bem comum." (2019, p.
246). Assim, afirma Roel, "pluralidade pode ser considerada como uma diversidade
necessária, condição para o surgimento do bem comum." (2019, p. 246)
Nesta lógica, uma sociedade pluralista deve ser considerada como um tipo de
riqueza social, no qual o capital moral50 surgido de diferentes fontes contribui para o
todo – dentre estas fontes, a religião ocupa um espaço fundamental ao gerar capital
moral a partir de suas concepções últimas.
Dentro da tradição religiosa do Neocalvinismo, a noção e defesa do pluralismo
existe mesmo antes de sua ênfase contemporânea (SMITH, 2020, p. 155). Muito disto
se dá pela figura de seu precursor, Abraham Kuyper, que já na segunda metade do
século XIX desejava teórica e politicamente a condição do pluralismo51. Como disse
seu biógrafo James Bratt:

Mas talvez o maior significado de Kuyper para o nosso próprio


mundo religiosa e culturalmente fraturado seja o modo como propôs
aos crentes religiosos que trouxessem o peso total das suas
convicções para a vida pública, respeitando plenamente os direitos
dos outros, numa sociedade pluralista sob um governo
constitucional. (BRATT, 2013, Edição Kindle, Introdução, tradução
nossa)52

49
Apesar da abertura para a polissemia dos termos "pluralismo" e "pluralidade", estamos evocando-os como
intercambiáveis quando se referem ao formato social de diversidade de crenças e práticas.
50
Capital moral é, basicamente, a terminologia utilizada por Roel Kuiper para explicar a geração de capitais
morais na conexão social, mas a partir da lógica cristã do pacto e não do contrato social.
51
Cabe dizer que Kuyper, seja como pastor de igreja rural ou como primeiro ministro da Holanda (1901-1905),
não projetou o pluralismo para o formato de um laicismo, devido a conjuntura religiosa dos Países Baixos em
seu tempo, o qual a religião oficial era o Calvinismo.
52
"But perhaps Kuyper’s greatest significance for our own religiously and culturally fractured world is the way
he proposed for religious believers to bring the full weight of their convictions into public life while fully
respecting the rights of others in a pluralistic society under a constitutional government."
106

Nesta perspectiva, o pluralismo deve ser levado em consideração como forma


de respeito ao direito do outro em ser diferente. No entanto, o que nos chama
atenção é a ênfase dada por Kuyper ao "peso total das convicções" presentes na
sociedade, pois dessa forma lida com a questão da dimensão pública de confissões
ideológicas ou religiosas sem subsumi-las ao privado.
Como se trata de um conceito chave do seu pensamento, os neocalvinistas
formularam uma ramificação deste pluralismo para fazer jus às obras do teólogo
holandês: o pluralismo estrutural e pluralismo confessional (ou religioso, ou
direcional) (BARTHOLOMEW, 2017, p. 209; KUYPER, 2019, p. 249; SMITH, 2020, p.
160) Enquanto o primeiro se refere a "sociedade diferenciada com todos os seus
laços, organizações e redes", o segundo está ligado às diferentes "orientações de
vida", como "as opiniões globais, objetivos morais e correntes religiosas" (KUIPER,
2019, p. 249).
É nesse sentido que essa contribuição se torna fundamental para nosso tema
central, pois na busca pela produção de bem comum, Kuyper não ignora o ponto de
partida religioso presente nos agentes promotores, pelo contrário, as encoraja na
dimensão pública. Na verdade, a consequência de uma sociedade sadia, em sua
visão, é de que a confluência do pluralismo (sobretudo o estrutural) contribua para o
bem comum (SMITH, 2020, p. 147). Isso, no entanto, não é o mesmo que
desencorajar o princípio pluralista, mas sim de complexificá-lo com a realidade da
diversidade de convicções religiosas na sociedade.
É preciso ainda dizer, como observa novamente Robinson Cavalcanti, que "o
pluralismo não quer dizer que existem várias verdades, mas que nenhuma pessoa, ou
grupo, detém o monopólio da verdade. Como o ser humano é limitado, algo de
verdade e de erro está em todo lugar." (2002, p. 259) Em outras palavras, o formato
pluralista não anula (nem exclui) o lugar das convicções religiosas, mas julga não
haver dominância de uma para com a outra. A implicação direta desta afirmação é de
que a religião, seja qual for sua expressão, encontra lugar para suas convicções e
práticas, mas principalmente, é parte integrante para a produção de bem para o
todo. E é nisto que reside a importância de sua participação para o bem comum.
Posta estas breves definições, precisamos agora problematizar, tendo em vista
justamente o pluralismo estrutural e confessional, as diversas significações de bem,
no termo bem comum.

O BEM COMUM COMO CONCEPÇÃO TEOLÓGICA: QUESTÕES ÚLTIMAS E


PENÚLTIMAS

Dentro das concepções religiosas, políticas ou filosóficas, há, inevitavelmente,


certa definição do que é o bem, bom e justo a que se deva pressupor. Portanto, se
afirmamos a importância da produção do bem comum numa sociedade pluralista, de
que conceito de bem estamos falando exatamente? E quando se trata da concepção
teológica, terá ela de se anular para produzir um bem neutro aceitável a todos?
Quem chama a atenção para essa problemática é o filósofo neocalvinista
James K. A. Smith em seu livro intitulado Aguardando o Rei (2020). Nesta obra, Smith
107

nota que o bem comum é melhor compreendido quando levamos em conta que cada
forma de vida presente na sociedade, seja religiosa ou não, carrega uma visão de bem
(uma teleologia), que "anima" a vida comum e define os bens a serem perseguidos
por quem compartilha dela. Nesta lógica, a fim de traçar uma teologia pública 53, é
preciso recuperar a noção da teleologia cristã, pois esta traz em seu bojo uma visão
de bem que motiva a colaboração social na vida cotidiana, bem como une o grupo em
seus objetivos (2020, p. 29). Em suas palavras:

O que une um "povo", um "nós", é um projeto, algo que buscamos


juntos. Colaboramos com uma vida comum à medida que
descobrimos bens em comum para buscar; criamos instituições,
sistemas e ritmos que reforçam a busca desses bens. (2020, p. 29)

Dessa forma, no caso cristão, aguardar o Reino de Deus esperançosamente na


vinda de Jesus configura os fins da vida comum (2020, p. 29) e define a significação
de bem dos cristãos. Em outras palavras, para Smith, o bem para o cristão é uma
concepção teológica. Por conseguinte, o que é o bem comum na visão de mundo
cristã e em suas práticas, pode divergir diametralmente de outras visões. Como lidar
com esse impasse social? As religiões devem se abster de suas convicções últimas
para viver bem com seus vizinhos nas questões penúltimas?
James Smith observa que para resolver essa questão, a tradição do liberalismo
político postula que deve haver, por parte da sociedade, certa neutralidade quanto às
divergências últimas (2020, p. 41)54. Ou seja, quanto ao âmbito dos compromissos
religiosos e morais que ultrapassam a subjetividade, o sistema liberal busca uma
abstração necessária a fim de concentrar a todos no chão comum entre os grupos – a
condição "natural" humana. Isso é o mesmo que dizer que o liberalismo usa da
distinção entre último e penúltimo – equivalente ao religioso e político – sem levar
em conta suas confluências teológicas e morais. "O liberalismo", diz Smith, "gosta de
se jactar de seu agnosticismo último e se apresenta orgulhoso como sistema
procedimental que só pede de nós que trabalhemos juntos no penúltimo." (2020, p.
41) É nessa linha que o filósofo político John Rawls (1921-2002) se encontra, uma vez
que em seu ideal de sociedade os indivíduos alcancem, racionalmente, os princípios
em comum, independente de seus compromissos particulares e últimos (KOYZIS,
2014, p. 304; SMITH, 2020, p. 40).
No entanto, o que queremos ressaltar é que a proposta liberal de suspensão
de crenças últimas não faz jus às implicações das diferentes concepções de bem,
sejam religiosas ou não. Novamente com o filósofo neocalvinista, é preciso perceber
que mesmo que um indivíduo não tenha noções bem definidas de caráter religioso

53
Termo aqui usado para denominar "uma exposição de como viver em comum com vizinhos que não
acreditam no que acreditamos, não amam o que amamos, não esperam pelo que esperamos." (SMITH, 2020, p.
30) Dessa forma, é também uma compreensão de como viver numa sociedade pluralista.
54
Em certa medida, a distinção entre pluralismo estrutural e confessional exposta acima e defendida pela
maioria dos neocalvinistas reforçam a ideia de que há uma separação entre questões penúltimas e últimas. Por
isso, Smith critica sua própria tradição com o argumento que segue no texto.
108

acerca do bem, do justo e do certo, ainda encontrará em fontes mais estreitas essas
significações. (SMITH, 2020, p. 40) Por sua vez, essas significações acabam por formar
uma macrovisão de questões últimas que afetam a vida comum. Em outras palavras,
sua tese é de que "nossas visões últimas não são agnósticas em relação ao
penúltimo." O último deságua no penúltimo. E continua expondo sua visão teológica:

o caráter de último da escatologia [teleologia] bíblica não é apenas


uma receita para uma eternidade distante; é também a norma do
perfil que deve ter a boa construção cultural hoje em uma criação
caída, porém redimida. Assim, o último não fica isolado no reino por
vir: ele é o farol da nossa renovação cultural no presente penúltimo.
Isso significa que nossa escatologia afeta nossa política [no sentido
amplo]. (2020, p. 51)

Assim, a distinção límpida entre último e penúltimo acaba por eliminar a


influência de um no outro, principalmente quando se refere à uma concepção
teológica acerca do bem. O que sobra em seu lugar é a complexidade desta
discussão, que faz justiça ao religioso, ao ateu, ao liberal ou a qualquer outro
indivíduo, quando não se esquiva das implicações centrais de seus compromissos
últimos na vida comum.
Isto, é claro, não é o mesmo que encorajar uma relação estranha entre Estado
e teocracia, ou qualquer proposta nesse sentido. Na verdade, ao problematizar o
liberalismo, não se muda o objetivo da orientação escatológica vinda da teologia, mas
as expectativas geradas pela sua visão de bem (2020, p. 55). Como afirma o autor
sobre sua crítica, o objetivo continua sendo "por causa do próximo, pelo
florescimento dos pobres e vulneráveis, pelo bem comum" e não "para que
'ganhemos' ou estejamos no 'controle'." (2020, p. 55)
Como exemplo do que foi discutido até aqui, podemos pensar no bem da
igualdade: não há dúvida que esse bem deve ser um alvo dos diversos grupos sociais
para o benefício de todos. No entanto, a igualdade terá uma concepção singular
como categoria teológica, pois tem em conta a doutrina cristã de que todos os seres
humanos carregam a Imago Dei e, portanto, merecem iguais oportunidades. Dessa
maneira, o penúltimo (a igualdade social) deságua no último (a existência de Deus e
sua criação dos seres humanos à Sua imagem).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Observamos assim que o impasse social causado pelo pluralismo social tem
consequências diretas nas concepções de bem, em bem comum. Vimos também que
o bem como concepção teológica é singular, pois é carregada de significações últimas
que não podem ser subsumidas. Porém, precisamos responder diretamente às
questões norteadoras: como podemos compreender a relação da produção do bem
comum com as divergentes concepções de bem presentes na sociedade? O bem no
sentido teológico continua sendo bem comum?
109

Respondemos, em conclusão, que na perspectiva Neocalvinista, ainda que o


bem na concepção teológica seja singular, o bem comum é enriquecido, à medida
que sua produção ultrapassa as expectativas de certo grupo ou proposta específica.
Assim, ainda que teológico, o bem pode ser comum, sem esquecer-se do que lhe é
particular e da sua finalidade teleológica (ou escatológica). Portanto, diante da
realidade da vulnerabilidade, da pobreza e necessidade de políticas públicas (como
no Brasil), o bem comum é ainda mais necessário numa sociedade pluralista, pois:

Não é apenas o governo (ou "o Estado) que promove o cuidado e


trata dos problemas; a igreja, o comércio, as escolas e as famílias
também têm papel importante a desempenhar no preparo da
sociedade para ser o que ela é chamada a ser. (SMITH, 2020, p. 149)

Resulta daí a possibilidade deste bem (na concepção teológica) para o bem
comum.

REFERÊNCIAS
BARTHOLOMEW, Craig G. Contours of the Kuyperian Tradition: A Systematic
Introduction. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2017.
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Documento de área: área 44: ciências da
religião e teologia. Área 44: Ciências da Religião e Teologia. 2019. Disponível em:
http://www1.capes.gov.br/images/Documento_de_%C3%A1rea_2019/ciencia_religia
o_teologia.pdf. Acesso em: 21 out. 2020.
BRATT, James D. Abraham Kuyper: modern Calvinist, Christian democrat. Wm. B.
Eerdmans Publishing Co, 2013. Edição do Kindle.
CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e política: teoria bíblica e prática histórica.
Viçosa: Ultimato, 2002.
KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Brasília, DF: Editora
Monergismo, 2019.
KOYZIS, David T. Visões & ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias
contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2014.
SMITH, James K. A. Aguardando o Rei: reformando a teologia pública. São Paulo:
Vida Nova, 2020.
110

ESPIRITUALIDADE E DIREITO PENAL

MARIELZA NOBRE CAETANO DA COSTA


Mestranda em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
[email protected]

RESUMO: O presente artigo tem por escopo analisar aspectos históricos do direito
penal e como o Estado ainda hoje aplica a justiça. E ainda como a espiritualidade age
diretamente no sujeito de direito, influenciando sua forma de ver e aceitar as
mudanças sociais no campo do direito criminal. O sistema retributivo está vinculado a
um conceito jurídico-normativo de crime, que é balizado como fato típico, ilícito e
culpável, resultando em uma ofensa ao Estado. Em contrapartida, se apresenta um
novo olhar, que é a justiça restaurativa como uma nova possibilidade de resolução de
conflitos, propiciando um maior espaço de diálogo e de consenso, uma efetiva
responsabilização do ofensor e um local seguro e de maior atenção as necessidades
da vítima e da comunidade, o que possibilita um ressignificar da vida. O estudo se dá
por intermédio de uma abordagem metodológica bibliográfica. O resultado que
espero é o entendimento do que é justiça restaurativa, como é possível desenvolvê-la
sem exclusão da espiritualidade dos sujeitos e sem confrontar com o Estado Laico,
permitindo aos envolvidos – ofensor, vítima e comunidade um novo começar, onde
as pessoas são o foco central a ser tratado e não o crime.

Palavras-chaves: Justiça restaurativa; Justiça retributiva; Espiritualidade;


Ressignificação; Círculos Restaurativos.

INTRODUÇÃO

Ao olharmos para o Direito Penal, percebemos que ele atravessou várias fases,
desde a Renascença, quando o mundo se ordenava pelo misticismo, percorrendo o
Período Clássico, que rompeu com o mito ao promover a razão como o centro de
tudo, o paradigma da racionalidade criou-se com raízes fortes observadas ainda hoje.
No período do corpo supliciado, observa-se a teoria da vingança, que consistia
na rigorosa reciprocidade do crime e da pena. Partia-se da perspectiva de que quem
feriu o outro devia ser penalizado em modo idêntico.
Thomas Hobbes (2014), apesar de defensor do Direito Natural, considerava
que a sociedade não poderia se sustentar apenas nesse sistema, o que culminaria em
guerra de todos contra todos, portanto ressaltava a necessidade da criação do Direito
Positivo ou de contrato social, garantido por um poder centralizado, que é o Estado,
com vistas a estabelecer regras de convívio pacífico; surge, pois, disso a ideia de
Justiça Retributiva.
111

Segundo essa metodologia de justiça, no processo criminal, o fenômeno do crime se


torna o foco central, maior até que a vida. Os interesses e as necessidades, tanto da
vítima quanto do ofensor, são relegados e colocados em segundo plano.
Esse viés retributivo tem como pressuposto básico, na formação da nossa
reação, que sempre nos perguntemos e busquemos respostas para os seguintes
tópicos: a culpa deve ser estabelecida; o culpado deve receber seu merecido castigo;
o merecido castigo exige a imposição de dor; a justiça é pedida pelo processo; a
violação da lei define o crime.
Essas reações são intrínsecas a todos nós. São, pois, inerentes ao indivíduo.
Na nossa sociedade a justiça é definida como aplicação da lei. nos
concentramos no ato da violação da lei. Em vez de entendermos o dano efetivamente
causado ou a experiência vivida pela vítima e ofensor, na busca de uma reparação
efetiva.

JUSTIÇA RETRIBUTIVA X JUSTIÇA RESTAURATIVA

Repetindo o movimento de mudanças, semelhantemente ao ocorrido na


transição do Classicismo para o Século das Luzes, do suplício do corpo para a privação
dos direitos naturais, nas últimas décadas vem crescendo um movimento de
mudança no campo da Justiça Criminal e na forma como ela é vista pela sociedade.
No ano de 2002, considerando o significativo aumento de iniciativas
restaurativas em todo o mundo, que partiram de ações tomadas pelas próprias
comunidades, mais fortemente a partir da década de 70, o Conselho Econômico e
Social (Ecosoc) da Organização das Nações Unidas (ONU) editou a Resolução n.º 12,
dispondo sobre os princípios básicos para a utilização de programas de Justiça
Restaurativa em matéria criminal, a primeira referência normativa internacional que
respaldou as ações de Justiça Restaurativa.
Segundo Zehr (2012), a Justiça Restaurativa pode ser conceituada como
proposta metodológica, por intermédio da qual se busca, via intervenções técnicas
adequadas, a reparação moral e material do dano, utilizando-se de comunicações
efetivas entre vítimas, ofensores e representantes da comunidade. A Justiça
Restaurativa, assim compreendida, volta-se a estimular o respeito mútuo entre
vítima e ofensor; a humanização das relações processuais em lides penais; e a
manutenção ou restauração das relações sociais subjacentes, eventualmente
preexistentes ao conflito.
Para aqueles que adotam um olhar restaurativo, o crime é uma violação de
pessoas e de relacionamentos, e não somente uma violação de leis e normas.
O crime, portanto, envolve violações que precisam ser olhadas. Essas violações
representam as quatro dimensões básicas afetadas pelo delito: a vítima; os
relacionamentos interpessoais; o ofensor; a comunidade.
Torna-se, então, necessária a mudança de nossas reações, para que
perguntemos e busquemos respostas aos seguintes tópicos: quem foi prejudicado?
Quais necessidades devem ser atendidas? E quem deve fazer reparação?
112

O modelo tradicional limita a resolução das questões criminais nas mãos de um


Juiz de Direito ou de um colegiado de magistrados, subtraindo das mãos dos
envolvidos sua capacidade de resolução do conflito ou, até mesmo, de participar
diretamente dessa resolução. Os envolvidos narram os fatos. Os Juízes julgam fatos e
provas.
Ambas as teorias (Retributiva e Restaurativa) possuem, de alguma forma, o
mesmo objetivo, ou seja, ambas pretendem equilibrar a balança entre os envolvidos
num conflito, porém diferem em suas propostas quanto ao que compreendem como
metodologia de eficácia do equilíbrio.
Tanto a Justiça Retributiva quanto a Restaurativa reconhecem que o
comportamento socialmente nocivo desequilibra a balança, também compreendem
que quem sofreu a ação danosa merece algo e que quem causou o dano deve algo.
Ambas argumentam que aquele que causou o dano (ofensor) deve ser tratado como
um agente ético. As duas abordagens sustentam que deve haver proporcionalidade
entre o ato ilícito e a reação a ele, porém a forma de fazê-lo é diferente.
Para a Justiça Retributiva, a dor é o elemento capaz de equilibrar as coisas. Ao
privar o ofensor de seu direito de liberdade, ao encarcerá-lo, impingindo-lhe dor
emocional, se equilibrará a balança. Por outro lado, a Justiça Restaurativa sustenta
que o único elemento apto a garantir esse equilíbrio é a interligação do
reconhecimento dos danos sofridos pela vítima e das suas necessidades com o
esforço efetivo do ofensor em assumir responsabilidades, em corrigir o dano e em
tratar as causas do comportamento nocivo.
Para Zehr (2008), o modelo retributivo, no fundo, é um modelo de guerra,
trata-se de um duelo bem regulamentado. Tem-se, em todos os níveis de Justiça
Penal, que esse modelo é adversarial; ele fomenta o conflito de interesses entre as
partes, no qual o maior protagonista, contudo, é o crime. O indivíduo,
independentemente do polo em que se encontra, recebe pouca ou nenhuma
importância.
Em outra perspectiva, o modelo restaurativo busca olhar além do fato danoso.
Volta-se para as necessidades dos indivíduos envolvidos direta ou indiretamente no
conflito, concentra-se na resolução do conflito e na construção de condições de
convivência no porvir.

ESPIRITUALIDADE E JUSTIÇA PENAL

Não raramente, as vítimas e a comunidade não se sentem justiçadas no


modelo retributivo e, muitas vezes, apelam para o sagrado. É muito comum ouvirmos
a máxima: “A justiça dos homens é falha, mas a justiça divina não perdoa”.
Durkheim (2008) afirma que os grupos sociais criam regras e formas de punição para
garantir a solidariedade entre seus membros. Tais regras nem sempre são
suficientemente racionais, já que as sociedades punem aquilo que parece perigoso
para si, mas nem sempre a lei é relevante do ponto de vista universal. O conjunto de
crenças e de sentimentos comuns à média dos membros de uma mesma sociedade
forma um determinado sistema, que tem vida própria.
113

Segundo Geertz (2001), a religião, antes introspectiva, limitada ao indivíduo,


com o mover do solo, com o passar dos tempos, tornou-se externa, passou a abrigar
as lutas da sociedade; algumas, pacíficas; outras, nem tanto; e movidas por outras
paixões, outros sentimentos, até mesmo pela luta de poder, pela dominação das
massas.
Essa realidade religiosa foi também motivo de estudos por Weber (1991), que
define que existe um paralelo entre três dimensões da sociedade: a política, a
economia e a religião. As três dimensões traçam uma mesma rota, percorrem, ao
mesmo tempo, um processo de racionalização progressiva e similar. É o que ele
define como “afinidade eletiva”. As três dimensões elegem um conjunto de valores e
se regem por esse conjunto, basicamente ao mesmo tempo. Para o sociólogo, os
ideais religiosos avançaram junto aos tropeços sociais, deslocando-se pela História e
produzindo efeitos em outras camadas que não de cunho religioso.
Todos buscam a justiça, mas esperam que o sistema judiciário puna segundo
seus preceitos religiosos. A afinidade eletiva se dá em relação aos princípios regentes
em determinado período histórico.
Nessa busca por justiça, seja uma justiça dos homens ou a justiça divina, o que
se almeja é um sentido para a continuidade da vida. E, nesse quesito, um viés
restaurativo garantirá maior equilíbrio.
A Justiça Restaurativa tem o potencial de legitimar todas as partes, ajudando
vítima e ofensor a transformar suas vidas.

OS SUJEITOS

Para Foucault, “Naquele que o Estado quer punir está o fechamento do ciclo
que vai do sujeito ao sujeito. O criminoso aparece como sujeito sujeitado, delimitado
na condição de indivíduo completamente só. Ele e sua pena. Ele e sua morte. Ele e
sua autoria” (Foucault, 2000 apud Sugizaki, 2013, p. 29).
Na Justiça Retributiva, não é somente o ofensor que aparece como “sujeito
sujeitado”. A vítima também o é, afinal, ela é o foco principal do delito. Ela se torna,
porém, mero objeto de informação. Para o detentor do poder punitivo (Estado), a
vítima, apesar de sofrer a ação, interessa mais pelas informações e detalhes que irá
narrar para formar a convicção do julgador do que pelas suas próprias necessidades.
Ela não é vista como sujeito de interesses, mas, unicamente, como objeto de
informação ou estudo.
Esse círculo no qual se encontram vítimas, ofensores e comunidade, como
simples objetos de observação e de punição, que tem como peça central o próprio
delito, gera insatisfação e sensação de impunidade, ocasionando conflito social.
Os sociólogos costumam destacar que os conflitos sociais, especialmente as
lutas de classes, constituem a principal causa ou motor das mudanças sociais e
culturais.
O modelo retributivo, observado em grande parte das culturas existentes, ao
contrário da tranquilidade e da pacificação apregoada, tem gerado crescente
114

aumento da criminalidade, diante da sua ineficácia para a ressocialização do


indivíduo infrator.
Uma tentativa real de construirmos uma comunidade ética é compreender as
diferentes identidades hoje existentes.
Segundo Woodward (2005), a globalização produz diferentes resultados em
termos de identidade. A dispersão de pessoas ao redor do mundo produz identidades
que são moldadas e que conflitam com as já existentes, causando desestabilização,
ao mesmo tempo em que também se desestabilizam. Nesse contexto percebe-se
crises de identidade no mundo contemporâneo.
É na relação com o outro, na percepção do “eu” e do outro, nas diferenças
existentes, no jogo de poder e de exclusão que a identidade é construída.
Para Bauman (2003), operamos e fomentamos uma sociedade excludente, na
qual estamos inseridos sem, contudo, deixar implícitas as possibilidades de
construção de uma comunidade ética.
Uma eficaz tentativa pode ser encontrada na Justiça Restaurativa, que é
desenvolvida por meio de várias práticas restaurativas.

CÍRCULOS RESTAURATIVOS

Dentre as mais diversas práticas restaurativas, temos os chamados “círculos


restaurativos” e de construção de paz que o Tribunal de Justiça de Goiás adotou
como metodologia a ser desenvolvida pela Justiça Restaurativa.
Os círculos restaurativos descendem diretamente dos círculos de diálogos
muito comuns aos povos indígenas norte-americanos, aliás, essa é uma prática que
possui raízes tribais na maioria dos povos e é, ainda hoje cultivada entre povos
indígenas do mundo todo.
Pranis (2010) nos lembra que nossos ancestrais se reuniam num círculo em
torno do fogo. Por anos as famílias se reuniram em volta da mesa para dialogar. Hoje,
as comunidades estão aprendendo a se reunirem em círculos para debater seus
problemas, dialogar, apoiar uns aos outros e estabelecer vínculos mútuos.
Aprendemos muito com a sabedoria ancestral, e um desses ensinamentos,
essencial para o desenvolvimento dos círculos restaurativos, é a compreensão de que
a experiência humana se compõe de aspectos mentais, físicos, emocionais e
espirituais. Para Pranis (2010), todas essas facetas da experiência humana são
igualmente importantes e oferecem contribuições essenciais à nossa vida coletiva.
No Tribunal de Justiça do Estado de Goiás, os círculos restaurativos foram
introduzidos com a filosofia da Justiça Restaurativa, que inclui todos os envolvidos
em um conflito, num processo de compreensão dos danos e de criação de estratégias
para a sua adequada reparação.
Apesar de as instituições públicas pertencerem legalmente a um Estado Laico
ou Secular, isso não implica a ausência absoluta de religião; ao contrário, designa
neutralidade, independência e liberdade do Estado ante diversas instituições
religiosas, aspectos esses assegurados pela Constituição Federal.
115

Compreendendo a afinidade eletiva descrita por Weber (1991), conceito que


vai ao encontro com os ensinamentos de Pranis (2010), tomamos consciência dos
aspectos espirituais presentes nos círculos restaurativos, quer seja pelos envolvidos
no conflito, quer seja pelos responsáveis em conduzir a prática, sem que isso seja
contrário ao Estado Laico de Direito. No entanto, a proibição da aplicação da prática,
fincada na mesma lógica weberiana, afeta a neutralidade imposta à instituição
pública.
Independentemente da crença professada, é inequívoco reconhecer que os
indivíduos, não raramente, buscam (ou tentam buscar), na religião, o verdadeiro
sentido de suas vidas; a resposta que nenhum homem ou ciência podem dar; a luz no
fim do túnel; o arrependimento pela conduta reprovável; uma oportunidade de
renascimento; a restauração dos vínculos familiares; amor; paz; e em situações
extremas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nosso sistema jurídico tem muitos rituais, e esses rituais são como um espaço
onde as tradições espirituais podem desempenhar um papel significativo. Um
exemplo típico de um ritual no sistema jurídico é o Tribunal de Júri.
Os ritos possuem um ou vários sentidos e podem oferecer clareza sobre os
mistérios da humanidade. O rito é uma ação seguida de consequências reais, é uma
espécie de linguagem, uma forma de comunicação.
Um ritual importante que se desenvolve na justiça é quando ocorre um crime
ou ofensa. Nesse momento é necessário o ritual do lamento, que se faz necessário
em toda situação conflituosa, possibilitando que os envolvidos se livrem da sensação
de estresse emocional, de algo preso dentro de si, para que sigam suas vidas após o
processo catártico.
Percebendo essa necessidade, a prática restaurativa aplicada nos tribunais
surgiu com o enfoque de mitigá-la, pela realização de rituais de lamentação e cura
para os interessados.
Mudanças são necessárias, as quais só surgirão a partir dos sujeitos.
É esse sujeito pós-moderno, que precisa superar esse estado de estabilidade e
assumir o estado de mudanças, assumindo as múltiplas identidades exigidas nas
sociedades modernas, e se tornando protagonista no conceito de Justiça Criminal,
que deve ver as coisas por um ângulo diferente.
Não há mais espaço, na cultura pós-moderna, para a segregação do indivíduo
que comete um crime em presídios afastados e superlotados, onde não se respeitam
as identidades reconhecidas por cada um.
A Justiça Restaurativa não visa afastar a pena imposta ao ofensor, mas, sim,
permitir que ele perceba seu erro, assuma responsabilidades, tenha a oportunidade
de reparar o dano, sinta-se em paz consigo mesmo e consiga ressignificar sua vida.
Esse sujeito sujeitado, seja vítima, seja algoz, enfim encontra seu espaço nesta
cultura pós-moderna, em que a resiliência se faz necessária. O mundo precisa mais
do que nunca de humanidade. Esta civilização já viveu tempos bárbaros demais, e o
116

tempo do obscurantismo já ficou para trás há séculos. O indivíduo, mais do que de


leis, necessita restaurar-se.
Trata-se de uma questão social que envolve a todos: Estado, indivíduo, grupo
social, expressões religiosas. Todos nós somos responsáveis. Todos nós precisamos
trocar nossas lentes.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Comunidade: a busca por segurança no mundo atual. Rio de


Janeiro: Zahar, 2003.
CENSO DEMOGRÁFICO 2010. Características gerais da população, religião e pessoas
com deficiência. Rio de Janeiro: IBGE, 2012. Disponível em:
<ftp://ftp.ibge.gov.br/Censos/Censo_Demografico_2010/Caracteristicas_Gerais_Relig
iao_Deficiencia/caracteristicas_religiao_deficiencia.pdf> último acesso em: 11 de
dezembro de 2019.
CONSELHO ECONÔMICO E SOCIAL DA ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS - ONU.
Resolução 12 de 24 de julho de 2002. Disponível em:
http://www.juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Mat
erial_de_Apoio/Resolucao_ONU_2002.pdf. Último acesso em: 11 de dezembro de
2019.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa. Trad. Joaquim Pereira
Neto. 3ª ed. São Paulo, 2008.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999.
GEERTZ, Clifford. Nova luz sobre a antropologia. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
HOBBES, Thomas. Leviatã – Ou matéria, forma e poder de um estado eclesiástico e
civil. Tradução: Rosina D'Angina. São Paulo: Martin Claret, 2014.
MELLO, Luiz Gonzaga de. Antropologia Cultural. 7º Ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
PRANIS, Key. Processos circulares – De construção de Paz. São paulo: Palas Athena,
2010.
SILVA, Tomaz Tadeu. Identidade e Diferença. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 73-101.
SUGIZAKI, Eduardo. A contra-história: Historicismo e sujeito de interesse como
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WEBER, Max. Economia e sociedade. Trad. Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa.
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WOODWARD, Kathryn. Identidade e Diferença. Petrópolis: Vozes, 2005. p. 7-72.
ZEHR, Horward. Trocando as lentes: Justiça restaurativa para o nosso tempo.
Tradução de Tônia Van Acker. São Paulo: Palas Athena, 2008.
ZEHR, Horward. Justiça Restaurativa: Teoria e Prática. Tradução de Tônia Van Acker.
São Paulo: Palas Athena, 2012.
117

A RELIGIÃO COMO VIRTUDE ANEXA DA JUSTIÇA EM SANTO


TOMÁS DE AQUINO E O ESTADO LAICO

SÉRGIO RICARDO STREFLING


Doutor em Filosofia
Universidade Federal de Pelotas
[email protected]

RESUMO: A religião é uma das raízes fundamentais de todas as civilizações. Podemos


criticar ou discordar das nossas origens, mas nem por isso elas deixam de existir. A
religião, compreendida como virtude, isto é, hábito operativo do bem, é uma
extensão da virtude da justiça. Santo Tomás de Aquino (1225-1274), filósofo e
teólogo, foi professor em Paris e grande comentador de Aristóteles no tempo áureo
da origem das Universidades. Enfrentou muitas polêmicas e sua obra caracteriza-se
como um verdadeiro debate em que ele parte das objeções dos que pensam de
modo diferente dele, analisa e reponde as mesmas objeções. Os objetivos do
presente estudo são os seguintes: apresentar a religião como uma virtude anexa a
virtude da justiça analisada na obra Suma Teológica de Santo Tomás; demonstrar que
este é o sentido da religião na Tradição de nossa civilização, outrossim, a falta de
compreensão deste significado conduz a reducionismos e ao sentimentalismo
subjetivista; analisar a virtude da religião considerando a relação entre fé, razão e
ciência e as imbricações no estado. A metodologia deste trabalho partirá da análise
das fontes bibliográficas sobre a temática e pretende contribuir com respostas as
seguintes questões: 1. O mundo é governado por algo? 2. A religião é uma virtude
que procede da justiça? A religião é superior as outras virtudes morais? Há um fim
último para o ser humano? Como imbricar o fim último da pessoa humana
relacionando fé, razão e ciência no estado laico?

Palavras-chave: Religião; Virtude; Tomás de Aquino; Laicidade.

A DEFINIÇÃO DE VIRTUDE

Todos nós realizamos atos involuntários e não pensados, que podem ser
classificados simplesmente como atos do homem, como por exemplo, respirar ou
coçar a barba, ou seja, ações que também encontramos nos animais irracionais. Mas,
aqueles atos que procedem da faculdade da inteligência e da vontade são chamados
atos humanos, como por exemplo, elaborar determinados conceitos ou deliberar tal
ação. São os atos voluntários, e por estes podemos ser responsabilizados. Os hábitos
são os atos que atualizam as nossas potencialidades ou inclinações. Na medida em
que realizamos nossas inclinações em conformidade com a natureza e a reta razão,
então temos os hábitos que chamamos de virtudes. Não se deve confundir o hábito
118

com costume ou comportamento simplesmente. O hábito refere-se à atividade


mesma das faculdades, que ele pode deteriorar ou aperfeiçoar (VERNAUX, 1969,
p.204). O presente tema que ora estudamos encontra-se desenvolvido em centenas
de páginas de uma das mais volumosas obras, entre muitas outras, de Santo Tomás
de Aquino. A Suma teológica trata da origem e do retorno do homem para Deus.
Divide-se em três partes, sendo que a segunda parte se divide em duas sessões.
Tomás pode ser considerado um arquiteto de ideias e sua obra uma harmoniosa
catedral de palavras (NASCIMENTO, 2011, p. 13).
As virtudes, como elementos fundamentais, constituem um imenso e
engenhoso tapete servindo de base para ética. Tomás de Aquino é original na forma
como lega à tradição filosófica e teológica o tema das virtudes, pois este é
desenvolvido numa estrutura de mais de trezentas questões que compõe a primeira
e segunda partes da segunda parte da Suma Teológica. Trata das virtudes no sentido
moral da palavra, ou seja, como habilitações ou disposições aos atos moralmente
bons ou intelectualmente justos. Tomás nomeia e define aproximadamente 50
virtudes. A expressão virtude, na obra do Aquinate, tem também tem outros
significados. Pode ser uma abstração tanto do bem como do mal e implica somente a
eficácia do ato. Neste sentido, virtude (virtus) significa primeiramente força, energia,
fonte do impulso aos atos. Há virtudes permanentes e virtudes passageiras. Às vezes,
aparecem expressões como “em virtude de...” que pretendem remeter à causa
própria de onde vem à força, a energia, a eficácia, da qual depende a produção de
um efeito, por exemplo, é em virtude da moção divina que a causa segunda faz existir
seu efeito (NICOLAS, 2009).
A virtude humana é um hábito de ação, um hábito bom e operativo do bem
(unde virtus humana, quae est habitus operativus, est bonus habitus, et boni
operativus). Eis a definição clássica de virtude (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p.93). É
uma boa qualidade da mente pela qual se vive com retidão, onde ninguém faz mal
uso, e que Deus age em nós sem nós. Esta definição compreende perfeitamente toda
a essência da virtude. Com efeito, a definição perfeita de uma coisa está composta de
todas as suas causas. E a definição enunciada compreende todas as causas da virtude.
A causa formal da virtude, como a de qualquer coisa, se toma de seu gênero e
diferença, e se expressa ao dizer boa qualidade, pois o gênero da virtude é a
qualidade, e a diferença, a bondade. Contudo, a definição seria mais adequada se em
lugar de qualidade se dissesse hábito, que é o gênero próximo. A causa material é o
sujeito da virtude que aparece quando se menciona que a virtude é uma boa
qualidade da mente. Quanto à causa final entende-se ao definir que a virtude é um
hábito que se ordena sempre ao bem. Portanto, para distinguir a virtude daqueles
hábitos que se referem ao mal, se diz: pela qual se vive com retidão (qua erecte
vivitur). E sua distinção dos hábitos, que umas vezes se inclinam ao bem e outras ao
mal, se expressa nas palavras: da qual ninguém faz mal uso (qua nullus male
utitur).Por fim, a causa eficiente da virtude infusa, de que trata a definição, é Deus.
Razão por que se acrescenta “produzida por Deus em nós, sem nós” (quam Deus in
nobis sine nobis operatur). Se fossem suprimidas estas palavras, então a definição
119

seria comum para todas as virtudes, tanto infusas como adquiridas (TOMÁS DE
AQUINO, 2005, p.93-99)55.

A VIRTUDE DA JUSTIÇA

A justiça é o hábito (habitus), pelo qual, com vontade constante e perpétua, se


dá a cada um o seu direito .Sendo toda virtude um hábito, que é princípio de atos
bons, cumpre definir a virtude por um ato bom, tendo por objeto a matéria mesma
da virtude. Ora, a matéria própria da justiça são os atos relativos a outrem, como a
seguir se explicará. Portanto, indica-se o ato de justiça em relação com sua matéria
própria e o seu objeto, quando se diz: “dar a cada um o seu direito”; porque, como
neste sentido, “chama-se justo aquele que guarda o direito” (TOMÁS DE AQUINO,
2005, p.56). Mas, seja qual for a matéria em que se exerça, um ato para ser virtuoso,
há de ser necessariamente, voluntário, estável e firme. Com efeito, Santo Tomás
retoma o pensamento aristotélico e afirma a existência de três condições necessárias
para a virtude: “Primeiro, que se faça com conhecimento; segundo, com escolha e
para um fim devido; terceiro, com firmeza inabalável” (TOMÁS DE AQUINO, 2005,
p.56). Ora, a primeira das condições está incluída na segunda, pois o que é feito por
ignorância é involuntário, segundo Aristóteles. Por isso, na definição da justiça,
menciona-se primeiro à vontade, para mostrar que o ato de justiça deve ser
voluntário. Ajunta-se, porém, a constância e a perpetuidade, para indicar a firmeza
do ato. Assim, pois, a referida definição da justiça é completa, a não ser que se toma
o ato pelo hábito, que é especificado pelo ato, já que o hábito se ordena ao ato. Para
dar a essa definição sua devida forma, bastaria dizer: “A justiça é o hábito, pelo qual,
com vontade constante e perpétua, se dá a cada um o seu direito” (TOMÁS DE
AQUINO, 2005, p.56). Essa definição é quase idêntica à que Aristóteles enuncia: “a
justiça é o hábito que leva alguém a agir segundo a escolha que fez do que é justo”
(TOMÁS DE AQUINO, 2005, p. 56)56.

AS PARTES ANEXAS À VIRTUDE DA JUSTIÇA

Como a justiça é uma virtude que se refere ao outro, todas as virtudes


referentes ao outro poderão ser anexadas à justiça por esse mesmo motivo. É da
essência da justiça dar ao outro o que lhe é devido, de modo equitativo. De dois
modos uma virtude que se refere a outra é deficiente quanto à razão da justiça: de
um modo, por lhe faltar a razão de igualdade; de outro, por lhe faltar a razão do
devido. Há virtudes que consistem em dar ao outro o que lhe é devido, mas não o
fazem em igualdade: Em primeiro lugar, não se retribui em igualdade, porque aquilo
que se dá a Deus é devido, mas que não pode ser igual ao que se recebeu de Deus a
ponto de retribuir tanto quanto deve, segundo se lê no Salmo: “Como retribuir ao

55
Apresentamos uma síntese das respostas nos diversos artigos que compõe a discussão da questão 55 da
primeira parte da segunda parte obra Suma Teológica.
56
Resumimos a ideias principais que são discutidas, entre as objeções e respostas dos artigos que compõe a
argumentação da questão 58 da segunda parte da segunda parte da Suma Teológica.
120

Senhor tudo o que d’Ele recebi?”(Salmo 115,3)57 . Por isso, acrescenta-se a religião à
justiça, que consiste, em “apresentar cerimônias e culto à natureza superior
designada pelo nome de divina” (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p.273). Em segundo
lugar, não se retribui em igualdade aos pais, por tudo deles recebido, como esclarece
Aristóteles e, por isso, acrescenta-se a virtude da piedade, pela qual, segundo Cícero:
“Aos consanguíneos e benfeitores da pátria se tributa um culto diligente” (TOMÁS DE
AQUINO, 2005, 273). Em terceiro lugar, não se retribui em igualdade à virtude dos
outros, conforme diz Aristóteles. Por isso, acrescenta à justiça a veneração pela qual,
segundo Cícero: “Aqueles que são superiores por alguma dignidade são cultuados e
honrados” (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p.273). Ademais, a insuficiência quanto ao
devido por justiça pode ser considerada segundo os débitos moral e legal; por isso,
Aristóteles distingue esses dois tipos de débitos. O débito legal consiste em retribuir
aquilo que é determinado por lei. Este débito propriamente pertence à justiça como
virtude principal. O débito moral é aquele exigido pela honestidade da virtude. Como
esse débito implica necessidade, manifesta-se em dois graus: o primeiro grau implica
tal necessidade, que sem ele não se conservará a honestidade dos costumes; neste
grau há, estritamente, o débito. Este débito pode ser considerado da parte do
devedor. O seu débito consiste em ter que mostrar-se ao outro quem de fato é, por
palavras ou atos. Assim, acrescenta-se a justiça a veracidade pela qual, sem
modificações, as coisas tais como foram, são e serão. O segundo grau refere-se a
quem se deva o débito, enquanto se recompensa o outro por aquilo que fez, às
vezes, em bens. Acrescenta-se, então, a gratidão à justiça que, consiste na memória
da amizade e dos bons serviços do outro e a vontade de remunerá-los. Outras vezes,
trata-se de males, acrescentando-se, então, a punição, pela qual, se é levado a se
defender da violência e do ultraje (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p.273). Dito isto,
considera-se que as virtudes anexas ou subordinadas à justiça são nove: religião,
piedade, observância, gratidão, vindicta, verdade, amizade, liberdade e equidade
natural (TOMÁS DE AQUINO, 2005)58

A VIRTUDE DA RELIGIÃO

Muitas ideias se afirmam sobre o que é a religião, para uns é apenas uma
instituição ou forma de comportamento ou simplesmente um sentimento. Neste
estudo retomamos aquele sentido que vigora na civilização ocidental, ou seja, a
religião é uma virtude. Esta compreensão é anterior e posterior a Tomás de Aquino,
todavia, ele nos oferece importante reflexão no seu longo tratado das virtudes. Santo
Tomás apresenta a religião como uma das virtudes mais importantes anexas à virtude
da justiça, não se trata de uma virtude secundária. Considerando as quatro virtudes
cardeais ou morais (prudência, fortaleza, temperança e justiça), ele destaca o que
cada uma delas, concebida em sua noção essencial, contém de específico. Sendo

57
“Quid retribuam Domino, pro omnibus quae retribuit mihi?” (Bíblia Sacra - Vulgata)
58
Apresentamos uma síntese da explicação das virtudes anexas destacando a virtude da religião como gratidão
a quem devemos. Temos aqui a ideia principal do Tratado da Justiça na Suma Teológica.
121

assim, a justiça comporta uma exigência de igualdade que a religião não saberia
manter nas relações entre o homem e Deus do qual ele proclama a transcendência,
exigindo submissão total por parte da criatura. Portanto, se a religião não realiza
integralmente a definição de justiça, realiza da maneira mais perfeita a de virtude,
ocupando entre as virtudes um lugar especial. Na questão 81 da segunda parte da
segunda parte da Suma Teológica, Tomás faz três considerações: sobre a religião em
si mesma, sobre seus atos, e sobre os vícios opostos. Aqui, vamos apenas tratar da
religião em si mesma, e sobre este tema ele desenvolve oito artigos, cada um com
diversas objeções e respostas. Pergunta-se: 1. A religião consiste só na orientação
para Deus? 2. A religião é uma virtude? 3. A religião é uma só virtude? 4. A religião é
uma virtude especial? 5. A religião é uma virtude teológica? 6. A religião deve ser
preferida as outras virtudes morais? 7.A religião tem atos exteriores? 8. A religião é a
mesma coisa que a santidade? Todavia, nosso intuito é tratar apenas da segunda
questão, a saber: a religião é uma virtude? Ao responder sobre esta questão, afirma:
“Virtude é a ato que torna bom quem a tem e boa a sua obra. Por isso, é necessário
afirmar que todos os atos bons pertencem à virtude. É evidente que pagar o devido a
alguém tem a razão de bem, porque o fato de alguém pagar o devido a outro,
restabelece uma relação conveniente com o outro, ordenando-se convenientemente
com ele. Ora, segundo Agostinho, pertencem a razão de bem a ordem, o modo e a
espécie. Logo, como pertence à religião prestar a devida honra a alguém, isto é, a
Deus, torna-se evidente que a religião é uma virtude” (TOMÁS DE AQUINO, 2005,
p.281). A virtude da religião é uma virtude especial, mas não é uma virtude teológica.
As virtudes teológicas (fé, esperança e caridade) tem a Deus como matéria ou objeto,
mas a religião é uma virtude moral, à qual pertencem as coisas que são para o fim, a
saber: o culto com os ritos, sacrifícios ou outras coisas semelhantes (TOMÁS DE
AQUINO, 2005, p. 281-294).

O FIM ÚLTIMO DO HOMEM E O ESTADO LAICO

Ao iniciar a análise sobre as virtudes humanas, Santo Tomás, pergunta sobre o


fim último de cada pessoa humana e de todos as pessoas humanas. Existe um fim
último? Propõe-se o homem, com seus atos, alcançar algum fim último e supremo?
Santo Tomás responde que sim, pois se o homem não quisesse e não intentasse o seu
fim último, nada poderia nem intentar nem querer, por isso ordena todas as suas
ações para a consecução do fim último ou de modo consciente e explícito, ou
implicitamente em virtude de certa espécie de instinto racional. Este objeto tão
desejado pelo homem é a sua própria felicidade. Acontece que estando em suas
mãos escolher entre muitos bens, pode confundir os verdadeiros com os aparentes.
Mas em que consiste objetivamente a felicidade do homem? Num bem superior a
ele, e o único capaz de acumulá-lo de perfeições. Este bem não consiste nas riquezas
porque as riquezas são coisa inferior ao homem, e incapazes, por si mesmas, de
aperfeiçoá-lo. Não consiste nas honras, porque as honras não dão perfeição, já a
supõem, sob pena de serem postiças, e se são postiças nada são. Este fim também
não consiste na glória e na fama, por serem, neste mundo, coisas frágeis e volúveis.
122

Da mesma forma, não consiste no poder, porque o poder não se dá para o bem
próprio, senão para o dos outros e está à mercê do capricho e do espírito de
insubordinação. Tão pouco na saúde e na beleza corporal porque são bens
inconsistentes e passageiros e, além de tudo, só dão perfeição ao exterior e não ao
interior do homem. Tão pouco nos prazeres dos sentidos, porque são grosseiros
demais, comparados com os gozos delicados da alma. Logo, o objeto da felicidade
consiste nalgum bem que traz perfeição diretamente ao espírito, e este bem só pode
ser Deus, Sumo Bem, Soberano e Infinito. Portanto, aqui Tomás nos encaminha para
a necessidade da prática das virtudes, como condição para atingir o fim para o qual o
homem foi feito, a saber: a felicidade (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p.31-60)59.
A felicidade (eudaimonia), possível nesta vida, porém a poucos, foi abordada
por Aristóteles quando tratou da virtude da sabedoria que pode ser alcançada por
uma vida contemplativa ou especulativa (Ética Nicomaquéia, Livro X). Trata-se da
atividade mais excelente do ser humano, que o assemelha ao ser divino, pois aí o
homem contempla a verdade. Santo Tomás fala da felicidade (beatitude), que só será
possível, com a graça sobrenatural, na visão beatífica ou fruição divina que é a
realização de todas as potências intelectivas e volitivas do homem. E isto o diferencia
dos demais animais (STREFLING, 2019, p.20).
O estado laico na medida em que é entendido como o respeito e a tolerância a
religião professada pelas pessoas, seja na sua maioria, seja na sua minoria, que
compõe este mesmo estado, há de proporcionar menos conflitos e maior eficácia na
realização do bem comum, o que é a própria missão do estado. Contudo, parece-nos
que se o estado colaborar para uma desarmonia entre os diversos fins, próprios de
cada pessoa e instituições nas suas diferenças, com o próprio fim último de todas as
pessoas, será dificultado o bem comum. Há que se distinguir os fins intermediários e
diversos com o fim último que é um só, a saber, a busca da felicidade que sem deixar
de ser imanente, também é transcendente. Neste contexto é que se enquadra a
religião como uma virtude anexa da virtude da justiça.

REFERÊNCIAS

BIBLIA SACRA. Vulgata Clementinam. Salmanticae: Editorial Católica, 1959.


NASCIMENTO, Carlos Arthur. Um mestre no ofício – Tomás de Aquino. São Paulo:
Paulus, 2011.
NICOLAS, Jean-Hervé. Introdução e notas. In: Suma Teológica. V. 4. Petropólis:
Loyola, 2005.
TOMÁS DE AQUINO. Suma Teológica. Texto latino-português. V. 4 e 6. São Paulo:
Loyola, 2005.
STREFLING, Sérgio. As virtudes principais em Tomás de Aquino. Pelotas: Nepfil, 2019.
VERNAUX, Roger. Filosofia do homem. São Paulo: Duas Cidades: 1969.

59
Ao iniciar seu longo tratado sobre ética, Tomás de Aquino pergunta sobre o fim último do homem. Trata-se
da questão filosófica sobre a felicidade humana, tema desenvolvido na primeira parte da segunda parte da
Suma Teológica, nas questões 1 e 2.
123

A PLURALIDADE DO MOVIMENTO ANABATISTA, DA


REFORMA RADICAL AOS NOSSOS DIAS, COMO EXEMPLO DE
LAICIDADE, DIVERSIDADE RELIGIOSA E TOLERÂNCIA

ANGELA NATEL
Doutoranda em Teologia
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
[email protected]

RESUMO: Diante das instabilidades sócio-político-econômicas na Europa, surgiram


grupos dissidentes bem antes do que geralmente se identifica como Reforma
Protestante. Suas pautas eram determinadas pela insatisfação para com as
autoridades constituídas e a injustiça e sua diversidade, atemporalidade e quantidade
de subgrupos que surgiram sob a designação ‘anabatista’ torna quase impossível a
tarefa de delimitar suas fronteiras. Apesar dos elementos igualitários dentro dessas
comunidades terem sido objeto de inúmeras pesquisas, análises e discussões, desde
suas primeiras manifestações, o desconhecimento da história e da diversidade do
movimento anabatista acaba por criar um ambiente de intolerância e preconceito.
Assim, com o presente trabalho, objetivou-se lançar luz sobre a necessidade de se
viver a laicidade, a diversidade religiosa e a tolerância, ao perceber-se a pluralidade
na crença e prática anabatista. Utilizando-se a metodologia de análise comparativa e
sócio-histórica, foi possível verificar que a permanência do anabatismo atualmente
praticamente se resume ao menonismo, presente também no Brasil, e configurado
de diferentes maneiras, algumas inclusive diametralmente divergentes entre si –
desde comunidades que celebram o casamento LGBTQIA+, comunidades
participantes do movimento ecumênico, até outras de caráter Amish,
caracteristicamente ascéticas, literalistas bíblicos e fechadas inclusive ao
desenvolvimento tecnológico. Após essa verificação e a análise proposta, concluiu-se
que, no que diz respeito à análise das crenças e práticas anabatistas, o movimento é
caracterizado por diversidade religiosa, laicidade e liberdade de consciência, e na
atualidade há um grande nicho mundialmente reconhecido na prática da tolerância,
pluralidade e pensamento decolonial, inclusive com atuação verificável no
movimento ecumênico. Por causa de seus preceitos de fé, prática e hermenêutica
cristocêntrica e comunitária, os diversos grupos anabatistas sofreram uma
perseguição socioeconômica e religiosa cruel. Na atualidade, o que se tem visto em
todo o mundo é uma onda de intolerância, com o silenciamento de grupos
divergentes, a fogueira das inquisições virtuais queimando as reputações dos que
desafiam o sistema, a censura em inúmeras Instituições de ensino confessionais
protestantes e a resistência ao ecumenismo e ao diálogo Inter-religioso. É possível
ainda observar a mesma tendência de rotulação das correntes dissidentes, e há
124

muito a luta humana se voltou das questões interiores e pela vida para a eleição de
bodes expiatórios sociais, rotulados como hereges e cujos ensinamentos são, muitas
vezes e equivocadamente, tachados de ‘ensinos teológicos liberais’. Já chegou o
tempo em que é preciso rever a história, doutrinas e dogmas, analisar os embates
que deram voz aos vencedores e silenciaram os perdedores. Nessa guerra de
narrativas, que se tenha a humildade e a honestidade para que todos sejam
considerados iguais diante do transcendente e que não haja medo de se ouvir e
aprender com quem pensa e crê diferente.

Palavras-chave: Anabatismo; Menonitas; Tolerância religiosa; Laicidade; Diversidade


religiosa.

INTRODUÇÃO

Muitas eram as revoltas camponesas, rebeliões de proletários das regiões


mineradoras, movimentos dos chamados Lolardos60 na Inglaterra, e dos Anabatistas61
no continente europeu que surgiram juntamente a tentativas de reformas religiosas e
sociais muito anteriores às resultantes do trabalho de Pedro Valdo (século XII), John
Wycliffe (século XIV) e Jerônimo Savonarola (século XV). Esses grupos dissidentes
geralmente não lutavam de forma compartimentalizada - somente com pautas
dentro de um único âmbito da sociedade (como somente política ou somente
religiosa) – mas suas pautas eram determinadas pela insatisfação para com as
autoridades constituídas e a injustiça e a incoerência nos planos social, religioso,
econômico e político.
Dependendo da fonte histórica, é possível encontrar diferentes interpretações
a respeito dos grupos que surgiram antes e depois da Reforma. Cada historiador
selecionará o material que se encaixa melhor em sua linha de pesquisa. Alguns
historiadores menonitas, por exemplo, rejeitam a continuidade dos grupos
anteriores; outros, porém, a enxergam. Para estes, o fermento religioso que deu
origem à Reforma Protestante teve resultado também numa diversidade de
anabatismos.

A REFORMA RADICAL

Uma vez que os ensinos dos líderes reconhecidos não foram considerados por
muitos suficientes para causar uma quebra no sistema de opressão religiosa e de
aliança com o Estado, alguns grupos resolveram juntar-se em suas próprias

60
O nome pejorativo ‘lolardo’ (do holandês medieval lollaert, "fofoca") já havia sido aplicado a grupos
europeus suspeitos de heresia. O primeiro grupo lolardo foram alguns companheiros de Wycliffe em Oxford,
liderados por Nicholas of Hereford.
61
Anabatista significa rebatizados, em alemão: denominação criada pelos opositores desse movimento. Os
anabatistas, no entanto, chamavam-se de Täufergesinnte, o que significa ‘os que são batizados
conscientemente’. O termo anabatista, no século XVI estava carregado de conotação pejorativa, em função dos
eventos decorrentes da tomada de Münster pelos anabatistas radicais.
125

comunidades de fé, em torno de um estilo de vida simples, dentre eles, Thomas


Müntzer (1489-1525). Este, após seus estudos teológicos, aproximou-se do início dos
ensinamentos reformadores de Martinho Lutero (1483-1546) na Alemanha, ainda
que por breve período. Seu afastamento do movimento reformista foi desencadeado
devido à aproximação de Lutero da nobreza alemã, já que a crítica de Müntzer ia
além das questões teológicas, atingindo o acúmulo de riquezas da Igreja Católica. Em
defesa da humildade, igualdade e solidariedade, Müntzer defendia o
compartilhamento de bens e a eliminação dos não crentes, unindo religião e política.
Müntzer teve contato com um grupo de anabatistas, criando as bases teóricas das
revoluções camponesas na Alemanha, durante o século XVI. A completa associação
de Thomas Müntzer com os anabatistas, entretanto, não subsiste, até porque ele
morreu antes da fundação oficial do movimento por Conrad Grebel (1498-1526) e
Felix Manz (1498-1527), fora o fato de nunca ter sido rebatizado, o que marcava a
identidade do grupo.
Na Suíça, Ulrich Zwínglio (1484-1531), em 1522, renunciou ao papel de
sacerdote da Igreja Católica Romana e se tornou um dos principais líderes
reformistas na região. Entretanto, os anabatistas acusaram Zwínglio de trair os
princípios reformadores através do batismo infantil, do estreito vínculo entre Igreja e
Estado e a participação dos cristãos em guerras – elementos, segundo eles, não
ordenados nas Escrituras. Apesar de, assim como Lutero e Zwínglio, rejeitar os
ensinos da Igreja medieval e defender a interpretação reformada do cristianismo, os
anabatistas não se associavam politicamente a nenhuma estrutura de poder e, por
causa de suas lutas por justiça social e dignidade laboral, também foram conhecidos
como ‘ala esquerda’ da Reforma do século XVI. O nome foi rejeitado pelos próprios
anabatistas como sendo sem valor, por causa de seu teor político, mas
frequentemente utilizado em referência aos Batistas até final do século XVIII (CLARK,
2007, p.41). Além dessa designação, os anabatistas foram chamados por seus
opositores de ‘familistas’62, e de ‘irmãos’. Todos esses nomes eram aplicados
indiscriminadamente, e a maior parte da documentação de onde os tiramos provém
de registros de acusações feitas nos tribunais eclesiásticos (HILL, 1987, p.43).
A característica, porém, que primordialmente identificava um anabatista era a
doutrina de que as crianças não deviam ser batizadas. Ao rejeitarem seu batismo
infantil, os dissidentes reconheciam apenas seu novo batismo após uma confissão
consciente de fé em Jesus e um compromisso de seguir os seus ensinamentos, o que
fazia com que seus opositores erroneamente os compreendessem como

62
“Os familistas, ou membros da Família do Amor, podem ser definidos com um pouco mais de exatidão. Eram
seguidores de Henry Niclaes, nascido em Münster, em 1502, que pregou que o céu e o inferno haviam de se
encontrar neste mundo. Acusou-se Niclaes de haver colaborado com Thomas Münzer na insurreição de
Amsterdam [...] os familistas acreditavam que os homens e mulheres pudessem resgatar, na terra, o estado de
inocência que existira antes da Queda: afirmavam, segundo os seus inimigos, que atingiriam a perfeição de
Cristo. Punham em comum as suas propriedades, pensavam que todas as coisas se produziam segundo a
natureza, e que só o espírito de Deus, presente no fiel, pode compreender corretamente as Escrituras.
Converteram a Bíblia em alegorias, queixava-se William Perkins — até mesmo o pecado original. O familismo
foi difundido na Inglaterra graças a Christopher Vittels, um marceneiro itinerante de origem holandesa” (HILL,
1987, p.44).
126

‘rebatizadores’ – o sentido do termo anabatista. Dentro do entendimento anabatista,


o batismo deve ser um ato voluntário de um adulto, o que subvertia o conceito de
uma Igreja nacional, propondo a organização de congregações voluntárias de crentes.
Em 21 de janeiro de 1525, em Zurique, Georg Blaurock (1491-1529), Conrad Grebel e
Felix Manz praticaram o primeiro batismo chamado ‘batismo de fé’, ou batismo de
crentes adultos após confissão de fé – ato que marcou o nascimento oficial da Igreja
Anabatista. Apenas um ano depois, em 1526, Grebel morreu em uma epidemia,
porém seu pai foi decapitado, Manz foi afogado e Balaurock expulso da cidade por
defenderem sua fé.
O movimento logo se difundiu na Alemanha, na Áustria e em outras partes da
Europa. Um importante líder em Estrasburgo foi Michel Sattler (1490-1527), que
presidiu a conferência de Schleitheim (1527), na qual os anabatistas aprovaram sua
Confissão de Fé. Muitos outros líderes do movimento anabatista surgiram e sofreram
as consequências de suas dissidências ao trabalho dos reformadores que era apoiado
pelas elites aristocráticas da sociedade. Porém, isso não inibiu os questionamentos
(inclusive entre anabatistas), o que deixou em evidência seu caráter de livres
pensadores.
A descentralização do poder nas comunidades de fé anabatistas, permitindo
que qualquer cristão tivesse o direito de falar nas reuniões, influenciava os
anabatistas a se recusarem a pagar os dízimos, os dez por cento dos ganhos de cada
um e que, pelo menos teoricamente, serviam para sustentar os ministros da Igreja
estatal. Também se recusavam a prestar juramentos, pois não admitiam a associação
de uma cerimônia religiosa a finalidades judiciais e seculares; outros grupos
rejeitavam a guerra e o serviço militar. Outros ainda defendiam o igualitarismo ao
ponto de negarem o direito à propriedade privada. A designação anabatista
começou, então, a ser utilizada num sentido pejorativo genérico, para referir-se
àqueles que, acreditava-se, opunham-se à ordem social e política vigente.
Dentro desse contexto, a rixa dos anabatistas com os reformadores teve
repercussão política, já que as revoltas dos camponeses e proletários urbanos foram
utilizadas pelos príncipes contrários à Reforma como pretexto para denunciar os
reformadores como revolucionários políticos. Nesse sentido, o estilo de vida
anabatista poderia ser considerado, contextualmente, é claro, como pré anárquico,
pois desafiava todas as estruturas de poder vigentes, a ponto de existir a hipótese de
que os anabatistas congelaram na anarquia63 cristã tão rapidamente quanto
luteranos e calvinistas congelaram em suas posições teológicas distintas (ELLER,
2020).

63
O Anarquismo é a teoria que rejeita o governo e deseja que a sociedade seja regulada apenas por meio da
concordância voluntária. Nem todo anarquista propõe a destruição do governo pela violência, embora alguns o
façam. Alguns proponentes do anarquismo secular foram Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Max Stirner e o norte-
americano Benjamin Tucker (1854-1939). A teoria tem como pressuposto que a natureza humana seja boa, não
havendo necessidade de leis coercivas. Os anarquistas cristãos proclamavam liberdade da lei com base na
libertação de Cristo. São representados pelos Levelen e Diggers do século dezessete, pelos anabatistas e
Doukhobors e por William Goodwin, que publicou o Enquire Concerning Political Justice, em 1793 (Clark,
Gordon H. Anarquismo In HENRY, Cari F. H. (org.). Dicionário de ética cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2007,
p.41).
127

Assim, os anabatistas começaram a ser ameaçados com perseguição e


expulsão, como aconteceu na Suíça, sob a legislação do clero e do Conselho de
Zurique. Foram expulsos de Wittenberg em 1521, e pereceram, em parte, na revolta
dos camponeses em 1525. Os remanescentes se multiplicaram às ocultas e
reapareceram numerosos na Westfália e nos Países Baixos – atual região da Holanda,
onde líderes proeminentes como Menno Simons (1496-1561) – de onde surgiu a
nomenclatura menonita - adotaram características mais pacifistas em suas vertentes.
Em 20 anos, mais de 116 leis foram promulgadas nos territórios alemães através da
Europa, declarando essa "heresia anabatista" uma ofensa capital (HOOVER, 1998).
Teologicamente, as comunidades anabatistas essencialmente tinham sua
identidade em torno dos seguintes elementos: batismo após confissão de fé
consciente, Santa Ceia como símbolo e memorial, pacifismo e repúdio ao uso de
violência, radicalismo do princípio sola Scriptura, separação completa entre Igreja e
Estado, rejeição de imagens, relíquias, santos, purgatório e penitência, obediência a
Jesus, centrada em seus ensinos éticos no Sermão do Monte 64, demonstrando assim
seu amor, paciência e sofrimento, ausência de hierarquia nas comunidades de fé e
liberdade de consciência. Com o tempo, essa identidade foi tornando as
comunidades cada vez mais singulares até existirem tantos grupos anabatistas
quanto for possível.
Sua interpretação dessa realidade, bem como as constantes perseguições, fez
com que esse grupo de anabatistas se estabelecesse em colônias isoladas,
autossuficientes, com pouco contato com o mundo exterior. Durante os séculos XVI e
XVII, várias regiões da Europa acolheram refugiados menonitas, concedendo-lhes
liberdade de religião, permissão para assentamento em colônias fechadas e isenção
da prestação do serviço militar.
Sobre a questão hermenêutica, a dimensão comunitária toma grandes
proporções, uma vez que a inexistência de hierarquia nas comunidades traz o desafio
da chamada ‘comunidade hermenêutica’ (BOUWEN, 2006, pp. 97-121), através da
qual os textos bíblicos são analisados e interpretados de forma coletiva e consensual,
sem a imposição de interpretações através de uma elite clerical. Esses elementos
comunitários da fé facilitam o diálogo e até mesmo a construção de uma
hermenêutica ecumênica.
Quanto à prática da tolerância, a princípio as comunidades anabatistas
ensinavam que na difusão da religião não se pode usar a força. Entretanto, muito
dessa liberdade tem sido questionada ao tratarmos da Confissão de Schleitheim.
Porém seu quinto artigo inclui a ordem de que ninguém deveria ser morto por
questões religiosas. Assim, para as questões de divergências doutrinárias, os
anabatistas deveriam somente excluir a pessoa do convívio na comunidade. Nas
questões sociais, o artigo afirma que o dito verdadeiro cristão não deveria usar de
violência contra os inimigos ou criminosos, nem usar a espada contra os chamados
‘infiéis’, ou seja, não deveriam guerrear contra os muçulmanos e nem fazer parte das
ordens de cavalaria. Apesar da exclusão já ser considerada um ato de violência, ainda

64
Mateus 5-7.
128

assim, os anabatistas decidiram optar por ela a subtrair a vida de quem quer que seja
por razões doutrinárias.
Faz-se importante mencionar, dentro do contexto da diversidade em que os
grupos identificados como anabatistas se organizaram na história até os dias de hoje,
que seu crescimento somente tem favorecido sua complexidade. Perto do fim do
século XVII havia em torno de cento e sessenta mil menonitas na Holanda
(GIESBRECHT, 2007, p. 143). Por fim, os anabatistas migraram para o leste da Europa
e para a América do Norte e, posteriormente para a América do Sul. Desses grupos
originais se desenvolveram inúmeros segmentos com suas características próprias,
como os Quakers, os Menonitas e os Amish, dos quais muitas comunidades que ainda
atualmente vivem isoladas da sociedade (MELO, 2018, p.74).
A permanência do anabatismo atualmente praticamente se resume ao
menonismo, presente também no Brasil, e configurado de diferentes maneiras,
algumas inclusive diametralmente divergentes entre si – desde comunidades que
celebram o casamento LGBTQIA+, em um grande nicho mundialmente reconhecido
na prática da tolerância, pluralidade e pensamento decolonial, inclusive com atuação
verificável no movimento ecumênico, até outras de caráter Amish,
caracteristicamente ascéticas, literalistas bíblicos e fechadas inclusive ao
desenvolvimento tecnológico. Por causa desse tipo de posicionamento, a
perseguição, o linchamento (atualmente no âmbito virtual), as tentativas de manchar
a reputação até seu martírio definitivo tornaram-se constantes companheiros dos
que se identificam com o movimento anabatista na história.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os protestantes têm em sua conta a defesa da liberdade religiosa, o Estado


laico, a igualdade entre as pessoas e uma ética fundamentada na pessoa de Jesus.
Entretanto, como a própria história demonstra, grande parte dos protestantes foi
responsável por séculos de eventos de extrema violência e intolerância para com
cristãos de diferentes correntes, tanto católicos quanto de outras vertentes
protestantes, como os anabatistas e os de tradição arminiana. Por causa de seus
preceitos de fé, prática e hermenêutica cristocêntrica e comunitária, os diversos
grupos anabatistas sofreram uma perseguição religiosa cruel, do norte ao sul da
Europa, por todo o século XVI, amenizando durante o século XVII, passou por vários
níveis de tolerância no século XVIII até chegar à liberdade religiosa na maioria dos
países europeus.
Entretanto, na atualidade, o que se tem visto em todo o mundo é uma onda
de intolerância, com o silenciamento de grupos divergentes, a fogueira das
inquisições virtuais queimando as reputações dos que desafiam o sistema, a censura
de materiais teológicos diversos em inúmeras Instituições de ensino confessionais
protestantes e a resistência ao ecumenismo e ao diálogo Inter-religioso, na busca por
se voltar às alianças religiosas e políticas em busca de poder, o que dificilmente
caracterizaria o Reino de Deus, tanto pregado e defendido pelos protestantes.
129

Pode-se observar, também, a mesma tendência de rotulação das correntes


dissidentes, que antes eram chamadas ‘anabatistas’, viraram ‘comunistas’, depois
‘terroristas’ e novamente ‘comunistas’, em décadas de uma guerra ideológica com
bases teóricas por vezes incoerentes ou inexistentes, a fim de se caracterizar o ‘eu’ e
o ‘outro’, este último como o elemento a ser combatido. Há muito a luta humana se
voltou das questões interiores e pela vida para a eleição de bodes expiatórios sociais,
rotulados como hereges e cujos ensinamentos são, muitas vezes e equivocadamente,
tachados de ‘ensinos teológicos liberais’.
Com base no exemplo da diversidade do movimento anabatista, é possível se
trabalhar a tolerância, o respeito, a laicidade e os princípios comunitários do diálogo
e da construção de conhecimento. Já chegou o tempo em que é preciso rever a
história, as doutrinas e dogmas, analisar os embates que deram voz aos vencedores e
silenciaram os perdedores. Nessa guerra de narrativas, que se tenha a humildade e a
honestidade de se considerar a todos igualmente e que não haja medo para ouvir e
aprender com quem pensa e crê de modo diferente.

REFERÊNCIAS

BOUWEN, Frans. Aceptación mutua y peregrinaje común. In: SCAMPINI. Jorge A.;
ANDIÑACH, Pablo, R. (Orgs.). Fe y Constituición: SUS desafíos. Assemblea de la
Comissión Plenaria. Buenos Aires: WCC Publications, 2006. p. 97-121.
CLARK, Gordon H. Anarquismo In Henry, Cari F. H. Dicionário de ética cristã / Cari F.
H. Henry (org.). São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p.41.
ELLER, Vernand. Anarquia Cristã: a supremacia de Jesus sobre os poderes. Tradução
de Filipe Ferrari disponível em:
<https://espiritualidadelibertaria.files.wordpress.com/2016/07/05_n4_eller.pdf>
acessada em 04/06/2020 às 15:43h.
GIESBRECHT, Ben. Guardando a Fé. São Paulo: LMS do Brasil, 2007, p. 143.
HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça. Idéias radicais durante a revolução
inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HOOVER, Peter. The Secret ofthe Strength: What Would the Anabaptists Tell This
Generationf Shippensburg, PA: Benchmark Press, 1998.
MELO, Jansen Racco Botelho de. Por uma santidade integral: a problemática do
dualismo no pentecostalismo brasileiro e as contribuições de Karl Barth / Jansen
Racco Botelho de Melo; orientador: Luís Corrêa Lima. – 2018, p.74.
130
131

A INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL COMO INSTRUMENTO DE


CURA, EM CONTRAPOSIÇÃO A NORMOSE QUE PROVOCA O
ADOECER E A MORTE

DEUSILENE SILVA DE LEÃO


Doutora em Ciências da Religião
Faculdade Unida de Campinas
[email protected]

RESUMO: A maioria das pessoas adoece porque estão submetidas à fantasia da


separatividade, onde há um consenso que reforça essa ilusão, transformando-se em
uma miragem coletiva. Em função dessa fantasia é que nos percebemos como
sujeitos sólidos. É grande o número de normoses, e por normose entende-se como o
conjunto de normas, conceitos, valores, estereótipos, hábitos de pensar ou agir que
são aprovados por consenso ou pela maioria em uma determinada sociedade e que
provocam sofrimento, doença e morte. Atinge as pessoas atualmente, e a cada dia
surgem inúmeras e novas normoses. O consumismo, patologia que desenvolve
outras. O hiperconsumo é reforçado pela competividade, alimentada pelo sistema
educativo. Na área da alimentação existem vários tipos de normoses como, por
exemplo, o consumo de alimentos industrializados cancerígenos, açúcar refinado,
carne vermelha em excesso, refrigerantes, ou seja, alimentos que adoecem as
pessoas. Temos também o alcoolismo e o tabaco, resultado de um comportamento
estruturado em todo o mundo, que é modelado pela propaganda que associa o
consumo de álcool à beleza e a juventude, e o cigarro à virilidade, sensualidade e
charme. As pessoas atingidas por essas normoses têm sofrido suas consequências na
própria vida, sobretudo com a ausência de saúde. Existe também a normose da
invisibilidade, que atinge milhões de pessoas, maioria de trabalhadores simples e
anônimos. Ela é uma manifestação mórbida da exclusão, a mais visível das patologias
sociais. Temos também o tecnologismo e informática, que corrói e destrói o seio das
famílias. A normose na política que se separou dos valores éticos e transformou-se
num terreno de luta pelo poder que determina atos de violência e guerras. A
normose da fofoca e das Fake News é a pior e a mais terrível forma de controle
social, porque todos se vigiam. As pessoas estão presas a essas normoses e tendo
como resultados visíveis uma cegueira para a vida, muitas consequências negativas
que atingem a constituição de sua vida familiar, financeira e, sobretudo a saúde. Esta
comunicação tem como objetivo demonstrar que através da espiritualidade humana
como inteligência, constitui-se um instrumento de cura capaz de socorrer o ser
humano nestes momentos de desencontros, levando-o a compreender que há vida
fora desses comportamentos padronizados, mediante um modo de ser que decorre
de uma profunda experiência da realidade, chamada de experiência mística, religiosa
132

ou espiritual. A espiritualidade na forma de inteligência é uma capacidade interna,


inata, do cérebro e da psique humana, que extrai seus recursos mais profundos do
âmago do próprio universo. É um instrumento desenvolvido ao longo de milhões de
anos que habilita o cérebro a descobrir e usar sentido na solução de problemas.

Palavras-Chave: Normose; Espiritualidade; Saúde; Doença; Morte.

UMA PATOLOGIA CHAMADA NORMOSE

Normose é um dos conceitos mais importantes gerados pelo movimento


holístico. O paradigma holístico implica na criação de conceitos que venham mudar a
nossa maneira de ver as coisas. Tudo indica que o conceito de normose, com seu
aprofundamento e desenvolvimento, provoca um importante questionamento a
respeito do que se considera normalidade. A tomada de consciência dessa realidade
poderá facilitar uma profunda mudança na visão e na consideração de certas
opiniões, hábitos e atitudes comportamentais consideradas normais e naturais pelas
mentes mais desatentas e adormecidas.
Quando inúmeras pessoas estão de acordo com uma opinião ou uma atitude e
maneira de atuar, manifesta-se um consenso, que ditará uma norma. Quando a
norma é adotada por muitos, cria-se um hábito. A maior parte dos nossos costumes é
resultado de normas que adotamos, conscientemente, mediante seguir nossos pais e
educadores. Essas normas deveriam ter a função de preservar nosso equilíbrio físico,
emocional ou mental, bem como a harmonia e a qualidade de vida. Existe uma
crença enraizada, que, conforme tudo que a maioria das pessoas sente, acredita ou
faz, deve ser considerado normal. Deve servir de guia para o comportamento geral,
de roteiro para a educação. Nem todas as normas são boas. Em sua maioria são
geradoras de sofrimentos e enfermidades, podendo levar até mesmo à morte. Mas
como são aprovadas por um consenso social, as pessoas não se dão conta do seu
caráter patogênico.
Pesquisas recentes sobre a origem de certos sofrimentos e doenças, pessoais
ou sociais, como as guerras e a violência, na esfera ambiental, a destruição de
ecossistemas, estão a contestar o conceito de normalidade sustentado por um
consenso social. Surge uma preocupação atual de que certas normas sociais, atuais
ou anteriores, levam e levaram pessoas, grupos e a comunidade global a sofrimentos
físicos e morais (WEIL, 2003). Como exemplo, Weil (2003) cita a normose criada pela
ditadura masculina, que já dura quatro mil anos e caracteriza-se pela repressão do
feminino, preferência pela eficiência, condenação da afetividade e repressão do
amor. Temos as normoses específicas, as alimentares, as de culto ao corpo, as
políticas, as ideológicas e as bélicas. Temos também as normoses religiosas, tema
capital nesses tempos de fundamentalismos religiosos. Religiões normóticas criam
consensos de massa, jogando povos contra povos em nome de Deus. Todas essas
normoses geram doenças e mortes.
Para Weil (2003), a característica comum a todas as formas de normose é seu
caráter inconsciente. Os seres humanos, por preguiça e comodismo, reproduzem o
133

exemplo da maioria. Pertencer à minoria é tornar-se vulnerável, expor-se à crítica.


Por comodismo as pessoas seguem e repetem o que dizem os jornais e a televisão.
Essas são maneiras disfarçadas de manipular as opiniões, mudar os sistemas de
valores e anunciar que eles são adotados pela maioria da população. Assim, toda
normose é uma forma de alienação, portanto, ela sempre facilitará a instalação de
regimes totalitários e de sistemas de dominação.
Tomar consciência da normose e de suas causas constitui a verdadeira terapia
para a crise contemporânea. Trata-se de encontrar a liberdade. Seguir as normas
cegamente é tornar-se escravo. Para Leloup (2003), a normose é um sofrimento
como a neurose e como a psicose. É ela que nos impede de sermos realmente nós
mesmos. O consenso e a conformidade impedem o encaminhamento do desejo no
nosso interior.
Crema (2003) refere que em nossos livros convencionais de pedagogia, de
psicologia, de psiquiatria, de administração ou liderança, não consta a maestria de
um Buda e de um Cristo, dois ilustres representantes de uma inteligência espiritual,
do Oriente e do Ocidente respectivamente. As gerações de um futuro mais íntegro e
saudável custarão a acreditar que gerações e gerações de médicos, de psicólogos, de
psiquiatras e de outros cuidadores não estudaram os mais eminentes representantes
desses ofícios, os verdadeiros educadores da humanidade, por terem desenvolvido,
além da razão, a plenitude do coração e da consciência espiritual, dando
testemunhos belos e paradigmáticos de amor e de fraternidade, foram banidos das
escolas, das universidades e da academia, que apenas os reconhecem como gênios
menores. Para o autor, o absurdo maior dessa alienação normótica consiste em
constatar que o imperativo óbvio para superarmos esta megacrise pela qual
passamos é justamente orientar o nosso ser pela sabedoria do coração, espaço de
onde emanam a ética e os valores perenes do amor e da compaixão. Uma vez que
assimilemos esse conceito e o seu alcance, nossa visão se abre. Essa denominação
comporta-se como um poderoso agente revelador, que facilita a tomada de
consciência de aspectos essenciais para a preservação da saúde individual e coletiva.
Na concepção holística, o normótico não usa, não conhece e muito menos procura
desenvolver sua inteligência espiritual. Isso ocorre porque está preso aos costumes
pelos quais a sua vida é conduzida. Para haver mudanças na vida dessa pessoa,
primeiramente ela precisa saber que está vivendo uma patologia, ela precisa
conhecer os conteúdos que a levariam a uma reflexão sobre sua vida atual. Sem o
encontro com uma nova realidade é difícil haver um despertar da consciência, um
despertar da inteligência espiritual que seria o elo para ajudar a compreender as
situações pelas quais passa e modificá-las, pois seria impossível viver uma
espiritualidade e, ao mesmo tempo, consentir com as normoses existentes.

A PESSOA FRAGMENTADA E NORMÓTICA

A maioria das pessoas está submetida à fantasia da separatividade, pois há um


consenso que reforça essa ilusão, tranformando-se em uma miragem coletiva. Em
função dessa fantasia é que nos percebemos como sujeitos sólidos. Desenvolvemos
134

de um modo inconsciente, três tipos de atitudes básicas: apego a tudo que nos
propicia prazer, objetos, pessoas e ideias; rejeição a tudo que provoca dor ou nos
ameaça; e indiferença ao que não nos causam prazer nem dor.
As principais características desenvolvidas pelas pessoas atingidas pelo
paradigma da separatividade e pela normose são: a possessividade, desejar só para si
objetos, pessoas ou ideias, apegando-se a eles; o ciúme, quando alguém se sente
ameaçado de perder o seu objeto de apego; a competição e a rivalidade entre os que
disputam o mesmo alvo; o orgulho e a vaidade, quando se tem apego a uma
autoimagem de superioridade em relação aos outros; a agressão e a cólera, que se
produzem em consequência do ciúme, do orgulho ferido, da competição ou do
sentir-se agredido (WEIL, 2003).
Sabemos que, ao longo desse caminhar, no paradigma da racionalidade, nossa
educação foi direcionada e supervalorizada a determinadas disciplinas acadêmicas, à
superespecialização, uma vez que todos os fenômenos complexos, para serem
compreendidos, necessitam ser reduzidos às suas partes constituintes. A educação
como parte constituinte desse sistema favoreceu e continua alimentando esse
processo normótico, quando exclui o pensador de seu próprio pensar, quando
esquece os alicerces religiosos que sustentavam os valores da civilização ocidental
em consequência da ciência que passou a predominar, uma ciência materialista,
determinista, destruidora, cheia de certezas, que ignora o diálogo e as interações
entre os indivíduos, entre ciência e sociedade, técnica e política.
Gerou-se então uma educação normótica com consequências que exprimem
negatividade para o ser humano, como a crença no progresso material, no controle
da natureza, no domínio da técnica e seus efeitos sobre a industrialização de bens e
serviços, no aumento da produtividade e da riqueza, na busca do conhecimento
científico tendo como base uma visão utilitária, voltada para a previsão, o controle e
a manipulação do ambiente. Com isso foram desenvolvidos os atuais problemas
críticos de ordem social e global, cujas soluções deveremos buscar começando pela
educação, onde possamos evoluir e reconstruir um mundo melhor para nossas
crianças, adolescente e jovem, em novas bases (MORAES, 1997).

A INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL COMO INSTRUMENTO DE CURA

A vivência da inteligência espiritual como dimensão integradora na pessoa é


um potencial presente em todos os seres humanos e podemos ter acesso a ela. Ela é
habilitada para conduzir a pessoa e orientá-la por toda a vida. É capaz de romper as
barreiras da normose, da separatividade, da ilusão e da fantasia, colocando-a, de
forma inteligente, a saber, viver o momento presente, a ter saúde e, sobretudo, a
transcender e viver a infinitude do ser humano. Se tudo isso é possível de se vivenciar
a partir da vivência da espiritualidade, tendo conhecimento sobre essa dimensão
integradora na pessoa, que caminhos buscar para possibilitar essa vivência capaz de
promover a saúde e a cura? Estar consciente sobre a nossa realidade é uma forma de
minimizar o sofrimento que a ausência de saúde nos traz. É necessário reforçar aqui a
necessidade da identificação de nossos verdadeiros motivos, e isso só será possível se
135

tivermos um centro ao qual possamos lançar mão, ou seja, se estivermos olhando


uma forma diferente de viver. Zohar (2000, p. 172) descreve a moderna cultura
ocidental como uma cultura de “centro ausente”. Na medicina ocidental, o corpo não
tem um centro vital ou uma integridade unificadora. O corpo humano é
simplesmente um conjunto de partes: coração, pulmão, rins, cérebro etc. Nas
religiões tradicionais do ocidente, Deus é simplesmente algo que está longe em
relação a nós. A espiritualidade é tratada como uma dimensão apenas para ser
utilizada na religião que tem o seu monopólio, não tendo as pessoas o devido
esclarecimento que se trata de uma dimensão para ser desperta em todas as áreas da
vida humana.
Zohar (2000) relata que a ciência dessa dimensão espiritual integradora do ser
humano é um conhecimento do eu, de Deus, o Criador, e do universo criado. A
consciência de um eu e de um centro profundo não se restringe a místicos e filósofos.
O centro do eu é como um local de quietude e singularidade. É uma fonte inerente a
nós, repleta e inesgotável em si mesma, o âmago de alguma realidade mais ampla,
talvez sagrada ou divina. É simultaneamente aquilo que nos alimenta e mediante a
qual alimentamos nossa criatividade. Esse centro seria a inteligência espiritual
desperta e presente na pessoa, de forma integradora, capaz de orientar o caminhar
da vida como uma verdadeira bússola e promover a saúde e a cura.
A inteligência espiritual, então, requer que reflitamos mais sobre o que
pensamos que realmente queremos como uma referência mais ampla de nossas
motivações e finalidades básicas na vida. Andamos com uma bagagem grande
demais. Preocupamo-nos demais com forma e aparência e muito pouco com o que
importa realmente (ZOHAR, 2000). Essa distorção dos reais motivos que nos movem
leva-nos ao desespero. A ansiedade é a doença da morte. O indivíduo desesperado
desiste. Não consegue encontrar sentido e significado para a vida, porque não tem a
atenção devida ao que de mais essencial lhe move. Estar consciente sobre a sua
realidade é uma forma de minimizar o sofrimento. É necessário reforçar aqui a
necessidade da identificação de nossos verdadeiros motivos, e isso só será possível se
tivermos um centro ao qual possamos lançar mão, ou seja, se estivermos olhando
uma forma diferente de viver.
A falta de sentido na vida, por seguir as normoses atuais, causa em algumas
pessoas doenças de sentido. Alguns médicos e terapeutas profissionais começam a
enxergar com novos olhos essas doenças. Eles consideram esses aspectos como um
grito do corpo e da pessoa, pedindo atenção para alguma coisa em sua vida que, se
deixada a si mesma, resultará em dano irreversível, sofrimento físico, emocional e
espiritual duradouro até a morte.
De acordo com Zohar (2000), grande parte do sofrimento humano, e mesmo
de estados físicos crônicos, consiste em doenças de sentido. O câncer, as doenças
cardíacas, o mal de Alzheimer e outros tipos de demência que podem ser precedidas
por depressão, fadiga, alcoolismo ou abuso de drogas, seriam provas da crise de falta
de sentido, da falta da existência de um centro, levada às próprias células do corpo.
Sabemos que, ao longo do tempo, a medicina não tinha o formato que temos
hoje no mundo ocidental. A cura era praticada por curandeiros populares, guiados
136

pela sabedoria tradicional, que concebiam a doença como distúrbio da pessoa, que
envolvia seu corpo e sua mente. Uma pessoa espiritualmente inteligente verá a
saúde dessa forma. Hoje temos realidades que se aproximam muito da visão dos
místicos e de numerosas culturas tradicionais, em que o conhecimento da mente e
do corpo humano e a prática de métodos de cura são partes integrantes da filosofia
natural e da disciplina espiritual.
Ter consciência de que tal vida é possível, fazer melhores escolhas, sair do
mundo normótico, estar presente, sair da inconsciência, constitui o primeiro passo na
elevação da inteligência espiritual. Compreender que muitas são as possibilidades de
rotas e que, no curso da vida, percorrer várias talvez seja a maior realização pessoal
da inteligência espiritual. Temos de compreender que há muitos caminhos, que não
há apenas um único para ser espiritualmente inteligente, nem mesmo um melhor
que o outro. Todos são válidos e necessários.

REFERÊNCIAS

MORAES, Maria Cândida. O paradigma educacional emergente. Campinas: Papirus,


1997.
WEIL Pierre; LELOUP Jean-Yves; CREMA, Roberto. Normose: a patologia da
normalidade. Campinas: Verus, 2003.
ZOHAR, Danah; MARSHAL Ian. QS, Inteligência Espiritual: o “Q” que faz a diferença.
Tradução de Ruy Jungmannn. São Paulo: Record, 2000.
137

“LIVRAR-SE DO INIMIGO”, “EMPODERAR-SE”: CURA/SAÚDE


ENTRE CATÓLICOS CARISMÁTICOS EM PARINTINS/AM

ADELSON DA COSTA FERNANDO


Doutor em Ciências da Religião
Profº Adjunto da Universidade Federal do Amazonas
[email protected]

RESUMO: O objetivo desta comunicação reside em compreender o sentido de


cura/saúde entre os carismáticos católicos de Parintins/Am e de que forma os
“renovados espiritualmente” são “empoderados” para o enfrentamento de suas
adversidades e na transcendência de seus dramas na modernidade contemporânea.
Esta pesquisa é qualitativa e priorizou o método compreensivo. Percebeu-se, entre os
adeptos “doentes”, o discurso de que o indivíduo “sarado” se transforma, fica
“encaixado”; entre eles o sentido de cura/saúde consiste na “recomposição” do
significado da vida, “no desejo de querer viver bem”; a saúde é percebida como
sinônimo de “vida com qualidade”, “sem doenças” (como “cura das feridas”, como
processo do “alívio da dor, do sofrimento, dos conflitos pessoais”). E isto desencadeia
um processo de “empoderamento” entre os carismáticos católicos, em Parintins: eles
são empoderados no sentido de “vencer” e superar o “pecado”, e a condição
primeira para isso é ser convencido de que está “doente” e que necessita se
submeter ao processo da “cura interior”, que, por excelência, é, então, uma oração
que objetiva estabelecer uma intervenção no mundo interior das pessoas (nas
lembranças tristes e dolorosas, nos recalques, nos desajustes emocionais, nas
rejeições sofridas, nos relacionamentos traumatizantes da infância e adolescência).

Palavras-chave: Saúde/Cura interior; Católicos carismáticos; Espiritualidade


carismática; Empoderamento; Parintins/AM.

COMUNIDADE “VIDA NOVA E O SENTIDO DA CURA: UMA INTRODUÇÃO

Este trabalho foca o processo de empoderamento dos adeptos, na


Comunidade Vida Nova, onde a cura divina (PRANDI, 1997, p. 124-125) passa a ser
representada como o verdadeiro instrumento de poder dos líderes carismáticos,
precisamente na vida cotidiana. Este método se insere no carisma da cura. “Sua
eficácia está em se constituir numa espécie de administração de consolo religioso
individual, em matéria de aflições internas e externas” (WEBER, 1994, p. 318).
A expansão do carismatismo católico, no campo religioso brasileiro, trouxe
transformações importantes como a tônica nos dons do Espírito Santo e a busca do
milagre e da cura, articulada pela experiência pessoal. O poder de cura é um aspecto
138

muito valorizado e um dos atributos doutrinários do catolicismo carismático,


especialmente na Amazônia.
Na Comunidade Vida Nova, em Parintins/Am, pudemos acompanhar as
atividades e os serviços prestados e a atuação dos “conselheiros da cura/libertação”.
Tais conselheiros se representam dotados de “carisma especializado”; acreditam
estarem revestidos de autoridade para “neutralizar” as “forças diabólicas” que
frustram o sucesso, a ascensão social e a felicidade das pessoas (Entrevista,
Conselheira espiritual, 43 anos, 3 de janeiro de 2016). Daí tais forças diabólicas
precisam ser exorcizadas, mesmo que o demoníaco seja percebido até no espaço
geográfico além do social. Esse esquadrão demoníaco passa a ser percebido como
força invasora, que ocupa um território indevido, pois “o mundo deve voltar a ser
território de Deus”; “o demoníaco precisa ser desalojado e vencido por nós,
conselheiros” (discurso dos carismáticos especializados da Comunidade).
Todos os membros que necessitam desse serviço ou de atendimento
específico, nessa área, são “assistidos” no sentido de serem ensinados e socializados
a conhecer a ideologia, a perspectiva, a visão de mundo, a organização da
Comunidade; todos são levados, antes de qualquer coisa, a um processo de formação
e de participação voluntária nos processos cotidianos da vida da comunidade. Entre
os membros Vida Nova, consagrados de aliança ou não, permanecer defendendo e
exercendo o carisma da Comunidade é sempre a possibilidade de viver uma “vida de
paz”, de “serenidade”, “sem tormentos” (Entrevista, C. S. O., membro consagrado, 29
anos, 10 de abril de 2017), e com capacidade desenvolvida para transitar nas tramas
e na complexidade da vida societária e equacionar os dramas que são impostos por
“este mundo que jaz no maligno”, ressaltou, com ênfase, outra conselheira
(Entrevista, S. F. S., 35 anos, 10 de abril de 2017). Aliás, esta disposição deve ser
tomada como sinal de que o membro experimentou da “libertação” e da “cura”,
ministrada pelo líder carismático. Mas o que é possível entender por cura divina?

O termo cura divina, sinteticamente, remete aqui a quaisquer intervenções


supraempíricas, sobrenaturais num dado estado de perturbação da saúde
psicofísica, tenha ela causas espirituais ou não, e, como ponto central, seja
atribuída ao Deus do cristianismo a alteração, a melhora qualitativa do
estado morbo anterior, e, quiçá, a erradicação da doença/enfermidade
(LOPES, 2014, p. 91).

A necessidade da participação, permanência e frequência das pessoas nas


atividades da Comunidade demonstra os efeitos do processo de “libertação” pelo
qual elas se submeteram e experimentaram, ou seja, de que “a pessoa está livre
daquilo que a afligia”, como assinala uma adepta da comunidade (Entrevista, S. C. F.
C., 25 anos, 27 de abril de 2017). Assim, participando em todas as atividades e
encontros da Comunidade Vida Nova é perceptível que os indivíduos que aderem ao
seu carismatismo comunitário, de certa forma, o fazem pela motivação de quererem
“resolver seus problemas pessoais, financeiros, de afetividade, de traumas,
problemas familiares, de relacionamento, de desemprego” (Entrevista, S. F. F., 25
anos, 25 de abril 2017).
139

A conversão, imersão e identificação com o comunitarismo carismático da Vida


Nova é justificada, pela liderança da Comunidade, a partir do discurso de que o
indivíduo “liberto” se transforma, fica “conectado”, “encaixado” (Entrevista, F. C. F.,
58 anos, 25 de abril 2017). Sozinho este membro não tem força para enfrentar os
riscos e os perigos a que está vulnerável. Mas como partícipe da vida comunitária ele
pode encontrar esse suporte, o apoio necessário, o incentivo do coletivo (Entrevista,
M. S. B., membro da Comunidade, 22 anos, 27 de abril 2017). Daí a comunidade
carismática se tornar o lugar do empoderamento de todos aqueles que se sentem
desassistidos, desesperançados, dos que sofrem de vazio existencial e de decepção
com as consequências da modernidade.
Pautados na vivência radical, no modelo e missão cristã, a Comunidade
estruturou uma “equipe especializada” para “acolher” e “recolher” as pessoas que
procuram pelo serviço. A atuação da equipe consiste na “recomposição” do sentido
da vida e na “cura das feridas”, no processo do “alívio da dor, do sofrimento, dos
conflitos pessoais” (Entrevista, M. R. P., conselheira espiritual, 29 anos, 27 de abril de
2017). A cura interior oferecida na Comunidade consiste em aceitar, por parte do
ingressante, viver a radicalidade do “Cristo Ressuscitado”. “Só Jesus tem o poder de
curar; Ele é o médico dos médicos. Ele prometeu na sua Palavra: Vinde a mim todos
aqueles que estão cansados, sobrecarregados e oprimidos e Ele aliviará”, discursava
enfático o padre na celebração.
Quando compreendemos a motivação e o sentido da busca pela “eficácia da
cura interior” constata-se logo o pressuposto, por parte dos adeptos, de que os
problemas e os dramas que os indivíduos experimentam estão neles mesmos e são
eles mesmos, e, por isso, precisam organizar a sua vida “por dentro”: esta é a
condição para se obter uma “vida mais saudável, mais serena e tranquila”. Neste
sentido, a cura ocorre quando há condições corretas. Há condições fisiológicas que só
o médico está qualificado para conhecer e preparar. Há também condições
emocionais que podem ser suscitadas pelas pessoas exercitadas em psicoterapia. E
finalmente, a cura requer condições de natureza espiritual, que podem ser vistas e
acompanhadas melhor pelos que se exercitaram e tornaram práticos nas tradições
únicas da Igreja cristã vital. Em conjunto, formam uma equipe de que Deus precisa
(SCANLAN, 1975, p. 23).
No dizer de um dos líderes da Comunidade (Entrevista, 33 anos, 26 de abril
2017), na cura interior, o “paciente” precisa reconhecer e submeter-se a
“autoridade” e ao poder sobrenatural e ter a convicção de que só ele pode operar e
ter validade. É preciso reconhecer o poder curativo que vem deste tipo de poder.
Weber (1994, p. 318) já havia registrado que na medida em que se toma o poder da
cura como “administração de graça carismática”, ela está interiormente muito
próxima das manipulações mágicas. Assim, os procedimentos e os processos na cura
divina são sempre acompanhados de “oração em línguas, porque capacita o líder,
com sabedoria e discernimento, para ter sucesso em tal empreendimento”, garante o
fundador Pe. Rui Canto.
Nos encontros comunitários há sempre a necessidade pública de mostrar a
eficácia da cura divina, da força do carisma e da autoridade mediadora da cura; neles,
140

os agentes administradores desse carisma dão visibilidade às pessoas que já se


submeteram a este processo. Nos testemunhos, feitos nas celebrações carismáticas,
ouvimos pessoas que receberam rezas e orações porque “odiavam seus irmãos”,
porque não se sentiam amados pelos outros; por problemas de alcoolismo, drogas,
pessoas que tinham medo da escuridão, da solidão, do fracasso, do sexo; os que se
sentiam “oprimidos” por sentimento de culpa e inferioridade. Muitos dos nossos
interlocutores deram testemunhos de que notaram uma “grande melhora”. Ou de
que agora conseguem “lidar com o sofrimento e a dor” (Entrevista, F. C. F., 25 anos,
25 de abril 2017).
O serviço da cura interior, na Comunidade Vida Nova, fundamenta-se
biblicamente na passagem de Tiago 5, 13-16 que diz: “Alguém de vocês está
sofrendo? Reze. Está alegre? Cante. Alguém de vocês está doente? Mande chamar os
presbíteros da igreja para que rezem por ele, ungindo-o com óleo, em nome do
Senhor. A oração feita com fé salvará o doente: O senhor o levantará, e se ele tiver
pecados, será perdoado”. Deste modo, Weber sugere que a cura de almas tem como
fonte “o oráculo e o aconselhamento pelo mago em casos nos quais doenças ou
outras adversidades sugerem um pecado mágico, o que levanta a questão de quais
sejam os meios adequados para acalmar o espírito ou demônio ou deus enfurecido”
(WEBER, 1994, p. 318). Considerando esse princípio weberiano, a cura interior, por
excelência, é, então, uma oração que objetiva estabelecer uma intervenção no
mundo interior das pessoas (nas lembranças tristes e dolorosas, dos recalques, nos
desajustes emocionais, nas rejeições sofridas, nos relacionamentos traumatizantes da
infância e adolescência).

LÍDER CARISMÁTICO/MINISTRO DE RECONCILIAÇÃO E O CARISMA DA CURA

Aqueles que são chamados para o serviço da cura/libertação, na referida


comunidade, precisam dar provas de que estão capacitados para tal. Os
“escolhidos”65, chamados para atuarem neste ministério de cura e libertação, devem
dar testemunho de “vida convertida”, “ter uma caminhada de igreja”, ser
participante do grupo de oração e da comunidade, “ter uma vida de oração e
sacramento”, e possuir uma leitura desse assunto. A comunidade só deve convocar
para tal serviço pessoas consideradas “maduras” e de muitos conhecimentos; eles
são considerados uma espécie de ministros de reconciliação: exercem uma mediação
simbólica entre o divino e os que necessitam da cura. Deste modo assumem a tarefa
de soldar os laços entre o criador e a criatura, entre o servo e seu senhor; entre o
patrão e o empregado.
A atuação do líder carismático não está baseada em seus próprios projetos; na
verdade ele funciona como uma espécie de executor das ordens de um ser supremo,
explica o líder da Comunidade (Entrevista, S. P. S., 33 anos, 25 de abril 2017). Isto

65
É importante frisar que esse “escolhido” acima de tudo deve possuir uma qualidade extraordinária, tendo em
vista que uma autoridade carismática exerce um domínio sobre os outros homens, e estes se submetem e
reconhecem a autoridade daquele, baseados na crença de que o líder está revestido de uma qualidade
extraordinária.
141

quer dizer que “não é este líder que cura, pois não têm poderes para tal; ele é apenas
um representante que se sente autorizado por Deus para que possa combater o mal”
(Entrevista, membro assistente, 29 anos, 25 de abril d 2017). Já dizia um instrutor no
curso de capacitação para o ministério da cura e libertação: “nossa luta é espiritual,
não contra carne e sangue, não contra os governantes, as autoridades constituídas.
Nossa luta é contra o diabo e seus anjos dominadores deste mundo tenebroso,
contra os espíritos maus que invadiram o nosso espaço” (esta é uma referência
alusiva a carta aos Efésios, capítulo 6, 11-13). Numa interpretação do palestrante, ele
salientava que “o mal não é só o desemprego, a crise econômica, os problemas
sociais”, mas é a presença concreta de um agente efetivo, um ser espiritual vivo,
pervertido e perversor, e que a autoridade carismática precisa exorcizar do outro,
porque o “amarra”. O líder carismático precisa dar “provas” das qualidades de que
está revestido, através de milagres, de sucesso e êxito em seus empreendimentos
espirituais (WEBER, 1982).
O carismatismo da Vida Nova tem na experiência da sociabilidade comunitária
a busca pela renovação interior pessoal de cada membro. O sucesso, a felicidade, a
sorte, a ascensão social, o emprego, família estruturada, casamento exemplar estão
registrados, nessas representações coletivas e comunitárias, como expressão do
amadurecimento interior e individual. Ou seja, acredita-se que “qualquer mudança
social é sempre concebida como projeto de moralização, de uma moral do indivíduo,
do sexo e das relações mais intensas da vida familiar” (PRANDI, 1997, p. 171). Assim,
essa “renovação espiritual” é encarada como decorrência do relevo que se dá aos
carismas e às implicações trazidas pelos dons do Espírito Santo. A Comunidade Vida
Nova, assim, é esse canal por onde os fiéis se reúnem buscando a renovação
espiritual (propósito principal). Nesta direção, “usam de discursos inflamados
pautados nas leituras bíblicas, cantos de muito louvor, depoimentos de experiências
pessoais. Tudo isso, regado por muita oração e uma fé inabalável” (SANTOS, 2018, p.
5).
O carisma da Comunidade Vida Nova quer representar e tem como proposta
“o renascimento, a mudança e a possibilidade da vida nova”. Os valores considerados
profanos (irreverência, insubmissão, o pecado, a ansiedade, a corrupção, a
infidelidade, prostituição, a mentira, os problemas de saúde, desemprego, finanças
precárias) precisam ser transcendidos (“morrer”) quando se entra no universo
comunitário sacral da Vida Nova. Isto significa dizer que o adepto precisa deixar de
ser o que é e que outra condição deve substituir a precedente. A proposta é de que
“ele renasça sob forma nova” (DURKHEIM, 1989, p. 71) e é por isso que a
Comunidade Vida Nova propõe ser um lugar diferente, não quer se confundir com “o
mundo”, apesar de “o mundo” a invadir. É deste modo que

entre as motivações que levam os indivíduos a buscarem uma religião está


o desejo de garantir sua vida no aqui e agora. Se observarmos em quais
necessidades se concentram os pedidos dos crentes quando recorrem à
divindade, veremos que a grande maioria deles se refere à busca de saúde,
emprego, moradia, boas relações sociais na família e fora dela, garantia que
nenhum acidente fatal ocorra consigo ou com algum membro da família.
142
Ou seja, com suas necessidades de sobrevivência cotidiana (LEMOS, 2012,
p. 21).

Assim, o culto carismático da referida Comunidade funciona como uma das


cerimônias apropriadas onde se realiza a “morte” e o “renascimento” de seus
adeptos. Já dizia Weber (1982, p. 322) que as duas mais altas concepções de doutrina
religiosa da salvação, sublimadas, são o renascimento e a redenção. O renascimento,
um valor mágico primevo, significava a aquisição de uma nova alma por meio de um
ato orgiástico, ou através de um ascetismo metodicamente planejado. Os homens
adquiriam transitoriamente uma nova alma no êxtase; mas, por meio do ascetismo
mágico podiam tentar conquistá-la permanentemente.
O carismatismo comunitário ora analisado, na sua essência, já traz na
experiência identitária da comunidade a possibilidade de se “viver uma vida nova”. A
Comunidade exerce seu carisma a partir de uma perspectiva de transformação
individual que implica numa mudança da sociedade mais ampla. Parte-se da
perspectiva de que é possível mudar a vida das pessoas por intermédio da oração, da
leitura bíblica, do confessionário, do aconselhamento espiritual. Há um reducionismo
de complexidade aqui no sentido de que “amarrando” os “agentes do mal” há a
possibilidade de novas atitudes, novas ações e uma visão outra de mundo.
Na concepção da comunidade estudada e de seu carismatismo, a possibilidade
de mudanças societárias está na razão direta primeira de transformações na
espiritualidade dos membros que a compõe, na individualidade de cada um, e depois
tais mudanças devem acontecer na estrutura da família, tendo em vista que a família
nuclear, tradicional, como “célula-mãe da sociedade”, é fonte de uma sociedade
sadia. Ela é a fôrma que pode dar equilíbrio e coesão social. Daí muitas das suas
atividades, como vimos anteriormente, estarem voltadas para a defesa e cuidados
com a família.
Os carismáticos da Vida Nova, ao construírem uma representação de “vida
nova”, acabam estabelecendo um distanciamento e até negando a propositura
marxista que se fundamenta no pressuposto de que falar de mudança social é falar
de transformação da sociedade e do seu modo de organização. Para Marx (1989;
1991) são as condições econômicas e a luta entre as classes que devem ser
consideradas as principais causas da mudança social. Ao contrário do que Karl Marx
preconizava, na Vida Nova se defende o pressuposto de que a mudança dá-se
internamente, no interior de cada indivíduo; ela é, portanto, espiritual. No ponto de
vista desses católicos carismáticos, então, mudar a sociedade, conquistar uma vida
nova, implica mudar e reorganizar primeiro o interior do indivíduo e sua biografia.
Esta é a condição para que se imprima a transformação da estrutura social. Na
medida em que haja modificação nos valores éticos e religiosos das pessoas aí sim é
possível vislumbrar a transformação da vida social.
143

O SENTIDO DO EMPODERAMENTO: “LIVRAR-SE DO INIMIGO E DOMINÁ-LO”

Na comunidade estudada os membros são empoderados no sentido de


“vencer” e superar o “pecado”66, e a condição primeira para isso é ser convencido de
que está “doente” e que necessita se submeter ao processo da “cura interior”
(Entrevista, G. G. S., líder espiritual, 33 anos, 27 de abril de 2017). A manifestação do
“pecado” e sua recorrência pelo comportamento humano são reveladoras de que o
membro postulante tem barreiras e limitações psicológicas, sociais e econômicas,
mas é levado a entender que a própria Comunidade está organizada em serviços,
ministérios e atividades no sentido da reconstrução da sua identidade, da sua
autoimagem, autoestima, da sua biografia e empoderamento.
Tal processo de fortalecimento dos sujeitos em âmbitos sociais é retratado nos
estudos de Kleba e Wendausen (2009), onde as autoras afirmam que o processo de
empoderamento é apresentado por meio de dimensões da vida social em alguns
níveis: psicológica ou individual, onde o empoderamento abre portas para a
emancipação e aumento da autonomia e liberdade individual. De certa maneira, o
empoderamento individual pode ser referido também como intrapessoal, na medida
em que, embora seja fortemente influenciado por fatores psicológicos (como
autoestima, temperamento e experiências de vida), este tipo de empoderamento é
relacional e resulta de percepções que o indivíduo tem sobre suas interações com o
ambiente e pessoas que se relaciona (ZIMMERMAN apud HOROCHOVSKI e
MEIRELLES, 2007). Freire e Shor (1986) destacam que o empoderamento individual é
uma autoemancipação, com origens em uma percepção individualista de
empoderamento, com ênfase na dimensão psicossocial.
Nas teias do comunitarismo carismático da Vida Nova estão presentes
basicamente preocupações voltadas para aspectos morais e éticos do
comportamento de seus componentes. Está aqui a chave e a senha que pode
eliminar as “enfermidades da sociedade”: equilíbrio interno individual provoca
coesão social. “Interior desorganizado implica sociedade desestruturada”.
Uma das maneiras mais eficazes de se alcançar o empoderamento, segundo os
estudos de Paulo Freire (1979), seria por meio de um processo de conscientização,
passando de um pensamento ingênuo para uma consciência crítica, exatamente ao
contrário do que se vê na Comunidade em destaque. Porém, isso só pode ocorrer
mediante uma posição idealista, onde a consciência muda dentro de si, em um
processo de conhecimento entre a relação homem-mundo, num ato de ação-
reflexão, ou seja, ocorre nas chamadas “práxis”. Vale ressaltar ainda que a referida
conscientização não ocorre por meio da manipulação, conduzindo o outro a pensar
naquilo que se acredita; conscientizar, para Freire (1986, p. 207), é “tomar posse do
real”, constituindo-se o olhar mais crítico possível da realidade; envolve um
afastamento do real para poder objetivá-lo nas suas relações.

66
Na Comunidade estuda, o pecado significa que todos precisam ser sarados, porque estão doentes na alma,
enfermos espiritualmente.
144

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os católicos carismáticos, desse estudo, defendem a proposição de que o


enfrentamento dos problemas sociais não pode se dá de outra forma a não ser
através da mediação e intervenção santoral, ou se amparando no sobrenatural e
ainda na crença no poder divino. A Comunidade Vida Nova se constituiu como um
lugar de manifestação da emoção, do carisma comunitário, da glossolalia, do
“repouso no Espírito”, dos dons e visões espirituais, de intercessão aos deuses e
deusas e que, por isso, exclui e destitui seus adeptos de possibilidades e caminhos de
liberdade, por submergi-los num sistema heteronômico, onde reina a submissão de
valores e tradições, a obediência passiva aos costumes por conformismo ou por
temor à reprovação da sociedade ou dos deuses.
O comunitarismo carismático católico, ao querer “empoderar” seus
partidários, se articula na razão direta de contribuir com a produção de laços de
solidariedade, no fornecimento de nomia social, significação identitária, sentido e
segurança existencial e equilíbrio da sociedade na modernidade contemporânea;
como também dispõe de um sistema de valores comunitários e códigos éticos que
servem de referências condutuais.
Na representação doença/saúde que os católicos carismáticos fazem, os
problemas e os dramas que os indivíduos experimentam estão neles mesmos e são
eles mesmos, por isso precisam organizar a sua vida “por dentro”: esta é a condição
para se obter uma “vida mais saudável”, com longevidade, na qual há a necessidade
da atuação de “conselheiros da cura” (dotados de “carisma da cura especializada”):
eles acreditam estarem revestidos de capital simbólico para “neutralizar” as “forças
diabólicas” que atuam no adoecimento, que frustram o sucesso, a ascensão social e a
felicidade das pessoas; tais forças diabólicas precisam ser exorcizadas. A chave e a
senha que pode eliminar as “enfermidades” reside no equilíbrio interno individual.
“Interior desorganizado implica indivíduo “com ausência de saúde”.

REFERÊNCIAS

DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares de Vida Religiosa: o sistema totêmico na


Austrália. São Paulo: Paulinas, 1989.
FREIRE, Paulo. Conscientização. São Paulo: Cortez e Moraes, 1979.
FREIRE, Paulo; SHOR, Ira. Medo e ousadia – o cotidiano do professor. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1986.
GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1989.
KLEBA, E. M.; WENDAUSEN, A. Empoderamento: processo de fortalecimento dos
sujeitos nos espaços de participação social e democratização política. Saúde e
Sociedade. São Pulo, v. 18, n. 4, p. 733-743, 2009.
LEMOS, Carolina Teles. Religião e tecitura da vida cotidiana. Goiânia: PUC GO, 2012.
LOPES, Marcelo. Pentecostalismo no Brasil e a cura divina: um olhar histórico e
fenomenológico. Sacrilegens, Juiz de Fora, v.11, n.1, p. 89-110, jan.-jun./2014.
145

MARX, Karl. Contribuição para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Mandacaru,
1989.
_____. A Questão Judaica. 2 ed. São Paulo: Moraes, 1991.
PRANDI, Reginaldo. A religião do planeta global. NER - Núcleo de Estudos da Religião.
Petrópolis: Vozes, p. 63-70, 1997.
SANTOS, Ana Paula dos. Renovação Carismática Católica: uma análise sociológica da
experiência do Espírito Santo na vida dos fiéis. Artigo (Bacharelado Interdisciplinar
em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Juiz de Fora – Juiz de Fora, 2018.
SILVA, C.; MARTINÉZ, M. L. Empoderamento: processo nível y contexto. Psykhe,
Chile/Santiago, v. 13, n. 1, p. 29-39, mai. 2004.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5. ed. Rio de janeiro: LTC, 1982.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociedade compreensiva. São
Paulo: Imprensa Oficial, v. 1, 2004a.
146

TRANSCENDENTALISMO: O PODER CURATIVO EM TRÊS


TESTEMUNHOS

ANA MARIA DE SOUSA


Doutoranda em Ciência da Religião
Pontifícia Universidade Católica São Paulo
[email protected]

RESUMO: No tentame de se entender o significado devocional de Nossa Senhora,


coletamos três depoimentos aleatórios, que afirmam terem sido socorridos pela
figura feminina, exponencial do catolicismo, num momento de extrema dificuldade.
O objetivo é analisar esses testemunhos na ótica do sujeito, em relação à esfera
religiosa, buscando elementos narrativos para descrever a fenomenologia. Leva-se
em consideração as matrizes do portento religioso, o diálogo com a realidade, o
campo simbólico, a ética, em relação à veracidade das informações e preservação das
identidades. Acredita-se que em um momento de crise extrema, o indivíduo se liga à
religiosidade e passa a atribuir ao divino uma “força abrupta”, vinda de um poder
revelador curativo ou de salvamento. As entrevistas foram feitas na cidade de São
Paulo, de 2017 a 2019, com homens e mulheres acima de 40 anos, escolhidos a esmo,
entre diversas profissões e crenças, cujo traço em comum é o relato do encontro
anômalo com Nossa Senhora, quando as chances de cura ou de sobrevivência não
mais existiam. Percorre-se a seguinte trajetória: exposição do pressuposto da
pesquisa, conceitualização de termos, exposição dos depoimentos e debate com as
fontes. Em seguida, expõe-se as falas, colhidas em primeira pessoa, respeitando as
indicações da memória verbal, algumas teorias da psicologia da religião, cuja uma das
correntes classifica essas experiências religiosas como “válidas”. Da base empírica
chega-se à conclusão de que as “aparições” da Virgem Maria, em episódios pontuais,
acarretam nos fiéis a sensação de paz e a oportunidade de o evento virar um marco
divisório na vida do indivíduo. Enfim, o abalroamento extra-sensorial se centra na
mãe de Jesus, se conecta a uma segunda chance de sobrevivência e permeia em
outros questionamentos sobre a interferência transcendental no momento entre vida
e morte dos entrevistados.

Palavras-chave: Nossa Senhora; Testemunho; Experiência religiosa; Cura.

As experiências religiosas com Nossa Senhora denotam reflexões sobre o


sujeito que enfrentou situações consideradas catastróficas e atribui à mãe de Jesus
Cristo, a resolução instantânea do problema. Acreditamos que das interfaces das
vivências, envolvendo o sagrado, possam ser apontados elementos simbólicos do
cotidiano, passíveis de dubiedades, mas nesse artigo são documentados pelas
matrizes do testemunho.
147

Trabalhamos com a hipótese de que em circunstâncias denominadas como


urgentes e drásticas, os devotos apelam a Nossa Senhora e afirmam que Ela responde
ao chamado e interfere subitamente. A conceitualização do termo testemunho, na
pesquisa religiosa, elenca esclarecimentos no embate com o transcendental, através
das seguintes perguntas informais: você teve alguma experiência com Nossa
Senhora? O que aconteceu?
Montamos uma sondagem de campo, com fim exploratório, cujo público-alvo
são pessoas acima de 40 anos, entre católicos e evangélicos, de diversas profissões,
moradores no Estado de São Paulo, interpelados pessoalmente entre 2017 a 2019.
Selecionamos três depoimentos para ilustrar esse estudo cujos integrantes assinaram
o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).
Para fins de proteção da identidade do entrevistado, utilizaremos apenas o
primeiro nome. Solicitamos a assinatura do termo de autorização e responsabilidade
garantindo a veracidade das informações, reforçando assim o nosso
comprometimento com a preservação das informações. Gravamos a conversa pelo
celular, sem interrupções, deixando-os livres para descreverem o acontecimento,
conforme preconiza a metodologia da história oral. Em comum relatam que em um
instante caótico receberam a intercessão de Nossa Senhora e se mostraram
acessíveis em pormenorizar o episódio.
Algumas correntes da Psicologia da Religião atribuem a centelha entre o
humano e o divino como fenômenos construídos pela mente humana, comuns em
estados alterados e de divisão da consciência, podem ser induzidos por vários
transtornos mentais, patológicos, fisiológicos, psicossociais etc. e devem ser
analisados à luz das teorias psicológicas, parapsicológicas, sociopsicológicas,
neurofisiológicas, entre outras. Flournoy, por exemplo, remete a episódios do
“subconsciente‟. Shamdasani imputa à mente a capacidade de criar romances
“míticos subliminares”. Impulsionados pelos argumentos de William James, que se a
vivência foi positiva e acarretou coisas boas para o sujeito, não se tem como invalidá-
la, iremos apresentar essas epifanias espirituais, no viés do testemunho.
Consideramos que testemunho estipula que um indivíduo está apto a depor ou
esclarecer, o que ocorreu quando esteve numa situação atípica e ele sente a
necessidade de expor a cena, segundo suas próprias impressões, perplexidade e
argumentos, sem necessitar de debates ou que outras pessoas confirmem ou lhe
contradigam. O próprio protagonista narra e dá fé. Este depoente pode até inventar
parte da história, mas se assim fizer, entrará em débito com a sua consciência, por
isso procura oferecer sua versão, a mais próxima possível da realidade, pois a ética
pessoal é colocada em xeque-mate.
Juan Gargurevich (1982) propõe o testemunho como qualquer relato histórico
edificado com base nas impressões e visão pessoal do autor. Gèrard Genette (1995)
assinala ao encadeamento do discurso, em contar fatos ou fictícios pela oposição,
repetição, entrosamento etc.
Para entendermos como se constitui essa categoria no prisma religioso,
alegamos que, apesar de os fatos terem possibilidades de causar dúvidas, nos
apegaremos às premissas: se alguém forneceu de livre e espontânea vontade sua
148

versão da história, respondeu à questão e assinou o termo de consentimento para


publicação, logo não podemos refutar. Vamos tomar os acontecimentos como
verdadeiros, defendendo que devemos acreditar em algumas coisas para a vida ter
sentido. A intenção é reconstruir e dialogar com essas declarações, sob o enfoque
devocional, buscando elementos, que possam contribuir para descrever a
fenomenologia.
Na treliça religiosa, os depoimentos empíricos se entremeiam em associações
simbólicas, numa rede combinatória, com reações diferenciadas, impensáveis, que de
certa forma se conectam ao acaso. Paulo Nogueira identifica essas conjunturas
emblemáticas como organizadas em relação a outros símbolos: "[...] uma cadeia
infinita de combinações é possível, com resultados imprevisíveis” (NOGUEIRA, 2016,
p. 446). Nesse gancho, situamos o primeiro imprevisto que aconteceu com Maria
Lúcia, 57 anos, se autodeclara faxineira e evangélica. A voz, em primeira pessoa:

Em 2010, o meu irmão João Francisco tinha 32 anos, teve um aneurisma


cerebral e foi internado no hospital das Damas, em Osasco. Os médicos
chamaram a família para se despedir dele, porque iam doar seus órgãos.
Chegou a minha vez, eu estava muito triste, vendo ele naquele estado na
UTI [...] então, mesmo eu sendo evangélica fiz um pedido para Nossa
Senhora da Aparecida: pedi para o meu irmão sobreviver. Eu não estava
acreditando nos médicos, mas sim Nela e eu precisava de um sinal. Ele
estava todo amarrado, mão amarrada, os pés amarrado e eu perguntei
para mim mesma: “como é que eu vou ver um sinal, se o meu irmão está
amarrado?” Fiquei ali, só olhando e pensando que eu ia sair dali, com um
sinal, sim. E perguntei de novo para Ela, se o meu irmão ia viver ou não. Daí,
o olho do meu irmão piscou, começou a tremer o olho dele. Sai do hospital
com a certeza que o meu irmão ia viver e os médicos tinham dado três dias
para desligar os aparelhos. Aí, no segundo dia, o meu irmão foi para o
quarto e está vivo até hoje, sabe? [emocionada]. Eu agradeço muito a
Nossa Senhora da Aparecida e eu não esqueço disso jamais. Sou evangélica,
da Igreja Plenitude do Trono de Deus, mas tenho maior respeito pela Nossa
Senhora. Agradeço Ela muito. Nunca vou esquecer, independente de
continuar evangélica, até o resto da vida ou não, mas Ela fez um milagre na
vida do meu irmão e para sempre eu serei grata a Ela [sorri]. (LÚCIA, 2017,
informação verbal).

Neste caso, esbarramos no limite entre a metáfora religiosa e a psicológica. A


espiritualidade se posiciona como arrimo da dimensão profunda, frente à ideia da
morte do ente querido. No testemunho religioso, a existência do fenômeno pode ser
questionada, em virtude da postura do narrador e da convicção que ele impõe sobre
a própria história. As descrições como a de Maria Lúcia podem ser consideradas
inexplicáveis à luz da razão. Esta mulher acessou a supra realidade, porque estava
desesperada, inconformada diante da possibilidade da perda do irmão. Renunciou
seus valores evangélicos, que refutam a imagem de Nossa Senhora, para ir à
contramão do que prega a sua religião. Maria Lúcia aflita, apelou à santa católica,
ficou ao lado do doente, à beira da morte, até que o movimento dos olhos dele se
deu. A fé de Maria Lúcia o salvou? Neste caso, preferimos manter distância porque
149

não temos subsídios suficientes para comprovar ou denegar. E no remate da


conversa, ela nos confidenciou, feliz: “o irmão sobreviveu e goza até os dias de hoje
de plena saúde”.
A próxima crônica nos chegou por intermédio de João Marcos, de 43 anos,
comerciante de verduras.

Era uma noite de chuva forte. Eu e meus amigos saímos de um bar, em São
Paulo, lá pelas duas da manhã, um pouco altos, a gente tinha bebido, mas
queria ir embora, antes que a chuva engrossasse mais. Numa curva, indo
para Ibiúna, perdi o controle do carro [voz embargada], o carro derrapou e
virou umas quatro vezes. Eu me lembro de estar preso nas ferragens, pedi
para Nossa Senhora para não morrer [...], o carro ficou com o teto para
baixo, a capota entortou no mesmo nível do pneu. Deu perda total. Não sei
como, mas Ela me tirou das ferragens. Os meus amigos morreram. Foi
muito triste. Os policiais que me socorreram e quem ainda hoje vê as fotos
do acidente, não acredita, como é que eu pude sobreviver, com o estado
que o carro ficou e porque eu saí sem nenhum arranhão [voz abalada]. Eu
mandei tatuar a imagem de Nossa Senhora Aparecida nas minhas costas.
(MARCOS, 2017, informação verbal).

Num ímpeto, ele levanta a camiseta e mostra o desenho, em sinal de


agradecimento. Os seus olhos estão marejados. Qual a razão desse homem ter sido o
único a se salvar em meio a um veículo totalmente destroçado? Não temos dados
para explicar. Podemos nos ater a Yves Reuter, que centra a função testemunhal da
narrativa “no grau de certeza ou distância que o narrador mantém em face da
história que conta” (REUTER, 2002, p. 66). Nesse caso, ao reviver o momento, o
protagonista se mostrou totalmente envolvido e emocionado com a perda dos
colegas e pelo fato de ter sido salvo intacto. A vida por um fio, experimentada dentro
da crença, diante do inseguro significado do ficar ou partir, até o sujeito obter a
salvação.
William James aponta que a experiência religiosa abrange “sentimentos, atos e
experiências do indivíduo em sua solidão, na medida em que estão relacionados com
o que quer que ele possa considerar o divino” (JAMES, 2002, p. 29-30). Dessa
afirmação, puxamos o último portento, de Antônio Carlos, 65 anos, músico:

Num final de tarde, fui surpreendido por alguns homens armados, que
diziam que eu iria pagar pelo que tinha feito. Eu não estava entendendo
nada, mas depois descobri que estavam me confundindo com um inimigo
deles perigoso. Não adiantou, eu falar que não era eu, pedi muitas vezes
para eles conferir meus documentos [ofegante] e ver que não era eu. Me
colocaram um capuz preto [olhar triste]. Eu rezava, dizia que tinha esposa,
filhos e netos. Me mandaram calar a boca. Fui levado para um descampado
deserto, no meio do nada, para ser desovado. Eu chorava igual uma criança
[lágrimas brotam de seus olhos], eu rezava a Ave-Maria, sem parar. No
momento em que senti o cano frio do revólver na minha cabeça, senti
mesmo o gatilho sendo puxado e a bala saindo, então vi Nossa Senhora, de
manto azul descer, sob a forma de um cone, e ficou entre o atirador e eu,
bem ali na minha frente. Nesse momento, então, o assassino abaixou o
150
revólver e disse que eu não era o mesmo homem que procuravam, mas
alguém que eu era muito parecido. Eu trabalhava como cantor de barzinho
a barzinho à noite toda e bebia muito. Depois disso, larguei a boemia e hoje
sou membro do coral da igreja. Vivo para louvar e agradecer a Nossa
Senhora. (CARLOS, 2019, informação verbal).

Cientificamente, não temos condições de explicar a razão de o delinquente


desistir da ideia de matar Antônio Carlos, no último momento, e ele sentir a presença
forte da mulher de manto azul, na sua frente. Na narrativa religiosa, o
testemunhador se sente obrigado a ser fiel, possivelmente por ter uma espécie de
dever e agradecimento com o divino, por isso reconhece a necessidade de relatar sua
experiência religiosa e se incumbe de fazer com que muitos saibam de seu prodígio.
Valle complementa e explica a função do colo ou aconchego em situações
extremas: “É uma experiência de comunhão e arrebatamento […] no qual o amor e a
intimidade (com o divino) tomam proporções que a destacam inteiramente do que se
experimenta no dia a dia [...] um ter os sentidos tomados por uma pegada do poder
divino” (VALLE, 2008, p. 69). Este ímpeto podemos aplicar à intervenção de Nossa
Senhora.
Enfim, da nossa hipótese sobre a possível “interferência” da Virgem Maria,
buscamos testemunhos de enfrentamentos terríveis, os quais afirmaram que Ela
“rapidamente solucionou o problema”, resultando numa sensação de bem-estar. A
investigação demonstra pontos positivos: nas três situações de morte eminente, o
narrador se colocou diante do incompreensível, do etéreo, do oculto, do invisível,
expôs sua aflição, pediu ajuda, recebeu e então confiou o seu resgaste ao
transcendental, que lhe proporcionou uma segunda chance de viver. O contato com o
sagrado nesses lampejos espirituais teve curta duração, possivelmente possibilitou a
legitimação dos aspectos devocionais, o desencadeamento de mudanças de
paradigmas, tornando-se agente modificador em suas vidas para melhor. É que,
segundo estudiosos da psicologia da religião, geralmente após esses rompantes com
o divino, normalmente o sujeito se liga às ações beneficentes, se aproxima mais da
religião etc., pois uma zona do cérebro foi estimulada, onde o comportamento se
mantinha estático etc.
Sobre a veracidade ou não dessas experiências religiosas, nos isentamos,
porque esbarra-se no limite epistemológico. Não temos como afirmar ou negar se as
condições de alijamento foram operadas pela mente, conforme predica a ciência ou
se houve ingerência transcendental. Nos limitamos a transcrever o que nos
contaram, enfatizando que os três não conseguiram segurar a emoção ao
pormenorizar o choque que vivenciaram, e reforçaram o elo de confiança em Nossa
Senhora.

REFERÊNCIAS

CARLOS, Antônio. Depoimento 3 [dez. 2019]. Entrevistador: Ana Maria de Sousa. São
Paulo, 2019.
151

GARGUREVICH, Juan. Gêneros Periodisticos. Quito: Ciespal, 1982.


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cotidiana e sua associação com crenças, atitudes e bem-estar subjetivo. Boletim
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João Décio; USARSKI, Frank (Org.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo:
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REUTER, Yves. A análise da narrativa. Rio de Janeiro: Difel, 2002.
SOUSA, Ana Maria de. No doce das crônicas de Rubem Braga, o testemunho de um
narrador de alguns fatos de 1964 a 1967, nas páginas da revista Manchete. 2012.
Dissertação (Mestrado em Literatura Brasileira) - Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2012. Disponível em:
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VALLE, Edenio. Psicologia e Experiência religiosa. São Paulo: Loyola, 2008.
152

O USO DA AYAHUASCA EM EXPERIÊNCIAS DE CURA: UMA


REVISÃO BIBLIOGRÁFICA

JÉSSICA MARTINS ALVES


Mestranda em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

RESUMO: Nas últimas décadas, os estudos de religião estabelecem um profícuo


diálogo com a psicologia. Dentre as contribuições neste sentido, as conexões entre o
humano e o divino, o mundano e o espiritual ou transcendente tem sido explorado a
partir de experiências ocorridas sob estados alterados de consciência, geralmente
induzidos pelo uso de substâncias alucinógenas. É este o caso associado às práticas
ritualísticas de consumo da Ayahuasca nos centros urbanos. Com o objetivo de
familiarizar a ayahuasca à vertente de cura, os rituais “neoayhuasqueiros”
incorporam elementos de referencial indígena e de outras vertentes religiosas,
formando um sincretismo religioso. Medicinas da floresta são consagradas, enquanto
cânticos xamânicos e espiritualistas são utilizados como indutores, de forma que a
ayahuasca não seja apenas um chá alucinógeno, mas sim uma “medicina sagrada”.
Estudos comprovam que o uso ritualístico da substância é mais potente que seu uso
recreativo, devido ao contexto, músicas de indução, simbologia e expectativas da
pessoa. O presente estudo objetiva analisar possíveis resultados de cura mediante o
uso ritualístico da ayahuasca. A partir de uma revisão bibliográfica, problematiza as
explicações correntes sobre os possíveis efeitos de psicodélicos que ligam a
ayahuasca com a vertente de cura de desequilíbrios físicos, mentais ou espirituais.
Como resultado, espera-se contribuir para a compreensão do atual campo plural das
religiões e religiosidades no Brasil, associado, em algumas de suas vertentes, à busca
de tratamentos alternativos, por pessoas insatisfeitas com resultados de medicinas
tradicionais. Movimento que repercute, por sua vez, na configuração de um campo
de estudos multidisciplinar, como aquele que constitui as atuais Ciências da Religião.

Palavras-chave: Ayahuasca; Medicina sagrada; Curas alternativas; Espiritualidade.

Ao se tratar do fenômeno da secularização, tradicionalmente associado a uma


das principais dimensões da modernidade ocidental, o sociólogo Ricardo Mariano
alega que a separação entre Igreja e Estado no Brasil não colocou fim aos privilégios
católicos e nem à discriminação estatal e religiosa das demais crenças, práticas e
organizações consideradas mágico-religiosas. (Mariano, 2011, p. 246). Observa-se
uma acelerada reconfiguração do cenário religioso contemporâneo. Em busca de
liberdade, as pessoas estão decidindo por si mesmas em que acreditar. Isso leva à
153

perda da importância da religião institucional, mas não à perda da importância da


espiritualidade ou da crença em Deus.
A antropóloga e socióloga Deis Siqueira destaca a construção de novas
religiosidades ou novas espiritualidades a partir da atual existência de um imenso
trânsito entre grupos, religiões, rituais, doutrinas e práticas, aspecto este
fundamental para a reflexão sobre os elementos em torno dos quais se ancora a
busca pelo sagrado na contemporaneidade (Siqueira, 2003, p. 32). Um dos fatores
capazes de esclarecer a atual expansão de novas religiosidades no Brasil, justamente
a flexibilidade das adesões e a pluralidade das práticas ritualísticas no espaço público.
São inúmeras as novas formas de afirmar o sagrado, bem como das adesões
simultâneas e dos trânsitos religiosos na contemporaneidade.
O novo contexto interpretado a partir dos ritos e narratividades plurais, que
definem as novas religiosidades, reforça o conceito de religião formulado em 1926
por Clifford Geertz na perspectiva da antropologia: “Uma religião é (1) um sistema de
símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras
motivações nos homens por meio da (3) formulação de conceitos de uma ordem de
existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que as
disposições e motivações parecem singularmente realistas” (Geertz, 2019, p. 67).
Tendo por via tal definição, Eduardo Rodrigues da Cruz alega nela conter algumas
características básicas como símbolos, códigos, narrativas, valores e normas, crenças
e divindades, mitos e rituais. Considera uma definição de religião característica do
ocidente, onde as pessoas vêm sentindo que as religiões tradicionais não lhes
oferecem mais conforto espiritual, e, por consequência, tornaram-se individualistas e
tribais ao mesmo tempo que almejam gratificação imediata (Cruz, 2004, p. 22). O
atual perfil religioso brasileiro apresenta-se como uma espécie de caleidoscópio
cultural, devido à herança diversificada e a abertura para o novo.
Segundo Sebastião Hugo Brandão - teórico das Ciências da Religião - a religião
não está se extinguindo, mas sendo ressignificada e adequada a uma nova demanda
sociocultural, a qual o presente trabalho pretende problematizar e demonstrar, a
partir da amostragem eleita, quais são estas demandas. Como o rito cria um contexto
cultural onde essas demandas são exteriorizadas, ressignificadas e, até certo ponto,
atendidas. As religiões continuam fortalecendo-se e exercendo influência na
sociedade, permitindo que atualmente os indivíduos desenvolvam autonomia
racional e emocional, através das quais, a religião não institucionalizada torna o
indivíduo livre para construir sua própria identidade social e religiosa (Brandão, 2016,
p. 67).
Estudioso do que vem sendo denominado por “Novos movimentos religiosos”,
Silas Guerriero enfatiza a identificação de muitas vivências pelos próprios praticantes
como tentativa de conquistar uma espiritualidade superior, sendo também uma nova
e alternativa forma de vivenciar uma religiosidade. Ocorre intima conexão entre
corpo – local de realização do ser em sua total plenitude - e espírito. Mente, corpo e
espírito estão interligados, não havendo justificativa para a busca da elevação
espiritual se o corpo permanecer doente. (Guerriero, 2018, p. 114). Surgiram assim,
múltiplas e diversificadas vias de tratamento e cura, sendo-nos permitido nesses
154

ambientes, encontrar manifestações desconcertantes e curiosas da espiritualidade


contemporânea.
Historiadora da Escola Italiana de História das Religiões, Silvia Mancini defende
a "eficácia simbólica" em método da análise dos ritos, tendo interesse pelos
processos operacionais, aspectos técnicos, ações, efetividade, práticas dos atores em
local de estudo de discursos, representações e valores da experiência subjetiva, onde
a atenção é voltada ao modo de operação dos atores (Mancini, 2018, p. 46).
Considera o estudo do eu dividido e dissociado, ser um modelo ideal, e em alguns
casos, condição essencial para corrigir distúrbios que afetam o corpo e o espírito. A
Religião como Técnica caracteriza-se por forçar seus atores a agirem para recuperar o
controle sobre si mesmo e sobre o mundo. A eficácia ritual então é um instrumento
de técnicas, dispositivos, propósitos e resultados concretos da ação.
Estudioso do xamanismo, Marcel de Lima Santos esclarece aceder por
xamanismo o fenômeno alusivo á prática de um xamã, como sendo aquele que
manifesta poderes da cura mística, suficiente para restaurar males mortíferos com a
complacência de forças invisíveis da mãe natureza, as quais são, por ele, controladas
(Santos, 2007, p. 9). È uma das mais primitivas conformações de vocação religiosa a
qual utiliza como instrumental de trabalho o êxtase. Este estado pode ser atingido de
diversas formas, sendo citado como principal para o presente estudo, a ingestão da
planta sagrada ayahuasca, principal substância utilizada nos rituais do Santo Daime.
Em 1930 Raimundo Irineu Serra, conhecido como Mestre Irineu, iniciou a
estruturação uma religião brasileira sincrética, o Santo Daime. Há evidências de que
Irineu iniciou uso da ayahuasca com xamãs de uma etnia da família linguística pano.
Mestre Irineu, após ingestão da bebida sagrada, tenha recebido da Virgem da
Conceição - considerada rainha da floresta - uma missão: recriar no mundo uma
santa doutrina; eis o mito da fundação da religião daimista (Fernandes, 2018, p. 293).
Atributo com especial importância na doutrina, é seu caráter eclético, o qual mescla
elementos de cultos afro-brasieiros, práticas indígenas e caboclas, espiritismo
kardecista, diversas tradições esotéricas europeias e em especial, o catolicismo
popular. Os rituais são chamados trabalhos e sempre realizados com a ingestão da
ayahuasca como sacramento religioso. Anos depois, em 1961, José Gabriel da Serra,
conhecido como Mestre Gabriel, fundou a União do Vegetal (UDV), também
mesclando elementos de diversas tradições culturais, com consumo da ayahuasca
(denominada da UDV por hoasca) e tendo os rituais chamados por sessões.
Atualmente é grande a quantidade de estudos que discorrem sobre a
ayahuasca, planta sagrada ingesta com intuito de atingir o êxtase. È uma bebida
psicoativa realizada com duas plantas, o Banisteriopsis (conhecido por cipó mariri) e
psychotria viridis (conhecida por chacrona). Como diferencial esta pesquisa adiciona
para análise uma vertente inovadora de pesquisa, não priorizando a ayahuasca, mas
sim a ritualidade como um todo. Pretende-se pensar como tais ritos incorporam e
ressignificam a tradição e, ao mesmo tempo, enquanto técnica, desenvolvem um
ambiente cultural-mágico onde determinadas demandas são exteriorizadas e
atendidas. Cria-se um contexto a-histórico, onde tradição e modernidade se fundem
numa narratividade ritualística eficaz na solução de problemas contemporâneos.
155

No Brasil contemporâneo, desenvolveram-se religiões não indígenas que


fazem uso de plantas popularmente consideradas “alucinógenas”. Antigas tradições
indígenas vêm sendo reelaboradas e adaptadas às atuais possibilidades urbanísticas,
recebendo e abraçando influência de diferentes religiões e culturas, como o
xamanismo, umbanda, kardecismo, cristianismo, candomblé, budismo, entre outras.
Não somente as citadas acima (Santo Daime e UDV) surgem também, através dos
Novos Movimentos Religiosos (NMR) outro conceito - “neoayahuasqueiros”, o qual
denomina os sujeitos que praticam rituais com consumo da ayahuasca nos centros
urbanos. Diferentemente do xamanismo indígena primitivo, os neoayahuasqueiros
representam uma nova construção, ainda em processo de elaboração, onde
apresentam elementos de referencial indígena e também de outras vertentes,
formando assim, um pluralismo religioso, onde tradição e modernidade se fundem
no rito.
Para entender a experiência cultural e subjetiva do uso da ayahuasca em ritual
religioso, é necessário ir além da análise dos efeitos psicoquímicos da substância
(Langdon, 2009, p. 69). É necessário olhar transdisciplinar em tentativa de
compreensão do ritual e de sua provável eficácia. Os rituais podem ser denominados
trabalhos, onde produções simbólicas e o imaginário fundem-se com o corpo e o
pensamento. O trabalho espiritual tem por objetivo trabalhar o corpo em sua
totalidade (Cemin, 2009, p. 349). Alega Santos, que o sujeito que não participa de
forma ativa do ritual, não é capaz de compreender o significado real, e acaba por
enxergá-lo como algo simplesmente rústico (Santos, 2007, p. 78). Por trás da
brutalidade dos ritos, há um propósito anafado de significados, notados apenas por
aqueles com disposição em assentir os considerados “mistérios”. O estado de êxtase
tende a ocorrer em representação cerimonial envolvendo a ayahuasca, mas também
acoplados com expressões artísticas, danças, teatro, música e poesia, com propósito
somatório para alterar ou induzir, o estado de espírito dos participantes.
Tratando-se do propósito da “cura”, inúmeros estudos já abordam os aspectos
psicoquímicos da ayahuasca, sendo uma bebida preparada a partir da folha da
chacrona e o cipó mariri. A dimetiltriptamina – DMT contida na chacrona é a
molécula responsável pelos efeitos psicoativos da bebida, molécula produzida pelo
nosso organismo em pequena quantidade, que é metabolizada rapidamente por uma
enzima chamada monoamina oxidase – MAO. Ingerir apenas DMT não produz efeito
psicoativo devido à molécula ser metabolizada antes de chegar ao cérebro. O cipó
mariri, possui substâncias como harmina, harmalina e tetraidrormina, as quais
desativam a enzima MAO – inibindo-as, sendo assim IMAO. Estudos mais recentes
indicam uma região cerebral denominada “default mode network” DMN, a qual é
associada ao pensamento reflexivo de consciência e ao ego, o qual tem sua atividade
reduzida (Fanhofmann, 2019, p. 9). Os efeitos psicodélicos desencadeiam o tão
almejado processo de desintegração do eu, ou desintegração do ego.
A neurociência aponta como modelo comum dos efeitos de psicodélicos que
interpretam a ayahuasca, ser o aumento da conectividade cerebral, a capacidade de
acessar memórias esquecidas, as quais são jogadas à possibilidade de serem
revividas. Não só revividas, os psicodélicos permitem criar novas associações entre
156

memórias e sentimentos (Fanhofmann, 2019, p. 25). Dentre outras propriedades dos


psicodélicos, é a de gerar sentimentos de transcendência, possibilitando, assim, a
cura de desequilíbrios físicos, mentais ou espirituais. Crê-se que as doenças
espirituais originam as doenças físicas e mentais. Sendo assim, as doenças não são
diferentes, mas estão em graus diferentes da mesma experiência de desequilíbrio
(Pelaez, 2019, p. 481).
O uso ritualístico da substância é mais potente que o uso recreativo, devido ao
contexto, músicas de indução, simbologia, expectativas e estado de espírito da
pessoa. O sucesso do ritual neoxamânico deve-se ao set e setting: o primeiro
referindo-se ao estado mental e às expectativas que conduzem a pessoa até a prática
do rito (pensamentos, emoções, humor); o segundo se refere às condições de
ambiente físico e social (segurança do local, empatia com os outros participantes, e
autorização para o consumo ritualístico da substância).
O modelo comum, citado acima, interpretativo dos efeitos do uso de
substâncias psicoativas a partir de suas ações neurocerebrais, em rituais
neoxamânicos, já tem sido bastante estudado. O diferencial da atual pesquisa em
andamento está longe de ignorar os efeitos da neurociência, mas visa pensar e
buscar, justamente o contexto, as técnicas ritualísticas e a narratividade que também
produzem efeitos de cura. Analisando assim, ineditamente, o efeito de cura, seja
pelos efeitos psicoquímicos da ayahuasca, seja pela ritualística. Utilizando assim
como método a análise mítico-ritualística, utilizando conceitos do Historiador da
Escola Italiana de Religiões, Ernesto de Martino, como direção fundamental para a
pesquisa que se encontra em desenvolvimento.

REFERÊNCIAS

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158

UMA DOENÇA DE ÍNDIO EM UMA PESSOA BRANCA

VANESSA COELHO MORAES


Mestra em Antropologia
Universidade Federal da Bahia
[email protected]

RESUMO: Ao iniciar minha etnografia entre os índios Kiriri, percebi duas categorias
centrais: doença de índio e doença de branco. Como mostra Marco
Nascimento(1994) a primeira refere-se a um conjunto de sintomas que foram
causadas por seres não humanos, os quais podem lhes fazer bem ou mal a depender
de como seja estabelecida a relação que é efetivada através de caminhadas na mata
e dos seus rituais como o toré, onde aprendem a ciência do índio, conjunto de
saberes oriundos da religião. Dentre seus aprendizados está justamente como curar
uma doença de índio e diagnosticá-la. Isso a diferencia da doença de branco, causada
por elementos que podem ser tratados pelos médicos. Ouvi diversos relatos de que
sempre que tomavam remédio para curar as doenças de índio, eles não funcionavam,
mas sempre que seguiam as orientações do pajé se curavam. Para ilustrar melhor
isso, pretendo apresentar como eu adquiri uma doença de índio, após participar de
um longo ritual por alguns dias. Para minha cura os remédios não me auxiliaram, só
melhorei depois de um tratamento envolvendo reza, ervas e chá. Assim, buscarei
analisar de modo científico um processo de cura oriundo de um saber religioso, tal
experiência deixou evidente as possibilidades de construção de diálogo entre saber
científico e religioso, pois ainda que aparentemente irreconciliáveis, é possível fazer
uma análise científica dessa situação contribuindo para o desenvolvimento da ciência
ao mostrar a diversidade de práticas de saúde ao mesmo tempo em que chamo
atenção para a necessidade de valorização dos saberes tradicionais.

Palavras-chave: Povos indígenas; Doença; Corpo; Saúde; Kiriri.

Esse artigo é sobre o processo terapêutico que tive quando os Kiriri 67


diagnosticaram que eu estava com uma doença de índio. Tal experiência, foi durante
o campo realizado para uma pesquisa de monografia, para o bacharelado de ciências
sociais na UFBA em 2017. No momento estava estudando a língua Kiriri, a qual dentre
outros aspectos é articulada para a promoção a saúde. Tais processos fazem parte do

67
Os Kiriri são uma etnia indígena que estão situados no contexto dos povos indígenas do Nordeste, localizados
no norte da Bahia, no município de Banzaê, ocupam um território octogonal, que teve seu decreto de
homologação dos 12.320 hectares em 1995. Nesse território, vivem aproximadamente 4 mil indígenas
distribuídos em 13 aldeias.
159

modo específico de como elaboram seu sistema próprio de atenção à saúde 68


(LANGDOM et WIIK,2010).
Nesse sistema algumas categorias são centrais como doença de índio, que é
quando temos um conjunto de sintomas causados pelos invisíveis, seres que habitam
as matas e não podem ser vistos. A depender do tipo de relação estabelecida com
eles, podemos ficar doentes. O tratamento só pode ser através dos saberes Kiriri
específicos. Tais enfermidades se distinguem da doença de branco, as quais só
podem ser tratadas pela medicina. Outra categoria importante é remédio, que é
bastante ampla, engloba tudo que vende nas farmácias, bem como, uma reza, ervas,
banhos, chás, rituais, alho, fumo, maracá, etc. Tudo que pode curar, prevenir doenças
ou proteger de algum ser (visível ou não) é um remédio.
Em campo, participei de um ritual chamado “a noite dos índios” 69. No dia
seguinte ao ritual senti uma enxaqueca e depois de comer me senti tonta e tentei
voltar a dormir, fiquei na cama passando mal com náuseas e uma forte enxaqueca.
Comecei a ter diarreia e minha barriga doía cada vez mais. Voltei a deitar, senti que
vomitaria fui pra fora e vomitei, me sentia muito fraca e minhas pernas começaram a
tremer até que me recuperei e sai dali pedi desculpa a Sueli (dona da casa que eu
estava hospedada), ela falou para eu não me desculpar
Voltei a me deitar com uma dor terrível e o corpo extremamente cansado.
Tudo isso me pareceu muito estranho porque apenas eu havia acordado assim e no
dia anterior eu estava muito bem. Sueli me ofereceu remédios pra dor de cabeça mas
eu não quis, essa doença foi estranha porque eu sentia que era só a reação do meu
corpo expulsando algo e que isso não era nada de mais, portanto, era só deixar meu
corpo expulsar algo de ruim que estava no meu organismo. Não sabia como sabia
disso, mas apenas sabia, uma intuição que me deu uma sensação de certeza. Sueli fez
um chá de boldo, mas eu não bebi porque estava muito enjoada. Ela também deixou
soro caseiro no quarto para eu ir bebendo. Ela perguntou algumas vezes se não era
alguma coisa que eu comi e eu disse que não, não fazia sentido ter sido a comida, eu
comi a mesma coisa que todos e ninguém passou mal, além disso, não comi nada que
não estava acostumada.
Até que nete (uma índia que pode ver, ouvir, falar com os invisíveis) chegou,
conversamos um pouco eu tive mais diarreia e fui ao banheiro. Quando eu estava lá
dentro ela perguntou se eu tinha alguma religião eu disse que quando eu saísse do
banheiro eu responderia, assim que sai disse que eu não tinha nenhuma religião
específica, mas que eu acreditava bastante em Deus. Ela falou com Sueli que queria
fazer uma reza em mim e Sueli disse para ela me rezar mesmo.
Ela me mandou sentar em um banquinho enquanto buscava uma garrafa no
formato de uma garrafinha de leite de coco, porém maior. Ela veio com essa garrafa e
um pano branco na mão, ela dobrou o pano e colocou na minha cabeça em cima

68
todas as sociedades têm um modo próprio de lidar com a saúde e a doença. O conceito sistema de atenção à
saúde é para mostrar que todo grupo produz um conjunto de práticas ligadas à promoção do estado de saúde
e que isso necessariamente está relacionado aos processos educacionais, epistemológicos e ontológicos.
69
Esse ritual dura três dias e constitui em homenagens ao Senhor da Ascenção, padroeiro da aldeia de
Mirandela, a qual fica no centro do território.
160

colocou a garrafa e começou a reza. Ela sussurrava algumas palavras só consegui


entender Deus, anjo e nossa senhora. Enquanto ela falava essas palavras fazia um
sinal com a mão em formato de L, como se estivesse escrevendo um L no ar com o
dedo, esse gesto é muito semelhante à forma como se faz o sinal da cruz, possa ser
que ela estivesse fazendo o sinal da cruz, mas não tenho certeza, na mesma hora eu
senti meu coração acelerar e meus pensamentos se desacelerarem, me lembrou um
pouco a sensação que tive quando tomei reiki . Um processo não tem nada a ver com
o outro, mas existe algo de similar entre a sensação de tomar reiki e de ser rezada, eu
sinto meu corpo sendo conduzido a um estado mais saudável e uma sensação
reconfortante emerge. Apesar de toda dor eu me sentia mais aliviada os sintomas
todos diminuíram, porém nenhum desapareceu depois da reza eu deitei e dormi.
Quando acordei os sintomas haviam diminuídos drasticamente minha barriga quase
não doía, mas minha cabeça ainda tinha uma dor bem incomoda, porém bem menor.
Acordei quando a técnica de enfermagem chegou a pedido de Sueli. A técnica
era dona Joana, uma índia, ela mediu minha pressão e temperatura viu que estava
tudo normal, pegou nos meus pés, pernas, braços, pescoço e mãos e falou que meus
pés estavam muito frio. Ela me perguntou se eu tomei algum remédio eu disse que
não porque não gostava de remédios e ela disse “vish eu vim aqui lhe receitar
remédio”. Ela perguntou se eu tinha tomado chá eu lembrei do chá que Sueli fez e
tomei quando acordei já que não estava mais tão enjoada, ao longo da conversa
minha dor foi voltando um pouco percebi que precisava dormir mais. Conversei um
pouco com dona Joana e ao longo da conversa seu diagnóstico foi que isso deveria
ter sido alguma virose e que ela já havia ido visitar outras pessoas com esses
sintomas nesses dias e que no ritual da “primeira noite” tinham pessoas com esses
sintomas. Ela perguntou se tinha binchinguinha e noz moscada que são duas
sementes e fazem um chá com elas que é muito bom, ela falou que ia ver se tinha em
casa e que se tivesse trazia, isso foi o mais próximo de uma receita de medicamento
que ela propôs, mesmo não trazendo. Depois ela saiu, dizendo que qualquer coisa
poderia chamá-la que ela morava do outro lado da rua e estava à disposição se
precisasse de alguma coisa
A princípio eu não consegui raciocinar direito a situação, mas percebi que
existe claramente uma diferença entre o tratamento da doença de um índio e de um
não índio. De acordo com a bibliografia que li, os textos relatam falas ditas por índios
que afirmam que na mata estão os remédios necessários e que só vão em busca dos
remédios alopáticos em casos de necessidade e de acordo com as falas ouvidas eles
relatam que há a doença que o tratamento é apenas com os elementos indígenas e
outras doenças que além dos elementos indígenas precisam também ir ao médico
mas isso só é feito depois de consultar os pajés, mestras ou encantados. No meu
caso, eles primeiro me ofereceram remédio e mandaram uma técnica, novamente
com a intenção de me medicar. Não acho que chamariam nenhuma rezadeira, eu ter
sido rezada foi apenas uma consequência do fato de nete ser uma rezadeira que foi
designada a me acompanhar durante minha estadia e por sorte naquela manhã ela
passou lá para me ver.
161

Sueli havia saído e quando voltou trouxe enrolado em dois papeis diferentes
ervas que o pajé (Adonias) mandou para fazer um chá pra mim , Maicon (filho de
Sueli) fez o chá com umas ervas que estavam em um desses papeis e depois foi no
quarto me entregar eu perguntei de que era, ele disse que não sabia, tinha um gosto
muito forte e amargo acho que tinha boldo nesse chá.
Depois quando acordei novamente já era mais tarde conversei um pouco com
Gabriel levantei e comi arroz, feijão e salada, um tempo depois Sueli chegou e disse
que ia chamar nete pra vim fazer uma esfregação em mim. Quando ela chegou
conversamos um pouco e ela disse que ia fazer uma esfregação, ela saiu e voltou com
uma cuia com alho, acho que tinha cebola e algumas folhas, acho que era coentro,
salsa ou manjericão (não tenho certeza). Além disso, tinha um líquido transparente
acho que era vinagre, mas não tenho certeza de nenhum desses ingredientes apenas
do alho. Ela pegou um pouco dessa mistura e passou nas minhas pernas, braços, pés,
mãos e cabeça fazendo o sinal da cruz. Quando pegou meus pés ela disse que eles
não estavam frios e que eu já devia estar boa. De fato, nesse momento eu já não
sentia mais nenhuma dor, o único sintoma que persistia era um grande cansaço
físico.
Ela me disse que isso deve ter sido olhado, eu perguntei o que era olhado e ela
respondeu que quando uma pessoa é linda, inteligente, luta pelo que quer, faz as
coisas....como eu, alguém ficava olhando e assim eu teria tido olhado. Fiquei
conversando bastante com nete. Depois seu marido chegou e ela saiu. Eu dormi mais
um pouco depois levantei comi e quando Sueli chegou ela fez outro chá, com as ervas
que estavam enroladas no papel que o pajé mandou o qual tinha um gosto bem
diferente ela colocou açúcar, mas não acho que era só isso, porque o chá estava mais
claro e não tinha gosto amargo. Achei que o chá dela poderia ser que tivesse mais
água, mas reparei que era quase a mesma quantidade de água não dava nem pra ver
a diferença, se tinha eu não percebi. Eu perguntei se era o mesmo chá e ela disse que
sim, mas eu suspeito que não era. De qualquer forma ambos os chás me ajudaram a
melhorar. Depois de um tempo, conversando sobre essas situação ela disse que fez
mais fraco, porque eu não era índia e ela não sabia como meu organismo poderia
reagir, percebamos mais uma vez aqui, que existe uma diferença entre o modo como
há uma diferença de tratamento para indígenas e não indígenas
No outro dia eu acordei com uma leve dor de cabeça, mas acho que era só
cansaço, arrumei as coisas e na hora de ficar esperando o ônibus Miro (marido de
Sueli) ficou comigo e disse que o que eu devia ter tido devia ser porque algum ser
invisível se engraçou ou estranhou. Ele também comentou que às vezes quando Sueli
ficava doente ele dava chá pra ela, mas era o mesmo que dar água e quando pajé
receitava alguma coisa logo ela ficava boa. Ele disse que eles iam pra Salvador
geralmente pra fazer exames ou tratamentos médicos e que o filho dele estava para
fazer uma cirurgia, porque certa vez na escola estavam brincando e deram uma
paulada nele e ele perdeu a visão de um olho e que esse olho gradativamente ia
fechando e tinha que fazer cirurgia para abrir.
Essa foi a descrição sobre o dia que eu tive doença de índio. Após voltar para
Salvador, fiquei refletindo sobre isso e demorei a entender o que nete queria dizer
162

com “olhado” e também demorei a entender o que Miro quis dizer com algum
invisível “se engraçou ou estranhou”. Ainda hoje essas categorias são estranhas para
mim. A princípio sempre ouvi a palavra olhado como inveja, como se alguém quisesse
algo que eu tenho e fica olhando tanto que o que eu tenho começa a se perder em
função de “olhado”. Porém, não fazia sentido pensar que esses seres teriam inveja de
mim, além desse pensamento ser absurdamente prepotente, o que eu poderia ter
que seria dos interesses deles?
Isso só ficou mais claro no ano seguinte, em 2018, quando eu estava no
mestrando e havia voltado a campo para dar início a pesquisa que estava realizando
para o PPGA/UFBA. Estava novamente na casa de Sueli e fomos visitar seu Jeromi(pai
de Sueli) a noite com Sueli e suas irmãs ela comentou que na “primeira noite” os
invisíveis me olharam, ela explicou que eles olham tanto para o que gostam quanto
pra o que não gostam, compreendi assim, que olhado é quando chamamos atenção
dos invisíveis e eles ficam nos olhando, seja lá por qual motivo for. Nesse caso Sueli
sugeriu que porque eu estava estudando a língua Kiriri e isso é como se eu tivesse ido
mexer com a cultura. A língua desse grupo ainda que não seja falada cotidianamente,
eles usam bastante em rituais e para se comunicar com suas entidades sagradas, por
isso, era como se eu fosse me relacionar com um elemento que é muito importante
para os invisíveis, o que teria despertado a atenção deles.
Porém, como me falou Miro, eles podem ser se engraçado e estranhado.
Depois de algumas idas a campo percebi que se engraçar seria um modo de se
aproximar, de olhar e provavelmente teriam estranhado, não sei exatamente por
que, mas possa ser que seja porque sou uma pessoa externa a comunidade. No geral,
eles olham apenas indígenas o que não causariam estranhamento, é possível que ao
me olharem eles se aproximaram de mim e isso fez com que eu tivesse ficado
doente. É possível que apenas essa aproximação tenha sido a causa da minha doença
de índio, porém não descarto a possibilidade de que houve um estranhamento que
ocasionou a doença.
Todo esse processo me chamou atenção para o fato de que existe
efetivamente a possibilidade dos Kiriri gerarem conhecimentos sobre saúde que são
eficazes e necessários. Isso contrapõe o que muitos médicos acreditam, ao super
valorizarem a medicina e não conseguirem entender como outros saberes podem ser
tão eficazes quando o conhecimento científico. A partir disso, emerge o discurso de
que tais práticas só tem eficácia, porque as pessoas acreditam nela e essa crença
influência as respostas do corpo ao longo do processo e isso promoveria a cura, dito
de outro modo, as práticas Kiriri não possuem aspectos intrínsecos que geram saúde,
é tudo uma questão de condicionar o corpo a responder positivamente ao
tratamento.
Em partes, esse tipo de pensamento encontrou certo respaldo na
antropologia. Muitos autores tratavam esses processos de cura como eficácia
simbólica (LÉVI-STRAUSS,2008), ou seja, através da relação com os símbolos e rituais
condicionamos nossos corpos a responder de modo esperado, promovendo saúde.
Porém, isso pressupõe que existiria uma relação anterior com o conjunto de práticas
curativas que ensejam o processo de cura, fenômeno que aqui no meu caso não
163

existia. Desse modo, é importante chamar atenção para a incrível potencialidade das
práticas Kiriri e sua eficiência (não eficácia) para me curar.

REFERÊNCIAS

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integrado. 1 ed. Salvador :EDUFBA. 1972.
BAUER, M. W.; GASKELL, G. (orgs.) Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som.
Um manual prático. 1 ed.São Paulo: Vozes, 2002.
LANGDOM, Jean; WIIK, Flávio. Antropologia, saúde e doença: uma introdução ao
conceito de cultura aplicado às ciências da saúde. Latino-Ame. Enfermagem.
Londrina, v. 18, n.3,p. 173-181,2010.
LÉVI-STRAUSS, Claude. Antropologia Estrutural. 1. 2 ed. São Paulo: Cosac Naify, 2008.
MORAES, Vanessa. diário de campo. 2019
MORAES,Vanessa. A construção da escola indígena Kiriri .2018. 114f. Monografia
(Bacharel em Ciências Sociais) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas,
Universidade Federal da Bahia, Salvador, 2018.
NASCIMENTO, Marco. O tronco da jurema: ritual e etnicidade entre os povos
indígenas do Nordeste – o caso Kiriri. 314f. Dissertação (Mestrado em Antropologia)
– Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal da Bahia,1994.
PACHECO, Sandra. A gente é como aranha... vivi do que tece: nutrição, saúde e
alimentação entre os índios Kiriri do sertão da Bahia. 244f. Tese (Doutorado em
Antropologia) - Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, UFBA, Salvador, 2007.
TOBÓN, Miguel. Los sueños como instrumentos etnográficos. Revista de
Antropologia Iberoamericana. Campinas,v. 10,n.3,p.331-353,2015.
164
165

ALLAN KARDEC, PENSAMENTO COMPLEXO E


TRANSDISCIPLINARIDADE

ALEXANDRE AVELINO GIFFONI JUNIOR


Doutor em Educação
Universidade de Rio Verde, Goiás
[email protected]

RESUMO: A questão desta pesquisa é: a lógica do pensamento complexo e a


transdisciplinaridade podem contribuir para uma nova compreensão do trabalho de
Kardec na sua codificação do Espiritismo? O Pensamento Complexo é uma teoria
aberta que explica os fenômenos a partir de uma visão holística, sistêmica e monista
da realidade. Conecta conhecimentos que no senso comum e na ciência clássica
geralmente aparecem simplificados, classificados e independentes. A complexidade é
um dos pilares da transdisciplinaridade e vê a realidade como algo multifacetado.
Allan Kardec é considerado o Codificador do Espiritismo. Ele construiu a Doutrina
Espírita como uma unidade indivisível: ciência-filosofia-religião. A partir da
observação de fenômenos materiais, como o das mesas girantes e falantes, na França
da segunda metade do séc. XIX, descreveu e explicou a comunicação
interdimensional dos espíritos com a dimensão material. Objetivo Geral: estudar
aspectos da obra de Kardec, em particular da metodologia utilizada em sua pesquisa
científica, com as ferramentas da lógica e da epistemologia da complexidade e da
transdisciplinaridade. Método: Análise Textual presente na Linguística Textual
(Intertextualidade), com a epistemologia da complexidade, transdisciplinaridade, da
lógica do terceiro incluído e dos níveis de realidade. Resultados: Kardec localiza-se
em fronteiras de regiões da filosofia e da ciência que causaram um estranhamento na
lógica e nas ciências clássicas da época. Ele já praticava um racionalismo aplicado (G.
Bachelard) e não um racionalismo idealista, além de um materialismo técnico (Idem),
mas qualitativo. Para explicar os fenômenos materiais-espirituais que observa,
Kardec utiliza uma nova técnica qualitativa dos instrumentos e a razão subjetivo-
objetiva. Com decorrências para a Filosofia, a sua obra nasce do trabalho científico
em que estuda o fenômeno mediúnico e as comunicações interdimensionais entre os
universos energético-espiritual e energético-material. Assim, produz um novo
conceito de religião e religiosidade. Considerações Finais: os princípios da
complexidade e da transdisciplinaridade ainda não haviam sido elaborados, mas
estão presentes no trabalho de Kardec. Ao propor uma metodologia mais qualitativa,
com grupos focais e estudos de caso, na sua pesquisa experimental, dá um passo
além da metodologia das ciências clássicas (mais quantitativas). Ele realiza uma
intervenção pedagógico-didática para a Educação, em sentido amplo. Este trabalho
poderá contribuir para o diálogo trans-religioso e transcultural.
166

Palavras-chave: Espiritismo; Complexidade; Transdisciplinaridade; Diálogo trans-


religioso.

INTRODUÇÃO

O Professor e Pesquisador Hyppolite León Denizard Rivail (1804-1869)


lecionava aos seus alunos com a pedagogia e a didática que ele aprendera com
Pestalozzi (que recebeu a influência de Comenius e Rousseau). Allan Kardec é o nom
de plume de Rivail. Considerado o Codificador do Espiritismo, ele o construiu como
uma unidade indivisível: ciência-filosofia-religião. A partir da observação de
fenômenos materiais, como o das mesas girantes e falantes, na França da segunda
metade do século XIX, ele descreveu e explicou a comunicação interdimensional dos
espíritos com a dimensão material.
Mas, como ver o Espiritismo, desde Kardec, com ferramentas atuais e
unificadas em ciência-filosofia-religião? Esta questão motivou o problema da
presente pesquisa: a lógica do pensamento complexo e a transdisciplinaridade
podem contribuir para uma nova compreensão do trabalho de Kardec na sua
construção do Espiritismo?
Assim, o Objetivo Geral da presente pesquisa é estudar aspectos da obra de
Kardec, em particular da metodologia utilizada em sua pesquisa científica, com as
ferramentas lógicas e epistemológicas da complexidade e da transdisciplinaridade.
O Pensamento Complexo é uma teoria aberta que explica os fenômenos a
partir de uma visão holística, sistêmica e monista da realidade. Conecta
conhecimentos que no senso comum e na ciência clássica geralmente aparecem
simplificados, classificados e independentes. A complexidade é um dos pilares da
transdisciplinaridade e vê a realidade como algo multifacetado.
O Método utilizado neste estudo foi a Análise Textual presente na Linguística
Textual desenvolvida por Ingedore G. V. Koch (2008), mais especificamente, a
Intertextualidade: “... a (inevitável) presença do outro naquilo que dizemos ou
escrevemos”. Inclusive a presença do leitor (ou do pesquisador), em sua interação
com o texto do outro: a produção de sentidos acontece de modo dialógico.
Após a busca dos descritores Espiritismo; Complexidade; Transdisciplinaridade
e suas articulações, em diversas bases de dados, na internet, pode-se afirmar que até
o presente momento não se encontrou qualquer pesquisa científica que abordasse a
questão proposta e os objetivos deste trabalho.

COMPLEXIDADE, TRANSDISCIPLINARIDADE, NÍVEIS DE REALIDADE E TERCEIRO


INCLUÍDO – UM OLHAR SOBRE O TRABALHO DE ALLAN KARDEC

E. Morin (2006, p. 13-14) explica o sentido da complexidade, a partir da raiz


latina da palavra complexus – o que é tecido junto:

(tecido) ... de constituintes heterogêneas inseparavelmente


associadas: ela coloca o paradoxo do uno e do múltiplo. ... tecido de
167

acontecimentos, ações, interações, retroações, determinações,


acasos, que constituem nosso mundo fenomênico. Mas então a
complexidade se apresenta com os traços inquietantes do
emaranhado, do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da
incerteza... Por isso o conhecimento necessita ordenar os fenômenos
rechaçando a desordem, afastar o incerto, isto é, selecionar os
elementos da ordem e da certeza, precisar, clarificar, distinguir,
hierarquizar... Mas tais operações, necessárias à inteligibilidade,
correm o risco de provocar a cegueira, se elas eliminam os outros
aspectos do complexus...

Basarab Nicolescu (1999) mostra que a noção de complexidade surge ao


mesmo tempo que os conceitos de terceiro incluído e de níveis de realidade, que se
completam e constituem uma lógica.
Da obra de Kardec emerge um conhecimento complexo e transdisciplinar da
realidade, uma nova visão do espírito e da matéria, novas relações epistemológicas
sujeito-objeto, mesmo com as limitações tomadas às ciências do seu tempo.
Ao defender uma nova metodologia científica experimental e qualitativa,
Kardec (2013e, p. 67) transcende a linearidade da lei de causalidade da física clássica,
com um salto quântico na visão de realidade, ao estudar o mundo dos espíritos: “Se
todo efeito tem uma causa, o efeito inteligente tem uma causa inteligente.”
Também provoca a imaginação acerca dos fundamentos da energia, da matéria
psíquica e da matéria viva, que hoje se pode compreender melhor a partir das três
éticas apresentadas por Stéphane Lupasco (1986).
Nicolescu (1999, p.53) define transdisciplinaridade assim: “...o prefixo “trans”
indica, diz respeito àquilo que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das
diferentes disciplinas e além de qualquer disciplina. Seu objetivo é a compreensão do
mundo presente para o qual um dos imperativos é a unidade do conhecimento.”
Kardec apresenta o que consideramos o caráter transdisciplinar, aberto, do
Espiritismo (2013b, p.33): “... o Espiritismo é toda uma ciência, toda uma filosofia ...
diz respeito a todas as questões que interessam à humanidade, tem imenso campo, e
o que principalmente convém é encará-lo pelas suas consequências.”
Com base na sua formação intelectual e na sua produção pedagógica, didática
e científica, pode-se afirmar que Kardec era uma personalidade transdisciplinar com
uma visão holística, a partir da Pedagogia aprendida em Yverdon-les-Bains, Suíça,
com Pestalozzi. Além das diferentes áreas das Ciências e da Filosofia abordadas na
constituição do Espiritismo, ele ministrava cursos como física, química, anatomia
comparada, astronomia etc. (INCONTRI, 2001; WANTUIL, 2019; SAUSSE, 2020).
Nicolescu (1999, p. 31-32) desenvolve o conceito de nível de Realidade como:

um conjunto de sistemas invariantes sob a ação de um número de


leis gerais: por exemplo, as entidades quânticas submetidas às leis
quânticas, as quais estão radicalmente separadas das leis do mundo
macro físico. Isto quer dizer que dois níveis de Realidade são
diferentes se, passando de um ao outro, houver ruptura das leis e
168

ruptura dos conceitos fundamentais (como, por exemplo, a


causalidade) ...

Kardec já percebia a existência de níveis diferentes de realidade, ao estudar o


mundo material e o mundo dos espíritos. Para ele, à Ciência e à Filosofia faltava o
conhecimento das leis que regem o mundo dos espíritos (2013d, p. 80-81): “...Até o
presente, o estudo do princípio espiritual, compreendido na Metafísica, foi
puramente especulativo e teórico. No Espiritismo, esse estudo é inteiramente
experimental.”
Outra noção que ajuda a compreender melhor o trabalho de Kardec é a do
Terceiro Incluído (T). Ela nasce com os avanços teóricos e as experiências na física
quântica, além das abstrações realizadas em estudos da relação mundo quântico e
mundo macro físico. Detectaram-se “os pares de contraditórios mutuamente
exclusivos (A e não-A): onda e corpúsculo, continuidade e descontinuidade,
separabilidade e não-separabilidade, causalidade local e causalidade global, simetria
e quebra de simetria, reversibilidade e irreversibilidade do tempo etc.” (Id., Ibid., p.
24). Estas noções podem ser imaginadas com o modelo de um triângulo, em que A
está em um vértice da base, não-A no outro vértice da base, e T localizado no vértice
superior, significando um nível de realidade diferente do nível de realidade de A e
não-A. O estado T é A e não-A (quanton).
Pode-se dizer que Kardec apresenta as noções de Terceiro incluído e níveis de
realidade no estudo ainda inicial do perispírito, fundamental para se compreender os
fenômenos observados por ele (2013a, p.24):

...há no homem três coisas: 1º., o corpo ou ser material análogo aos
animais e animado pelo mesmo princípio vital; 2º., a alma ou ser
imaterial, Espírito encarnado no corpo; 3º., o laço (perispírito) que
prende a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o
Espírito ...

A sistemogênese dos sistemas antagônicos de Lupasco é outra ferramenta para


uma releitura do Espiritismo construído a partir de Kardec (Lupasco, apud
NICOLESCU, 2012, p. 35-36): “... todos os objetos que nos cercam ... não têm nada de
‘material’, no sentido muitas vezes milenar e instintivo da noção de matéria ... eles
são ... unicamente manifestações e sistematizações mais ou menos resistentes da
energia...”.
A partir de uma visão quântica de mundo, pode-se melhor explicar a
constatação de Kardec (Id., Ibid.): “...o Espírito não é, pois, um ser abstrato,
indefinido, só possível de conceber-se pelo pensamento. É um ser real, circunscrito,
que, em certos casos, se torna apreciável pela vista, pelo ouvido e pelo tato”.
No conjunto das obras kardecianas, e em cada uma delas, também está
implícita noção de Terceiro Oculto, formulada tempos depois por Nicolescu (2012, p.
111-112), natureza divina do ser humano que unifica quatro níveis de realidade. Ele
afirma: ... “A noção transdisciplinar de níveis de realidade é incompatível com a
169

redução do nível espiritual ao nível psíquico, do nível psíquico ao nível biológico e do


nível biológico ao nível físico ... (os quatro níveis) são unificados pelo terceiro oculto.
A pergunta 82 e a resposta dada pelos espíritos a Allan Kardec (2013a, p.86-87)
fornecem uma pista para as questões acima: “82. Será certo dizer-se que os Espíritos
são imateriais? ‘... Imaterial não é bem o termo; incorpóreo seria mais exato, pois
deves compreender que, sendo uma criação, o Espírito há de ser alguma coisa. É a
matéria quintessenciada, mas sem analogia para vós outros’ ...”
Para melhor compreender o conjunto da obra de Kardec, também é necessário
considerar a tradição epistemológica que une inseparavelmente ciência, filosofia e
religião, em um só corpo de conhecimento (outra atitude transdisciplinar). Na
tradição francesa em História e Filosofia da Ciência, Alexandre Koyré (1991) trabalha
com o método histórico que busca a gênese da ciência atual. Nele, apresenta a
convicção que se tornou seu princípio de pesquisa: o pensamento científico e a visão
de mundo que ele gera influenciam tanto sistemas inteiros (Descartes, Leibnitz,
Espinoza etc.) como doutrinas místicas.
KOYRÉ explica (1991, p. 10-14): “A evolução do pensamento científico ... estava
intimamente ligada à evolução das ideias trans científicas, filosóficas, metafísicas e
religiosas.... Não podemos compreender verdadeiramente a obra do astrônomo, nem
a do matemático, se não a virmos penetrada do pensamento do filósofo e do
teólogo.”
A sua defesa de que o Espiritismo é uma ciência positiva nascida de
experiências rigorosamente controladas, poderia levar à crença de que Kardec
(2013d, p. 22) seria um Positivista, Empirista ou Realista. A nossa pesquisa nos leva a
outras constatações. Ao se analisar as obras completas de Allan Kardec com as
ferramentas da epistemologia de Gaston Bachelard (1974, p. 115-116), pode-se
localizar o pesquisador lionês em fronteiras e regiões da filosofia e da ciência que
causaram um estranhamento na lógica e nas ciências clássicas da época. Mesmo que
esses nomes e regiões epistemológicas não tivessem sido inventadas ainda, verifica-
se que Kardec já praticava um racionalismo aplicado e não um racionalismo idealista.
Também um materialismo técnico (acrescente-se: qualitativo) que, para explicar os
fenômenos materiais, utiliza a técnica dos instrumentos e a razão matemática,
melhor dizendo: subjetivo-objetiva, como propõe a transdisciplinaridade. Kardec
está na posição central do espectro filosófico elaborado por Bachelard.
Sobre o racionalismo aplicado, explica Bachelard (1974, p. 113): “A perspectiva
teórica coloca o fato experimental no seu devido lugar”. Esta foi a atitude científica
de Rivail: recebe notícias das mesas girantes em 1854; em 1855 tem contato direto
com aquele fenômeno material que o levará às experimentações:

... (as mesas) giravam, saltavam e corriam, em condições tais que não
deixavam lugar a qualquer dúvida. ... Eu entrevia, naquelas aparentes
futilidades, no passatempo que faziam daqueles fenômenos,
qualquer coisa de sério como que a revelação de uma nova lei, que
tomei a mim estudar a fundo. (KARDEC apud WANTUIL, 2019, p.261-
262).
170

A proposta da fé raciocinada, de Kardec, nasce da experimentação com os


espíritos, através da observação científica com instrumentos bem materiais – os
médiuns (2013c, p. 256): “...A fé raciocinada, por se apoiar nos fatos e na lógica,
nenhuma obscuridade deixa. ... Fé inabalável só o é a que pode encarar de frente a
razão, em todas as épocas da Humanidade.”

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A transdisciplinaridade tem trazido contribuições importantes às pesquisas e às


práticas profissionais, em Ciências da Natureza, humanas e Sociais, inclusive no
campo da verticalidade do ser humano. Ela propõe uma trans religiosidade e uma
trans culturalidade trans históricas, presentes em nosso estudo.
De uma perspectiva transdisciplinar e com Bachelard pode-se enxergar a
epistemologia do cientista-filósofo-teólogo Allan Kardec, como em um espectro
filosófico, a partir de um materialismo técnico (qualitativo) e de um racionalismo
aplicado muito peculiares. Ele se utiliza de metodologias na pesquisa científica que
hoje são consideradas pertencentes à pesquisa qualitativa, através de estudos de
caso e grupos focais, por exemplo. Mas, Kardec avança um pouco mais em seu
método: com a dialética socrática e a orientação pestalozziana, ele realiza uma
verdadeira pesquisa intervenção pedagógico-didática (GIFFONI, 2019), para a
Educação em sentido amplo, inseparável do seu método de observação
experimental, que inclui toda uma orientação para as entrevistas com os espíritos e
formação dos médiuns, que redundou na construção da Doutrina Espírita (2013b).
A partir dos conceitos das ciências e da filosofia das ciências contemporâneos
pode-se compreender a totalidade dos fenômenos descritos e explicados por Allan
Kardec na ciência e filosofia espírita, com decorrências religiosas. Por exemplo, com a
teoria quântica ficam mais claras as conexões alma-corpo material-corpo espiritual.
Ele lança mão de uma trialógica lupasquiana (que ainda não havia sido formulada) e
apresenta um terceiro incluído (T) para a compreensão desse invisível nível de
realidade que é o mundo dos espíritos: o corpo de energia do espírito (perispírito)
que o liga ao corpo material (2013a, p. 24).
Diversos pontos não puderam ser abordados aqui, devido aos limites de
espaço. Por exemplo: o diálogo entre esse paradigma emergente na Educação
(VIEIRA, 2019; MORAES, 2008) e a Pedagogia espírita o que será feito
posteriormente. No entanto, a pesquisa poderá contribuir para ampliar os diálogos
Inter e trans religiosos e culturais e abrir caminhos para outras pesquisas
transdisciplinares.

REFERÊNCIAS

BACHELARD G. Epistémologie: textes choisis par Dominique Lecourt. Vendôme: PUF,


1974.
171

GIFFONI JUNIOR, A. A. Teaching and Learning within early childhood education to


children in social situation of poverty: a Pedagogic-Didactic (Dialectic-Interactive)
Intervention with the Cultural-Historical Approach. Curitiba: CRV, 2019.
INCONTRI, Dora (Dora Alice Colombo). PEDAGOGIA ESPÍRITA: Um Projeto Brasileiro e
suas Raízes Histórico-Filosóficas.Tese de doutorado. FEUSP. São Paulo, 2001.
KARDEC, A. O Livro dos Espíritos. 93. ed. Brasília: FEB, 2013a. Disponível em:
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_____ O Livro dos Médiuns. 93. ed. Brasília: FEB, 2013b.
_____ O Evangelho segundo o Espiritismo. 93. ed. Brasília: FEB, 2013c.
_____ A Gênese. 93. ed. Brasília: FEB, 2013d.
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KOCH, I. G. V., BENTES, A. C., CAVALCANTE, M. M. Intertextualidade: diálogos
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KOYRÉ, A. Estudos de História do Pensamento Científico. Rio de Janeiro: FORENSE,
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LUPASCO, Stéphane. O homem e suas três éticas. Lisboa: INSTITUTO PIAGET, 1986.
MORIN, E. Introdução ao pensamento complexo. Porto Alegre: Sulina, 2006.
MORAES, Maria C. Ecologia dos Saberes: Complexidade, transdisciplinaridade e
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NICOLESCU, Basarab. O Manifesto da Transdisciplinaridade. São Paulo: TRIOM, 1999.
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VIEIRA, Adriano José Hertzog. A docência no paradigma educacional emergente.
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WANTUIL, Z., THIESEN, F. Allan Kardec: o educador e o codificador. 4. ed. Brasília:
FEB, 2019.
172

O MERCADO DAS NEUROSES E A RELIGIÃO MODERNA

ANTÔNIO CÉSAR MARTINS LOPES


Doutorado em Ciências da Religião
Faculdade Unida de Campinas
[email protected]

DJALMA BARRETO NEVES


Doutorando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

RESUMO: A religião é práxis no mercado das neuroses modernas, estabelece à


sociedade perspectivas teórico-práticas da crença amalgamada a bricolagens da
epistemologia do transe, êxtase e possessão. A interlocução da Ciência da Religião
com a espiritualidade humana retrata o mundo religioso multicultural na era digital-
político-mercadológica, quando novos movimentos religiosos promovem a
interlocução teórico-prática estruturada na moda e consumo, nas ideologias de
homens de negócios e seus diálogos. A consciência popular traduz a
contemporaneidade envolta pelo paradigma da fé, força abstrata que molda a
palavra e a cultura. A base da fé apresenta como experiência religiosa o frenesi, a
ideia de libertação do demônio e da pobreza. A arena da religião moderna anuncia a
felicidade a partir do direito à riqueza e poder de consumir desejos. Puritana, a
plataforma tradicional expõe, em nome de Deus, a família, a Pátria, a ética dos
pseudo zeladores morais da Nação. O desmonte dos direitos espolia a cultura,
comercializa a crença, mantém o status quo, sonega a representação política das
massas alienadas, a sociedade desigual revela a “nau dos loucos” (Michel Foucault).
Através da pesquisa bibliográfica esta comunicação discute a religião, mercado,
movimentos religiosos, espiritualidade, status quo, sociedade.

Palavras-chave: Religião; Mercado; Espiritualidade; Status quo.

INTRODUÇÃO

Objetivamos discutir a religião enquanto nicho mercadológico de movimentos


religiosos e as diferentes formas da espiritualidade. Em primeiro lugar aborda-se,
pela epistemologia do transe, do êxtase e da possessão, a arena de interlocução da
Ciência da Religião no que remonta ao mercado, hoje, midiático, globalizado. Como
segundo tópico, trabalhamos a conjuntura de moda e consumo na Era pós, sobre a
espiritualidade apresentada pelos novos movimentos religiosos, suas ideologias, a
carência de sentido da humanidade efêmera, violentada no fluxo das relações
173

líquidas do coletivo que denota a sociedade do espetáculo. Por fim, destaca-se que
com as neuroses da religião a afirmar que o desmonte de direitos espolia a cultura,
fomenta-se o comércio da religião, perpetua-se o status quo, sonega-se a
representação política das massas alienadas e revela a sociedade desigual, injusta e
de fluxo incessante.

O MERCADO DA RELIGIÃO NO MUNDO GLOBALIZADO

Quando abordamos a epistemologia do transe, êxtase e possessão, alcançados


na crença, adentra-se à arena de interlocução com as ciências humanas, no caso
desta escrita científico-acadêmica, às Ciências da Religião. Separada a ciência da
filosofia, a primeira define a ordem dos conhecimentos num sentido parcialmente
único. A filosofia une estes conhecimentos relatos a objetos enquanto fenômenos da
atividade cognoscitiva.
O mercado da fé moderna anuncia que estar salvo passou a ser sinônimo da
felicidade a partir do direito à riqueza material, realização social e poder
cidadão/status galgado no consumo de desejos. A plataforma tradicional-puritana
expõe, em nome de Deus, a família, a Pátria, a ética dos falsos zeladores morais da
Nação.
A arena da divindade, atravessada pelo tempo pós, mercantilizou o
Onipotente, alcançou o sem limite daqueles que celebram o numinoso pelas trilhas
midiáticas afastado da função social da religião a qual, segundo O’Dea (1969, p. 104)
“aumenta o respeito pelas normas da sociedade, na medida em que as liga ao
sagrado”.
A religião, engendrada pelo mundo globalizado, determinado pela virtualização
das relações sociais, é manipulada enquanto mercadoria da fé, pelo evento da
tecnologia de ponta. O fator atualidade-tecnologia-relações virtual trespassa a função
da religião para a sociedade enquanto “sistema social complexo do comportamento
humano padronizado, que apresenta um elevado grau de regularidade com o passar
do tempo” (O’Dea, 1969, p. 104).
Cabe então a transposição da discussão ao fator social da religião como
categoria ontológica humana que sobrevive à história. Fator social explicado pela
história pós Revolução Industrial, o capitalismo impõe aos crentes, dos dias atuais, o
pagar-se um preço (dízimo a crédito). A artimanha define e aplica-se às narrativas
teo-lógico-políticas da salvação em tempos digitais. Explicada por Durkheim como o
consenso normativo, a distribuição de funções e recursos

É um processo que cria ricos e pobres; existe privação, tanto absoluta


quanto relativa. Consequentemente, diferentes grupos têm um
diferente grau de participação na sociedade, tal qual como esta é
organizada, e diferente grau de identificação com ela; os vários
subgrupos de uma sociedade têm diferente interesse na sociedade,
suas exigências e sua manutenção (O’DEA, 1969, p. 105).
174

Deste modo, a catedral social política-religiosa-cultural trespassa diferentes


tempos e territórios. Para Durkheim “[...] esse impulso para acreditar é precisamente
o que constitui a fé; e é a fé que institui a autoridade dos ritos junto ao crente,
qualquer que ele seja, cristão ou australiano” (1989, p. 431). Tanto a família quanto
as nações convivem modos e cultura, empresas, incluindo as da religião.
Ao passar do andor da crença, que alcança dias atuais, aceita-se, ou, ao menos
convive-se um mesmo mundo entre diferentes sexos, logo, poderes. Há um novo
capitalismo no horizonte, nele a “nau dos loucos” (Foucault) avista o liberalismo
desenfreado colocado para o mundo pós-moderno.

A RELIGIÃO, O MERCADO, A TERRA CERCADA

O capitalismo determina o fluxo da sociedade moderna fomentada a consumo.


De acordo com O’Dea (1969) “a religião deu a ideologia que permitiu o
desenvolvimento de novas classes e a expressão de seus interesses e sua
interpretação, também tornou, pela introdução de valores sagrados nos problemas,
mais agudos os conflitos” (p. 109). A exemplo, a realidade da terra, gênese da
questão social retratada numa bricolagem de expressões sociais, causa social-
política-religiosa e cultural a qual urge analisar as reivindicações do trabalhador com
fome de equidade, justiça social e tantos outros direitos estabelecidos na Carta
Magna da Nação brasileira a partir de 1988. Para insumo da discussão:

A questão agrária ainda é a força que define o destino do Brasil,


ainda é o grande problema brasileiro, mas, infelizmente, não é o
único. O silêncio sobre a questão agrária, como o silêncio sobre as
temáticas que remetem à história do povo sofrido, não é apenas uma
forma de manter o povo na grande noite da ignorância, é também
uma estratégia de luta na guerra dos que têm contra os que nada, ou
quase nada têm (SILVA e OLIVEIRA, in CARVALHO e LIMA (org), 2018,
p. 51).

O Brasil segue governado para os latifundiários, desatento às tantas lições


sobre a não prevalência da justiça social. Essa mazela social, herdada da condição
(des) humana, já na Colônia, determina, desde então, a proximidade ou
distanciamento da questão do direito à inclusão social. As vontades, conchavos e
amigos do rei determinam a história na contramão do que está posto no Livro do
Êxodo (16,18): “Aconteceu que o que tinha ajuntado muito não tinha demais e, ao
que tinha ajuntado pouco, não lhe faltava: cada um havia recolhido segundo a sua
necessidade”.
Os dias atuais têm norte no passado próximo quando imperava a política
colonial patrimonialista. Os coronéis calçavam esporas que tintilavam anunciando os
milionários poderosos a partir da posse da terra em larga escala, hoje, insumo da
acumulação, cumulação capitalista, do lucro forjado no agronegócio.
Em meio ao “espetáculo da terra”, Hovestol relata que a
175

religião tem muitos mais fãs, e estes pagam muito mais dinheiro e
são muito mais sérios do que os organizadores de circo poderiam
esperar. Nada - nenhum espetáculo para nosso entretenimento,
nenhuma reunião política - nada mesmo se compara ao espetáculo
que a religião exibe regularmente (HOVESTOL, 2009, p. 95).

Essa mazela histórica tem gênese nos primórdios da raça humana, com a
simples adição às leis de Deus. Ao reforçar a questão da terra, aproxima a discussão
do próximo tópico, e remonta à Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988,
a qual estabelece, em seu Capítulo III – da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma
Agrária.

Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins
de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua
função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da
dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis
no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e
cuja utilização será definida em lei (CF/1988, p. 59).

A divisão social do trabalho denota as classes sociais, estabelece e mantém o


fosso econômico-social cultural entre a riqueza e a pobreza, intensifica-se enquanto
consequência da produção e consumo alheios à redução e escassez de recursos da
natureza.
A religião retrata a interação, violência, guerra e paz. Amealhada no mundo
globalizado, pós-moderno, caracteriza-se pela religiosidade ideológica açodada no
fundamentalismo, sectarismo. O tema, discutido no tomo anterior, tem interlocução
com as ciências humanas, trespassa as Ciências da Religião pelo universo dos
mascates do evangelho, os quais, nas palavras de Tom Hovestol, aumentam a
população do inferno.
Neste ponto da escrita, a discussão adentra à conjuntura da moda e consumo:
“Não podeis servir a Deus e ao dinheiro” (Lc 16,13). A reflexão posta infere sobre a
espiritualidade revelada a novos movimentos religiosos, ideologias, midiatização,
alienação das massas.
Há uma enormidade de carências humanas no sentido da fé. Segundo
Durkheim (1989) “é porque a fé tem essa origem que ela é, em certo sentido,
‘impermeável à experiência’” (DURKHEIM, 1989, p. 432). Os novos movimentos
religiosos, transformados, rearranjados, tomam impulso a partir de dinâmicas
alimentadas na fé amealhada a partir da interlocução teórico-prática, por meio da
conjuntura da moda e do consumo.
A carência é eixo de exploração do fiel por meio da fé estruturada na
espiritualidade exposta pelos “novos movimentos religiosos”, ideologias de homens
de poder que dialogam com o numinoso enquanto articulam seus negócios.
176

Midiática, a conjuntura mundial define uma humanidade efêmera, violentada


pelo fluxo das relações líquidas, consequência do coletivo midiático, retratado na
sociedade do espetáculo. Com foco na moda comportamental da era digital, as
diferentes formas de manifestação da religião emperram no lodo da intolerância
religiosa. De acordo com Ribeiro e Ecco “podem levar a atos de intolerância,
perseguição e brutalidade” (2018, p. 11). Essa que é expressa nas formas camufladas
do preconceito, opressão à liberdade de expressão, na relação de enfraquecimento
das convicções, mais, de forma insidiosa no que remonta a aceitar o outrem como
diferente de si.
A violência religiosa tem sido observada, de acordo com Durkheim, como “a
força que isola o ser sagrado e que mantém os profanos à distância, na realidade, não
está nesse ser, mas vive na consciência dos fiéis” (1989, p. 437). A diferenciação entre
preconceito individual e estigma grupal tem gênese na personalidade dos indivíduos
ou grupos os quais rotulam negativamente a agrupamentos sociais distintos.
Esta realidade mundial leva ao enquadramento e categorização, a priori,
daqueles estabelecidos pela sociedade a partir da imagem social individual ou em
grupo, ou seja, o controle social. O estigma faz com que irmãos passem a temer uns
aos outros, às agremiações, à comunidade, o contato entre co-habitantes não se
efetiva ou estabelecesse, impedindo a efetivação de um controle social informal.
Aonde falha o controle social informal, sobressai a criminalidade.

A NEUROSE DA RELIGIÃO, DO TRABALHO E DO PODER

Este artigo adentra, também, à questão política do exercício do poder, o qual


alcança a questão sexual. Ao retratar sobre o tema, no Brasil, de acordo com o
teólogo Leonardo Boff, a gestão atual "é a maior desgraça que ocorreu em nossa
história, o triunfo da ignorância e da estupidez" (BOFF, 2019) 4.
A aprofundar a discussão, a pesquisa infere no entendimento de que “o erro
teológico, com frequência, brota do púlpito, não dos bancos; dos seminários, não dos
pequenos grupos” (HOVESTOL, 2009, p. 75). A depravação pessoal, negativa,
deprimente, alheia aos valores humano-políticos-culturais exige do homem, segundo
Hovestol “perceber algum senso de justiça expressa na lei dos homens, das nações,
as quais possam permear a justiça de Cristo por meio da benevolência, da liberdade,
da confiança, segurança, isso, de acordo com o que anuncia” (2009, p. 70-71).
As sociedades humanas ou culturas são estruturadas em valores e verdades,
sendo estes, únicos e coletivos, desde a pré-história aos tempos digitais. Segundo o
arqueólogo norte-americano Robert Braidwood: “A cultura é duradoura embora os
indivíduos que compõem um determinado grupo desapareçam. No entanto, a cultura
também se modifica conforme mudam as normas e entendimentos” (1975, p. 41-42).
No decorrer do processo histórico-social, os homens levaram o trabalho ao
oposto daquilo que antes os possibilitava galgar liberdade e realização. O trabalho é
transformado em simples meio de sobrevivência, algo penoso, levado à arena de
senso comum de que “quem não trabalha não come”. A sociedade ressente das
177

grandes transformações que mergulham o coletivo nas redes, tecnologias,


virtualização das relações e comportamentos sociais.
O trabalho é categoria fundante do ser social, define os fatos e acontecimentos
sociais que o acompanham na sua mudança enquanto transforma a natureza na ânsia
de sobreviver. Paradigma e consequência, os séculos pós-Revolução Industrial
definem a frustração, o sofrimento, a violência, a individualidade moldada pela moda
do consumo que impõe à categoria humana o tempo das revoluções.
No que refere ao espectro da religião, na sua intimidade, a discussão seria,
segundo Foucault (2003), parte das tecnologias de poder. O autor refere-se às
comunidades manipuladas pelo poder pastoral, o qual alcança para-além do gueto, a
reger a vida do sujeito como um todo, um particular adotado para a vida toda. A
recordar, esta vida atada à neurose mercadológica do trabalho e da religião
discutidos anteriormente.
De acordo com Erich Fromm, precisamos “estudar a influência das condições
específicas de nosso modo de produzir e de nossa organização social e política sobre
a natureza humana” (FROMM, 1961, p. 87) para se ter ideia da personalidade do
homem médio, ou seja, aquele que vive e trabalha sob condições as quais
determinam seu “caráter social”.
Por mais irracional e imoral que seja uma ação, o homem sente impulso
insuperável de racionalizá-la, para si, com relação aos demais. Se a espécie humana
desenvolveu sabedoria suficiente para criar a ciência e a arte, deverá então ser capaz
de transformar o mercado das neuroses e a religião moderna para promover a
justiça, a fraternidade e a paz.

CONSIDERAÇÕES

O mercado da fé moderna anuncia que estar salvo passou a ser sinônimo da


felicidade galgada a partir do direito à riqueza material e realização social por meio
do poder cidadão galgado a consumo de desejos. A plataforma tradicional-puritana
expõe, em nome de Deus, a família, a Pátria, a ética dos falsos zeladores morais da
Nação. Engendrada pelo mundo globalizado de uma Era pós, a religião é manipulada
enquanto mercadoria. A fé permeia as redes sociais como o maior “espetáculo da
terra. O fenômeno promove a interação, a violência, a guerra ou paz, caracterizado
pela religiosidade ideológica, açodada no fundamentalismo sectário.
A carência é eixo de exploração do fiel por meio da fé estruturada na
espiritualidade exposta nos “novos movimentos religiosos”, ideologias de homens de
poder que dialogam com o numinoso enquanto articulam seus negócios. Midiática, a
conjuntura mundial define uma humanidade efêmera, violentada pelo fluxo das
relações líquidas, consequência do coletivo midiático, retratado na sociedade do
espetáculo.
A discussão da religião, antes que alcance a Era pós, passa pela neurose social
ou corredor estreitado da conjuntura. O tema incita à reflexão político-cultural, tem o
tamanho dos desejos da carne e sua febre denuncia o estado latente da língua. Todas
178

as sociedades humanas ou culturas são estruturadas em valores e verdades, valores e


verdades únicos, coletivos, desde a pré-história aos tempos digitais.
No decorrer do processo histórico-social, os homens levaram o trabalho ao
oposto daquilo que antes o possibilitava a liberdade e realização. O trabalho é
transformado em simples meio de sobrevivência, algo penoso, levado à arena de
senso comum de que “quem não trabalha não come”. Se a espécie humana
desenvolveu sabedoria suficiente para criar a ciência e a arte, deverá então ser capaz
de transformar o mercado das neuroses e a religião moderna para promover a
justiça, a fraternidade e a paz, questão de debate e insumo para um próximo capítulo
ou artigo. E o pulso, ainda pulsa!

REFERÊNCIAS

BONAVIDES, Paulo. Ciência Política. 3ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 1976.


BRAIDWOOD, Robert. Homens Pré-Históricos. Brasília: Editora Universidade de
Brasília: 1975.
BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília-DF: Senado Federal:
Secretaria de Editoração e Publicações, 2019.
CARVALHO, José R.; LIMA, Milton P. (Orgs). História, Cultura, Educação e sentidos
identitários no Vale do Araguaia Paraense. Goiânia: Kelps, 2018.
DURKHEIM, Émile. As formas elementares de vida religiosa: o sistema totêmico na
Austrália. São Paulo: Paulinas, 1989.
FROMM, Erich. Psicanálise da Sociedade Contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar
Editores, 1961.
HOVESTOL, Tom. A neurose da religião: o desastre do extremismo religioso!
[tradução Lena Aranha]. São Paulo: Hagnos, 2009.
O’DEA, Thomas F. Sociologia da Religião. São Paulo: Enio Matheus g. & Cia Ltda,
1969.
RIBEIRO, Wesley; ECCO, Clóvis. Intolerância Religiosa. 1ª ed. Curitiba: Editora
Prismas, 2018.
179

AS PESQUISAS A RESPEITO DA CONSCIÊNCIA E O ABISMO


AXIOMÁTICO ENTRE ARISTÓTELES E PLATÃO

ELIAS INÁCIO DE MORAES


Mestre em sociologia
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

RESUMO: A controvérsia em torno da consciência não é recente; se ela é um


epifenômeno da organização fisiológica ou se é dela independente é uma questão
que remonta à Grécia Antiga, quando Platão imaginava um mundo ideal
independente do mundo sensível da matéria, de onde as almas ou espíritos viriam
para animar os seres vivos, enquanto seu discípulo Aristóteles não via sentido em
considerar algo além da matéria observável nas suas perquirições. Ao longo da
história essas duas vertentes se mantiveram intactas. Com a consolidação do atual
modelo de ciência observa-se um conflito de paradigmas que reproduz a antiga
controvérsia observada entre Platão e seu discípulo Aristóteles, ainda que sob novas
roupagens. O presente estudo coloca frente a frente teorias e experimentos que têm
mantido aceso esse debate milenar. O método utilizado para essa análise foi a
identificação dos axiomas sobre os quais se baseiam esses estudos e, a partir dos
fundamentos epistemológicos de Karl Popper (1972), Tohmas Khun (2006) e Imre
Lakatos (apud Borges Neto, 2020), avaliar como eles se situam em relação aos
paradigmas epistemológicos que se situam por detrás dessa controvérsia. A partir daí
se avaliou as possibilidades e dificuldades tendo em vista um consenso entre dois
campos de estudo tão díspares. Ao final, concluiu-se que estamos diante de um
abismo axiomático cuja transposição parece impossibilitada pelo modo como cada
pesquisador delimita o seu campo de interesses e, a partir daí, elege os seus
pressupostos metodológicos. O modo como os paradigmas se conflitam leva a crer
que a dificuldade de consenso tem a ver com os limites da própria racionalidade, na
medida em que fica evidente que os pesquisadores atuam dentro do limite das suas
crenças.

Palavras-chave: consciência; alma; vida.

A GRANDE CONTROVÉRSIA

A controvérsia em torno da consciência não é recente; seria ela um


epifenômeno da organização fisiológica ou, ao contrário, seria ela a causadora do
fenômeno da vida? Esta é uma questão que remonta à Grécia Antiga, quando Platão
imaginava um mundo ideal independente do mundo sensível da matéria, de onde as
almas ou espíritos viriam para animar os seres vivos. Seu discípulo Aristóteles não via
180

sentido em considerar algo que não fosse a matéria observável nas suas perquirições,
embora, diante do fenômeno da vida, tenha se visto obrigado a recorrer a uma
abstração, o “princípio vital”, para justificar a animação de que a matéria se mostra
dotada quando viva. Mas ele o fez sem ceder à hipótese de Platão, que admitia a
anterioridade da existência da alma. Para Aristóteles, a alma surgia com a vida,
animada pelo “princípio vital”, e extinguia-se com a morte.70
Ao longo da história essas duas vertentes se mantiveram intactas, e a
controvérsia ganhou uma nova roupagem: que arranjo especial da matéria teria sido
capaz de produzir o singular efeito chamado “vida”?

A SOPA PRIMITIVA

Os livros de biologia do Ensino Médio apresentam como principal hipótese a de


Oparin e Haldane, que apresentaram de modo independente uma teoria segundo a
qual a vida teria se originado a partir de uma espécie de “sopa primitiva”, uma
solução de misturas orgânicas formada ao acaso, quando do resfriamento da Terra.
Essa “sopa primitiva” teria apresentado algum arranjo e alguma forma de
relacionamento entre as moléculas que, sob determinadas condições de temperatura
e ambiente, deve ter originado a vida. Essa vida primitiva teria se espalhado, em
seguida, por todo o planeta, evoluindo ao longo dos milênios para essa riqueza e
complexidade que conhecemos hoje. Essa teoria foi testada no ano de 1953 por
Stanley Lloyd Myller, sob a supervisão do químico Harold Clayton Urey, que obteve
moléculas de glicina e alanina, duas das espécies mais simples de aminoácidos. 71
Atualmente as modernas tecnologias de mapeamento do cérebro, como a
ressonância magnética, tem possibilitado estudar o que acontece nas diversas
regiões desse órgão de uma maneira nunca antes imaginada. Da associação dessas
tecnologias com os estudos realizados pelos bioquímicos a respeito da atuação de
hormônios e enzimas tem sido possível aos pesquisadores analisar não apenas a
estrutura do cérebro, mas até mesmo o seu funcionamento, permitindo-lhes
conhecer melhor o modo como se formam os diferentes tipos de memória, as regiões
onde se manifestam o medo, a alegria, o prazer, a imaginação e o êxtase. Esses
experimentos têm fortalecido no meio científico a tese que afirma ser a vida e a
consciência um epifenômeno dos fenômenos fisiológicos. Sob essa perspectiva, a
inteligência, as emoções e os sentimentos seriam um resultado especial de
determinadas reações eletroquímicas que ocorrem no interior das estruturas
biológicas do sistema nervoso, das quais derivariam todos os prodígios humanos em
termos de criatividade, ludicidade, lógica e até mesmo sonhos, emoções, esperanças
e, por que não, amor e ódio. Essas reações eletroquímicas seriam o que teria
garantido a vida no planeta ao longo dos últimos 1,4 bilhão de anos e tornado o ser
humano capaz de vasculhar a imensidão do universo, construir celulares, carros e

70 A divergência entre o pensamento de Sócrates e Platão é facilmente verificável pela comparação entre as
abordagens do assunto em A República, de Platão e De Ânima, de Aristóteles, clássicos da literatura filosófica.
71 Um artigo que resume essa história está disponível em https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/o-
experimento-de-miller/
181

veículos espaciais, estabelecer a agricultura, mapear o interior do corpo humano e


decifrar as mais ínfimas partículas do mundo subatômico, além de compor as mais
belas peças de sensibilidade musical, as mais impressionantes obras das artes
plásticas e da literatura.
Mas pode-se indagar: esses experimentos são realmente suficientes para uma
conclusão tão abrangente? A produção de alguns aminoácidos, que estão longe de
representarem qualquer forma de vida, uma vez que não se alimentam e nem se
reproduzem, seria uma comprovação de que a vida poderia ter se originado dessa
maneira? Ou mesmo o fato de uma célula continuar viva com um DNA modificado…
em que isso comprovaria que a vida é apenas o resultado de um conjunto de reações
físico-químicas?

ALGO ALÉM DE SINAPSES?

Do outro lado do front, outros pesquisadores como os médicos Raymond


Moody (1979) e Sam Parnia (2014) têm procurado ampliar a compreensão de
fenômenos que se dão no nível da mente para auxiliarem seus pacientes a lidarem
com situações não habituais que causam transtornos e sofrimentos. Vários pacientes
de ressuscitação cardiopulmonar falam de visões, sensações auditivas e sensoriais
inexplicáveis frente ao quadro clínico que apresentavam quando isto se deu, o que
ele chamou de “EQM – Experiências de quase-morte”. Mesmo sem oxigenação no
cérebro eles afirmam ter percebido a atuação da equipe médica a partir de
perspectivas incompatíveis com os seus órgãos sensoriais, como visões a partir do
teto, de outros ângulos da sala de cirurgia, como se estivessem separados do seu
corpo biológico. Cegos descrevem com exatidão cenas do momento em que se
achavam clinicamente “mortos”; outros falam de encontros com familiares mortos há
anos; crianças relatam terem sido assistidas por pessoas desconhecidas e que,
investigadas em seguida, descobriu-se tratar de pessoas já falecidas. A grande
maioria desses pacientes passa a apresentar comportamento marcado por um
componente místico, necessitando de ajuda psicológica para se ajustarem à realidade
e ao novo modo de se relacionarem com seus familiares que não compreendem essa
transformação.
O Dr. Morris Netherton (1997) e a Dra. Edit Fiori (2005), também de modo
independente, vivenciaram a experiência de regredir alguns pacientes, mediante
hipnose, ao momento em que se achavam ainda no útero materno, visando o
tratamento de traumas complexos. Em alguns casos eles perceberam que os
pacientes relatavam situações e experiências anteriores à fase uterina, e pareciam
referir-se a traumas elaborados em uma espécie de “vida anterior”, o que os levou a
inaugurar um método de tratamento que passou a ser chamado de TVP – Terapia de
Vidas Passadas – largamente aplicado atualmente por psicólogos,
independentemente de acreditarem ou não na possibilidade de outras vidas.
Essas experiências vêm ao encontro das chamadas rememorações
espontâneas, estudadas pelo Dr. Ian Stevenson (1970), que catalogou mais de mil
relatos nesse sentido e pesquisou mais de uma centena deles. Um dos que
182

impressionantes foi o de uma garota de 12 anos que fugiu de sua casa na Índia para ir
ao encontro do seu “marido”, com o qual alegava ter feito o compromisso de
retornar quando do seu falecimento, ainda muito jovem, em uma possível
“encarnação anterior”. Ela atravessou uma grande distância na Índia em condições
extremamente adversas para uma garota de 12 anos e localizou o ex-marido na
cidade onde “havia morado”, cobrando dele o compromisso quando ele já se
apresentava em segundas núpcias. Nessa mesma linha de pesquisas o Dr. Jim Tucker
(2007) analisa casos de crianças estadunidenses, céticas em relação a outras vidas.
No relato mais impressionante o garoto James Leininger, aos menos de dois anos de
idade já sofria com pesadelos nos quais se via caindo dentro de um avião em chamas.
Aficionado por aviões, descrevia-os em detalhes e relatava ter levantado voo de um
barco chamado Natoma, quando teria sido morto pelos japoneses em Iwo Jima.
Pesquisando o caso o Dr. Jim Tucker pode confirmar a existência de um porta-aviões
chamado USS Natoma Bay que participou de operações na Segunda Guerra Mundial
em Iwo Jima e que teve um de seus aviões derrubado pelos japoneses. Um piloto que
participou da operação relatou o fato exatamente como era contado pelo garoto, que
foi encontrando alívio de suas lembranças na medida em que foi tomando contato
com sua história.
No século XIX o prof. Hyppolite Léon Denizard Rivail entendeu ter encontrado
uma comprovação definitiva para a existência dos espíritos ao observar que
determinados fenômenos intelectuais produzidos mediante o uso de médiuns em
reuniões recreativas, ou mesmo em algumas sessões reservadas do espiritualismo
francês daquela época, tinham como melhor explicação a manifestação de uma
inteligência extracorpórea cuja personalidade poderia ser confirmada pelas
informações por ela apresentadas. Informações pessoais desconhecidas dos
presentes, relatos de pessoas que teriam morrido à distância sem que ninguém
tivesse conhecimento do fato, foram por ele considerados como evidências
suficientes para a comprovação da existência dessa consciência que independe do
corpo biológico, e que permanece atuante mesmo depois da sua morte. Ele estendeu
essa explicação a uma variada gama de fenômenos que sempre desafiaram o
entendimento humano, como as visões de pessoas mortas, os pressentimentos, o
déjà vu, ou o fenômeno das possessões, do âmbito da psiquiatria, quando uma
pessoa entra em surto psicótico e assume uma personalidade estranha à sua, agindo
como se fosse outro personagem. Moraes (2020) entende que ele parece ter achado
mais pertinente transformar as suas conclusões em uma doutrina de conteúdo
religioso e moral do que propriamente em um relatório científico, do que resultou a
criação do Espiritismo sob o pseudônimo de Allan Kardec.
Janet Oppenheim (2002) cita pesquisadores renomados da época, como o
físico William Crokes, que testaram a veracidade de determinados fenômenos
atribuídos aos espíritos, como a movimentação de objetos sem contato humano e
uma espécie de “materialização” de espíritos de pessoas mortas. Por mais que ele
tenha se convencido e apresentado relatórios que considerava conclusivos, seus
métodos de estudo não convenceram seus pares, que entenderam que não haviam
sido adotadas todas as precauções necessárias contra possíveis fraudes, colocando
183

em descrédito as suas conclusões. Moraes (2020) comenta os resultados de outros


pesquisadores como Gabriel Delanne, na França, Ernesto Bozzano, na Itália,
Alexandre Aksakof, na Rússia ou Charles Richet, na Inglaterra, que também tiveram
as conclusões de seus estudos simplesmente refutadas pelo meio científico sob os
mais variados argumentos, incluída a possibilidade de fraude, nunca comprovada.
Até mesmo pesquisadores brasileiros, como o grafoscopista e advogado Carlos
Augusto Perandréa (1991), que analisou cartas psicografadas pelo médium mineiro
Francisco Cândido Xavier procurando semelhanças e diferenças entre algumas
assinaturas que eram tidas como semelhantes às que as pessoas utilizavam quando
em vida, ou o físico Prof. Urbano Pereira (1946) que pesquisou um caso específico de
cura alegadamente realizada pelo espírito de um falecido padre através de um
médium espírita, comparando radiografias pré e pós operatórias, se ressentem de
não terem conseguido se subtrair à dúvida do meio científico, que sempre encontra
um argumento para negar a possibilidade do fenômeno.
Esses estudos, por mais que sejam sempre colocados sob suspeita pela
academia, fortalecem a tese de uma consciência independente da organização
cerebral, algo para além das sinapses que acontecem na estrutura físico-química do
cérebro, e que seria responsável por fazer manifestar na matéria o fenômeno da vida
e da inteligência. Segundo o Dr. Bruce Greyson (2007), pesquisador da Escola de
Medicina da Universidade de Virgínia, nos EUA:

A consciência mística e o funcionamento mental intensificado durante


uma EQM, quando o funcionamento cerebral está gravemente
prejudicado, são um desafio para os modelos atuais sobre a interação
cérebro/mente e podem, eventualmente, levar a modelos mais
completos para o entendimento da consciência. (GREYSON, 2007
p.116-125)

O Dr. Bruce Greyson entende que “apenas quando os neurocientistas


examinarem os atuais modelos de funcionamento mental à luz das EQMs, haverá
progressos na nossa compreensão do fenômeno da consciência e das suas relações
com o cérebro.”
Em 1991 o físico indiano radicado nos Estados Unidos Amit Goswami (1993)
apresentou uma teoria segundo a qual a matéria não possui em si a capacidade de
produzir o fenômeno da vida e da inteligência, e que para isso ela necessita ser
animada por alguma forma de consciência que lhe proporcione organização e
sentido. Com sua teoria ele entendia ser possível integrar à ciência os conceitos de
mente e consciência, tanto no nível do indivíduo quanto no nível macrocósmico.
Como ele não conseguiu apresentar meios pelos quais se pudesse testar a validade
das suas afirmações, elas foram consideradas pueris e pseudocientíficas. Não
encontrando aceitação entre seus pares ele passou a dedicar-se, após a sua
aposentadoria, a movimentos espiritualistas e humanitários.
184

UM CONFLITO DE PARADIGMAS

O paradigma epistemológico atualmente vigente é o da testabilidade da teoria,


conforme proposto por Karl Popper (1972). Uma teoria, para ser aceita pelo meio
científico, deve oferecer os elementos necessários para ser colocada em teste, ou
seja, ser falseada, para ser verificada pelos pares mediante a realização de novas
observações e experimentos, de modo a possibilitar um consenso em torno de suas
proposições. Se esse modelo de ciência se mostra extremamente eficiente quando
aplicado às pesquisas envolvendo fenômenos controláveis nos domínios da Física, da
Matemática, da Química, da Astronomia, da Geografia e até mesmo em uma grande
extensão do que é pesquisado em Biologia, ela encontra limitações quando se trata
de fenômenos sociais estudados pela História, Sociologia, Antropologia e, sobretudo,
pela Psicologia e pela Psiquiatria, que envolvem a vida e a sensibilidade humana.
Nessas áreas a experimentação e o teste quase sempre estão sujeitos a limites
ontológicos e éticos intransponíveis. Admite-se que seria possível a aplicação dos
modelos consensualistas baseados na validação de uma teoria pelos pares, mas essa
proposição encontra rejeição nas áreas das chamadas “ciências duras”, que lidam
com a matéria ou com a materialidade dos fatos.
Adotando uma combinação das perspectivas de Khun (2006) e de Lakatos
(apud Borges, 2007), seria aplicável aqui a ideia de paradigmas em conflito? De fato,
é possível identificar a existência de dois pressupostos concorrentes: um deles
admite a existência de uma consciência extracorpórea e independente da matéria,
enquanto o outro entende que qualquer fenômeno relacionado à consciência só
pode ser resultante de alguma função especial do cérebro, um epifenômeno das
funções cerebrais. Ocorre que este é o mesmo dilema que já existia entre Platão e
seu discípulo Aristóteles, apenas vestido sob roupagem moderna. Neste caso, seria
necessário admitir que se trata de um conflito paradigmático que perdura há mais de
dois milênios, uma espécie de abismo axiomático que leva os pesquisadores de cada
um dos lados a continuarem elaborando teorias auxiliares que alimentam as tensões
construídas no núcleo rígido dos seus pressupostos, sem nenhuma possibilidade de
conciliação.
Mesmo a análise dos processos heurísticos, negativos ou positivos, não parece
dar conta do abismo que se coloca entre essas duas correntes, porque diante de
dados que negam as suas teorias, dá-se aquilo que Borges (2007) destaca em Lakatos:
qualquer que seja o lado em que se situa, o cientista “afunda-se na sua cadeira, fecha
os olhos e esquece os dados”, criando novas explicações e novas teorias auxiliares
que fortaleçam o cinturão que protege o núcleo central dos seus axiomas. Lakatos já
havia constatado que “os seres humanos não são animais completamente racionais;
e mesmo quando agem racionalmente, podem ter uma falsa teoria de suas próprias
ações racionais.”
Diante de conflitos paradigmáticos mais persistentes observa-se o que Schultz
(2007) comenta a respeito do físico Max Planck, que chegou a admitir que “uma nova
verdade científica não triunfa por convencer seus opositores e fazê-los ver a luz, mas
sim porque estes terminam por morrer, e uma nova geração vai crescendo
185

familiarizada com ela”. Mas mesmo essa expectativa se mostra insuficiente quando
se trata das pesquisas acerca da consciência, uma vez que se trata de uma
divergência milenar e sem nenhuma perspectiva de entendimento à vista. Conforme
Lakatos citado por Borges (2007), “com suficiente habilidade e com alguma sorte,
qualquer teoria pode defender-se progressivamente durante longo tempo, inclusive
se é falsa.”

ANTE OS LIMITES DA RACIONALIDADE


Se a consciência é apenas um epifenômeno da organização cerebral, uma
resultante de um processo eletroquímico chamado vida, ou se ela é algo externo à
fisiologia humana e que, ao contrário, anima a organização fisiológica
proporcionando-lhe vitalidade e sentido de existência, continua sendo uma discussão
que perdura, para além do tempo, desafiando todos os sistemas. Filosofias se
renovam, pesquisas se ampliam, mas o abismo persiste. Aristóteles e Platão
evoluíram no tempo, modernizaram seus argumentos, ancoraram-se nos mais
sofisticados laboratórios e nos mais consistentes métodos de pesquisa, mas a
controvérsia persiste.
Como complicador, a apropriação do universo das pesquisas científicas pelos
interesses do capital faz escassear recursos e financiamento para áreas que não
estejam diretamente implicadas na possibilidade de obtenção de lucro, ainda que no
longo prazo. E essas áreas não apresentam um horizonte de lucratividade, o que
influencia na determinação dos campos de interesse por parte dos pesquisadores,
relegando essas temáticas ao domínio dos idealistas e dos sonhadores.
Isso pode significar, pelo menos neste campo específico de pesquisas, que
estamos diante de obstáculos insuperáveis, pelo menos enquanto permanecer em
vigência o atual modelo de sociedade. Yuval Noah Harari (2014) pondera que
nenhuma crença tem sido mais eficaz do que a crença no poder do dinheiro, ou seja,
do capital, erguido à condição de deus da civilização ocidental. Não há nenhum
interesse, por parte do capital, em financiar pesquisas que venham a negar a
supremacia da matéria, que é a base da sua formação.
Do alto de sua perspicácia, Nietzsche (2013) alertava que “convicções são
inimigos da verdade mais perigosos que as mentiras” e, por mais que nenhum
cientista se sinta confortável ante essa afirmação, pressupostos, princípios, axiomas,
sobretudo nessa área de pesquisas, estão situados muito mais no nível das
convicções do que das conclusões firmadas com base em experimentações e testes
ou em uma criteriosa observação dos fenômenos de natureza psíquica.
Pode ser que toda essa controvérsia apenas esteja evidenciando um limite da
racionalidade humana, muitas vezes desconsiderado quando se trata de
epistemologia, mas que teve força suficiente para atravessar os milênios, seja sob o
nome pomposo de “pressuposto axiomático”, seja sob a ideia traduzida pela palavra
“crença”.
Se na Idade Média a crença cega em um elemento espiritual atrasou em várias
gerações a pesquisa científica e o desenvolvimento da tecnologia, corremos o risco
de estarmos vivendo agora um movimento contrário, que é a crença cega em alguma
186

espécie de superpoder da matéria. Neste caso, essa crença cega no poder da matéria
também pode nos atrasar em séculos na direção de uma melhor compreensão da
consciência e do ser humano que a abriga.

REFERÊNCIAS

BORGES NETO, José. Imre Lakatos e a Metodologia dos Programas de Investigação


Científica, papper UFPR/CNPq, disp. 29/07/2020 em
https://docs.ufpr.br/~borges/publicacoes/para_download/Lakatos.pdf
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United Kingdom, 2005.
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34, supl 1; 116-125, 2007.
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Tucker, Jim B. Vida Antes da Vida: Uma Investigação Científica das Memórias de
Vidas Passadas em Crianças. Ed. Pensamento, São Paulo/SP, 2007.
187

CONTOS DESTA E DOUTRA VIDA: O IMAGINÁRIO DAS


ÁGUAS NO COMPARATISMO LITERÁRIO ENTRE CHICO
XAVIER/IRMÃO X E BERNARDO ÉLIS

GISMAIR MARTINS TEIXEIRA


Pós-Doutorando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

MARIA DO SOCORRO PEREIRA LIMA


Mestra em Performances Culturais
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

RESUMO: No ano de 1964, o médium espírita Chico Xavier publicava o seu 79º livro
psicográfico. Intitulado Contos desta e doutra vida, a obra era espiritualmente
assinada com o enigmático pseudônimo de Irmão X, alcunha com que o espírito do
escritor maranhense, Humberto de Campos, passou a escrever do além após médium
e editora serem processados pelos familiares de Campos. Isto, segundo o imaginário
espírita. Em Contos desta e doutra vida, o conto intitulado “Verdugo e vítima”
apresenta instigantes homologias no âmbito do imaginário com a narrativa “Nhola
dos Anjos e a cheia do Corumbá”, do escritor goiano Bernardo Élis. Constante de sua
obra Ermos e gerais, a narrativa de Élis apresenta riqueza exegética alusiva às
imagens simbólicas da água que se complementa simétrica e culturalmente com a
discursividade de Irmão X, sobretudo quando cotejadas sob a definição de imaginário
do pesquisador francês, Gilbert Durand. Este estudo objetiva, pois, investigar o
imaginário das águas por meio de uma abordagem de literatura comparada entre os
dois contos. Configura-se, ainda, como uma glosa a um sutil trocadilho implícito no
título do volume de Irmão X no contexto comparativista da produção de um autor
vivo ao de um autor morto, conforme advoga o imaginário do sistema simbólico
religioso espírita. O método adotado será o da análise de conteúdo no âmbito das
epistemologias do imaginário e do comparatismo literário. Os resultados alcançados
apontam para a conclusão de que a literatura comparada e o imaginário constituem
fértil campo de diálogo entre a tradição literária e a literatura espírita.

Palavras-chaves: Chico Xavier/Irmão X; Bernardo Élis; Imaginário; Literatura


comparada.
188

INTRODUÇÃO

A definição de literatura apresenta complexidades epistemológicas que


parecem distantes de serem superadas. A escola literária alemã (CANDIDO, 1996, p.
12) talvez seja uma das que melhor lidam com o problema, cunhando termos
específicos para a referência à literatura tanto com o significado geral de tudo que se
produz sob a batuta da escrita quanto à especificidade artística do que alguns autores
denominam literatura de ficção e/ou imaginativa.
Apresentando como uma de suas características fundamentais a profusão de
gêneros, o universo da arte literária se mostra eivado de possibilidades e realizações
epistêmicas que tentam dar conta de todo o seu rico universo. No presente estudo,
trazemos a contribuição da literatura comparada a partir da perspectiva de análise
que tende a ver no produto literário a expressão da sociedade (CARVALHAL, 2006, p.
15).
Do comparatismo entre os contos “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá” e
“Verdugo e vítima”, de Bernardo Élis e Chico Xavier/Irmão X respectivamente,
abrimos diálogo com a conceituação de imaginário da proposição de Gilbert Durand
(2012, p. 18), investigando sucintamente aspectos exegéticos da performance
cultural subjacente ao comparatismo entre os dois discursos narrativos que vinculam
o canônico literário ao fenômeno mediúnico do espiritismo kardeciano através da
discursividade de um de seus maiores ícones brasileiros, o médium Chico Xavier.

CONTO DESTA VIDA, IMAGINÁRIO E COMPARATISMO

O pesquisador francês, Gilbert Durand, define o imaginário como sendo o


“conjunto de imagens e relações de imagens que constitui o capital pensado do homo
sapiens (2012, p. 18).” É uma definição que abarca de maneira satisfatória o lato
sensu conceitual em torno do campo de estudo investigado por ele. Nesse contexto,
o conjunto de imagens e suas relações se adivinham infinitos em suas possibilidades
heurísticas. A água, a literatura e o espiritismo configuram, por si sós, um conjunto
independente de imagens que vão apresentar-se, todavia, intimamente imbricadas
na performance cultural que é apresentada neste trabalho, vinculando-se de forma
epistêmica no âmbito da literatura comparada.
Em Literatura comparada, Tânia Carvalhal (1986) descreve analiticamente a
história desse campo de estudo literário que teve origem no começo do século
passado. Apontando suas origens, problemas e soluções que foram estabelecendo-se
ao longo das décadas, a autora registra a importância de conceitos que se tornaram
funcionalmente operacionais no cerne do comparatismo literário, como, por
exemplo, a noção de intertextualidade (CARVALHAL, 1986, p. 53), que é definido por
sua formuladora, Julia Kristeva, como textualidade que se caracteriza como um
mosaico de citações, pois “todo texto é absorção e transformação de outro texto
(KRISTEVA, 1974, p. 74).”
Na conclusão de seu trabalho, registra Tânia Carvalhal que a literatura
comparada não se resume ao confronto entre obras ou autores, nem a perseguir
189

imagens e temas de uma literatura em outra (CARVALHAL, 1986, p. 86): “A literatura


comparada ambiciona um alcance ainda maior, que é o de contribuir para a
elucidação de questões literárias que exijam perspectivas amplas.” Assim, mais que
intertextos evidentes, os contos de Bernardo Élis e Chico Xavier/Irmão X dialogam
entre si através dos imaginários de que estão eivados, sendo que a correlação de
imaginários entre o espiritismo e a literatura configura aqui um dado remissivo à
perspectiva ampla defendida por Carvalhal em sua abordagem sobre o
comparatismo.
No ano de 1944, o escritor goiano Bernardo Élis estreava na literatura de ficção
com o livro de contos intitulado Ermos e Gerais (2005). Nessa obra, composta desse
gênero de narrativas curtas, Élis apresenta em peças como “A mulher que comeu o
amante” e “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá” um panorama da existência
sofrida do sertanejo goiano migrante na primeira metade do século XX. Em Veranico
de janeiro, Bernardo Élis (1979) retornará a esse pathos narrativo em contos como “A
enxada”, peça que denuncia a crueldade e o desamparo social a que estavam
submetidos os sertanejos do interior de Goiás num período em que o coronelismo
campeava ao arrepio da lei.
No âmbito da historiografia literária foi uma estreia com o pé direito.
Referenda esta assertiva o fato de que às vésperas da virada de século e de milênio, o
conto “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá” foi selecionado para compor a
coletânea Os cem melhores contos brasileiros do século XX (2000). Em momento
posterior, foi incluído em coletânea da editora Global, que enfeixou as melhores
narrativas de Bernardo Élis (2003), conforme a apreciação seletiva de Gilberto
Mendonça Teles, representativo crítico literário e escritor goiano de expressão
nacional e internacional.
Na introdução de Melhores contos de Bernardo Élis, Mendonça Teles (2003, p.
7) evoca a metáfora do rio para discorrer acerca da excelência narratológica de seu
conterrâneo no contexto da prosa brasileira desde Machado de Assis aos dias atuais,
num panorama macro-histórico. “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá” vai ter
como pano de fundo exatamente as águas do caudaloso rio Corumbá, ainda mais
agitadas pela enchente que vai desencadear a tragédia sobre o conjunto das
personagens que compartilham um triste destino. A narrativa tem início com Nhola
dos Anjos, a matrona da família, pedindo ao neto que vá ao terreiro fazer um olho de
boi, simpatia sertaneja para findar a chuva que caía persistente e avolumava o leito
do rio, cujo barulho fazia pressentir o desfecho sinistro com que o conto é encerrado.
Vítima de paralisia das pernas, Nhola dos Anjos era mãe de Quelemente e avó de um
“biruzinho sempre perrengado (ELIS, 2003, p. 28)”, a que se somava um cachorrinho
de estimação.
No momento em que a água invade o rancho, que começa a desfazer-se,
Quelemente nada até a porta feita com buritis e improvisa uma jangada para que
todos possam fugir da fúria das águas para um local mais seguro em meio às árvores
próximas à paupérrima residência. Durante a tentativa de navegação, a improvisada
embarcação é atingida por um tronco de árvore tragada pela enchente, ameaçando
soçobro. Nhola dos Anjos cai na água, mas consegue ainda agarrar-se à jangada.
190

Todavia, Quelemente percebe que a improvisada embarcação não aguentará mais os


três ocupantes.
De maneira instintiva desfere um golpe de pé no rosto materno, que cai na
água mas consegue recobrar-se, subindo novamente à tona e agarrando-se à
jangada. Outra vez, o instinto de sobrevivência se destaca e ele repete o gesto. Dessa
vez, porém, é fatal. A velha mãe desaparece no remoinho da água. Num golpe da
correnteza, Quelemente é arremessado na água, mas consegue ficar de pé. Ao
perceber que onde se encontrava era raso, tenta desesperadamente reencontrar a
mãe. O remorso, à semelhança do coice que dera no rosto materno, é forte e ele se
atira em desespero às águas na tentativa vã de reencontrar a mãe.
Narra Bernardo Élis o desfecho trágico após referir-se às águas da enchente
como barrentas, furiosas e com vozes de pesadelo, com resmungo de fantasmas, com
“timbres de mãe ninando filhos doentes, uivos ásperos de cães danados. Abriam-se
estranhas gargantas resfolegantes nos torvelinhos malucos e as espumas de noivado
ficavam boiando por cima, como flores sobre túmulos (ÉLIS, 2003, p. 32)”,
concluindo:

- Mãe! - lá se foi Quelemente, gritando dentro da noite, até que a


água lhe encheu a boca aberta, lhe tapou o nariz, lhe encheu os olhos
arregalados, lhe entupiu os ouvidos abertos à voz da mãe que não
respondia, e foi deixá-lo, empazinado, nalgum perau distante, abaixo
da cachoeira (ÉLIS, 2003, p. 32).

A tragédia de Nhola dos Anjos, Quelemente, o neto e o cachorrinho, impregna-


se em sua exegese do imaginário das águas, que será abordado mais de perto na
seção seguinte em conjunto com a intertextualidade do conto espírita psicografado
por Francisco Cândido Xavier, que dialoga de forma exemplar com a narrativa de
Bernardo Élis.

CONTO DOUTRA VIDA E IMAGINÁRIOS

A partir de 1932, um insólito fenômeno mediúnico passou a incomodar o


universo das letras, como uma espécie de espinho no sapato do universo literário. A
publicação do livro Parnaso de além-túmulo, da mediunidade de um jovem de 22
anos causou alvoroço. A psicografia representa a inusitada performance cultural em
que supostamente os mortos movimentariam as mãos de alguém vivo, um médium
na taxonomia espírita, para escrever através delas. Era o caso de Francisco Cândido
Xavier e sua obra então inaugural, a que se somaria futuramente cinco centenas de
volumes de narrativas congêneres.
Parnaso de além-túmulo (1978) é composto de poemas de cerca duas dezenas
de autores luso-brasileiros afeitos à poesia. Chico Xavier, como o médium ficou
conhecido nacionalmente, psicografaria não somente no gênero poesia. A prosa,
através de romances históricos e contos, faria parte também da produção xavieriana.
Humberto de Campos, um importante nome da historiografia literária da primeira
191

metade do século XX, passaria, após a morte, a integrar o conjunto dos autores que
do além-túmulo escreveriam pela mediunidade de Chico Xavier.
A parceria entre o médium e Humberto de Campos renderia um processo na
justiça por direitos autorais. Por conta desse imbróglio, o escritor maranhense
passaria a assinar suas produções com o pseudônimo de Irmão X, segundo a
historiografia espírita. Em Contos desta e doutra vida, de que o título deste trabalho
e suas seções constituem uma glosa, a parceria Chico Xavier/Irmão X traz uma
narrativa que funciona como intertexto da peça literária de Bernardo Élis.
O conto psicográfico de Irmão X se intitula “Verdugo e vítima”. O seu início
remete, do ponto de vista das relações imagéticas, à estrutura narrativa de “Nhola
dos Anjos e a cheia do Corumbá” em suas descrições sobre a enchente. Descreve o
autor: “O rio transbordava. Aqui e ali, na crista espumosa da corrente pesada,
boiavam animais mortos ou deslizavam toras e ramarias. Vazantes em torno davam
expansão ao crescente lençol de massa barrenta (IRMÃO X, 2010, p. 28).”
Atento à cheia que se aproxima, a personagem Quirino, que funcionava como
barqueiro naquela emergência, planeja um crime hediondo. Sabedor de que nas
proximidades do rio vivia um idoso usurário, Licurgo, ele vai até a fazenda onde a
futura vítima residia para adverti-la do perigo da cheia. Licurgo dizia confiar em Deus
e no rio (IRMÃO X, 2010). Tomado de ímpeto assassino, Quirino empurra o velhinho
para dentro de casa e passa a asfixiá-lo, ouvindo entredentes um pedido da vítima
para que não fosse morto covardemente. Em vão.
Praticado o crime, o verdugo se apossa de um molho de chaves que encontra e
passa a buscar pela riqueza do idoso assassinado, encontrando uma considerável
fortuna. Aproveitando-se da forte enchente, enrola o cadáver em um cobertor e o
atira à correnteza forte. Com o passar do tempo, a consciência passa a cobrá-lo pelo
gesto infeliz. Assim, ele resolve retirar-se para cidade distante daquele local, onde
constitui família e monta um comércio, num ethos evocativo do primeiro assassino
bíblico, Caim, que ao matar o irmão Abel se retira para cidade distante, onde se casa
e forma família. Narra Irmão X pela psicografia de Chico Xavier:

Passado algum tempo, o homicida não vê que uma sombra se lhe


esgueira à retaguarda. É o Espírito de Licurgo, que acompanha o
tesouro. Pressionado pelo remorso, o barqueiro abandona a região e
instala-se em grande cidade, com pequena casa comercial, e casa-se,
procurando esquecer o próprio arrependimento, mas recebe o velho
Licurgo, reencarnado, por seu primeiro filho... (IRMÃO X, 2010, p.
29).

Ao discorrer sobre o imaginário das águas em seu tratado, Gilbert Durand


(2012, p. 35) evidencia o quão rico ele é na cultura universal, pois se trata de símbolo
que apresenta uma duplicidade pontuada por matizações que reverberam ao longo
de seu estudo (DURAND, 2012, p. 35): “[...] o elemento aquático divide-se contra si
mesmo, a água clara não tendo de forma nenhuma o mesmo sentido que as águas
fechadas e profundas, a água calma significando o contrário da água violenta [...].”
192

Nos contos em foco, estamos obviamente diante da perspectiva das águas fechadas,
violentas.
Autor recorrente no tratado de Durand, Gaston Bachelard traz, em A água e os
sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, um sem número de considerações
que dialogam com ambos os contos deste estudo ao relacionar o destino humano e
sua finitude à água: “Desaparecer na água profunda ou desaparecer num horizonte
longínquo, associar-se à profundidade ou à infinidade, tal é o destino humano que
extrai sua imagem do destino das águas (1997, p. 14).” Nessa obra seminal do
imaginário, propõe Bachelard (1997, p. 14) os complexos de Caronte e de Ofélia
“para bem caracterizar essa sintaxe de um devir e das coisas, [...] da vida, da morte e
da água.”
Aqui nos interessa o primeiro complexo. Quelemente e Quirino emulam
Caronte, o mitológico barqueiro encarregado de encaminhar a alma defunta pelo rio
que conduzia à mansão dos mortos ou para o outro lado de um rio infernal (DURAND,
2012, p. 204). Tanto um quanto o outro desempenham o papel literário de Caronte.
O primeiro, de forma quase involuntária, tangido pelo instinto de preservação. O
segundo, de forma deliberada, criminosa.
As personagens de “Verdugo e vítima” pertencem ao conjunto relacional de
imagens que compõem o imaginário espírita, cuja correspondência com a narrativa
de “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá” se instaura a partir das asserções de
Tânia Carvalhal sobre o alcance do comparatismo literário na elucidação de
problemas “que exijam perspectivas amplas (CARVALHAL, 1986, p. 86).”
Em O evangelho segundo o espiritismo, Allan Kardec (2013, p. 68), fundador
epistêmico do espiritismo, estabelece uma exegese da passagem evangélica em que
Jesus diz a Nicodemos que para ver o reino de Deus é necessário nascer de novo, da
água e do espírito. Kardec evoca o pensamento da antiguidade (2013, p. 69),
apontando que a água simbolizava o elemento material, enquanto o espírito
representa o transcendente. Nascer da água e do espírito significaria, portanto,
tomar um novo corpo pelo processo conhecido como reencarnação.
Ao reencarnar, a alma traz em si as consequências de suas vidas passadas,
submetendo-se a provas e expiações para evoluir ao infinito (KARDEC, 2013),
deparando, a todo instante, com as consequências de seus atos. No texto de Chico
Xavier/Irmão X, Quirino recebe sua vítima de volta, reencarnada como filho. No texto
de Bernardo Élis, a consciência de Quelemente se torna seu próprio algoz.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No âmbito doutrinário do imaginário do espiritismo kardeciano, a expiação é o


pagamento realizado, pela alma, de suas faltas passadas, o que pode ser também
conseguido mediante a reencarnação quando a falta foi cometida em outra
existência corporal. No conto mediúnico de Irmão X, a expiação de Quirino é
transcendente, já que é posta em movimento por forças superiores e alheias a sua
vontade. A expiação de Quelemente, por sua vez, é imediata, sendo movida pela sua
própria consciência, de forma quase instantânea ao crime perpetrado nas torrentes
193

do Corumbá em cheia, segundo o paradigma da doutrina sistematizada por Allan


Kardec.
Neste estudo, buscamos evidenciar de forma breve como a correlação entre os
pressupostos do imaginário e da literatura comparada podem funcionar como
elementos que se integram como perspectivas mais amplas da assertiva de Carvalhal
para buscar relacionar, para além da intertextualidade que vincula ambas as
narrativas, uma performance cultural, na literatura, entre o canônico e a
paraliterário.

REFERÊNCIAS

BACHELARD, Gaston. A água e os sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria. São


Paulo: Martins Fontes, 1997.
CARVALHAL, Tânia Franco. Literatura comparada. São Paulo: Ática, 2006.
CANDIDO, Antonio. O estudo analítico do poema. São Paulo: Humanitas Publicações,
1996.
DURAND, Gilbert. As estruturas antropológicas do imaginário: introdução à
arquetipologia geral. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, 2012.
ÉLIS, Bernardo. Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá. In: MORRICONI, Ítalo (Org.).
Os cem melhores contos brasileiros do século. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2000.
______.Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá. In: TELES, Gilberto Mendonça. Os
melhores contos de Bernardo Élis. Rio de Janeiro: Editora Objetiva, 2003.
______.Ermos e gerais. São Paulo: Martins Fontes, 2005.
______.Veranico de janeiro. Rio de Janeiro: José Olympio, 1979.
GOMES, Abel et al (Espíritos). Parnaso de além-túmulo. Psicografado por Francisco
Cândido Xavier. Rio de Janeiro: FEB, 1978.
IRMÃO X (Espírito). Verdugo e vítima. In: Contos desta e doutra vida. Psicografado
por Francisco Cândido Xavier. Rio de Janeiro: FEB, 2010. p. 28-30. Disponível em:
http://www.oconsolador.com.br/linkfixo/bibliotecavirtual/chicoxavier/contosdestae
doutravida.pdf. Acesso em: 28 out. 2020.
TELES, Gilberto Mendonça. A síntese su/realista de Bernardo Élis. In: TELES, Gilberto
Mendonça. Os melhores contos de Bernardo Élis. Rio de Janeiro: Editora Objetiva,
2003.
KARDEC, Allan. O evangelho segundo o espiritismo. Brasília: FEB, 2013.
KRISTEVA, Julia. Introdução à semanálise. São Paulo: Perspectiva, 1974.
194

O “CONTRATURNO ESCOLAR VAMOS JUNTOS” DA


SOCIEDADE ESPÍRITA TRABALHO E ESPERANÇA (SETE): UMA
PRÁTICA PEDAGÓGICA GENUINAMENTE ESPÍRITA?

JOÃO PAULO GODOY


Mestrando em Educação
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

RESUMO: No meio espírita kardecista, sobressai a figura de Eurípedes Barsanulfo,


fundador do primeiro colégio espírita do Brasil, no ano de 1907, o Colégio Allan
Kardec. Tal experiência inaugura uma proposta pedagógica espírita genuinamente
brasileira entendo que a criança apenas “está” criança, embora seja uma alma velha,
herdeira de múltiplas vidas, que vai interagir com hereditariedade, sociedade e
educação, (re)construindo-se a si mesmo na presente existência, devendo-se no
entanto ser respeitada a sua autonomia enquanto Espírito imortal, livre e antigo
(BIGHETO, 2006). Nesta pesquisa, buscamos articular a revisão bibliográfica
publicada anteriormente por Godoy, Pimentel e Cabral (2019) com a proposta
pedagógica de trabalho da Sociedade Espírita Trabalho e Esperança - SETE, no
oferecimento do Contraturno Escolar Vamos Juntos, buscando responder a seguinte
questão: é possível identificar nesta prática elementos genuínos da pedagogia
espírita barsanulfiana? O campo de pesquisa é uma associação sem fins lucrativos
criada em 1994 cuja missão estatutária é auxiliar pessoas e comunidades excluídas a
transformarem sua própria realidade, garantindo direitos e promovendo a inclusão
social durante o contraturno escolar. Como método de pesquisa utilizou-se a
pesquisa participante, na qual o pesquisador não só observa os fenômenos, como
também compartilha e vive a experiência com os investigados (SEVERINO, 2007). Os
resultados da investigação demonstraram indícios de práticas da pedagogia espírita
no projeto, em especial, em cinco aspectos principais identificados: 1) escola aberta
para todos, sem qualquer distinção; 2) relações baseadas no afeto e pouco
hierarquizadas; 3) práticas solidárias e de autogestão; 4) estímulo ao debate e à
autonomia e 5) currículo diversificado, na busca por uma educação integral. Estes
aspectos mencionados se traduzem, no projeto, em diferentes práticas pedagógicas
rotineiras identificadas na instituição: rodas de conversa, assembleias de educandos,
conversas no um-a-um, grupos de responsabilidade, passeios e resolução dialógica
de conflitos.

Palavras-chave: pedagogia espírita; espiritismo; Eurípedes Barsanulfo; contraturno


escolar.
195

INTRODUÇÃO

Embora religião e educação sejam fenômenos distintos do ponto de vista social


e cultural, representando aspectos da realidade com contornos mais ou menos
definidos, é inegável que haja entre eles diversas intersecções. Na verdade, quando
mais se recua, no tempo histórico do Brasil, menos claramente definidos eles estão.
De fato, a educação institucionalizada72 no Brasil começa com a chegada dos
representantes da Companhia de Jesus no Brasil, a partir da fundação dos primeiros
colégios na colônia portuguesa, em meados do século XVI, na busca pela
catequização dos indígenas.
De acordo com Saviani (2013), de 1549 a 1759 a educação era de monopólio
exclusivo da Igreja Católica. Somente a partir dessa época e até o século XIX, a Igreja,
embora ainda fortemente presente, perderá o monopólio exclusivo (por diversas
razões históricas que não cabe aqui mencionar), e somente a partir do século XIX,
com o fortalecimento das ideias republicanas, passa-se a falar em uma pedagogia
laica, ainda que a Igreja ainda tivesse muita influência (e até hoje: basta pensar nas
diversas escolas católicas existentes, da pré-escola à universidade).
As escolas espíritas, ao seu turno, surgem no Brasil no início do século XIX,
portanto, logo após a abolição da escravatura e a proclamação da República. A
primeira que se tem notícia, no Brasil, teria sido o Colégio Allan Kardec, fundado por
Eurípedes Barsanulfo em 1907, na cidade de Sacramento, Minas Gerais. A figura de
Eurípedes é bastante quista no movimento espírita, especialmente pelo engajamento
doutrinário, caritativo e ostensividade mediúnica, embora ele também tenha sido
político e educador. A prática pedagógica de seu colégio é pouco conhecida pelos
pedagogos e também pelos espíritas, embora paradigmática. Segundo Dora Incontri,
pesquisadora da educação espírita, “embora mal documentada, permanece até hoje
não superada, pela sua originalidade e pela pujança com que se manifestam os
elementos mais significativos da pedagogia espírita” (INCONTRI, 2001, p. 214). Esta,
por sua vez, entende, grosso modo, que a criança apenas “está” criança, embora seja
uma alma velha, herdeira de múltiplas vidas, que vai interagir com hereditariedade,
sociedade e educação, (re)construindo-se a si mesmo na presente existência,
devendo-se no entanto ser respeitada a sua autonomia enquanto Espírito imortal,
livre e antigo (BIGHETO, 2006).
A presente pesquisa buscou investigar uma prática educativa contemporânea,
levada a feito por uma instituição sem fins lucrativos de Goiânia, com o intuito de
verificar a presença (ou não) de elementos da pedagogia espírita em seu bojo.
Cremos oferecer, com o presente texto, a partir de uma pesquisa de campo, uma
contribuição teórica e prática para o debate sobre a pedagogia espírita, campo que,

72
É bom lembrar que, antes da chegada dos portugueses, os indígenas nativos dessa terra já, obviamente,
educavam suas crianças. Curioso que, embora constituam tipos de sociedades extremamente diferentes da
portuguesa, também nelas há uma relação muito íntima entre educação e religião. Em verdade, nas diversas
sociedades indígenas brasileiras, “as várias esferas da vida social encontram-se imbricadas de tal forma que
nunca podemos analisá-las isoladamente [...] são aspectos de um mesmo e único processo: o da reprodução
material e simbólica da vida social” (TASSINARI, 2004, p. 250).
196

ao nosso ver, está em processo de construção, mas que muito pode contribuir com a
educação espírita e a educação de um modo geral73.

METODOLOGIA

A questão investigadora dessa pesquisa é: é possível identificar na prática


pedagógica do Contraturno Vamos Juntos elementos genuínos da pedagogia espírita
barsanulfiana? O campo de pesquisa é o da Sociedade Espírita Trabalho e Esperança,
também denominada SETE, uma associação sem fins lucrativos criada em 1994 cuja
missão estatutária é auxiliar pessoas e comunidades excluídas a transformarem sua
própria realidade, garantindo direitos e promovendo a inclusão social. O Contraturno
Escolar Vamos Juntos é uma das atividades sociais da referida instituição, que atende
em torno de 100 crianças e adolescentes da região em atividades educativas, lúdicas,
recreativas e esportivas.
Como método de pesquisa utilizou-se a pesquisa participante, na qual o
pesquisador não só observa os fenômenos, como também compartilha e vive a
experiência com os investigados (SEVERINO, 2007), no caso, como educador e
coordenador do referido projeto. O referencial teórico utilizado como base para a
compreensão da prática pedagógica de Eurípedes Barsanulfo veio de pesquisa
bibliográfica anteriormente por nós realizada (GODOY; PIMENTEL; CABRAL, 2020). A
partir de notas de campo, realizada pela observação participante, foi possível
estabelecer aproximações e distanciamentos entre a prática espírita basnaulfiana e a
prática da SETE. Os resultados seguem a seguir.

RESULTADOS

Na pesquisa bibliográfica sobre a Pedagogia de Eurípedes (GODOY; PIMENTEL;


CABRAL, 2020), um dos aspectos mais importantes que salta aos olhos considerando
o contexto vivido por Barsanulfo foi o fato de o Colégio Allan Kardec incluir crianças e
professores negros em seus quadros, num período marcado pela marginalização dos
negros e por discursos racistas, além da não separação de gênero, pois o colégio era
misto, meninas e meninos conviviam juntos e realizavam as atividades escolares sem
qualquer divisão (numa época em que a premissa era a separação). Além disso, o
colégio atendia a pessoas de diversas classes sociais, sendo gratuito, apesar de
particular, incluindo diversas crianças pobres de Sacramento que não teriam onde
estudar (o acesso à educação básica, naquela época, também era restrito à elite

73
Cremos que a pedagogia espírita tem dado uma contribuição real para a ciência pedagógica, e não estamos
sozinhos nesta compreensão. O pedagogo português José Pacheco, teórico, pesquisador, escritor e educador
atuante, idealizador e fundador da Escola da Ponte em Portugal - instituição de renome internacional e
referência no que diz respeito à inovação educacional - é estudioso da experiência escolar desenvolvida por
Eurípedes e categórico ao afirmar que, “há 102 anos, em 1907, o Brasil teve aquilo que eu considero o projeto
educacional mais avançado do século 20. Se eu perguntar a cem educadores brasileiros, 99 não conhecem. Era
em Sacramento, Minas Gerais, mas agora já não existe. O autor foi Eurípedes Barsanulfo, que morreu em 1918
com a gripe espanhola. Este foi, para mim, o projeto mais arrojado do século 20, no mundo. (PACHECO, 2009,
s/p) Ressalte-se que nem Pacheco nem a Escola da Ponte são espíritas.
197

econômica).
Esta pretensão de universalidade parece, pois, uma marca de uma ética
pedagógica espírita. Na SETE, verificou-se que há igualmente o compromisso com o
acolhimento a todos, gratuitamente, sem qualquer tipo de distinção de credo, cor,
partido político, orientação sexual, etc., inclusive como obrigação estatutária da
referida instituição. Trata-se - a universalidade - de elemento presente na fala dos
diretores e educadores e assumido enquanto princípio da instituição. Vê-se, pois, um
primeiro ponto de convergência74, e a própria relação marcada pela afetividade
identificada no espaço parece corroborar com este elemento.
De fato, um segundo ponto de convergência que podemos visualizar entre a
prática de Eurípedes e a da SETE é a vivência de uma relação pedagógica baseada no
afeto, na amistosidade, no diálogo e na relativização de hierarquias. De acordo com
Silva (2017), o Colégio Allan Kardec “se destacou principalmente por oferecer o
ensino pautado no afeto, em um momento histórico em que a palmatória era
instrumento de ensino aplicado aos indisciplinados e aos que não aprendiam” (2017,
p. 112-113). Não haviam castigos nem punições no Colégio Allan Kardec e as relações
entre adultos e crianças não eram tão rígidas. Os relatos destacam Eurípedes como
uma pessoa carinhosa, sorridente, cativante, jovial, capaz de conversar longo tempo
com os discípulos, e buscando a solução para as discordâncias e conflitos no diálogo
(BIGHETO, 2006, p. 119).
Na SETE, a identificação de algumas práticas usuais na instituição converge com
esta marca da pedagogia espírita basnaulfiana. As relações entre educadores e
crianças são marcadas pelo afeto e diálogo75. O espaço defende a utilização cotidiana
de rodas de conversa, nas quais os educandos são convidados a exporem ideias,
opiniões e sentimentos, aprendendo a falar e a ouvir. Defende, igualmente, o diálogo
no um-a-um, seja nos momentos de entrada ou saída, como também nos momentos
de lanche, realizado em conjunto com educadores e educandos, sem separação.
Defende, ainda, explicitamente, a resolução dialógica de conflitos e a comunicação
não-violenta. Por fim, a presença dos grupos de responsabilidade e assembleias
parecem romper com a hierarquia mais rígida presente nos espaços convencionais de
ensino, tanto quanto promover a responsabilização e o cuidado com o coletivo, outra
marca presente no Colégio Allan Kardec.
Este, aliás, é o terceiro ponto de convergência: para Eurípedes, a educação no
interior da escola deveria promover a responsabilização e a solidariedade de todos
para com todos, seja no trato, nas relações ou mesmo no cuidado com os materiais e
espaço. Ex-alunos afirmam que “se sentiam em casa no colégio, ajudavam em
diversas tarefas, colaboravam mutuamente, vivam como numa grande família”
(BIGHETO, 2006, p. 156-157). Assim, para o funcionamento do Colégio Allan Kardec,

74
Entendemos, no entanto, que pesquisas mais aprofundadas poderiam identificar elementos subliminares de
inclusão e/ou exclusão que ocorrem dentro do espaço pedagógico da SETE e não percebidos pela pesquisa.
75
A pesquisa realizada pelas professoras Gabassa, Elias e Girotto, que investiga a SETE, percebeu também a
presença constante do afeto e do diálogo como marca da prática pedagógica deste espaço. “O diálogo, de fato,
foi percebido como o eixo central na relação entre os educadores(as) e as crianças [...]”. (GABASSA; ELIAS;
GIROTTO, 2017, p. 423)
198

contava-se com a colaboração de todos.

Professores e estudantes se revezavam para garantir a organização


da instituição. Os professores se comprometiam principalmente com
as atividades de ensino e os estudantes, além de frequentarem as
aulas e atividades para o aprendizado, também se comprometiam
como voluntários para oferecer assistência no que fosse possível: nas
atividades de limpeza, na organização de materiais utilizados no
colégio, na colaboração para a organização das festividades, no
auxílio aos visitantes que chegavam, no auxílio aos doentes que
ficavam internados no colégio. (SILVA, 2017, p. 114)

Na SETE, as responsabilidades do cuidado com o espaço são divididas entre as


crianças, a partir dos chamados grupos de responsabilidade, que contam com a
presença também dos educadores, e são responsáveis por diversos aspectos da
instituição, como lanche, horta, biblioteca, materiais, dentre outros. Além disso,
periodicamente ocorrem assembleias com todos os educandos, no pátio, momento
em que se refletem os rumos da instituição e tomam-se decisões que afetam o
coletivo, o que fortalece o compromisso de todos para com o espaço.
Dentro desta linha de uma pedagogia da responsabilidade e solidariedade,
detectamos, no entanto, um ponto de distanciamento entre as duas práticas:
Eurípedes, no Colégio Allan Kardec, também estimulava os educandos à práticas
solidárias externas, no auxílio às comunidades e pessoas vulneráveis de Sacramento,
prática que não foi detectada no contexto da SETE76.
Em quarto lugar, a pedagogia de Eurípedes baseava-se na autonomia de
pensamento. Os momentos de debates eram uma marca: “Em quase todas as aulas
havia momentos em que Eurípedes promovia debates entre os alunos” (BIGHETO,
2006, p. 161), tanto quanto as sabatinas de final de ano, que eram famosas em toda a
região e nos dias em que eles ocorriam, chamavam-se pais, alunos de outros colégios,
pessoas de outras cidades e especialistas de diversos assuntos (BIGHETO, 2006).
Embora não valessem nota aos alunos, com essas práticas Eurípedes “procurava
fortalecê-los, através das discussões, em sua capacidade de argumentar, e em sua
desenvoltura de enfrentar o público” (BIGHETO, 2006, p. 125). A SETE, conforme já
mencionado, realiza rodas de conversa e assembleias periodicamente, que prezam
pelo debate de ideias, a vocalização de opiniões, o aprender a ouvir o outro, o
aprender a decidir e se comprometer com essas decisões coletivas, o que parece ir ao
encontro do que defendia Barsanulfo.
Em quinto lugar, Eurípedes defendia um currículo diversificado, oferecendo as
aulas de astronomia, aulas de teatro e as aulas de ginástica, que, somadas ao ensino

76
Este, aliás, o lema do Espiritismo: fora da caridade não há salvação. De acordo com relato de ex-aluno:
“Eurípedes era um professor muito cuidadoso e afetuoso com os alunos e no colégio todos eram incentivados a
praticar as boas ações. Lembro-me que Eurípedes planejava com os alunos visitas aos doentes, atividades de
auxílio aos necessitados e das ações sociais. Recordo-me bem das nossas visitas aos doentes, das saídas para
ajudar os mais pobres e das várias ações sociais que fazíamos. E no colégio nos ajudávamos mutuamente,
procurávamos ter solidariedade. (BIGHETO, 2006, p. 107).”
199

religioso e demais disciplinas, compunham um currículo variado, em busca de uma


educação integral. Tal busca - a de uma educação integral - parece ser uma marca da
pedagogia espírita, e tal esforço pode também ser verificado na SETE, que oferece
um conjunto multifacetado de atividades pedagógicas aos educandos (atividades
artísticas, esportivas, de leitura, matemática, etc.), além de passeios periódicos
realizados com os educandos, outra marca do Colégio Allan Kardec77.
Por fim, na prática do Colégio Allan Kardec havia o ensino de “O Livro dos
Espíritos” e “O Evangelho Segundo o Espiritismo”, obras da codificação kardequiana,
e as manifestações mediúnicas eram tratadas com muita naturalidade78. Na SETE, há
igualmente a preocupação com o aspecto espiritual do ser, havendo a leitura de
mensagens de cunho ético-moral e momentos de oração, respeitando-se, no
entanto, todas as religiões dos educandos participantes.79

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A pesquisa concluiu que há diversas aproximações entre a pedagogia espírita


vivida por Eurípedes Barsanulfo e a prática pedagógica da SETE, podendo-se afirmar
que a SETE busca, de fato, realizar uma prática pedagógica espírita a partir do
Contraturno Escolar Vamos Juntos.

77
Importante ressaltar o aspecto arrojado da proposta pedagógica de institucionalização das aulas-passeio no
Colégio Allan Kardec, uma vez que somente duas décadas depois aparecerá nas teoria e prática pedagógica do
importante pedagogo francês Celestin Freinet, considerado o inventor de tal modalidade pedagógica.
78
Em relato interessante, durante a 1ª Grande Guerra, por exemplo, Eurípedes, algumas vezes, entrava em
transe diante dos meninos e, ao voltar depois de alguns minutos, descrevia aos alunos as batalhas. Afirma
Novelino: “Enquanto um aluno estava dando a sua lição, às vezes ele caía em transe, sentado na sua cadeira, as
sobrancelhas começavam a tremelicar e os olhos semi abertos viravam, e só se via, como se diz, o branco do
olho, depois ele aprumava o corpo, ficava um certo tempo assim. Nós estávamos habituados com aquilo, então
aguardávamos. Ele voltava e dizia: estive em tal parte.” (INCONTRI, 2001, p. 218). Além disso, Eurípedes
convidava os alunos, sem muitas restrições, à participação, à noite, das reuniões mediúnicas. (INCONTRI, 2001).
79
Poder-se-ia dizer que aqui, há divergência, pois na SETE não há o ensino sistemático do Espiritismo,
diferentemente do que ocorria no Colégio Allan Kardec. No entanto, esta divergência é só aparente, pois, ao
resgatarmos a história política de Eurípedes Barsanulfo, é possível perceber que este sempre foi um árduo
defensor da laicidade do Estado e inclusive era contrário ao ensino religioso em instituições subvencionadas
pelo Poder Público. Embora proporcionasse o ensino e prática religiosa espírita no seu colégio, isto se devia ao
fato de o Colégio Allan Kardec ser particular, sendo que Eurípedes não aceitava qualquer subvenção pública à
escola, que era mantida por doações de amigos e familiares. Além disso, Eurípedes deixava como facultativa a
participação dos educandos nestes momentos, bem como os conduzia a partir de uma leitura inter religiosa e
com debates, nunca numa perspectiva doutrinadora. A SETE, por sua vez, apresenta não só parcerias privadas,
como também com o poder público, o que, dentro da ética de Eurípedes, a impediria do oferecimento regular
de ensino religioso espírita, mantendo-se, apenas, num ensino religioso mais pluralista. De acordo com
Incontri, “toda prática pedagógica espírita deve estar impregnada de intensa espiritualidade, entendendo-se
que não se trata aí de fanatismo religioso e nem de dogmatismo específico. Ao mesmo tempo em que se deve
oferecer aos alunos, o conhecimento de todas as religiões, com suas práticas e filosofias, de forma imparcial e
precisa (e para isso podem ser trazidos os representantes de cada uma ou os próprios alunos-adeptos podem
fazer suas intervenções, mostrando aos outros a sua fé), deve-se cultivar uma religiosidade genérica. Orações
em conjunto; leituras de textos religiosos de diferentes correntes (que não ofendam as outras presentes),
discussões sobre religiões comparadas e filosofia espiritualista — tudo isso deve lançar o aluno na dimensão do
espiritual, fazendo-o compreender que se trata de uma dimensão humana, natural e universal, necessária ao
pleno desabrochar do homem.” (INCONTRI, 2001, p. 300)
200

REFERÊNCIAS

BIGHETO, Alessandro. Eurípedes Barsanulfo, um educador espírita na Primeira


República. 2006. 196 f. Dissertação (Mestrado em Educação) - Faculdade de
Educação da Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2006.
GABASSA, V.; ELIAS, Carime Rossi; GIROTTO, V. C. O Estágio não convencional e sua
suas contribuições à formação docente. Revista Educativa, Goiânia, v. 20, p. 1, 2017.
GODOY, João Paulo; PIMENTEL, F. L. P. ; CABRAL, J. R. . A “Pedagogia de Eurípedes”:
uma revisão bibliográfica sobre o colégio Allan Kardec no período da gestão de
Eurípedes Barsanulfo (1907-1918). In: MORAES, Ângela Teixeira de; FERRO, Raphaela
Xavier de Oliveira. (Org.). Ciência, Espiritismo e Sociedade: Coletânea 2. 1ed., 2019,
p. 100-122. Disponível em: < https://aephus.org.br/publicacoes/>. Acesso em: out.
2020.
INCONTRI, Dora. Pedagogia Espírita: um Projeto Brasileiro e suas Raízes Histórico-
Filosóficas. 2001. 340 f. Tese (Doutorado em Educação) - Faculdade de Educação da
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2001.
PACHECO, José. Escola sem aula, série e prova dá certo há mais de 30 anos, diz
educador. Disponível em: <https://educacao.uol.com.br/noticias/2009/06/30/escola-
sem-aula-serie-e-prova-da-certo-ha-mais-de-30-anos-diz-educador.htm>. Acesso em:
15 mai 2019.
SAVIANI, Dermeval. História das ideias pedagógicas no Brasil. 4ª Edição. Campinas:
Autores Associados, 2013.
SILVA, Jaqueline. Espiritismo e educação: Eurípedes Barsanulfo e o Colégio Allan
Kardec / Sacramento-MG (1880-1918). 2017. 154 f. Dissertação (Mestrado em
História) - Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de
Uberlândia, 2017.
TASSINARI, Antonella Maria Imperatriz. Sociedades Indígenas: introdução ao tema da
diversidade cultural. In: SILVA, Aracy Lopes da; GRUPIONI, Luís Donisete Benzi. A
temática indígena na escola. 2ª Edição. São Paulo: Global Editora, 2004. cap. 18.
201

ESPIRITUALISMO: CONCEITO E PERSPECTIVAS DE PESQUISA


VISANDO UMA TRADIÇÃO DE CONHECIMENTO EM CIÊNCIAS
DA RELIGIÃO

LUIZ SIGNATES
Doutor em Ciências da Comunicação
Professor efetivo do PPG Ciências da Religião da PUC-Goiás
[email protected]

RESUMO: Este é um ensaio analítico-crítico das diferentes conceituações das formas


de religiosidade e espiritualidade que emergiram nas sociedades contemporâneas e
que, nas últimas décadas, têm recebido as denominações de “new age” ou “novas
religiosidades” ou, ainda, “novas espiritualidades”. Para isso, faz-se uma rápida
varredura nas origens dessas denominações, presentes desde os estudos norte-
americanos e europeus até os trabalhos brasileiros acerca dessas práticas e filosofias
altamente sincréticas, para, em seguida, estabelecer alguns vínculos históricos dos
conceitos fundamentais do conjunto dessas tradições e, nesse sentido, propor o
conceito de “espiritualismo”, já utilizado em outras épocas, para denominar essas
correntes religiosas e para-religiosas. Dentre as vantagens dessa conceituação, há a
superação do adjetivo “new” ou “novo”, pelo reconhecimento do caráter já secular
dessas tradições, bem como da avançada institucionalização estabelecida por várias
dessas correntes, inclusive pela mais expressiva delas, no Brasil, o espiritismo. Além
disso, recupera-se a centralidade do conceito principal com o qual trabalham, qual
seja a do “espírito”, num quadro consentâneo com a cultura de consumo do
capitalismo contemporâneo. Dentro desse contexto, assume-se como elementos
específicos do espiritualismo a existência, diferenciada conforme a tradição ou
denominação, das seguintes características hipotéticas: a noção de “espírito” como
elemento essencial do ser, nos marcos de um individualismo radical, às vezes
resistente a processos de institucionalização e infenso ao debate social e político,
mas de índole altamente conservadora; psicologismo evolutivo; a codificação de
teologias plurais em regime de diálogo seletivo e reinterpretativo com noções
filosóficas e científicas; práticas de ritos mediúnicos de transe, êxtase e/ou possessão
específicos, voltados à orientação doutrinária e a terapêuticas espirituais; uma
escatologia evolucionista que busca ancoramento em metáforas naturalistas; e uma
grande fragmentação identitária e denominacional. Por fim, advoga-se a hipótese de
que essas tradições, naquilo que têm em comum, constituem o espírito do
capitalismo de consumo contemporâneo.

Palavras-chaves: Espiritualismo; New Age; Novas Religiosidades; Novas


Espiritualidades
202

INTRODUÇÃO

O estudo das religiosidades contemporâneas tem exigido cada vez mais dos
teóricos e pesquisadores, em termos da compreensão de uma articulação cultural
religiosa que tem se tornado extremamente complexa e multifacetada. Conceitos e
categorias de análise buscam descrever um quadro fragmentado e difuso, que se
conecta com sentidos culturais vários de modo dinâmico e impermanente, e
geralmente fracassam nesse propósito. Embora seja epistemologicamente normal
que a realidade sempre ultrapasse as redes teóricas que buscam explicá-las, alguns
quadros religiosos contemporâneos, pela dinamicidade de suas transformações,
parecem levar ao limite essa desarticulação.
Este trabalho busca se inserir num dos núcleos desse desafio. Trata-se de um
texto crítico-analítico, mas com aberta finalidade propositiva, no sentido de enfrentar
um conjunto de nomenclaturas e definições de articulações religiosas, especialmente
mas não apenas brasileiras, e colocar em pauta a discussão de uma noção específica,
que possa abranger algo do que tem sido denominado, de forma indefinida, como
“novas religiosidades” ou “movimento New Age”, além de várias outras
denominações.
Evidentemente, toda pretensão guarda consigo um potencial de despretensão.
De modo algum pretende-se ter resolvido o problema conceitual, até por reconhecer
que as religiosidades em estudo são, de fato, complexas e multifacetadas, e qualquer
tentativa definidora de seus conteúdos e práticas sempre deixará algum resto
categorial, alguma sobra em termos de elementos específicos não entrevistos, capaz
de organizar contestações pertinentes, especialmente se inseridas por pesquisas
empíricas. Não há realidade surpreendida pela pesquisa que não encontre faltas e
falhas nas descrições teóricas que adredemente buscaram descrevê-las ou
categorizá-las.
Para este problema, este trabalho considera-se preparado, pois não há
possibilidade nem interesse de se escapar à efemeridade decorrente da dinâmica do
conhecimento que prossiga indagando e buscando os elementos ainda não
percebidos, dos objetos sobre os quais se debruça. O que se quer, neste texto, é mais
contribuir para questionar e, se possível, superar algumas indefinições, muito em
voga nas pesquisas sobre as religiosidades contemporâneas, do que estabelecer
marcos teóricos definitivos ou sequer consolidados.
Assim, iniciaremos o debate sobre o problema das definições, para, em
seguida, efetuarmos o percurso propositivo, voltado, enfim, tanto para a exposição
rápida da rede de descobertas que temos feito, quanto para a orientação de pesquisa
a que esse raciocínio nos leva.

MARCOS TEÓRICOS SÃO POUCO DEFINIDORES

O quadro das religiosidades recentes, surgidas ao longo do século 20 e ainda


em crescimento ao longo do século 21, emergiu com características específicas, que
têm atormentado a cabeça dos estudiosos. Uma delas, talvez a mais expressiva –
203

porquanto reiterada por praticamente todos os autores – é a pluralidade, palavra


aqui definida como uma combinação entre multiplicidade, isto é, uma quantidade
grande de escolas, denominações e tendências, e variedade, ou seja, a grande
diferença qualitativa entre elas. Diferentes das denominações do tronco cristão-
evangélico, sobretudo o neopentecostal, que são muito mais múltiplas do que
qualitativamente variadas, as filosofias e religiosidades a que nos referimos são
efetivamente plurais, pois, aparentemente, não se unem sequer pelas propostas
teológicas. A variedade delas chega ao ponto de percorrerem o largo espectro que
vai do religioso ao não-religioso.
Referimo-nos aos chamados “novos movimentos religiosos”, que, nas
literaturas sociológica, antropológica e de ciências da religião, também recebeu a
denominação de “movimento New Age” ou “Nova Era”. Como é de conhecimento
estabelecido, em vista de uma tradição de estudos que já remonta a quase 40 anos, a
expressão “Nova Era” remete às expectativas milenaristas de que, com a virada do
milênio, a Humanidade estaria passando da “Era de Peixes” para a “Era de Aquário”,
no mapa astronômico zodiacal. O termo teria sido implantado por Alice Baley, uma
evangélica inglesa convertida em teosofista, para referir-se à transformação
vindoura, dentro da tradição fundada por Helena Bravatski, fundadora da Teosofia, e
que, no contexto do espiritualismo europeu da virada do século 19 para o século 20,
buscou formular uma reconciliação da fé cristã com as tradições orientais,
introduzindo suas próprias interpretações sobre a astrologia esotérica (MAGLIOCCO,
2014).
Embora a noção da Era de Aquário tenha sido mais remota, os autores
principais localizam o “Movimento New Age” como algo mais recente, tendo
emergido no contexto da contracultura dos anos 1960-1970, momento em que a
denominação “Nova Era” ganhou grande popularidade na Europa e nos EUA, como
conceito que abrangia uma ampla gama de crenças e práticas “alternativas”
orientadas para a transformação da sociedade ocidental (HANEGRAAF, 2005). A ideia
é de que a Humanidade estaria passando da Era de Peixes, iniciada pelo cristianismo,
para a Era de Aquário, na qual passaria a viver em harmonia com as leis cósmicas do
Universo (GUERRIERO, 2016).
Entretanto, a escatologia não é o único traço definidor dessa corrente de ideias
e práticas, havendo claros indicativos de que, apesar do sucesso midiático da
denominação, em vários casos não é nem mesmo o principal. Hanegraaff admite que
a expectativa milenarista é o movimento New Age apenas no “sentido estrito”, sendo
o “sentido amplo” o foco no presente imediato e em modos de vida alternativos, no
contexto da contracultura californiana (HANEGRAAFF, 2015; GUERRIERO et alli,
2016).
Mas os próprios “newagers” recusam essa denominação (POSSAMAI, 2001). É
possível que aqui, neste grupo, não haja um único pesquisador ou militante que
admita enquadrar seus estudos ou sua militância nesse padrão.
Daí que, a partir dos anos 1990, alguns autores internacionais e brasileiros
passaram a denominar essa vertente como sendo a das “novas religiosidades”,
“novas espiritualidades” (POSSAMAI, 2019) ou das “religões pós-modernas”.
204

Essas denominações tentam abranger práticas e crenças de pessoas que


buscam uma conexão mais próxima com o divino e/ou o sobrenatural, com um grau
de autonomia dentro ou fora de grupos religiosos. A autoridade espiritual estaria
dentro de sim, estaria na experiência pessoal, e uniriam, de alguma forma,
características das religiões populares (que se caracterizam por se articular fora das
religiões institucionalizadas) e as religiosidades místicas (de caráter individualista e de
alguma sorte intelectual, que se oporiam às religiões oficiais). Sacralização do
profano e profanização do sagrado. E, isso tudo, num processo social chamado de
“gentrificação”, isto é, de transformação do espaço religioso com a saída de grupos
de baixa renda e entrada de grupos de alta renda.
O problema não está tanto nas descrições e caracterizações dos elementos que
conformam essas espiritualidades, e sim no conceito, que é, como é fácil perceber,
muito pouco definidor do que tratam essas correntes religiosas. Nenhum destes
conceitos é definidor ou suficiente:

• A noção de “new age”, relacionada ao espiritualismo norte-americano, centra


a caracterização dessa religiosidade na escatologia das eras e do progresso, e não é
isso o que principalmente as caracteriza.
• A ideia de “novas religiosidades” é igualmente pouco definidora e vem sendo
utilizada desde o final dos anos 1980, razão pela qual, chamadas sempre de “novas”,
mesmo após três ou mais décadas, não se sabe bem o que são.
• Há referências também a “religiões pós-modernas”, pouco diferente da de
“novas religiosidades”, pois a noção de pós-modernidade também é difusa e pouco
esclarecedora, uma vez que diz respeito em filosofia à negação da própria razão, sem
que algo não irracional seja colocado no lugar – no mais das vezes, evoca-se uma
unidade mística, mas desejável do que real, dentro de uma pluralidade indefinida, em
que quase tudo valha, embora permeada por alguns mitos específicos, nem sempre
explicitados.
• Muito mais recentemente, infundiu-se o termo “novas espiritualidades”, para
referir-se a práticas espiritualistas resistentes às condições institucionais das religiões
tradicionais, que igualmente recusamos neste trabalho não somente por instaurar,
uma vez mais, a adjetivação do “novo” como pretexto ou fuga de uma exigência
definidora mais específica, mas também porque a individualização da pertença ou a
desterritorialização dessas práticas constitui apenas uma de suas características, e
que é compartilhada por outras, não menos importantes e que, nos termos deste
trabalho, perfazem um conjunto que, plural e fragmentário nos detalhes dogmáticos
e rituais, possuem alguns sentidos específicos comuns bastante interessantes.

A quem servem os conceitos vagos e frágeis? Segundo Carlette e King (2005),


“ser vago é importante para ser adequado ao consumo”. Numa sociedade de
consumo, “espiritualidade” pode significar o que você quiser, desde que venda... Essa
vertente consumista do espiritualismo contemporâneo é algo muito interessante de
se pesquisar, mas também deve ser percebida de um ponto de vista crítico.
205

ESPIRITUALISMO, O CONCEITO

É uma noção específica de “espírito” e a recente emergência do conceito de


“espiritualidade” que demarca esse tipo de religiosidade, prolífera e muito relevante
para a religiosidade brasileira do século 20 para cá.
Espiritualidade e espiritualismo não são termos novos. Remonta da
Antiguidade a noção de “spiritus” (em latim “sopro da vida”), ou, no Evangelho de
João, o termo grego “pneuma” (em sentido bíblico, a vida no espírito de Deus, em
oposição à vida carnal – não ainda a dicotomia espírito/corpo e sim a oposição entre
disciplina do espírito e contenção dos desejos da carne). É no helenismo cristão que
vai se consolidar a ideia de oposição espírito/matéria. Os gnósticos separarão o reino
espiritual do mundo material, e Orígenes, a partir de suas interpretações bíblicas,
traçará os três níveis de interpretação: corpo, alma (vida da alma, psiquê) e espírito
(no sentido alegórico: verdades universais e atemporais, “espírito e não letra”).
Paulatinamente, esse significado tornou-se corpo/mente/espírito, e este último no
sentido de “interno”, “dentro” do indivíduo.
No século XVIII, especialmente na França (spiritualité) e na Inglaterra
(spirituality), dão-se os passos mais significativos para a privatização da experiência
religiosa: religião como consciência individual e experiência de vida. No lugar da
Igreja, a consciência individual. No século XIX, essas noções se convertem em
experiência social significativa. Emergem as diversas correntes do espiritismo –
racionalista na França e empirista na Inglaterra – e ganham popularidade até os
Estados Unidos. Uma nova dicotomia: espiritualismo versus materialismo.
No final do século XIX e início do século XX, as ondas migratórias vindas da
Índia, Tibete, China e Japão, despertam o interesse dos europeus pelas filosofias e
religiões orientais, que se articulam ao espiritualismo existente para dar nascimento
a correntes como a Teosofia, de Ane Besant, a Antroposofia, de Rudolf Steiner e a
diferentes formas de religiosidade que se multiplicam e ganham aspectos novos,
adaptados às realidades sociais e culturais dos diferentes países onde emergem.
Embora vejamos emergências específicas nos países da América Latina, é o
Brasil o grande berço dessas formas religiosas, sincréticas, porém profundamente
originais. Em todas elas, a noção do espírito individual, da interiorização de sentidos
do divino e do sagrado e a gentrificação. Apenas a umbanda e algumas formas de
religiosidade negra se mantiveram vinculadas às camadas baixas, submetidas a um
regime forte de rejeição e diferenciação (sobretudo no movimento espírita, onde
nasceu), com toda certeza por razões de preconceito racial.
O espiritismo é a vertente mais importante e o berço da religiosidade brasileira
nessa questão. É talvez a única que comporta a ideia de religião de massas, pois
efetua uma negociação de sentidos entre as religiões tradicionais institucionalizadas
e essa vertente mais amiudada, fragmentada e pouco acessível às camadas baixas da
sociedade brasileira.
Mas, podemos incluir também as formas de adequação teológica e prática das
religiosidades orientais, que emergiram com as migrações do período de
industrialização (a partir dos anos 1940), ancoradas igualmente na noção de um
206

espírito que sobrevive individualmente ao corpo e cumpre uma trajetória evolutiva e


iluminadora, dependente da subjetivação espiritual e, em geral, das práticas
caritativas e harmonizadoras em relação ao próximo.
Essa noção de espírito ganha, na várias religiosidades que emergem, elementos
que negociam com a desigualdade econômica e social brasileira, pelo
desenvolvimento de práticas terapêuticas, inicialmente articuladas com uma
mediunidade de atendimento homeopático e aconselhamento (algumas raras vezes
até de cirurgias espirituais), mas, em seguida, paulatinamente articuladas com
noções como auto-ajuda, auto-cura e, claro, tratamentos espirituais, para os quais a
postura subjetiva adequada aparece como cada vez mais fundamental para a
obtenção dos resultados esperados.
E, junto à noção de espírito, é um individualismo radical, com quase completa
ausência de leitura social ou política da realidade, o que torna essas religiosidades
sob medida para as classes média e alta do Brasil, que se pretendem “de bem” e
generosas, mas fazem questão de manter as desigualdades sociais e os privilégios,
como modo de distinção social.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este trabalho constitui uma versão preliminar de todo um programa de estudos


voltado para a caracterização do espiritualismo com um conceito guarda-chuva
voltado para sugerir o diálogo entre os pesquisadores das diferentes denominações e
tradições espirituais que advém das correntes místicas e esotéricas,
institucionalizadas ou não, ao longo das idades moderna e contemporânea.
Dentro desse contexto, sugere-se como elementos específicos do
espiritualismo a existência, diferenciada conforme a tradição ou denominação, das
seguintes características hipotéticas: a noção de “espírito” como elemento essencial
do ser, nos marcos de um individualismo radical, às vezes resistente a processos de
institucionalização e infenso ao debate social e político, mas de índole altamente
conservadora; psicologismo evolutivo; a codificação de teologias plurais em regime
de diálogo seletivo e reinterpretativo com noções filosóficas e científicas; práticas de
ritos mediúnicos de transe, êxtase e/ou possessão específicos, voltados à orientação
doutrinária e a terapêuticas espirituais; uma escatologia evolucionista que busca
ancoramento em metáforas naturalistas; e uma grande fragmentação identitária e
denominacional.
O conjunto dessas características constitui, sem dúvida, sintomas de um
processo mais amplo, de caráter histórico e social, na modernidade tardia e no
capitalismo de consumo contemporâneo. A hipótese central, a ser aprofundada em
trabalhos posteriores, é a de que, de modo semelhante ao reconhecimento, feito por
Max Weber, do protestantismo como o espírito do capitalismo – o de produção,
naturalmente –, o espiritualismo, em seu caráter profundamente individualista,
fragmentário, volitivo, plural e gentrificado, parece ser o espírito do capitalismo de
consumo, em vigor nos dias de hoje.
207

REFERÊNCIAS

Bruce, Steve. Secularization and the impotence of individualized religion. The


Hedgehog Review, vol. 8, no. 1-2, 2006, p. 35+
GUERRIERO, Silas. Esoterismo e astrologia na Nova Era: do ocultismo à
psicologização. Reflexão. Campinas, v. 41, n. 2, p. 211-224, jul-dez/2016.
GUERRIERO, Silas; MENDIA, Fabio; DA COSTA, Matheus O.; BEIN, Carlos; LEITE, Ana L.
P. Os componentes constitutivos da Nova Era: a formação de um novo ethos. Rever.
Ano 16, n. 2, p. 10-30, mai-ago/2016.
HANEGRAAF, Wouter J. New Age Movement. In: JONES, Lindsay (Ed.) Encyclopedia of
religion, v. 5. Farmington Hills: Thompson Gale, 2015, p. 6495-6500.
HEELAS, Paul. Challenging secularization theory: the growth of" New Age"
spiritualities of life. Hedgehog Review, v. 8, n. 1/2, p. 46, 2006.
HOUTMAN, Dick; AUPERS, Stef; HEELAS, Paul. A Rejoinder to Flere and Kirbiš:
Christian Religiosity and New Age Spirituality: A Cross-Cultural Comparison. Journal
for the Scientific Study of Religion, v. 48, n. 1, p. 169-179, 2009.
INTROVIGNE, Massimo. After the New Age: Is There a Next Age?. New age religion
and globalization, p. 58-69, 2001.
MAGLIOCCO, Sabina. New Age and Neopagan Magic. In: COLLINS, David J. (Ed.) The
Cambridge history of magic and witchcraft in the west: from antiquity to the
present. Whashington DC: Cambridge University Press, 2015, p. 635-664.
STOLZ, Jörg; SANCHEZ, Joëlle. From New Age to alternative spirituality. Remarks on
the Swiss case. New Age, p. 530-545, 2005.
YORK, Michael. New Age Commodification and Appropriation of Spirituality. Journal
of Contemporary Religion. V. 16, nº 3, p. 361-372, 2001.
208

AS FORMAS DE PRODUÇÃO DA VERDADE NO ESPIRITISMO:


AS CONTRIBUIÇÕES DAS TEORIAS DO DISCURSO

ÂNGELA TEIXEIRA DE MORAES


Pós-Doutora em Comunicação
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

RESUMO: O Espiritismo, nascido dentro das aspirações positivistas, buscou alicerçar


seus saberes dentro dos parâmetros da experimentação e da lógica filosófica
predominante no século 19, na tentativa de provar a vida após a morte e a
possibilidade de comunicação dos espíritos por meio da mediunidade. Todavia,
grande parte da produção do saber espírita é ofertado e disseminado na forma de
“revelações”, frutos das descrições, avaliações e declarações dos chamados espíritos
desencarnados em colaboração com os médiuns que lhes servem de intermediários.
Essas “revelações” não descrevem metodologicamente como o conhecimento ali
contido foi construído, e poucas têm condições de serem submetidas a análises mais
rigorosas de verificação dos fatos, como, por exemplo, os estudos de criptografia
empreendidos das mensagens psicografadas pelo conhecido médium Chico Xavier.
Nesse sentido, a proposta desta comunicação advoga que as teorias do discurso
podem oferecer ferramentas para a descrição e o entendimento dessas novas formas
e estratégicas do “conhecimento verdadeiro” no espiritismo, visto que as
“revelações” podem ser tomadas como discursos com vontade de verdade,
especialmente a partir das contribuições de Nietzsche e Michel Foucault. Os
resultados indicam que a não adequação da revelação espírita aos parâmetros
rigorosos da ciência positiva não a impede de evocar sua vontade de verdade dentro
de um horizonte discursivo, levando-se em conta a emergência da subjetividade
como elemento da percepção da verdade e as formas de controle da fala verdadeira
nos âmbitos institucionais.

Palavras-chave: vontade de verdade; espiritismo; psicografia

INTRODUÇÃO

A história do espiritismo, amplamente estudada pelas ciências da religião,


revela o esforço do pedagogo francês Allan Kardec em construir bases científicas para
o novo conhecimento filosófico-espiritualista que surgia no século 19. Os ventos
positivistas que envolviam a ciência europeia no período atingiram também outras
áreas do saber humano, na tentativa de se dar credibilidade e concretude a muitas
crenças até então circunscritas no âmbito das práticas religiosas e da metafísica.
209

Segundo Gulão (2014, s/p), “o objetivo de Kardec era naturalizar o domínio


espiritual, fazendo dele um objeto de investigação racional e empírica para identificar
as leis naturais que regeriam as supostas relações entre espíritos desencarnados e a
humanidade encarnada”. Utilizou-se, então, da observação sistematizada dos
fenômenos mediúnicos, tidos como naturais e que, portanto, poderiam ter suas leis
conhecidas pela ciência. Muito embora Kardec admitisse que o espiritismo não
poderia se enquadrar dentro das ciências tradicionais como a física e a química, ele
concluiu que tais fenômenos, por dedução lógica, e verificados dentro de ambiente
controlado, eram reais.
A busca pela afirmação da mediunidade como algo passível de investigação
científica impõe aos espíritas uma constante busca pela comprovação da vida após a
morte. No Brasil, várias pesquisas têm sido empreendidas com esse objetivo, e com
especial destaque às que o médium Chico Xavier foi submetido enquanto exercia sua
mediunidade. Conhecido pelas mensagens psicografadas com alto teor de detalhes
passíveis de verificação factual, o médium passou por vários testes, inclusive os de
criptografia, que corroboraram a autenticidade das assinaturas “dos mortos que
voltaram”.
Outras pesquisas como as que incluem as experiências quase-morte, as
terapias de vidas passadas e as que investigam a possibilidade da reencarnação
mediante análises de lembranças espontâneas em crianças, adensam essa vontade
por parte dos espíritas e espiritualistas de alcançarem as “bênçãos científicas”. Assim
apaziguariam o desejo de verem suas crenças aceitas enquanto verdades
comprovadas, já que Kardec alicerça toda a sua construção doutrinária enfatizando a
aliança indissociável entre fé e razão, ciência e religião.
Não é objetivo deste trabalho discutir a metodologia científica aplicada aos
fenômenos espirituais. Esse breve relato serve apenas para destacar que a verdade é
um valor muito caro para os espíritas, visto que esses não querem ser confundidos
com uma mera religião, cujos dogmas bastam em si mesmos para se estabelecer a
crença e justificá-la. Por causa disso, como não se pode contar com a ciência para
tudo, até porque ela se desenvolve de modo diferente e a partir de outros
paradigmas que não são religiosos, este estudo buscou compreender como o
espiritismo estabelece suas verdades fora da alternativa positivista.
Mesmo que, para os espíritas, a questão da mediunidade seja ponto pacífico
em termos de uma possibilidade concreta e existente, o que advém dela, as
comunicações atribuídas aos espíritos desencarnados, carece de outros
entendimentos sobre o que pode ser considerado verdadeiro ou não. Ou seja, o que
leva os espíritas a considerarem uma mensagem psicografada ou psicofônica digna
de ser credível? Por que um relato sobre como é a vida no mundo espiritual é
percebido como real?
Essas questões serão analisadas neste trabalho a partir de uma perspectiva
teórica discursiva. Noutras palavras, tomaremos as comunicações espíritas como
discursos e, como tais, observados dentro de uma categoria analítica denominada
vontade de verdade, termo cunhado por Nietzsche e desenvolvido por Foucault.
210

A VONTADE DE VERDADE NOS DISCURSOS

Para o filósofo alemão, o desejo humano pelo conhecimento essencial da


realidade esteve presente por muito tempo na história da filosofia. É por meio da
vontade de verdade que os indivíduos foram impelidos à crença de que há uma
verdade que pode ser conhecida, comunicada e perfeitamente pensada. A posse de
uma verdade afasta a sensação do medo, dá ordem ao caos e muda a forma como o
ser humano se relaciona com a vida. Segundo as reflexões nietzschianas, a vontade
da verdade corresponde ao desejo particular de dar ao mundo características que
não lhes são próprias (OLIVEIRA, 2018).
Para Onate (1996 p.8), a estimação da verdade, “funciona como dimensão
possibilitadora do mundo das ideias, do cogito, do eu penso e dos outros princípios
colocados pelos filósofos na base de suas concepções metafísicas”. Logo, Nietzsche
atribui essa vontade ao pensamento platônico que, por sinal, está bastante presente
na obra de Kardec. E nesse sentido, o filósofo promove uma crítica ácida aos sistemas
de pensamento com vontade de verdade, pois, para Nietzsche, ela serve de
instrumento de acomodação do mundo a propósitos utilitários.
Mas para atender aos propósitos deste estudo, discutiremos essa noção de
vontade de verdade a partir da apropriação de Michel Foucault, pois ela está atrelada
a uma noção de discurso, que é como propomos enxergar as mensagens espíritas.
Assim, antes de expandirmos a discussão sobre a vontade de verdade, vejamos como
o autor francês conceitua o discurso.
O discurso é um conjunto de enunciados que provém de um mesmo sistema de
formação, com sentidos que se referem a certos objetos, conceitos, estratégias e
modalidades discursivas. Não há enunciado que não esteja apoiado em um conjunto
de signos, sustentado por quatro elementos básicos: um referente (ou seja, um
princípio de diferenciação), um sujeito (no sentido de "posição" a ser ocupada), um
campo associado (isto é, coexistir com outros enunciados) e uma materialidade
específica, ou seja, coisas efetivamente ditas, escritas, e passíveis de repetição ou
reprodução, ativadas através de técnicas, práticas e relações sociais (FOUCAULT,
2007).
Dito de outra forma, significa compreender que o discurso espírita recorta
sobre quais objetos (pessoas, situações, acontecimentos, ideias) ele vai tecer
comentários, emitir conceitos, estabelecer estratégias que darão coerência e
estabilidade aos temas e conceitos, e estabelecer os modos de construção de uma
credibilidade. Para tanto, precisa diferenciar-se de outros discursos (de outras
religiões, e filosofias espiritualistas, por exemplo); elencar sujeitos autorizados a falar
em nome do espiritismo; estabelecer diálogos com outros campos de saber de
interesse; e fazer circular seu discurso por meio de livros, palestras, cursos, etc.
Na visão de Foucault (1996), os enunciados (que podem ser textos escritos ou
imagens) são analisados em sua historicidade (considerando-se os saberes circulantes
em uma época); observando-se as posições-sujeito dos enunciadores (indivíduos
mediados pela cultura, pelos jogos de poder, pela ética); e os contextos situacionais
em que um enunciado é produzido. A verdade de um discurso tem ancoragem
211

histórica que estabelece o que pode ou não ser dito, e depende de um arquivo, de
uma memória social que lhe dá certas permissões ou promove certas interdições.
Quando o autor afirma que a verdade tem uma história, ele não quer dizer com
isso que não exista nenhuma verdade objetiva. Ele também não pretende analisar um
discurso com o objetivo de distinguir o que é verdadeiro do falso, mas discutir as
formas de legitimação da verdade, os modos de o indivíduo se relacionar com o
conhecimento e os constrangimentos pelos quais passam os discursos para que
sejam aceitos como verdadeiros. Ou seja, Foucault não se ocupa com o valor de
verdade dos discursos, mas com as respectivas vontades de verdade ligadas a eles.

A NATUREZA DO SABER

Vamos recorrer a outro analista do discurso que oferece outra chave de


interpretação da verdade nos discursos. Charaudeau (2010) explica que os saberes,
de uma forma geral, podem ser de duas naturezas: o saber de conhecimento e o
saber de crença.
Os saberes de conhecimento procedem de uma representação racionalizada da
existência dos seres e dos fenômenos sensíveis do mundo. Buscam uma verdade
factual, sensível aos sentidos físicos, que tenham correspondência com os fatos ou
lhe são verossimilhantes. Já os saberes de crença resultam da atividade humana
quando esta se aplica a comentar o mundo, assim o mundo passa a existir a partir do
olhar subjetivo que o sujeito lança sobre ele.
Apesar de a distinção ignorar que possam haver elementos de um tipo de saber
em outro (um cientista pode expressar subjetividade na interpretação dos fatos e a
crença pode ser construída na experiência concreta), ela nos ajuda a entender um
pouco da posição espírita sobre a verdade dos fenômenos espirituais.
Kardec, por ser um intelectual, prezava a ciência e o raciocínio lógico, razão
pela qual fez vários testes para se certificar de que a mediunidade não era fruto da
imaginação humana. Todavia, quando os espíritos respondem a Kardec – pois ele os
interrogava sobre temas profundos por meio de médiuns adolescentes e sem tantos
estudos – muitas respostas são comentários sobre a vida e dilemas humanos, com
coloridos de subjetividade.
Assim, os dois tipos de saberes mesclam-se nos discursos espíritas. O primeiro
foi bastante presente no século 19, durante a estruturação filosófica do espiritismo; e
o segundo se expandiu nas práticas espíritas da atualidade, tornando-se hegemônico,
pois dispensa as ferramentas da metodologia científica no seu dia a dia.
O valor de verdade das comunicações espirituais, cuja evidência é necessária,
foi substituído pelo efeito de verdade no espiritismo contemporâneo. Esse efeito de
verdade resulta da subjetividade dos sujeitos e da intersubjetividade entre eles, e
tudo que é dito, para parecer verdadeiro, basta que faça parte da ordem discursiva
espírita, em que os fundamentos já foram postos por Kardec, ou por médiuns
notáveis como Chico Xavier. Logo, a correspondência, nesse último caso, não é entre
o que foi dito e a realidade reportada, mas entre o que foi dito estar de acordo com o
arcabouço filosófico espírita.
212

A PRODUÇÃO DA VERDADE NO ESPIRITISMO CONTEMPORÂNEO

Como discutido, toda produção discursiva, no nível da subjetividade, manifesta


uma vontade de verdade e, compreender o discurso, implica compreender a
correlação entre aquilo que é dito e as contingências sociais e culturais
historicamente ancoradas nesse dizer. Isso implica, segundo Foucault, reconhecer
que os sistemas discursivos produzem dispositivos de exclusão, apoiam-se em
instituições e são amparados por práticas pedagógicas, além de estabelecer
instrumentos de controle. Além disso, especificamente no campo religioso, exige de
quem fala uma postura virtuosa, capaz de gerar credibilidade.
No caso do espiritismo institucionalizado brasileiro, esses elementos podem
ser observados a partir de algumas estratégias. Primeiramente, o conteúdo dos
textos fundadores (da obra de Allan Kardec) e das obras complementares
(especialmente aquelas psicografadas por Chico Xavier) funcionam como parâmetro
para dizer se algo é verdadeiro ou falso, utilizando-se dos rótulos “doutrinário” e
“antidoutrinário”.
Qualquer revelação que contrarie os pressupostos formulados por esses textos
fundadores, tendem a ser considerados suspeitos e enganosos, como podemos
perceber nesse comentário sobre fidelidade doutrinária retirado do site da Federação
Espírita do Paraná:

Avaliar se uma obra ou uma prática está em consonância com os


princípios doutrinários é tarefa para quem conhece realmente a
Doutrina. Daí, a necessidade do estudo, da reflexão, da análise
serena e desapaixonada, a fim de que se chegue à conclusão do que
está de acordo e do que está em confronto com as verdades que o
Espiritismo esposa. (...) Se houvesse mais estudo da Codificação, por
certo o número de obras antidoutrinárias existentes, tanto pela ação
de médiuns quanto de leitores seria bem menor, para não dizermos
nulo. (PASSINI, 2014, p.1)

As instituições que geralmente se pronunciam nesse sentido são as federações


estaduais e a Federação Espírita Brasileira (FEB), cujo modelo de gestão do
movimento espírita foi articulado dentro do chamado Pacto Áureo. Esse acordo
firmado entre representações espíritas de diversos estados do país, em 1949, tinha
como objetivo unificar as ações e os postulados doutrinários por meio do Conselho
Federativo Nacional. Desde então, esse conselho elabora normas e faz
recomendações aos centros espíritas que aderiram à FEB. Embora esse sistema
federativo seja hierarquicamente menos rígido que o da Igreja Católica, a narrativa
espírita sobre o advento do Pacto Áureo é rodeada de mística, afirmando-se que o
“Anjo Ismael” foi o grande inspirador.
A FEB foi a promotora e a grande difusora do Estudo Sistematizado da Doutrina
Espírita (ESDE), do Estudo Avançado da Doutrina Espírita (EADE) e do Estudo e
Educação da Mediunidade (EEM). Juntos, conduzem à formação do praticante
213

espírita ao longo de mais ou menos cinco anos, configurando o elemento estratégico


de produção da verdade de natureza pedagógica. O conteúdo é predominantemente
religioso, porém mesclado com considerações filosóficas e científicas.
Além disso, o parque editorial da FEB, com mais de 900 títulos disponíveis,
adensa a política de difusão do conhecimento espírita, com publicações voltadas para
crianças, adolescentes e adultos. Essa mesma estratégia de difusão é adotada por
outras editoras espíritas, algumas com contratos exclusivos com certos médiuns e
oradores, fazendo com que os saberes de crença sejam amplamente conhecidos no
meio social.
Por fim, a reputação do fundador do espiritismo e dos principais médiuns, cuja
produção literária aumentou consideravelmente o acervo espírita, configura-se como
o último elemento estratégico a ser aqui discutido, a fim de que possamos entender a
relação entre sujeito e verdade. Esse elemento funciona como aquele que fortalece a
confiabilidade ao discurso espírita, algo que Foucault (2006) já havia identificado
como inerente às estratégias de produção da verdade no cristianismo e na Grécia
Antiga.
Nessa perspectiva, diz o autor, a verdade é o que ilumina o sujeito, é o que dá
tranquilidade a ele. O sujeito só conhece a verdade se transformado. A verdade
necessita da conversão e da mudança interna do sujeito. Sem essa “purificação”, não
se alcança a verdade. Daí a necessidade de construção de uma autoridade baseada
na virtude, celebrada e incentivada pelos adeptos do espiritismo a partir do discurso
da “reforma íntima”.
A reforma íntima é associada à ideia de moral, e a moral é a regra de boa
conduta, da distinção entre o bem e o mal. Além disso, a moral é fundamentada na
observação da lei de Deus, conforme a questão 629 de O Livro dos Espíritos, de
autoria de Kardec. Para estar de acordo com a lei de Deus, o espírita precisa conhecer
a si mesmo (princípio atribuído a Sócrates e endossado por Kardec), transformar-se
moralmente, e praticar a caridade.
“Fora da caridade não há salvação” é um enunciado que está em O Evangelho
Segundo o Espiritismo, outro livro de Kardec. A premissa é a de que apenas o
conhecimento não é capaz de transformar o homem, como observamos nesse
trecho: “o espiritismo bem compreendido, mas sobretudo bem sentido (...)
caracteriza o verdadeiro espírita como o verdadeiro cristão, que são a mesma coisa”
(Kardec, 2008, p. 170). O espírita precisa colocar em prática tudo o que aprendeu,
pois, "reconhece-se o verdadeiro espírita pela sua transformação moral e pelos
esforços que emprega para domar suas inclinações más” (Kardec, 2008, p. 171). Essas
recomendações encontram-se em um capítulo bastante sugestivo de o Evangelho:
“Sede Perfeitos”.
Assim é, pois, que os médiuns de alta credibilidade no movimento espírita, tais
como Chico Xavier e Divaldo Franco, que tiveram suas vidas marcadas pelo altruísmo
e pela bondade no trato com as pessoas, tornaram-se as referências do discurso
verdadeiro no espiritismo. Além das obras sociais que empreenderam, renunciaram
aos direitos autorais de seus livros, outorgando-os a instituições de cultura e
caridade.
214

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este breve estudo teve por objetivo discutir a produção da verdade no


espiritismo a partir da noção de discurso, em substituição à noção de verdade
positivista, dentro da qual nasce dessa doutrina. Essa proposta de análise parece-nos
mais coerente com as posturas adotadas pelos praticantes do espiritismo brasileiro
contemporâneo, diante da falta de investimentos em pesquisas científicas que
pudessem produzir saberes de conhecimento. Logo, avaliar as mensagens espíritas
enquanto saberes de crença, cuja percepção da verdade passa pelos
constrangimentos de uma ordem discursiva espírita, pode melhor descrever essa
nova fase dos textos espíritas.
Para tanto, adotou-se como aporte teórico a noção nietzschiana de vontade de
verdade, assumida por Foucault em sua teoria sobre o discurso, em que foi possível
chegar às seguintes conclusões sobre as estratégias de produção do discurso
verdadeiro no espiritismo: a) a discussão da verdade prescinde de um entendimento
da sua ordem discursiva espírita; b) ela expressa uma vontade de verdade regulada
pelos textos fundadores (racionalismo e experimentação kardequianos), pelas
instituições e pelas práticas pedagógicas (cursos, palestras, especialmente os
ofertados pela FEB); c) a credibilidade de médiuns tem profunda relação com a
capacidade destes expressarem a moral cristã; e d) nota-se um sistema de exclusão e
separação entre o verdadeiro e o falso sob os rótulos doutrinário e antidoutrinário.

REFERÊNCIAS

CHARAUDEAU, Patrick. O discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2010.


FOUCAULT, Michel. A ordem do discurso. São Paulo: Edições Loyola, 1996.
_________. A Arqueologia do Saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007.
_________. A Hermenêutica do Sujeito. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo. Araras: IDE, 2008.
________. O Livro dos Espíritos. Rio de Janeiro: FEB, 1975.
OLIVEIRA, Mônica Souza. A crítica nietzschiana à vontade de verdade. Revista
Argumento, nº 14, 2018. Disponível em:
https://portalseer.ufba.br/index.php/argum/article/view/29810/176. Acesso em 11
set 2020.
ONATE, Alberto Marcos. Vontade de verdade: uma abordagem genealógica.
Cadernos Nietzsche 1, p. 07-32, 1996.
PASSINI, José. Fidelidade Doutrinária. Mundo Espírita. Curitiba: FEP, 2014. Disponível em:
http://www.mundoespirita.com.br/?materia=fidelidade-doutrinaria-2. Acesso em 05 nov
2010.
PIMENTEL, Marcelo Gulão. O método de Allan Kardec para investigação dos fenômenos
mediúnicos (1854-1869). Dissertação de mestrado. Faculdade de Medicina. Universidade
Federal de Juiz de Fora, 2014.
215

“NÃO TEMOS IMAGINÁRIO”: O SIMBÓLICO E A CIRCULAÇÃO


DOS MUSEUS ESPÍRITAS

JOÃO DAMASIO
Doutorando em Ciências da Comunicação
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
[email protected]

RESUMO: Este texto apresenta um recorte da problematização de uma tese em


andamento na área de Ciências da Comunicação, em interface com as Ciências da
Religião, sobre a iconicidade do imaginário espírita a partir da observação de práticas
museais midiatizadas. O objetivo é discutir a hipótese de uma recente musealização
do espiritismo e compreender os desafios que a imagem revela em uma religião das
letras, que valoriza sobremaneira um discurso sobre a razão e a ciência. Esse debate
se fundamenta teoricamente no cruzamento entre quatro perspectivas: 1) a filosofia
da imagem, a partir dos estudos de Marie-José Mondzain e Georges Didi-Huberman e
da teoria do imaginário de Gilbert Durand; 2) a perspectiva da midiatização, com as
heurísticas do dispositivo interacional de José Luiz Braga e da circulação de imagens e
imaginários com Ana Paula da Rosa; 3) a nova museologia, tomando especificamente
a noção de práticas museais de Botte, Doyen e Uzlyte e; 4) o estudo da cultura
espírita, a exemplo das diferentes e ricas interpretações ofertadas por autores como
Bernardo Lewgoy, Ângela Moraes e Mário Ramiro. Além desse cruzamento teórico,
discorremos brevemente sobre uma história das imagens espíritas e propomos
marcas do que, neste texto, chamamos de traumas da imagem no espiritismo. Em
seguida, adentramos aos fragmentos de alguns casos em estudo. A abordagem se
deu por meio de visitação (física e virtual) em doze museus espíritas, dentre os quais
este texto se detém em quatro, privilegiando os aspectos imagéticos. Para um
exercício de síntese dos resultados, utiliza-se uma experimentação metodológica de
montagem de uma prancha de imagens, inspirada em Aby Warburg. A finalidade
desse método está em pensar as relações icônicas no espiritismo kardecista. Como
resultado, nomeamos algumas relações simbólicas percebidas: imagens
aquiropoéticas, documentais, digitalizadas, hierofânicas e totêmicas. Propomos que
essas relações são próprias aos museus espíritas, mas necessariamente atravessadas
pela circulação midiatizada dos imaginários.

Palavras-chave: museus espíritas, práticas museais, imaginário, midiatização.

INTRODUÇÃO

O presente estudo trata da iconicidade do imaginário espírita a partir da


observação de práticas museais midiatizadas. É recente a existência de museus
216

espíritas, mas também chama a atenção sua proliferação como um dispositivo


interacional acionado mais recentemente na história do espiritismo brasileiro.
O primeiro desses museus foi o Museu Nacional do Espiritismo (Munespi), que
surgiu em 1969, em Curitiba (PR), e o segundo foi o Museu Espírita de São Paulo,
inaugurado em 1997. Mário Ramiro (2008) só tinha essas duas instituições à
disposição de sua pesquisa e narrou a dificuldade que teve em encontrar materiais
visuais relativos a um dos tipos de imagens do espiritismo - as fotografias de
espíritos, muito presentes no século XIX na França, mas também no Brasil, como ele
relata.
Atualmente, de 2018 a 2020, conseguimos mapear doze iniciativas de
documentação e exposição da memória espírita no Brasil. Certamente, nosso
mapeamento não está completo. Incluímos uma diversidade bastante abrangente de
museus, físicos e virtuais, mas não contabilizamos bibliotecas, nem sites que reúnem
conteúdo sem se definirem por algum trabalho propriamente museal. Além disso,
bibliotecas e sites espíritas são incontáveis no país hoje.
São os seguintes os museus compreendidos, até o momento, nesta pesquisa:

• Museus com exposições físicas para visitação: Museu Nacional do Espiritismo


(Curitiba/PR); Museu Espírita de São Paulo (São Paulo/SP); Espaço Cultural da FEB
(Brasília/DF); Museu Histórico de Palmelo (Palmelo/GO); Memorial Chico Xavier
(Uberaba/MG); Casa de Lembranças Chico Xavier (Uberaba/MG);
• Centros de documentação: Centro de Documentação e Obras Raras da
Fundação Espírita André Luís (São Paulo/SP); Centro de Cultura, Documentação e
Pesquisa do Espiritismo (São Paulo/SP);
• Museus com exposição virtual: CSI do Espiritismo – Imagens e registros
históricos do espiritismo; AllanKardec.online; Projeto Allan Kardec UFJF; Acervo
Virtual do Centro Espírita Perseverança no Bem (Parnaíba/PI).

A compreensão sobre cada iniciativa ainda está em estudo. Mas, o objetivo


deste texto é discutir a hipótese de uma recente musealização do espiritismo e
compreender os desafios que a imagem revela em uma religião das letras, vinculada
a um discurso racionalista. Trata-se de recorte de uma tese ainda em andamento na
linha de pesquisa em Midiatização e Processos Sociais do Programa de Pós-graduação
em Ciências da Comunicação da Unisinos (PPGCC-Unisinos), com apoio da
Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior - Brasil (CAPES).

DISCUSSÕES TEÓRICAS E METODOLÓGICAS

Imagens e religiões sempre estiveram entrelaçadas profundamente. Por um


lado, o próprio latim imago denota o aspecto religioso das imagens. Por outro lado, a
história ocidental apresenta inúmeros episódios que demonstram a centralidade das
imagens no universo religioso – e, mais que isso, na economia (MONDZAIN, 2013) das
diversas relações culturais e sociais. Com Rosa (2014, p. 28), consideramos que
217

“pensar as imagens hoje é pensá-las na ambiência da midiatização, uma vez que os


processos sociais estão atravessados pelas lógicas da mídia”.
Desse modo, os ícones religiosos não dependem mais exclusivamente das
instituições hegemônicas, como no debate patrístico dos períodos de iconoclastia80
na Idade Média, mas também dos sentidos em circulação por meio de instituições,
atores, coletivos e mídias. Essa disposição tem a ver com este recente surgimento de
museus em uma religião como o espiritismo, que valoriza muito mais as letras
(LEWGOY, 2000) e a cientificidade buscada por meio de fianças discursivas (MORAES,
2017).
Culturalmente e com relação às imagens, o espiritismo pode ser diretamente
associado ao que Durand (2004) denominou como iconoclasmo endêmico no
Ocidente, marcado pela crença na razão como único acesso à verdade e pela
desvalorização da imagem como forma de conhecimento. Isto é, a imagem estaria
sempre do lado das aparências e simulacros, quando muito, das ilustrações e
representações. O que é mais curioso no caso do espiritismo é que a crença na
objetividade da verdade se dá justamente sobre aparições e sobre o invisível. Isso fez
Flusser afirmar que “os únicos verdadeiramente materialistas no Ocidente são os
espíritas os quais concebem um espírito materializado” (FLUSSER, 1961, p. 213).
A contribuição dos filósofos da imagem para o estudo do espiritismo está
justamente no trabalho que é necessário ao olhar. Didi-Huberman (1998) abre uma
das suas obras mais conhecidas alertando que “o que vemos só vale – só vive – em
nossos olhos pelo que nos olha”. Ele chama a atenção para o que nos “concerne”.
Para o que incomoda, poderíamos dizer. E há muitos incômodos com a imagem na
história do espiritismo. A ausência desse olhar não está apenas nos espíritas, mas
também e mais fortemente nos estudos acadêmicos, que frequentemente
demandam da doutrina a cientificidade que sabem não existir nas práticas espíritas.
Não olhar é deixar inconsciente. E o inconsciente deixa sintomas. Essa lição da
psicanálise, trazida por Didi-Huberman (1998) para a filosofia da imagem, nos
permite pensar alguns episódios que poderiam caracterizar “traumas” da cultura
espírita diante da imagem. Sem que possamos detalhá-los neste texto, lembramos de
alguns pontos, necessariamente polêmicos e ambivalentes, pois assim é a imagem:

• os receios quanto aos resquícios da fotografia espírita, que culminaram no


chamado “processo dos espíritas”, onde Pierre-Gaetan Leymarie, principal
continuador de Allan Kardec, foi condenado por fraude pela política francesa, ficando
recluso durante o período de um ano;
• as acusações mútuas entre místicos e cientificistas, denominações em que não
se reconhecem os denominados;

80
O iconoclasmo pode ser compreendido basicamente como a quebra de imagens. A noção remete ao debate
dos chamados Padres da Igreja, divididos entre iconófilos e iconoclastas. Apesar de descrever esse momento
na história do Império Bizantino, nos séculos VIII e IX d.C., sua característica persiste culturalmente.
218

• a declarada intenção de neutralidade política contraposta às atuações


efetivamente políticas, na França e no Brasil e, mais recentemente, aos refluxos da
política brasileira e mundial que polarizam as relações internas;
• a pluralidade de espiritismos efetivamente praticados nos centros espíritas a
despeito da longa e interminável fabulação de um movimento unificado;
• a inegável potência dos vínculos e cismas com as matrizes africanas e cristãs,
além dos contatos mais recentes com filosofias orientais importadas pelo mercado de
auto-ajuda, todos fornecedores de novos ícones e ídolos;
• a difusão de um gênero literário próprio que comemora tanto quanto sofre
pelo sucesso editorial de obras mais ou menos alinhadas à codificação;
• o eterno retorno às denúncias de adulterações nas obras de Allan Kardec,
ressacralizado, apesar de sua intenção dessacralizante ao se intitular “codificador” e
de suas próprias e constantes alterações entre edições;
• os meandros dos médiuns, que incorrem ora nos riscos de charlatanismo, ora
na temerosa idolatria aos médiuns etc.

Imagens, ícones e ídolos, eis a discussão da iconicidade. Tratam-se de


tematizações que convocam uma “economia” das imagens (MONDZAIN, 2013). A
hipótese é que o dispositivo museal, historicamente acionado para a lide com os bens
simbólicos das culturas, revela olhares possíveis – reabre os saberes e debates
espíritas. Ainda que pouco conhecidos dos próprios espíritas, os museus não são um
locus esvaziado. Carregam-se, justamente, com o inconsciente das imagens.
Metodologicamente, buscamos uma noção ampliada de museu, compreendido
como um dispositivo interacional (BRAGA, 2018, p. 69), pois o conjunto dos museus
em estudo não nos remete necessariamente a instituições, coleções e objetos
clássicos da museologia, mas a “modos diversos de agenciar conexões desejáveis ou
possíveis entre seres humanos, grupos e sociedade (...). São estratégias abrangentes,
com grande variação interna de táticas, para urgências e objetivos diversificados”. Os
museus espíritas surgem, em grande parte, atendendo a urgências dos próprios
espíritas envolvidos ao redor de suas teses, olhares e proposições sobre uma
memória que quer se constituir. Para isso, a museologia oferta a noção de “práticas
museais” (BOTTE; DOYEN; UZLYTE, 2017).
No presente trabalho, pelo limitado espaço, privilegiaremos apenas o aspecto
propriamente imagético dos museus. Dos doze casos em estudo, apresentaremos
quatro, de modo a trabalhar com a aparição ou a revelação de algumas imagens
pregnantes na visitação aos museus, apenas brevemente descritos.

FRAGMENTOS IMAGÉTICOS

A um dos maiores nomes do espiritismo, Chico Xavier, tem se erguido vários


bustos, estátuas e totens em sua homenagem, sobretudo na cidade de Uberaba
(MG), onde viveu e onde a prefeitura inaugurou, em 2018, o Memorial Chico Xavier.
Nesta pesquisa, tem sido comum o receio de que a imagem do médium seja objeto
219

de veneração. Na montagem da Figura 1, vemos um totem em tamanho real do


médium.

Figura 1 - Montagem: Totem no Memorial Chico Xavier

Fonte: Banco de dados da pesquisa.

Havia o Sanatório Espírita Eurípedes Barsanulfo onde agora está se instalando o


Museu Histórico de Palmelo. O desenho da Figura 2 foi riscado por antigos internos e
é uma das muitas marcas que registrei no local e que foram sobrepostas com tinta
branca, apagadas da memória que se vai contar ali sobre a cidade que surgiu ao redor
do espiritismo e, provavelmente, sobre a loucura já vivida ali.

Figura 2 - Montagem: Desenho em parede no futuro Museu Histórico de


Palmelo

Fonte: Banco de dados da pesquisa.


220

As “mãos de cera”, na Figura 3, expostas pelo Museu Nacional do Espiritismo,


escolhem apresentar algo do invisível, são esculturas/moldes de mãos de espíritos.

Figura 3 - Montagem: Escultura das mãos no Museu Nacional do Espiritismo

Fonte: Banco de dados da pesquisa.

No Centro de Documentação e Obras Raras, são as cartas, sendo manipuladas


na Figura 4, o foco das práticas museais. Desde 2018, a instituição anuncia 700 cartas
inéditas do período da codificação – são as “cartas de Kardec”. Pouco documento
veio a público em dois anos, mas muitos sentidos circularam a respeito. Mesmo o
texto, aqui, aparece mais como ícone.

Figura 4 - Montagem: Cartas de Kardec no Centro de Documentação e Obras


Raras

Fonte: Banco de dados da pesquisa.


221

UMA PRANCHA DE IMAGENS EM CIRCULAÇÃO

Para um exercício de síntese dos resultados, utiliza-se uma experimentação


metodológica de montagem de uma prancha de imagens, ao estilo de Aby Warburg.
A finalidade desse método está em pensar as relações icônicas no espiritismo
kardecista. Como resultado, nomearemos algumas relações simbólicas percebidas.

Figura 5 - Prancha de imagens em circulação nos museus espíritas

Fonte: Banco de dados da pesquisa.

Na prancha, inserimos imagens dos diversos museus, mas as relacionamos a


partir das quatro imagens anteriormente apresentadas, emolduradas nas laterais. Em
seguida, vemos que, às mãos de cera no canto superior esquerdo se reúnem pinturas
mediúnicas e cartas psicografadas. Logo abaixo, as cartas do codificador são vistas em
documentação e digitalização, assim como ocorre com outros arquivos. Na lateral
direita da prancha, vemos o desenho do sanatório de Palmelo e a figura de Chico
Xavier, ladeada por uma foto deste último, que também aparece no mosaico de
exposições realizadas pela Federação Espírita Brasileira sobre personalidades.
Notamos assim a presença de imagens: (1) aquiropoéticas, buscando vincular
fenômenos espirituais e cientificidade; (2) documentais, escrutinando as imagens em
prol de defesas doutrinárias; (3) digitalizadas, transformando em imagens os acervos
universais e locais; (4) hierofânicas, evidenciando valores simbólicos e seus
apagamentos; e (5) totêmicas, erigindo as imagens de Kardec e dos médiuns.
Propomos que essas relações são próprias aos museus espíritas, mas
necessariamente atravessadas pela circulação midiatizada dos imaginários. Esses
resultados não são conclusões. Antes, constituem pistas para a investigação em curso
e deixam aberta sua questão: como a experimentação de práticas museais
midiatizadas afeta a iconicidade do imaginário espírita?
222

REFERÊNCIAS

BOTTE, Julie; DOYEN, Audrey; UZLYTE, Lina. ‘Ceci n’est pas un musée’ : panorama
géographique et historique des définitions du musée. In : MAIRESSE, François. Définir
le musée du XXIe siècle: matériaux pour une discussion. Paris: Icom, 2017, p. 17-52.
BRAGA, José Luiz. Interagindo com Foucault – Os arranjos disposicionais e a
Comunicação. Questões Transversais, vol. 6, n. 12, jul./dez. 2018.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Ed. 34, 1998.
DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem.
Trad. Renée Eve Levié. 3ed. Rio de Janeiro: Difel, 2004.
FLUSSER, Vilém. Da influência da religião dos gregos sobre o pensamento moderno.
Rev. Brasileira de Filosofia, v. 11, n. 42, p. 206-217, abr./jun. 1961. Disponível em:
http://flusserbrasil.com/art324.pdf. Acesso em 7 maio 2020.
LEWGOY, Bernardo. Os espíritas e as letras: um estudo antropológico sobre cultura
espírita e oralidade no espiritismo kardecista. Tese, Universidade de São Paulo, 2000.
MONDZAIN, Maria-José. Imagem, ícone, economia: As fontes bizantinas do
imaginário contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto e Museu de Arte do Rio,
2013.
MORAES, Ângela Teixeira. O discurso da saúde no espiritismo: do magnetismo à
autocura. Religare, v. 14, n. 1, ago. 2017, p. 90-108.
RAMIRO, Mario. O gabinê fluidificado e a fotografia dos espíritos no Brasil: a
represen-tação do invisível no território da arte em diálogo com a figuração de
fantasmas, aparições luminosas e fenômenos paranormais. Tese (Doutorado em
Artes), Universidade de São Paulo, 2008.
ROSA, Ana Paula da. Imagens-totens em permanência x tentativas midiáticas de
rupturas. In: ARAÚJO, Denize Correa; CONTRERA, Malena Segura (orgs.). Teorias da
imagem e do imaginário. São Paulo: Compós, 2014, p. 28-49.
223

UMBANDA: RITOS E SAÚDE

SANDRA MARIA CHAVES MACHADO


Doutora em Sociologia
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

RESUMO: A saúde hoje é considerada um bem primordial a ser preservado.


Discorrendo sobre ela, há extensa literatura. E mesmo diante disso e da amplitude de
sua concepção corrente, envolvendo não somente a parte física, mas também a
cognitiva, a emocional, a social, a financeira, a ambiental e a espiritual, não é possível
dizer que as discussões em torno do tema se esgotaram. Faz parte da natureza
humana buscar alívio para seus males, nas mais diferentes ordens e intensidades; e
mesmo hoje, com a consolidação da racionalidade em nossa sociedade secularizada,
ainda o fazemos, para satisfazer essa necessidade basilar. As tradições de matriz
africana são representações religiosas que carregam uma variedade de possíveis
atendimentos nesse campo, se mantendo sempre abertas para todos os públicos.
Sendo assim, proponho trazer um recorte, de cuidado com a saúde a partir das
terapias espirituais, especificamente as praticadas nos terreiros de Umbanda. Elas se
propõem, como complemento concomitante aos processos de cura convencionais,
não os substituindo. Pretendo apresentar exemplos e vivências, que são resultados
de observações e relatos, colhidos a partir de minhas pesquisas de pós-graduação,
em terreiros goianienses. Os dados de campo dessas pesquisas locais corroboraram o
que estudiosos de outras regiões já apontaram no concernente à existência de
diversidade dessas práticas e de suas respectivas influências originárias, dando o tom
de intensidade dos tratamentos litúrgicos, seja do Candomblé, do Espiritismo ou
ainda de tradições orientais. Dentre as terapêuticas constatadas, o passe, a
desobsessão, o reiki, a apometria, a harmonização e a oração estão no rol das
crenças umbandistas da região metropolitana da capital goiana. Demonstrar o
detalhamento dessas ritualísticas, suas origens formativas e benesses é a propositura
desta comunicação.

Palavras-chave: terapêutica espiritual; Umbanda; saúde.

SAÚDE E ESPIRITUALIDADE

Segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS), saúde é um “estado de


completo bem-estar físico, mental e social, e não somente a ausência de
enfermidade ou invalidez” (em vigor desde 1948). Este conhecido conceito foi
debatido e ampliado com outros aspectos da vida, como o espiritual e o ambiental.
224

Isso porque o cuidado consigo e com o outro também envolve uma vivência de
espiritualidade, em suas diversas interpretações, e o olhar cuidadoso com o planeta.
Existem inúmeros estudos sobre a relação entre saúde, religião e
espiritualidade. Para citar alguns, Pierre Weil (1992) com a psicologia transpessoal e o
estudo sobre os estados de consciência que transcendem a pessoa, para além do ego;
Levin e Vanderpool (1991) que expuseram sobre o impacto da espiritualidade na vida
e na saúde das pessoas; Fabrega (2000) com discussão sobre a dimensão espiritual
ligada ao binômio saúde-doença, na medicina oriental; Sims (1994), a respeito do
posicionamento das ciências, especialmente as médicas, na interseção de
experiências religiosas com psicopatologias diversas; e Koenig (2012), demonstrando
a importância das emoções e da vivência espiritual na manutenção na saúde; entre
inúmeros outros.
Além do âmbito acadêmico, outras áreas elaboraram documentos, frutos de
pesquisas, abarcando uma concepção mais sistêmica de saúde. Entre eles, a
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) formulou indicadores de saúde, com
intuito de pormenorizar e verificar a situação de saúde das populações. Estes
atributos se relacionam com a qualidade da saúde, abrangendo o bem-estar físico,
emocional, espiritual, ambiental, mental e social.
Outro movimento nesta direção resultou na chamada “A Carta da Terra”.
Constituída a partir de trabalho conjunto de vários países de entidades civis, é
entendida como uma “declaração de princípios fundamentais para a construção de
uma sociedade global no século XXI, que seja justa, sustentável e pacífica” (A Carta da
Terra, 1992). Entre as suas 16 ações propostas, está a defesa dos direitos “de todas as
pessoas a um ambiente natural e social capaz de assegurar a dignidade humana, a
saúde corporal e o bem-estar espiritual, com especial atenção aos direitos dos povos
indígenas e minorias” (A Carta da Terra, 1992).
As religiões, por sua vez, sempre propuseram, vivências, rituais e premissas,
cada qual com suas interpretações, significados e intensidades, para aproximar seus
adeptos a uma vida plena e saudável.
Especialmente no vínculo entre sagrado, saúde e natureza, os pesquisadores
Isabel Carvalho e Carlos Alberto Steil (2008) apresentam a ideia de uma “mente
ecológica”81, em que “os sujeitos vivem a experiência do sagrado e de bem-estar em
harmonia com a natureza, está dentro e fora do corpo individual” (CARVALHO; STEIL,
2008, p. 300).
São várias as tradições religiosas que relacionam, o sagrado, a saúde e a
natureza, em maior ou menor grau, em diferentes interpretações. As religiões de
matriz africanas estão entre elas. E aqui, especificamente falo sobre a Umbanda, por
ser matéria de meus estudos de pós-graduação, sendo os dados que se seguem
frutos dessas pesquisas (MACHADO, 2003 e 2020).

81
Conceito do biólogo e antropólogo Gregory Bateson que expandiu o conceito de mente em direção ao
mundo e ao ambiente, fazendo com que os sujeitos se tornassem parte de algo maior (Deus).
225

UMBANDA: RITOS E CURA

Como preâmbulo desta parte, faço aqui para uma breve apresentação da
Umbanda. É uma religião de matriz africana, nascida no Brasil no início do século 20.
Em seu bojo de formação possui forte influência do Candomblé, do Catolicismo, do
Espiritismo, da pajelança e, mais atualmente de crenças orientais. A variação de
intensidade dessas tradições na formação de cada casa de Umbanda, ou seja, em
uma a influência do Candomblé é maior, em outra é do Espiritismo, traz formatação
diferenciada, dando características próprias para cada local.
É uma tradição com ênfase no ritual de transe, em suas reuniões semanais,
onde possibilita a consulta às chamadas ‘entidades espirituais’, que aconselham,
orientam e promovem benzeduras, receitam banhos, rezas, podendo fazer também
encaminhamentos para terapêuticas oferecidas pela casa. De maneira geral, as
entidades mais comumente encontradas são as categorias dos pretos-velhos,
caboclos, baianos, erês, exus e pombagiras, entre outros.
Existem diferenças significativas entre os tipos de tratamentos, de entidades e
de logística dos rituais encontrados nas diversas casas de Umbanda, mas as casas
comungam de proposição essencial que vincula o sagrado, a saúde e a natureza.
O ritual é fio condutor que concretiza o laço entre sagrado, saúde e natureza.
Segundo Terrin (2004), o rito organiza e classifica o que é imprescindível do
prescindível, separando o caos do não-caótico, dando segurança e harmonia (Terrin,
2004). Na Umbanda, a proposta do rito é trazer equilíbrio às demandas do cotidiano,
como saúde, emprego, amores, família e outras.

TERAPÊUTICAS NA UMBANDA

A Umbanda oferece aos participantes vários tratamentos, e cada casa possui


seu próprio rol de terapêuticas, mas a consulência é primordial, pois a partir dela que
podem ser indicados os demais, como banhos, orações/rezas.
O objetivo é tratar de acordo com a demanda apresentada pelo consulente. O
tipo de tratamento é discricionariedade das entidades consultadas e o detalhamento
da logística para atendimentos, é gerenciado pelos próprios adeptos, conforme as
necessidades e possibilidades do cotidiano litúrgico. Por exemplo, uma casa pode
distribuir fichas numeradas, enquanto outra faz sorteio ou por ordem de chegada.
Neste quadro com diversidades e similaridades, classifiquei aqui, para fins
acadêmicos, os tratamentos em dois grandes grupos: os ‘terapêuticos’ e os ‘não-
terapêuticos’. Os primeiros visam promover o bem-estar de maneira mais pontual,
para demandas específicas, geralmente nas áreas biopsicossocial. Como exemplos,
temos a consulta, a oferenda, o banho, o passe, a desobsessão, a despolarização da
mente, o reiki, a apometria e a cirurgia espiritual.
A categoria dos ‘não-terapêuticos’ objetiva favorecer o bem-estar a médio ou
longo prazo, não necessariamente ligado a alguma demanda específica. Neste rol
estão a leitura e estudo, a prece, os cânticos e a assistência social.
226

A seguir passo para a caracterização de alguns desses tratamentos, atribuindo-


lhes seus aspectos mais marcantes, como seu propósito, procedimento,
periodicidade e área da saúde atendida.

INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS:

A CONSULÊNCIA

O propósito das consultas é receber, por meio das entidades manifestadas, as


demandas dos consulentes, provendo aconselhamentos, orientações e, se
necessário, encaminhamentos para outras terapêuticas. Este é o evento central das
reuniões semanais das casas umbandistas e ocorre a partir do ritual de transe. De
acordo com a ordem previamente determinada, os presentes são encaminhados
individualmente aos médiuns incorporados e apresentam sua demanda, recebem a
‘benção’, o aconselhamento e encaminhamento para outras terapias, se for o caso.
Em geral, as reuniões acontecem de duas a três vezes por semana, sendo cada
dia da semana designada uma categoria de entidade, ou seja, às segundas ‘chegam’
os pretos-velhos, às quintas, os baianos, por exemplo. Via de regra, cada categoria
está ligada a um tipo de demanda específica, como os caboclos se alinham com os
pedidos para saúde física, os pretos-velhos mais com necessidades emocionais, as
pombagiras para as solicitações amorosas, os exus para ‘abrir os caminhos’, como
emprego, para citar algumas.
Quanto à saúde, aqui são atendidas várias, como a física, emocional e social,
além da espiritual. Este evento pode ser considerado basilar na Umbanda, sem o qual
não haveria razão de sua existência, segundo declaração de várias lideranças.

AS OFERENDAS
Este é outro momento fundamental na tradição umbandista, pois sua essência
é reafirmar a conexão da comunidade com o sagrado e a natureza. É o momento de
interação com os orixás em seus domínios, como cachoeira, rios e matas. Elas
ocorrem junto à natureza, com velas, objetos, alimentos ligados ao orixá/entidade e
envolve todos da casa.
A periodicidade é atrelada ao calendário próprio, levando em conta as datas
comemorativas, ou demanda específica. A área da saúde atendida é principalmente a
social, visto que envolve a comunidade e o sagrado. Como é marcadamente
formatada junto com a natureza e suas personificações, os orixás, estes eventos são a
visibilidade da herança candomblecista nesta religião.

A DESOBSESSÃO

A sessão de desobsessão visa a libertação do ‘obsessor’, ou seja, segundo seus


professantes, retirar a má influência que o espírito exerça sobre a vida daquela
pessoa. A reunião em si pode variar bastante entre casas, mas em geral, é realizada
em sala diferente das sessões regulares, e envolve os chamados médiuns em transe,
227

que detectam e ‘retiram’ a influência, os auxiliares mais próximos que oram e


assessoram diretamente no socorro, ‘doutrinação’ e ‘transporte’; e os auxiliares
externos, que se mantêm em estado mais contemplativo, para ‘manter a sintonia’ do
ambiente. Os que buscam esse tratamento podem entrar na sala individualmente ou
em fila indiana, passando pelos médiuns. Em alguns lugares, esses encontros são
públicos, outros, destinados apenas aos que foram encaminhados pelas entidades,
em prévia consulta. A periodicidade, da mesma maneira, pode variar bastante,
conforme calendário semanal da casa, ou ainda nem ocorrer, se não estiver no rol
das terapias do local. A principal área da saúde atendida aqui é a espiritual. Fica claro
a forte influência do Espiritismo, que pratica o mesmo ritual, guardadas as devidas
particularidades.

O REIKI

O reiki é uma técnica japonesa, de imposição de mãos com propósito de


‘canalizar a energia vital universal’ e reestabelecer o equilíbrio energético, e
consequentemente físico-emocional. Esta terapêutica é realizada por
encaminhamento das entidades. No dia da semana dedicada a esta prática, os
agendados são atendidos por ordem de chegada e passam, individualmente ou em
pequenos grupos, para uma sala adjacente, onde os chamados reikianos performam
a aplicação. Em geral, são 2 ou 3 sessões atribuídas, em cada caso.
As sessões são semanais e as áreas socorridas são principalmente a mental e
emocional. Juntamente com a apometria, representam práticas fortemente
influenciadas pelas espiritualidades orientais, estando presentes, portanto, em casas
de umbanda com esta específica herança. O reiki é também encontrada como prática
desvinculada de qualquer tradição religiosa, inclusive está no rol de Práticas
Complementares Integrativas do Ministério da Saúde, disponível em algumas
unidades do SUS pelo país.

A APOMETRIA

A apometria é uma técnica de terapêutica espiritual com propósito de ‘cura e


despertar de consciência em diversos níveis, inclusive cármico’. Nas palavras de uma
líder umbandista, “corpo físico do pretérito, corpo astral, nível mental, mental
inferior, mental superior, corpo búdico, corpo ático, que seria a essência mais pura.
Todo esse conjunto de corpos formam o agregado de cada indivíduo”.
Ela se dá em reuniões semanais, destinadas para este fim, seguindo
encaminhamento similar ao do reiki, via entidades. O atendimento é individual, e a
pessoa, deitada em uma maca, passa pelo estado chamado 'desdobramento’, com
assessoria dos trabalhadores da casa. Esta prática traz à luz da consciência,
problemas que precisariam ser apurados pelo paciente, para promoção de sua
harmonização. As áreas atendidas são primordialmente a espiritual e emocional.
AS CIRURGIAS ESPIRITUAIS
228

A finalidade das cirurgias espirituais é proporcionar a cura, ou melhoria


significativa de algum mal físico. Ela ocorre a partir de encaminhamento da entidade.
Via de regra, os pacientes para este procedimento são instruídos a um pré-
operatório, que pode envolver o não consumo de bebidas alcoólicas e carne
vermelha, por exemplo. No dia estabelecido, em sala mais reservada do salão
principal, usualmente deitados em maca, recebem o tratamento via médium, que é
similar ao passe, ou seja, com imposição de mãos, sem objetos auxiliares ou de corte
no corpo do enfermo. A periodicidade fica atrelada ao calendário semanal da casa, ou
ainda a alguma demanda específica. O físico é a área da saúde atendida. Também fica
claro, neste método de cura, o legado do Espiritismo.

INTERVENÇÕES NÃO TERAPÊUTICAS

LEITURA E ESTUDO

É parte do cotidiano, entre as casas umbandistas, fazerem leitura no início de


suas reuniões semanais, que pode ser breve ou uma palestra. Habitualmente é
utilizada uma literatura espírita. Esta prática é pautada pela ideia que estudar faz
parte do processo terapêutico e de cura, pois o crente deve passar pela
conscientização de sua própria condição, ou seja, porque está aqui e qual sentido da
vida, para desenvolver uma vida integralmente saudável, herança clara do
Espiritismo.
Além das leituras iniciais, grupos de estudo se reúnem semanalmente para
aprofundamento de assuntos específicos ou para formação de novos membros.
Nessas ocasiões, eles recorrem tanto à bibliografia espírita, como o ‘Livro dos
médiuns’ e ‘O Evangelho segundo o Espiritismo’, quanto autores internos, que falam
a partir do olhar do crente, como W.W. da Matta e Silva e Rivas Neto. Neste caso, a
área da saúde atendida é visivelmente a intelectual.

ASSISTÊNCIA SOCIAL

Seguindo a premissa básica de outras religiões, a Umbanda mantém agenda de


atendimento externo a seus muros, voltados à comunidade mais carente. A intenção
é o engajamento social entre os que precisam mais e os que podem assisti-los de
alguma maneira. Ocorre via programas de ‘sopa e evangelização’, ou campanhas para
arrecadação de alimentos, roupas e/ou fundos para instituições necessitadas. Estas
atividades seguem a agenda da casa, podendo acontecer duas, três ou mais vezes ao
ano. A área social é a principal observada.

CONSIDERAÇÕES

A título de finalização deste texto, se faz necessário reiterar que existem


inúmeras variantes de tratamentos e de interpretações para a terapêutica entre as
229

casas, tanto pela influência de sua formação, seja ela cristã, espírita, xamânica ou
oriental; seja pelas perspectivas particulares de suas lideranças.
Importante destacar ainda que algumas formas terapêuticas podem nem
mesmo existir em algumas casas, como as cirurgias espirituais, o reiki e a apometria.
Ainda assim, com as descrições das terapêuticas supra referenciadas, fica
visibilizado que a Umbanda traz abrangência de áreas da saúde a serem respondidas,
indo ao encontro das propostas da OMS e OPAS, promovendo bem-estar físico,
emocional, espiritual, mental, ambiental e social de seus partícipes.
No que concerne à saúde ambiental, a Umbanda tem, além do simbólico com
os orixás e elementos da natureza, uma recente busca por adaptações mais
sustentáveis, especialmente nas oferendas.

REFERÊNCIAS

A CARTA DA TERRA. [S.l.]: Comissão da Carta da Terra [1992]. In: Ministério do Meio
Ambiente. Disponível em: <http://www.mma.gov.br/informma/item/8071-carta-da-
terra>. Acesso em: 22 jan. 2018.
CARVALHO, Isabel Cristina; STEIL, Carlos Alberto. A Sacralização da Natureza e a
“naturalização” do sagrado. Aportes teóricos para a compreensão dos entrecruzantes
entre saúde, ecologia e espiritualidade. Ambiente & Sociedade. Campinas, v. XI, n. 2,
p. 289-305, jul./dez. 2008.
FABREGA, Horacio. Culture, spirituality and Psychiatry. Current Opinion in Psychiatry.
Londres, Reino Unido, v. 13, p. 525-530, 2000.
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Espiritualidade. Porto Alegre: L&PM, 2012.
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MACHADO, Sandra C. M. Umbanda reencantamento na pós-modernidade?
Dissertação (Mestrado em Ciências da Religião) – PUC.Go, Goiânia, 2003.
MACHADO, Sandra C. M. Umbanda e Sensibilidade Ecológica. Um estudo em duas
casas em Goiânia. Tese (Doutorado em Sociologia) – UFGo, Goiânia, 2020.
OPAS. Indicadores De Saúde. Elementos Conceituais e Práticos (Cap.1). Disponível
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<https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_content&view=article&id=14401
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1&Itemid=0&lang=pt> Acesso em: 17/08/2020
OMS. Actas oficiales. OMS. n. 2, p.100, s.d.
SIMS, Andrews. Psyche–Spirit as Well as Mind? British Journal of Psychiatry.
Cambridge University Press, v. 165, n. 4, p. 441-446, 1994.
TERRIN, Aldo Natale. O rito. Antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo:
Paulus, 2004.
WEIL, Pierre. A Consciência Cósmica. Rio de Janeiro: Vozes; 1992.
230

UMBANDA ESOTÉRICA, UMBANDA INICIÁTICA,


ESPIRITUALISMOS E ESPIRITUALIDADE

GUILHERME DE SÁ PONTES
Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

RESUMO: Por dentro do universo multiplural das ditas religiões afro-brasileiras é


possível identificar a existência de três grandes núcleos duros compostos pelas
“umbandas”, “candomblés” e “encantarias”. Cada um dos três núcleos possui seus
fundamentos doutrinários próprios que os distinguem. Todavia, verifica-se uma
identidade ritual expressa por meio de seis elementos: tradição oral, presença do
transe (possessão, mediúnico e/ou anímico), culto a espíritos (divinos ou humanos),
música, dança e o uso de bebidas e ervas. A umbanda é uma ideia que se expressa
por meio de inúmeras linguagens, sendo que a única constante da tradição oral é a
contínua mudança. Cada um dos três núcleos duros das religiões afro-brasileiras
possui diversas escolas. A proposta central desta comunicação é apresentar a
umbanda iniciática como escola afro-brasileira surgida a partir da umbanda esotérica
e explorar o conceito de espiritualidade por ela defendido. Dentro desta chave de
interpretação, é possível observar as características centrais da escola iniciática
umbandista: doutrina (epistemologia), linha de transmissão desta doutrina
(metodologia) e estilo de vida (ética). A umbanda esotérica foi fundada em 1956 por
W. W. da Matta e Silva. A partir da umbanda esotérica surge em 1996 a umbanda
iniciática com o lançamento de Fundamentos Herméticos de Umbanda por seu
sucessor F. Rivas Neto. A umbanda iniciática possui uma concepção de espiritualidade
que a aproxima do espiritismo e outros espiritualismos. Este trabalho tem por
objetivo tentar melhor compreender o conceito de núcleos e escolas das religiões
afro-brasileiras, particularmente a esotérica e iniciática, apontando o conceito de
espiritualidade, tendo como método a revisão bibliográfica. O resultado é uma maior
clareza do conceito de espiritualidade nesta escola religiosa. Concluiu-se pela adoção
de um conceito que favorece não só o diálogo inter-religioso, bem como o livre
trânsito e vivencia religiosa entre diversos espiritualismos.

Palavras-chave: Religiões Afro-brasileiras; Umbanda esotérica; Umbanda iniciática;


Espiritualismos; Espiritualidade.
231

A FUNDAÇÃO DA UMBANDA INICIÁTICA A PARTIR DA UMBANDA ESOTÉRICA E O


CONCEITO DE ESPIRITUALIDADE

A Umbanda Esotérica foi fundada por Wodroow Wilson da Matta e Silva,


conhecido neste meio como Mestre Yapacani. Ele nasceu em Garanhuns – PE e se
erradicou com apenas cinco anos na antiga capital federal do Rio de Janeiro. Morou
no centro do Rio e, em 1937, com 21 anos, muda-se para o bairro da Pavuna onde
abriu o seu primeiro terreiro de Umbanda Popular.
Em 1956 Matta e Silva publicou pela Gráfica e Editora Esperanto sua magnus
opus “Umbanda de Todos Nós”, considerada por muitos a “bíblia da umbanda”. O
texto trata dos principais pontos da cosmovisão da umbanda esotérica sob a luz de
seu fundador.
Mestre Yapacani escreveu ainda outras 8 obras. “Umbanda – Sua Eterna
Doutrina”, “Doutrina Secreta da Umbanda”, “Lições de Umbanda e Quimbanda na
Palavra de um Preto-Velho”, “Mistérios e Práticas na Lei de Umbanda”, “Segredos da
Magia de Umbanda e Quimbanda”, “Umbanda e o Poder da Mediunidade”,
“Umbanda do Brasil”, “Macumbas e Candomblés na Umbanda”.
Todavia “Umbanda de Todos Nós” é o verdadeiro marco divisor e revela a
posição da escola umbandista esotérica mais significativamente.

Inclusive, de todos os livros, fora também o mais discutido e


comumente encontrado em visitas aos terreiros, principalmente Rio
de Janeiro e São Paulo, realizadas ao longo dessa pesquisa
(CARNEIRO, 2014, p. 98).

Outro ponto de destaque é a iniciação que é central na vivência templária do


adepto da Umbanda Esotérica o que se reflete em sua obra, merecendo um capítulo
inteiro (2004, p. 253-302).

A função do sacerdote na transmissão do conhecimento e


preparação do neófito (iniciando) é destacada. A mediunidade
também ocupa um lócus importante nessa transformação que o
adepto da escola de umbanda esotérica passará (CARNEIRO, 2014, p.
100).

Por fim a magia igualmente se encontra na centralidade dos fundamentos


doutrinários da Umbanda Esotérica, e na experiência ritual, e é tratada na terceira
parte da obra “Umbanda de Todos Nós” (MATTA E SILVA, 2004, p. 317-336).

Ao longo das décadas de 50, 60, 70 e 80 do século passado, Matta e


Silva vai reunir uma quantidade significativa de adeptos,
simpatizantes não só de sua literatura, que ganha várias edições, mas
de sua ritualística. Inicia filho e filhas espirituais do Rio de Janeiro e
de outros estados. Esse ponto é importante para não caracterizar tal
prática umbandista como uma moda ou registro pontual na história.
232

Ao final da década de 80, transmite a raiz para F. Rivas Neto82


(Mestre Araphiagha). Até o presente momento, escreveu várias
obras. As que estão diretamente ligadas à Umbanda Esotérica são:
“Umbanda a Proto-Síntese Cósmica”, “Umbanda – o elo perdido”,
“Lições Básicas de umbanda”, “O Arcano dos Sete Orixás”, “Exu – o
grande arcano”. (CARNEIRO, 2017).

A partir de 1996, após dez anos do advento do caboclo 7 Espadas, serão


revelados os fundamentos doutrinários da Umbanda Iniciática por meio da
publicação de “Fundamentos Herméticos de Umbanda”, e, depois, de “Cura e auto
cura umbandista – terapia da alma”, “Sacerdote, Mago e Médico – cura e auto cura
umbandista”.
Atualmente, Osvaldo Olavo Ortiz Solera (Mestre Ygbere) é o responsável pela
escola iniciática de umbanda. A raiz iniciática continua viva na Ordem Iniciática do
Tríplice Caminho (OITC) localizada em São Paulo (SP). O templo em questão foi
fundado por Mestre Ygbere em 2018, por determinação do Mestre Arapiaga, e até
hoje realiza ritos de atendimento público.
Tanto em Rivas Neto de 1996 a 2003, quanto em Olavo Solera a partir de 2018,
as práticas da umbanda são tidas como iniciáticas, por se basearem na Doutrina do
Tríplice Caminho Uno. Ambos os sacerdotes levaram ao grande público suas práticas
seja pelas obras, havendo material na internet83.
Entender a Umbanda Iniciática como uma escola afro-brasileira84 própria, ou
seja, composta por uma doutrina (epistemologia), linha de transmissão da raiz
(método) e estilo de vida próprio (ética) que não está em oposição às demais práticas
umbandistas, permite evitar certos equívocos na pesquisa sobre este universo
religioso.
A doutrina de Umbanda Iniciática (epistemologia) é baseada na Doutrina do
Tríplice Caminho Uno como já citado. A partir dele, todo o corpo de conhecimento
teórico é construído. Seus principais elementos estão descritos em três obras 85 do
sacerdote Rivas Neto em caráter introdutório, tendo em vista que o conhecimento
mais aprofundado é restrito aos Iniciados na Umbanda Iniciática.
A partir disso estabelece-se a Doutrina da Umbanda Iniciática que ensina que a
origem do universo (realidade espaço-temporal) se deu após a consciência espiritual
por meio de seus atributos, em especial a volição, decidir vivenciar a diversidade, o
que só seria possível por meio de outra realidade, de natureza diversa, ou seja,
energética-material, que lhe permitisse concretizar a almejada pluralidade.

82
Médico e sacerdote umbandista, discípulo de Mestre Yapacani, fundou a Faculdade de Teologia Umbandista.
83
Por exemplo, o canal do Youtube da Ordem Iniciática do Tríplice Caminho dirigida por Mestre Ygbere:
www.youtube.com/umbandainiciatica
84
Sobre o conceito de escolas nas religiões afro-brasileiras, ler Rivas Neto (2012)
85
Fundamentos Herméticos de Umbanda, Introdução à auto-cura tântrica e Sacerdote, Mago e Médico.
233

Crê-se que o espírito86 exsuda a proto-forma da matéria (a qual a escola


iniciática denomina de substância “etérica”87) que era anômala demandando, pois,
ser ordenada. A hierarquia divina (Suprema Consciência Una) “idealizou” quais
seriam as condições mais favoráveis para a consciência espiritual interpenetrar esta
outra realidade (material).
Os 7 Arashas88 “Refletores” - Potestades Cósmicas que “refletiriam” a “luz”
espiritual na realidade que se estava a criar, por meio dos 7 Esseyas89 “Cósmicos”,
concretizariam o seu poder volitivo imprimindo na dita substância etérica ciclos e
ritmos particulares dando, assim, origem, ao fenômeno que a comunidade científica
denominou de o “Big Bang”, ou a grande explosão de flutuações quânticas no vácuo
que gerariam forças fenomênicas (das quais a ciência só conhece quatro: gravidade,
eletrodinâmica, fraca e forte), que poderiam ser sintetizadas em uma estrutura trina
que chamam de “luz”, “som” e “movimento” cósmicos, ou os três fenômenos
cosmogenéticos90.
Defende-se que o espírito (unidade), “dualizou-se” a partir da noção de
individualidade (eu/não eu) e, para resgatar a unidade consciencial perdida entendeu
ser necessária experimentar outra realidade, a material (reino da energia/massa), a
fim de que por meio da “luz”, “som” e do “movimento” (ternário) pudesse
interpenetrar o tecido espaço-tempora91l (setenário) e, a partir desta experiência,
retornar à origem desvencilhando- -se da matéria.
Os três fenômenos cosmogenéticos expressam-se na Doutrina preconizada
pela chamada Escola de Síntese92 nas doutrinas tântrica, mântrica e yântrica93,
respectivamente, “luz”, “som” e “movimento”. Três caminhos que permitiriam que a
unidade da consciência espiritual vivencie a setecência da matéria. 1, 3 e 7 se
interligariam em um todo harmonioso de regulação de todo o sistema cósmico
“idealizado” pelos Arashas e concretizado pelos Esseyas.

86
O espírito é apontado como a única realidade. A realidade absoluta. Eterno. Imaterial. Adimensional.
Amorfo. Dotado de atributos que lhe são próprios, intrínsecos a ele, tais como: consciência, percepção,
entendimento, vontade, volição, etc.
87
A energia etérica seria a proto-forma da matéria exsudada do próprio espírito.
88
Arashas possui o seu significado hierático em Senhores da Luz Espiritual. São potestades cósmicas
incumbidas de regular, direcionar, auxiliar, guiar a evolução de todos os seres.
89
Esseyas são espíritos que exercem a função de executar os desígnios dos Arashas, dando concretude à
vontade.
90
Luz não é compreendida nesta escola umbandista unicamente enquanto ondas eletromagnéticas ou pela sua
estrutura básica, o fóton. Da mesma forma o som não se limita às ondas mecânicas. Compreendem-se esses
fenômenos conferindo-se a eles uma profunda carga simbólica que guarda relação com a estruturação do seres
manifestos na matéria (microcosmos) e do meio no qual se expressaram (macrocosmos), ou natura naturandis.
91
Para a Umbanda Iniciática a matéria encontra-se organizada em 3 dimensões, a qual chamam de mental,
astral e etéreo-física. Em cada dimensão a matéria se apresenta de 7 formas, as quais são chamadas de sólido,
líquido, gasoso, éter químico, éter refletor, éter luminoso e éter vital. Fala-se, pois, na setessência da matéria.
92
Escola de pensamento cuja base doutrinária defende o conceito de unidade-universalidade de todo o saber
humano, reunindo-se os ditos quatro grandes pilares da “gnose” humana: filosofias, artes, ciências e religiões.
93
Doutrina tântrica é relacionada com a luz (iluminação interior e amplificação consciencial), Mântrica com a
som (amor crescente e purificação) e a Yântrica com o movimento (ações positivas libertadoras da consciência
dos apegos mundanos e neutralizadora de um carma negativo).
234

Este regramento nas línguas hieráticas da antiguidade seria chamado de o


“AumBhanDan” ou “OmbhanDanHum”, e teria sido adaptado foneticamente no
ocidente por meio do termo “Umbanda” e, no oriente, por meio do termo “Buda” ou
“Om Buddha”, o Conjunto das Leis de Deus, a via de iluminação dos espíritos (tanto a
“descida”/”queda” como a “subida”/”ascenção”).
Ao conhecimento desta Lei Reguladora Divina chamam de “Magia”; ao
processo de neutralização dos “venenos” que entorpecem a conciência espiritual que
determinaram sua imersão na realidade material, chamam de “Ordenação”; e, ao
caminho de retorno à realidade primeva (espiritual), chamam de “Iniciação”. Daí
surgiria a denominação de uma escola da Umbanda Iniciática.
O surgimento desta nova escola se deu em um processo iniciado a partir de
1986 quando uma entidade chamada mestre Orishivara (que nos processos
mediúnicos se apresentou valendo-se da roupagem fluídica e “nome de guerra” de o
caboclo sr. Ogum 7 Espadas), pelo mediunismo do mestre Arhapiagha, iniciaria um
processo de preparação para o advento de uma nova forma de vivenciar a umbanda
que ficou conhecida como Umbanda Iniciática.
Esta vivência (Umbanda Iniciática), apesar de guardar muitas semelhanças,
diferencia-se da Umbanda Esotérica, por possuir uma epistemologia distinta: a
doutrina do tríplice caminho.
Na Umbanda Esotérica esta doutrina se encontrava velada nos mistérios da
tríplice forma de apresentação das entidades que integram e militam na chamada
sagrada corrente astral de Umbanda.
Com a umbanda iniciática uma nova fase surge, em que aspectos sincréticos da
cultura nacional cedem lugar ao universal. Os arquétipos de crianças, caboclos
(índios) e pretos-velhos dão lugar aos mestres das doutrinas mântrica, yântrica e
tântrica.
Não há mais raças (vermelha, amarela, negra e branca), etnias (ameríndia,
africana, indo-européia) e continentes (África, América e Euro-Ásia). Estas cisões se
esvaem dando lugar à unidade da síntese, restabelecida por meio da doutrina do
tríplice caminho.
Quando a umbanda iniciática apresenta como base epistemológica a doutrina
do tríplice caminho opera-se um marco divisor de águas na ritualística umbandista,
onde o sagrado deixa de ser vivenciado por aqueles que a ela aderiram por meio de
elementos particulares, específicos, isolados, limitados.
As formas particulares de representação do sagrado (crianças/ ibejis/erês,
caboclos/índios/bugres, pretos-velhos/vovôs/pais/tios, marinheiros, boiadeiros,
baianos, ciganos, etc.), dão lugar a representações universais.
Os espíritos luminares enviados divinos se apresentam enquanto mestres /
senhores das doutrinas tântrica, mântrica e yântrica que compõe o tríplice caminho e
se encontram vinculadas aos três fenômenos cosmogenéticos (som, movimento e
luz) e à estrutura material de apresentação dos seres (mental, astral e física).
Este tríplice caminho teria ordenado a “descida” / “queda” dos seres da
realidade espiritual à material, e ordenaria o seu “retorno” (ascensão consciencial
liberatória). Segundo creem, a doutrina do tríplice caminho conduz todas as
235

consciências espirituais em contato com a dimensão material - a qual é 7 (setenária),


às 3 (três) vias de cura e resgate da 1 (unidade) perdida - consciência plena da
realidade espiritual ou do absoluto.
Sua base epistemológica induziria a um gradativo processo de ordenação do
caos (interno e externo), remetendo-nos ao início / origem (iniciação), o que resulta
na vivência (interiorização) cada vez maior dos atributos divinos que traduzem
enquanto: Sabedoria, Amor e Poder de Deus operantes em todo o cosmos.
Quando há o afastamento deste tríplice caminho, ou seja, quando se deixa de
vivenciar em estes atributos divinos (Sabedoria, Amor e Poder/Ação), em seu lugar
surgiriam, respectivamente, os venenos da ignorância, ódio e da inação/apegos que
intoxicariam os 3 (três) organismos que dispomos (mental, astral e físico),
somatizando-se nas mais variadas doenças que nada mais seriam do que expressões
dos desequilíbrios nestas três dimensões do ser.
Em apartadíssima síntese seria esta a cosmovisão e base doutrinária da
Umbanda Iniciática.
Por fim importante destacar o fundamental papel da mediunidade na
Umbanda Iniciática. O transe mediúnico está sempre presente nos rituais, pois é o
principal contato entre os consulentes e os emissários divinos que são mestres das
Doutrinas Tântrica, Mântrica e Yântrica.
A forma de transmissão deste conhecimento religioso (método) se dá pela
iniciação. A Umbanda Iniciática é uma escola religiosa que acentua
consideravelmente este aspecto. Alguém só pode ser aceito na Umbanda Iniciática se
o mestre de iniciação permitir e realizar os ritos propícios para tal.
Atualmente, o Mestre-Raiz da Ordem Iniciática do Tríplice Caminho, templo de
vivência da Umbanda Iniciática é Mestre Ygbere (Olavo Solera), discípulo de Mestre
Arapiaga (Rivas Neto). Este, ao fundar a Umbanda Iniciática, desenvolveu o conceito
de espiritualidade da seguinte forma: “A religião cósmica é o sagrado, que é a
Espiritualidade Universal, inerente a todos os homens, vivente no interior deles”
(RIVAS NETO, 2003, p. 75).
Verifica-se, pois, uma aproximação com o conceito de espiritualidade espírita
difundido por meio do médium Francisco Cândido Xavier:

[...] os passos do cristão, em qualquer escola religiosa, devem dirigir-


se verdadeiramente ao Cristo, e que, em nosso campo doutrinário,
precisamos, em verdade, do Espiritismo e do Espiritualismos, mas,
muito mais, de Espiritualidade (XAVIER, 2014, p. 11).

A partir deste conceito universalista, a Umbanda Iniciática vai além da mera


tolerância com o diferente, do respeito à diversidade e do estabelecimento de um
diálogo inter-religioso: vive-se secularmente o sagrado de modo intensamente
desinstitucionalizado e destradicionalizado.
236

REFERÊNCIAS

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Faculdade de Teologia Umbandista no diálogo entre adeptos de Religiões Afro-
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238
239

CEMITÉRIOS, MORTE E SALVAÇÃO: REPRESENTAÇÕES DO


CRER E DO MORRER NO PERIÓDICO ADVENTISTA REVISTA
MENSAL DURANTE A GRIPE ESPANHOLA (1918-1920)

ALLAN MACEDO DE NOVAES


Doutor em Ciência da Religião
Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP)
[email protected]

RESUMO: O trato dado aos corpos dos mortos e os espaços que os abrigam – isto é,
os cemitérios – retratam uma rica, importante e complexa teia de sentidos, símbolos
e representações de crenças religiosas. A costumeira associação de características
negativas às necrópoles, tais como superstições macabras, insalubridade e
insegurança, convive com a frequente atribuição religiosa de sentimentos e
pensamentos de nostalgia, fé, conforto e esperança aos que participam dos ritos de
passamento. Esse contraste e diálogo entre as experiências e representações de
morte e salvação a partir dos cemitérios é tema do presente artigo, que investiga
essa relação aparentemente paradoxal, mas certamente não incomum, entre o
morrer e o crer. Para tanto, o artigo analisa relatos missionários e obituários nas
edições da Revista Mensal, órgão oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Brasil,
durante o período da pandemia de Gripe Espanhola no país em 1918 a 1920. A
análise documental é feita a partir do acervo da Revista Adventista, nome atual da
Revista Mensal, disponibilizada gratuitamente na internet pela Casa Publicadora
Brasileira, editora da denominação (https://acervo.cpb.com.br/ra). Nos trechos
analisados avalia-se o papel que os cemitérios cumprem como arena onde visões
religiosas de morte e salvação colidem entre si. Como resultado, destacam-se a
importância da crença da denominação adventista na morte como não-existência –
em contraste com crenças que pregam certa continuidade de existência post mortem
a partir da alma ou do espírito – para a elaboração e consolidação de narrativas
antropológico-soteriológicas de conforto e esperança. Além disso, dada a vocação
apocalíptica e missionária da denominação, o cemitério também é retratado como
espaço favorável ao evangelismo, em especial para a difusão da crença adventista
sobre o “verdadeiro” estado dos mortos, fenômeno que se intensifica no período
analisado por conta do aumento de sepultamentos e visitas a cemitérios, fatos
decorrentes da pandemia de Gripe Espanhola.

Palavras-chave: Cemitério; Morte; Religião; Adventismo; Gripe Espanhola

A morte como conceito de aniquilação da vida tem sido tema de debate de


filósofos, teólogos, artistas e escritores. No entanto, essa discussão frequentemente
240

tem mais que ver com “o destino da alma do que com o destino do corpo” (FIRTH,
2005, p. xv). Ainda assim, o trato dado aos corpos dos mortos e o planejamento e
manutenção dos espaços que os abrigam – isto é, os cemitérios – retratam uma rica,
importante e complexa teia de objetos de estudo que vão da geografia e
antropologia à botânica e climatologia.
Sob a perspectiva da visão do cemitério como espaço de ritos religiosos de
passagem, é útil resgatar a história da evolução e reorganização desses locais no
contexto brasileiro. Durante os períodos colonial e imperial do Brasil, as igrejas eram
os locais que abrigavam os túmulos, sendo os mortos geralmente enterrados nos
templos que frequentavam em vida, em uma tentativa de perpetuação do convívio
social-comunitário e do vínculo religioso-institucional. Dessa forma, o associar-se à
igreja era garantia não somente de bens espirituais, mas também de assistência
funeral familiar. Como herança europeia medieval, era comum, portanto, que as
igrejas se convertessem em necrópoles, estabelecendo-se no espaço urbano como
locais de devoção religiosa e de sepultamento dos falecidos, onde “coabitavam” vivos
e mortos no coração da cidade (PETRUSKI, 2006, p. 98).
No final do Brasil Império e início do Brasil República essa realidade mudou
com a influência do movimento higienista no país (ABREU JÚNIOR e CARVALHO,
2012). Com a demanda social-sanitária de combater epidemias como as de Febre
Amarela ou de Gripe Espanhola, a ordem urbana brasileira foi afetada (COSTA, 2013,
p. 66). As topografias médicas da época consideraram as igrejas-necrópoles como
áreas doentias e perigosas. Como consequência, uma reorganização do espaço
urbano requeria que “a morte fosse higienizada” e, sobretudo, “que os mortos
fossem expulsos de entre os vivos e segregados em cemitérios extra-muros [sic]”
(REIS, 1991, p. 247).
A costumeira e contemporânea associação de características negativas às
necrópoles, tais como superstições macabras, insalubridade e insegurança, convive
com a frequente atribuição religiosa de sentimentos e pensamentos de nostalgia, fé,
conforto e esperança aos que participam dos ritos de passamento. Esse contraste e
diálogo entre as experiências e representações de morte e salvação a partir dos
cemitérios é tema do presente artigo, que investiga essa relação aparentemente
paradoxal, mas certamente não incomum, entre o morrer e o crer.
Para tanto, o artigo analisa relatos missionários e obituários nas edições da
Revista Mensal, órgão oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Brasil, durante o
período da pandemia de Gripe Espanhola no país em 1918 a 1920. A análise
documental é feita a partir do acervo da Revista Adventista, nome atual da Revista
Mensal, disponibilizada gratuitamente na internet pela Casa Publicadora Brasileira,
editora da denominação (https://acervo.cpb.com.br/ra). Nos trechos analisados
avalia-se o papel que os cemitérios cumprem como arena onde visões religiosas de
morte e salvação colidem entre si.
A Revista Adventista começou em 1906 como Revista Trimensal, algumas
décadas após a chegada dos primeiros adventistas ao Brasil. Em 1908, passou a ser
um boletim mensal e teve sua denominação alterada para Revista Mensal. O nome
atual – Revista Adventista – surgiu em 1931 (GREENLEAF 2011, p. 120). A história da
241

Igreja Adventista do Sétimo Dia do Brasil se confunde com a história da Revista


Adventista, já que a revista foi o periódico oficial da denominação, cuja missão e foco
passou por promover o discurso institucional ao longo das décadas.
Por sua história e características, a Revista Adventista é uma das fontes mais
confiáveis para o estudo da memória institucional e do discurso eclesiástico
adventista. Na verdade, tornou-se uma importante fonte e objeto de análise em
diversos estudos sobre o adventismo brasileiro desde as suas origens até os dias
atuais (MENDONÇA, 2014; NOVAES E CARMO, 2017; FURTADO, 2019).
O presente artigo, portanto, divide-se em três partes: (1) uma breve
apresentação do adventismo do sétimo dia como movimento de vocação
apocalíptica; (2) uma breve apresentação sobre o contexto da epidemia de Gripe
Espanhola no Brasil; e (3) os resultados da análise documental e a identificação de
três grupos de texto a partir do papel que o cemitério desempenha no discurso da
Revista Mensal.

O ADVENTISMO: UM MOVIMENTO DE VOCAÇÃO APOCALÍPTICA

Com base nas interpretações proféticas de Daniel e Apocalipse, os adventistas


acreditam que o mundo está caminhando para o fim. Essa crença data do milerismo,
um movimento de avivamento liderado pelo ministro batista William Miller (1782-
1849), que anunciou que Cristo voltaria na década de 1840 (BLISS, 1853, p. 171-172).
Com base em cálculos de tempo que resultaram de sua interpretação da profecia de
2.300 noites e manhãs de Daniel 8:14 e a profecia de 70 semanas de Daniel 9, entre
outros textos, Miller concluiu que no final de tal tempo Jesus voltaria e purificaria o
Terra. Grupos mileritas estabeleceram até 20 datas diferentes para esse evento, mas
o mais significativo de todos eles foi, sem dúvida, 22 de outubro de 1844, que os
adventistas chamam de “o grande desapontamento”. A Igreja Adventista do Sétimo
Dia originou-se de um grupo que ressignificou 22 de outubro de 1844 como uma
transição no ministério de Cristo e, portanto, os adventistas afirmam ser os
verdadeiros herdeiros do movimento milerita (BULL; LOCKHART, 2007, p. 53).
Entre 1845 e 1848, os primeiros adventistas chegaram a um consenso algumas
crenças básicas, entre elas o retorno literal e visível de Jesus e a inconsciência dos
seres humanos na morte. Essas doutrinas, que somadas a outras distinguiam os
adventistas sabatistas de outros grupos mileritas pós-1844 e dos protestantes em
geral, se conectavam pela ideia de que a morte significava inexistência, de forma que
no retorno de Cristo os justos seriam corporalmente ressuscitados.

BRASIL E GRIPE ESPANHOLA

A gripe espanhola chegou ao Brasil em setembro de 1918. Viajou a bordo do


navio Demerara, vindo de Lisboa e Dakar, para deixar imigrantes em Recife, Salvador,
Rio de Janeiro e Santos, antes de seguir para Uruguai e Argentina. O Rio de Janeiro, a
capital federal do Brasil na época, foi a cidade mais afetada por ela. Cerca de 60% da
242

população foi infectada, em comparação com cerca de 30% para o resto dos
brasileiros (GOULART, 2005).
A pandemia gerou um colapso no sistema de saúde brasileiro em grandes
cidades como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, e foi responsável pela morte do
presidente do Brasil, Rodrigues Alves, impedindo-o de cumprir um segundo mandato.
A pandemia também provocou uma renovação do interesse pelo conhecimento
sanitário que culminou na reestruturação do sistema público de saúde brasileiro e na
elaboração de uma política sanitária alinhada com a comunidade científica e
higienista da época (BREITNAUER, 2019, p. 65; QUEIROZ, 2004; GOULART, 2005).

ANÁLISE DA REVISTA MENSAL

Como corpus do trabalho, foram selecionados textos entre 1918-1920 no


acervo digital da Revista Adventista, na época chamada Revista Mensal. No site do
acervo (https://acervo.cpb.com.br/ra) foram buscadas as seguintes palavras:
cemitério, lápide, tumba, sepulcro, mortuário, necrópole, sepultura e túmulo. Foram
38 ocorrências encontradas no período analisado, distribuídos entre relatos
missionários, notícias e obituários. As palavras “lápide”, “sepulcro” e “tumba” não
foram encontradas no período analisado. Mas “necrópole” possuiu três ocorrências;
“mortuário(a)”, sete ocorrências; “túmulo”, sete ocorrências; “sepultura”, nove
ocorrências; e “cemitério”, 12 ocorrências.
Nos textos em que existe ao menos uma ocorrência dos termos consultados,
percebe-se padrões e temáticas recorrentes, de forma que é possível classificar o
papel que o cemitério ocupa na narrativa da Revista Mensal. Os cemitérios são
abordados e explorados no discurso da Revista Mensal como: (1) espaços de
evangelismo, predominantemente presentes em relatos missionários e notícias, (2)
como espaços de confirmação da doutrina, predominantemente presentes em
obituários, e (3) como espaços de conflitos religiosos, predominantemente presentes
em relatos missionários.

CEMITÉRIO COMO ESPAÇOS DE EVANGELISMO

Uma parte dos textos em que os cemitérios e termos análogos aparecem há a


descrição deles como espaços de evangelismo, nos quais a revista conclama os
leitores/membros a aproveitarem as comemorações do dia de finados para entregar
folhetos e revistas missionárias às pessoas que visitam os cemitérios, como segue no
exemplo abaixo.

Visto occorrer este anno o primeiro aniversario da gripe hespanhola


ao nosso pais, devendo por esta razão ser maior do que de costume a
concorrencia para os cemiterios, resolvemos aproveitar esta occasião
para lançar o Signaes dos Tempos. [...] Appellamos pois a todos os
obreiros, directores de egrejas e grupos, secretarios de sociedades de
tratados e colportores, e irmãos em geral para que, unidos,
243

aproveitem esta ocasião para espalhar a luz da verdade. Será


conveniente que os irmãos se organizem em grupos, os quaes,
postando-se às entradas dos cemitérios, devem offerecer este
número 11 do Signaes dos Tempos aos que vão passando [sic]
(REVISTA MENSAL, 1920, p. 16).

A visita ao cemitério, não como momento de prestar honra à memória dos


falecidos ou de performar algum ritual religioso, mas sim como oportunidade para
investida evangelística já se demonstrava como prática adventista. O feriado de
finados, portanto, era considerada excelente oportunidade para a disseminação da
mensagem adventista, em especial a da crença na morte como inexistência e a
esperança da ressurreição por ocasião do retorno de Cristo. No discurso da Revista
Mensal é evidente que um ano após o grande número de fatalidades da gripe
espanhola provocaria um afluxo considerável de visitantes às necrópoles. Esse
momento de vulnerabilidade seria propício para a transmissão da “luz da verdade”,
como os adventistas se referiam às suas doutrinas distintivas.

CEMITÉRIO COMO ESPAÇO DE CONFIRMAÇÃO DE DOUTRINA

Outro grupo de textos do corpus trata os cemitérios como ambientes propícios


ao reforço doutrinário e apologético. Essa abordagem é especialmente presente em
obituários, como no excerto abaixo, que exemplifica esse padrão. Ao relatar a morte
de um bebê de 7 meses de idade no Paraná, o autor do obituário, que também fez o
discurso fúnebre:
[...] dirigiu a palavra no cemiterio, baseando-se no cap. 11 de S. João,
apontando aos paes tristes a manhã da ressurreição, quando nossos queridos
nos serão outra vez restituídos, e quando o poder da morte será para sempre
aniquilidado (SPIES, 1919, p. 22).

Como elemento de conforto e esperança, o texto da Revista Mensal apoia-se


na crença apocalíptica como certeza do reencontro corpóreo e literal com os
queridos que se foram. Essa perspectiva antropológico-soteriológica é bastante
comum nos discursos fúnebres relatados nos obituários.

CEMITÉRIO COMO ESPAÇO DE CONFLITO RELIGIOSO

O último grupo de textos identificados tratam os cemitérios como espaço de


conflito religioso. Um exemplo desse padrão encontra-se na edição de abril de 1919
da Revista Mensal. No relato missionário intitulado “Theophilo Ottoni”, o colportor H.
Hoefft narra as desventuras de sua equipe que tentavam chegar até a cidade mineira
que dá nome ao relato. Durante a viagem, uma vez que um dos missionários
manifestava sintomas de Influenza, decidiram parar na cidade mais próxima àquela
altura – Diamantina. Na cidade, todos acabaram doentes e decidiram retornar à
pequena cidade de Rio Preto, onde estiveram anteriormente. Lá um dos missionários
244

faleceu e Hoefft e equipe relatam que enfrentaram muitas dificuldades para poder
sepultar o colega, “visto o padre não querer aceital-o no cemitério [sic]” (HOEFFT,
2019, p. 12). Por fim, narra Hoefft (2019, p. 12), o padre “permittiu que o
enterrassemos fora do muro do cemitério [sic]”.
Esse relato missionário exemplifica o papel que o cemitério desempenha, no
discurso da Revista Mensal, como espaço de perseguição e conflito religiosos,
especialmente entre católicos e protestantes, comuns à época.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ao analisar o papel que os cemitérios exercem nos discursos da Revista Mensal


em 1918 a 1920, época em que o Brasil enfrentava a epidemia de Gripe Espanhola,
no que se refere às representações do crer e do morrer no discurso adventista
destacam-se a importância da crença da denominação na morte como não-existência
para a elaboração e consolidação de narrativas antropológico-soteriológicas de
conforto e esperança. Nesse sentido, o cemitério desempenha um papel de
confirmação da doutrina adventista, a qual a ênfase na ressurreição no local da morte
ocorre muito mais do que a promoção dos sentidos de memória, legado e descanso.
Dada a vocação apocalíptica e missionária da denominação, o cemitério
também é retratado como espaço favorável ao evangelismo, em especial para a
difusão da crença adventista sobre o “verdadeiro” estado dos mortos, fenômeno que
se intensifica no período analisado por conta do aumento de sepultamentos e visitas
a cemitérios, fatos decorrentes da pandemia de Gripe Espanhola.
Também há espaço para tratar o cemitério como espaço de conflitos
religiosos, especialmente no contexto da disputa entre catolicismo e protestantismo,
muito presente à época. Esse cenário se demonstrava nas tensões que envolviam o
sepultamento em uma época na qual a Igreja Católica detinha certo poder sobre os
locais onde os corpos eram enterrados.

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1920, p. 16.
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246

DA CASA AO TÚMULO: A SIMBOLOGIA ARQUITETÔNICA DE


MORADA NAS FORMAS TUMULARES DO CEMITÉRIO DE
SANTA IZABEL

AMANDA ROBERTA BOTELHO MENEZES


Doutoranda em Comunicação, Linguagens e Cultura
Universidade da Amazônia
[email protected]

RESUMO: Os cemitérios podem ser considerados espaços sagrados que,


inevitavelmente, fazem parte de vida cotidiana, sendo objetos de representações
individuais dos vivos além de objetos de temor ou de fantasias dos mesmos. São
expressões do relacionamento do homem com a morte, onde no espaço construído
retrata o real e o imaginário do ser humano, frente ao que ele sabe e desconhece da
vida. Desde os Dolmens, túmulos do homem paleolítico, a semelhança com o abrigo e
morada desses povos, que eram as cavernas, já se fazia presente no que até então
era considerado espaço cemiterial para estes povos. O mesmo passa acontecer após
a ruptura das igrejas como espaços de enterramento. Os mausoléus são as
representações da morada do homem e da “casa” de Deus, ou seja, a Igreja. No
Cemitério de Santa Izabel em Belém, as “casinhas” (Termo popularmente conhecido
como túmulo pelos mais antigos da região), são túmulos considerados elementos
simbólicos que foram implantados no século XIX com características arquitetônicas
oitocentistas, e que ainda estão presentes até os dias atuais com características
misturadas e derivadas dos ideais fúnebres do período inaugural dos cemitérios e das
novas tipologias e simbologias contemporâneas sobre a morte. Este trabalho tem
como objetivo compreender o sentido de morada na relação entre os vivos e os
mortos nas representações fúnebres existentes no Cemitério de Santa Izabel em
Belém do Pará, analisar como a morte é materializada nos espaços, e investigar a
necessidade da semelhança do morar em uma casa em vida e em morte, pautado nas
representações arquitetônicas fúnebres, consequências cos anseios humanos. Para
desenvolvimento deste trabalho, o procedimento metodológico utilizado foi a
pesquisa Histórico-Interpretativa, através das ferramentas Bibliográficas e
Documentais. A conclusão mais enfática deste trabalho é que, o homem quer sentir o
abrigo da casa, o abrigo de viver em casa, e desta forma, pensa em viver a sua morte
em uma eterna morada. Os túmulos em formato de “casinhas” são atemporais no
Cemitério público de Santa Isabel, e até hoje são os elementos simbólicos mais
característicos deste e de outros cemitérios públicos que se enquadram no recorte
temporal de inauguração do fim do século XIX e meados do século XX, e que estão
até hoje em funcionamento. Tanto a vida quanto a morte refletem a interação da
arquitetura com a vida humana, visto que ela traduz a interpretação da morte através
247

dos cemitérios. Sentimentos, contextos históricos, crenças, ciências, normas


sanitárias e afins, interferem e constroem a concepção e execução dos cemitérios até
os dias atuais.

Palavras-chave: Cemitérios; Casa; Túmulos; Belém-Pará; Cemitério de Santa Izabel.

UMA BREVE INTRODUÇÃO DOS ESPAÇOS DE ENTERRAMENTO

Desde os primórdios os espaços de sepultamento, foram delimitadores das


práticas civis e religiosas das sociedades. As sepulturas mais antigas confirmadas
datam 80.000 a.C., antes mesmo do período paleolítico, e antes da presença massiva
do cristianismo no estabelecimento dos rituais fúnebres. O homem paleolítico,
seguidor das suas crenças e ritos característicos, vivia em busca da sua sobrevivência,
ou seja, era nômade. Entretanto, os mortos foram os primeiros a ter morada
permanente nessas sociedades primarias, sendo elas em cavernas, em uma cova
assinalada por um monte de pedras ou em um túmulo coletivo, diferentemente das
espécies antecessoras, como os Australopitecos, que não possuíam rituais de
enterramento e deixavam os corpos se decomporem ao ar livre.
Com a chegada do período Neolítico (10.000 a 5.000 a.C.) e das novas técnicas
em pedra, os homens que não necessitavam mais viver trocando de morada,
começaram a criar as comunidades. Com isso, os lugares reservados para os mortos
também evoluíram, e as cavernas não davam conta da quantidade dos mortos,
causando assim a necessidades de construir sepulturas artificiais, como os dolmens.
Neste momento há uma mudança considerável, mesmo que inconsciente, das
representações fúnebres nas dinâmicas sociais, visto que a instalação desses povos
em um território fixo, muda as noções do viver e morrer para cada ser individual e
social desse grupo humano.
Já para os Egípcios, na Antiguidade Oriental, a vida começava após a morte. Os
lugares de enterramento dos mortos eram importantes para a sociedade egípcia,
visto que o povo egípcio tinha como principal característica a veneração de seus
mortos. A veneração era tão necessária, que o material usado para a construção dos
templos e tumbas era a pedra, material superior a própria morada em vida, que era o
adobe. Os defuntos que faziam parte da elite, como os faraós por exemplo, eram
sepultados em tumbas monumentais, e repletos de enxovais riquíssimos,
simbolizando a importância que eles representavam para a sociedade e seu poder
central, diferentemente do restante da população, como os trabalhadores, que
tinham seus corpos enterrados em locais comuns, como as cavernas.
Durante o século IV, precisamente no ano de 303, era proibida a prática cristã.
Os rituais de sepultamento realizados principalmente pelos mártires do cristianismo,
eram em catacumbas. Com a legitimidade da religião católica, durante o ano de 313,
através do Édito de Milão, o clero passou a definir a vida dos fiéis, incluindo os
costumes fúnebres dos mesmos. Neste momento, os sepultamentos passam a
ocorrer no centro das cidades, no interior das basílicas, que eram moduladas
especificamente para esta função. Com a religião católica já difundida por toda a
248

Europa, os mortos são sepultados “no interior das igrejas, mosteiros e conventos, no
solo, ou em túmulos de pedra, dependendo da situação social” (CARVALHO, 2012). A
chegada da Peste Negra na segunda metade do século XIV, provocou a morte de
milhares de pessoas em pouco tempo, isso possibilitou o abarrotamento de corpos
no interior das igrejas, fazendo necessário desta forma, enterrar os corpos no pátio
da mesma, que com o crescimento das mortes efetivadas pela peste, ocasionou na
criação dos cemitérios ao lado ou aos fundos delas. Neste momento se inicia,
singelamente, os primeiros rituais cristãos fúnebres que perpetuaram por vários
séculos, e que ainda deixaram resquícios nos dias atuais.
Com o crescimento populacional, condições insalubres, proliferação de
doenças e as preocupações do estado com a saúde pública, no século XVIII, se inicia a
proibição dos sepultamentos em templos, e opta-se pela descentralização dos
enterramentos, propondo novos locais específicos para a realização desta prática e
desativando o cemitério medieval, já que “os médicos defendiam que a localização
ideal dos cemitérios era fora das cidades, em terrenos arejados, longe de fontes de
água e onde os ventos não soprassem em direção às cidades” (CARVALHO, 2012).
A partir do século XIX, esses novos “objetos coletivos na geografia urbana”
(SOUZA; RIBEIRO FILHO, 2016), agora denominados de Cemitérios, surgem com
aspectos formais do que vemos atualmente. Os espaços de enterramento que
anteriormente eram regidos por normas religiosas, passam a ter a “laicização do
campo santo”, quando o estado rompe com a igreja e passa administrar esse
equipamento urbano, com base em ações cientificas e médicas. Entretanto ainda
havia no cemitério a presença de mausoléus, túmulos e uma pequena igreja, que
seria responsável por manter o local santo. Ou seja, apesar da laicização desses
espaços, conquistada pela ambição da modernidade, as raízes cristãs fincaram signos
e rituais que não foram distanciados dos cemitérios.

O SIMBOLO NA ARQUITETURA

O símbolo na arquitetura significa a habilidade das formas arquitetônicas em


representar coisas diferentes do que de fato são, podendo ser analisado em dois
pontos: aquilo que possui significado de algo específico, e aquilo que significa algo
subjetivo para cada pessoa. Todo edifício e elemento arquitetônico, significa algo
para a sociedade, visto que sempre há uma analogia entre os objetos e seus
significados decorrentes dos fatos existentes na mente do ser humano (COLIN, 2000).
Os espaços transformam- se em lugares quando permitem que a pessoa
desenvolva afetividade em relação a esse local e isso só é possível através da
experiência do espaço. Ou seja, quando ocorre a dotação de afeto pelo lugar, quando
vão sendo construídos sentimentos de pertencimento e aparecem “ações de
apropriação simbólica do espaço” (DUARTE, 2010), o indivíduo está moldando um
lugar para si enquanto reconstrói sua própria identidade. Isso se evidencia na relação
de proximidade das pessoas com os cemitérios.
Considerar o espaço dos cemitérios como artefato cultural, significa dizer que
o mesmo pode ser compreendido como linguagem, como portador de significados e,
249

principalmente, como a materialização da visão de mundo dos vivos, onde se impõe a


esses espaços ritualísticas e características de cada grupo.
As dinâmicas comportamentais existentes no grupo social que os cemitérios
detêm, nos permite refletir sobre o quanto a morte na sua forma de quem é
telespectador da mesma, ou seja os vivos, interfere nos precedentes adotados para
estabelecer uma arquitetura fúnebre.
“Os rituais fúnebres refletem a preocupação do ser humano, desde tempos
imemoriais, com os seus e o que teriam ou não numa pós-morte.” (SANTOS, 2011),
justificando assim o cemitério ainda ser a resposta ao medo do pós-morte e da falta
de controle das pessoas com o que se mais teme. A morte se torna uma relação de
temor da população, visto que retrata uma ruptura drástica no cotidiano, e faz a
referência de que os mortos e as práticas mortuárias são o espelho dos vivos, tendo
representações mentais pré-estabelecidas por uma cultura coletiva (MOTTA, 2008).
Os cemitérios são no sentido antropológico, a expressão e representação
cultural do entendimento do mundo dos vivos ao longo de diferentes épocas.
Partindo da premissa que “ A arquitetura é produzida não apenas como construção
identitárias, mas também em um processo dinâmico, os indivíduos se utilizam dela
para reconstruir suas próprias lógicas e reinterpretar os fatos do mundo” (DUARTE,
2010), os cemitérios, possuem diferentes dinâmicas, com atividades, atores sociais,
contexto histórico, situação financeira, e anseios do próprio grupo urbano vivente
naquele raio urbano, que interferem na estratificação física e social desses
ambientes.
As representações simbólicas que são produzidas pelos e nos espaços
fúnebres, identifica as caraterísticas e identidade de uma sociedade referente a uma
determinada época. Os cemitérios surgem das vivencias e necessidades da sociedade,
e buscam permitir a continuidade dos seus costumes e a interação entre os
indivíduos.

O CEMITÉRIO DE SANTA IZABEL

Com a proliferação da varíola na cidade de Belém, houve a necessidade da


construção do segundo cemitério público da cidade, no ano de 1878, o cemitério de
Santa Izabel, situado no atual bairro do Guamá (Figura 1). Esse novo cemitério aliviou
o número de enterramentos no primeiro cemitério da capital (Cemitério de Nossa
Senhora da Soledade), que acabou ficando restrito às famílias mais abastadas.
250

Figura 1: Localização na cidade do Cemitério de Santa Izabel. Fonte: Amanda Botelho


(2018).

O espaço inicial do cemitério de Santa Izabel possuía quadras frontais, na Av.


José Bonifácio, onde estavam situados os túmulos e mausoléus das pessoas mais
importantes e ricas da sociedade belenense, assim como, a circulação principal em
direção a capela. Havia um quadrante exclusivo destinado a irmandade que
administrava o cemitério, a Santa Casa de Misericórdia, com a presença de
mausoléus cheios de simbologias.
Em 14 de agosto de 1880, após o novo presidente da província José Coelho da
Gama Abreu encarregar uma comissão composta por engenheiros e médicos, para
avaliar as condições sanitárias do primeiro cemitério público da cidade, decidiu-se
pelo fechamento do mesmo, proibindo assim qualquer enterramento. Após esse ano,
foi transferido todos os enterros para o cemitério de Santa Izabel, que está em pleno
funcionamento até os dias atuais.
O panorama de implantação do Cemitério de Santa Izabel, ocorreu com o
mesmo sendo afastado do núcleo urbano, diante dos novos ideais de modernidade
oitocentistas ilustrados anteriormente e em função das propostas urbanísticas de
expansão percorrerem sentidos territoriais opostos aos bairros Sul da cidade. Esse
processo, desencadeou uma ocupação do entorno do espaço ao mesmo tempo com
a ocupação do cemitério, promovendo assim a ampliação do mesmo de maneira
gradual ao passar dos anos.

AS “CASINHAS” DO CEMITÉRIO DE SANTA IZABEL

Quando conversamos sobre o futuro, entre parentes e amigos mais velhos,


notamos um apelido bem regional para a nossa última morada. No norte do Brasil,
principalmente em municípios da zona rural, é comum ouvirmos de pessoas mais
velhas o termo “casinha” para retratar a sepultura que será destinada a eles, quando
os mesmos passarem das suas casas em vida, para a sua “casa” no pós-morte.
251

No Cemitério de Santa Izabel, há diversas tipologias arquitetônicas fúnebres,


dentre elas temos estilo capela (Figura 2), estilo com estatuetas (Figura 3), e demais
urnas com simbologias mais contemporâneas(Figura 4), pelo fato do mesmo estar em
funcionamento desde o século XIX até os dias atuais, permitindo assim essa
diversidade atemporal da arquitetura fúnebre deste espaço.

Figura 2: Mausoléu estilo Capela no Figura 3: Sepultura com ornamentos no


Cemitério de Santa Izabel. Fonte: Cemitério de Santa Izabel. Fonte:
Amanda Botelho (2015). Amanda Botelho (2015).

Figura 4: Sepultura contemporânea do Cemitério de Santa Izabel. Fonte: Amanda


Botelho (2015).
252

ALGUMAS CONCLUSÕES

Este ensaio é um desdobramento da pesquisa que está sendo desenvolvida no


curso de Doutoramento, cujo tem como tema as representações espaciais existentes
no Cemitério de Santa Izabel, as quais são resultantes dos processos mentais e sociais
que o sentir e conviver com a morte podem gerar em caráter individual e coletivo.
Além disso, esse ensaio teve como objetivo ser uma base conceitual para o
desenvolvimento desta tese de que há uma analogia direta com o morar em vida e o
morar depois de morrer.
Partindo do termo “casinha”, apelido afetivo para sepultura dado por pessoas
de idade avançada, assim como por pessoas que residem em zonas rurais, demonstra
previamente, que o ser humano precisa se sentir familiarizado com aquilo que mais
teme e desconhece, a morte. Para que isso ocorra, o homem adota analogias com o
que vivencia em vida, para que esse processo se aproxime daquilo que ele conhece.
Um grande exemplo dessa aproximação, é necessidade abrigar o corpo, que persiste
desde a pré-história, com as cavernas e dolmens por exemplo.
A necessidade de um teto e de “paredes” para proteger o corpo em
decomposição faz referência com a necessidade de abrigo na morada, a qual o
homem em vida precisa se proteger das intempéries. Apesar de que racionalmente a
proteção de um corpo sem vida, não é necessária através da logica racional, o
homem precisa daquela certeza para firmar na sua memória o lugar em que o ente
querido se encontra a de eterno. O termo “casinha” não se torna somente um
apelido carinhoso, mas o verdadeiro anseio do moribundo, que é estar no lugar onde
o mesmo se identifica, para diminuir o medo do desconhecido, e de ter um lugar para
ser lembrado por aqueles que ficam.

REFERÊNCIAS

CARVALHO, Hugo Pereira de. A inclusão do cemitério no espaço da cidade. 2012. 80


f. Dissertação (Mestrado) - Curso de Arquitetura, Faculdade de Arquitectura,
Universidade Técnica de Lisboa, Lisboa, 2012.
COLIN, Silvio. Uma introdução à arquitetura – Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Editora
UAPÊ, 2000.
DUARTE, Cristiane Rose S. Olhares possíveis para o pesquisador em Arquitetura. In: I
ENANPARQ- Encontro nacional da associação nacional de pesquisa e pós-graduação
em arquitetura e urbanismo, 1, 2010, Rio de Janeiro. Cultura possíveis para o
pesquisador em Arquitetura. Rio de Janeiro: [S.n.], 2010. p. 1 - 13.
MOTTA, Antônio. À Flor da pedra: Formas tumulares e processos sociais nos
cemitérios brasileiros. Recife: Editora Massangana, 2008. 202 p.
SANTOS, Juvandi de Souza. Vida e morte nos grupos humanos: algumas informações
preliminares. In: OLIVEIRA, Thomas Bruno (org.). Pré-História II: Estudos para a
arqueologia da Paraíba. João Pessoa: Jrc Editora, 2011. Cap. 1. p. 11-26.
253

SOUZA, Ivanaíla de Jesus; RIBEIRO FILHO, Francisco Gomes. Geografia e


espacialização da morte. In: XVIII ENCONTRO NACIONAL DE GEÓGRAFOS, 18, 2016,
São Luís. Anais.... São Luís: [S.n.], 2016. p. 1-9.
254

A CASA DAS SEPULTURAS: APORTES INICIAIS PARA A


DOCUMENTAÇÃO DE UMA ARTE CEMITERIAL JUDAICA NO
BRASIL

FABIANA COMERLATO
Doutora em História
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
[email protected]

JULIANA VITÓRIA BRITO BARBOSA


Graduanda em Museologia
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
[email protected]

RESUMO: O objetivo desta comunicação é apresentar uma proposta de protocolo de


observação e ficha de registro das sepulturas judaicas em cemitérios brasileiros. Por
razões históricas e culturais, os estudos cemiteriais no Brasil dedicaram-se às
arquiteturas, artes e simbologias cristãs, notadamente católicas e protestantes. Nos
últimos anos, têm crescido as pesquisas em túmulos de cunho popular, relacionadas
à devoção de santos milagreiros e ao reconhecimento da diversidade de ritos
funerários com elementos potenciais de estudos. As sepulturas e os cemitérios
judaicos somam-se como importantes fontes de pesquisa para a história e memória
da diáspora judaica no Brasil. A partir do século XIX e durante o século XX, período do
judaísmo moderno, os imigrantes judeus organizaram-se de forma comunitária em
várias cidades brasileiras, estabelecendo escolas, associações, sinagogas e sociedades
mantenedoras de seus próprios cemitérios. Testemunhos materiais de uma
identidade étnica, os túmulos e lápides judaicas possuem uma ordem simbólica que
dá significado ao signos e atributos artísticos, traduzindo em imagens as mensagens e
referências citadas nos textos sagrados do judaísmo. Nesse sentido, almeja-se que os
processos de documentação das formas tumulares e seus atributos artísticos possam
auxiliar na construção de tipologias para a arte cemiterial judaica nos diferentes
contextos brasileiros.

Palavras-chaves: Cemitério. Judeus. Arte cemiterial. Documentação. Tipologia.

APORTES INICIAIS

Conforme o judaísmo, os cemitérios, como construtos de identidade, são


espaços de grande importância para a memória e identidade das comunidades
judaicas ao redor do mundo. No Brasil, como vamos ver ao longo do texto, os
255

cemitérios assumem um papel de testemunho da presença da cultura judaica,


mostrando diferentes matizes regionais. Segundo Bernando Sorj, “As culturas não
sobrevivem na mente das pessoas, elas precisam de espaços delimitados e atividades
organizadas [...]. A força do multiculturalismo depende da capacidade de todos os
grupos de elaborar e oferecer bens culturais” (WALTER apud SORJ, 2004).
A obra clássica de Simon Philip De Vries sobre o judaísmo religioso, escrita em
1932, traz uma reflexão acerca das expressões utilizadas para referir-se ao cemitério
como bet ha-jayím (“casa dos vivos”) e gut ort (“bom lugar”) (DE VRIES, 2007, p. 260).
O renomado rabino continua sua argumentação ao escamotear o aspecto lúgubre e
funesto do cemitério, e, ao final, considera a expressão “casa dos vivos” como uma
das mais belas para se referir ao lugar (DE VRIES, 2007, p. 261). Ainda na Bíblia e nas
tradições judaicas, o cemitério é denominado como “a casa das sepulturas” (Neemias
11:3), “a casa da eternidade” e de “a casa dos vivos” (Jó 30:23) (FRANKEL et. al.,
2004, p. 162).
Ao longo da história, vemos que os cemitérios configuram-se como uma parte
importante na vida das comunidades judaicas. Reforçando essa perspectiva, Avriel
Bar-Levav afirma que a conexão com a morte é central na cultura judaica, sendo o
cemitério, no cerne da estrutura social, um produto criado pela morte no centro da
experiência judaica (BAR-LEVAV, 2014, p. 15). Em muitos locais da diáspora, as pedras
tumulares (matzeivá, em hebraico) são os únicos documentos históricos da presença
dos judeus no território. Portanto, as lápides podem ser vistas como artefatos de
grande documentalidade, uma vez que trazem informações de origem, de gênero, de
religião, de pertencimento comunitário, de status, de classe profissional, de gosto
estético, dentre outras características do sepultado (FALBEL, 2008, p. 34).

A PESQUISA EM CEMITÉRIOS JUDAICOS

Os cemitérios são uma importante fonte de pesquisa para genealogistas,


historiadores e arqueólogos que buscam compreender a história judaica ao longo dos
milênios. Porém, é preciso fazer uma ponderação àqueles habituados ao estudo de
cemitérios cristãos: as atitudes judaicas perante a morte não podem ser estudadas a
partir do sistema “histórico impressionista” de Phillipes Ariès, que vem sendo
reproduzido ao longo dos estudos cemiteriais nas últimas décadas (DARNTON apud
BAR-LEVAV, 2014, p. 3). Nem mesmo existe um único modo rígido e unidimensional
de compreender a diversidade das culturas judaicas ao longo dos séculos, dada a sua
variedade de fontes, regiões, períodos e zonas de contato com outras culturas (BAR-
LEVAV, 2014, p. 4).
Um dos primeiros aspectos a serem observados é a localização das fontes
históricas. No Brasil, a pesquisa em cemitérios judaicos é ainda incipiente se
comparada com a realidade europeia, até mesmo em relação a sua expressão
numérica: somente na Alemanha são conhecidos 2.200 cemitérios judaicos (do
século XI até a atualidade), contabilizando aproximadamente 600.000 sepulturas
(SÖRRIES, 2018, p. 23). Se analisarmos de forma mais abrangente, realizar pesquisa
sobre a história judaica no Brasil é muitas vezes difícil, em razão da falta de
256

preservação e dispersão das fontes históricas e pelo idioma dos documentos


históricos, geralmente em hebraico ou iídiche.
Podemos dizer que, após meados do século XX, a comunidade judaica passou a
preocupar-se de forma mais efetiva com o levantamento e a preservação de
documentos históricos. Em relação aos cemitérios judaicos, destaca-se o legado de
pesquisa do casal Frieda Wolff e Egon Wolff, com cinco livros de “Sepulturas de
Israelitas” escritos entre 1976 e 1989 (IHGB, 2020).
A partir de busca em plataformas digitais, conseguimos arrolar pesquisas
históricas, antropológicas e arqueológicas sobre a presença de tais cemitérios no
território brasileiro. Foram identificadas pesquisas em várias áreas do conhecimento,
que estudam cemitérios e sepulturas judaicas ou israelitas, dos estados do Amazonas,
Pará, Amapá, Rio Grande do Norte, Ceará, Pernambuco, Rio de Janeiro, Paraná, São
Paulo e Rio Grande do Sul (ALMEIDA, 2012; CUNHA et al., 2015; SILVA, 2018;
GIACOMINI, 2017; HARFUCH, 2011; LUDEMIR, 2005; PINHEIRO, 2012; PINHEIRO,
2018; RECHTMAN, 2015; ROITBERG, 2015; SOARES, 2010; SCHNEIDER, 2013;
VAINSENCHER, 2020; CYTRYNOWICZ et. al., 2008).

PROPOSTA DE DOCUMENTAÇÃO PARA SEPULTURAS JUDAICAS

A primeira tarefa compreendeu a construção de um instrumento de pesquisa,


nominado “Ficha de registro de sepultura para arquitetura e arte cemiterial judaica”,
como uma proposta de documentação dos cemitérios judaicos no Brasil. Como é
muito comum no processo de elaboração de uma ficha documental, sua eficácia será
testada na aplicação em diferentes cemitérios judaicos pelo país, o que certamente
validará a escolha dos campos e sua organização, bem como colocará em evidência
possíveis emissões ou ausências de categorias ou informações.
Para a elaboração da ficha, foram consultadas várias fontes, tais como artigos
em revistas e anais de encontros científicos, livros, homepages, dicionários,
dissertações de mestrado e teses de doutorado. Em especial, destacamos algumas
publicações que foram referência para a construção da tipologia das formas
tumulares e dos signos judaicos: Roitberg (2015), Łroziński (2016), De Vries (2007),
Flankel et. al. (2004), Werblowsy et. al. (1997), Beck et. al. (2017), Chevalier et. al.
(2019), Cunha et. al. (2019).
A ficha foi dividida em grupos de campos, aos quais são acrescidas
informações numéricas e textuais, sendo sinalizados campos de única escolha ou
múltipla escolha, são eles: 1) informações gerais, 2) identificação do(s) sepultado(s),
3) localização e orientação, 4) descrição da sepultura, 5) estrutura arquitetônica da
sepultura, 6) composição da sepultura, 7) materiais construtivos empregados, 8)
signos da arte judaica, 9) dimensões dos ornamentos, 10) estilos artísticos, 11)
epitáfio, 12) estado de conservação, 13) dados da pesquisa e 14) fotografia.
Os elementos mais importantes do ponto de vista artístico são os campos da
ficha relativos a: forma arquitetônica da sepultura, composição da sepultura, signos,
estilos artísticos e informações do epitáfio. As formas tumulares foram organizadas
em 14 tipos: 1) estela, 2) estela em pedra bruta, 3) tampa tumular, 4) carneira
257

retangular, 5) carneira retangular com cabeceira, 6) carneira retangular escalonada,


7) carneira retangular escalonada com cabeceira, 8) carneira sarcófago, 9) ohalim, 10)
carneira rolo, 11) ornamento sobre pedestal, 12) obelisco, 13) mausoléu, 14) outra
(especificar).
Os signos da arte judaica foram categorizados da seguinte maneira: principais;
zoomorfos; fitomorfos; arquitetônicos, nobreza ou distinção social; não judaicos. Os
signos principais são: árvore da vida, candelabro, candelabro de 3 braços, candelabro
de 5 braços, candelabro de 7 braços, candelabro de 9 braços, chai, estrela de Davi,
estrela de Davi com monograma, estrela de Davi com tetragrama, jarro vertendo
água, mãos de Fátima (hamsá), mezuzah. Os signos zoomorfos compreendem os
campos: cobra, coelho, lobo, pássaro (especificar), veado, outro (especificar). Os
signos fitomorfos foram organizados nos campos: árvore ceifada, tronco partido, flor,
roseta de seis pétalas, videira, outro (especificar).
Os signos arquitetônicos foram divididos em arcadas, colunas, tijolos e outro
(especificar). Os signos de nobreza ou distinção social arrolados foram os seguintes:
agulha, fio e/ou tesoura, arca, caixa de esmolas, coroa, corno de carneiro (shófar),
instrumento de circuncisão, livro aberto, torá, ponteira da torá. Os signos não
judaicos podem ocorrer junto às lápides, indicando o contato com outras culturas e
grupos sociais, foram classificados em: celebrativo, cristão, islâmico, maçônico e
vernacular.
Quanto aos epitáfios, é interessante analisar: a distribuição da lápide; os
monogramas ou tetragramas utilizados; a apresentação ou não de moldura; a
presença de vários idiomas (principalmente o hebraico); a qual comunidade pertence
(marrano, ashkernazi ou serfadita); as expressões sobre a vida do morto, de
lembrança ou saudade; bem como a data de falecimento.
Os processos documentais específicos para as sepulturas judaicas no Brasil
contribuem para o registro de seus atributos culturais, além de possibilitar a “leitura”
de marcadores de identidade ética, da fluidez dos significados em cada local e do
grau de interação social com outras comunidades. Por fim, consideramos que, para a
documentação da arte judaica cemiterial, fazia-se necessário um instrumento de
registro próprio, das práticas funerárias judaicas e à sua materialidade.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, M. A. C. Identidade em Construção: História e Memória de Judeus no


Amazonas. 2012 – Dissertação (Mestrado em História) – Universidade Federal do
Amazonas, Instituto de ciências Humanas e Letras, Manaus, 2012.
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Life: burial and mouring customs among Jews of Europe and Nearby Communities.
Berlim: De Gruyter, 2014.
BECK, Jens; BONDY, Dan; KRUSE, Alexandra; PAULOWITZ, Bernd; SEEMANN, Agnes;
STUDEMUND-HALÉVY, Michael. Nomination for inscription on the UNESCO Word
Heritage List. The Jewish Cemetery Hamburg-Alton. Hamburg: elbbut GmbH, 2017.
258

Disponível em:
https://www.hamburg.de/contentblob/10360176/4f0ac0eaab3286859767cb53b81a
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CHEVALIER, J.; GHEERBRANT, A. Dicionário de símbolos: (mitos, sonhos, costumes,
gestos, formas, figuras, cores, números). 33 ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2019.
CUNHA, Claudia; MARQUES, Fernando; FONSECA, Diego; BENATHAR, Cássia; FARAGE,
Elton; LIMA, Helena; BENCHIMOL, Alegria. Matzevot kevurah esquecidas – resgate
arqueológico do Cemitério Judaico do Gurupá, Pará, Brasil. Antrop. Port. 2019, vol.
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CYTRYNOWICZ, M.; CYTRYNOWICZ, R. Associação Israelita de São Paulo, 85 anos:
patrimônio da história da comunidade judaica da cidade de São Paulo. São Paulo:
Narrativa-um, 2008.
DE VRIES, S. Ph. Ritos y símbolos judíos. 2 ed. Madrid: Caparrós Editores, 2007.
FALBEL, Nachman. Judeus no Brasil: estudo e notas. São Paulo: Edusp, 2008.
FRANKEL, E.; TEUTSCH, B. P. The Encyclopedia of Jewish Symbols. Maryland:
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HARFUCH, L. Imigração judaico-alemã para Rolândia – PR na primeira metade do
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PINHEIRO, M. J. X. Morte e Judaísmo: transformações ao longo do tempo em
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ROITBERG, J. Pequena história do enterro judaico e os cemitérios judaicos no Brasil.
Anais do VII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais,
UNIRIO, Rio de Janeiro, 2015, p. 190-206.
259

SCHNEIDER, D. de S. Memórias compartilhadas: as vivências de imigrantes judeus


durante a revolução de 1923 no Rio Grande do Sul. 2013. Dissertação (Mestrado em
História) – Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, Pontifícia Universidade
Católica do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2013.
SILVA, Tiago Varges da. Arte funerária do meio do mundo: um passeio pelos
cemitérios amapaenses. Anais do Vi Congresso Internacional de História. Jataí-GO:
Gráfica UFG, 2018.
SOARES, Marco Antonio Neves. Classificação e catalogação de cultura material:
tipologias sepulcrais de israelitas presentes no Cemitério São Rafael, município de
Rolândia – PR. Revista Brasileira de História das Religiões, vol. 8, p. 65-74, 2010.
SORJ, Bernardo. Diáspora, judaísmo e teoria social. GRIN, Monica; VIEIRA, Nelson H.
(org.). Experiência cultural judaica no Brasil: recepção, inclusão e ambivalência. Rio
de Janeiro: Topbooks, 2004, p. 53-80.
SÖRRIES, R. Friedhof und Denkmal in Deutschland – historischer Beitrag
und Erbe der jüdischen Kultur. KLEIN, Rudolf. Metropolitan Jewish Cemeteries of the
19th and 20th Centuries in Central and Eastern Europe. A Comparative Study
(ICOMOS – Hefte des Deutschen Nationalkomitees LXVI). Petersberg, 2018, p. 19-23.
VAINSENCHER, S. A. Cemitério Judeu nas Américas, Recife. Disponível:
http://basilio.fundaj.gov.br/pesquisaescolar/index.php?option=com_content&view=
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Acesso: 26 jun. 2020.
WERBLOWSY, R. J. Zwi; WIGODER, G. (edits.). The Oxford Dictionary of the jewish
religion. New York; Oxford: Oxford University Press, 1997.
260

TESSITURAS DE TEMPOS: UMA ABORDAGEM HISTÓRICA E


ETNOLÓGICA DA CULTURA MATERIAL INDÍGENA NAS
PRÁTICAS FÚNEBRES EM SÃO VICENTE FERRER –
MARANHÃO.

DIMAS DOS REIS RIBEIRO


Universidade Federal do Maranhão
[email protected]

MARIA ELIZIA BORGES


Universidade Federal de Goiás
[email protected]

JULYANA CABRAL ARAÚJO


Universidade Federal de Goiás
[email protected]

RESUMO: O presente estudo apresenta uma proposta de pesquisa histórica e


etnológica que objetiva identificar e caracterizar os modos de fazer os trançados de
fibras vegetais utilizados em ritos fúnebres em São Vicente Ferrer – Maranhão.
Dentro dessa perspectiva, os “cofos de cemitérios” como são chamados esses objetos
moldam-se às práticas de celebrações do Dia de Finados, sendo incoerente entender
sua finalidade fora do contexto das representações da morte nesta dada
temporalidade, visto que, os objetos na ocasião estabelecem uma ligação entre os
vivos e os mortos demonstrando a importância deste último na comunidade
pesquisada. Portanto, objetivamos, investigar as relações históricas, sociais e
antropológicas inerentes à dinâmica de um contexto ritualístico no Cemitério
Municipal de São Vicente Ferrer. Dada a natureza do objeto, este é um trabalho de
pesquisa que só poderá ser feito usando métodos que enxerguem esses objetos
como “fontes vivas” capazes de falar por si mesma, ou seja, por meio da etnografia
com suporte da História Oral buscaremos o cruzamento de múltiplas fontes na
tentativa de desvendar o objeto pesquisado, e é nesse aspecto, das relações
humanas que se debruçará esse estudo, por meio de pesquisa de campo, análise de
registros fotográficos e da memória das pessoas. Por todos esses aspectos, os modos
de fazer e utilizar esses objetos são compreendidos como fenômenos sociais
intrínsecos ás relações individuais e coletivas e elaboradas por contribuições comuns
de crenças envolvendo as representações de vida e morte que são exteriores as
consciências individuais, pois são concebidas na interação com o meio social, ou seja,
em relações recíprocas de produção e elaboração de sentidos envolvendo práticas
que cruzam saberem interculturais.
261

Palavras-Chave: Século XXI; Cofos de Cemitérios; Morte. Cultura Material; Arte


Funerária.

INTRODUÇÃO

Este estudo de natureza etnohistórica pretende compreender a importância


da significação social dos modos de fazer os trançados de fibras vegetais utilizados
em ritos fúnebres em São Vicente de Férrer - MA94, com base referencial nos estudos
do projeto de Iniciação Científica (PIBIC) realizado entre os anos de 2014 a 2018 pela
Universidade Federal do Maranhão95.
Durante o levantamento de fontes realizado pelo projeto supracitado nas
cidades da Baixada Maranhense evidenciamos um ritual envolvendo artefatos de
palha (pequenos cofos) nas sepulturas do cemitério municipal de São Vicente de
Férrer – MA, no Dia de Finados, em 2 de novembro, logo, percebemos que se tratava
de um rito fúnebre pouco habitual comparado com outros rituais do Dia de Finados
em outros cemitérios da região pesquisada.96
Umas das metodologias utilizadas é o da etnopesquisa crítica97 associado aos
métodos da História Oral, a escolha da abordagem metodológica objetiva incentivar a
reflexão multidisciplinar permanente. De certo modo, o que funde a História e outras
áreas das Ciências Humanas é a utilização de conceitos e métodos afins, pois, ao
relacionarmos História e Antropologia, por exemplo, usaremos como modelo a
vertente antropológica apresentada por autores como Clifford Geertz (1978) com sua
técnica de “descrição densa”98 baseada no método etnográfico.
Logo, estabelecemos um diálogo com os métodos da História Oral por
oportunizar o contato com as narrativas de pessoas envolvidas no uso e nos modos
de fazer os artefatos trançados usados no cemitério. Segundo Albertini esse método
é pertinente por “estudar as narrativas dos entrevistados” (ALBERTINI, 2013). Nesse
sentido, a História Oral surge como aliada importante por oportunizar o encontro
com a memória das pessoas, testemunhas vivas dos acontecimentos (HALBWACHS,
2003, p. 62).
Nesse intento este trabalho está coerente com a dimensão cultural da História,
articulando elementos sob os quais uma sociedade ou indivíduo vivem e refletem

94
São Vicente de Ferrer localiza-se na porção centro-sul da Baixada Maranhense, sua população é de 20.870
habitantes, com uma área estimada em 390,4 km2.
95
O Programa de Iniciação Científica citado abrange um dos seguintes planos de trabalho: Arte Cemiterial:
História, Iconografias e Devoções na Baixada Maranhense, orientado pelo Prof. Dr. Dimas dos Reis Ribeiro.
96
A recorrência do uso desse tipo de artefato pode ser localizada em mais dois cemitérios da região, em
povoados que ficam entre os municípios de Pinheiro e Santa Helena.
97
A etnopesquisa crítica considera como objetos de estudo: o homem e a produção de artefatos como vias de
interpretação dialógica entre a voz do ator social e o campo empírico analisado (MACEDO, 2010).
98
Nessa perspectiva, entende-se por “descrição densa”, o método de observação de cunho
etnográfico/etnológico que consiste na relação do pesquisador com o campo pesquisado, rompendo com a
noção de distanciamento do objeto e pesquisador uma vez que, a imersão do cientista no local de pesquisa é
consideravelmente importante (GEERTZ, 1978).
262

sobre sua relação com o mundo e com os outros em diversas temporalidades.


Buscando assim os significados dados pelos atores sociais em ação desde uma
relação complexa entre evento e estrutura onde a História é ordenada culturalmente
e de diversos modos, uma vez que os significados são reavaliados quando postos em
prática. Neste sentido, é válido destacar as relações inerentes a dinâmica da cultura
material em um contexto ritualístico no cemitério municipal de São Vicente de Férrer
– MA.

DIA DE FINADOS E A TRAJETÓRIA DOS COFOS DE CEMITÉRIOS

O cemitério municipal de São Vicente Férrer - MA, localizado na zona urbana


provavelmente quando construído ficava longe das habitações e pelo processo de
crescimento populacional foi tornando-se parte da cidade. Tivemos dificuldades em
encontrar documentações em prefeituras e cartórios sob o referido cemitério, já a
lápide mais antiga que nos permite saber uma data aproximada do início das
inumações encontrada em bom estado de preservação é datada do ano de 1909.
No dia de Finados, uma das datas em que esse cemitério é mais visitado o
espaço passa do ar melancólico para uma verdadeira festa de luzes e visitas aos
túmulos, nesse momento, o que nos chama atenção é a forma como pessoas utilizam
objetos trançados a partir da folha da palmeira do babaçu, chamados de cofos urupi
sem trança (a denominação urupi de origem tupi que dizer a palavra cesto) ou
mesmo “cofo de cemitério”, conforme pode ser ilustrado nas figuras abaixo:

Figura 1: Artefato trançado. Fonte: Foto de Julyana Cabral Araújo, 2017.


263

Figura 2: Dia de Finados no Cemitério Municipal de São Vicente Férrer. Fonte: Foto de
Dimas dos Reis Ribeiro (2017).

Os “cofos de cemitério” encontrados sob a maior parte das sepulturas do


presente cemitério trazem marcas de uma arte utilitária e de caráter simbólico ao
mesmo tempo. Nesse contexto, as pessoas interagem com o objeto, manuseiam e se
encantam com as luzes como demonstrado na figura 4, onde crianças e seus parentes
juntos partilham do momento de acender velas e oferecê-las aos seus entes
falecidos, o fato do rito envolver crianças revela um aspecto interessante da tradição
passada de geração em geração além do aspeto curioso com que as mesmas brincam
e celebram ao mesmo tempo.

Figura 3: Crianças e parentes na celebração. Fonte: Foto de Igor Rangel (2017).

Em outros casos, algumas pessoas sentavam sob os túmulos em torno dos


objetos aguardando a queima das velas ou um possível processo de combustão entre
a vela e a palha, por isso, levavam garrafas com água pra evitar acidentes. Em
seguida, após a queima total das velas emprestavam os cofos para um conhecido ou
por solidariedade a alguém que não havia levado o objeto na ocasião.
264

Para além da observação participante no local buscou-se os significados dos


cofos de cemitério para alguns artesãos, na maioria homens, com idade superior a 50
anos, moradores da zona rural do município de São Vicente de Ferrer ou de bairros
afastados da zona urbana. Podemos destacar que cinco deles tem uma relação de
parentesco bem próxima, são irmãos, e aprenderam o ofício de trançar a palha com o
pai.
Vale destacar que os objetos trançados produzidos por estes homens trazem
as marcas da vida na roça onde esses objetos tinham outra finalidade como a de
transportar a produção da lavoura, ou seja, é nas mãos dos artesãos que a palha é
tecida e assim como o movimento de entrelaçamento da fibra vegetal, as trajetórias
de vida dessas pessoas são narradas, pois, os objetos produzidos denunciam seus
modos de vida.
Há de convir que esses homens são exímios narradores da trajetória dos
objetos e da relação que estes têm com a tradição de fazer os objetos trançados. Por
isso, se pode perceber que a relação entre homem e objeto passa pelo corpo, o
narrador ao contar as histórias, faz uso do corpo, essencialmente de suas mãos“ com
seus gestos, aprendidos na experiência do trabalho, que sustentam de cem maneiras
o fluxo do que é dito” ( BENJAMIN, 2012, p.239).
Dessa feita, os artesãos dos cofos de cemitério e de outros tipos de cofos
utilizados no dia a dia ao falar desses objetos sempre recorriam ao objeto material,
manuseando e explicando as técnicas, as funções e quem tinha lhes ensinado,
quando questionado sobre o início de sua prática um deles prontamente responde:

Eu acho que desde quando eu comecei logo trabalhar, acho que foi
dessa época que comecei fazer os cofos, Téo Pacheco falou comigo
pra botar água pro gado dele e lá tinha um mato e o mato era doido,
foi lá que eu estalei a pindova, foi lá, fazendo cofo, tinha dia eu fazia
bonito, doto jeito, até que um dia eu fazia dereitinho (SANTANA, 16
de maio de 2018).

Como podemos perceber na fala citada anteriormente esses objetos variam de


acordo com a prática correspondente, pois, os cofos de cemitério como é relatado
por um artesão: “só servem pra botar numa coisa que não entra vento, evitar o
vento, colocam a vela e o vento passa por cima e o vento não apaga a vela, tipo uma
lamparina, a palha é a mesma palha, mas pra esse serviço melhor a palha verde”
(MONTEIRO, 16 de maio de 2018).
Por serem uma das artes conhecidas mais antigas da humanidade, os
trançados de palhas e fibras vegetais convergem para uma multiplicidade de formas e
utilizações, atribuindo identidade aos povos envolvidos nos seus usos. Ribeiro
acrescenta que as “características de singularização e unicidade são acentuadas por
meio de objetos, principalmente os de uso ritual”, eles compreendem também uma
variedade de matérias-primas, técnicas e tecnologias (RIBEIRO, 1989, p. 114).
Por isso, pode-se afirmar que a função dos cofos de cemitério está ligada a um
momento de efervescência ritual destinado ao espaço cemiterial. Nesse dia
265

específico de “acendimento de velas”, como é denominado por um dos


entrevistados, é comum às pessoas chegarem e pedirem pra fazer o “cofo de
cemitério”. Conforme o interlocutor José Santana Silva o valor é cobrado conforme a
condição da pessoa, variando entre 2 e 3 reais, alguns artesãos até fazem sem
remuneração por si tratar de um objeto que segundo eles “envolve o sentimento das
pessoas”. No entanto, é necessário que a peça seja encomendada com antecedência,
pois, os artesãos precisam retirar a pindova99 com antecedência e abri-la para facilitar
a tessitura.
No cemitério é percebida uma solidariedade através da troca dos objetos
como: velas, banquinhos e cofos. Ao final do Dia de Finados, os cofos são deixados no
local por já terem cumprido seu papel ritual e com o passar dos dias eles se
reintegram novamente a natureza pela sua duração material efêmera.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Acompanhando a trajetória percorrida neste estudo, propõe-se refletir sobre


os vestígios do passado resgatados no presente, ou seja, as heranças culturais dos
modos de fazer os objetos trançados, uma cultura que converge nas multiplicidades
de saberes tradicionais em razão do processo de ocupação da região, sobretudo, por
colonos, indígenas e povos africanos escravizados. Neste contexto, a Baixada
Maranhense carrega fortes traços da dinâmica cultural ocorrida através do tempo e
materializada nos ritos de morte atualmente.
De modo que nos levam a considerações que aproximam a utilidade dos
objetos materiais em função ritual com a respectiva identidade e trajetória de vida
das pessoas envolvidas. Dessa maneira, considera-se a produção desses objetos
materiais com a proximidade e influência cultural indígena, dado o fato de o local
fazer fronteira com os municípios com expressiva presença de remanescentes da
etnia Gamela, o que nos leva perceber a ressignificação do objeto artesanal de
origem indígena ressignificado em outros espaços e contextos.
Portanto, esse estudo reafirma que para além das fronteiras geográficas a
cultura indígena perpassa através da cultura material, dos modos de vida,
celebrações e sobretudo nas concepções de vida e morte desse povo. No Dia de
Finados, momento reservado para interação entre o mundo dos vivos e o mundo dos
mortos os ritos são elaborados por contribuições comuns de crenças vivas através da
tradição e concebidas em relações recíprocas onde os objetos tem a função
primordial de materializar e reafirmar o ato de lembrar dos mortos.

REFERÊNCIAS

ALBERTINI, Verena. Manual de História Oral. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.

99
Nome popular dado a folha da palmeira do babaçu e que segundo a denominação do pequeno vocabulário
Tupi-português significa palmeira (BARBOSA, 1951).
266

BARBOSA, Lemos, Pe. A. Pequeno Vocábulo Tupi-Português. Livraria São José: Rio de
Janeiro, 1951.
BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.
GEERTZ, Clifford. Uma descrição densa: por uma teoria interpretativa da cultura. In: A
interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
MACEDO, Roberto Sidnei. Etnopesquisa crítica, etnopesquisa-formação. 2ª. Brasília:
Liber Livro Editora, 2010.
MONTEIRO, de Jesus Francisco. Depoimento [16 de maio de 2018]. São Vicente
Férrer-MA. Entrevista concedida à Julyana Cabral Araújo.
RIBEIRO, Berta G. Arte indígena, linguagem visual. Belo Horizonte: Itatiaia: São
Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1989.
SANTANA, S. José. Depoimento [16 de maio de 2018]. São Vicente Férrer-MA.
Entrevista concedida à Julyana Cabral Araújo.
267

ESTUDO SOBRE A DEVOÇÃO AO TÚMULO DO PADRE


EUSTÁQUIO EM BELO HORIZONTE – MG

LEANDRO EVANGELISTA SILVA CASTRO


Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
[email protected]

MARCUS VINICIUS MACIEL


Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
[email protected]

RESUMO: Padre Eustáquio van Lieshout, nasceu na Holanda em 1890. Como


missionário, veio para o Brasil no ano de 1925. O sacerdote desenvolveu seu
ministério em Minas Gerais e São Paulo. Durante sua vida foi considerado um padre
santo por aqueles que com ele conviveram. Sua fama de milagreiro motivou
multidões a buscarem suas bençãos. Após sua morte, em 1943, seu túmulo no
Cemitério do Bonfim, em Belo Horizonte – MG, tornou-se alvo de peregrinações
daqueles que acreditavam em sua intercessão. São inúmeros os relatos de pessoas
que acreditam ter alcançado graças por intermédio do Padre Eustáquio. No ano de
2005, foi beatificado pela Igreja Católica, reconhecendo-o como modelo de cristão. O
objetivo dessa comunicação é apresentar os elementos que compõem o imaginário
devocional envolvendo o túmulo do Padre Eustáquio em Belo Horizonte - MG. Para
isso, utilizou-se das referências biográficas do sacerdote e documentos do processo
de Canonização. Além disso, a pesquisa se dedicou a análise de cinco relatos de
milagre, contidos no livro “O Vigário de Poá”, de Venâncio Hulssemans. O critério para
escolha dessas três narrativas foi orientada pela recorrência da expressão “sepultura”
nos inúmeros relatos apresentados no livro. Pode-se verificar que o túmulo do Padre
Eustáquio, se torna para os fiéis um lugar de contato com o poder miraculoso do
sacerdote. Desde 1943, seu túmulo é visitado no Cemitério do Bonfim, em Belo
Horizonte, mesmo depois da transladação de seus restos mortais. Nos relatos, é
possível verificar que os milagres aconteciam mediante o contato com sua
“sepultura” do missionário. Na doença ou em alguma aflição da vida, os fiéis se
dirigiam ao túmulo do Padre milagreiro confiantes que suas orações seriam
atendidas. O túmulo se torna a ligação entre os fiéis e o sacerdote. A fama de
santidade do Padre Eustáquio, faz com que tudo aquilo que está próximo a ele se
torne sagrado, ao passo que, o túmulo, a terra, as flores também se tornam dotadas
de poderes sobrenaturais.
268

Palavras-chave: Padre Eustáquio; Devoção de cemitério; Milagre; Imaginário religioso


popular.

DADOS BIOGRÁFICOS DO PADRE EUSTÁQUIO VAN LIESHOUT, SSCC

O dia 31 de janeiro de 1949, exatamente cinco anos e cinco meses após o 31


de agosto de 1943 marcava o final da presença dos restos mortais do Bem-
aventurado Padre Eustáquio no cemitério municipal de Belo Horizonte. A nova capital
mineira nasceu sob o ideal republicano marcado pela separação igreja-estado e a
afirmação do estado laico. Nesse sentido, reservou-se no projeto da nova capital, um
espaço independente da tradição religiosa católica – de sepultar os fiéis no interior ou
junto às igrejas – para sepultar todos os seus habitantes. Constituiu-se, pois, um
cemitério público municipal sem interferência do poder eclesiástico. E foi ali no
cemitério do Bonfim que foi sepultado o Padre Eustáquio van Lieshout, SS.CC, aos 52
anos de idade, apenas pouco mais de um ano de sua chegada a Belo Horizonte-MG.
Padre Eustáquio nasceu em 1890 na região da Brabância do Norte, ao sul da
Holanda. Eustáquio, era o “[…] décimo primeiro dos quinze filhos do casal Elisabeth
can de Meulenhof e Wilhelmus van Lieshout […]. (PEREIRA, 2012, p. 20). Eustáquio
era filho de numerosa família de tradição católica. Experimentou a vida de minoria
religiosa devido à religião da coroa holandesa, protestante calvinista, com as
limitações e perseguições, próprias da intolerância religiosa do século XIX. Por outro
lado, esse desafio provocou uma verdadeira onda de formação de missionários para
as terras estrangeiras especialmente para a Ásia, a África e as Américas. Ingressou na
Congregação dos Sagrados Corações de Jesus e Maria, no ano de 1915 e se tornou
sacerdote em 1919.
Padre Eustáquio chegou ao Brasil no ano de 1925, com 35 anos de idade.
Acompanhado de Pe. Gil van den Boogaart, SS.CC. e Pe. Mathias van Rooy, deram
início aos trabalhos da Congregação no Brasil. A convite do bispo de Uberaba D.
Antônio de Almeida Lustosa, a Congregação dos Sagrados Corações enviou três
missionários para o Triângulo Mineiro. O projeto incluía a fundação de dois colégios e
uma escola paroquial. A primeira obra era a cura paroquial do Santuário de Nossa
Senhora da Abadia da Água Suja, região de garimpeiros pertencente ao município de
Monte Carmelo, MG, hoje cidade de Romaria.
Em Água Suja-MG, durante 10 anos, o sacerdote foi considerado pelos
paroquianos como um pai, amigo, enfermeiro e conselheiro. Visitava aos enfermos e
além de receitar remédios naturais que havia aprendido ouvindo e estudando as
ervas da região. Nesse período, em Água Suja, já havia relatos de fatos considerados
“milagrosos”, especialmente quanto a curas de doenças.
Em 1935, foi transferido para Poá, SP, onde começou sua fama de “milagres”.
Seus feitos, ganharam a imprensa da época. Segundo Hulselmans (1943, p. 81), “A
fama das curas que se operavam, no salãozinho mesmo, ou então, mais tarde, em
casa, em virtude do uso as água-benta ou da ação retardatária de uma bênção-de-
tempo, atravessou as fronteiras do estado de S. Paulo espalhou-se pelo Brasil inteiro.”
Sendo assim, sua presença passou a provocar distúrbios por onde passava. Viveu
269

escondido, porém, sempre era descoberto, e perseguido por multidões. Após um


breve período “exilado” em Patrocínio, MG, foi transferido para Belo Horizonte onde
sua fama chegou ao auge. Porém, tendo em vista inibir os transtornos causados pela
presença do Padre Eustáquio, as autoridades proibiram excessiva exposição e
“milagres”. De acordo com Hulsemans (1943, p. 180) o Padre Eustáquio, “Tinha
recebido ordens severas de não atender pessoas que o procurasse em casa; de não
visitar doentes em suas residências a não ser os da própria paróquia; de mão dar
benção a quer que fosse senão através do confessionário.” Apesar das restrições, de
abril de 1942 a agosto de 1943, sua presença na capital mineira se multiplicou em
ações variadas: bençãos, pregações, retiros e inúmeras viagens.
Aos 52 anos, em apenas uma semana caiu enfermo e morreu. A manhã do dia
30 de agosto trouxe a inesperada notícia de sua morte por febre maculosa contraída
pela picada de um carrapato. O velório na casa que ele mesmo adaptara como matriz
provisória, atraiu multidões. As flores do caixão foram trocadas pelos populares e
houve relatos de muitas graças alcançadas durante o velório e o enterro. Como
afirma, Shoenenkorb (2013, p. 225), “Todos queriam passar ao lado do caixão para
tocar com algum objeto as mãos do célebre morto. Seu poder de taumaturgo estaria
agora potencializado pela sua situação de liminaridade.” Padre Eustáquio foi
sepultado no dia 31 de agosto, acompanhado pela comoção e veneração de toda
cidade.

A DEVOÇÃO AO TÚMULO DO PADRE EUSTÁQUIO

O sepultamento do Padre Eustáquio, já considerado santo, se deu no cemitério


público e desde então tornou-se um lugar de grande peregrinação. Durante os cinco
anos em que permaneceu sepultado no jazigo do Cemitério do Bonfim, o local foi
visitado diariamente em busca de curas e favores mais diversos. Fotos, promessas e
bilhetes que manifestam a intimidade e confiança dos devotos eram encontrados em
meio a flores e velas acesas. Muitos relatos de agradecimento e graças alcançadas por
sua intercessão.

Às segundas-feiras dezenas de fiéis se dirigiam ao túmulo do Padre Eustáquio,


esse dia se tornou devocional, um compromisso dos fiéis com a “alma de Padre
Eustáquio”. Esse movimento, se torno um marco da devoção popular ao Padre
Eustáquio no cemitério do Bonfim. Como ato de resistência, os devotos expressavam
às autoridades eclesiásticas que o Padre Eustáquio já recebia o reconhecimento
popular de sua santidade.
No livro de tombo da Paróquia dos Sagrados Corações encontra-se que no
primeiro aniversário de sua morte houve recomendação expressa do bispo diocesano
aos padres para que não se promovesse qualquer manifestação na igreja ou no
túmulo. No entanto, multidões recorreram ao túmulo e a Igreja que estava sendo
construída. O crescimento constante da devoção levou ao início do processo de
Canonização. O primeiro passo, requerido pelas instâncias eclesiásticas, era
inquestionável: devoção e reconhecimento popular.
270

O segundo passo do processo de canonização, se caracteriza pela abertura do


túmulo e reconhecimento dos restos mortais. No caso do Padre Eustáquio, a abertura
do túmulo foi marcada para dia 31 de agosto de 1949. A cerimônia, foi tratada com
reserva para a imprensa e para os devotos. Desse modo, “Tudo deveria ocorrer de
forma sigilosa, mas isso era praticamente impossível.” (SHOENENKORB, 2013, p. 226)
Dois irmãos do sacerdote foram chamados da Holanda para presenciar a abertura.
Estes foram recebidos nas paróquias por onde passara o irmão como celebridades. O
reconhecimento do povo se manifestou em atos culturais, atos cívicos nas prefeituras,
contando com o apoio do então Governador do estado de Minas Gerais. Na presença
dos Irmãos consanguíneos, dos irmãos de Congregação e representantes dos fiéis,
médicos e autoridades civis foi realizada a exumação no Cemitério Municipal do
Bonfim. Seus restos mortais foram depositados em um espaço reservado, na entrada
da nova Igreja Matriz dos Sagrados Corações, que ele mesmo havia projetado e
lançado a pedra fundamental.
A cidade e o povo de Belo Horizonte, afirmou sua devoção ao Padre Eustáquio
em diversos seguimentos: nomes de pessoas, nomes de estabelecimentos, bairros,
nome de ruas, dentre outros. Desde 1949, o jazigo do Cemitério do Bonfim,
pertencente à Congregação dos Sagrados Corações, embora tenha recebido o
sepultamento de outros membros, nunca deixou de ser para a multidão de devotos, o
túmulo milagroso do Padre Eustáquio.
Após o Concílio Vaticano II a Congregação decidiu pela suspensão dos
processos de Canonização de seus membros. Em consequência, reduziram os atos em
devoção na Igreja Matriz dos Sagrados Corações, a Igreja do Padre Eustáquio. No
entanto, fielmente toda segunda feira os fiéis se reuniam no Túmulo do Bonfim e o
clamor desta resistência levou o Arcebispo D. João de Resende Costa, a pleitear a
reabertura junto à Congregação em Roma. O Superior da época, o futuro arcebispo de
Vitória, D. Luiz Mancilha Vilela, SS.CC. comunicou à comunidade a vitória do pleito.
Em 2003, o passo mais importante foi dado com o reconhecimento das Virtude
Heroicas, pelo Papa João Paulo II. O próximo passo se deu no reconhecimento do
milagre da cura de um sacerdote em Belo Horizonte, Pe. Gonçalo Belém, que se
livrara de um câncer no início da década de 1960.
No dia 15 de agosto de 2006, Padre Eustáquio foi oficialmente reconhecido
como Beato pela Igreja Católica. A cerimonia ocorreu no Estádio do Mineirão: “Com a
arquibancada lotada por fiéis comovidos, olas, faixas de saudação, show pirotécnico,
espetáculos de dança e painéis de oito metros de altura com a foto do bem-
aventurado sobre as traves do campo, a Igreja Católica tornou legítimo o culto ao
Padre Eustáquio.” (SHOENENKORB, 2013, p. 226). Os restos mortais foram trasladados
para um Memorial, construído anexo a Matriz dos Sagrados Corações. Os fieis não
permitiram que o segundo túmulo fosse destruído. “E desse modo, os deslocamentos
de Padre Eustáquio, mesmo depois de morto, serviam para multiplicar os locais de
devoção, mas nunca para anular os anteriores.” (SHOENENKORB, 2013, p. 233). No
cemitério do Bonfim, permanecem os atos devoção e o reconhecimento como um
dos túmulos mais visitados até a atualidade.
271

ELEMENTOS CONSTITUTIVOS DA DEVOÇÃO AO PADRE EUSTÁQUIO – ANÁLISE DOS


RELATOS

Como foi dito acima, a sepultura do Padre Eustáquio se tornou para os fiéis
local de oração, promessas e agradecimentos. Nesse sentido, busca-se identificar
alguns elementos que constituíam a devoção ao túmulo do padre. Para isso, recorre-
se a cinco relatos de graças alcançadas disponíveis no livro “O Vigário de Poá”. Nos
relatos tornou-se possível identificar elementos que configuram a devoção popular ao
Padre Eustáquio, a partir do contato com seu túmulo. Em termos metodológicos, os
relatos foram codificados em um quadro afim de facilitar a análise desses dados.
Segue abaixo o quadro:

Motivação Atitude Consequência Agradecimento


Caso “Tumor no “Foi a “Com grande
1 ovário” sepultura de surpresa, disse-
Pe.Eustáquio, lhe o médico ser
deixando uma desnecessária
vela acesa em agora a
sufrágio de operação.”
sua alma”
Caso “Estava a “Fazer uma “No dia seguinte, “Em 16 de
2 morte” novena de o homem janeiro, se
comunhões, levantou-se.” apresentou na
aos domingos, capela para dar
na sua capela início ao
e outra de cumprimento
terços, da sua
durante nove promessa.”
segundas-
feiras na sua
sepultura,
caso o doente
sarasse”
Caso Precisava “Fiz uma “vendi-o logo” “Por esta graça
3 vender um promessa na obtida ofereço
“barracão” sepultura do cem cruzeiros
Padre para a
Eustáquio.” construção de
igreja do Padre
Eustáquio.”
Caso “Uma criança “Levaram-na à “A criança ficou
4 Louca” Sepultura do sã, seu pai que
Padre era católico se
272

Eustáquio e converteu.”
deram-lhe um
pouco da
terra”
Caso “Um menino “Chorando, “De repente, o
5 engoliu um levou-o até a menino começa
prego” sepultura do a tossir e expele
Padre o prego.”
Eustáquio.”

A partir da análise dos dados obtidos pelos relatos, pode-se identificar alguns
dos principais elementos que configuram a devoção ao Padre Eustáquio, em seu
túmulo no cemitério do Bonfim de 1943 a 1949. Como afirma, Hulselmans (1944, p.
242), a sepultura de Eustáquio motiva um espetáculo “[….] impressionante, nunca
visto em Belo Horizonte, desde o dia que inaugurado o cemitério do Bonfim.” Diante
da análise dos relatos, destaca-se os seguintes elementos: a promessa; os milagres; a
sacralidade do espaço.
O que se pode concluir do quadro apresentado, é que a principal motivação de
pedido de auxílio ao Padre Eustáquio, são questões relacionadas a saúde. Dos cinco
relatos, três deles se referem a pedidos de cura de doenças. Os outros dois,
apresentam alguma adversidade do cotidiano. Sobre a relação com o túmulo do
Padre Eustáquio, quatro relatos indicam o contato com a sepultura e um assume o
compromisso de visitá-la. Nesse sentido, fica evidente que o contato com a sepultura
era um fator decisivo para se alcançar o milagre. O túmulo do Padre Eustáquio, era
visto como lugar de encontro com o próprio sacerdote. Nesse sentido, ir ao túmulo,
no imaginário dos devotos significava uma possibilidade mais assertiva da graça ser
atendida.
Outro fator que deve ser ressaltado é a sacralidade do espaço do túmulo.
Todos os elementos que circundam o “corpo santo” se santificam. O sagrado, nesse
sentido, se torna contagioso. De acordo com Hulsemans (1944, p. 242), “Era curioso
que milhares de pessoas levavam flores e, no entanto, o túmulo permanecia sem
flores. E que outras milhares de mãos corriam a retirá-las, para guardá-las,
considerando-as relíquias, apenas porque tocaram a terra da sepultura dos
sacerdote.” Nos relatos é possível confirmar esse imaginário: “Deram-lhe um pouco
de terra”. No caso específico, ao tomar um pouco de terra do túmulo, a criança ficara
curada. Esse aspecto, reafirma a aclamação de santidade do Padre Eustáquio, que por
contágio, afetava o ambiente que circundava seus restos mortais.
Sobre os milagres, observa-se: em dois casos o milagre acontece mediante o
contato e oração diante da sepultura, em um caso o milagre acontece diante da
promessa de ir a sepultura. E por último, em um caso: fazer uma promessa diante da
sepultura. Diante dessas atitudes, em todos os relatos observa-se o alcance do
pedido: em 2 casos, o milagre é imediato e 3 casos após alguns dias. Sobre o
agradecimento, observou-se duas formas: pagar a promessa de ir a sepultura ou
273

doação para igreja do padre Eustáquio. Diante desse dados, observa-se que a
sepultura tem lugar de destaque na devoção ao Padre Eustáquio. Desde o Cemitério
do Bonfim, até os dias atuais, os lugares que acolheram os restos mortais do Beato,
são considerados pelos devotos, lugares privilegiados da manifestação sobrenatural.

CONCLUSÃO

Diante do que foi exposto, conclui-se que elementos devocionais ao Padre


Eustáquio podem ser verificados ainda em vida. Os dados biográficos, os jornais e
documentos, indicam que já havia no imaginário popular daqueles que com o Padre
Eustáquio se encontraram, o reconhecimento de sua santidade. As romarias que iam
ao seu encontro em vida continuam a ir ao encontro de seu túmulo, que se
apresentava aos devotos como lugar de encontro, oração e proximidade com o
sacerdote.
A devoção ao Padre Eustáquio tem início, fomento e manutenção de instâncias
populares. Como a maioria dos santos, a aclamação popular é anterior ao
reconhecimento da Igreja. No caso do Padre Eustáquio, a movimentação popular que
impulsionou a Igreja a abrir o processo de Canonização do Padre, em 1956.
Sobre o túmulo, observou-se o aspecto contagiante do sagrado. Tudo que
envolve o túmulo se torna sagrado. As flores, a terra o contato com a lápide se torna
extensão das bençãos e milagres do padre santo. Se anteriormente, os devotos
buscavam o padre para conseguir santinhos, pedaços de suas roupas, benção de
objetos, encontram nos elementos do túmulo as novas relíquias e possibilidades de
contato direto com os dons miraculosos do padre. O aspecto da promessa e do
milagre estão intimamente associados. Ir ao túmulo se tonar forma de
agradecimento, de lugar de pedido e oração.

REFERÊNCIAS

ANDRADE, José Vicente de. Padre Eustáquio. Belo Horizonte: Congregação dos
Sagrados Corações, 1990.
PEREIRA, Lucélia Borges. Bem-aventurado Eustáquio: a estrela holandesa que brilhou
na terra de Santa Cruz. São Paulo: PoloPrinter, 2012.
HULSELMANS, Venâncio. Padre Eustáquio van Lieshout SS.CC. O Vigário de Poá. Rio
de Janeiro: Centro Nacional da Entronização, 1944.
LUCAS, Angel. Espiritualidade do Padre Eustáquio van Lieshout, SS.CC. Belo
Horizonte: Congregação dos Sagrados Corações, 2003.
SCHOENENKORB, Leila. Culto da vida, culto da morte – O Bem-aventurado Padre
Eustáquio. PASSOS, Mauro. NASCIMENTO, Mara Regina do Nascimento. A invenção
das devoções crença e formas de expressão religiosa. Belo Horizonte, Editora Lutador,
2013.
274

“O SILÊNCIO DOS TÚMULOS É ENCHARCADO DE LÁGRIMAS E


SAUDADES”: ARTE FUNERÁRIA NO CEMITÉRIO SÃO JOSÉ EM
TERESINA-PI

MARIANA ANTÃO DE CARVALHO ROSA


Mestra em História Social
Universidade Federal do Maranhão
[email protected]

REUMO: A construção de um abrigo eterno para guardar os restos mortais dos seus,
bem como a escrita da lápide, a escolha da escultura e dos adornos, comumente
permeados por símbolos cristãos que remetem a ressurreição, fazem parte do
processo de ressignificação da morte. No presente estudo, o Cemitério São José,
primeiro cemitério público de Teresina é compreendido como uma clara
possibilidade de conhecer as sensibilidades dos homens teresinenses que viveram
durante a segunda metade do século XIX e início do XX. Estas sensibilidades foram
desenhadas de múltiplas formas, nas diversas sepulturas que resistem ao tempo no
interior daquele “cemitério velho”. Assim, propomos analisar a arte funerária ali
presente utilizando como instrumento basilar o inventário tipológico realizado por
Maria Elizia Borges em seu livro Arte Funerária no Brasil (1890-1930): ofícios de
Marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Realizamos, no entanto, algumas alterações
que possibilitaram a adequação à realidade local. Assim, agrupamos as sepulturas
que datavam do período entre 1859 a 1950 em: jazigo-capela, túmulo de porte médio
e túmulo simples, catacumbas aéreas (construídas nos muros do cemitério) e as
sepulturas de anjinhos (forma como eram tratadas as crianças falecidas). A essas
aplicamos uma ficha para catalogação das sepulturas semelhante a ficha utilizada por
Borges (2017) em seu trabalho. Apresentaremos, de forma resumida, alguns dos
exemplares das categorias de sepulturas que foram estudadas. Pudemos concluir que
o cemitério mais antigo de Teresina possui sim uma arte cemiterial passível de estudo
e apreciação e que não pode ser desprezada. Ao contrário, é uma relíquia que ajuda a
compreender uma sociedade imbuída de suas particularidades regionais e citadinas e
que também possui poucos fios e rastros que possam ajudar a tecer uma narrativa
histórica de seu passado. Esse último fator acaba por tornar o seu estudo ainda mais
instigante.

Palavras-Chave: Cemitério; Arte funerária; Sensibilidades; Teresina. Piauí.


275

INTRODUÇÃO

O rito fúnebre é uma forma de significar positivamente o fim da vida. Serve


muito mais aos vivos do que aos mortos, é um ritual que traz conforto e, de forma
processual, reordena a bagunça deixada pelo rastro avassalador do desviver. De
forma semelhante, a construção de um abrigo eterno para guardar os restos mortais
de alguém bem como a escrita da lápide, a escolha da escultura e dos adornos,
comumente permeados por símbolos cristãos que remetem a ressurreição, também
fazem parte desse processo de ressignificação da morte. Serve aos vivos como
consolo, é uma estratégia para materializar a memória e perenizar as lembranças
relacionadas ao falecido. Para além disso, com o passar do tempo, o túmulo passa a
servir como matéria prima para o trabalho histórico devido ao seu imenso valor
expressivo:

Os túmulos contêm uma série de imagens e adornos que são


cultuados pelas pessoas, segundo sua formação religiosa e moral.
Quando impregnadas de expressões religiosas, traduzem uma
mensagem de fé conciliada às lembranças. Quando trazem símbolos
cívicos, prestam-se a homenagens póstumas[...]. Daí advém o grande
valor expressivo dos túmulos. No silêncio dos símbolos ali presentes,
produzidos com certo gosto artístico e de fácil assimilação, eles
despertam em seus visitantes os mais profundos e significativos
sentimentos. (BORGES, 2017, p. 237)

Assim, o cemitério é, por excelência, um produto dos homens e de suas


razões, cultura, estrutura socioeconômica e, principalmente, de sua forma de pensar
a realidade e de se relacionar com a morte de uma dada época. O estudo dos
cemitérios permite “resgatar do tempo aquilo que restou”, pois, “é uma das
construções mais importantes de uma cidade, ali estão objetos e fontes que nos
possibilitam conhecê-la. Está o seu resumo, a sua síntese, a sua história.” (RIBEIRO,
2006, p.9)
No presente estudo100, o Cemitério São José é colocado como uma clara
possibilidade de conhecer as sensibilidades dos homens teresinenses que viveram
durante a segunda metade do século XIX e início do XX. Assim, para construir uma
análise da sua arte funerária, utilizamos como instrumento basilar o inventário
tipológico realizado por Borges em seu livro Arte Funerária no Brasil (1890-1930):
ofícios de Marmoristas italianos em Ribeirão Preto (BORGES, Op.cit.). Na obra, a
autora apresenta a metodologia adotada para realizar o inventário. Em um primeiro
momento, registrou as sepulturas mais significativas executadas pelas marmorarias
pesquisadas que pertenciam ao intervalo de tempo estabelecido entre 1890 e 1930.
A busca rendeu a catalogação de 500 túmulos.

100
O presente texto trata-se de uma tentativa de apresentar, ainda que de forma bastante resumida, um
fragmento do terceiro capítulo da dissertação intitulada “Cemitério São José: História, Memória e
Sensibilidades teresinenses” (ROSA, 2019).
276

Após esse processo, separou as sepulturas quanto a sua arquitetura,


classificando-as em: Jazigo-capela, túmulo monumental, túmulo porte médio e
túmulo simples101. Além dessa, realizada a partir da observação da arquitetura
tumular, a autora realizou ainda uma classificação da produção escultórica, dividindo-
a em três modalidades: anjos, imagens sacras e imagens profanas. Após fotografar
cada sepultura, preencheu uma ficha padrão para inventário tipológico que continha
as seguintes informações: localização, reprodução da epígrafe, rubrica, dimensões,
material, descrição formal, escultura funerária, adorno, estado de conservação e
observações.
Buscamos aplicar essa metodologia de forma semelhante ao analisar os
túmulos do Cemitério São José, fazendo, no entanto, algumas alterações que
possibilitaram a adequação à realidade local. A exemplo disso, percebemos que lá
não apresentava sepulturas que pudessem ser consideradas monumentais. Assim,
agrupamos as que datavam do período entre 1859 e 1950 em: jazigo-capela, túmulo
de porte médio e túmulo simples. No decorrer da pesquisa foi necessário incluir mais
duas categorias para dar conta de explicar a realidade daquele espaço, que foram: as
catacumbas aéreas construídas nos muros do cemitério102 e as sepulturas de
anjinhos103. A essas aplicamos uma ficha para catalogação semelhante a utilizada por
Maria Elizia em seu trabalho.
Por fim, a intenção é fazer com que o leitor realize um breve passeio pelo
cemitério. Em um primeiro momento (tópico II), será possível conhecê-lo de forma
geral, um pouco de sua história, localização dentro da cidade dos vivos e como está
dividido em seu interior. Depois (tópico III), apresentaremos algumas sepulturas que
foram catalogadas durante a pesquisa, assim será possível conhecer os jazigos em
que vivem simbolicamente alguns personagens importantes da história piauiense 104.

CEMITÉRIO SÃO JOSÉ: UM BREVE PASSEIO PELA CIDADE DOS MORTOS

O Cemitério São José recebeu ordem de construção em 1852. O local


escolhido, inicialmente, era bastante afastado do sítio urbano que havia sido

101
De forma resumida, segundo Maria Elizia Borges, o Jazigo Capela corresponde a uma mini capela cuja
sepultura subterrânea abriga todos os mortos de uma família. O Túmulo Monumental, por sua vez, assemelha-
se aos monumentos celebrativos que foram construídos na Primeira República e apresentam três
características fundamentais, qual sejam: a grandiloquência, qualidade artística e decoração apurada. Além
disso, normalmente, são produções escultóricas exclusivas apesar de apropriar-se de elementos já feitos. O
Túmulo de Porte Médio tem tamanho mediano que varia entre 2,5 a 5,5 m, está assentado sobre uma base
que ocupa parte da área reservada à carneira, estas normalmente são bem altas e sobre elas é que se ergue a
escultura propriamente dita. Por fim, há também os Túmulos simples que, normalmente, são construídos em
alvenaria e recebem apenas uma laje em mármore. Por vezes, esses túmulos eram adornados por esculturas
simples como vasos, cruz, anjos e santos.
102
São covas horizontais construídas em formato de abóbada nos muros mais antigos do cemitério.
Antigamente era um espaço reservado para o enterramento de corpos. A nomenclatura “catacumba” foi
encontrada na documentação que regulamentava aquele espaço público. Sobre isso ver: ROSA, 2019, p. 176.
103
Trata-se das sepulturas destinadas a inumação de crianças, “anjinhos” era a nomenclatura comumente
utilizada para fazer referência a morte pueril.
104
Não aprofundaremos nossos resultados e não apresentaremos as descrições detalhadas do mobiliário
fúnebre encontrado no cemitério estudado devido o pouco espaço que dispomos para a escrita.
277

planejado por Saraiva105. No entanto, atualmente, devido ao processo de expansão


do território citadino, ele está localizado no centro antigo da cidade dos vivos. De
forma mais precisa, ocupa o bairro Matinha, zona norte da capital. Abaixo, a foto
aérea do Cemitério São José, permite-nos observar as ruas que delimitam no seu
atual sítio.

Imagem 1 - Vista aérea do cemitério São José


Fonte: Google Maps.

O nosso “Cemitério Velho” possui quatro limites: a oeste, é delimitado pela


Rua Rui Barbosa de tal forma que, estando na entrada principal do campo santo, é
possível avistar, do outro lado da referida rua, o prédio do Instituto de Educação
Antonino Freire. Esse, por sua vez, foi estabelecido na Praça Firmina Sobreira. O
limite leste é a Rua 13 de Maio e corresponde “aos fundos” do cemitério. Ao norte, é
delimitado pela avenida Alameda Parnaíba, enquanto o limite sul é assinalado pela
Rua Alcides Freitas.
Após conhecer a sua localização em meio a cidade pulsante dos vivos, é
importante registrar que no presente estudo, o Cemitério São José, também é
entendido enquanto uma “cidade” que foi sendo paulatinamente jazida e cuja
lotação cresceu à medida que Teresina também se desenvolvia e ampliava sua
população. Dessa forma, tendo em vista a quantidade de corpos que abriga, o nosso
velho cemitério ganha ares de uma “metrópole” fúnebre.
Enfim, ocupa uma área de aproximadamente 35.088.037 m², possui 4 seções,
24 quadras, 8.700 covas e um número “habitantes” ainda indeterminado pelas
estatísticas oficiais. No entanto, considerando a informação de um servidor de que
cada sepultura comporta quatros indivíduos, podemos afirmar que o antigo cemitério
tem aproximadamente 34.800 sepultados.

105
Refere-se ao então presidente da província do Piauí José Antônio Saraiva, conhecido também como
Conselheiro Saraiva. Este foi o principal responsável pela transferência da capital do Piauí de Oeiras para a Vila
Nova do Poti (lugar onde foi construída Teresina) ainda no ano de 1852. A construção do Cemitério São José,
inaugurado apenas em 1859, está relacionada aos primeiros anos da capital. Assim, observando o plano
original da cidade é possível perceber que o cemitério foi estabelecido afastado dos limites urbanos.
278

Como qualquer outra cidade, também sofreu um processo de expansão


territorial. Nesse sentido, se observado sob o ponto de vista histórico e geográfico, o
cemitério, embora seja um só, está dividido por duas etapas de construção. Em
consequência disso, apresenta duas áreas com características distintas. O primeiro
espaço corresponde à área que foi murada entre os anos de 1852 e 1859. Já o
segundo, condiz com a construção de um cemitério temporário no ano de
1862.106(CARVALHO, 2013, p.72) Na imagem abaixo é possível visualizar os dois
espaços que constituem a sua atual conformação.

Imagem 2 - Vista aérea do Cemitério São José, destaque para o sítio original e sua
ampliação em 1862.
Fonte: Google maps
Edição de imagem: Emanoel de Almeida Muniz.

O sítio primitivo da necrópole de São José está representado pela área


contornada de vermelho da gravura acima. Nele é possível encontrar os túmulos mais
antigos, a exemplo da sepultura de Jacob Manuel D´Almendra que data do ano de
1859 (imagem 5). Além disso, apenas nesse perímetro primitivo observamos uma das
maiores peculiaridades desse cemitério oitocentista que são as catacumbas aéreas de
alvenaria construídas em seus muros mais antigos.
Enfim, se iniciarmos o passeio pelo nosso “Cemitério Velho” a partir de sua
entrada principal é possível encontrar a capela, também localizada na parte primitiva.
A sua existência no recinto é um indício que corrobora para a compreensão de
que a construção dessa obra pública municipal foi fortemente perpassada pelo poder
e pelos preceitos da religiosidade católica. Enfim, a capela foi mandada construir pelo

106
Essa ampliação aconteceu em decorrência da necessidade de uma área maior para inumar os corpos devido
ao aumento dos óbitos na província, resultado da epidemia de cólera que se abateu sob Teresina naquele ano
de 1862. A partir de então, o cemitério teve sua área ampliada permitindo um incremento significativo em
relação ao seu projeto inicial.
279

§ 4.º do artigo 7.º da lei nº 450 de 4 de setembro de 1857. Inaugurada em 1859, é um


dos prédios públicos mais antigos de Teresina.

Imagem 3 - Entrada da Capela. Cemitério São José, 2015, Teresina.


Fonte: Acervo Mariana Antão.

Seguiremos o passeio no interior da primeira necrópole de Teresina. Agora


poderemos conhecer algumas das sepulturas mais significativas que observamos
entre o período de 1859 a 1950.

ALGUNS TÚMULOS CATALOGADOS: ARTE FUNERÁRIA NO CEMITÉRIO SÃO JOSÉ EM


TERESINA- PI

Nesse último momento apresentaremos um exemplar de cada uma das


categorias tumulares apontadas anteriormente e que puderam ser observadas no
interior do cemitério estudado, qual sejam: jazigo-capela, túmulo de porte médio,
túmulo simples, catacumbas de alvenaria e sepultura de anjinhos. Após separar em
categorias, aplicamos a cada um deles uma ficha para catalogação que continha as
seguintes informações: nome dos sepultados, localização, reprodução da epígrafe,
período, rubrica, material, estado de conservação, observações, descrição formal e
escultura funerária. Nesses dois últimos tópicos detalhamos os elementos artísticos
que compõe o monumento fúnebre. No presente texto não faremos a exposição da
ficha utilizada em nossa pesquisa, já que para o momento almejamos apenas
apresentar alguns túmulos significativos para que o leitor possa apreciar um breve
passeio pelo Cemitério mais antigo de Teresina.

Imagem 4 - Jazigo-capela de Horácio Narciso Couto (1909-1968).


Cemitério São José, 2019, Teresina.
Fonte: Acervo Mariana Antão.
280

Imagem 5 -Túmulo de porte médio: Sepultura de Jacob Manoel


D’Almendra e detalhe da escultura que orna a mesma (1859).
Cemitério São José, 2019, Teresina.
Fonte: Acervo Mariana Antão.

Imagem 6 – Túmulo simples: Sepultura de Emídia Francisca


Nogueira (1880). Cemitério São José, 2019, Teresina.
Fonte: Acervo Mariana Antão.

Imagem 7 - Catacumba de alvenaria que pertenceu a Família


Martins Santos e Sousa Martins localizada no antigo muro sul do
Cemitério São José Cemitério São José, 2015, Teresina.
Fonte: Acervo Mariana Antão.

Imagem 8 - Sepultura de criança sem epígrafe e detalhe


da escultura sobre a sepultura. Cemitério São José,
2019, Teresina.
Fonte: Acervo de Mariana Antão.

CONCLUSÃO

Andar por entre as catacumbas do cemitério São José oferece a sensação de


estar passeando pelas ruas do centro antigo de Teresina. Daquelas “ruas”
demasiadamente estreitas, podemos, pouco a pouco, visitar cada um de seus
moradores. Algumas “casas” parecem mais convidativas devido à grande imponência
arquitetônica, são indiciárias do poder e importância de seu ou seus moradores. Há
outras mais simples, mas que não deixam de ter seu charme convidativo. Existem os
apartamentos mais altos destinados àqueles que não apreciam o contato com a terra
e há também as pequenas casas que abrigam os igualmente pequenos moradores.
281

Por fim, a arte cemiterial inscrita em Teresina não pode ser desprezada, ao
contrário disso, é uma relíquia que ajuda a compreender uma sociedade imbuída de
suas particularidades regionais e citadinas e que também possui poucos fios e rastros
que possam ajudar a tecer uma narrativa histórica de seu passado. Esse último fator
acaba por tornar o seu estudo ainda mais instigante.

REFERÊNCIAS

PIAUÍ. Resolução n. 437.1857, de 24/25 de julho de 1857. Proíbe o enterro de


cadáveres no interior das igrejas. Código das leis piauienses de 1857. Teresina, 1857,
p. 65-66.
BORGES, Maria Elizia Borges. Arte Funerária no Brasil (1890-1930):Ofício de
Marmoristas Italianos em Ribeirão Preto. 2.ed. Gráfica UFGA: Goiânia, 2017.
CARVALHO, Geninar Machado Resende de. Construtores e aprendizes: cativos da
Nação e educandos artífices nas obras públicas da construção de Teresina (1850-
1853). Porto Alegre: FCM Editora, 2013.
RIBEIRO, Dimas do Reis. Cemitério sem mistérios: a arte tumular do sul de Minas –
1890 a 1925 – Região dos Lagos de Furnas. 1.ed. Alterosa: MG, 2006.
ROSA, Mariana Antão de Carvalho. Cemitério São José: História, Memória e
Sensibilidades teresinenses. 2019. 185 p. Dissertação (Mestrado em História Social) –
Programa de Pós Graduação em História Social, Universidade Federal do Maranhão,
2019.
282

DA MORTE PRÓPRIA OU DA SUA MASSIFICAÇÃO NAS OBRAS


DE RAINER MARIA RILKE

RENATO KIRCHNER
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

RESUMO: O fenômeno da massificação da morte é um tema bastante atual, visto ser


um reflexo do modelo de sociedade na qual estamos inseridos. Nesse sentido, a
morte que em outros tempos e culturas era exaltada à verdadeira existência e em
que prevalecia seu caráter singular, tornou-se padronizada e impessoal mais
recentemente. Tendo isso em vista, a presente reflexão tem como objetivo alcançar
uma maior compreensão do tema da morte e da finitude humanas a partir das obras
de Rainer Maria Rilke. Nascido em Praga, no ano de 1875, até então território do
Império Austro-Húngaro, teve uma infância conturbada, cheia de conflitos
emocionais que marcaram sua personalidade e influenciaram suas obras. Entretanto,
apesar disso, Rilke é considerado um dos poetas mais importantes do século passado.
Dessa maneira, objetiva-se compreender o tema da morte e da finitude humana a
partir da diferenciação entre a morte própria e a morte alheia, representadas no
pensamento e na poética rilkeana. Para o poeta, cada pessoa possui uma semente da
grande morte dentro de si, cujo desenvolvimento depende da nossa existência mais
genuína e autêntica, ou seja, para que a semente da morte própria aflore e atinja seu
estado de maturação máxima, devemos cultivá-la como uma grande e singular obra
unicamente nossa. Com efeito, o germinar da semente da morte própria só é possível
se o ser humano alimentar constantemente a morte com sua própria vida. Nesse
sentido, a morte própria é resultado de uma vida íntegra e intensamente vivida, no
intuito de alcançar o prêmio da grande morte. Dessa maneira, a vida do ser humano
poderá passar da condição massificada à existência autêntica. Nessa interpretação
rilkeana da morte evidencia-se que o ser humano só atinge a autor-realização da vida
na morte, pois então o sentido de sua vida será finalmente alcançado.

Palavras-chave: Morte própria; Massificação; Finitude humana; Rainer Maria Rilke.

INTRODUÇÃO

O objetivo da presente reflexão consiste em acompanhar e compreender em


que medida é possível tematizar e em sentido poético dizer o que e como está
implicado no fenômeno da morte, segundo Rainer Maria Rilke. A fim de cumprir o
propósito, faremos uma incursão por algumas obras do poeta e, no final, tentaremos
evidenciar em que medida Vinicius de Moraes lê e interpreta o fenômeno da morte
283

na crônica “Relendo Rilke” e Ferreira Gullar verbaliza o mesmo fenômeno no poema


“Rainer Maria Rilke e a morte”.
Assim, a fim de abordar a temática proposta, a saber, “Da morte própria ou da
sua massificação nas obras de Rainer Maria Rilke”, iremos percorrer as seguintes
etapas: 1. Quem foi e quem continua sendo Rilke?; 2. O que o próprio Rilke diz “da”
morte?; 3. A morte na perspectiva de dois leitores e admiradores brasileiros de Rilke?

QUEM FOI E QUEM CONTINUA SENDO RILKE?

René Karl Wilhelm Johann Josef Maria Rilke (1875-1926), nasceu em Praga,
República Tcheca, e faleceu em Montreux, Suíça, sendo considerando um dos
maiores poetas alemães da contemporaneidade. Mais conhecido como Rainer Maria
Rilke ou simplesmente Rilke.
Rainer Maria Rilke, por vezes também Rainer Maria von Rilke, nasceu em Praga,
Império Austro-Húngaro, atual República Tcheca, a 4 de dezembro de 1875 e faleceu
em Valmont, Suíça, a 29 de dezembro de 1926. Rilke foi um poeta proeminente da
língua alemã do século XX. Mas também escreveu poemas e cartas em francês.
Mudou seu nome, originalmente René, para Rainer, por sugestão de Lou Andréas-
Salomé.
Rilke fez seus estudos nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Em 1894,
fez sua primeira publicação, uma coleção de versos de amor, intitulada Vida e
canções (Leben und Lieder). Não exerceu nenhuma “profissão”, tendo vivido, sempre,
à custa de amigas nobres. Alguns anos depois, em 1899 e 1900, Rilke viajou para a
Rússia a convite de Lou Andreas-Salomé, sendo já então escritora e depois também
psicanalista. Ela era filha de um general russo. A passagem de Rilke pela Rússia com
Andreas-Salomé imprimiu uma inspiração religiosa em seus poemas (ANDREAS-
SALOMÉ, 2018).
É possível dizer que Lou Andreas-Salomé tenha sido o grande amor da vida de
Rilke? Daniel Bullen, no livro Amores modernos, dá a entender que sim! Além de
Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé, o autor também aborda os
relacionamentos entre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Alfred Stieglitz e
Georgia O’Keeffe, Diego Rivera e Frida Kahlo e Henry Miller e Anaïs Nin (BULLEN,
2014).
De fato, Rilke passou a enxergar a natureza, dadas as dimensões e exuberância
das paisagens russas, como manifestação divina presente em todas as coisas. Sobre
este aspecto publicou, em 1900, a coleção Histórias do Bom Deus. Em 1901, casou-se
com Clara Westhoff, da qual logo se separou. O século XX trouxe para a poesia de
Rilke um afastamento do lirismo e dos simbolistas franceses com os quais ele se
identificara. Em 1905, publicou O livro das horas de grande repercussão na época.
Em O livro das horas seus poemas já apresentavam um estilo concreto, bem
característico desta sua fase de sua obra. Em 1902 foi para Paris, onde trabalhou
como secretário do escultor Auguste Rodin, entre 1905 a 1906. Rodin exerceu grande
influência sobre a obra poética de Rilke, que se reflete em suas publicações de 1907 a
284

1908 (RILKE, 1995b). Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, em 1914, Rilke
morava em Munique e lá permaneceu durante todo o conflito.
Antes de se mudar para Munique, Rilke viveu na região do Trieste e publicou,
em 1913, A vida de Maria (Das Merien-Leben) (RILKE, 1995a) e iniciou a redação de
Elegias de Duíno (Duineser Elegien) (RILKE, 2005), texto que só viria a ser publicado
em 1923. Duíno era um castelo na região de Trieste, Itália, onde Rilke morou por dois
anos antes da Guerra, a convite da princesa Maria von Thurn und Taxis. Após o
conflito da Primeira Guerra e suas consequências, Rilke mudou-se para a Suíça, a
última de suas pátrias de eleição, onde viveu seus últimos anos.
Uma das obras de Rilke mais conhecidas mundo afora são as Cartas a um jovem
poeta, com tradução e apresentação de Cecília Meireles. Segundo ela: “O Rilke dessas
cartas é como um intermediário de mistérios, uma espécie de oráculo, que se
consulta e em quem se crê” (RILKE, 1996b, p. 10).
É possível apontar traços da poética de Rilke? Sem dúvida alguma! Rilke possui
uma obra original, marcada pelo tratamento da forma e pelas imagens inesperadas.
Celebra a união transcendental do mundo e do homem, numa espécie de “espaço
cósmico interior”. Sua poesia provocava a reflexão existencialista e instigava seus
leitores a se defrontarem com questões próprias do desencantamento da primeira
metade do século XX. Sua obra foi influenciada pelo expressionismo e influenciou
muitos autores e intelectuais de diversas partes do mundo.
O tradutor brasileiro de O livro de horas, Geir Campos, anota que “o poeta
francês Maurice Betz no começo de uma espécie de introdução a seu excelente livro
Poésie, seleção de poemas de Rainer Maria Rilke por ele traduzidos”, escreve:
“Ninguém pode falar de Rilke a não ser ele mesmo” (RILKE, 1994, p. 9). Além disso,
em “Nota do tradutor”, Geir Campos também escreve: “E que nos diz o mesmo Rilke
a propósito do livro que aqui mais nos interessa? O poeta diz-se espantado por ter
tido a ocasião, ou as ocasiões, de o escrever e de encontrar neste livro ‘a pureza e a
modéstia do que é grandioso’. E o mesmo Rilke escreverá, alhures: ‘Eu serei sempre
um convalescente desse livro’” (RILKE, 1994, p. 9). E um pouco mais adiante: “Numa
de suas numerosas cartas à princesa Marie von Thurm und Taxis [1855-1934], Rilke
escreveu: ‘Tenho saudades de quando eu me sentia interiormente em perigo, como
nos tempos de O livro de horas’” (RILKE, 1994, p. 10). Além disso, é notório que em
forma de dedicatória ou até mesmo como epígrafe, encontremos este registro logo
no início do mesmo livro: “Deposto nas mãos de LOU ANDREAS-SALOMÉ” (RILKE,
1994, p. 8).

O QUE O PRÓPRIO RILKE DIZ “DA” MORTE?

O problema “da” morte acompanha toda obra poética de Rilke. Em O livro das
imagens (Das Buch der Bilder), do ano de 1902, podemos ler: “A Morte é grande. Nós
somos suas bocas ridentes: se fala a Vida por nossa voz, Ela, atrevida, soluça em nós”
(RILKE, 1975, p. 83).
Em A princesa branca (Die weisse Fürstin), publicado em 1904, o poeta
estabelece uma distinção entre a morte própria (der eigene Tod) e a morte alheia (der
285

fremde Tod), ou seja, a morte alheia é a morte que se aproxima da nossa vida desde
fora, isto é, como algo de fortuito e estranho, e nos impressiona antes da vida atingir
a sua plena maturidade; a morte própria é a morte estipendiada por Deus (pago em
forma de salário ou soldo, ou seja, tem a sua própria “gravidade” e “preço”), isto é,
que promana de uma espécie de necessidade intrínseca da própria vida (RILKE,
1996a, p. 17-47).
O ser humano, portanto, deve apropriar-se interiormente da morte alheia de
modo a transformá-la em morte de si mesmo e em si mesmo. Ao lado desta
distinção, Rilke amplia de tal modo o conceito de morte que ela acaba por caber
dentro da vida. Vemos, portanto, que a morte está na vida, isto é, aparece aqui a
palavra decisiva que assinala a ruptura com a concepção anterior da morte. A morte
deixa de ser pensada como o último acontecimento do qual não podemos ter
experiência alguma e passa a ser pensada como um elemento constitutivo desta
mesma vida presente aqui e agora.
O grito de O livro de horas (Das Stunden-Buch), publicado pela primeira vez em
1905, eleva-se contra este processo degenerativo da vida inautêntica do homem
massificado nestes termos:

Ali está a morte. Não aquela cujos


cumprimentos na infância se intuíam:
a morte miúda, como a que ali cabe;
a cada um, verde ainda e sem doce,
é fruto que ainda não está maduro.

Senhor, dá a cada um a morte que lhe é própria:


a morte que condiz com cada vida,
que seja amada e que faça sentido!

Eis que nós somos só casca e folhagem;


a grande morte – a que cada um traz em si –
é um fruto em torno ao qual tudo gravita (RILKE, 1994, p. 155-156).

Já em Histórias de amor e de morte do corneteiro Christopher Rilke (Die Weise


von Liebe und Tod des Cornet Christopher Rilke), do ano de 1906, Rilke aborda o tema
da morte como irmã da vida, sem, porém, apresentar ainda a problemática
propriamente dita. No entanto, a questão que preocupa o poeta é saber que sentido
tem para a nossa vida a ameaça incessante da morte, o que significa perguntar se o
ser humano é capaz de tirar desta negação que é a morte um sentido positivo para a
própria vida. Diante disso, vê-se que a formulação desta questão coloca em primeiro
plano o problema da morte como a morte dentro da vida, em torno do qual gravita a
segunda fase do pensamento de rilkeano (BOLLNOW, 1946, p. 123-160).
Da mesma forma, em Os cadernos de Malte Laurids Brigge (Die
Aufzeichnungen des Malte Laurids Brigge), do ano de 1910, a tematização da morte
implicada na vida segue na mesma direção, como é possível acompanhar e entender
286

melhor nesta bela passagem, onde, na sequência ao trecho citado, Rilke escreve:
“Antigamente sabíamos (ou talvez pressentíamos) que contínhamos a morte em nós,
como a fruta contém sua semente. Crianças tinham uma pequena; adultos, uma
grande. Mulheres a carregavam no regaço; os homens no peito. A gente possuía a
morte, e isso dava uma singular dignidade, um orgulho silencioso” (RILKE, 1979, p. 9):

Esse excelente Hotel é muito antigo. Já nos tempos do Rei Clodovico


se morria nele em algumas camas. Hoje, morre-se em quinhentos e
cinquenta e nove leitos. Produção em série, naturalmente. E numa
produção dessas não se executa tão bem a morte individual, mas
também isso é coisa que pouco importa. O que interessa é a
quantidade. Quem, hoje, dá valor a uma morte bem executada? Até
os ricos, que poderiam dar-se o luxo de morrer bem, começam a se
mostrar relaxados, indiferentes; faz-se cada vez mais raro quanto ter
uma vida particular. Mais um pouco, e será tão raro quanto ter uma
vida particular. Meu Deus: tudo isso está aí. A gente chega, encontra
a vida pronta, basta vesti-la. Depois se quer partir, ou se é obrigado a
isso: Voilà votre mort, monsieur [Esta é sua morte, senhor]. E morre-
se como o acaso determinar; morre-se a morte que faz parte da
doença (pois, desde que conhecemos todas as enfermidades,
também sabemos que os diferentes fins pertencem às doenças, não
às pessoas; e o doente, na verdade, nada tem a dizer). Nos
sanatórios, onde se morre tão voluntariamente, com tanta gratidão
para com médicos e enfermeiras, morre-se uma das mortes
oferecidas pela instituição; coisa que é muito bem vista. Mas,
morrendo em casa, é natural que se escolha a morte daqueles
círculos mais selecionados, que inicia com um enterro de primeira
classe, e toda a sequência de magníficos rituais. Os pobres postam-se
diante dessas casas, sociando-se de tanto olhar. Naturalmente a
morte deles será banal, sem maiores complicações. Dão-se por felizes
quando encontram alguma morte que lhes sirva mais ou menos.
Pode até ser mais larga: pois sempre se cresce um pouco. Só ficamos
aflitos quando ela não se fecha sobre o peito, ou quando nos
estrangula (RILKE, 1979, p. 8-9).

A MORTE NA PERSPECTIVA DE DOIS LEITORES E ADMIRADORES BRASILEIROS DE


RILKE?

Como último passo desta reflexão sobre o tema “Da morte própria ou da sua
massificação nas obras de Rainer Maria Rilke”, gostaríamos de apresentar dois
registros – também poéticos! – sobre a mesma temática de dois grandes escritores
brasileiros, na medida em que eles mesmos se referem ao poeta tcheco-austríaco.
Primeiramente, Vinicius de Moraes, numa crônica intitulada “Relendo Rilke (e
com direito a Jorge Amado)”, publicado no livro Para viver um grande amor:
287

O poeta [Rilke] viveu em transe poético constante, amargurando seu


espírito contra todos os temas da Vida, do Amor e da Morte, a que
piedosamente amou como uma única entidade. Sua simplicidade
como poeta nasce dessa longa tortura lírica de ver a morte como um
amadurecimento da vida, numa total compensação. Rilke acreditava
que a morte nasce com o homem, que este a traz em si tal uma
semente que brota, faz-se árvore, floresce e frutifica ao se despojar
do seu alburno humano. [...] A Morte, sua amiga, desobjetivava-o
poucos anos depois, como “um rio que leva”. Rilke recusou o médico:
queria morrer a sua morte (MORAES, 2008, p. 115-117).

E segundo lugar, Ferreira Gullar, um trecho do poema “Rainer Maria Rilke e a


morte”, e que se encontra no livro Melhores poemas, uma seleção realizada por
Alfredo Bosi:

Ela é sumo e perfume na folhagem


é relâmpago
e açúcar
na polpa fendida
e em todo o bosque
é rumor verde que de copa em copa se propaga
entre estalos e chilreios
a morte
presença e ocultação
circula luminosa
dentro dos caules
e se estende em ramos
abre-se em cores
nas flores nos
insetos (veja
este verde metálico este
azul de metileno) e inspira
o mover mecânico
dos mínimos robôs
da floresta

E ele a ouvia desatento


no próprio corpo
voz contraditória
que vertiginosamente o arrasta através da água
até o fundo da cisterna e
no intenso silêncio
Pensou ver-lhe num susto
o rosto
288

que se desfez no líquido espelho


(era aquele
o rosto da morte?) [...]

Hoje, tanto tempo depois


quando não é mais possível encontrá-lo
em nenhuma parte
– nem mesmo no áspero chão de Rarogne
onde o enterraram –
melhor é imaginar
se vemos uma rosa
que o nada em que se convertera
pode ser agora, ali, contraditoriamente,
para nosso consolo,
um sono,
ainda que o sono de ninguém sob aquelas muitas pálpebras (GULLAR, 1985).

Na lápide da sepultura de Rainer Maria Rilke (1875-1926), na Suíça, podemos


ler: “Rosa, ó pura contradição, o desejo de ser o sono de ninguém, sob tantas
pálpebras.”

REFERÊNCIAS

ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Na Rússia com Rilke: Diário da viagem com Rainer Maria
Rilke em 1900. Lisboa: Relógio D’Água, 2018.
BOLLNOW, Otto Friederich. Filosofia existencial. São Paulo: Saraiva, 1946.
BULLEN, Daniel. Amores modernos: A vida amorosa, erótica e sexual de artistas e
intelectuais que abriram as fronteiras de seus relacionamentos. São Paulo: Seoman,
2014.
GULLAR, Ferreira. Os melhores poemas de Ferreira Gullar. Coautoria de Alfredo Bosi.
2. ed. São Paulo: Global, 1985.
MORAES, Vinicius. Para viver um grande amor. Rio de Janiero: MEDIAfashion, 2008.
RILKE, Rainer Maria. Livro de horas (Das Stundenbuch). 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1994.
_____. Os cadernos de Malte Laurids Brigge. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
_____. A vida de Maria. Petrópolis: Vozes, 1995a.
_____. A princesa branca: Cena à beira-mar. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996a.
_____. Cartas a um jovem poeta. A canção de amor e de morte do porta-estandarte
Cristóvão Rilke. 25. ed. São Paulo: Globo, 1996b.
_____. Rodin. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995b.
_____. Poemas e cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro: Ediouro, 1975.
_____. Sonetos a Orfeu; Elegias de Duíno. 4. ed. Bragança Paulista: Edusf, 2005.
289

NECRÓPOLES DE MADEIRA: A ARTE FUNERÁRIA NOS


CEMITÉRIOS DO ESTADO DO AMAPÁ

TIAGO VARGES DA SILVA


Doutorando em História
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

RESUMO: O presente artigo tem por objetivo apresentar algumas considerações


sobre a arte funerária presente nos cemitérios do Amapá, a partir do levantamento
fotográfico realizado em 44 cemitérios desse Estado. Estes cemitérios são formados
por uma pluralidade de túmulos, caracterizados por sua arte vernacular, bastante
diversificada no uso de materiais como madeira, utilizada para confeccionar os
túmulos popularmente conhecidos como “castilhos”. Dentre as diversas tipologias
tumulares encontradas nos cemitérios amapaenses, a modalidade de túmulos
castilhos é a mais singular e representativa. Os castilhos são túmulos pré-moldados
colocados em sepulturas, tanto de adultos quanto de crianças, geralmente no sétimo
dia após o sepultamento. Os túmulos apresentam características sobre a vida do
inumado, elementos culturais e sociais como, por exemplo, a visão que identifica o
gênero a partir da cor azul, para o masculino; e rosa, para o feminino. Simbologias
religiosas, como a cruz, para o católico; a Bíblia para o evangélico. Em decorrência da
fugaz durabilidade da madeira, é comum a substituição dos túmulos em datas
especiais, como no Dia das Mães e, sobretudo, Finados, quando os castilhos são
retocados pelos familiares ou substituídos por um novo modelo. Porém, há
singularidades significativas de uma região para outra, na maneira como são
construídos e adornados. Tomando como base o levantamento fotográfico,
propomos uma análise desta categoria tumular a partir da análise de imagens.

Palavras-chave: Arte funerária. Castilho. Cemitério. Estado do Amapá

OS CEMITÉRIOS DO ESTADO DO AMAPÁ

Entre os anos de 2016 e 2019, realizamos um levantamento 107 em 44


cemitérios108, construídos no Estado do Amapá ao longo do século XX, em primeiro
momento consistiu em fazer o registro fotográfico dos espaços, mapeando a sua

107
Para o levantamento adotamos as metodologias desenvolvidas em trabalhos de Cymbalista (2002), Castro
(2008) e Herberts; Castro (2011) e Borges (2017).
108
Estes cemitérios se enquadram na tipologia que se convencionou a chamar de ‘cemitérios secularizados’.
São cemitérios que começaram a serem construídos a partir século XIX no Brasil, em substituição às práticas de
sepultamento dentro das Igreja ou a sua volta. Este movimento é chamado de secularização dos cemitérios por
autores como: Ariès (1981), Volvelle (1997) e Reis (1991).
290

localização e dimensões, para, posteriormente, estudar os elementos artísticos que


compõem o conjunto funerário, denominado arte funerária, que segundo Borges,
“[…] é um tipo de construção repleta de simbolismo facilmente assimilado pelo
grande público. A maioria da simbologia adotada concentra-se nos tipos de adornos
utilizados […] para completar a feitura do túmulo” (BORGES, 2017, p.244).
Dessa forma, o interesse consistiu em compreender como a arte, nas suas
mais diversas expressões, é empregada nos espaços cemiteriais do Amapá e como
essa produção artística pode contribuir para melhor entendimento das atitudes desta
sociedade perante a morte, pois “A arte funerária possui um universo cultural
próprio, inegável. Reflete a mentalidade e o gosto dominante do grupo social de que
procede cuja abrangência é mais ampla do que se supõe” (BORGES, 2017, p.229).
De acordo com Catroga “[…] todo e qualquer cemitério […] deve ser visto
como um lugar de reprodução simbólica do universo social e das suas expectativas
metafísicas” (1999, p. 13). Partindo desta concepção, propomos analisar os túmulos
castilhos, a mais singular das tipologias tumulares encontradas nos cemitérios do
Amapá.
O Estado do Amapá é composto por 16 municípios, considerando as
características geográficas para realização do levantamento, esses territórios foram
divididos em três grupos, denominados: Campo Metropolitano, Campo Sul e Campo
Norte. O Campo Metropolitano compreende os municípios de Macapá, Santana e
Mazagão; Campo Norte: Pracuúba, Tartarugalzinho, Amapá, Calçoene e Oiapoque;
Campo Sul: Cutias, Ferreira Gomes, Itaubal, Pedra Branca do Amapari, Porto Grande,
Serra do Navio, Laranjal do Jari e Vitória do Jari.
Os cemitérios amapaenses podem ser divididos em duas categorias:
Cemitérios Comunitários e Cemitérios Públicos. O primeiro grupo é composto pelos
ribeirinhos e israelitas109. Integram o segundo grupo as necrópoles municipais.
Os cemitérios ribeirinhos são os sítios funerários não indígenas mais antigos
do Amapá. Estão às margens dos rios, são pequenos cemitérios construídos
geralmente em uma elevação, para preservar o campo das cheias do extenso período
chuvoso amazônico. Não há delimitação física do espaço, ou seja, muros e cercas. A
entrada principal dos cemitérios é voltada para o rio, pois os rios eram as principais
vias de acesso das comunidades ribeirinhas do Amapá e em muitos locais ainda
continuam sendo. Estes cemitérios são pequenos, pois servem apenas à comunidade
local. Cada comunidade ou localidade tem o seu próprio cemitério. É comum o uso de
madeira e pedra como os principais materiais para construção e ornamentação dos
túmulos. A cruz é o principal elemento de adorno destes cemitérios.

As populações tradicionais não-indígenas na Amazônia caracterizam-


se, sobretudo, por suas atividades extrativistas, de origem aquática

109
No Estado do Amapá existem três cemitérios israelitas, todos em Macapá e são anexos aos cemitérios
municipais. O primeiro cemitério construído no Cemitério Municipal Nossa Senhora da Conceição, no centro, e,
segundo Wolff (1983), esta necrópole está entre os cemitérios Sefarditas mais importantes do Brasil, com
túmulos datados do início do século XX; o segundo está no Cemitério Municipal São José um terceiro, em fase
de construção, no Cemitério Municipal São Francisco de Assis.
291

ou florestal terrestre, onde vivem em sua maioria, à beira de


igarapés, igapós, lagos e várzeas. Quando as chuvas enchem os rios e
riachos, esses inundam lagos e pântanos, marcando o período das
cheias que, por sua vez, regula a vida dos ribeirinhos (MENDONÇA et.
al., 2007 p. 94-95).

A localização dos cemitérios ribeirinhos, está profundamente ligada ao


processo de ocupação do território, as margens dos rios e igarapés desde o século
XIX. Mas foi durante a primeira metade do século XX que os cemitérios ribeirinhos se
firmaram como a tipologia cemiterial preponderante por todo o território do Amapá.
Este processo é resultado da ocupação do interior do território amapaense, que se
desenvolveu a partir das margens dos rios. Esses cemitérios precedem os Cemitérios
Públicos, ou seja, os cemitérios municipais, que são administrados pelos municípios.
Na cidade de Macapá, capital do estado, há três cemitérios públicos em
atividade, são eles: Cemitério Municipal Nossa Senhora da Conceição, Cemitério
Municipal São José, inaugurado em 1960 e Cemitério Municipal São Francisco de
Assis, fundado em 1997. O Cemitério Nossa Senhora da Conceição, localizado no
centro da cidade, foi inaugurado oficialmente em 1947 e é o primeiro cemitério
público do estado, embora haja registro de sepultamento desde o final do século
XIX110.
Nesse cemitério, concentra-se o maior conjunto de túmulos e mausoléus em
mármore do Amapá, com uma característica bastante eclética nos padrões
tumulares, inclusive um pequeno conjunto de túmulos em Art Nouveau e Art Decó.
Essas características fazem deste cemitério o mais tradicional da cidade de Macapá,
por seu pioneirismo e por ter em seus mausoléus, túmulos e sepulturas muitas das
personalidades da história política e da cultura amapaense.
A maior quantidade de túmulos feitos de madeira na cidade de Macapá é
encontrada no Cemitério Municipal São Francisco de Assis, localizado na Zona Norte,
região periférica da cidade. A disponibilidade em abundância de madeira, torna este
material acessível e bastante utilizado na construção civil da região e, igualmente, na
arquitetura funerária. O cemitério, como afirma Cymbalista (2002), reflete a cidade
dos vivos, pois ela é feita pelos vivos e para os vivos, logo, a cidade dos mortos é
muito parecida com a cidade dos vivos: mesmos materiais, técnicas de construção e
adorno, inclusive alguns problemas são recorrentes também.

OS TÚMULOS CASTILHOS

Dentre as diversas tipologias tumulares presentes nos cemitérios amapaenses,


o castilho, compreende a tipologia mais representativa. Um túmulo pode ser
definido, como: […] uma construção erguida, em memória de alguém, no lugar onde
se acha sepultado. A construção pode cobrir o espaço da sepultura ou delimitá-la
podendo ainda conter cabeceira ou lápide horizontal. (CASTRO, 2017, p. 48).

110
Wolff (1983).
292

O castilho é um túmulo pré-moldado em madeira, que é colocado sobre a


sepultura (Figura 1). Existem três modelos predominantes de castilhos: o castilho
simples, chamado somente de castilho, o castilho trançado e o castilho gradeado.
Esses túmulos pré-moldados podem ser encontrados em todas as regiões do estado,
mas em maior quantidade na região sul, com destaque para os municípios do Laranjal
do Jari e Vitória do Jari.

Figura 1: Túmulos castilhos recém-colocados. Cemitério


Municipal São Francisco de Assis, Macapá (AP).
Fonte: Acervo do autor (2018).

O castilho simples (Figura 2) é o modelo de túmulo mais comum, está presente


em todos os municípios, tanto nas zonas rurais, quanto nas zonas urbanas. Trata-se
de uma estrutura retangular que cobre toda a extensão da sepultura. É feita de
tábuas de madeira, com aproximadamente 15 a 30 cm de altura e no interior dos
túmulos são plantados pequenos arbustos ou são preenchidos com flores artificiais,
terra, cascalho ou areia.
Geralmente o castilho é colocado sobre a sepultura após o sétimo dia da
inumação, principalmente para os que professam a fé católica, mas é comum
também colocá-lo imediatamente após o sepultamento, prática observada para os
evangélicos. Este túmulo tem caráter provisório, a intenção é que ele guarde a
sepultura até o momento em que as condições do solo permitam a construção de um
túmulo em alvenaria.

Figura 2: Túmulo Simples. Cemitério Municipal de


Itaubal (AP).
Fonte: Acervo do autor (2016)

Os castilhos gradeados (Figura 3) são mais frequentes nos municípios de


Laranjal do Jari, Vitória do Jari, Mazagão, Porto Grande e Pracuúba; em Macapá, no
Cemitério São Francisco de Assis. São armações em madeira, em formato retangular,
que não seguem um padrão, mas geralmente possuem 180 cm de comprimento por
293

60 cm de largura e 70 cm de altura, quando se trata de um túmulo para adultos. A


cabeceira é demarcada por uma pequena cruz, na qual é registrado o nome do
inumado, a data de nascimento e de morte, caso fosse católico; e para o evangélico
uma Bíblia, na qual são registradas as mesmas informações. As flores artificiais
também são bastantes utilizadas, especialmente no Dia das Mães.

Figura 3: Túmulo gradeado Cemitério Municipal de


Laranjal do Jari (AP).
Fonte: Acervo do autor (2017)

Os castilhos trançados (Figura 4) são encontrados em maior quantidade nos


municípios de Laranjal do Jari e Vitória do Jari. De uma feitura mais elaborada, a
estrutura retangular tem os seus lados preenchidos por filetes de madeira
delicadamente sobrepostos, formando os trançados. Alguns possuem cobertura de
madeira, zinco ou telha de fibra de amianto, em formato plano ou de telhado de duas
águas. Essa prática de cobrir o túmulo está presente em toda região norte do Brasil, e
serve como proteção do túmulo e seus adornos contra severidade do clima
amazônico, como observa Borges (2005).
Esses túmulos são produzidos de forma artesanal por carpinteiros da região
que também empregam esta técnica na construção de moradias. Os trançados são
utilizados nas construções residenciais com objetivos estéticos e para climatização,
pois permitem uma melhor ventilação dos ambientes.

Figura 4: Túmulo trançado. Cemitério Municipal de


Laranjal do Jari (AP).
Fonte: Acervo do autor (2017).

No entanto, nem todos as famílias possuem recursos financeiros para a


construção de túmulos em alvenaria, após o período de compactação do solo,
quando é possível edificar sobre o local. E em decorrência da fugaz durabilidade da
madeira, é comum a substituição dos túmulos castilhos em períodos regulares por
outros novos prontos, para serem usados. As substituições ocorrem principalmente
no Dia de Finados, mas também é bastante recorrente no Dia das Mães e das
294

Crianças, datas em que os túmulos são retocados pelos familiares ou substituídos por
completo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com base no levantamento fotográfico foi possível perceber que os cemitérios


amapaenses apresentam uma característica comum que consiste no uso acentuado
de madeira como principal material para confecção da sua arte funerária. Essa
característica foi observada em todos os campos estudados, com maior incidência
nos municípios de Laranjal do Jari, Vitória do Jari e Tartarugalzinho. Os menores
percentuais de uso de madeira foram verificados nos cemitérios das sedes dos
municípios de Pedra Branca do Amapari e Serra do Navio.
Os cemitérios do Amapá não possuem esculturas em mármore, nem
mausoléus suntuosos, se comparados aos Cemitérios Monumentais de diversas
cidades brasileiras, mas estas necrópoles apresentam o que há de mais singular em
sua arte funerária. Os castilhos, ao primeiro olhar, podem se apresentar como
estruturas aparentemente simples, considerando as suas formas, mas este artefato
funerário, ao ser depositado sobre a sepultura, adquire valores simbólicos
importantes, pois trazem em suas formas elementos das atitudes desta sociedade
diante da morte e do morrer. Essa relação de cuidado constante com a sepultura,
observado nas diversas datas em que tais espaços são visitados e cuidados, revela-se
como parte importante da cultura funerária da sociedade amapaense.

REFERÊNCIAS

ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Trad. Luiza Ribeiro. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1981. (Coleção Ciências Sociais, v. 1)
BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil (1890-1930): ofício de marmoristas
italianos em Ribeirão Petro = Funerary art in Brazil (1890-1930): italian marble caver
cra in Ribeirão Preto – bilíngue 2. Ed. – Goiânia: Gráfica UFG, 2017.
_____, Maria Elizia. Expressiones artísticas de cuño popular en cementerios
brasileños. In: VIÑUALES, Rodrigo Gutiérrez (diretor). Arte latino-americano del siglo
XX. Otras historias de la Historia. Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2005.
CASTRO, Elisiana Trilha. O patrimônio funerário catarinense. Coleção Horizontes do
Patrimônio Cultural. V.1. Florianópolis: FCC, 2017.
CATROGA, Fernando. O céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos
mortos. Coimbra: Minerva, 1999.
CYMBALISTA, Renato. A cidade dos vivos: arquitetura e atitudes perante a morte
nos cemitérios do estado de São Paulo. Editora Fapesp; 2002.
HERBERTS, Ana Lucia; CASTRO, Elisiana Trilha. Cemitérios no caminho: o patrimônio
funerário ao longo do Caminho das Tropas nos Campos de Lages. Blumenau, SC:
Nova Letra, 2011.
MENDONÇA, Maria Silvia de, FRANÇA, José Ferreira, OLIVEIRA, Andréia Barroncas,
PRATA, Ressiliane Ribeiro, AÑEZ, Rogério Benedito da Silva. Etnobotânica e saber
295

tradicional. In FRAXE, Therezinha de Jesus Pinto, PEREIRA, Henrique dos Santos,


WITKOSKI, Antônio Carlos. (Orgs.) Comunidades ribeirinhas amazônicas: modos de
vida e uso dos recursos naturais. Manaus: EDUA, 2007.
REIS, João José. A morte é uma festa: ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do
século XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
VOVELLE, Michel. Imagens e imaginário na história – fantasmas e certezas nas
mentalidades desde a Idade Média até o século XX. Tradução Maria Julia
Goldwasser. São Paulo: Ática, 1997.
WOLFF, Egon e Frieda. Sepulturas de Israelitas – II. Uma pesquisa em mais de trinta
cemitérios não israelitas. Rio de Janeiro; 1983.
296
297

A IGREJA CATÓLICA EM GOIÁS, NO FINAL DO SÉCULO XIX, E


PLURALISMO RELIGIOSO

WOLMIR THEREZIO AMADO


Doutorando em ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
[email protected]

CAROLINA TELES LEMOS


Doutora em Ciências da Religião
PPG em Ciências da Religião da PUC Goiás

RESUMO: Na autobiografia de Dom Eduardo Duarte Silva, bispo de Goyaz no início da


primeira República, seu autor se vê numa paisagem e, à distância, narra-se como se
nela inserido sem a ela sentir-se pertencer. Assim, como que assistindo a um filme
projetado sobre a sua vida, o Bispo coloca-se como o protagonista e intérprete dos
acontecimentos, e revela “verdades marginais”, subsumindo-as em seu próprio
enredo. Dentre as realidades identificadas pelo referido Bispo, sobressaem-se: as
presenças, na região, de etnias de índios, negros e judeus; as expressões religiosas de
protestantes, espíritas, curandeiras, benzedeiras; as expressões católicas laicas nas
romarias, irmandades, festas de padroeiros, cavalhadas e congadas. Considerando
essa realidade, o objetivo deste artigo é apresentar uma análise da relação entre a
Igreja Católica e as diversas culturas com as quais Dom Eduardo se depara em Goiás,
no final do Século XIX. O método utilizado foi o recurso a documentos e outras fontes
históricas referentes ao período de atuação do referido Bispo e posterior. Parte-se do
pressuposto que, na perspectiva da cristandade romanizada predominante à época,
as expressões multiculturais são vistas, com frequência, pela ótica eurocêntrica,
como atraso, ingenuidade, erro ou má-fé. Dom Eduardo, ainda que em um contexto
de cristandade, com fortes marcas eurocêntricas, demonstrou certo reconhecimento
e respeito às diferentes culturas com as quais se deparou. O resultado pode ser
aquilo que G. L. Ribeiro denomina de “particularismo trans-local”, com pessoas e
culturas provenientes originariamente da diáspora de múltiplas situações
geográficas, que viviam tensamente a gradual mestiçagem e a hibridização dos
costumes, construindo uma identidade composta de trocas e empréstimos
simbólicos. Essa característica se apresenta como uma constante na trajetória da
Igreja Católica desde então.

Palavras-chave: Igreja Católica; História de Goiás; História da Igreja; Dom Eduardo


Duarte Silva.
298

Em 1891, enquanto vinha do Rio de Janeiro para assumir a sua diocese de


Goyaz, dom Eduardo111 deteve-se em Uberaba que, então, pertencia à circunscrição
de seu imenso território diocesano, no Centro-Oeste brasileiro. Ali, dom Eduardo foi
recebido por uma comunidade afro-descendente, a quem os chamou de “bons
amigos de Deus”.
Entrei sem ser esperado e sem aviso [em Uberaba], por não haver ali vigário,
estando a paróquia a cargo do padre Pio Dantas Barbosa, vigário de Uberabinha. A
única pessoa que me apareceu, depois que a meu mandado foi o estudante Lamego
[seminarista] repicar o sino, foi um crioulo de nome Fidelis, vestido de opa branca
[roupa usada pelo associado de uma irmandade e, atualmente, por quem exerce um
ministério eclesial extraordinário] e com uma banda de alferes à cinta. “Quem é
você?” Perguntei. “Sou o presidente do Rosário” [Irmandade], respondeu.

“Porque acho eu esta igreja matriz em completo abandono, aberta,


sem parede no fundo, só habitada no chão pelas cabras e no forro
pelos morcegos e pelas andorinhas?” “Sinhô”, respondeu Fidelis,
“branco não gosta de Deus, é só negro que reza rosário e canta na
igreja, mas negro não tem força [é pobre], sinhô”.

“Pois bem, disse-lhe eu, vá buscar mais uns vinte pretos que gostam
de Deus e da Senhora do Rosário, cortem tabocas, amassem barro e
levantem aquela parede atrás do altar-mor, porque no domingo
quero ali celebrar”. Fizeram tudo o que ordenei aqueles bons amigos
de Deus. Depois da missa abracei-os um por um e entreguei-lhes a
igreja para que dela zelassem (SILVA, 2007, p. 80-81).

Temos, nessa narrativa, o encontro de uma Igreja Católica, romanizada e


branca, com uma irmandade local, formada por negros da primeira geração pós-
abolição (1988) da escravatura no Brasil. Tinham nas irmandades leigas católicas, em
razão da aceitação social, uma das principais formas de articulação entre si, com
recíproco apoio étnico. Na Uberaba economicamente decadente de então, eram a
principal liderança eclesial. Haviam realizado um sincretismo religioso, uma
transculturação não excludente, como forma de resistência pacífica. (FERRETI, 1988,
p. 182-198). Aceitam, neste caso específico, a autoridade do bispo e vestem roupas
litúrgicas católicas. Unem-se como Irmandade em torno a Nossa Senhora do Rosário
e de outros santos católicos, indicando a capacidade de “interpretar símbolos e
objetos rituais estrangeiros nos termos básicos de sua cultura de origem” (Robert
Sienes, 1992, p. 64. Apud: FERRETI, 1988, p. 190). Servem-se de cantos católicos e

111
Eduardo Duarte Silva nasceu em 27 de janeiro de 1852, na atual Florianópolis, e faleceu no dia 16 de
outubro de 1924. Aos 15 anos, partiu para Roma, onde cursou Filosofia e Teologia, na Universidade Gregoriana,
na qual obteve os títulos de bacharel, licenciado e doutor. Em 27 de janeiro de 1891, foi eleito bispo de Goyaz
(biografia completa foi elaborada por Josmar Divino Ferreira, in SILVA, 2007, p. 15-22). A obra Passagens “tem
o seu original em um manuscrito autógrafo escrito com base em lembranças, anotações e documentos
recolhidos pelo autor” (Antônio César Caldas Pinheiro, supervisor da transcrição dos manuscritos, devidamente
guardados no Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central/PUC Goiás. In: SILVA, 2007, p. 11-14).
299

rezam o terço, porque este era em idioma português. Mas assistem à missa, toda em
latim, provavelmente dando respostas oracionais com variações fonéticas, pois as
tinham aprendido apenas “de ouvido” (FERRETI, 1988, p. 188). Fazem o conserto do
templo católico, assim como edificaram “capelas com imagens de santos católicos em
quilombos como o de Palmares, considerando a persistência do sincretismo afro-
brasileiro como um modo de aculturação” (FERRETI, 1988, p. 190).
Segundo Salles (1984), os negros, em Goyaz colonial, formavam a parcela
majoritária da população goiana. A partir da terceira década do século XVIII, eram a
mão de obra quase que exclusiva tanto no trabalho agro-pastoril (roça), quanto nas
fábricas de mineração (garimpo). Em Vila Boa (Cidade/município de Goiás) – sede da
diocese de dom Eduardo Duarte -, na documentação de 1783, consta que existiam
990 escravizados trabalhando na lavoura, garimpo e serviço doméstico, numa média
de 30 negros escravizados para cada um dos 33 engenhos e engenhocas. No Julgado
de Meia Ponte (atual Pirenópolis), em 1812, segundo Saint-Hilaire, havia 2.282
municípios (negros escravizados), numa média de 40 escravizados para cada
engenho. Em Crixás, eram 439 negros escravizados que trabalhavam em 29 engenhos
e mais 1.491 negros forros (que haviam obtido a carta de alforria). Além desse
trabalho de negros escravos nos engenhos e garimpos, também havia os que
exerciam trabalhos urbanos, como ourives, ferreiros, carpinteiros, alfaiates etc. E
ainda, havia os que se misturavam às demais atividades de produção, como
agregados, faiscadores livres (catadores de faíscas de ouro na ganga das minas já
exploradas), tropeiros, pequenos comerciantes, pequenos sitiantes lavouristas,
feitores, vaqueiros, carreiros e, ainda, militares, funcionários administrativos e
comerciantes estabelecidos (SALLES, 1984, p. 73-78). Se os negros escravizados são a
maioria da população, pelo sincretismo também irão compor a maioria dos católicos
em Goiás. Faziam uma releitura do catolicismo e das expressões religiosas indígenas
(catimbó e pajelança), integrando-as em sua cosmovisão religiosa (MIRA, 1983, p.
104-105).
O sincretismo ocorreu de modo diverso entre os bantos, os sudaneses, os
iorubas e daomeanos. Mas a todos esses povos a religião não era uma dimensão da
vida a ser vivenciada nos fins-de-semana; a espiritualidade tecia toda a trama de suas
existências. Por isso, sobretudo aos bantos, numa perspectiva sincrética,

[...] verão nas confrarias religiosas como as do Rosário e/ou São


Benedito, intermediários entre Deus e os homens, permitindo que
seu pensamento se identificasse com a ideia de que os santos
(ancestrais) eram os encarregados de levar os pedidos a Zumbi,
divindade do céu, visto que tanto a Virgem como São Benedito
haviam passado pelo “vale de lágrimas”; [...além disso] o fato de
existirem santos tingidos de negro, dava-lhes a impressão de serem
estes, ancestrais de sua raça, não mais a nível familiar, mas nacional.
Assim, os Bantos agrupar-se-ão em torno das irmandades religiosas.
O espiritismo, posteriormente, viria a ser seu sucedâneo perfeito
para as várias levas de escravos vindos para o Brasil, principalmente
para os Bantos (MIRA, 1983, p. 105).
300

Nas regiões de minas, as ordens e congregações religiosas eram alijadas para


que não usufruíssem do ouro que era descoberto e extraído. Longe da vigilância
eclesiástica, crescerão vertiginosamente as confrarias, as arquiconfrarias e as
irmandades. Tornaram-se, assim, a face organizada do cristianismo colonial. Nas
irmandades negras, sobretudo no apogeu do ciclo econômico do ouro, criavam um
caixa-comum para a compra da carta de alforria aos seus associados. Com frequência,
rivalizavam-se entre si e construíam diferentes templos, ou pelo menos reservavam
um altar para cada irmandade dentro de um mesmo templo. Reproduziam a vida
colonial discriminatória e chegavam a formar irmandades de pardos, mulatos, negros
e brancos. Mas exerceram um forte papel de desclericalização da religião colonial,
onde o clero tinha um papel secundário na organização eclesial (MIRA, 1983, p. 122-
137).
Para a Igreja Católica em Goyaz, especialmente na sua fase de romanização,
houve grandes conflitos com as irmandades, particularmente com a de Muquém
(SILVA, 2007, p. 99-100) e a de Barro Preto (Trindade), em razão das romarias. Duas
razões suscitaram esse conflito: a primeira, era o modo autônomo como
funcionavam, seguindo seus próprios estatutos, a vontade de seus membros, a
laicidade de suas manifestações religiosas, com ou sem a presença do clero; a
segunda razão é que administravam os bens e as finanças, fazendo o uso que lhes
aprouvessem, inclusive o recurso proveniente das festas religiosas e das romarias.
Para dom Eduardo Duarte, chegando a Goiás no início da primeira República, a Igreja
já não dispunha da sustentação financeira do Estado. 112 Era preciso, pois, criar novas
fontes de receitas e, dentre elas, aquelas obtidas pelas irmandades.

De Bela Vista [narra dom Eduardo, no final do século XIX, em Goiás]


nos encaminhamos para Campininhas, para dali, saindo da estrada
geral ou salineira [por onde passavam os viajantes, transportando o
sal], como chamam, visitar um santuário chamado “do Divino Padre
Eterno” no qual durante a viagem iam os goianos falando-me, por
verificarem ali milagres extraordinários e onde o povo venera um
grupo de imagens, representando a coroação de Nossa Senhora ao
céu, mas que todos apelidam imagem do Divino Padre Eterno.
Àquele santuário acodem anualmente romeiros de todo o Estado de
Goyaz e fora dele para levarem suas ofertas, cumprirem promessas e
assistirem à festa que se celebra no primeiro domingo de julho
(SILVA, 2007, p. 86).

Como é historicamente frequente em grande parte das festas religiosas do


catolicismo, após as celebrações e cerimônias sucedem-se as quermesses, danças e
festejos da comunidade. Ora, isso havia se consolidado também no imenso sertão
brasileiro, distante da disciplina institucional da Igreja, e compunha o espaço da
112
Com a República, o Estado laico, dentre outras medidas, secularizou os cemitérios e criou o casamento civil
como “obrigatório antes do casamento religioso” (JACÓB, 2003, p. 132). Essas medidas, somadas a falta de
repasse do recurso público à Igreja, provocou na instituição um colapso financeiro, pelo menos
conjunturalmente.
301

convivência social rural. Essa era, então, a situação religiosa durante os festejos da
romaria de Trindade. Entretanto, outro foi o olhar daquele bispo formado em Roma e
disposto a aplicar as normas do concílio tridentino em Goyaz.

Como sempre, em tais lugares de santuários há sempre jogos,


bersundelas [sic], brequefestes e reúnem-se as bilhardonas e as
calonas de todas as freguesias, bem como sujeitos avilanados e
rapazes mariolas, que aproveitam essa reunião de gente ruim e de
marafonas para saciarem a sua luxúria e executarem suas vinganças;
de sorte que não há ano algum em que não haja assassinatos e
ferimentos graves (SILVA, 2007, p. 86).

Essa “reunião de gente ruim” era a romaria dos filhos do Pai Eterno, em Goiás.
E, no relato do bispo, movimentava desde suas origens grande receita financeira: “a
renda anual do santuário é avultada e dela até a minha chegada era dona e
proprietária uma comissão de três indivíduos, a que davam o nome de Irmandade!!
Irmãos de mesa, irmãos do cobre é que eles eram” (SILVA, 2007, p. 86).
Depois de um mês e meio de ocorrida a romaria de Trindade, dom Eduardo
retornou ao local. O objetivo era somente um:

[...] Mandei chamar o tesoureiro da célebre comissão ou irmandade,


e perguntei-lhe qual havia sido o rendimento. Respondeu-me que de
vinte e dois contos. “E onde estão?” Perguntei. “No cofre”,
respondeu. Pois traga-me a chave, porque eu quero verificá-lo e
também o compromisso da Irmandade e o livro de contas. Veio o tal
“compromisso”, mas a chave e o livro de contas não vieram. Li o
caderno, que chamavam compromisso, no qual meu antecessor113
havia escrito apenas estas palavras “Visto em visita pastoral”, o que
eles da Irmandade julgavam que era uma aprovação canônica. Entre
outros artigos estava o seguinte: os rendimentos anuais do Santuário
serão distribuídos do seguinte modo, metade pertencerá ao
presidente da Irmandade e a outra metade será em partes iguais
distribuída entre o tesoureiro, secretário e zelador (SILVA, 2007, p.
88).

Os conflitos com a Irmandade do santuário de Trindade e o bispo continuaram.


Então, em 1893, quando dom Eduardo fez sua primeira visita Ad limina
apostolorum114, por sugestão do cardeal Rampolla, foi até a Alemanha, na Baviera, e
lá obteve do provincial dos redentoristas a concessão para trazer dez padres
redentoristas (Congregação do Santíssimo Redentor) a Goyaz. Vindos juntos, em

113
Seu antecessor era dom Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão, que havia sido transferido para a diocese de
Porto Alegre em razão da acolhida da Igreja católica aos imigrantes europeus recém chegados àquele Estado.
114
Essa visita formal dos bispos de todas as dioceses do mundo à Roma - para o encontro com o papa e a
apresentação de relatórios nos dicastérios do Vaticano -, é uma prescrição canônica e deve ser feita a cada
cinco anos.
302

navio, cinco deles permaneceram no santuário de Aparecida/SP e cinco vieram a


Goyaz, onde assumiram, além de paróquias, também o santuário de Trindade (SILVA,
2007, p. 127-143). Assim, gradualmente, em Goyaz, a presença do clero foi sendo
assimilada e sucedeu-se à liderança das irmandades, conforme pregou dom Eduardo
aos romeiros de Muquém, “[...] só e exclusivamente pertencia à autoridade
eclesiástica o governo das igrejas, sua administração e aplicação de suas rendas”
(SILVA, 2007, p. 99). E, também, promulgou

[...] uma longa carta pastoral sobre as solenidades religiosas,


fazendo-a seguir um regulamento sobre as festas, completamente
paganizadas e cujos rendimentos de leilões e de promessas eram
malbaratados e empregados em comezainas, bailes e divertimentos
profanos (SILVA, 2007, p. 151).

Aqueles afro-descendentes das irmandades, que dom Eduardo inicialmente


havia considerado “bons amigos de Deus” e os “abraçado um a um”, quando de sua
chegada em território de sua diocese goiana, poucos anos depois lhe pareciam
estranhos à Igreja. Ainda assim, numa resistência intrépida, as irmandades de afro-
descendentes continuavam a recepcionar e a querer bem ao “seu” bispo. Assim
ocorreu, por exemplo, numa das “viagens pastorais” pela diocese de Goyaz. Mas,
então, ele já não se sensibilizou, nem os abraçava ou sentia-se a eles agradecido.

Quando chegamos ao arraial de Santa Maria vieram os pretos que se


intitulam Irmãos do Rosário cumprimentar-me com suas danças e
cantos ou berros africanos acompanhados de tambores e reco-reco,
danças que chamam Congados e Moçambicados (SILVA, 2007, p.
141).

Além de considerar as promessas religiosas praticadas em Barro Preto uma


“indecência, ignorância e falta de higiene”, dom Eduardo ria-se da “sandice” na
pronúncia que o povo tinha da língua latina, para as práticas litúrgicas.

Que direi das rezas e das ladainhas, que cada família promete lá [em
Barro Preto] ir cantar? Quantos arranhões no latim! Começando pelo
Deus in adjutorium [meum intende] [Deus, vinde em meu auxílio],
cantam: Deus no oratória não me en[tende] e respondem: É o dom
da Joana e da Fostina {Domine ad adjuvandum me festina].

Mater Christi [Mãe de Cristo] é: Matem a Cristo. Virgo Praedicanda


[Virgem louvável] = Virgem pé de cana. Virgo pontens [Virgem
poderosa] = Vira o pote. Speculum Justitiae [Espelho de justiça] =
Espetem a justiça. Janua Coeli [Porta do céu] = já não há céu. Stella
matutina [Estrela da manhã] = Estrela da matinha. Agnus Dei qui tollis
peccata mundi [Cordeiro de Deus que tirais o pecado do mundo] = já
que não deu o que toca para cada mundo (SILVA, 2007, p. 166).
303

Rir-se no jeito do povo rezar em latim era próprio de uma cristandade


eurocêntrica, para quem qualquer outra manifestação cultural e religiosa lhe era
errada, exótica, estranha e atrasada. Trazia consigo, pois, essa intrínseca contradição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os tempos atuais são outros. Aquela antiga cristandade - que teve uma
vigência de séculos, sob diversas ênfases, modalidades e contextos -, erodiu pela
crise de seus paradigmas e pela avaliação da consequência de suas práticas. Foi
necessário um gigantesco e complexo concílio ecumênico para mudar a direção dessa
grande nau. Seu leme e sua bussola indicavam uma viagem com uma única direção
histórica. Mas o encontro multicultural, com experiências e vozes eclesiais
provenientes de diversos lugares do mundo, revelou que é possível ser universal sem
deixar se ser local e singular. Inculturar seria o caminho (ANJOS, 1994), não obstante
os riscos e as incertezas!
As opções do hoje nos povos africanos (Ecclesia in Africa, 1995), a formulação
da Teologia Negra norte-americana (WILMORE; CONE, 1986) e o reposicionamento
dos brasileiros afro-descendentes – vários deles oriundos de pertenças às antigas
irmandades e confrarias -, agora, paulatinamente, assumem suas origens e sua
originalidade. E organizam-se para isso. Quilombolas e kalungas, em Goiás, não se
esquecem do Goyaz de outrora e, por isso, trazem um outro lado da história que não
foi contado, evocam os direitos territoriais originários, refundam os horizontes da
política e da cidadania e reivindicam novas abordagens, descoloniais e multiculturais
(WOLKMER et alii, 2016).

REFERÊNCIAS

ANJOS, Márcio Fabri dos. Inculturação: desafios de hoje. Petrópolis: Vozes, 1994.
FERRETI, Sérgio E. Sincretismo afro-brasileiro e resistência cultural. Revista
Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 4, nº 8, jun./1988.
JACÓB, Amir Salomão. A Santíssima Trindade de Barro Preto. História da Romaria de
Trindade. Goiânia: Ed. UCG, 2003.
MIRA, João Manoel Lima. A evangelização do negro no período colonial brasileiro.
São Paulo: Loyola, 1983.
SALLES, Gilka Vasconcelos Ferreira de. A sociedade agrária em Goiás colonial. Revista
do ICHL, Vol. 4, nº 1, jan./jun. 1984.
SILVA, Eduardo Duarte. Passagens: autobiografia de Dom Eduardo Duarte Silva,
bispo de Goyaz. Goiânia: Ed. UCG, 2007.
WILMORE, Gayraud S.; CONE, James H. Teologia Negra. São Paulo: Paulina, 1986
[1979].
WOLKMER, Antonio Carlos et alii. Os direitos territoriais quilombolas: além do
marco temporal. Goiânia: Ed. PUC Goiás, 2016.
304

A REPRESENTAÇÃO DA MÚSICA SACRA NAS FESTIVIDADES


CATÓLICAS EM PIRENÓPOLIS/GOIÁS

TEREZA CAROLINE LÔBO


Doutora em Geografia
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

ALINE SANTANA LÔBO


Mestra em Ciências e Humanidades
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

RESUMO: Partindo do pressuposto de que a função da música é comunicar através


de emoções (TERRIN, 2004, p. 312), e que esta ocupa lugar simbólico na vida social de
um determinado local (KONG, 2009), destacamos que os sons musicais que compõem
de forma ímpar os rituais são importantes na compreensão e identificação do que se
entende por festa. Os sons culturais produzidos nas celebrações escapam das esferas
tangíveis, funcionam como um elo comunicante entre o mundo material e o mundo
espiritual e invisível, assim, a música fala ao mesmo tempo ao horizonte da sociedade
e ao vértice subjetivo de cada um, sem se deixar reduzir às outras linguagens
(WISNIK, 1999). Com isso, entende-se que os sons singulares dos rituais da festa
repetidos ano após ano evocam memórias, trazem familiaridade e identificação,
sendo um objeto passível de algumas aferições. Neste trabalho, propõe-se refletir
sobre a presença da música no universo da religiosidade popular católica da
sociedade pirenopolina, com destaque para a participação do centenário Coral de
Nossa Senhora do Rosário, nos momentos ritualísticos que compõem as festas
tradicionais locais. As músicas sacras cantadas pelo Coral se fazem presentes nos
rituais da Semana Santa, em Pentecostes, nas novenas do Divino Espírito Santo e nas
comemorações à padroeira Nossa Senhora do Rosário, no mês de outubro. Esse Coral
é um elemento estruturante desses festejos religiosos colocando a musicalidade
como papel preponderante e agente agregador de memórias e de identidades. As
músicas entoadas em latim e aprendidas na oralidade compõem uma rede de festa
que moldam as experiências individuais e coletivas formando um tecido desenhado
de simbologias, sentidos, conceitos e muita festa. Priorizou-se uma abordagem
qualitativa do tema desenvolvida a partir de pesquisas bibliográficas e de observação
participante ao longo do ciclo anual das festividades, composto pelos momentos dos
ensaios e das apresentações, todos incorporados ao emaranhado festivo que articula
ações a serem realizadas para que as tradições se cumpram. É vida que segue!

Palavras-chave: Pirenópolis; Música; Rituais; Coral Nossa Senhora do Rosário.


305

INTRODUÇÃO

Propomos uma breve apresentação das músicas sacras que são executadas
nos rituais que abrangem os tradicionais festejos católicos em Pirenópolis, Goiás. Ao
falarmos de tradições festivas nos remetemos a um dos primeiros núcleos
populacionais do Brasil central, a antiga Meia Ponte, que segundo Bertran (2011), foi
povoada por portugueses natos e emboabas (p. 170), nas primeiras décadas do
século XVIII.
A vida em sociedade é uma sucessão de performances que se adapta a um
espaço e a um tempo determinado. As experiências religiosas e suas relações com as
práticas culturais estão quase sempre aliadas ao fazer musical e permitem perceber
como a própria sociedade se organiza envolta das festividades. Em Meia Ponte,
segundo Silva (2000), as festas e as tradições populares, de um modo geral, tiveram
um importante papel na mediação entre as diversas culturas que se confrontaram, a
partir da colonização do Brasil.
Coube à Igreja o papel de difusão dessas manifestações, embora muitas delas
fizessem parte do gosto da população portuguesa que, mesmo em terras distantes,
procurava praticá-las e repeti-las de maneira que as experiências vividas
aprimoraram o desempenho e reforçaram as identidades. Desse modo, as músicas
entoadas nos rituais festivos, foco de nossa discussão, revitalizaram a fé,
alimentaram narrativas, reuniram diversos atores sociais, sendo entendidas como
sonoridades sagradas que propiciaram e ainda hoje atuam na permanência das
tradições.
Propõe-se neste texto, com destaque para a participação do centenário Coral
de Nossa Senhora do Rosário, discutir num primeiro momento a presença da música
sacra nos rituais das festividades católicas tradicionais em Pirenópolis, demonstrando
sua singularidade e sua perpetuação no tempo e no espaço. Adentrando no acervo
musical executado pelo Coral Nossa Senhora do Rosário, o segundo momento
apresenta o repertório sacro e religioso executadas nos rituais, e como essas músicas
do passado ecoam no presente e se refazem vivas nos festejos católicos, criando
significados próprios.

AS FESTAS E A MÚSICA SACRA EM PIRENÓPOLIS

A composição da vida cultural em Pirenópolis é permeada por um extenso


calendário festivo ligado ao catolicismo cujas práticas celebrativas constituem um
rico patrimônio material e imaterial. Um desses bens são as músicas sacras entoadas
nos rituais da Semana Santa, nas celebrações de Pentecostes − principalmente nas
concorridas novenas do Divino Espírito Santo e nas comemorações à padroeira Nossa
Senhora do Rosário, no mês de outubro.
As músicas sacras executadas pela orquestra e cantada pelo Coral Nossa
Senhora do Rosário é um elemento estruturante desses festejos religiosos e sua
musicalidade é preponderante como agente agregador de memórias e de
identidades. Guardam blocos de tempo na memória, pois, remontam os estilos
306

musicais da Europa do século XVIII, mas que ao se atracar em terras brasileiras essa
musicalidade cria seu próprio formato e no eterno retorno, voltam de ano em ano, se
recriando e adquirindo formas de expressão.
A história da música em Meia Ponte e seus acervos é segundo Pina uma ação
conjunta de pessoas do lugar que além de se afeiçoarem aos bens culturais foram
capazes de preservá-lo e passá-los às gerações seguintes. Acrescenta-se a isso o
desenvolvimento do gosto dos meiapontenses pelas artes. Sobre o início das práticas
musicais e sua ambientação na sociedade da época a musicista afirma

a sua origem acha-se intrinsecamente ligada à história das


manifestações culturais da província, iniciadas pelos primeiros
povoadores portugueses que nela chegaram na segunda metade do
século XVIII, como Custódio Pereira da Veiga, Hilário dos Santos Silva,
Manuel Joaquim Baptista, José Ignácio do Nascimento e seus
descendentes, Pe. José Joaquim Pereira da Veiga, e outros, e também
à formação e atividades das primeiras bandas de música da antiga
Meia Ponte (PINA, 2005, p. 11-12).

E, ainda sobre a história da música Jayme destaca a importância de José


Joaquim Pereira da Veiga, o Vigário da Vara, que se crê ser o mais antigo músico
meiapontense, no início do século XIX, era professor de música, latim, desenho e o
criador da primeira orquestra de Pirenópolis. A corporação era constituída de dois
violinos, uma violeta e um violoncelo para acompanhamento das árias dos dramas
encenados (1971, p. 247). Em suas pesquisas sobre a música em Goiás, Mendonça
comenta que por volta de 1805 até 1840, ano da sua morte, o Vigário da Vara
ensaiava e encenava nas festas religiosas, uns dramas intercalados de árias, que o
povo chamava de ópera (1981, p. 101).
O incremento a arte, o incentivo pelas boas músicas, pelo teatro e pelas
composições religiosas proporcionado pela vinda de D. João VI para o Brasil,
chegaram ao Estado de Goiás pouco mais de uma década depois. Para tanto,
meiapontenses como o Vigário da Vara e o também padre, Francisco Inácio da Luz
trazem do Rio de Janeiro diversas músicas sacras e teatrais e junto com Antônio da
Costa Nascimento, o Tonico do Padre, formam o trio de músicos e compositores
responsáveis por manter a música em Meia Ponte por todo o século XIX (JAYME,
1971, p. 247). Adiciona-se a este trio a conjunção de fatores relevantes nas práticas
musicais e na preservação dos acervos, assim acrescenta-se

as corporações musicais que existiram na antiga Meia Ponte, desde a


sua primeira Banda de Música de 1830; os conjuntos vocais e
instrumentais que se formaram destinados ao acompanhamento das
árias de óperas ali encenadas e às atividades cívicas e religiosas
durante os festejos da cidade; as Irmandades e Confrarias da Igreja,
foram também elementos determinantes para a formação e
preservação desses acervos (PINA, 2005 p. 13).
307

A religião e a arte se entrelaçam o tempo todo com a própria vida, as


corporações musicais criadas para executar as árias teatrais serviam também para
tocar as músicas sacras nos rituais da igreja. Observando as velhas partituras das
igrejas de Pirenópolis Mendonça afirma haver

em grande número, Missas, Te-Deum, ladainhas, motetes, hinos


religiosos para coros, geralmente a 4 vozes, acompanhados por
pequenos conjuntos orquestrais ou banda e que representam uma
documentação vasta e valiosa, a mais importante, talvez, existente
em nosso Estado (1981, p. 98).

O Coro e Orquestra Nossa Senhora do Rosário desde que foi fundado no ano
de 1893, em conjunto com a Banda Phoenix arcou com a continuidade da execução
das músicas nos rituais católicos festivos. “O coral participa da novena do Espírito
Santo cantando em latim um repertório tradicional de música sacra, acompanhado
por uma pequena orquestra formada por músicos da Banda Phoenix (DOSSIÊ IPHAN,
2017, p. 102).
A carga afetiva calcificada na cultura do lugar dá a este universo erudito a
obrigação da repetição das músicas ano após ano, sendo estas aguardadas nos
momentos dos rituais por aqueles que vivenciam a cultura local, entendem que a
música “é o meio expressivo mais eficaz para dizer esse indizível religioso” (TERRIN, p.
310) e entendem que a execução é parte intrínseca dos rituais para que estes sejam
reconhecidos como tradição.

Há uma profusão de elementos que significam experiências


vivenciadas oriundas da ancestralidade do grupo. A aparente
repetição insere o passado no presente e lança para o futuro o
aprofundamento dessa rede de atores e simbologias (ROCHA, 2015,
p. 21).

O calendário festivo religioso da cidade, conforme relato anterior, abarca


inúmeras manifestações ligadas diretamente a igreja e ao calendário litúrgico. As
festas citadas, são as permeadas pela música sacra, que são entoadas pelo Coral
Nossa Senhora do Rosário. Com foco no repertório sacro e religioso executado nos
rituais passamos a descrever como este Coral têm contribuído para manter viva as
tradições desse estilo musical nas festividades em Pirenópolis.

DO PASSADO AO PRESENTE: O REPERTÓRIO SACRO RELIGIOSO

A presença das músicas europeias no repertório é comum entre as cidades que


surgiram no século XVIII, porém, segundo Figueiredo, grande parte desse repertório
perdeu sua função original, e são apresentadas atualmente em salas de concerto,
restando apenas algumas cidades históricas que ainda cumprem com a função
original.
308

O repertório sacro e religioso brasileiro dos séculos XVIII e XIX é de


grande exuberância. Os arquivos estão repletos de manuscritos,
autógrafos, infelizmente não muitos, e de tradição, em infinita
quantidade, demonstrando a enorme criatividade dos compositores
brasileiros na produção da música para o culto católico e em sua
intensa transmissão (FIGUEIREDO, 2014, p. 09).

Em Pirenópolis o repertório sacro se conserva, possui um acervo musical


advindo de séculos passados e executado nos dias atuais pelo Coral Nossa Senhora
do Rosário e a orquestra que o acompanha. Contém um repertório com músicas
sacras compostas desde o final do século XVIII, e também músicas de compositores
locais. Mais do que partituras antigas, a musicalidade praticada por este coral está
viva na memória cultural da cidade. As singularidades com que a localidade se
apropria dessas músicas, faz com que as tornem repletas de significados.

Talvez seja o canto, uma das mais antigas maneiras do homem entrar
em contato com o transcendente, com forças divinizadas da
natureza, com a ideia de um ser supremo. As canções e danças
indígenas, os cantos Gregorianos, os mantras, as ladainhas, os
spirituals, os “pontos” de terreiro, as incelências, enfim, as evocações
religiosas, funcionam como um canal de comunicação entre céu e
terra, entre homem e Deus (MILLECO FILHO, 2001, p. 48).

Seguindo nesta mesma compreensão, “o som tem um poder mediador


hermético: é o elo comunicante do mundo material com o mundo material e
invisível” (WISNIK, 2011, p. 28). Aportado na religiosidade, a finalidade do coral é
atuar nos momentos ritualísticos das festividades ligadas ao culto católico na cidade
de Pirenópolis, e por mediar esta relação transcendente adquiriu ao longo dos anos
uma importância significativa na cultura do lugar.
O coro é formado por uma pequena orquestra, composta por alguns
instrumentistas que fazem parte da Banda Phoenix. Os instrumentos que
acompanham são, uma tuba, um trombone, um saxofone, dois trompetes, três
clarinetas e duas flautas transversais. Houve tempo em que tinha dois violinos, assim,
a quantidade de instrumentos varia de acordo com o período, com os músicos
disponíveis para tocar e também de acordo com o gosto do regente. O coral, com
vozes masculinas e femininas, é formado por até quatro vozes distintas: baixo, tenor,
contralto e soprano. Participam pessoas da comunidade, que muito embora tenha
uma partitura para ler as composições, a maioria aprendeu a cantar ouvindo os
cantores mais antigos, o que por vezes interfere na pronúncia do latim.
O arquivo do Coral de Nossa Senhora do Rosário pertence à Banda de Música
Phoenix, este acervo oriundo das práticas religiosas de mais de dois séculos, contém
inúmeras músicas do calendário litúrgico como: novenas para vários santos, São
Sebastião, por exemplo, tem vários novenários diferentes, São José, Nossa Senhora
de Conceição, Divino Espírito Santo. Tem também hinos diversos para adoração do
Santíssimo, como Tantum Ergo, Adoramos em Eterno, Salutaris; em ação de graças o
309

Te Deum. Contém ainda, as músicas da Semana Santa como: Os Motetos Das Dores,
os Motetos de Passos, Heu, Pange Língua, Vos omnes que é o canto da Verônica. Tem
várias missas - Glória, Credo, Sanctum, Benedictus e Agnus Dei, como a Calahorra,
Missa do Rosário, Del Moro, Santa Infância, dentre outras. Sem contar o repertório da
Banda Phoenix com as marchas fúnebres, as valsas e os dobrados que são partituras
de músicas que são executadas durante os cortejos e procissões.
O repertório contém também várias músicas de compositores anônimos,
transcrições que levam o nome do copista, além de compositores locais, como Padre
José Joaquim Pereira de Veiga, Antônio da Costa Nascimento o Tonico do Padre,
Padre José Inácio (irmão do Tonico do Padre), José Odilom de Pina, Silvino, Agenislau,
o casal Alaor e Ita da família Siqueira, que engrossaram o acervo com suas
composições.
A escolha das músicas para acompanhar os rituais depende do interesse do
regente e das peculiaridades, como o gosto do imperador do Divino, as exigências do
pároco em relação ao tempo da missa ou da novena, os músicos e cantores
disponíveis para ensaiar e o tempo de ensaio. As músicas das Semana Santa, como os
motetos e solos são os mesmos todos os anos, mas os novenários e as missas variam,
o maestro atual Aurélio Afonso da Silva, por exemplo, ensaia um repertório
adequando-o ao coral e ao tempo de ensaio.
O coral se reúne para os ensaios normalmente na sede da Banda Phoenix,
maestro e músicos dividem as semanas entre ensaios do coral e os da banda de
música. Normalmente ocorre em dois períodos, logo após o carnaval, começam os
ensaios das músicas da Semana Santa. Logo após a Páscoa começam os ensaios para
os rituais da Festa do Divino, as novenas e a Missa de Pentecoste. Na festa da
padroeira Nossa Senhora do Rosário, em outubro, cantam na missa. Parte do coral,
recentemente voltou a cantar nos festejos do Senhor do Bonfim, e de Nossa Senhora
do Carmo.
A reprodução a cada ano, ora quase sumindo, como observou Brandão, ao
participar da Semana Santa em Pirenópolis no ano de 1988: “entoavam os motetos
das dores, hoje silenciados — razão para que alguns músicos do lugar temam que os
dos passos, da procissão do dia seguinte, sigam o mesmo destino” (2010, p. 146); ora
reavivadas por partícipes interessados em dar manutenção e continuidade, como
tem acontecido recentemente.
Atualmente várias partituras foram digitalizadas, a fim de preservar os
manuscritos antigos puídos pela ação do tempo. Há uma preocupação em inserir ao
grupo participantes jovens no intuito que aprendam a valorizar a cultura local e a
manter viva as estruturas das práticas dos rituais festivos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As músicas sacras entoadas pelo Coral Nossa Senhora do Rosário, mesmo com
as transformações ao logo do tempo, traz “ao presente fatos e pessoas do passado,
numa projeção de esperança e que tais riquezas possam perpetuar-se no futuro”
310

(BARROS, 2015, p. 218). Para continuar existindo, as tradições adaptam-se aos novos
tempos e ajustam-se às demandas impostas pelas necessidades da atualidade.
A continuidade e perpetuação no espaço e no tempo das manifestações da
música sacra nas festividades de Pirenópolis, destina a repetir anualmente o treino, o
encontro, os ajustes do repertório e a participação nos rituais de grupos de
personagens músicos, cantores e cantoras, pároco e organizadores dos eventos, fiéis
e curiosos que se fazem presentes. É um empreendimento de uma comunidade que
reproduz os rituais por séculos, em que os conflitos, a cooperação e a solidariedade
fazem parte de um emaranhado para que tudo transcorra dentro das expectativas
para o bom desenvolvimento das práticas rituais.
Kong (2009) destaca o papel simbólico da música na vida social e na
constituição das paisagens, sendo a música um meio através do qual as pessoas
transmitem experiências de vida. Entende-se assim, que a representação das músicas
sacras nas festividades católicas em Pirenópolis compõe as celebrações culturais e
mantem o modo de ser e fazer dos pirenopolinos, tornando o local popularmente
conhecido como berço da cultura em Goiás.

REFERÊNCIAS

BERTRAN, Paulo. História da Terra e do Homem no Planalto Central: eco-história do


Distrito Federal. Brasília:Editora Universidade de Brasília, 2011.
BARROS, Fernando Passos Cupertino. A Música no Ciclo da festa de Pentecostes na
Cidade de Goiás. In: BRITTO, Clovis Carvalho. Os Sentidos da Devoção: o Império do
Divino na Cidade de Goiás (Séculos XIX e XX). Goiânia: Editora Espaço Acadêmico,
2015.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Prece e folia: festa e romaria. Aparecida/SP: Idéias &
Letras, 2010. 228p.
FIGUEIREDO, Carlos Alberto. Música Sacra e Religiosa Brasileira dos Séculos XVIII e
XIX: Teorias e Prática Editoriais. Rio de Janeiro: ed. do autor, 2014.
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1 Casa de Deus e Casas dos mortos, 2002. 121p.
KONG, Lily. Cinema, Música e Espaço. In: CORRÊA, R. L.; ROSENDAHL, Z. (orgs.).
Literatura, música e espaço. Rio de Janeiro: EdUERJ, 2009.
MENDONÇA, Belkiss S. Carneiro. A Música em Goiás. 2ª ed. Goiânia, Ed. Da
Universidade Federal de Goiás, 1981.
MILLECCO FILHO, Luís Antônio. É preciso cantar – Musicoterapia, cantos e canções.
Rio de Janeiro: Enelivros, 2001.
PINA, Maria Lúcia Mascarenhas Roriz e. Concerto dos Sapos: Um Patrimônio Musical
Goiano. Goiânia, 2005. (Dissertação de Mestrado). 98p.
ROCHA, Carmem Silvia Moretzsohn. Curimbas: O Som das Almas. In: CONTINS,
Marcia. Religiosidade e Performance: diálogos Contemporâneos. Rio de Janeiro:
Mauad X: FAPERJ, 2015. 204p.
311

SILVA, Mônica Martins da. A Festa do Divino: Romanização, Patrimônio & Tradição
em Pirenópolis (1890-1988). / Mônica Martins da Silva. Goiânia, 2000. 259 p.
TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo:
Paulus, 2004. 448p.
WISNIK, José Miguel. O som e o Sentido. 2ª ed., 8ª reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. 283 p.
312

“SENHORA SANT’ANA QUANDO ANDOU PELOS MONTES,


POR ONDE PASSAVA DEIXAVA UMA FONTE”: O MOSTEIRO
DE SÃO BENTO DE JUNDIAÍ E AS TRADIÇÕES DO
CATOLICISMO POPULAR NA VILA FORMOSA DE NOSSA
SENHORA DO DESTERRO DE JUNDIAÍ (1668-1764)

ROGÉRIO FERNANDES CALHEIROS


Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

RESUMO: Atualmente existem estudos histórico-teológicos que analisam o fenômeno


do catolicismo popular em relação ao catolicismo tradicional e suas relações com as
instituições religiosas. A história da antiga Província Beneditina do Brasil (1582-1827)
é narrada por suas manifestações artísticas e por suas relações religiosas que tiveram
um desdobramento imediato na esfera social. Da mesma forma, não se pode
simplesmente ignorar as relações entre elas, uma experiência externa, baseada na
associação com numerosas fraternidades religiosas compostas e dirigidas por leigos e
na ausência de domínio eclesiástico ou mediação por festas religiosas e procissões
festivas e uma experiência interior dirigida ao culto dos santos, o "catolicismo de
superfície", com práticas rituais e devocionais ligadas ao mítico e ao mágico. O
Mosteiro de São Bento de Jundiaí, no período de 1668-1764, entra em contato com o
florescente e popular catolicismo de Jundiaí em seu caráter devocional a Sant'Ana.
Esta pesquisa visa analisar a relação entre o catolicismo popular devoto ao culto de
Sant'Ana na Vila de Nossa Senhora do Desterro de Jundiaí e a comunidade monástica
do Mosteiro de São Bento no período 1668-1764 através de pesquisa documental e
discussão historiográfica. A questão que orientará esta pesquisa é: Como o Mosteiro
de São Bento em Jundiaí influenciou o catolicismo popular em Jundiaí. Espera-se
encontrar nesta análise o resgate histórico da cultura popular local e também sua
relação com suas identidades religiosas. De um ponto de vista metodológico, esta
pesquisa se baseia em pesquisas qualitativas. Quanto à natureza do tema, ela se
enquadra, em seus objetivos, como pesquisa descritiva dirigida à análise documental.
Espera-se que esta pesquisa gere fontes de dados sobre o catolicismo popular devoto
ao culto de Sant'Ana em Jundiaí e à História do Mosteiro de São Bento de Jundiaí no
período 1668-1764 para estudos e debates nas áreas de História e Ciências da
Religião colonial brasileira.

Palavras-Chaves: História do Cristianismo; Catolicismo popular; Jundiaí; Mosteiro de


São Bento; Sant’Ana.
313

INTRODUÇÃO

As relações entre o catolicismo popular e as instituições religiosas podem ser


visualizadas e discutidas por diferentes expressões: a pintura, a arquitetura, a música,
a dança, a escultura e por diferentes processos como a catequização, a inculturação,
o sincretismo, o proselitismo, o extermínio de uma cultura sob o regime de outra
com traços de características autoritárias e impositivas, a alienação cultural.
O monarquismo beneditino segue dentro de seu percurso histórico características
próprias que levam a se destacar entre outras construções de seu universo, o culto e
devoção aos santos.
Este fenômeno religioso no que se refere ao culto de Sant’Ana adquire feições
culturais e de especulação teológica observada ao longo dos séculos; o que pelo
contato com a piedade e cultura popular assume e transformada em novas
representações a partir desse encontro.

O MOSTEIRO DE SÃO BENTO DE JUNDIAÍ

A história da antiga Província Beneditina do Brasil (1582-1827) é entrelaçada e


narrada tanto por suas manifestações artísticas quanto pelas suas relações religiosas
que tiveram um desdobramento imediato no
âmbito social.
Taunay (1927) na sua introdução a História
Antiga da Abbadia de São Paulo fazendo
memória das ocasiões em que travou
conhecimento com numerosos monges da
antiga Congregação e de modo muito
presente com o Abade Geral da Congregação
Frei Domingos da Transfiguração Machado, é
uma fonte de informação e ao mesmo tempo,
nas suas entradas nas crônicas e demais
documentos do arquivo do Mosteiro de São
Paulo, esta porta de entrada historiográfica
para os detalhes acerca dos indivíduos e acontecimentos que geram o surgimento do
Mosteiro de São Bento de Jundiaí, bem como o levantamento de documentos
importantes referentes a acontecimentos pontuais deste mosteiro .Em vista da
precariedade de estudos relativos a antiga história do Mosteiro de São Bento de
Jundiaí, a constante informação de que seu arquivo se perdera no tempo, Taunay
(1927), faz necessariamente com que se dirija um olhar com mais acuidade, desta vez
partindo-se de um ponto de vista bem específico: a relação da vida monástica
beneditina no século XVIII com o catolicismo popular da comunidade local. Utiliza-se
como elemento aglutinante, ou seja, como objeto que une tanto o que está dentro,
ou seja a vida conventual dos monges como o que está fora, a vida daquela
população que acorria a este templo, junto a imagem de Sant’Ana. A vila de Nossa
Senhora do Desterro de Jundiaí:
314

A organização social da vida das comunidades se dava pela oficialização de sua


ermida, capela visitada por uma cura, pela elevação, um dia de sua igreja a classe de
matriz, o que significava nova configuração institucional como bem observou
Marques (2008).
A igreja de Nossa Senhora do Desterro de Jundiaí (1651) foi construída no alto
de uma colina e próximo ao curso d’água do rio que lhe dá o nome. Este aspecto é
importante para entender o núcleo originário de Jundiaí, pois era no entorno da
igreja que se construíam as casas, já que não se podiam construir “capelas curadas”
ou igrejas sacras em lugares ermos ou despovoados. (MARQUES, 2008, p. 37)
Em 23 de agosto de 1668 o Provincial da Congregação Beneditina Portuguesa no
Brasil, Frei Francisco da Visitação obteve do Vice- Rei na Vila de Nossa Senhora do
Desterro de Jundiaí uma carta de sesmaria de vinte léguas no caminho que vai para o
sertão dos lanceiros e Batatais, composta de três campos, a primeira além dos rios
Jaguari e Camanducaia e a terceira a terminar no mato que está ao longo do rio
Mogi-Guaçu.” (MARQUES, 2006, p.44).
Johnson (1977) ao escrever o seu Livro do Tombo do Mosteiro de São Bento da
Cidade de São Paulo nota que no necrológio do Mosteiro da Bahia de nº 88 se diz
que: “ Frei Anselmo da Anunciação foi mandado por ‘companheiro do mesmo Frei
João do Espírito Santo a fundar um hospício na comarca de São Paulo, em uma terra
chamada Jundiahy.
O mesmo diz que a palavra hospício provém do latim “hospitium”,
hospitalidade, estalagem, asilo; é a casa religiosa onde os religiosos da Ordem, se
agasalham de passagem pela terra por onde está o hospício.

O CATOLICISMO POPULAR

Burke (2010) na obra A Cultura Popular na Idade Moderna observa que: na


Idade Moderna havia uma diversidade cultural marcada pela estratificação social da
cultura onde se diferenciava a cultura do campo e cultura da cidade.
A cultura do campo era organizada em festas sazonais e devoção aos santos; já
a cultura das cidades era uma cultura ligada as várias guildas (grupos de artesãos). De
qualquer forma o conceito de cultura ainda se ligava ao de religião.
No ambiente cultural na Península Ibérica é descrito Ribeiro (2006) tem um
caminho todo próprio no que se refere ao cancioneiro popular, as danças e a
religiosidade popular, o messianismo como parte integrante desta cultura, além de
seu forte apelo ao sagrado e ao ambiente inquisitorial sem esquecer sua influência
islâmica e sefardita. Apelo ao dramático, ao processional. Combate da Igreja a
reforma dos costumes.
Dillmann (2012) ao analisar a religiosidade popular no Brasil colonial observará
que o catolicismo popular no Brasil na época do padroado seguia um duplo aspecto,
o da vivência interior e o da vivência exterior da prática religiosa.
Na vivência exterior a religiosidade estava ligada a associação a inúmeras irmandades
religiosas compostas e dirigidas por leigos. Havia uma ausência de domínio ou
315

mediação eclesiástica e tudo era expresso principalmente através de festas religiosas


e procissões festivas.
Na vivência interior se privilegiava o culto aos santos, em uma espécie de
“catolicismo de superfície”, onde praticas rituais e devocionais se ligavam ao mítico e
ao mágico. A exegese bíblica e o imaginário vieram reforçar a mesma ideia e dar-lhe
uma tradução na prática. Sant’Anna tornou-se padroeira de mineradores — tradição
já corrente na Espanha — e de “moedeiros”. Assim como as minas, Anna escondia
ouro em seu ventre: Maria Imaculada. A analogia teve ressonância no mundo rural
das Minas Gerais, alvo das esperanças que colonizadores nutriam há séculos. No
âmbito urbano, os moedeiros realizavam festas anuais em homenagem a Sant’Anna.
O sermão pregado na festa dos moedeiros na catedral de Salvador — bem como
aquele pregado três anos antes na Sé de Lisboa — é fundado na analogia entre Anna
e o tesouro do evangelho. Em 1770, o governador de São Paulo — capitania que
muito contribuiu para o povoamento de Minas — exprimiu sua gratidão pela
descoberta de ouro a Sant’Anna, homenageando lhe em grandes festas.” (SOUZA,
2002. p. 238-239)
Rodrigues, et al. (2011) ao falar da passagem do Morgado de Mateus sobre
São Paulo naquele ano de 1770 descreve aas festividades em Honra e devoção a
Sant’Ana como dez dias de festejos, contendo “luminárias, fogos de artifício, desfile
de carros alegóricos, de máscaras, bailes, missas solenes, Te Deum, concerto
musicais, encenações teatrais, procissões, cavalhadas e corridas de
touros”.(RODRIGUES, et al. 2011. p. 1)
No caso do catolicismo popular estas demandas se concentram naquilo que é
reconhecido como um trabalho religioso
coletivo e autônomo onde após o seu
surgimento no regime do padroado no Brasil
colônia havia uma distinção entre a religião
dos “senhores da terra” como demonstram
os documentos relativos a esse período, e de
modo específico a religião praticada pelos
monges e a religião dos pobres, que eram
aquelas pessoas assimiladas pela cultura
indígena no interior do Brasil.
A pesquisa relativa ao culto de Sant’Ana no
mosteiro de Jundiaí visa a possibilidade de se
fazer uma síntese entre esse culto que nasce
do anonimato popular e da instituição
reguladora que é a estrutura monástica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo desta pesquisa é analisar a relação entre catolicismo popular


devocional ao culto de Sant’Ana na Villa de Nossa Senhora do Desterro de Jundiaí e a
316

comunidade monástica do Mosteiro de São Bento no período de 1668-1764 por meio


da investigação documental e discussão historiográfica.
O catolicismo popular devocional aqui encontrado, ao que tudo indica tem
suas origens no imaginário cultural europeu tanto rural como urbano do contexto
medieval e moderno e neste caso específico do mundo ibérico.
Ao entrar em contato com a realidade colonial este se adapta e se transforma
adquirindo novas formas e linguagens, em específico no contato com a tradição
monástica beneditina e sua realidade brasileira; o que leva a crer a possibilidade de
um intercâmbio de trocas simbólicas e de transferências culturais e sociais entre
ambos.

REFERÊNCIAS

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Vozes, 1978.
BURKE, P. Cultura popular na Idade Moderna: Europa 1500- 1880. São Paulo:
Companhia das Letras, 2010. p.26-299
ENDRES, J. L. A Ordem de São Bento quando Província 1582-1827. 1º. ed. Salvador:
Editora Beneditina, 1980.
DILLMANN, M. Religiosidade católica no Brasil durante a vigência do Padroado.
17391-6354-2-RV. 2012. Disponível em:< file:///C:/Users /usuario/Downloads/17391-
Texto%20do%20artigo-77529-2-10-20121120.pdf>. Acesso em: 14/05/2020.
JONHSON, M. Livro do Tombo do Mosteiro de São Paulo da Cidade de São Paulo. 1º.
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MARQUES, J. R. Jundiaí, um impasse regional- o papel do município de Jundiaí entre
duas regiões metropolitanas: Campinas e São Paulo.178 fl. Dissertação de Mestrado
em Geografia Humana. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas,
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2008.teses.usp.br. Disponível em:<
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MAZZUIA, M. Jundiaí através de documentos. 1º. ed. Jundiaí: [s.n.], 1976.
RIBEIRO, B. A. F. Arte e Inquisição na Península Ibérica: A Arte, os Artistas e a
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São Paulo, 2006. teses.usp.br. Disponível em:<
https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8138/tde-05072007-
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RODRIGUES, et al. Frei Galvão: O Santo Brasileiro na Academia dos Felizes. Revista
Acta- Revista do Grupo de Pesquisa “A escrita no Brasil colonial e suas relações”.
Assis. Vol. 1. 2011. repositório.unesp.br. Disponível em:<
https://repositorio.unesp.br/bitstream/handle/11449/127214/ISSN2237-1109-2011-
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317

SOUZA, M.B.M. Mãe, Mestra e Guia: Uma análise da iconografia de Sant’Anna.


Revista Topoi. Rio de Janeiro. Vol. 3. nº 5. Scielo. Disponível em:<
https://www.scielo.br/pdf/topoi/v3n5/2237-101X-topoi-3-05-00232.pdf>. Acesso
em: 24/04/2020.
TAUNAY, A. História Antiga da Abbadia de São Paulo 1598-1772. 1º. ed. São Paulo:
Typographia ideal, 1927.
Crédito das imagens:
Sant’Ana do Mosteiro de São Bento de Jundiaí por Joyce Rodrigues dos Santos.
Mosteiro de São Bento de Jundiaí por Acervo do Solar Do Barão.
318
319

CATOLICISMO CONTEMPORÂNEO: PERMANÊNCIAS E


RUPTURAS DA SUA COMPREENSÃO DA SEXUALIDADE E SUA
INFLUÊNCIA NO COMPORTAMENTO SOCIAL

ÁUREO NOGUEIRA DE FREITAS


Mestre em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
[email protected]

RESUMO: Em todas as religiões existem normas morais próprias no campo da


sexualidade com o objetivo de orientar a conduta dos seus fiéis. O cristianismo,
sobretudo na sua versão através do catolicismo, é a religião que mais influenciou a
sociedade ocidental. Existem significativos estudos que comprovam que ele tem fator
determinante de regulação na vida sexual dos brasileiros. Ainda que, ao longo dos
séculos da sua existência, muitos dos seus conceitos foram repensados e
reformulados, o aspecto essencial da categoria de pecado original é conservado e
fundamenta, em certo sentido, a sua moral sexual até hoje. Esta comunicação
pretende apresentar no catolicismo contemporâneo permanências e rupturas da sua
compreensão da sexualidade e sua influência no comportamento social a partir da
escuta de sujeitos católicos. Abordaremos o aspecto das sínteses que os sujeitos
católicos elaboram, nas suas demandas subjetivas da sexualidade e o ensinamento
oficial da Instituição. Isso requer averiguar a relação entre religião e identidade
sexual, com aspectos próprios da cultura moderna. As dificuldades que as pessoas
encontram para terem claras suas posturas refletem as contradições que a
modernidade nos traz. Nas rupturas e permanências, os sujeitos fazem uma
desconstrução e reformulação dos valores, com a produção de uma intimidade mais
rica e consciente, livre e responsável, em que a pessoa se torna mais autêntica
consigo mesma. Podemos, assim, falar de uma nova identidade sexual desses sujeitos
católicos. Eles são capazes de dar novas interpretações à realidade objetiva, o que
promove a construção de novos significados para sua sexualidade e espiritualidade,
possibilitando a reelaboração de sua identidade religiosa.

Palavras-chave: Catolicismo contemporâneo; Sexualidade; Sujeitos; Identidade.

CONFLITOS E SÍNTESES DOS SUJEITOS CATÓLICOS SOBRE A SEXUALIDADE

No acompanhamento espiritual, como sacerdote católico, observo um hiato


entre o discurso e o comportamento sexual dos católicos e as orientações
doutrinárias da Igreja. Existem conflitos entre a crença religiosa ensinada e o desejo
desses sujeitos no que se refere à sexualidade. Nem sempre essas pessoas
320

manifestavam insatisfação com a Igreja no que se refere à fé, aos ritos e aos valores.
Tal constatação requer, por um lado, uma melhor compreensão dos processos
envolvidos na integração da sexualidade à personalidade dos sujeitos católicos na
modernidade e, por outro, a análise de como se dá a formação da identidade sexual e
religiosa no contexto moderno.
Parece-nos que os sujeitos católicos modernos realizam uma releitura da fé,
criando novos paradigmas de crenças, firmados em valores cristãos aproximados aos
da modernidade, a fim de legitimar a sua própria sexualidade e integrá-la à
personalidade, de modo psiquicamente saudável. Isso revela também a vitalidade do
próprio catolicismo, enquanto lugar de sentido, pois “não é a religião enquanto
conservação e permanência que deve interessar à sociologia, mas, sim, a religião
como possibilidade de ruptura e inovação, a mudança religiosa e, portanto, a
mudança cultural” (PIERUCCI; PRANDI. In: OROZCO, 2000, p. 9).

A IDENTIDADE SEXUAL E A RELIGIÃO

Para pensarmos a intrínseca relação entre religião e identidade, José Maria


Mardones (1996) apresenta, em seu estudo sobre Cristianismo e Modernidade, um
interessante capítulo sobre essa temática. Com base nos teóricos Touraine,
Habermas e Giddens, ele aponta a identidade como indicador das contradições da
nossa sociedade: as dificuldades que as pessoas encontram para terem claras suas
posturas refletem as contradições que a modernidade nos traz. Na modernidade, as
pessoas, de modo geral, perderam seus pontos de referência para sentirem-se
seguras para assumir um posicionamento. Para Mardones (1996), a identidade
“constitui um dos indicadores que revelam os mal-estares e as contradições da nossa
cultura e de nossa sociedade” (MARDONES, 1996, p. 107).

Estamos agora mesmo em um mundo em que tudo deve ser


submetido a uma reflexão, incluída a própria identidade, que, de ser
uma identidade mais ou menos dada por suposto, herdada, [...] passa
a ser uma identidade reflexiva que deve surgir conscientemente
(MARDONES, 1996, p. 111).

Ou seja, a religião, enquanto referência que contribuía para a identificação do


“eu”, da pessoa que cada um é - uma vez que remetia a uma origem, a um grupo e a
uma tradição - estruturava os pontos de vista das pessoas. Para Mardones, a questão
sobre o que ocorre com a identidade religiosa frente a uma crise generalizada de
identidade é encontrada na análise do contexto sociocultural moderno, marcado pela
globalização, “destradicionalização” e homogeneização funcional, que causam uma
fragmentação de sentido no ser humano, gerando a necessidade de um processo de
reflexividade social.
Com a internacionalização da economia e a globalização da comunicação: “os
habitantes deste mundo social e cultural das sociedades modernas vivemos com uma
concepção diferente do tempo e do espaço. As distâncias parecem ter diminuído e
321

tudo acontece mais rápido e nos parece mais próximo” (MARDONES, 1996, p. 109).
Sendo assim, a globalização supõe mudanças estruturais que afetam a vida cotidiana
em geral, o que influencia a consciência de cada um ao questionar sobre mudanças
de valores. E a tradição é o principal aspecto da religião que se vê conturbado pelos
efeitos da globalização, uma vez que aspectos e conceitos anteriormente
considerados absolutos são questionados e relativizados pela modernidade.
Fundamentando-se em Giddens, Mardones (1996) nomeia tal fenômeno de
“destradicionalização”, ou seja, o processo em que as tradições, sejam quais forem,
inclusive as religiosas, submetem-se à reflexão crítica: “Não desaparecem, repetimos,
mas são reinterpretadas, reformuladas, submetidas a uma justificativa” (MARDONES,
1996, p. 109).
É nesse sentido que podemos compreender o comportamento sexual e a
identidade religiosa dos sujeitos católicos na modernidade: reavaliando a tradição
religiosa, eles assumem valores do Catolicismo enquanto cristianismo, mas
reinterpretam as questões referentes à sexualidade, aproximando seus conceitos aos
valores da modernidade.
Tal fator, uma vez que traz a perda da segurança que a tradição estruturava,
com conflitos na identidade tanto pessoal como grupal, forja, como resposta dessa
perda de referencial, o crescimento também dos movimentos fundamentalistas, que
surgem como uma alternativa de manter algum referencial de sentido e segurança na
vida.

INFLUÊNCIA NO COMPORTAMENTO SOCIAL

A revolução industrial, somada com o crescente prestígio e influxo social e


cultural que a modernidade traz, aponta para outra consequência: a valorização da
utilidade, da ciência, da eficácia e do pragmatismo, a visão racional que acentua a
dimensão quantitativa da realidade.

O resultado final é uma sociedade homogeneizada desde o ponto de


vista do conhecimento e da consideração do que é racional; uns
indivíduos impregnados deste modo de ver e entender a realidade;
uma racionalidade escorada unilateralmente no funcional
(MARDONES, 1996, p. 113).

Diante dessa constatação, importantes aspectos da realidade são


praticamente desprezados como, por exemplo, o simbolismo referente ao sagrado.
Isso significa, paradoxalmente, uma visão unilateral, reduzindo a realidade ao modo
científico e lógico de compreensão. A modernidade também descentraliza as fontes
de sentido da vida. E se abordamos essa situação no campo da identidade religiosa,
essa característica é apresentada como

fragmentação cosmovisional, da pluralidade de referentes de sentido


e de predomínio de uma visão funcional e mercantilista, em que o
322

indivíduo se refere a uma multiplicidade de grupos, tarefas e


experiências, que não transpassam o umbral do utilitário e do
pragmático (MARDONES, 1996, p. 114).

Mardones (1996) realiza sua pesquisa na Espanha e indica, basicamente, que


há uma “privatização da religião” para o cristianismo espanhol, ou seja, a religião
passa a pertencer à dimensão pessoal, à escolha individual, além das barreiras
públicas, ao que conclui que a religião cristã tende a “invisibilizar-se”. Percebe que a
identidade religiosa do católico espanhol é mais ideológica e menos comportamental
na modernidade. Talvez seja essa a realidade dos sujeitos católicos, provenientes da
classe média de Belo Horizonte, escutadas na direção espiritual. De acordo com
Mardones (1996), a crise de identidade é o contexto da modernidade. Há um
consumo daquilo que é divulgado como “socialmente adequado” quanto aos valores
e comportamentos, sem a reflexão sobre quais são, de fato, as necessidades, as
angústias, os desejos e os dilemas pessoais, o que gera na sociedade como um todo a
necessidade objetiva de uma postura de “reflexividade”.

RUPTURAS E PERMANÊNCIAS

Pode-se diferenciar a postura católica sobre a sexualidade em três diferentes


níveis: o doutrinal, com a orientação oficial da Igreja a partir do seu Catecismo e dos
documentos oficiais do magistério; o da discussão sobre a coerência de tal
orientação, a partir de teóricos progressistas e o da realidade, aqui no caso, a partir
da escuta desses sujeitos na direção espiritual. Na escuta espiritual, é possível
observar que os sujeitos católicos115 modernos sentem uma distância entre suas
necessidades afetivas de realização pessoal no campo da sexualidade e as
orientações da sua Igreja nesse aspecto, que limita tal realização. A análise das falas
desses sujeitos descreve a força da significação da moral sexual cristã católica em
suas vidas. Quase sempre, são observadas categorias que associam a sexualidade a
sentimentos e pensamentos ligados ao que é sujo, anormal e pecaminoso. Tal
processo gera um desequilíbrio emocional nas pessoas em relação aos próprios
desejos e instintos e em relação ao corpo.
Os preceitos morais do Catolicismo restringem de tal forma as experiências de
amor e sexualidade que não têm cabido na vida prática desses sujeitos que vivem no
contexto cultural moderno. Sem lhes fazer sentido, tais valores são questionados e
refletidos por eles, e, posteriormente, adaptados às suas realidades. E isso implica, de
fato, uma ruptura com a compreensão tradicional da sexualidade católica. Ainda que

115
As pessoas acompanhadas, na sua maioria, são de classe média, com nível médio e superior de
escolarização, inseridas num contexto social urbano, metropolitano e marcadas pela cultura atual. Geralmente
esses sujeitos vêm de uma educação religiosa católica desde a primeira infância, sendo filhos de pais católicos,
com a primeira socialização mais conservadora, marcada pelos preceitos morais da sua religião. Percebe-se
que, numa segunda socialização, esses sujeitos vão assumindo uma postura mais liberal em relação à
sexualidade em suas vidas.
323

não assumida pelo catolicismo oficial, a práxis desses sujeitos já revela uma
adequação dos ensinamentos tradicionais à cultura moderna.

Os católicos continuam a pensar em si mesmos como o Povo de Deus


e a praticar sua fé a despeito do conflito que sentem entre o que a
igreja oficialmente ensina e o que suas consciências lhes ditam,
especialmente sobre vida conjugal e como vivenciá-la em expressões
sexuais amorosas (RYAN, 1999, p. 134).

Tal processo não significa a destruição das tradições e instituições. O que


acontece é uma desconstrução e reformulação dos valores, com a produção de uma
intimidade mais rica e consciente, livre e responsável, em que a pessoa se torna mais
autêntica consigo mesma. Isso é possível através da promoção das capacidades de
intercâmbio e de flexibilidade adaptativa, que dá às pessoas maiores condições de
enfrentar a instabilidade que a realidade moderna traz em si.
Giddens (1991), Mardones (1996) e Valle (2003), nomeiam de
“destradicionalização” os valores e costumes, com uma dissolução das tradições,
inclusive religiosas, no contexto da modernidade. Isso se dá através de um processo
de reflexibilidade, ou seja, de um processo de reflexão crítica e pessoal radical, que
põe à prova os conceitos e valores de acordo com sua validade social. A modernidade
nos faz questionar as verdades absolutas e o caráter natural que a tradição religiosa
induzia a crer em suas verdades, gerando o que é nomeado por Giddens de
“incerteza produzida”. Tal falta de confiança que a pessoa moderna sente em relação
à sua existência é cercada de explicações cada vez mais técnicas.

A NOVA IDENTIDADE DOS SUJEITOS CATÓLICOS

A identidade é metamorfose e, assim, está em constante processo de


transformação evolutiva (CIAMPA,1998). Falar de identidade é compreender que
essa configura-se em um processo dialético. É perceptível uma nova identidade dos
sujeitos modernos que desencadeou, também, questionamentos sobre o “ser sujeito
católico” dentro da sociedade e da própria instituição. Tal fenômeno não deixou de
provocar uma crise de identidade religiosa católica e conflitos internos e sociais, pois,
por um lado, temos as demandas emergentes desses sujeitos católicos
contemporâneos e, por outro, o esforço da Igreja Católica pela conservação de
valores e costumes. Essa alteração das identidades dos sujeitos, reinterpretando a
estrutura social da Igreja, despertou um novo jeito de ser católico: “Ninguém muda
apenas interiormente, nem sozinho” (CIAMPA, p. 114).
Os sujeitos católicos, escutados na direção espiritual são capazes de dar novas
interpretações à realidade objetiva, o que promove a construção de novos
significados para sua sexualidade e espiritualidade, possibilitando a reelaboração de
sua identidade religiosa. São capazes de perceber a incompatibilidade entre os
valores da sua religião e os seus desejos pessoais diante da vida, buscando novos
caminhos e interpretações da sua crença. Pode-se dizer que eles “migram” dentro da
324

própria religião, como quem muda de cidade em busca de melhores condições de


vida, sem, contudo, mudar de país. “O humano é sempre ‘uma porta abrindo-se em
mais saídas’. O humano é vir-a-ser humano” (CIAMPA, 1998). Desejoso de vida, ele
pode constituir novas realidades nas quais recria sua própria identidade, num
processo evolutivo.
Não é processo linear, evidentemente; nem rápido, nem fácil para o “sujeito
atriz” (CIAMPA, 1998) que representa o papel “do sujeito católico”. É marcado por
avanços e retrocessos, certezas e dúvidas, inseguranças e seguranças, que giram em
torno do pensar-ser-agir (ter consciência). Mas é o meio pelo qual, subjetivamente,
esses sujeitos podem construir uma nova identidade religiosa-social para si mesmas e
ser capazes de atuá-la, saudável e adequadamente, em suas vidas cotidianas.

CONCLUSÃO

Falamos do hiato entre os valores religiosos sobre a sexualidade e os desejos,


as reflexões e os novos paradigmas construídos por esses sujeitos. Nesse fenômeno,
podemos acenar a busca por novos caminhos e interpretações, a fim de preservarem
sua crença religiosa. Assim, esses sujeitos modificam para si mesmos os aspectos do
Catolicismo que lhes incomodam, passando a agir segundo suas consciências, e
preservam os aspectos que lhes dão sentido existencial. Podemos falar, então, de
uma metamorfose de identidade dos sujeitos católicos contemporâneos entre
rupturas e continuidades: por um aspecto, deixam de reprimir e controlar o corpo, a
sexualidade e a própria existência, a partir de um papel moral culturalmente
estabelecido. E, por outro, atribuem novos significados da sua identidade religiosa.
Isso indica uma busca de saúde psicológica, um momento de ampliação da
consciência e uma evolução crítica humana.
A dimensão sexual é categorizada como esfera privada, cuja conduta não os
afasta da religião, mesmo que ela oriente em sentido diferente. O catolicismo é
adaptado pessoalmente. Esses sujeitos não deixam de passar por um processo de
crise interna quanto à sua identidade pessoal e religiosa, processo lento, doloroso,
cheio de incertezas e inseguranças, mas que vai dando um novo vislumbre sobre o
que significa ser católico para eles.
Assim, a religião passa de uma esfera social a uma dimensão pessoal e
individual para esses sujeitos. Parece-nos que resolvem esse conflito de forma
utilitarista: acolhem aquilo que, na religião, lhes traz sentido de vida, fortificação
espiritual, acolhimento social e comunhão, mas descartam tudo aquilo de que não
estão convencidos. Racionalizar e encontrar na própria doutrina, com as
possibilidades de outras interpretações, é a forma que encontraram para diminuir ou
anular conflitos intrapsíquicos. Identificam-se afetivamente com a religião, que, além
do convívio social, lhes proporciona fortes experiências emocionais, sentido
existencial, encontro consigo e com Deus, paz e equilíbrio para a vida cotidiana.
A permanência no Catolicismo está mais ligada à relação que esses sujeitos
mantêm com Deus do que com a afinidade com as orientações e os costumes
religiosos da prática sexual da Instituição. Além disso, há uma forte ligação entre
325

Catolicismo, família e raízes culturais, como se fosse algo genético. Assim, o que não
dá sentido não se importa, mas adapta-se. Utilizam a interpretação pessoal da Bíblia
para aplicar em sua vida prática, o que demonstra pensamento crítico e alto nível de
autonomia pessoal entre eles. Contudo, as condutas pessoais desses sujeitos
parecem não gerar alterações institucionais na Igreja, pois movimentos organizados
nesse sentido quase sempre são punidos pela mesma.

REFERÊNCIAS

CHAUÍ, Marilena. Repressão Sexual: essa nossa (des) conhecida. São Paulo:
Brasiliense,1984.
CIAMPA, Antônio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio
de Psicologia Social. São Paulo: Brasiliense, 1998.
GIDDENS, Antony. A Transformação da Intimidade: Sexualidade, Amor e Erotismo
nas sociedades Modernas. São Paulo: Editora da Universidade Estadual Paulista,
1993.
GIDDENS, Antony. As Consequências da Modernidade. São Paulo: UNESP, 1991.
MARDONES, José Maria. Adónde va la religión? Cristianismo y religión en nuestro
tiempo. Santander: Editorial Sal Terrae, 1996.
OROZCO, Yuri Del Carmen Puello. Mulheres, AIDS e Religião: uma análise da
experiência religiosa de mulheres portadoras do vírus HIV e AIDS. Dissertação de
mestrado apresentada ao Programa Ciências da Religião PUC/SP. São Paulo, 2000.
RYAN, Penelope J. Católico Praticante: a busca de um catolicismo para o terceiro
milênio. São Paulo: Loyola, 1999.
VALLE, Edênio. O presbítero no mundo globalizado. Texto de Trabalho do 10º ENP,
CNP-CNBB: Brasília, 2003.
VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa. São Paulo: Loyola, 1998.
VIDAL, Marciano. Ética da Sexualidade. São Paulo: Loyola, 2002.
326

A IGREJA CATÓLICA NO BRASIL E AS PASTORAIS DOS


SURDOS

ÉRICA NELCINA DA SILVA


Doutora em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

ALBERTO DA SILVA MOREIRA


Doutor em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

RESUMO: A religião pode articular setores marginalizados da sociedade ou estratos


sociais vítimas de preconceito, como os surdos. Nessa comunicação interessa-nos
investigar se instituições religiosas, como a Igreja Católica, contemplam a população
com deficiência auditiva em suas práticas de inclusão social. Existem políticas de
inclusão dos surdos na Igreja? As comunidades religiosas católicas dão espaço e
atribuem funções nos templos católicos para os surdos? Subsidiam o embasamento
teórico deste trabalho autores clássicos e contemporâneos nas Ciências da Religião,
documentos do Concílio do Vaticano II, em especial “Gaudium et spes” (Constituição
da Pastoral), a legislação inclusiva: Decreto n° 5.626/05 que regulamenta a Lei
10.436/02 (LIBRAS), Lei 13.146/15 (inclusão) e outras. A pesquisa na qual se baseia a
comunicação é bibliográfica, interdisciplinar, abordando três categorias que norteiam
a reflexão: religião, inclusão e Pastoral do Surdo. Ressaltamos que o estudo empírico
intitulado: Religião e Promoção Humana: um estudo das Pastorais Católicas dos
Surdos no Brasil, está cadastrado na Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, para
aprovação da pesquisa, com um questionário de perguntas mistas, na Língua
Portuguesa e na Língua Brasileira de Sinais, que sucederá com os surdos que
participam das dezesseis regionais das Pastorais dos Surdos no Brasil, juntamente
com os agentes das Pastorais dos Surdos e lideranças religiosas da Igreja Católica que
trabalham com as Pastorais dos Surdos no nosso País. Espera-se com este trabalho
uma análise teórico-prática que proporcione conhecimentos acerca do processo de
inclusão do surdo, produção de informações, dados, questionamentos e reflexões
que contribuam para subsidiar políticas públicas e religiosas de atitudes práticas de
inclusão e de solidariedade em relação a diversidade auditiva.

Palavras-chave: Igreja Católica; Pastoral do Surdo; Humanização; Fidelização.

O nosso trabalho é inspirado na inquietação da participação ideal da pessoa


com deficiência auditiva no espaço religioso. Uma vez que, de acordo com a
327

Organização Mundial de Saúde (2019) existem 500 milhões de surdos no mundo e,


até 2050, haverá pelo menos um bilhão em todo globo116.
Assim, questionamos se a Igreja Católica tenta atrair a participação dos surdos
através das suas Pastorais especializadas, seguindo suas estratégias e objetivos
institucionais. Em segundo lugar, avançamos a hipótese de que para a pessoa com
deficiência auditiva a participação (ativa) numa comunidade religiosa pode ser um
fator significativo para sua promoção e autonomia em relação aos preconceitos e
dificuldades enfrentados na sociedade.
No que concerne a buscar para nossas indagações, direcionamos nossa
atenção para analisar as práticas da Pastoral dos Surdos da Igreja Católica no Brasil, a
respeito da inclusão ou exclusão dos surdos. Para a elaboração deste trabalho,
abordamos articulistas clássicos e contemporâneos nas Ciências da Religião,
documentos do Concílio do Vaticano II, em especial “Gaudium et spes” (Constituição
da Pastoral), a legislação inclusiva: Decreto n° 5.626/05 que regulamenta a Lei
10.436/02 (LIBRAS), Lei 13.146/15 (inclusão) e outras.
No que se refere a compreensão da Igreja Católica no Brasil e as Pastorais dos
Surdos, partiremos das categorias: religião, inclusão, diversidade auditiva, legislação
inclusiva, Igreja Católica e a Pastoral do Surdo, eixos que estão interligadas na análise
do objeto.
Inicialmente, definiremos religião conforme o sociólogo francês Émile
Durkheim (1989) assevera que é “um todo formado de partes: um sistema mais ou
menos complexo de mitos, dogmas, ritos, cerimônias”. Define que igreja “é uma
comunidade moral formada por todos os crentes da mesma fé, fiéis e sacerdotes”. Na
junção do todo que compõem a religião segundo Durkheim, assim se configura:

uma religião é um sistema solidário de crenças seguintes e de


práticas relativas as coisas sagradas, ou seja, separadas, proibidas;
crenças e práticas que unem na mesma comunidade moral;
chamada igreja, todos os que a ela aderem” (DURKHEIM, 1989, p
.79)

E esse “um todo formado em partes” trataremos os elementos que compõem


o sistema simbólico da religião: o sagrado, o carismático, a experiência religiosa
(hierofania), mitos, símbolos, ritos, a teologia e doutrina.
Já o conceito de religião similar com o Sagrado pregado no rito pela Igreja
Católica é A essência da religião, segundo estudiosos das ciências da religião, é o de
Croatto (2001, p. 72) pondera que o termo religião provém do latim (religio) e sua
provável etimologia dá a ideia de “atadura” (religare) do ser humano com Deus.
A religião tem a função de ligar o indivíduo ao Sagrado (inclusão), ela
influencia na vida das pessoas e na sociedade, determinando conduta,
procedimentos e funções sociais, disponibiliza símbolos, mitos, ritos, imortalizando o

116
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-10/brasil-tem-107-milhoes-de-
deficientes-auditivos-diz-estudo.
328

imaginário religioso, a contingência de inclusão social a começar pela inclusão


religiosa.
Assim, as religiões, no caso ideal, deveriam disponibiliza um conjunto de
elementos desta ligação: um credo, o culto à Divindade e vida moral correspondente
às verdades religiosas professadas. E para que aconteça essa experiência religiosa
todos os membros da sociedade precisam da equiparação de oportunidades. “[...] o
processo através do qual os sistemas gerais da sociedade – tais como ambientes
físicos e culturais [...] – são feitos acessíveis para todos. ” (ONU, 1983, p. 3)
Equiparar oportunidades para todos é um processo de inclusão social. Strobel
e Karin Lilian (2008, p. 95), a partir da leitura de Gárdia Vargas, argumentam que “A
inclusão [...] é ser respeitado nas suas diferenças e não ter de submeter a uma
cultura, a uma forma de aprender, a uma língua que não é a sua”.
Sobre a inclusão social, assevera Sassaki (1997, p. 39): “processo pelo qual a
sociedade se adapta para poder incluir, em seus sistemas sociais gerais, pessoas com
necessidades especiais e, simultaneamente, estas se preparam para assumir seus
papéis na sociedade”.
Espera-se, assim, que os indivíduos com deficiência tenham condições de
desenvolver sua autonomia “condição de domínio no ambiente físico e social,
preservando ao máximo a privacidade e a dignidade da pessoa que a exerce”.
(SASSAKI, 1997, p. 35). E, por conseguinte, ao desenvolverem as habilidades
anteriores assumam o controle de sua vida, sejam pessoas empoderada e que usem o
seu poder pessoal para fazer escolhas e tomar decisões. (SASSAKI, 1997, p. 37).

A DIVERSIDADE AUDITIVA

No que dicendi as causas da surdez podem ser tanto por patologias adquiridas
quanto de causas congênitas. Infecções contraídas durante a gestação, ingestão de
remédios e drogas podem provocar má formações no sistema auditivo do bebê.
Acidentes com traumatismos cranianos e lesões de trabalho (ruído intenso) podem
levar a desenvolverem a surdez.
Atualmente com o avanço da medicina é possível voltar a ouvir em caso de
surdez profunda. Os principais tratamentos para melhorar a capacidade auditiva são
os aparelhos auditivos (os aparelhos auditivos são colocados atrás da orelha onde fica
um microfone que amplia o som para uma pequena coluna que é colocada dentro do
ouvido, permitindo que o paciente consiga ouvir com um pouco mais de nitidez) e
implante coclear. (O IC é um dispositivo eletrônico desenhado para ser inserido
cirurgicamente numa parte do ouvido interno conhecida como cóclea, levando
estímulos elétricos codificados diretamente ao nervo auditivo) a fonoaudióloga Rosa
Maria Rodriguez Antonio, assim explica:

É possível voltar a ouvir em casos de surdez profunda, porém, as


chances de conseguir escutar de forma clara e sem dificuldade são
baixas, sendo que os casos de maior sucesso de recuperação de parte
329

da audição são os de surdez leve ou moderada (ANTONIO, 2018, p.


1).

Um ponto negativo do aparelho auditivo é que amplia os ruídos externos,


podendo dificultar a audição em lugares com mais barulhos e que o implante nem
sempre melhora totalmente a audição, que a cirurgia associada a língua gestual
(LIBRAS) e leitura dos lábios (também chamada de Leitura Orofacial consiste na
observação do posicionamento dos lábios do falante para que, junto com os sons
ouvidos (ou não), a pessoa com deficiência auditiva consiga ter uma maior facilidade
para compreender a mensagem falada pelo outro.)proporciona uma melhor
compreensão da linguagem.
No que diz respeito os surdos começarem a ter acesso à educação no Brasil,
ocorreu durante o Império, no governo de Dom Pedro II, que criou a primeira escola
de educação de meninos surdos, em 26 de setembro de 1857, na antiga capital do
País, o Rio de Janeiro. Hoje, no lugar da escola funciona o Instituto Nacional de
Educação de Surdos (INES). Por isso, a data foi escolhida como Dia do Surdo. Além de
receber estudantes, a instituição também forma professores desde 1951.
No entanto, no dia 24 de abril de 2002, foi promulgada a Lei n° 10.436, que a
Língua Brasileira de Sinais (Libras) foi reconhecida como meio legal de comunicação e
expressão no País. Dispõem também sobre a formação de professores e instrutores e
TILS/LP; do uso e da difusão da Libras e da Língua Portuguesa para o acesso das
pessoas surdas à educação; acesso das pessoas surdas no espaço escolar; direito à
saúde, à educação e papel do poder público (municipal, estadual, federal). O uso e
difusão da LIBRAS do âmbito escolar, houve uma evolução atingindo outros espaços
dentre eles as Igrejas.
Conforme o Decreto nº. 5.626 de 22 de dezembro de 2005, que regulamenta a
Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Parágrafo único. Considera-se deficiência
auditiva “a perda bilateral, parcial ou total, de quarenta e um decibéis (dB) ou mais,
aferida por audiograma nas frequências de 500Hz, 1.000Hz, 2.000Hz e 3.000Hz”.
No mesmo decreto acima em seu artigo segundo, considera-se pessoa surda
aquela que, “por perda auditiva, compreende e interage com o mundo por meio de
experiências visuais, manifestando sua cultura principalmente pelo uso da Língua
Brasileira de Sinais – LIBRAS”.
É importante ressaltar que existem alguns mitos sobre a LIBRAS. Como por
exemplo que a Língua de Sinais – LS, é universal? Não é um a língua universal, há
muitas línguas de sinais diferentes, como por exemplo: no Brasil, LlBRAS – Língua de
Sinais Brasileira, LSV – Língua de Sinais Venezuelana, ASL – Língua de Sinais
Americana, a LSF – Língua de Sinais Francesa, entre outras.
LIBRAS é mímica e não possui estrutura própria? De acordo com a Lei nº
10.436/2002, em seu parágrafo único a LS não se realiza apenas com mímicas e
gestos soltos, utilizados pelos surdos para facilitar sua comunicação. A LS é a língua
natural dos surdos e apresenta estrutura e regras gramaticais próprias. Trata-se de
uma versão sinalizada das línguas orais? A LS é um sistema linguístico legítimo que
independe das línguas orais e preenche e eficazmente as necessidades de
330

comunicação do ser humano, por ser dotada de complexidade de e expressividade


tanto quanto as línguas orais. Por meio dela, o indivíduo surdo é capaz de expressar
qualquer assunto de seu interesse ou conhecimento.
Para que ocorra a comunicação entre a comunidade ouvinte e o surdo, um
profissional tem a função de ser um elo, no processo da inclusão. É o tradutor e
intérprete de LIBRAS. Sua profissão foi regulamentada pela Lei nº 12.319, de 1º de
setembro de 2010. Em seu Artigo 2º conceitua que: “O tradutor e intérprete de terá
competência para realizar interpretação das 2 (duas) línguas de maneira simultânea
ou consecutiva e proficiência em tradução e interpretação da LIBRAS e da língua
portuguesa”.
A inclusão na Igreja Católica do leigo parte das altercações do Concilio do
Vaticano II, onde a Igreja se abriu para a atuação do mesmo dentro das atividades
religiosas, o que culmina com a criação das pastorais (Gaudium et spes).

A PASTORAL DOS SURDOS NO BRASIL

No que se refere a Pastoral dos Surdos no Brasil é um movimento de


evangelização dos surdos. Consta no primeiro artigo do Estatuto da Pastoral do Brasil,
do dia 04 de agosto de 2015, sua denominação, natureza e objetivos: “ART. 1º. – A
Pastoral do Surdo do Brasil, doravante neste documento denominada PS, é um
organismo de dimensões Bíblico-Catequética e Sócio Transformadora da Conferência
Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB”. Conta com o trabalho voluntário de diversas
pessoas (surdas e ouvintes).
O princípio e fundamentação da Pastoral do Surdo Nacional (EFFFATA) é a
narrativa do Novo Testamento, na perícope do evangelista Marcos 7, 32-35. Jesus
cura um surdo-gago, fora da Galileia.
A história da Pastoral dos Surdos no Brasil começou oficialmente com a vinda
do Pe. Eugênio Oates, religioso americano as Congregações do Santíssimo Redentor
(CSSR) ou Redentoristas ao Brasil. Em parceria com Monsenhor Vicente Penido
Burnier, primeiro sacerdote surdo do Brasil, iniciaram no ano de 1950, trabalhos
voltados ao serviço dos surdos espalhados pelo Brasil. Também um padre gaúcho de
Porto Alegre, conhecido – Padre Volmir Guiso contribuiu com os trabalhos e
atividades de evangelização no Brasil.
A Pastoral do Surdo está presente na maioria das Regionais do país 117,
conforme nota de rodapé abaixo.

Distribuição das Regionais nos moldes da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), pelas seguintes
regionais: Norte 1 – estados do Amazonas e de Roraima –; Norte 2 – estados do Amapá e do Pará –; Norte 3 –
estados do Tocantins e da região norte do estado de Goiás –; Nordeste 1 – estado do Ceará –; Nordeste 2 –
estados de Alagoas, da Paraíba, de Pernambuco e do Rio Grande do Norte –; Nordeste 3 – estados da Bahia e
de Sergipe –; Nordeste 4 – estado do Piauí; Nordeste 5 – estado do Maranhão –; Leste 1 – estado do Rio de
Janeiro –; Leste 2 – estados do Espírito Santo e Minas Gerais –; Centro-Oeste –, estados de Goiás, do Tocantins
e Distrito Federal –; Oeste 1 – estado do Mato Grosso do Sul –; Oeste 2 – estado do Mato Grosso –; Sul 1 –
estado de São Paulo –; Sul 2 – estado do Paraná; Sul 3 – estado do Rio Grande do Sul –; Sul 4 – estado de Santa
Catarina.
331

Nesse sentido um estudo aprofundado sobre as formas de participação ou


exclusão dos surdos nas dezesseis regionais das Pastorais dos Surdos na Igreja
Católica no Brasil, buscado compreender como o surdo é visto pela religião e de
modo simultâneo como o surdo vê a religião, que são objetivos do nosso trabalho,
contribua para uma análise teórico-prática que proporcione conhecimentos acerca
do processo da inclusão do surdo, produção de informações, dados,
questionamentos e reflexões que colaborarão para o avanço do conhecimento
cientifico, visando a sensibilizar a população, subsidiar políticas públicas e religiosas
de inclusão das pessoas com deficiência, em especial, a deficiência auditiva.
Portanto a inclusão começa no interior das pessoas e influência atitudes
exteriores: é pensar e agir para o bem do outro, é oferecer condições concretas para
o empoderamento e autonomia da pessoa com ou sem deficiência auditiva, física,
visual e mental temporal, intermitente ou permanente.

REFERÊNCIAS

ANTONIO, Rosa Maria Rodriguez. Saiba se é possível voltar a ouvir em caso de


surdez profunda. Tua Saúde, São Paulo, 1 jun. 2018. Disponível em:
https://www.tuasaude.com/surdez-profunda/ . Acesso em: 30 set. 2018. 11:34.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. 11ª. impr. São Paulo: Paulus, 2002.
BRASIL, Lei nº 10.436, de 24 de abril de 2002. Brasília, Presidência da República, Casa
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BRASIL, Decreto nº. 5.626 de 22 de dezembro de 2005. Brasília, Presidência da
República, Casa Civil, 2005.
BRASIL, Lei nº 12.319, de 1º de setembro de 2010. Brasília, Presidência da República,
Casa Civil, 2010.
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fenomenologia da religião. São Paulo: Paulinas, 2001.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares de Vida Religiosa: o sistema totêmico na
Austrália. Tradução Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Ed. Paulinas 1989 pp.29-49;53-
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STROBEL, Karin. As imagens do outro sobre a cultura surda. Florianópolis: Ed. da
UFSC, 2008.
VIER, Frei Frederico. Compêndio do Vaticano II: constituições, decretos, declarações.
29. ed. Petrópolis: Vozes, 2000.
332

O ‘CRER’ NA CONTEMPORANEIDADE: O CATOLICISMO À LUZ


DA CRISE DAS CREDIBILIDADES

RENAN GOMES DE OLIVEIRA


Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

RESUMO: O investimento dos indivíduos em proposições religiosas ganha


importantes recessões no tempo presente, na medida em que a pluralização das
crenças é acompanhada por uma falta de credibilidade das mesmas. Entendendo que
a religião se caracteriza como um dos componentes mais expressivos e constituintes
da civilização do Ocidente no decorrer dos séculos, o período contemporâneo se
apresenta envolto por uma escassez do tempo e de sua percepção, além de uma
diversidade de objetos para se crer. Nesta perspectiva, a presente comunicação tem
por objetivo provocar um debate sobre o sentido do ‘crer’ na religiosidade
contemporânea, especificamente no catolicismo. Para tanto, partimos de uma
abordagem histórica em diálogo com a filosofia, buscando sublinhar uma crise das
credibilidades no interior da religião cristã de cunho católico. O texto está dividido
em dois momentos. Em primeiro lugar, ressalta-se o sentido do crer na relação
religião-mundo atualmente, onde as religiosidades são permeadas pelos aspectos da
globalização e pelos vínculos históricos entre as instituições políticas e religiosas. Em
seguida, evidencia-se uma crise das credibilidades no catolicismo, onde vemos uma
contração no interesse pelos conteúdos da tradição cristã e o surgimento de novas
manifestações de fé. Com isso, percebe-se que os influxos da globalização,
especialmente por intermédio da mídia, atingem de maneira significativa a
religiosidade católica – mas não somente ela. Da mesma forma, as relações de poder
entre Estado e Igreja Católica – no sentido amplo –, apontam para um desgaste do
domínio eclesiástico. Este cenário favorece um ressurgimento do religioso através de
novas formas de crer e do reencontro com a fé a partir da interpretação individual e
coletiva. O papel da igreja não se dilui, mas implica na sua autocrítica e no repensar
sobre o modo como a sociedade secular e os grupos religiosos se comportam na
contemporaneidade. Mais do que isso, implica na criação de estratégias no sentido
do “fazer crer”, enfim, na produção de credibilidades. Em conclusão, o pluralismo de
crenças e a crise das credibilidades se apresentam como desafios ao catolicismo, que
precisa enfrentar os complexos sintomas da globalização e o fato de que as
credibilidades são cambiantes e plurais.

Palavras-chave: Catolicismo; Crer; Contemporaneidade; Credibilidades.


333

INTRODUÇÃO

A religião se apresenta como um dos traços mais expressivos e constituintes


do Ocidente e fora dele. Em particular, o Cristianismo configura, de maneira ampla, a
relação religião-mundo – basta pensar as influências cristãs em todos os aspectos da
vida no decorrer dos séculos. Seria generalizante, no entanto, reivindica-lo como
matriz de nossa civilização, pois a relação da crença com o restante da sociedade
pressupõe uma complexidade maior, havendo, inclusive, a necessidade de uma
problematização sobre as conjecturas do universalismo cristão. Da mesma forma, o
mundo globalizado de hoje reforça o sentido de pluralização no campo religioso, na
medida em que apresenta excessivos objetos para crer e uma insuficiente
credibilidade (CERTEAU, 1994).
O período contemporâneo, envolto por uma escassez de tempo, parece
esgotar o sentido do crer, seja no campo político, seja no campo religioso – que não
deixam de se entrelaçar. Neste sentido, esta comunicação busca promover uma
discussão em torno do sentido da crença na contemporaneidade, partindo do amplo
– crer como ato de enunciação – para o específico – a crença religiosa católica. Para
isso, nos utilizamos, principalmente, dos aportes teóricos do historiador francês
Michel de Certeau118 e do filósofo italiano Gianni Vattimo119.

O SENTIDO DO CRER NA RELAÇÃO RELIGIÃO-MUNDO

A humanidade experimenta, constantemente, diversas transformações no que


diz respeito às formas de vivenciar o tempo – cada vez mais acelerado. A
modernidade líquida, trazida por Zygmunt Bauman, ressalta uma “experiência
aterrorizante de uma população heterônoma, infeliz e vulnerável, confrontada e
possivelmente sobrepujada por forças que não controla nem entende totalmente.
(BAUMAN, 2007, p. 13). Num processo que se iniciou com a Revolução Industrial, as
relações econômicas foram justapostas às relações sociais e humanas, abrindo
caminho para uma fragilidade entre indivíduos e instituições (BAUMAN, 2007).
Neste sentido, a religião se apresenta, mais do que nunca, como um refúgio ao
mundo exterior. A religiosidade que revela a particularidade humana na busca por
uma potência maior, através da dedicação, do sentimento e da crença cotidiana,
anseia por respostas e conforto espiritual (MANOEL, 2004). Todavia, esse desejo, essa
capacidade de crer, parece encontrar estagnação na contemporaneidade. Como
destaca Michel de Certeau, “a crença se poluiu, como o ar e a água [...] Essa força
motriz, sempre resistente mas tratável, começa a faltar [...] Percebe-se ao mesmo
tempo não se saber o que ela é” (CERTEAU, 1994, p. 279). Para o historiador, temos
um estranho paradoxo:

118
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ, 1994.
119
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. Rio de Janeiro: Record, 2004; VATTIMO, Gianni. Igrejas sem
religião, religião sem igrejas? Interações – Cultura e Comunidade, v. 5, n. 7, p. 165-172, jan./jun. 2010.
334
Tantas polêmicas e reflexões sobre os conteúdos ideológicos e os
enquadramentos institucionais para lhe fornecer não foram [...]
acompanhadas de um elucidação acerca da natureza do ato de crer.
Hoje, não basta mais manipular, transportar e refinar a crença. É
preciso analisar-lhe a composição, pois há a pretensão da fabricá-la
artificialmente [...] Existem agora demasiados objetos para crer e
muita escassa credibilidade (CERTEAU, 1994, p. 279).

A globalização tem papel fundamental no “estatuto” das crenças, pois nunca


tivemos um história que pudesse ser apresentada e sublinhada com tanta agilidade.
Tudo se entrelaça e tudo é entrelaçado, a ponto de não sermos mais crédulos ou
engajados às representações. Ao destacar o papel da mídia, Certeau diz que os
“relatos do-que-está-acontecendo constituem a nossa ortodoxia” e os “debates de
números são as nossas guerras teológicas” (CERTEAU, 1994, p. 287). Assim, a
religiosidade se enfraquece e fica à mercê das instituições que, em declínio, tentam
disseminar crenças fincadas na tradição (CERTEAU, 1994).
Neste sentido, a íntima e complexa relação entre as organizações políticas e as
instituições religiosas, especialmente a Igreja Católica, demonstra tensões históricas
que influem, sem sombra de dúvida, ao estado em que nos encontramos. Ressalta-se
que os influxos de poder nesta relação, desde o período das grandes monarquias,
apontaram para o desgaste do poder eclesiástico – especialmente a partir do
Iluminismo –, terminando por convergir as crenças ao campo político (CERTEAU,
1994). Para Certeau:

Esse vaivém complexo, que fez passar do político para o religioso


cristão, e deste religioso para um novo político, teve como efeitos
uma individualização das crenças (os quadros de referência comuns
se fragmentando em “opiniões” sociais ou em “convicções”
singulares) e a sua mobilidade numa rede sempre mais diversificada
de objetos possíveis. A ideia de democracia correspondia à vontade
de gerenciar essa multiplicação de convicções que tomaram o lugar
da fé que fundara uma ordem (CERTEAU, 1994, p. 283).

Com a ruptura da credibilidade religiosa do político, o cristianismo “possibilitou o


refluxo das crenças para autoridades políticas agora privadas (ou libertadas?) dessas
autoridades espirituais” (CERTEAU, 1994, p. 283). Não obstante, essa deterioração
sublinhou uma característica importante na modernidade, tal como o paradigma de
uma “religião civil”, abrindo portas para o desenvolvimento da secularização
(CERTEAU, 1994). Partindo para a segunda parte desta comunicação, o catolicismo
contemporâneo se apresenta como importante paradigma à uma possível crise de
credibilidade em seus dogmas e regimentos. Neste sentido, evidenciamos os
subsídios teóricos de Gianni Vattimo para uma reflexão.
335

UMA CRISE DE CREDIBILIDADE NO CATOLICISMO

Gianni Vattimo, atendendo ao universo cristão ocidental, entende que o


interesse religioso não apresenta um enfraquecimento de sentido – pelo contrário –,
mas uma substancial perda de “credibilidade dos dogmas e, assim, por consequência,
também nas disciplinas eclesiásticas” (VATTIMO, 2010, p. 165). Para o filósofo 120, o
interesse é renovado por uma visibilidade midiática – tal como ressalta Certeau –, na
medida em que os fenômenos da religião transformaram-se objetos de comunicação
de massa (VATTIMO, 2010). Como ressalta Vattimo:

Ora, se considero o ressurgimento “religioso”, como se apresenta no


Ocidente, noto, de imediato, um paradoxo: enquanto cresce –
admito, também por influência da media –, a presença dos temas
religiosos na discussão política, a teologia, como tal, parece sempre
mais pobre de obras e novidades relevantes; por outro lado – mas,
creio em conexão com esse fato –, diminui o interesse pelos dogmas
e pelos conteúdos tradicionalmente centrais das doutrinas das Igrejas
(VATTIMO, 2010, p. 167).

O filósofo relaciona pontos importantes à crise de credibilidade dos dogmas,


como o debate sobre a religião nos espaços públicos, a difusão do clericalismo dos
não-crentes e sua adesão política, e os crentes que praticam uma religião “pessoal”.
No primeiro caso, ressalta-se que a questão da religião, isto é, da “exigência de uma
referência transcendente para a existência individual e social” (VATTIMO, 2010, p.
168), não deve ser semelhante à demanda de poder das Igrejas à sociedade. Já o
segundo e terceiro pontos são cruciais, pois salientam um curso maior ao que
propõe:

Há um clericalismo sem religião e uma religião sem Igreja, que, aliás,


vê sempre mais na Igreja-instituição um fator de escândalo que
ameaça produzir um afastamento da própria fé. Dois fenômenos
sobre os quais, repito, vale a pena refletir, mesmo porque
caracterizam, para além da história desta ou daquela confissão
religiosa, o processo geral de secularização em que estamos imersos
(VATTIMO, 2010, p. 169).

Interessa-nos ressaltar que a crise de credibilidade atinge a tradição cristã


católica, também como consequência do grande processo de globalização (VATTIMO,
2010). Mais do que isso, mesmo no âmbito de uma tradição específica – como a que
Vattimo destaca –, a crise que buscamos sublinhar se apresenta em aspectos chaves,
intensificados pela pluralidade de confissões que fazem parte de uma mesma história
de secularização.

120
Importante ressaltar que Vattimo compreende o Cristianismo como religião estrutural para a cultura
ocidental e, neste sentido, falar em Ocidente é, também, falar em Cristianismo (VATTIMO, 2004).
336

O papel da Igreja, assim, implica pensar no modo como a sociedade se


organiza na contemporaneidade. Segundo Certeau, nossa sociedade “se tornou uma
sociedade recitada, e isto num sentido triplo: é definida ao mesmo tempo por relatos
(as fábulas de nossas publicidades e de nossas informações), por suas citações e por
sua interminável recitação” (CERTEAU, 1994, p. 288)121. Esses relatos possuem a
capacidade de “mudar o ver num crer” e produzir o real com aparências. O
historiador francês evidencia essa dupla inversão:

De um lado, a modernidade, outrora nascida de uma vontade


observadora que lutava contra a credulidade e se fundava num
contrato entre a vista e o real, transforma agora essa relação e deixa
ver precisamente o que se deve crer [...] Assim funcionam os mass
media, a publicidade ou a representação política (CERTEAU, 1994, p.
288).

Assim, no campo de desenvolvimento das crenças, a “invisibilidade do real,


postulado antigo, cedeu lugar à sua visibilidade” e o “simulacro contemporâneo é,
em suma, a localização derradeira do crer no ver, é o visto identificado como aquilo
que se deve crer” (CERTEAU, 1994, p. 288-289). Neste sentido, pensando no
investimento em estratégias da Igreja, se faz necessário não mais produzir
enunciados superficiais, mas a elaboração de mecanismos para que os sujeitos
invistam em determinados conteúdos. É claro que a Igreja Católica e seus agentes se
converteram no decorrer do processo de adaptação e reconfiguração da humanidade
– de fato, são, também, agentes da própria secularização. Por exemplo, as estratégias
de flexibilização mais comuns utilizadas pela Igreja na busca por unanimidade
religiosa na idade moderna, estão fincadas na adaptação e na disciplina (FANTAPPIÈ,
2012). Como prossegue Carlo Fantappiè:

Enquanto a primeira se baseia nos princípios da temporalização da


atividade da Igreja no curso histórico e na adaptação da missão às
características dos diversos povos, que autoriza positivamente desde
que não contraste com o direito natural e o divino positivo, a outra
conta com um complexo de ferramentas de controle externo e
interno para tentar transformar comportamentos, práticas,
costumes, instituições e normas que contrastam com a fé católica
(FANTAPPIÈ, 2012, p. 335, tradução nossa).

De toda forma, as estratégias da Igreja Católica são contínuas. Mais do que


nunca, nos parece fundamental a criação de técnicas e táticas do “fazer crer”,
envolvendo projetos teológicos e políticos, materializados na qualidade narrativa do

121
“Nesta nova cena, campo indefinidamente extensível das investigações óticas e de uma pulsão escópica,
subsiste ainda a estranha coalização entre o crer e a questão do real. Mas agora ela se joga no elemento do
visto, do observado ou do mostrado” (CERTEAU, 1994, p. 289).
337

tempo presente. Enfim, é necessária uma produção de credibilidades para além do


âmbito disciplinar e dogmático da instituição.
Como ressalta Vattimo, a concepção sobre a fé na pós-modernidade,
“obviamente, não tem nada a ver com a aceitação de dogmas rigidamente definidos
ou de disciplinas impostas por uma autoridade” (VATTIMO, 2004, p. 16). Tem a ver
com o reencontrar a fé cristã através da própria interpretação. O papel da igreja não
se dissolve, ele continua fundamental não apenas como veículo de revelação, mas,
sobretudo, “como comunidade de crentes que, na caridade, ouvem e interpretam
livremente [...] o sentido da mensagem cristã” (VATTIMO, 2004, p. 16). Dadas as
conjunturas estruturais da contemporaneidade, o pluralismo de crenças se apresenta
como desafio ao catolicismo, que precisa enfrentar os complexos sintomas da
globalização. As credibilidades, não obstantes, são cambiantes e plurais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Vimos que o sentido do crer, na verdade, se torna um problema para o tempo


contemporâneo e à tradição cristã de cunho católico. As credibilidades perpassam o
campo político e atingem os indivíduos, enquanto modalidades de afirmação. Da
mesma forma, a globalização e, em particular, o seguimento midiático, possui papel
fundamental para a constituição de uma crise de credibilidade, na medida em que
incide sobre o sentido do crer e seu engajamento. Os diversos objetos para crer são
compostos por uma escassez de credibilidade. No âmbito do catolicismo, o
ressurgimento do religioso, amparado pela mídia, é contraposto à uma contração no
interesse pelos dogmas e conteúdos da tradição cristã ocidental. Salientam-se novas
formas de crer e tem-se a necessidade da produção de credibilidades.

REFERÊNCIAS

BAUMAN, Zygmunt. Tempos líquidos. Tradução Carlos Alberto Medeiros. Rio de


Janeiro: Jorge Zahar, 2007.
CASANOVA, José. A globalização do Catolicismo e o Retorno a uma Igreja
Universal. REVER – Revista de Estudos de Religião, p. 17-45, dezembro, 2010.
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ, 1994.
FANTAPPIÈ, CARLO - La Santa Sede e il Mondo in prospettiva storico-giuridico.
Rechtsgeschichte Legal History, n. 20, p. 332-338, 2012.
MANOEL, Ivan A. História, Religião e Religiosidade. Cultura Teológica, v. 15, n. 59,
p. 105-128, 2007.
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. Rio de Janeiro: Record, 2004;
VATTIMO, Gianni. Igrejas sem religião, religião sem igrejas? Interações – Cultura e
Comunidade, v. 5, n. 7, p. 165-172, jan./jun. 2010.
338

BREVES RELATOS: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS


ALIMENTARES NA FOLIA DO DIVINO ESPÍRITO SANTO DE
PIRENÓPOLIS/GO122

JOÃO GUILHERME DA TRINDADE CURADO


Doutor em Geografia
Secretaria de Estado da Educação de Goiás
[email protected]

MARIA IDELMA VIEIRA D’ABADIA


Doutora em Geografia
Universidade Estadual de Goiás
[email protected]

ALEXANDRE FRANCISCO DE OLIVEIRA


Mestrando em Territórios e Expressões Culturais no Cerrado
Universidade Estadual de Goiás
[email protected]

RESUMO: A Festa do Divino Espírito Santo em Pirenópolis/Goiás ocorre a mais de


dois séculos e devido a sua representatividade como prática do Catolicismo popular
no Brasil foi reconhecida como Patrimônio Cultural Nacional em 2010, por aglutinar
diversas manifestações, da qual destacaremos a Folia do Divino Espírito Santo que é
contemporânea ao início da Festa. Abordaremos, mais especificamente, algumas
permanências e rupturas ligadas aos aspectos alimentares desta festividade. O
objetivo a ser alcançado é buscar compreender alguns dos fundamentos da
alimentação festiva com destaque para as relações com as práticas da Dádiva na
perspectiva analítica de Mauss (2003) e ainda visando compreender as vivências
festivas dos participantes e as sociabilidades que se constituem a partir dos aspectos
alimentares. As investigações aqui presentes derivam do Projeto de Pesquisa: “Os
gostos do Divino: a comensalidade nas festas do Divino Espírito Santo em Goiás” e de
pesquisas bibliográficas. Expomos observações realizadas durante trabalhos de
campo que abarcam os diferentes momentos de produção e compartilhamento de
alimentos, produzidos de maneira tradicional e também as rupturas caracterizadas
pelo comércio que se faz presente nas folias, e ainda as “cozinhas de acampamentos”
que trazem novas dinâmicas alimentares que compreendem não só o que tange ao
ato de comer, mas acabando por interferir na sociabilidade e ritualidades ao romper
com rituais de comensalidade da Folia. Alguns resultados da pesquisa se materializam

122
Publicação vinculada ao Projeto de Pesquisa “Os Gostos do Divino: a comensalidade nas festas do Divino
Espirito Santo em Goiás” TECCER/PrP-UEG, 2020-2021.
339

na diversidade alimentar presente hoje nas Folias, algo relativamente novo em


detrimento da histórica “comida de folia”, passando pela origem dos alimentos, antes
fruto da produção local da fazenda e que hoje são provenientes de supermercados, e
ainda a força produtiva outrora composta por devotos do Divino e que passou a
contar com cozinheiros profissionais que recebem para produzir a comida festiva.

Palavras-chave: Alimentos festivos; Folia do Divino Espírito Santo; Pirenópolis.

A Festa do Divino Espírito Santo é uma devoção europeia que translada para o
Brasil Colônia, se espalhou constituindo novas formas das devoções populares, se
difundindo pelas terras brasileiras em momentos distintos de sua ocupação.
Em Goiás as primeiras descrições ou menções sobre a Festa do Divino recaem
em período posterior ao momento destinado à mineração, atividade responsável
pela ocupação oficial e ocorrida no início do século XVIII. Os registros apontam para o
princípio do século XIX, quando a população era predominantemente rural e vivia das
atividades agropecuárias, em sua maioria destinada apenas à subsistência, cujas
colheitas ocorriam por ocasião de Pentecostes, quiçá daí as homenagens ao Divino
Espírito Santo terem sido significativas no território goiano.
Magalhães (2014, p. 85) ao estudar alimentos e saúde em Goiás também no
século XIX, nos lembra que não havia uma dieta específica para doentes
hospitalizados, sendo que as informações disponíveis indicam que a “composição
alimentar dos enfermos, que quase nada diferia da comida dos demais segmentos
daquela sociedade. Nutriam-se de carne bovina, arroz, feijão, farinha de milho e de
mandioca, refogados com toucinho e temperados com sal, alho e vinagre”.
Ingredientes bastante comuns e recorrentes nas mesas dos pousos de folia como
veremos a seguir.
Antes, porém, é necessário destacar algumas características da Folia aqui em
estudo que possui três momentos rituais ligados à alimentação: a janta, logo após a
chegada dos foliões à fazenda e que precede o pedido de esmolas — caracterizador
do bando precatório, seguindo uma das definições de Câmara Cascudo (2012) para
tal prática no Brasil, diferenciando-a de Portugal. Posteriormente a alvorada, que
começa com música para acordar os foliões, sendo que logo após ocorre o café da
manhã e as orações matinais; e a última alimentação do grupo na fazenda do Pouso
de Folia é o almoço, finalizado com os agradecimentos de mesa e partida dos foliões
em direção ao próximo pouso, em que os rituais são repetidos, inclusive os
mencionados que são voltados para a alimentação na Folia do Divino Espírito Santo,
nosso foco de investigação no presente texto.
O interesse pauta-se não apenas na descrição dos rituais e dos alimentos na
Folia, mas, principalmente, percepções por intermédio da alimentação “sobretudo
quanto às diferentes formas de permanências e rupturas que tem marcado suas
configurações religiosas” (ANDRADE; PESSOA, 2019, p. 5), uma vez que a proposição
da discussão tem por premissa as alterações, inclusive rituais que vem ocorrendo na
Folia do Divino Espírito Santo, em Pirenópolis/Goiás, em especial no último meio
século. Entendemos que tanto as rupturas como as permanências permitem perceber
340

vestígios de alterações que ocorrem ao longo do tempo, mesmo que lentamente,


como demonstraremos ao abordar a alimentação na Folia.

FOLIA: FESTA DO CATOLICISMO

Concordamos que “há uma forte presença do catolicismo na cultura da nação,


na vida cotidiana do fiel e nas inter-relações sociais estabelecidas no interior da
sociedade brasileira” (SOFIATI; MOREIRA, 2018, p. 277), que são capazes de se
manterem, ainda, de acordo com os referidos autores, “realizando bricolagens,
hibridações, adaptações, concessões e negociações de toda ordem com as culturas e
religiões africanas e indígenas” (p. 279), o que solidifica o catolicismo popular, onde
as várias comunidades se sentem representadas em uma manifestação, situação que
pode ser percebida na Folia, em que os participantes, foliões, se irmanam, pondo fim
a barreiras diversas que os cercam e até mesmo os hierarquiza ao longo da vida.
Igualmente assevera Wachholz (2011, p. 783), que “na história religiosa do
Brasil evidencia-se que as identidades religiosas foram e ainda são (re)construídas na
tensão dinâmica de contrastes e estigmatizações”, sendo que as festas do catolicismo
popular podem ser interpretadas como pausas aos contrastes, uma vez que patrão e
o funcionário tornam-se foliões, assim como o rico e o pobre, o branco e o negro, o
eleito e o eleitor, dente outras dicotomias da vida social e econômica pirenopolina
que perdem o sentido diante da devoção ao Divino Espírito Santo.
Refletir sobre a Folia do Divino em Pirenópolis no último meio século traz à
tona situações que merecem destaque, como a alteração no quadro de ocupação
territorial, antes predominantemente rural e agora com inversão. Em 1970, os
habitantes eram 32.065, sendo rural 84,85%, e pelo Censo de 2010, o mais recente,
dos 23.006 habitantes, apenas 32,35%, segundo dados do IBGE, residiam na área
rural em Pirenópolis, demonstrando significativa ruptura do habitar na área rural.
A transferência de moradias para a cidade resultou, em pelo menos, duas
transformações significativas na Folia do Divino Espírito Santo local: a) a participação
continuou, mas nem todos que eram foliões puderam continuar a ser devido a
jornada de trabalho, passando a ser apenas participante e não integrante ou folião
como são conhecidos aqueles inseridos em todas as etapas do chamado “giro” que é
o deslocamento festivo que envolve o deslocar e o parar, que são os pousos. Ainda
em relação ao envolvimento é necessário relembram, como o fizeram Andrade e
Pessoa (2019, p. 5) de que “as religiões e religiosidades não surgem por geração
espontânea, não são criadas como um ato demiúrgico”, o que indica que o continuar,
mesmo de maneira diversa, é um ato de permanência na devoção, mesmo tendo a
experiência pela ruptura com o espaço, na mudança campo-cidade; b) alterou-se
ainda a relação com a alimentação, que é a nossa temática de abordagem.
341

FOLIA: PERMANÊNCIAS E RUPTURAS

Neste meio século do recorte temporal delimitado muita coisa foi alterada, as
estradas para as fazendas foram melhoradas, as propriedades rurais passaram a ter
energia elétrica e recentemente com antenas que possibilitam a comunicação móvel.
Estradas e carros facilitaram a condução das pessoas, podendo o veículo ser
próprio, carona ou mesmo contratando o serviço de vans que fazem o transporte
para as fazendas em que ocorrem os pousos de Folia, que se constituem os
momentos noturnos em que os foliões param o giro, a caminhada, no intuito de
descansar a si e aos animais nos quais passam grande parte do dia montados em
deslocamentos.
A Folia é uma festa religiosa, mesmo que popular, e a não participação durante
o giro não é o suficiente para que o antigo folião entenda que “a religião não deixa de
ser o que ela é, mas já não é o que ela foi. Não, não se trata de uma contradição em
termos ou lógica. Mas de um paradoxo, como tantos de uma sociedade cada vez mais
complexa” (PORTELLA, 2008, p. 34). Sociedades que exigem adaptações, inclusive no
que tange ao festar, mantendo permanências nas rupturas até mesmo na interação
com a religião ou religiosidade. “Assim, crença, religião, não significa mais,
necessariamente, um pertencimento a um grupo religioso ou a sensação de tal
pertencimento” (PORTELLA, 2008, p. 45), o estar na Folia é o suficiente, mesmo que
não mais no papel de folião e sim como um participante, que não se envolve como
antes com os rituais, mas cuja fé ao Divino Espírito Santo continua prevalecendo.
Os acampamentos outrora simples e improvisados locais de dormida para o
folião, passou a contar com uma estrutura típica de campings; dividindo os foliões em
grupos (quase todos com denominações e faixas indicativas); a organização ocorre
por integrantes que não fazem o giro seguindo as bandeiras a cavalo e sim em
caminhões ou caminhonetes capazes de acomodar todo o equipamento necessário
para o acampamento, com barracas dos foliões e até mesmo uma cozinha
improvisada. Nem sempre a função de motorista, de cozinheiro e do responsável pela
montagem e desmontagem dos acampamentos estão com a mesma pessoa, o que
amplia o número de pessoas envolvidas, assim como os gastos.
O folião atual não possui muita preocupação durante o giro, pois conta com
uma rede de organização que agiliza o deslocar junto às bandeiras da Folia. Não
precisa transportar roupas, mantimentos; não dorme ao relento como os antigos o
faziam, pois, as barracas e as estruturas de acampamento são aprontadas enquanto
alguns giram. Outro fato que merece menção é que muitas vezes quando a Folia
chega à fazenda para o pouso, nos acampamentos tira-gostos, churrasco ou mesmo
comida estão prontos esperando pelos foliões do grupo. Tal situação visa sanar a
fome, pois, geralmente o almoço foi a última refeição. Ao mesmo tempo faz com
muitos foliões não participem mais das ritualidades junto à mesa.
A chegada da Folia a fazenda do pouso é marcada por peditórios de pouso
cantados e a passagem pelos dois arcos que delimitam os espaços festivos; o segundo
só é ultrapassado quando os regentes, segundo encargo na hierarquia da Folia,
acham o presente que é uma garrafa de pinga, e que após deixar as bandeiras no
342

improvisado altar, será compartilhada pelos foliões enquanto dançam a “Música do


Chá”, uma referência à bebida alcóolica, antes produzida nos engenhos e alambiques
das fazendas, tendo cada uma sabor diferente, mas que hoje são industrializadas.
Após há a dispersão para banho e breve descanso até a hora da janta.

A ALIMENTAÇÃO NA FOLIA

Enquanto os foliões tomam banho nos córregos, rios ou represas próximas à


casa da fazenda do pouso, na cozinha, comumente improvisada, pessoas terminam
de preparar a primeira das três refeições festivas comunitárias.
Aqui dois aspectos demonstram mudanças: a) a comida a ser servida teve sua
origem alterada, antes os alimentos eram produzidos na própria fazenda e nas
propriedades rurais de amigos e vizinhos que doavam mantimentos e animais a
serem preparados em homenagem ao Divino. Tal prática de doação persiste em
especial no que se refere a animais como gado, porcos e galináceos, mas os
mantimentos, mesmo doados, são, em sua maioria adquiridos anteriormente nos
mercados, uma vez que vem diminuindo cada vez mais o número de pequenos
produtores em Pirenópolis; b) o trabalho na cozinha já foi devocional ou em forma de
mutirão entre amigos e vizinhos de fazenda, atualmente, em quase todos os pousos é
contratado e remunerado, quebrando a lógica proposta por Mauss (2003) em relação
à dádiva.
Em análise sobre a alimentação na Folia do Divino em Pirenópolis, Curado,
Ferreira e Oliveira (2014) discutem a relação de fartura, uma das premissas a compor
a mesa nos momentos de refeições comunitárias e rituais, em que a comida ofertada
é preparada para a comunhão entre os participantes, que ao final, cantam os
“Benditos de Mesa”, preces em agradecimento ao que foi consumido. Salientam,
ainda que mesmo após todos se servirem à vontade, fartando a fome, fica uma
quantidade significativa de comidas que voltam para a cozinha, deixando sobre a
mesa apenas uma garrafa de café e um pote contendo farinha de mandioca, alimento
essencial no universo rural e responsável pela lógica do ditado popular em que a
farinha “esfria, aumenta e sustenta”.
Com os estudos de Brandão (1981) sobre os hábitos alimentares
contemporâneos de camponeses vinculados à terra em Goiás é observada a
semelhança com o século anterior, descrito no início do texto. Segundo o autor, os
aspectos alimentares são apresentados em algumas ordens, como “fraco e forte”,
“quente e frio”, “reimoso e sem reima” e “gostoso e sem-gosto”. Lembra ainda que o
alimento é transformado em comida e que há mudanças no corpo, de acordo com o
que é ingerido; por isso fica evidente que na Folia há predominância de comida forte,
para dar “sustância” ao folião que tem os momentos alimentares basicamente
restritos a três: janta, café da manhã e almoço, então a comida tem que suprir as
necessidades e além disso dar forças para que eles prossigam o giro devocional.
A comida de Folia tem uma característica muito recorrente: dificilmente o
alimento é preparado ou servido só. Geralmente o preparo envolve pelo menos dois
elementos distintos, que são servidos também em parceria. Talvez o melhor exemplo
343

seja o tradicional caldo de mandioca ou vaca-atolada, como também é conhecido, o


mingau produzido a partir de pedaços de mandioca e de carnes, cozidos em água e
temperos. É o carro chefe das noites frias de pousos, por ser servido quente e ainda
por ser, na classificação de Brandão (1981) composto por ingredientes fortes que
combatem a fraqueza física, desgastada pelas “obrigações” destinadas aos foliões
durante o trajeto que envolve entre sete e dez dias, dependendo da quantidade dos
pousos programados a cada ano em homenagem ao Divino Espírito Santo. A junção
alimentar relembra ainda o aspecto religioso, sendo que conforme Wachholz (2011,
p. 783) “o pretendido ‘cristianismo puro’ no Brasil nunca foi uma realidade”, assim
como não são os ingredientes e preparos alimentares de Folia que remontam
heranças das cozinhas indígenas, africanas e europeias, com suas misturas diversas.
Brandão nos lembra que existe ainda “um quadro de oposições entre
forte/fraco na pessoa e no alimento” em que destacamos três das situações: “comida
forte X pessoa forte = bom”, “comida fraca X pessoa forte = ruim” e “comida forte X
pessoa fraca = ruim” (1981, p. 114). Num giro, a comida não pode ser fraca, mas
alguns dos participantes, devido às novas práticas alimentares cotidianas não
conseguem com as comidas tidas como fortes, ou ainda sentem necessidades de se
alimentar em momentos outros que não só os delimitados ritualmente em uma Folia.
Assim, os acampamentos com suas cozinhas independentes, produzem aquilo que os
integrantes do grupo gostam ou possuem o hábito de alimentar, mesmo fugindo do
cardápio tradicional da Folia. O que possibilita a concordância, nas questões também
de permanências alimentares, com as observações de Portella (2008, p. 38), para
quem “os indivíduos até buscam nas tradições/instituições estes elementos, mas o
fazem a partir da subjetividade de suas experiências, sem fidelidades a identidades
fixas, ultrapassando fronteiras antes bem delimitadas e borrando-as.”
As “fronteiras antes bem delimitadas” no caso da Folia podem ser percebidas
como o extrapolar a cozinha do pouso que abastece a mesa da janta, do café da
manhã e do almoço, estendendo-se às cozinhas dos acampamentos com outros
alimentos que não são compartilhados para além dos integrantes do acampamento e
que não são oferecidas e nem agradecidas pela presença das bandeiras.
Outro ultrapassar advém com o comércio temporário que passou a
acompanhar o giro, trazendo em carros caixas de isopor com bebidas diversas a
serem comercializadas assim como comidas, sendo as mais comuns: churrasco (com
ou sem acompanhamentos), porções de feijão tropeiro, churrascos, saquinhos com
batatas-fritas, sanduiches e pasteis recheados na hora pelo cliente, e alguns
alimentos tidos até então bastante exóticos ao universo das Folias como pamonha
cozida e empadão goiano (este último, até bem pouco tempo restrito à ceia de Natal
dos pirenopolinos).
A presença e a variedade do comércio temporário cada vez mais intenso altera
a dinâmica das etapas envolvendo a alimentação da Folia; no entanto, é cada vez
menos possível resistir às alterações devido ao grande público que tem se deslocando
para os pousos, talvez uma tentativa de manter a permanência com a ruralidade,
mesmo que para tanto a comida de Folia passe por rupturas.
344

CONSIDERAÇÕES

A ruptura de nossas reflexões propõe a permanência do pensar a comida de


Folia, partindo do fato de que “comer serve não só para manter a máquina biológica
do nosso corpo, mas também para concretizar um dos modos de relação entre as
pessoas e o mundo, desenhando assim uma de suas referências fundamentais no
espaço-tempo” (GIARD, 2013, p. 250), o que pode ser explicada pela sociabilidade
festiva onde o “dar, receber e retribuir” se mostra muito mais que uma premissa,
mas uma ligação, por meio da comida de festa, entre presente e passado,
englobando gerações diversas em devoção ao Divino Espírito Santo.

REFERÊNCIAS
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brasileiro: permanências e rupturas. In: Ponta de lança. São Cristóvão, v. 13, n. 24,
2019. pp.3-5.
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Plantar, colher, comer: um estudo sobre o campesinato
goiano. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1981. 181p.
CASCUDO, Luís da Câmara. Dicionário do Folclore Brasileiro. 12. ed. São Paulo:
Global, 2012. 756p.
CURADO, João Guilherme; FERREIRA, Adolpho Randes Mesquita; OLIVEIRA, Alexandre
Francisco. Fartura à mesa: Folia do Divino Espírito Santo em Pirenópolis/GO. In:
GeoNordeste, n. 2, 2014, pp.71-86.
GIARD, Luce. Cozinhar. In: CERTEAU, Michel de; GIARD, Luce; MAYOL, Pierre. A
Invenção do cotidiano: 2 morar, cozinhar. 12. ed. Trad. Ephraim Ferreira Alves e Lúcia
Endlich Orth. Petrópolis: Vozes, 2013. pp. 209-331.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Censos Demográficos
de Pirenópolis – vários anos. Disponível em:
https://cidades.ibge.gov.br/brasil/go/pirenopolis. Acesso em 15/09/2020.
MAGALHÃES, Sônia Maria de. Males do sertão: alimentação, saúde e doenças em
Goiás no século XIX. Goiânia: Cânone Editorial, 2014. 228p.
MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. In: MAUSS, Marcel. Sociologia e antropologia.
Rio de Janeiro: Cosac & Naify, 2003. pp. 183-314.
PORTELLA, Rodrigo. A religião na sociedade secularizada: urdindo as tramas de um
debate. In: Numen: revista de estudos e pesquisas da religião. Juiz de Fora, v. 11, n. 1,
2008, pp.33-53.
SOFIATI, Flávio Munhoz; MOREIRA, Alberto da Silva. Catolicismo brasileiro: um painel
da literatura contemporânea. In: Religião e Sociedade. Rio de janeiro, v. 38, n. 2,
2018. pp. 277-301.
WACHHOLZ, Wilhelm. Identidades religiosas brasileiras e seus exclusivismos. In:
Horizonte. Belo Horizonte, v. 9, n. 23, 2011. pp. 782-798.
345

A COMUNICAÇÃO POLIFÔNICA DA HOMILIA CATÓLICA NO


BRASIL

RITA DE KÁSSIA PONTES SILVA


Mestranda em Ciências da Religião
Universidade Católica de Pernambuco
[email protected]

RESUMO: Um dos primeiros objetivos da homilia é colaborar para que a palavra


cristã seja melhor compreendida pelos fiéis reunidos. Há ainda um certo grau de
desconhecimento sobre a estrutura do gênero homilia e sobre o seu caráter
comunicativo e formativo, bem como se evidencia por parte de quem ouve como
uma fala retrógrada, cansativa ou até mesmo ineficaz, pobre em elementos
comunicativos. Cada pregador segue uma linha particular de homilia, partindo de um
ponto comum – que é a efusão e proclamação da mensagem da Palavra de Deus -
mas colocando suas próprias vozes a serviço do gênero, que recebe ainda a influência
de quem ouve a homilia, incorporando à sua realidade de vida e comportamento. A
problematização da presente pesquisa parte do seguinte questionamento: a homilia
é encarada como gênero discursivo que permite tomada de consciência e mudança
comportamental ao ser comunicada ou é apenas vista como um repasse feito pelo
ministro ordenado das mensagens evidentes do Evangelho? Um dos intuitos da
homilia é, então, a aplicação da mensagem bíblica ao aqui e agora da vida humana,
buscando levar os fiéis a uma participação ativa na Eucaristia, vivendo conforme a fé
que professaram. Partimos também da hipótese de que, se a homilia – e toda sua
carga de mensagem – não atinge o coração dos fiéis, a comunicação é falha. Será que
esse problema da não comunicação homilética se dá por causa do modo de se
expressar do ministro ordenado? Como ocorre esse fenômeno comunicacional é um
dos pontos a serem discutidos neste trabalho, visando a homilia como um importante
instrumento que embase posicionamentos de permanências e rupturas dentro do
campo religioso. Para isso, analisaremos algumas homilias do tempo do Advento de
2019 que servirão de base para investigarmos e evidenciarmos as hipóteses aqui
levantadas. Esperamos, portanto, apresentar os aspectos constitutivos que
caracterizam a homilia como um gênero discursivo e polifônico, bem como os
aspectos comunicativos e à capacidade desse discurso em influenciar e modificar
comportamentos e atitudes de pessoas.

Palavras-chave: Homilia; Discurso; Comunicação.


346

INTRODUÇÃO

Desde muito cedo, a vivência dentro da Igreja Católica despertou-me muita


curiosidade, principalmente no aspecto da preparação dos sacerdotes para a
celebração da Missa e, em particular, a homilia proferida naquela ocasião. Já tive
contato com muitos padres que apresentam maneiras de pregar muito diferentes uns
dos outros, desde a linguagem, a intertextualidade, a duração, até a reação das
pessoas ao meu redor durante a realização da pregação. Dependendo do jeito como
a homilia é conduzida, as reações das pessoas variam desde apenas ouvir até a
expressar emoções com risos ou lágrimas, entre outras.
Como participante assídua, comecei a querer compreender como seria o
processo de estudo dos seminaristas deste gênero em particular para fazer as
homilias, bem como entender as estratégias que os padres usam para realizá-las na
sua vida pastoral e o que as pessoas entendem sobre o gênero homilia a partir de
suas opiniões. Não só compreender, mas entender como seria a recepção das
pessoas e o que a homilia ali escutada auxiliaria na vida dos mesmos.
Pude perceber que há ainda um certo grau de desconhecimento sobre a
estrutura do gênero homilia e sobre o seu caráter comunicativo e formativo, como
também ficou evidente pro parte de quem ouve que muitas vezes ela se apresenta
como uma fala retrógrada, cansativa ou até mesmo ineficaz, pobre em elementos
comunicativos. Também ficou evidente que cada pregador segue uma linha particular
de homilia, partindo de um ponto comum – que é a efusão e proclamação da
mensagem da Palavra de Deus - mas colocando suas próprias vozes a serviço do
gênero, que recebe ainda a influência de quem ouve a homilia, incorporando à sua
realidade de vida e comportamento. Então ficam alguns questionamentos: e a
eficácia da homilia? Como mensurar, perceber seus efeitos? Como é feita a avaliação
da homilia por parte de quem prega e por parte de quem ouve?
De acordo com alguns autores, a origem da homilia data de muito antes do
Cristianismo, com o povo bíblico de Israel, consistindo como uma espécie de conversa
familiar. É uma oratória sagrada, com raízes nas celebrações litúrgicas. Gonçalves
(2012) afirma que a homilia surgiu na Mesopotâmia há três mil anos, sendo utilizada
pelos sacerdotes com o objetivo de convencer seus discípulos da existência e
manifestação dos deuses naquele momento cultuados. Além disso, servia para
“auxiliar a necessidade que os sacerdotes tinham de prestar contas das receitas e
gastos das corporações a que pertenciam e faziam suas prédicas em defesa da
existência miraculosa dos deuses do paganismo” (GONÇALVES, 2012, p. 33). O
Conselho Episcopal Latino-Americano (CELAM) lança em 1983 um texto sobre a
homilia, com algumas características evidenciadas na história do povo hebreu em
suas sinagogas e na consolidação do Cristianismo, quando passa a ser uma prática
discursiva recorrente entre Jesus e seus apóstolos e se prolonga em toda a história da
Igreja Católica até os dias de hoje. Após o Concílio Vaticano II, a homilia ganha um
espaço fixo nas celebrações da Missa, com o objetivo principal de instruir sobre os
trechos bíblicos lidos durante a celebração em preparação ao banquete Eucarístico.
347

Um dos primeiros objetivos da homilia é colaborar para que a palavra cristã


seja melhor compreendida pelos fiéis reunidos. Para Buyst (2001) a homilia serve
antes de tudo para encorajar, animar, exortar, consolar e falar dos mistérios da fé,
levando os que a ouvem a uma participação ativa e consciente, e isso é função do
sacerdote, que também depende da participação do fiel durante a homilia para que
esta tenha resultados eficazes para “produzir frutos”. É a mensagem enviada que
exige uma resposta, e que nos faz, pautado em Bakhtin (2000), definir a homilia como
um gênero discursivo, pois ela constitui, de fato, um enunciado relativamente estável
do ponto de vista litúrgico, porque sua finalidade é a compreensão da mensagem que
se transmite ao fiel pelo celebrante e porque se constitui a partir das relações
estabelecidas com outros enunciados, entre os quais os textos da Bíblia. Para o autor,
toda compreensão exige uma resposta, e a compreensão responsiva é a fase inicial
para uma resposta que o locutor (no caso o celebrante) espera de sua homilia pelo
ouvinte.
Cabe ressaltar ainda que, por meio da homilia, a Igreja Católica, segundo sua
doutrina, pretende anunciar ao mundo uma palavra capaz de promover a justiça, a
unidade, a paz e a defesa da vida, posicionando-se como reivindicadora e defensora
das pessoas, principalmente com o objetivo de abrir um diálogo com o mundo
contemporâneo e suas demandas, bem como o diálogo entre a Igreja e seus fiéis. O
intuito da homilia é, então, a aplicação da mensagem bíblica ao aqui e agora da vida
humana. Porém, o que podemos perceber nos dias atuais é uma variedade de
situações: muitos celebrantes que conseguem se expressar bem e as pessoas
compreendem a mensagem emitida, outros padres que não conseguem emitir de
forma compreensível a mensagem, não despertando as pessoas para uma
compreensão responsiva eficaz.
No caso da linguagem, em especial a dos padres (sejam sacerdotes ou diáconos
ou instituídos da missão de fazer a homilia), percebe-se que os anos de estudo para a
formação teológica, filosófica, os documentos da Igreja levam os sacerdotes a usarem
uma linguagem erudita nas homilias. Como então o sacerdote pode tornar comum a
linguagem usada nas homilias? É preciso que o emissor se coloque no lugar do
ouvinte para perguntar-se o que ele vai entender.
A homilia, por fazer parte de um culto religioso, não é um discurso qualquer,
mas está legitimada pela força coerciva da religião e da fé. Ela faz parte de um
campo, o campo religioso, e como afirma Bourdieu (1998) possui uma lógica própria,
com valores e interesses específicos. A homilia é seu próprio objeto nesse campo e
seu princípio básico de compreensão. Neste campo, por meio da homilia, com sua
estrutura histórica e mutável, os agentes estão de acordo consensualmente
Ao levarmos em consideração o princípio dialógico que permeia as
manifestações discursivas, bem como a intensa dominação ideológica exercida pelo
discurso religioso em nossa sociedade, calcaremos nosso estudo na intencionalidade
de demonstrar que até mesmo um discurso cristalizado como o religioso sofre
atravessamentos de dizeres de outros discursos.
Sendo um ser comunicacional desde sua origem, reconhecendo seu corpo e a
relação com o ambiente, com o corpo alheio, com o surgimento da fala, da escrita e
348

da imprensa até os meios digitais e eletrônicos atuais, o homem foi desenvolvendo


seu pensar e interagir com o exterior e elaborou meios de expressar a linguagem
sempre interligados com o Criador e o que ele oferecia e o novo que surgia a cada
dia. Isso, à princípio, construía vínculos de harmonia entre Deus e os seres e os seres
entre si, e o que se esperava era um mundo solidário e pacificado, mas não
aconteceu exatamente assim. A sociedade ia se constituindo com bases marcadas em
atitudes individualistas e, algumas vezes, depressivas. A fé, também criada na
evolução visando ligar a criatura ao Criador, precisava ser renovada. Qual o papel
então da Igreja aqui, nesse processo comunicativo de reacender a chama da fé e
transmiti-la?
O discurso pode ser compreendido como um conjunto de enunciados que
derivam de uma mesma formação discursiva. Segundo PÊCHEUX (apud ORLANDI,
1987), o funcionamento discursivo é marcado pelo modo como se representam os
interlocutores entre si e a relação que mantêm com a formação ideológica e está
atravessado pela tipologia. As marcas são determinadas pela estruturação, que por
sua vez determina o tipo de relação de interlocução, entre locutor e ouvinte dentro
do discurso religioso: autoritária, polêmica ou lúdica. As condições de produção
determinam o tipo que pode ser reconhecido através do critério de reversibilidade
entre locutor e ouvinte, que pode chegar a zero na interlocução autoritária, viver a
plenitude na interlocução lúdica e acontecer sob determinadas condições na
interlocução polêmica. Um enunciado, por ser um evento único e irrepetível, deve
levar em consideração as condições de produção, ou seja - tempo, lugar, papéis
representados pelos interlocutores, imagens recíprocas, relações sociais, e objetivos
visados no momento da interlocução - responsáveis pela constituição do sentido do
enunciado.
Essa situação toda denomina-se enunciação e determina por que o que se diz é
dito. Algumas destas condições são os operadores argumentativos, os marcadores de
pressuposição, os tempos verbais, os índices de polifonia, os índices de modalidade
ou indicadores modais, etc. De acordo com a escolha das modalidades a serem
usadas, o locutor obriga o interlocutor a aceitar o seu discurso como verdadeiro,
procurando impor seus argumentos, como no caso das modalidades do tipo: “é
certo”, “é preciso”, “é necessário”, “não pode haver dúvidas”, etc. ORLANDI (1987).
Na análise proposta pela autora, o discurso religioso é caracterizado como
autoritário, uma vez que quem fala é a voz de Deus, através do padre, do pregador,
ou seja, o representante de Deus.
Entretanto, um texto pode ser configurado por tipos distintos de discurso, o
que caracteriza a intertextualidade ou heterogeneidade, um dos mais poderosos
fatores da textualidade, que sustenta em seu interior a argumentatividade, fator
básico da textualidade (KOCH, 1986), relacionada com a polifonia, que pode ser
definida como a incorporação, ao próprio discurso, das vozes de outros enunciadores
ou personagens discursivos —o(s) interlocutor(es)- , terceiros, a opinião pública em
geral ou o senso comum, ou seja, o coro de vozes que se manifesta normalmente em
cada discurso, visto ser o pensamento do outro constitutivo do nosso, não sendo
possível separá-lo radicalmente- o que permite afirmar que a produção do sentido é
349

inteiramente condicionada pela alteridade. Assim, a heterogeneidade, ou polifonia


em sentido amplo, é o lugar da constituição do sentido do texto.
Maingueneau (1993), afirma que o interdiscurso consiste em um processo de
reconfiguração incessante no qual uma formação discursiva é levada a incorporar
elementos pré-construídos. Desse modo, ocorre uma reconfiguração da formação
discursiva, onde se incorpora novos elementos de outras formações discursivas e/ou
os elementos próprios da formação discursiva se movimentam numa relação de se
organizarem para uma repetição ou para um apagamento. Ao levarmos em conta que
esse “diálogo entre discursos” se dá por meio de sujeitos sociais, o discurso nem
sempre demonstrará uma harmonia ideológica, podendo implicar em conflitos,
relações de dominação e resistência, já que “a palavra é a arena onde se confrontam
aos valores sociais contraditórios, os conflitos da língua refletem os conflitos de
classe no interior mesmo do sistema” (Bakhtin, 2000), bem como que o que vemos é
governado pelo modo como vemos e este é determinado pelo lugar de onde vemos.
Assim, o discurso variará se os interlocutores fizerem ou não parte do mesmo grupo
social, ocuparem posições inferiores ou superiores na hierarquia social, bem como se
estiverem unidos por laços sociais, como de pai, mãe, marido. São as peças do jogo,
na verdade, são os jogadores, que tem a noção de como o jogo funciona (mais uma
vez levando em consideração o que Bourdieu nos traz sobre campo e habitus). O
sujeito tece seu discurso polifonicamente, num jogo de várias vozes cruzadas que se
complementam, se relativizam, ou se contradizem. Aquele que prega, realizando a
sua função missionária e evangelizadora, procura conhecer sua comunidade para
identificar aqueles que já estão em comunhão com Deus, mas principalmente aqueles
que ainda não estão.
De acordo com Sbardelotto (2020), as raízes da comunicação (o cum-munus,
oikos e polis) demandam gerar relações na construção de um ambiente comum
favorável a todos e organizado por todos, no qual se percebe a ação de Deus de gerar
e dar sentido, de possibilitar ao homem participar de sua criação e relacionar-se com
ela de forma a construir sua identidade pela alteridade. A cultura do encontro
possibilita enxergar o processo comunicativo como construtor de sentido, dinâmica
alterizante e diálogo discursivo sempre atualizado para transformar a realidade. Tem
assim como modelo mister Jesus, com seu lugar de fala sempre demarcado pela
linguagem do povo e do corpo. Ele, portanto, é o exemplo a ser seguido pelo
comunicador cristão e todo o seu processo místico de comunicar, experimentando na
sua espiritualidade a dialogicidade da palavra divina, com muito cuidado para não
perder a essência por causa de padrões estéticos ou de profissionalidade, não
deixando que a mundaneidade e o mundanismo espiritual atrapalhem a comunicação
da Verdade (que aqui é grafada maiúscula por ser referência ao Evangelho),
comunicação esta que deve fugir de todo superficialismo, proselitismo e
exibicionismo.
Assim, a função da homilia não é apenas explicar os textos bíblicos, mas é
preciso ligá-los com a realidade da comunidade para fazer a comunidade refletir,
abrindo os fieis à conversão e à transformação pessoal e da sociedade, sem deixar de
lado sua relação com Deus. E aqui retomamos a exortação apostólica Evangelii
350

Gaudium, do Papa Francisco, encíclica com características de convite a esclarecer e


didatizar a evangelização e o anúncio da fé com um estilo alegre, a mesma alegria do
encontro com Cristo, por meio de um diálogo inovador e a proposição de uma via da
beleza para enxergar novos sinais, novas formas de transmitir a mensagem por meio
da tríade encontro / diálogo /anúncio e com os princípios de que o tempo, a unidade,
a realidade e o todo são superiores ao espaço, ao conflito, à ideia e à parte.
A homilia apresenta-se aqui, retomando a Evangelli Gaudium, como um
caminho de rupturas e permanências, no qual o maior risco de um pregador é
habituar-se à sua própria linguagem e pensar que todos os outros a usam e
compreendem espontaneamente. A linguagem positiva, como continua o
documento, deve ser o destaque da homilia: deve oferecer esperança, orientar para
o futuro e, sobretudo, não nos deixar prisioneiros da negatividade.
Um outro aspecto muito importante a ser levado em conta por quem prega é
que cada celebração da missa é única, cada assembleia é única, cada homilia é e deve
ser única! A realidade dos sacerdotes atualmente é de celebrar três, quatro ou mais
missas durante o dia, mas ter a sensibilidade de perceber que cada público é um, tem
suas particularidades. As pessoas esperam mais do que um comentário bíblico, elas
querem mais ouvir do que escutar, querem conforto, ânimo, motivações para a
semana que se inicia, respostas às suas perguntas. São as muitas vozes num mesmo
discurso.
Fazer homilia é um ato de fé, e trata-se de acolher a palavra de Deus (que fala
além dos textos proferidos naquela celebração em específico) e atualizá-la. O tecido
eclesial da homilia deve ser levado em conta, com seus tecelões, os sujeitos ali
envolvidos.
Quando se sentem acolhidos, permanecem e voltam. Quando há
verdadeiramente a partilha do Pão da Palavra, rompem-se as fronteiras da Palavra e
se vivencia a Eucaristia propriamente dita, como dizia São João Paulo II, hoje sendo
seu dia, “leva-se Jesus aos homens, e os homens a Jesus”.

CONCLUSÃO

A comunicação da alegria do Evangelho deve ser para todos, sem exclusão, sem
distinção, mediadora da construção de uma cidadania responsável e alterizante,
sempre de encontro ao outro, de forma misericordiosa, pobre com os pobres,
encarnada, sentida. Pode ser de forma direta o anúncio da lógica da boa notícia, ou
como sugere o Papa, por novas metáforas, como os óculos para enxergar, a semente
em terra boa, o pão partilhado, este último como símbolo da reciprocidade, da
multiplicação, da generosidade criativa. Cada metáfora exige uma interpretação, e
cada interpretação elenca seus significados coletivos e particulares. Distintas,
diversas, mas verdadeiras e autênticas, comprometidas na comunicação da essência
da palavra divina.
351

REFERÊNCIAS:

BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. São Paulo: Martins Fontes, 2000.


BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. 5 ed. Saõ Paulo: Perspectiva,
1998.
_____. O poder simbólico. 2. ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998.
BUYST, I. Homilia, partilha da palavra. São Paulo: Paulinas, 2001.
CELAM. Homilia. São Paulo: Paulinas, 1983.
GONÇALVES, Duarte Manuel Caldas. Homilia e Ministério da Palavra. Dissertação
(Mestrado em Teologia) – Faculdade de Teologia, Universidade Católica Portuguesa,
Braga, 2012.
KOCH, Ingedore G. Villaca. A inter-ação pela linguagem . São Paulo: Contexto. 1992.
_____ . Argumentação e linguagem.2 ed. São Paulo, Cortez, 1987.
MAINGUENAU, Dominique. Novas tendências em análise do discurso. 2 ed. Trad.
Freda Indursky. Campinas: Pontes, 1993.
_____. Análise do discurso; a questão dos fundamentos, p. 65-74. Cad. Est.
Linguísticos . V 19, 1990.
ORLANDI, Eni Pulcinelli. A análise de discurso: algumas observações. Campinas:
DELTA, Vol. 1. 1987.
_____ . Palavra, fé, poder. Campinas: Pontes, 1998.
SBARDELOTTO, Moisés. Comunicar a fé. Por quê? Para quem? Com quem?
Petrópolis: Vozes, 2020.
TRUDEL, Pe. Jacques. Homilia – Formação e arte de comunicar. São Paulo: Paulus,
2015.
352

A RUPTURA CONSERVADORA DO BISPO ANTÔNIO DE


CASTRO MAYER COM O CATOLICISMO ROMANO PÓS
CONCÍLIO VATICANO II

VINÍCIUS COUZZI MÉRIDA


Doutorando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
[email protected]

RESUMO: O texto apresentado está alinhado com a linha de pesquisa “Catolicismo no


Brasil: permanências e rupturas ” Assim, o objetivo é apresentar e discutir a figura do
Bispo brasileiro Dom Antônio de Castro Mayer (1904-1991) que, em função de sua
crença intransigente, rompeu com a Santa Sé Romana por causa das reformas
propostas pelo Concílio Vaticano II (1962-1965). Castro Mayer foi excomungado pelo
Papa João Paulo II em 1988, por ocasião de sua participação nas Sagrações
Episcopais, em Écône, em apoio ao Arcebispo francês Marcel Lefebvre (1905-1991). A
análise histórica de fontes primárias e secundárias evidenciam que Castro Mayer foi
um Bispo atuante nas sessões conciliares enquanto membro do Coetus Internationalis
Patrum, grupo conservador que atuou contra a reforma litúrgica, o ecumenismo, o
diálogo inter-religioso e pela condenação ao Comunismo e difusão da Devoção
Mariana. Ao término do Concílio, Castro Mayer se afastou paulatinamente da CNBB e
da Santa Sé por entender que o Concílio estava eivado de ideias Modernistas
condenadas pelo Papa Pio X (1835-1914). Dessa forma, a Igreja de Campos dos
Goytacazes entrou num processo de isolamento das demais dioceses do Brasil como
consequência direta da concepção integrista do seu Bispo, haja vista que o clero
diocesano conservou o modelo de Igreja pré-Vaticano II, enquanto o mundo já estava
em plena fase de recepção das reformas conciliares. Somente em 1981, com a
chegada do bispo substituto de Castro Mayer, Dom Carlos Alberto Etchandy Gimeno
Navarro (1931-2003), teve início o processo de recepção das reformas conciliares na
diocese, que em Campos aconteceu de forma tardia e conflituosa. Assim, a análise da
trajetória de Castro Mayer leva à conclusão de que se trata de um Prelado
antimoderno e alinhado com o Integrismo cuja postura teve como consequência
direta a ruptura do catolicismo no norte fluminense por 20 anos.

Palavras-Chave: Antimodernismo; Integrismo Religioso; Vaticano II; Modernidade.

INTRODUÇÃO

Nos séculos XIX e XX alguns acontecimentos históricos trouxeram mudanças


muito profundas para o pensamento ocidental. Por isso, no final da década de 1950,
353

a Igreja Católica Romana viu a necessidade de um novo Concílio que respondesse às


questões pertinentes do homem contemporâneo, uma vez que as respostas trazidas
pelo Concílio Vaticano I (1869-1870) já não eram mais suficientes para responder às
novas demandas do século XX, que em função da complexidade dos eventos
históricos, caracterizou-se como “impossível de definir e possível apenas de tentar
entender” (HOBBSBAWN, 1995, p. 12), dada a infinidade de eventos que marcaram
sua história.
Assim sendo, a Igreja pretendeu dialogar com a sociedade contemporânea por
meio do Concílio Vaticano II (1962-1962). Entretanto, o anseio desse diálogo, entre a
Igreja e o mundo contemporâneo, criou uma celeuma dentro da instituição, que
representou uma ruptura dentro da cúpula católica, em função das diferentes ideias
contidas no clero.
As diferentes abordagens presentes dentro da Igreja estão diretamente ligadas
aos conceitos de permanência e ruptura, tendo em vista a realidade global do
catolicismo que é ao mesmo tempo universal e romano. Assim sendo, é impossível
que a Igreja tenha a mesma realidade e as mesmas características em todo o globo
terrestre.
As diferenças entre as práticas católicas são vistas de diferentes maneiras pelo
clero: há aqueles que pretendem romanizar integralmente a Igreja em todo o mundo
e há a parte do clero que entende que a Igreja deve se adaptar ao tempo presente de
acordo com o local em que está inserida. Essas diferentes concepções são motivos de
divergências dentro do catolicismo romano.
No sentido de conservar o modelo romana de Igreja, numa perspectiva
antimoderna, o bispo de Campos dos Goytacazes, Antônio de Castro Mayer (1904-
1991), merece destaque na história do catolicismo romano do Brasil, uma vez que em
nome da sua postura conservadora e intransigente a respeito do modelo de Igreja a
ser seguido, ele rompeu com a cúpula do catolicismo romano, ao ponto chegar à
excomunhão pelo Papa João Paulo II, em 1988. No intuito de permanência com o
modelo de Igreja pré-Vaticano II, Dom Antônio Mayer optou pela ruptura com aquilo
que ele entendia que contrariava seus valores e crenças, ainda que isso representasse
a ruptura formal com a cúpula da Igreja Católica Romana.

O CONCÍLIO VATICANO II

João XXIII (1881-1963) se tornou Papa em 1958, após a morte de Pio XII (1876-
1958). De forma surpreendente, ele anunciou ao mundo sua intenção de realizar um
Concílio Ecumênico em janeiro de 1959, e o tornou oficial no Natal de 1961, pela bula
Humanae Salutis.
A necessidade de um concílio já rondava a Igreja há algumas décadas,
entretanto, ela atravessou a primeira metade do século XX hesitando sobre a
convocação de um novo concílio. O fim da segunda guerra mundial, as mudanças de
mentalidade no ocidente e o contexto da Guerra Fria, tudo isso contribuiu para que
354

João XXIII, atendendo aos sinais dos tempos propusesse o aggiornamento123 da


Igreja. Assim, o Concílio Vaticano II foi aberto em 11 de outubro de 1962 e encerrado
em 08 de dezembro de 1965 por Paulo VI (1897-1978), em virtude do falecimento,
em 1963, do Papa João XXIII. Coube então, ao Cardeal Montini, eleito Papa com o
nome de Paulo VI, a função de dar sequência às sessões conciliares, que ao todo
foram quatro: 1962, 1963, 1964 e 1965.
Confirmando o pensamento de seu antecessor, o Papa Paulo VI entendeu que
o Concílio tinha quatro objetivos: a exposição da Teologia da Igreja, sua renovação
interior, a promoção da unidade dos cristãos e o diálogo com o mundo
contemporâneo (ALBERIGO, 1995, p 395).
Havia na Igreja, desde o século XIX, duas correntes com pensamentos opostos:
os modernistas e os conservadores. Influenciados pelas filosofias racionalistas,
cientificistas e pelo evolucionismo e positivismo do século XIX, o clero progressista
quis nortear a Igreja numa perspectiva mais racional, aplicando o método histórico
crítico e adaptando a teologia católica ao mundo contemporâneo. Nesse sentido, um
novo Concílio seria a ocasião ideal para que as ideias progressistas fossem
disseminadas com maior eficiência dentro da Igreja e espalhadas por todo o mundo
católico pós-conciliar (MÉRIDA, 2016, p 3). Até esse momento, a cúpula católica
permanecia numa postura antimoderna, cuja gênese estava no século XIX (CALDEIRA,
2009, p. 12)
O clero reformador foi liderado por prelados e teólogos da Europa Central
(WILTGEN, 2007, p.22) e a medida que o clero conservador percebeu os movimentos
reformistas que havia no Concílio, ele se mobilizou em torno do Coetus
Internationalis Patrum, cujo objetivo era conter as reformas dentro da Igreja Católica
(ROY-LYSENCOURT, 2015, p. 1051). Alguns nomes se destacaram dentro desse grupo,
como o do arcebispo francês Marcel Lefebvre (1905-1991), do arcebispo de
Diamantina, Dom Geraldo de Proença Sigaud (1909-1999) e do bispo de Campos dos
Goytacazes, Dom Antônio de Castro Mayer. Esse grupo se entendeu como guardiões
da Tradição Católica (CALDEIRA, 2009, p. 13)
Enquanto membro ativo do Coetus, Dom Antônio Mayer fez 30 intervenções
no Concílio, tendo sido o segundo bispo brasileiro que mais interveio nas sessões
conciliares (BEOZZO, 2001, p. 203). De forma mais ardorosa, o bispo de Campos
trabalhou muito para que a missa continuasse sendo celebrada em latim, sem
alterações (WILTGEN, 2007, p. 45).
E assim, nas sessões conciliares, o clero presente sob as abóbodas da basílica
de São Pedro travou batalhas teológicas de acordo com suas crenças pastorais a
respeito dos rumos que o catolicismo romano deveria seguir. Ao término do Concílio,
a Igreja Católica Romana vivenciou um novo período de importantes reformas. Esse
período foi o chamado momento de recepção ao Concílio Vaticano II.

123
Palavra italiana que significa atualização.
355

DIOCESE DE CAMPOS DOS GOYTACAZES: RUPTURA E PERMANÊNCIA

No Brasil, o nome maior da resistência foi Dom Antônio de Castro Mayer, bispo
diocesano de Campos dos Goytacazes entre 1948 e 1981. Ele viu de forma negativa o
fortalecimento das conferências episcopais do mundo em detrimento da Cúria
Romana e do poder monárquico do Papa. De igual maneira, Dom Antônio Mayer
criticou o ecumenismo, a tolerância à liberdade religiosa e principalmente a Reforma
Litúrgica (CALDEIRA, 2009). Por isso mesmo, o missal romano de Paulo VI,
promulgado em 1969, só foi oficialmente implantado em Campos no ano de 1981,
ano que Dom Antônio Mayer se aposentou e a diocese foi assumida por Dom Carlos
Alberto Etchandy Gimeno Navarro (1931-2003). Mesmo assim, Dom Carlos Alberto
Navarro celebrava o rito de Paulo VI em latim para não escandalizar os fiéis (SEIBLITZ,
1992, p. 97).
A carta escrita ao Papa em 12 de setembro de 1969 evidencia bem a posição
de Dom Antônio Mayer sobre o Novus Ordo Missae. Segundo Mayer:

Tendo examinado atentamente o “Novus Ordo Missae”, a entrar em


vigor no próximo dia 30 de novembro, depois de muito rezar e
refletir, julguei de meu dever, como sacerdote e como bispo,
apresentar a Vossa Santidade, minha angústia de consciência, e
formular, com a piedade e confiança filiais que devo ao Vigário de
Jesus Cristo, uma súplica. O ‘Novus Ordo Missae”, pelas omissões e
mutações que introduz no Ordinário da Missa, e por muitas de suas
normas gerais que indicam o conceito e a natureza do novo Missal,
em pontos essenciais, não exprime, como deveria, a Teologia do
Santo Sacrifício da Eucaristia, estabelecida pelo Sacrossanto Concílio
de Trento, na sessão XXII. Fato que a simples catequese não
consegue contrabalançar. Em anexo, junto as razões que, a meu ver,
justificam esta conclusão. (ARQVCM 12/09/1969)124

Após as reformas propostas pelo concílio, Dom Antônio Mayer voltou a sua
diocese onde procurou dar uma correta intepretação do “aggiornamento” proposto
por João XXIII, o que na prática significou conservar o mesmo modelo de Igreja pré-
Vaticano II, adotando apenas algumas reformas propostas pelo missal de 1962
(MÉRIDA, 2016). Assim, nos anos que seguiram o término do concílio, Dom Antônio
Mayer foi se afastando paulatinamente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,
CNBB, uma vez que ele e a maioria do episcopado brasileiro trilharam caminhos
distintos.
Em 1981, Dom Antônio Mayer, com 77 anos de idade, tornou-se bispo emérito
de Campos dos Goytacazes, após trinta e três anos à frente da diocese, e com a sua
substituição inicia-se um grave problema: a divisão diocesana.
Até àquele momento, a maioria absoluta do clero diocesano ainda celebrava o
rito tridentino, a exemplo do bispo (emérito) de Campos. Nos anos seguintes a sua

124
ARQVCM: Arquivo de Pesquisa Pessoal Vinícius Couzzi Mérida
356

aposentadoria, de forma aberta, Dom Antônio Mayer se aproximou de Dom Marcel


Lefebvre na luta de resistência às reformas promovidas pelo Concílio Vaticano II.
A conservação do modelo de Igreja pré-conciliar está diretamente ligada às
crenças de Antônio Mayer, que entendeu que o Concílio foi influenciado pelo
modernismo condenado por Pio X (1835-1914) (MAYER, 1971, p. 23). Como o Concílio
Vaticano II buscou um diálogo convergente com o mundo contemporâneo, Dom
Antônio Mayer ficou reticente e decidiu-se por não aderir às suas indicações.
Com a chegada de Dom Carlos Alberto Navarro, a partir de 1981, a diocese de
Campos entrou num processo de divisão, porque a maioria do clero diocesano, 25
padres no total, não aceitou a reforma litúrgica. Essa ruptura teve repercussão no
âmbito católico mundial, pois os padres que recusaram às reformas conciliares se
posicionaram publicamente de acordo com a formação recebida de Dom Antônio
Mayer. Ao agirem assim, o clero tradicionalista não rompeu somente com o novo
bispo diocesano, mas também com a Igreja Católica Romana enquanto instituição
universal (MÉRIDA, 2016, p. 144)
O clero que seguiu o bispo emérito de Campos, Dom Antônio Mayer,
condenou publicamente o Concílio e orientou seus paroquianos a não seguirem as
direções do novo bispo, que contou apenas com poucos padres diocesanos e algumas
ordens religiosas para pastorear a diocese dividida (ARQVCM 1982). Essa realidade
chegou à Santa Sé, chamando muito a atenção do Papa João Paulo II (1920-2005) e
da cúria romana.
Desta forma, os primeiros anos do episcopado de Dom Carlos Alberto Navarro
em Campos foram difíceis, pois além de contar com poucos padres diocesanos e
algumas ordens religiosas, ele ainda teve o constrangedor papel de retirar os padres
tradicionalistas de suas paróquias e para tanto, o bispo de Campos fez uso de ordens
judiciais e auxílio de força policial. Esse período de exoneração foi entre 1982 e 1987
(SEIBLITZ, 1992, p. 169).
Nesse contexto, ao longo dos anos de 1980, Dom Antônio Mayer foi se
afastando cada vez mais da Santa Sé, e em nome de suas crenças, prestou assistência
a vinte e cinco padres diocesanos, que formaram a União Sacerdotal São João Maria
Vianney, criando paróquias paralelas na diocese, organizando assim 2 dioceses em
Campos: a diocese conciliar e a diocese tradicionalista.
Por terem a mesma interpretação a respeito das reformas implementadas pelo
Concílio Vaticano II, a aproximação de Dom Antônio Mayer e Marcel Lefebvre foi às
últimas consequências: a excomunhão, quando ambos os bispos realizaram a
sagração de quatro bispos sem mandato apostólico: o francês Bernard Tissier de
Mallerais, o suíço Bernard Fellay, o espanhol Alfonso de Galarreta e o inglês Richard
Nelson Williamson. Castro Mayer participou dessa sagração em Écône como co-
sagrante, em 30 de junho de 1988. Essa sagração foi punida, como recomenda o
Código de Direito Canônico no parágrafo 1382, assim, Dom Lefebvre, o co-sagrante e
357

os bispos sagrados incorreram na grave pena da excomunhão prevista pela disciplina


eclesiástica125.
Em 18 de dezembro daquele mesmo ano, Dom Antônio Mayer realizou a
ordenação sacerdotal do diácono Manoel Macêdo de Farias, na cidade de Varre-Sai,
noroeste fluminense. Essa ordenação foi sua última participação em evento público,
tendo em vista sua idade avançada e seu estado de saúde debilitado. Em 25 de abril
de 1991, Dom Antônio de Castro Mayer faleceu na cidade de Campos dos
Goytacazes, na casa onde funcionou o seminário da União Sacerdotal São João Maria
Vianney, à rua Riachuelo.
O legado deixado por Dom Antônio Mayer provocou em Campos uma ruptura
clerical e religiosa que durou 20 anos, entre 1981 e 2001. Assim, a diocese de Campos
permaneceu dividida, pois havia o clero diocesano, alinhado ao pensamento conciliar
que seguia às diretrizes do Concílio Vaticano II, após a chegada de Dom Carlos Alberto
Navarro, e o clero integrante da União Sacerdotal São João Maria Vianney,
futuramente denominada Administração Apostólica Pessoal São João Maria Vianney,
que seguia a Dom Antônio Mayer, sendo posteriormente, assistida pelo bispo Dom
Licínio Rangel (1936-2002) (MÉRIDA, 2016, p. 89).
Em 2001, o Papa João Paulo II criou a Administração Apostólica Pessoal São
João Maria Vianney, regularizando a situação dos “padres de Campos”, tirando-os da
situação de excomunhão.

CONCLUSÃO

A situação da diocese de Campos dos Goytacazes é um fato singular no mundo


católico, pois atualmente tem a convivência harmoniosa do bispo titular da diocese,
Dom Roberto Francisco Ferreria Paz, e do clero diocesano com o Bispo da
Administração Apostólica São João Maria Vianney, Dom Fernando Arêas Rifan, e do
seu clero que atende aos fiéis católicos que preferem o modelo de Igreja pré-
Vaticano II.
Na perspectiva de permanências e rupturas, a diocese de Campos é um
modelo que precisa ser mais estudado, pois a sua história foi diretamente marcada
pela divisão, portanto ruptura, e essa divisão foi contornada com a criação de uma
Administração Apostólica Pessoal, o que significa que ela está diretamente ligada ao
Papa. Essa realidade não tem paralelo no mundo católico.
Iniciada por uma crise pós-conciliar, a permanência e conservação do modelo
de Igreja pré-Vaticano II elucida que a Igreja Católica Romana é plural em suas
diversas formas de religiosidade, o que a caracteriza como Universal. Portanto, cabe à
cúpula católica entender o movimento da pluralidade para que possa agregar mais
diferenças ao seio de uma religião que tem em Roma a sede, mas que contempla, ao
mesmo tempo, os setores mais populares de diversas culturas pelo mundo. O

125
CARTA APOSTÓLICA "ECCLESIA DEI" DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II SOB FORMA DE "MOTU PROPRIO". Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/john-paul-
ii/pt/motu_proprio/documents/hf_jp-ii_motu-proprio_02071988_ecclesia-dei.html#_ftn4>. Acesso em 08 de
setembro de 2020.
358

entendimento da universalidade e de sua consequente pluralidade é vital para que


haja a permanência da diversidade na Igreja Católica Romana, caso contrário, ela
falará apenas para si mesma, negligenciando o mundo que ainda lhe dá ouvidos.

REFERÊNCIAS

ALBERIGO, G. História dos Concílios Ecumênicos. 1ª edição. São Paulo. Paulus, 1995.
BEOZZO, J. O. Os Padres Conciliares Brasileiros no Concílio Vaticano II: Participação e
Prosopografia 1959-1965. Tese. (Doutorado em História). USP. São Paulo, 2001.
CALDEIRA. R.C. Os Baluartes da Tradição: O Conservadorismo Católico Brasileiro no
Concílio Vaticano II. Curitiba. ed. CRV, 2011.
HOBSBAWM, E. Era dos Extremos: o breve século XX. 1914-1991. São Paulo:
Companhia das Letras, 1995.
MAYER, A.C. Por um Cristianismo Autêntico. São Paulo: Editora Vera Cruz, 1971.
ROSÁRIO, A.R. Reflexões e Lembranças de um padre suas lutas e fracassos.
Itaperuna: Damadá Artes Gráficas, 1984.
ROY-LYSENCOURT, P. O Coetus Internationalis Patrum no Concílio Vaticano II:
apresentação e resultados de uma pesquisa. Horizonte, Belo Horizonte, v.13, nº 38, p.
1051-1079, abril/junho 2015.
SEIBLITZ, Zélia. Os arquitetos do paraíso. 1992. Tese (Doutorado em Antropologia),
Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 1992.
WILTGEN, R. O Reno se lança sobre o Tibre: O Concílio desconhecido. 1ª ed.
Permanência: Niteroi, 2007.
WHITE, D. A. The Mouth of the Lion, Ed. Angelus Press, Kansas, 1993.
359
360

MAS O JUSTO, PELA SUA FÉ, VIVERÁ: CONSIDERAÇÕES


EXEGÉTICAS E HERMENÊUTICAS

TACIANA BRASIL DOS SANTOS


Doutora em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas
[email protected]

RESUMO: Seguramente, os mais atentos leitores bíblicos já tiveram a oportunidade


de perceber que alguns temas e expressões se repetem ao longo de todo o texto,
rompendo as fronteiras entre livros, gêneros literários, e até mesmo entre os
Testamentos. Uma dessas expressões é a que dá título ao nosso trabalho: “mas o
justo, pela sua fé, viverá”. Este trabalho tem por objetivo investigar a transformação
do significado atribuído à expressão, presente em Habacuque, Romanos, Gálatas e
Hebreus. Os objetivos foram alcançados através de pesquisa exegética e
hermenêutica. Além disso, comparamos as versões do texto presentes na Tanakh, na
Septuaginta e no Novo Testamento, com o objetivo de localizar possíveis variações de
vocabulário que indiquem a forma como a expressão era compreendida em cada
contexto. Percebeu-se, através deste trabalho, que os significados atribuídos à
expressão se desenvolveram ao longo do tempo. Ao utilizá-la, os escritores do Novo
Testamento atribuíram novos significados ao que era ser justo, ao que era a fé, e aos
sentidos de viver e morrer. Observou-se ainda que Habacuque, Paulo e o escritor de
Hebreus atribuíram sentidos diferentes à expressão. Se no Antigo Testamento a
grande questão era a sobrevivência física, mediante o ataque dos opressores, no
Novo Testamento a expressão assume um sentido relacionado à forma como os
justos vivem, respaldados pela graça divina, e incentivados à perseverança durante as
provações. Concluímos que a interpretação da expressão evoluiu em conformidade
com as mudanças de enfoque teológico perceptíveis entre os Testamentos,
tornando-a uma reinterpretação do texto profético adequada ao contexto dos
tempos de surgimento da igreja cristã.

Palavras-chave: Exegese; Bíblia; Justificação; Vida; Fé.

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo investigar a transformação do significado


atribuído à expressão: “mas o justo, pela sua fé, viverá”, presente em Habacuque,
Gálatas, Romanos e Hebreus.
Para isso, recorremos à pesquisa exegética e hermenêutica, consultando os
textos originais. Pretendemos demonstrar as similitudes e diferenças nas abordagens
361

vétero e neotestamentárias da expressão, retratando em parte as mudanças de


enfoque teológico perceptíveis entre os Testamentos.

A CITAÇÃO ORIGINAL EM HABACUQUE

A mensagem de Habacuque é uma das mais profundas abordagens da quastão


da justiça divina ao lidar com o pecado humano (AMSLER et al, 1992, p. 134). De
acordo com Baker, Alexander e Sturz (2001, p. 323), o amor do profeta por Deus não
lhe impediu de envolver-se em um diálogo questionador sobre a justiça de suas
ações, e sobre a explicação atribuída às mesmas.
Habacuque viveu e profetizou em um período em que a brutalidade babilônica
era conhecida pessoalmente pelos habitantes de Judá. Embora não haja plena
concordância acerca da data da profecia, ou ao menos de sua compilação, a ameaça
de invasão caldeia só encontra respaldo no período entre a ascensão do império
neobabilônico, com Nebopolassar, por volta de 625 a.C., e a queda de Jerusalém sob
Nabucodonosor, em 587 a.C. (BAKER; ALEXANDER; STURZ, 2001, p. 324).
Naquele tempo, há pouco mais de um século, Judá havia presenciado o exílio
de Israel sob a Assíria, bem como a reocupação do território por estrangeiros. Os
profetas atribuíam essa situação ao declínio e gradual apostasia do reino de Israel
(CHAMPLIN, 2000, p. 3611). Judá, porém, não se isentava de violar a aliança, fazendo
com que o profeta questionasse como Deus poderia não reagir à situação, mediante
seu caráter justo (BAKER; ALEXANDER; STURZ, 2001, p. 335).
Habacuque, portanto, passa a questionar como Deus podia se calar mediante
um contexto de injustiça social, de excessivos impostos sobre os pobres, e de apoio
da liderança religiosa aos desvarios da nobreza. Surpreendentemente, Deus responde
ao profeta que a iniquidade de Judá seria punida através dos babilônios – povo ímpio
e que venerava sua própria força como capaz de lhe conceder o domínio (AMSLER et
al, 1992, p.135).
A resposta divina não reduz a indignação de Habacuque. Os caldeus eram
ímpios em sua totalidade, nunca foram servos de Javé. Judá, por sua vez, possuía
habitantes ímpios, mas também havia quem se mantivesse fiel à aliança. Como,
então, Deus usaria um povo iníquo, de crueldade proverbial, para castigar seu
próprio povo? Esta punição parecia ser maior que o necessário (BAKER; ALEXANDER;
STURZ, 2001, p. 335-336).
O profeta, então, assume a função de atalaia – alguém que deveria aguardar
ansiosamente a resposta divina. A revelação que lhe foi concedida deveria ser
exposta a toda a população em tábuas, e a mensagem deveria ser preservada para o
futuro. Haveria um tempo certo para que aquelas palavras se cumprissem
(CHAMPLIN, 2000, p. 3617). Para Baker, Alexander e Sturz (2001, p. 328), a
preservação da visão para um tempo determinado demonstra que a revelação divina
possui uma ordem planejada, no curso dos acontecimentos históricos. Para os
autores, a história não é cíclica, mas linear; encaminha-se ao alvo, que é o dia do
Senhor e o estabelecimento do reino de Deus. Ainda que demore, o fim será certo,
pois já foi divinamente determinado.
362

Embora o texto não seja suficientemente claro acerca do que era a


completude da visão que deveria ser descrita em tábuas, o trecho que receberá
maior atenção nessa pesquisa denota que se tratava de uma mensagem de
esperança A resposta divina contempla um contraste entre o justo e um ímpio,
ambos não determinados (BAKER; ALEXANDER; STURZ, 2001, p. 340). À vista do
vocabulário, percebemos que a raiz utilizada para se referir ao ímpio o caracteriza
como alguém atrevido, orgulhoso ou imprudente. A sua alma, sua inclinação pessoal,
seus desejos, não são retos. Por retidão, pode-se considerar dois principais
argumentos: a adequação de uma prática ou situação, e a capacidade de
reconhecimento da lei divina. Em ambos os casos, ser imprudente frente à retidão
conduziria, necessariamente, ao fracasso (HARRIS; ARCHER JR.; WALTKE,1998, p.
1152).
O ímpio é descrito como uma nefesh que não é reta. Todas suas inclinações
pessoais, seus anseios, seu estado emocional de alegria e bem-aventurança, está
posto em um sentido contrário à retidão, ou seja, aos corretos propósitos
estabelecidos na lei divina. Em consequência, sua alma estaria sempre voltada à
morte, como anseio pessoal e resultado de seus atos (HARRIS; ARCHER JR.;
WALTKE,1998, p. 685). Embora, como advertem Baker, Alexander e Sturz (2001, p.
341), o fim do ímpio seja implícito nesse texto, a forma como o contraste é feito com
o justo ressalta esse argumento interpretativo.
Por outro lado, o justo é visto como alguém que é reto em seu padrão ético e
moral. Essa característica se manifesta na busca pela preservação da paz e
prosperidade da comunidade, principalmente no que se refere ao cumprimento dos
mandamentos acerca do próximo. Esse estado de firmeza é retidão é concedido pelo
próprio Deus. A fé, ou fidelidade, é uma característica daqueles que foram
encarregados, por Deus, a uma responsabilidade determinada. Dessa forma, viver
pela fé não era uma consequência, mas uma atribuição divina concedida ao justo,
diretamente escolhido por ele (HARRIS; ARCHER JR.; WALTKE,1998, p. 1261-1265).
É importante considerar que a raiz verbal traduzida como viver refere-se a um
sentido holístico no Antigo Testamento. Também pode ser utilizado para referir-se a
prosperar, sustentar a vida, nutrir, restaurar a saúde, curar, recuperar. Existe uma
tendência, sobretudo nos livros de sabedoria, de relacionar a vida dos justos ao
apego a Deus. O justo é alguém que manifesta, em sua integralidade, uma atribuição
divina de viver em retidão ética e moral. Como resultado dessa missão, o justo
viveria. Note-se que se trata de viver, em toda a riqueza de significados que o
vocábulo possui, e não apenas de mera sobrevivência física.
Conclui-se, portanto, que o a comparação entre o justo e o ímpio, no texto de
Habacuque, perpassa a conduta, a motivação e o resultado que lhe são típicos. O
ímpio, alheio a Deus e a sua lei, arrogantemente se inclina para tudo que não é reto.
Enquanto isso, o justo é encarregado por Deus de levar uma vida plena, dedicando-se
ao cumprimento dos mandamentos e preservação da paz da comunidade.
363

A RELEITURA NEOTESTAMENTÁRIA

Inicialmente, é necessário considerar que Paulo apresentava um Evangelho


que foi capaz de revolucionar sua própria vida. Se anteriormente ele havia sido um
zeloso cumpridor da lei e perseguidor da Igreja, outrora tornou-se um reconhecedor
da veracidade do discurso dos discípulos acerca de Jesus, como Messias, Senhor e
Filho de Deus. Todo seu sistema de pensamento e vida, previamente estruturado em
torno da lei, teve de ser refeito em prol da justificação pela fé em Cristo (BRUCE,
2002, p. 19).
Desta forma, seu discurso não deveria apenas apresentar uma nova forma de
vida e fé em Cristo, mas corroborar sua própria transformação e refundamentação
(BRUCE, 2002, p. 20). De acordo com Guthrie (2011, p. 14), é surpreendente que
Paulo tenha descrito tão poucos pormenores acrca de sua conversão em suas
epístolas. Ainda assim, o apóstolo evidencia dois momentos que, repentinamente,
parecem ter-se-lhe tornado mais claros. O primeiro, sua separação para uma obra
específica, ocorrida antes mesmo de seu nascimento. O segundo, seu chamamento,
em que recebe a incumbência de anunciar a mensagem da graça, especificamente
aos gentios.
Embora o apóstolo não faça descrições pormenorizadas acerca de sua luta
prévia, baseada em méritos próprios, para se tornar um zeloso cumpridor da lei, essa
diferença é constantemente ressaltada em sua descrição acerca da transformação
operada pela graça divina (GUTHRIE, 2011, p. 14). Assim, podemos perceber que
Paulo reconhecia sua separação, por parte de Deus, para uma obra específica. Mas
também reconhecia sua total incapacidade de justificar-se o suficiente para isso, sem
a intercessão da graça em Cristo. A discussão desse tema se torna notória nas
epístolas, sobretudo quando escritas a grupos que estavam sofrendo influências mais
significativas da teologia judaica, como os Gálatas e os Romanos. Passaremos, a
seguir, a discorrer acerca dessas cartas e de seu argumento.
Ao escrever aos Gálatas, Paulo retoma contato com um grupo que, por ele, foi
levado ao Evangelho. Advindos de uma tradição pagã, a adoção do cristianismo foi-
lhes revolucionária. Porém, a influência de outros mestres, principalmente ligados à
igreja de Jerusalém, colocava em risco a autoridade de Paulo, incluside impondo aos
gentios a aceitação de práticas judaicas como fundamentais para a salvação
(GUTHRIE, 2011, p. 21-23).
Paulo, porém, via essas exigências como uma perversão do Evangelho, e de
seu princípio de que a salvação é dada pela graça e recebida pela fé. O apóstolo
defende que a transformação de vida proposta pelo Evangelho só pede ser acessada
mediante a fé e o Espírito, em detrimento das obras e da carne. As obras da lei
conduziriam o ser humano ao fracasso espiritual (BRUCE, 2002, p. 20).
Em conformidade com a doutrina judaica, Paulo também via Deus como o
supremo juiz da raça humana, que em um determinado dia pronunciaria seu
julgamento. Porém o apóstolo ensina que, em decorrência da obra remidora de
Cristo, já é possível saber por antecipação que os que crerem serão salvos, em
364

detrimento dos que não creram (BRUCE, 2002, p. 20). Dessa forma, a justiça divina
consideraria a fé como elemento justificador, e não as práticas.
Esse princípio é retomado em Romanos. Por ter sido posteriormente escrita
pelo apóstolo, possibilitou-lhe maior tempo para refinamento do argumento já
iniciado aos Gálatas (BRUCE, 2002, p. 19). Dirigia-se a uma igreja composta por
judeus e gentios. De acordo com Champlin (2002, p. 560), o reiterado apelo de Paulo
acerca da cegueira e eventual restauração da nação de Israel demonstram que a
congregação possuía um caráter judaico – o que poderia justificar seu interesse por
esclarecimentos relacionados ao tema.
A epístola aos Romanos é escrita sob um argumento apologético, em que
Paulo faz oposição aos judaizantes e ao conceito de salvação através das obras,
formalidades e ritos religiosos. Porém, o apóstolo tem também de discutir sobre
aspectos de natureza doutrinária e prática, como membros gentios que abusavam da
liberdade cristã e tomavam parte de alimentos oferecidos aos ídolos, bem como de
outras práticas perniciosas (CHAMPLIN, 2002, p. 565).
Tanto em Gálatas quanto em Romanos, Paulo recorre à citação de Habacuque
como uma forma de demonstrar não apenas como a igreja deveria viver, mas seu
princípio básico e pessoal de vida. Aquele que é justo, vive pela fé (BRUCE, 2002, p.
41). O apóstolo cita literalmente a tradução da Septuaginta do trecho profético, sem
qualquer interferência no significado do trecho.
É possível que essa literalidade demonstre que Paulo, em certa medida,
corrobore com o pensamento de Habacuque no que diz respeito à vida do justo pela
fé. Comparando o vocabulário utilizado nas versões hebraica e grega da citação, não
são perceptíveis grandes diferenças no significado atribuído à expressão.
Assim como no hebraico tzadiq, o grego díkaios pode se referir a um indivíduo
observador de regras, cumpridor da justiça perante os deuses, ou Deus, e os homens.
Esse sentido é atribuído tanto no uso secular do idioma, quanto no Novo Testamento.
Um díkaios é um indivíduo que, em seu aperfeiçoamento moral, manifestará a diké, a
justiça (VINE; UNGER; WHITE JR, 2002, p. 734-735).
Com relação à fé, percebe-se no grego písteos uma semelhante ênfase na
convicção, na fidedignidade e na fidelidade. A fé seria uma firme convicção, que
produz pleno reconhecimento da revelação ou verdade de Deus. Esse
reconhecimento produziria, no indivíduo, uma entrega pessoal aos propóstios
divinos, guiando dessa forma sua conduta (VINE; UNGER; WHITE JR, 2002, p. 648).
O vocábulo que se refere à vida nas citações paulinas, zêsetai, também é
utilizado de forma bastante semelhante ao hebraico ykhyeh. Refere-se à vida física,
às inclinações da vida natural, e também ao curso, conduta e caráter dos seres
humanos. É notório que o termo grego é utilizado para se referir à transformação
experimentada por ocasião da ressurreição dos mortos (VINE; UNGER; WHITE JR,
2002, p. 1057). Embora o termo hebraico não tenha uma associação tão clara com os
aspectos eternais da vida, autores como Harris, Archer Jr. e Waltke (1998, p. 454-458)
já argumentaram a favor de sua utilização nesse sentido, sobretudo nos livros de
sabedoria.
365

Depreende-se, desta avaliação lexical, que a interpretação atribuída por Paulo


ao trecho de Habacuque é coerente com sua leitura original. Ambos autores
descrevem a conduta reta e íntegra de um indivíduo escolhido e justificado por Deus,
a fim de viver em conformidade com seus propósitos.
É fato que, comumente, a contextualização dos textos conduza leitores a
relacionar o texto de Habacuque à expectativa de uma vida terrenal plena mediante
as ameaças dos babilônios, enquanto que atribui ao texto paulino uma perspectiva
mais espiritual e futura, relacionada à vida eterna. Porém, há que se considerar que
os textos podem ser interpretados por ambas perspectivas. Habacuque enfrenta
inimigos temporais, não seria possível que a vitória dos justos fosse experimentada
dentro de uma única existência física. Igualmente, Paulo discorre acerca da vida
eterna, mas mediante desafios éticos e de conduta que devem ser resolvidos ainda
no plano material.
Esse equilíbrio entre o plano físico e espiritual pode ser claramente percebido
na utilização do texto pela epístola aos Hebreus. Escrita a uma comunidade que, de
acordo com Guthrie (1983, p. 23), certamente era composta por cristãos de origem
judaica, o autor se preocupa em demonstrar a superioridade de sua nova fé em
relação às práticas judaicas – argumento já conhecido nas epístolas paulinas.
A utilização do texto de Habacuque, neste livro, remonta ao período de
perseguição e pilhagem experimentado pelas igrejas cristãs à época. Em meio a essa
situação, aquele grupo cristão pôde manter seu regozijo, pois sabia que estava
entesourando um patrimônio espiritual, muito superior e durável. Mediante o
surgimento de novas tribulações, o autor relembra as dificuldades do passado, como
uma forma de encorajá-los para que não desistam no presente (LIGHTFOOT, 1981, p.
240-242).
Dessa forma, o autor de Hebreus encoraja os cristãos a manter a perseverança
em um contexto de enfrentamento e embate material e físico. Não negar a fé em
meio aos desafios do mundo natural era uma manifestação de sua segurança
espiritual. A aparente demora para o cumprimento da promessa, assim como em
Habacuque, é retomada em Hebreus. Esta, por sua vez, também assume um caráter
proposital dentro dos desígnidos divinos. Em uma perspectiva relacional, Deus
concede ao homem a fé para que herde a promessa, e o homem se torna justo
vivendo de acordo com essa fé. O capítulo seguinte de Romanos dedica-se
pormenorizadamente a essa descrição.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Cada uma das citações da expressão alvo deste estudo, na Bíblia, é alvo de um
contexto diferente. Obviamente, isso por si já é o suficiente para levar o leitor a
depreender que o texto assuma um sentido necessariamente diferente em cada
citação. Ainda assim, é necessário considerar que existem pontos de convergência
entre os textos, fazendo com que os mesmos não sejam esvaziados de seu contexto
original.
366

A utilização do texto de Habacuque por Paulo e na epístola aos Hebreus é um


exemplo claro de citação que pode conter significados muito mais amplos, além da
tradicional associação entre Antigo Testamento e materialidade, Novo Testamento e
espiritualidade alheia à vida terrenal.
Reiteramos, portanto, a necessidade de estabelecer um traçado hermenêutico
e exegético que demonstre a ligação entre esses textos, ao invés de separá-los
através da inserção de interpretações limitantes. Apenas assim poderemos delinear
adequadamente o desenvolvimento teológico entre os testamentos.

REFERÊNCIAS

AMSLER, D.; ASSURMENDI, J.; AUNEAU, J.; MARTIN-ACHARD, R. Os profetas e os


livros proféticos. São Paulo: Paulinas, 1992.
ANTIGO Testamento Poliglota: hebraico, grego, português, inglês. São Paulo: Vida
Nova; São Paulo: Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.
BAKER, David Weston; ALEXANDER, Thomas Desmond, STURZ, Richard. Obadias,
Jonas, Miqueias, Naum, Habacuque e Sofonias: introdução e comentário. São Paulo:
Vida Nova, 2001.
BÍBLIA Sagrada: Nova Versão Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2001.
BRUCE, F. F. Romanos: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2002.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Antigo Testamento interpretado versículo por
versículo. vol. 5. São Paulo: Hagnos, 2000.
CHAMPLIN, Russell Norman. O Novo Testamento interpretado versículo por
versículo. vol. 3. São Paulo: Hagnos, 2002.
GUTHRIE, Donald. A carta aos Hebreus: introdução e comentário. São Paulo: Vida
Nova, Mundo Cristão, 1983.
GUTHRIE, Donald. Gálatas: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova, 2011.
HARRIS, R. Laird; ARCHER JR.; Gleason L.; WALTKE, Bruce K. Dicionário Internacional
de Teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998.
LIGHTFOOT, N.R. Hebreus. São Paulo: Vida Cristã, 1981.
O NOVO Testamento Grego. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 2009.
VINE, W.E.; UNGER, Merril; WHITE JR., William. Dicionário Vine. Rio de Janeiro: CPAD,
2002.
367

A SAÚDE COMO COMPONENTE DA ESPIRITUALIDADE:


POSSÍVEIS APROXIMAÇÕES ENTRE AS PERSPECTIVAS
JOANINA E WHITEANA DE ESPIRITUALIDADE INTEGRAL,
A PARTIR DE 3 JO 2

CARLOS FLAVIO TEIXEIRA


Pós-Doutorado em Teologia Bíblico-Sistemática
Centro Universitário Adventista de São Paulo
[email protected]

RESUMO: Esta comunicação trata da saúde como componente da espiritualidade,


abordando o tema à luz das possíveis aproximações entre as perspectivas Joanina e
Whiteana de espiritualidade, esboçadas a partir do conteúdo bíblico de 3 Jo 2.
Adotando o método de revisão bibliográfica, o estudo começa apresentando os
elementos textuais que sinalizam – em níveis macro, meso e micro hermenêuticos –
uma possível noção joanina de espiritualidade, destacando-se nesse contexto o papel
da saúde e suas conexões como componente essencial da religiosidade cristã. Em
seguida, tomando-se como critério a hermenêutica teológica do mesmo texto bíblico,
o estudo passa a uma noção de como seu conteúdo foi interpretado por Ellen G.
White em sua teologia, observando sua aproximação ao conceito joanino de
espiritualidade e os reflexos práticos a partir daí propostos. Com base na observação
dos pontos de vista Joanino e Whiteano quanto à noção e desdobramentos da
espiritualidade cristã, o estudo sinaliza uma possível aproximação no que pode se
chamar de “espiritualidade integral”. Lembra que essa noção propõe a importância
da coexistência harmônica das faculdades físicas, mentais e morais, mediante sua
vivência segundo as orientações divinas, o que proporciona a restauração progressiva
da imagem de Deus no ser humano. Finalmente, a partir das concepções
apresentadas, pondera frente ao emblemático cenário tendente ao esvaziamento ou
reducionismo da noção de espiritualidade na mentalidade e práxis cristã,
mencionando alguns dos dilemas e desafios recorrentes acerca do tema. Propõe a
releitura da relação entre corporalidade, mentalidade e moralidade – enquanto
“sentidos do viver” – à luz das reivindicações da noção de espiritualidade integral, de
maneira a estimular um modo de vida pleno que sinalize a pertinência da vivência
cristã em resposta aos desafios contemporâneos.

Palavras-chave: Bíblia; Espiritualidade Integral; Saúde; Perspectiva Joanina;


Perspectiva Whiteana.
368

INTRODUÇÃO

Que relação tem a saúde com a espiritualidade humana? Esse é um tema que
recentemente tem se tornado objeto de mais pontual reflexão no meio religioso e
cristão, embora teologicamente possa ser identificado como uma das preocupações
manifestas por alguns escritores bíblicos. São muitas as ocorrências bíblicas alusivas à
saúde em conexão com a vida religiosa e muitas delas permanecem abertas à
pesquisa literária e teológica. Uma dessas ocorrências pode ser notada em 3 Jo 2, na
qual o autor parece conectar a saúde com a espiritualidade no âmbito da vivência
cristã. E esse mesmo texto tem sido interpretado por diversos autores posteriores,
como no caso de Ellen G. White, em abordagens que abrem margem para reflexões
adicionais sobre o tema.

A PERSPECTIVA JOANINA DE ESPIRITUALIDADE INTEGRAL

CIRCUNSTÂNCIA SOCIOCULTURAL E ECLESIÁSTICA

Considerada uma carta pessoal que foi escrita próximo ao final da vida do
apóstolo João, seu curto conteúdo é direcionado a Gaio (v.1), um cristão quatro vezes
chamado de “amado” (v. 1, 2, 5, 11), embora também se mencione dois outros
personagens, Diótrefes (v.9) e Demétrio (v.12). O destinatário da carta é reconhecido
como alguém “prospero” (v. 2), que em relação a Deus “anda na verdade” (v. 3-4); e
em relação aos semelhantes “procede fielmente” naquilo que pratica, sejam estes
conterrâneos ou estrangeiros (v. 5). Esse modo de vida fez com que fosse
reconhecido pelos outros como alguém amoroso (v. 6) e por João como um
“cooperador da verdade” (v. 8).
Entretanto, em qualificação distinta, Diótrefes é apresentado como alguém
que impediu que uma carta de João chegasse à Igreja (v. 9a), evidenciando com isso
que “gosta de exercer a primazia” (v. 9b), não acolhe a João e os que apoiam suas
ideias (v. 9c), profere contra eles “palavras maliciosas” (v. 10b), não acolhe os que
João envia (v. 10c), além de impedir os membros da comunidade de receber esses
enviados, chegando inclusive a expulsar esses pretensos hospedeiros, e talvez os
próprios hóspedes, da igreja (v. 10d). Já quanto a Demétrio, é dito que a própria
verdade, assim como João e “todos” os demais irmãos, lhe dá testemunho (v. 12).
Nesse contexto, as “obras” de Diótrefes são consideradas em oposição ao
testemunho de Gaio, Demétrio, e do próprio João. A descrição feita mostra se tratar
de uma circunstância de divisões e desacordos entre líderes e membros da igreja. E é
claro, essas discordâncias também ocorriam em relação ao próprio João, a essa altura
já bem idoso. Pesquisadores sugerem que uma possível causa disso seria o
gnosticismo, que teria motivado as exortações presentes nas três cartas pastorais de
Paulo, as três Joaninas, além de Colossenses e Judas (RUTHERFURD, 2018, p. 1242). O
cenário era emblemático, e mesmo estando geograficamente longe, o apóstolo
acompanhava com amorável interesse as necessidades daquela comunidade cristã.
369

Embora João tenha escrito outras cartas, o conteúdo que se afigura como a
terceira representa um estágio de bastante profundidade em sua macro
hermenêutica. Nela, a perspectiva joanina se revela bastante integralista. João não
apenas mostra preocupação com as tendências cismáticas vivenciadas na igreja, mas
ao argumentar contra isso evidencia que seu pensamento não se limitava aos
assuntos e problemas práticos no âmbito eclesiástico. Para responder a tais questões,
ele apresenta argumentos que sinalizam seu olhar prévio à vida cristã, entendida no
contexto pessoal e coletivo de uma vivência integral.

A PROPOSTA JOANINA EM (CON)TEXTO

Para além do nível micro hermenêutico, nota-se, na saudação feita por João,
sua possível noção de espiritualidade, destacando-se nesse contexto o papel da
saúde e suas conexões como componente essencial da religiosidade cristã. A forma
como cumprimenta Gaio denota sua perspectiva macro hermenêutica da
integralidade cristã. O idoso apóstolo se dirige amoravelmente ao presbítero dizendo:
“Amado, acima de tudo, faço votos por tua prosperidade e saúde, assim como é
próspera a tua alma” (v. 2, ARA). Três são os conceitos mais gerais que João articula
aqui: prosperidade, saúde e alma.
O termo εὐοδόομαι (euodoomai), traduzido como prosperidade, é uma forma
do verbo grego εὐοδόω (euodoō) que aparece apenas quatro vezes no NT (duas delas
em 3 Jo 2). Tem o sentido amplo de ser exitoso, “ter sucesso em realizar alguma
atividade ou evento - para concluir, ter sucesso em” (LOUW, 1996, p. 657) e o sentido
mais específico de “estar em um bom caminho, ter sucesso, ir bem” (BALZ, 1990, p.
81). É aplicado metaforicamente tanto para um aspecto exterior da vida (recursos
materiais, como em 1Co 16:2) quanto para seus aspectos interiores (relações
afetivas, como Rm 1:10). Essa noção mais abrangente segue seu equivalente no AT,
que é ‫( צָ לַח‬ṣā·lǎḥ), que indica avançar, prosperar, progredir, “realizar com êxito uma
tarefa ou objetivo” em variados aspectos da vida (SWANSON, 1997). É possível que
ao usar o termo, João também tivesse em mente essa conotação mais geral do
mesmo.
Já a saúde é um tema que aparece na bíblia, de forma mais direta, ao menos
15 vezes, evidenciando assim sua relevância textual e, por desdobramento, teológica
(2Rs 20:7; Sl 38:3; Pv 3:8, 4:22; Is 38:16, 21; Jr 30:17, 33:6; Mt 15:31; Lc 15:27; At
3:16, 15:29, 23:26, 30; 3 Jo 2). O termo ὑγιαίνω (hygiainō), usado no NT, é um verbo
que significa “estar em boa saúde física e mental, livre de enfermidades ou doenças”
(Mt 8:13; Lc 5:31, 7:10, 15:27), bem como metaforicamente “estar livre de erros,
estar correto” (1Tm 1:10; 2Tm 4:3; Tt 1:9, 2:1); (ARNDT, 2000, p. 1023). O termo
equivalente usado no Antigo Testamento é ‫( ָשלֹום‬šā·lôm), que carrega um amplo
sentido de “paz; prosperidade, sucesso; bem-estar, estado de saúde; simpatia;
libertação, salvação” (LEXHAM, 2012).
Portanto, a forma em geral como o termo ὑγιαίνω (hygiainō) é empregado –
quanto aos aspectos físicos, mentais e morais do ser humano – indica se tratar de
uma condição ideal de existência e vivência saudável da pessoa vista em sua
370

inteireza, na qual se usufrui o máximo possível de bem estar e ausência de doenças.


Isso é conectado, contextualmente, ao fato de andar com Cristo (ou “andar na
verdade”, v. 4). Nessa perspectiva, saúde é a “condição de ser saudável no corpo, na
mente ou no espírito; [embora o termo seja] usado especialmente para saúde física”
(BRAND, 2003, p. 731). Esse conceito mais amplo de saúde ajuda a entender sua
conexão com a noção de alma, conforme articulado em 3 Jo 2.
O termo ali mencionado é ψυχή (psychē), substantivo grego usualmente
traduzido como alma. Em diferentes contextos tem diferentes sentidos e pode indicar
o ser interior (sentimentos, pensamentos, cf. At 4:32, Ef 6:6, Hb 12:3) ou mesmo toda
a pessoa (At 2:41, Rm 2:9) com sua vida (Rm 11:3). Seus equivalentes no AT são,
principalmente, ‫( נֶפֶ ש‬ně·p̄ěš), com conotação mais geral (garganta; pescoço;
respiração; ser vivo; pessoas; personalidade; vida; alma; alma morta) e ‫( לֵב‬lēḇ), com
conotação mais específica (coração, consciência, o eu interior, inclinação, disposição,
determinação, coragem, vontade, intenção); (LEXHAM, 2012). De maneira
semelhante aos usos de outros escritores bíblicos, os usos joaninos do termo ψυχή
(psychē) denotam que as vezes foi usado significando a vida como um todo (Jo 10:11,
15, 17; 12:25; 13:37-38; 15:13; 1Jo 3:16) e as vezes para destacar o aspecto interior –
ou pensamentos – do ser humano (Jo 10:24, 27; 12:27). Em 3 Jo 2, o contexto parece
apontar para a vida em sua inteireza. Nesse caso, “nenhuma divisão dualista entre
corpo e alma (com uma depreciação do lado físico da natureza humana) é pretendida
aqui” (SMALLEY, 1984, p. 346).
Em resumo, a noção de prosperidade, saúde e alma, conforme articuladas por
João, muito possivelmente seguiram a perspectiva mais geral de uso desses termos
antes expressas pelos demais escritores bíblicos. Nessa linha, a forma como o termo
saúde aparece em 3 Jo 2, relacionado à “alma”, aponta para a conexão entre a
“condição” ideal e o “ser” real. A saúde é apresentada como o estado essencial à
pessoa vista em sua inteireza. Se pensa o indivíduo nesta condição potencial,
apontando-se para a relação inseparável entre a sua realidade ontológica e sua
condição apropriada de existência. Os votos de João, portanto, poderiam ser
entendidos ao menos de duas maneiras: (1) que em tudo Gaio fosse próspero,
incluindo-se a saúde (como condição desejável), “assim como” em geral já era
próspera a alma (a vida da pessoa como um todo); (BULTMANN, 1973, p. 97;
THOMPSON, 1992; KRUSE, 2000, p. 221); ou (2) que em tudo Gaio fosse próspero,
incluindo-se aí a saúde (aspecto visível/externo), “assim como” a alma (aspecto
interior e invisível da vida); (HAAS, 1994, p. 176; STRECKER, 1996, p. 256-257;
KISTEMAKER, 2001, p. 388-390). A primeira possibilidade se afigura contextualmente
mais apropriada pelo fato de que, nos versos seguintes, a prosperidade da alma de
Gaio é caracterizada por ações visíveis e concretas que ele realiza, tais como: “andar
na verdade” (v. 4) e “proceder fielmente naquilo que pratica” (v. 5).
Contudo, em ambas as possibilidades interpretativas, a saúde é proposta como
uma condição essencial da experiência religiosa ideal aos cristãos. Fosse Gaio alguém
doente (fisicamente), ou não, isso não altera a noção de saúde integral possível de
ser observada nos bastidores da preocupação e desejo do escritor da epístola. Na
perspectiva joanina, entretanto, tal noção de saúde aparece como realidade
371

conectada ao “andar na verdade” (v. 4) e seu equivalente “proceder fielmente


naquilo que pratica” (v. 5). Saúde, nessa ótica, é condição inegável de cada aspecto
(físico-mental-moral) da espiritualidade humana submissa ao senhorio de Cristo. Este
se mostra um ideal proposto aos cristãos desde os primórdios desse movimento
religioso. Portanto, não é por acaso que em sua macro hermenêutica João conecta os
desafios eclesiásticos a uma perspectiva de espiritualidade integral, desafiando seus
leitores a também notarem essa relação. Aproximações a essa perspectiva podem ser
notadas na tratativa do mesmo tema feita por Ellen G. White.

A PERSPECTIVA WHITEANA DE ESPIRITUALIDADE INTEGRAL

CIRCUNSTÂNCIA SOCIOCULTURAL E ECLESIÁSTICA

A literatura histórica informa um complexo e desafiador ambiente


sociocultural norte-americano ao tempo que White viveu e propôs sua teologia
(LAND, 1995; SEPÚLVEDA, 1998). Algumas das ocorrências mais incidentes, na época,
incluíam: as atrocidades da guerra civil americana, o racismo, o urbanismo
desordenado, o industrialismo selvagem, a intemperança generalizada (no comer,
beber, vestir, etc), as diversões degradantes, o imoralismo social, o estilo de vida
desumano, as desigualdades sociais, a corrupção política, o utilitarismo pedagógico, e
os desvios religiosos (de um lado a manipulação e de outro a perseguição e
intolerância religiosa). Esse é o cenário em que White formulou e apresentou sua
proposta de espiritualidade integral.

A PROPOSTA WHITEANA EM (CON)TEXTO

Assim como ocorreu com João, e ocorre com os demais escritores religiosos,
White respondeu aos desafios de seu tempo com argumentos construídos a partir de
noções gerais de seu pensamento teológico. Tomando-se como critério a
hermenêutica teológica do mesmo texto bíblico Joanino (3 Jo 2), é possível notar
como o conteúdo desse texto foi apropriado e aplicado por White em sua teologia
(notadamente em sua antropologia). Em seus escritos, há citações diretas ao referido
texto, e talvez a mais conhecida seja a seguinte:

A religião pessoal é da mais alta importância. João escreveu a Gaio:


“Amado, acima de tudo faço votos por tua prosperidade e saúde, assim
como é próspera a tua alma.” 3 João 2. A saúde do corpo depende em
grande parte da saúde da alma; portanto, quer comais, quer bebais, ou o
que quer que façais, fazei tudo para glória de Deus. A religião pessoal
revela-se pelo comportamento, pelas palavras e atos. Produz crescimento,
até que afinal a perfeição reivindica o elogio do Senhor: “Estais perfeitos
nEle!” Colossenses 2:10; (MCP1, 27.1).

Nesse texto, White expressa três noções de seu pensamento teológico em


nível macro hermenêutico. A primeira, a de que a forma de vivência religiosa, no
372

âmbito “pessoal” (ou individual) “é da mais alta importância” para o ser humano. A
segunda, é que existe uma relação inseparável entre o corpo (aspecto específico,
físico, exterior e visível) e a alma (aspecto geral, todo o ser incluindo os seus aspectos
não visíveis). A terceira, é que essa individualidade integral se manifesta em palavras
e atos que tem efeitos em relação a Deus, a si mesmo, e aos demais humanos.
Em nível meso hermenêutico, estão aí articulados os elementos: antropológico
da religiosidade integral (“a saúde do corpo depende em grande parte da saúde da
alma”), intencionalidade (“tudo para a glória de Deus”) e proatividade (“palavras e
atos”), e seus correspondentes resultados, tanto soteriológico (“produz crescimento
até que...”) quanto escatológico (“afinal a perfeição”). Nesse contexto mais amplo, é
proposto que o bem estar de cada aspecto do ser está conectado e depende das
condições gerais de bem estar da pessoa, ao mesmo tempo que contribuiu ou não
para isso.
Em outros de seus argumentos, White parecer fazer “alusão” à mesma
combinação dos três verbos mencionados em 3 Jo 2. A articulação que ela faz dos
verbos prosperidade, saúde e alma, se afigura muito próxima àquela feita por João.
Lembra que: “Em todo o sentido da palavra foi Cristo um médico-missionário. Veio a
este mundo para pregar o evangelho e curar os enfermos. Como restaurador da
saúde tanto do corpo como da alma dos seres humanos. Sua mensagem era que a
obediência às leis do reino de Deus trará aos homens e mulheres saúde e
prosperidade” (CSS, 317.4).
Note que neste texto se destaca, primeiro, a saúde como interesse de Cristo e
como componente do evangelho por ele deixado aos cristãos. Em seguida, tal saúde é
apresentada como condição conjunta, tanto do aspecto físico específico (corpo),
quanto de todo o ser em sua totalidade (alma). Por fim, há uma menção de como isso
poderia ser usufruído, em prosperidade, mediante a “observância às leis do reino de
Deus”. Que leis seriam essas? perguntaria o leitor. Em outros textos, White fala em
três conjuntos de leis que correspondem, respectivamente, aos três aspectos do ser
humano visto em sua integralidade. Para ela, as leis morais (tendo como principal
expressão “os dez mandamentos”) orientam primariamente as faculdades morais; as
leis da consciência126 às faculdades mentais (racionalidade e emoções); e as leis de
saúde (ou leis naturais) às faculdades físicas (CSE, 10.2). Como essas faculdades são
vistas ontologicamente como aspectos inseparáveis do ser, as orientações divinas
dirigidas primariamente a cada uma delas também se estendem e se desdobram às
demais de forma inseparável.
Nesse cenário, o pensamento de espiritualidade integral de White propõe que,
“seja o que for que afete ao corpo tem seu efeito correspondente na mente e na

126
Algumas dessas leis interiores incluem: consciência influenciada pela graça (T5, 361.2), pura (CI, 322.3),
sensível (CP, 357.1), esclarecida (GC, 138.4), justa, culta e orientada por Deus (MS, 123.4), iluminada (MCP1,
323.5), ciente do bem e do mal (GC, 262.1), advertida (GC, 500.1), santificada (ME3, 204.4), livre para o
exercício da fé (GC, 592.3), não controlada nem manipulada (DTN, 385.2), respeitosa consigo mesmo (MCP1,
260.1), respeitosa com outros (T5, 563.2), responsável (RC, 130.5), inviolável (GC, 295.3), regida por convicções
(MCP2, 475.1), direcionadora de palavras e atos (OC, 137.4), “faculdade reguladora” (CT, 65.6), harmoniosa
com as demais leis do ser (FEC, 146.2).
373

alma” (CI, 234.5). Isso porque “a relação existente entre a mente e o corpo é muito
íntima. Quando um é afetado, o outro também o é” (CSS, 28.2). Desta forma, tanto
“um corpo doente afeta o cérebro” (Te, 14.3) quanto “o estado da mente afeta a
saúde do sistema físico” (MCP1, 59.3). E a condição de ambos impacta o exercício das
faculdades morais. Por essa razão, entendia que “a religião e as leis da saúde andam
de mãos dadas” (MCH, 315). Deus foi quem “concedeu-nos faculdades físicas,
mentais e morais” (FEC, 218.2) e deseja que elas sejam “desenvolvidas
harmoniosamente” (FEC, 433.3.). O objetivo divino é sempre “dar saúde ao corpo,
mente e espírito” (RC, 137.2).
Nessa ótica, diz White, “a questão de como preservar a saúde é de primordial
importância” (JM, 290.3). Nesse objetivo, sugere se evitar tudo aquilo que
“enfraquecem as faculdades físicas, mentais e morais” (CE, 61.2). Isso inclui a
abstinência de substâncias nocivas à saúde integral, bem como os excessos naquilo
que em si mesmo é benéfico, como por exemplo o trabalho, os estudos, etc. Quanto
a isso, disse ela em tom de estímulo a outros: “Tenho consciência do fato de que sou
mortal e preciso proteger minhas faculdades físicas, mentais e morais” (ME3, 81.4).
Além de se evitar o que é prejudicial, White valoriza como elementos
preventivos e restaurativos da saúde integral os chamados “oito remédios naturais”,
que apresentou como sendo “ar puro, luz solar, abstinência, repouso, exercício,
regime conveniente, uso de água e confiança no poder divino” (CBV, 127.2). E
completa ponderando que, “se nossa vontade e modo de viver se acham em
harmonia com a vontade de Deus e com os Seus caminhos; se fazemos a vontade de
nosso Criador, Ele conservará em boas condições o organismo humano, e restaurará
as faculdades morais, mentais e físicas, a fim de que possa trabalhar por meio de nós
para Sua glória” (CD, 19.6).

APROXIMAÇÕES, DIÁLOGOS E DESAFIOS

Numa observação panorâmica, com atenção à macro hermenêutica e teologia


dos pensamentos Joanino e Whiteano esboçados a partir do conteúdo de 3 Jo 2, é
possível notar certa aproximação de ideias, que abre possibilidade de diálogos, que
por sua vez colocam em evidência os desafios quanto à interface
saúde/espiritualidade no contexto religioso e cristão contemporâneos.
Nota-se que, tanto João quanto White assumem o que pode se chamar de
“espiritualidade integral”, paradigma teológico no qual o ser humano é visto
antropologicamente em sua totalidade (corpo, mente, moralidade), vivenciando nos
âmbitos pessoal e comunitário suas potencialidades dotadas por Deus. Nessa
perspectiva, há uma relação intrínseca – de interação e dependência mútua – entre
cada aspecto e o ser como um todo. Isso faz com que cada âmbito da vida humana
contribua para a saúde da pessoa em sua integralidade, ao mesmo tempo em que
reflete a saúde da vida em seu todo. Assim, a saúde é um componente visto como
“condição” ideal da espiritualidade humana.
374

REFERÊNCIAS

ARNDT, W.; Danker, F. W.; & Bauer, W. A Greek-English lexicon of the New
Testament and other early Christian literature. 3. ed. Chicago: University of Chicago
Press, 2000.
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Mich.: Eerdmans, 1990. v. 2.
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Health. In: Holman Illustrated Bible Dictionary. Nashville, TN: Holman Bible
Publishers, 2003.
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(Hermeneia). Philadelphia: Fortress Press, 1973.
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York: United Bible Societies, 1994.
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(Baker New Testament Commentary). Grand Rapids: Baker Book House, 2001. vol. 14.
KRUSE, Colin G. The letters of John (The Pillar New Testament Commentary). Grand
Rapids, MI; Leicester, England: W.B. Eerdmans Pub.; Apollos; 2000.
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Asociación Casa Editora Sudamericana, 1995.
LOUW, J. P.; Nida, E. A. Greek-English lexicon of the New Testament: based on
semantic domains. Electronic ed. of the 2. edition. New York: United Bible Societies,
1996, vol. 1.
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The International Standard Bible Encyclopaedia. Chicago: The Howard-Severance
Company, 1915-2018. vol. 1-5.
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Aires): Asociación Casa Editora Sudamericana, 1998.
SMALLEY, S. S. 1, 2, 3 John (Word Bible Commentary). Dallas: Word, Incorporated,
1984. vol. 51.
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John (Hermeneia). Minneapolis, MN: Fortress Press, 1996.
SWANSON, J. Dictionary of Biblical Languages with Semantic Domains: Hebrew. Old
Testament, electronic ed. Oak Harbor: Logos Research Systems, Inc., 1997.
THOMPSON, M. M. 1–3 John (The IVP New Testament Commentary Series: 3 Jn 1).
Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 1992.
WHITE, Ellen G. EGW Materials. Disponíveis em: https://egwwritings.org/, com uso
de siglas e não datados, conforme referenciado no próprio site. Acesso em 18 nov.
2020.
375

ESPIRITUALIDADE E (IN)FINITUDE: UMA REFLEXÃO A PARTIR


DA CANÇÃO [SALMO] “SE EU QUISER FALAR COM DEUS”

JOÃO LUIZ CORREIA JÚNIOR


Pós-doutor em Ciências da Religião
Professor titular da Universidade Católica de Pernambuco
[email protected]

RESUMO: No Saltério, encontram-se peças poéticas que foram compostas por


pessoas que tinham habilidade artística de expressar sentimentos que brotam de
diversas circunstâncias da complexa experiência humana. O Sl 102, por exemplo,
refere-se à oração de um oprimido que desfalece e derrama diante do Senhor sua
lamentação; o Sl 40 é a alegre proclamação de liberdade feita por alguém que viu
atendida a sua prece. Poemas como esses, eternizados na Bíblia, continuaram a ser
escritos ao longo dos séculos, em diversas culturas. O presente trabalho, na fronteira
entre Bíblia, Literatura e Música Popular Brasileira (MPB), tem como objetivo analisar
um belo poema musicado “Se eu quiser falar com Deus”, composto por Gilberto Gil,
que poderia ser tratado como um Salmo da MPB. O método utilizado na realização
desse trabalho será de análise literária e teológica, a partir da própria estrutura do
poema, que apresenta três passos para o diálogo com Deus: a) predispor-se para a
aproximação com o divino; b) assumir-se enquanto ser fragilizado em sua finitude; c)
desejar transcender-se dessa condição, na busca de infinitude. Os resultados
constatam que os Salmos transcendem a Bíblia se fazendo presentes em outras obras
na literatura. Impressiona o fato de os poetas tratarem brilhantemente de temas
essenciais à vida, por meio de singelas palavras bem escolhidas, que brotam de suas
intuições e observações subjetivas, sem terem necessariamente de dedicar-se
previamente ao estudo sistemático e teórico dos conteúdos que escreveram em seus
poemas. Gilberto Gil é, sem dúvida, uma dessas pessoas. Conclui-se que, em sua
canção “Se eu quiser falar com Deus”, o autor mostra seu lado de poeta e teólogo,
tocando com muito respeito e sutiliza em temas delicados, pertinentes à
espiritualidade, que estão contemplados no livro dos Salmos. Para quem trabalha
com a Bíblia, é interessante aguçar a sensibilidade para esse veio poético que surge
da espiritualidade profunda, ao longo dos séculos, e, surpreendentemente, continua
a se fazer presente na poética contemporânea.

Palavras-chave: Religião; Teologia; Bíblia; hermenêutica bíblica; Literatura.


376

INTRODUÇÃO

Para compreender a contribuição da Espiritualidade à condição humana de


finitude, interessa partir do próprio conceito de Espiritualidade que, de um modo
geral, reporta-se a algo que vai além da mera prática religiosa e até mesmo prescinde
dela.
Espiritualidade é algo próprio do ser humano, faz parte de sua dimensão
antropológica. Cada pessoa pode, se quiser, cultivar a espiritualidade. Ao longo dos
séculos e até hoje, homens e mulheres deixaram-se imbuir pelo Espírito de Deus,
chegando mesmo a empenhar generosamente as suas competências e a própria vida
em prol de nobres causas humanitárias. Espiritualidade é um estilo de vida, um modo
de sentir, pensar e agir segundo valores tomados como essenciais, que direcionam a
ação humana e lhe dão sentido ao longo da existência (CORREIA JÚNIOR; SOARES,
2016, p. 23-24).
O cultivo da espiritualidade se faz pela experiência do encontro pessoal com o
Divino. Impossível definir Deus, mas a sua presença está aí, para quem deseja sentir,
contemplar, conversar (falar/escutar), enfim, entregar-se à delicadeza do seu Divino
Espírito127. Deus é espírito perfeitíssimo, sopro vital, mistério divino e maravilhoso
que tudo perpassa, o “Transcendente”.
A partir da espiritualidade, a pessoa vai-se impregnando da essência desse
“Algo Mais”, deixando-se, gradativamente, transfigurar-se por sua dinâmica força
geradora de vida, assumindo, inclusive, a vocação de trabalhar em prol da criação
divina, como cocriador. Mas muito depende do querer. Se quiser, de livre e
espontânea vontade, o ser humano pode aprofundar a dimensão espiritual em sua
vida, aproximando-se de Deus. Isso está bem claro no texto da canção “Se eu quiser
falar com Deus”, composta por Gilberto Passos Gil Moreira (Gilberto Gil):

Se eu quiser falar com Deus


Tenho que ficar a sós
Tenho que apagar a luz
Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

127
A palavra “espírito”, na Bíblia, é derivada do latim spiritus, que traduz o grego pneuma (πνευμα). Em seu
significado original é muito semelhante ao sentido da palavra hebraica ruah (‫)רוח‬. A palavra “espírito” guarda o
sentido original de ruah, o movimento do ar, vento ou sopro vital, respiração. Daí o sentido de “ânimo”,
"coragem", "vigor" (MACKENZIE, 1983, p. 305, verbete “espírito”).
377

Se eu quiser falar com Deus


Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
Tenho que virar um cão
Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Se eu quiser falar com Deus


Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

O poema está muito bem articulado em três estrofes. Na sequência, percebe-


se um itinerário de autotranscedência. Na primeira, a ênfase está no predispor-se
para se colocar na presença de Deus. A segunda insiste no assumir a si mesmo, bem
como às contingências existenciais do momento. Na última estrofe, interpela-se a
ousadia de sair de si e aventurar-se, transcender-se.
O presente artigo, a partir das três estrofes de “Se eu quiser falar com Deus”,
apresenta uma reflexão sobre a espiritualidade, por meio da qual o ser humano, ao
longo do seu tempo finito (existência pessoal), em colóquios com o divino, chega a
“tocar” em sua infinitude.

PREDISPOR-SE

A primeira estrofe demonstra o que deve ser feito previamente para o


colóquio com Deus. Trata-se de um excelente itinerário espiritual, que consiste em
predispor-se para essa aproximação com o Divino:

Se eu quiser falar com Deus


Tenho que ficar a sós
378

Tenho que apagar a luz


Tenho que calar a voz
Tenho que encontrar a paz
Tenho que folgar os nós
Dos sapatos, da gravata
Dos desejos, dos receios
Tenho que esquecer a data
Tenho que perder a conta
Tenho que ter mãos vazias
Ter a alma e o corpo nus

“Se eu quiser...”, isto é, tem-se a liberdade para, quando e onde quiser, buscar
uma comunicação direta com o divino, sem intermediação de ninguém ou de
instituição religiosa alguma. É algo pessoal, de fórum íntimo.
Na comunicação/relação com Deus, a pessoa é interpelada a fazer algo por si
mesma, como um imperativo categórico: “Tenho que...”. Desse modo, para falar com
Deus, o ser humano vulnerável tem de enfrentar a si mesmo, como sugere a canção:

- apegado aos demais: “Tenho que ficar a sós”;


- medroso: “Tenho que apagar a luz”;
- tagarela, verborrágico: “Tenho que calar a voz”;
- espalhafatoso, atabalhoado: “Tenho que encontrar a paz” (=serenidade);
- oprimido pelos apertos sociais (roupas e sapatos): “Tenho que folgar os nós”;
- ansioso: equilibrar “desejos” e “receios”;
- escravo da agenda: “esquecer a data”;
- preocupado com tantas afazeres: “perder a conta”;
- apegado a bens materiais: “ter mãos vazias”;
- apegado a si mesmo: “ter a alma e o corpo nus”.

Em suma, o encontro pessoal com Deus supõe o desejo. Esse querer é


apresentado como excelente antídoto contra as mazelas que tornam as pessoas cada
vez mais vazias, do ponto de vista do sentido da vida ou mais doentes, do ponto de
vista do processo de desumanização que corrói o interior de cada pessoa.

ASSUMIR-SE

Se quiser cultivar a espiritualidade, a relação com o Divino (“falar com Deus”),


cada pessoa tem que assumir a própria condição humana e aprender a conviver com
ela e, apesar das agruras da vida, aprender a ser feliz:

Se eu quiser falar com Deus


Tenho que aceitar a dor
Tenho que comer o pão
Que o diabo amassou
379

Tenho que virar um cão


Tenho que lamber o chão
Dos palácios, dos castelos
Suntuosos do meu sonho
Tenho que me ver tristonho
Tenho que me achar medonho
E apesar de um mal tamanho
Alegrar meu coração

Percebe-se, logo de início, pelo menos três aspectos da condição humana que
devem ser enfrentados no cotidiano da vida, como algo necessário para se cultivar a
espiritualidade:

- “aceitar a dor”: acolhê-la tal como ela se apresenta;


- “comer o pão que o diabo amassou”: passar por sofrimentos (e provações);
- “virar um cão”: desempoderar-se de si, da autossuficiência

Outros três aspectos são apresentados como desafio para se cultivar a


espiritualidade:

- “lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos do meu sonho”: fazer o melhor,
na simplicidade de um servo;
- “me ver tristonho”: assumir esse sentimento como contingencial, do momento;
- “me achar medonho: perceber-se estranho e capaz de fazer o mal (mesmo quando
não quer;
- e apesar de um mal tamanho, “alegrar meu coração”: mesmo em meio a todas as
dificuldades, encontrar formas de ser feliz.
Enfim, no cultivo da espiritualidade, relativizam-se as dificuldades da vida,
enquadrando tudo como algo natural, da própria condição de ser humano. Fruto
disso é a alegria interior, algo que não vem deste mundo, mas do espírito que habita
nele, que tudo perpassa e que pode ser capaz de tudo superar.

TRANSCENDER-SE

Na última estrofe, a ênfase está na autotranscedência:

Se eu quiser falar com Deus


Tenho que me aventurar
Tenho que subir aos céus
Sem cordas pra segurar
Tenho que dizer adeus
Dar as costas, caminhar
Decidido, pela estrada
Que ao findar vai dar em nada
380

Nada, nada, nada, nada


Nada, nada, nada, nada
Nada, nada, nada, nada
Do que eu pensava encontrar

A pessoa que cultiva a espiritualidade em sua relação com o Transcendente,


sente-se impelida à autotranscedência. Para expressar essa necessidade de
autossuperação, quatro imperativos são colocados: aventurar-se; confiar; despedir-se
e caminhar com decisão. Vamos refletir sobre cinco pontos que nos parecem
importantes para melhor compreensão do texto:

a) Aventurar-se: “Tenho que me aventurar”. Aventurar-se é algo típico de pessoas


ousadas, que não se submetem ao comodismo ou desânimo. Quem cultiva a
espiritualidade sente-se motivado a buscar novas experiências, não se contentando
com o que está posto de forma medíocre.

b) Confiar: “Tenho que subir aos céus sem cordas pra segurar”. Essa é uma excelente
metáfora para expressar a necessidade de “alçar voo”, “voar”, com confiança
unicamente em Deus. A experiência de conexão com uma força superior, capaz de
impulsionar a decolar é algo sublime, embora pessoal e intransferível. Mesmo que
essa experiência com Deus possa ser narrada ou expressa de alguma forma, continua
sendo algo muito pessoal: “Eu tenho que ousar fazê-la”. Por meio da experiência de
“subir aos céus”, sente-se – na finitude do aqui e agora existencial – o frescor de uma
brisa leve que reporta à plenitude da eternidade.

c) Despedir-se: “Tenho que dizer adeus, dar as costas, caminhar”. Despedir-se das
pessoas, dos lugares e da própria vida até então vivida, é algo circunstancial à
natureza de tudo que existe, em sua realidade finita. Na despedida, é fundamental
assimilar as perdas com resiliência. Quem deseja cultivar a espiritualidade sente-se
fortalecido a “dizer adeus”, encarando as perdas com naturalidade, como bem
enfatiza a escritora Lya Luft, no belo livro “Perdas & Ganhos” (2004).

d) Caminhar com decisão: é necessário ter decisão e firmeza para dar o primeiro
passo e seguir o caminho.

e) A estrada, ao findar, vai dar em “nada”. A palavra poderia significar simplesmente


o fim do caminho. Mas ela aparece em “três” estrofes, repetida quatro vezes em cada
estrofe. Quatro vezes três perfaz “doze”. São números simbólicos no mundo antigo:
representavam totalidade, plenitude, perfeição. Pode-se inferir que essa repetição
simbólica da palavra “nada” pode representar “tudo”, algo inusitado que não se tinha
a mínima noção de que se poderia encontrar. Algo surpreendente.

Num belo trecho do livro “O tempo e a eternidade”, o teólogo gaúcho Luiz


Carlos Susin, fazendo referência ao teólogo medieval Santo Tomás de Aquino (1225-
381

1274), escreveu: “Neste mundo estamos “a caminho” (in via), e quando estivermos
em Deus estaremos finalmente “na pátria” (in pátria)”, e o caminho de cada ser
humano, em seu itinerário pessoal, está atrelado ao caminho de toda humanidade,
que vem de muito, muito longe. Conforme explica Susin (2018, p. 58):

...viemos da terra, e com ela viemos das estrelas; somos da mesma massa
da poeira estelar, da matéria-prima de todo o universo... É o universo
imenso, obscuro, caótico, indiferente à ética porque impessoal, o seio do
qual evoluímos. Este universo impessoal, sem palavras, em grandioso
silêncio não diz nada a respeito de sua origem nem do que havia antes:
simplesmente está aí... Em nossa experiência, nós viemos de alguém muito
pessoal, de nossas mães. Este é um ponto de partida inteiramente humano:
o que há de mais íntimo da pessoa, o “seio” ... O seio é a primeira metáfora
da criação, a mãe é a primeira metáfora do Criador.

Se o ser humano não veio diretamente da impessoal poeira estelar que


vagueia no espaço, mas do seio do Criador, o seu destino não se esvairá em poeira
insignificante, conclui Susin (2018, p. 58).
O final da estrada é, portanto, surpreendente. O ápice da espiritualidade, o
ponto culminante se dá na autotranscendência, na entrega altruísta e confiante de si
mesmo e das próprias expectativas, nas mãos do Transcendente: “Em tuas mãos
entrego meu espírito” (Sl 31,6; citado em Lc 23,46) (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 2002).
Essa entrega do “espírito” (ruah, sopro vital, essência divina) na verdade
oportuniza a reintegração da “consciência individual” (acrescida da “consciência
coletiva”) com Deus, compreendido aqui com a Plenitude, a Totalidade, o
Transcendente. Isso porque, como diria o filósofo francês Roger Garaudy (1913-
2012), “a minha consciência é habitada por toda humanidade na totalidade de sua
história e civilizações” (GARAUDY, 1995, p. 163). Retirar-se, pela estrada, para o
encontro pessoal com o Transcendente, supõe entrega e abandono confiante nas
mãos de Deus.

CONSIDERAÇÕES FINAIS
Impressiona o fato de os poetas tratarem brilhantemente de temas essenciais
à vida, por meio de singelas palavras bem escolhidas, que brotam de suas intuições e
observações sem terem necessariamente de dedicar-se ao estudo sistemático
daquilo que escreveram em seus poemas.
Gilberto Gil é, sem dúvida, uma dessas pessoas. Em sua canção “Se eu quiser
falar com Deus”, ele mostra seu lado de poeta teólogo, tocando com muito respeito e
sutiliza em temas delicados, pertinentes à espiritualidade. Não é qualquer pessoa que
consegue fazer isso. Muitas vezes, os próprios teólogos, “especialistas” nos estudos
sobre Deus, não conseguem alcançar tamanha sensibilidade, na reflexão teológica.
De fato, fazer a experiência do encontro com Deus exige uma decisão pessoa, mas
também um aprofundamento na vida cotidiana, por meio de um itinerário espiritual.
Trata-se de uma experiência surpreendente, que, ao findar, vai dar em nada.
Nada, nada, nada, do que se esperava encontrar... A vida, apesar de finita, é uma
382

grande oportunidade para, conscientemente, saborearmos a (in)finitude, em suas


marcas indeléveis em cada um de nós.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA DE JERUSALÉM: Nova edição, revista e ampliada. São Paulo: 2002.


CORREIA JÚNIOR, João Luiz. O místico poeta dos pobres e da libertação. In: CABRAL,
Newton Darwin de Andrade; PINA NETA, Lucy (Orgs.). “Andar às voltas com o belo é
andar às voltas com Deus”: a relação de Dom Helder Camara com as artes. Recife:
Bagaço, 2018.
CORREIA JÚNIOR, João Luiz; SOARES, Sebastião Armando Gameleira. A
espiritualidade de Jesus. São Paulo: Paulinas, 2016, p. 23-24.
GARAUDY, Roger. Deus é necessário? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed., 1995, p. 163.
LUFT, Lya. Perdas e Ganhos. Rio de Janeiro: Record, 2004, p. 154.
MACKENZIE, John L. DICIONÁRIO BÍBLICO. São Paulo: Paulinas, 1983, p. 305, verbete
“espírito”.
SUSIN, Luiz Carlos. O tempo e a eternidade: a escatologia da criação. Petrópolis:
Vozes, 2018, p. 58.
383

MUDANÇA DE ALGUNS NOMES NA BÍBLIA: MUDANÇA DE


VIDA

SELMA MARQUES DE PAIVA


Doutora em Ciências da Religião
Universidade Estadual de Goiás – UEG/GO – Campus CSEH Anápolis, GO
[email protected]

DJALMA BARRETO NEVES


Doutorando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

RESUMO: A presente comunicação visa explicitar a conotação contida no nome de


alguns personagens bíblicos, tais como Abraão e Moisés. A Bíblia relata que Deus
alterou o nome de alguns personagens para revelar uma mudança na vida dos
mesmos. O nome possuía um significado importante e, por vezes, dizia algo sobre o
caráter do indivíduo. Uma alteração no nome indicava uma mudança significativa na
vida da pessoa, com o contexto de sua vida, ou com algum tipo de esperança
vindoura. Dar um nome também era uma maneira de mostrar soberania, não
somente sobre a pessoa, mas também sobre a coisa a que se nomeava. Nos tempos
bíblicos, Deus nomeou alguns de Seus seguidores, os pais davam nome aos filhos, os
senhores davam nome aos seus escravos, Adão deu nomes aos animais no segundo
capítulo do livro do Gênesis. A Bíblia relata que Deus mudou o nome de quatro
pessoas: Abrão para Abraão, Sarai para Sara, Jacó para Israel e Simão para Pedro.
Ainda hoje existem pessoas que alteram seus nomes, baseados na numerologia, com
a crença de que conseguirão aumentar seu potencial e até mesmo mudar seu futuro.
A numerologia se baseia na premissa de que os números expressam não apenas
quantidade, mas também qualidade. Os seres humanos primitivos tinham
necessidade de poucos números para dar conta de suas vidas. A numerologia se
desenvolveu com a civilização, sendo codificada em hieróglifos egípcios, as pirâmides
foram construídas usando medidas numerológicas e simetria. A numerologia, como a
conhecemos, tem evoluído e se adaptado lentamente desde Pitágoras. Alguns
místicos empregam também a numerologia hebraica, em que os números de 1 a 12
são significativos. Citaremos alguns dos sistemas que usam a numerologia, tais como
a cabala.

Palavras-chave: Numerologia; Nome; Mudança; Cabala.


384

INTRODUÇÃO

Pelas suas estética e musicalidade, pelo que apela à memória, cada nome
tem um poder misterioso e evocador, poético e musical. Já diziam os latinos
que os nomes se convertem em presságios e o seu som em magia. (BELO,
1992, p. 8)

Para o povo da Bíblia, o ‘nome’ representa a ‘identidade’ da pessoa, aquilo que


é e o que faz (BORTOLINI, 2019, p. 17). Essa identidade vem do latim e significa “o
mesmo”. Define um tipo de igualdade, conformidade e coincidência. Foi Erik H.
Erikson que ressaltou a importância da identidade para a compreensão da sociedade
moderna, citando que a

Identidade não resulta de uma procura nem é uma construção. Ela se revela
ou nos é revelada. É uma descoberta: a descoberta de uma intimidade
anímica comum. É, portanto, uma descoberta que se faz “em comum”, em
convívio com “irmãos”, com “espíritos gêmeos”. É antes uma experiência
que um dado [...] é em primeiríssimo lugar um modo de se “experimentar a
si próprio. Identidade é, em sua essência mais profunda, um modo de se
afirmar a si mesmo. É pois um modo de “ser”, de ser indivíduo e pessoa. É
uma experiência de profundidade”, uma experiência que se desenvolve
toda no plano subjetivo. A experiência da identidade é sempre uma
experiência religiosa em seu âmago. [...] O sentimento de liberdade
interior, que a experiência de identidade desperta, inclui como contraponto
o sentido de “contenção íntima”, a sensação de poder, de energia
disponível, de reserva acumulada. Essa consciência de “unidade interior”
representa a fonte mais poderosa de “energia vital” e é de todos os sinais
de saúde psíquica o que menos se presta a equívocos (BACH, 1985, p. 309-
312).

De todos os aspectos da identidade, acima expostos, interessa-nos aquele que


é “portador da divindade”. A identidade precisa de um emblema para se exteriorizar.
Este emblema é o ‘Nome’. “Nosso nome tem um significado. Podemos pensar em
nosso nome a partir de sua raiz etimológica. Assim, por meio de nosso nome
entramos em contato com aspectos que estão em nós”, diz Anselm Grün (2016).
Para o indivíduo do período bíblico o ato de saber o nome de outrem ou de
uma divindade específica estava permeado de crenças. Trachtenberg relata:

O caráter essencial das coisas e dos homens reside em seus nomes.


Portanto, conhecer um nome é estar a par do segredo daquele que o possui
e ser senhor de seu destino [...]. Conhecer o nome de um homem é exercer
poder sobre ele sozinho. Conhecer o nome de um ser superior,
sobrenatural, é dominar toda a província sobre a qual aquele ser preside.
(TRACHTENBERG, 2013, p. 82)

Almeida (2009) relata que entre os povos da antiguidade, a doutrina do nome


estabelecia conceitos amplamente difundidos, sobretudo entre os mesopotâmios. A
doutrina preconiza o poder criador da palavra, de que uma coisa passa a existir
385

apenas a partir do momento que recebe um nome. Ora, em se tratando de alfabeto


hebraico, podemos reelaborar essa doutrina do nome e reescrevê-la do seguinte
modo: algo passa a existir ao receber um número, só podemos dizer isso pelo aspecto
duplo das letras hebraicas (número/letra).
Vê-se que o nome, pelo seu conteúdo, define nossa personalidade e dá-lhe
chances de realizar na vida o que seu nome lhe sugere.

SENTIDO DO NOME PARA A CABALA

Para a doutrina cabalista, uma palavra hebraica possui um valor numérico de


importância mística. Quando se aplica a numerologia hebraica, esse fato se torna
extremamente relevante, tendo em vista que essa numerologia consiste em verter
para letras hebraicas qualquer nome e, somando-as, chegar a um resultado numérico
final. Logo após, procura-se qual nome sagrado estaria relacionado àquela soma,
permitindo que se encontre o significado místico do nome em questão (TAGE, 2007,
p. 27).
De acordo com Rocha (2017), a cabala é tida como uma escola sapiencial, uma
maneira de se entender o mundo e seu funcionamento e que a possibilidade
irrestrita de encontrar a verdade da criação seria o sentido do viver. Segundo o
mesmo autor, ela utiliza os livros sagrados como material de estudo rigoroso e sutil, e
os entende como composições codificadas e cifradas em que o pesquisador analisa
de forma livre, ensinamentos intrínsecos dentro de sua realidade.
Tendo em vista a concepção cabalística, Oliveira (2002, p. 123) cita que

[...] a linguagem dos homens (linguagem dos nomes) originou-se, portanto,


de uma linguagem divina (linguagem das coisas), através da qual o mundo
fora constituído, ou seja, Deus teria transferido para o homem em seu
estado paradisíaco o seu poder de nomeação e, com isso, a linguagem
humana fez-se, desde os seus primórdios, tradução. Essa linguagem
adâmica permaneceu una e pura até o momento da destruição da Torre de
Babel, quando a multiplicidade linguística transformou-a em um simples
veículo de comunicação e a tradução tornou-se não somente imperiosa,
mas também o único meio de visualização daquela linguagem pura,
absoluta. Os cabalistas defenderam o ponto de vista de que “todas as
línguas nasceram da língua original sagrada, no seio da qual o mundo dos
nomes encontra-se diretamente estabelecido e explicado e, por esse
motivo, essas línguas estão ainda mais imediatamente associadas a ela”.

Sendo o alfabeto hebraico puramente consonântico, o mesmo apresenta grande


liberdade de interpretação, já que apenas no ato da leitura os sons vocálicos são
determinados. Tal fato leva o leitor do hebraico a tolerar certa ambiguidade e
identificar outras interpretações textuais, resistindo à noção de verdades e respostas
únicas. Até mesmo os textos sagrados do judaísmo apresentariam certa instabilidade
intrínseca. Dessa forma, as peculiaridades do alfabeto hebraico teriam contribuído
para que a cultura judaica desenvolvesse uma forte resistência à autoridade e ao
consenso (MATUCK, 2013, p. 221).
386

Campani (2007) descreve a relação entre o alfabeto hebraico e os números, que


apresentamos aqui:

Tabela 1: Alfabeto hebraico com observações

Fonte: Campani (2007, p. 7)

ALGUNS NOMES BÍBLICOS

No livro de Provérbios encontramos um versículo que dá ênfase à questão do


nome, onde se diz: “É preferível bom nome a muitas riquezas, e boa graça a prata e
ouro” (Pr 22,1). Tal fato confirma a importância do nome para a cultura judaica e,
particularmente, o conceito do nome associado à honra já que a mesma valoriza
bastante o que está escrito na Bíblia Hebraica. O nome é uma seta. Seta esta que
sinaliza o caminho por onde se possa palmilhar. Ela contém um chamado original que
se verifica, por exemplo, em Abraão e Moisés.
Juntamente com Moisés, Abraão é o personagem colocado no início da
identidade étnica e religiosa do povo de Israel. A sua figura assume traços
paradigmáticos devido à sua fé em Deus e ao pacto estabelecido pelo Senhor com ele
e com sua descendência, além de ser o antepassado dos profetas. Compreende-se
deste modo o motivo pelo qual a entrada na história de Abraão coincide com o seu
387

chamamento. De fato, ele é chamado a dar início a um episódio que assinala uma
fratura com o passado (os onze primeiros capítulos do Gênesis) e, ao mesmo tempo,
uma abertura a um novo início. O chamamento de Abraão é o protótipo, narrativo e
teológico, de todos os chamamentos sucessivos. Vejamos em Gn 12,1-3:

Iahweh disse a Abrão: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu
pai, para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te
abençoarei, engrandecerei teu nome; sê uma benção! Abençoarei os que te
abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. Por ti serão benditos
todos os clãs da terra.”

Em seguida, o episódio da sarça no livro do Êxodo 3,1-5:

Apascentava Moisés o rebanho de Jetro, seu sogro, sacerdote de Madiã.


Conduziu as ovelhas para além do deserto e chegou ao Horeb, a montanha
de Deus. O anjo de Iahweh lhe apareceu numa chama de fogo, do meio de
uma sarça. Moisés olhou, e eis que a sarça ardia no fogo, e a sarça não se
consumia. [...] E Deus o chamou do meio da sarça: “Moisés, Moisés!” Este
respondeu: “Eis-me aqui”. Ele disse: “Não te aproximes daqui; tira as
sandálias dos pés porque o lugar em que estás é uma terra santa.”

Nesses dois chamamentos, Deus usa os nomes de ambos os personagens


como referência pessoal a convocá-los para o exercício de uma missão especial. O
nome próprio deles é o destaque da conversa. É a distinção personalizada para a
incumbência que ambos precisam desempenhar. Deus sabe do que eles são capazes
e afeitos à missão, embora eles próprios não se sentissem à altura do desempenho
citado. Contudo, têm um alento inicial que os enleva: são chamados pelos próprios
nomes. Toda prosa alvissareira soa bem quando o nome se abre à relação. Dizem que
a melodia de que mais os nossos ouvidos gostam é a que soa na pronúncia de nossos
nomes. É por eles que todo bom relacionamento começa. Podemos dizer que a
gematria é um tipo de paronomásia, em que a grafia escrita, visual, esconde um
sentido oculto, oral. São quatro os métodos pelos quais o sistema hebraico de
gematria pode ser calculado: valor absoluto, valor ordinal, valor reduzido e valor
integral reduzido. Qual o sentido do tetragrama pela gematria?
Escrevamos nossa tabela gemátrica para que a aplicação dos cálculos fique
mais simples:
388

Tabela 2: Tabela gemátrica

Fonte: Sod (2013, p. 4)

Assim sendo, o nome YHWH, grafado como um tetragrama com 4 consoantes,


resulta no seguinte:

= 26= 10+ 5+ 6+ 5= ‫י‬+ ‫ה‬+ ‫ו‬+ ‫ה‬


Vejamos uma interpretação pela gematria:
Echad = Unidade = 13= 1+ 8+ 4= ‫אחד‬
Ahava = Amor = 13= 1+ 5+ 2+ 5= ‫אהבה‬
Logo, pela gematria (método do valor absoluto), conclui-se que
YHWH = Amor + Unidade

Dessa forma, podemos dizer que YHWH é amor e é único. Nesse caso, temos o
mesmo resultado também para o valor ordinal.
Apresentamos apenas um exemplo, mas será fácil encontrar outros tantos que
indiquem conotações diferentes. Para isso, basta encontrarmos palavras cuja soma
em hebraico resulta em 26, ou então combinações de palavras com a mesma soma
numérica.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O ato de Deus ter criado algo por meio da palavra (Deus disse), para depois
nomeá-la, é reproduzido na Torá. Percebe-se logo no primeiro capítulo do livro do
Gênesis, a criação da luz e logo após sua nomeação: “Deus disse: ‘Haja luz’ e houve
luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz
‘dia’ e às trevas ‘noite’” (Gn 1,3-5).
O misticismo judaico dá muito valor ao quesito “nome”, sobretudo na Torá, já
que a mesma apresenta o significado de diversos nomes em seus textos.
389

Trabalhamos com o nome de alguns personagens da Torá, em que foi possível a


visualização da aplicação da gematria. Percebe-se aqui, uma das riquezas que o
misticismo judaico faz questão de preservar e aprofundar cada dia mais, em busca de
obter respostas para diversas questões da vida de um indivíduo.
É provável que cada um de nós já tenha ouvido falar de alguém que tenha
mudado seu nome devido à numerologia, com o pensamento de que mudaria seu
destino. Supõe-se que tais indivíduos estariam utilizando esses recursos como
amuletos. Vale ressaltar que o uso da gematria, de acordo com a mística judaica, só
tem validade para o alfabeto hebraico. Não há justificativa para a mudança de um
nome que está escrito em outro sistema alfabético. Com certeza, seria uma outra
forma de numerologia, distinta da utilizada pelos judeus. Nesse sentido partilhamos a
ideia de Bergson (2006, p. 108), “o erro começa quando a inteligência pretende
pensar um dos aspectos como pensou o outro e aplicar-se a um uso para o qual não
foi feita”.

REFERÊNCIAS

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Curitiba: Progressiva, 2009.
ANDRADE, Leila Minatti. A escrita, uma evolução para a humanidade. Revista
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<http://www.portaldeperiodicos.unisul.br/index.php/Linguagem_Discurso/article/vie
w/167>. Acesso em: 11 jan. 2020.
BACH, J. Marcos. Consciência e Identidade Moral. Petrópolis: Vozes, 1985.
BELO, Ana. Nomes próprios. Lisboa: Arteplural, 1992.
BERGSON, Henri. O pensamento e o movente: ensaios e conferências. Tradução de
Bento Prado Neto. São Paulo: Martins Fontes, 2006.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2002.
BORTOLINI, José. Tire suas dúvidas sobre a Bíblia: 159 respostas esclarecedoras. São
Paulo: Paulus, 2019.
CAMPANI, Carlos A. P. O Canivete Suiço da Kabalah. Apostila, 2007. Disponível em: <
http://static.recantodasletras.com.br/arquivos/1257530.pdf>. Acesso em 12 de dez.
2019.
GRÜN, Anselm. Raízes: encontrando a estabilidade na vida. Petrópolis: Vozes, 2016.
MATUCK, Artur. Teoria e história da metaescritura: uma proposição para criação
artística na era digital. In: Espaços da mediação: a arte e seus públicos. Carmen S.G.
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Contemporânea em Museus e Instituições Culturais. São Paulo: Museu de Arte
Contemporânea da Universidade de São Paulo, p. 217-232, 2013.
OLIVEIRA, Maria C. C. A tradição interpretativa de rabinos e cabalistas, a crítica
literária e a tradução. Ipotesi: Revista de Estudos Literários, Juiz de Fora, v. 6, p. 117-
130, 2002.
ROCHA, Christian Robert. Kabbalah: A realidade que se esconde atrás dos véus da
ilusão. Edição do Kindle, 2017.
390

SOD, Lochem. Tratado sobre Cabalá Literal. Apostila, 2013. Disponível em:
< https://pt.scribd.com/doc/187557048/Tratado-sobre-Cabala-Literal-Gematria-
Lochem-Sod-pdf> Acesso em 12 de jan. 2020.
TAGE, Danea. Curso de Cabala Com noções de Hebraico & Aramaico. Volume I.
Lusitânia: Edições Horizonte, 2007.
TRACHTENBERG, Joshua. Jewish Magic and Superstition: A Study in Folk Religion.
New York: Martino Fine Books, 2013.
391

ANGÚSTIA E EQUILÍBRIO EMOCIONAL À LUZ DOS NOMES


BÍBLICOS CAIM E ABEL

JOSÉ GERALDO DE GOUVEIA


Mestre em Teologia Bíblica
Pontificia Università San Tommaso
[email protected]

RESUMO: A proposta deste artigo é apresentar uma leitura bíblica de um texto


bastante conhecido, a história de Caim e Abel, mas pouco explorado no que diz
respeito à etimologia destes nomes. O nome no antigo Oriente define a essência de
uma pessoa. A leitura acontecerá exatamente a partir deste viés etimológico. Os
objetivos desta leitura dentro de uma perspectiva etimológica é demonstrar o quanto
uma interpretação bíblica pode ser enriquecida quando se conhece o significado dos
nomes próprios, no presente caso a partir dos significados dos nomes Caim e Abel
evidenciar uma angústia que faz parte da natureza humana ao enfrentar seus limites,
contudo necessária, pois o ser humano precisa ser Caim e Abel. Salientar também,
que sem este conhecimento etimológico dos nomes, muitos desafios se
apresentarão, alguns estranhos ao próprio contexto literário podendo até mesmo
resultar numa interpretação equivocada da narrativa bíblica. O método utilizado para
esta proposta de leitura é o histórico-crítico acrescido de uma abordagem semiótica
em nível discursivo. A pesquisa se desenvolve a partir de dados bibliográficos e
etimológicos, resgatando a importância do significado dos nomes. Como resultado,
esta leitura com viés etimológico dos nomes proporciona um enriquecimento na
compreensão da narrativa bíblica. Sem mencionar que esta leitura possibilita ver o
texto bíblico como Palavra de Deus, inspirada, mas em linguagem humana, dentro de
um contexto redacional específico, em que o significado de cada nome muitas vezes
ignoramos. Como resultado e conclusão desta proposta de leitura tem-se o resgate
(ao menos em parte) de um aspecto da literatura semita, o que contribui para uma
melhor compreensão das traduções bíblicas hodiernas, nem sempre capazes de
transmitir aquilo que o autor sagrado deixou como mensagem, no presente caso uma
contribuição espiritual capaz de proporcionar o equilíbrio emocional indispensável à
vida humana.

Palavras-chave: Caim; Abel; Angústia; Nomes; Equilíbrio.

INTRODUÇÃO

O presente artigo é uma proposta de leitura bíblica utilizando uma via não
muito convencional, a do significado dos nomes. A etimologia e o significado dos
392

nomes bíblicos podem enriquecer bastante uma narrativa. Para salientar a relevância
desta proposta, será utilizado como exemplo, a história dos irmãos Caim e Abel, que
o livro do Gênesis apresenta como os primeiros “filhos” de Adão e Eva. Estes irmãos
são famosos, sobretudo, por causa da tragédia que os envolveu, um fratricídio. Caim
matou seu irmão Abel. No livro intitulado “Palavra, Parábola”, do Padre Rômulo
Cândido de Souza, existe um comentário sobre este fratricídio mostrando a
impossibilidade de Caim ter matado Abel, ao menos no sentido histórico. Inclusive,
segundo o livro citado, Caim poderia argumentar a seu favor: “Se eu for Caim, não
sou filho de Adão e Eva. E se eu for filho de Adão e Eva, não sou Caim” (SOUZA, 1990,
p. 5). Esta afirmação citada é uma provocação no sentido de demonstrar que a
história de Caim e Abel não pode ser lida como uma narrativa histórica, não é um fato
histórico pontual, com data e endereço definidos.
A literatura bíblica usa bastante um recurso que acabou sendo ignorado com o
passar dos séculos: o significado dos nomes próprios. Aliás, sem o conhecimento
deste artifício literário, não seria possível uma abordagem que entendesse de fato a
mensagem do autor sagrado em muitas situações. Faz-se necessário, portanto, como
afirma Fitzmyer (1997, p. 13), que “os leitores atuais voltem no tempo para alcançar
uma compreensão apropriada” da Palavra de Deus, pois “a tensão entre o que
significava e o que significa, entre sua redação antiga e seu objetivo atual, cria a
dificuldade de entendê-la”. A mensagem nas entrelinhas do texto, a partir do
significado dos nomes, em algumas situações é fator crucial.
A releitura do texto em questão, Gn 4,1-16, levará em conta a etimologia dos
nomes Caim e Abel, a partir de pesquisa bibliográfica de vários autores e assim
aponta novas possibilidades de leituras, sobretudo, chama a atenção para a riqueza
de certas mensagens que somente serão evidenciadas levando-se em conta a
etimologia dos nomes, caso contrário a leitura permanecerá obscura e até mesmo
sem sentido, quando não contraditória com a imagem que se tem sobre Deus nos
mesmos textos bíblicos. Evidentemente, outros nomes relacionados aos de Caim e
Abel serão necessariamente citados na elaboração deste artigo, o que possibilitará
novas reflexões e abordagens na leitura bíblica.

A SÍNDROME DE DEUS HERDADA POR CAIM

Para se descrever a história de Caim sem prejuízo à mensagem proposta pelo


hagiógrafo, faz-se necessário “conhecer seus pais”, Adão e Eva, evidentemente uma
descrição literária, não se trata de um texto histórico ou científico. Como afirma o
professor Isidoro Mazzarolo (2011, p. 98), “esses personagens não são históricos, mas
representativos”. Em Gn 1,26a pode ser lido: “Deus disse: ‘Façamos o homem à nossa
imagem, como nossa semelhança’”. A palavra homem usada no texto hebraico é
adam; como descreve Zorell (1989, p. 13) este vocábulo é empregado no sentido
genérico para descrever a espécie humana, ou humanidade. O homem criado é
imagem e semelhança do seu Criador. Imagem e semelhança revela uma proximidade
muito grande entre criatura e Criador, contudo, deixa claro ao mesmo tempo que o
homem criado não é Deus, é imagem Dele. No fundo é uma reflexão sobre a
393

transitoriedade e os limites humanos, ou ainda sobre a mania humana de querer


ocupar o lugar de Deus exatamente por causa da dificuldade de enfrentar estes
mesmos limites.
Percebe-se logo de início que Gn 3 descreve uma história fictícia, fantasiosa
(serpente que fala), entretanto, com profunda perspicácia sobre a condição humana,
imagem de Deus, mas humano (adam em hebraico significa terra). O autor sagrado
de Gn 3 expressa esta condição humana que é real e observável através de uma
narrativa fictícia, mas que não deixa de ser verdadeira e muito concreta, afinal a
vontade de ser maior, de superar obstáculos e crescer está presente em cada ser
humano. Caim é herdeiro desta realidade humana, não só ele, mas é uma
característica que faz eco através das eras, marca singular da humanidade.
O ser humano recém-criado (adam), de quem Caim é herdeiro direto, se revela
desobediente e astuto. Primeiro sucumbe à tentação pois deseja ser como Deus,
conhecedor do bem e do mal (Gn 3,5). Depois não assume sua responsabilidade
diante da transgressão feita. Tenta se justificar praticamente alegando inocência: “O
homem respondeu: ‘A mulher que puseste junto de mim me deu da árvore, e eu
comi!’” (Gn 3,12). Ora, quem fez a mulher? Deus a fez. Logo a culpa é de Deus, não
do homem. Noutras palavras o homem está afirmando que se Deus não tivesse feito
a mulher dando-a por companheira ele não teria sido tentado e nem comido do fruto
proibido. Conclusão: Deus é o responsável por sua desobediência. Com isto o autor
sagrado demonstra profunda sensibilidade em relação à condição do homem,
grandioso porque imagem divina, e frágil porque é poeira (adam, terra), com
dificuldades básicas como a de assumir um erro cometido. Esta é a condição herdada
por Caim, uma síndrome, que está expressa com todas as letras em Gn 3, onde o ser
humano recém-criado manifesta seu desejo de ser maior, de ser como Deus mesmo.
Esta breve reflexão é importante para se compreender a história de Caim e sua
trágica relação com seu irmão Abel.

A ANGÚSTIA E A TRISTEZA DE CAIM

Esta narrativa de Gn 4,1-16, embora singular enquanto história, é parte de um


conjunto literário (Gn 1-11), como uma colcha de variados retalhos, com cores e
formatos diversos, mas com o mesmo propósito e a mesma mensagem: descrever a
condição do ser humano, uma criatura “quase Deus”, com anseios de ser como Deus.
Aliás, esta pretensão humana de ser Deus, que é característica marcante em Gn de 1-
11, quer demonstrar a importância deste fato enquanto aspecto singular do ser
humano. Uma criatura com sede de Deus, e às vezes, sede de ser como Deus.
Caim também se revela um ser insatisfeito, angustiado. Não se conforma com
a decisão do Criador que preferiu a oferenda de seu irmão Abel em detrimento à sua
(Gn 4,3-5). Como salienta Roland E. Murphy (2007, p. 68), “a maioria dos
comentaristas acredita que a oferta de Abel foi da parte seleta, e a de Caim não, mas
a ênfase recai sobre a inescrutável aceitação de Iahweh de um e não do outro”. Seria
esta a razão pela qual Caim teve sua oferta rejeitada? Aqui se encontra a motivação
394

do assassinato de Abel? São questões abertas e o presente artigo irá salientar um


outro viés do texto.
O nome de Caim, de acordo com John L. Mckenzie (1984, p. 133) está envolto
por muitas lendas, contudo, o hebraico qayin, significa artífice, ferreiro; mesma
afirmação de Santos (2006, p. 79). Aqui fica claro a “argumentação” de Caim citada
acima: “Se eu for Caim, não sou filho de Adão e Eva” (SOUZA, 1990, p. 5). Ora, se
Caim significa ferreiro, de fato ele não poderia ser filho de Adão e Eva, já que este
profissional só apareceria muito mais tarde (supondo evidentemente que Adão e Eva
estariam no início da história humana), e o uso do ferro só se tornaria realidade por
volta de 1200 a.C., época do êxodo. Esta reflexão pode parecer tola ou quase
ingênua, contudo, serve para dizer que a narrativa em questão não é histórica, mas
teológica, simbólica. E para corroborar esta tese existe uma ampla base etimológica
ligada à sonoridade de Caim. Caim (qayin) está ligado “à raiz hebraica qan, qin, qun,
que significa bater, golpear, malhar o ferro” (SOUZA, 1990, p. 6). De acordo com
Alonso Schökel (1997, p. 579), qin está ligado à ideia de lamento, choro, tristeza etc.
Isto soa quase como uma indicação da atitude fúnebre de Caim. Afirmação
encontrada também em Holladay (2010, p. 451) que descreve qin e qinah como
palavras ligadas ao canto fúnebre. Além dessas possibilidades, De Vaux (2003, p. 67)
salienta que o nome Caim pode estar relacionado com a circunstância particular do
seu nascimento, no caso com aquilo que a mãe de Caim diz ao dar à luz: “adquiri um
homem”; na língua hebraica forma-se um jogo de palavras entre o nome Caim (Qayn)
e o verbo adquirir (qanah).
Independente da falta de um consenso maior, a etimologia do nome Caim,
dentro do conjunto redacional de Gn de 1-11, já indica ao menos uma mensagem
importante, até porque encontra respaldo neste mesmo contexto: a pretensão
humana de se rebelar contra Deus e usurpar seu domínio. Sim, Caim se rebelou. Não
aceitou a escolha de Deus. Vai bater de frente contra a decisão de Deus. Vai até
mesmo tentar o impossível, matar o vento.

CAIM E A MORTE DO VENTO. CULPADO OU INOCENTE?

Na defesa de Caim nem precisaria advogado. Abel, o irmão assassinado, na


vida real não poderia ser morto. Não se mata o vento. Sim, Abel significa, sopro,
vento, suspiro; vazio, nada, vacuidade, irrealidade, vaidade etc. (ALONSO SCHÖKEL,
1997, p.166). Não é possível matar o nada, o vazio ou o vento. Contudo, este
fratricídio fica mais interessante quando se descobre sua impossibilidade. Para isso
basta uma releitura dos fatos, ou melhor seria dizer, da ausência dos fatos, ao menos
no sentido histórico.
Em Gn 3 adam tentou ser como Deus, “conhecedor do bem e do mal” (v.5). O
resultado foi desastroso. O homem descobriu apenas que estava nu, isto é, sua
pequenez. O atentado contra a soberania de Deus jogou por terra apenas a vaidade
do homem, mas não o projeto divino, a humanidade deve continuar, e assim a vida
criada, Adão e Eva (adam, hawwah) gerou novas vidas, qayin e habel, ou
simplesmente Caim e Abel. Levando-se em conta a etimologia e o significado dos
395

nomes é possível perceber muito mais do que se poderia imaginar. Os “filhos” de


Adão e Eva não poderiam ter outros nomes. Teriam que ser chamados de “ferreiro” e
“sopro”.
Para os ouvidos modernos ferreiro se tornou apenas um profissional do
passado. Mas a Idade do Ferro foi um marco na história. Ser ferreiro não era tarefa
fácil. Era preciso um aprendizado demorado e exaustivo. Tudo era feito a partir da
força muscular. Assim, era preciso muito suor no fabrico das primeiras armas e
utensílios de ferro. Tarefa extremamente custosa. Era na base do fogo, suor e muitos
golpes. Este era o perfil de um ferreiro. Mas qual a ligação deste profissional com o
Caim bíblico? Como foi demonstrado antes, Caim significa ferreiro, por consequência
aquele que golpeia o metal, aquele que bate. Existe até um som que é comum no
ambiente dos ferreiros que imita o nome Caim. É o som do martelo golpeando a
bigorna repetidamente: “Caim! Caim! Caim!” Um som que reproduz um nome ou
uma realidade, a isto dá-se o nome de onomatopeia. De sorte que sem forçar a
palavra, Caim significa aquele que golpeia, o que bate. É exatamente isto que
acontece na história: Caim golpeia Abel.
A mensagem bíblica sobre Caim e Abel vai muito além da história em si. A
narrativa quer expressar exatamente uma particularidade humana, um ser aberto ao
infinito, inquieto, insatisfeito, e ao mesmo tempo ancorado nos limites de sua
realidade adâmica: “argila do solo” (Gn 2,7), como adverte a sentença proferida pelo
Criador após a queda: “Pois tu és pó e ao pó tornarás” (Gn 3,19). Portanto, a vida
humana precisa ser Caim, aquele que bate, golpeia, que tem a persistência de um
ferreiro e, ao mesmo tempo, não se esquecer que o Abel não pode ser morto. A
consciência da transitoriedade humana é essencial para manter o desejo do
crescimento saudável, sem o Abel (sopro, vento, suspiro, etc.) perde-se a humildade
e o homem se perde na ilusão de ser Deus. De sorte que a história de Caim e Abel
serve de alerta e exortação. Alerta porque não se pode ignorar ou matar o Abel, o
homem é um sopro de vida; exortação porque não se pode condenar o Caim, ele é
necessário na dinâmica da vida, um martelo que golpeia os obstáculos e possibilita
novos horizontes, sem ele restaria só o vazio (Abel).
Não seria exagero afirmar que em Jesus de Nazaré encontra-se o ser humano
que viveu o equilíbrio entre Caim e Abel. Jesus teve a força, a coragem, a persistência
(Caim), virtudes necessárias para quebrar a estrutura desumana vigente e abrir as
portas cerradas por homens desequilibrados (pessoas que acreditavam apenas na
realidade de Caim, batedores, ditadores, tiranos) e não perdeu a serenidade de Abel,
manteve a consciência de sua transitoriedade enquanto homem. Em Jesus vê-se
claramente a força (Caim) e a fragilidade humana (Abel), cuja expressão máxima
pode ser contemplada na cruz.

CONCLUSÃO

A consciência de que um texto bíblico precisa ser lido considerando seu


aspecto literário já não é nenhuma novidade, entretanto, o significado dos nomes no
contexto redacional bíblico precisa ser resgatado. Segundo Roland De Vaux “Como
396

entre os povos primitivos, o nome em todo o antigo Oriente define a essência de uma
coisa” (2003, p. 66). Segundo ainda De Vaux (2003, p. 67), “Finalmente, como o nome
define a essência, revela o caráter e o destino daquele que o tem”. “Inclusive os
nomes bíblicos normalmente são verdadeiras mensagens que, além de identificarem
determinados personagens, expressam de fato a história daquelas pessoas, desvelam
sua vida e sua missão” (GOUVEIA, 2015, p. 15). E assim, se a tarefa de um tradutor
em si já representa enorme desafio, já que todo tradutor é de certo modo um traidor
como dizem os italianos (traduttore traditore), desconhecer o significado dos nomes
bíblicos empobrece consideravelmente o entendimento da própria Bíblia. O presente
artigo teve como propósito provocar uma reflexão neste campo, possibilitando assim
uma leitura bíblica mais contextualizada.
Percebe-se ainda que na medida que se descobre o significado dos nomes
bíblicos a leitura ganha leveza e harmonia em relação com a própria história que é
narrada, desfazendo certas arestas difíceis de serem entendidas de outro modo. Ora,
a Bíblia não é para criar dificuldades ou ser um peso. O próprio Jesus de Nazaré ao
interpretar as Escrituras Sagradas faz duas afirmações que não podem ser
esquecidas. Primeiro que Ele não veio para modificar os textos bíblicos, mas para
cumpri-los: “Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los,
mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17)128. E depois que a palavra não pode ser
um peso ou um entrave, pois Deus não é um fardo, e Jesus conclui: “pois o meu jugo
é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,30). Ora, se Jesus diz que sua proposta (que é
bíblica) não é pesada, porque alguns insistem em torná-la pesada?
Assim, a narrativa sobre Caim e Abel é um instrumento literário usado por
Deus, cujo propósito é melhor percebido dentro do contexto de Gn 1-11, composto
de variadas histórias, mas com um ponto em comum, deixar claro a soberania de
Deus e a importância do homem, imagem do Criador. De sorte que cada ser humano
precisa do Caim. Não é possível viver, crescer, sem a persistência do ferreiro (Caim);
mas não se deve matar ou desprezar o Abel, o homem que perde a consciência de
seus limites (Abel) perde o equilíbrio necessário para uma vida saudável.

REFERÊNCIAS

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FITZMYER, J.A.; A Bíblia na Igreja. São Paulo: Loyola, 1997.
GOUVEIA, J. G.; Os Filhos de Eva. A Teologia dos nomes bíblicos. Uberlândia: A

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As citações bíblicas seguiram A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1987.
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ZORELL, F.; Lexicon Hebraicum Veteris Testamenti. Roma: Editrice Pontificio Istituto
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398

EX 1,15-22: O VIVER E O MORRER NAS MÃOS DE DUAS


PARTEIRAS

REGINALDO DE ABREU ARAUJO DA SILVA


Doutorando em Ciência da Religião
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)
[email protected]

RESUMO: Este trabalho pretende fazer uma leitura do trecho bíblico de Ex 1,15-22,
que narra a atuação de duas parteiras, chamadas Séfra e Fua, no Egito, que deveriam
matar os meninos hebreus e salvar as meninas hebreias, por ordem do rei do Egito.
Porém, por temerem a Deus, ambas desobedeceram ao rei e mantiveram vivos os
meninos. A leitura pretende mostrar os elementos vida e morte da narrativa e
apontar para a conexão entre religião e saúde. Pretende também fazer uma leitura
de alguns elementos da narrativa na perspectiva da psicologia analítica de C. G. Jung.
Trata-se de um estudo bibliográfico a partir da análise exegético-teológica dos livros
sobre o Êxodo de Pablo Andiñach, Brevard Childs, Alex Villas Boas e Matthias Grenzer
e da análise de conceitos da psicologia analítica propostos pelos autores junguianos
Murray Stein e Edward F. Edinger. O estudo mostrará que os temas religião e saúde
estão conectados na narrativa uma vez que a religião está representada pelo temor
das parteiras a Deus e a saúde representada pelo trabalho dessas mulheres, de trazer
as crianças ao mundo, num contexto em que delas dependia o êxito dos partos e,
portanto, de ser dada à luz cada nova vida. Isto implica em saúde, proteção e
preservação da vida. Também apontará para a conexão entre religião e morte, uma
vez que a narrativa bíblica conta o objetivo do rei egípcio de matar os meninos
hebreus e mostra que a influência da religião levou as parteiras a driblar o faraó e
evitar a morte. O morrer e o viver de novos rebentos do povo israelita dependiam
dessas duas mulheres tementes a Deus. A interface com a psicologia analítica
mostrará alguns elementos da psique das personagens principais, o faraó e as duas
parteiras, a partir dos conceitos de ego, persona, consciente, inconsciente e Si-
mesmo.

Palavras-chave: Parteiras; Matar; Viver; Religião; Psicologia analítica.

INTRODUÇÃO

O objeto de estudo deste trabalho é o texto bíblico de Ex 1,15-22. Este trecho


do livro do Êxodo narra a atuação de duas parteiras, chamadas Séfra e Fua, no Egito,
que deveriam matar os meninos hebreus e salvar as meninas hebreias, por ordem do
399

rei do Egito. Porém, por temerem a Deus, ambas desobedeceram ao rei e


mantiveram vivos os meninos.
A leitura a se fazer pretende mostrar os elementos vida e morte da narrativa e
apontar para a conexão entre religião e saúde. A religião representada pelo temor
das parteiras a Deus e a saúde representada pelo trabalho dessas mulheres, de trazer
as crianças ao mundo, num contexto em que delas dependia o êxito dos partos e,
portanto, de ser dada à luz cada nova vida. Isto implica em saúde, proteção e
preservação da vida. A leitura também pretende apontar para a conexão entre
religião e morte, uma vez que a narrativa bíblica conta o objetivo do rei egípcio de
matar os meninos hebreus e mostra que a influência da religião levou as parteiras a
driblar o faraó e evitar a morte. O morrer e o viver de novos rebentos do povo
israelita dependiam dessas duas mulheres tementes a Deus.
Trata-se de um estudo bibliográfico, tomando como base o texto bíblico da
“Bíblia de Jerusalém”, com suas notas explicativas; a “Bíblia do Peregrino” com suas
notas explicativas; a obra do teólogo Pablo R. Andiñach, “O Livro do Êxodo: um
comentário exegético-teológico” e a obra do teólogo Brevard Childs, “El Libro del
Éxodo: comentário crítico y teológico”. Também servirão de base os artigos “A
resistência das parteiras (Ex 1,15-22): especificidades de uma teologia literário-
narrativa”, de Alex Villas Boas e Matthias Grenzer, e “Em defesa da criança (Ex 1,15-
2,10)”, de Matthias Grenzer.
Será feita também uma interface com a psicologia analítica de Carl Gustav
Jung, analisando alguns elementos simbólicos na perspectiva dos conceitos de ego,
persona, consciente, inconsciente e Si-mesmo (Self), chegando, assim, a
compreender alguns elementos da psique dos protagonistas: o faraó e as duas
parteiras. Serão utilizados os conceitos apresentados pelos estudiosos junguianos
Murray Stein, na obra “Jung: O mapa da alma: uma introdução”, e Edward F. Edinger,
na obra “Ego e arquétipo: uma síntese fascinante dos conceitos psicológicos
fundamentais de Jung”.

O VIVER E O MORRER E A INTERRELAÇÃO RELIGIÃO E SAÚDE

O texto bíblico escolhido narra a conversa entre o rei do Egito e duas parteiras,
às quais dá instruções para que matem os meninos hebreus na hora do parto. Elas,
no entanto, desobedecem à ordem do faraó, rei do Egito e, ao serem questionadas
sobre o não cumprimento da ordem dada, mentem ao rei com a explicação de que as
mulheres hebreias são cheias de vida e não precisam de parteiras. A atitude delas é
uma forma de se rebelar contra o rei poderoso. Tal ousadia poderia condená-las à
morte, porém, sua astúcia é capaz de enganar o soberano poderoso e cruel. Andiñach
diz que “Ao desejo de morte dos poderosos as mulheres contrapõem sua vocação à
vida e sua vontade de proteger as crianças”. (ANDIÑACH, 2010, p. 27).
A atitude estratégica de recorrer a uma mentira parece, como diz Grenzer, um
momento humorístico da narrativa. Pois dá-se a entender que o faraó, apesar de
muito poderoso, não entende nada de mulher, nem de parto. (GRENZER, 2006, p.
30). Ou seja, não entende nada de saúde. Não tem conhecimento sobre cuidar da
400

saúde das mulheres submetidas ao seu domínio. As parteiras, no entanto, são as


pessoas preparadas para cuidar da saúde das parturientes e dos recém-nascidos;
mulheres simples, que têm a experiência de lidar com a vida vindo ao mundo.
O que poderia ter levado essas duas mulheres a agir com esperteza e ao
mesmo tempo com uma resistência pacífica seria o fato de serem mulheres e a
própria experiência da sua profissão. As mulheres podem ter uma proximidade maior
com os segredos da vida. “Somente elas podem carregar um filho, durante nove
meses, debaixo do coração e, por isso, é provável que saibam melhor quanto custa
gerar uma vida.” (GRENZER, 2006, p. 30). As parteiras ainda têm a oportunidade, por
causa do seu trabalho, de estar diante do milagre da vida, o que as torna mais
sensíveis a promover a defesa e a proteção da vida. Luís Alonso Schökel diz que as
parteiras têm uma “presença quase materna nas fontes da vida”. (SCHÖKEL, 2017, p.
94, nota 1,15-22).
A narrativa apresenta os nomes das parteiras. Apresentar seus nomes indica a
importância da sua ação, importância ressaltada pelos significados dos nomes. Uma
se chamava Sefra e a outra Fua. Sefra vem do verbo hebraico “ser agradável” ou
“agradar”; ela é aquela que agrada. Fua vem do verbo hebraico “resplandecer” ou
“raiar”; ela é aquela que brilha. (VILLAS BOAS; GRENZER, 2015, p. 138). Sefra pode ser
interpretada também como “bela”, e Fua como “menina” ou “jovem”. (ANDIÑACH,
2010, p. 29).
Mas o que a narrativa nos conta é muito grave. O rei do Egito, deu-lhes a
ordem de matar os meninos hebreus assim que nascessem, ou seja, “o poder
opressivo insiste na morte dos meninos hebreus”. (VILLAS BOAS; GRENZER, 2015, p.
139).
A morte dos meninos é o objetivo do faraó. Brevard Childs diz que a atitude do
faraó de dizer às parteiras para que matassem os meninos no momento do parto era
uma traição secreta, um plano encoberto de praticar tamanha crueldade. (CHILDS,
2003, p. 54).
O Professor Valmor da Silva afirma que se tratava de um mecanismo extremo
de opressão de redução drástica da população e que isto era pior que um
mecanismo, pois era “um plano macabro de extermínio” (SILVA, 2001, p. 5 de 10).
O governante escravizador do Egito planeja a morte dos inocentes. Mas, seu
plano falha porque as duas parteiras não lhe obedecem. Eis a relação religião e
morte, pois as parteiras, conforme Childs, “se negaram a obedecer à ordem não
porque desafiassem corajosamente o rei, nem por sua lealdade aos hebreus, mas sim
porque ‘temeram a Deus’”. A verdadeira causa do fracasso do plano de morte é o
temor de Deus que as parteiras têm. (CHILDS, 2003, p. 56).129
Schökel afirma que, além de serem as parteiras movidas a agir contrárias ao
faraó por causa da sua presença quase materna diante da vida que nasce diante das
suas mãos, elas foram movidas também por sua religiosidade, que, para o teólogo, é
o respeito por Deus. “Para elas, respeitar a Deus (...) é respeitar a vida, mesmo com
perigo de morte”. (SCHÖKEL, 2017, p. 94-95, nota 1,15-22). Podemos notar nessa

129
Tradução nossa do espanhol.
401

desobediência das duas parteiras a interrelação do viver e do morrer, pois ao


defender a vida dos recém-nascidos elas colocavam a própria vida em perigo.
Também a interrelação do viver e do morrer está no contraste entre a ordem cruel
do faraó e a decisão das parteiras de salvar as vidas das crianças. Andiñach diz que
elas agiram com astúcia e criatividade para garantir que saíssem com vida da frente
do faraó. (ANDIÑACH, 2020, p. 30). Valmor da Silva mostra também essa interrelação
do viver e do morrer quando afirma que há um contraste entre o projeto de morte
exacerbado do faraó e um projeto divino de vida (SILVA, 2001, p. 5 de 10).
Podemos também notar a conexão religião e saúde, ou seja, a religião das
parteiras, caracterizada pelo temor de Deus, levou-as a agir contra o plano genocida
do rei cruel. A religião determinou a ação em favor da vida, obstruindo o plano de
morte. A saúde das parturientes e das crianças, saúde no sentindo de vida
preservada, estava garantida com a atitude das parteiras.

UMA LEITURA DOS PERSONAGENS NA ÓTICA DA PSICOLOGIA ANALÍTICA

A narrativa não apresenta o faraó com seu nome próprio, o que poderia
sinalizar, em psicologia analítica, para o conceito de persona, que é uma estrutura
psíquica que se compreende como “a interface entre o indivíduo e a sociedade que
constitui a identidade social de uma pessoa”. (STEIN, 2006, p. 206). A persona não se
trata da pessoa em si, mas de uma máscara social que a pessoa emprega, e pode
chegar ao extremo da pessoa se confundir com a persona. Não ter nome indica a
ausência de um conteúdo de estabilidade do ego. (STEIN, 2006, p. 30). O indivíduo já
não se apresenta com a sua identidade, mas se confunde com a função ou
representação social que tem diante da sociedade. Não ter nome na narrativa pode
indicar que o indivíduo, que está por trás da persona faraó, já não se reconhece a si
mesmo, mas somente como sua máscara social.
Também podemos identificar um processo de projeção psíquica da parte do
faraó. A projeção é “a exteriorização de conteúdos psíquicos inconscientes, ora para
fins defensivos (...), ora para fins de desenvolvimento e integração (...).” (STEIN, 2006,
p. 206). Nos versículos anteriores no mesmo capítulo 1 de Êxodo, a narrativa bíblica
conta que o faraó afirmou que o povo israelita se tornara mais numeroso e mais
poderoso que os egípcios e que era preciso tomar medidas sábias para impedir o
crescimento do povo israelita, pois se houvesse guerra, os israelitas aumentariam o
número de adversários dos egípcios e sairiam do país (Ex 1,9-10). Assim podemos
pensar que o faraó do Egito projeta nos escravos conteúdos inconscientes, que
poderiam ser a sua incapacidade na administração ou seu sentimento de
inferioridade perante um povo que se mostrava mais forte e estava mais numeroso
que o povo egípcio. Ao projetar possíveis conteúdos, o faraó manda matar os filhos
dos escravos. Pode ser uma projeção psíquica porque o ego, que é o “eu”, o “centro
da consciência”, está confundido com a persona, uma persona de poder, que se
atribui o direito de decidir se os subordinados vivam ou morram, como um deus
soberano sobre toda a terra. (STEIN, 2006, p. 28).
402

Ao mesmo tempo, podemos fazer uma leitura do ego do governante egípcio


como um ego que se localizava no estágio do ser chamado de inflação. No percurso
psicológico de desenvolvimento do ser, a inflação do ego é o estado e a atitude que
“acompanham a identificação do ego ao Si-mesmo. Trata-se de um estágio no qual
algo pequeno (o ego) atribui a si qualidades de algo mais amplo (o Si-mesmo) e,
portanto, está além das próprias medidas.” (EDINGER, 2020, p. 23). Para a psicologia
analítica, o Si-mesmo é “o arquétipo central ou arquétipo da unidade”. Edinger
explica: “O Si-mesmo é o centro ordenador e unificador da psique total (consciente e
inconsciente), assim como o ego é o centro da personalidade consciente”. (EDINGER,
2020, p. 19).
No caso do faraó podemos pensar que estava vivenciando uma inflação do
ego, pois, atribuindo-se características de um deus que delibera sobre a vida e a
morte de todos aqueles que lhe estão submetidos, tem a característica do estágio da
inflação, pois como diz Edinger, assim como “o Si-mesmo é o centro e a totalidade do
ser, o ego – totalmente identificado ao Si-mesmo, percebe-se como divindade”.
(EDINGER, 2020, p. 24).
Quanto às duas parteiras também constatamos a persona. Parteira é a
profissão delas. É o papel social, pelo qual são reconhecidas. No entanto, seus nomes
são apresentados pela narrativa. Isso pode indicar que são aceitas socialmente por
sua persona, o que é fundamental para a estabilidade do ser. Mas o fato de serem
apresentados seus nomes significa que a narrativa estaria indicando para a
individualidade de cada uma. Uma é Sefra, a outra é Fua. Ou seja, apesar de terem
uma persona psicológica, cada uma tem um nome, e cada nome tem um significado
especial para a narrativa.
Segundo o analista Erich Neumann, citado por Edinger, o Si-mesmo pode ser
experimentado na infância na relação com os pais e no período inicial da vida na
relação com a mãe. Ao relacionamento mãe e filho Neumann chama de
relacionamento primário, no qual a mãe representa o inconsciente, já que a mãe é
uma fonte de orientação, de proteção e de nutrição. (NEUMANN in EDINGER, 2020,
p. 57).
Podemos pensar nas duas parteiras que agem como proteção das crianças,
que nascem diante de suas mãos, como símbolos do inconsciente que quer que a
vida predomine. Essa proteção dada pelas duas parteiras se constitui fundamental
para a psique. Em caso de rejeição, a psique da criança seria afetada.
Também podemos vislumbrar nas duas parteiras o símbolo da integração do ego com
o Si-mesmo, integração que seria um equilíbrio e não uma identificação. A narrativa
bíblica diz que as duas mulheres eram tementes a Deus e agiram de acordo com esse
temor, protegendo a vida nascente. Proteger a vida é dinâmica da psique equilibrada,
temer a Deus é símbolo da integração do ego com o Si-mesmo. Lembremo-nos de
que “para Jung, o si-mesmo é transcendente, o que significa que não é definido pelo
domínio psíquico nem está contido nele mas situa-se, pelo contrário, além dele e,
num importante sentido, define-o.” (STEIN, 2006, p. 137). Podemos pensar que a
atitude das duas parteiras de temerem a Deus corresponde à sua obediência ao
transcendente, isto é, ao Si-mesmo. A atitude delas de desobedecer ao faraó e
403

obedecer a Deus garantindo a vida dos meninos hebreus pode indicar que elas têm
uma boa relação com o transcendente, o que indica que “o ego está bem ligado ao si-
mesmo”. Murray Stein diz que em pessoas como as duas parteiras “existe uma
qualidade sem ego, como se estivessem consultando uma realidade mais profunda e
mais ampla do que as meras considerações práticas, racionais e pessoais típicas da
consciência do ego”. (STEIN, 2006, p. 138). Daí, compreendemos porque foram
capazes de desobedecer ao rei cruel mesmo que isto pudesse implicar em perigo
para suas vidas, ou seja, foram capazes de superar as condições práticas ao seu redor
por sua conexão profunda com o centro e a totalidade do ser, que é o Si-mesmo, na
narrativa representado por Deus.
CONCLUSÃO

Pudemos ver que o viver e o morrer se delineiam na narrativa. A crueldade do


faraó remete ao morrer. A desobediência de duas parteiras ao faraó garante o viver.
A religião e a saúde também se interrelacionam na narrativa. O trabalho das parteiras
de atender às parturientes implica em atendimento à saúde, compreendido como
preservação da vida, ao mesmo tempo que elas, as parteiras, marcadas pela religião,
eram tementes a Deus. Pudemos ver que, do ponto de vista da psicologia analítica de
C. G. Jung, os elementos da psique podem ser compreendidos nas personagens
principais, tais como a persona, o ego inflado, a projeção de conteúdos inconscientes,
como no caso do faraó, e a persona e a integração entre o ego e o Si-mesmo, no caso
das parteiras, mulheres, cuja obediência ao transcendente revelou uma conexão com
o centro da psique, o Si-mesmo, preservando a vida.

REFERÊNCIAS

ANDIÑACH, Pablo R. O Livro do Êxodo: Um comentário exegético-teológico. Trad:


Nelson Kilpp. São Leopoldo: Sinodal/EST, 2010.
Bíblia. Português. Bíblia de Jerusalém. Nova ed. rev. ampl. São Paulo: Paulus, 2002.
CHILDS, Brevard S. El Libro del Éxodo: Comentario crítico y teológico. Estella
(Navarra, España): Editorial Verbo Divino, 2003.
EDINGER, Edward F. Ego e arquétipo: uma síntese fascinante dos conceitos
psicológicos fundamentais de Jung. Trad. Adail Ubirajara Sobral. 2. ed. São Paulo:
Pensamento/Cultrix, 2020.
GRENZER, Mathias. “Em defesa da criança (Ex 1,15-2,10)”. Revista de Cultura
Teológica. V. 14, n. 55, abr/jun 2006. Acessado em 25 de setembro de 2020.
https://revistas.pucsp.br/index.php/culturateo/article/view/15032
SCHÖKEL, Luís Alonso. A Bíblia do Peregrino. Trad. do texto bíblico Ivo Storniolo e
José Bortolini. Trad. de introduções, notas, cronologia e vocabulário José Raimundo
Vidigal. São Paulo: Paulus, 2017.
SILVA, Valmor da. Deus ouve o clamor do povo: Teologia do Êxodo. São Paulo:
Paulinas, 2001. Acessado em 20/09/2020. www.paulinas.org.br.
STEIN, Murray. Jung: O mapa da alma: uma introdução. Trad. Álvaro Cabral. 5. ed.
São Paulo: Cultrix, 2006.
404

VILLAS BOAS, Alex; GRENZER, Mathias. “A resistência das parteiras (Ex 1,15-22):
especificidades de uma teologia literário-narrativa”. Estudos de Religião. V. 29, n. 1,
p. 129-152, jan.-jun. 2015. Acessado em 15 de setembro de 2020.
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6342631
405

A FORMAÇÃO DOS REINOS DE ISRAEL E DE JUDÁ

ANDRÉA BERNARDES DE TASSIS RIBEIRO


Doutoranda em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

RESUMO: Estudos recentes indicam que o primeiro assentamento protoisraelita teve


início por volta de 1200 a. E. C., com cerca de 45 mil colonos espalhados em torno de
250 sítios. Tais localidades cresceram gradualmente, em seu auge, estima-se que
possuíam uma população de 160 mil habitantes espalhadas por 500 sítios, divididos
de forma desigual sob dois reinos distintos: Judá e Israel. Enquanto o reino de Israel
possuía uma agricultura fértil e diversos assentamentos populacionais, o reino de
Judá não possuía mais que 20 cidades. De fato, apenas a partir do século VIII a. E. C.,
Judá desenvolveu-se. Este trabalho se propõe a entender como os reinos de Israel e
Judá se formaram, a fim de construir um quadro que melhor explique a formação do
povo judeu. Para tanto, foi necessário identificar questões relacionadas à política da
época, bem como economia, cultura e religião, tendo como base o relato bíblico,
bem como os estudos mais recentes que abordam tais temáticas. A partir de tais
análises é possível afirmar que, diferente do que se afirma na Bíblia, a evolução das
sociedades do reino de Israel e do reino de Judá desenvolveu-se de forma distinta,
desde os primórdios dos assentamentos, não existindo nenhuma evidência
arqueológica de que pudesse ter existido uma comunidade política unificada, tal
como narrada no texto veterotestamentário sob os reinados de Davi, Salomão e
Roboão. Esta comunidade unida é algo que a arqueologia demonstra apenas para o
período do século VII a. E. C. sob o reinado de Josias.

Palavras-chave: Reino de Israel; Reino de Judá; Formação do Povo Judeu.

De acordo com os estudiosos Finkelstein e Silberman (2018, p. 123), o primeiro


assentamento protoisraelita teve início por volta de 1200 a. E. C., com cerca de 45 mil
colonos espalhados em torno de 250 sítios. Tais localidades cresceram gradualmente,
em seu auge, estima-se que possuíam uma população de 160 mil habitantes
espalhadas por 500 sítios, divididos de forma desigual sob dois reinos distintos: Judá
e Israel.
Para Sand (2011, p. 217/218), o reino de Israel, no norte, possuía uma
agricultura fértil e diversos assentamentos populacionais. Já no século IX a. E. C.,
governado pela dinastia dos Omri, tal reino era tido como forte e estável. Por sua vez,
o reino de Judá, no sul, entre os séculos X e IX a. E. C., não possuía mais que 20
cidades. De fato, apenas a partir do século VIII a. E. C., Judá desenvolveu-se.
406

Dados arqueológicos demonstram que os ecossistemas do norte e do sul se


diferenciavam em quase todos os aspectos, como topografia, clima, vegetação, entre
outros. Judá, por exemplo, encontrava-se isolada na parte mais remota da região
montanhosa. Possuía vales férteis entre seus declives adjacentes, embora estes
fossem pouco produtivos: enquanto, nos vales, a leste, próximo ao deserto,
plantavam-se grãos, nas áreas montanhosas cultivavam-se oliveiras e vinhas
(FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2018, p. 163/166).
Em Israel, por outro lado, os declives eram menos acentuados; o vale de
Jezrael era considerado uma rica área agrícola e a maior rota comercial terrestre
entre o Egito e a Mesopotâmia; as áreas desérticas, como o espinhaço central do vale
do Jordão e as regiões montanhosas da Transjordânia, permitiam a movimentação de
pessoas e comércio em toda a região.
Os recursos naturais do reino de Israel, portanto, tornavam a região um centro
de potencial econômico maior que o reino de Judá. Além disso, o desenvolvimento
tecnológico para processar azeite e vinho, a especialização e a sofisticação da
economia do reino de Israel foram responsáveis pelo aparecimento de instituições de
mercado, de transporte e de trocas, principalmente a troca de azeite e vinho por
grãos e produtos animais.
Enquanto a região ocupada por Judá era prioritariamente assentada pelo
segmento pastoral, de origem semita-cananeia (provavelmente descendente do
grupamento patriarcal); o reino de Israel, já no início do século X a. E. C., possuía uma
administração burocrática dividida em centros regionais e com aldeias de diferentes
tamanhos, que mantinham a estratificação social existente e a distribuição de bens
de luxo, garantiam a construção de grandes projetos e a intensa atividade econômica.
Por isso, ainda no século IX a. E. C., o reino do norte possuía centros administrativos
fortificados, palácios construídos com blocos de cantaria e capitéis de pedras
decoradas, e uma produção em grande escala de azeite.
Já no reino do sul, só a partir do século VII a. E. C., inicia-se o uso de blocos de
cantaria e capitéis de pedra na construção, embora com tamanho e qualidade técnica
inferior, e a produção ‘industrial’ de azeite que, de privada e caseira, torna-se
estatizada130.

O DECLÍNIO DO REINO DE ISRAEL E ASCENSÃO DO REINO DE JUDÁ

Ainda no século IX a. E. C., Amri e seus sucessores foram reis poderosos no


reino de Israel. Responsáveis pela expansão de seus territórios para as planícies
férteis de Canaã, mantiveram um dos maiores exércitos permanentes da região. De
fato, nesta época, era possível identificar, no reino do norte, uma complexa rede
burocrática de governança, capaz de organizar projetos de construção de obras
públicas, manter exército permanente e desenvolver uma rede comercial

130
Na documentação de Tell el-Amarna, existe um grupo de seis tabuletas que oferece um amplo panorama
sobre o governo do reino de Judá bem como suas possibilidades econômicas. Tais cartas demonstram o reino
como uma região montanhosa, pouco povoada e sem grande controle por parte da cidadela real (FINKELSTEIN
e SILBERMAN, 2018, p. 166/167 e 241/244).
407

internacional, registrando suas ações em arquivos ou inscrições monumentais, e


possuindo a maior densidade demográfica do Levante (FINKELSTEIN e SILBERMAN,
2018, p. 183, 185, 198)131.
No final do século VIII a. E. C., no entanto, a invasão pelos assírios 132 devastou
a capital Samaria e provocou grandes mudanças demográficas e sociais no reino
vizinho, Judá. A pesquisa arqueológica sugere que ocorreu um aumento populacional
devido ao deslocamento em direção a Judá ou reino do sul que, por longo tempo,
permanecera com poucas dezenas de milhares de habitantes passando então para
cerca de 120 mil; e uma ampliação da cidade de Jerusalém que, em alguns anos,
deixou de ser “uma modesta cidade de montanha de aproximadamente dez ou doze
acres e transformou-se numa gigantesca área urbana de 150 acres apinhados de
casas, oficinas e edifícios públicos”, tornando-se uma metrópole após 722 a. E. C.
(FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2018, p. 194 e 248/250).
Tais mudanças relacionam-se não só ao fim do reino do norte, mas também à
inserção de Judá no circuito comercial assírio, logo após a queda do reino de Israel 133.
Dessa maneira, Judá, que até então baseava sua economia na agricultura e no
sistema de clãs, vê-se em meio a mudanças econômicas e sociais que implicam sua
restruturação social e política, por meio da centralização do poder.
Alguns exemplos da constituição de um Estado bem estruturado, em Judá são:
inscrições monumentais; selos e impressão de selos; óstracos da administração real;
produção em massa de objetos de cerâmica em oficinas organizadas; aparecimento
de cidades de médio e grande porte; surgimento da indústria de azeite e vinho em
grande escala integrando-se no comércio assírio e, consequentemente, internacional
(FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2018, p. 251/252).
O código de leis do Deuteronômio também é um exemplo de uma provável
tentativa de reorganização do reino judaíta, por meio da centralização do culto
(exclusividade da adoração de Iahweh no templo de Jerusalém), e da centralização do
poder político-religioso. De acordo com esta teoria, o rei Josias, no século VII a. E. C.,
governante de Judá, na tentativa de implantar a ‘monarquia de Israel’, governando a
totalidade do povo, promove uma espécie de ideologia ‘pan-israelita’134, absorvendo
no reino do sul os remanescentes do reino do norte.
A arqueologia demonstra que no período pré-exílico135, além do poder político
militar urbano, as linhagens urbanas patrícias do reino judaíta dominavam política e
economicamente o campo. Após século VII a. E. C., por outro lado, observa-se a
estratificação de grupos/classes própria da época. Alguns pesquisadores, todavia,
acreditam que essa estratificação socioeconômica foi estabelecida anteriormente, no
Bronze Recente, provavelmente no século XIV a. E. C., durante o processo de luta do
131
Sobre a questão das construções do período salomônico e das construções do período amride (FINKELSTEIN
e SILBERMAN, 2018, p. 194 e 196/197).
132
Assírio, do hebraico Ashur ou Assur, o Império assírio lutou e traficou com diversos povos, além de ter
praticado o comércio na região da Ásia Menor (MONLOUBOU e DU BUIT, 1996, p. 69/70).
133
Sobre o aumento populacional e outras questões (ROMER, 2008, p. 73/74 e 84 e FINKELSTEIN e SILBERMAN,
2018, p. 236/237).
134
Sobre a questão pan-israelita ver obras de Ribeiro (2016 e 2017).
135
Período anterior ao exílio babilônico.
408

exército da confederação israelita136, formado por homens abastados, no período de


sua expansão. Weber, por exemplo, afirma que “a cidade israelita antiga era, em seu
pleno desenvolvimento, uma associação de linhagens carismático-hereditárias,
economicamente qualificadas para as armas” (WEBER, 1987-88, p. 40). Como as
grandes linhagens estabeleceram-se nas cidades, a estratificação econômica
converteu o camponês pan-israelita em plebeu dentro de seu próprio povo.

CONCLUSÃO

Como se pode perceber, existiram duas entidades políticas diferentes em


Canaã: o reino de Israel e o de Judá. Dois reinos que, embora próximos com relação à
cultura e à língua, eram separados e adversários recíprocos. A arqueologia demonstra
uma série de aspectos característicos de suas populações: eram pagãs e, entre seus
deuses o mais importante era Iahweh; partilhavam lendas, heróis e contos sobre seus
respectivos passados (enquanto em Israel prevalecia a narrativa do êxodo do Egito,
em Judá predominava a lenda dos patriarcas); falavam variações do hebreu antigo ou
dialetos do hebraico e utilizavam a mesma forma de escrita. Apesar desses traços
comuns, diferenciavam-se na sua composição geográfica, econômica, cultura
material e forma de se relacionar com seus vizinhos (SAND, 2011, p. 217/218 e
FINKELSTEIN e SILBERMAN, 2018, p. 167/168). Desenvolveram, portanto, culturas
distintas.
Autores como Finkelstein e Silberman destacam ainda que estas duas
sociedades distintas se desenvolveram desde os primórdios dos assentamentos, não
existindo nenhuma evidência arqueológica de que pudesse ter existido uma
comunidade política unificada, tal como sugere a Bíblia, que veio a se separar
posteriormente.
Dessa forma, a união de ambos os reinos ocorre apenas com o advento da
invasão e destruição do reino do norte pelos assírios e ascensão do reino do sul que
absorveu, nos períodos posteriores, tanto a população exilada do reino de Israel
como as terras deste reino. Assim, ao longo do tempo, Judá fortalece o reino
reivindicando o domínio pan-israelita (terras e povo do antigo reino de Israel),
desenvolvendo sua tecnologia, indústria e comércio e criando uma unidade política-
religiosa que ficou conhecida como Israel.

REFERÊNCIAS

FINKELSTEIN, I.; SILBERMAN, N. A. A Bíblia desenterrada: a nova visão arqueológica


do antigo Israel e das origens nos seus textos sagrados. Petrópolis: Vozes, 2018.
MONLOUBOU, Louis e DU BUIT, F. M. Dicionário bíblico universal. Petrópolis, RJ:
Vozes; Aparecida, SP: Editora Santuário, 1996.

136
A confederação israelita, confederação articulada militarmente, foi concebida ainda no processo de
formação das tribos protoisraelitas para a proteção destas (WEBER, 1987-88, p. 49/50). Acredito que a
confederação está relacionada aos exércitos, no século XIV a. E. C., de Abdi-Heba (FINKELSTEIN e SILBERMAN,
2018, p. 244/245).
409

RIBEIRO, A. B. T. Novas definições terminológicas para entender a História de Israel.


Sacrilegens, Juiz de Fora, v. 13, n. 2, p. 111-124, jul-dez. 2016.
RIBEIRO, A. B. T. Introdução à História e Religião do “Povo de Israel”: Formação de
Identidade e Análise Weberiana Sob o Ponto de Vista de “Povo Pária”. Jundiaí: Paco
Editorial, 2017.
ROMER, Thomas. A chamada História Deuteronomista: introdução sociológica,
histórica e literária. Petrópolis, RJ: Vozes, 2008.
SAND, Shlomo. A invenção do povo judeu: da Bíblia ao sionismo. São Paulo: Benvirá,
2011.
WEBER, Max. Ensayos sobre sociología de la religión. Vol. 3, Madrid: Taurus
Humanidades, 1987-88.
410

RELIGIÃO E O CUIDADO COM A VIDA: UM OLHAR SOBRE O


MODELO DE SOLIDARIEDADE NO LIVRO DE RUTE

GLÁUCIA LOUREIRO DE PAULA


Doutoranda em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

RESUMO: A presente comunicação objetiva fazer uma análise sobre a religião e sua
importância como promotora de ações que valorizam a vida, com base nas relações
de cuidado e solidariedade narradas em Rute. O livro de Rute convida seus leitores ao
jogo dos sentidos e lhes permite recriações, entre elas, Rute como modelo de
solidariedade. O livro de Rute une temas e preocupações que são de suma
importância à reflexão nestes dias, tais como o resgate às leis que garantem direitos a
uma mulher estrangeira, pobre, órfã e viúva. O problema que se apresenta para esta
pesquisa é: Qual o papel da religião como promotora da vida e de virtudes como
gentileza, compaixão e solidariedade? Que relação existe entre os problemas que
espelhavam a vida daquele período de Rute com a sociedade atual? Que valores se
mantêm como válidos para hoje? A partir da compreensão de que religião está
associada à paz, ao bem comum, ao amor e à proteção aos menos favorecidos, no
livro de Rute a observância religiosa é primordial, bem como a preocupação com a
identidade de Israel e o culto a YHWH, porém, atos de solidariedade se apresentam
como evidência de uma possível interpretação da identidade de Israel como adesão
religiosa, independente da genealogia. A lealdade e a solidariedade dos estrangeiros
deveriam ser acolhidas.

Palavras-chave: Religião; Solidariedade; Rute; Antigo Testamento.

INTRODUÇÃO

O cuidado com a vida se apresenta como uma das preocupações centrais no


contexto religioso. A religião alimenta no indivíduo a expectativa de encontrar um
sentido para a sua existência (LEMOS, 2009, p. 31).
Nos relatos da história, religião e sociedade sempre nutriram estreita relação,
civilizações antigas já vinculavam conceito de justiça (ordem, nomia) às práticas
religiosas (SANTOS, 2009, p. 77-90). A religião pode fornecer os elementos que
garantem a nomia social e intervém na definição e na orientação do sentido das
práticas sociais (LEMOS, 2009, p. 34). A religião legitima a ordem social (BOURDIEU,
1998, p. 46). O sentimento que deve reger essa sociedade é o cuidado com a vida e a
solidariedade. Entende-se por solidariedade:
411
...adesão à causa e a princípios de outrem. É o sentido moral que vincula o
indivíduo à vida, aos interesses e às responsabilidades dum grupo social,
duma nação ou da própria humanidade. Refere-se também a relação de
responsabilidade entre pessoas que têm interesses comuns de maneira que
cada elemento do grupo se sinta na obrigação moral de apoiar o outro.
(LEMOS, 2009, p. 108)

Rute apresenta-se como aquela que adere à causa do outro, participa do sofrimento
alheio e se propõe a aliviá-lo. O livro de Rute, com prerrogativa universal, apresenta
uma narrativa sensível, profundamente humana, cujas situações delineadas
destacam amplo potencial de identificação. Na cultura judaica, como encontramos
nos relatos do Antigo Testamento, a vida é um dom sagrado, sob proteção de leis que
garantem sua integridade (SILVA, 2015, p. 209).

A RELIGIÃO COMO PROMOTORA DA VIDA

A religião é definida por Durkheim (1989, p. 79) como “um sistema de crenças
e práticas em relação ao sagrado, que unem em uma mesma comunidade moral
todos os que a ela aderem.” Assim sendo, só pode haver moral se a sociedade possuir
um valor superior à média de seus membros. Deus e a sociedade têm o mesmo
significado, pois a religião é a adoração da sociedade transfigurada. A religião tem,
assim, a função de agregar os indivíduos à sociedade, servindo enquanto um
instrumento de controle social, funcionando como um código moral, um modelo a
ser seguido por seus adeptos, promovendo gentileza, compaixão e solidariedade.
Para Geertz, os símbolos sagrados têm a capacidade de estabelecer padrões
morais, sociais e estéticos, que são assumidos pelo indivíduo enquanto realidade.
Este estabelecimento dá a ideia de realidade eterna para o grupo, a tal ponto que
essas realidades depois de objetivadas, passam a fazer parte da cosmovisão dos
sujeitos sociais (GEERTZ, 1989, p. 136). A simbologia religiosa se constrói a partir de
representações compartilhadas socialmente.
Sendo a religião apresentada como instrumento legitimador de uma ideologia
social, pode também apresentar-se como arma de perversão e mudança cultural na
sociedade, visto ser a cultura uma produção humana, ela está sujeita a reconstrução
e desconstrução, por meio das ações do próprio indivíduo.
A religião está popularmente associada com a paz, com o bem comum da
humanidade, com o amor, com a proteção daqueles e daquelas menos favorecidas. O
solidarizar-se, por ser uma das virtudes que mais ressaltam nossa humanidade, é uma
característica pressuposta em todas as tradições religiosas, mesmo que não de modo
tematizado. Isso porque é próprio das religiões contribuírem para o processo de
humanização de seus adeptos.

E nisso as religiões adquirem uma grande importância como promotoras de


ações que valorizam a vida e enaltecem a singularidade de cada indivíduo,
sublimando virtudes e atitudes como gentileza, perdão, compaixão,
caridade e solidariedade. Certamente que a prática incondicional de todas
412
elas sublinha a grande mensagem implícita nas doutrinas religiosas que
falam do amor, respeito e zelo que deve existir em cada ser humano, uns
pelos outros. Quando esta noção for compreendida em nível planetário,
despida dos véus do ego e da necessidade de poder, então a violência
cessará e dará lugar à paz. (KIEFER, 2018, p. 3).

O que as religiões fazem, nesse sentido, é contribuir para o desenvolvimento


dessa capacidade fundamentalmente humana. Para Silva (2015, p.203) “as religiões
existem de certa maneira, para dar sentido à existência humana”. Todas buscam
trazer ao ser humano a construção de um sentido para a vida. A preocupação com a
vida é central em todas as religiões. De acordo com a Declaração Universal dos
Direitos Humanos, o Art. III diz: “Toda pessoa tem direito à vida, à liberdade e a
segurança pessoal”. Trata-se da construção de um mundo em que todos,
independentemente de raça, sexo, religião, tenham direito de viver uma vida humana
em sua plenitude.

O TEMPO DE RUTE E A SOCIEDADE ATUAL

A história de Rute tem muito a nos ensinar. Torna-se um modelo de como


iluminarmos os problemas da atualidade tais como solidariedade entre pessoas em
condições sociais mais complicadas, luta contra a opressão, pobreza. O livro de Rute
serve de testemunho de que mudanças sociais e legais são possíveis e encaminham
para a desconstrução das discriminações e diferenças. A lealdade e a solidariedade
dos estrangeiros deveriam ser acolhidas (SOARES, 2019, p. 6).
Lobosco (2005, p. 22-23) diz que o livro de Rute traduz de forma emblemática
a dimensão solidária da cultura dos tempos vétero-testamentários. Ele destaca que,
mais que uma característica sócio afetiva, o povo israelita manifesta toda sua força e
valor sob os aspectos de ordem religiosa.
Mesters (1991) afirma que, apesar do texto de Rute não fazer referência direta
e explícita sobre como eram as instituições e o sistema sócio–político-religioso, nas
suas entrelinhas é mostrada a situação em que o povo vivia e a maneira como os
conflitos da sociedade entre as pessoas eram resolvidos por meio das instituições
pré-estabelecidas. Essa história é uma fonte de reflexão sobre o modelo social
vigente. Dos relatos do texto sagrado, o autor do livro de Rute transmite sinais de
esperanças a partir dos fatos contados na narrativa (Rt 1,6).
A necessidade de Noemi e Rute, descrita a partir da opressão social de um
povo, as encaminhou a ações em direção à reconstrução de sua história (VIRLLIER’S;
LE ROUX, 2016, p. 267). A situação de Noemi era também o retrato da situação do
povo, pois naquele tempo, as famílias eram cada vez mais fracas e sem defesa,
incapazes de garantir a sobrevivência de seus membros; por isso não bastava a luta
só pelo pão. Tinham que lutar também pela defesa e pelo futuro da comunidade
(MESTERS, 1991, p. 35).
A história de Rute mostra uma relação aliançada a cumplicidade e a
solidariedade. Surge uma nova comunidade, uma nova história, baseada na luta,
413

determinação e no amor. “A narrativa apresenta a universalidade do amor de Deus:


Javé não é Deus exclusivo de Israel, mas acolhe a todos” (DELAZARI, 2017, p. 49).
No processo de construção da intervenção de YHWH em nome dos pobres e
oprimidos, a estrutura das comunidades judaicas era em grande parte
economicamente fraca, famílias que chegaram à falência e corriam o risco de perder
sua independência econômica. No livro de Rute é contado um fato em que a lei do
resgate, go’el, é aplicada quando Boaz redime a dívida de seu parente Elimelec, que
havia morrido, e desse contexto go’el passa a ter sentido de libertação. “Uma
libertação que o suplicante espera a intervenção de Deus diante de seu inimigo”
(ROSSI, 2017, p. 51).

CONCLUSÃO

Entendendo que religião está associada à paz, ao bem comum, ao amor e à


proteção aos menos favorecidos, o livro de Rute mostra que a observância religiosa é
primordial, bem como a preocupação com a identidade de Israel e o culto a YHWH.
O livro de Rute fala em nome daqueles que são vítimas da sociedade, os que
trabalham e se esforçam para garantir sua subsistência, vítimas de injustiças como os
órfãos, as viúvas, os pobres e famintos. Apresenta uma consciência social e uma
busca de uma vida melhor por parte de Rute e Noemi, e mostra um Deus que não
está indiferente aos sofrimentos da humanidade, mas se coloca junto ao ser humano,
seus dramas e lutas.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, João Ferreira. Bíblia Sagrada. Ed. rev. e corrigida. São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1995.
BOURDIEU, P. A. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectivas, 1998.
DELAZARI, Neuza Maria. A resistência de Rute e das mulheres. São Leopoldo: CEBI,
2017.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o Sistema Totêmico da
Austrália. São Paulo: Paulinas, 1989.
GEERTZ, Clifford. A religião como sistema cultural. In: GEERZ, Clifford. A interpretação
das culturas. São Paulo: LTC, 1989. p. 65 – 91.
KIEFER, Alex. Religiões contra a cultura da violência: uma alternativa de paz.
http://domtotal.com/noticia/1232793/2018/02/religioes-contra-a-cultura-da-
violencia-uma-alternativa-de-paz/. Acesso em 10/04/2020.
LEMOS, Carolina Teles. Religião e o sentido da vida. In: REIMER, Ivoni Richter; SOUZA,
João Oliveira. O sagrado na vida: subsídios para aulas de teologia. Goiânia: PUC
Goiás, 2009. p. 31-36.
LEMOS, Carolina Teles. Administrar: praticar solidariedade e construir justiça. In:
REIMER, Ivoni Richter; SOUZA, João Oliveira. O sagrado na vida: subsídios para aulas
de teologia. Goiânia: PUC Goiás, 2009. p. 105-110.
414

LOBOSCO, Ricardo Lengruber. A solidariedade Familiar. Estudos Bíblicos, Petrópolis,


n. 85, p. 22-29, 2005.
MESTERS, Carlos. Rute, uma história da Bíblia. Pão, família, terra! Quem vai por aí
não erra. São Paulo: Paulinas, 1991.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. A origem do sofrimento do pobre: teologia e
antiteologia no livro de Jó. São Paulo: Paulus, 2017.
SANTOS, Jeová Rodrigues dos. O fenômeno da violência contra a mulher na
sociedade brasileira e suas raízes histórico-religiosas. Tese (Doutorado em Ciências
da Religião) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia, 2014.
SILVA, Valmor da. Religiões e preocupação com a vida. In: REIMER, Ivoni Richter
(Org.). Por amor à vida: crenças, resistências e conquistas na Bíblia e na atualidade.
Goiânia: Ed. da Puc Goiás, 2015.
SOARES, Elizangela A. A moabita e a metáfora do “outro”: Rute como modelo cultural
de solidariedade. Caminhando, São Paulo n. 1, v. 24, p. 59-78, 2019.
VIRLLIER’S, Gerdau de; LE ROUX, Jurie. The Book of Ruth in the time of the Judges and
Ruth, the Moabitess. In: Verbum Eccles. (Online). Pretória: Universidade de Pretória –
África do Sul, 2016, vol. 37 n. 1, p. 262-276. Disponível em:
http://www.scielo.org.za/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S207477052016000100
&lng=es&nrm=iso&tlng=en. Acessado em: 11/05/2020.
415

O SIGNIFICADO DE XEOL NO LIVRO BÍBLICO DE PROVÉRBIOS

VALMOR DA SILVA
Doutor em Teologia Bíblica e em Ciências da Religião
Professor na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

RESUMO: Propõe-se analisar o significado da palavra Xeol, em suas nove ocorrências


no livro bíblico de Provérbios. No total de sessenta e seis ocorrências em todo o
Antigo Testamento, o substantivo tem sido interpretado de diferentes maneiras. Sua
etimologia é discutida e o sentido exato do termo não tem consenso nas traduções
bíblicas nem nos diversos comentários. As traduções vão desde a simples
transliteração šeol até o termo “inferno”, passando por “Abismo”, “sepultura” e
“morada dos mortos”. Em Provérbios, a palavra está normalmente associada com
morte, sombra, abismo e sepultura. Objetiva-se, principalmente, analisar o termo em
cada um dos nove provérbios em que ele ocorre, a partir do seu contexto literário e,
em segundo lugar, verificar criticamente algumas traduções dos mesmos, nas Bíblias
em português (Pr 1,12; 5,5; 7,27; 9,18; 15,11.24; 23,14; 27,20; 30,16). O método tem
como ponto de partida a exegese, com tradução do original, comentário crítico e
contextualização literária, além do apoio dos instrumentos de análise e dos diversos
comentários bíblicos aos respectivos textos. Entre os resultados da pesquisa,
pretende-se esclarecer tanto quanto possível o significado do termo Xeol em
Provérbios e, possivelmente, propor traduções mais adequadas para o mesmo.
Conclui-se que as dificuldades na compreensão e tradução de um termo bíblico,
assim como de uma frase, podem ser superadas mediante a análise do seu significado
original e do seu uso no contexto literário em que é empregado. Isso se aplica, com
mais razão, à compreensão de um termo tão estranho e tão importante quanto Xeol.

Palavras-chave: Xeol; Morte; Provérbios.

XEOL EM PROVÉRBIOS

O substantivo Xeol137 ocorre 9 vezes em Provérbios, o terceiro livro bíblico em


que mais aparece, depois de Salmos, com 16, e Isaías com 10 ocorrências. Em todo o
Antigo Testamento, Xeol está documentado 66 vezes (GERLEMAN, 1978, col. 1054).
A etimologia da palavra é discutida, bem como o seu significado e explicação.
As explicações etimológicas variam entre a raiz š’l, com o sentido de “inquirir” e š’h +
l como “lugar devastado e de estrondo” (GILBERT, 2004, p. 1667-1668). O significado

137
Grafado como soa em português, Xeol, o termo aparece, com frequência, como transliterado do original
šeol e com traduções que variam entre tumba, sepultura, mundo dos mortos, inferno etc, como se verá
adiante.
416

geral designa a morada dos mortos, mas a explicação exata se refere ora a um
destino final, ora a uma esperança de sobrevida, sem falar da distinção entre prêmio
e castigo, ou destino de justos e ímpios. Xeol aponta, sempre, para um lugar físico,
geográfico, assim como os conceitos de vida e morte em todo o livro de Provérbios
(MEDINA, 2010, 199-211).
Seguem-se, neste estudo, as 9 ocorrências do termo Xeol no livro bíblico de
Provérbios, com análise do seu significado e aplicação em cada contexto.

Engoliremos138 a eles como Xeol, vivos,


e íntegros, como os que descem139 [à]140 cova! (Pr 1,12).

O provérbio faz parte da recomendação inicial da Sabedoria, aconselhando a


ouvir a disciplina do pai e da mãe, e a fugir de pecadores, descritos, no contexto,
como sanguinários que armam redes para prender pessoas inocentes. A trama
sanguinária propõe engolir os inocentes “vivos” e “íntegros”, ou seja, completos e
saudáveis, dois termos que estão em paralelo nos dois versos.
Em paralelo estão também Xeol e cova (bôr). Bôr é poço ou cisterna, mas se
refere, como no caso, a cova ou tumba (ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 94). “Descer à
cova” ou “descer ao Xeol” são praticamente expressões estereotipadas, e designam
um movimento para baixo, conduzindo a um lugar inferior. A compreensão
cosmológica é a comum do Antigo Testamento, com o universo dividido em três
camadas. A camada superior é o céu ou firmamento, uma espécie de cúpula,
sustentada por grandes colunas (Jó 26,11). A camada intermediária é a terra,
concebida como um disco achatado, também sustentada por colunas (Sl 104,5). A
camada inferior é constituída por uma espécie de abismo, onde estão as colunas que
dão sustentação ao universo e onde existe um mundo de águas separadas. Nesse
mundo inferior, bem no centro da terra, localiza-se o Xeol, para onde descem os
mortos (MARCHADOUR, 1985, p. 11-18).

Os pés dela [são] os que descem [à] Morte,


[ao] Xeol [os] passos dela conduzem (Pr 5,5).

“Os pés dela” e “os passos dela” referem-se à mulher estrangeira ou estranha
(zarah), contra a qual a Sabedoria dirige agora suas recomendações. Duas metáforas
descrevem a ameaça da estranha, a da fala, com linguagem lisonjeira, e a do
caminho, com passos que conduzem à Morte e ao Xeol. A metáfora do caminhar

138
“Engoliremos” (da raiz nbl) refere-se à figura do Xeol como uma garganta aberta. “Na mitologia de Ugarit, o
deus Mot (“Morte”) engole os vivos, incluindo Baal. A mandíbula de Mot se estende da terra ao céu (CTA 5.ii.2-
3); morrer é descer para a sua garganta (CTA 5.i.7)” (FOX, 2006, p. 87). A ideia do Xeol com garganta
desmesuradamente aberta se encontra em Is 5,14; Hab 2,5; Sl 5,10.
139
“Os que descem” (yoredey, particípio da raiz yrd, descer) seria traduzido como “os descendentes”, não fosse
o sentido que o termo adquiriu em português. Os dois provérbios seguintes, desta análise, possuem
ocorrências idênticas (Pr 5,5; 7,27).
140
Propõe-se a tradução literal, o mais fiel possível ao original, por isso, as expressões que, de fato, não existem
em hebraico, são grafadas entre colchetes.
417

coloca em paralelo, no provérbio, “os pés dela” e “os passos dela”, juntamente com
“descer à Morte” e “conduzir ao Xeol”.
Morte e Xeol, em paralelo, designam, novamente, o mesmo lugar inferior, em
que a vida cessa. O provérbio seguinte amplia a metáfora do trilho dela que “não
segue o caminho da vida” (Pr 5,6). Nessa oposição entre vida e morte, contextualiza-
se o Xeol como uma experiência de tolice, falta de paz e vida reduzida (MEDINA,
2010, p. 207).

Caminhos [do] Xeol [é a] casa dela,


que descem para [os] átrios [da] Morte (Pr 7,27).

Prossegue o mesmo contexto de recomendações da Sabedoria, com relação


aos perigos da mulher, agora descrita como prostituta sedutora. A metáfora do
caminho se associa à da “casa” em paralelo com “átrios”.
Como no provérbio anterior, mas agora em ordem inversa, Xeol está em
paralelismo com Morte. A palavra átrio (ḥeder) significa quarto, câmara ou moradia,
como o local mais íntimo da casa e, nessa passagem, se refere à morada da morte
(ALONSO SCHÖKEL, 2004, p. 205). O termo sempre se refere a um quarto interno. O
plural, nesse caso, reporta à ideia do túmulo dividido em diversos compartimentos
(WALTKE, 2004, p. 385-386).

E não conheceu que Sombras lá [existem],


nos vales [do] Xeol [os] chamados dela (Pr 9,18).

O provérbio conclui a primeira coleção (Pr 1-9), que forma uma espécie de
prólogo ao livro de Provérbios. Refere-se à pessoa ingênua que “não conheceu” os
perigos da senhora insensatez que arremeda a senhora Sabedoria.
Xeol está agora em paralelismo com “Sombras” (refaim). O termo pode aludir
a um texto de Ugarit, em que o deus El convida as “Sombras” para um banquete em
seu palácio (FOX, 2006, p. 302-303). A expressão “vales do Xeol” retoma a ideia dos
diversos setores na morada dos mortos e indica que “as partes mais profundas do
submundo são as piores” (FOX, 2006, p. 302). Outras passagens bíblicas referem-se às
“profundezas” ou às “regiões subterrâneas” do Xeol (Sl 86,13; Ez 26,20; 31,14-18;
32,24).

Xeol e Abismo diante [de] YHWH,


também, pois, corações [dos] filhos [de] adam (Pr 15,11).

O provérbio anterior a este termina com “quem odeia a repreensão morrerá”


(15,10), e estabelece a conexão imediata que associa morte a Xeol e Abismo
(igualmente 27,20). O dito explana o conhecimento de Deus, que perscruta o coração
humano, sede das decisões e pensamentos, assim como as profundezas da terra,
descritas como Xeol e Abismo. Abismo (Abaddon), frequentemente traduzido como
“destruição”, provém da raiz ’bd que significa “perecer, destruir” e “expressa a
418

personificação da morte em Jó 28,22, e em Ap 9,11 é o nome do Anjo do Abismo”


(WALTKE, 2004, p. 623, nota 28).

Via [de] vida para cima ao prudente,


para que se desvie do Xeol debaixo (Pr 15,24).

O provérbio apresenta uma novidade com relação aos anteriores até aqui
analisados, porque estabelece uma clara separação entre quem sobe e quem desce,
entre o caminho para a vida e o caminho para a morte. O contexto literário (Pr 15,21-
27) confirma essa distinção entre pessoa idiota e pessoa inteligente (v. 21), entre
falta de reflexão e bons conselheiros (v. 22), entre soberbos e viúvas (v. 25), entre
pensamentos maus (v. 26) e palavras oportunas (v. 23.26) e, enfim, entre corrupção e
vida (v. 27). Nesse contexto, o versículo em análise estabelece uma dupla afirmação,
pessoas prudentes ou sensatas seguem a “via de vida para cima” e se desviam do
Xeol que está embaixo.
Por certo, o dístico não se refere à tradição posterior que distingue céu e
inferno, mas situa-se na esteira da tradição bíblica que distingue a sorte dos maus da
sorte dos justos. Assim como o autor de Eclesiastes constata que o alento do homem
sobe para o alto e o do animal desce para a terra (Ecl 3,21), assim também o salmista
fiel pede a Deus que não abandone sua vida no Xeol nem o deixe ver a cova (Sl 16,10)
enquanto outro declara: “Se subo aos céus, tu lá estás; se me deito no Xeol, aí te
encontro” (Sl 139,8). (BAR, 2015, p. 149-151).

Tu com vara o fustigarás,


e a vida dele do Xeol salvarás (Pr 23,14).

O provérbio faz parte de um contexto de conselhos ao pai ou mestre para


educar com disciplina rígida. Assim, o dístico em análise se conecta com o anterior
(23,13), pela dupla recomendação de “bater com a vara” repetida em ambos, e com a
afirmação sinonímica “não morrerá” e “a vida salvarás”. A recomendação da
disciplina está para a vida do jovem, como a educação relapsa está para a o Xeol, que
se identifica com a morte.

Xeol e Abismo dele não se satisfarão,


e [os] olhos de Adam não se satisfarão (Pr 27,20).

O provérbio está no contexto de cinco ditos sintéticos comparativos (27,17-


21). Este compara a insaciabilidade do Xeol e Abismo com os olhos humanos
insaciáveis (PERDUE, 2011, p. 261). Xeol e Abismo estão novamente associados, como
em 15,11, com seu apetite voraz (1,12). Monstro voraz com a garganta aberta
devorando vítimas tem paralelo mitológico em Ugarit, com o monstro Mot (Morte)
(WALTKE, 2005, p. 386).

Xeol e esterilidade [de] ventre,


terra não se satisfaz [de] águas
419
e fogo não diz basta! (Pr 30,16).

O provérbio também está na sequência do anterior (30,15) que propõe quatro


coisas que são insaciáveis e nunca dizem “basta!”. Com este, abre-se uma série de
ditos numéricos semelhantes, nesta coleção de Agur. Os quatro elementos formam
dois pares, o Xeol que anseia por exterminar vidas, em contraste com o seio estéril
que anseia por produzir vida, por um lado e, por outro, a terra, supostamente seca ou
desértica, em contraste com o fogo devorador, ambos insaciáveis. O Xeol, primeiro
elemento insaciável, faz lembrar os mitos de Ugarit e das culturas vizinhas a Israel,
com monstros devoradores, com apetite voraz (WALTKE, 2005, p. 487-488).

DIFICULDADES NA TRADUÇÃO

Alguns exemplos ilustram o quanto é difícil traduzir a palavra Xeol. As


dificuldades implicam na compreensão do próprio termo, seja em sua etimologia,
seja na aplicação ao texto bíblico, bem como na identificação de uma palavra que lhe
corresponda na língua portuguesa.
A Septuaginta (dita tradução dos Setenta ou LXX) traduz normalmente as nove
passagens de Xeol em Provérbios por hades, exceto uma vez, em que o traduz por
morte (thánatos, em Pr 23,14) (RAHLFS, 1979).
A Vulgata, tradução latina originalmente feita por São Jerônimo, traduz
normalmente Xeol por infernos, exceto duas vezes em que emprega ínferos (Pr 5,5;
7,27) (Nova Vulgata, 2020).
A Bíblia Tradução Ecumênica (1994) transcreve Sheol, transliterado do original
hebraico, assim como fazem normalmente as traduções em inglês. A única exceção
traduz por morada dos mortos (Pr 23,14).
A Bíblia de Jerusalém (2002) transcreve todas as ocorrências com Xeol, simples
transliteração do hebraico, com grafia em português.
A Bíblia do Peregrino (2002) traduz normalmente como Abismo, exceto duas
vezes em que traduz como inferno, quando estão associadas as palavras Xeol e
Abismo (Pr 15,11; 27,20).
A Bíblia Sagrada Almeida Século 21 (2010) traduz sempre por sepultura, exceto
uma vez, por ruína (Pr 7,27).
A Bíblia Sagrada Almeida Revista e Atualizada (2017) traduz a maioria por
inferno (5 vezes), com outras variantes curiosas, abismo (Pr 1,12), sepultura (7,27;
30,16), além (15,11).
A Bíblia Sagrada CNBB (2006) traduz normalmente por abismo, exceto morte
(Pr 23,14; 27,20) e mundo dos mortos (Pr 30,16).
A Bíblia Pastoral (Nova) (2014), traduz de maneira variada, como sepultura (Pr
1,12), túmulo, as quatro referências seguintes, reino dos mortos (Pr 15,24), morada
dos mortos (Pr 23,14; 30,16) e abismo e perdição (Pr 27,20).
420

CONCLUSÃO

Dessa análise circunscrita a 9 passagens do livro de Provérbios, Xeol designa,


sempre, um lugar físico, abaixo, inferior, para onde se desce. O emprego do termo
remete, normalmente, a um conceito negativo, associado com morte, sepultura,
regiões subterrâneas, sombra, abismo e profundezas. As diversas metáforas associam
a monstros insaciáveis, da mitologia ugarítica e outras circunvizinhas, sobretudo ao
deus Mot, que significa justamente morte.
O termo em sua plena compreensão é intraduzível. Talvez a melhor solução
seja manter a transcrição do original Sheol ou Xeol, como fazem algumas Bíblias em
português.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ALONSO SCHÖKEL, Luis. Dicionário Bíblico Hebraico-Português. São Paulo: Paulus,


2004.
BAR, Shaul. Grave Matters: Sheol in the Hebrew Bible. Jewish Bible Quarterly, v. 43,
n. 3, p. 145-153, 2015.
Bíblia de Jerusalém (A). São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2002.
Bíblia Pastoral (Nova). São Paulo: Paulus, 2014.
Bíblia Sagrada Almeida Revista e Atualizada. Barueri: Sociedade Bíblica do Brasil,
2017.
Bíblia Sagrada Almeida Século 21. São Paulo: Vida Nova, 2010.
Bíblia Sagrada CNBB, Brasília: CNBB, 2006.
Bíblia Tradução Ecumênica (TEB). São Paulo: Loyola, 1994.
FOX, Michael V. Proverbs 1-9. London: Yale, 2006. (The Anchor Bible, 18A).
GERLEMAN, G. She’ol Reino de los muertos. In: JENNI, E.; WESTERMANN, C. (Eds.).
Diccionario Teológico Manual del Antiguo Testamento. Madrid: Cristiandad, 1978.
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GILBERT, Maurice. Sheol. In: LACOSTE, Jean-Yves (Dir.). Dicionário Crítico de
Teologia. São Paulo: Paulinas; Loyola, 2004. p. 1667-1668.
HARRIS, R. Laird. The Meaning of the Word Sheol as Shown by Parallels in Poetic
Texts. Bulletin of the Evangelical Theological Society, 4, no 4, Dec 1961, p. 129-135.
MARCHADOUR, A. Morte e vida na Bíblia. São Paulo: Paulinas, 1985. (Cadernos
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MEDINA, Richard W. Life and Death Viewed as Physical and Lived Space: Some
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v. 122, n. 2, p. 199-211, 2010.
Nova Vulgata Bibliorum Sacrorum Editio. Disponível em
http://www.vatican.va/archive/bible/nova_vulgata/documents/nova-
vulgata_index_lt.html Consulta em 21/02/2020.
PERDUE, Leo G. Proverbi. Torino: Claudiana, 2011.
RAHLFS, Alfred (Ed.). Septuaginta. Stuttgart: Deutsche Bibelgesellschaft, 1979.
421

WALTKE, Bruce K. The Book of Proverbs. Chapters 1-15. Michigan: Eerdmans, 2004.
WALTKE, Bruce K. The Book of Proverbs. Chapters 15-31. Michigan: Eerdmans, 2005.
422

ANÁLISE DO SENSO DE ETERNIDADE PRESENTE NO LIVRO DE


ECLESIASTES

JOCINEI GODÓI LIMA


Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas (PUC-Campinas)
[email protected]

RESUMO: A(s) espiritualidade(s) individualizada(s), cuja ênfase está no aspecto da


pluralidade, são expressões cada vez mais presentes no cotidiano das sociedades
contemporâneas, notadamente marcadas pelo desencantamento com as grandes
narrativas, conforme descreveu o filósofo francês Jean-François Lyotard (1924-1998).
A despeito da ideia iluminista de deslocamento da fé de um Ser transcendente para a
própria razão humana e, mais tarde, do anúncio da “morte de Deus”, a humanidade
continua curiosamente a desenvolver formas e esquemas de crença, ainda que
customizadas, atendendo aos próprios anseios de busca por sentido. Assim, este
trabalho objetiva demonstrar possíveis razões pelas quais a humanidade continua a
desenvolver formas de religiosidade e de espiritualidade, tendo em vista os sentidos
do viver e do morrer, a partir daquilo que se apresenta na Bíblia, o livro sagrado para
os cristãos. Para este empreendimento, lançou-se mão do método de pesquisa
exegético-hermenêutico de uma passagem bíblica presente no livro de Eclesiastes,
capítulo 3, especialmente, no verso 11, que trata do tema da eternidade como
elemento inato ao ser humano, partindo do pressuposto de que tal elemento,
conforme a narrativa bíblica, foi posto pelo próprio Criador em toda a humanidade
criada. Neste caso, as ideias de nascer e morrer, isto é, de vida e morte, enquanto
temas fulcrais da existência, remetem não somente a adesão epistemológica por
aqueles que acreditam, por exemplo, na vida após a morte, como também, ao senso
mais elevado da existência de divindade(s). Este senso foi e continua sendo
amplamente retratado em toda história da filosofia e da teologia, desde os pré-
socráticos até a presente era. Portanto, conclui-se que a análise da narrativa bíblica
veterotestamentária supracitada, pode fornecer importantes entradas para a
compreensão da força que a religião e a espiritualidade ainda possuem, enquanto
fenômeno que resiste a este período, considerado e denominado por muitos como
pós-modernidade.

Palavras-chave: Eternidade; Espiritualidade; Religiosidade; Vida e Morte.

A EXPRESSÃO RELIGIOSA COMO FENÔMENO INTRÍNSECO DO FAZER HUMANO

A busca por sentido pelo ser humano é algo que o acompanha em sua própria
caminhada de ordem existencial. O sentido aqui é o mesmo que fundamento, a busca
423

por uma superfície sólida em que o homem possa lançar todos seus anseios, crenças,
preocupações e aspirações. A ideia de o ser humano se ancorar em algo que lhe
confira uma direção segura, do ponto de vista epistemológico, já foi pensada desde o
início das preocupações de ordem filosófica. A este respeito, Blaise Pascal (1623-
1662), no século XVII, dizia que o estado natural do homem é o de desejar um
fundamento para que nele seja edificada uma torre que o lance até o mais alto que
puder, ou seja, até o infinito (PASCAL, Br 72141).
Tal desejo por fundamento, em geral, transita no âmbito da religião. Aquilo
que a humanidade acredita, cada um ao seu modo ou conforme o imaginário da
sociedade da qual faz parte, normalmente é expresso enquanto fazer religioso.
Contudo, as características deste fazer religioso, nas sociedades ocidentais, têm
passado por algumas mudanças apontadas por sociólogos, antropólogos e filósofos
da religião, em que pese conceitos como: desencantamento do mundo – proposto
por Max Weber (1864-1920); o de pós-modernidade – proposto por Jean-François
Lyotard (1924-1998); e o de pluralismo religioso – proposto por Peter L. Berger (1929-
2017)142.
Aliás, mesmo com o aforismo nietzschiano intitulado de o homem louco, da
obra A Gaia Ciência (1882), cujo barulho ecoa até os dias hodiernos, a expressão
“Deus está morto”, entendida por muitos como a morte da própria religião, não
atingiu a expectativa de muitos intelectuais que viam nesta expressão uma espécie
de libertação do “obscurantismo medieval”. Pelo contrário, quando esta sentença foi
proferida por Friedrich Nietzsche (1844-1900) o efeito que ela trouxe ao imaginário
do homem ocidental, sobretudo o do europeu, foi um efeito adverso que, na visão de
Lyotard (2009, p.15), deu origem à incredulidade em relação aos metarrelatos
assentados na religião, na política, na ciência e até mesmo na própria razão filosófica.
Se, por um lado, a própria estrutura de sentido que a religião oferecia enquanto
metanarrativa, foi posta em xeque, por outro lado, houve uma espécie de revival da
experiência religiosa com a pulverização e atomização das práticas religiosas,
traduzidas na personalização e alta subjetivação que caracteriza o fazer religioso do
homem pós-moderno. Nota-se, então, que o pluralismo religioso praticado pelas
sociedades ocidentais tem sua raiz no esmiuçamento das metanarrativas, em muito,
capitaneado pela filosofia nietzschiana do martelo143. Eis, portanto, alguns indícios
que apontam para o ser humano como criatura que, independente de sua condição
epistemológica e posição sociológica, está sempre em busca de sentido e propósito,
cujo locus desta busca é propriamente o âmbito religioso.
Esta busca, pelo menos no Ocidente, tem sido acompanhada de um anseio
pelo ultrapassamento das cadeias da morte sugerindo a ideia de eternidade, seja de
141
Este formato de citação refere-se à obra póstuma de Blaise Pascal intitulada Pensées – Pensamentos – a
partir da edição de Léon Brunschvicg (Br).
142
Em um campo epistemológico mais abrangente, os conceitos: desencantamento do mundo, pós-
modernidade e pluralismo religioso podem ser tomados como aspectos sociológicos distintos, porém,
correlacionados, no que tange a experiência religiosa dos últimos três séculos.
143
Nietzsche se propôs em suas obras a esmiuçar os ídolos imaginários até então alçados a esta condição pelo
homem ocidental. Uma de suas últimas obras, Crepúsculo dos ídolos (1888), traz o subtítulo Como filosofar com
o martelo.
424

uma única vida que se prolonga eternamente com Deus, seja de uma sucessão de
vidas que retornam à esfera terrena, compreendida como reencarnação. Na
literatura cristã, sobretudo o Novo Testamento, difundida no Ocidente como
escritura sagrada, aventa-se fortemente a ideia de vida após a morte, como a maior
dádiva que um ser humano poderia receber do seu Criador, uma vez que a antítese
ao conceito de vida eterna é, nada menos, que o conceito de morte eterna. Em várias
passagens bíblicas, do Antigo ao Novo Testamento, a certeza quanto à vida após a
morte é clara e evidente para quem lê e toma este livro como regra de fé.
O livro do Apocalipse, último livro da bíblia, também conhecido como
Revelação (tradução do grego) remete diretamente a um período escatológico em
que, após a vitória do bem contra o mal, uma parte da humanidade, os salvos,
viverão com Deus em um estado de gozo eterno para sempre. Logo percebe-se que a
noção de eternidade, da vida em um estado futuro de paz, perfeição e
contentamento, é algo notório para a maioria dos povos ocidentais influenciados
pelas ideias cristãs de vida após a morte.
Há, contudo, um texto bíblico em especial que remete ao anseio existencial do ser
humano pela eternidade, que se encontra no livro de Eclesiastes. Este livro faz parte
do Antigo Testamento dentre a porção chamada de Escritos – Ketuviim. O próximo
tópico visa à explicação e contextualização deste texto bíblico, além de situá-lo como
um indicativo de que o senso de eternidade é ao mesmo tempo uma espécie de
senso da divindade.

ANÁLISE DO SENSO DE ETERNIDADE PRESENTE NO LIVRO DE ECLESIASTES

O livro de Eclesiastes, também conhecido como Pregador, proveniente da


transliteração do termo hebraico Qoheleth, é um tipo pessimista de literatura de
sabedoria oriental. Apesar de o nome em português adotar a versão grega para o
termo utilizado na Septuaginta, à base do vocábulo hebraico encontra-se o
substantivo kahal ou assembleia. A tradição confere a autoria do livro a Salomão 144.
Porém, há indícios de que o livro seja um pseudoepígrafo, cuja autoria por Salomão
foi negada até mesmo pelo reformador alemão Martinho Lutero (CHAMPLIN, 2001, p.
2701).
A despeito da sua autoria, o objeto em questão, qual seja, a análise do senso
de eternidade presente neste livro, remete ao fragmento presente no capítulo 3,
especialmente, no verso 11, que diz: “Ele fez tudo apropriado ao seu tempo. Também
pôs no coração do homem o anseio pela eternidade; mesmo assim ele não consegue
compreender inteiramente o que Deus fez” (BÍBLIA NVI, 2013, p. 1019). O sentido da
palavra Eternidade em hebraico olam, pode ser entendido como “mundo”, dando a
ideia do desejo inato, no coração do ser humano, de buscar compreender os
mistérios da vida (CHAMPLIN, 2001, p. 2714). Também pode assumir o sentido de

144
Para os que sustentam a hipótese de que o sábio rei Salomão tenha escrito este livro, a época de sua
redação pode ter ocorrido entre os séculos X e IX a.C.
425

algo escondido como em Levítico, capítulo 20, verso 4. Além da ideia de eternidade,
conforme consta no primeiro livro das Crônicas, capítulo 16, verso 36.
Todos estes sentidos remetem a uma mesma compreensão, isto é, a de algo
que aponta para a ordem do mistério, do não revelado, daquilo que extrapola o
entendimento humano. Após uma extensa explanação no capítulo 3 sobre os
desígnios de Deus acerca do tempo, conforme compreendido e assimilado pelo ser
humano, o autor de Eclesiastes lança-se a expor a ideia de eternidade, porém, de um
modo paradoxal. Ao mesmo tempo em que o autor fornece pistas de que a
eternidade pode ser entendida como da ordem do mistério, enquanto busca
investigativa do ser humano por sentido, ele também se utiliza de um pessimismo
filosófico para, em quase todo o livro de Eclesiastes, não criar expectativas quanto à
vida após a morte. É apenas ao final do livro (Eclesiastes 12,4) que o autor resume e
conclui de um modo no mínimo estranho ao restante do livro sobre a necessidade de
se temer a Deus em função do juízo que recairia para todos indistintamente.

O SENSO DE ETERNIDADE COMO SENSO DE DIVINDADE

Mesmo com o pessimismo explícito do autor de Eclesiastes que leva


facilmente o leitor a uma compreensão niilista dos acontecimentos da vida 145, a ideia
de eternidade abre caminho para se pensar para além de si mesmo e das
contingências e finitudes características da vivência humana. É aqui que o senso de
eternidade toma a forma de senso de divindade. O teólogo e reformador francês
João Calvino (1509-1564), a partir da compreensão teológica agostiniana, lançou luz a
este senso de divindade – sensus divinitatis – como algo constitutivo da ontologia
humana. Não somente Calvino, mas vários pensadores, sobretudo, teólogos e
filósofos cristãos, têm se utilizado da ideia do sensus divinitatis, a fim de se pensar
como o fenômeno religioso – a noção de divindade – acaba por marcar, ainda hoje,
elevada presença mesmo nas sociedades mais avançadas do ponto de vista científico-
tecnológico.
Um destes pensadores – talvez o principal pensador na atualidade a fazer uma
defesa do senso de divindade presente no ser humano – é o renomado filósofo
analítico americano, Alvin Plantinga (1932–). Em sua obra Ciência, religião e
naturalismo – Onde está o conflito? – Plantinga fornece importantes elementos para
se pensar o senso de divindade, em que pese:

A teologia cristã e a ciência se unem para declarar que os seres humanos


têm a tendência natural de acreditar em Deus ou em algo muito parecido
com ele. Segundo João Calvino, Deus nos criou dotados de um sensus
divinitatis, uma tendência natural de formarmos a crença em Deus
(PLANTINGA, 2018, p. 67, grifos do autor).

145
A outra hipótese acerca do autor e do período da redação do livro de Eclesiastes, dentre outras razões,
sugere que o Pregador estava muito mais para um Filósofo influenciado pelo epicurismo grego dos séculos III e
II a.C., além do caráter niilista de suas considerações e conclusões sobre a situação do homem lançado no
mundo.
426

Entre acreditar em nada ou em algo que forneça sentido existencial ao ser


humano, certamente a segunda opção tem sido amplamente adotada pela humanidade
em todos os tempos e lugares. A ideia de eternidade que a sociedade ocidental cultiva
na imagem da vida após a morte, certamente possui vinculação direta com a ideia de
divindade. Em outras palavras, quem crê na vida após a morte normalmente crê
também em Deus ou em algo parecido. O contrário também é verdadeiro, isto é, quem
não crê na ideia de eternidade, normalmente não crê em divindades preferindo ser
reconhecido como ateu ou agnóstico. Obviamente, esta última condição não consiste
em demérito epistemológico algum. Não se trata de quem crê está certo e quem não crê
está errado, e vice-versa. Tal situação apenas demonstra como o senso de eternidade
normalmente está correlacionado com o senso de divindade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A despeito da ideia iluminista de deslocamento da fé de um Ser transcendente


para a própria razão humana e, mais tarde, do anúncio da “morte de Deus”, feita por
Nietzsche nos aforismos 125 e 343, ambos de A Gaia Ciência de 1882, a humanidade
continua curiosamente a desenvolver formas e esquemas de crença, ainda que
customizadas, atendendo aos próprios anseios de busca por sentido. O senso de
eternidade, presente no texto bíblico analisado e exposto neste trabalho, corrobora com
a ideia de que eternidade e divindade são conceitos pertencentes à mesma faceta
religiosa da existência humana. Um aponta para o outro e vice-versa. Isso sugere o
porquê de a religião ainda continuar como campo privilegiado das investigações de
ordem intelectual, além de situar-se como o principal âmbito da busca por sentido da
sociedade pós-moderna. Por mais que esta sociedade seja atomizada e altamente
subjetivista em sua experiência religiosa, o fato é que ela permanece religiosa. Situação
que, provavelmente, mesmo com os avanços científicos, continuará a fazer parte da
humanidade, seja do ponto de vista do indivíduo, seja do ponto de vista social.

REFERÊNCIAS

BERGER, P. Os múltiplos altares da modernidade: rumo a um paradigma da religião


numa época pluralista. Petrópolis: Vozes, 2017.
Bíblia Arqueológica. São Paulo: Editora Vida, 2013.
CHAMPLIN, R. O antigo testamento interpretado: versículo por versículo. São Paulo:
Hagnos, 2001.
LYOTARD, J-F. A condição pós-moderna. 12. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 2009.
NIETZSCHE, F. W. A gaia ciência. São Paulo: Lafonte, 2017.
PASCAL, B. Pensamentos. Edição de Brunschvicg. Trad. S. Milliet. São Paulo: Difusão
Europeia do Livro, 1961.
PLANTINGA, A. Ciência, religião e naturalismo: Onde está o conflito? São Paulo: Vida
Nova, 2018.
427

“PORQUE MELHOR ME É MORRER DO QUE VIVER” (JN 4,3):


A RELAÇÃO INTERTEXTUAL ENTRE O PEDIDO DE JONAS E O
DE ELIAS

LUCAS ALAMINO IGLESIAS MARTINS


Doutor em Estudos Judaicos (Bíblia Hebraica)
Centro Universitário Adventista de São Paulo (UNASP)
[email protected]

RESUMO: Um dos motivos do livro de Jonas se destacar na literatura profética


envolve o grande número de relações intertextuais com outros textos do cânon do
Antigo Testamento. Dentre os possíveis paralelos, destacam-se, por exemplo, aqueles
feitos às narrativas do profeta Elias. Por exemplo, ambos os profetas se sentam à
sombra de algo: Jonas de uma planta (Jn 4,6) e Elias de um zimbro (1Rs 19,4-5). Em
ambas as narrativas há um diálogo entre o profeta e Deus composto de perguntas e
respostas (1Rs 19,9-14; Jn 4,4-11). Por fim, ambos solicitam a morte em linguagem
similar. Enquanto Elias diz, em 1Reis 19,4: “[...] toma agora, ó Senhor, a minha alma
[...]”, Jonas (4,3) diz: “[...] ó Senhor, tira-me a vida [...]”. E em relação ao pedido de
morte, Jonas afirma, na sequência, no mesmo verso: “[...] porque melhor me é
morrer do que viver”. Embora a linguagem seja sutilmente diferente, em 1Reis 19,4,
também, na sequência do pedido de morte, é usada a mesma estrutura de expressão
na fala de Elias: “[...] porque melhor me é [...] do que [...]”. O presente artigo tem
como objetivo analisar intertextualmente as narrativas de Jonas e Elias dando
especial ênfase ao pedido de morte de ambos. Para isso adotar-se-á a metodologia
da análise narrativa com especial ênfase à dimensão intertextual das histórias. Dentre
os vários paralelos entre as narrativas de Jonas e Elias é possível notar que o pedido
de morte é fundamental na relação entre os dois textos. O pedido dá o tom da
intertextualidade fortalecendo uma comparação irônica. As reclamações de Jonas são
paródicas. Enquanto Elias pede a morte por ter aparentemente falhado em sua
pregação, Jonas, ironicamente, pede a morte por ter obtido êxito em sua pregação.

Palavras-chave: Jonas; Elias; Morte.

INTRODUÇÃO

Além de Jonas se destacar na literatura profética como um livro


majoritariamente em prosa, sua história ecoa as sagas proféticas de Elias em 1 e
2Reis. Contudo, apesar de Jonas constituir uma narrativa profética que apresenta
paralelos com as narrativas também proféticas de 1 e 2Reis, percebe-se uma
diferença significativa entre elas: nas narrativas de 1 e 2Reis, sempre se enfatiza a
428

fidelidade dos profetas ao chamado divino, ao passo que em Jonas o profeta é


retratado como aquele que foge de sua comissão (STUART, 2002, p. 435).
Sobre a relação entre Jonas e Elias especificamente, Holbert (1981, p. 64) observa
que a fuga silenciosa de um profeta não possui precedentes no texto bíblico. “Elias
foge, mas é em direção ao monte de Deus, não para longe dele.” Nessa associação,
identifica-se a intenção de fazer ecoar outra narrativa de forma a distorcer uma
figura familiar.
De acordo com Marcus (1995, p. 131-132):

[...] há tantos paralelos irônicos entre o episódio em que Elias fugiu de


Jezabel para salvar sua vida (1Reis 19) e partes da história de Jonas que se
pode argumentar que as ações de Jonas são simplesmente uma paródia das
de Elias146.

Por exemplo, ambos os profetas se sentam à sombra de algo: Jonas de uma


planta [‫;קיקָ יֹון‬ִ qîqāyôn (Jn 4,6)] e Elias de um zimbro [‫ ;רֹתֶ ם‬rōtem (1Rs 19,4-5)]. Ambos
se deitam e dormem: Elias sob o zimbro (1Rs 19,5) e Jonas no porão do navio (Jn 1,5).
Além disso, em ambas as narrativas há um diálogo entre o profeta e Deus composto
de perguntas e respostas (1Rs 19,9-14; Jn 4,4-11). Somado a isso, a pergunta de Deus
a Elias em 1Reis 19,9 – “Que fazes aqui, Elias?” [‫ ;מַ ה־לְּ ָך פֹ ה אֵ לִ יָהו‬ma-lĕḳā pōh ʾēlîāhû]
– faz contraponto à pergunta do capitão do navio a Jonas (Jn 1,6): “Que fazes
dormindo?” [‫ ;מַ ה־לְּ ָך נִ ְּר ָדם‬mâ-lĕḳā nirdām]. Afinal, de acordo com Magonet (1983, p.
102), o sono de Jonas vai muito além do sono de exaustão do profeta Elias (1Rs 19,9).
Por fim, ambos solicitam a morte em linguagem similar. Enquanto Elias diz, em 1Reis
19,4: “[...] toma agora, ó Senhor, a minha alma [...]” [‫ ;עַ תָ ה יְּהוָה קַ ח נ ְַּפ ִשי‬ʿatâ YHWH
qaḥ nafšî], Jonas (4,3) diz: “[...] ó Senhor, tira-me a vida [...]” [‫וְּעַ תָ ה יְּהוָה קַ ח־נָא אֶ ת־‬
‫ ;נ ְַּפ ִשי‬wĕʿatâ YHWH qaḥ-nāʾ ʾet-nafšî]. E em relação ao pedido de morte, Jonas
afirma, na sequência, no mesmo verso: “[...] porque melhor me é morrer do que
viver” [‫מֹותי מֵ חַ יָי‬
ִ ‫;ממֶ נִ י כִ י טֹוב‬
ִ mimenî kî ṭôḇ môtî mēḥayāy].
Embora a linguagem seja sutilmente diferente, em 1Reis 19,4, também na
sequência do pedido de morte é usada a mesma estrutura de expressão na fala de
Elias: “[...] porque melhor me é [...] do que [...]” [‫[ ִמין‬...] ‫ כִ י טֹוב‬- kî ṭôḇ [...] mîn]. Em
1Reis 19,4, lê-se: “[...] pois não sou melhor do que meus pais” [‫;כִ י־ל ֹא־טֹוב אָ נֹכִ י מֵ ֲאבֹתָ י‬
kî-lōʾ-ṭôḇ ʾānōkî mēʾăḇōtāy].
Tendo em vista os variados diálogos intertextuais entre as narrativas dos
profetas Elias e Jonas, esse estudo tem como objetivo examinar as nuances de cada
pedido de morte. Adotando uma abordagem literária que toma o texto em sua forma
final, analisaremos os contextos literários de cada um dos pedidos de morte.

146
Paralelos não irônicos entre as duas narrativas também podem ser encontrados: os dois profetas parecem
perturbados e buscam solidão (Elias em Berseba [1Rs 19,3] e Jonas fora de Nínive [4,5]). Os dois profetas
esperam (Elias entra em uma caverna e espera [1Rs 19,9]; Jonas se assenta ao leste da cidade sob uma
tenda e espera [4,5]). Em ambas as narrativas, Deus instrui seus profetas por meio da natureza (vento,
terremoto e fogo em 1Rs 19,11-12; e vento, tempestade, mar, peixe, planta e verme no livro de Jonas).
429

O CONTEXTO DO PEDIDO DE ELIAS (1RS 19)

Após lermos o relato da manifestação divina no monte Carmelo em 1Rs 18, é


narrado que Elias matou todos os profetas de Baal no ribeiro de Quisom (1Reis
18,40). E apesar de ter presenciado o ocorrido no Carmelo e ter visto a chuva cair
novamente, tal como o profeta havia anunciado (1Reis 18,41-46), a primeira conduta
do rei Acabe é contar tudo o que havia acontecido à sua esposa. Em 1Reis 19,1-2,
lemos:
‫יאים בֶ חָ ֶרב׃‬
ִ ‫ֲשר הָ ַרג אֶ ת־כָל־הַ נְּ ִב‬
ֶ ‫ֲשר עָ ָשה אֵ לִ יָהו וְּאֵ ת כָל־א‬
ֶ ‫ַו ַיגֵד אַ ְּחאָ ב לְּ ִאיזֶבֶ ל אֵ ת כָל־א‬
‫יֹוספון כִ י־כָעֵ ת מָ חָ ר אָ ִשים‬ִ ‫ֱֹלהים ְּוכֹה‬
ִ ‫ו ִַת ְּשלַח ִאיזֶבֶ ל מַ לְּ אָ ְך אֶ ל־אֵ לִ יָהו לֵאמֹר כֹה־ ַיעֲשון א‬
‫אֶ ת־נ ְַּפ ְּשָך כְּ נֶפֶ ש אַ חַ ד מֵ הֶ ם׃‬

Acabe fez saber a Jezabel tudo quanto Elias havia feito e como matara os
profetas à espada. Então, Jezabel mandou um mensageiro a Elias a dizer-
lhe: Façam-me os deuses como lhes aprouver se amanhã a estas horas não
fizer eu à tua vida como fizeste a cada um deles.

A repetição tripla da palavra “tudo” (‫ – כָל‬kol) em hebraico enfatiza o


detalhamento do relatório de Acabe (WALSH, 1996, p. 266). Jezabel reage
rapidamente enviando um mensageiro para ameaçar Elias. E nesse momento, lemos
sobre uma reação de Elias aparentemente oposta à sua postura no capítulo anterior.
Diferente da caracterização típica do profeta como alguém capaz de enxergar
uma perspectiva diferente da realidade, no caso de Elias, a ponto de desafiar os
profetas de Baal diante de todo o povo, lemos no v. 3:

‫ֲשר לִ יהודָ ה ַו ַינַח אֶ ת־ ַנ ֲערֹו ָ ָֽשם׃‬


ֶ ‫ַוי ְַּרא ַויָקָ ם ַו ֵילְֶך אֶ ל־נ ְַּפשֹו ַו ָיב ֹא ְּבאֵ ר ֶשבַ ע א‬

Temendo, pois, Elias, levantou-se, e, para salvar sua vida, se foi, e chegou a
Berseba, que pertence a Judá; e ali deixou seu moço.

Elias temeu a ameaça de Jezabel e fugiu. O texto em hebraico reflete o pânico


de Elias através de uma série de descrições breves ações iniciadas com waw
consecutivo: “temeu, levantou, e foi”. No livro From Carmel to Horeb: Elijah in Crisis,
Gregory (1990, p. 63) observa:

Em três breves versos, o autor mudou completamente fluxo da história.


Vitória parece ter se transformado em derrota, o bravo profeta em um
refugiado temeroso, e a vitória sobre a morte e Baal em uma oportunidade
para a própria morte se reafirmar através do juramento de Jezabel para
tirar a vida de Elias.

Apesar da quarta ação relatada ralentar a descrição inserindo a explicação


“que pertence a Judá”, ironicamente observa-se que a descrição da fuga de Elias é
inversamente proporcional ao trajeto percorrido. Com poucas palavras, lemos que
Elias percorreu de norte a sul o reino dividido.
430

As seções seguintes do capítulo 19 (v. 4-8; 9-18) ampliam a mudança radical no


caráter do personagem Elias. O profeta que valentemente lutou contra a morte nos
capítulos 17 e 18, afirma no v. 4:

‫ֵשב תַ חַ ת רֹתֶ ם אֶ חָ ת וַיִ ְּשאַ ל אֶ ת־נ ְַּפשֹו לָמות ַוי ֹאמֶ ר׀ ַרב‬
ֶ ‫וְּהוא־הָ לְַך בַ ִמ ְּדבָ ר דֶ ֶרְך יֹום ַו ָיב ֹא ַוי‬
‫עַ תָ ה יְּהוָה קַ ח נ ְַּפ ִשי כִ י־ל ֹא־טֹוב אָ נֹכִ י מֵ ֲאבֹתָ י׃‬

Ele mesmo, porém, se foi ao deserto, caminho de um dia, e veio, e se


assentou debaixo de um zimbro; e pediu a morte e disse: Basta; toma
agora, ó Senhor, a minha alma, pois não sou melhor do que meus pais.

O narrador relata que Elias continua sua jornada após uma série de
abandonos: abandona Israel e entra em Judá; em seguida, abandona Judá e chega ao
deserto (sem mais qualquer companhia humana). O fato de deixar seu servo em
Berseba e continuar sua jornada ao deserto parece prenunciar o que está implícito no
v. 4: Elias procura desistir de sua tarefa, renunciar seu chamado profético.
Ironicamente, Elias pede a morte a Deus. Como é possível o profeta que teme a
ameaça de morte e foge, fazer agora esse pedido a Deus? O insight psicológico
presente aqui parece revelar uma dimensão mais profunda: seu senso de
desesperança, de desilusão e desespero, da futilidade de qualquer esforço adicional.
Na sua perspectiva, o triunfo no Carmelo não obteve efeito duradouro: a perseguição
de Jezabel aos profetas continua, e Acabe aparentemente continua o mesmo. Walsh
(1996, p. 268) observa:

A forma contundente do verbo no imperativo e a cláusula de motivação


“não sou melhor do que meus pais” constituem uma espécie de desafio ao
Senhor. Se Elias fracassou, é porque Yahweh exigiu muito dele. Elias não é
um super-homem, mas Yahweh espera que ele converta o rei e todo o povo
sozinho. Ao pedir a Yahweh que tire sua vida (ao invés de esperar
passivamente que Jezabel fizesse isso), Elias coloca toda a situação diante
de Deus. Se Yahweh aceitar a oração de Elias e permitir que ele morra, ele
libera o profeta de sua tarefa de converter Israel e, implicitamente, admite
que suas exigências a Elias eram excessivas. Se, por outro lado, Yahweh não
concorda com o pedido de Elias, então ele deve apresentar as causas
subjacentes do desespero do profeta e agir com mais intensidade para
trazer Israel de volta. Em ambos os casos, Elias não mais carrega
responsabilidade pelo resultado.

Tendo apresentado seu dilema, Elias não age mais. Ou melhor, suas ações
exemplificam sua realidade psicológica, ele se deita e dorme (v. 5).

O CONTEXTO DO PEDIDO DE JONAS (JN 4)

O pedido de morte feito por Jonas, aparece no último capítulo do livro


homônimo. No momento em que Deus se aparta de sua ira (se arrepende de destruir
Nínive), Jonas manifesta a dele (Jn 4,1). Assim, em Jonas 4,2 o profeta finalmente
afirma os motivos de sua tentativa de fuga:
431
‫ישה כִ י יָדַ עְּ ִתי כִ י‬
ָ ‫יֹותי עַ ל־אַ ְּדמָ ִתי עַ ל־ ֵכן ִקדַ ְּמ ִתי לִ ְּברֹחַ תַ ְּר ִש‬
ִ ֱ‫אָ נָה יְּהוָה הֲ לֹוא־זֶה ְּדבָ ִרי עַ ד־ה‬
‫אַ תָ ה אֵ ל־חַ נון ו ְַּרחום אֶ ֶרְך אַ פַ יִם ו ְַּרב־חֶ סֶ ד וְּנִ חָ ם עַ ל־הָ ָרעָ ה׃‬

Ah! Senhor! Não foi isso que eu disse, estando ainda na minha terra? Por
isso, me adiantei, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus clemente e
misericordioso, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e que te
arrependes do mal.

Aqui, Jonas cita os atributos divinos proferidos em Êxodo 34,6-7147. Contudo,


ironicamente, Jonas profere essas palavras com intenção completamente alheia à do
Pentateuco. Em Êxodo, esses atributos estão envoltos em uma atmosfera positiva,
mas Jonas tem a intenção de 431eixa431-los contra o próprio Deus, criticando-o.
Quando estava no ventre do peixe, Jonas afirmou que a salvação pertencia a Deus,
porém não admite, em momento algum, que essa misericórdia salvadora possa
alcançar os ninivitas. Com essa afirmação e essa omissão, o narrador cria uma
situação absurda na qual um profeta hebreu está irado com a misericórdia divina a
ponto de desejar a morte por ter obtido sucesso em sua pregação (v. 3): “Agora,
Senhor, peço que me tires a vida, porque para mim é melhor morrer do que viver”.
Em vez de abandonar a cidade à qual, até então, relutou em ir, o profeta agora
não quer 431eixa-la (v. 5). Diferentemente do rei que se assenta sobre cinzas, Jonas
se assenta em um lugar confortável e espera para ver o que acontecerá à cidade.
Os diálogos seguintes, somados aos do início do capítulo 4, constituem o ápice
irônico de todo o livro. Da mesma forma que Deus enviou uma tempestade, no
capítulo 1, agora Deus envia uma planta para cobrir a cabeça de Jonas. Contudo, logo
em seguida Deus envia um verme que destrói a planta e um vento calmoso oriental
para acabar com o conforto do profeta.
Aqui, como no capítulo 1, tudo obedece ao comando divino de forma
instantânea. Na verdade, essa é uma ironia que permeia toda a narrativa. O narrador
apresenta a terra e seus habitantes não humanos como testemunhas divinamente
designadas e como agentes de juízo ao profeta. Criaturas e componentes da natureza
são identificados como designados [o mesmo verbo ‫ ; ַויְּמַ ן‬wayĕman] por Deus: o peixe
(Jn 2,1), a planta (Jn 4,6), o verme (Jn 4,7) e o vento (Jn 4,8). É como se criaturas não
humanas servissem de profeta para ele, o profeta (DAVIS, 2014, p. 100-104).
Jonas, mais uma vez irado com sua situação, deseja a morte: “Então pediu para
morrer, dizendo: Para mim é melhor morrer do que viver” (v. 8). Segundo Good
(1981, p. 53), pela primeira vez Jonas está comprometido com algo. Irado com a
misericórdia oferecida aos ninivitas, o profeta se alegra em extremo quando a planta
nasce (Jn 4,6). Ironicamente, quando esta não é poupada, Jonas deseja a morte.
Antes, o profeta desejava morrer por causa do que percebeu ser uma falta de
justiça com os ninivitas (Jn 4,2), afinal eles não merecem a misericórdia.
Ironicamente, agora deseja morrer pelo que percebe ser uma falta de misericórdia da
parte de Deus com a planta (Jn 4,8).

147
Com algumas variações, componentes desse credo ocorrem em: Salmos 86,15; 103,8; 145,8; Neemias 9,17;
Joel 2,14.
432

As respostas de Jonas às perguntas de Deus realçam a incongruência do


profeta. Nota-se a desproporção de sentimentos do profeta em relação a Nínive (Jn
4,4) e em relação à planta (Jn 4,9).
A sequência irônica de diálogo se inicia com uma reversão da fórmula de 1,1 e
3,1. Aqui, é a palavra de Jonas que vem a Deus, contudo a palavra de destaque que
compõe grande parte do teor do diálogo é ‫[ טֹוב‬ṭôḇ; “bom”, “melhor”]. A maneira
como esse termo é empregado por Deus salienta a incoerência da atitude do profeta.
Em 4,3, Jonas afirma que melhor lhe é morrer do que viver, pelo fato de Deus ter
poupado Nínive. Na sequência, no verso 4, utilizando a raiz de ‫טֹוב‬, Deus pergunta: “É
razoável [‫ ;הַ הֵ יטֵ ב‬hahêṭēḇ] essa tua ira?”. A resposta óbvia para a audiência à
pergunta retórica de Deus seria “Não!”, mas a alternância irônica continua no verso
9. Visto que a planta havia sido destruída e o profeta ficara irado novamente, Deus
pergunta: “É razoável [‫ ;הַ הֵ יטֵ ב‬hahêṭēḇ] essa tua ira por causa da planta?”, ao que o
profeta responde: “É razoável [‫ ;הֵ יטֵ ב‬hêṭēḇ] a minha ira até a morte”.
A inquirição divina reiterada parece questionar: Que direito você tem a se irar?
As respostas exageradas do profeta conduzem o leitor de encontro com a palavra
final divina (Jn 4,10-11). De acordo com Gunn e Fewell (1993, p. 143), a frase final é o
coup de grâce: Jonas, que lamenta a morte da planta, sendo que não fez nenhum
esforço para que ela crescesse, não compreende a misericórdia divina para com uma
cidade inteira que iria ser destruída, mas que mudou seus caminhos.

CONCLUSÃO

Concluindo, apesar de serem dois pedidos de morte construídos seguindo


padrões literários muito semelhantes, as reclamações de Jonas parecem ser
paródicas das de Elias. Elias pede a morte por ter aparentemente falhado em sua
pregação. Por outro lado, ironicamente, Jonas pede a morte por ter obtido êxito em
sua pregação (GOOD, 1981, p. 51).
Reputados como personagens distintos, os profetas exibem uma percepção
singular da realidade. Assim, muitas vezes em seus oráculos, a ironia irrompe como
resultado de perspectivas diferentes: a comum, da audiência, e a distinta, do profeta.
Contudo, esses agentes de ironia também figuram como alvos dela mesma. Em
algumas situações, os profetas são ironizados por não cumprirem com as
expectativas presumidas e associadas ao seu ofício. Jonas consegue elevar a quebra
de expectativa em relação à figura profética em um outro patamar. Fazendo assim,
com que muitos o considerem, uma sátira antiprofética.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

DAVIS, E. F. Biblical Prophecy: perspectives for Christian theology, discipleship, and


ministry. Louisville: Westminster John Knox Press, 2014. (Interpretation).
GOOD, E. M. Irony in the Old Testament. Sheffield: The Almond Press, 1981.
433

GREGORY, R. “Irony and the Unmasking of Elijah”. In: HAUSER, A. J.; GREGORY, R.
From Carmel to Horeb: Elijah in Crisis. Sheffield: Almond Press, 1990. (The Library of
Hebrew Bible/Old Testament Studies, 85).
GUNN, D. M.; FEWELL, D. N. Narrative in the Hebrew Bible. Oxford: Oxford University
Press, 1993.
HOLBERT, J. C. “‘Deliverance belongs to Yahweh!’: satire in the book of Jonah”.
Journal for the Study of the Old Testament, 21, p. 59-81, October 1981.
MAGONET, J. Form and Meaning: studies in literary techniques in the book of Jonah.
Sheffield: The Almond Press, 1983.
MARCUS, D. From Balaam to Jonah: anti-prophetic satire in the Hebrew Bible.
Atlanta: Scholars Press, 1995. (Brown Judaic Studies, 301).
STUART, D. Word Biblical Commentary: Hosea-Jonah. Dallas: Word, Incorporated,
2002. V. 31.
WALSH, J. T. 1Kings. COTTER, D. W.; FRANKE, C. (Orgs.). Collegeville: The Liturgical
Press, 1996. (Berit Olam Series).
434

JONAS, SUA RELAÇÃO COM DEUS E COM A MORTE

LUCIENE LIMA GONÇALVES


Mestra em Teologia
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
[email protected]

RESUMO: O livro de Jonas narra o chamado desse profeta e sua fuga da presença de
Deus e a realização de sua missão. Analisa-se como essa relação conflituosa conduziu
Jonas a desejar a morte, buscando o significado de morte para esse personagem e as
consequências dessa decisão de morte na sua relação com Deus e com a
comunidade. A análise do livro de Jonas se faz com o uso do método narrativo,
visando a explorar as ações de Deus e de Jonas nessa busca pela morte. Considera-se
o conceito de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde (OMS), que afirma
ser a forma como o ser humano encara a vida com seus objetivos, expectativas, e
também a vivência e a realização de valores nos quais ele acredita. Conclui-se que o
distanciamento de Deus pode levar à morte e a proximidade com ele pode gerar vida
tanto individualmente como comunitariamente.

Palavras-chave: Jonas; Deus; Fuga; Vida Morte.

INTRODUÇÃO

A relação de Jonas com a vida e a morte só pode ser compreendida quando ele
é inserido na tradição de Israel. A existência de Israel está vinculada à sua relação
com Deus. A partir desse instante, todos os âmbitos da sua vida são perpassados por
essa relação. Diversos textos do livro dos Salmos apresentam a morte como
consequência natural da vida. O viver está associado ao andar com Deus. Assim,
aquele que não anda com Deus, escolhe o caminho da morte, ou da infelicidade,
segundo o livro do Deuteronômio 30,15. Portanto, analisar Jonas e sua trajetória por
esse princípio é acompanhá-lo em seu desejo constante pela morte. Cada uma das
ações de Jonas desde sua fuga até o final quando se afasta de Nínive aguardando sua
destruição revelam essa busca pela morte e sua desistência da vida.

O SIGNIFICADO DA VIDA E DA MORTE NO ANTIGO TESTAMENTO

Para iniciar a tratar do tema da vida e da morte em Jonas, é necessário um


mergulho no universo cultural da tradição do povo de Israel para acompanhar como
esse conceito foi construído. É preciso ter presente a própria consciência de si do
povo, como eles se compreenderam e se relacionaram com o mundo a sua volta para
que se alcance o que esses termos vida e morte significam nessa cultura.
435

É essencial ter claro que a existência de Israel como grupo e, posteriormente,


como povo se deu através de sua relação com Deus. É imprescindível considerar que
esse acontecimento marcante se torna o fundamento da constituição de Israel como
comunidade religiosa que, a partir desse fato, terá que organizar sua vida e suas
relações. O que constitui Israel, sua identidade, sua organização, suas leis é a
consciência de que tudo é perpassado pela certeza de ser um povo que recebeu de
Deus uma revelação que mudou o curso da sua existência, tornando sua história
singular em meio aos povos vizinhos.
A vida e a morte são instâncias que devem ser refletidas juntas, pois a
compreensão de Israel as vinculava. Nos dois relatos da criação presentes em Gn 1,1-
2,4 e Gn 2,5-25, Deus é o doador da vida, é ele que, no relato javista, modela o ser
humano do barro e lhe insufla o sopro da vida; no relato sacerdotal, ele cria pela
palavra à sua imagem e à sua semelhança.
A morte é vista como um fim natural, a vida se acaba pela morte, as duas estão
entrelaçadas. Com a morte cessa a vida, portanto uma vida feliz está associada a uma
vida longa, com uma extensa prole, cercada de bens. Todas as realizações humanas
estão restritas à dimensão da vida terrestre. Quando o ser humano morre vai para a
morada dos mortos, o sheol. Alguns salmos refletem sobre a situação do morto nesse
lugar, onde não se poderá mais louvar a Deus (Sl 6,6; 30,10; 88,11; 115,17; Is 38,18).
A relação do ser humano com Deus se dá enquanto esse vive, a plenitude da vida e a
felicidade significam o relacionamento com Deus (MCKENZIE, 2005, p. 633). Apesar
da morte o salmista expressa a confiança plena em YHWH (Sl 71,20; 73,23s).
Outra maneira de encarar a morte é como prova ou maldição, especialmente
se for uma morte prematura ou súbita. Alguns salmos atestam uma ligação desse tipo
de morte como abandono de Deus (Sl 16,10). O mais intrigante para Israel é o
sofrimento e a morte precoce do justo, não é fácil aceitar tal situação, ela permanece
um enigma para Israel. Aqui, recordamos a morte do justo Abel por seu irmão Caim
(Gn 4,8).
O livro do Gênesis afirma que a expulsão do primeiro casal do jardim do Éden
foi uma das consequências de sua desobediência. A expulsão representa a quebra da
relação com Deus, significando a morte do ser humano, mas, não a morte física e sim
espiritual (GEFFRÉ, 2014, p. 1195). Afastar-se de Deus, romper com ele significa
escolher a morte como bem indica Dt 30,15: “Eis que hoje estou colocando diante de
ti a vida e a felicidade, a morte e a infelicidade.” Na perspectiva de que o Deus de
Israel é o doador da vida (Dt 32,39) e que Israel só passa a existir como povo quando
do encontro com ele, o afastamento de Deus gera a morte para o crente. A vida se
finda quando não é mais possível louvar a Deus (Is 38,18s).

ANÁLISE NARRATIVA DE JONAS

Pensar o significado da vida e da morte partindo de Dt 30,15 pode nos ajudar a


refletir sobre esses conceitos no livro de Jonas. A história parece bem simples. Jonas
é chamado por Deus para ir profetizar a destruição em uma cidade estrangeira,
436

Nínive, caso ela não se arrependesse. Ele foge para o lugar mais distante, o outro
extremo, Társis, desobedecendo a voz de Deus.
Na Bíblia, esse livro está localizado entre os profetas, no entanto, ele não se
enquadra no gênero profético. Os estudiosos se dividem quanto à sua caracterização,
qualificam-no como narrativa didática, novela, conto, sátira, ou, ainda, como
parábola sobre a universalização da salvação. A obra representa uma grande
mudança de mentalidade do povo judeu acerca da abertura da salvação aos povos
pagãos. Acompanha-se através dos quatro capítulos do livro a tentativa de fuga de
Jonas da presença de Deus. Posteriormente, observa-se o significado dessas ações na
vida de Jonas e na sua relação com Deus.
No primeiro capítulo, o personagem é chamado por Deus a ir até Nínive e
anunciar sua destruição. Ele é convocado a levantar-se, no entanto, empreende o
deslocamento contrário, afasta-se, segue até o navio onde inicia um movimento de
descida, ao fundo do navio, em seguida ao fundo do mar, situação final. O clímax se
dá na revelação de sua fuga da presença do Senhor, quando Deus envia uma grande
tempestade sobre o navio. Jonas é descoberto como culpado, é lançado ao mar como
forma de acalmar a tempestade (FERNANDES, 2010, p. 26).
Os personagens presentes, nesse capítulo, são: Deus, Jonas e os marinheiros.
Deus comanda todas as ações: convoca Jonas e o envia em missão; quando percebe
sua fuga, envia uma tempestade ao mar e sabota seu plano. Jonas não emite uma
palavra diante de Deus, apenas ocupa-se em contrariar sua vontade. No navio,
também permanece calado até ser inquirido pelos marinheiros, após a sorte ser
lançada e recair sobre ele, como causa daquela tempestade. Indagado sobre sua
missão, ele responde com uma profissão de fé: “Sou hebreu e venero a Iahweh, o
deus do céu, que fez o mar e a terra”. Mais uma vez, a ironia permeia o relato (ALTER;
KERMODE, 1997, p. 254). Será que ele venera mesmo o Deus criador, aquele que tem
domínio sobre terra e céu? São os marinheiros que irão invocar a IHWH e oferecer
sacrifícios, além, é claro, de lançar Jonas ao mar.
A situação inicial do segundo capítulo é a determinação de IHWH que surgisse
um peixe grande que engolisse Jonas, a situação final é a ordem dada ao animal que
vomite Jonas sobre a terra firme (FERNANDES, 2010, p. 27). O clímax desse quadro é
o pedido de Jonas pela libertação de sua vida, por meio de um salmo de ação de
graças que surge no meio da narrativa. O salmo traz relatos dos sofrimentos passados
e o clamor por libertação das profundezas dos mares.
Deus, o peixe e Jonas são personagens desse capítulo. Deus continua dirigindo
os acontecimentos através de suas ações: envia um grande peixe para engolir Jonas e
depois determina que o vomite. O peixe aparece mais como um cenário no qual
Jonas profere o salmo de ação de graças. Jonas, por sua vez, sai da indolência e passa
a orar a Deus, clamando por sua vida (ALTER; KERMODE, 1997, p. 255).
No desfecho, há a revogação da destruição da cidade de Nínive. O clímax desse
quadro se dá no momento em que toda a população – incluindo o rei, sua corte,
homens e animais – faz jejum e penitência. Arrependimento e conversão sem
precedentes na tradição profética de Israel. Mais uma vez, o narrador coloca seus
leitores diante de acontecimentos fantásticos, povos pagãos que aderem à fé israelita
437

sem pestanejar. O mais estranho é que mesmo em Israel, com toda a sua tradição
profética, nunca se deu tal fenômeno (ALTER; KERMODE, 1997, p. 256).
Os personagens, se ampliam, além de Deus e de Jonas, os habitantes de
Nínive, o rei e os animais da cidade também são ativos na narrativa. Deus dirige a
palavra a Jonas, revoga o decreto contra os ninivitas. Jonas prega na cidade. Os
habitantes crêem em Deus, o rei adere a Deus, e os animais participam de todo o
processo de conversão da grande cidade de Nínive.
No último capítulo, a situação inicial traz o desgosto e a ira de Jonas pela
atitude tomada por Deus. A situação final traz uma interrogação aos leitores sobre a
resposta de Deus em relação ao motivo de não ter destruído a grande cidade de
Nínive. Aqui é esclarecida a razão da fuga de Jonas e o pedido explícito pela sua
morte por três vezes. Jonas não responde aos argumentos de Deus, a narrativa
finaliza sem o conhecimento dos leitores da opinião de Jonas após a justificativa
divina (SKA; SONNET; WÉNIN, 2001, p. 48).
Os personagens que seguem até o fim do relato são Deus e Jonas. Deus
continua um ser de ação, vai ao encontro de Jonas, questiona sua revolta, explicita
suas razões e tenta dissuadi-lo a mudar de atitude. Jonas revela, finalmente, o motivo
de sua fuga: a bondade e a misericórdia divina. Por isso, instala-se a leste da cidade e
pede a morte, mostra-se teimoso e intransigente na discussão com Deus.

A VIDA E A MORTE EM JONAS

O que se observa desde o primeiro capítulo é uma tentativa de fugir da


presença de Deus. Lemos Jonas na perspectiva de Deuteronômio que apresenta
diante do povo, antes de entrar na terra prometida, dois caminhos, um que leva à
vida, e consequentemente à felicidade, e outro que leva à infelicidade culminando na
morte. Desse modo, afastar-se de Deus é buscar a morte, exatamente o que revela
trajetória de Jonas, em seu desejo de morte desde o primeiro capítulo até o último.
No primeiro capítulo, Jonas foge da presença de Deus, iniciando um
movimento de descida. Vale lembrar que morrer, na Bíblia, equivale a descer à
mansão dos mortos, ao sheol. Na concepção bíblica morrer é dormir, sendo assim,
Jonas decidiu pela morte (MORA, 1981, p. 7-9) porque além de descer até o porão do
navio, lá ele dorme, totalmente alheio ao que se passa a sua volta.
Na segunda cena, após ser expulso do navio, ele é engolido por um grande
animal marinho. Isso significa ser tragado pela morte. O tempo que ele permanece no
interior desse animal, é um tempo de morte (Sl 69,2-4). Ele será resgatado por Deus
quando ordena que o animal o vomite. Nesse momento, Jonas clama pela salvação
de sua vida e é atendido. Deus não permite que ele morra e o traz de volta (MORA,
1981, p. 12).
Após ser salvo por Deus, Jonas é convocado a realizar sua missão. De volta à
vida deve restabelecer sua relação com Deus. Ele anuncia a palavra que Deus o
encarregou e novamente após o sucesso de sua missão foge da presença de Deus.
Jonas resolve construir uma cabana num lugar afastado e esperar a destruição da
cidade. Ele se afasta de Deus e aqui ele explicita diante de Deus seu desejo de morte.
438

Até esse momento, todos os seus gestos e ações demonstravam essa obstinação,
mas, agora fica claro, ele decidiu pela morte e não quer dialogar com Deus. Sua fuga
culmina com uma afirmação resoluta de rejeição da oferta de Deus de manter um
relacionamento próximo. Através das ações de Jonas sua decisão é pela morte, pela
rejeição da presença e intimidade com Deus, por três vezes, ele clama por sua morte
(4,3.8.9).
A decisão de Jonas de fugir de Deus acarreta graves consequências para ele e
para as pessoas com as quais ele se depara. Ao entrar no navio, ele coloca em risco a
vida de toda a tripulação. Todos são salvos quando ele é lançado ao mar. Ao pregar
para a população de Nínive, eles são salvos, recebem então a vida e ele pede a morte.
É interessante observar esse jogo de vida e morte presente a cada ação de Jonas e de
Deus. Enquanto ele busca a morte, Deus procura salvar a vida dele, dos tripulantes do
navio, da população de Nínive e de todos os animais. A morte da planta é utilizada
para fazê-lo entender a salvação desse povo estrangeiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

A organização Mundial de Saúde (OMS) define saúde como um estado de


completo bem-estar, físico, mental e social, ou seja, não é somente estar livre de
doenças. A vida saudável consiste em bem-estar físico, estar livre de doenças e
manter relações verdadeiras e equilibradas com Deus e com os seus semelhantes.
Jonas, personagem aqui tratado, parece não se apresentar como uma pessoa
saudável, pois seu bem-estar mental e social apresenta-se alterado devido às tensões
e turbulências em suas relações sociais e religiosas. A sua incompreensão das ações
de Deus o levou a um afastamento do mesmo, culminando numa angústia e
desespero humanos que o fazem desistir de viver. Na tradição religiosa de Israel, não
se pode viver distante de Deus, isso significa deixar de existir. A vida e a morte no
livro de Jonas estão intimamente ligadas à sua relação com Deus, romper esse laço é
morrer. Jonas foge, pois ele sabe que essa distância representa estar morto. Escolhe,
pois, a vida é o que diz o Deuteronômio, mas a teimosia de Jonas, sua não aceitação
do diferente, seu desejo de manipular a Deus, sua obstinação na eliminação do
estrangeiro, fazem com que ele escolha o caminho da morte.

REFERÊNCIAS

ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Editora
Unesp, 1997.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2000. 9ª impressão.
FERNANDES, Leonardo Agostini. Jonas. São Paulo: Paulinas, 2010 (Coleção
Comentário Bíblico Paulinas).
GEFFRÉ, Claude. Morte In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de Teologia. São
Paulo: Loyola; Paulinas, 2014, p. 1195-1199.
MCKENZIE, John L. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 2005.
MORA, Vincent. Jonas. Navarra: Verbo Divino, 1981. (Cuadernos Bíblicos).
439

SKA, Jean-Louis; SONNET, Jean-Pierre; WÉNIN, André. Análisis narrativo de relatos


Del Antiguo Testamento. Navarra: Verbo Divino, 2001 (Cuadernos Bíblicos).
440
441

OS DIÁLOGOS E EMBATES ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA NA


ANÁLISE SOCIOESPACIAL EM TEMPOS DE COVID-19

DIEGO LOPES DA SILVA


Doutor em Geografia
Universidade de Brasília (UnB)
[email protected]

RESUMO: O tema explorado nesta comunicação diz respeito tem por base retratar as
diferentes formas de relacionar ciência e religião, sendo estas categorizadas por Ian
Barbour em Ways of Relating Science and Religion, utilizando como fundamentos
para sua classificação os pressupostos científicos de objetividade e racionalidade que
estão intrinsecamente ligados ao processo de observação do mundo e dos seus
habitantes, enquanto a subjetividade e caráter emocional estão ligados aos
segmentos religiosos que tem como fundamento sua tradição. Barbour discorre na
sua narrativa sobre dois tipos ideais para as relações entre conhecimento científico e
a religião; conflito e diálogo. Na relação conflituosa, Barbour coloca como os
extremos da relação entre ciência e religião, o materialismo científico e o literalismo
bíblico, respectivamente, observando que mesmo tecnicamente distantes, existem
características comuns entre essas escolas, tendo em vista o uso errôneo da ciência
feita por ambos os movimentos. Tal afirmativa é justificada pelo entendimento de
que ambas desrespeitam os limites de atuação e entendimento de suas respectivas
disciplinas, este opinando a respeito de assuntos científicos que estão além dos
limites de compreensão da religião, e aquele por buscar fazer avaliações filosóficas de
conteúdos não filosóficos. Na visão de Barbour, aqueles que defendem o
materialismo científico tendem a buscar a autoridade da ciência para temas e ideias
que não são próprias do conhecimento científico, sendo considerada falsa e incorreta
toda e qualquer realidade que não seja considerada natural. Desta forma, uma visão
científica do mundo não permite uma interpretação filosófica dos pressupostos
científicos, sendo assim toda publicação tratando de assuntos relacionados às
ciências naturais, ditas “ciências duras”, “não passariam de um sistema de crenças
alternativas, cada uma delas pretendendo representar a sua e exclusiva realidade
como um todo”. Considerando que ambas trazem consigo uma pretensão de estatuto
da verdade, o confronto entre ciência e religião poderia ser evitado se religião e
ciência fossem consideradas como esferas distintas da realidade, com metodologias
que pudessem ser justificadas em seus próprios termos, e não com termos universais
e generalistas. Esta independência, além de evitar conflitos totalmente
desnecessários, permitiria as escolas que tivessem a livre expressão do modo de
entender e compreender sua área de investigação. Tanto a religião quanto a ciência
são aspectos fundamentais para a compreensão da vida social, e o uso do diálogo e a
conciliação em suas teorias propiciam um melhor desenvolvimento para ambas no
442

intuito de “aliviar” o fardo e as complicações inerentes a natureza física e humana;


sendo conceitos como evolução e seleção natural aceitos pela religião e a concepção
da existência de Deus menos conflituosa para a ciência.

Palavras-Chave: Religião; Ciência; Socioespacial; Embates; Diálogos.

A presente comunicação tem por base retratar as diferentes formas de


relacionar ciência e religião, sendo estas categorizadas por Ian Barbour em Ways of
Relating Science and Religion148, utilizando como fundamentos para sua classificação
os pressupostos científicos de objetividade e racionalidade que estão
intrinsecamente ligados ao processo de observação do mundo e dos seus habitantes,
enquanto a subjetividade e caráter emocional estão ligados aos segmentos religiosos
que tem como fundamento sua tradição. Barbour discorre na sua narrativa sobre
quatro tipos ideais para as relações entre conhecimento científico e a religião;
conflito, diálogo, independência e integração.
Na relação conflituosa, Barbour coloca como os extremos da relação entre
ciência e religião, o materialismo científico e o literalismo bíblico, respectivamente,
observando que mesmo tecnicamente distantes, existem características comuns
entre essas escolas, tendo em vista o uso errôneo da ciência feita por ambos os
movimentos. Tal afirmativa é justificada pelo entendimento de que ambas
desrespeitam os limites de atuação e entendimento de suas respectivas disciplinas,
este opinando a respeito de assuntos científicos que estão além dos limites de
compreensão da religião, e aquele por buscar fazer avaliações filosóficas de
conteúdos não filosóficos.
Na visão de Barbour, aqueles que defendem o materialismo científico tendem
a buscar a autoridade da ciência para temas e idéias que não são próprias do
conhecimento científico, sendo considerada falsa e incorreta toda e qualquer
realidade que não seja considerada natural. Desta forma, uma visão científica do
mundo não permite uma interpretação filosófica dos pressupostos científicos, sendo
assim toda publicação tratando de assuntos relacionados às ciências naturais, ditas
“ciências duras”, “não passariam de um sistema de crenças alternativas, cada uma
delas pretendendo representar a sua e exclusiva realidade como um todo”.
Outro ponto possível de polarização entre religião e ciência seria as possíveis
apropriações de hipóteses científicas por meio de teorias filosóficas, trazendo o
problema do fundamentalismo pseudocientífico, isto é, a transformação da ciência
em religião. Do outro lado poderia ocasionar uma transformação de religião em
ciência quando se aborda assuntos que não estão na ordem religiosa, embora sejam
postos em debate pela religião, por exemplo, a questão do status legal da teoria
criacionista, classificando-a como ciência149.

148
BARBOUR, Ian. “Ways of Relating Science and Religion”. In Religion and Science - Historical and
Contemporary Issues. London: SCM Press, 1998. Pp. 77-105.
149
Barbour, afirma que, do mesmo modo que as interpretações alegóricas de passagens controversas da Bíblia
vêm sendo oferecidas desde a Antiguidade, constata-se que os reformadores João Calvino e Martinho Lutero
também seguiram, pelo menos no início, essa tradição, não menos verdadeira é a constatação que grupos
443

Considerando que ambas trazem consigo uma pretensão de estatuto da


verdade, o confronto entre ciência e religião poderia ser evitado se religião e ciência
fossem consideradas como esferas distintas da realidade, com metodologias que
pudessem ser justificadas em seus próprios termos, e não com termos universais e
generalistas. Esta independência, além de evitar conflitos totalmente desnecessários,
permitiria as escolas que tivessem a livre expressão do modo de entender e
compreender sua área de investigação. Esse tipo de relacionamento proposto por
Barbour não parece, contudo, verossímil, pois, a impossibilidade de se ter um diálogo
construtivo entre as partes, impediria uma visão unificada do mundo, e uma relação
de distanciamento não seria construtiva para nenhum das esferas do saber humano.
Na outra esfera a adoção de um modelo que permitisse um diálogo a partir das
novas perspectivas de observar e entender o mundo oferecidas pela ciência,
provavelmente diminuiria de forma mais eficiente suas tensões com a religião,
oferecendo a esta subsídios para debates teológicos.
Os problemas envolvendo o relacionamento entre a autoridade religiosa e os
assuntos relacionados à ciência já havia sido expostos na Antiguidade por aqueles
que não encontravam nas Escrituras respostas satisfatórias para suas dúvidas, o texto
de Jó 38 mostra exatamente essas questões. A resposta dada pelo próprio Deus
mostra a incapacidade do homem em entender fatos relativos ao seu mundo físico
discorrendo sobre as leis naturais, o desenvolvimento da vida humana e a reação do
homem frente aos fatos cotidianos, sendo assim diante da sua incapacidade em saber
de eventos tipicamente humano e presentes no seu cotidiano, jamais conseguirá
entender o conhecimento de Deus, outro texto que descreve essa situação em escala
diferente é o Testamento de Jó, um típico texto da literatura sapiencial judaica:

Por onde se divide o relâmpago, ou se difunde o vento leste sobre a


terra? Quem abriu um canal para o aguaceiro e o caminho para o
relâmpago e o trovão, para que chova em terras despovoadas, na
estepe inabitada pelo homem, para que se sacie o deserto desolado
e brote erva na estepe? Terá pai a chuva? Quem gera as gotas de
orvalho? De que seio saiu o gelo? Quem deu à luz a geada do céu,
quando as águas desaparecem, petrificando-se, e se torna compacta
a superfície do abismo? Podes atar os laços da das Plêiades, ou
desatar as cordas de Órion? Podes fazer sair a seu tempo a Coroa ou
guiar a Ursa com seus filhos? Conheces as leis dos céus, determinas o
seu mapa na terra? Consegues elevar a voz até as nuvens, e a massa
das águas te obedece.150
Baldas: ... E eu novamente te pergunto, por que nós vemos o sol
nascendo no leste e se pondo no oeste, e quando acordamos no dia
seguinte novamente encontramos o mesmo sol nascendo no
leste?

fundamentalistas, especialmente nos EUA, mantêm até os dias de hoje uma fé inabalável na interpretação
literal das Escrituras.
150
Trecho do livro de Jó 38:24-34
444
Jó: ... Quem somos nós para nos ocupar com os assuntos celestiais,
sabendo que somos matéria e temos muito de pó e de cinzas?
Assim, ouça o que te pergunto: tanto a água como os alimentos
são engolidos pela boca e passam pela mesma garganta, mas são
eliminados do nosso corpo de modo diferente. Quem os separa?
Baldas: Eu não sei a resposta.
Jó: Se és incapaz de entender o funcionamento de seu próprio corpo,
como queres entender as coisas do céu?

A crença que vontade divina não seria a resposta para todos os


questionamentos do homem só veio a ser verdadeiramente desafiada a partir do séc.
XV, quando o modelo heliocêntrico desenvolvido por Copérnico deu início a novas
maneiras de compreender os fenômenos naturais. A partir do Renascimento
cultural e científico o debate entre a ciência e religião se torna mais acentuado, tendo
no filósofo Bertrand Russell (1872-1970) um dos observadores dos debates
acalorados entre ciência e religião. Russell vê que a religiões possui um tripé
estrutural fundamental baseada em uma igreja una, um credo comum e um código
de conduta pessoal, cuja importância foi vital durante os séculos, embora alterando
relativamente cada um deles ao longo do tempo e do espaço. Para Russell, o
questionamento de um credo religioso pela ciência não deve ser avaliado como a
uma simples questão teórica, mas como uma questão política e moral, com todas as
conseqüências que essa colocação acarreta - a diminuição da autoridade eclesiástica,
no caso da primeira e um relaxamento da moralidade, no da segunda 151. Na visão de
Russel o epicentro do confronto entre religião e ciência está na configuração dos
credos e sua função reguladora da mentalidade humana.
Russell redigiu suas principais idéias em um pequeno volume 152, onde afirma
que “entre a religião e a ciência houve um prolongado conflito, do qual, até os
últimos poucos anos, a ciência sempre se saiu vitoriosa”. Russell afirma que o modelo
desenvolvido por Copérnico representava a revitalização das ações racionais
humanas que passaram a ser protagonista dos fenômenos naturais, uma teoria
proposta por Aristarco de Samos153 há mais de 2.000 (dois mil) anos, mostrando que
os questionamentos acerca do deslocamento da Terra (do centro para periferia do
Sistema Solar), sofreu forte oposição da igreja somente por diminuir a importância da
divindade como controladora do sistema e dos humanos, até então o centro da
teologia cristã. Não se constituiu em surpresa, portanto, a inclusão dos textos de
Copérnico - e daqueles que o seguiram, como Kepler e Galileu - no Index da Igreja e a
proibição da divulgação de suas teses até meados do século XIX.
Russell faz, contudo, questão de enfatizar que esse confronto não se limitou
apenas a Igreja Católica. Na sua visão a oposição não teria sido menor nos países
protestantes, mas a falta de uma Inquisição e os próprios questionamentos dos

151
RUSSELL, Bertrand. Religion y Ciencia. Cidade do México: Fondo de Cultura Econômica, 2000.
152
RUSSELL, Bertrand. Op. cit. Pp. 9-10.
153
Astrônomo de origem grega que viveu em Alexandria a maior parte de sua vida (310 a.C.-230 a.C.), autor Da
Magnitude e da Distância do Sol e da Lua.
445

reformistas teria impedido uma ação mais repressora da Igreja e consequentemente,


permitido um avanço maior da ciência naquelas regiões.
Bertrand Russell enfatiza a tese de conflito ao expor que a teologia
medievalista, que pretendia ser um sistema lógico imutável, não passava de uma
“ignorância tecnicamente organizada e que perpetuava erros antigos” 154.
Manifestações de fenômenos naturais que não obedecessem às leis de regularidade,
como aparição de cometas ou erupções vulcânicas, maremotos, abalos sísmicos, por
exemplo, eram de difícil explicação para a mentalidade medieval e invariavelmente
atribuídas à vontade divina.
O progresso da ciência contra a mentalidade religiosa teria se processado do
mundo p, mais distante, para o mundo pp, mais próximo ao ser humano. Kant e
Laplace, foram os primeiros a elaborar uma teoria científica que explicasse o
desenvolvimento gradual do sistema solar, desafiando de maneira frontal a tese
aristotélica da imutabilidade do mundo supralunar155.
No caso dos organismos vivos - com suas incríveis capacidades de mutação,
adaptação e elevados graus de complexidade, são, no entanto, muito mais complexos
que os relógios. Os indícios da existência de um projeto de tamanha magnitude
seriam excelentes demais para serem ignorados e, portanto, somente um projetista
inteligente poderia tê-los criado, da mesma forma que somente um relojoeiro
experiente seria capaz de montar um relógio de qualidade. Para o projeto de criação
e desenvolvimento das espécies teríamos um projetista, e este projetista seria Deus.
O problema biológico só receberia uma proposta de solução cientificamente
aceitável em meados do século XIX, sugerida por Charles Darwin (1809-1882). Russell
observar que os postulados darwinianos, sob muitos aspectos, não passavam de uma
extensão do liberalismo econômico vigente. Compreensivelmente, a teoria da
evolução das espécies por meio da “sobrevivência do mais apto”, eliminava a tese de
uma criação divina provocando assim uma enorme ira na Igreja, e constrangimento à
teologia cristã, o que de certa forma perdura, em algumas denominações
fundamentalistas, especialmente nos EUA156.
Um grande número de pesquisadores (filósofos, historiadores e geógrafos da
religião) acreditam que alguma forma de diálogo entre elas poderia representar uma
melhor solução para aqueles conflitos, uma vez que o verdadeiro dilema estaria em
encontrar um espaço de acomodação (onde haja um dialogo moderado) para ambas.
Afinal, o próprio Russell menciona que essa disputa sempre foi mais intensa entre a
teologia dogmática e a ciência, e muito menos conflituosa em relação aos próprios
cientistas - esses em grande parte homens bastante religiosos - que buscavam evitar
de todas as formas possíveis o conflito. Tem-se vários exemplos desses eventos
podem ser descritos; a fé que Newton expressava na parousia 157, Copérnico dedica
seu livro ao Papa e Galileu quando se retrata diante do tribunal inquisitorial que o
julgou.

154
RUSSELL, Bertrand. Op. cit. P. 33.
155
RUSSELL, Bertrand. Op. cit. P. 43.
156
RUSSELL, Bertrand. Op. cit.. P. 52.
157
Palavra grega que representa a volta de Jesus Cristo para resgatar os puros do mundo perverso
446

A conduta assumida pelos protestantes tradicionais não diferiu muito da dos


católicos. Tendo em vista que os reformadores reconheciam que a leitura da Bíblia
acomodava diferentes interpretações sobre temas periféricos (não os doutrinais), e
sim os dogmáticos e tradicionalistas, o que deixou, em última análise, eventuais
dificuldades na relação entre darwinismo e cristianismo basicamente restrita aos
grupos cristãos fundamentalistas como os Quakers e os Mórmons.
Observa-se que os pontos de vista discorridos neste artigo demonstram que os
obstáculos ao desenvolvimento da ciência em função de divergências na resolução de
problemas que religião entendia já haver encontrado respostas plausíveis parecem
ter sido superados em grande parte na contemporaneidade, em que pese a atuação
crescente de grupos fundamentalistas cristão pautados no literalismo bíblico. Mas os
múltiplos enfrentamentos e as numerosas tentativas de conciliação - que deixaram
marcas profundas em ambos os lados – deixaram frutos de diálogo e compreensão
pautados na conquista da liberdade intelectual cientifica que está diretamente ligada
ao processo de “esquecimento” por parte da Igreja de uma herança medieval
negativa, o que acabara por fortalecer os aspectos centrais a religião cristã que são
seus valores morais e a conduta ética.
Tanto a religião quanto a ciência são aspectos fundamentais para a
compreensão da vida social, e o uso do diálogo e a conciliação em suas teorias
propiciam um melhor desenvolvimento para ambas no intuito de “aliviar” o fardo e
as complicações inerentes a natureza física e humana; sendo conceitos como
evolução e seleção natural aceitos pela religião e a concepção da existência de Deus
menos conflituosa para a ciência.

REFERÊNCIAS

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Historical and Contemporary Issues. London: SCM Press, 1998
DAWKINS, Richard. O Relojoeiro Cego. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
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Econômica, 2000.
SWINBURNE, Richard. Faith and Reason. New York: Oxford Universsity Press, 2005.
447

ESPIRITUALIDADE, RESILIÊNCIA E DEPRESSÃO

ROSANA MARIA FERREIRA BORGES


Mestranda em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
rosanamfborges @gmail.com

RESUMO: O homem contemporâneo é um indivíduo que participa das


transformações sociais profundas de nossos tempos, um tempo que vê agravar-se o
problema da depressão e do suicídio. O homem deste século é um indivíduo,
descentrado, fragmentado que sofre uma crise de desvinculação em escala global. A
busca de sentido de vida é uma busca essencial e permanente dos indivíduos e o
vazio existencial surge quando não se encontra sentido, significado para a vida. O
vazio existencial é uma das causas da depressão e a espiritualidade pode ser
considerada um fator de resiliência na medida que pode ajudar o homem na busca de
significados, de sentido existencial e de ordenação subjetiva.

Palavras-chaves: Espiritualidade; Resiliência; Depressão.

INTRODUÇÃO

Ao longo do último século, foi muitas vezes predito que a religião


desapareceria com o avanço da ciência e da razão (WEBER, 1982). No entanto, essa
‘profecia’ tem sido questionada por uma série de estudos recentes em relação ao
tema. Segundo Koenig (2012), em revisão sistemática incluindo 3300 estudos
publicados sobre religiosidade e saúde, do ano de 1982 ao ano de 2010, 80% dos
estudos tratavam das relações entre espiritualidade e saúde mental. Deste total, 454
discutiam a religiosidade como estratégia de coping ou resiliência. Os dados
estatísticos revelam que, no Brasil, 95% dos brasileiros declaram ter religião, 83%
consideram religião muito importante para suas vidas e 37% frequentam um serviço
religioso pelo menos uma vez por semana. Ao contrário do que se imagina, o nível
educacional, a renda e a raça não se associam de modo independente a indicadores
de religiosidade. Em linha com o sincretismo brasileiro, 10% frequentam mais de uma
religião (MOREIRA ALMEIDA, 2010).
A investigação ora apresentada busca uma melhor compreensão na relação
entre espiritualidade, resiliência e depressão, procurando tecer elementos que
possam auxiliar na prevenção ou melhora da depressão, doença que ocupa o
primeiro lugar no rol das doenças incapacitantes.
448

DESENVOLVIMENTO

A modernidade tardia (GIDDNS, 1991), a pós modernidade, (HALL, 2006), ou


modernidade liquida (BAUMAN, 2007), situa-se na segunda metade do século XX,
quando movimentos sociais e intelectuais trouxeram em seu bojo um novo homem,
um sujeito que deixa de ter uma identidade fixa e estável. O indivíduo foi
descentrado, trazendo como resultado identidades contraditórias, inacabadas e
fragmentadas, com efeitos profundamente desestabilizadores. Para Hall (2006, p. 12,
32), o sujeito pós-moderno “É um indivíduo isolado, exilado ou alienado”, não tem
uma “identidade fixa, essencial ou permanente”.
Em meio a tantas transformações individuais e coletivas, globais ou localizadas
o homem do século 21 vê agravar-se o problema da depressão e do suicídio. Qual o
significado da vida para a sociedade pós moderna? Buscamos a felicidade, porém,
segundo Crema (2019), o obstáculo à felicidade é a fragmentação, um flagelo que
caracteriza os tempos sombrios que estamos testemunhando, que se traduz por uma
crise de dissociação e de desvinculação em escala global. As relações não se
caracterizam mais pela presença, o lugar do encontro não é mais concreto. A
incessante mudança, característica de nossos tempos, apresenta um homem
descentrado, pois o mundo não tem mais centro, lugar comum; fragmentado, em
constante mutação, sem previsibilidade, e a vida um desafio de busca de sentido.
Victor Frankl (2008) considera que o ser humano se move em busca de um
sentido para sua vida, é seu interesse primeiro, sua principal força motriz. A vontade
do sentido é uma motivação primária do ser humano e não somente racionalização
secundária de impulsos instintivos. Para que a felicidade seja efetiva é preciso que se
ancore no sentido de vida, pois não se encontra na satisfação material, na satisfação
do sexual ou do poder, desta forma se opõem ao niilismo moderno.
Para Berger a busca do sentido é uma característica perene do ser humano:

O impulso religioso, a busca de um sentido que transcenda o espaço


limitado da existência empírica neste mundo, tem sido uma
característica perene da humanidade. [...] Seria necessário algo como
uma mutação de espécie para suprimir para sempre esse impulso.
(BERGER, 2000, p. 19).

Viver com sentido significa pôr-se a serviço de algo, com engajamento, com
emoção, com vontade utilizando todas as suas aptidões, é viver com propósito.
Frankl (2008), destaca que a realização de sentido se efetiva através dos valores:
valores experienciais – uma experiência que seja positiva em si, ou amar alguém;
valores criativos – criar uma obra ou se dedicar a um trabalho criativo, com
motivação; e, assumir atitude diante de um sofrimento inevitável - valores
atitudinais.
O número dos que lamentam da falta de sentido da vida aumenta
exponencialmente, trazendo à tona a falta de objetivos, de tarefas e envolvimento
criativos que caracterizam o nosso tempo. A depressão surge também como
449

consequência do vazio existencial, quando o sentido da vida se frustra. Importante


lembrar, porém, que nem todo caso de depressão pode ser atribuído à falta de
sentido. Tampouco o suicídio, a que as vezes a depressão leva, é sempre resultado de
um vazio existencial.
O vazio existencial, se verifica quando as pessoas não conseguem mais
encontrar o sentido para as suas vidas; este vazio se manifesta, principalmente, num
estado de tédio existencial. As frustrações existências são uma das características de
nossos tempos. Porém, a frustração existencial, ou a frustração de vontade de
sentido, não é patológico. O anseio humano de uma existência plena pode e deve ser
mobilizado terapeuticamente. Neste sentido Frankl (2008, p. 164) narra uma
experiência de um estudo específico de depressão:

Havia diagnosticado em casos de pacientes jovens sofrendo do que


eu chamava de "neurose de desemprego". E consegui demonstrar
que esta neurose tinha realmente a sua origem numa dupla
identificação errônea: estar sem emprego era considerado o mesmo
que ser inútil, e ser inútil era considerado o mesmo que levar uma
vida sem sentido. Consequentemente, sempre que eu conseguia
persuadir os pacientes a trabalhar voluntariamente em organizações
de jovens, educação de adultos, bibliotecas públicas e atividades
similares - em outras palavras, quando preenchiam o seu abundante
tempo livre com alguma atividade não remunerada mas significativa
e portadora de um sentido - a sua depressão desaparecia, embora a
sua situação econômica não houvesse mudado e a sua fome
continuasse a mesma. A verdade é que o ser humano não vive
apenas de bem-estar.

As causas da depressão são múltiplas. Podem ser genéticas, estima-se que


esse componente represente 40% da suscetibilidade para desenvolver depressão. A
bioquímica cerebral pode igualmente ser reconhecida como uma das causas, e, da
mesma forma, os chamados eventos vitais participam do rol de causas possíveis da
depressão. Assim sendo, o conhecimento de fatores que podem promover a
resiliência ao estresse prevenindo a depressão é importante ação de prevenção e
terapêutica. Surge desta forma, um tema importante no tratamento da depressão: a
resiliência.
A resiliência deve ser pensada como um processo, não inato, não natural, não
fixo, não estático. Segundo YUNES, 2006; WALSH, 2005; WALLER, 2001 (apud
BRANDÃO, 2009, p. 74), a resiliência se transforma se as circunstâncias mudam. Ela é
processual e dinâmica. Cada processo de enfrentamento de adversidades acontece
de uma determinada forma que dependerá de quem enfrenta, do que se enfrenta e
de quais circunstâncias envolvem o processo. Cada pessoa pode apresentar
resiliência de uma maneira diferente. Os mesmos sujeitos podem apresentar o
processo de resiliência de formas diversas em situações diferentes, podendo usar de
mecanismos de enfrentamento diferentes, podendo sofrer mais ou menos em cada
450

situação. E até adversidades semelhantes os sujeitos podem não enfrentar da mesma


forma
Como alguns enfrentam os problemas e crescem enquanto outros sucumbem?
Como e por que alguns demonstram resiliência perante as dificuldades da vida e
outros não? A espiritualidade, pode ser considerada um fator de resiliência? O
sagrado pode ajudar o homem na busca de identidade, de significados, de sentido
existencial, de ordenação subjetiva?
Para Eliade (1992, p.88), as grandes descobertas do século 20 dizem respeito à
relação do homem com o sagrado, “a importância essencial que o sagrado tem em
toda a existência humana”.
O Sagrado é uma proteção ao caos e à anomia. “A anomia é intolerável até o
ponto em que o indivíduo pode lhe preferir a morte” (BERGER, 1985, p. 35).
Para Victor Frankl (2008, p. 63), o estudo da adversidade e sentido existencial,
aproxima a espiritualidade à resiliência, “o tamanho do sofrimento humano, é algo
bem relativo”. Importa ressaltar que Frankl (2017, p. 73) considera a religião como
um fenômeno humano, e evidencia “os efeitos profiláticos ou psicoterapêuticos
quando a pessoa experimenta alívio psicológico ao considerar sua transcendência, ao
encontrar o sentido último da vida em Deus ou ao sentir-se ancorada no absoluto”.
O homem pós-moderno busca uma experiência pessoal, de interioridade com
o sagrado, com o transcendente. Afirma Victor Frankl (2008, p. 79), que estamos
caminhando para uma “religiosidade pessoal, profundamente personalizada, uma
religiosidade a partir da qual cada um encontrará sua linguagem muitíssimo pessoal,
sua linguagem própria, mais originalmente sua, ao voltar-se para Deus”.
Para Roof, Lesser, (apud GIORDAN, 2004), o termo espiritualidade parece dar
conta de caracterizar com mais justeza a busca do homem contemporâneo por uma
relação mais pessoal com o sagrado, traçando caminhos próprios em busca do bem
estar, do auto aperfeiçoamento e do eu profundo. No presente artigo toma-se a
espiritualidade como uma categoria na relação do indivíduo com o sagrado, uma
forma de ser e de acreditar caraterístico do homem moderno. A espiritualidade
destaca caminhos pessoais de busca de sentidos, mesmo dentro de sua tradição
religiosa o homem constrói o sistema de significados que lhe atendem e lhe garantem
sentido, proposito de vida (FRANKL, 2016). Portanto, no presente trabalho, o
conceito de espiritualidade não é sinônimo de religiosidade. Ao fazermos esta opção
levamos em conta os estudos de Foucault e dos pós estruturalistas (ESPERANDIO,
2020) que nos demonstram que os discursos de verdade são sempre datados e
localizados.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A título de conclusão, evidencia-se a importância da espiritualidade na


construção de um mundo ordenado e com significado. Em momentos de crise
(FRANKL, 2003, 2008, 2017; PIEDMONT apud CATRÉ 2016) a espiritualidade pode se
apresentar como um refúgio de segurança e bem-estar social para as pessoas. O
transcendente pode trazer motivação e significado para a vida.
451

Para Frankl (2008), quando o homem está sobre o chão firme da fé religiosa,
não se pode objetar ao uso do efeito terapêutico das suas convicções religiosas e,
assim, ao aproveitamento de seus recursos espirituais. A espiritualidade,
compreendida como uma experiência pessoal de encontro com o sagrado, o
transcendente, ocorre dentro do indivíduo e o auxilia a dar nomos e significado a sua
vida. Difere de pessoa para pessoa, e varia conforme as circunstâncias em que
estamos inseridos.
O tema espiritualidade, resiliência e depressão abre extenso campo de
pesquisa interdisciplinar. Atual, urgente e relevante, merece atenção por parte
daqueles que trabalham pelo bem-estar de indivíduos e da sociedade.

REFERÊNCIAS

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Janeiro: Jorge Zahar, 2007
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Acesso em: 15 nov. 2019.
WEBER, Max. A Ciência como vocação: Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro: LTC,
1982.
453

“O CACO ENTRE OS CACOS”: A SAÚDE MENTAL, ENTRE OS


LIMITES DA CIÊNCIA E DA RELIGIÃO NA ERA DO
CORONAVÍRUS

ROSA MARIA PEREIRA DE MELO


Mestranda em Ciências da Religião
Universidade Católica de Pernambuco (UNICAP)
[email protected]

RESUMO: A depressão que está ligada a um profundo sentimento de vazio,


frustração e perda, tem encontrado um ambiente apropriado nesta era do
coronavírus, lançando seus tentáculos na sociedade capitalista globalizada, que é
obrigada a reduzir seu consumo, narcisismo e gozo. O suicídio vem como golpe fatal
ao ego que se sente incapaz de lidar com os cortes e dores existenciais, e tem
aumentado segundo a Organização Mundial da Saúde. A falta de fé, contato social
saudável e afetividade muito colabora para os adoecimentos psíquicos. Pretende-se
mostrar como a ciência racional mesmo com seu arcabouço tecnológico e
metodologias capazes de antever crises sociais e doenças graves, mostrou-se frágil
diante do poderio do coronavírus, levando a pessimismos extremos, ambiente
propício para doenças psicossomáticas (hipocondria, agorafobia/transtorno do
pânico) e radicalismos; em contrapartida, a fé, orações individualizadas, exercem um
papel terapêutico, “de efeito ansiolítico”, apesar de crescente pluralismo. Este
trabalho fundamenta-se na pesquisa bibliográfica e documental, com base nas
hermenêuticas fenomenológica existencial e psicanalítica. Durante muito tempo a
religião foi castrada e rechaçada, em grandes modelos teóricos modernos.
Contrapondo a esse “pensamento moderno”, como ponto de partida buscou-se
embasamento teórico em Carl Gustav Jung, pois nele se abre para pesquisa
psicológica da dimensão religiosa. A resiliência, alteridade, inclusão e transcendência
têm sido os conteúdos mais fortes no âmbito da Teologia Cristã, essenciais para
saúde mental. A fé como crença otimista, transcendente e resiliente, vem a oferecer
um conforto mesmo diante do caos imprevisível da saúde, das turbulências
climáticas, desemprego, exclusão digital e escolar; tornando a situação de desespero
menos aterrorizante. Orações individualizadas, encontro em lives, pregações,
louvores, têm sido um refúgio nas crises existenciais, agem como antídoto
terapêutico, apesar da presença dos fiéis nos templos ter sido restringida e da
problemática pluralista e secular no âmbito religioso. Portanto, é necessário um olhar
para o ser humano integral, uma abertura da intervenção psicológica para o
fenômeno religioso, buscando seu discernimento e suas implicações narrativas; que
pode vir estar como ponte de possibilidade de vida sobre vazios e angústias
existenciais em tempos sombrios. “O caco entre os cacos” (metáfora bíblica), pode
454

representar a espiritualidade (elo Divino), aglutinante, reparador, entre as dimensões


humanas frágeis: emocional, social e corporal, dilaceradas pelo tecnicismo científico e
individualismo de modelos teóricos (filosóficos) da modernidade, que transforma o
ser humano em coisa.

Palavras-chave: Coronavírus; Depressão; Cristianismo; Resiliência.

INTRODUÇÃO

Estamos vivendo momentos intensos, de muitas incertezas, desafios, perdas,


dores, mortes e lutos, devido a pandemia do coronavírus que se manifestou,
devastadora, no ano 2020. Há uma grande expectativa para que as coisas voltem à
normalidade e em meio ao caos é possível ver esforços conjuntos, mas há ainda
quem somente queira tirar vantagem financeira com egocentrismo e corrupção.
A internet foi uma grande facilitadora da comunicação, mas junto com a TV,
tem sido a grande propagadora da avalanche de notícias ruins e ininterruptas. “O
transtorno do pânico é um dos transtornos psicológicos mais comuns e
incapacitantes nos ambientes de atendimento de saúde mental e clínica geral, (...)
vem se mantendo entre os 10 transtornos mais comuns encontrados nos prontos-
socorros psiquiátricos” (WAYNE, 1966; GOLDENBERG, 1983 apud DATTILIO, 2004, p.
63). A solidão, o abandono e o medo de morrer, são as situações muito temidas neste
momento.
O depressivo tem uma imensa dificuldade de ter resiliência, capacidade de
lidar com as frustrações, perdas e dor; seu ego encontra-se fragilizado pelos traumas,
pelas lutas, dores existenciais. “A era do vazio. [...] em particular, falando de um
individualismo e de um narcisismo pós-modernos” (NEUTZLING, 2009, p. 59). O ódio
a si e a vingança a quem quer chamar a atenção, ou fuga da realidade interna, são
soluções dolorosas imediatas que encontra.
“No mundo inteiro, o suicídio está entre as cinco maiores causas de morte na
faixa etária de 15 a 19 anos. Em vários países ele fica como a primeira ou segunda
causa de morte entre meninos e meninas nessa mesma faixa etária” (OMS, 2000. p.
6). O suicídio é uma tentativa desesperada, ignorante, do ego fragilizado de salvar-se,
pois não se sente capaz na vida de superar as investidas contra sua psique (e não será
na morte), por isso reúne forças que têm (subestimadas para o bem), tramando sua
própria ruína. “O acompanhamento das tendência demográficas do risco do suicídio e
do suicídio mostra a necessidade de enfrentamento direto desse problema. Ele afeta
a qualidade de vida das pessoas e da família e é tanto um problema de saúde quanto
um problema social” (TAVARES, 2013, p. 45).
O perdão é um referencial cristão de transcendência (espiritual, divino) que
ajuda o ego a exercer o sentimento de alteridade, descontruindo o narcisismo: ideal
de perfeição que o eu patológico traz, responsável por tantas intolerâncias e
violências contra si e contra o outro. De acordo com Arendt (2007, p. 249): “Se não
fôssemos perdoados, eximidos das consequências daquilo que fizemos, nossa
455

capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos
recuperaríamos; seríamos sempre vítimas de suas consequências.”

OS EFEITOS DEVASTADORES DA PANDEMIA: EXCLUSÃO SOCIAL, PÂNICO,


DEPRESSÃO, SUICÍDIO E ESQUIZOFRENIA

Os efeitos do coronavírus têm sido devastador para a saúde, educação e


economia mundial. As pessoas se viram privadas de sua liberdade: separadas de
parentes, destituídas de afeto, ilhadas, restringidas de frequentar seu lugar de
devoção (templo), shopping, trabalho e lazer. “A mudança social do paradigma da
produção para o consumo, a mutação correlativa do superego e a dimensão social
das patologias tornam-se, assim, principal campo de problematização” (SAFATLE,
2005 apud DUNKER, 2015, p. 184). O comércio, as escolas, universidades e igrejas
foram desafiadas, colocadas à beira de um colapso, obrigadas pelas circunstâncias a
se recriarem e inventarem metodologias para alcançarem seu público.
O caos de informações e desejos que se instalam na psique humana formam
subjetividades confusas, cheias de enigmas. A diversidade de acontecimentos
desalojadores na atualidade (pornografia, parafilias, desafios da Baleia Azul,
relacionamento virtual, The Haters, desafios do Bird Box) somados a diferentes
explicações religiosas sobre diferentes fenômenos, exige uma abertura maior na
compreensão da constituição psíquica do indivíduo pelos profissionais que lidam com
saúde mental. Para Hillman (2009, p. 61): “A Psicologia profunda é a pedra que os
construtores da academia rejeitaram.”
O ego da pessoa deprimida ao mesmo tempo que se encontra fragilizado por
algum trauma que a atingiu profundamente e gerou na alma uma ferida, coloca-se
numa posição egocêntrica, não consegue vislumbrar mais nada a não ser sua própria
ferida. “(...) os estudos sobre a noção de gozo parecem ter se desdobrado em um
crescente interesse pelo tema corpo, seja na psicose, seja em suas relações com
linguagem, seja ainda na retomada dos estudos em psicossomática” (FIGUEIREDO,
2006; LEITE, 2006, RAMIREZ, 2011 apud DUNKER, 2015, p. 184).
“Na modalidade chamada de cutting, o sujeito corta-se com lâminas e a visão
de sangue escorrendo sobre a pele geralmente ocupa uma função erótica
característica, há uma absoluta predominância de mulheres” (RAMIREZ, 2011, p.
218). A violência contra o corpo pode ser também pelo uso de substâncias tóxicas.
A desinstitucionalização é um desafio, uma vez que essas pessoas carecem de
um apoio psicoterapêutico e farmacológico num espaço que a proteja e viabilize a
estabilização da produção sináptica. É fato que tem crescido os casos de suicídio e
surtos psicóticos que tem resultado em mortes violentas. As redes substutivas ao
hospital psiquiátrico não têm sido o suficiente para conter a problemática social do
transtorno mental, que tende a crescer em períodos de pandemias e de desastres
naturais: que causam muitas perdas, dores, desemprego, incertezas e conflitos.
“Alcoolismo e doença afetiva são dois problemas psiquiátricos com alta prevalência.
Para entender a relação entre essas duas entidades, deve-se distinguir entre beber,
problemas relacionados com o álcool e alcoolismo de um lado; e tristeza, luto e
456

doença afetiva do outro lado” (SCHUCKIT, 1985 apud FORTES, 1991, p. 256). Sabemos
que um grande gatilho para os sofrimentos e transtornos psíquicos são as drogas.

A FAMÍLIA E O CUIDADO DE PESSOAS COM SOFRIMENTOS PSÍQUICOS PROFUNDOS

A família e a religião em parte são as barreiras que protegem a sociedade de


fatores agravantes. Há ainda os desafios para aqueles que não possuem família ou
são excluídos pela mesma, no caso os pacientes e egressos psiquiátricos. O
sofrimento psíquico deixa as pessoas fragilizadas, muitas vezes é causado por
estigmas, bullying e outras formas de exclusão, que provocam desestabilização
emocional. A família tem um papel importante contribuindo para amenizar ou
agravar mais a situação de desespero da pessoa que sofre psiquicamente. As pessoas
próximas e a família, são importantes para captar sinais de quando as coisas não vão
bem com o indivíduo. Para Neutzling (2009, p. 63) “[...] indivíduo hipermoderno é
inseguro e frágil”. A depressão e ideação suicida é uma distorção do pensamento,
uma falsa crença de que a solução para a culpa, perda, golpe, corte existencial fatal,
seria a morte. O ego que é o centro da consciência que distorce a realidade,
obnubilado, fragilizado não responde com coerência.
A condição primeira para que o bebê se transforme em sujeito é a renúncia do
narcisismo ou gozo narcísico, quando há entrada no mundo do limite, da castração e
da morte. Para Amy (2001) a estrutura psíquica autística, por exemplo, caracteriza-se
por um funcionamento próximo daquele do inconsciente, parcelado, estilhaçado,
partido e sob certas condições, inoperante.

DA NEGAÇÃO DA EFICÁCIA DA RELIGIÃO EM FREUD A IMPORTÂNCIA DA


RELIGIOSIDADE EM CARL GUSTAV JUNG

Enquanto Freud via a religião como ilusão e como a responsável pelos


adoecimentos psíquicos, por colocar no indivíduo grande carga de culpa, gerando
neuroses e psicoses, Jung vai ver a religiosidade positivamente, como um campo de
estudo para compreensão da psique, que segundo ele viabilizaria um possível
tratamento, a partir da harmonização de elementos psíquicos, forças inconscientes,
instintuais. Segundo M. Palmer (2001, p. 160-161): “Dada a correlação anterior que
Jung estabelece entre os arquétipos e os instintos, podemos mesmo falar aqui de um
‘instinto de Deus’. [...] emana do inconsciente coletivo e manifesta-se nos fenômenos
visíveis e multifários da religião.”
Sendo a religiosidade uma dimensão humana, constitutiva da psique, e que
tem sido bastante expressiva em sua pluralidade, a Psicologia não pode tratar o
indivíduo sobretudo na clínica ou no hospital sem considerar seu discurso religioso,
cultural. Sobretudo quando o discurso religioso é motivo de patologias ou quando a
religiosidade contribui de maneira libertadora.
457

A AÇÃO TERAPÊUTICA DAS PRÁTICAS CRISTÃS NA PANDEMIA: A MENSAGEM


BÍBLICA, O PERDÃO E ORAÇÃO COMO FERRAMENTAS DE RESILIÊNCIA DOS
TRANSTORNOS PSÍQUICOS

A oração ajuda a controlar a ansiedade, aprende-se a aguardar humildemente


uma resposta e também interpelar pelos outros. A oração tem a função de trabalhar
essas dores existenciais, removê-las ou amenizar, superá-las. Somente quando
desenvolvemos a capacidade de dominar as dores psíquicas é que podemos estar
preparados para os desafios da vida e o inesperado que pode vir em menor ou maior
intensidade. Com experiências de vida superadas temos a capacidade de enfrentar as
dores que vêm e podemos ajudar os que estão combalidos em combate.
A oração como sendo o ato de falar, de narrar, expor sentimentos, é uma
demonstração de fé, tem sido outra ferramenta importante e age na reorganização
dos pensamentos e sentimentos. “Ao lado de teorias acadêmicas, há teorias
religiosas da parte dos fiéis. Cristãos, por exemplo, também concebem a oração como
uma comunicação com Deus, um diálogo entre um “eu” e um “Tu” (GRESCHAT, 2005,
p. 147-148).
A mensagem das pregações de resiliência e de advertência segue numa
direção de fortalecimento do ego no sentido de torná-lo maduro, seguro, mediante
as situações desconcertantes, pois a capacidade de transcendência que os seres
humanos têm, facilita a superação. A fé em Deus tem demostrado ser um poderoso
antídoto diante das situações deprimentes e insolúveis, age como um
descondicionante das mensagens de morte armazenadas na memória do deprimido.

CONCLUSÃO

A saúde mental é o estado em que o indivíduo consegue adaptar-se as diversas


situações estressantes da vida de maneira resiliente. A mesma pulsão de morte pode
ser transformada em pulsão de vida, em projetos criativos e prazerosos.
A espiritualidade, vem a funcionar como imã ajustador do caos existencial. Deus pode
ser visto como Pai, Amigo, Esposo como o que se deseja e necessita, facilitando o
enfrentamento dos desafios da vida.
O Cristianismo na sua essência é uma religião que exprime o sentimento
Divino de amor pela humanidade mesmo após a queda desta, traz uma mensagem de
resiliência e alteridade, que se encaixa perfeitamente a qualquer classe, grupo,
indivíduo. Sua mensagem alcança a todas as pessoas de forma afetiva, inclusive
àqueles aos quais são reputados por indignos, os inimigos. Os referenciais cristãos
como respeito, justiça, perdão e amor, são importantes para resiliência afetiva na
reorganização e integração dos “cacos” do eu, ou fragmentação causada pelas
angústias existenciais insuportáveis na relação com o outro.
A Psicologia ainda fala pelos “marginalizados” mas estes permanecem sem
voz, falta protagonismo, ficam sem interesses representados de maneira diversa,
mais ampla e profunda, não se ouve a alma. Os preconceitos são latentes
458

principalmente quando o tema não é do interesse dominante, assumindo uma


postura autocrática, a exemplo de quando evita-se o tema espiritualidade.

REFERÊNCIAS

AMY, Marie Dominique. Enfrentando o autismo: a criança autista, seus pais e a


relação terapêutica; tradução de Sérgio Tolipan. Rio de janeiro: Jorge Zahar Ed., 2001.
ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo.10. ed. Rio de
Janeiro: Forense Universitária, 2007.
FIGUEIREDO, Ana Cristina (2006); LEITE, Nina Virgínia de A. et al (2006), RAMIREZ,
Heloísa Aragão (Org.) 2011 apud DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento
e sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015, p.
184.
GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião? Tradução Frank Usarski. São
Paulo: Paulinas, 2005.
HILLMAN, James. Suicídio e alma; tradução de Sônia Maria Caiuby Labate. 3 ed.
Petrópolis, RJ: Vozes, 2009.
NEUTZLING, Inácio; BINGEMER, Maria Clara; YUNES, Eliana (Org.). O futuro da
autonomia: uma sociedade de indivíduos? Rio de Janeiro: Editora PUC-Rio; São
Leopoldo: Editora Unisinos, 2009.
ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Prevenção do suicídio: manual para professores
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PALMER, Michael. Freud e Jung: sobre religião; tradução de Adail Ubirajara Sobral.
São Paulo: Edições Loyola, 2001.
RAMIREZ, Eloísa Helena Aragão e, (Org.). A pele como litoral: fenômeno
psicossomático e psicanálise. São Paulo: Annablume, 2011.
SAFATLE, Vladimir, 2005 apud DUNKER, Christian Ingo Lenz. Mal-estar, sofrimento e
sintoma: uma psicopatologia do Brasil entre muros. São Paulo: Boitempo, 2015, p.
184.
SCHUCKIT, M. A. 1985 apud FORTES, José Roberto de Albuquerque. Alcoolismo:
diagnóstico e tratamento. São Paulo: Sarvier, 1991, p. 256.
TAVARES, Marcelo da Silva Araújo (Org.). Suicídio: o luto dos sobreviventes. In:
CONSELHO FEDERAL DE PSICOLOGIA. O suicídio e os desafios para a Psicologia.
Brasília: CFP, 2013, p. 45.
WAYNE, G. J. (1966); GOLDENBERG, H. (1983) apud DATTILIO, Frank M. et al.
Estratégias cognitivo-comportamentais de intervenção em situações de crise. Porto
Alegre: Artmed, 2004, p. 63.
459
460

ESCRAVIDÃO: UMA EXPERIÊNCIA NO EXÍLIO DA


BABILÔNIA158

KARINE MARQUES RODRIGUES TEIXEIRA


Doutoranda em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goias (PUC Goias)
[email protected]

ROSEMARY FRANCISCA NEVES SILVA


Doutora em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

RESUMO: O artigo tem como objeto de estudo a análise da perícope de Isaías 49,1-6,
o Segundo Canto do Servo de Yhwh, que narra a missão profética do Servo de reunir
o povo de Deus no contexto do exílio babilônico, em que a opressão, o sofrimento e a
dor eram presentes. Mas não somente! A condição de escravos em terra estrangeira
intensificava o sofrimento e, neste contexto, o povo de Deus sonhava com a
libertação/salvação. Neste estudo, com base na perícope mencionada, a partir do
método histórico-crítico e da leitura conflitual, demonstraremos que o Servo, um
profeta anônimo, descrito pelo Dêutero-Isaías, tem a missão de proclamar a
libertação/salvação do povo de Deus por meio da justiça, da solidariedade e da
mística, considerando, sobretudo a sua própria experiência de sofrimento, de servo e
de escravo, portanto, de alguém que conhecia a dor do outro não somente de ouvir
dizer, mas de experenciar. Um profeta que nasce em meio ao sofrimento do povo
escravo. Esse profeta anônimo surgira no contexto do exílio Babilônico e recebeu a
alcunha de profeta-servo (SILVA, 2007) e profeta-escravo (SILVA, 2014), cuja origem
da sua vocação tem início no “seio, no ventre de minha mãe” (Is 49,1), lugar de
aconchego, segurança, de sentir-se amado e amar. É deste lugar íntimo, que Deus
chama e modela o seu profeta-servo/profeta-escravo. De forma que profeta-servo
(SILVA, 2007) e profeta-escravo (SILVA, 2014) são duas categorias, cunhadas pela
exegese bíblica, que contribuem, significativamente, para a hermenêutica do texto
sagrado, a partir da análise da perícope.

Palavras-chave: Profeta-servo; Profeta-escravo; Justiça; Solidariedade; mística.

158
Parte do trabalho aqui apresentado já foi publicado como artigos de revistas e de livro nos anos de 2007,
2014 e 2020.
461

A EXPERIÊNCIA DO PROFETA

A experiência que o profeta fazia de Deus era sempre relacionada com o Deus
de seus pais, que trazia consigo a lembrança de tudo o que fez no passado e oferecia
olhos para entender e atualizar o seu sentido. O profeta, nesse contexto, tornou-se a
memória do povo, que lhes recordava as coisas que incomodava, o que o povo
sofrido, oprimido, escravizado, o povo escolhido do Deus de Israel, gostaria de nunca
se lembrar, como, por exemplo, o Êxodo (Ex 22,20). Faziam memória também da
presença carinhosa do Deus libertador que conduziu o povo para uma nova terra, que
fez, com eles, Aliança (Dt 32,10-11). Essas memórias que o profeta trazia consigo
eram as que ajudavam o povo a identificar, se de fato, era um verdadeiro ou um falso
profeta.
Esse profeta, por meio da experiência de Deus, tornou-se o defensor da
Aliança, alguém que cobrava do povo um compromisso, uma postura de fidelidade a
esse pacto. Ele encarnava as exigências da Aliança ou da Santidade de Deus, exigia
fidelidade e pedia a observância prática da Lei de Deus.
A experiência feita pelo profeta era norteada pela Santidade de Deus, pois
experienciava aquilo que o povo deveria ser e não era. Por meio dessa experiência, o
profeta percebia quando o povo agia contra a Aliança e, deles, exigia uma mudança
de vida. Foi a partir dessa experiência do Deus do Povo e do Povo de Deus que
nasceu, no profeta, a consciência de sua missão. Nesse momento, ele começou a
gritar e a anunciar a profecia de Deus, denunciando as injustiças, anunciando o amor
e o apelo à conversão.
A realidade era a fonte de onde os profetas retiravam os elementos que
comporiam o seu discurso. As mensagens dos profetas sempre eram endereçadas a
seus contemporâneos, homens e mulheres da sua própria geração, neste caso, o
povo escravizado, e o conteúdo de seus discursos relacionavam-se com os
acontecimentos que os rodeava com a preocupação final de denunciar a
precariedade de vida imposta à sociedade (ROSSI, 2008).

A interpretação da história que eles apresentam não era inventada por um


processo de pensamento, e sim algo que possibilitava expor o sentido que
eles experimentavam no evento vivido. Pode-se dizer que os profetas
tinham a mente aberta para Deus e também para os eventos externos
(ROSSI, 2008, p. 34).

O povo, no convívio com o profeta que nascia no meio deles, e fazia a


experiência de Deus, a partir de sua realidade de sofrimento, identificava-se com esse
profeta, pois reconhecia nele o ideal que carregava dentro de si. Era o povo que, por
meio da fé, reconhecia o verdadeiro profeta (CRB, 1994, p. 20-1).
Profetas eram pessoas que viviam uma grande experiência de Deus e não se
apoderavam dessa experiência para o bem próprio, mas faziam dela uma doação de
sua vida à vontade de Deus. Os profetas, ao anunciarem a profecia de Deus, faziam-
462

no a partir da experiência que tinham de Deus no convívio com o sofrimento e as


injustiças vividas pelo povo.
Rossi (2008) afirma que os profetas de Israel devem ser compreendidos como
pessoas inseridas no contexto social a partir do qual profetizavam, portanto,
conhecedores da realidade social, política, econômica e cultural da sociedade. Desse
modo, não “apenas imaginavam profeticamente seus discursos”, inventando sua
mensagem. Ao contrário, “os profetas tinham hora e local” e “interpretavam os sinais
dos tempos que atingiam a si mesmos bem como ao seu povo. Profeta bíblico algum
vivia sua vocação profética alienado da realidade” (p. 34).

O PROFETA-SERVO/PROFETA-ESCRAVO DE DEUTERO-ISAÍAS

O profeta-servo/profeta-escravo no período exílico (séc. VI a.C.) da Babilônia


também fez a experiência de Deus no meio do povo sofrido, pois tornou-se sofredor
com os sofredores. O profeta-servo/profeta-escravo foi chamado do meio do povo
para anunciar a libertação e a esperança que Deus reservou àqueles escravizados em
terra estrangeira.
Foi através da convivência com os escravos e escravas na Babilônia que o
profeta-servo/profeta-escravo experienciou a dor e a humilhação que o povo de Deus
estava vivendo. Com essa experiência de injustiça e de dor, o povo de Deus fez a
experiência do Deus pai-mãe ao seu lado, pois viu no profeta-servo/profeta-escravo a
presença do Deus libertador (NAKANOSE; PEDRO, 2004, p. 43).
Por meio da experiência de dor, mas, também, do carinho paterno-materno de
Deus, na pessoa do profeta-servo/profeta-escravo, o povo sofrido acreditou no
anúncio profético de restauração da Aliança de Deus consigo. Acreditou também que
a unção do Espírito Santo não era exclusividade do rei, mas pertencia ao povo e
sempre vinha acompanhada da promessa de vida: “E assim diz Deus, YHWH, que
criou os céus e os estendeu, e fez a imensidão da terra e tudo o que dela brota, que
deu o alento aos que a povoam e o sopro da vida aos que se movem sobre ela” (Is
42,5) (NAKANOSE; PEDRO 2004, p. 45).
Nesse sentido, o profeta-servo/profeta-escravo, ao fazer a experiência do Deus
libertador no meio do povo sofrido e anunciar essa libertação, despertava nesse povo
a experiência carinhosa de um Deus que declara seu amor e os chama pelo nome
(NAKANOSE; PEDRO, 2004, p. 45).
Afirmamos, então, que o profeta-servo/profeta-escravo da comunidade do
Dêutero-Isaías era usado por Deus para refazer a Aliança que outrora firmou com os
pobres, oprimidos e escravizados pelo rei Nabucodonosor no exílio da Babilônia. Foi
com esse povo e com esse profeta-servo/profeta-escravo que Deus contou para dar
cumprimento à sua vontade na realização do projeto de salvação.
O profeta, portanto, era aquele que anunciava um deus e a sua vontade. Por
isso, em virtude do encargo divino, ele exigia a obediência como dever ético. O
profeta pode também ser um homem ou uma mulher que, com seu exemplo, mostra
o caminho para a salvação religiosa (WEBER, 1991, p. 305-6).
463

Nesse sentido, a missão do profeta estava vinculada à gratuidade e não era


exercida como uma profissão. Era simplesmente o colocar-se a serviço de Deus,
atender ao chamado divino, para a realização de sua missão que se concretizava no
anúncio da profecia por meio de três caminhos, que se encontram interligados: da
justiça, da solidariedade e da mística (CRB, 1994, p. 21-5).

A JUSTIÇA

O caminho da justiça acontecia quando tudo respondia à vontade de Deus.


Nesse caso o profeta tinha como missão manter o povo organizado conforme a
Aliança proposta por YHWH. Esse profeta denunciava bem claramente as injustiças, e
ainda ousava apresentar as causas das injustiças. Os profetas são verdadeiramente
fiéis à mensagem de Deus (CRB, 1994, p. 22).
Ao denunciarem as injustiças, criavam normas que favoreciam a vida do povo
e a melhor observância da Aliança. Uma das leis criadas pelos profetas foi a do Ano
Jubilar ou Sabático (Lv 25; Dt 15), que tinha como objetivo criar uma estrutura agrária
justa.
A luta pela justiça sempre levava o profeta ao confronto com o rei, porque
aquele cobrava deste a observância da Aliança, que devia ser cumprida dentro do
território que lhe fora confiado, como a realização do Projeto de Deus.
O profeta do exílio tinha como missão anunciar a prática da justiça. A justiça
para a comunidade do Dêutero-Isaías, relatada no Segundo Canto do Servo de YHWH
(Is 49,1-6), do Servo Sofredor, envolvia a organização do povo sofrido e escravizado;
deveria ser vivida pelos líderes do povo e expressa na realização de um projeto que
propusesse uma nova sociedade, na qual a justiça, os direitos e a igualdade fossem a
prioridade.
Foi a partir dessa concepção de missão profética que o profeta-servo/profeta-
escravo tentou reunir o povo disperso com o sofrimento vivido no exílio. Ele levou a
comunidade a perceber que a catástrofe que os levara àquela situação não podia ser
resolvida sem que eles se organizassem na prática da justiça. Esse profeta foi mais
além, apontou os erros cometidos pelos reis. Ele conseguiu reunir o povo, sendo luz
para aquela nação (Is 49, 1-6) (NAKANOSE; PEDRO, 2004, p. 47).

SOLIDARIEDADE

Tendo o profeta a missão de anunciar a justiça e apontar caminhos para sua


efetivação, concretizou-a por meio da solidariedade e da partilha com os membros da
comunidade que estavam mais próximos. Essa prática da solidariedade surgiu no
meio da comunidade organizada pelo profeta com base na prática da justiça (CRB,
1994, p. 22). O surgimento dessa solidariedade nasceu com o compromisso de vida
entre os irmãos e irmãs. Nesse contexto, mais uma vez, Deus mostrou para o povo-
sofrido que o seu compromisso foi com eles e não com os príncipes e reis dos
palácios (NAKANOSE; PEDRO, 2004, p. 47).
464

A experiência que o profeta-servo/profeta-escravo do exílio fez da vivência da


ternura de Deus junto com os oprimidos, pobres e escravizados despertou nessa
comunidade a prática da compreensão e da solidariedade. O profeta mostrou, com
seu testemunho, que a comunidade era capaz de viver unida e se ajudar com a
partilha de seus dons.
E o profeta, mais uma vez compreendeu, na realidade dessa comunidade, qual
era sua missão naquele exílio: apontar caminhos para a realização da solidariedade
no meio do povo. O povo aprendia com o testemunho do profeta, o ser solidário, o
partilhar o dom da vida, as alegrias e os sofrimentos.
Com o anúncio do profeta, aprendia-se que a comunidade do povo de Deus
deveria ser uma amostra do que Deus queria para todos. A comunidade deveria ser a
Aliança de Deus com os homens e mulheres no acolhimento do pobre, do
marginalizado, na luta pela justiça. O anúncio do profeta deveria ser permeado pela
prática da solidariedade (CRB, 1994, p. 22).

MÍSTICA

A ação do profeta não se limitava em apenas denunciar as injustiças e os erros,


nem só estimular o povo para a solidariedade, mas também, e, sobretudo, anunciava
o cerne da fé: o Deus que estava no meio do povo! O Deus que ouvia o grito do povo
e que o escutava! Desse modo, o profeta contribuiu para que aparecesse no meio do
povo uma nova consciência que já não dependia dos dominadores, mas que nascia
diretamente da fonte da vida: do amor de Deus (CRB, 1994, p. 23).

Orar é inserir mais na realidade plena: a do ambiente de Deus e a do


ambiente dos estrangulados. Ambas estão unidíssimas. A oração revela a
vida nua e cruamente, clareada por Deus. Rezando, vê-se melhor a situação
concreta. É neste contexto que vemos a mística impressionante dos
perseguidos. Apesar da dor, vêem a Deus do lado deles. É por isso que a
Igreja perseguida, na oração anterior, pediu ao Senhor vingança pelo
sangue dos mártires. Os opressores precisam sumir para que a vida surja
(FERREIRA, 2009, p. 218).

O profeta do exílio foi aquele que rezava com a comunidade, uma oração
encarnada, de viver a dor do outro, que buscava a libertação e o sentido de ser
comunidade, de partilhar e de festejar. Esse era de fato o verdadeiro profeta
chamado por Deus, do meio do povo, para experienciar seu amor através do
sofrimento desse povo escravizado.
Para anunciar a justiça e a solidariedade, o profeta foi perseguido, maltratado,
humilhado e até torturado por seus inimigos. Esse profeta-servo/profeta-escravo
suportou todas as perseguições, humilhações, encontrando forças no Deus libertador
e ao mesmo tempo anunciando a construção do reino de liberdade, de fraternidade,
igualdade, paz e comunhão (NAKANOSE; PEDRO, 2004, p. 50).
465

Nesse contexto, a justiça e a solidariedade eram resultados de uma prática


mística de fé encarnada, que precisava estar intimamente ligada com a profecia e a
revelação como meio de transformação social (CRB, 1994, p. 24).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A ação profética no Segundo Canto do Servo de Yhwh, protagonizada pelo


profeta-servo/profeta-escravo, é corajosa e ousada na medida em que este profeta
ouve e obedece ao chamado de Deus e se torna porta-voz deste Deus denunciando o
sofrimento, a dor e a condição de escravidão do povo, mas também, proclamando a
libertação/salvação deste povo.
O Servo, um profeta anônimo, descrito pelo Dêutero-Isaías, teve a missão de
proclamar a libertação/salvação do povo de Deus por meio da justiça, da
solidariedade e da mística, considerando, sobretudo a sua própria experiência de
sofrimento, de servo e de escravo, portanto, de alguém que conhecia a dor do outro
não somente de ouvir dizer, mas de experenciar.
O profeta-servo/profeta-escravo proclamou a libertação/salvação para o povo
de Deus pelo anúncio profético interligando os três caminhos mencionados: da
justiça, da solidariedade e da mística, sendo que a fé encarnada gerou a justiça e a
solidariedade.

REFERÊNCIAS

BÍBLIA DE JERUSALÉM – Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2001.
CRB NACIONAL. A leitura profética da história. São Paulo: Loyola, 1994.
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semente esmagada brota nova vida. São Paulo: Paulus, 2004.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Cultura militar e de violência no mundo antigo. Israel,
Assíria, Babilônia, Pérsia e Grécia. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008.
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http://seer.pucgoias.edu.br/index.php/caminhos/article/view/2470.
SILVA, Rosemary Francisca Neves. O servo de YHWH solidário com o povo escravo da
Babilônia. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia,
2014.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe
Barbosa. Brasília: UNB, 1991.
466

APÓSTOLO PAULO IN: “E TU, QUE DIZEIS QUEM EU SOU?”

JOSÉ FREDERICO SARDINHA FRANCO


Doutorando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]

RESUMO: O título sugestivo “Apóstolo Paulo in: e tu, que dizeis quem eu sou?”
propõe, através do presente artigo, descrever algumas características identitárias
atribuídas ao apóstolo Paulo descritas nos textos bíblicos. Paulo é detentor de um
extenso curriculum vitae onde não faltam suas habilitações e os aspectos
relacionados aos seus atributos de origem nacionalista (grega e romana), religiosa
(judaica e cristã) e social (Saulo e Paulo). O objetivo desta pesquisa é entender as
diversas formas de identidade utilizadas por apóstolo Paulo, em um período de
opressão social. A escravidão praticada pelos romanos e o modelo de exclusão
promovido pelos judeus, contribuem para a construção identitária de Saulo, àquele
que perseguia e encarcerava os cristãos (At 8,1-3). Já a sabedoria grega excluía as
mulheres, os pobres e escravos em ouvir as retóricas filosóficas dos gregos, e dos
discursos religiosos. O cosmopolita Paulo está situado dentro de um contexto
multicultural, cercado por diversas culturas e religiões, contribuindo para a
construção e manutenção de uma identidade que se adeque aos seus ensejos. A
pesquisa foi realizada tendo como aparato crítico a pesquisa bibliográfica
desenvolvida com base em materiais já publicados, que ajudará a entender a pessoa
do apóstolo Paulo e sua relação com as diversidades religiões e povos da antiguidade
bíblica do período do primeiro século. Nota-se que que existem duas composições
bem diferentes entre o modelo de identidade atribuído ao apóstolo Paulo. A
primeira, se constrói seguindo o modelo escravagista proposto por Roma, e da
estrutura separatista idealizada pelos judeus do primeiro século, ajudando a construir
a personalidade de Saulo, o fariseu. A segunda, estabelece uma ampla ligação entre
Paulo e o modelo cosmopolita de cidadania apresentado pela Grécia antiga, que lhe
dava condições suficientes para alcançar tanto judeus quanto gentios no novo
modelo de cidadania cristã (Fl 3,20), que visava promover a união entre os indivíduos.
Todas as características de Saulo contribuem para o surgimento de sua identidade,
como judeu e romano e de Paulo como grego e cristão.

Palavras-Chave: Apóstolo Paulo; Grego; Romano; Judeu; Cristão.


467

A CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA DO APÓSTOLO PAULO/SAULO: GREGO E ROMANO,


JUDEU E CRISTÃO?

Este artigo trabalhará aspectos importantes acerca da forma identitária


desenvolvida pelo apóstolo Paulo durante o período do primeiro século. A nossa
proposta se desenvolve na possibilidade de entender a recorrência constante de
Paulo pelas buscas identitárias, e de suas aplicações no âmbito sócio religioso da
antiguidade bíblica.
Algumas diferentes formas de identidade podem ser encontradas em Paulo,
como a nacionalista (grega e romana), a religiosa (judaica e cristã) e a social (Saulo ou
Paulo). Existem outras características identitárias que acompanham a vida cotidiana
do apóstolo Paulo, como a sua autoafirmação apostólica (Rm 159 1,1; 1Co 1,1) a sua
condição de fariseu (At 23,6), e a humilde forma apresentada como escravo de Cristo
(Rm 1,1). Goffman (1988, p. 58) afirma que para construir uma identificação pessoal
de um indivíduo, deverá ser utilizado aspectos de sua identidade social, junto com
tudo o mais que possa estar associado a ele.
Por ser filho de judeus da diáspora, da tribo de Benjamim na qual se originou o
rei Saul, é que surge o nome Saulo. Segundo Ramos (2012, p. 144,145) possuir um
nome romano mesmo sendo um judeu elevaria o seu status de cidadão romano,
desconhecendo, portanto, algum fato que justifique a utilização de um nome romano
como cognome de um judeu. Já na cultura helênica, o nome Saulo possui muita
semelhança com a palavra grega Saulósch, que significa “o que se move com
lentidão, o efeminado”, e, que, portanto, não traria muita credibilidade junto a
comunidade grega da antiguidade bíblica. Bosch (1997, p. 20,21) afirma que em suas
cartas ele sempre é chamado de Paulo, uma forma grega do latim Paulus, da
contração grega Paululus, e que significa “pequenino”.
Já que a identidade resgatada por Paulo através da titularidade judaica não
obteve êxito, nada mais justo do que recorrer ao modelo de identidade que busca se
firmar no poder do império romano. Ser judeu, não eximiria Paulo dos açoites
realizado pelos romanos (At 16,23-24), tampouco legitimaria o discurso aos de
Jerusalém (At 21,40; 22,1-22). Segundo Direito (2014, p. 188) ser um cidadão do
império romano lhe renderia certos privilégios. O cidadão romano tinha capacidade
jurídica plena isto é, estava livre (status libertatis), era cidadão (status civitatis) e
tinha ampla independência do pátrio poder de alguém (status familiare).
Paulo ao se auto proclamar romano (At 22,27-28) se colocava no mesmo
patamar de igualdade do sistema imperialista que escravizava, que oprimia e que
matava os mais fracos, se sujeitando ao modelo de injustiça social promovido por
Roma. Ser romano, era ter consciência da condição assumida de perseguidor da
comunidade cristã promovida por Roma a partir dos anos 50 d.C., contribuindo para
o aparecimento de Saulo na perspectiva identitária Paulina.

159
O termo “cristão” foi utilizado pela primeira vez na cidade de Antioquia, como nos relata o livro de Atos dos
apóstolos 11,26.
468

Mas, o que se vê nos escritos paulinos, é uma forte rejeição de Paulo ao


sistema imperialista romano. O apóstolo Paulo afirma que não passa de ilusão a
mensagem de “paz” e “segurança” promovida por Roma (1 Ts 5,3). O embate entre
Paulo e o império romano se acentua quando ele afirma que somente Cristo pode ser
objeto de adoração (Fl 2,10), pois Ele é o verdadeiro Senhor (Kyrios) 160 e não o
imperador romano (Ef 4,5). De acordo com (HORSLEY, 2004, p. 9) o apóstolo Paulo
desafia o império romano ao chamar a Igreja de ekklesiai ἐκκλησίαι, nome dado a
assembleia de homens ricos que controlavam a cidade (Rm 16,4-5.16; 1Co 1,2; 2Co
1,1; Gl 1,2; 1Ts 1,1; 2Ts 1,1). Ele também recomendou que os cristãos não se
utilizassem do injusto sistema imperialista romano, como também aconselhava às
virgens ao celibato (1Co 7,25-40) se contrapondo as Leis romanas que incentivava a
reprodução humana para o aumento de sua população (BROWN, 1990, p. 16-17).
Portanto, para Paulo, a cidadania romana serviria como fator preponderante
de poder na árdua tarefa de propagação do evangelho de Cristo, pois lhe dava o
direito de transitar livremente em todo o território do império romano, como em
Filipos (At 16,16-24), em Corinto (At 18,12-17) e em Jerusalém (At 22,25)
(MAZZAROLO, 2019, p. 2). A identidade romana resgatada por Paulo, lhe dava o
direito de se defender das armadilhas provocadas pela comunidade de Jerusalém,
além de o livrar dos grandes golpes sofridos durante suas viagens missionárias. Sua
alegria não se pautava no provilégio de possuir uma cidadania romana, mas de
ser um cristão (Fl 1,27).
Já o helenismo se desenvolveu através das conquistas promovidas por
Alexandre Magno (336-323 a.C.) que difundiu a cultura grega entre os povos da
antiguidade, contribuindo para a construção da Biblioteca de Alexandria e da
tradução dos escritos do Antigo testamento para a língua grega (septuaginta LXX).
Isto foi essencial para que os judeus da diáspora, que em sua maioria não falavam e
tampouco compreendiam a língua hebraica e aramaica, pudessem ler os escritos
sagrados do Antigo Testamento, agora traduzidos para a língua universal grega.
Vasconcelos (2019, p. 8) afirma que a cultura grega ajudou sobremaneira na
evangelização de Paulo (At 17,23) que se utilizou de certos elementos grego como a
língua, a cultura e a religiosidade pagã, contribuindo para o crescimento do
cristianismo. O helenismo já não fazia distinções entre nações, e todos passaram a
serem considerados uma só sociedade, como um só mundo; um só rebanho.
(ASSMANN, 1994, p. 30-32).
A língua grega passa a ser utilizada em todas as sinagogas. É através destes
novos movimentos que Paulo busca a formação das novas comunidades cristãs,
integrando classes e categorias diferentes, sem nenhum tipo de preconceito (Gl 3,28;
Rm 10,12; Cl 3,11). Jaeger (1994) vê o cristianismo como um processo contínuo de
tradução das fontes hebraicas, tendo a preocupação de oferecer aos gentios uma
reinterpretação mais adequada de seu conteúdo.
A humanidade, já não se dividia em nações, cidades, burgos, mas todos os
homens considerados conacionais e concidadãos: uma só sociedade, como um só

160
Kyrios κύριος é um título que poderia ser utilizado somente ao imperador romano.
469

mundo; todos os povos constituem um só rebanho, que se apascenta no mesmo


campo. Em suma, a polis deixa de ser o ideal. O novo ideal é a felicidade do indivíduo,
que não reside na capacidade de dominar os outros (são poucos e afastados os
governantes), mas de dominar a si mesmo (ASSMANN. 1994, p. 30-32).
A nacionalidade grega não se pautava em nacionais e estrangeiros, mas em
sábios σοφία sofia e ignorantes (bárbaros). Mesmo o estrangeiro, tanto homem,
quanto mulher, que fossem letrados e possuidores de uma boa erudição, eram
considerados cidadãos gregos. Tudo se baseava na paideia161 παιδεία (educação). Ser
grego era ser cosmopolita, cidadão da polis πόλις (cidade) e do mundo162.
Paulo tentar pregar o Cristo crucificado no Areópago em Atenas (At 17,15-34)
com toda a sua retórica e sabedoria helênica, mas logo percebe que o seu discurso
não fora bem receptivo. A sabedoria σοφία sofia grega excluía as mulheres, os pobres
e escravos por não terem tido acesso à educação grega paideia163 παιδεία. Paulo,
portanto, vê no pobre, no humilde e no marginalizado (mulher e escravos) a
oportunidade de propagação do evangelho de Cristo. “[...] Graças te dou, ó Pai,
Senhor do céu e da terra, que ocultaste estas coisas aos sábios e entendidos, e as
revelaste aos pequeninos (Mt 11,25).
O judaísmo da antiguidade considerava um judeu164 a partir da descendência
patrilinear, e somente no segundo século da era cristã é que esta prática mudou
passando para a filiação materna (GALINKIN, 2008, p. 90). A partir do período do
exílio babilônico e da expatriação dos judeus pelos romanos, o judaísmo passou a não
ser mais considerada uma religião nacional, e tanto a Torá como o Pentateuco,
tornaram-se símbolos da fé judaica (JOHNSON, 1989 apud GALINKIN, 2008, p. 93).
Antes do exílio babilônico, a religião judaica não poderia ser chamada de judaísmo
(MARIANO, 2011, p. 111). A identidade judaica165 se fundamentava muito mais em
aspectos religiosos do que nacionalistas. Schlesinger (2011, p. 72,74) afirma que
durante o período bíblico, converter-se166 ao judaísmo significava unir-se a um povo
ou se tornar cidadão de um Estado e que podia ser realizada somente através da

161
A paideia παιδεία (educação) era a maior virtude para os cínicos; segundo Diógenes, a educação é a graça
para o jovem, consolo para o ancião, abundância para o pobre e ornamento para o rico (Diógenes, Laertius, VI,
68). Monimus afirmava que era melhor ser cego do que não educado (MAZZAROLO, 2019, p. 16).
162
Assim, nascem contemporaneamente o indivíduo e o cosmopolita. O ser humano já não é o ser da cidade (o
ateniense já não é de Atenas...), mas um cidadão do mundo. E, como tal, eis um novo dogma que se anuncia:
todos os homens são iguais, irmãos, pois todos estão sob o mesmo logos, e isso - insista-se - nasce antes do
cristianismo, embora depois se fortaleça com ele, com outra fundamentação. Esta é a matriz, helenista e cristã,
da igualdade moderna (ASSMANN. 1994, p. 30).
163
A paideia παιδεία (educação) era a maior virtude para os cínicos; segundo Diógenes, a educação é a graça
para o jovem, consolo para o ancião, abundância para o pobre e ornamento para o rico (Diógenes, Laertius, VI,
68). Monimus afirmava que era melhor ser cego do que não educado (MAZZAROLO, 2019, p. 16).
164
O questionamento e o contraditório sempre fizeram parte da chamada identidade judaica. O que é ser
judeu? Quem define o que é ser judeu? Parece evidente que existem várias formas de ser judeu. Para muitos,
ser judeu é se sentir judeu e viver dentro dos valores éticos propostos pelo judaísmo (ASNIS, 2015, p. 77).
165
Segundo a tradição legal do judaísmo, são considerados judeus todos aqueles nascidos de mães judias ou
que tenham se convertido ao judaísmo através de um ritual próprio (GALINKIN, 2008, p. 90).
166
O período helênico marcou o início das atividades de conversão. Os judeus se mudaram para muitos lugares
fora da Judeia em decorrência das conquistas de Alexandre o Grande. Houve muitos casos de judeus que se
casaram com mulheres gentias que decidiram aceitar a religião de seus maridos (SCHLESINGER, 2011, p. 73).
470

circuncisão do sujeito masculino. Em relação as mulheres, a nacionalidade judaica


poderia ser adquirida através do casamento com um marido judeu.
Encontravam-se entre os sábios judeus dois entendimentos acerca da
conversão de gentios ao judaísmo rabínico. Existiam um grupo que considerava a
presença deles uma honra por terem renunciaram tudo que possuíam para se
tornarem judeus, e outro grupo que desaprovava a conversão de gentios ao judaísmo
por entenderem que somente eles eram o povo escolhido por Yahweh. Segundo Klein
(1992 apud SCHLESINGER, 2011, p. 78) muitos judeus gentios, desistiam de sua
nacionalidade quando se sentiam ameaçados ou perseguidos, alguns, abandonavam
e retornavam às suas religiões de origem, já outros, trabalhavam como informantes
em momentos de dificuldade.
Paulo era judeu mesmo tendo nascido fora dos domínios de Israel na cidade de
Tarso da província da Cecília (At 22,3) porque seus pais eram judeus (Rm 11,1; Fl 3,5).
Após ser acusado de ensinar uma doutrina que ia contra os princípios da Lei judaica, e
provavelmente de ter inserido um gentio de nome Trófimo no Templo de
Jerusalém167 (At 21,27-28), Paulo é arrastado para fora do santuário e quase linchado.
É neste momento que ele se utiliza da sua identidade judaica com objetivo de se
livrar das mãos destes malfeitores: “Eu sou mesmo um homem judeu, de Tarso,
cidadão de uma não obscura cidade da Cecília” (At 21, 39). Paulo é puramente
instintivo.
Paulo manipula a sua identidade de acordo com seus próprios interesses. Ao
mesmo tempo que se diz judeu, ele parece rejeitar o judaísmo rabínico ao se
contrapor as “obras da lei”, que propunha o alcance da salvação através da
meritocracia e pelo egoísmo separatista existente entre judeus e gentios, a quem o
evangelho está sendo pregado (Gl 3,28) (LOPES, 2006, p. 86). Ele se opunha ao rito da
circuncisão e ao sistema patriarcalista judaico que discriminava as mulheres,
considerando-as como um animal, um bem do seu senhor (baal), um res. Ser judeu
para Paulo, era acreditar na existência de um só Deus, Yahweh.
O cristianismo nasce dentro do judaísmo, e até meados do V século d.C. era
considerado como um braço do judaísmo pelo império romano, e que a partir desta
data, passou a sofrer forte perseguição por parte de Roma. Ser cristão passou a ser
símbolo de sofrimento e de perseguição. Paulo se orgulhava de sua identidade cristã,
uma cidadania celestial: “Mas nós somos cidadãos168 do céu e estamos esperando
ansiosamente o nosso Salvador, o Senhor Jesus Cristo, que virá de lá” (Fl 3,20).
Após os anos 50 d.C. o cristianismo começou a se desvincular do judaísmo
recebendo contornos próprios de sua identidade pelo império romano. Enquanto os
judeus tinham isenção e certos privilégios junto ao imperador romano (cultos, rituais
religiosos e construção de sinagogas), os cristãos eram acusados de terem ateado
fogo em Roma, uma prática realizada pelo próprio imperador Nero (64 d.C.).

167
É que, naquele mesmo dia, tinham-no visto na cidade com Trófimo, gentio de Éfeso, julgando que Paulo o
tivesse levado ao templo (At 21,27).
168
No contexto de Filemon 3,20, a palavra “cidade” aparece como tradução do termo grego politeuma.
Todavia, em língua portuguesa, não significa exatamente cidade, mas “comunidade de cidadãos”, pessoas que
pertence à polis grega (LARA, 2019, p. 131).
471

Isto contribuiu para que alguns cristãos gentílicos procurassem em adotar


práticas e costumes judaicos para que pudessem ser chamados de judeus, a fim de
evitar o martírio e a perseguição promovida por Roma aos novos cristãos: “Conheço
as tuas obras, e tribulação, e pobreza (mas tu és rico), e a blasfêmia dos que se dizem
judeus, e não o são, mas são a sinagoga de Satanás” (Ap. 2,9). “Eis que eu farei aos da
sinagoga de Satanás, aos que se dizem judeus, e não são, mas mentem eis que eu
farei que venham, e adorem prostrados a teus pés, e saibam que eu te amo” (Ap.
3,9).
Paulo não estava preocupado em perder a sua cidadania Romana nem
tampouco de não ser considerado mais um judeu.

Mas o que para mim era lucro, passei a considerar perda, por causa de
Cristo. Mais do que isso, considero tudo como perda, comparado com a
suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por cuja
causa perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder
ganhar a Cristo (Fl 3,7-8).

Para Paulo, o jogo de identidades utilizado por ele durante o seu período
evangelístico, serviu para que ele pudesse levar o evangelho de Cristo aos gentios
sem que houvesse algum tipo de interferência por parte dos romanos, dos gregos ou
dos judeus.
O apóstolo Paulo não se intimida com tais aflições, e via no cristianismo a sua
cidadania através do evangelho de Cristo: “Não importa o que aconteça, exerçam a
sua cidadania de maneira digna do evangelho de Cristo [...] (Fl 1,27). A maior de
todas as formas identitárias de Paulo, é sem sombra de dúvidas a cristã, que dava a
ele uma cidadania eterna, celestial: “Mas a nossa pátria está no céu, de onde
também aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo (Fl 3,20).

REFERÊNCIAS

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GOFFMAN, Erving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade. Tradução:
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desencontros. Revista Ideação, v.1, n. 40, p. 6-15, 2019.
473
474

DISTANCIAMENTO SOCIAL E APROXIMAÇÕES INDIVIDUAIS:


ESPIRITUALIDADE CRISTÃ EM CONTEXTO DE PANDEMIA
GLOBAL

FABIANE BEHLING LUCKOW


Doutoranda em Teologia pela Faculdade EST/São Leopoldo-RS,
Mestre em Música pela UFRS.
[email protected]

RESUMO: O termo “novo normal” tem sido naturalizado em nossos dias. As


mudanças trazidas pela pandemia da Covid-19 invadiram todas as esferas da vida
social e do indivíduo. Ainda aguardamos quais delas assumirão caráter permanente e
passarão a constituir a vida pós-pandemia. Uma dessas esferas é a experiência ou a
vivência da espiritualidade pelo indivíduo, seja a partir de uma proposta religiosa
instituída ou nas assim denominadas espiritualidade laicas. Nesta comunicação, trago
algumas reflexões sobre as novas formas de viver uma espiritualidade cristã
protestante, a partir da observação deste contexto em redes sociais e de minha
inserção no contexto luterano. Procuro localizar essas reflexões em relação ao
conceito de religião vivida, que busca compreender vida e religião para além dos
cenários tradicionais da religião. Na teologia prática, esse conceito é empregado para
abordar experiências de conotação religiosa, associadas ou não a formas tradicionais
de religião. Busco trazer alguns possíveis desdobramentos que poderão surgir diante
das novas dinâmicas de vivência espiritual e religiosa, a partir das restrições impostas
pelo distanciamento social na vida comunitária, e também das novas propostas
eclesiológicas que, por força das circunstâncias, têm surgido nesse contexto. Quando
a pandemia se instalou globalmente, o cenário religioso mundial já se caracterizava
como um ambiente de pluralismo religioso, no qual a bricolagem das referências
religiosas e a fluidez dos processos de identidade do indivíduo se fazem presentes. A
“virtualização” da experiência religiosa, ao mesmo tempo que ampliou o alcance das
propostas, também lhe impôs novas dinâmicas, possibilitando que, mesmo indivíduos
que tenham alguma espécie de afiliação religiosa ou denominacional, possam
vivenciar sua espiritualidade a partir, em paralelo ou mesmo apesar da instituição. A
aproximação de diferentes propostas religiosas com propostas não-religiosas, como o
minimalismo, o veganismo, as técnicas de mindfulness, entre outras, apontam o fato
de que os modelos religiosos tradicionais nem sempre conseguem responder a
diversa gama de demandas que surgem a partir da experiência humana em sua busca
por sentido, especialmente em tempos de angústia, confinamento, luto, doença e
incerteza em relação ao futuro. Mesmo indivíduos que se encontram vinculados, de
alguma maneira, às formas tradicionais de religião, “montam” uma versão
individualizada de sua vivência da espiritualidade nesse contexto de múltiplas ofertas,
475

fazendo uma bricolagem entre aspectos da espiritualidade religiosa bem como da


espiritualidade laica. Temos uma sobreposição dessas propostas. Uma serve para
reforçar a outra, na busca por sentido e bem-estar. A necessidade premente do
contexto, de manter uma boa saúde tanto física quanto emocional, leva as pessoas a
busca por práticas que ajudem a integrar esses os diferentes aspectos do cotidiano,
agora bastante limitado na circulação pelos espaços de sociabilidade e no contato
físico entre pessoas. Podemos, portanto, inferir uma permeabilidade ainda maior
entre as propostas de espiritualidade e, ainda que provavelmente a pessoa cristã
evangélica vinculada à uma instituição religiosa tradicional não a abandone, sua
identificação religiosa e espiritual se tornará ainda mais plural e ampla.

Palavras-chave: Religião vivida; Pandemia; Espiritualidade; Virtualização da fé.

O termo “novo normal” tem sido naturalizado em nossos dias e muitas


pessoas já não querem nem mais ouvir essa expressão. As mudanças causadas pela
pandemia do Covid-19 invadiram e afetaram as dinâmicas de todas as esferas da vida
social e do indivíduo. Ainda aguardamos para saber quais delas assumirão caráter
permanente e passarão a constituir a vida pós-pandemia. Uma dessas esferas, como
não podia deixar de ser, é a experiência ou a vivência da espiritualidade pelo
indivíduo, seja a partir de uma proposta religiosa instituída ou nas assim
denominadas espiritualidade laicas. Afinal, frente a uma pandemia global, o que
todos e todas buscamos é bem-estar, esperança, sentido, uma razão para continuar
existindo, apesar das limitações impostas.
Trago aqui, portanto, algumas reflexões sobre as novas formas de viver uma
espiritualidade cristã protestante, a partir da observação deste contexto em redes
sociais e de minha inserção no contexto luterano. Ressalto que, depois de escrever e
submeter o resumo ao congresso, passei a participar de grupos de Whatsapp com
jovens adultos brasileiros de diferentes denominações cristãs e de diferentes lugares
do país e do exterior, que possibilitaram, a partir das reflexões e trocas, aumentar o
escopo dessa pesquisa. De qualquer maneira, pretendo aqui localizar essas reflexões
a partir do conceito de religião vivida, que busca compreender vida e religião para
além dos cenários tradicionais da religião.
Na teologia prática, o conceito da religião vivida é empregado para abordar
experiências de conotação religiosa, associadas ou não a formas tradicionais de
religião. A hermenêutica da religião vivenciada, como também é conhecida, pode ser
entendida como uma “forma de observar e ler o contexto da vida e da religião fora
do âmbito estritamente institucional, normativo, tradicional e dogmático da Igreja”
(ADAM, 2019, p. 312). Posto que, em nosso contexto pós-moderno, a religiosidade e
espiritualidade não se encontram mais, necessariamente, atreladas a um sistema
religioso institucionalizado, a religião vivida busca ampliar a compreensão desses
fenômenos de forma mais abrangente. Importante talvez seja pontuar que essa
abordagem não pretende desprezar ou minimizar o papel da instituição, mas
compreender a vivência da espiritual-religiosa para além dos modelos tradicionais. A
476

questão que se impõem é de que, em curso dessas mudanças culturais e sociais, “os
modelos tradicionais e institucionais da religião não conseguem responder de forma
plena, segura e efetiva aos permanentes anseios humanos pela razão da existência”
(ADAM, 2019, p. 315). Se esse processo já se encontrava a pleno vapor antes da
pandemia, as limitações e, ao mesmo tempo, as oportunidades que surgem da crise
sugerem uma aceleração desse processo. Surgem novas dinâmicas de vivência
espiritual e religiosa, bem como novas propostas eclesiológicas que buscam
responder ao contexto presente. Pretendo, aqui, fazer algumas observações
preliminares sobre essas dinâmicas. Ressalto que são preliminares pois o processo
está em curso e o ritmo das mudanças é muito rápido. Ao que tudo indica,
continuaremos com as sociabilidades restritas até que uma vacina se torne viável e o
desafio será acompanhar as mudanças que se mostram a cada dia, a medida que esse
percurso vai se colocando diante de nós.
Quando a pandemia se instalou globalmente, o cenário religioso mundial já se
caracterizava como um ambiente de pluralismo religioso, no qual a bricolagem das
referências religiosas e a fluidez dos processos de identidade do indivíduo se fazem
presentes e, até mesmo, caracterizam o cenário. A “virtualização” da experiência
religiosa, ao mesmo tempo que ampliou o alcance das propostas, também lhe impôs
novas dinâmicas, possibilitando que, mesmo indivíduos que tenham alguma espécie
de afiliação religiosa ou denominacional, possam vivenciar sua espiritualidade a
partir, em paralelo ou mesmo apesar da instituição. Esses diferentes direcionamentos
buscam, de alguma forma, encontrar caminhos e respostas para que fiéis/crentes
possam lidar, da melhor forma possível, com a situação presente. Moisés
Sbardelotto, ao abordar a religiosidade online, já em 2012, já apontava que

Conforme [Brenda] Brasher (2004), para que o sagrado tenha substância e


corresponda às necessidades de cada época, todas as gerações articulam
ideias do divino que devem ser críveis e significativas ao seu próprio
período histórico. (SBARDELOTTO, 2012, p. 21)

Para que a fé possa ser vivenciada a partir de recursos virtuais, o desafio vai
além do conteúdo a ser compartilhado em redes sociais, sites ou plataformas de
encontros virtuais. Os diferentes direcionamentos na vivência da religião e/ou da
espiritualidade, buscados pelas pessoas em tempos de pandemia, intencionam
articular ideias do divino que não somente sejam significativas e façam sentido
dentro desse contexto, mas que de alguma forma proporcionem esse sentido,
orientem diante das incertezas do cenário mundial, que lhes confiram esperança e
propósito. E, uma vez que isso não mais pode ser feito na presença física e no amparo
da comunidade, o processo tende a tornar-se ainda mais individualizado e centrado
na experiência individual, conferindo maior agência e autonomia à pessoa, para optar
e direcionar sua própria trajetória.
Nesse sentido, os meios de comunicação e mídia se fortalecem como novos
ambientes, que facilitam e estruturam a interação e a comunicação humanas. Geram
477

não necessariamente um novo tipo de fé, mas uma nova situação social e cultural na
qual ela é definida e praticada.

A pluralização das vozes religiosas na Internet não apenas desafia a autoridade


das religiões organizadas, como propicia o desenvolvimento de práticas de
comunicação religiosa mais individualizadas e interconectadas, inspiradas pela
cultura geral da Internet. (HJARVARD, 2014, p. 140)

Hjavard apontava, em 2014, a forma como os ambientes virtuais, ao se


configurarem como ambientes culturais, passaram a assumir algumas das funções da
religião, oferecendo orientação espiritual e moral, bem como a ampliação do
conceito de comunidade pelas redes sociais (HJARVARD, 2014, p. 165). Essa
“transferência” se impôs em 2020, por conta de todo o cenário que vivemos.
Cabe ressaltar aqui que, mesmo aquela pessoa que vai para a internet
buscando conteúdo “para a alma” não necessariamente acessará apenas conteúdos
religiosos. Há uma infinidade de material que pode ser acessado para esse fim. De
certa forma, nesses últimos meses, a vida como um todo passou a ser ainda mais
mediada pelas telas de celulares, tablets e computadores do que já era até então.
A aproximação de diferentes propostas religiosas com propostas não-
religiosas, como o minimalismo, o veganismo, as técnicas de mindfulness, um
incremento na preocupação com o consumo consciente, a diminuição da produção
de lixo, atividades artísticas (tendo a disposição tutoriais e cursos on-line), entre
outras, apontam o fato de que os modelos religiosos tradicionais nem sempre
conseguem responder a diversa gama de demandas que surgem a partir da
experiência humana em sua busca por sentido, especialmente em tempos de
angústia, confinamento, luto, doença e incerteza em relação ao futuro.
Mesmo indivíduos que se encontram vinculados, de alguma maneira, às
formas tradicionais de religião, “montam” uma versão individualizada de sua vivência
da espiritualidade nesse contexto de múltiplas ofertas, fazendo uma bricolagem
entre aspectos da espiritualidade religiosa com aqueles da espiritualidade laica.
Temos uma sobreposição dessas propostas. Uma serve para reforçar a outra, na
busca por sentido e bem-estar. A necessidade premente do contexto, de manter uma
boa saúde tanto física quanto emocional, leva as pessoas a buscar práticas que
ajudem a integrar os diferentes aspectos do cotidiano, agora bastante limitado na
circulação pelos espaços de sociabilidade e no contato físico entre pessoas.
Essas práticas, em si, não apresentam necessariamente uma novidade. Creio
que o diferencial aqui está na sua “ritualização”, a incorporação “quase religiosa” de
rotinas, de “liturgias” que integrem o bem-estar psicológico-emocional-espiritual com
o corpo físico, com seu espaço de habitação doméstico bem como com o planeta
como um todo.
Podemos, portanto, inferir uma permeabilidade ainda maior entre as
propostas de espiritualidade e, ainda que provavelmente a pessoa cristã evangélica
vinculada à uma instituição religiosa tradicional não a abandone, sua identificação
religiosa e espiritual pode se tornar ainda mais plural, ampla e centrada na agência do
478

indivíduo, ou seja, de suas escolhas pessoais. Se essas escolhas são orientadas por
tendências ou algoritmos, é um assunto ainda a ser estudado e os dados e indícios
dessa influência começaram a ser sentidos, pressentidos e descobertos nos últimos
meses. Esse é um importante fator a ser considerado, que entretanto, não será
possível aprofundar nesse texto.
O horizonte de possibilidades para as vivências religiosas e/ou espirituais, ao
invés de se reduzir nesse momento, parece estar em constante ampliação. No caso
da igreja luterana, conversando com ministros e ministras sobre o futuro próximo,
com a volta progressiva das celebrações presenciais, alguns/algumas afirmaram seus
planos de continuar com programações dirigidas e produzidas exclusivamente para o
ambiente digital. Ou seja, não pretendem necessariamente transmitir cultos
presenciais pela internet, mas continuar produzindo material e conteúdo para as
redes sociais e de streaming, engendrando em um novo paradigma eclesiástico, que
ainda não sabemos se constituem um alargamento das propostas de igreja existentes
ou uma nova igreja, 100% digital em suas programações.
O peso de uma maior individualização da fé não será demasiado?
Quando voltarmos, se voltarmos, (e me parece ser ponto pacífico que as coisas
não serão, ou já não são mais as mesmas), quais serão os desdobramentos das
práticas religiosas online sobre aquelas que acontecem/acontecerão offline? E quais
serão os deslocamentos que esse novo contexto irá até mesmo impor sobre a
experiência religiosa como a conhecíamos até então?
Este texto propõem mais perguntas do que respostas, não apenas por
estarmos vivendo ainda a pandemia em grande intensidade, mas também pela
velocidade das mudanças. No contexto da religião em ambiente virtual, tenho
acompanhado as mudanças e desenvolvimento nas dinâmicas de cultos e celebrações
ao longo desses meses e, provavelmente por conta da saturação, percebo que igrejas
e instituições estão constantemente reavaliando, revendo e readaptando suas
propostas. Vimos aqui alguns caminhos que parecem se abrir, como uma maior
agência do indivíduo sobre sua prática espiritual-religiosa, a aderência a propostas
mais holísticas de bem-estar emocional e espiritual, a virtualização da religião. Esses
novos caminhos podem vir a servir de material de reflexão para que igrejas pensem e
repensem seu papel na sociedade e na vida do indivíduo. Para tal, contam com o
auxílio da hermenêutica da religião vivida, que pode indicar possibilidades de
inserção e atuação a partir das mudanças que se impõem com a pandemia, tanto no
contexto cultural e social, quanto no comportamento, bem como o futuro pós-
pandemia.

REFERÊNCIAS

ADAM, Júlio Cézar. Religião vivida e Teologia Prática: possibilidades de


relacionamento no contexto brasileiro. Perspectiva Teológica, 2019-2.
HJARVARD, Stig. A midiatização da cultura e da sociedade. São Leopoldo: Unisinos,
2014.
479

SBARDELOTTO, Moisés. E o verbo se fez bit: A comunicação e a experiência religiosa


na internet. Aparecida: Santuário, 2012.
480

A REALIDADE CONTEMPORÂNEA DAS TECNOEXPERIÊNCIAS


RELIGIOSAS: OS SENTIDOS DE RELIGIÃO NO USO DAS
TECNOLOGIAS DIGITAIS EM PERÍODOS DE PANDEMIA

WALLACE THIMOTEO DA SILVA


Mestrando em Ciência da Informação pelo IBICT e ECO-UFRJ,
Formado em Teologia pela Faculdade Batista do Rio de Janeiro.
[email protected]

RESUMO: A partir de um novo padrão de sociabilidade baseado na mediação por


computadores, significativa parte das religiões passou a se servir das tecnologias
digitais para melhor difusão da fé no final do século XX. Tal fenômeno tem propiciado
diferentes modos de vivenciar a espiritualidade, que propomos chamar neste
trabalho de “tecnoexperiências religiosas”. Além disso, a Pandemia de Coronavírus
(2020) trouxe ao mundo maior imersão das instituições nos processos de
midiatização, pois como alternativa para vivência da fé com saúde, diversas
lideranças fizeram uso de transmissões ao vivo pela internet (lives) ou de gravações
de vídeos, por exemplo, para realização de práticas religiosas remotas. Diante desta
conjuntura, é realizada a discussão teórica do conceito clássico de “igreja” na
Sociologia, tomado como principal recorte de pesquisa, acerca da atual condição de
relações sociais tecidas sob aparatos tecnológicos, com objetivo de analisar a religião
a partir da perspectiva da midiatização. São também pensados os aspectos que
refletem as novas formas de religiosidade acompanhadas de dimensões técnicas,
cujas noções materiais e espaçotemporais são bastante distintas das grandes
tradições religiosas. Para dar conta das questões propostas foi empregada pesquisa
bibliográfica na fundamentação dos estudos da religião, assim como da mídia. E com
intuito de situar o problema levantado com dados empíricos, utilizou-se como fonte
documental diversas matérias jornalísticas sobre a repercussão da atuação religiosa
por mediações tecnológicas durante o momento inicial da pandemia de COVID-19 no
Brasil, sendo empregada para aferição o método de análise de conteúdo. Verificou-se
com isso que a presença das tecnologias digitais na concretização da experiência tem
grande potencial de reafirmar um modo de individuação e subjetivação da
espiritualidade ao dispensar a vivência coletiva nos moldes convencionais. Assim são
assumidas duas posturas conclusivas para os dilemas apresentados: criticar o
esvaziamento simbólico induzido pela realidade das tecnologias, sendo necessário
resgatar ações de fortalecimento dos valores tradicionais religiosos; ou incorporar os
novos modos de interação social on-line, admitindo a redefinição das fronteiras e
significados das instituições na nova realidade contemporânea.

Palavras-chave: Espiritualidade; Midiatização; Religião; Sociabilidade; Tecnologia.


481

INTRODUÇÃO

Esta é uma investigação sobre as novas e atualizadas manifestações de


religiosidade a partir do contexto de migração das experiências humanas para o
ambiente das tecnologias digitais. Pode-se apontar como exemplo: as trocas de
mensagens pessoais por aplicativos, relacionamentos por meio de sites de redes
sociais, reuniões por softwares de transmissão de imagem e voz em tempo real etc.,
todos estes dispositivos utilizados como mediadores dos saberes, dos afetos e da
espiritualidade. Assim, ao tratarmos de sociabilidade na contemporaneidade,
estamos lidando não apenas com o reconhecimento de diferentes formas de
interações humanas na formação das coletividades (VANDENBERGHE, 2005), mas
também da conjuntura tecnológica que assume expressiva importância nas relações
sociais.
É também na Modernidade que ocorre uma crescente ruptura dos papéis
referenciais das instituições, sobretudo pelos aspectos de subjetivação e
individualismo, e uma nova condição simbólica é construída baseada agora na
autonomia humana. Assim a responsabilização de estabelecer explicações sobre a
vida se enfraquece no âmbito institucional, afinal o movimento iluminista trouxe a
emancipação permanente do espírito das “antigas estruturas” (BERGER; LUCKMANN,
2004). Em meio ao racionalismo científico, diversas inovações tecnológicas surgem no
século XX como extratos do progresso humano e envoltas por proposições de
estabelecer outras bases de segurança simbólica, à medida que são apropriadas na
condição de organizar, mediar e conferir novos sentidos à vida.
Propõe-se abordar neste trabalho o potencial cenário de novas formas de
religiosidade, com objetivo de levantar questões teóricas sobre até que ponto estas
imbricações entre religare e communicare se encontram com a clássica noção
sociológica de “igreja”, no que diz respeito a coletividades organizadas em torno de
crenças e ritos em comum. Afinal a utilização das tecnologias digitais permite que a
representação e a vivência da religiosidade sejam apropriadas por uma realidade com
dinâmicas e linguagens próprias (das técnicas). Sendo assim, a veiculação midiática da
experiência passa a reconfigurar não apenas o sentido prático da fé, mas também da
própria religião a partir de concepções de materialidades, temporalidades e
espacialidades distintas das grandes tradições religiosas.
Como percurso de análise, pretende-se observar por meio de pesquisa
bibliográfica a religião sob a perspectiva da midiatização para pensar a acentuação do
advento de novas formas de religiosidade. Foi selecionado também como parte do
corpus um conjunto de matérias jornalísticas de portais, sites e blogs durante os seis
primeiros meses da Pandemia de Coronavírus. Os dados coletados foram submetidos
à análise de conteúdo através de categorização em nível semântico das ocorrências
sobre os ritos religiosos realizados por mediações tecnológicas. O interesse de
pesquisa neste sentido está em observar, na repercussão midiática, o relato sobre as
alternativas adotadas pelas religiões no Brasil para vivenciar a espiritualidade com
saúde, a fim de problematizá-las com base no aporte teórico levantado.
482

PANDEMIA COMO MARCO DA IMERSÃO TECNOLÓGICA DAS RELIGIÕES

Como uma das consequências do combate ao COVID-19169 foram suspensas


cerimônias religiosas, eventos desportivos, espetáculos, apresentações culturais,
conferências científicas e qualquer tipo de situação que promovesse aglomeração de
pessoas. E uma das mais emblemáticas situações no campo da espiritualidade foi a
proibição da presença popular nas missas da Semana Santa de 2020, tanto em Roma
como nos demais locais do mundo. A recomendação oferecida pelo Vaticano era que
os fiéis católicos fizessem suas celebrações litúrgicas acompanhando a programação
pela internet, televisão e rádio. Tal posicionamento foi bastante aclamado, uma vez
que a Itália passava pela magnitude da doença infecciosa, sendo considerada uma
das regiões mais afetadas pelo coronavírus na Europa.170
Para contornar a situação, houve uma verdadeira explosão de usuários
fazendo uso das tecnologias digitais para atuação remota como alternativa diante da
crise sanitária. A utilização da transmissão ao vivo pela internet (live), comuns às
empresas para modalidade de trabalho home office, teve um exponencial
crescimento nas esferas sociais para além dos setores da atividade econômica 171,
afinal diversos outros segmentos precisaram se adaptar ao cenário de isolamento,
revelando com isso novas oportunidades de contato com seus públicos.
Acompanhando esta tendência, diversas religiões no Brasil recorreram à opção de
realizar suas atividades on-line, convidando assim seus fiéis para uma maior imersão
nesta diferente forma de experimentar a fé através de mediações tecnológicas.
Com base no levantamento realizado por meio de clipping digital172 para este
trabalho, foram selecionadas 293 matérias com referências à utilização de
tecnologias digitais pelas religiões durante a Pandemia, do período de março a agosto
de 2020. E para dar conta da pesquisa, utilizou-se como ferramenta de busca o site
agregador de notícias e aplicativo Google Notícias173, a fim de possibilitar o melhor
acompanhamento do fluxo de informações sobre o tema pretendido com base nas
palavras-chave de maior relevância174. O total dos resultados obtidos apontam em

169
Cf. O GLOBO. OMS decreta pandemia mundial por novo coronavírus. O Globo, Rio de Janeiro, 11 mar. 2020.
Disponível em: https://oglobo.globo.com. Acesso em: 1 maio 2020.
170
Cf. VATICANO anuncia que celebrações da Semana Santa serão realizadas sem fiéis na Praça São Pedro. G1,
Rio de Janeiro, 15 mar. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com. Acesso em 1 ago. 2020.
171
Cf. MICROSOFT diz que número de usuários do Skype aumentou 70% em meio à pandemia. Estadão, São
Paulo, 31 mar. 2020. Disponível em: https://estadao.com.br. Acesso em: 31 mai. 2020.
172
O clipping ou press clipping trata-se de uma atividade característica no jornalismo moderno e que consiste
no trabalho de pesquisar, selecionar, reunir e fornecer recortes de publicações de jornais, revistas ou outras
publicações periódicas sobre um determinado tipo de assunto para um cliente ou assinante. Com o avanço das
tecnologias no cenário global e uma maior consolidação do jornalismo no ambiente da internet, tornou-se
comum os termos e-clipping (eletronic clipping) ou clipping digital.
173
Trata-se de um mecanismo baseado em um motor de buscas, que reúne manchetes e editorias de
diferentes portais, sites e blogs de notícias. Diferente do Google Busca (google.com), o Google Notícias
recupera páginas prestadoras de informações qualificadas com base em uma criteriosa política estabelecida
por organizações de checagem de fatos. Cf. COMO as matérias do Google Notícias são selecionadas. Ajuda do
Google News. Disponível: https://support.google.com. Acesso em: 6 jul. 2020.
174
A dedução lógica para escolha das palavras-chave foi considerar os termos abrangentes sobre religião,
portanto, adotou-se na pesquisa: “fé” e “religião”. E para acompanhar estas primeiras palavras utilizou-se
483

porcentagem que as matérias fazem menção ao Catolicismo (55,9%), Evangelicalismo


(25,8%), Afro-brasileiras (4,4%), Espiritismo (3,9%), Budismo (3,4%), Judaísmo (2,9%),
Testemunhas de Jeová (1,8%), Islamismo (1,3%) e outras religiões (0,5%).
Se considerarmos a imprensa como o recurso social que viabiliza o uso público
da razão e a autopercepção da sociedade por meio da participação e das discussões
populares expressas nas transmissões de informações (HABERMAS, 1984), a pesquisa
realizada, portanto, pode ser tomada como bastante representativa da realidade.175
Observa-se com isso que o isolamento social acelerou o desenvolvimento dos
processos de convergência midiática com as instituições, também chamado de
midiatização (SODRÉ, 2014), porquanto as duas maiores instituições religiosas são
indicadas como as mais adeptas às tecnologias digitais. Com base nestes dados de
que a experiência da fé passa a ser tratada através de uma mutação sociocultural por
meios técnicos, que trataremos as possíveis implicações desta realidade.

DISCUSSÕES ACERCA DAS TECNOEXPERIÊNCIAS RELIGIOSAS

Um dos princípios elementares que se coloca para discussão diante da


presença de tecnologias digitais nas práticas religiosas é a noção sociológica de
“igreja”, pois o conceito mostra-se para além de: “[...] indivíduos que compõem
[uma] coletividade [e] sentem-se ligados uns aos outros pelo simples fato de terem
uma fé comum” (DURKHEIM, 1996, p. 28, grifo nosso). A ideia de comunidade virtual,
por exemplo, supera em muito a noção tradicional de territorialidade, uma vez que as
interações on-line provocam uma ressignificação nos processos sociais. Afinal, a
internet trouxe a possibilidade de transpor limites de velocidade e mobilidade,
evocando uma condição de leveza e liquidez nos relacionamentos, que independem
atualmente dos lugares geográficos e das coincidências temporais (BAUMAN, 2001).
Contemporaneamente, Michel Maffesoli por sua vez observa que as novas
tecnologias digitais permitem a manutenção de laços fracos nas relações sociais, de
modo que a característica principal deste tipo de sociabilidade é a superficialidade. E
a partir disso desdobra o conceito de “tribo”, trabalhado por Émile Durkheim, ao
afirmar que vivenciamos uma forma de neotribalismo “caracterizado pela fluidez,
pelos ajuntamentos pontuais e pela dispersão” (MAFFESOLI, 1998, p. 107). Sendo
assim, os relacionamentos contemporâneos furtam-se de qualquer forma de
obediência ou padronização, pois com o enfraquecimento das instituições houve uma
desintegração das hierarquias, maiores ênfases na individuação e no relativismo,
favorecendo com isso a multiplicidade dos muitos pontos de vista sobre a fé e novas
religiosidades.

termos de contextualização da temática de interesse: “on-line”, “tecnologia”, “internet”, “pandemia”,


“coronavírus” e “COVID-19”. A combinação resultou em 12 variações (ex.: fé on-line, fé tecnologia etc.), sendo
coletados todos os resultados possíveis de cada busca realizada na plataforma.
175
A pesquisa Datafolha sobre diversidade dos grupos religiosos no Brasil (2019) indica que 81% dos
entrevistados se declaram católicos ou evangélicos, seguidos pelos espíritas e pelos adeptos das religiões
afro-brasileiras. O que também corrobora proporcionalmente com os resultados obtidos. Cf. DATAFOLHA: 50%
dos brasileiros são católicos, 31%, evangélicos e 10% não têm religião. O Globo, Rio de Janeiro, 13 jan. 2020.
Disponível em: https://oglobo.globo.com. Acesso em: 19 out. 2020.
484

Além das dificuldades de se reconhecer as noções de uma coletividade


determinada, uma vinculação forte entre membros e uma representação comum do
sagrado, o ambiente das redes de computadores, chamado também de ciberespaço,
é constituído pela característica de desmaterialização das coisas (LÉVY, 1999). Neste
sentido, a virtualidade faz referência à principal propriedade da informação digital,
que por se tratar da conversão de algo em códigos de computador (bits) são
inacessíveis de forma tátil. O ciberespaço, portanto, carrega consigo a característica
de simulação (representação) da realidade, pois com os signos produzidos no
imaginário social a partir dos novos dispositivos é fomentada toda uma cultura
imagética, pertencente ao que se pode chamar de simulacro “hiper-real”
(BAUDRILLARD, 1991, p. 20).
Embora as tecnologias digitais consigam aproximar os membros religiosos de
modo virtual, principalmente em períodos de pandemia, é preciso discutir os graus
de compatibilidade entre os dois mundos. Neste sentido as matérias coletadas com
menções sobre as religiões e os tipos de ritos realizados remotamente, conforme
classificação em unidades de registro temáticas176, demonstram a seguinte realidade:

Gráfico 1 – Utilização de tecnologias digitais pelas religiões classificada em ritos

100%
90%
80%
70% Sacrificial
60%
50% Passagem
40%
30% Orientação
20% Missional
10%
0% Iniciação
Expiação
Cúltico

Demonstrativo em percentual do total de 554 menções presentes nas 293 matérias


selecionadas (dentre as 2.439 coletadas) com referências claras aos ritos religiosos
realizados por mediações tecnológicas durante o início da Pandemia (março a agosto
de 2020), cuja distribuição das ocorrências são de: Afro-brasileiras (28), Budismo (20),
Catolicismo (277), Espiritismo (25), Evangelicalismo (160), Islamismo (7), Judaísmo
(22), Testemunhas de Jeová (12), outras (3). Fonte: Elaborado pelos autores.

Os resultados aferidos sobre as viabilidades técnicas dentro do universo de

176
Embora seja complexa uma classificação universal, buscou-se considerar os critérios de finalidade dos ritos
(CROATTO, 2010) diante das ocorrências encontradas, portanto: cúltico (celebração, comunhão, oração);
expiação (meditação, purificação, introspecção); iniciação (agregação, batismo, consagração) orientação
(aconselhamento, ensino, exortação); missional (agregação, conversão, doutrinação) passagem (maturação,
matrimônio, fúnebre); e sacrifício (beneficência, oferta, penitência).
485

ritos por religião apresentam que as tecnologias acabam atendendo melhor ao


formato cúltico no Catolicismo (75,1%) e no Evangelicalismo (55,6%), possivelmente,
pela racionalidade e subjetivação envolvidas na religiosidade cristã. Neste aspecto, o
padre Carlos André Câmara afirma que: “Nós somos uma Igreja unida, mesmo com
cada fiel dentro de sua casa”177. Já nas religiões afro-brasileiras houve um melhor
aproveitamento nos ritos de orientação (53,6%), enquanto se tem no tipo cúltico
(32,1%), pois conforme o Pai Guimarães diz em uma das matérias: “As religiões de
matriz africana e indígena têm tido dificuldades, pois o atendimento depende de um
contato presencial, em que se procura entender aquela energia específica” 178.
A mediação técnica, portanto, sintetiza e comprime os signos envolvidos na
interatividade ao virtualizar pessoas e coisas. E na situação da experiência de fé,
chamada neste trabalho de “tecnoexperiência religiosa”, estamos tratando sobre a
capacidade de traduzir em códigos computacionais uma realidade que seria
intraduzível e não mediatizável. Sendo assim, é preciso discutir a diferenciação do
assombro e do fascínio tecnológico daquilo que é precedente da sensação do
mysterium tremendum defendido por Rudolf Otto (2007, p. 44) como uma disposição
do profundo sentimento de espiritualidade. Afinal a relação com o sagrado produz
um discurso sui generis e, portanto, o mistério da experiência religiosa seria
irredutível em palavras (PANIKKAR, 2007) e talvez muito menos em informações
digitais.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Diante dos dilemas apresentados sobre as tecnoexperiências religiosas é


possível concebermos pelo menos duas posturas conclusivas para lidar com o tema.
Uma primeira visão é baseada na observação crítica ao esvaziamento que a realidade
das tecnologias digitais traria sobre o jogo de símbolos da religião e sobre o que José
Mardones (2006, p. 173) chama de “iniciadores ao mistério”, a exemplo dos mitos e
ritos. A partir desta perspectiva seriam necessárias ações para fortalecer novamente
os valores religiosos, robustecer o ordenamento litúrgico e despertar o senso coletivo
na experiência da tradição ou “Erfahrung” (BENJAMIN, 2009, p. 9). Neste caminho é
possível admitir relativamente a presença tecnológica, porém com o olhar atento
para as afetações possíveis, ponderando sempre os modos tradicionais de viver a fé.
Por outro lado, uma segunda forma de tratar a questão é baseada na
compreensão do processo comum de revitalização das linguagens de expressão da
religião. Sendo assim, a capacidade de renovação periódica dos mitos – e
consequentemente dos símbolos e ritos – pelas transformações sociais ao longo do
tempo é tomada como uma caraterística comum, pois segundo Mircea Eliade (1972,
p. 29) estes seriam reatualizados numa espécie de “le mythe de l'éternel retour”.
Portanto, diante do cenário de atravessamento tecnológico, as ideias e os

177
VILARDAGA, Vicente. A fé resiste. IstoÉ, São Paulo, 22 maio 2020. Disponível em: https://istoe.com.br.
Acesso em: 21 ago. 2020.
178
Cf. CORRÊA, Júlia. Como a pandemia afeta a relação das pessoas com a fé e as práticas religiosas. Estadão,
São Paulo, 22 maio 2020. Disponível em: https://estadao.com.br. Acesso em: 20 ago. 2020.
486

sentimentos de religiosidade podem ser tomados como parte das concepções


advindas do desenvolvimento social e intelectual das sociedades, concretizando-se
mesmo sob mutação dos novos aspectos sociotécnicos contemporâneos.
Qualquer das possibilidades requer maior aprofundamento sobre os
importantes aspectos que constituem a religião, seja para um posicionamento de
preservação daquilo que seria considerado inegociável flexibilizar ou de revitalização
dos elementos constitutivos da fé na conjuntura de novas agências tecnológicas
envolvidas. É esperado que ambas as posturas convivam nas próximas décadas,
servindo de inspiração para a decisão de como responder aos novos movimentos
religiosos surgidos e aos que ainda se formarão. Por fim, é preciso não perder de vista
que as questões abordadas neste trabalho se mostram embrionárias e que muitas
outras estão surgindo e precisam ser discutidas no contexto desta imbricada
realidade de midiatização e religiosidade na contemporaneidade.

REFERÊNCIAS

BAUDRILLARD, Jean. Simulacros e Simulação. Lisboa: Relógio d’Água, 1991.


BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.
BENJAMIN, Walter. Passagens. Belo Horizonte: Editora UFMG; São Paulo: Imprensa
Oficial do Estado de São Paulo, 2009.
BERGER, Peter; LUCKMANN, Thomas. Modernidade, Pluralismo e Crise de Sentido: A
Orientação do Homem Moderno. Petrópolis: Vozes, 2004.
CROATTO, José. As Linguagens da Experiência Religiosa: Uma Introdução à
Fenomenologia da Religião. São Paulo: Paulinas, 2010.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares de Vida Religiosa: O Sistema Totêmico na
Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
HABERMAS, Jürgen. Mudança Estrutural da Esfera Pública: Investigações quanto a
uma Categoria da Sociedade Burguesa. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1984.
LÉVY, Pierre. Cibercultura. São Paulo: Editora 34, 1999.
MAFFESOLI, Michel. O Tempo das Tribos: O Declínio do Individualismo nas
Sociedades de Massa. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1998.
MARDONES, José. A Vida do Símbolo: A Dimensão Simbólica da Religião. São Paulo:
Editora Paulinas, 2006.
MIRCEA, Eliade. Mito e Realidade. São Paulo: Editora Perspectiva, 1972.
OTTO, Rudolf. O Sagrado: Os Aspectos Irracionais na Noção do Divino e Sua Relação
com o Racional. Petrópolis: Vozes, 2007.
PANIKKAR, Raimon. Ícones do Mistério: A Experiência de Deus. São Paulo: Paulinas,
2007.
SODRÉ, Muniz. A Ciência do Comum: Notas para o Método Comunicacional.
Petrópolis: Vozes, 2014.
VANDENBERGHE, Frédéric. As Sociologias de Georg Simmel. Bauru: Edusc; Belém:
EDUPFA, 2005.
487

ESPIRITUALIDADE E SAÚDE: REFLEXÕES, DESAFIOS E


POSSIBILIDADES

LORENA ISABELLA LOUREIRO FREIRE CALVACANTI


Pós-Graduanda em Gestalt-terapia pela UNIFACOL,
Formada em Psicologia pela Faculdade FAFIRE – Recife.
[email protected]

MARCOS LUCENA DA FONSECA


Doutorando em Ciência da Religião pela
Universidade Católica de Pernambuco-UNICAP,
Mestre em Educação pela Universidade de Pernambuco.
[email protected]

SERGIO SEZINO DOUETS VASCONCELOS


Doutor em Teologia pela Westfälische Wilhelms Universität Munster.
[email protected]

RESUMO: O objetivo desta pesquisa foi refletir sobre a espiritualidade e saúde na


perspectiva da gestalt-terapia. A partir da definição de saúde da Organização Mundial
de Saúde (OMS), que vem aprofundando as investigações sobre essa dimensão
humana, incluindo-a no conceito multidimensional de saúde. O objetivo foi investigar
acerca da relação entre saúde e espiritualidade, devido a uma lacuna que vem tendo
nos cursos psicologia. Trata-se de uma pesquisa qualitativa, de caráter bibliográfico.
Como resultado da pesquisa, tivemos que o profissional de psicologia necessita de
um saber que não permita a fragmentação do conhecimento, mas possibilite a
integração gerada pela boa confluência entre o aprofundamento e a horizontalização
dos saberes; que o conceito de Saúde, proposto pela gestalt-terapia, antes rechaçar,
pressupõe a espiritualidade. Que a formação em Psicologia não deve relegar a
espiritualidade, como elemento fundamental para a saúde integral da pessoa
humana. Ela compreendida como possibilidade de uma pessoa mergulhar em si
mesma, na relação com valores, significados e o sentido da vida, que independe de
pertencer ou não a uma religião, ser teísta, ateu ou agnóstico, crer num só ou vários
deuses. Ao mesmo tempo em que se diferencia de Religião, enquanto um conjunto
de ritos, dogmas e de religiosidade, enquanto o modo subjetivo como cada pessoa
vivencia e interpreta a religião que segue. A pesquisa mostrou que quanto mais um
profissional da psicologia tem consciência e desenvolvido sua dimensão espiritual,
mais ele pode facilitar o processo de saúde do consulente (cliente), de forma
individual ou grupal. A pesquisa indicou que a espiritualidade permite ao ser humano
abertura, capacidade dialógica, autonomia, conscientização, protagonismo e
desmonte de atitudes preconceituosas. Nossa inferência é que a espiritualidade
488

possibilita ao profissional de psicologia realizar uma psicoterapia que vise o ser


humano em sua totalidade, facilitando um movimento libertário e inclusivo.
Portanto, no conceito de saúde, que não é só ausência de doença, mas presença de
promoção e prevenção de saúde, a espiritualidade precisa estar inclusa.

Palavras-chave: Espiritualidade; Saúde; Formação do psicólogo.

INTRODUÇÃO

Na sociedade contemporânea é inegável o papel que as vivências religiosas,


nas suas múltiplas performances, institucionais ou para além delas, possuem na
construção de sentido e, consequentemente no cotidiano da vida das pessoas. As
crenças religiosas estão profundamente relacionadas com estruturas de sentido,
pessoal e coletivas nas sociedades (BERGER, LUCKMANN, 2004). Se na cultura
contemporânea, marcada pelos processos de secularização, as religiões, enquanto
sistemas, passam por uma profunda crise de legitimação HERVIEU-LÉGER, 2008), é
inegável o papel que a religiosidade e a espiritualidade têm na vida dos indivíduos.
Provavelmente por conta de certas leituras reducionistas das teorias
freudianas sobre a origem e o papel da religião na vida dos indivíduos (MORANO,
2014), os temas religião, religiosidade e espiritualidade não encontram cidadania nas
formações dos profissionais de psicologia, mesmo, como sabemos, sendo grande
parte do material apresentado no processo terapêutico, de ordem religiosa implícito
ou explicitamente. Os temas são vistos, quase, como um tabu, na formação
profissional.
O presente texto quer contribuir na discussão sobre a necessidade, se
partirmos de uma concepção integral do ser humano e de uma concepção ampla de
saúde, desses temas para a formação profissional e humana daqueles e daquelas que
estão no processo formativo para clinicarem na área de psicologia.
Partiremos do esclarecimento de alguns conceitos fundamentais, a partir da
perspectiva da Gestalt-terapia, para, em seguida, problematizarmos alguns aspectos
importantes na formação profissional e humana dos que terão que se confrontar com
essa demanda no atendimento psicológico.

SAÚDE E DOENÇA E O PAPEL DA ESPIRITUALIDADE NA PERSPECTIVA DA GESTALT-


TERAPIA

Seguindo a esteira da pesquisa de Toniol (2017), a espiritualidade é um tema


que está presente nos documentos oficiais da Organização Mundial da Saúde (OMS),
desde que foi fundada em 1948. Toniol evidencia a definição de saúde da OMS, ao
afirmar que: “saúde é um estado dinâmico de completo bem-estar físico, mental,
espiritual e social, e não meramente a ausência de doença ou enfermidade” (TONIOL,
2017, p.267).
Inicialmente é importante ressaltar uma distinção fundamental, feita por Pinto
(2009), entre religiosidade e espiritualidade. Segundo ele, o termo religiosidade tem a
489

ver com a relação do ser humano com um ser transcendente, ao passo que,
espiritualidade, não significa ligação nenhuma com um ser superior. Ela quer afirmar
sobre a possibilidade de uma pessoa mergulhar em si mesma, de toda vivência que
pode produzir mudança profunda no seu interior, levando-a à integração pessoal e
com outros seres humanos. Sendo assim, espiritualidade implica valores e
significados. É a dimensão que permite ao humano fazer a experiência da
profundidade, da captação do simbólico, de mostrar que o que move a vida é um
sentido para a sua existência.
Dito isso, ressaltamos o que afirma Antony:

A Gestalt- Terapia (GT) tem uma visão holística do homem e mundo


que enfoca o indivíduo como um ser total inserido em múltiplos
todos relacionais que estão em constantes trocas entre si. Dá ênfase
à influência mútua existente entre indivíduo e ambiente que formam
uma unidade integrada e inseparável, responsável pelo surgimento
dos fenômenos biológicos, psicológicos e sociais da condição humana
(ANTONY, 2014, p. 25).

A Gestalt- terapia (GT) é uma abordagem humanista, que acredita no potencial


do indivíduo, bem como na sua capacidade de fazer escolhas, de assumir a
responsabilidade pela própria vida, visando tornar-se um ser humano autoapoiado e
autorregulado. “A ideia da Gestalt-terapia é transformar pessoas de papel em
pessoas reais, fazer o homem vir à vida e ensiná-lo a usar seu potencial inato para
ser” (PERLS, 1988, p.131). Sempre foi o objetivo da GT promover o encontro de uma
“boa forma”, uma configuração estável e ordenada para o organismo viver da melhor
maneira possível. Para esse objetivo ser atingido, visa-se promover a awareness do
sujeito, ou seja, desenvolver sua capacidade de perceber o seu interior e exterior,
bem como todas as suas dimensões (física, mental, espiritual e social) e essa
percepção se dá através do contato. Segundo Frazão (2015, p.67-68) “o contato se dá
por meio daquilo que em Gestalt-terapia chamamos de funções de contato: visão,
audição, olfato, tato, fala e movimento. É pelas funções de contato que nossa
percepção se organiza e nossos sentimentos adquirem significado”.
Quando algum evento ameaça esse equilíbrio ou quando identificamos uma
necessidade emergente, acredita-se na capacidade de reorganização, em que a
pessoa busca, no meio, novos mecanismos de ajustamento para adaptar-se a essa
nova situação. Esses ajustamentos podem ser funcionais, quando conseguimos
priorizar e hierarquizar as necessidades, ou disfuncionais, quando não conseguimos
entrar em contato e compreender nossas reais necessidades, como por exemplo o
surgimento de um sintoma. Em outras palavras, a GT acredita que a doença pode ser
um ajuste não funcional para lidar com determinada situação, ou seja, não é apenas
um aspecto negativo, ela pode ser entendida como um esforço que a pessoa
emprega para encontrar um equilíbrio diante de uma situação perturbadora.
(FRAZÃO, 2015).
490

Nesse cenário, a proposta da GT é promover um olhar humano para o


indivíduo, acreditando que ele não se resume a uma doença, diagnóstico ou
dificuldade apresentada. Assim, parte do princípio de que cada pessoa tem um
potencial a ser desenvolvido, defendendo, também, que cada ser humano é único.
Então, para GT a patologia pode ser entendida como a maneira disfuncional que
determinada pessoa, tida como anormal, se ajusta a determinadas situações e faz
parte do processo de crescimento de cada um, podendo, até, ser vista como um
aspecto funcional e saudável no sentido de única maneira que aquele ser humano
encontrou de lidar com suas questões. Já saudável é quando a pessoa tem uma
interação plena de si. Portanto, saúde e doença é um processo dinâmico, não
estático: saudável para GT é quando interajo com o ambiente de forma flexível, já o
modo doente é quando a interação é de modo cristalizado (PERLS, 1988).

ESPIRITUALIDADE, SAÚDE MENTAL E A FORMAÇÃO DO PSICÓLOGO

Amatuzzi (2005) aponta que a espiritualidade é um tema fundamental em


nossos dias. Está relacionado com o equilíbrio psicológico e a maturidade humana. A
psicologia não pode se furtar ao estudo dessa dimensão da experiência humana. A
sua proposta é de que é preciso discutir e entender a importância da espiritualidade
para um movimento de emancipação na psicologia, em um contexto interdisciplinar.
Crendo ou não em deus, a espiritualidade é uma dimensão humana e deve-se levar
em conta.
Gandelman afirmar:

Embora eu soubesse da influência da subjetividade do profissional de


Psicologia no atendimento psicológico, e consequentemente de sua
religiosidade e de sua espiritualidade, ela se mostrou mais
concretamente nas análises das entrevistas. [...] Trabalhar com estas
questões durante a graduação propicia experiências de maior
abertura e leva a compreender que é necessário um novo olhar sobre
a formação profissional, que contemple a importância do debate de
questões religiosas e espirituais capazes de pautar a conduta dos
futuros psicólogos e reduzir suas dúvidas e conflitos nos
atendimentos psicológicos, tendo como foco o desenvolvimento bio-
psico-social-cultural-espiritual dos pacientes. A sugestão que decorre
desta pesquisa é a de que a inclusão destes temas no curso conduzirá
a um atendimento mais integrado e a uma prática psicológica mais
consistente (GANDELMAN, 2013, p.70).

O que traz Gandelman (2013) é que a espiritualidade na formação do


profissional de Psicologia não deve ser um tema transversal ou de segunda ordem.
Pesquisas veem mostrando o quanto, não só a religiosidade, mas, sobretudo, a
espiritualidade, enquanto dimensão do humano, necessita serem levadas em conta
com a sua devida importância. A citada autora faz uma pesquisa densa sobre o
assunto, e pontua que há uma necessidade de distinção entre a religiosidade e
491

espiritualidade tanto do consulente (cliente\paciente), quanto por parte do


profissional de Psicologia; bem como urge o tema da religiosidade e da
espiritualidade na formação acadêmica em Psicologia. Pautada num levantamento
bibliográfico sobre religiosidade e espiritualidade, evidenciou-se que há necessidade
de um olhar aprofundado sobre a inserção desses temas na matriz curricular dos
cursos de Psicologia, como forma de contribuir para o desenvolvimento pessoal e
profissional dos formandos da área.
As autoras mostram que há, sim, uma necessidade de revisão e de
reformulação dos paradigmas norteadores da ciência psicológica, apontando que há
uma negligência no que tange à dimensão inerente ao humano, que interfere na
saúde psíquica: a espiritualidade. O processo de formação do profissional de
Psicologia, no Rio Grande do Sul, traz um dado, no mínimo lamentável, que “a
formação acadêmica em Psicologia parece estar contribuindo para o embotamento
da espiritualidade dos próprios psicólogos, ao adotarem religiosamente suas
doutrinas psicológicas (CAVALHEIRO E FALCKE, 2014, p. 43). Diante disso, as autoras
sugerem que a relação entre formação acadêmica e espiritualidade não fique na
“grave contradição e dissociação entre a espiritualidade do psicólogo e a
espiritualidade dos demais seres humanos” (CAVALHEIRO E FALCKE, 2014, p. 43).
Pereira e Holanda (2019), apontam que estudantes de psicologia tendem a
apresentar índices menores de bem-estar espiritual quando comparados a outros
estudantes universitários. Os formandos de diferentes regiões do país mencionam
sentir dificuldade e insegurança quando o assunto se apresenta na clínica e
questionam sobre a postura ética adequada, bem como sentem medo de influenciar
a pessoa que está sendo atendida, se ela disser qual a religião pessoal e não sabem
lidar com suas próprias crenças. De modo geral, os formandos chegam a admitir a
falta de conhecimento, manejo teórico-clínico e a dificuldade ou impedimento de
abordar tais questões, com professores e supervisores de estágio.
Campos e Ribeiro (2017), em uma investigação de como o processo
psicoterapêutico pode ser beneficiado com a inclusão de conteúdos de
espiritualidade, partindo da GT para fazer pontes com pesquisas no campo da
psicologia contemporânea, enfatizam a visão de ser humano como um todo,
sinalizando que autores da GT foram pioneiros em descrever a espiritualidade como
uma das dimensões desta totalidade humana e em ressaltar sua conexão e
importância à psicoterapia. Dizem que, “gestaltistas indicaram habilidades e atitudes
do terapeuta, como a empatia, presença, não-julgamento e capacidade de abordar
respeitosamente as crenças dos clientes, mesmo quando não estão em consonância
com as suas, assim como em trabalhos estudados” (CAMPOS e RIBEIRO, 2017, p.
218).

PARA NÃO CONCLUIR

Foi possível observar que, tanto os conhecimentos psicológicos, teóricos e


técnicos, quanto as experiências vividas ao longo da formação e os modelos
profissionais com os quais profissionais de Psicologia se identificaram, influenciaram
492

em seu crescimento pessoal, em seu futuro profissional e no modo como eles


manejam as questões religiosas e espirituais na prática profissional. Neste caminho, é
importante que formandos\as adquiram uma postura crítica quanto à própria
religiosidade, à espiritualidade, e aos valores que as norteiam, condição necessária
para a superação do preconceito e a aceitação do outro.
Diante disso, fazer tal pesquisa, levou-nos a perceber que a forma como nos
colocamos na presença do outro é fundamental, quando queremos compreendê-lo. A
pesquisa nos possibilitou perceber o quanto formandos\as de Psicologia necessitam
de compreensão e acolhimento em sua formação, esperando que seus professores e
supervisores os ajudem a interpretar suas próprias experiências religiosas e
espirituais, a compreenderem os mistérios que envolvem estas questões e as suas
relações com o mundo, com os outros e, sobretudo, consigo mesmos. Mais que isso,
urge, que as graduações de Psicologia mudem políticas e conteúdos programáticos,
validando e dando a devida relevância a uma dimensão que não é um “apêndice” no
ser humano, mas uma de suas dimensões mais profundas, tão relevante quanto a
física, a psíquica e a social.
Longe de colocar um ponto final em tal assunto, que precisa ser discutido
entre a ciência psicológica e a academia, demos aqui uma modesta contribuição ao
debate.

REFERÊNCIAS

AMATUZZI, Mauro Martins. Psicologia e espiritualidade. São Paulo: Paulos, 2005.


ANTONY, Sheila Maria da Rocha. Gestalt-Terapia – Cuidando de crianças: teoria e
arte. Ed. Juruá, 2014.
BERGER, Pieter; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Tratado de
Sociologia do Conhecimento. Petrópolis: Vozes, 2004.
CAMPOS, Aline Ferreira; RIBEIRO, Jorge Ponciano. Psicoterapia e espiritualidade: da
gestalt-terapia à pesquisa contemporânea. In: Revista da Abordagem Gestáltica:
Phenomenological Studies, v. 23, n. 2, p. 211-218, 2017.
DE FREITAS, Marta Helena; PIASSON, Douglas Leite. Religião, religiosidade e
espiritualidade: repercussão na mídia e formação profissional em psicologia. In:
Esferas, v. 1, n. 8, 2017.
FRAZÃO, L.M.; FUKUMMITSU, K.O. A clínica, a relação terapêutica e o manejo em
Gestalt-terapia. São Paulo: Summus, 2015.
GANDELMAN, Terezinha Carmen. A Religiosidade e Espiritualidade dos Alunos no
Curso de Formação de Psicólogo. Dissertação (Mestrado) - Mestrado em Psicologia
Clínica, PUC-SP.
HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido. A religião em movimento.
Petrópolis: Vozes, 2008.
MORANO, Carlos Dominguez. Crer depois de Freud. São Paulo: Editora Loyola, 2014.
493

PEREIRA, Karine Costa Lima; HOLANDA, Adriano Furtado. Espiritualidade e


religiosidade para estudantes de psicologia: Ambivalências e expressões do vivido. In:
Revista Pistis & Praxis: Teologia e Pastoral, v. 8, n. 2, p. 385-413, 2016.
PEREIRA, Karine Costa Lima; HOLANDA, Adriano Furtado. Religião e espiritualidade no
curso de psicologia: revisão sistemática de estudos empíricos.In: Interação em
Psicologia, v. 23, n. 2, 2019.
PERLS, Fritz. A abordagem gestáltica e testemunha ocular da terapia. Rio de Janeiro:
LTC, 1988.
PINTO, Ênio Brito. Espiritualidade e Religiosidade: Articulações. In: REVER: Revista de
Estudos da Religião, v. 9, 2009.
494

A FUNÇÃO DA ESPIRITUALIDADE E DA RELIGIÃO NA


RESSOCIALIZAÇÃO DOS RECUPERANDOS DA ASSOCIAÇÃO DE
PROTEÇÃO E ASSISTÊNCIA AOS CONDENADOS DE
PARACATU-MG

RENATO PAULINO BORGES


Doutorando em Ciências da Religião pela PUC Goiás e Bolsista CAPES,
Mestre em Direito das Relações Econômico-Empresariais pela
Universidade de Franca-SP.
[email protected]

RESUMO: Esta comunicação tem como objetivo identificar, ressaltar e analisar a


importância da espiritualidade e da religião para a ressocialização dos reclusos da
Associação de Proteção e Assistência aos Condenados (APAC) do centro de
ressocialização de Paracatu-MG. A APAC de Paracatu originou-se do conjunto de
esforços da comunidade civil organizada, da Justiça estadual mineira, da maçonaria,
das igrejas cristãs, notadamente da Igreja Católica (Diocese de Paracatu), visando
construir um centro de ressocialização de reclusos com base na metodologia fundada
pelo jornalista e jurista Mário Ottoboni em notável expansão no Brasil e no exterior.
Essa metodologia apaqueana tem como base, dentre outras características, a
espiritualidade e a religião e possui relevância na queda drástica de reincidência
criminal dos recuperandos egressos. Vale salientar que todos os internos da APAC
possuem uma religião ou exercem alguma espiritualidade de uma forma ou de outra
durante o período de reclusão ou detenção tendo em vista que, para adentrar na
APAC, o recluso, por meio de seus advogados, assinam consentimento e
requerimento ao juiz de execuções penais de que possuem e/ou exercerão a religião
ou a espiritualidade dentro da APAC. Metodologicamente far-se-á pesquisa de campo
exploratório-descritiva utilizando entrevistas, por meio de questionários
semiestruturados, visando identificar os fatos e os fenômenos religiosos apaqueanos,
bem como seus reflexos e importâncias na ressocialização dos internos dentro do
método fenomenológico. Certamente que diálogos com a educação, a psicologia, a
antropologia e a sociologia da religião serão utilizadas. Entre os resultados da
pesquisa mostrar-se-á a taxonomia dos fenômenos religiosos apaqueanos, bem como
do método APAC para a recuperação e ressocialização dos internos evidenciando, de
forma conclusiva, o relevante e imanente campo para as ciências da religião e a
indicação de caminhos para a solução de problemas do sistema penitenciário
brasileiro.

Palavras-chave: Sistema prisional brasileiro; Religião; Ressocialização.


495

INTRODUÇÃO

Em seguimento aos trabalhos apresentados por Ribeiro (2018), Santos Júnior


(2018), principalmente de Silva Junior (2018) nos anais do IX Congresso Internacional
em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás),
guardadas as respectivas perspectivas, bem como apresentando um novo campo de
estudo para a Antropologia, História, Psicologia e a Sociologia da Religião, o estudo
do papel da religião na recuperação, ressocialização e reinserção de pessoas
apenadas pela Justiça Criminal brasileira por meio da chamada metodologia APAC
nos diversos centros de recuperação social (CRS) inaugurados no Brasil e no mundo,
principalmente no CRS de Paracatu-MG, mostra-se fundamental para a resolução dos
graves problemas apostos no sistema penitenciário brasileiro.
Vale dizer que outros países como os Estados Unidos da América (EUA), Peru e
Chile também inauguraram centros de recuperação com ambientes cristãos
acrescidos de sucesso na recuperação de apenados com a metodologia APAC
desenvolvida por Mario Ottoboni e companheiros, bem como por Valdeci Antônio
Ferreira nos tempos atuais onde esse método passou a receber reconhecimento e
vários prêmios de organismos internacionais e nacionais brasileiros mostrando a
eficácia dessa metodologia no cumprimento de pena e baixa reincidência criminal de
participantes apenados, dentre outros aspectos.
As Associações de Apoio aos Presos e Condenados (APAC’s) inauguradas em
mais de 130 (cento e trinta) unidades, no Brasil, são prisões com ambiente religioso
cristão e estão presentes em alguns estados brasileiros como Maranhão, Ceará, Rio
Grande do Norte, Espirito Santo, Mato Grosso, São Paulo, Paraná e Rio Grande do Sul.
Ademais, no Estado de Minas Gerais nota-se a criação, funcionamento e a
multiplicação exacerbada de unidades apaqueanas. Entretanto, vários outros estados
da República Federativa do Brasil, como o estado de Goiás, por exemplo, ainda não
possuem unidades dessas instituições.
Desta feita, as Ciências da Religião, além de apontar a existência, crescimento
e pulverização dessas unidades prisionais com base nas espiritualidades e na religião,
também têm o papel de verificar como a religião atua na recuperação dos chamados
apaqueanos e quais os reflexos essas prisões, com base na religião e nas
espiritualidades, possuem nas diversas áreas, setores e estudos que fazem parte dos
campos sociais, sociais religiosos e públicos também visando evoluir e melhorar o
método APAC.

A ONTOGÊNESE DA ASSOCIAÇÃO DE PROTEÇÃO E APOIO AOS CONDENADOS E DA


LITERATURA APAQUEANA

A inspiração para a criação das APAC’s veio da tentativa de diminuir as


desolações da população carcerária das prisões da cidade de São José dos Campos
que refletiam em rebeliões, dentre outros problemas graves no ano de 1972
(OTTOBONI, 2006, p. 23). Ottoboni (2006, p. 34) afirma que existe uma espécie de
círculo vicioso na Justiça criminal, bem como na execução de penas restritivas de
496

liberdade, no Brasil onde o Poder Judiciário prende, não existem tratamentos para os
condenados, os alvarás de soltura são expedidos, o criminoso reincide na prática
criminal e novamente ocorrem as prisões sem a solução no que se refere à dimensão
social da pena exacerbadamente defendida pelo Direito Penal brasileiro. Em várias
fontes das chamadas literaturas apaqueanas, conta-se que em uma tentativa de fuga
por parte de presos na cidade de Jacareí-SP, em 1981, o próprio jurista Mario
Ottoboni (1932-2019), bem como o seu companheiro Franz de Castros Holzwarth
(1942-1981), ardentes defensores dos Direitos Humanos, colocaram-se como escudos
humanos para evitarem mortes em motim deflagrado, à época, sendo que após o
disparo de armas de fogo contra o comboio fugitivo, houve a morte de Holzwarth,
bem como de vários presos tendo, Ottoboni, sobrevivido. Esse fato, além de criar,
com base em uma perspectiva sociológico-religiosa, um mito de derramamento de
sangue ou martírio por parte do ato heroico de Holzwarth, também conferiu a
Ottoboni uma liderança para a criação das APAC’s com a nomenclatura inicial
“Amarás ao Próximo, Amarás a Cristo”, migrando, posteriormente para Associação de
Proteção e Apoio aos Condenados.
Desta feita, Ottoboni e Holzwarth são apontados como principais fundadores
do método APAC que teve suas primeiras unidades em São José dos Campos-SP e
Itaúna-MG, multiplicando-se nos estados e municípios acima apostos.
Os livros de Mario Ottoboni são de suma importância para entender a
taxonomia do método APAC dentre os quais destacamos: Vamos matar o criminoso?
(2006)179 e Ninguém é irrecuperável: APAC, a revolução do sistema penitenciário
(1997)180.
A FBAC181 (2019), no portal http://www.fbac.org.br, no link sobre os
elementos fundamentais do método APAC, disponível em
http://www.fbac.org.br/index.php/pt/metodo-apac, acessado em 14/11/2020, traz
em um quadro demonstrativo os doze elementos da metodologia APAC, a saber:

179
Vamos matar o criminoso?, publicada em 2001, é a obra em que o autor traz uma abordagem pática e
didática mostrando a valorização humana interdisciplinarmente com a mensagem do evangelho cristão visando
proporcionar ao apenado tanto o pagamento de pena à Justiça, quanto sua recuperação frente ao crime.
180
Ninguém é irrecuperável: APAC, a revolução do sistema penitenciário, de 1997, o autor aponta que o ser
humano é maior do que o erro (crime) que cometeu e, por conseguinte, tem total condições de reerguer-se
também por meio da religião.
181
FBAC (Fraternidade Brasileira de Apoio aos Condenados) é outra entidade que presta assistência e
consultoria administrativa, pedagógica, social e jurídica para as diversas unidades apaqueanas no Brasil e tem
sede em Itaúna-MG. Atualmente, a FBAC é presidida por Valdeci Antônio Ferreira, um dos principais
colaboradores contemporâneos do método APAC.
497

Fonte: http://www.fbac.org.br/index.php/pt/metodo-apac

Pela observância do quadro, acima aposto, citamos a presença da religião e


das espiritualidades especialmente nos elementos fundamentais: Espiritualidade (A
importância de se fazer a experiência de Deus) e Jornada de Libertação com Cristo. O
que faz das unidades da APAC, ambientes essencialmente religiosos interferindo no
comportamento dos parceiros, voluntário e principalmente, dos presos apaqueanos,
chamados recuperandos, trazendo, por conseguinte, a fonte primordial da presente
pesquisa empírica visando analisar como a religião atua na recuperação dos
apenados do método APAC.

A RELIGIÃO E AS ESPIRITUALIDADES NA APAC DE PARACATU-MG

A FBAC, ainda no portal http://www.fbac.org.br, agora em outro link sobre as


espiritualidades e a religião no método APAC, disponível em
http://www.fbac.org.br/index.php/pt/metodo-apac/religiao, acessado em
14/11/2020, dispõe que

A espiritualidade é fundamental para a recuperação do preso; a


experiência de amar e ser amado desde que pautada pela ética, e
dentro de um conjunto de propostas onde a reciclagem dos próprios
valores leve o recuperando a concluir que Deus é o grande
companheiro, o amigo que não falha. Então Deus surge como uma
necessidade, que nasce espontaneamente no coração de
recuperando para que essa experiência seja permanente e
498
duradoura.
O Método APAC proclama a necessidade imperiosa do recuperando
fazer a experiência de Deus, ter uma religião, amar e ser amado, não
lhe impondo este ou aquele credo (FBAC, 2015).

Desta feita, evidencia-se o presente estudo tanto na perspectiva funcionalista


ou funcionalista estrutural de David Émile Durkheim (1858-1917) que aponta a
origem de solidariedade a partir de uma consciência coletiva criada também pela
religião, dentre outros neofuncionalistas, bem como pela perspectiva de Maximilian
Karl Emil Weber (1864-1920) que em sua sociologia compreensiva traz bases para a
análise do ambiente social em sua estrutura tanto a nível macro, quanto a nível micro
sociológico.
Especificadamente, a nível micro sociológico, outros autores serão chamados
ao diálogo acadêmico, na presente pesquisa, como o escritor canadense Erving
Goffman (1922-1982), principalmente em sua obra Manicômios, prisões e conventos
(1974)182 que traz uma relação entre pessoas não estigmatizadas (normais) e
estigmatizadas (marginalizadas por grupos sociais ou pela sociedade em uma visão
mais ampla) onde, por sua alçada ocasionam um sentimento de falta de importância
e autoconfiança nos indivíduos apenados, por exemplo. Não se pode esquecer, por
acréscimo, da obra Mind, Self and Society (1934) de George Herbert Mead (1863-
1931). Classificado como sendo teórico do chamado “pragmatismo” norte americano,
foi influenciado por Goffman com relação a identidades dos indivíduos e grupos
sociais. Ressalta-se que autores e teorias serão trazidas ao trabalho mediante a
análise qualitativa dos dizeres dos recuperandos entrevistados.
A literatura científica sobre a APAC, com base nas Ciências da Religião, é
praticamente nula justificando-se a iniciativa do presente trabalho para a captação do
papel da religião na recuperação dos apenados, na visão deles para que também o
método APAC possa evoluir. Mostra-se relevante a partir do momento em que a
dignidade da pessoa humana, defendida pelos Direitos Humanos, nos presídios, é
desvalorizada, bem como a reincidência criminal é alta por parte dos egressos do
sistema penitenciário comum183 brasileiro.
O presente estudo consiste em pesquisa de caráter exploratório-descritivo,
que visa identificar qual é a função da religião na recuperação dos recuperandos da
APAC de Paracatu-MG. Os resultados serão apresentados de forma qualitativa e
quantitativa, a partir da coleta de informações de fontes primárias e secundárias. A
planificação da pesquisa inclui, em primeiro lugar, o levantamento dos dados
secundários, para posterior contato com as fontes primárias, a fim de promover a
coleta de dados em campo. Será aplicado um questionário semiestruturado, com

182
A obra Manicômios, prisões e conventos, de Erwing Goffman publicado em 1961, apresenta aspectos de
identidade virtual e real dos indivíduos conceituando, ademais, estigmas que trazem reflexos com a ordem
social também apontado nos estudos de Durkheim.
183
Sistema penitenciário comum é classificado pela FBAC (Fraternidade Brasileira de Apoio aos Condenados),
bem como pelas unidades do método APAC (Centros de Ressocialização ou Reintegração apaqueanos) como
sendo unidades prisionais que não possuem o método APAC como forma de cumprimento de pena restritiva de
liberdade no sistema penitenciário brasileiro.
499

amostragem definida por tempo de conveniência dos apaqueanos junto ao método


APAC (sendo que serão entrevistados aproximadamente 25 recuperandos, mediante
sorteio, com mais de um ano cumprindo pena na APAC paracatuense). O instrumento
de pesquisa terá 05 (cinco) perguntas abertas, que buscarão evidenciar o papel da
religião, pelo método APAC, na recuperação dos entrevistados. Vale dizer que todos
os entrevistados são do sexo masculino tendo em vista que o município de Paracatu-
MG ainda não possui unidade de APAC feminina. Existe muita rotatividade na APAC
de Paracatu-MG. Daí a escolha de apaqueanos que tenham contato com o método
APAC por mais de um ano, em regime fechado e semiaberto. Dados como a espécie
de crimes praticados, bem como outros dados pessoais e penitenciários sobre os
recuperandos como o tempo de pena, serão fornecidos pela direção da APAC de
Paracatu-MG que, por sua vez, já subscreveu carta de anuência que será submetida
ao juízo de execuções penais de Paracatu-MG, bem como ao Conselho de Ética da
PUC Goiás com os devidos cuidados de segredo de justiça, observância e
cumprimento das normatizações da Resolução 466/2012, bem como da Resolução
510/2016 do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional de Ética em
Pesquisa e do Ministério da Saúde brasileiros.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Indubitavelmente, as APAC’s e, notadamente a APAC de Paracatu-MG,


apresenta-se como um novo campo religioso contendo tanto fatos como fenômenos
religiosos que são fundamentais para a recuperação de condenados no sistema
penitenciário brasileiro.
Efetivamente sob a ótica de Pierre Bourdieu (1930-2002), as estruturas das
APAC’s seriam estudadas como processos sociais impessoais, como outra perspectiva
da noção de “habitus” e como uma nova gênese de estrutura de campo religioso nos
tempos contemporâneos.
O estudo da APAC de Paracatu-MG, bem como das APAC’s, no Brasil e no
mundo, por conseguinte, abrirá caminhos para o estudo de uma instituição hibrida de
caráter privado, mas que presta serviços públicos na execução de pena de
condenados no sistema penitenciário brasileiro, mostrando-se como um novo campo
de estudo para as diversas ciências interdisciplinares com o estudo da religião em
aspectos e culturas diversas, locais e regionais, que podem trazer soluções para
problemas humanitários como os ocorridos nas prisões brasileiras.

REFERÊNCIAS

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214 p.
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Martins Fontes, 1996.
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500

conductismo social. Buenos Aires: Paidós, 1972.


OTTOBONI, Mario. Vamos matar o criminoso? Método APAC. São Paulo: Paulinas,
2006, 329 p.
RIBEIRO JUNIOR, Eurípedes Clementino. A necessidade do evangelho no sistema
carcerário para viabilizar a real ressocialização. In: IX Congresso Internacional em
Ciências da Religião, 2018, GOIÂNIA, p. 154-158.
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SILVA JUNIOR, Luiz Antônio. Pastoral carcerária: fé e luta em prol dos Direitos
Humanos e contra a prática de tortura. In: IX Congresso Internacional em Ciências da
Religião, 2018, GOIÂNIA, p. 347-354. Anais.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociologia compreensiva.
Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe Barbosa; revisão técnica Gabriel Cohn.
Brasília, DF: UnB: São Paulo: Imprensa Oficial
501

ESPIRITUALIDADE NAS ORGANIZAÇÕES BRASILEIRAS:


RELIGIOSA OU NÃO RELIGIOSA? UM CAMPO DE PESQUISA
POUCO EXPLORADO

JONATHAN FÉLIX DE SOUZA


Doutorando em Ciências da Religião pela PUC-Minas e Bolsista CAPES,
Mestre em Ciências da Religião pela PUC Minas.
[email protected]

RESUMO: O tema espiritualidade nos últimos anos tem despertado o interesse da


administração contemporânea. Pretende-se, nesta comunicação, apresentar parte do
resultado da pesquisa de mestrado “INTELIGÊNCIA ESPIRITUAL: um estudo sobre o
despertar de uma espiritualidade não religiosa como qualidade humana profunda nas
organizações” realizada no Programa de Pós-graduação em Ciências da Religião
(PPGCR) da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC Minas). O caminho
proposto foi o de levantamento de publicações na base de dados da Associação
Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (ANPAD), buscando
compreender como essa espiritualidade tem sido abordada dentro das organizações.
É uma espiritualidade religiosa ou não religiosa? Qual são os/as principais autores/as
e embasamento teórico das/os pesquisadoras/es? Para a análise utilizou-se a teoria
da Epistemologia Axiológica (EA) de Corbí, como forma de perceber se a teoria em
construção está vinculada a uma perspectiva mítica ou não mítica. Apresentara-se-ar
nessa comunicação, algumas definições, conceitos, palavras-chave e principais
autores encontrados na pesquisa. Constatou-se que a discussão sobre o tema
espiritualidade nas publicações no campo das ciências administrativas tem crescido
na última década, porém ainda é incipiente. Conclui-se que o modelo de
espiritualidade nas organizações apresenta um misto de uma Epistemologia Mítica
(EM) e de uma Epistemologia não Mítica (EnM).

Palavras-Chave: Espiritualidade nas Organizações; Epistemologia Mítica;


Epistemologia não mítica.

O tema espiritualidade nos últimos anos tem despertado o interesse da


administração contemporânea. Esse movimento pode ser observado no aumento de
literaturas, seminários, workshops, programas coorporativos de educação espiritual,
retiros (BELL; TAYLOR, 2004). Diante desse cenário, realizou-se uma análise da
presença dessa temática na produção de conhecimento dentro da área das ciências
administrativas no Brasil. Para isso, prezou-se pela Spell, base de dados da Associação
502

Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Administração (ANPAD) que abrange mais


de cem programas associados.
Considerou-se o período de publicação de 1996-2005 e 2006-2019. Cabe
esclarecer que a delimitação da busca se deu pelo título das publicações,
considerando o título uma estratégia de articulação textual, que demonstra
diretamente o assunto principal que os/as autores/as pretendem apresentar. As
palavras pesquisadas foram espiritualidade e espiritual, levando em conta que ambas
são oriundas da mesma raiz.
No período de 1996 a 2005 não houve nenhuma publicação, porém, entre os
anos de 1996-2005 a área saiu de 0 (zero) publicação para 8 (oito) publicações.
Contudo, esse número duplica, em menos de três anos, considerando-se o período
de 2016-2019, com um total de 8 (oito) publicações. Em percentual, isso representa
um crescimento de 375%. Esses dados nos conduzem a uma segunda observação: em
um curto espaço de tempo (2017-2019), o número de publicações duplicou, o que
demonstra um interesse em ascensão por pesquisadores/as no campo das ciências
administrativas. Porém ainda muito incipiente, considerando o número de programas
de pós-graduação em administração no Brasil.
Esse crescente interesse em temas ligados à espiritualidade nas organizações
também é apontado por outros autores como Carneiro, Serafim e Tezza (2018), que
realizaram um levantamento de artigos publicados em revistas cientificas em bases
internacionais: EBSCO Host, Scopus e Web of Science. Os autores sistematizam as
publicações que demonstram uma relação entre ética e espiritualidade/religiosidade
nas organizações, buscando compreender os fatores que influenciam as decisões
éticas. O estudo apresenta um levantamento de 347 artigos nos últimos dez anos
(2005-2015). Os autores concluem que o tema possui relevância internacional, apesar
de sua incipiência no Brasil, e chama a atenção para a ausência de universidades
latino-americanas na amostra.
Partindo para o segundo bloco de análises, apresentamos o título das
dezesseis publicações do período analisado: (1) Espiritualidade nas organizações e
comprometimento organizacional; (2) Contribuições da liderança espiritual para o
desempenho organizacional sustentável; (3) Capital espiritual e as relações
econômicas: empreendedorismo em organizações religiosas; (4) Do ‘relho’ à ‘reza’: a
espiritualidade como estratégia de controle nas organizações; (5) Espiritualidade na
formação do administrador sob a ótica dos professores: um estudo de caso na
Faculdade Gamma; (6) Espiritualidade corporativa: realidade ou mito na visão do
profissional de secretariado; (7) The spiritually-based organization: a theoretical
review and its potential role in the third millennium; (8) Spirituality in organizations?;
(9) Espiritualidade e decisão de compra no mercado de planos de saúde; (10)
Relações entre práticas de espiritualidade e valores organizacionais sob a percepção
de jovens trabalhadores brasileiros; (11) Práticas de espiritualidade: um caminho para
o bem-estar de jovens trabalhadores; (12) Espiritualidade no ambiente de trabalho:
estudo bibliométrico da produção acadêmica nacional 2010-2014; (13) The scope and
implications of spirituality: a dual approach; (14) Espiritualidade nas organizações e
criação de conhecimento; (15) Uma análise bibliométrica da relação entre ética e
503

espiritualidade/religiosidade nas organizações; (16) Espiritualidade, convicção moral


e quebra de regras pró-sociais na área da saúde.
Podemos perceber, a partir dos títulos, que todos os artigos tratam
diretamente sobre a temática espiritualidade dentro das organizações. Além do
título, fizemos o levantamento das palavras-chave que mais se repetiram nos
dezesseis artigos. Considerando a palavra espiritualidade, ela aparece dezoito vezes
com a seguinte delimitação Espiritualidade (8 vezes), Espiritualidade nas
organizações (6 vezes), Espiritualidade no ambiente de trabalho (2 vezes),
Espiritualidade Coorporativa (1 vez) e Espiritualidade na formação do Administrador
(1 vez). Isso demonstra que a preocupação principal dos artigos é compreender a
espiritualidade e sua incidência no ambiente organizacional.
As demais palavras têm relação com a tentativa de entender o fenômeno
dentro das organizações. Nessa análise, identificamos um movimento de
compreensão da espiritualidade como uma capacidade. Podemos ver essa presença
nas palavras Necessidades Espirituais (1 vez), Capacidade Espiritual (1 vez) e
Liderança Espiritual (1 vez). Além dessas, palavras-chave como Transformação
Espiritual (1 vez), Religiosidade (1 vez), Religião (1 vez), Deus (1 vez), Doutrina Espírita
(1 vez) representam um desafio metodológico e epistemológico para o entendimento
do que seja a espiritualidade e religião.
Para analisarmos o modelo de espiritualidade apresentado nas empresas,
utilizou-se a proposta epistemológica de Marià Corbí. Merece ressaltar que Corbí
(2017) compreende a epistemologia não apenas como uma disciplina teórica, mas
também uma forma coletiva de pensar e de sentir, que muda ao longo do tempo. Ao
criar uma categoria de análise, que ele nomeia de epistemologia axiológica, Corbí
define que uma Epistemologia Mítica (EM) é aquela apoiada em mitos, teorias e
palavras como descrição da realidade. Nesse modelo, apoiado em um padrão
fixo/recebido, as pessoas interpretavam a espiritualidade como revelação divina ou
legado dos nossos antepassados. Já na Sociedade de Conhecimento, que está
fundada em um paradigma de mudança contínua, um caminho para a compreensão
de uma espiritualidade não religiosa precisa passar por uma Epistemologia não Mítica
(EnM), um caminho com padrões construídos e sustentados por nós mesmos, pois
toda a construção e interpretação da realidade é modelação humana de um ser
vivente necessitado.
Apresentamos algumas definições encontradas sobre espiritualidade nas
organizações. Tecchio, Cunha e Santos (2016) apontam que a espiritualidade nas
organizações é para suprir a necessidade de quatro fatores: a procura de significado
no trabalho, que pode ser identificado nas formas que os colaboradores expressam
seus comportamentos nas organizações; para melhorar o desempenho
organizacional, acreditando que um trabalho humanizado gera uma situação de
ganha-ganha entre empregado e empregador, gerando também comportamento
ético e satisfação no ambiente organizacional; para reagir à ganância corporativa,
um alinhamento entre a busca por ganho financeiro e os valores
pessoais/organizacionais; e necessidade de se conectar com outras pessoas.
504

É preciso frisar que a adesão aos temas de humanização no campo da


administração vem sofrendo críticas nas últimas décadas principalmente no que
tange ao seu caráter de instrumentalização, que está no cerne dos diversos modelos
de gestão. Para Bell e Taylor (2004, p. 74), esse caminho é “uma forma de se
conviver com o capitalismo por meio do consumo consciencioso e do amor ao ‘eu’”.
Contudo, existem contrapontos que enxergam possibilidades de humanização do
ambiente de trabalho. Já Emmons (1999, p. 91, tradução nossa) define a
espiritualidade como uma “tentativa de identificar o que é sagrado e digno de
devoção”. Outros apresentam que o conceito espiritualidade é “também a crença de
que existe um poder ou deus superior” (MITROFF; DENTON, 1999, p. 46).
Em outro artigo, Vasconcelos (2015, p. 186) explica que “se as pessoas são a
obra-prima da criação de Deus neste planeta, não faz sentido zombar de suas
necessidades”. O autor explica que, nas sociedades anteriores, nossos ancestrais
“estavam essencialmente se conectando com um poder superior e encenando uma
espécie de ritual espiritual” (VASCONCELOS, 2017, p. 602). Para outros a
espiritualidade é o medo que é sentido na presença “do transcendental, o sagrado
em tudo, no cotidiano; um profundo sentimento de interconexão com tudo; paz
interior e calma; uma fonte inesgotável de poder e compromisso; é a essência final”.
(TECCHIO; CUNHA; SANTOS, 2016, p. 595).
Podemos analisar, nessas citações, expressões que se apoiam em um sistema
de crenças religiosas, uma compreensão que podemos afirmar que passa por uma
EM. Esses indicadores aparecem nos seguintes elementos: sagrado, devoção, poder
superior, alma, vida corpórea, Deus, presença do transcendental. Percepções que
passam também por Briskin (1997), Goertzen e Barbuto (2001), Karakas (2010), Fry e
Slocum Jr. (2008). Contudo, alguns autores explicam o fenômeno com uma
característica humana, que independe da religião. Afirmam que

[...] o homem vive e constrói significados sobre seu cotidiano


considerando uma espécie do cálculo utilitário de consequências. Ou
seja, a forma como os sujeitos se organizam na sociedade representa
uma lógica que deixou de centrar-se na religião (como acontecia no
período da antiguidade) e passou a buscar explicações com base na
lógica da razão. (SILVA; DURANTE; BISCOLI, 2017, p. 7).

Autores como Tecchio, Cunha e Santos (2016, p. 598), mesmo apresentando


elementos de uma EM, afirmam que a espiritualidade contempla três aspectos: “1)
reconhecimento e aceitação da responsabilidade que cada indivíduo tem em relação
ao bem comum; 2) compreender a interconexão entre vários aspectos da vida; 3)
prestação de serviços à humanidade e ao planeta.”
Em alguma medida, essas duas citações apresentam um modelo de
espiritualidade a partir da vivência do cotidiano, que não depende da religião
institucional, ideias comungadas de certa forma por Ashmos e Duchon (2000),
Milliman, Czaplewski e Fergusson (2003), Giacalone e Jurkiewicz (2003), Cavanagh
505

(1999), Rego, Cunha e Souto (2007), Mitroff e Denton (1999), Zohar e Marshall
(2006), Bradley e Kauanui (2003), Souza, Gerhard e Pinto (2017).
O que podemos inferir é que a espiritualidade nos artigos, aparecem como um
elemento que está para além do espaço institucional religioso, e o seu cultivo não
depende dele. Porém, isso não quer dizer que está desvinculada do religioso. É
preciso ressaltar que o desafio conceitual e a delimitação do que seja espiritualidade
não é consensual nem mesmo na teologia e nas ciências da religião. Segundo Calvani
(2014), o termo é vago e impreciso, invoca diferentes situações e carece de uma
reflexão teórica capaz de apontar sua formação histórica, forma de desenvolvimento
e aplicações.
Em nossa análise, podemos identificar que mesmo com a tentativa de separar
religião e espiritualidade, o modelo de espiritualidade organizacional vem com uma
roupagem mítica numa tentativa de não ser mítica. Outra questão levantada na
pesquisa foi sobre o interesse/intencionalidade pela temática dentro das
organizações. Percebemos que são diversos, dentre eles o reconhecimento de uma
vida interior, que é alimentada pela realização de um trabalho com significado. A
espiritualidade é uma forma de dar significado ao que se faz, gerando um laço afetivo
mais forte, lealdade e mais produtividade; valorizando o colaborador não como um
recurso, mas como pessoa humana. (REGO; CUNHA; SOUTO, 2007).
Outros autores pontuam que a espiritualidade estimula a criatividade e a
inovação, bem-estar, e a eficácia nas tarefas (JULIÃO; NASCIMENTO-SANTOS; PAIVA,
2017). Salientam que a dimensão da espiritualidade (senso de comunidade, trabalho
com significado e vida interior) é influenciadora na criação de conhecimento,
contribuindo diretamente na eficácia organizacional (TECCHIO; CUNHA; BRAND,
2018).
Aqui gostaríamos de inferir que essa discussão colabora com a compreensão
do que seja uma espiritualidade não religiosa, como um “modo alternativo de manter
o que se entende por espiritualidade desvinculando-a das formas institucionalizadas
de religião” (CALVANI, 2014, p. 676). Conforme se pôde constatar, a discussão sobre
o tema espiritualidade está presente nas publicações no campo das ciências
administrativas e tem crescido na última década.

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ZOHAR, Danah; MARSHAL, Ian. Capital espiritual: usando as inteligências racional,
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de Evelyn Kay Massaro. Rio de Janeiro: Best Seller, 2006.
508

O JOVEM UNIVERSITÁRIO E SUA EXPERIÊNCIA DE


ESPIRITUALIDADE NA CONTEMPORANEIDADE

DÊNIS NUNES DE ARAÚJO


Mestrando em Ciências da Religião
Universidade Metodista de São Paulo (UMESP) e Bolsista CAPES
[email protected]

RESUMO: Esta pesquisa visa trazer uma reflexão hermenêutica da caracterização da


espiritualidade da juventude universitária brasileira, a qual está inserida em um
ambiente do predomínio da cultura contemporânea secular. A universidade é o
ambiente que predomina as fontes principais da busca do conhecimento científico.
Este é um contexto de predominância da secularização ocorre em toda a sociedade, o
qual traz consigo as marcas do pluralismo que intensificam, como a crise das
instituições, o indiferentismo religioso, a crise de fé, a dessacralização, os “sem
religião” e o trânsito religioso, aspectos que podem ser verificados em dados
coletados pelo IBGE e em trabalhos acadêmicos realizados em ambiente
universitário. Este estudo tem sido objeto de pesquisas para muitos escritores e
pesquisadores no Brasil, existem em alguns trabalhos acadêmicos que buscam
compreender o perfil da juventude atual e suas experiências. Diante da cultura de
predominância do pluralismo religioso, a caracterização da Juventude e sua
espiritualidade se dão de forma plural. Na cultura atual é impossível caracterizar a
juventude universitária e sua espiritualidade de forma homogênea, mas sim de forma
heterogênea. A cultura atual deu ao jovem uma liberdade de suas escolhas, inclusive
a liberdade de nada escolher, dentre estas escolhas destaca-se a espiritualidade, ela
não é mais regida por uma doutrina ou instituição que regulamente. O jovem
universitário pós-moderno está inserido em uma cultura de secularização. O
ambiente universitário é propício para o conhecimento científico e
consequentemente é o maior propagador do secularismo, o qual não define o fim da
religião, mas coloca todas as opções de espiritualidade religiosa como destaque para
as escolhas individuais. Objetiva-se a buscar o entendimento da categorização sobre
juventude, bem como, o termo espiritualidade através de levantamento bibliográfico
e pesquisas empíricas já realizadas no meio acadêmico, com análises e apontamentos
que possam colaborar para a busca da vivência da alteridade e do diálogo em uma
realidade marcada pelo pluralismo. O presente trabalho é descritivo-analítico e
pretende verificar a existência da pluralidade em torno da conceituação sobre
juventude e espiritualidade. Portanto, após essa compreensão de um contexto
marcado por transformações profundas com novos paradigmas de perspectivas
culturais, religiosas, sociais e políticas, será possível a resolução do problema sobre o
que caracteriza a espiritualidade da juventude universitária brasileira. Entre os
509

trabalhos empíricos publicados, há uma caracterização da espiritualidade da


juventude universitária e, essa vivência é uma abertura para o diálogo é uma
experiência de espiritualidade dialogal de libertação.

Palavras-chave: Juventude; Espiritualidade; Universidade; Diálogo; Modernidade.

Esta pesquisa tem objetivo de verificar a relação da juventude universitária e


suas experiências de espiritualidade, em um ambiente universitário marcado pela
predominância do conhecimento científico, há necessidade de verificar esse perfil. Ao
percorrer essas reflexões, esta pesquisa pretende analisar a espiritualidade da
juventude universitária, inserida no ambiente amplamente científico e acadêmico,
para definir a relação com a sociedade, a abertura ao diálogo em um ambiente
acadêmico e cultural totalmente em um contexto de pluralismo religioso, este seria
capaz de levar a um diálogo de construção, na experiência com o outro, a uma
experiência de alteridade. Este trabalho pretende demonstrar que o pluralismo na
juventude universitária tem potencialidade de abertura para o outro, a alteridade,
desta forma, torna-se possível analisar a existência de uma realidade de
espiritualidade dialogal, uma experiência de alteridade entre a juventude
universitária, uma espiritualidade de libertação.
As definições do que é ser jovem tem mudado ao longo do tempo, há varias
observações que se fazem necessárias para a compreensão, tanto em âmbito político
quanto o cultural, “lembrar que ‘juventude’ é um conceito construído histórica e
culturalmente já é lugar-comum. As definições sobre ‘o que é ser jovem?’, ‘quem e
até quando pode ser jovem?’ tem mudado no tempo e são sempre diferentes nas
diversas culturas e espaços sociais” (NOVAES In: ALMEIDA, 2006, p.105). Existem
vários segmentos juvenis, os quais tem voz ativa diante da sociedade para com seu
grupo delimitado por parcelas da juventude, mas não conseguem uma unicidade por
todos aqueles que fazem parte desta mesma faixa etária. O limite de idade para
definir a juventude não daria conta de corresponder a todos, definir que são aqueles
nascidos há 14 ou 24 anos, não englobariam aqueles que muitas vezes não são
alcançados pelas estatísticas do mercado de trabalho, outros alargam a juventude até
os 30 anos, “qualquer que seja a faixa etária estabelecida, jovens com idades iguais
vivem juventudes desiguais” (NOVAES In: ALMEIDA, 2006, p.105). Juventude é uma
palavra polissêmica, é cheia de experimentação, é algo que está em construção, “em
nossa modernidade avançada, a juventude não está mais circunscrita a uma
compreensão dicionária, biológica ou etária, mas é percebida como cruzamento de
múltiplas determinações: culturais, econômicas e biográficas” (RIBEIRO, 2009, p.
109). A juventude é o período da abertura e do distanciamento de ambientes mais
elaborados, “os múltiplos arranjos daí resultantes evocam a pluralidade, pois não há,
na prática, ‘uma’ juventude e sim ‘juventudes’, com histórias, potencialidades e crises
diferentes. Realidade polissêmica, a juventude é um enigma, uma experimentação,
uma construção” (PERRETTI, 2015, p. 430).
510

Não se deve ater somente ao termo juventude no singular, mas sim


juventudes, no plural, pois existe uma multiplicidade de identidades, posições e
vivências de um mundo globalizado, marcado por rápidas mudanças nos padrões de
sociabilidade e também no modo de vivência do espaço público. A juventude
moderna é marcada pela diversidade, várias são as formações de grupos, como
grupos culturais, grupos religiosos, grupos de afirmação sexual entre outros; “desta
forma, para além das desigualdades e diversidades presentes entre os/as jovens,
torna-se possível pensar juventudes, no plural, sem abrir mão de buscar sua
singularidade” (NOVAES, 2009, p.19). A diversidade da categoria juvenil se forma com
a transição do momento histórico, social e econômico que são responsáveis pela
mudança do modo de viver do ser humano, que, segundo Tavares e Camurça, há um
“alargamento” da ideia de juventude “uma intensificação da comunicação de
identidades, realidades sociais e culturais e experiências geracionais, tornando
bastante complexo o fenômeno da(s) juventude(s) na interface com a(s)
religião(ões)” (TAVARES; CAMURÇA, 2004, p.23).
O pluralismo é a marca fundamental da secularização, especificamente o
pluralismo religioso, que “falar em pluralismo religioso, hoje é o mesmo que falar de
compreensão da religião que ultrapassa os limites da tradição”. (SANCHES, 2010, p.
37). O sujeito passa a ser o centro, com isso as expressões religiosas precisam fazer
recortes que muitas das vezes não são vinculados às grandes tradições religiosas.
Nesta compreensão o meio universitário expressa essa pluralidade de concepções
sobre a questão religiosa.
A Universidade busca levar e aprofundar a pessoa no conhecimento e na
busca das verdades científicas, é missão descobri-las e comunicá-las, muitas das
vezes o conhecimento científicos está inserido em uma pluralidade de sentidos, “essa
busca da verdade implica uma pluralidade de conhecimentos, ela está de forma
inalienável comprometida com a busca da verdade acerca da natureza humana, a fim
de mostrar o significado da existência humana” (FRIZZO, 2012, p. 39). A sociedade
está marcada pela razão, como um fator instrumental, por isso a universidade é
produtora de ciência e tecnologia, em algumas vezes se torna indiferente àquilo que
se refere a questões de ameaças à dignidade do ser humano e à destruição do
planeta, “a universidade é o lugar da pergunta, da reflexão e da busca de sentido. É o
espaço privilegiado para a descoberta e a vivência da vocação profissional” (CNBB
102, 2013, n. 04).
O contexto cultural e social tem um peso muito grande na definição da
religiosidade da juventude, “o perfil de uma juventude plurirreligiosa, urbana,
secularizada, hipercrítica da cultura atual, moderna e globalizada pesa na
transformação da experiência religiosa e de fé dos jovens” (PERRETTI, 2015, p. 431), a
pluralidade de cosmovisões é a base para que a juventude na contemporaneidade
possa experimentar e definir a sua experiência religiosa, uma visão acelerada de
vários fatores e acontecimentos sociais são as características fortes deste momento,
um diversidade de visões em vários âmbitos da sociedade, a visão tradicional da
religião não é mais heterogênea, há uma transformação acelerada em fatores
políticos, econômicos, sociais, históricos e culturais, “diante deste tema tão vasto e
511

rico, as representações do transcendente são as mais variadas e a vivência do


sagrado não só se fecunda dentro da religião, mas em todos os âmbitos da vida com
uma diversidade de possibilidade de manifestação” (PERRETTI, 2015, p. 431). Na
atualidade pode estar surgindo uma nova configuração, em que a pessoa deixa a sua
fase de juventude para assumir a suas responsabilidades de adulto, uma nova
caracterização da transição desta fase, “podemos estar mesmo falando de um novo
modelo cultural de transição para a idade adulta, em que (inclusive pelas razoes
econômicas) o fim da juventude não implica independência financeira dos pais”
(ABRAMO, 2011, p. 60), e para a maioria da população nesta fase da juventude, a
família é o lugar em que se faz necessário para experimentar as variadas situações
humanas, é uma estrutura importante para as tomadas de decisões no decorrer do
processo da vida humana, o jovem tem a família “como referência afetiva, como
referência ética e comportamental e para o próprio processo de amadurecimento”
(ABRAMO, 2011, p. 60).
O termo espiritualidade é polissêmico. A definição ocorre somente por
aproximações, não há definição única. O termo espiritualidade é carregado de uma
conotação de pluralidade, o qual pode, até mesmo, ser usado no plural:
espiritualidades. Muitas são as tentativas de definir a espiritualidade, mas ela se
pauta na busca de cada indivíduo por respostas aos seus anseios mais profundos, são
necessidades humanas, vinculadas à realidade de cada indivíduo. A espiritualidade
encontra o seu fundamento no espírito, que é a realidade mais profunda da
personalidade humana, é onde ocorrem os sentimentos humanos. As atitudes
humanas e pessoais marcam essa profundeza. O ser humano retira desta
transformação algo que pode modificar a sua vida e, o meio onde está inserido.
Especificamente o centro desta pesquisa é definir qual o tipo de
espiritualidade que a juventude universitária traz consigo, na atualidade, chamada de
“pós-modernidade”, quais seriam as características de espiritualidade que a
juventude universitária tem em suas experiências com o transcendente? Definir o
que é espiritualidade em tempos de pós-modernidade, se faz necessário, para uma
melhor compreensão desta dimensão desta vivência universitária, “a espiritualidade
é aquela atitude que põe a vida no centro, que defende e promove a vida contra
todos os mecanismos de diminuição, de estancamento e de morte” (BOFF, 2009, p.
84), de acordo com esta caracterização, o que opõe ao espírito não é o corpo, mas
sim a morte. A espiritualidade se refere ao que vem de Espírito. Várias são as visões
sobre espírito e matéria, como a visão grega que faz esse contraponto, é uma
espiritualidade que afirma a dimensão da alma em oposição ao mundo do corpo, a
matéria; na tradição semita, a dimensão da espiritualidade afeta o ser humano por
inteiro, como “corporeidade, sexualidade, sensibilidade, espiritualidade, envolvendo-
o pelo mundo divino. Fala-se então de espiritualidade unitária, criatural” (LIBÂNIO,
2011, p. 361). Na contemporaneidade, a chamada pós-modernidade, surge novas
interpretações e propostas para a definição do termo espiritualidade, não há uma
distinção entre matéria e espírito, é a chamada espiritualidade teocósmica, surge a
influencia da Nova Era, “ela responde à sede de espiritualidade que a sociedade
consumista, materialista, violenta, competitiva, hedonista, destruidora da natureza
512

tem provocado” (LIBÂNIO, 2011, p. 362). Nessa perspectiva, surge a vivência religiosa
da chamada Nova Era (New Age), “não se trata somente da superação do
Cristianismo por meio de uma nova religião universal, mas vive-se uma efervescência
mística muito mais ampla que o projeto de uma religião única” (LIBÂNIO, 1997, p.
15).
Nenhuma religião tem o monopólio da espiritualidade, pois ela é o caminho
codificado por cada ser humano, é a capacidade que o ser humano tem de diálogo
consigo, com o outro e com o espiritual, “essa dimensão espiritual que cada um de
nós tem se revela pela capacidade de diálogo consigo mesmo e com o próprio
coração, se traduz pelo amor, pela compaixão, pela escuta do outro, pela
responsabilidade e pelo cuidado como atitude fundamental” (BOFF, 2001, p. 80). A
espiritualidade é oposta ao sentido dominante que sempre imperou em várias
culturas e contextos diferentes, inclusive na contemporaneidade o que prevalece é o
espírito do mercado, que é marcado fortemente pelas relações de consumo, pela
concorrência e pelo negócio visando interesses e lucros, numa luta desenfreada do
individualismo. No ambiente plural e diverso que é a universidade, percebe-se que há
vertentes da religiosidade crente e secular entre os universitários. O jovem
contemporâneo está imerso em um mundo secular, em uma fase de busca por
conhecimento e de busca de sentido para a existência que enfrentará na fase adulta,
por isso busca firmar estes sentidos em ambientes que lhes proporcione segurança,
como a família e a religião; a religiosidade pode ser uma base de busca que a
juventude faz para “guiar-se por alguma direção para tomar decisões estratégicas
que serão determinantes para o resto de sua vida” (RIBEIRO, 2009, p. 110).
Historicamente, há uma predominância do sincretismo religioso, desde o
início da colonização do país, houve várias metamorfoses referentes à crenças
religiosas, como a sincretização de crenças indígenas, africanas ao catolicismo oficial,
mais tarde o princípio da laicidade norteou a instauração da República brasileira,
“ficamos intrigados com o crescimento dos ‘sem religião’ e, ao mesmo tempo, do
espiritismo; com o vigor e as combinações dos pentecostalismos cristãos, além das
crises e renovações do catolicismo” (PANASIEWICZ, 2015, p. 1861), entre os jovens a
categoria “sem religião” é um destaque, ela se dá de forma mais abrangente que em
outras faixas etárias.
Muitos jovens que se declaram “sem Deus”, “sem Religião”, desenvolvem,
talvez, seu ateísmo ou seu agnosticismo como uma rejeição, não especificamente
contra Deus, e sim contra as crenças que foram herdadas e as práticas das quais
participavam anteriormente como pertença familiar. Há um resíduo de crença em
algumas frases pronunciadas pelos jovens universitários pesquisados, “‘percebo Deus
como um ser pessoal’, ‘ter fé é mais importante que ter crenças e religiões’, ‘uma
crença ou ritual são verdadeiros se produzem efeito positivo em minha vida’”
(RIBEIRO, 2009, p. 162).
Na pós-modernidade a espiritualidade ganhou uma dimensão de libertadora
de qualquer realidade de aprisionamento, dentre elas a institucional. Ela busca a
liberdade até mesmo da realidade que a secularização impôs, a qual houve a
substituição do Deus transcendente institucionalizado por um deus imanente como a
513

ciência, o consumo e o mercado, a espiritualidade da pós-modernidade busca a


libertação de todos esses domínios.
Diante de toda essa realidade encontra-se a juventude universitária, a qual
pode-se perceber a sua desvinculação de pertença institucional, mas há uma grande
busca por aquilo que transcende a sua realidade. O jovem universitário está inserido
em um ambiente acadêmico científico, um ambiente onde a reflexão está vinculada a
todos os aspectos da secularização e das características da pós-modernidade, com
isso é possível compreender que os jovens universitários buscam valores espirituais,
mas estes, na sua maioria das vezes, desvinculados de quaisquer instituição religiosa
ou, provindos de uma autoridade religiosa. É a valorização pessoal e individual em
detrimento da relação institucional. As instituições não são valorizadas como
norteadoras e reguladoras da conduta humana. há uma maior valorização da forma
de crer, e para isto o jovem não precisa se firmar em uma instituição religiosa, ou
acadêmica para justificar o que ele acredita, de forma individual. Para os
universitários, as instituições religiosas não são portadoras exclusivas da verdade
religiosa, é uma justificação que nas reflexões acadêmicas os jovens universitários
colocam em questão as decisões institucionais, sentem-se livres para criarem
conceitos que são até mesmo contrários às doutrinas e posições religiosas. A
juventude universitária está em busca de aprofundar o conhecimento científico, não
tem preocupação primordial em buscar uma religião ou espiritualidade. O jovem pós-
moderno tem a liberdade para fazer as escolhas que mais lhe convém. É uma
liberdade na qual ele não precisa se sentir vinculado às suas escolhas. Ele não está
obrigado a pertencer aquele grupo religioso no qual fez alguma experiência de
espiritualidade, ele pode buscar em diversos grupos religiosos e espiritualidades para
formar a sua espiritualidade diversa e plural, e/ou após essa procura chegar à
conclusão que não quer seguir nenhuma delas, os jovens se sentem autônomos em
suas escolhas pessoais, principalmente no que se refere à sua espiritualidade.

REFERÊNCIAS

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H.; BRANCO, P. (Orgs.). Retratos da juventude brasileira: análise de uma pesquisa
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FRIZZO, Edson Roberto. (dissertação). A religião e a religiosidade dos universitários
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514

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NOVAES, Regina. Os jovens de hoje: contextos, diferenças e trajetórias. In:
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PANASIEWICZ, Roberlei; ARAGÃO, Gilbraz. Novas fronteiras do pluralismo religioso
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PERRETTI, Clélia. Religiosidade e protagonismo das juventudes universitárias.
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RIBEIRO, Jorge Cláudio. Religiosidade jovem: pesquisa entre universitários. São
Paulo: Loyola: Olho d’agua, 2009.
SANCHES, Wagner Lopes. Pluralismo religioso: as religiões no mundo atual. 2ª ed.
São Paulo: Paulinas, 2010.
TAVARES, F.R.G.; CAMURÇA, M.A. “Juventudes” e religião no Brasil: uma revisão
bibliográfica. Numen: revista de estudos e pesquisa da religião. Juiz de Fora, v.7, n.1,
2004.
515

ECOLOGIA E ESPIRITUALIDADE
UMA INTERDEPENDÊNCIA A SER RESGATADA

DÉBORA MENEZES SILVA FERREIRA


Mestranda em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
[email protected]

RESUMO: A presente comunicação propõe analisar as novas perspectivas de


compreensão da ecologia e como assemelha-se com conceitos da espiritualidade. A
partir da fragilidade da presença do homem em harmonia com a natureza, faz-se
relevante questionar uma busca de sentido existencial que envolva uma consciência
mais unificadora, global e uma percepção integral entre todos os seres viventes. Ao
analisar as categorias, busca-se pontos de contatos entre os seres humanos e a
natureza e supostas possibilidades de integração, que se constroem em uma relação
que integra o ser humano consigo mesmo, com seu meio e os seres viventes. A
pesquisa tem como objetivo, perceber noções de integração entre as categorias, cujo
contato é a concepção de uma íntima relação do ser humano e a natureza. Esse fator
cria contextos em que os seres humanos possam interagir, considerando as novas
concepções que buscam um despertar de consciência e novas projeções para
contemporaneidade. A pesquisa se ampara pelo método da revisão de literatura, por
autores se empenharam em discorrer sobre as categorias levantadas. A proposta da
revisão é reunir e sintetizar as evidências disponíveis na literatura, buscando perceber
a integralidade do tema proposto, a partir da compreensão e supostos
questionamentos. Para tanto nota-se que as categorias Espiritualidade e Ecologia são
percebidas para além de um perfil sociológico de relação entre ser humano e
natureza, como também ela está além de uma dimensão ética e religiosa, a relação
pode estar associada ao um desenvolvimento da Espiritualidade, com novas
aspirações de ser, que buscam ajustes na maneira de estar, como uma nova escolha
de vida.

Palavras-chave: Ecologia; Espiritualidade; Integração.

Percebe-se que a ciência ecológica desde a criação de seu termo em 1869, pelo
biólogo alemão Ernst Haechel (1834-1919), vem sendo desenvolvida a partir de suas
raízes biológicas, encontrando abertura para novas percepções, que integram as
ciências naturais e sociais. Segundo Giardina (apud VATTIMO 2015, p.26), em suas
reflexões sobre o caminho da ecologia, esclarece que até a metade do século XX, a
ecologia era uma ciência empírica dependente da biologia e fundamentada pelo seu
516

criador. Os fenômenos naturais eram analisados em seus sistemas a partir de seus


respectivos habitats.
A partir do avanço da ciência biológica, novas percepções foram transformando
a visão do habitat como processo de integralidade, desde o maior ao menor
ecossistema. Assim, compreender a ecologia enquanto sua etimologia grega,
composta pelas palavras: oikos, que significa casa, e logos, que sugere reflexão ou
estudo, nos conduz para uma análise a respeito das condições e as relações que
formam o habitat dos seres viventes.
Na perspectiva do pensador Capra (2006) o conceito de ecossistema foi
ampliando suas percepções de sistema para sistêmicos. Ou seja, o estudo dos seres
viventes passa por novas percepções, demonstrando que tudo está interligado e é
interdependente. Neste mesmo sentido Boff (2008, p.21) define ecologia,
compreendendo o todo em si, que se constitui em conexões por todos os lados.
Assim, falar em ecologia não se limita em abordar uma ecologia natural, mas uma
relação que envolve a cultura e a sociedade.
A física favoreceu com grandiosas contribuições a percepção do pensamento
sistêmico. Segundo Boff (2008, p.56), a física abriu novas compreensões para se
repensar a nova percepção da biologia sobre a vida, obtendo ajuda da física quântica,
proporcionando assim uma nova visão dos organismos vivos e o cosmos.
Para tanto Boff (2008, p. 56,57) buscou exemplificar esta contribuição da física
a partir de vários critérios, primeiramente a questão da não linearidade (não existe a
simples relação de causa e efeito, o que existe é a teia simultânea e permanente de
relações globais), em segundo a questão da dinâmica ( todas as partes de um sistema
estão em permanente movimento, ou seja, o organismo não encontra sua
estabilidade pela fixação de suas leis, mas pela capacidade de adaptação e equilíbrio
dinâmico).
Em terceiro é o caráter cíclico (o crescimento não é linear. Degradação e morte
pertencem à vida. A morte é uma invenção da vida, e não do indivíduo. A natureza
não é biocêntrica, mas encocêntrica, pois ela visa ao equilíbrio entre vida e morte
numa perspectiva de manutenção do todo), em quarto a ordem estruturada (cada
sistema compõe-se de subsistemas, e todos são parte de um sistema ainda maior. O
ser humano é parte do sistema humanidade. A humanidade é parte do sistema
animal, vegetal, enfim, do organismo Terra).
Em quinto a autonomia e integração (cada sistema é autônomo e ao mesmo
tempo relacionado – portanto, possui identidade própria, mas é aberto de tal forma
que sempre se encontra num processo de integração com todos os elementos do
meio).
E por último, a sexta questão que se refere a auto-organização e a criatividade
(cada sistema complexo, como o sistema nervoso central, tem a propriedade de
estruturar a si mesmo. À medida que funciona, também se estrutura, num processo
contínuo de aprendizado e decisão).
Portanto na perspectiva de Boff (2008, p.57) a criatividade é intrínseca aos
seres vivos, e o sentido da evolução é propiciar cada vez mais capacidade de criação.
O ser humano é, por excelência, um ser criativo. Para tanto, se faz necessário
517

repensar suas próprias criações, que no decorrer do tempo se transformaram em


reflexos que são espelhados nas crises ambientais.
Isto posto, percebe-se que a ecologia levou o ser humano a questionar sua
posição diante da natureza, por sentir necessidade de reavaliar o consumo, o
trabalho, o lazer, a saúde, em razão das grandes catástrofes ambientais que
condenam a vida, necessitando assim de um olhar ecológico mais “profundo”.
Pode-se dizer que as crises, tanto as ecológicas quanto sociais, têm uma
mesma origem – a desconexão do ser humano consigo mesmo e com o ambiente em
que vive. Neste sentido, refletir sobre a “casa”, tentando desvendar à função original
do habitat, em
uma dimensão ecológica profunda, seria buscar o sentido mais profundo de como
relacionamos com ela. A intenção da ecologia profunda é justamente reconectar o
que a ciência moderna184 separou.
Portanto é nesta perspectiva que a ecologia profunda, busca desenvolver-se,
de maneira mais sensível e significativa, propiciando uma mudança fundamental da
compreensão humana, o que pode implicar, em linhas gerais, uma extraordinária –
embora ainda não muito bem sentida e/ou pouco avaliada – transformação cultural.
Mas em que contexto a espiritualidade se conecta com a ecologia? E o que é
espiritualidade? Na perspectiva de Jean Claude Betron (apud BERGERON,1999, p.1) a
espiritualidade é como um empreendimento pelo qual o ser humano tende a unificar
sua experiência de vida, favorecendo o autodesenvolvimento. Sendo que esta
experiência pode estar ou não ligada a uma religião. Nesta perspectiva, o autor
Bergeron (1999, p.2) busca um olhar atento, para perceber o prenúncio da
espiritualidade neste terceiro milênio.
Primeiramente Bergeron (1999,p.2) prenuncia que a espiritualidade do futuro
deverá estar ciente das grandezas e misérias da cultura e condições de vida e ao
mesmo tempo revela a possibilidade um novo ser humano, um “homo noetucus 185,
consciente de sua própria subjetividade, que reconhece sua dimensão religiosa e o
divino dentro de si mesmo.
Este novo ser humano, tende a ser crítico o suficiente em relação a
modernidade tecnológica, à razão instrumental e funcional, e ao mesmo tempo será
simpático com as abordagens intuitivas, será mais pluralista e planetário. Neste
contexto, Bergeron (1999, p.6) afirma que a espiritualidade do futuro será conhecida
numa perspectiva antropológica. Assim, para falar do homem de amanhã, ela deve

184
O nascimento da ciência moderna foi precedido e acompanhado por um desenvolvimento do pensamento
filosófico que deu origem a uma formulação extrema do dualismo espírito/matéria. Essa formulação veio à tona
no século XVII, através da filosofia de René Descartes. Para este filósofo, a visão de natureza derivava de uma
divisão fundamental em dois reinos separados e independentes: o da mente (res cogitans) e o da matéria (res
extensa). A divisão cartesiana permitiu os cientistas tratar a matéria como algo morto e inteiramente apartado
de si mesmos, vendo o mundo material como uma vasta quantidade de objetos reunidos numa máquina de
grandes proporções (CAPRA, 2011, p. 35).
185
Homo Noeticus é um conceito que resume uma profecia antropológica apoiada por Pierre Teilhard
Chardin, que vê o Homo Noeticus como o ponto de chegada (“novo homem”) do futuro processo evolutivo da
espécie humana. O termo Homo noeticus foi usado por alguns expoentes das correntes da Nova Era para se
referir a um estágio evolutivo futuro da humanidade.
518

apresentar-se como uma opção fundamental da vida e um horizonte que dá sentido à


existência.
Logo, para Bergeron (1999,p.5) a espiritualidade não pretende definir a relação
do humano com Deus, mas a relação do ser humano consigo mesmo, ela se ocupa
principalmente deste relacionamento, assim, falar de espiritualidade, não é falar de
algo fora de nós, é falar de um relatório para o mundo que é seu.
Portanto, esta experiência humana, assim compreendida, contribui para que o
ser humano saiba contornar as adversidades da vida, a tornando um compromisso
perante o mundo. Para Bergeron (1999, p.6) caso a espiritualidade não assuma esta
experiência, ela se torna fuga do mundo sob pretexto de dedicar à contemplação, ao
exercício espiritual.
A espiritualidade segundo Bergeron (1999, p.7) não é proposta de maneira
imaterial e etérea, e sim, ela propõe redefinir a relação do ser humano com o mundo.
Em qualquer lugar, seja no escritório, universidade, laboratório, oratório, natureza
etc., são lugares onde deve desabrochar a vida espiritual.
Neste contexto, o ser humano precisa habitar a ação, é na consciência de seus
atos que a espiritualidade aflora. Um dos primeiros efeitos da espiritualidade do
futuro, alegados por Bergeron (1999, p.11) surgem primeiramente de um ponto de
vista epistemológico, pois a espiritualidade do futuro é chamada a repensar a
dualidade (sujeito e objeto) ao buscar o conhecimento. Esta nova procura por uma
harmonia cósmica, supõe um modo de conhecimento que resulta pela comunicação
entre o sujeito e objeto, desse modo, Bergeron (1999,p. 12) introduz a subjetividade
no ato de conhecer, buscando dissolver, as antíteses entre fé e razão, mito e conceito,
ciência e consciência, morte e vida.
O segundo efeito da espiritualidade ressaltado por Bergeron (1999, p.13), diz o
quanto a relação da natureza e a espiritualidade, deverá superar a distinção entre o
ser humano e a natureza pela qual provocou uma crise ecológica. A nova
espiritualidade tente a ressignificar esta relação, saindo do espírito de dominação
para harmonia, da exploração ao respeito, da destruição à comunhão, de uma
concepção mecanicista do mundo a uma visão orgânica. Em suma, a nova
espiritualidade que virá, será capaz de reintegrar o ser humano na natureza, no
âmbito de uma reinterpretação global do mundo.
Dessa maneira, para Bergeron (1999, p.16) a nova espiritualidade desperta
uma dimensão profunda do ser humano, pois o ser humano é mais que um ser que
produz, funciona, projeta. O ser humano significa também saber ouvir os mistérios
das coisas, contemplar a realidade, se reencontrar com a natureza e consigo mesmo,
refletir sobre o sentido da existência.
Neste aspecto levantado, a nova espiritualidade, a espiritualidade do terceiro
milênio em toda dimensão apresentada por Bergeron (1999), se revela com pontos
semelhantes da ecologia profunda, mas como aspectos e qualidades destinado a uma
minoria diante das massas sociais.
519

REFERÊNCIAS

AlVIM, R. G. Ecologia Humana: da visão acadêmica aos temas atuais. Maceió-Alagoas:


Edufal, 2012.
ALTIMICKS. Alfons Heinrich. Principais paradigmas da pesquisa em educação
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Disponível em:
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520

A FILOSOFIA COMO EXERCÍCIO ESPIRITUAL NO


PENSAMENTO DE PIRRE HADOT

MARCELO GABRIEL DE FREITAS VELOSO


Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
[email protected]

RESUMO: Pretende-se nesta comunicação abordar e discutir o tema A Filosofia como


exercício espiritual no pensamento de Pierre Hadot. Como ponto de partida, trata-se
de estabelecer, por meio do que ele denomina Exercícios Espirituais, uma certa
distinção entre filosofia antiga e moderna. Aquela, definida, principalmente por
constituir uma “maneira de viver”. O intuito é recolocar a discussão conceitual sobre
o conflito existente entre duas concepções distintas acerca da própria Filosofia. De
um lado, a Filosofia enquanto exercício espiritual. De outro, a chamada Filosofia
acadêmica, focada numa leitura histórica. Esta, por ser uma atividade técnica de
interpretação de textos e que de acordo com Hadot, domínio de especialistas – os
professores de filosofia – no interior de uma instituição que para ele é a universidade.
Assim, o objetivo é também mostrar que os Exercícios Espirituais não estão
desaparecidos. Eles estão presentes, mas que de certa forma, à margem. Uma
sombra da atividade filosófica. Contudo, de vez em quando retorna. Com seu
trabalho minucioso, Hadot aponta por exemplo a necessidade de pensar a
perspectiva “Exercício Espiritual” e o embaraço que o termo “espiritual” causa.
Mediante a tal necessidade, juntamente com o autor, propõe-se como sendo uma
atividade que mobiliza, igualmente o logos, a imaginação e sensibilidade. Para tanto,
o texto presente será realizado por intermédio da releitura de fragmentos do autor
em questão, com o objetivo de promover o debate sobre o significado originário de
Filosofia, a saber: como exercício e formação.

Palavras-chave: Filosofia; Exercício espiritual; Pierre Hadot.

Abordar este tema é, incialmente, uma projeção. Uma proposta embrionária


ainda em curso, pois, trata-se de uma pesquisa que se inicia, mas que já alçou voo.
Nesse sentido, esperamos contribuir e, da mesma importância, receber prontamente
as também contribuições daqueles que se dispuseram à leitura. Pretende-se nesta
exposição abordar e discutir o tema A Filosofia como exercício espiritual no
pensamento do filósofo francês Pierre Hadot (1922-2010).
Enquanto elemento essencial, a proposta é debater mediante ao pensamento
de Hadot, o que ele denomina Exercícios Espirituais, definida, principalmente por
521

constituir uma “maneira de viver”. O intuito é recolocar a discussão conceitual acerca


deste fenômeno e como ele se apresenta no escopo da história do pensamento
filosófico podendo ser percebido de forma bastante expressiva no âmbito do período
pensamento greco-romano. Trata-se de evidenciar as seguintes problematizações
acerca deste tema: a relação entre vida e filosofia; ação e discurso e filosofia como
maneira de viver.
Nascido em 21 de fevereiro de 1921 em Paris, Pierre Hadot teve uma
formação católica, que o levou a adotar uma vida religiosa ordenando-se sacerdote.
Ofício que abandona em 1952. Seu interesse pelo tema da espiritualidade o provoca
aprofundamento no pensamento do filósofo neoplatônico, Plotino, concentrando-se ,
portanto, nas relações entre helenismo e cristianismo, em seguida, também se
dedicando à crítica da mística neoplatônica, mas não somente.
Por ser também filólogo, Pierre Hadot seja talvez um daqueles pensadores que
nos adverte para o cuidado aos termos oriundos de uma tradição. Neste caso, a
filosófica. Neste mesmo movimento, procura despertar, quem sabe, uma questão
possivelmente já velha: o que é a Filosofia enquanto ela mesma, seu lugar diante, por
exemplo, da história, da literatura, da ciência. Atento a tal necessidade para repensar
o significado de Filosofia e como ela repercutiu dentro da história do pensamento
ocidental, este filósofo/filólogo executa o papel de historiador acerca da Antiguidade.
Mais precisamente, evoca a função de se fazer uma filosofia da história da Filosofia,
conforme ele mesmo afirma.
Mais adiante, seus estudos direcionaram para uma descrição mais minuciosa
do fenômeno espiritual que a filosofia representa. Em 1980186, Hadot foi indicado por
Foucault para compor a cadeira “História do pensamento helenístico e romano” do
College de France, devido à sua compreensão acerca do pensamento na filosofia
antiga. Tal indicação não significa uma autenticação ou uma assinatura – via Foucault
– mas, trata-se do reconhecimento de um pesquisador que nos provoca, por
exemplo, a pensar questões ainda necessárias acerca da filosofia, como por exemplo,
a filosofia como exercício espiritual.
A escolha de Hadot do termo “exercícios espirituais” passa a ser caracterizada
por um projeto de transformação e mudança da própria maneira de viver. Os
exercícios espirituais não se restringem a atividades do pensamento, mas referem-se
à capacidade de elevação do indivíduo à vida em conexão com o Todo. Conforme
Vieira (2019), o fenômeno da filosofia na Antiguidade pode ser entendido, a partir da
distinção entre a prática vivida e o discurso filosófico. Hadot argumenta que “[...] a
teoria por ela mesma não é considerada como um fim em si” (HADOT, 2014, p. 246).
Dessa feita, é necessário que ela seja utilizada em função da prática (HADOT, 2014).
Suas pesquisas exegéticas da filosofia antiga e, em especial, do estoicismo, alimentam
a maneira como ele entende e percebe a filosofia em questão (VIEIRA, 2019). Este
acontecimento pode ser verificado muito nitidamente a partir do fenômeno da

186
A sugestão do nome de Hadot feita por Foucault ocorre em 1980, mas a eleição para concorrer à cadeira no
College de France acontece em 1982.
522

filosofia na Antiguidade, que conforme este filósofo, pode ser entendido a partir da
distinção entre o discurso filosófico e a prática vivida. São, portanto, exercícios.
Os exercícios espirituais são exercícios práticos, como os diálogos, na escola
platônica, ou a revisão dos atos diários e antecipação dos males, no estoicismo, que
põem em prática a escolha de vida, permitindo ao discípulo aprender como viver e
levar adiante aquilo que cada escola propõe. Eles também validam e fundamentam
as teses expostas pelos textos dos fundadores de cada escola ou movimento
Nesse sentido, há, mediante ao fundamento de cada escola proposta, uma
perspectiva de formação, obedecendo critérios que irão contribuir na vida
diretamente daquele que o pratica. Os exercícios espirituais praticados não ficam à
margem da conotação impressa pela a importância dos textos. Trata-se, sobretudo,
de confirmar esse caráter validador oriundo das teses desenvolvidas pela teoria.
Vejamos como Hadot os compreende a partir do seu estudo da Antiguidade e ainda a
complexidade em defini-los levando em consideração o sentido do significado do
termo espiritual:

Primeiramente, não é mais de muito bom tom, hoje, empregar a


palavra “espiritual”. É preciso, porém, resignar-se a empregar esse
termo, porque os outros adjetivos ou qualificativos possíveis:
“moral”, “ético”, “intelectual”, “de pensamento”, “da alma” não
recobrem todos os aspectos da realidade que queremos descrever.
[...] A palavra “espiritual” permite entender bem que esses exercícios
são obra não somente do pensamento, mas de todo o psiquismo do
indivíduo e, sobretudo, ela revela as verdadeiras dimensões desses
exercícios: graças a eles, o indivíduo se eleva à vida do Espírito
objetivo, isto é, recoloca-se na perspectiva do Todo (“Eternizar-se
ultrapassando-se”). (HADOT, 2014, p. 20)

Hadot identifica inúmeras experiências de uma vida filosófica em constante


atividade, de maneira significativa, que acontecem a partir dos exercícios
“espirituais”, presentes e recorrentes na tradição helenística-romana.
Assim, conforme este filósofo, a filosofia na Antiguidade é uma maneira de
viver. Uma forma deliberada associada ao modo como se pensa e como se vive. A
escolha desse modo é uma atividade racional que se relaciona entre a tensão
exigente entre ação e discurso. Trata-se da execução das teorias e seus dogmas
destinadas à prática daqueles que o executam. É uma transformação do olhar. Uma
conversão no sentido estrutural do termo, salientado por Hadot, como um giro em si
mesmo, portanto, “[...] o exercício espiritual como uma prática voluntária, pessoal,
destinada a operar uma transformação do indivíduo, uma transformação de si”
(Hadot, 2016, p. 115-116).
Sobretudo, conforme Hadot:

[...] não se trata de opor e separar, de um lado, a filosofia como


modo de vida e, de outro, um discurso filosófico que será, de algum
modo exterior à filosofia. Ao contrário, trata-se de mostrar que o
523
discurso filosófico participa do modo de vida. [...] a escolha de vida
do filósofo determina seu discurso. (Hadot, 2014, p. 21)

Trata-se, de uma mudança radical no modo como se vive. É uma experiência


na qual o posicionamento do indivíduo se determina pelos exercícios que pratica em
consonância à maneira como são elaborados, teoricamente. É a transformação
intensa de si mesmo pois “[...] quem pratica concretamente esse exercício vê o
universo com olhos novos, como se o visse pela primeira vez, ele descobre, no gozo
do presente puro, o mistério e o esplendor da existência” (Hadot, 2014, p. 299). O
movimento filosófico da Antiguidade comungava de uma conflitiva maneira acerca
da existência. Por mais que houvesse várias escolas compostas por ensinamentos,
dogmas e arcabouço teórico, assumindo um modo de vida, buscavam uma realização
de um ideal de sabedoria. Por isso, os exercícios. Hadot esclarece que:

[...] ao longo de nosso estudo, de um lado, a existência de uma vida


filosófica, mais precisamente de um modo de vida que se pode
caracterizar como filosófico e se opõe radicalmente ao modo de vida
dos não filósofos, e, de outro, a existência de um discurso filosófico
que justifica, motiva e influencia essa escolha de vida. (HADOT, 2014,
p. 249)

Hadot reitera que por meio dos exercícios espirituais, há uma transformação
integral da maneira de viver do indivíduo. Trata-se “[...] de um esforço na direção da
tomada de consciência vivaz da totalidade” (Hadot, 2014a, p. 281). Esta perspectiva
percebida no pensamento helênico e, essencialmente, no estoicismo. A teoria à
serviço da vida filosófica eclodindo num só modo de viver. Sobre este modo estoico,
Hadot salienta que:

Segundo os estoicos, as partes da filosofia, isto é, a física, a ética e a


lógica eram, de fato, não partes da própria filosofia, mas partes do
discurso filosófico. Eles queriam dizer com isso que, quando se trata
de ensinar filosofia, é preciso propor uma teoria da lógica, uma teoria
da física, uma teoria da ética. As exigências do discurso, ao mesmo
tempo lógicas e pedagógicas, obrigam a fazer essas distinções. Mas a
própria filosofia, isto é, o modo de vida filosófico, não é mais uma
teoria dividida em partes, mas um ato único que consiste em viver a
lógica, a física e a ética. O discurso sobre a filosofia não é a filosofia.
(HADOT, 2014b, p. 264)

Nesse sentido, a lógica, a física a ética, são, conforme Hadot, elementos


basilares da formação do discurso filosófico, em especial, para o estoicismo. São
partes da teoria filosófica como preparação do discurso filosófico. Mas não, Filosofia.
Esta é vivenciada e não discursiva. O homem estoico, por exemplo, como aquele
dotado de logos (sentido), prática sua fala. O fundamental não é “o quê” se fala, mas,
“aquele que fala”. Ou seja, trata-se de uma relação direta com a conotação objetiva
524

do logos. Assim, conforme Hadot, o filósofo estoico não é aquele que discursa sobre
os logos, mas, fala, vive no e enquanto logos.
De acordo com Hadot, a vida, a reflexão filosófica, bem como a elaboração
dos discursos estão estreitamente ligados aos exercícios e estes estavam presentes
em diversos materiais como os diálogos, anotações e cartas, por exemplo, com a
característica fundamental de ser uma prática filosófica, na qual um dos principais
objetivos era conhecer e curar os males da alma. O filósofo francês destaca que tal
prática contempla desde a tradição greco-romana até o âmbito do pensamento
filosófico moderno (final do século XVII, início do século XVIII) e contemporâneo (a
partir do século XIX), mesmo que, de certa maneira com menos intensidade.
Nestes dois últimos períodos citados acima – moderno e contemporâneo,
Hadot ressalta nomes expressivos no âmbito da história da filosofia como Descartes
(1596 -1650), Nietzsche (1844 -1900), Montaigne (1533-1592), Bergson (1859 -1941)
e Wittgenstein (1889 -1951), para citar alguns. Há, com bastante intensidade o
destaque ainda para a produção do poeta alemão Johann Wolfgang Von Goethe
(1749-1832) como um representante expressivo dos exercícios espirituais,
principalmente, a partir da perspectiva estética da natureza. Para estes pensadores,
filósofos e também os da Antiguidade, a atividade filosófica enquanto exercício
espiritual é uma prática exercitada, na qual se faz constantemente no conflito
necessário, mas não excludente, entre ação e discurso. É, portanto, como reitera
Hadot, para:

[...] libertarmo-nos de nossas preocupações, voltar a nós mesmos,


deixar de lado nossas buscas por sutilezas e originalidade, meditar
calmamente, ruminar, deixar que os textos falem a nós. [...] pois há
verdades das quais as gerações humanas não chegam a esgotar o
sentido. [...] é preciso vive-las, é preciso, sem cessar, refazer a
experiência delas. (HADOT, 2014a, p. 66)

Experiência esta que Hadot destaca, a partir da tradição do pensamento


ocidental e filosófico, que é executada por diversas formas, desde Sócrates, que para
Hadot é a personificação da atividade dos exercícios espirituais, principalmente na
utilização do diálogo, passando pela filosofia helênica que é o período mais
expressivo desses exercícios, até Wittgenstein uma vez que, conforme Hadot, a
linguagem é um dos modos essenciais enquanto prática dos exercícios espirituais.
Quais são as estruturas destas práticas que atravessam desde a antiguidade até a
contemporaneidade? Hadot destaca quatro eixos que permitem compreender a
composição para a prática destes exercícios: Vieira (2019) esclarece que:

Se nos exercícios espirituais há uma proposta (mesmo que plural) de


encontro com a filosofia e nesse encontro se fazem presentes as
dimensões essenciais que constituem a possibilidade humana de
compreender sua condição e seu existir, então, assim como Hadot
(2014), entende-se que essa atividade – a filosofia – deve-se ater,
antes de tudo, a aprendizados que indicam a arte do viver.
525

No entanto, cabe compreender qual perspectiva Hadot apresenta ao tratar dos


aprendizados que são experimentados nos exercícios espirituais. “[...]Os quatro eixos
pensados por Hadot sobre os exercícios espirituais são: (i) o aprender a viver; (ii) o
aprender a dialogar; (iii) o aprender a morrer; e (iv) o aprender a ler” (VIEIRA, 2019,
p.41). Dessas quatro, destaco como forma de exemplificação o aprender a viver.
Hadot (2014), concebe uma filosofia, a partir da proposta estoica, que conduza “[...] a
alma das preocupações da vida à simples alegria de existir”. Nesse sentido, o autor
destaca a importância de:

[...] exercitar-se a “viver”, isto é, a viver consciente e livremente:


conscientemente, ultrapassando os limites da individualidade para se
reconhecer como parte de um cosmos animado pela razão;
livremente, renunciando a desejar o que não depende de nós e que
nos escapam para se ater apenas ao que depende de nós – a ação
reta conforme a razão. (HADOT, 2014a, p. 31)

Esta perspectiva destacada por Hadot diz respeito à atenção ao


presente. Uma relação consigo e concentração do eu, muito intensamente praticada
na filosofia estoica. Pois é “[...] na tensão do espírito ou na descontração e
serenidade” (Hadot, 2014a, p. 34) que a experiência de vida única acontece e que
este exercitar-se consciente e livremente responde para abertura ao Todo, portanto,
vivendo como uma arte. Destaca-se também o aprender a morrer.
De acordo com Hadot, a filosofia como exercício para a morte é bastante
contemplada na Antiguidade. Todavia, tal prática espiritual não significa um exercício
de morte, mas, sobretudo, a prática consciente da vida, que a resignifica em seus
modos do viver. O autor ressalta que “[...] exercitar-se para a morte é exercitar-se
para a morte de sua individualidade, de suas paixões, para ver as coisas na
perspectiva da universalidade e da objetividade”. Hadot (2014, p. 45).
Por fim, o que, a partir de uma vasta e complexa herança de pesquisa, o que
Hadot nos diz, a nós contemporâneos? Seria a transposição dos exercícios espirituais
praticados na Antiguidade em nosso contexto? Certamente, não. Hadot quando
“retorna” à cultura greco-romana descortinando-a enquanto filólogo e filósofo,
adverte que havia uma filosofia que é, essencialmente uma prática, um exercício de
perspectiva espiritual e que fundamentalmente, não estava vinculada ao aspecto
religioso e nos alerta para a forma como herdamos e lemos a filosofia.
Destaca o filósofo francês que herdamos um olhar da filosofia da Antiguidade
que, ao pertencer de forma intensificada ao aspecto de perspectiva acadêmica e
professoral ocasionou como resultado mais professores de filosofia ou, profissionais
de filosofia. Uma filosofia mais informativa do que formativa ocupando-se não com o
espírito, mas, sobretudo com o discurso teórico. Como dito anteriormente, Hadot
não propõe uma espécie de atualização dos exercícios espirituais a partir da
modernidade filosófica, mas, enxerga na filosofia ou na expressão da literatura, – a
526

partir deste período – uma forma vivaz de filosofia que se ocupa com uma prática,
como exercício espiritual.

REFERÊNCIAS

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discurso. Revista de Filosofia Aurora. Curitiba: PUC-Paraná, v. 3, n. 32, pp. 99-111,
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Davidson. Tradução de Lara Christina de Malimpensa. São Paulo: É Realizações, 2016.
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Loque e Loraine Oliveira. São Paulo: É Realizações, 2014.
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Sérgio Eduardo Fazanaro Vieira – Campinas: PUC-Campinas, 2020.
527

IGREJA: ENTRE A INSTITUIÇÃO E A AUTONOMIA

DANILO KAMMERS
Mestrando em História das Teologias de Religiões
pela Faculdade EST – São Leopoldo/RS e Bolsista CAPES
[email protected]

RESUMO: Às vezes parece que a igreja está sempre um passo atrás, respondendo
perguntas que não se fazem mais, investindo em mídias já ultrapassadas,
menosprezando a individualidade como se houvesse um descompasso entre o
indivíduo religioso com sua experiência de fé e a instituição religiosa. Como a igreja
cristã pode ser “Corpo de Cristo” se não se compreende como “organismo vivo”, mas
apenas como “organização”? A presente comunicação pretende refletir a relação
entre a igreja institucional e experiência pessoal: como compreender a religião em
movimento? A vida humana que flui entre as instituições eclesiais nem sempre se
submete a ordem estabelecida pela estrutura cristalizada nas normas. O ser humano
busca na experiência pessoal com Deus sentido para a própria existência no mundo.
Poderemos verificar já no Antigo Testamento a relação entre a autonomia humana da
experiência de Deus e o posterior estabelecimento em espaços sagrados. A revelação
de Deus (hierofania) e a legitimação do espaço sagrado de culto, e o templo de
Jerusalém como local central de contato com o divino. Um povo que é nômade tem
um Deus que “caminha junto”, porém ao se estabelecer percebe um Deus que “mora
junto”. Já a experiência da cristandade tem Jesus Cristo como a revelação plena de
Deus, o Emanuel, Deus não está mais distante da vida humana porque Ele mesmo se
faz presente nesta história. Nesta correlação entre autonomia humana e instituição
religiosa, organismo e organização, Deus revelado e Deus oculto, sagrado e profano a
humanidade peregrina busca em suas experiências pessoais de fé repouso e
fortalecimento diante de suas mazelas.

Palavras-chave: Igreja; Instituição; Autonomia; Experiência de Deus.

INTRODUÇÃO

Na história religiosa a figura do religioso peregrino precede a praticante que


vaga entre uma e outra experiência institucionalizada da fé (HERVIEU-LÉGER, 2008,
p.87). Há uma dinâmica anterior às institucionalizações das experiências de Deus.
Esta pode ser percebida em relatos bíblicos no Antigo Testamento e na compreensão
divina da presença de Cristo no mundo.
As experiências de Deus são vivências de significação de um povo ou de uma
pessoa. No deserto, quando o povo peregrina testemunha de um Deus que caminha,
528

quando se estabelece territorialmente constrói também uma casa para Deus. No


exilio encontra conforto no anúncio de que seu Deus vai junto.
Atualmente o deserto do peregrino ganha novas significações, mas suas
experiências de fé sobressaem espaços ou instituições preestabelecidas, isso porque
a autonomia humana precede a instituição eclesial em qualquer tempo.

EXPERIÊNCIAS DE DEUS E “CASA DE DEUS”

Os relatos bíblicos das experiências com o sagrado no Antigo Testamento nos


permitem valorizar o espaço da revelação. Deus não estava preso inicialmente ao
templo de Jerusalém, no tabernáculo ou no santo dos santos, onde apenas os
sacerdotes poderiam entrar (LOHSE, 2000, p. 142). A manifestação do sagrado no
princípio era livre, quando na revelação ao seu povo (ou ao líder do povo) os
orientava no caminho, como se o próprio Deus caminhasse com eles.
Ao lermos o Antigo Testamento encontraremos alguns relatos da revelação de Deus,
quer seja por meio de algum elemento da natureza, por sonho ou por intermédio de
algum anjo (mensageiro). Dos relatos bíblicos em que Deus se revela por meio do
sonho lembramos Gênesis 28 (Gn 28), quando Jacó na sua fuga adormece e tem a
visão da escada. Deus se revela/manifesta por meio de uma experiência, através do
sonho Ele se comunica.
Gn 28 é uma lenda do santuário, que legitima um determinado lugar como
santo, como ambiente sagrado de culto, “como local de peregrinação, contando de
uma revelação ocorrida naquele local e mostrando desta maneira o caráter sacro do
lugar” (SCHIMDT, 1994, p. 70). “Quão temível é este lugar! É a Casa de Deus, a porta
dos céus” (Gn 28.17). A reação da pessoa que recebe esta revelação é de construir
um altar fundando um culto (SCHIMDT, 1994, p. 60) e dando nome àquele “ponto
fixo” da revelação.
Jacó denomina Betel o lugar da revelação, e todos os que posteriormente
passarem por ali saberão que aquele é um lugar sagrado, “Casa do Senhor”. Somente
mais tarde estas lendas passaram a ser usadas não mais para justificar o que já era
existente, mas para motivar o povo de Israel para a esperança futura na promessa de
Deus. O “ponto fixo” torna-se antes uma orientação na peregrinação do que uma
indicação pontual da revelação.187
Deus parece partilhar da vida dos nômades, junto do povo peregrino. Ao
“caminhar” com seu povo Deus se manifesta como ajudador, aquele que na relação
com o clã atua como provedor e assistente. Percebemos claramente esta relação, nos
capítulos 16 e 17 do livro de Êxodo, quando o povo hebreu caminha pelo deserto e é
amparado por Deus com alimento e água (GUNNEWEG, 2005, p. 59).

187
O altar edificado durante o caminho, na peregrinação do povo ou do indivíduo, quando estes tem uma
experiência com Deus, representa a multiplicidade de ambientes aonde o povo poderia legitimar a revelação.
Lugar de lembrança, primeiramente, de que Deus está antes em relação com o povo, do que vinculado
rigidamente a um determinado lugar. Este é um traço da essência divina, a fé baseada na proximidade
(SCHIMDT, 2004, p. 49-50)
529

Quando o povo deixa de peregrinar, se estabelece perto de locais sagrados,


próximo aos santuários, onde Deus anteriormente já havia se revelado. Nestes
arredores o povo se estabelece e ocupa um pedaço de terra, cumprindo a promessa
(SCHIMDT, 2004, p. 52). Quando o povo abandona os costumes seminômades,
também o seu Deus que antes caminhava, agora passa a morar em um local fixo188.
A apropriação do sagrado ao templo transferiu a centralidade cultual
à Jerusalém, e mais tarde quando povo estava exilado (exílio babilônico 586-538)
entre estrangeiros, distantes de “casa” e de Deus, ficou desorientado, pois estava
“longe da terra prometida e do local da presença divina” (GUNNEWEG, 2005, p. 212).
Neste contexto surge a profecia consoladora de Ezequiel, que também fora
deportado. Este profeta anuncia a aceitação do tempo presente por parte do povo,
pois Deus “serve de santuário” para o seu povo (Ez 11. 16), mesmo em terras
estrangeiras. A “glória do Senhor” saiu do templo e está com o povo no exílio. Assim
desenvolveram-se novas formas de culto não vinculadas à terra santa, como a
observância do sábado e a circuncisão, que desde o exílio são sinais de pertença ao
povo, tornando-se parte da confissão de fé. O resultado disso foi de uma crescente
individualização religiosa, pela perda de vínculos referenciais na terra, povo e Estado
(GUNNEWEG, 2005, p. 213).
Esta é uma constante dinâmica da relação do povo ou do indivíduo com Deus,
a experiência que gradativamente vai ocupando espaços muito privados. O Sagrado
parece ser adaptável às necessidades humanas, quando o povo caminha Deus está
com ele, quando o povo constrói uma casa Deus mora com ele, e assim o divino se
revela no cotidiano da vida humana, em meio às dificuldades e alegrias.

DEUS CONOSCO

Jesus Cristo, o Emanuel, Deus conosco, é “o mistério primeiro vindo à terra,


expressado, incorporado ao processo da natureza e história, alcançando sua
completa articulação no sentido e no destino” (ROBINSON, 1977. p. 19) da
humanidade. Agora o próprio Deus limitado a existência carnal humana, caminha
com o povo, orienta e cuida daqueles que sofrem. O “verbo se fez carne e habitou
entre nós” (cf. Jo 1.14) e o mistério do logos foi pleno na existência de Cristo.
O Deus crucificado é “encontrado no meio onde estão as pessoas” (ROBINSON,
1977, p. 25), ou seja, é antes vitalidade humana de popularidade divina de um Jesus
modernizado. Modernizado enquanto discurso e tendência de “oferta” de Cristo ao
mundo como resposta para todas as perguntas existenciais modernas, deslocando-o
da sua própria época.

188
Por volta do ano 1000 a.C., foi instituída a monarquia de Israel, primeiramente com Saul (1Sm 28.31), depois
com Davi. No seu reinado, Davi expandiu o seu poder quanto às ocupações territoriais, o que foi importante
também para a fé de Israel. Davi fixou moradia em Jerusalém (2Sm 5.6ss) e no mesmo período levou a arca da
aliança (2Sm 6), transformando a cidade no centro cúltico da fé do povo e capital política do reinado (SCHIMDT,
1994, p. 26-28).
530

Deus ao se fazer história desperta a permanente inquietação da fé e da


esperança, aviva em nós a percepção de que não somos possuidores da verdade, mas
somos dominados por ela no caminho (FORTE, 1985, p. 35). Quando na constante
peregrinação o povo é orientado pela verdade que o domina numa relação dinâmica
(do simultaneamente revelado e oculto) e pessoal (na experiência).

O SAGRADO E O PROFANO

A questão de nossa reflexão é: quem é realmente o agente da experiência


religiosa? E como denominá-lo? Alguns pesquisadores respondem esta pergunta com
a expressão sagrado. Este é o equivalente adotado pelo sociólogo francês Durkheim,
pois para ele o conceito deus era ocidental demais para responder a este
questionamento, seria um conceito ausente em outras tradições religiosas. Também
Durkheim compreendia o sagrado apenas em contraposição a algo que precisava de
uma definição antônima de “um tudo que é sagrado, outro tudo que é profano”
(DURKHEIM, 1989, p. 68), portanto, este elemento sacral só seria compreendido com
a existência do profano (BORTOLLETO FILHO, 2008, p. 897).
Durkheim procurou encontrar nos seus estudos a religião em sua origem
fundante ou primitiva, não pretendia desvendar a complexidade da religião
contemporânea, mas perceber sua essência. Outro nome de destaque nesta linha de
estudo foi o romeno Mircea Eliade que se dedicou à pesquisa do sagrado em suas
diferentes manifestações, comparando diversas religiões.
Eliade depois de haver definido o sagrado em si, procurou analisar o seu lugar
de manifestação ou revelação. O que acontece no tempo, no espaço e na vida das
pessoas. O sagrado é normalmente reconhecido em um espaço, que para a pessoa
religiosa é o lugar de contato com o divino. O “espaço sagrado” é significativo na
experiência religiosa, por ser santo, a exemplo de Êxodo 3.5 onde Moisés diante da
sarça ardente teve de tirar as sandálias, pois estava em solo santo.
Este lugar da revelação de Deus a um povo ou a alguém tem caráter existencial
para a pessoa, o sentido de ser e estar no mundo são centrais no contato com o
divino. A experiência como tal significa o próprio lugar, que deixa de ser profano para
ser “ponto fixo” de verdadeira orientação diária.
A espacialidade é definida no termo cosmos, quando ainda não manifesto a
presença do sagrado. Somente após a hierofania passa a denominar-se finalmente
mundo, o lugar central em meio ao caos, lugar da experiência. Quando o sagrado se
manifesta no cosmos, o “real” se revela e “o mundo passa a existir” (ELIADE, 2011, p.
25-61).
Mesmo a pessoa que não se reconhece como religiosa atribui a alguns lugares
do mundo significações de experiências de vida num espaço por assim dizer, profano.
Como lugares que visitou na juventude, a primeira impressão ao desembarcar em
outro país, o colégio primário, todos estes espaços falam de experiências
significativas para a vida de alguém (ELIADE, 2011, p. 28).
Uma experiência religiosa primária que precede qualquer reflexão sobre o
mundo revela uma realidade absoluta, um “ponto fixo”, ponto de partida de toda
531

reflexão futura. A revelação é orientação no caos, já a experiência não-religiosa não


reconhece esta orientação, pois não há mundo, mas somente fragmentos do
universo numa infinidade de “lugares” por onde o indivíduo já transitou.

A PORTA E A AUTONOMIA

A entrada do templo religioso é a fronteira entre dois modos de ser, o que


Eliane define como o limiar entre o sagrado e o profano (ELIADE, 2011, p. 28-29). A
porta é o que separa e também distancia as maneiras do ser profano (na rua) e
religioso (na igreja). A igreja é diferente do ambiente externo, as pessoas que lá se
reúnem são transformadas pelo “espaço sagrado” que ocupam no momento de
culto. Lá elas exercem um papel que se difere de outros ambientes, como em casa,
por exemplo. Neste sentido poderíamos afirmar que a porta é o lugar da
transformação humana.
A porta é também o limiar entre o espaço público e o privado, nestes
ambientes exercemos funções distintas, papéis diferentes influenciados pelo lugar
onde estamos. A casa assim como a igreja faz parte do rol de ambientes privados, é
“ponto fixo” significativo pelas experiências que lá ocorrem, mesmo assim estes
espaços são às vezes tão relacionais que nos parece difícil distingui-los.
O ambiente urbanizado moderno se identifica pela perda dos centros189. Pode-
se estar rapidamente em qualquer centro. A praça, ambiente público, pode invadir o
espaço privado da casa através do noticiário, a religião (rito, missa ou pregação) que
antes estava no templo agora pode, através dos meios de comunicação, também
fazer parte da casa. Assim, o espaço deixa de representar um lugar meramente físico,
mas ganha outras dimensões, da representação social coletiva de interesse. Os
espaços são tão difundidos quanto o interesse humano, pois não há mais o
movimento tradicional no espaço da casa, do trabalho e do templo. Vivemos a
fragmentação do espaço segundo interesses pessoais, e a vida do povo gira agora em
torno do status, da posse, da vitrine e da estética, da lógica de mercado (LIBANIO,
2001, p. 32).
O resultado desta ruptura levou as pessoas a buscarem a criação de espaços
isolados e privados também na experiência com o sagrado. O que proporcionou
autonomia para as pessoas trouxe consigo a possibilidade de criação de um mundo
particular, que independentemente das condições é fonte de orgulho, mesmo que
em sentido material. Poder dizer ser dona de um “espaço” (casa) enaltece o senso de
propriedade. Quando no âmbito religioso esta autonomia proporciona o
deslocamento do “ponto fixo”, ou seja, o mundo ordenado pelo cosmos da
experiência com o sagrado pode ser encontrado também do outro lado da porta da
própria casa.

189
As revoluções (tecnológica, política e religiosa) e a crescente urbanização nos trouxeram uma nova
compreensão espacial. O povo que uma vez foi peregrino de repente se organiza em aldeias fixas. A aldeia vive
do que planta e colhe, e o espaço daquele povo se configura entre a casa, o trabalho e o templo. Os lugares
parecem bem definidos: o lugar da habitação; do labor e da religião. O centro deste espaço é a vida do povo
em seu cotidiano. cf. LIBANIO, 2001, p. 27-31.
532

O povo peregrino vaga pelo tempo, e está “à procura do reino da eternidade”


(Santo Agostinho apud BAUMAN, 2011, p. 115). A verdade do peregrino está em
outro lugar, pois o seu destino está num horizonte ainda não alcançado. Se a
experiência com Deus se deu inicialmente no caminho, numa peregrinação - como foi
para Jacó no Antigo Testamento, quando no sonho da escada teve acesso a porta do
céu - como compreender um peregrino numa cidade moderna? Este talvez só fosse
compreendido nas ruas, pois a casa ou a igreja seriam apenas “lugar de repouso”,
para temporariamente descansar ou adiar o destino desejado (BAUMAN, 2011, p.
116).
Como a experiência de Deus teve início no deserto, o peregrino moderno e
solitário desenvolve uma peregrinação sem sair de casa: “O mundo de suas vidas
cotidianas foi se tornando mais e mais ‘como o deserto’. E como o deserto, o mundo
ficou sem lugares” (BAUMAN, 2011, p. 117). O deserto se estende até a porta das
cidades e a peregrinação é inventada numa nova forma, como numa inversão de
espaços o deserto é trazido até o outro lado da porta, para os vazios da casa, lugar de
repouso do povo que caminha.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Percebemos que a dinâmica da experiência de Deus está totalmente vinculada


a vida humana e sua autonomia. Há uma constante correlação entre organismo e
organização, Deus revelado e Deus oculto, sagrado e profano.
A humanidade peregrina busca em suas experiências pessoais de fé por
repouso e fortalecimento diante de suas mazelas, e este se dá no mistério. Que é
mais experiência do que compreensão. Não é revelado em plenitude, antes é
experimentado e sentido na dúvida que repousa no próprio mistério, fascinante e
tremendo (OTTO, 1985, p.17).
A existência humana que é “balançada” e que treme diante da manifestação
divina, precede qualquer instituição religiosa estabelecida.

REFERÊNCIAS

A BÍBLIA Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Ed. rev. e atual. São Paulo:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.
HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em
movimento. Petrópolis: Vozes, 2008.
LOHSE, Eduard. Contexto e Ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas,
2000.
SCHIMDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal,
1994.
SCHIMDT, Werner H. A fé do Antigo testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004.
GUNNEWEG, Antonius H. J. História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de
Theodor Herzl até os nossos dias. São Paulo: Teológica, Loyola, 2005.
ROBINSON, John A. T. A face humana de Deus. Petrópolis: Vozes, 1977.
533

FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história: ensaio de uma
cristologia como história. São Paulo: Paulinas, 1985.
DURKHEIM, Émile. As formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulinas,
1989.
BORTOLLETO FILHO, Fernando (Org.). Dicionário Brasileiro de Teologia. São Paulo,
SP: ASTE, 2008.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.

LIBANIO, João Batista. As lógicas da cidade: o impacto sobre a fé e sob o impacto da


fé. São Paulo, SP: Loyola, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Vida em fragmentos: sobre a ética pós-moderna. Rio de Janeiro:
Zahar, 2011.
OTTO, Rudolf. O Sagrado: um estudo do elemento não-racional na ideia do divino e a
sua relação com o racional. São Bernardo do Campo: Imprensa Metodis.
534

PENSANDO A RELIGIÃO E A CONTEMPORANEIDADE:


ASPECTOS MILENARISTAS E O TRANSUMANISMO

ADELAIDE DE FARIA PIMENTA


Doutoranda em Ciências da Religião pela PUC Minas
e Bolsista CAPES,
Mestre em Ciências da Religião pela PUC Minas.
[email protected]

RESUMO: Este trabalho é parte da pesquisa de doutorado em andamento, e se


propõe a pensar, de modo preliminar, as relações entre a religião e a
contemporaneidade, abordando para tanto o Transumanismo – movimento que
adota o uso da tecnologia para melhoramento do humano e também a imortalidade.
Percebe-se a existência de desafios na atualidade que tocam o âmbito da religião,
que, no entanto, se apresentam de forma secularizada. O movimento transumanista,
por exemplo, parece trazer à tona as questões do milenarismo e da escatologia
judaico-cristãos, como uma busca de realização secularizada do paraíso na terra, com
elementos encontrados no âmbito mítico e religioso, apesar de, aparentemente, suas
ideias inovadoras não se apresentarem com tal proximidade; no entanto, aspectos
milenaristas começam a despontar ao olhar mais atento. Como recorte teórico, se
abordará os desafios da contemporaneidade à luz do tema milenarista do paraíso
cristão e o apocalipse, tendo em vista o conceito de ambivalência de Zygmunt
Bauman, que afirma que a ambivalência é a possibilidade de ter diferentes categorias
atribuídas a um mesmo objeto. Na tentativa de classificar, definir, trazer uma ordem
ao caos, a modernidade assume a tarefa impossível de alcançar a ordem, a certeza, a
harmonia, e saber qual o rumo tomar, ou o fim da história. Buscar-se-á, portanto,
uma correlação com os ideais transumanistas, com o milenarismo ocidental e a
ambivalência. Para se tentar compreender de forma mais ampla esse tema do ponto
de vista das ciências, as Ciências da Religião propiciam um campo epistemológico e
metodológico generoso. Abordando os temas milenaristas, as questões da pós-
modernidade e o conceito de ambivalência de Bauman, bem como as premissas
transumanistas, objetiva-se pesquisar os aspectos de uma possível conexão, como
uma hipótese que poderá ou não ser comprovada.

Palavras-chave: Religião; Contemporaneidade; Transumanismo; Milenarismo;


Escatologia.

INTRODUÇÃO

Este texto, parte da pesquisa de doutorado em andamento, tem como objetivo


o enfoque nas relações entre a religião e a contemporaneidade, abordando-se
535

aspectos do Transumanismo190 – movimento intelectual que envolve um projeto de


alcance mundial que visa a melhoria da humanidade em todos os aspectos –, e uma
possível vinculação aos temas milenaristas da tradição judaico-cristã.
Utilizando-se de pesquisa bibliográfica, como recorte teórico serão abordados
em um primeiro momento, os desafios da contemporaneidade e secularização da
Religião; em um segundo, o tema milenarista do paraíso cristão e Apocalipse; em um
terceiro momento, o conceito de ambivalência de Zygmunt Bauman, e finalmente, as
propostas transumanistas. Como conclusão preliminar, buscar-se-á apresentar
algumas possíveis correlações entre os ideais transumanistas e o milenarismo
ocidental, em diálogo com o citado conceito de Bauman.

DESAFIOS DO MUNDO CONTEMPORÂNEO E A SECULARIZAÇÃO DA RELIGIÃO

O mundo contemporâneo traz desafios que tocam o âmbito da religião, e em


alguns casos, é possível observar que inúmeros de seus movimentos tomam
perspectivas religiosas, secularizando-as à sua maneira.
Para o filósofo e cientista político Eric Voegelin (1901-1985), o Cristianismo
ocupava-se da função de representação da verdade da alma, e como fator
civilizacional, ocupou-se também de uma função de teologia civil. Com o fim do
Império Romano, e o crescimento da civilização em termos de laicidade e separação
entre a esfera religiosa e política, o que esse autor denomina “imanentização do
eschaton cristão” (VOEGELIN, 1982, p. 119) – ou a realização do céu, na terra –
proporcionou um novo significado à sociedade, que passou a buscar a anterior
salvação da alma pela religião, na moderna salvação pela transformação do mundo,
feita com as próprias mãos.
O tema da salvação da alma, por sua vez, está bem representado nos
movimentos e seitas milenaristas judaico-cristãos, que a partir das revelações do
último livro da Bíblia, o Apocalipse, se tornaram difundidas principalmente no
período medieval, e retomam fôlego nos dias atuais, em filmes, na literatura, em
revistas em quadrinhos, em canais de TV e YouTube, anunciando o fim dos tempos
em versões tecnológicas. Baseadas nos livros canônicos cristãos ou secularizados em
versões ficcionais, a catástrofe final, o tema do salvador ou nação salvadora, os
eleitos versus os ímpios, o bem versus o mal, batalhas que ao final levam a um
paraíso tecnológico ou à bem-aventurança e à imortalidade, com novas formas de
seres – avatares, ciborgues, computadores neurais –, os aspectos ligados ao universo
do tema religioso são trazidos para o presente, com perfume milenarista.

190
Por se tratar de uma tradução da palavra original em inglês - transhumanism - e ainda não constar
efetivamente no dicionário de português, observam-se controvérsias em relação ao Novo Acordo Ortográfico
para o correto uso do termo, se transhumanismo ou transumanismo. No entanto, a palavra “transumano” já
está no dicionário, conforme o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, onde se encontram os vocábulos:
“transumanar |z| v. tr. Dar natureza humana a; humanizar.” e “transumano |z| adj. Que vai além do
humano.”. Portanto, optou-se aqui por adotar a forma transumanismo (TRANSUMANO, 2020).
536

A QUESTÃO MILENARISTA: APOCALIPSE E PARAÍSO

O milenarismo cristão tem origem judaica, estando presente no Novo


Testamento e nas primeiras comunidades cristãs. Relaciona-se aos escritos do último
livro do Novo Testamento da Bíblia cristã, o Apocalipse, atribuído ao apóstolo João
(APOCALIPSE, 2020), a partir da revelação divina.
O texto contém os relatos de antes, durante e após o retorno do Messias – a
Parousia ou a Segunda Vinda de Cristo –, que se dará em futuro próximo, e sobre as
atribulações que se seguirão para a limpeza do mal no mundo, bem como do
confronto com o Anticristo. A partir de então se inaugurará um tempo de mil anos de
felicidade terrena, o milênio de alegrias e bençãos, ou Idade de Ouro, ao fim da qual
haverá o juízo final e início do reino celeste (DELUMEAU, 1997). Chama-se a atenção
para o fato de que será um tempo em que não haverá mais morte, nem dor, que se
estenderá por mil anos, a partir da Segunda Vinda do Messias.
Antecipar a criação desse paraíso na terra parece ter sido o que moveu mais
de uma revolução ao longo da história. No entanto, ao se tentar criar uma nova
ordem, depara-se com novos problemas que emergem da própria busca por novas
soluções, como as questões de ambivalência, citadas por Zygmunt Bauman.

PÓS-MODERNIDADE E AMBIVALÊNCIA

O sociólogo polonês Zygmunt Bauman (1925-2017) afirma que a ambivalência


é a “possibilidade de conferir a um objeto ou evento mais de uma categoria”
(BAUMAN, 1999, p. 9). Ou seja, a tentativa humana de classificar e definir, busca
trazer uma ordem ao caos: a modernidade seria um tempo em que se reflete sobre a
ordem “[...] do mundo, do habitat humano, do eu humano e da conexão entre os
três.” (BAUMAN, 1999, p. 9). No entanto, faz parte da modernidade a possibilidade
de pensar o caos e a ordem. Sem um, não haveria o outro. Em outras palavras, essa
capacidade de refletir sobre a dualidade e conter ambas alternativas é característica
da modernidade. Daí decorre que estar em uma existência não ordenada, que se
pode chamar de natureza, traz ansiedade, e se torna algo que precisa ser

[...] dominado, subordinado, remodelado de forma a se ajustar às


necessidades humanas. [...] Viver de acordo com a natureza requer
um bocado de planejamento, esforço organizado, e vigilante
monitoramento. Nada é mais artificial que a naturalidade; nada é
menos natural do que se lançar ao sabor das leis da natureza. O
poder, a repressão e a ação propositada se colocam entre a natureza
e essa ordem socialmente produzida na qual a artificialidade é
natural. [...] A existência é moderna na medida em que é
administrada por agentes capazes (isto é, que possuem
conhecimento, habilidade e tecnologia) e soberanos. (BAUMAN,
1999, p. 15, grifo nosso)
537

Dessa forma, as ações modernas – sejam intelectuais, políticas – buscam


colocar um termo à ambivalência, e o que resulta disso é a intolerância, mesmo que
velada em políticas de tolerância, indicando, na verdade, apenas o adiamento de um
acerto de contas ao final, ao que ele denominou modernidade dura (BAUMAN, 1999).
Para Bauman (2015), a modernidade assume a tarefa impossível de alcançar a
ordem, a certeza, a harmonia, e saber qual o rumo tomar, ou o fim da história:

“Ser moderno” significa estar em estado de perpétua modernização:


a modernidade é, por assim dizer, a era de “novos começos”, e de
“novos começos” eternamente novos, do desmantelamento de
velhas estruturas e da construção de outras a partir do zero.
(BAUMAN, 2015, s.p)

Dando sequência à sua reflexão, segue denominando modernidade líquida, aos


tempos contemporâneos, ou “era líquido-moderna” (BAUMAN, 2015, s.p.) por
considerar o termo pós-modernidade um conceito ideológico. Para além das
características da modernidade e sua necessidade de administrar, inclui-se a analogia
ao estado líquido da matéria por ser o que mais se transforma, incluindo a incerteza,
a fluidez, a velocidade de transformação (das relações, da economia, dos padrões
sociais).
Para o autor, as relações escorrem pelos dedos, tornando-se frágeis, sendo
substituídas pela matéria: “O mundo humano jamais será novamente como foi antes
da ascensão da tecnologia. Se a mudança produz maior felicidade ou miséria mais
funda é questão discutível e fadada a continuar a sê-lo.” (BAUMAN, 1999, p. 239).
De produtores, passa-se a consumidores. Vorazes, onde o “descarte de
sucessivos obstáculos ‘sólidos’ que limitam o voo livre da fantasia e reduzem o
‘princípio do prazer’ ao tamanho ditado pelo ‘princípio da realidade’.” (BAUMAN,
2001, p. 89) é uma das características marcantes. Essa percepção parece se conectar
com as características do movimento transumanista, como será visto a seguir.
O TRANSUMANISMO

Considera-se que a fundação do movimento transumanista teve início em


1957 com o biólogo eugenista Julian Huxley (1887-1975),191 que enfatiza a
possibilidade de melhoramento do humano, não apenas para a melhoria de doenças,
mas também, e prioritariamente, para o aprimoramento do ser humano, tornando-o
mais inteligente, mais forte, mais capaz. Para Huxley, o ser humano, ou melhor, a
humanidade inteira, pode transcender a si mesma, e um nome adequado para essa
nova crença, como a ela se refere, seria transumanismo: “Precisamos de um nome
para essa nova crença. Talvez o transumanismo possa servir: o homem
permanecendo o homem, mas transcendendo a si mesmo, realizando novas

191
Sir Julian Sorell Huxley vinha de família de intelectuais. Seu avô foi o biólogo evolucionista Thomas Henry
Huxley, defensor das ideias de Charles Darwin. Era irmão do escritor Aldous Huxley, e meio-irmão do também
biólogo e Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina (1963), Andrew Huxley. Foi nomeado Cavaleiro da Coroa
Britânica em 1958, sendo o primeiro diretor-geral da UNESCO.
538

possibilidades de, e para, sua natureza humana” (HUXLEY, 1957, p. 13, tradução
nossa).192
Nos anos 1990, Max More (1964 -), filósofo britânico, delineou os princípios do
transumanismo, para quem se constitui uma nova filosofia de vida (HUMANITY +,
2016-2020), e em 2003, Nick Bostrom, PhD em Filosofia, Mestrado em Filosofia e
Física com tese em Neurociência computacional, Professor da University of Oxford, e
diretor do Future of Humanity Institute, acrescenta, sobre o Transumanismo:

[...] tem raízes no pensamento humanista secular, mas é mais radical


na medida em que promove não só os meios tradicionais de
melhorar a natureza humana, como educação e refinamento cultural,
mas também a aplicação direta da medicina e da tecnologia para
superar alguns dos nossos limites biológicos básicos. (BOSTROM,
2003-2005, grifo nosso).

Como um dos atuantes defensores do movimento, Bostrom encabeça a linha


de frente contra os bioconservadores – avessos ao uso da tecnologia da maneira
proposta, por considerarem infringir questões éticas, bioéticas, políticas. O
movimento quer proporcionar a transferência da consciência humana para um
computador, e no bilionário projeto 2045 Initiative (cf. 2045, 2020), fundado pelo
russo Dimitry Itskov, o objetivo é, até o ano de 2045, transferi-la para avatares
holográficos.
Mais que reparar, corrigir, ou suprir faltas, quer sejam identificadas no âmbito
físico, intelectual, emocional, ou moral, o foco transumanista é o melhoramento – no
inglês, enhancement – ou aumento das capacidades humanas. Portanto, essa
corrente busca promover a evolução da raça humana, de modo a ir além das suas
limitações corpóreas, mentais, até mesmo psicológicas, com o auxílio da tecnologia.
Muito dinheiro está sendo investido no avanço exponencial – para usar um dos
termos associados ao movimento – de construção de tecnologia. Muito mais do que
melhorar a qualidade de vida ou do corpo, busca-se vencer a fronteira final: a morte
do corpo físico. Qualquer semelhança com a promessa de vida eterna no âmbito
religioso não parece ser mera coincidência.

CONCLUSÕES PRÉVIAS

Muito se tem falado sobre o Transumanismo nas diversas áreas do


conhecimento. Porém, no âmbito das Ciências da Religião, ainda é pouco explorado,
mas constitui-se um campo fecundo para a pesquisa.
Percebe-se como hipótese uma ligação entre os ideais transumanistas e certas
temáticas milenaristas: esses ideais podem ser compreendidos como uma
possibilidade de culminação do processo que leva à realização secularizada do
paraíso na terra, da vida eterna e do novo homem; e as temáticas milenaristas,

192
We need a name for this new belief. Perhaps transhumanism will serve: man remaining man, but
transcending himself, by realizing new possibilities of and for his human nature.
539

profetizadas nas tradições apocalípticas dos apóstolos João e Daniel, sugerem que
alguns aspectos milenaristas estejam sendo manifestados, aqui e agora, com as
próprias mãos humanas, como tentativa de antecipação da era de mil anos de
benesses, em termos contemporâneos e culturais.
Em diálogo com o conceito de ambivalência proposto por Bauman, a
necessidade de administrar as inseguranças trazidas por uma modernidade líquida e
dura, pode favorecer com que se busque administrar a vida e a morte, acabar com as
incertezas e determinar o fim da história, com o apoio da ferramenta tecnológica.
Portanto, mais que estar restrito à Antiguidade, quando nasce o fenômeno
stricto sensu, a investigação do tema milenarista-escatológico se torna atual e
profícuo a fim de buscar-se respostas sobre certas dimensões das relações entre
religião e contemporaneidade à medida em que as propostas transumanistas
parecem retomar, de forma secularizada, as questões de felicidade milenar e
imortalidade percebidas no antigo movimento cristão. Ainda em pesquisa, esse
trabalho pode oferecer apenas reflexões iniciais, que podem ou não ser confirmadas.

REFERÊNCIAS

2045. 2045 Avatar project milestones. In: 2045 Strategic Social Iniciative. Disponível
em: http://2045.com. Acesso em 20 out. 2020.

APOCALIPSE. In: Bíblia Online. Disponível em:


https://www.bibliaonline.com.br/acf/ap?q=apocalipse. Acesso em: 20 out. 2020.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade e ambivalência. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed.,
1999.
BAUMAN, Zygmunt. Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001.
BAUMAN, Zygmunt. Bauman sobre Bauman. Rio de Janeiro: Zahar, 2015. Versão
Epub.
BOSTROM, Nick. Transhumanist values. 2003-2005. Disponível em:
https://nickbostrom.com/ethics/values.html. Acesso em: 22 out. 2020.
DELUMEAU, Jean. Mil anos de felicidade: uma história do Paraíso. Tradução: Paulo
Neves. Rio de Janeiro: Companhia das Letras, 1997.
HUMANITY +. Transhumanist FAQ. 2016-2020. Disponível em:
https://humanityplus.org/philosophy/transhumanist-faq/. Acesso em: 20 out. 2020.
HUXLEY, Julian. New bottles for a new wine: essays by Julian Huxley. London: Chatto
e Windus, 1957.
TRANSUMANO. In: Priberan Informática S.A. Dicionário Priberam da Língua
Portuguesa [em linha]. Porto, 2008-2020. Disponível em:
https://dicionario.priberam.org/transumano. Acesso em: 20 out. 2020.
VOEGELIN, Eric. A nova ciência da política. 2. ed. Tradução de José Viegas Filho.
Brasília: Editora Universidade de Brasília, 1982.
540

O ETHOS DA NOVA ERA NAS RELIGIÕES TRADICIONAIS: O


CASO DO COACHING EVANGÉLICO

FÁBIO L. STERN,
Doutor em Ciência da Religião
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
[email protected]

SILAS GUERRIERO,
Doutor em Ciências Sociais
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
[email protected]

RESUMO: A Nova Era deixou de ser visível apenas entre grupos exclusivistas. Seus
valores começaram a ser disseminados na cultura mais ampla naquilo que foi
chamado de ethos da Nova Era. Esta pesquisa mostrará como esses valores são vistos
até mesmo no pentecostalismo brasileiro. Para isso, adotamos o coaching como
objeto. Retornamos brevemente à história do coaching e sua relação com a Nova Era.
Explicamos, então, como a difusão do ethos da Nova Era na sociedade em geral levou
à incorporação de práticas da Nova Era em formas mais tradicionais de religião.
Finalmente, discutimos como o coaching foi incorporado à pletora de bens religiosos
também oferecidos pelos pentecostais brasileiros, e como o coaching evangélico
mantém grande parte da lógica religiosa da própria Nova Era.

Palavras-chave: Neopentecostalismo; Pentecostalismo; Coaching; Desenvolvimento


espiritual; Ethos Nova Era.

INTRODUÇÃO

Pesquisar a Nova Era no século XXI está muito diferente do que costumava ser
em momentos anteriores. Embora grupos e práticas de outrora, como comunidades
hippies e cultos a extraterrestres, continuem a existir, não se trata mais de focarmos
apenas os grupos milenaristas específicos. Precisamos agora nos ater em como os
valores da Nova Era, introduzidos desde a década de 1960, se difundiram na cultura
dominante.
Isso se deu pela característica econômica do Ocidente, o berço da Nova Era.
Embora a Contracultura de 1960 se opusesse ao consumismo, o capitalismo tem a
capacidade de se apropriar também de ideias a ele opostas (p. ex., ambientalismo,
diversidade cultural, medicinais tradicionais), convertendo tais ideais em mais uma
commodity. Mas ao passo que transforma algo em bem de consumo, o capitalismo
541

também buscar expandir o mercado para maximizar lucros, transcendendo o núcleo


consumidor do qual tais valores se originaram.
No caso de um bem religioso comodificado, isso implicaria que valores de uma
minoria religiosa podem ser vendidos a adeptos das grandes religiões. Nessa
pesquisa, mostramos como uma religião fora do círculo da Nova Era incorpora uma
prática novaerista. Hoje o coaching, uma prática típica da Nova Era, está sendo
adotado por vários setores, inclusive entre religiosos pentecostais. Até mesmo a
Assembleia de Deus, grupo que permaneceu focado no “tradicional” e no
“conservadorismo” desde seu início, também tem incorporado práticas de coaching.

COACHING E NOVA ERA

Segundo Berni (2008, pp. 88-89), por muitos anos a palavra coaching em inglês
foi usada quase que exclusivamente para se referir a treinadores físicos. Com a
difusão do ethos da Nova Era, porém, seu papel se expandiu. Hoje, coach é alguém
que ajuda seus clientes a descobrirem seus potenciais e resolverem problemas.
Foi na década 1980, de acordo com Reis (2014, p. 27), que o coaching
começou a ser visto dessa forma. Inicialmente os coaches se concentraram em
garantir o sucesso profissional de seus clientes, mas logo começaram também a
ajudar em suas conquistas pessoais e espirituais. Como a busca pela elevação
espiritual é central à Nova Era, o coaching foi adotado pelos novaeristas como uma
ferramenta essencial.
Berni (2008, pp. 30-43) atesta a relação entre coaching e Nova Era,
argumentando que a transdisciplinaridade e o Movimento do Potencial Humano são
suas bases. Durante as décadas de 1970 e 1980, tais movimentos influenciaram
diversas áreas do conhecimento. Dentro da psicologia, eles levaram ao
desenvolvimento da psicologia humanista, que enfatiza o lado saudável do paciente,
adotando uma perspectiva de que todos temos uma tendência natural ao bem-estar.
Segundo Hanegraaff (1996), a psicologia humanista serviu de trampolim para a
emergência de um ramo psicológico mais amplo: a psicologia transpessoal, que se
baseia na transdisciplinaridade e tem fortes influências da cosmologia novaerista.
Tais movimentos influenciaram mudanças na concepção do que é ser um líder.
A partir do ethos da Nova Era, o líder se tornou aquele que inspira seus subordinados,
e não apenas alguém responsável por eles. No típico orientalismo novaerista, grandes
figuras espirituais da Ásia inspiraram involuntariamente este novo conceito de
liderança (p. ex. Gandhi e Dalai Lama). Como explica Berni (2008, pp. 82-83), o bom
líder passou a ser visto como aquele que ouve sua “voz interior”. Em outras palavras,
alguém que busca o poder dentro de si.
Na década de 1970, muitos manuais de como conseguir “ouvir” tal “voz
interior” foram vendidos. Como demonstrou Hanegraaff (1996), a cultura da
autoajuda foi central à Nova Era. Ações afirmativas e métodos de ampliação da
consciência estavam em voga na literatura novaerista, visando o sucesso e o
autodesenvolvimento. A cosmologia da Nova Era considera que uma pessoa cria sua
própria realidade de acordo com a vibração de seus padrões mentais. Logo, a
542

prosperidade só pode ser alcançada como fruto do desenvolvimento espiritual. Para


os defensores desta corrente, um sistema injusto ou relações abusivas entre as
classes sociais não são razão da desigualdade, mas sim a “pobreza espiritual”.
O coaching é, em grande parte, a personificação desta cultura novaerista de
autoajuda, que não é mais vendida na forma de livro, mas como um serviço. Forsey
(2015, pp. 62-63) e Hornborg (2010, pp. 403-404) identificam algumas características
no coaching que também são centrais à autoajuda da Nova Era. Algumas delas são:
(1) a crença de que algo poderoso está adormecido dentro de cada pessoa; (2) a
crença de que esse poder pode ser liberado; (3) a crença de que todos podem usar
esse poder para atingir bens materiais; (4) ritualista centrada no indivíduo; (5)
autoconfiança; (6) líderes autoproclamados; (7) transformação através de
experiências emocionais intensas; e (8) comercialização.

COACHING EVANGÉLICO

Com a sociedade atual focada no posicionamento profissional, o coaching


ganhou um espaço considerável. A população média considera o coaching uma forma
nova de aconselhamento, consultoria pessoal ou psicoterapia. Os coaches acabam
realizando uma mistura superficial disso tudo sem necessariamente se identificarem
com qualquer um desses conhecimentos. É assim que o coaching se tornou parte das
igrejas pentecostais. Não é uma prática que os evangélicos veem como algo religioso.
Eles acham que é uma forma de terapia ou aconselhamento para ajudar as pessoas a
enfrentar suas demandas religiosas, por um lado, e as vicissitudes da vida moderna,
por outro.
Nas últimas décadas, as igrejas evangélicas têm procurado fazer o que tem
sido chamado emicamente de “psicologia cristã”. Além do aconselhamento pastoral,
muitos psicólogos evangélicos defendem a existência de um campo próprio da ciência
da psicologia que atue baseado no cristianismo. Tal atitude enfrenta muita
resistência nos conselhos de classe da psicologia, e alguns “psicólogos cristãos”
tiveram suas licenças de psicologia suspensas no Brasil (OTONI, 2015). Isto ocorre, em
grande parte, por três razões: (1) o CFP proíbe o exercício da psicologia associada a
qualquer prática religiosa; (2) os autoproclamados “psicólogos cristãos” utilizam o
discurso bíblico para naturalizar desigualdades de gênero e a submissão da esposa
mesmo em casos de violência doméstica, dificultando o trabalho da psicologia social;
e (3) os “psicólogos cristãos” consideram campanhas públicas de abstinência sexual
mais válidas do que a educação sexual para adolescentes.
Se, por um lado, a psicologia é uma profissão regulamentada e tem a Justiça ao
seu lado, os pentecostais, por outro, encontraram no coaching uma abertura legal
para evitar problemas. O brasileiro médio não compreende a diferença entre
coaching e psicologia. Ao perceberem isto, muitos evangélicos que querem oferecer
uma psicoterapia baseada em valores cristãos começaram a atuar como coaches.
Afinal de contas, coaches não precisam de treinamento superior nem de registro
profissional. Esta discussão inicial é essencial porque seria ingênuo considerar que
toda prática de coaching evangélico reflete o ethos da Nova Era. Em alguns casos, o
543

coaching evangélico é apenas a “psicologia cristã” travestida. Nesse sentido,


identificamos que serão necessárias mais pesquisas para uma distinção mais segura
entre o coaching evangélico que emula o coaching da Nova Era e o coaching
evangélico que é “psicologia cristã” disfarçada.
Para aumentar a complexidade, observamos que existem formas de coaching
evangélico que são as duas coisas ao mesmo tempo. Ou seja, casos que são
“psicologia cristã” e são, também, absorções do ethos da Nova Era. Um exemplo de
destaque ocorre na Assembleia de Deus. Silas Malafaia, um de seus expoentes mais
famosos, reconhece a importância do coaching evangélico. Malafaia é bacharel em
psicologia e há muitos usa seu título acadêmico para autolegitimar sua pregação
religiosa sobre a eficácia das terapias de conversão gay. Um sobrinho-neto gay de
Malafaia declarou publicamente que foi forçado a se submeter a estas terapias
quando tinha 15 anos (ROHEN, 2019). Entretanto, é um equívoco reduzir o coaching
de Malafaia apenas ao espectro de tentar disfarçar a “psicologia cristã” de outra
coisa. Malafaia define o coaching evangélico como um ensinamento bíblico sobre
como focalizar no propósito (MAZZA, 2019). Como o responsável pelas aulas de
liderança do ministério Vitória em Cristo, ele inclui várias das técnicas discursivas
encontradas no ethos da Nova Era para treinar futuros sacerdotes evangélicos. Para
isso, ele liga a teologia da prosperidade a noções de crescimento pessoal e de
desenvolvimento do potencial humano. Neste sentido, o trabalho de Malafaia é mais
do que uma tentativa de passar socialmente as terapias de conversão gay, mas
também uma apropriação de elementos da Nova Era.
Na Igreja Renascer em Cristo, a prática do coaching assume todas as
características típicas do coaching da Nova Era. Desde 2018, a Renascer tem
promovido um programa chamado Prosperity Coaching, um projeto focado no
desenvolvimento profissional e financeiro criado por Estevam Hernandes, quem foi
diretor de marketing de uma multinacional antes de se dedicar ao evangelho.
Hernandes é um dos fundadores e o principal líder da Igreja Renascer. Os principais
palestrantes do programa são ele próprio, sua esposa, sua filha, e o ministro Tiago
Brunet. A Renascer utiliza o Facebook como meio de divulgação, e o próprio
programa tem um canal no YouTube. Um de seus sites proclama que eles convidam
palestrantes para compartilhar sua vasta experiência como empreendedores de
sucesso e para dar dicas sobre comportamento e gestão pessoal e financeira
(iGOSPEL, 2018). A única diferença significativa entre o Prosperity Coaching e o
coaching da Nova Era é que os discursos do Prosperity Coaching usam simbolismo
bíblico, enquanto os coaches novaeristas preferem a física quântica e o esoterismo.
Em relação à Brunet, embora seja um nome comum no projeto Prosperity
Coaching, ele é um ministro independente. Brunet tem milhões de seguidores em
seus canais YouTube, Instagram e Facebook. Suas mensagens não têm objetivos
tradicionalmente religiosos. Seus seguidores não estão em busca da salvação, graça,
libertação ou verdade eterna. As pessoas buscam Brunet pelo sucesso profissional e
para enriquecimento. Entretanto, a linguagem utilizada por ele é religiosa, cheia de
passagens bíblicas e outras referências teológicas (ROSÁRIO, 2019). Existe uma
simbiose entre as técnicas novaeristas de sucesso profissional e a vida evangélica
544

cotidiana nas obras da Brunet. Seus seguidores vêm de diferentes denominações


cristãs pentecostais e carismáticas, e seu discurso evita entrar em conflito com
qualquer uma delas, permitindo-lhe alcançar uma vasta audiência. Brunet emula,
enquanto evangélico, o perfil dos buscadores espirituais da Nova Era: não
pertencendo a qualquer afiliação, transita entre diferentes grupos pentecostais,
estabelecendo intercâmbios de acordo com sua conveniência.
Porém, é nas pequenas denominações cristãs e entre ministros autônomos
que o coaching evangélico ganha maior expressão. Coaches como Geralda Luciana,
empresária negra focada no crescimento pessoal e profissional através de coaching e
programação neurolinguística, acaba sendo convidada a dar palestras em pequenas
igrejas neopentecostais. Os evangélicos brasileiros recebem as frases prontas de
Luciana (p. ex. “quem age tem poder”, “da senzala ao sucesso” etc.) com grande
abertura (cf. IGREJA TEMPLO FORMOSA, 2019). O fato dela ser negra também tem
grande impacto simbólico, já que a maioria dos evangélicos brasileiros são negros. Ao
lhes dizer que eles podem superar sua luta econômica com o poder do pensamento e
do trabalho duro, Luciana fornece ao meio evangélico muito do ethos da Nova Era no
que diz respeito à prosperidade, ao mesmo tempo em que agrada a seus líderes
religiosos, que pregam pela meritocracia.
Sites evangélicos brasileiros também promovem o uso de coaching entre os
pentecostais. O portal evangélico Soma, por exemplo, tem vários textos que
estimulam o coaching entre os cristãos e apresentam o coach como um profissional
qualificado. Em um desses textos, o teólogo Leonildo Medeiros incentiva o uso de
ferramentas de coaching para ministros de diferentes denominações pentecostais.
Segundo ele, “quanto mais ferramentas de coaching para atender as pessoas que
procuram um pastor ou líder cristão para ser ajudado, mais resultados espirituais
serão possíveis” (MEDEIROS, 2019, § 10).

RESISTÊNCIAS

O coaching evangélico também encontra resistência e críticas entre teólogos


pentecostais, já que eles também clamam por espaço entre a congregação. Alguns
pastores temem que o uso do coaching possa corromper a própria igreja,
classificando-a como uma tendência que fere os princípios religiosos cristãos.
Samuel Gonçalves (2019), ministro da Assembleia de Deus, afirma que cabe à
igreja proclamar o evangelho e consagrar os santos, mas que há sempre modismos
entrando pelas portas dos templos para corroborar a perversão dos ensinamentos
eclesiásticos e afastar os cristãos do cristianismo bíblico, do que a escritura apresenta
como verdade insubstituível.
Pedro Pamplona (2016), teólogo e sacerdote evangélico que publica suas
opiniões em um blog êmico, também considera que a teologia da prosperidade está
dando lugar à teologia do coaching. Desde os anos 1970 a teologia da prosperidade
vem crescendo nos círculos evangélicos brasileiros, notadamente entre o
pentecostalismo e o cristianismo carismático. Para Pamplona (2016), muitos
evangélicos são críticos às propostas da teologia da prosperidade porque ele se reduz
545

exclusivamente a uma meta de ganho material. Entretanto, ele é crítico em relação à


nova alternativa. Para ele, o coaching evangélico só elimina a interferência divina em
benefício material do indivíduo, mas continua sendo algo materialista.
Conclusão
Conforme pudemos perceber pelos dados apontados, a Nova Era expande seus
tentáculos por vários setores da sociedade, seculares ou religiosos. No caso
estudado, o coaching, uma apropriação novaerista, é utilizado no meio evangélico,
não apenas como forma de diversificação da atuação das igrejas, mas como forma de
escapar das legislações impostas sobre a atuação profissional da área da psicologia.
Controverso em termos teológicos no próprio seio das igrejas, ganha cada vez mais
espaço em algumas de suas mais tradicionais representantes.

REFERÊNCIAS

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Psicologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2008.
FORSEY, C. A. How to become an advice guru. Tese (Doutorado em Sociologia).
University of British Columbia, Vancouver, 2015.
HANEGRAAFF, W. J. New Age religion and Western culture. Leiden: Brill: 1996.
HORNBORG, A. C. Designing rites to re-enchant secularized society: New varieties of
spiritualized therapy in contemporary Sweden. Journal of Religion and Health, 51,
402-418, 2010.
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23-30, 2014.
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547

A “FÉ” DOS NOVOS ATEUS

JOÃO PAULO REIS BRAGA


Doutorando pela PUC Goiás e Bolsista CAPES/PROSUC,
Mestre em Ciências da Religião pela UNICAP.
[email protected]

RESUMO: O presente artigo é uma síntese da dissertação: “A Fé dos Novos Ateus:


Uma análise sobre o discurso neoateísta e sua influência na academia”, defendida e
aprovada em janeiro de 2020 pela Universidade Católica de Pernambuco. Após os
ataques de 11 de setembro de 2001, ressurge no mundo um ateísmo mais agressivo e
radical, que passa a ser chamado de “neoateísmo”. Para conhecer esse fenômeno, o
estudo traçou três objetivos: a) conhecer a origem e o desenvolvimento do discurso
neoateísta; b) averiguar o embasamento científico desse discurso sob a perspectiva
da genética; e c) compreender a influência desse discurso, o modo como ele mantem
sua hegemonia e algumas de suas consequências sociais. Nossa análise utilizou o
método foucaultiano que busca a “perspectiva genealógica” e a “perspectiva crítica”
de um determinado discurso, na primeira e na terceira parte do estudo. Mas na
segunda parte o método foi o de revisão bibliográfica de pesquisas a respeito do
código genético. Os resultados revelaram que a origem do discurso e do próprio
movimento neoateísta está na segunda metade do séc. XIX, e que várias das
alegações dos novos ateus já foram refutadas e podem ser consideradas como mitos
científicos. Também ficou demonstrado que o discurso do novo ateísmo é mantido
em função dos quatro grandes sistemas de exclusão descritos por Foucault. As
conclusões da análise são de que a hegemonia do discurso do neoateísmo traz
prejuízos ao desenvolvimento da ciência e que a teodiceia propagada por esse
movimento é um discurso perigoso que, em função do crescimento exponencial do
ateísmo no mundo, pode representar um grande risco a liberdade religiosa no futuro.

Palavras-chave: Neoateísmo; Religião; Genética; Foucault; Mito Científico.

INTRODUÇÃO

Após os ataques de 11 de setembro de 2001 em território americano, o mundo


vê crescer um forte sentimento antirreligioso nos EUA e em outras partes do planeta,
principalmente contra o islamismo (KAPLAN, 2006). Nesse contexto, acontece uma
sucessão de publicações e reedições de livros de autores atacando não apenas o Islã,
mas também toda e qualquer forma de Religião. Escritores militantes do ateísmo
passaram a vender milhões de livros e entraram na lista de best-sellers em vários
países. Esse conjunto de fatores colaborou para o ressurgimento de uma forma de
548

ateísmo que foi característico do séc. XIX, um ateísmo mais agressivo e radical, que
atualmente tem sido chamado de “novo ateísmo” ou “neoateísmo”.
Escritores neoateus se revestem de uma aura cientificista em suas publicações,
no entanto, muitas de suas alegações são rechaçadas por especialistas em genética
como sendo hipóteses não comprovadas e/ou mitos científicos já descartados. A
palavra “mito” vem do grego clássico (μυθος; transl.: mithós), e em seu sentido
original significa “narrativa” ou “história”. Mitos científicos são histórias relacionadas
com cientistas, com descobertas e experimentos científicos, ou com hipóteses e
teorias que são apresentadas como comprovadas pela Ciência sem que as mesmas
sejam de fato reais ou tenham sido confirmadas experimentalmente. De acordo com
Douglas Allchin, mitos científicos são: “Histórias populares da Ciência que
romantizam os cientistas, inflam o drama de suas descobertas e lançam os cientistas
e o processo da Ciência em proporção monumental... tudo para contar uma boa
história” (ALLCHIN, 2003, p.329, tradução nossa).193
Assim, foram estabelecidos três objetivos principais para tentar compreender
a gama de aspectos que estão relacionados com o discurso neoateísta, são eles: a)
conhecer a origem e o desenvolvimento do discurso neoateísta; b) averiguar o
embasamento científico desse discurso sob a perspectiva de descobertas no campo
da Genética; e c) compreender a influência do discurso dos novos ateus e o modo
como ele mantem sua hegemonia no sistema superior de ensino. Desse modo,
abordamos questões que vão desde o surgimento da primeira teoria científica
moderna e a gênese da teoria evolutiva, passando por questões como as leis
mendelianas, as hipóteses neodarwinianas, as comparações entre genoma e as
implicações da Epigenética, até chegar na análise dos sistemas de controle dos
discursos descritos por Michel Foucault (1926-1984) no livro “A Ordem do Discurso”
publicado em 1970. Investigando, por fim, as consequências da hegemonia das
narrativas dos novos ateus para a Academia e para a sociedade de modo geral.

A ORDEM DO DISCURSO NEOATEÍSTA

A primeira parte da pesquisa revelou que o discurso neoateísta veio responder


a um sentimento antirreligioso que prevalecia entre os mais influentes cientistas do
séc. XIX, em especial aqueles que faziam parte do Club-X, comandados por Thomas H.
Huxley (1825-1895). Após a publicação de “A Origem das Espécies” (1859), o discurso
contra a religião rapidamente se tornou hegemônico na Academia e na mídia. Dois
livros escritos, um por John Draper (1811-1882) e outro por Andrew White (1832-
1918) fizeram grande sucesso nesse período, e foi por meio deles que se popularizou
o mito de um conflito entre Ciência e Religião.
Após virem à tona os estudos de Mendel e a oposição que ele levantou contra
a teoria de Darwin (MENDEL, 2009, p.39), o discurso neoateísta foi modificado,
adotando novas hipóteses como o Neodarwinismo. Sobre isso, Foucault afirma que

193
ALLCHIN: “popular histories of science that romanticize scientists, inflate the drama of their discoveries, and cast
scientists and the process of science in monumental proportion. [...] all for the sake of telling a good story”.
549

as transformações nos paradigmas científicos do séc. XIX foram a consequência não


de descobertas científicas ou de observações factuais das proposições darwinianas,
antes, elas foram fruto de uma “vontade de verdade” que caracterizou esse século
(FOUCAULT, 1996, p.19). Rodney Stark resume esse período da seguinte forma:

As objeções levantadas por muitos biólogos e geólogos no tempo de Darwin


não eram meramente que a afirmação de Darwin de que as espécies
surgissem através de éons de Seleção Natural foi oferecida sem provas de
apoio, mas que a evidência disponível era esmagadoramente contrária.
Infelizmente, ao invés de concluir que uma teoria da origem das espécies
ainda estava para ser demonstrada, muitos cientistas insistiram para que as
reivindicações de Darwin fossem abraçadas de qualquer jeito (STARK, 2004,
p.42, tradução nossa).194

Também ficou demonstrado como o sistema social de exclusão e controle dos


discursos operou para modificar as conclusões mendelianas de modo a fazer com que
elas parecessem apoiar o paradigma evolucionista e, consequentemente, o discurso
neoateísta que já era hegemônico na época. Pudemos assim compreender a
declaração de Foucault de que foi preciso o “desdobramento de todo um novo plano
de objetos na Biologia para que Mendel entrasse ‘no verdadeiro’” (FOUCAULT, 1996,
p.34-5). Os resultados dessa parte da análise genealógica do discurso neoateísta
demonstraram como a construção e difusão de uma narrativa ateísta veio a atender
aos interesses da época, que visavam substituir a cosmovisão religiosa por uma
interpretação cientificista da realidade.
No segundo capítulo, fazendo uso de pesquisas empíricas e de conclusões de
um grande número de cientistas, demonstramos como várias das alegações utilizadas
no sistema de discurso dos novos ateus já foram refutadas e hoje podem ser
consideradas apenas como mitos científicos. Desse modo, pudemos entender como o
movimento neoateísta age no sentido de negar as incontáveis evidências de uma
diversidade biológica intencionalmente criada. E é através da reiteração sistemática
desse discurso de negação que os novos ateus continuam determinando os
conteúdos curriculares das Academias, recheando-os com alegações que foram
experimentalmente desacreditadas.
Em outras palavras, o que ficou constatado foi que a ausência de explicações
minimamente plausíveis para o surgimento e desenvolvimento dos genomas levou
muitos escritores populares do novo ateísmo a utilizarem mitos científicos como
forma de sustentar suas crenças e proposições. De tal modo que pudemos evidenciar
como as descobertas genéticas refutaram diversos dos mitos difundidos nas
narrativas neoateístas, entre eles: o mito do DNA lixo, o mito das mutações
benéficas, o mito da evolução das bactérias, o mito do 1% (também conhecido como

194
STARK: “The objections raised by many biologists and geologists in Darwin’s time–it was not merely that Darwin’s
claim that species arise through eons of natural selection was offered without supporting evidence, but that the
available evidence was overwhelmingly contrary. Unfortunately, rather than concluding that a theory of the origin of
species was yet to be accomplished, many scientists urged that Darwin’s claims must be embraced, no matter what”.
550

semelhança genética entre humanos e símios), o mito da fusão dos cromossomos, e,


finalmente, o mito da abiogênese.
Assim, concordamos com Peter Harrison quando ele afirma que “o termo
‘fundamentalista’ pode ser aplicado com alguma justiça para os mais extremados
proponentes do naturalismo científico” (HARRISON, 2007, p.14). Pois, a princípio,
alguém pode imaginar que o neoateísmo milita contra as religiões e contra os
religiosos porque é formado por pessoas céticas, descrentes de afirmações que não
possam ser comprovadas empiricamente. Entretanto, na prática, vimos que os novos
ateus evidenciam ter um nível de crença bastante elevado em qualquer hipótese que
não implique a existência de um Criador, ainda que tais hipóteses necessitem de
“milagres”, “sorte” e “alienígenas”, e ainda que as proposições não tenham sido
confirmadas em experiências controladas, ou mesmo que já tenham sido refutadas
por descobertas científicas. Desse modo, justificamos o porque do nosso estudo ter
recebido o título de ‘A Fé dos Novos Ateus’, no sentido de destacar que o que é
propagandeado nos discursos do neoateísmo nada mais é do que um sistema de
crenças, um conjunto de discursos mitológicos que não são apoiados pela Ciência.
Iniciamos a terceira e última parte de nosso estudo abordando três dos mais
conhecidos mitos do evolucionismo: o pescoço das girafas, o melanismo industrial e a
teoria da recapitulação de Haeckel. Nosso estudo demonstrou como e porque esses
mitos científicos continuam sendo reproduzidos nas salas de aula, apesar deles já
terem sido refutados há décadas. A alegação principal é de que mesmo sendo falsos,
os mitos possuem a “utilidade prática” de ensinar como supostamente poderia ter
ocorrido o processo evolutivo darwiniano (ROQUE, 2003, p.66).
Em seguida voltamos para Foucault, para explicar como acontece o sistema de
controle dos discursos na sociedade e quais são os fatores que determinam sua
prevalência. Vimos o chamado “sistema de inversão”, reconhecendo as fontes
tradicionais de discursos (autor, disciplina e vontade de verdade). Observamos a
questão da descontinuidade, entendendo que os discursos são práticas que podem
ser ignoradas ou até mesmo excluídas de uma sociedade. Chamamos a atenção
também para a especificidade do discurso neoateísta no sentido de demonstrar como
ele mantém sua hegemonia ao ser imposto como prática exclusiva no meio
acadêmico. Assim, o sistema foucaultiano nos permitiu fazer uma análise sociológica
de casos que demonstram como a pressão exercida pelo discurso hegemônico tem
força para excluir, diminuir e/ou anular a existência dos discursos contrários a
paradigmas como o Evolucionismo e o ateísmo metodológico.
Os resultados revelaram ainda que para manter sua hegemonia na Academia o
discurso do novo ateísmo faz uso dos quatro grandes sistemas de exclusão descritos
por Foucault, são eles: a interdição da palavra; a segregação pela loucura; a rarefação
do discurso do oponente; e o controle da produção de disciplinas. Assim, uma das
consequências práticas da hegemonia neoateísta na Academia é a manutenção de
uma censura pseudocientífica, que afirma que qualquer teoria que trabalhe com a
possibilidade de existir uma origem planejada para estruturas complexas, como o
código genético, deve ser automaticamente rechaçada como “não Ciência”. Essa
censura, ocorre especialmente através do ateísmo metodológico, que é a mais eficaz
551

ferramenta institucional usada pela “polícia discursiva” para controlar a produção e a


distribuição dos discursos contrários ao Evolucionismo e ao naturalismo de modo
geral. Nesse contexto, também levantamos a questão da possível miopia científica
que pode estar sendo causada pela adoção do ateísmo metodológico como único
método aceito na Academia.
Vimos ainda que, apesar do discurso neoateísta estar num momento de
expansão em seu número total de adeptos e de ele ainda manter sua hegemonia nos
sistemas de educação pelo mundo, durante a segunda metade do séc. XX iniciou-se
uma reação a esse discurso. Isso ocorreu através de instituições educacionais de
muitos estados e países, que passaram a ensinar tanto as versões naturalistas como
as versões criacionistas em sala de aula; e também com a maior abertura que
algumas revistas científicas veem dando para a publicação de artigos que não tenham
que necessariamente concordar com os paradigmas naturalistas vigentes. Ou seja, o
que está ocorrendo é que nas próprias linhas epistemológicas que estão sendo
adotadas em algumas pesquisas, os cientistas passaram a descartar as inexplicáveis
hipóteses de aleatoriedade e voltaram-se para aquilo que é óbvio: planejamento (LIU,
2016, p.1).
Chamamos atenção também para o fato de que essa reação criacionista, aliada
à carência de embasamento científico nas afirmações neoateístas, fez com que no
início do séc. XXI o movimento dos ateus militantes fosse levado a transformar seu
discurso, e passasse a exigir de seus membros uma aceitação dogmática – quase
inquestionável – de suas afirmações cientificistas. O novo momento do neoateísmo
também passou a cobrar de seus adeptos uma postura antiteísta mais ativa, que tem
sido interpretada como “radical” e “fundamentalista” por vários estudiosos, e que em
muitos momentos se manifesta quase como uma postura “religiosa ateia”.
Nesse cenário, destacamos algumas das consequências sociais que já estão
acontecendo e que ainda podem acontecer com a propagação do discurso
intransigente dos novos ateus, a saber: intolerância religiosa e o perigo de políticas
antiteístas. A teodiceia pregada pelo movimento neoateísta, que alega que a
eliminação da Religião será a panaceia para todos os males da humanidade, é, na
verdade, um discurso muito perigoso, que pode representar um grande risco à
liberdade religiosa no futuro.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Após Darwin, as respostas finais foram dadas: a vida e sua diversidade


surgiram espontaneamente e evoluíram gradativamente. Assim, a partir do séc. XX
coube aos pesquisadores responderem simplesmente como isso ocorreu. Mais do
que um paradigma, isso foi transforado num dogma que obrigou os cientistas a
sistematicamente reproduzirem esse discurso, apresentando sempre o ateísmo
metodológico como único caminho que pode ser considerado como científico.
De fato, seja lá do que estivermos tratando, ou surgiu espontaneamente ou foi
criado. Assim, na prática, as versões naturalistas para a origem e diversificação da
vida, que foram e continuam sendo propagadas nas instituições de ensino, apesar de
552

não serem explicações que possuem uma ancoragem científica, elas cumprem o
papel de apresentar supostas respostas naturalistas, que representam simplesmente
argumentos diferentes daqueles que muitos acreditam ser a “versão religiosa”. A
partir do surgimento e do suposto embasamento científico para as versões
naturalista, aos poucos, os acadêmicos deixaram de se perguntar qual discurso era
mais lógico? O naturalista ou o “religioso”? Qual a explicação mais cientificamente
fundamentada? A Academia passou a adotar as versões que, antes de mais nada, se
opunham à “versão religiosa” de criação, de planejamento. Talvez isso ocorra porque
a mente humana tem uma tendência a trabalhar com dicotomias (luz-escuridão,
quente-frio, esquerda-direita, amor-ódio, justo-injusto, certo-errado...). E talvez, por
isso os mitos e o discurso antirreligioso concebidos no século XIX continuaram sendo
reproduzidos nos séculos seguintes por escritores militantes do ateísmo e por
acadêmicos cientificistas.
Chega a ser chocante para um principiante em pesquisas científicas como ele
não consegue encontrar provas empíricas do materialismo proposto pelo
neoateísmo. E ainda mais surpreendente é ver um número incomensurável de provas
de um planejamento e ordenamento do universo e da vida. E em verdade, se alguém
se interessar em estudar a história dos grandes cientistas e pensadores da
humanidade verá que raríssimos deles foram ateus (ou permaneceram ateus até o
final da vida).
O que podemos deduzir como um dos pontos mais relevantes desse nosso
amplo estudo é a necessidade patente de que haja uma nova abertura para
metodologias e premissas que possam conceber algo além de concepções
materialistas. Com isso, não se pretende esclarecer os fenômenos em sua totalidade,
oferecendo uma resposta definitiva para eles, antes disso, trata-se de pleitear a
possibilidade de usarmos uma explicação mais racional para a origem do que vemos,
tocamos e medimos. Talvez, com o olhar renovado, possamos compreender melhor
aquilo que está à nossa volta, superando esse aparente momento de estagnação
científica, onde temos mais desenvolvimento tecnológico e menos reflexão sobre a
origem da vida e do Universo.
É válido destacar que o presente estudo não teve como objetivo refutar o
paradigma da Evolução. Não obstante, o que acreditamos ter sido demonstrado
nessa pesquisa foi como ocorreu a hegemonia desse paradigma na Academia, como a
Genética não apoia o Darwinismo (e nem mesmo o Neodarwinismo), e como o
sistema de controle social do discurso garante a adesão contínua ao evolucionismo
darwiniano, mesmo que as descobertas genéticas já o tenham desacreditado.
Evidentemente que as mais de duzentas e trinta páginas que compõem essa
dissertação (dais quais, quinze são só de referências bibliográficas) não poderiam ser
detalhadas no número limitado de laudas permitido nesse artigo, por isso convido a
todos os leitores a conhecer a pesquisa completa para que façam seus próprios
estudos nos assuntos que aqui abordamos. Verão que nada do que foi apresentado é
novidade, e que as conclusões desse estudo não são discurso religioso disfarçado de
Ciência. O que foi explanado aqui atendeu todos os rigores científicos exigidos.
553

Por fim, entendemos que o corolário de todas essas análises e conclusões é


fonte geradora de muitas outras questões e reflexões, o que indica a necessidade de
dilatação desse campo de debates, pois ele se revela significativamente relevante,
estimulante e promissor. Ressaltando que tudo que foi apresentado na supracitada
dissertação está à disposição dos diferentes olhares e considerações, e aberto a
novas construções e reorganizações que possibilitem até melhores compreensões da
realidade exposta. Afinal, a vida é complexa, e estudá-la também.

REFERÊNCIAS

ALLCHIN, Douglas. Scientific Myth‐conceptions, Science Education, vol. 87, 2003.


BRAGA, João Paulo Reis. A “Fé” dos Novos Ateus: uma análise sobre o discurso
neoateísta e sua influência na academia / Dissertação, UNICAP, 2020.
FOUCAULT, Michel. A Ordem do discurso. Edições Loyola, 1996
HARRISON, Peter. “Ciência” e “Religião”: Construindo os Limites. Revista de Estudos
da Religião, 2007.
KAPLAN, J. Islamophobia in America? September 11 and Islamophobic Hate Crime,
Taylor & Francis, vol. 18, n°01, 2006.
LIU, Ming-Jin et al. Biomechanical characteristics of hand coordination in grasping
activities of daily living. PloS one, v. 11, n. 1, p. e0146193, 2016.
MENDEL, J.G. (1865). Versuche über Pflanzenhybriden [For the English translation,
see: Druery, C.T], Journal of the Royal Horticultural Society, 2009.
ROQUE, Isabel Rebelo. Sobre girafas, mariposas, corporativismo científico e
anacronismos didáticos. Ciência Hoje, São Paulo, v. 34, n. 200, p. 64-67, 2003. STARK,
Rodney. Fact, Fable and Darwin. American Enterprise Washington, v. 15, n. 6, p. 40-
45, 2004.
554

A COMPREENSÃO DOS OPERADORES DAS CIÊNCIAS DA


RELIGIÃO ACERCA DO FENÔMENO DOS CRENTES SEM
RELIGIÃO

OMAR LUCAS PERROUT FORTES DE SALES


Doutor em Filosofia pela UFMG e
PNPD CAPES (PUC Goiás)
[email protected]

CLÓVIS ECCO
Doutor em Ciências da Religião pela PUC Goiás e
Coordenador do Programa de Ciências da Religião da PUC Goiás
[email protected]

RESUMO: A pós-modernidade tem a marca da irrupção e da prevalência de relações


humanas cada vez mais fluídas e muitas vezes desvinculadas ou enfraquecidas da
pertença institucional. As relações e interações entre as pessoas se arranjam e se
rearranjam via as redes sociais, assim como via as múltiplas pertenças institucionais e
inclusive via a despertença das instituições e do desligamento de grupos e de
ordenamentos sociais, culturais e religiosos pré-estabelecidos. No campo religioso tal
realidade em constante processo de mutação não implica necessariamente a mera
ausência de crenças. Tampouco exclui a existência de norteamentos de cunho
pessoal ou se resume a simples carência identitária. É nesse campo caleidoscópico e
contraditório que emergem a figura dos crentes sem religião como uma vertente sui
generis de vivência de uma modalidade específica do que podemos, a partir da
pesquisa realizada, denominar de ateísmo institucional. Aqui reside ambiguidade a
ser tomada como objeto de estudo sobre o qual as Ciências da Religião hão de se
debruçar no intuito de compreender o fenômeno religioso em questão. O presente
artigo apresenta, a partir de pesquisa realizada junto a dois programas de pós-
graduação em Ciências da Religião do Brasil, como discentes e docentes
compreendem o fenômeno contemporâneo dos assim denominados pelo Instituto
Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) - crentes sem religião ou simplesmente os
sem religião. Ademais, importa situá-los como uma vertente original e modo de ser
do ateísmo em curso. A pesquisa a nortear o presente texto intitula-se: “Ateísmo
hermenêutico e a emergência de novas religiosidades na contemporaneidade”. Tal
pesquisa se encontra devidamente aprovada pelos comitês de ética em pesquisa e
cadastrada junto à Plataforma Brasil sob o CAEE: 83164618.0.0.0000.0037.

Palavras-chave: Pós-modernidade; Crentes sem religião; Operadores das Ciências da


Religião; Novos movimentos religiosos.
555

INTRODUÇÃO

O fenômeno dos sem religião no Brasil tem despertado a atenção de


estudiosos(as) das religiões, os(as) quais têm se debruçado sobre a análise do novo
cenário descortinado pelo crescente número de pessoas que se autodenominam sem
religião. Trata-se de grupo numericamente bastante expressivo195 e marcado por
grande mobilidade religiosa, a qual pode também ser constatada em âmbito
internacional.
A nomenclatura sem religião, utilizada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e
Estatística (IBGE), permanece ainda um tanto aberta, ambígua e até mesmo
contraditória. Ainda não se possui um consenso unívoco acerca do que realmente ela
compreende e de fato significa.
Diante desse horizonte, o presente artigo iluminará a compreensão dos sem
religião por meio da análise dos relatos obtidos juntos às entrevistas dos(das)
participantes de pesquisa – discentes e docentes de dois programas de pós-
graduação em Ciências da Religião no Brasil. Igualmente a presente abordagem trará
à tona as ambiguidades narradas nas entrevistas.

METODOLOGIA UTILIZADA PARA A REALIZAÇÃO DA PESQUISA DE CAMPO E PARA A


ANÁLISE DOS DADOS OBTIDOS

Uma vez que já foram realizadas outras pesquisas de campo com pessoas que
se autodenominam sem religião, optou-se por conceder voz aos estudantes e
profissionais operadores das Ciências da Religião. Tal tarefa emerge no intuito de se
buscar descortinar o cenário atual, marcado tanto pelo discreto acento do ateísmo e
pela presença mais expressiva dos sem religião, desde a rede de significados
apresentados pelos profissionais da área. A saber: trata-se de investigar a percepção
que os(as) pesquisadores(as) apresentam acerca dos sem religião. Nesse intuito foi
elaborado um roteiro de entrevista com cinco questões abertas a tratar diretamente
as temáticas do ateísmo e dos sem religião. Temáticas estas, caras à presente
pesquisa.
Foram entrevistados(as) ao todo dez docentes e dezesseis doutorandos(as)
pertencentes a dois programas de pós-graduação em Ciências da Religião no Brasil.
As entrevistas ocorreram via presencial mediante a gravação dos áudios e via remota
por meio da utilização de emails. Optou-se por trabalhar com entrevista narrativa,
uma vez que essa possibilita a análise mais acurada e em profundidade do discurso
trazido à tona por meio das respostas/relatos dos(as) participantes de pesquisa.
Ademais, tal método possibilita que surjam narrativas importantes à compreensão do
fenômeno dos sem religião, as quais podem incorporar as vivências e concepções
pertinentes a cada participante em sua experiência como discente ou como docente.

195
Segundo os dados do IBGE (2012), são mais de quinze milhões de pessoas que em 2010 se declararam sem
religião. Para Vieira (2018, p. 64), nos últimos decênios “a média de crescimento dos sem religião é
continuamente superior à da população brasileira [...]”.
556

A escolha das instituições deu-se mediante a adesão dos dois primeiros


programas a sinalizarem resposta positiva ao convite para contribuir com a pesquisa.
Considerou-se também a importância da representatividade desses programas, haja
vista a qualidade das produções acadêmicas de seus quadros discente e docente. Não
se estendeu a pesquisa junto a outros programas, uma vez constatado o grau de
saturação das respostas obtidas, fato a dispensar a necessidade de se recrutar outros
programas para a pesquisa. O corpo discente foi extremamente receptivo e
facilmente foi alcançado o número proposto de oito participantes para cada
programa. Quanto ao corpo docente, houve certo empecilho gerado pela dificuldade
de vaga na agenda; ocorreram recusas de se conceder a entrevista devido a alegação
de não afinidade com o tema; bem como foi manifestado o não interesse em
participar da pesquisa naquela oportunidade.
As entrevistas foram devidamente analisadas por meio da técnica
argumentativa dos discursos segundo as etapas abaixo descritas:

1- Transcrição de todas as entrevistas.


2- Leitura atenta das entrevistas transcritas em conjunto com a escuta das
gravações, no mínimo três vezes, a fim de se resguardar fidedignidade
textual às entrevistas.
3- Destruição das gravações ou exclusão dos emails, conforme acordado com
os(as) participantes da pesquisa.
4- Leitura profunda das transcrições para se reter a visão do conjunto, o
sentido global ou o argumento geral de cada entrevista. Marcação dos
argumentos-chave.
5- Leitura global, delimitação dos objetos do discurso e o centro da fala de
cada sujeito. Demarcação da significação dos argumentos de cada
entrevista.
6- Leitura global, para argumento e categorização das ideias centrais dos
argumentos de cada participante de pesquisa. Destaque dado aos pontos
comuns ou discordantes do conjunto de argumentos extraídos das
entrevistas.
7- Construção dos painéis de depoimentos discursos-argumentativos de
acordo com as ideias centrais das entrevistas, organizando-os em ordem
numérica das entrevistas.
8- Fechamento da análise, na busca de se confrontar os diferentes argumentos
encontrados com os conceitos da análise argumentativa e a posição da
literatura sobre os temas em questão196.

A partir da realização de todo este processo as respostas foram devidamente


agrupadas e reunidas em dois gráficos, a saber: um gráfico para as respostas
discentes e outro gráfico para respostas de docentes, como se apresenta a seguir.

196
A sistematização desses passos deu-se em sintonia com a obra de Bauer e Gaskell (2008).
557

A COMPREENSÃO DOS OPERADORES DAS CIÊNCIAS DA RELIGIÃO ACERCA DO


FENÔMENO DOS CRENTES SEM RELIGIÃO

Dos dados coletados por meio das entrevistas propõe-se aqui abordar aqueles
referentes à compreensão e à concepção dos sem religião. Trata-se dos relatos
tangentes às perguntas 6 e 7 do roteiro de entrevista:
Questão 06- Estabeleça distinção (aproximações e distanciamentos) entre o ateísmo,
o agnosticismo e os sem religião.
Questão 07- Segundo os dados do Censo Demográfico 2010, tem crescido o número
de pessoas que se reconhecem sem religião. Na sua percepção, como se pode
conjugar ateísmo e os sem religião?
Uma vez tabulados os dados levantados, delinearam-se os dois gráficos
apresentados a seguir:

GRÁFICO 1 - Sobre os sem religião – Professores(as)


7
6
6
5 5 5
5
4
4
3 3
3
2
2
1 1 1 1 1 1 1 1
1
0
Respostas dos(as) professores(as)

a b c d e f g h i j k l m n o p

Fonte: Pesquisa de campo, 2020.

Obs.: a) Os sem religião podem até crer, mas não possuem prática religiosa e não
participam de religião organizada.
b) O sem religião não possui adesão à crença ou possui crenças tradicionais
vagas.
c) Os sem religião são os sem instituição, mas têm uma crença. Não se filiam a
uma instituição.
d) O sem religião pode acreditar em algo, há possibilidade de crença (sagrado,
sobrenatural, divindade). Entretanto não segue nenhuma instituição
hierárquica.
e) O sem religião busca não estar vinculado a nenhuma instituição religiosa.
f) Sem religião: definição muito polêmica, categoria imprecisa.
g) Os sem religião apresentam postura crítica e de descrença frente às
religiões institucionais e das práticas das instituições.
h) O sem religião positivamente valoriza a liberdade do ser humano.
558

i) Os sem religião às vezes surgem da disputa do mercado religioso.


j) Sem religião: popularmente o à toa. A religião não passa pela minha vida,
não me interessa. Atitude mais existencial do que teórica.
k) Os sem religião não são menos reflexivos que os ateus e os agnósticos.
l) Os sem religião possuem crenças tradicionais vagas, mas não se identificam
com nenhuma religião organizada.
m) Sem religião: reflexo da falência/lacuna da força de coerção das instituições
religiosas.
n) Os sem religião têm muito clara essa questão de não querer pertencer a
nenhuma instituição e religião.
o) Os sem religião, no IBGE, crença em algo supranatural, mas sem adesão a
uma instituição religiosa.
p) Sem religião: categoria ampla e gelatinosa.

GRÁFICO 2 - Sobre os sem religião – Doutorandos(as)


14 13

12

10

6 5

4 3
2 2
2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1

0
Respostas dos(as) doutorandos(as)

a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t

Fonte: Pesquisa de campo, 2020.

Obs.: a) O sem religião transita por lugares. Sem instituição, sem vínculo com a
instituição, sem religião institucionalizada.
b) O sem religião apresenta a não crença específica em alguma coisa.
c) O sem religião pode ou não acreditar, ter ou não ter uma crença.
d) Os sem religião não fazem parte de uma religião institucionalizada, mas
constituem uma crença em si.
e) O sem religião é o desprendido da religião, mesmo tendo sua
espiritualidade.
f) Os sem religião são um grupo mais expressivo que os ateus.
g) Os sem religião são uma grande maioria. Grupo confundido com os ateus.
Os sem religião negam a institucionalidade.
559

h) O sem religião pode praticar a caridade como religião. Não há mais


exigência do religioso em si.
i) Os sem religião são um grupo confundido com os ateus.
j) Os sem religião como rastro do ateísmo contemporâneo.
k) O ateísmo seria um guarda chuva e o sem religião um ramo dele.
l) O sem religião é o indiferente, pessoa indecisa e sem opinião formada.
m) O sem religião é a liberdade da não necessidade da religião, ainda que
esteja à procura ou não de uma.
n) O sem religião tem certa confusão na diversidade religiosa, no pluralismo
religioso.
o) O sem religião não é necessariamente ateu, mas pode se tornar ateu. É mais
fácil um sem religião se tornar ateu do que um institucionalizado.
p) Notamos a partir do Censo (IBGE) que o número dos sem religião cresceu
muito.
q) O sem religião é indiferente, diferente do ateu que marca uma posição. O
sem religião tem menos opinião formada, seria uma pessoa indecisa.
r) Os sem religião seria o desencanto das organizações religiosas.
s) O sem religião é qualquer pessoa que não siga nada, mesmo que sejam
espiritualizadas, mesmo acreditando em algo, ou seja, simpatizante com
algumas e não seguir nenhuma.
t) Os sem religião são os não vinculados a uma instituição, mesmo crendo em
algo ou frequentando várias instituições (sem pertença ou multipertença).

A partir destes relatos obtidos e sistematizados depreendem-se as seguintes


considerações:

• Embora não haja consenso acerca de uma definição para os sem religião,
encontra-se bastante consolidada a noção segundo a qual os sem religião
não apresentam vínculo institucional e podem ter ou não ter crença em
relação ao divino. Consequentemente, apresentam atitude de negação e
de distanciamento das instituições e das doutrinas tradicionais. Vale
ressaltar: a não pertença institucional não implica a não crença. Antes, abre
espaço para a possibilidade da existência de crenças pessoais.
• Há um olhar de valoração positiva acerca das pessoas sem religião ao se
considerar característica desse coletivo o exercício da liberdade – inclusive
liberdade da não necessidade da religião. Os sem religião não são menos
reflexivos do que os ateus e os agnósticos. Assim sendo, reconhecer-se sem
religião não significa postura adotada mediante carência e/ou incapacidade
de se debruçar sobre o estudo de doutrinas, normas e dogmas das
religiões.
• Ênfase deve ser dada para o que aqui se denomina, ainda que
provisoriamente, postura nômade do sem religião: nômade institucional,
nômade de pertença, nômade de crença. Poder-se-ia pensar aqui da
560

existência de uma identidade do sem religião perpassada pela


característica do não lugar. Tal fato se pode constatar na crise de pertença
institucional.
• Plasticidade e fluidez parecem caracterizar a noção advinda à tona sobre os
sem religião: aqueles que “transitam por lugares”; que “podem crer e
podem não crer”.
• O sem religião aparece muito como o “não ser” o “não sendo” (retirante).
Afirma-se negativamente o que vem a ser o sem religião. Ele ainda
continua sendo qualificado em detrimento das normas, da crença e da
instituição. É sempre determinado negativamente. Exemplo: “o sem
religião não participa da religião organizada”. Não se diz: o sem religião
vive sua própria autonomia de crença e de pertença perante as religiões e
as instituições. Faz-se menção ao sem religião a partir da comparação com
a instituição e a religião.
• À luz da filosofia pode-se dizer também que o sem religião apresenta vários
modos de ser e outras tantas possibilidades de vir a ser. Daí ser uma
categoria “gelatinosa”, “imprecisa”, “polêmica”, “de confusão na
diversidade”, difícil de ser “enquadrada”. O sem religião pode estar sempre
em mudança.

CONCLUSÃO

As considerações advindas da pesquisa realizada permitem acenar para


compreensão inicial de como os(as) participantes da pesquisa pensam e reconhecem
o fenômeno dos sem religião desde o lugar em que se situam - um programa de pós-
graduação em Ciências da Religião. Importante trazer para o debate a visão de
pesquisadores. Oportunamente serão publicizados mais dados da pesquisa,
sobretudo os dados referentes ao ateísmo.
Diante de tantas afirmações dos sem religião como os sem instituição, pode-se
propor que tal grupo apresenta traços de um possível ateísmo institucional. Os sem
religião sobressaem por passarem à margem da crença aos princípios estabelecidos e
garantidos pelas instituições. Esse ateísmo institucional ocorre de maneira ampla por
não se restringir às instituições religiosas. O cenário político atual revela o descaso e
descrença de boa parcela da população para com as instituições políticas,
econômicas, governos, etc. Estas frustraram e frustram seguidores via escândalos de
ordem política, econômica, moral, etc. As instituições se encontram em meio a
grande crise de credibilidade e perdem paulatinamente a influência antes exercida
sobre as pessoas.
A perda da força coercitiva das instituições e das autoridades/governantes
tende, como se propõe, a acentuar o desenraizamento e a despertença de sujeitos
cada vez mais entregues ao horizonte pessoal de ordenamento da realidade à sua
volta. Daí não existir apenas um único modo de ser sem religião. Existem tantos
modos de ser sem religião quanto o número de liberdades cada vez mais autônomas
561

em busca de compor o horizonte de significação de sua própria existência.

REFERÊNCIAS

BAUER, M. W.; GASKELL, G. Pesquisa qualitativa com texto, imagem e som: um


manual prático. 7. ed. Petrópolis: Vozes, 2008.
CONSELHO NACIONAL DE SAÚDE. Resolução nº 466, de 12 de dezembro de 2012.
Sobre as diretrizes para pesquisa em seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília,
13 jun. 2013. Disponível em: http://conselho.saude.gov.br/resolucoe
s/2012/Reso466.pdf. Acesso em: 19 jan. 2018.
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA. Censo 2010: número de
católicos cai e aumenta o de evangélicos, espíritas e sem religião. Agência IBGE
Notícias, Rio de Janeiro, 29 jun. 2012. Disponível em: https://agenciadenoticias.ibge
.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-de-noticias/releases/14244-asi-cens
o-2010-numero-de-catolicos-cai-e-aumenta-o-de-evangelicos-espiritas-e-sem-religia
o. Acesso em: 01 nov. 2020.
VIEIRA, J. A. C. Os sem religião: aurora de uma espiritualidade não religiosa. Belo
Horizonte: Ed. PUC Minas, 2018.
562

A ESPIRITUALIDADE DESPERTADA ATRAVÉS DO CORPO A


PARTIR DA RELIGIÃO E DO PROCESSO DE
AUTOCONHECIMENTO

MARISE ETERNA NUNES


Mestre em Ciências da Religião pela PUC Goiás,
Formada em Psicologia pela PUC Goiás e
Nutrição pela Universidade Federal de Goiás
[email protected]

RESUMO: O presente artigo foi desenvolvido a partir de um recorte da pesquisa


desenvolvida na dissertação de mestrado da autora, tendo como tema Corpo e
espiritualidade nas perspectivas cristã e em Core Energetics. Através da pesquisa
pode-se diferenciar a manifestação da espiritualidade religiosa e da espiritualidade
laica através do corpo em um grupo de oração católico e um grupo de formação de
psicoterapeutas corporais e perceber as transformações advindas desta experiência.
Através da revisão da literatura buscou-se a definição dos diferentes conceitos
atribuídos a espiritualidade a partir da visão cristã católica, no Movimento de
Renovação Carismática e da Espiritualidade na Ciência e no Desenvolvimento
Humano, através da filosofia e da psicologia. Buscou-se uma visão do corpo humano,
social, psicológico e sagrado. Empregou-se metodologia qualitativa, coletando-se
dados por meio de observação de campo e de entrevistas com a utilização de
questionário semiestruturado. Pode-se observar que a espiritualidade cristã
despertada por intermédio do corpo na tradição cristã, atribui ao sagrado a
responsabilidade em realizar transformações, e no grupo de formação de
psicoterapeutas corporais, a responsabilidade é atribuída ao indivíduo. Concluiu-se
que para que ocorra o despertar da espiritualidade, independentemente da forma
como é interpretada a sua origem, faz-se necessário haver a predisposição e o
empenho do indivíduo. No grupo de oração este empenho ocorre através das
práticas sacramentais religiosas e no grupo de formação de psicoterapeutas através
de um processo de autoconhecimento profundo. Além disso a experiência espiritual
religiosa e através do autoconhecimento resulta em percepções e discursos
diferentes em relação a temas polêmicos como aborto e Grupos LGBTI+ (Lésbicas,
Gays, Bissexuais, Travestis, Transexuais, Transgêneros, Intersexuais e outras
orientações sexuais, identidades e expressões de gênero).

Palavras-chave: Autoconhecimento; Corpo; Espiritualidade; Religião; Temas


polêmicos.
563

INTRODUÇÃO

O presente artigo foi desenvolvido a partir de um recorte da pesquisa


desenvolvida na dissertação de mestrado da autora, tendo como tema Corpo e
espiritualidade nas perspectivas cristã e em Core Energetics.197
Ao longo da história humana a busca por um sentido existencial ocorre por
meio da religião ou de outros caminhos de autoconhecimento.
A religião pode ser percebida como um fenômeno, tendo um sistema
simbólico próprio e uma estrutura. Este fenômeno pode ser verificado observando as
interações do dia a dia e as dimensões políticas e sociais presentes no funcionamento
da sociedade e que legitimam a ordem. (LEMOS, 2017).
Ao integrar e participar da sociedade através do agir e do pensar, o indivíduo
se supera. A religião inserida na sociedade compõe a força social na qual o indivíduo
acredita e percebe através de vivências coletivas e de aprovação social (LEMOS,
2017).
Na perspectiva de compreender o sentido existencial observa-se que o ser
humano é separado do sobrenatural através de uma linha imaginária. Conforme
explicou Oliveira (2015), esta linha é “às vezes evidente e contínua e, às vezes, incerta
e descontínua” (p. 61), e há uma busca constante realizada pelos indivíduos para
compreensão da relação existente entre estes dois níveis “com o objetivo de superar
suas limitações, ansiedades, sofrimentos e terem acesso ao poder superior e divino”
(p. 62).
A religião é um meio que fortalece a esperança do ser humano para
compreender sua existência e obter mais satisfação de suas necessidades.
Definir o sentido existencial ou a sensação que plenifica o ser humano é um
desafio, pois trata-se de um conceito profundo e subjetivo. Talvez o conceito que
possa ser utilizado para descrever o que transcende a realidade cotidiana seja o
conceito denominado por Otto (2007) de numinoso. Os elementos que compõem a
parte irracional do sagrado são descritos a partir da experiência e reação sentimental
diante do objeto numinoso, e este pertence ao plano da experiência religiosa vivida.
Otto (2007) descreveu as características que definem o numinoso.
Uma dessas características é o aspecto tremendum (arrepiante). É uma reação
diferente do temer, pois “esse receio pode afetar os ossos, fazer o pelo arrepiar e
tremer os joelhos, embora também possa aparecer muito levemente como comoção
anímica evanescente e quase imperceptível” (OTTO, 2007, p. 48).
Outro aspecto é o majestas (avassalador), definido como:

[...] aquele “sentimento de criatura” que contrasta com o


avassalador, sentido objetivamente; trata-se da sensação de afundar,
ser anulado, ser pó, cinza, nada, e que constitui a matéria-prima

197
NUNES, Marise Eterna, Corpo e espiritualidade nas perspectivas cristã e em Core Energetics. Dissertação
(mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Escola de Formação de Professores e Humanidades,
Goiânia, 2020. 175 f.
564
numinosa para o sentimento de “humildade” religiosa. (OTTO, 2007,
p. 52)

O terceiro aspecto é denominado enérgico. “Pode-se senti-lo vivamente,


sobretudo na orgè [ira], expressando-se simbolicamente na vivacidade, paixão,
natureza emotiva, vontade, força, comoção, excitação, atividade, gana” (OTTO, 2007,
p. 55).
Há também o aspecto mysterium (totalmente outro), que traduz o espanto, o
diante de algo totalmente diferente, com estranheza absoluta (OTTO, 2007). Existe
ainda o aspecto fascinante (atraente), encantador e arrebatador (OTTO, 2007). E, por
fim, o aspecto assombroso, “um sentimento de receio genuinamente numinoso em
todos os seus aspectos, diante do ‘prodígio’ que é o ser humano” (OTTO, 2007, p. 79).
Compreendendo o ser humano como alguém que possui um corpo emissor ou
receptor como identidade sociológica e cultural e que busca um sentido para
existência (LE BRETON, 2012), o corpo é incluído no presente estudo como veículo
onde as experiencias ocorrem, tais como o despertar da espiritualidade. Nos dois
grupos pesquisados o movimento corporal faz parte do processo de busca do
despertar espiritual, cada qual com nuances próprias do caminho percorrido.
No grupo religioso de Oração Pastoral Missão Marca da Vitória, fundamentado
nos preceitos do movimento de Renovação Carismática Católica, a espiritualidade é
definida a partir de um conceito cristão, tendo características essenciais como
descrito por Zilles (2004), é teocêncetrica, cristocêntrica, eclesial, sacramental,
pessoal, comunitária e escatológica.
No grupo de Formação de Psicoterapeutas Corporais em Core Energetics, o
conceito de espiritualidade pode estar próximo ao que filósofo Luc Ferry (2012)
definiu como espiritualidade laica, a qual está além do religioso, onde há um
distanciamento dos dogmas, mas resguarda uma herança espiritual contida em um
contexto sócio histórico.
É a diferente forma de acesso à Espiritualidade e a transformação advinda
deste estado experienciado através das práticas corporais religiosas e não religiosas
que se pretende compreender.

CORPO SOCIAL, PSICOLÓGICO E SAGRADO

O corpo é considerado na pesquisa realizada um agente que contém uma


história individual e social e foi observado como tal nas vivências e rituais que
ocorreram nos grupos pesquisados. A referência para análise deste corpo foi de
alguns autores como Le Breton (2018), Pierrakos (1987); Dumont & Preto (2005),
Csordas (2008) e Maués (2000), que o examinam como instrumento de diagnóstico,
como manifestação de antigas e novas crenças e agente de transformação. É o
veículo do sagrado (hierofania) e da manifestação da espiritualidade de diversas
formas nos sujeitos estudados.
565

CORPO NOS RITUAIS DO MOVIMENTO DE RENOVAÇÃO CARISMÁTICA CATÓLICA E


ESPIRITUALIDADE CRISTÃ

No cristianismo, o corpo é crucificado, comungado e glorificado, tendo uma


característica de fé para todos os cristãos (DUMONT & PRETO, 2005). Necessita de
purificação, já que está associado com o material terreno e denominado a prisão da
alma. Há, “no centro da moral cristã, uma desconfiança muito aguda em relação aos
prazeres carnais, porque eles mantêm o espírito prisioneiro do corpo, impedindo-o
de se elevar na direção de Deus” (FLANDRIN, 1985, p. 135). A dor na tradição cristã,
como destaca Le Breton (2018) é imprescindível, pois propicia ao cristão a
oportunidade de participar dos sofrimentos de Cristo na cruz; ela está associada ao
pecado original. Há, portanto, uma limitação das manifestações corporais pautada no
limite entre o prazer e a necessidade de manter o sacrifício.
No grupo de oração pesquisado prepara-se o corpo através dos sacramentos
católicos. Valoriza-se também o cuidado da aparência, ligada a uma imagem
apresentável e decente, e da saúde. Assim louva-se a Deus através de movimentos
corporais e se tem o privilégio de receber os dons do Espírito Santo que se manifesta
neste corpo, o qual foi preparado para tal fim. São utilizadas diferentes técnicas
corporais, danças, expressões de júbilo, gritos, gestos durante os cantos, e orações
em voz alta (CSORDAS, 2008; MAUÉS, 2000; SILVA, 2015). Neste momento de louvor,
a pessoa deixa os dons do Espírito Santo manifestarem-se. Uma das modalidades de
oração característica no Movimento de Renovação Carismática Católica que
exemplifica a manifestação do carisma do Espírito Santo é a glossolalia, onde a pessoa
profere a “língua dos anjos” a partir da inspiração do Espírito Santo, o que pode se
dar quando ele está em exaltação religiosa (PEREIRA, 2009). A expressividade não é
intelectiva (BAPTISTA, 1989), não é a pessoa que emite os sons, mas o Espírito Santo
que ora através dela. Trata-se da emissão de uma linguagem emocional, ritmada,
silábica e quase melódica.

CORPO NA FORMAÇÃO DE PSICOTERAPEUTAS CORPORAIS EM CORE ENERGETICS E


A ESPIRITUALIDADE NÃO RELIGIOSA

A abordagem terapêutica corporal de autoconhecimento denominada Core


Energetics, foi desenvolvida pelo médico, psiquiatra e psicoterapeuta grego John
Pierrakos. É uma ponte entre psicologia e espiritualidade, sendo considerada uma das
primeiras abordagens psicoterapêuticas do ocidente a incorporar o aspecto espiritual
do ser, a psicologia moderna e a psicoterapia corporal. (Pierrakos,1987). Trata-se de
uma abordagem experiencial a qual evoca, através de exercícios físicos, experiências
corporais. Através destes exercícios a musculatura corporal é desbloqueada e
flexibilizada. Surgem vibrações involuntárias no corpo, através da ação do Sistema
Nervoso Autônomo. Neste processo, as sensações inconscientes e consciente vão se
integrando a medida que se permite que as vibrações fluam pelo corpo por um
período, e ocupem todo o organismo (PIERRAKOS,1987).
566

Como se considera que o corpo tem o registro da história do sujeito, ao


mobilizá-lo as emoções, dores e sentimentos negativos são evocadas. Com o a auxílio
da fala, as experiências e sensações corporais são compreendidas e transformadas.
No decorrer do trabalho terapêutico, à medida que as experiências difíceis que
aconteceram na vida da pessoa são revividas e transformadas ela terá mais
proximidade com os sentimentos de amorosidade e alegria presentes em sua
Essência Espiritual, despertando a capacidade, compreensão, e a sensação profunda
de unidade com o todo. Esta sensação numinosa independe de qualquer religião.
A partir daí os processos de mudança de comportamento e percepção
começam a ocorrer.
Na visão de Pierrakos (1987), o trabalho em Core Energetics segue etapas: a
primeira parte consiste em reconhecer e penetrar a Máscara, a qual é composta
pelas defesas da pessoa. Estas defesas começam a ser construídas pela criança ao
longo do seu desenvolvimento, à medida em que se experiencia dificuldades. Estas
defesas amenizam as dores e frustrações e auxiliam na adaptação ao meio social. A
partir destas defesas o corpo físico e as crenças vão sendo formatadas.
A segunda etapa segue em direção à liberação do Eu Inferior (ou
negatividades) e à expressão dos sentimentos negativos que foram disfarçados com o
auxílio da máscara (defesas).
A terceira etapa é o centramento do indivíduo no Eu Superior, a reconexão
com a força vital. O processo de autoconhecimento em Core Energetics vai além da
cura das neuroses, que é considerada só uma etapa do processo de autodescoberta.
A etapa final seria a descoberta do plano de vida, ou seja, uma conexão da pessoa
com a realidade a qual ela faz parte e com o todo ao qual pertence. O corpo é “locus”
onde tudo ocorre, tendo o processo em Core Energetics o propósito ativar Essência,
que é o Eu Espiritual próprio de cada indivíduo (PIERRAKOS,1987).
Diferentemente da abordagem carismática, há uma busca da flexibilidade
corporal e com isso almeja-se a flexibilização de julgamentos e crenças, notando-se
um distanciamento dos dogmas presentes nas instituições religiosas a medida que o
processo de autoconhecimento ocorre.

ABORTO E LGBTI+, TEMAS POLÊMICOS PESQUISADOS

Um dos aspectos pesquisados nos dois grupos que visam o despertar da


espiritualidade (Grupo de Oração Pastoral Missão Marca da Vitória e Grupo de
Formação de Psicoterapeutas Corporais em Core Energetics), com o objetivo de
avaliar mudanças ocorridas na percepção dos participantes, foi a discussão a respeito
de alguns temas polêmicos tais como aborto e LGBTI+( Lésbicas, Gays, Bissexuais,
Travestis, Transexuais, Transgêneros, Intersexuais e outras orientações sexuais,
identidades e expressões de gênero).
567

ABORTO

No grupo de Oração Pastoral Missão Marca da Vitória não há nenhuma


possibilidade de discussão em relação a legalização do aborto, sendo de maneira
unânime a posição contra o ato de abortar. Esta condenação baseia-se na sacralidade
da vida humana e percepção que a atitude de provocar o aborto é um pecado.
Durante a discussão, quando situações extremas são colocadas em pauta, tais como
gravidez advinda de estupro e doenças fetais graves, surge um silêncio reflexivo
seguido de um discurso religioso pautado no sacrifício em acolher a situação a fim de
obter algum aprendizado.
Há total negação ou desconhecimento sobre a realidade dos abortos
clandestinos que ocorrem no Brasil e suas consequências para as mulheres. Além de
não haver uma preocupação em relação aos danos causados a uma criança não
desejada.
Segundo dados recentes:

Ministério da Saúde estima que 1 milhão de brasileiras passam por


abortos induzidos por ano. [...] Os procedimentos inseguros de
interrupção voluntária da gravidez levam à hospitalização de mais de
250 mil mulheres por ano, 15 mil complicações e 5 mil internações
graves. [...] A criminalização do aborto atinge especialmente
mulheres jovens, desempregadas ou em situação informal, negras,
com baixa escolaridade, solteiras e moradoras de áreas periféricas
(SOUZA, 2019).

No grupo de formação em Core Energetics, nenhum dos entrevistados


desejaria ter que tomar a decisão de abortar, porém mostram-se empáticos e
levantam fatores que justificam muitas mulheres a praticar tal ato. São a favor da
legalização do aborto, para que cada caso possa ser acompanhado de forma mais
humanizada, ajudando na reflexão e apoiando as mulheres que passam por esta
situação. Além disso refletem sobre medidas que possam ser desenvolvidas para
incluir o pai neste processo, já que na percepção dos entrevistados este é um aspecto
que precisa ser questionado e transformado.
Nota-se a presença da interferência da raiz religiosa da qual muito advém,
gerando um temor diante da possibilidade de vivenciar esta situação. Elegem como
mais importante não julgar o comportamento alheio e se ater as causas que levam a
tal atitude.
O tema do aborto gera uma perturbação nas pessoas que estudam a
espiritualidade e autoconhecimento; porém, o criador da abordagem em Core
Energetics, Pierrakos (1987), afirma que durante o processo de autodescoberta onde
o corpo é trabalhado através da respiração e movimentos que aumentam o fluxo
energético, a Essência Espiritual se sustenta na sua manifestação, e a partir deste
espaço amoroso e criativo há abertura para mudanças de antigas crenças e valores,
sendo um dos principais aspectos a diminuição dos julgamentos.
568

LÉSBICAS, GAYS, BISSEXUAIS, TRAVESTIS, TRANSEXUAIS, TRANSGÊNEROS,


INTERSEXUAIS E OUTRAS ORIENTAÇÕES SEXUAIS, IDENTIDADES E EXPRESSÕES DE
GÊNERO)

O tema LGBTI+ refletiu um distanciamento ainda maior de opiniões em relação


aos dois grupos pesquisados do que o tema anterior.
No grupo de Oração Pastoral Missão Marca da Vitória o discurso moral
religioso que aparece implícito ou explicitamente e sustenta a argumentação dos
entrevistados é que o homem foi criado por Deus para acasalar com a mulher e que o
sexo está ligado à procriação.
Há uma falta de informação de interesse em relação as discussões e avanços
ocorridos em relação a compreensão da homossexualidade.
Nunes (2020 apud FARIAS, 2010) colocou esses avanços em ordem
cronológica. Em 1973, a homossexualidade foi retirada da categoria diagnóstica de
doença pela American Psychiatric Association (APA). Em 1975, a APA recomendou
aos profissionais de saúde mental que se desfizessem de seus preconceitos e
realizassem mais pesquisas. Em 1990, a OMS determinou que a homossexualidade
não deveria ser considerada doença e, por isto, não se deveria buscar sua cura. No
Brasil, em 1990, o Conselho Federal de Psicologia regulamentou a atividade do
psicólogo sobre a questão, afirmando que a homossexualidade não deveria ser
considerada doença ou perversão e que os psicólogos deveriam trabalhar contra o
preconceito, a discriminação e as atitudes homofóbicas. O Conselho Federal de
Psicologia (2019) noticiou que:
O Supremo Tribunal Federal (STF) concedeu liminar, nesta quarta-
feira (24), ao Conselho Federal de Psicologia (CFP) mantendo íntegra
e eficaz a Resolução CFP nº 01/99, que determina que não cabe a
profissionais da Psicologia no Brasil o oferecimento de qualquer tipo
de prática de reversão sexual, uma vez que a homossexualidade não
é patologia, doença ou desvio.

Os entrevistados do grupo de Oração definem a homossexualidade como


“distúrbio” ou “desvio de comportamento”, sugerem tratamentos psiquiátricos e
psicológicos e abstinência sexual, chegando ao extremo de indicar o sacerdócio para
tais pessoas, a fim de sacrificarem os atos pecaminosos e obterem a salvação.
Argumentam que podem ser acolhidos na igreja, mas o ato sexual praticado pelos
homossexuais viola o preceito cristão.
No Grupo de Formação de Psicoterapeutas Corporais em Core Energetics
nenhum participante apresenta preconceitos em relação à população LGBTI+, e
houve questionamento em relação a necessidade de tal pergunta, já as consideram
formas de expressão da sexualidade como outras quaisquer.
Relatam que durante a formação em Core Energetics o objetivo do trabalho é
conquistar cada vez mais abertura do coração, isto é, tornar-se seres mais amorosos,
aprendendo cada vez mais respeitar a si, aos outros e tudo que a vida apresentar.
569

Um outro aspecto abordado por este grupo foi o medo pela discriminação e
violência diante do cenário social e político vivido atualmente no Brasil. Essa
preocupação é pertinente diante de dados divulgados pela mídia.

Dados aos quais o UOL teve acesso revelam, contudo, uma questão
alarmante: 8.027 pessoas LGBTs foram assassinadas no Brasil entre
1963 e 2018 em razão de orientação sexual ou identidade de gênero.
Parte dos dados, inéditos, foram tabulados no ano passado por Julio
Pinheiro Cardia, ex-coordenador da Diretoria de Promoção dos
Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, e repassados ao
UOL. Ele formulou o relatório a pedido da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos no final de 2018 e o entregou à AGU
(Advocacia-Geral da União). Esses dados estavam em poder do
governo federal, que nos últimos anos decidiu cancelar a divulgação
dos relatórios sobre o assunto. No documento, Cardia somou as
denúncias de assassinato registradas entre 2011 e 2018 pelo Disque
100 (um canal criado para receber informações sobre violações aos
direitos humanos), pelo Transgender Europe e pelo GGB (Grupo Gay
da Bahia), totalizando 4.422 mortos no período. Isso equivale a 552
mortes por ano, ou uma vítima de homofobia a cada 16 horas no
país. (PREITE SOBRINHO, 2019)

Trata-se de um alerta quanto à importância de conscientizar os grupos


religiosos a respeito dos danos causados quando conceitos estigmatizantes são
perpetuados (FARIAS, 2010).

CONCLUSÃO

A religião esteve presente na pesquisa como um sistema de símbolos


claramente difundidos historicamente e que influenciam na forma de estar na vida,
compreender o mundo, as relações e a busca do sagrado. A influência religiosa está
presente no universo de todos os participantes, inclusive da pesquisadora, assim
como a religiosidade definida como abertura para busca da transcendência e sentido
para existência. A busca de aspectos semelhantes para autotransformação cria
vínculos resultando em uma sensação de pertencimento e bem estar nos
componentes de ambos os grupos.
O movimento corporal como atividade para o despertar da espiritualidade foi
verificado nos dois grupos estudados e apesar deste movimento ser compreendido e
interpretado de formas diferentes, gera em ambos os grupos motivação, alegria e
aumento do potencial energético. As manifestações corporais involuntárias geram
sensações semelhantes ao que Otto (2007) denomina como numinoso; porém, no
grupo de orações o corpo não é diretamente reconhecido como um catalisador para
estas experiências, mas sim um instrumento para louvar a Deus. O corpo é preparado
para ser o templo do Espírito Santo, que vem de fora, e se manifesta quando todos os
sacramentos e mandamentos são praticados e seguidos pela pessoa.
570

No grupo de formação de psicoterapeutas faz-se necessário o


aprofundamento em um processo de autoconhecimento o qual inclui exercícios
corporais. Neste grupo a Espiritualidade é um estado interno inerente ao ser
humano, o qual possui o sagrado e profano em si. Ao longo da trajetória de vida este
aspecto criativo e amoroso fica protegido pelas defesas e negatividades geradas para
lidar com as dificuldades que surgem no cotidiano. Através do movimento corporal as
defesas musculares são afrouxadas, as negatividades expressadas e transformadas.
Desperta-se então, o Eu Superior, a Essência Espiritual e aprende-se a sustentá-la
através do processo de autoconhecimento que segue durante toda a vida do
indivíduo. Na abordagem em Core Energetics a espiritualidade é a forma de
experienciar o Deus interno, uma energia presente em cada ser e em todo o
Universo, o princípio criativo e unificador.
Ao investigar os temas polêmicos nos dois grupos, é perceptível a dificuldade
no grupo religioso de aprofundar nas reflexões em relação ao aborto e LGBTI+ devido
aos preceitos dogmáticos religiosos, os quais criam e/ou fortalecem crenças
limitantes.
Enfim, é, relevante a importância em continuar os estudos buscando caminhos
de flexibilização das crenças, diminuição de preconceitos e intolerância reforçada
pelos dogmas religiosos e que contribuem para o aumento da violência e danos
sociais.

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573

OS “SEM RELIGIÃO” NO BRASIL: ELEMENTOS PARA UMA


LEITURA CRÍTICA
José Reinaldo F. Martins Filho
Doutor em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
[email protected]

RESUMO: Entre os principais temas que atualmente ocupam a reflexão de teólogos,


cientistas da religião e demais pesquisadores de áreas afins, certamente está a
questão dos “sem religião”. Noutras palavras, trata-se do grande filão da pesquisa
contemporânea acerca do fenômeno religioso e suas implicações para as novas
composições sociais – o que nos fará esperar com alguma ansiedade os dados do
censo de 2020. Aliás, não somente no que respeita ao papel da religião para a
sociedade de maneira geral, mas também considerando-a em sua função de compor
identidades, ressignificando e refratando valores que tanto podem nos auxiliar na
compreensão dos homens e das mulheres de hoje – como reflexo de sua constituição
identitária – quanto, percorrendo o caminho inverso, mensurar o alcance e a
plausibilidade conferida aos discursos religiosos pelo meio de vida corrente.
Fenômenos como o dos “sem religião” mostram-se, então, como oportunidades
privilegiadas de aprofundarmos a reflexão, individual e coletivamente, extrairmos
chaves de leitura e interpretação e fomentarmos uma discussão que, extrapolando o
estrito universo da academia, alcance o fulcro das relações concretas. Nesta
comunicação, estendendo-nos na continuidade do que já temos trabalhado em
outras oportunidades, procuramos introduzir elementos críticos à discussão.

Palavras-chave: Sem religião; Novos movimentos religiosos; Leitura crítica.

INTRODUÇÃO

Ao longo desta breve exposição, gostaríamos de apontar alguns elementos


críticos atinentes ao pluralismo religioso brasileiro, da mesma maneira que relativos à
abrangência e validade do conceito “sem religião” como possibilidade interpretativa
para o novo fenômeno que se acena. Para isso, retomaremos pontos que já têm sido
explorados por nós e por outros pesquisadores dedicados ao tema, numa ponte
interpretativa entre o surgimento dos “sem religião” como desdobramento da
emancipação individual operada ao longo dos últimos quatro séculos – o que supõe
sua parcela de pertencimento na crise cultural, intelectual e política derivada deste
contexto – e, ao mesmo tempo, os limites deste conceito frente à hipótese de que
574

por debaixo do aparente pluralismo religioso resta no Brasil a manutenção de uma


constante com ênfase para o cristianismo198.

A CONTROVÉRSIA DOS “SEM RELIGIÃO” NO BRASIL

Num balanço do que pode ser levantado especialmente a partir da clarificação


do fenômeno “sem religião” posto em evidência pelo censo de 2010 e também
manifesto em nossas próprias pesquisas sobre a experiência religiosa, conforme o
relato dos indivíduos que a experienciaram, surgem ante nossos olhos elementos
que, na melhor das hipóteses, deveriam chamar nossa atenção para a seguinte
questão: resta-nos uma problemática para a qual uma compreensão mais definitiva
ainda não pode ser oferecida.
Em primeiro lugar, no plano conceitual a expressão “sem religião” tem sido
utilizada para se referir a um universo muito amplo, que envolve desde a negação da
dimensão religiosa, até a expansão de crenças de caráter privado, isto é, pautadas
pelo juízo dos próprios indivíduos. Além disso, basta passarmos em revista a
enxurrada de materiais publicados com ênfase nesta temática para logo nos darmos
conta de que, além de muito abrangente, permanece um conceito aberto a alguma
controvérsia. A depender dos dados que se leve em conta resultados muito diversos
podem emergir como resposta.
De nossa parte, apenas quando pudemos dar a palavra aos inúmeros
indivíduos que se reconheceram ante nossa pesquisa como “sem religião”, foi-nos
possível identificar a sua distinção dos demais subscritos ao grupo dos “descrentes”,
quer dizer, ateus e/ou agnósticos. Em geral, os “sem religião” aos quais nos referimos
neste estudo demonstraram guardar consigo um significativo grau de afeição para
com a esfera do sagrado. Apesar de racionalmente negarem sua inserção nalgum
credo específico, mantêm um estreito vínculo afetivo que os liga ao horizonte da
religiosidade em sentido mais abrangente, fazendo-os, por fim, aderir a alguma
prática religiosa que, embora desinstitucionalizada numa perspectiva de participação
real, cristaliza-se como efetiva presença da dimensão religiosa, seja como doadora de
sentido, ou como elo de pertencimento.
Tais informações, contudo, apesar de fundamentais para uma avaliação mais
ampla do atual cenário religioso brasileiro, não poderiam ser aferidas tomando por
base unicamente os dados revelados pelo censo. É neste ponto que, com razão, as
ciências humanas podem questionar a legitimidade dos métodos quantitativos por si
sós. Apesar de oferecerem um panorama preliminar da realidade de crenças e
descrenças dos brasileiros, em termos de religião ou religiosidade, caso não sejam
submetidos à análise, os resultados obtidos pelos gráficos podem se cristalizar em

198
Para nós, os principais argumentos para a composição dos “sem religião” na última década remetem às
origens da sociedade moderna, estando entre eles: a) o primado do racionalismo a partir dos séculos XVII e
XVIII; b) a construção dos direitos políticos e a invenção do “indivíduo”; c) as revoluções materialistas; d) o
fenômeno da secularização; e) o colapso da plausibilidade nos discursos; f) a crise nas instituições; g) o
crescente monopólio da identidade ante a comunidade; h) a emancipação feminina; i) a reconfiguração dos
núcleos familiares; j) e, enfim, a globalização e o multiculturalismo.
575

informações sem sentido para a vida concreta, para o dia a dia das relações que se
estreitam, para as composições ensaiadas e para a nova formação social daí derivada,
composta não simplesmente por organismos vivos, mas por humanos. No mundo dos
humanos, então, os conceitos devem ser encarados como maleáveis, para não dizer
completamente fluidos, ao ponto de múltiplas identidades poderem confluir num
mesmo sujeito.

MANUTENÇÃO DA MATRIZ RELIGIOSA BRASILEIRA

Outra vez precisamos retomar o argumento sobre a existência de uma matriz


religiosa integrada ao bojo da identidade cultural brasileira como um todo, o que José
Bittencourt Filho (2003) aferiu acerca de uma série de valores religiosos e simbólicos
que possibilitaram a construção de uma experiência religiosa ampla e difusa entre os
brasileiros. Tal constatação tem em vista explicar o processo de formação e
consolidação, bem como a correlação possível entre essa matriz e alguns
comportamentos religiosos em ascensão, âmbito em que certamente também
encontramos os denominados “sem religião”.
À semelhança do que apontam outros teóricos – Berger (1985) ou Corbí (2007)
– Bittencourt Filho reconhece que para as sociedades do passado à religião
reservava-se a tarefa de construir a superioridade da coletividade sobre o indivíduo,
impondo, por intermédio desta ação, a tão almejada coesão social, o que,
simultaneamente, se refere à imposição de um sentido comum. Nas sociedades
contemporâneas, ao contrário, o fator religioso tanto pode ser relacionado à
manutenção, garantindo a coesão, quanto ao esfacelamento, ou seja, à cisão de
determinada experiência compartilhada. Enquanto é capaz de unir certos grupos e
subculturas, também pode envolvê-los em conflitos. Nesse sentido, a existência de
uma matriz religiosa originária deporia a favor e contra o afloramento do pluralismo
atual: como fonte de hegemonia de um ideal universalista – aplicável a diferentes
horizontes práticos – ou como origem do pluralismo resultante das frequentes cisões
institucionais ou da ampliação de ofertas no mercado religioso.
A despeito de determinações de cunho histórico ou temporal, parece haver
valores religiosos que ignoram os limites do tempo e do espaço, perpetuando-se
transversalmente ao ponto de poderem ser reconhecidos em diferentes expressões
(e/ou agremiações). Como afirma Bittencourt Filho (2003, p. 27), “sobretudo nos
ritos, nas festas e nos valores religiosos compartilhados, o tempo e o espaço são
premeditadamente ‘suspensos’, num ritmo pendular, para que prevaleça a natureza
especial dos conteúdos simbólicos que são neles recapitulados, segundo uma
urdidura sempre nova, no intuito de prover que o essencial permaneça incólume”.
Aqui o “essencial” centra-se no que o autor considera a respeito das camadas mais
profundas da existência social, elementos que garantem a impressão de duração e
continuidade e, embora não completamente imutáveis e perenes, constituem-se
como “amarras” espaciotemporais de sentido, garantindo a coesão histórica. É nesse
contexto que podemos falar na existência de uma “matriz religiosa brasileira” – a
qual marcará presença inclusive nos novos credos ensaiados.
576

A PERSPECTIVA DO ARGUMENTO MORAL

Além disso, pensando em termos da criação de uma filosofia moral, parece


impossível desassociar a tradição judaico-cristã do que se consolidou no Ocidente
como um todo. Nesse ponto, seja tomando a perspectiva levantada por Nietzsche,
para quem o judaico-cristianismo seria o maior responsável pela manutenção da
leitura de mundo apresentada por Platão – e aqui num forte sentido de degeneração
do que ele considerava como os “autênticos” valores humanos – ou, partindo de um
olhar bastante diverso, seja pelo que constatou o pesquisador medievalista Etienne
Gilson, de que o cristianismo, embora pudesse ter se fechado nos domínios de uma
teologia (dimensão estritamente religiosa) quis fundamentar-se sobre uma filosofia
dos valores desde seus primórdios aos dias atuais, de fato, no âmbito da moral
dificilmente será possível apagar o papel da religião na consolidação desse processo.
Esse é, segundo julgamos, o ponto de partida crítico para repensarmos o
conceito “sem religião” tal como tem sido difundido entre nós. Caso, na melhor das
hipóteses, seja possível falarmos em indivíduos a-religiosos, quer dizer, que ao longo
de suas vidas não expressam quaisquer interesses pela dimensão religiosa em sentido
estrito, não aderindo a nenhuma crença relativa a alguma divindade sobrenatural,
ainda sim estes estarão embrenhados numa cosmovisão – a visão ocidental – que
desde suas origens mais remotas é tributária da religião. Noutras palavras, ainda que
um indivíduo recuse a estrutura formal e simbólica da religião, ainda assim deverá,
nos estritos limites das sociedades ocidentais, aderir a uma moralidade cujas raízes
encontram-se diretamente relacionadas ao cristianismo.
Em termos gerais, referimo-nos francamente à contribuição do cristianismo,
religião que por séculos exerceu hegemonia em diversas esferas da vida em
sociedade, tais como a cultura e a política, como também ao judaísmo e ao islamismo
– todas monoteístas, isto é, tendo como pressuposto a crença em um deus único. A
ênfase monoteísta, diga-se de passagem, pode elucidar a passagem de uma noção de
Bem universal, tal como se apresentava na filosofia platônica, e a sua identificação
junto à ideia de um Deus que, sendo fonte de todo ser (um Deus criador) muda-se, de
maneira equivalente, em referência para o agir humano. Em sentido mais genérico,
contudo, também incluímos as demais concepções religiosas – notadamente alusivas
às tradições indígenas e africanas – que, apesar de não terem formulado seus
preceitos e dogmas sob a modalidade do registro escrito jamais descuidaram dos
aspectos relativos à vida em sociedade, resultando, assim, na criação de um sistema
axiológico de matriz oral. O Brasil, como sabemos, assenta-se mais fortemente sobre
o primeiro caso, como segue: marcado pela tradição cristã (o que de forma alguma
nos leva a prescindir de suas imbricações e confluência numa “matriz” plural).
Assim, o conceito “crentes sem religião”, tal como tem sido empregado por
alguns pesquisadores, deve ser submetido à crítica. Isso porque, caso tomemos em
revista a práxis cotidiana destes indivíduos teremos em conta vidas altamente
influenciadas pelos valores estabelecidos pela moral cristã, ao ponto de estes,
embora desvinculados de uma agremiação religiosa em particular, continuarem –
com exceção, nalguns casos, da crença sobrenatural – profundamente ligados aos
577

princípios religiosos. Note-se, por exemplo, como nas pesquisas que tivemos em
conta199 predominam manifestações que relacionam religião e amor ao próximo,
religião e uma sociedade mais justa etc. Apesar de se autodefinirem como “sem
religião” tais indivíduos – e com eles, provavelmente, uma parte significativa dos
consultados pelo censo de 2010 – permanecem orientando suas vidas por fontes de
legitimação e sentido com origem religiosa; mais especificamente, com origem cristã.

O FATOR CULTURAL E A COMPOSIÇÃO DAS CRENÇAS

Dando prosseguimento à nossa discussão, ao falarmos de cultura, estamos nos


referindo ao palco específico em que ocorrem as “encenações humanas”. A metáfora
do teatro, como nos ensinou Nestor Canclini (2011), tem aqui a finalidade de nos
distanciar de quaisquer tentativas conceituais de definição do fenômeno cultural. A
lógica do conceito é muito afeita à estabilidade, à duração, ambas noções que não se
aplicam à cultura. Cultura é, por isso, muito mais uma noção teatral que,
propriamente, o resultado de uma especulação intelectiva, com desdobramentos
mais acabados na elaboração de um conceito. Um velho professor chegava a dizer: “a
cultura é a vida do povo!” Como vida, é dinâmica, num processo contínuo de
mutações que, pouco a pouco, vão compondo o mundo dos humanos. Como vida dos
homens, a cultura é viva.
Neste processo de formulação e manutenção de mundo, a produção humana
pode ser objetivada por meio dos artefatos materiais construídos para as mais
diferentes tarefas, pelas edificações, mas também pela possibilidade de atribuição de
um sentido de continuidade, traduzido na produção de narrativas e demais tradições
que constituem o seu patrimônio imaterial. No âmbito da cultura, por isso, vemos
conjugadas as duas tarefas originárias: a criação e a imposição de sentido (refletidas,
por exemplo, na alegoria judaico-cristã de um Deus criador e de Adão, a quem foi
confiada a tarefa de “dar nomes”).
É a partir deste ponto que o nosso argumento poderá se direcionar ao caso
específico que nos convocou a esta reflexão. Levando em conta o argumento que
defende a legítima existência de uma “matriz religiosa brasileira”, esta estaria
intimamente articulada à definição das identidades aqui consolidadas, manifestando-
se em maior ou menor grau. A religião, então, poderia ser apontada como um dos
ingredientes que configuram a identidade do brasileiro, sendo encontrada, pelas vias
do fator cultural, mesmo naqueles que não professam uma fé específica. Tal lógica,
porquanto, não se aplicaria apenas aos chamados “crentes sem religião”, que
claramente já assumiram uma perspectiva positiva com relação ao fenômeno
religioso, mas também ao grupo dos que, em última instância, deveríamos considerar
“culturalmente religiosos” (note-se, por exemplo, o fundamento religioso da maior

199
Em outras oportunidades nos deparamos com o problema dos “sem religião”, como é o caso da entrevista
realizada ao catalão Marià Corbí, que também se desdobrou num artigo (cf. MARTINS FILHO; ECCO, 2017 e
2018), ou da participação na pesquisa conduzida pela professora Carolina Lemos, que resultou na publicação
de um livro (LEMOS; SOUSA; MARTINS FILHO, 2018).
578

parte das festas populares brasileiras, tenham estas mantido ou não sua relação com
o âmbito institucional da religião).
Diante do que dissemos até aqui, perguntamo-nos:

PLURALISMO RELIGIOSO OU MONOCULTURALISMO CRISTÃO?

Seja pelas vias da tradição familiar, tema ao qual retornaremos a seguir, seja
pelo que acabamos de refletir acerca do fundamento moral do Ocidente e do
significado cultural da religião, ao tomarmos mais de perto o depoimento dos que se
intitularam “sem religião” é impossível não considerarmos o predomínio da matriz
cristã. Daí franquearmos a questão, para a qual honestamente não possuímos uma
resposta definitiva: estamos mesmo diante de um cenário realmente plural no que
tange à esfera da religião ou, escamoteado por debaixo do apenas aparente
pluralismo perdura a manutenção do cristianismo como religião hegemônica, o que
neste momento denominamos monoculturalismo cristão?
Este tópico, reproduz com fidelidade o atual estado da nossa reflexão.
Conforme as evidências com as quais estabelecemos contato, o superficial pluralismo
religioso explicitado no caso do Brasil parece esconder, na verdade, a presença
massiva do cristianismo na matriz religiosa brasileira, com destaque inclusive em
modalidades religiosas aparentemente mais distantes, como é o caso de
espiritualismos como o espiritismo, a umbanda e o candomblé. Para além das
referências a um Deus que é Pai, todo-poderoso, criador, fonte do Bem,
Misericordioso e, até mesmo, trinitário, todas retiradas das bases mais fundamentais
do cristianismo, tal impostação também se faz presente nas ritualidades e
simbologias: cruzes, velas, imagens, pinturas e, o que nos chamou especial atenção, a
Bíblia.
Assim, não estaríamos simplesmente falando do que já se preconizou pelo
sincretismo religioso, especialmente em vista da constituição de uma ritualidade
mista, oriunda da mescla entre alguns simbolismos típicos dos cultos africanos e o
catolicismo colonial, mas do uso direto de orações e referências cristãs no contexto
de cultos de religiões cuja doutrina afasta-se diametralmente do cristianismo (e o
exemplo da reencarnação é o mais emblemático na relação entre os chamados
“espiritualismos” e o catolicismo – embora haja referências bíblicas que possam ser
utilizadas como fundamento para diferentes interpretações do que seria a vida após
a morte). Curiosamente, o mesmo processo de construção mista ocorre junto aos
“crentes sem religião”. Entre os entrevistados por nossas pesquisas, muitos foram os
que responderam praticar a sua crença rezando um “Pai nosso” ou uma Ave-Maria.
Outros mencionaram ler a Bíblia com frequência, além de pautar a sua vida a partir
dos ensinamentos dela extraídos. Em resumo, não somente devemos falar em
“crentes sem religião”, o que nos levaria ao conceito já explicitado de “religiosos
desinstitucionalizados”, mas de “cristãos sem instituição”, que, embora recusem
objetivamente a sua filiação institucional, continuam cristãos de um ponto de vista
essencial. Há, portanto, pluralismo com a mesma intensidade com que também há
579

monoculturalismo, numa leitura monolítica ou, na melhor das hipóteses, como vimos,
relativa à existência de uma base comum.

A RELIGIÃO COMO TRADIÇÃO FAMILIAR

Se, em outro lugar (cf. MARTINS FILHO, 2019), apontamos a reconfiguração


familiar como ponto de análise para o surgimento de novas maneiras de se expressar
a crença religiosa, agora trataremos a família como instrumento de propagação e
manutenção de credos que, no mais das vezes, podem ser interpretados como
essencialmente vinculados ao pertencimento familiar. Este argumento ganha sentido
especialmente por conta de o modelo paternalista, embora questionado nas últimas
décadas, ainda ser prevalente na maior parte das configurações familiares brasileiras,
dado que nos faz recobrar nossa avaliação acerca da experiência religiosa pelas vias
da tradição familiar.
Em muitos casos, a adesão à esfera da religião não é resultado de uma
deliberação do próprio indivíduo. Entre as dimensões que configuram a identidade
religiosa faz-se presente o elemento da tradição. Particularmente no Brasil, em que o
cristianismo compreende a maioria dos crentes, a tradição familiar deve, então, ser
indicada como pressuposto para o pertencimento religioso de muitas pessoas.
Falamos de famílias que naturalmente propagam a crença como ingrediente de sua
formação identitária. Gerações e gerações a fio, com raras exceções, mantêm sua
vinculação a um credo específico que, neste caso, não indica simplesmente a adesão
religiosa de pessoa para pessoa, atuando como um dos componentes do
pertencimento familiar. Famílias protestantes, em geral, têm filhos protestantes. Do
mesmo modo, famílias católicas tendem a formar filhos católicos – e, embora o grau
de pertencimento seja notadamente menor entre os mais jovens, do ponto de vista
da configuração familiar a identidade religiosa continua marcando sua presença
como evidência que não podemos desconsiderar.

PARA CONCLUIR: PREVISÕES SOBRE O FIM DA RELIGIÃO

Enfim, com relação às previsões impetradas sobre o fim da religião – em


função do crescente número dos “sem religião” – podemos tomar por inspiração a
afirmação do filósofo brasileiro Tobias Barreto, em 1904: “eu não sei que grande
distância medeia entre o ponto de vista do homem do povo que, observando um
terremoto, uma inundação, ou a passagem de um cometa, conclui logo que o mundo
vai acabar, e o ponto de vista de certos filósofos que, diante da incredulidade e
indiferença religiosa dos nossos dias induzem como lei o fim da religião”. À guisa de
conclusão, portanto, faz-se necessário considerarmosao menos dois aspectos, ambos
relativos ao entendimento praticado sobre o que é “religião”: a) primeiramente, a
previsão parece mostrar-se verdadeira, especialmente caso tomemos a religião em
seu aspecto institucional. A despeito do ateísmo crescente em outras partes do
mundo, o contexto latinoamericano testemunha o enfraquecimento de instituições
antes tidas como sólidas (numa época em que nem mesmo as identidades são assim
580

tão sólidas), perdendo espaço para novas formas de expressão do comportamento


religioso. b) Nesse sentido, porém, não há que se dizer sobre o enfraquecimento da
dimensão religiosa, mas da substituição da categoria “religião”, pensada em seu
aspecto institucional, por “religiosidades” e/ou “espiritualidades” laicas, relativas ao
universo mais amplo das experiências individuais, o que, nem por isso, denota menos
comprometimento ético – dado que a dimensão comunitária passa a ser expressada
por outras instâncias como a política, as artes, entre outras.
Logo, estaríamos em um tempo de pouca religião e muita religiosidade? Sim e
não! Na sociedade atual, as religiões ainda continuam exercendo significativo
“controle” sobre as grandes multidões – note-se a quantidade de passantes nas
romarias católicas, nos cultos de cura e libertação, nos pentecostalismos etc...
Enquanto isso, aspectos que exigem mais comprometimento são comumente
relegados a um pequeno grupo de membros (os “autênticos fiéis”, no sentido em que
o termo era tradicionalmente evocado). Daí que, mesmo experiências para as quais a
dimensão comunitária firmava-se como essencial, pouco a pouco foram se
constituindo como espaços para a introdução de iniciativas de caráter privado. As
instituições que souberam interpretar este fenômeno, valendo-se dele a seu favor,
continuaram com expressivo número de adeptos.
Para os que conseguiram acompanhar nossa intenção, portanto, devemos
pensar que o reforço dado à dimensão individual, mesmo em cerimonias revestidas
de certa publicidade, quiçá até travestidas de coletividade, parece ter feito com que
os pressupostos da desinstitucionalização se instalassem dentro das próprias
instituições. Nesse caso, a noção de institucionalidade como tal estaria posta em
xeque, devendo ser reinventada. Em suma, é possível sustentar que os chamados
“sem religião” permanecem profundamente marcados pela dimensão religiosa. Por
assim dizer: são, eles próprios, religiosos, ou, como preferem afirmar: “crentes sem
religião”. Contudo, que religiosidade é essa? Cabe-nos, ainda, refletir e compreender.

REFERÊNCIAS

BARRETO, Tobias. A Cultura Acadêmica. Recife, ano I, vol. I, jul-ago, 1904. pp. 3-18.
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da
religião. Tradução de José Carlos Barcellos. São Paulo: Paulinas, 1985. (Coleção
sociologia e religião; 2)
BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira: religiosidade e mudança social.
Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Koinomia, 2003.
CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. Tradução de Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; tradução da
introdução de Gênese Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2011. (Ensaios Latinoamericanos, 1)
CORBÍ, Marià. Hacia una espiritualidad laica: sin creencias, sin religiones, sin dioses.
Barcelona: Herder Editorial; Grammata.es, 2007.
581

ECCO, C.; MARTINS FILHO, J. R. F. Contemporary Cultures and Atheism. Mosaico


(Goiânia), v. 10, p. 265-276, 2018.
ECCO, C.; MARTINS FILHO, J. R. F. Ateísmo e Religião em Ludwig Feuerbach: uma
aposta na essencialidade do humano. Caminhos, v. 14, p. 325-342, 2016.
LEMOS, C. T.; SOUSA, I. F.; MARTINS FILHO, J. R. F. (Orgs.). Juventude e Religiosidade:
o caso de jovens universitários. 1. ed. São Paulo: Fonte Editorial, 2018.
MARTINS FILHO, J. R. F. A controvérsia dos “sem religião” no Brasil: pluralismo
religioso ou monoculturalismo cristão? REB. Revista Eclesiástica Brasileira, v. 79, p.
663-681, 2019.
MARTINS FILHO, J. R. F. ECCO, C. Novos odres para o sagrado vinho: Marià Corbí e os
sem religião. Estudos de Religião, v. 32, p. 29-50, 2018.
MARTINS FILHO, J. R. F. ECCO, C. Toward a Deep Spirituality: an Interview with Marià
Corbí. Caminhos, v. 15, p. 149-161, 2017.
582
583

AS PERFORMANCES DO CARIMBÓ: CULTURA POPULAR


PARAENSE E RELIGIOSIDADE

Elyane Lobão da Costa


Mestranda em Projeto e Cidade
Universidade Federal de Goiás (UFG)
[email protected]

RESUMO: O carimbó, enquanto Cultura Popular Paraense foi reconhecido em 2014


como Patrimônio Cultural Brasileiro. Terminologia indígena, que significa Curi “pau”
Imbó “oco”, que leva o nome de um instrumento musical de percussão. Nasceu a
partir do entrelaçamento da cultura dos povos negros, indígenas e europeus. Essa
Manifestação Cultural é repleta de sentidos e significados, em que são transmitidos
os saberes ancestrais. Constitui-se como: cultura popular, música, dança, trabalho,
lazer e religiosidade. O objetivo do trabalho é compreender a importância do
Carimbó enquanto Performance Cultural para o povo paraense, e a sua relação entre
religiosidade e transmissão de saberes. Trata-se, portanto, de um estudo no campo
das Performances Culturais, visto que, o carimbó apresenta múltiplas dimensões,
sendo necessário várias áreas do conhecimento para a compreensão do objeto. Qual
o Sentido e Significado dessa cultura popular para o povo paraense? Como o carimbó
se constitui enquanto religiosidade e transmissão de saberes? Optou-se por uma
abordagem Qualitativa, tendo como procedimento de pesquisa um estudo de campo.
O trabalho se constitui como pesquisa etnográfica densa. Esses entrelaçamentos e
conflitos religiosos, presentes nessa Manifestação Cultural, ora se complementam,
ora se diferem, ora resistem e torna-se algo “novo”.

Palavras-chave: Performances Culturais; Cultura Popular; Carimbó; Religiosidade.

O Carimbó é uma Manifestação Cultural, típica do Estado do Pará, que no ano


de 2014 tornou Patrimônio Cultural Imaterial Brasileiro. O Carimbó constitui-se
enquanto: cultura popular, religiosidade, música, dança, trabalho e lazer. Robson
Corrêa de Camargo (2013, p.2) destaca que as Performances Culturais englobam uma
proposta metodológica interdisciplinar, na qual diversas áreas do conhecimento
(sociologia, teologia, antropologia, museologia) buscam analisar o mesmo objeto a
partir de diferentes perspectivas. Essa proposta de estudo interdisciplinar possibilita
assim, uma visão sistêmica e sensível do objeto, visto que, a metodologia tradicional
muitas vezes não dá conta da abrangência do mesmo.
As Performances estão presentes no cotidiano, ou seja, qualquer ação
humana, rito, cultura popular, religiosidade. Richard Schechner (2006) conceitua as
Performances como as essas ações cotidianas que são vivenciadas, experimentadas
por mais de uma vez. “Performances – de arte, rituais, ou da vida cotidiana – são
584

“comportamentos restaurados”, ‘comportamentos duas vezes experenciados’ [...]”


(2006, p. 29). Desse modo, o Carimbó se trata de uma cultura que faz parte do
cotidiano dos mestres e carimbozeiros, produzindo sentidos e significados. No
entanto, o presente trabalho dará uma ênfase maior, aos aspectos religiosos
presentes no Carimbó.
No que concerne a gênese do Carimbó, há poucos registros escritos que
comprovem com exatidão o seu lugar de nascimento e a sua temporalidade exata,
porém, o Dossiê do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN,
2013, p.80), os pesquisadores, os mestres, e os carimbozeiros, afirmam que essa
cultura centenária, nasceu a partir da junção cultural dos povos indígenas, africanos e
europeus, sendo originária do Pará.

A RELIGIOSIDADE NO CARIMBÓ

O Carimbó enquanto cultura popular apresenta aspectos religiosos


entrelaçados, na qual pode ser percebido o catolicismo dos europeus, o xamanismo
dos indígenas e as religiões de matrizes africanas dos negros. A contribuição da
religiosidade desses povos, foram sendo percebidas no carimbó através de disputas e
processos de resistências.
A Religiosidade faz parte do cotidiano do ser humano desde os primórdios da
humanidade, visto que, o mesmo sempre procurou relacionar-se com o
desconhecido, com o ser transcendente, buscando dessa forma, uma maior
aproximação entre o mundo físico, palpável e o mundo ainda não conhecido. Dessa
forma, o ser humano busca explicações acerca das suas inquietações sociais e
pessoais; tentando compreender a própria existência humana, ou seja, os mistérios
da vida e da morte. Esses são, portanto, apenas alguns dos fatores que fazem com
que o homem busque se relacionar com algo que vai para além da racionalidade
humana e do mundo físico.

Visto que a religião constitui, sem dúvida alguma, uma das


expressões mais antigas e universais da alma humana, subentende-se
que todo o tipo de psicologia que se ocupa da estrutura psicológica
da personalidade humana deve pelo menos constatar que a religião,
além de ser um fenômeno sociológico ou histórico, é também um
assunto importante para grande número de indivíduos (JUNG, 1978,
p.7).

O santo padroeiro do carimbó é um santo negro, São Benedito, sendo este, o


mais reverenciado, porém, nas festividades de carimbó, há devoção a outros santos
católicos, bem como, a presença de alguns rituais xamânicos (IPHAN, 2013, p.81).
Desse modo, os aspectos religiosos presentes no carimbó devem ser analisados de
forma holística, percebendo assim, as suas contradições e atravessamentos.
Os povos africanos foram retirados de forma violenta das suas terras, e
trazidos para o Brasil, sob o regime de escravidão. Eles trouxeram consigo os seus
585

costumes e crenças religiosas. Por mais que vivessem uma vida dura, sem liberdade,
sem autonomia, longe da sua terra natal, eles tinham os seus raros momentos de
descanso, necessários à produtividade. Eles não abandonaram a sua cultura,
aproveitando o pouco tempo livre para realizarem os rituais de veneração aos
ancestrais, bem como, os seus momentos de lazer com os seus batuques, músicas e
danças (SALLES, 1971, p.187).
Boa parte deles, ao serem catequizados pela religião católica oficial preferiam
adorar os santos negros, por acreditar que eles poderiam compreender melhor a sua
vida dura, as suas angústias, pois, consideravam que havia uma maior aproximação
com os santos da sua etnia. Conforme destaca Vanildo Palheta Monteiro (2016,
p.101) “Desse modo, as invocações dos santos negros não o eram apenas pela
afinidade epidérmica ou pela identidade de origem geográfica, mas também pela
identidade com as suas agruras”.
Maria Cristina Caponero (2009, p.119), destaca que São Benedito é
reverenciado em diversas culturas populares, dentre elas o Carimbó na Região Norte,
e a Congada na Região Centro-Oeste. Desse modo, percebe-se o sincretismo
religioso, pois, observam-se aspectos das religiões de matrizes africanas, com os
rituais de devoção aos ancestrais, se entrelaçando com os aspectos da religião
católica, visto que, esse santo foi beatificado pela Igreja Católica em 25 de maio de
1807. Esse sincretismo é denominado de “catolicismo popular”, na qual a religião
dominante engloba elementos de outras religiões populares, como práticas,
costumes, rituais, símbolos. Brandão (1986) destaca que a cultura popular adere aos
símbolos e rituais da religião erudita, no entanto, traz no seu bojo, os seus próprios
significados.
O catolicismo pressupõe valores e costumes que, quando confrontados com
etnias de origens diversas, acaba se mesclando com novas culturas. Apesar de
hegemônico na colônia, o catolicismo não conseguiu se impor plenamente. Houve
espaço para o sincretismo à medida que não se conservou a religiosidade como nos
locais de origem, mas ganhou novas características ao se defrontar uma com as
outras formas religiosas, transcendendo a configuração anterior ao contato. Entre as
heranças culturais portuguesas na religiosidade brasileira está o forte apego aos
santos (SOUZA, 2002). Nesse caldeirão religioso, os afrodescendentes participavam
de certas irmandades em devoções a determinados santos utilizados para catequizá-
los como Santa Efigênia, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. E dessas
irmandades surgiram as Folias, as Congadas, as procissões, os folguedos, que
consistiam em manifestações coletivas de louvores aos santos negros. Nessas festas
religiosas, a posição predominante apontava para as suas raízes africanas, evidentes
na dança e nos ritmos, embora fossem importantes veículos de cristianização dos
africanos e dos seus descendentes (SIMONI, 2017, p.65).
Na cidade de Santarém Novo (PA), o Carimbó da Irmandade de São Benedito é
uma festa bastante prestigiada. Os relatos orais e alguns documentos apontam ser
uma festa centenária. Essa festa trata-se, portanto de uma cultura ancestral que traz
em seu bojo todo um simbolismo religioso e cultural. “Em sua estrutura, a festividade
pode ser dividida nos seguintes momentos: as alvoradas, o carregamento do mastro,
586

as ladainhas, as festas no barracão, o pilouro e a varrição do mastro” (GOMES;


CASTRO, 2016, p.37). Há outras duas festas tradicionais em homenagem a esse santo,
o “Festival de Carimbó de Marapanim”, e o “Zimbarimbó”.
No Carimbó a ancestralidade está presente. Ao ser analisado a partir do viés
religioso, volta-se para a sensibilidade humana, através de um sentimento de
coletividade e gratidão. Constitui-se, portanto, uma identidade cultural e religiosa,
que deve ser preservada e transmitida à posteridade. Sebastião Rios destaca que a
cultura popular se relaciona em grande parte com o sobrenatural, com a
ancestralidade, diferentemente da cultura erudita, que tenta dicotomizar a fé da
razão.

A cultura ocidental erudita, caracterizada por um pensamento


dualista, separa rigidamente a matéria do espírito – o barro do sopro
divino, na interpretação do Gênesis – a essência da existência, o
fenômeno do conceito. Separa fenômeno físicos visíveis e
mensuráveis, ditos naturais, de outros, invisíveis, não mensuráveis e,
portanto, ditos sobrenaturais. A tradição da cultura popular, ao
contrário, vem em grande parte de uma matriz não européia, e não
se separa tão rigidamente essas esferas (RIOS, 2014, p. 797).

No Carimbó também há uma forte presença da pajelança indígena e cabocla,


ela pode ser vista em algumas regiões do Pará, em especial na Região Nordeste, na
Zona do Salgado. A pajelança faz parte da cultura indígena, na qual o líder religioso é
o pajé que possui um vasto conhecimento com plantas, e desenvolve um papel
central na religião indígena, com habilidades no processo de curandeirismo por meio
das ervas medicinais. Trata-se, no entanto, de uma espécie de xamanismo, onde
acontece a realização de processos de transe com espíritos de ancestrais indígenas,
ou de seres encantados, a partir do uso das plantas medicinais. A pajelança cabocla,
contudo, apresenta as mesmas características da pajelança indígena, no entanto,
aquela se difere desta, por apresentar sincretismo religioso com outras religiões,
como catolicismo e candomblé.

Na Zona do Salgado, como em grande parte da região amazônica,


além das religiões comumente encontradas nas outras partes do país,
como o catolicismo, o protestantismo, a umbanda e o candomblé,
existem a pajelança cabocla e a encantaria amazônica. De maneira
resumida pode-se dizer que a pajelança se apresenta como uma
forma de xamanismo na qual o pajé (curandeiro) incorpora (através
de um ritual de transe) as entidades conhecidas como encantados ou
caruanas. Através desta incorporação, o curandeiro realiza processos
de curas físicas e espirituais. A pajelança engloba todo um
conhecimento sobre as plantas medicinais, fórmulas curativas, regras
e abstenções alimentares, rituais e a crença em inúmeros encantados
(MAUÉS, 2005). A pajelança cabocla diferencia-se da indígena por
corresponder àquela que é feita pelas comunidades rurais e
587
ribeirinhas não indígenas, sofrendo um maior processo de
sincretismo. Não raro, os moradores das comunidades visitadas
realizam, simultaneamente, processos de cura através da pajelança,
creem nos encantados e possuem um altar para São Benedito na sala
de estar [...] (FUSCALDO, 2015, p.90).

Analisar a religiosidade presente no carimbó a partir de um viés das


Performances Culturais, é perceber essas contradições, relações, interações que são
estabelecidas nessa cultura popular. Portanto, não se trata de uma ou de outra
religião, mas de uma interligação entre elas, fato que exige estudos bem mais
aprofundados, visto que, seria impossível tratar dessa temática em apenas um artigo.
Dessa maneira, podem-se destacar algumas características presentes no carimbó. Das
religiões de matrizes africanas, os rituais de reverência aos ancestrais; adoração a
santos negros; as vestimentas das dançarinas de carimbó, que se assemelham
aquelas usadas em rituais de candomblé, com suas saias longas e rodadas, e os
movimentos de giro; o uso de tambores também são bastante utilizados nas religiões
afro; as letras de algumas canções de carimbó fazem menção a entidades do
candomblé como “Dona Mariana”, (Mestre Pinduca) e “Chama Verequete”, (Mestre
Verequete). Outro ponto que merece destaque é que o fato do rei do carimbó “pau e
corda”, Augusto Gomes Rodrigues (1916-2009), ter sido batizado com o nome de
uma entidade do candomblé, passando assim a ser reconhecido como “Mestre
Verequete”.
No carimbó, os aspectos da religião cristã católica destacam-se à devoção aos
santos; as procissões, as ladainhas, os altares e levantamento dos mastros; as
promessas feitas, os rituais de agradecimentos pelas graças alcançadas, e os
banquetes oferecidos. Os rituais do catolicismo misturam-se com a festa de carimbó,
iniciando com a reverência ao santo, e encerrando com a festa de carimbó regada de
muita alegria, misturando os aspectos pertinentes a fé, ao lazer e a socialização. O
carimbó em algumas regiões interioranas é oferecido como agradecimento pelas
colheitas, pescas, pelas bênçãos alcançadas, tornando-se, portanto, uma espécie de
oferenda.
Na religião indígena e no carimbó são utilizadas as maracás, que são
instrumentos musicais feito de cabaças, eles estão presentes nas rodas de carimbó e
nos rituais xamânicos. Outro ponto que merece destaque são as letras de carimbó
fazem menção a algumas lendas e mitos da Amazônia, que falam dos encantados,
como: a “Lenda da Princesa”, do “Boto cor de Rosa”, da “Cobra Grande”, e da
“Matinta Pereira”. Boa parte dos ribeirinhos e moradores da Zona do Salgado
acreditam nos encantados, e alguns realizam a pajelança cabocla, a devoção a
natureza, a busca de tratamentos por meio das ervas medicinais, a incorporação de
espíritos da floresta, a crendice em lendas e mitos, que fazem parte do imaginário e
do cotidiano dessas pessoas.
Os encantados são seres sobrenaturais que se manifestam na natureza e
podem ser incorporados nos pajés, em algumas pessoas com “dons naturais”, ou
pessoas da qual os encantados se agradem. São espíritos que possuem relação com a
588

natureza, sendo capazes de transitar por dois mundos, o mundo físico e o mundo
sobrenatural. A natureza é considerada encantada e viva, com sentimentos e
vontades, parecidas com as humanas (alegria, tristeza, ira). Por esse motivo, há
nessas regiões, grande respeito pela natureza, uma verdadeira sacralização e temor
frente a ela.
A religião cristã evangélica, destaco aqui, a pentecostal, não “caminha”
harmoniosamente com o carimbó, pois, as visões de mundo, de sociedade, de modos
de viver são diferenciadas, causando assim, determinados atritos. Os pentecostais,
buscam que os seus membros se afastem dos “desejos carnais”, ou seja, que seus
adeptos tenham um estilo de vida sem vícios e desejos lascivos. O Carimbó, é uma
cultura alegre, regada a muita dança, diversão, uso de bebidas alcoólicas e
entorpecentes, além da adoração a diversos santos. As religiões trazem em seu bojo
uma maneira de se relacionar com o mundo, com o ser transcendental, e com o
outro. A conversão traz impactos diretos ao carimbó, devido o radical afastamento do
mestre ou do integrante. O carimbó é uma cultura repassada por ancestrais,
necessitando que as novas gerações deem continuidade para que ela não venha a
desaparecer. Essa problemática foi apontada por Bruna Muriel Huertas Fuscaldo
(2015), onde apresenta essa dicotomia entre o sagrado e os aspectos profanos do
carimbó.

Os processos de conversão nas comunidades amazônicas são cada


vez mais comuns. Muitas vezes eles estão relacionados à tentativa de
o nativo deixar “o mundo das drogas”, o “mundo da perdição”. Para
os membros da igreja que predomina em Fortalezinha, o carimbó
está inserido em um universo que deve ser evitado, ao potencializar
o desejo pelo uso de entorpecentes, demonstrando o caráter
“pecador” daqueles que buscam a diversão tocando, dançando e
cantando o carimbó (FUSCALDO, 2015, p.93).

Enquanto algumas religiões convivem de forma harmoniosa com determinada


cultura, outras consideram, desaprováveis determinados comportamentos. Os
estudos das Performances Culturais, nos permite olhar para o cotidiano, para os
rituais, para determinada cultura a partir de um olhar diferenciado, de modo a
compreender determinada realidade, percebendo que assim como o ser humano a
cultura, a religião, as performances estão em constante movimento e em constante
transformação.

REFERÊNCIAS

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. Os deuses do povo: um estudo sobre a religião


popular. São Paulo: Brasiliense, 1986.
BURKE, Peter. Cultura popular na Idade Moderna: 1500-1800. São Paulo: Ed.
Companhia das Letras, 1990.
589

CAMARGO, Robson Corrêa de. Milton Singer e as Performances Culturais: Um


conceito interdisciplinar e uma metodologia de análise, Publicado em:
http://web.calstatela.edu/misc/karpa/KARPA6.1/Site%20Folder/KARPA6.1.html 2013
- California State University, p.1-27.
CAMPOS, Leonildo Silveira. Teatro, templo e mercado: organização e marketing de
um empreendimento neopentecostal. Editora Vozes, 1997.
CAPONERO, Maria Cristina. Festejando São Benedito: a congada em Ilhabela,
recurso cultural brasileiro. Dissertação de Mestrado. Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009.
COSTA, Tony Leão da. Carimbó - negritude, indianeidade e caboclice: debates sobre
raça e identidade na música popular amazônica (década de 1970). XXVIII Simpósio
Nacional de História. Florianópolis: Santa Catarina, 27 a 31 de julho de 2015.
FUSCALDO, Bruna Muriel Huertas. O carimbó cultura tradicional paraense,
patrimônio imaterial do Brasil. São Paulo: Revista CPC, n.18, p.81-105, dez. 2014/abril
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GOMES, Gleidson Wirllen Bezerra; CASTRO, Fábio Fonseca de. A natureza
comunicativa da cultura: a Festividade de Carimbó de São Benedito de Santarém
Novo–Pará. Fronteiras-estudos midiáticos, v. 18, n. 1, p. 33-43, 2016.
IPHAN. Dossiê Carimbó. Inventário Nacional de Referências Culturais: Belém, 2013.
JUNG, Carl Gustav. Obras Completas. Volume XI/1 Psicologia e Religião. Petrópolis:
Vozes, 1978.
MONTEIRO, Vanildo Palheta. Carimbó do Santo Preto: A presença negra na
performance musical da Festividade do Glorioso São Benedito em Santarém Novo
(PA). Tese de Doutorado em Música do Instituto de Artes da UNESP. São Paulo, 2016.
RIOS, Sebastião. Cultura Popular: Práticas e Representações. Revista Sociedade e
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SALLES, Vicente. O Negro no Pará: sob o regime de escravidão. Rio de Janeiro:
Fundação Getúlio Vargas. Universidade Federal do Pará, 1971.
SCHECHNER, Richard. 2006. “O que é performance?”, em Performance studies: an
introduction, second edition. New York & London: Routledge, p. 28-51, 2006.
SIMONI, Rosinalda Corrêa da Silva. A Congada da Vila João Braz em Goiânia (GO):
Memória e Tradição. Goiânia: Tese em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade
Católica de Goiás, 2017.
590
591

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA DE DEUS NO COMBATE AO MAL A


PARTIR DE ANDRÉS TORRES QUEIRUGA

PAULO SÉRGIO LOPES GONÇALVES


Doutor em Teologia
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

FELIPE DE MORAES NEGRO


Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

RESUMO: Esta pesquisa é baseada no pensamento de Andrés Torres Queiruga, tendo


por objetivo é analisar a experiência religiosa de Deus no combate ao mal. Justifica-se
esse objetivo a concepção de que a problemática do mal considera o mal intrínseco à
existência humana, seja em sua condição de evitável seja como inevitável. Além
disso, considerando a teodiceia há de se perguntar sobre o modo como o mal afeta a
Deus ou ainda interrogar: Como afirmar Deus em sua bondade e onipotência se o mal
existe? Estaria Deus, experimentado religiosamente, na origem do mal? Que
contribuições a análise filosófico-teológica pode trazer à tona para que a experiência
religiosa de Deus seja de notativa também de combate ao mal? Poder-se-ia
experimentar Deus como antimal? Para alcançar este objetivo, nosso objeto de
pesquisa será bibliográfica de abordagem hermenêutica, a fim de sistematizar os
textos referenciados Andrés Torres Queiruga, especialmente Repensar o mal (2011) e
Repensar a Revelação (2010) e seus comentadores. Por conseguinte, os resultados
esperados se subdividem em dois níveis o teórico, pois busca responder se a
experiência religiosa de Deus pode lidar e/ou superar o mal e prático que nada mais
são do que produções na área de Ciências da Religião, de modo a suscitar debates na
atualidade.

Palavras–chave: Andrés Torres Queiruga; Mal; Pós-modernidade; Ciências da


Religião; Experiência Religiosa.

INTRODUÇÃO: A PROBLEMATIZAÇÃO DO MAL

O mal sempre foi um problema para o ser humano. A história do


conhecimento humano e das religiões sempre buscaram respostas para esse
problema. A intenção desse estudo é apresentar o problema do mal repensado na
perspectiva de Andrés Torres Queiruga.
592

Partindo da autonomia do mundo, o mal é apresentado na condição de


inevitabilidade a partir da finitude e limite da realidade criada. Desse pressuposto
surge a necessidade de uma nova imagem de Deus e um discurso coerente a partir da
concepção da atividade amorosa e permanente de Deus como o Antimal.
A motivação primeira para o estudo é a percepção evidente da necessidade de
repensarmos os conteúdos da fé e os traduzirmos em nova linguagem, isso numa
perspectiva de universalidade da fé. A particularidade, os pequenos grupos, as
tendências, os modos diferentes de compreensão, revelam um paradoxo
interessante. Por um lado, não buscam através do exercício especulativo do
pensamento, os fundamentos últimos da realidade que, de alguma forma,
possibilitam uma universalização maior do discurso.
Por outro lado, sem buscar essa universalização de base e de fundamento,
pretendem que suas práticas, sua fé, suas doutrinas e concepções de verdade sejam
universais, por isso as consideram as melhores, e o que vale é o que eles acreditam. A
gravidade está nessa pretensão de universalidade, numa concepção e numa
linguagem que nem de longe a tornam possível. Repensar o mal nessa perspectiva, é
buscar um fundamento mais universal de compreensão, olhando o mal em si mesmo
e não imediatamente a partir da fé.
O mal atinge todos os seres humanos, independente de suas crenças, por isso
é assim que ele deve ser pensado e interpretado em um primeiro momento. A tarefa
de repensar coloca a todos numa atitude de busca humilde e de diálogo permanente
sem pretensão de respostas fechadas e definitivas. Em cada fundamento encontrado
se abre uma perspectiva em que o outro pode continuar e avançar.

DA “PONEROLOGIA” Á “TEODICÉIA” PASSANDO PELA PISTEODICÉIA

Essa nova metodologia foi nascendo aos poucos, ao longo da trajetória do


pensamento teológico do autor. Desde o início, Torres Queiruga sempre teve
presente a necessidade de uma reformulação profunda da abordagem do problema,
consciente das insuficiências das respostas dadas até o momento. Porém, à medida
que a sua reflexão foi avançando, ele foi desenvolvendo também uma nova
metodologia, com o objetivo de fundamentar esta nova abordagem.
Diante do desejo de diálogo com a cultura moderna, Torres Queiruga foi
desenvolvendo a convicção sobre a necessidade de uma profunda reformulação. A
afirmação de que Deus quer e “não pode” evitar o mal é uma afirmação sem sentido,
temos que explicar o porquê. O fato é que o problema tem que ser abordado de uma
forma diferente, pois não pode ser no nível da imaginação. Imagina-se Deus e o seu
poder de um lado e o mal e suas consequências do outro, se Deus pode tudo, então,
também tem que poder evitar o mal, só que não se pensa no que significaria isso
para o mundo, ou seja, imaginamos na possibilidade de um mundo sem mal, mas não
percebemos que essa é, simplesmente, uma ideia sem sentido. Por quê? Porque num
mundo finito e limitado sempre haverá males, e o mal se apresenta como algo
inevitável.
593

Assim, tem-se que desvincular a ideia de Deus com o mal, pois o mal deve ser
tratado em si mesmo, em um primeiro momento. Aqui o nosso autor introduz o
conceito de ponerologia. Para ele:

“ponerologia – do grego ponerós, mal – é uma palavra que me atrevi


a introduzir, para de alguma forma obrigar o pensamento a deter-se
em seu processo e a fazer uma escala, cuja necessidade a
secularização tornou tão evidente quanto inevitável. Porque a nova
situação exige que se trate antes de mais nada o problema do mal
em e por si mesmo, com anterioridade (pelo menos estrutural) a
qualquer consideração de tipo religioso. Com efeito, o mal, na dura
multiplicidade de suas diversas figuras, concerne às pessoas
enquanto humanas, independentemente de serem religiosas ou
irreligiosas. Está aí, desde que nascemos, afetando-nos como dano
que fazemos ou sofremos, como dor física ou opressão social, como
culpabilidade ou desgraça, como catástrofe natural ou crime
organizado (...). As tomadas de posição religiosas ou irreligiosas já são
respostas de diferente signo à idêntica questão que sua terrível
presença suscita a todos” (TORRES QUEIRUGA, p. 205-206).

A partir da ponerologia o mal não deve ser tratado como um problema


imediatamente ligado à religião. Deve sim, ser analisado como um problema
humano, universal, que afeta todo mundo, independente de religião, partido,
filosofia ou cultura. A resposta ao mal cada um encontra a partir de suas crenças e
culturas, mas a pergunta de onde vem o mal deve colocar a todos numa mesma
direção. Se colocarmos o problema e já o ligarmos à religião, tem-se uma carga de
emotividade, pré-conceitos e pré-julgamentos difíceis de transpor. Se o mal afeta a
todos, é um problema de todos, a resposta não deve vir apenas de convicções e
crenças de algum grupo ou de uma doutrina, mas num diálogo aberto que ilumine o
campo das respostas.
Em um primeiro momento, Torres Queiruga percorre o caminho de um
“ateísmo metódico”, onde não se nega e nem se afirma a existência de Deus. Deus
entra mais tarde no discurso. A primeira coisa a dizer é que a partir da modernidade
compreendemos que o mundo tem suas leis de funcionamento e essas são
autônomas. Claro, que para as crenças religiosas, que sempre afirmaram que Deus
interfere aqui e acolá como bem deseja esse princípio não é de fácil aceitação. Ocorre
que acima da crença existe a objetividade dos fatos e das descobertas das ciências,
que trazem princípios universais independentes da Quando nos deparamos com a
realidade do mal a constatação inicial para todos é que ele tem suas causas imediatas
no funcionamento do mundo. Se dói, há um ferimento; se alguém foi assassinado, há
um delinquente; se há fome, falta comida; se há guerra é porque existe combate
entre exércitos.
Esse raciocínio simples traduz o que na modernidade aparece explicitamente
como a imanentização radical da causalidade. Procurar a causa do mal dentro do
mundo é algo, de certa forma comum. Assim, não pode dar-se nela o acabado
594

perfeito, a ausência de desajustes, a falta absoluta de erros ou anomalias”. Se isso é


verdade, então, o mundo finito sempre será imperfeito, produzirá desajustes, e não
poderá ser sem males.
No ser humano também a finitude e o limite confirmam a ânsia permanente
por plenitude. Somos habitados por uma insatisfação originária, que é uma dolorosa
inadequação entre a finitude daquilo que somos e o infinito que desejamos. Claro,
tudo isso não é o mal. Porém essa finitude se apresenta na evidência como o
pressuposto radical da condição de possibilidade para o mal.

VIA CURTA E LONGA

Uma pergunta recorrente na análise das pisteodiceias é de se a realidade do


mal abre ou fecha o caminho para Deus. Para algumas posições o mal é a “rocha do
ateísmo” e para outros pode servir de apoio para a fé em Deus.
Diante do dilema é difícil manter a fé em Deus. O ateísmo seria o resultado
mais coerente, afinal, se Deus pode evitar o mal e não o faz por razões que somente
são conhecidas por ele, então o melhor seria não acreditar nele. A “via curta” da
teodiceia propõe manter a confiança em Deus apesar da falta de lógica ou de
coerência racional. Segundo o autor, para a postura tradicional, “aceitar a fé era tão
óbvio como atitude pessoal e era tão plausível do ponto de vista sociocultural, que o
dilema não era percebido como questionamento da fé em Deus” .
Aqui aparece o choque entre duas lógicas: de um lado a lógica abstrata da
razão que aparentemente é muito mais clara e do outro lado a certeza do coração,
que na confiança irrestrita em Deus, embora menos clara e convincente, era
infinitamente mais profunda porque se ancorava na confiança. Essa confiança se
fundava nas razões do próprio Deus, que embora não conhecidas por nós, eram
tranquilamente aceitas porque se confiava saírem de sua bondade e sabedoria.
Já a “via longa” da teodiceia pretende garantir que Deus é bom, passando
pelas objeções da razão e mantendo a coerência do discurso. A “via longa” da
teodiceia desenvolve seu discurso a partir de Deus, por isso a partir da fé e de sua
existência salvadora. Contudo, assume o resultado definitivo da ponerologia, qual
seja: o caráter inevitável do mal em qualquer mundo finito. Isso converte em algo
sem sentido a pergunta pela possibilidade de um mundo-sem-mal e desmarcara a
armadilha do famoso dilema de Epicuro. Nesta perspectiva tudo muda radicalmente.
Segundo Torres Queiruga:

“Uma vez quebrado o feitiço imaginário do mito ancestral de um


paraíso na terra, e repensado com realismo o conceito de
onipotência, já se torna possível manter com lógica rigorosa e
coerência de Deus continua conservando seu mistério inesgotável,
porém nossas afirmações acerca dela deixam de ser contraditórias,
de sorte que os atributos divinos podem ser afirmados em sua plena
validade, sem que devam chocar entre si como afirmações
inconciliáveis. A consciência de quem crê pode, pois, prosseguir
595
confessando, com explicita legitimidade lógica, sua fé em um Deus
que é amor poderoso e poder amoroso, apesar da inegável e
dramática presença do mal no mundo criado por Ele” (QUEIRUGA,
2011, p. 186)

Ao chegar-se a essas conclusões, Torres Queiruga coloca objeções ao seu


próprio discurso. Afirma-se a impossibilidade de um mundo finito sem mal, isso
parece ser uma ideia clara e uma convicção que vai se afirmando em todas as
pessoas, pela simples constatação da dinâmica das coisas no mundo. A objeção que
surge é: percebe-se que o mal existe, mas por que então tanto mal e sofrimento?
Falando desse modo, mais fundados nos recursos da razão, não se estaria eliminando
o mistério ou não o respeitando suficientemente? E a objeção mais radical é esta:
sustentar-se que a finitude comporta inevitavelmente o mal, como falar de salvação
eterna e de fim do mal e do sofrimento se os seres criados continuarão finitos?
Um dos primeiros atributos questionados é a da onipotência divina. Se Deus
quer cuidar de todas as coisas e não pode, tem-se que dizer que ele é menos
poderoso do que a outra causa que o faz não poder cuidar, e dizer que há uma causa
maior que ele não é possível, porque isso vai contra aquilo que Deus é. Nisso, Deus
seria limitado e não onipotente .

CONSIDERAÇÕES FINAIS

No fim desse itinerário, pode se perceber que uma teodiceia atualizada mostra
a possibilidade de assegurarmos a coerência de Deus como o Antimal. A revelação de
Deus ao mundo se dá como amor. Deus não vem mostrar coisas para os homens e
mulheres, para que assim se passe a conhecer coisas que jamais conheceria. Sua
manifestação no amor visa os tornar seres humanos mais autênticos e melhores.
Deus está interessado nisso e luta continuamente contra o mal que atinge tão
fortemente e misteriosamente a vida.
O Deus Antimal nos convoca na luta contra todo e qualquer mal no mundo,
especialmente aquele que ataca o ser humano. A constatação da inevitabilidade do
mal, que aparentemente poderia nos acomodar, ao contrário, deve nos empenhar
continuamente no trabalho contra o mal. É uma tarefa solidária em que somos
convocados a unir todo esforço humano. Esse é o critério mais definitivo de nossa fé
em Deus. Tarefa essa, não fadada ao fracasso, mas alimentada fortemente pela
esperança.
Assim sendo, Esperança fundada numa pessoa concreta, Jesus de Nazaré, que
“passou fazendo o bem” (At 10, 28). Jesus é o modelo sempre vivo e inesgotável que
nos protege contra todas as manipulações das tendências e ideologias. O Deus que
Ele prega e pratica se opõe a todo mal e se coloca do lado de todos os que o
padecem, especialmente ou últimos. Por isso, a teodiceia que quer ser cristã me
coloca nesse dinamismo do Deus Antimal, que busca iluminar e sustentar a existência
humana.
596

REFERÊNCIAS

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Ciências da Religião, v.5, n.9, p.13 -17, 3 dez. 2006.
PANSIEWICZ, R. Criação, Revelação e Salvação: Uma leitura da identidade Cristã a
partir da Teologia de Andres Torres Queiruga, REVER – Revista de Estudos das
Religião, v. 16, n. 1 (2016): Para além das imanências – Homenagem a Afonso M. L.
Soares.
TORRES QUEIRUGA, A. O diálogo Bayle-Leibniz acerca do mal: Unha encruzilhada
decisiva na história do problema, em: Simposio sobre el Pensamiento Filosófico y
político en la ilustración Francesa, Santiago de Compostela, 9-11 de octubre de 1989,
Santiago, 1992,105 – 119.
TORRES QUEIRUGA, A. El Mal inevitable: Replanteamento de la Teodiceia: Iglesia
Viva1 75/176 (1995) 37-79
TORRES QUEIRUGA, A. Replanteamento actual de la teodiceia: Secularización del
mal, ponerologia, pisteodiceia, em M. Fraijó y J. Masiá (eds). Cristianismo e
Ilustración, cit., 241-292.
TORRES QUEIRUGA, A. Repensar o mal: da ponerologia à teodicéia. 1°ed. São Paulo:
Paulinas. Trad: Afonso Maria Ligório Soares, 2011.
TORRES QUEIRUGA, A. Repensar a revelação: revelação divina na realização humana.
São Paulo: Paulinas, 2010.
SEVERINO, A. J. Metodologia do trabalho científico. 23°ed. São Paulo: Cortez, 2007
597

O RITO COMO DOADOR DE SENTIDO À EXPERIÊNCIA DA


MORTE EM BONACCORSO

DANIEL CARVALHO DA SILVA


Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC-Goiás)
[email protected]

RESUMO: Giorgio Bonaccorso é especialista em teologia litúrgica e tem se ocupado


do rito religioso cristão, com particular atenção ao seu aspecto antropológico.
Segundo o autor, os ritos, de modo geral, por estarem no cerne da experiência
religiosa, preocupam-se com a questão da morte. Para ele, os ritos religiosos
constituíram-se como elementos capazes de inverter a sequência temporal natural
“vida-morte” para a sequência de esperança “morte-vida”. Este artigo quer expor
uma análise do rito de translado do corpo do fiel defunto, desde a igreja até o
cemitério, proposto pelo Ritual Romano das Exéquias, acompanhado pela antífona
própria, a saber: “os anjos te conduzam ao paraíso; acolham-te os mártires à tua
chegada e te introduzam na cidade santa de Jerusalém” à luz de Bonaccorso. O
objetivo é identificar, neste recorte ritual, a inversão da sequência defendida pelo
teólogo. Bonaccorso afirma que o rito se coloca no horizonte do homo ludens, ao
passo que faz emergir uma realidade alternativa que permite aos humanos
afastarem-se de realidades reduzidas a uma visão monodimensional (como é) para
transitarem ao campo do lúdico (como se). Discípulo de Terrin, nosso autor concorda
com seu precursor acerca do fato de que o rito é ordenador da experiência de
sentido, antes mesmo que esta experiência seja tematizada. Ou seja, para
Bonaccorso o rito prescinde do mito para encher-se de sentido e possibilitar a
experiência da inversão aos participantes do ritual. Outra característica do rito é que
ele possui uma condição liminar, tanto entre tempos distintos quanto entre espaços
diferentes. Essa condição de liminaridade deslocaria o real, marcado pela falência da
vida, para um recomeço em um novo tempo. Do mesmo modo, a liminaridade
interpõe-se entre o espaço onde está o corpo morto e o paraíso. A caminhada
proposta pelo ritual enseja transitar do plano da finitude à vida nova. Nesse sentido,
concluímos que o rito religioso examinado cumpre a função de inverter a sequência
vida-morte para a sequência morte-vida defendida por Bonaccorso.

Palavras-chave: Rito; Bonaccorso; Morte; Sentido.

INTRODUÇÃO

Giorgio Bonaccorso é monge beneditino da Abadia de Santa Justina, em Pádua,


na Itália. Professor no Instituto de Liturgia Pastoral vinculado ao mosteiro em que
598

vive, Bonaccorso, discípulo de Aldo Natale Terrin, tem dedicado grande parte de sua
pesquisa aos estudos acerca do rito. Podemos encontrar entre a bibliografia de sua
autoria, pelo menos oito títulos dedicados ao rito. A saber: 1) L'estetica del rito:
sentire Dio nell'arte; 2) La liturgia e la fede: la teologia e l'antropologia del rito; 3) Il
dono efficace: rito e sacramento; 4) Il rito e l'altro: la liturgia come tempo linguaggio
e azione; 5) La liminalità del rito; 6) Il corpo di Dio: vita e senso della vita; 7) Rito; 8) La
fede e il telecomando: televisione, pubblicità e rito. Todos em diálogo com a
antropologia, a história, a biologia, a neurociência, a psicologia, a sociologia, a
linguística, a filosofia, a teologia, a fenomenologia e a arte, entre outras.
O Ritual das Exéquias (REx) católico romano passou por diversas reformas
desde os primeiros registros de sua existência, no século VII, até sua última edição,
em 1969, a pedido da Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium (n.81-82). De
acordo com Vida (2016, p.11-16), a ênfase dos ritos fúnebres estava posta,
inicialmente, sobre a dimensão pascal da morte cristã. Contudo, no alto medievo, as
preces exequiais exprimiam mais a necessidade de libertação dos castigos pós-morte
e da purificação das almas por meio de sufrágios que a índole pascal. A Sacrosanctum
Concilium (n. 81) exigiu que tal índole fosse devolvida ao centro dos rituais fúnebres.
Sobre a índole pascal das exéquias, o subsídio “Nossa Páscoa” (2003, p.7), proposto
pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para as celebrações junto aos
defuntos, apresenta a seguinte síntese:

Pela celebração do batismo as pessoas são mortas, sepultadas e


ressuscitadas com Cristo (Rm 6,4; Ef 2,6; Cl 3,1; 2Tm 2,11). Esta
participação no mistério pascal de Cristo renova-se em cada
celebração sacramental. O que aconteceu tantas vezes
sacramentalmente, a fé cristã assegura que acontece
existencialmente na morte do cristão. Segundo esta fé, com sua
morte, a pessoa “deixa este corpo para ir morar com o Senhor” (2Cor
5,8), ou, como dizia Santa Terezinha do Menino Jesus, “a pessoa não
morre, entra na vida”.

Esta dimensão diz respeito antes à comunidade que celebra a passagem de um


de seus membros que ao defunto em si. Contudo, o atual REx resguarda elementos
dos dois momentos históricos afirmando que a celebração serve, para uns como
sufrágio e para outros como consolo e esperança (REx, n.1). Nosso estudo, por sua
vez, diz respeito à comunidade que celebra.
Essa opção fundamenta-se dois princípios: 1º) a afirmação de Agostinho de
Hipona no Sermão 172,2 (1983, p.689): “Por tanto, las pompas fúnebres, los cortejos
funerarios, la suntuosa diligencia frente a la sepultura, la lujosa construcción de los
monumentos significan um certo consuelo para los vivos, nunca uma ayuda para los
muerto”; e 2º) pelo fato de Bonaccorso estar inserido naquele que Berlanga (2013,
p.239-240) definiu como “modelo antropológico ritual e pastoral” de compreensão
litúrgica. Em suma, trata-se do fato de que o rito seja considerado não uma ação que
599

deseje provocar alguma reação no sagrado, mas que tenha como função primordial
agir sobre as emoções humanas daqueles que o executam.

O RITO COMO DADO ANTROPOLÓGICO

Uma premissa básica para a compreensão do pensamento do autor é esta: o


rito é essencialmente corpóreo. “O rito é uma auto-organização do corpo que
configura uma relação social aberta a um olhar complexo da realidade”
(BONACCORSO, 2015, p.9)200. Citando o alemão Walter Burket, Bonaccorso (2006,
p.220) afirma que “o nexo entre o mundo mental e o ambiental natural é o corpo”.
Portanto, na base de seu pensamento está o corpo, seja como fenômeno biológico ou
como estratégia ritual.
O corpo é não somente o lugar onde coexistem a consciência, o cérebro e o
pensamento, mas, esses também são corpo. O corpo é, não somente, sujeito vivente,
mas é o sujeito pensante, o sujeito vidente e ouvinte. O corpo não é algo objetivado,
que é gerido pela mente, por exemplo. Mas a mente é também corpo. E é no corpo,
capaz de agir, sentir e pensar que o rito vai operar. Há, na raiz desta interpretação, os
pressupostos da fenomenologia da percepção de Merleau-Ponty. A força ritual,
portanto, não está na capacidade humana de interpretá-lo ou explicá-lo, mas na
capacidade que o rito tem de imergir, envolver, despertar emoções no corpo humano
(BONACCORSO, 2015, p. 130-146).
A tese que apresentamos aqui, apesar de bastante dispersa em toda a obra do
autor, foi sintetizada no capítulo intitulado Inculturazione cristiana i riti di iniziazioni
nel Togo (BONACCORSO, 2009, p.151-174) que compõe o livro Liturgia e
Inculturazione, organizado por Terrin. A saber: o rito funciona como um
autogerenciamento, uma auto-organização do corpo para que ele possa lidar com a
morte. De acordo com o autor, nossa espécie é a única que tem memória histórica
suficiente para compreender, frente à morte de um humano, que todos os outros são
mortais. O rito, na compreensão de Bonaccorso, surge então como uma resposta à
pergunta: “como podemos continuar a viver sabendo que morreremos?”.
O rito realiza, então, uma inversão: se o natural é iniciar pela vida (nascer) e terminar
pela morte (morrer), o rito tornará possível uma inversão: através dele se partirá da
morte em direção à vida. Rubem Alves (1985, p.198) descreverá tal realidade da
seguinte forma:

Sempre pensamos que o tempo fosse um rio fluindo sem parar e nós,
navegantes, indo do passado para o futuro. E agora se diz que do
futuro, do ainda não, vem alguma coisa. Quebra-se a continuidade do
passado, rasgam-se as mortalhas herdadas, rompe-se o domínio dos
mortos. Surge um tempo novo, não da história dos homens, mas da
graça de Deus, do inesperado, do Mistério.

200
Tradução nossa.
600

De fato, como vimos anteriormente, o batismo cristão supõe uma morte e um


renascimento para outra vida. Assim, podemos afirmar que os ritos cristãos parecem
lidar, realmente, com o percurso vida-morte de modo a invertê-lo.

RITO EXEQUIAL: PROCISSÃO COM O MORTO

De posse da tese apresentada anteriormente, dispusemos-nos a analisar um


recorte do REx. O recorte em questão é a antífona “Os anjos te conduzam ao paraíso;
acolham-te os mártires à tua chegada e te introduzam na cidade santa de Jerusalém”.
Proposta duas vezes pelo ritual (REx 49; 69), a antífona deverá ser cantada
entremeada por estrofes de salmos apropriados enquanto o corpo do fiel defunto é
transladado desde a igreja até ao cemitério, no primeiro caso; ou desde a capela do
cemitério até a sepultura, no segundo caso.
Conforme Bonaccorso (2014, p.6-7) a experiência religiosa e a ritualidade são
congênitas, não somente devido à inversão morte-vita, mas também porque em
ambos a liminaridade se interpõe201. O limen, o limiar divide não somente o espaço,
mas também o tempo. A experiência religiosa ou ritual possibilita uma espécie de
saída do contexto da vida social e uma introdução a um local-tempo marginais onde
são dissolvidos o modo de pensar, ser e comportar-se socialmente naturais para que,
posteriormente, haja um retorno ao espaço-tempo da vida social comum. Enquanto o
corpo morto é conduzido por homens à cova, o canto ritual afirma que ele é levado
por anjos ao céu. Enquanto a terra o acolhe e acoberta, diz-se que os mártires o
acolhem e introduzem na cidade santa, Jerusalém.
A liminaridade, dirá Bonaccorso (2015, p.60), implica uma alternativa ao olhar
ordinário (comum) sobre as coisas. Ela possibilita o “como se fosse”, um modo
diferente de conceber o real. O rito é um fenômeno de tipo lúdico, isto é: possibilita
passar do “como é” ao “como se” (BONACCORSO, 2015, p.133). Por isso, a
antropologia de Bonaccorso versa sobre o homo ludens, não encapsulável numa
única dimensão, mas aberto a outros mundos e alternativas possíveis. Exemplos
utilizados em defesa dessa tese são tanto o jogo quanto a arte. Ambos existentes nas
mais variadas sociedades humanas, segundo Bonaccorso, são reflexo da busca de
espaços e tempos alternativos ao que chamamos real.
O rito, conforme Bonaccorso, é marcado por três características: 1) a
interrupção – isto é, o abandono do contexto normal em que determinadas ações
costumam acontecer (como alimenta-se, ou acender uma vela); 2) o exagero – as
ações rituais são feitas com maior ênfase em relação às não rituais; 3) a repetição –
esta, no caso da antífona analisada, é comprovada. A antífona existe para ser cantada
por toda a assembleia celebrante, repetidas vezes. A repetição, de acordo com o
autor, conferirá o valor de verdade ao rito. Importante ressaltar ainda que é
necessário que haja uma comunidade que compartilhe a mesma cosmovisão e não
somente assista, mas participe ativamente do rito (BONACCORSO, 2015, p. 87).

201
Questão tratada por Terrin (2004) na obra: Antropologia e horizontes do sagrado, p. 376-405.
601

É válido recordar também que, para Bonaccorso, historicamente, os ritos


precedem e independem dos mitos. De acordo com ele, a história certifica que o
comportamento ritual não é exclusivo da espécie humana. Além disso, uma vez que o
rito não prescinda exclusivamente da linguagem verbal – que é mais recente no
âmbito do desenvolvimento humano – o autor defende a tese de que o rito é anterior
à religião. Nesse sentido, é possível verificar que muitos ritos, como o de comer
juntos, por exemplo, contam com diferentes mitos que o justifique em diferentes
sociedades e religiões. Todo modo, é preciso ter em vista que, a comunidade que
executa o ritual, conta com um mito que o justifique (MARTINS-FILHO; SILVA, 2020,
p.15-19).
A antífona analisada situa-se no contexto judaico-cristão. Por isso, é
importante resgatar os mitos religiosos que a fundamentam. O que segue é um
apanhado sintético de tais mitos. O evangelista Lucas (16, 19-31) narra a morte do
mendigo Lázaro que, morrendo fora conduzido por anjos até o seio de Abraão. Logo,
há anjos e há um lugar bom para o qual se é levado após a morte. O mesmo
evangelista colocará na boca de Jesus estas palavras dirigidas ao ladrão crucificado ao
lado dele: “hoje mesmo estarás comigo no paraíso” (Lc 23,43). Portanto, o nome do
lugar onde se vive bem e eternamente, como Abraão, é paraíso.
O livro do Apocalipse, especialmente nos capítulos 6 e 7, versa sobre os
mártires “aqueles que tinham sido imolados por causa da Palavra de Deus e do
testemunho que deram dela” (Ap 6,9), aqueles que receberam a veste branca para
descansar (Ap 6,11) e que traziam palmas nas mãos (Ap 7,9). É interessante ter
presente que ainda hoje, na iconografia cristã, os santos mártires são representados
com uma folha de palmeira na mão. Sobre eles, o ancião teriam respondido à
pergunta de João em sua visão do céu:

“São os que vêm chegando da grande tribulação e alvejaram suas


vestes no sangue do Cordeiro (...) Aquele que está sentado no trono
os cobrirá com sua tenda. Nunca mais terão fome, nem sede, nunca
mais serão queimados pelo sol, nem pelo calor ardente (...) E Deus
lhes enxugará toda lágrima dos olhos” (Ap 7, 14-16 com supressões).

Portanto, do mesmo modo que na tradição hagiológica do catolicismo, os


mártires são compreendidos como aqueles que da morte alcançam diretamente a
santidade e o paraíso. São habitantes certos do paraíso. O capítulo 21 de Apocalipse
retoma a apresentação do local onde não haverá mais morte, nem luto, nem choro,
nem dor (Ap 21,4). É a nova terra (Ap 21,1). O lugar onde Deus morará com seu povo
(Ap 21,3) e o nome deste lugar é: Jerusalém, a cidade santa (Ap 21, 2) iluminada pelo
Cordeiro (Ap 21, 23).

CONSIDERAÇÕES

A antífona realiza, então, a inversão de sentido: aquele que, objetivamente,


morre, na verdade ritual nasce para a vida em Deus. Para Bonaccorso (2015, p.146) o
602

rito religioso pode ser compreendido como uma triangulação entre: ação sagrada (o
que se faz), emoção religiosa (o que se sente) e razão teológica (o que se entende).
Contudo, a dimensão do sentir é primordial. Nesse sentido, é estar vivo é sentir-se
vivo. O suicídio, nesse caso, é a prova de que é mais importante sentir-se vivo do que
estar vivo. Os valores – as coisas que importam – são definidos pelas emoções. Por
isso, o autor defenderá que diante do rito só existem duas possibilidades: ser imerso
por ele ou ser expectador dele. É como viver no presídio ou ser vizinho a ele. Duas
experiências completamente diferentes.
O rito só pode ser vivido quando somos imergimos nele. Frente à falência da
vida, a antífona apresenta vida nova, de mais qualidade e eterna. A procissão não
prescinde da compreensão racional, mas prescinde de que aqueles que conduzem a
urna mortuária sintam que entregam seu defunto aos anjos que o levarão ao paraíso,
onde será acolhido pelos moradores mais ilustres da cidade santa. A caminhada
proposta pelo ritual das exéquias, portanto, dá-se no limiar, no entremeio posto
entre a terra, onde a morte silenciou o corpo vivente, e o paraíso, onde o corpo
viverá para sempre e em paz. O final da caminhada é o cruzamento da linha: da
morte para a vida. De vivos-morrentes para mortos-viventes (BONACCORSO, 2009,
p.156). Portanto, a tese de Bonaccorso pode ser verificada nos ritos fúnebres do
catolicismo latino.

REFERÊNCIAS

AGOSTINHO. Obras completas de San Agustín. Vol. 23. (Sermones 117-183). Madrid:
Biblioteca de autores cristianos, 1983.
ALVES, R. Variações sobre a vida e a morte: o feitiço erótico-herético da teologia.
2.ed. São Paulo: Paulus, 1985.
BERLANGA, A. Liturgia y teologia: del dilema a la sínteses. Barcelona: Centro de
Pastoral Litúrgica, 2013.
BONACCORSO, G. Inculturazione cristiana i riti di iniziazioni nel Togo. In: TERRIN, A. N.
Liturgia e Inculturazione. Padova: EMP, 2009, p. 151-174.
BONACCORSO, G. Rito. Padova: EMP, 2015.
BONACCORSO, G. La liminallitá del rito. Padova: EMP, 2014.
CONCÍLIO VATICANO. Constituição Sacrosanctum Concilium: sobre a sagrada liturgia.
In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2001, p. 32-
86. (Col. Clássicos de bolso).
TERRIN, A. N. Antropologia e horizontes do sagrado: culturas e religiões. São Paulo:
Paulus, 2004.
VIDA, H. M. A. J. O Ritual das Exéquias reformado pelo Concílio Vaticano II: Passos
dados e desafios na Igreja de hoje. Dissertação (Mestrado em Teologia). Faculdade de
Teologia, Universidade Católica Portuguesa. Porto. 2006. 98f. Disponível em:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/20316/1/HIP%C3%93LITO%20VIDA%2
0DISSERTA%C3%87%C3%83O%20SOBRE%20AS%20EX%C3%89QUIAS.pdf Acesso em:
20/10/2020.
603

MARTINS-FILHO, J. R. F.; SILVA, D. C. A força do rito: entrevista a Giorgio Bonaccorso.


In: Revista de Liturgia. n. 281, ano 47, out/2020, São Paulo. p.15-19.
CNBB. Nossa Páscoa: subsídios para a celebração da esperança. São Paulo: Paulus,
2003.
604

A VIOLÊNCIA E A MORTE COMO ELEMENTOS DE RECRIAÇÃO


TEOLÓGICA: HÁ A PRODUÇÃO DE UM QUERIGMA
TEOLOGAL NAS FAVELAS CARIOCAS?

PRISCILA ALVES GONÇALVES DA SILVA


Mestra em Ciências da Religião
Universidade Metodista de São Paulo
[email protected]

RESUMO: O objetivo deste trabalho é compreender se o contexto de favelização e a


violência experienciada por cristãos e cristãs no Rio de Janeiro pode ser um vetor de
produção de algum tipo de testemunho evangélico – externo ao texto bíblico em sua
hermenêutica institucional, porém fruto deste – utilizado para romper (ou ao menos
revelar) as estruturas que negam a existência, Direitos e que produzem morte de
favelizados e favelizadas. Sabendo que a favelização e a violência são fenômenos que
afetam uma parcela bastante significativa da população brasileira, não é novidade
indicar que pessoas expostas a estes fenômenos aderem aos mais diversos tipos de
religião a fim de darem sentido às suas vidas em situação de precariedade. Nestes
espaços onde imperam regras específicas, sociabilidades específicas e desafios
constantes, a religião, especificamente o cristianismo de vertente evangélica,
configura-se como um instrumento de autogestão da vida, utilizado pelos próprios
favelizados e favelizadas. Logo, a teologia, o discurso sistematizado e institucional da
fé, operam, então, não apenas como formas de explicação do mundo, conforme
teorias clássicas da filosofia da linguagem, mas principalmente como “atuação”
neste. Neste sentido, supomos que haja um “testemunho epifânico” sendo produzido
nas favelas cariocas, pelo qual os favelizados e favelizadas interatuam, recriam e
sobrevivem em meio a violência e morte. Seus testemunhos coletivos, formulados a
partir de raízes na teologia institucional cristã – análogos à violência – mas que vão
para além destas, irrompem como fruto da dialética entre o horizonte concreto de
violência na favela e aquele horizonte desejado. Quanto ao método, disporemos
inicialmente de levantamento bibliográfico sobre a temática, e em uma etapa mais
amadurecida, empreenderemos a elaboração de outras estruturas metodológicas
que levem em conta o testemunho favelizado como objeto das investigações. Como
esta é uma pesquisa ainda em desenvolvimento, os resultados ainda estão em fase
de perscrutação.

Palavras-chave: Favela; Violência; Morte; Evangélicos.


605

INTRODUÇÃO

A morte, a violência, a pobreza e a favela, ao se tornarem objetos de pesquisa


perdem, de certa forma, seu caráter cotidiano e cruel, e transformam-se em temas
assépticos e em um emaranhado de dados, que parecem não descrever a
cotidianidade dos que estão envolvidos e relatados nos infinitos gráficos disponíveis.
Esse é um processo natural, característico e necessário ao desenvolvimento do que
classificamos como ciência, mas é preciso que retomemos em certos níveis a
humanidade, a fisiologia e a anatomia desses processos de violência e radicalização
da precarização da vida. Em outros termos, entendemos que ao falar de violência, de
morte etc, é necessário que os indivíduos vitimados assumam o protagonismo de
nossas investidas científicas, principalmente quando o discurso religioso é a
ferramenta principal de intelecção, manutenção, tradução e atuação em torno desses
processos.
Há no Brasil, atualmente, pelo menos 12 milhões de pessoas favelizadas. Isto
equivale à pelo menos 6% de toda a população do país vivendo em situação de
pobreza em níveis médio e extremo. Especialmente no Estado do Rio de Janeiro,
como um meio de existir apesar da negação de seus Direitos, os pobres se
estabeleceram desde o início do século XIX no que foi classificado como favela, e hoje
este estado ocupa a primeira colocação no quadro geral de pessoas favelizadas no
Brasil202. Isso significa que uma em cada cinco pessoas no Rio de Janeiro vivem em
situação de favelização. Este ambiente socialmente construído, dinâmico e
heterogêneo, abriga também evangélicos e evangélicas, que cotidianamente
convivem com a característica mais geral deste espaço: o fenômeno da violência
manifesto de formas diversas. Com vistas ao desenvolvimento deste trabalho, nosso
recorte será os evangélicos de missão, especificamente os batistas, que apesar de ser
uma tradição religiosa mais elitista, possui algumas igrejas no ambiente de favela,
provocando algumas rupturas no seu histórico.
É importante destacar que, a relação entre pobreza e religião já tem recebido
uma vasta problematização, porém esta não é uma relação que classificamos como
direta. Isto é, não necessariamente a pobreza influencia na disposição religiosa das
pessoas. Contudo, o que se percebe é que a adesão à círculos religiosos nos bolsões
de pobreza é extremamente significativa e implica em uma resistência aos ditames
modernos, que opõem a religião ao desenvolvimento de forma mais ampla. Sabendo
dessa não condição de dependência, buscamos compreender como as pessoas
favelizadas, então, aderem às instituições religiosas evangélicas e acabam por
subverter suas próprias sistematizações de fé. Consideramos, nesse sentido, que há
uma apropriação do conteúdo institucional das igrejas evangélicas por parte dos
favelizados, que servem de fundamento para suas recriações teologais. Esse
conteúdo pode ser compreendido, hipoteticamente, como fruto da dialética do

202
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/15700-dados-do-
censo-2010-mostram-11-4-milhoes-de-pessoas-vivendo-em-favelas
606

ator/atriz religioso (a) com seu ambiente, e sua própria condição de existência
precária.
Para responder à pergunta que intitula este trabalho, desenvolveremos a) a
precarização condicionada das vidas humanas na favela e a violência como processos
históricos, b) os mecanismos de alienação da produção de conteúdos teológicos, que
ajudam a gerir essas condições precarizantes, e por fim, c) como alguns
deslocamentos de conteúdo, feitos de forma orgânica, operam para a reconstrução
das chaves hermenêuticas sacrificiais comuns à teologia e que dialogam com o
cotidiano das favelas.

VIDAS PRECÁRIAS E FAVELIZAÇÃO: A ROTINA DE VIOLÊNCIA E CARÊNCIAS

Ao metaforizar a morte e a precariedade da vida, João Cabral de Melo Neto


(1996, p.67) sintetiza que, “...se somos todos Severinos iguais em tudo na vida,
morremos de morte igual, mesma morte Severina: que é a morte que se morre de
velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, de fome um pouco por
dia....”. Sem obviamente se pretender poética, Judith Butler se ocupa do mesmo
tema de forma teórica: a condição precária de algumas vidas. Ao pensar a estrutura
contemporânea das guerras, a distribuição geopolítica da violência e os efeitos dos
enquadramentos do poder, Butler (2019, p. 52) infere que:

“Vidas são apoiadas e mantidas diferentemente, e existem formas


radicalmente diferentes nas quais a vulnerabilidade física humana é
distribuída ao redor do mundo, certas vidas são altamente
protegidas, e a anulação de suas reinvindicações à inviolabilidade
será suficiente para mobilizar as forças da guerra. Outras vidas não
encontrarão um suporte tão rápido e feroz e nem sequer se
qualificarão como passíveis de ser enlutadas”.

De acordo ao pensamento disposto acima, há um certo tipo de racionalização


da precarização da vida, que demanda valorações distintas para grupos sociais
distintos, sendo aplicadas por meio da máquina política. Isto é, a precarização da vida
sempre é uma decisão tomada a nível institucional, quando se opta por dar mais
reconhecimento de humanidade a uns em detrimento de outros. A percepção
poética de Melo Neto e a robustez teórica de Butler são uma afirmação de que
algumas vidas são tratadas mais como vidas que outras. A realidade de morrer de
velhice antes dos trinta, de emboscada antes dos vinte, e de fome um pouco por dia
é narrativa do Brasil rural dos anos 30 no Nordeste, mas que ainda ressoa nos centros
urbanos e nos aglomerados subnormais, que são as favelas. O Rio de Janeiro é, de
certa forma, a capital da precariedade do Brasil, quando o tema é a favelização de
seu espaço urbano, e a violência em sua dimensão mais plural possível. Os
favelizados e favelizadas são exemplos de vidas precárias, do tipo condicionadas.
Podemos fazer tal afirmação considerando o perfil da favelização do Brasil, e
consequentemente do Rio de Janeiro, que é nosso foco. O relatório censitário de
607

aglomerados subnormais (IBGE, 2010), revela que este é um fenômeno


metropolitano, já que as maiores favelas do Brasil estão concentradas nos grandes
centros urbanos como Rio de Janeiro, São Paulo, Belém, Recife, Distrito Federal. Os
maiores afetados pela favelização na contemporaneidade são os sujeitos que estão
na faixa etária correspondente de jovens-adultos. Ou seja, a favela é composta
preponderantemente por adolescentes de até 14 anos e adultos entre 35 a 59 anos,
conformando uma média de 29,1 anos. Em relação à concentração de raça, aqueles
que se autodeclaram negros atinge o percentual de 67% da população geral. Sendo
assim, mais da metade da população favelada no Brasil é negra. Em relação ao
gênero, vemos que as mulheres negras são maioria, atingindo a alarmante faixa dos
69% de moradoras. Além disto, o censo também aponta que 62% das famílias são de
casais com filhos e 21% são solteiras com filhos203. Este dado indica que grande parte
dos lares brasileiros são chefiados e sustentados por mulheres majoritariamente
negras.
Este perfil geral da favelização brasileira indica que são as mulheres, jovens,
negras, solteiras, as que têm a vida mais vulnerável nas favelas, e apesar destas
figurarem como as “vidas mais precárias”, os homens somam 99,6% do percentual de
mortes por agentes do Estado. A fim de conferir alguma concretude estatística à
violência e a precariedade mencionadas, abaixo apresentamos uma tabela que
aponta o aumento progressivo nos índices de mortes causadas por agentes do Estado
no Rio de Janeiro.

Total de mortes Diferença percentual


Total de
por intervenção nos dados de mortes
homicídios
de agente do por intervenções de
dolosos
Estado agente do Estado¹
2018 4.950 1.534 36%
2019 4.404 1.814 18%
2020 1.642 881* -71%
¹ O percentual é a média comparativa com o ano anterior ao apresentado.
* Os totais apresentados do ano vigente referem-se à soma de ocorrências de janeiro a
agosto.
Fonte: ISP – RJ (tabela elaborada pela autora).

Diante dos dados indicados, fica claro que a vida nas favelas, de forma geral,
consiste numa intensa batalha pela sobrevivência diante dos conflitos diversos
performatizados neste ambiente, bem como uma luta constante pelo
reconhecimento da dignidade e da minoração da precariedade característica a todo
ser humano, além da precariedade resultante de sistemas socioeconômicos
históricos.

203
Utilizamos a expressão “solteiras com filhos” como uma crítica à nomenclatura usual do IBGE, e de canais de
comunicação que geralmente utilizam o termo “mães solteiras”. Entendemos que “mãe” não é um estado civil,
e apesar de não termos o objetivo de problematizar amplamente a questão, nos posicionaremos desta maneira
quando necessária a utilização do termo.
608

PROCESSOS DE ALIENAÇÃO DA PRODUÇÃO DE CONTEÚDO TEOLÓGICO

De modo não diretamente relacionado, as estimativas divulgadas pelo IBGE


neste ano revelam um crescimento considerável de evangélicos nos últimos dez anos,
que se aproxima da casa dos 30%. Reafirmamos que a pobreza não é condição sine
qua non para a adesão religiosa, contudo, o que se percebe é que os momentos de
maiores crises econômico-sociais e a vida reduzida à condição de precariedade e
necessidade contínua são motivadores da instrumentalização da religião, que pode
operar como uma ferramenta de resolução dos conflitos cotidianos de diversas
ordens. A questão é: apesar dessa considerável adesão religiosa de favelizados aos
círculos evangélicos, estes indivíduos participam de forma efetiva da produção de
conteúdos institucionais, práticos para a vida cotidiana?
Se pensarmos esta questão a partir da definição clássica de Clifford Geertz
acerca da religião, poderíamos taxativamente responder que não. Como Geertz
define, a religião é “um sistema de símbolos que atua; para estabelecer poderosas,
penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens através da
formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e; vestindo essas
concepções com tal aura de factualidade que; as disposições e motivações parecem
singularmente realistas” (1978, p. 67). De onde parte esse sistema de símbolos?
Quem os organiza e quem os consome? Pode-se dizer que a definição acima consiste
em uma produção transhistórica, corpus resultante de um trabalho erudito e
monopolizador. Em outras palavras, a religião pensada por Geertz é o que Bourdieu
classificou como uma batalha pelo “capital religioso” (BOURDIEU, 2007). Geertz
separa o significado do campo da prática, reduz a religião à uma essência religiosa
motivadora de determinadas maneiras de existir, sem considerar a existência nua e
crua que já está em curso (ASAD, 1993).
Dito isto, é importante ressaltar que, se partirmos desses conceitos
generalistas e pretensamente globalizantes, o conteúdo religioso que dá sentido à
vida de diversas pessoas favelizadas, produzido mediante experiência (contato com
ritos, mitos, tabus e textos) será sempre institucionalmente rejeitado e
cientificamente deslegitimado. Ou seja, é preciso considerar que a prática religiosa
não se limita ao que o corpus doutrinário sistematiza, e o que o texto bíblico – como
é o caso – aventa a partir de uma instituição específica. Conforme o pensamento de
Pierre Sanchis, “entre a boca do pregador e o ouvido do povo pode sempre haver o
espaço de uma transmutação de signos” (2018, p.98), e no caso da favela como locus
hermenêutico, definitivamente há.
Se há uma disputa, mesmo que implícita, pelo monopólio do capital religioso,
e uma consequente alienação prévia da produção do conteúdo institucional, do que
estamos tratando quando indicamos a existência da violência e da morte como
chaves hermenêuticas fundantes do discurso evangélico?
609

A TEOLOGIA DA SATISFAÇÃO PENAL EM DIÁLOGO COM A VIOLÊNCIA NA FAVELA

A nomenclatura “Teologia da Satisfação Penal” não é unânime nos manuais de


sistemática, mas o seu conteúdo é, de certa forma, discurso comum entre diferentes
vertentes. Apoiada numa interpretação bíblica literalista, esta sistematização refere-
se à ideia de que a morte de Jesus foi um evento requerido por Deus com vistas à
expiação dos pecados da humanidade. Isto é, o sangue de Jesus como símbolo da
purificação e estabelecimento de uma nova aliança de Deus com a humanidade. A
cruz, nesse esquema sacrificial, é ferramenta soteriológica e não a consequência
político-religiosa da vida de Cristo, datada, situada e subversiva. Essa sistematização,
adotada com pequenas variações e inclusões desde o século XI, invade o discurso
cristão se estabelecendo como o querigma básico presente na liturgia dominical
evangélica, independentemente da classificação denominacional. A morte de Jesus é
o centro da mensagem, e o esquema de violência que a demandou é
intencionalmente dissimulada.
Em trabalho desenvolvido recentemente, realizamos uma pesquisa com
documentos litúrgicos dominicais de uma igreja batista situada numa favela, e
inferimos que, apesar da teologia da satisfação penal estar plenamente presente nas
estruturas discursivas, alguns elementos destoavam desta fundação hermenêutica.
Isto é, apesar do texto bíblico no universo evangélico ser consumido e exposto a
partir de uma hermenêutica literalista, pela qual se evidenciam a morte, a ira, a pena,
a violência, como elementos naturais e necessários para os fundamentos da fé, há
variantes já documentadas de outras possibilidades hermenêuticas (GONÇALVES,
2020).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os favelizados e favelizadas dispõem das matrizes teológicas características de


suas instituições, sistematizadas nos círculos eruditos. Entretanto, na cotidianidade
de violência e precariedade da vida na favela, subvertem e resistem a certos
elementos que podem não parecer tão sagrados quanto o “domínio erudito” assim os
relata e gerencia. Em outros termos, a favela é um espaço onde a violência direta
afeta não somente a rotina das pessoas, mas transforma o discurso teológico em um
ponto de partida para recriações querigmáticas teologais, um pouco mais distantes
dos elementos de prioridade sacrificial. Nos discursos cotidianos, há a insurgência de
figuras mais paternais, protetoras, provedoras de Deus, do que aquelas relacionadas
a um Deus de caráter implacável de honra ofendida e restaurada pela morte do filho.
Ainda que a violência – de forma dissimulada – e a morte estejam presentes no
discurso institucional, há uma intervenção leiga, popular, que acaba reinventando o
sentido da teologia com o fim de promover sentido ao cotidiano, e que não esteja
diretamente associado ao mal, à guerra, ao sangue que já são parte de suas rotinas.
Apesar do abafamento, os favelizados e favelizadas são hermeneutas, cocriadores
dos conteúdos teologais professados e performatizados nas favelas cariocas, e é
610

necessário que compreendamos sua utilidade, especificidade e diálogo com o


contexto vital onde nascem.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

BORDIEU, Pierre, 1930-2002. A economia das trocas simbólicas / Pierre Bordieu:


Introdução, organização e seleção Sérgio Mirceli. – São Paulo: perspectiva, 2007. –
Coleção estudos ASAD, Talal. Genealogies of religion: discipline and reasons of power
in Christianity and Islam / Talal Asad. John Hopkins University press, 1993.
BUTLER, Judith. Vida precária: os poderes do luto e da violência / Judith Butler;
[tradução Andreas Lieber; revisão técnica Carla Rodrigues]. – 1. Ed. – Belo Horizonte:
Autêntica Editora, 2019. – (Filô).
GEERTZ, C. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
GONÇALVES, Priscila. Religião e violência na favela: a fé e o cotidiano lavados pelo
sangue de Jesus. São Paulo: Editora Recriar, 2020.
IBGE. Censo Demográfico 2010. Aglomerados subnormais: primeiros resultados.
Disponível em:
https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/periodicos/92/cd_2010_aglomerados_sub
normais.pdf.
MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina: e outros poemas para vozes. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1996.
SANCHIS, Pierre. Religião, cultura e identidade: matrizes e matizes / org. Mauro
Passos e Léa Freitas Pérez. Petrópolis: Editora Vozes, 2018.
611

TILLICH E SUASSUNA NA REFLEXÃO SOBRE SAÚDE


ESPIRITUAL E A ANGÚSTIA EXISTENCIAL

HENRIQUE NILO DA SILVA


Mestrando no Programa em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

RESUMO: Nossa proposta constitui-se em uma breve análise da obra Auto da


Compadecida de Ariano Suassuna por meio da aplicação hermenêutica dos principais
conceitos de Paul Tillich na obra A Coragem de Ser. Abordaremos a situação
existencial humana sistematizada por Paul Tillich em seus conceitos “a ameaça do
não-ser”, “as três formas da angústia” e “a coragem de ser”. Suassuna retrata o
contexto brasileiro a partir do imaginário popular evidenciando o sofrimento, cultura
e religiosidade do sertanejo nordestino. Ambas as obras sensibiliza-nos para a
reflexão sobre a saúde espiritual apesar da angústia existencial. Mesmo sendo uma
obra cômica e caricaturada, a literatura suassuniana apresenta implicitamente
questões existenciais. Por meio da relação que pode-se estabelecer entre Teologia e
Literatura possibilitamos o encontro do teólogo e filósofo alemão com o dramaturgo
brasileiro para refletirmos acerca da saúde psicológica e espiritual. Aproximamos
ambas disciplinas por entender que o conhecimento a respeito da realidade humana
é captado por áreas distintas. Ressaltamos que não se trata de um reducionismo da
Literatura como mera subserviência da Teologia, nem imposição e exclusividade
teológica sobre a temática, mas um diálogo interdisciplinar a respeito da condição
humana pensada em situações diversas. A abordagem filosófica e teológica
empregada é uma ontologia que busca compreender o homem contemporâneo por
meio do impacto direto e indireto que a finitude causa em sua existência. Os
conceitos filosóficos e teológicos serão aplicados na literatura em dois momentos: o
primeiro em uma análise panorâmica da literatura através dos conceitos tillichiano; e
depois, especificamente, no personagem João Grilo como exemplo de auto-afirmação
ou coragem de ser apesar da morte, culpa e insignificação.

Palavras-Chave: Paul Tillich; Ariano Suassuna; Angústia Existencial, Saúde Espiritual.

INTRODUÇÃO

Por meio da relação que pode-se estabelecer entre Teologia e Literatura,


faremos uma breve análise da obra Auto da Compadecida de Ariano Suassuna a partir
da obra A Coragem de Ser de Paul Tillich. Nossa abordagem aproxima Teologia e
Literatura por entender que o conhecimento a respeito da realidade humana é
captado por áreas distintas. Este diálogo interdisciplinar tem sido adotado por
612

pesquisadores brasileiros, como Antonio Magalhães, Antonio Manzatto, Carlos


Eduardo Brandão Calvani, Eliana Yunes e Elton Sadao Tada, procurando ampliar a
visão a respeito do fenômeno religioso como objeto de estudo.
A abordagem filosófica e teológica empregada é uma ontologia que busca
compreender o homem contemporâneo por meio do impacto que a finitude causa
em sua existência. Os conceitos filosóficos e teológicos serão aplicados na literatura
em dois momentos: o primeiro em uma análise panorâmica da literatura através dos
conceitos tillichianos; e depois, especificamente, no personagem João Grilo como
exemplo de coragem de ser.

A AMEAÇA DO NÃO-SER

O primeiro conceito tillichiano que vamos aplicar a obra suassuniana é “a


ameaça do não-ser”. Na obra de Suassuna percebemos que os personagens temem a
morte e o não-ser. Inconscientemente os personagens manifestam pelo medo a
inquietação que traz a não existência. Segundo o teólogo os medos são “sintomas da
angústia básica do homem” (1976). A tentativa de transformar a angústia em medo é
basicamente um mecanismo de defesa. Os homens procuram objetivar sua angústia,
transformando-a em medos, porque estes são possíveis combater e até eliminar. De
acordo com o teólogo tal tentativa é vã, porque “a angústia básica, a angústia de um
ser finito ante a ameaça do não-ser, não pode ser eliminada” (1976, p. 31). Salienta
também que “medo e angústia são distintos, mas não separados” (1976, p. 29), estão
um dentro do outro. Portanto, o medo de morrer é um exemplo perfeito da relação
imbricada entre medo e angústia. O medo é manifesto na antecipação do evento, ou
seja, como isso vai acontecer, por doença, acidente, fatalidade ou ainda se vai sofrer
e sentir dor. Por sua vez, a angústia é o absolutamente desconhecido, o “depois da
morte”, ou seja, o não-ser que é assustador, a ameaça do nada. Neste sentido,
angústia é mais que o medo do desconhecido, é o medo do não-ser. Na situação de
medo há um objeto que podemos identificar como causa, porém na angústia é
diferente. Tillich esclarece que na angústia existencial “o único objeto é a própria
ameaça, mas não a fonte da ameaça, porque a fonte da ameaça é o ‘nada’” (1976, p.
29).
No último ato da peça de Suassuna, A Compadecida intercede perante Manuel
para não condenar aqueles pobres, acusados pelo Encourado (diabo). Neste
momento A Compadecida justifica e argumenta:

É verdade que eles praticaram atos vergonhosos, mas é preciso levar


em conta a pobre e triste condição do homem. A carne implica todas
essas coisas turvas e mesquinhas. Quase tudo o que eles faziam era
por medo. Eu conheço isso, porque convivi com os homens:
começam com medo, coitados, e terminam por fazer o que não
presta, quase sem querer. É medo (SUASSUNA, 2000, p. 175).
613

O Encourado (2000, p.175) não aceitando o argumento questiona, “Medo?


Medo de que? Logo o Bispo (2000, p. 175) responde, “de muitas coisas” e ressalta o
“medo da morte”. Na sequência o Padre, o Sacristão e o Padeiro também
respondem, “medo do sofrimento”, “medo da fome”, “medo da solidão”. Ao
interceder junto à Manuel, sua mãe lembra “não se esqueça da noite no jardim, do
medo por que você teve de passar, pobre homem, feito de carne e de sangue e,
como qualquer outro também, abandonado diante da morte e do sofrimento” (2000,
p. 176). Este trecho faz menção aos textos dos evangelhos que narram a “tristeza”,
“angústia” e “agonia” de Jesus no jardim do Getsêmani (Mateus 26,37; Marcos
14,33,34; Lucas 22,44). Suassuna é um regionalista que com sua sensibilidade mística
ultrapassa o sertão nordestino, para no além recolocar questões existenciais não
resolvidas no espaço e tempo.
Segundo Tillich todos os medos estão atrelados à angústia básica, por isso os
medos apresentados pelos personagens são inquietações quanto à finitude. O
teólogo (1976, p. 32) distingue “três formas de angústia de acordo com as três
direções nas quais o não-ser ameaça o ser”: a ôntica, a moral e a noética. Esta
angústia apesar de ser uma, assume três formas diferentes, “a angústia do destino e
da morte”, “a angústia da culpa e condenação” e “a angústia da vacuidade e
insignificação”. Vale ressaltar que o destino, a culpa e o vazio são ameaças relativas
do não-ser, enquanto a morte, condenação e insignificação são ameaças absolutas do
não-ser. As três formas da angústia são indissociáveis, porém há uma que “fala em
tom mais alto”. Nas três formas a angústia é existencial, isto é, pertence à existência,
portanto inescapável (1976, p. 33).

AS TRÊS FORMAS DA ANGÚSTIA

Ainda no primeiro ato da peça de Suassuna, os personagens João Grilo e Chicó


manifestam inconscientemente a “angústia do destino e da morte”. Quando João
ficou mortalmente enfermo não foi assistido em suas necessidades pelos patrões,
gerando um grande ressentimento que motivou todos seus atos de trapaça e
vingança. Considerou desumano o abandono dos patrões naquela situação terminal.
No enterro do cachorro, Chicó cita uma poesia dizendo (2000, p. 56), que a morte é
uma “sentença”, “mal irremediável”, “estranho destino”, que nos torna “rebanho de
condenados”, “porque tudo o que é vivo morre”. Neste ponto da peça, fica evidente
o paralelo entre o destino mortal dos animais e dos homens. Em um dos livros
atribuído a Salomão, também há um paralelo entre o destino mortal dos homens e
dos animais. O texto bíblico afirma que “como morre o animal, assim morre o
homem”, ambos têm o mesmo “fôlego” e são “vaidade”. Em seguida continua,
“todos vão para um lugar; todos foram feitos do pó, e todos voltarão ao pó”
(Eclesiastes 3,19,20).
Já no segundo ato, Chicó profundamente afetado pela morte do amigo pelas
mãos do capanga do cangaceiro Severino, manifesta novamente a angústia do
destino e da morte através de gritos, lamentos e ao repetir a poesia:
614
João! João! Morreu! Ai meu Deus, morreu pobre de João Grilo! Tão
amarelo, tão safado e morrer assim! Que é que eu faço no mundo
sem João? João! João! Não tem mais jeito, João Grilo morreu.
Acabou-se o Grilo mais inteligente do mundo. Cumpriu sua sentença
e encontrou-se com o único mal irremediável, aquilo que é a marca
de nosso estranho destino sobre a terra, aquele fato sem explicação
que iguala tudo o que é vivo num só rebanho de condenados, porque
tudo o que é vivo morre. Que posso fazer agora? Somente seu
enterro e rezar por sua alma (SUASSUNA, 2000, p. 134).

O trecho supracitado, nos mostra a angústia nas três formas que Tillich
sistematizou em seu livro A Coragem de Ser. Na lamentação de Chicó estão presentes
“a angústia da morte”, “a angústia da culpa” e “a angústia do vazio”. Segundo Tillich o
período medieval foi responsável por acentuar a angústia da culpa através da
mensagem judaico-cristã. Nesta mesma perspectiva, a obra Auto da Compadecida é
tecida com sentido moralizante, retratando a ética e moral cristã, por isso há muitos
momentos que evidencia a angústia da culpa e condenação.
No primeiro ato, quando o cachorro é enterrado, o Sacristão em tom de canto
gregoriano intercede (2000, p. 71) “absolve, Domine, animas omnium fidelium
defunctorum ab omni vinculi delictorum” - Absolve Senhor as almas dos fiéis defuntos
dos vínculos dos pecados. Segundo o interesse do padeiro e sua mulher, João Grilo
tramou para que o enterro do cachorro fosse feito em latim. Fica evidente que a
relação entre o animal e os personagens na literatura suassuniana é em certa medida
uma forma de antropomorfismo204. O cachorro é enterrado com uma cerimônia
fúnebre, como se fosse um parente do padeiro. A angústia da culpa e condenação
não afeta os animais, mas é sentimento peculiar no ser humano.
No último ato, onde todos depois de mortos se encontram no além para serem
julgados, manifestam explicitamente a angústia da culpa e condenação. Mesmo
diante da defesa de Nossa Senhora, o Encourado continua a apavorar com
“acusações graves” (2000, p. 173). Então todos rezam (2000, p. 173) “Santa Maria,
mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora na hora de nossa morte. Amém”. As
almas rezam na tentativa de livrar-se da angústia da culpa e condenação, efeito da
“ameaça do não-ser”.
Podemos observar que mais uma vez as formas de angústia se manifestam
juntas. A “angústia da culpa” está atrelada com a “angústia da morte”. Esta
associação de ambas formas de angústia é antiga, desde o cristianismo dos apóstolos.
São Paulo mostrou esta ligação da “culpa” com a “morte” quando escreveu “o
aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei” (I Coríntios 15,56). Tillich
complementa que “a ameaça do destino e da morte sempre acordou e incrementou
a consciência da culpa” (1976, p. 41).
O teólogo afirma que a angústia da vacuidade e insignificação é mais intenso
na modernidade, onde o homem não recorre exclusivamente a religião para

204
O antropomorfismo é uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a
animais, deuses, elementos da natureza e constituintes da realidade em geral.
615

responder às suas questões existenciais. Apesar do contexto brasileiro ser muito


religioso percebemos implicitamente nos personagens de Ariano Suassuna a angústia
da vacuidade e insignificação.
Fica evidente que o desejo de vingança de João Grilo pelos patrões o desviava
de seu objetivo, sobreviver no sertão nordestino. Suas energias espirituais criativas
foram canalizadas para dois objetivos, a vingança contra os patrões e sobreviver
diante das adversidades. Neste ponto podemos refletir sobre o significado da vida
que é aquilo que norteia nossas energias criativas para um sentido pelo qual
devemos viver. Segundo o evangelho de Mateus, Jesus diz, “nem só de pão viverá o
homem” (Mateus 4,4). Esta frase sugere que a vida é muito mais que um pedaço de
pão. Jesus também ressalta que “a vida é mais do que o mantimento e o corpo mais
do que o vestuário” (Mateus 6,25). O texto bíblico indica um sentido transcendente
para a vida, dando a existência um valor e significado supremo. Contudo, é evidente
que a vida de João Grilo está reduzida a um pedaço de pão, isto é, a sobreviver no
sertão a todo custo.
Mesmo a obra de Suassuna tendo como fio condutor um significado de vida
proposto pelo catolicismo, a angústia da vacuidade e insignificação está implícita nas
personagens. O sentido elevado que toda a existência humana reclama só aparece e
toca os personagens na hora da morte e no além.

A CORAGEM DE SER

De acordo com Tillich “o homem como homem, em cada civilização, é


angustiadamente certo da ameaça do não-ser e necessita coragem para afirmar-se a
despeito dela” (1976, p. 33). É evidente que a coragem como virtude se manifesta em
contextos desfavoráveis.
Diante do sentimento vingativo de João Grilo pelos patrões Chicó adverte o
amigo que abandonasse tal conduta que poderia levar a uma “embrulhada séria”.
Retrucando João Grilo pergunta (2000, p. 39), “Você pensa que eu tenho medo? Só
assim é que posso me divertir. Sou louco por uma embrulhada”. Tal declaração
demonstra sua forma de encarar a vida e seus desafios. Na busca de afirmar-se
diante de sua luta pela sobrevivência, aceita com coragem o risco e as incertezas da
existência. Não podemos deixar de reconhecer que a vida dura e difícil no sertão
fortaleceu o personagem diante da “a ameaça do não-ser”. Quando no último ato da
peça, todos se conformam e desistem de lutar contra as acusações do diabo, João
Grilo esbraveja:

Vocês são uns pamonhas, qualquer coisinha estão arriando. Não vê


que tiveram tudo na terra? Se tivessem tido que aguentar o rojão de
João Grilo, passando fome e comendo macambira na seca, garanto
que tinham mais coragem. Quer ver eu dar um jeito nisso, Padre
João? (SUASSUNA, 2000, p. 167)
616

João Grilo nos três atos enfrentou “a ameaça do não-ser”, fazia parte de sua
rotina enquanto sobrevivência. Enfrentou a enfermidade, a desigualdade e injustiça
dos patrões e da sociedade em geral, a violência dos cangaceiros de Severino, a
morte e a figura temível do diabo (Encourado). Em suas confusões terrenas João Grilo
usou e abusou de sua astúcia e inteligência, mas quando a adversidade ultrapassou a
imanência de sua finita capacidade, exerceu fé e confiança demonstrando a coragem
de ser. Para o teólogo “(...) a coragem não afasta a angústia. Uma vez que a angústia
é existencial, não pode ser afastada. Mas a coragem incorpora a angústia de não-ser
dentro de si. Coragem é auto-afirmação ‘a despeito de’, a saber: a despeito de não-
ser” (TILLICH, 1976, p. 51).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Por meio dos conceitos tillichianos como ferramenta hermenêutica analisamos


na obra de Suassuna o sertanejo nordestino que também vive a angústia existencial
como definiu Tillich. Esta leitura nos leva a refletir em que medida sofremos e
vencemos o dilema existencial da finitude. A literatura suassuniana descreve o
cotidiano da maior parte dos brasileiros, que ocupados com a sobrevivência não
tempo para refletir sobre o sentido da vida. Suassuna apresenta as personagens
transitando entre o medo e a coragem, porém João Grilo é a personagem que se
destaca em termos de auto-afirmação ôntica, moral e espiritual. Constatamos que
em todos os personagens em alguma medida, apresenta-se a angústia da morte, da
culpa ou da insignificação. Por fim, ficou notório que João Grilo é um modelo de
coragem, pois apesar da “ameaça do não-ser” e suas respectivas formas de angústia,
encara os problemas com firmeza de espírito. Os textos de Tillich e Suassuna
oferecem material para pensarmos a “saúde espiritual” (expressão análoga ao
conceito de coragem tillichiano) nas palavras de Jesus: “Neste mundo sofrereis
tribulações; mas tende fé e coragem! Eu venci o mundo” (Jo 16,33).

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Bíblia King James Atualizada (KJA). Trad. Sociedade Bíblica Ibero-Americana. 1 ed.
São Paulo: Abba Press, 2012.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida; capa, Rubens Gerchman. - 34. ed. 6.imp. -
Rio de Janeiro: Agir, 2000 (Teatro moderno)
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida/ ilustração de Manuel Dantas Suassuna/
textos de Braulio Tavares, Carlos Newton Júnior e Raimundo Carrero. - Ed.
comemorativa de 50 anos - Rio de Janeiro: Agir, 2004.
TILLICH, Paul. A Coragem de Ser. Trad. Eglê Malheiros. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e
terra, 2001.
617
618

HINOS CATÓLICOS DA DÉCADA DE 1970/1980 – UMA


HETEROGENEIDADE DISCURSIVA

ADILSON SKALSKI ZABIELA


Mestre em Informática na Educação
Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS)
[email protected]

RESUMO: O objetivo deste trabalho é, pelo viés da heterogeneidade discursiva,


analisar, em alguns hinos religiosos da Igreja católica da década de 80, os efeitos de
sentido que são produzidos através das relações que se estabelecem entre diferentes
Formações Discursivas (FDs). As FDs analisadas são a FD marxista, trazida pela
Teologia da Libertação (uma das várias FDs internas da Igreja católica), e a FD
religiosa própria da Igreja Católica. A Teologia da Libertação (TL) constitui uma nova
interpretação da mensagem evangélica, à luz da justiça social. As suas raízes podem
ser encontradas no movimento denominado teologia política, surgido na Europa, na
década de 1970, depois que o Concílio Vaticano II (1962-1965) examinou o problema
das relações entre a Igreja e o mundo moderno. A característica mais inovadora do
movimento foi encarar os problemas políticos como base para a interpretação dos
textos bíblicos. O discurso da TL articula o que pode e deve ser dito em uma FD com o
que, a princípio, seria não dizível na FD católica. Por meio da utilização de ideais
marxistas, a Teologia da Libertação criou bases sólidas que se aproximavam de um
discurso de igualdade social e de luta contra a opressão. Palavras como ‘libertação’,
‘luta contra a ‘opressão’ e ‘justiça’ fazem parte da FD que a TL manifestava. A FD da
TL não se constitui uma FD à parte, entretanto, se inscreve na FD católica,
introduzindo nela novos elementos. Na época das primeiras manifestações da
Teologia da Libertação, na década de 1960, ocorreram várias críticas e silenciamentos
por parte da Igreja em relação ao discurso que se formava. A Teologia da Libertação
foi criticada por parecer contraditória em si mesma, pois possuía de um lado
características de um discurso marxista e por outro lado um discurso religioso. Não
seria possível que um movimento religioso se apropriasse desses princípios marxistas,
pois senão estaria corrompido e fadado ao fim em si mesmo. Foi necessário, pois,
que se fizesse uso de alguns princípios marxistas, mas que se negassem outros. Em
relação aos preconstruídos do marxismo, a TL se posicionou com um discurso de
negação e acréscimo de novos saberes antes não ditos. A TL, por exemplo, tinha por
princípio que a fé e o evangelho não eram fatalmente fatores de alienação ou de
ajustamento e acomodação a essa realidade, mas que as Igrejas podiam ser motoras
de mobilização popular em vista de transformação e libertação. O cristianismo já não
poderia mais ser chamado de ópio do povo nem de apenas favorecer o espírito
crítico, pois era um fator de compromisso de libertação. Em contraposição ao
ateísmo marxista, a TL se colocava como a mais convincente refutação do ateísmo
619

moderno, pois defendia que Deus era fonte de compromisso social e não mais fonte
de alienação histórica. Nos recortes selecionados, fica perceptível a presença de um
discurso outro no discurso religioso católico, um discurso que se mescla ao discurso
autoritário religioso para ter mais força. É forte a presença de palavras, até nessa
época, incomuns para hinos religiosos.

Palavras-chave: Teologia da Libertação; Formação Discursiva; Hinos Católicos.

INTRODUÇÃO

Este trabalho é um recorte analítico sobre uma herança da Teologia da


Libertação e do Cristianismo de Libertação (LÖWY, 1996). Ele foi, em primeiro lugar,
motivado por uma experiência pessoal vivida durante a infância e adolescência na
Igreja Católica. O objetivo deste texto é analisar alguns hinos católicos da década de
70/80. Essa análise foi iniciada na graduação em Letras pela UFRGS, na disciplina
Análise do Discurso, área que se propõe a analisar como os discursos são produzidos
e partilhados, em especial, nos meios políticos e religiosos. A metodologia da análise
discursiva tem por base a teoria do discurso, que é uma área da linguística, o
materialismo dialético de Marx e a psicanálise.
Serão analisados alguns efeitos de sentido que são produzidos através das
relações que se estabelecem entre diferentes Formações Discursivas. As FDs
(Formações Discursivas) envolvidas e analisadas são a FD marxista, apresentada pelo
Cristianismo de Libertação e pela Teologia da Libertação (uma das várias FDs internas
da Igreja católica) e a FD conservadora da Igreja. A formação discursiva (ORLANDI,
2009) relaciona-se aos processos que envolvem a maneira como uma determinada
narrativa é construída socialmente. Sabe-se que um dos postulados básicos da AD é o
de que o sujeito fala de um determinado lugar social, que é constitutivo desse
sujeito. Dessa forma, as palavras veiculam diferentes sentidos, dependendo da
posição ideológica que ocupa o sujeito que fala. Esses sentidos, por sua vez, derivam
de uma formação discursiva que, por sua vez, constitui a instância material das
formações ideológicas. É assim que funciona essa “engenharia discursiva”. Uma
possível atualização no conceito de formação discursiva para os dias de hoje talvez
nos levasse ao termo “bolha discursiva”. Dentro de determinada bolha ideológica nas
redes sociais, por exemplo, sabemos o que pode ou não pode ser dito e qual
conteúdo ou ideia destoa daquilo que é aceitável em determinado contexto.

A TEOLOGIA DA LIBERTAÇÃO E OS HINOS CATÓLICOS

A Teologia da Libertação (TL) constitui uma nova interpretação da mensagem


evangélica, à luz da justiça social. As suas raízes podem ser encontradas no
movimento denominado teologia política, surgido na Europa, na década de 1970,
depois que o Concílio Vaticano II (1962-1965) examinou as relações entre a Igreja e o
mundo moderno. A característica mais marcante dessa teologia foi encarar os
problemas políticos como base para a interpretação dos textos bíblicos, ao mesmo
620

tempo em que uma reinterpretação e uma ressignificação dos textos sagrados, por
um viés marxista, de modo a promover a justiça e a equidade social.
O discurso da TL articula o que pode e deve ser dito em uma FD, com o que, a
princípio, seria não dizível na FD católica. Por meio da utilização de ideais que, de
certa forma, se aproximavam de ideais comunistas, a Teologia da Libertação criou
bases sólidas que se aproximavam de um discurso de igualdade social e de luta
contra a opressão. Palavras como ‘libertação’, ‘luta contra a ‘opressão’ e ‘justiça’
fazem parte da FD que a TL manifestava. A FD da TL não se constitui uma FD à parte;
entretanto, se inscreve na FD conservadora católica, introduzindo nela novos
elementos de saber.
Na época das primeiras manifestações da Teologia da Libertação, na década de
1960, tendo como um dos principais representantes no Brasil, Frei Leonardo Boff,
ocorreram várias críticas e silenciamentos por parte da Igreja em relação ao discurso
que se formava. A Teologia da Libertação foi criticada por parecer contraditória em si
mesma, pois possuía, de um lado, características de um discurso marxista e, por
outro lado, um discurso religioso.
Não seria possível que um movimento religioso se apropriasse desses
princípios marxistas, pois senão estaria corrompido e fadado ao fim em si mesmo. Foi
necessário, pois, que se fizesse o uso de alguns conhecimentos marxistas, mas que se
negassem outros. Em relação aos preconstruídos do marxismo, a TL se posicionou
com um discurso de negação e de acréscimo de novos saberes antes não ditos. A TL,
por exemplo, tinha, por princípio, que a fé e o evangelho não eram fatalmente
fatores de alienação ou de ajustamento e acomodação a essa realidade, mas que as
Igrejas podiam ser motoras de mobilização popular em vista de transformação e
libertação. O cristianismo já não poderia mais ser chamado de ópio do povo, pois era
um fator de compromisso de libertação. Em contraposição ao ateísmo marxista, a TL
se colocava como a mais convincente refutação do ateísmo moderno, pois defendia
que Deus era fonte de compromisso social e não mais fonte de alienação histórica.
Nos recortes selecionados, no corpus da pesquisa realizada, fica perceptível a
presença de um discurso outro no discurso religioso católico, um discurso que se
mescla ao discurso autoritário religioso para ter mais força. É forte a presença de
palavras, até nessa época, incomuns para hinos religiosos. Vejamos o seguinte trecho
de um hino: “A nossa comunidade luta por libertação, pra formar uma corrente, pra
quebrar a opressão”. (autor desconhecido, Sou feliz na comunidade – in.: GREBOJ,
1992)
Percebe-se, nesse recorte, duas palavras fortes de sentido ‘reacionário’, que
são: libertação e opressão. O eixo da Teologia da Libertação é a figura do ‘Cristo
libertador’, que veio libertar os homens, não apenas do pecado, mas também de
todas as suas consequências, inclusive as injustiças. O seu método hermenêutico
deixa de lado as categorias idealistas tradicionais e emprega categorias históricas. A
mensagem de salvação é interpretada à luz das opressões de que o homem precisa
ser libertado. Ao narrar a libertação dos hebreus do cativeiro no Egito e a sua marcha
para a Terra Prometida, o Êxodo é a imagem bíblica da mensagem da salvação e a
621

história sagrada não é algo distinto da história da humanidade ou superposto a ela,


mas sim é a intervenção de Deus, segundo os teólogos da libertação.
É, dessa forma, que verificamos como se formou uma nova FD por meio da
repetição de um já-dito presente no discurso fundador da Igreja Católica. Seria
função da religião a de promover a aproximação do homem do conformismo com a
sua situação de sofrimento, portanto, o discurso religioso seria o de aceitação dos
desígnios divinos. Ao retomar o discurso de Jesus Cristo, porém, e o discurso do
marxismo, foi possível atribuir à Teologia da Libertação um caráter de luta contra a
opressão promovida pelas diferenças sociais e libertação em vida, e não pós-morte.
Fazer com que os fiéis se conformassem com a situação de sofrimento em vida para
esperar a salvação como recompensa pós-morte foi típico do discurso católico
durante muito tempo. Ao trazer para dentro da Igreja ideias de reação e não de
passividade, a Teologia da Libertação se manifesta não como uma dissensão dentro
da Igreja, mas como uma FD antagônica aos discursos antes não permitidos. Vejamos
este outro recorte:

Nossa alegria é saber que um dia, todo esse povo se libertará, pois
Jesus Cristo é o Senhor do mundo, nossa esperança realizará. Jesus
manda libertar os pobres, pois ser cristão é ser libertador. Nascemos
livres pra crescer na vida, não pra ser pobres nem viver na dor. (autor
desconhecido, Nossa Alegria – in.: GREBOJ, 1992)

Nesse trecho, está presente a nova proposta trazida pela Teologia da


Libertação: a não-passividade. “Ser cristão é ser libertador”. Ser cristão (católico) não
é mais tão somente ir à missa, guardar os dias santos, seguir o catecismo e honrar
todos os sacramentos. É, inclusive, ter em vida, e não após a morte, a chance de ser
feliz, porque essa era a proposta de Jesus Cristo. Desse modo, podemos afirmar que
tanto o cristianismo da libertação quanto à teologia da libertação “ativam” o discurso
de um Jesus comprometido com o hoje, com o agora, e não com alguma espécie de
recompensa em uma vida após à morte. Até então, provavelmente, era mais
interessante que os fiéis fossem obedientes e servis, e não questionadores e
revolucionários. A memória acessa mais facilmente, pois, a informação de que lutar
pelos direitos esteja ligado ao marxismo, e não às bases do cristianismo. Segundo
essa mesma memória, é mais fácil atribuir ao Marx do que a Jesus Cristo a imagem de
revolucionário. A teologia da libertação provoca, pois, uma aproximação entre a
posição do sujeito revolucionário, antes ocupada por Marx e Engels, e, naquele
momento, foi ocupada por Jesus. É como se o Jesus, dessa nova proposta, estivesse
sendo relido e ressignificado pela ideologia de Marx e Engels.
Foi por meio da ideologia vigente, conservadora que, durante muito tempo, a
imagem de um Cristo que “pegasse em armas” não se solidificou na memória dos
católicos. Era tão mais importante crer em um Jesus Salvador do que em um Jesus
que expulsou os vendilhões do templo, mostrando assim uma postura de
impassividade, frente à injustiça. Essa mesma ideologia ‘apagou’ da memória
discursiva os atributos que poderiam ter mantido Cristo na posição-sujeito de
622

revolucionário, e essa posição foi retomada pelo advento da Teologia da Libertação,


pela instauração do que a AD chama de acontecimento, que seria “o ponto em que
um enunciado rompe com a estrutura vigente, instaurando um novo processo
discursivo” (INDURSKI &FERREIRA, 2001, p.11).
Aqui é importante retomar as reflexões de Michael Löwy (1996) acerca da
maneira como Marx e Engels se remeteram ao discurso religioso. Embora
materialista, ateísta e inimigo da religião, Engels conseguiu captar, como também fez
Marx, o caráter duplo do fenômeno: o seu papel como legitimador de uma ordem
estabelecida, mas também, dependendo das circunstâncias sociais, o seu papel
crítico de protesto e até revolucionário.
Primeiramente, o seu interesse era o cristianismo primitivo, que é definido
como a religião dos pobres, dos exilados, amaldiçoados, perseguidos e oprimidos. Os
primeiros cristãos eram dos níveis mais baixos da sociedade: escravos, homens livres,
que tinham os seus direitos abolidos, e pequenos camponeses incapacitados, devido
às dívidas. Nas análises de Lowi (1996), Engels teria elaborado um paralelo entre esse
cristianismo primitivo e o socialismo moderno: a) os dois grandes movimentos, que
não são criação de líderes e profetas, embora não faltem profetas em nenhum dos
dois; b) ambos são movimentos dos oprimidos, dos que sofrem perseguição e cujos
membros são proscritos e caçados pelas autoridades do governo; e c) ambos pregam
uma libertação iminente da escravidão e da miséria. Ainda permanece, no entanto,
aos olhos de Engels, uma diferença essencial entre os dois movimentos: os cristãos
primitivos colocam a liberdade do mundo no além, enquanto o socialismo a coloca
neste mundo.
Outro fato curioso, próprio da época de 1970, era uma música popular
entoada em vários encontros e celebrações da Igreja Católica. Era a música do cantor
Geraldo Vandré, intitulada “Pra não dizer que não falei das flores”. Segue um
pequeno trecho:
Caminhando e cantando e seguindo a canção, somos todos iguais
braços dados ou não. Nas escolas, nas ruas, campos, construções,
caminhando e cantando e seguindo a canção. Vem vamos embora
que esperar não é saber. Quem sabe faz a hora não espera
acontecer. (in.: GREBOJ, 1992)

Comprova-se, mais uma vez, a heterogeneidade discursiva dentro desse


recorte. A formação discursiva, em que se inscrevia essa música de manifesto
político, aproximou-se tanto da FD quanto da Teologia da Libertação, que se
confundiu com ela. Muitos fiéis, provavelmente, não sabem que ela não é de cunho
religioso, e sim político. O autor da música, ao afirmar “somos todos iguais braços
dados ou não”, está propondo que não deveria haver diferenças sociais. E, ao afirmar
“quem sabe faz a hora não espera acontecer”, está aproximando-se da proposta da
Teologia da Libertação, da não-passividade frente às injustiças sociais. A ideia do
“quem sabe faz agora, não espera acontecer” também atualiza a proposta de um
mundo melhor no aqui e agora.
623

CONCLUSÃO

Ao romper com um conjunto de sentidos sedimentados, a TL reconfigura o


conjunto do dizível do discurso teológico católico: por um lado, retorna o discurso
fundador de Cristo, um projeto voltado à construção de uma sociedade que prioriza
os pobres e os excluídos; por outro lado, se apropria de certas questões oriundas do
discurso marxista. As duas faces constitutivas do discurso ₋ estrutura e
acontecimento ₋ apresentam-se fortemente articuladas no discurso da TL. A
dimensão da estrutura, do repetível, é apreensível na retomada do já-dito nos vários
momentos fundantes na trajetória da Igreja Católica, desde o discurso fundador de
Cristo e, posteriormente, a partir da Rerum Novarum, encíclica Papal escrita no final
do século XIX. Por outro lado, a dimensão do acontecimento está na articulação que a
TL realiza entre os princípios cristãos e marxistas.
Conclui-se que os hinos religiosos católicos, da década de 1970/80, foram a
maneira mais popular da manifestação e disseminação de um discurso emergente. A
Teologia da Libertação teve o caráter de acontecimento discursivo, uma vez que
rompeu com as barreiras do não-dito, além de mostrar como é possível operar a
alteração dos sentidos, não dados, mas sempre construídos. Talvez ainda mais
interessante, pois indicou contrapontos a um discurso religioso conservador e
autoritário, que não aceitava o diferente e que até hoje se fecha sobre si mesmo, não
admitindo mudanças estruturais. Entenda-se aqui que o choque principal
mencionado foi entre a Teologia da Libertação e a ala mais conservadora da Igreja
Católica. Não seria possível julgar a Igreja atual como um todo homogêneo: vários
discursos se cruzam e coexistem na FD católica, ora se aproximando ora se afastando
uns dos outros. São FDs que continuam vivas sob o rótulo de catolicismo.

REFERÊNCIAS

COURTINE, J. J. (1983) “O chapéu de Clémentis. Observações sobre a memória e o


esquecimento na enunciação do discurso político.” IN: INDURSKY & LEANDRO
FERREIRA (org.). Os Múltiplos Territórios da Análise do Discurso. Porto Alegre:
Editora Sagra Luzzatto, 1999, p. 15-22.
FERREIRA, Maria Cristina (Coord.). Glossário de Termos do Discurso. Porto Alegre:
Editora da UFRGS, 2001.
HANAUER, Jeane Maria. A Teologia da Libertação e o conflito com o Vaticano:
análise de uma formação discursiva em processo de configuração. Editora da UFRGS,
2000.
GREBOJ, Pe. Pedrinho (org.). Cantando em Comunidade. Ed. Vicentina, Curitiba,
1992.
LÖWY, Michael. A guerra dos deuses: religião e política na América Latina.
Petrópolis: Vozes, 2000. 217 p.
Löwy, Michael. O que é Cristianismo da Libertação: religião e política na América
Latina / Michael Löwy. – 2. ed. – São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo:
Expressão Popular, 2016. 256 p.; 23 cm.
624

ORLANDI, Eni Puccinelli. (org.) Discurso Fundador. Campinas: Pontes, 2003.


______. As Formas do Silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da
UNICAMP, 2007.
______. Análise do Discurso: princípios & procedimentos. 8 ed. Campinas: Pontes,
2009.
625

MOVIMENTO DE TRABALHADORES CRISTÃOS EM RECIFE –


ESTRATÉGIAS E DESAFIOS DIANTE DAS MUDANÇAS SOCIAIS
E ECLESIAIS

Valmir Assis da Silva Filho


Mestrando em Ciências da Religião
Universidade Católica de Pernambuco (Unicap)
[email protected]

RESUMO: A abertura eclesial, no final da década de 1950 e na década de 1960, fez


nascer, em vários âmbitos da Igreja, uma articulação de serviços de ação missionária.
Criada em 1962, ano de abertura do Concílio Vaticano II, a Ação Católica Operária
surgiu como presença da Igreja junto aos operários. A nova dinâmica pastoral
consistia em não concentrar no padre a responsabilidade da assistência religiosa, mas
em delegar aos jovens operários a missão evangelizadora nos postos de trabalho.
Diante das mudanças no mundo do trabalho e na Igreja, a ACO toma uma decisão
política e pastoral: A ACO torna-se Movimento de Trabalhadores Cristãos – MTC. As
novas agendas políticas, as pautas identitárias, uberização do trabalho e os novos
arranjos pastorais provocam o MTC a reposicionar-se, estrategicamente, para
responder os desafios sociais e sobreviver no espaço eclesial. A pesquisa, que
sustenta este texto, se debruça sobre o itinerário do MTC, problematizando as
estratégias e desafios do Movimento na perspectiva de manter uma fidelidade
criativa à tradição do Movimento Operário. A análise de entrevistas e conversas
realizadas com alguns militantes, materiais de formação, palestras e reuniões do MTC
subsidiam a pesquisa. A partir desse material, poderemos contribuir para os estudos
sobre Religião, mundo do trabalho e Igreja Católica, uma vez que este trabalho expõe
a singularidade desse movimento, recolocando-o nas discussões sobre ação pastoral
entre os trabalhadores e trabalhadoras, em suas incidências políticas e religiosas na
sociedade. Esperamos apresentar e analisar a realocação do MTC em torno de
agendas que dialogam com as pastorais e movimentos sociais e outras religiões,
sustentando-se na eclesiologia da Ação Católica, do Concílio Vaticano II e da Teologia
da Libertação.

Palavras-chave: Movimentos Sociais; Trabalhadores Cristãos; Pastoral; Catolicismo.

INTRODUÇÃO

A Ação Católica Operária (ACO) surgiu em 1962, compondo parte da ação


Católica Especializada que se estrutura na Igreja Católica do Brasil de meados da
década de 1950 e início da década de 1960. Constituindo-se em uma das experiências
626

de pastoral leiga com operários, se unindo e dando continuidade ao trabalho já


existente da Juventude Operária Católica (JOC). A ACO tornou-se uma prática que
respirava os ventos de renovação eclesial vindos do Concílio Vaticano II e que
ampliava uma presença de segmentos do laicato e Igreja Católica no país em ações de
compromisso com os pobres, com operários (as) em meio às condições de
desigualdade social e à fraca organização político-sindical.
Essa experiência inspira e se vê confirmada na ação de resistência ante o golpe
civil-militar de 1964, ocorrido no país, contribuindo na realização de trabalhos de
base que reuniam operários para manterem-se organizados apesar do ataque e
repressão à sua organização sindical. As suas lideranças, na denúncia da situação de
arrocho salarial e aprofundamento da desigualdade e dependência econômica do
Brasil de potências estrangeiras, fizeram eco às vozes proféticas do episcopado que
se somavam na publicização dessas denúncias.
Esse foi o período em que foram publicados documentos que marcaram
205
época , quanto à participação da Igreja em movimentos de resistência democrática
ao golpe e na acolhida de militantes não cristãos para libertá-los de prisões e
torturas, dos quais os seus membros leigos e eclesiásticos eram também vítimas. A
ACO esteve presente, ativamente, nas ações de articulações da Igreja progressista,
que contribuíram e passaram a se orientar pela teologia da libertação, junto com
vários setores que se afinavam com a ideia da “opção pelos pobres”, tendo essa
articulação ampliada pela aliança com movimentos da sociedade que se somavam na
luta de resistência democrática (ACO, 1987).
Entre os núcleos de articulação da Ação Católica está a JOC, como já citado.
Um movimento com a missão de agrupar a juventude operária, em volta da reflexão
sobre consciência de classe. A JOC tinha por metodologia de ação a formação de
grupos de base e essa foi a origem da ACO. Os militantes da JOC, chamados
“jocistas”, viviam a experiência de organização e formação nos ambientes de
trabalho, nas comunidades populares, chegando a viver em comunidades operárias.
Em algumas cidades, havia uma casa para a JOC feminina e outra para a masculina. É,
nesse cenário, entre jovens que saem da JOC, não por divergências, mas por força da
tradição que afirmava que o jovem, que completasse 30 anos de vida ou se casasse,
deveria sair da JOC, que a ACO foi fundada. Por conta desta passagem geracional, os
ex-jocistas levaram a tradição jocista para a ACO, uma vez que carregavam a saudade
da JOC. Isso também ocorreu devido ao contexto de repressão e perseguição
praticada pelo regime militar aos jovens militantes da JOC.
A ACO viveu, em pleno recrudescimento do golpe em 1968, com a publicação
do AI5 (Ato Institucional Nº 5), as influências do dinamismo de uma Igreja Local. Em
Recife, sob o pastoreio e mediação de Dom Helder Câmara, acolheu o padre Romano
Zurferrey que seria, no período mais difícil e de maiores conflitos políticos com a
igreja e organizações políticas, de 1968 a 1974, o assistente eclesiástico nacional do
movimento, então sediado em Recife. Sendo parte do movimento de renovação
eclesial da Igreja Católica, beneficiou-se nessa travessia na resistência democrática da

205Ouvi os Clamores do meu povo – CNBB; Nordeste, o homem proibido – ACO são alguns deles.
627

legitimação e impulso dado pela realização da Conferência do Episcopado Latino


Americano de Medelín, em 1968, tendo confirmada a sua ação pastoral profética de
opção pelos pobres e de igreja povo de Deus, que anuncia o Reino de Deus e a sua
justiça no mundo.
A articulação entre a Igreja e os movimentos de leigos, fundamentada pelos
documentos episcopais de Medelín e Puebla, foi, de certa forma, interrompida
através de um movimento eclesiástico do Episcopado Latino Americano e do papado
de João Paulo II, que foi realizado durante o Sínodo Extraordinário de 1985. Esse
evento foi um marco na revisão do Concílio Vaticano II e das Conferências aqui já
referidas, pois provocou um fechamento da Igreja ao mundo. A pastoral popular foi
entendida como o marxismo, voltaram a grande disciplina e a romanização das
estruturas, o que significou o reforço do clericalismo, da paróquia, do fim da
concepção de uma igreja comunhão e participação, o laicato à ação social e restrições
ao funcionamento das CEB’s. Para o Regional NE II da ACO, no Recife, esse ano
coincidiu com a substituição de Dom Helder Câmara por outro bispo, Dom José
Cardoso Sobrinho, representante desse movimento de volta à grande disciplina
(PLUMMEN, 1997; LIBANIO, 1997).

AS ESTRATÉGIAS DA ACO/MTC – ENTRE A ADAPTAÇÃO POLÍTICA E A


SOBREVIVÊNCIA PASTORAL

É, no desdobramento desse contexto, que, durante a década de 1990,


ocorreram uma grande reestruturação no mundo do trabalho, bem como na
dinâmica dos movimentos sociais contemporâneos e a reversão de ação pastoral da
Igreja no Brasil no sentido da restauração da romanização desejada pelo Papa. Esses
fatores contribuíram para que a ACO produzisse estratégias de adaptação em face de
um novo cenário político e eclesial. A mudança do nome de Ação Católica Operária
para Movimento de Trabalhadores Cristãos, em 1994, expressa, em parte, esse
processo adaptativo.
No Estado de Pernambuco, a ACO se capilarizou, mas concentrava a sua
principal força no território da igreja particular de Olinda e Recife. Nessas cidades,
vivem-se as várias fases de ação pastoral da Igreja Católica. Localmente, integrou o
diálogo com o pastoreio de Dom Helder Câmara. Em seguida, os tensionamentos, sob
o cajado de Dom José Cardoso e hoje a reaproximação simbólica com o mandato
apostólico de Dom Fernando Saburido. Tudo isso tem, por pano de fundo, a realidade
pós-conciliar da Igreja, a “disciplina” do pontificado João Paulo II, a romanização das
pastorais sob a égide de Bento XVI e, por fim, o diálogo sinodal do Papa Francisco.
No registro da memória da atuação da ACO no Brasil aponta-se que, desde a
sua fundação, os militantes, que participavam das Equipes de Base (pequenos
núcleos de formação), trabalhavam nas fábricas locais. Em Pernambuco, por
exemplo, o Movimento iniciou a sua caminhada com os jovens operários da fábrica
têxtil do município do Paulista que, na época, já participavam da JOC, o que demarca
que já havia, na sua fundação um distanciamento dela dos Círculos Operários que,
além de serem portadores de outra concepção pastoral, eclesial e política, estavam
628

pouco presentes no meio operário. Depois, a entidade expandiu a sua atuação entre
os metalúrgicos, trabalhadores da construção civil até chegar aos feirantes e
domésticas, algumas delas, companheiras dos operários já militantes.
A sua participação na fundação de vários sindicatos e contribuição na
construção das pautas da luta sindical é bem relevante, a ponto de ser a ACO
responsável por comandar uma das primeiras greves durante o período da ditadura
militar, no setor têxtil, no município de Escada, Pernambuco, área pastoral da
Arquidiocese de Olinda e Recife.
No interior do espaço eclesial, em Recife, a ACO registrou distintos períodos de
atuação conjunta com outras inciativas de ação pastoral junto aos operários. No
primeiro momento da sua criação até inícios dos anos 1980, teve na sua criação a
participação de ex-militantes da JOC. Nesses anos, o MEB (Movimento de Educação
de Base), no encerramento de sua fase de atuação nesse período, em colaboração
com a JOC, criou uma experiência de capacitação profissional que ficou conhecida
por CTC (Centro de Trabalho e Cultura), uma escola profissional para operários,
baseada em princípios da educação popular. Essa organização manteve intercâmbio e
colaboração com a ACO através de assistentes regionais e militantes que lá
estudaram e colaboraram como monitores (as).
Nos anos 1980, junto com a ACO em Recife, atuaram com trabalhadores (as)o
MEIR (Movimento Encontro de Irmãos – Urbano), em chapas de oposição sindical, e
também a PJMP (Pastoral de Juventude do Meio Popular), com seus (suas) militantes,
participando de chapas e diretorias de sindicatos de funcionários (as) públicos (as) e
professores (as). É também, nesse período, que se formou a CPO (Comissão de
Pastoral Operária) que, em âmbito nacional, contou fortemente com a colaboração
da JOC e ACO para sua constituição como um serviço das dioceses ao movimento
operário. A ampliação da ação pastoral no mundo operário, a partir da experiência da
ação católica especializada, em um processo que se observam mudanças no mundo
do trabalho e na estrutura de organização das pastorais, nos oferece um rico material
para análise de concepções de ação e teologia pastoral, discutindo sobre a relação
mundo do trabalho urbano e igreja católica ou catolicismo hoje.
A formação pastoral e política que o Movimento oferecia aos militantes,
conforme relatos registrados em suas documentações, contribuiu para a formação da
“consciência de classe”, para construção de um sentido de pertença a um grupo que
vive do trabalho assalariado, por isso se dispunha ao combate das formas de
exploração advindas da classe patronal e do modelo econômico vigente. Essa
experiência de vinculação à classe operária, a classe trabalhadora, implicou no
envolvimento e apoio com a participação direta de militantes da ACO na criação da
CUT (Central Única dos Trabalhadores), via oposições sindicais e de um partido
político, formado por trabalhadores (as). Vários de seus militantes disputaram cargos
eletivos nas primeiras chapas lançadas pelo PT (Partido dos Trabalhadores), em 1982,
e em eleições seguintes. O exemplo mais emblemático foi a vitória de um de seus ex-
militantes na eleição para prefeito da capital pernambucana em 2000, o prefeito João
Paulo (primeiro prefeito do Recife eleito pelo PT) que, antes disso, ainda na ACO, foi o
primeiro presidente da CUT em Pernambuco, em 1988.
629

A ACO/MTC registra, ao longo do tempo, olhando, em especial, para o Recife,


os seus membros, fazendo a militância em uma série de diferentes engajamentos
políticos e pastorais. No início, a ACO realizava em grande medida a sua dimensão de
pastoral operária, nas fábricas e sindicatos, assim como na criação de Comunidades
Eclesiais de Base – CEB’s e na colaboração com a articulação de comissões de pastoral
operária. Na década de 1990, quando mudou para o nome de Movimento de
Trabalhadores Cristãos - MTC, colaborou com a articulação das pastorais sociais e
com a organização e realização do Grito dos Excluídos. Nos espaços formativos que a
ACO oferecia era possível observar uma espécie de célula da Igreja Católica em
diálogo com os (as) trabalhadores (as). Ao revisitar a sua história, ficam perceptíveis a
dimensão e o alcance político que o Movimento imprimiu na sua narrativa,
concebendo a fé e a política, como elementos constitutivos de uma teologia pastoral
comprometida com a opção pelos pobres e com a teologia/catolicismo da libertação.
A trajetória da ACO/MTC é marcada por uma conjuntura social de mudanças e um
contexto eclesial de adaptações. A ACO viveu em espaços de diálogo e conflito no
interior da Igreja Católica no período da ditadura, depois vivenciou 25 anos de
afastamento institucional da Arquidiocese de Olinda e Recife, no período de governo
de Dom José Cardoso. Nos últimos anos, têm se reaproximado da instituição a partir
de agendas convergentes. É importante enquadrar essa periodização, discutindo os
conflitos e formulações de teologia pastoral que ajudem a fazer uma leitura social e
religiosa mais rica da gama de fatores que uma primeira leitura dos fatos não
permite.
Cabe salientar que, mesmo nos períodos de maior tensionamento com a
Igreja, a ACO/ MTC não recuou em sua identidade e posição de um movimento
cristão de operários, de origem católica. A sua organização segue o modelo do
Movimento Internacional de Trabalhadores Católicos, vinculado à estrutura nascida
com a Ação Católica, hoje alocado na Comissão de Justiça e Paz, da Cúria Romana. A
constituição de membros que integram o movimento é composta por militantes
leigos, mas também por padres, religiosos e religiosas. No organograma da CNBB, em
âmbito nacional, o MTC tem assento no Conselho Nacional de Leigos do Brasil –
CNLB. E como parte das iniciativas que compõe as ações de pastoral operária, se faz
representar, indiretamente, pela CPO, no Setor de Pastorais Sociais, da Comissão de
Justiça, Paz e Caridade da CNBB.

CONCLUSÃO

O itinerário político pastoral da ACO/MTC é, fundamentalmente, importante


na compreensão da ação pastoral da Igreja Católica no mundo do trabalho. Os
desafios sócio-eclesiais, que marcaram atuação do Movimento, se apresentam nas
várias etapas de reconfiguração da morfologia do trabalho desde à década de 1950
até os dias de trabalho precarizado em que vivemos, bem como nos tensionamentos
advindos do desmonte pastoral na Igreja do Brasil, sob o olhar e a condução de João
Paulo II. Esse cenário provoca o MTC a iniciar um processo de reposicionamento nas
fileiras dos movimentos sociais e da dinâmica eclesial.
630

A ecumenicidade externada na decisão de expandir a sua identidade para além


do muro católico, resultado da inserção do termo “cristãos”, provoca o
reordenamento das pautas operárias, uma vez que o seu ambiente missionário não é
mais o chão de fábrica. Isso apresentou algumas questões à práxis do MTC: Qual o
alcance da agenda pastoral do MTC diante da nova morfologia do trabalho? Qual a
repercussão da agenda social do Movimento dentro da comunidade eclesial? Quais
as mudanças de vínculo, expressões e referências religiosas vivenciadas pelos
militantes do movimento, coletiva e individualmente, são observadas ao longo desse
processo histórico?
A imersão na história desse Movimento nos dará indicativos de como os seus
militantes, coletivamente, respondem a esses questionamentos. Aquilo que o
Movimento chama de “fidelidade criativa” é, na verdade, a readaptação da
metodologia à conjuntura recente. O método de estudo e discussão, chamado de
“Revisão de Vida”, baseado nos pilares “VER-JULGAR-AGIR”, é um símbolo pertinente
da tradição mantida e ressignificada. O método consiste em discutir os vários
problemas da vida operária a partir de três etapas: analisar o problema (VER),
identificar os desafios a partir de critérios do evangelho e da história da classe
operária (JULGAR) e elencar as ações de enfrentamento (AGIR).
A participação dos militantes nas várias esferas recentes de atuação política,
contribuindo para a permanência do debate de classe nesses espaços, é outro
posicionamento do MTC e, mais do que isso, é uma estratégia de sobrevivência na
relocação das agendas sociais. O MTC, hoje, está presente na articulação do Grito dos
Excluídos em bases sindicais, em movimentos de bairro e de mulheres, em
movimentos antirracistas e pastorais sociais. Essa atuação, atualizando o método e o
serviço pastoral atestam a permanência da tradição da ACO nos novos espaços de
práxis política.

REFERÊNCIAS

ACO - MTC, ASSUMIR. Movimento de Trabalhadores Cristãos. Ano XXXIII. N.88.


Janeiro/Abril. 2011.
ACO. História da ACO, fidelidade e compromisso na classe operária. Rio de Janeiro,
1987.
ANDRADE, Flávio Lyra. Construção de identidades coletivas na assembleia popular:
trânsitos em processos sociais entre o campo político e religioso. Dissertação de
Mestrado em Sociologia. Recife, UFPE, 2012.
BRINGHENTI, A. A Ação Católica e o novo lugar da Igreja na sociedade. In: WILFRED,
Félix; SUSIN, Luiz Carlos (Org.). Cristianismo e democracia. Concilium - Revista
Internacional de Teologia, N° 322, 2007/4, p.41-52.
______. Ciência da Religião aplicada à ação pastoral. In.: PASSOS, João Décio;
USARSKI, Frank (Org.). Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulus, 2013, p.
663-676.
CHAPARRO, M. C. Padre Romano, o profeta da libertação operária: a saudade que
impulsiona. São Paulo: Editora Hucitec, 2006.
631

JOC. Uma história de desafios - JOC no Brasil 1935/1985. 2002.


MAINWARING, S. Igreja Católica e Política no Brasil - 1916 - 1985. São Paulo: Editora
Brasiliense, 2004.
MONTEIRO, M.A.S. Ação Católica Operária, fé e luta em tempos difíceis no Nordeste
do Brasil. Dissertação de Mestrado em Serviço Social, UFPE, 1992.
632
633

O CONCEITO DE ESPIRITUALIDADE HUMANISTA E A


QUESTÃO DA INDIFERENÇA À VIDA COMO UMA DAS FACES
DO MAL NA CONTEMPORANEIDADE: UMA PERSPECTIVA A
PARTIR DA COSMOVISÃO DE ERICH FROMM

DENIS COTTA
Doutorando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
[email protected]

RESUMO: A presente comunicação visa elucidar o conceito de espiritualidade


humanista advindo da cosmovisão do psicanalista alemão Erich Fromm (1900-1980).
Para o autor em foco, o sujeito deve ser compreendido em sua integralidade, isto é,
em sua constituição corpórea, psicossocial e espiritual. A noção de espiritualidade
humanista, em termos gerais, pode ser entendida como uma ressignificação
produtiva do modo de ver e de experienciar a vida, é um processo contínuo que se
desenvolve durante toda a existência da pessoa. Já a ideia de crise espiritual
contemporânea apontada por Fromm, se refere ao problema da indiferença à vida,
constituindo-se não como uma postura de neutralidade mas como uma manifestação
do mal. Neste pensamento, a indiferença à vida pode levar a pessoa a um ciclo de
destrutividade, em que, a perda do sentido da própria existência poderá incidir na
chamada síndrome de deterioração. Em termos gerais, essa síndrome está associada
as condutas humanas referentes à agressividade e à letalidade dirigidas ao outro e a
si mesmo. De acordo com Fromm, essa crise espiritual é um sintoma do adoecimento
do indivíduo contemporâneo, um tipo de patologia que só pode ser tratada de forma
satisfatória pelo prisma da visão integral do ser humano. Como recurso
metodológico, esta comunicação se utilizará de uma análise teórico-bibliográfica das
obras: O coração do homem, Anatomia da destrutividade humana e Rever Freud,
todas de autoria de Erich Fromm, além de recorrer a comentadores do autor
supracitado. Por fim, este estudo pretende mostrar que a espiritualidade humanista
pode ser entendida como uma ferramenta transterapêutica para o aprimoramento
do indivíduo em direção ao cultivo do amor à vida.

Palavras-chave: Espiritualidade humanista; Crise espiritual; Amor à vida; Erich


Fromm.
634

INTRODUÇÃO

A priori, antes de elucidar o conceito de espiritualidade humanista a partir da


cosmovisão de Erich Fromm, é necessário apresentar, mesmo que de modo breve,
um dos principais fundamentos da psicanálise humanista, a saber, a condição da
existência humana. Segundo o nosso autor, a psicanálise humanista não nega as
valiosas contribuições de Freud acerca do inconsciente humano, das necessidades
instintivas, da interpretação dos sonhos como ferramenta terapêutica, dentre outros
elementos. No entanto, para Fromm, a teoria freudiana falha ao não se atentar aos
aspectos socioculturais e existenciais do sujeito. Em outra terminologia, o psicanalista
humanista não nega os instintos (sexuais e de proteção), contudo adverte que estes
instintos são socialmente condicionados (FROMM, 1974).
O paradigma analítico humanista reitera que, apesar da singularidade de cada
pessoa, a condição humana une os indivíduos singulares sob uma mesma categoria
existencial. No pensamento frommiano, a condição de existência humana está
associada ao sentimento de desamparo (oriunda da razão) provocado pela ruptura da
harmonia entre o humano e a natureza. Assim, diante desse sofrimento existencial, o
sujeito visa restabelecer a harmonia perdida por intermédio de novas formas de
relacionamento com o mundo, formas estas que podem se configurar em produtivas
ou improdutivas (FROMM, 1974).
Para Fromm (1981), o caráter individual está associado a uma série de
condutas que o sujeito adota diante da vida. Deste modo, a relação do indivíduo com
o mundo que o cerca pode ser pautado pelo amor à vida (biofilia) ou regido pela
destrutividade (necrofilia). Nesta premissa, a paralização do processo biófilo é o fator
que poderá culminar na chamada crise espiritual contemporânea, caraterizada pelo
estado de indiferença à vida.
Ainda segundo Fromm (1981), é de suma importância que o indivíduo realize a
tomada de consciência e, assim, consiga aprimorar o seu modo de experienciar a vida
de modo mais produtivo. A este processo de ressignificação existencial e, que, se
manifesta exteriormente através de uma praxiologia biófila, chamamos de
espiritualidade humanista. O tópico a seguir apresentará de modo breve a noção
frommiana sobre a integralidade do ser humano e sua relação com o estado de saúde
do indivíduo.

A PSICANÁLISE HUMANISTA E A SUA COMPREENSÃO DO HUMANO COMO UM SER


INTEGRAL

Em termos frommianos, o ser humano é o único animal que tem consciência


de si mesmo, isto é, o indivíduo tem consciência de ter uma consciência (citação?).
Assim, por intermédio de sua racionalidade o ser humano se torna um animal único
na natureza. E é baseado nesta premissa, a saber, da condição da existência humana,
que a psicanálise humanista estrutura a sua abordagem psicológica acerca da
constituição do indivíduo. Neste paradigma, a cerne do humanismo da psicanálise
frommiana deve ser compreendida pelo seguinte fragmento:
635
Um indivíduo representa a raça humana: ele é um exemplo específico
da espécie humana. Ele é ‘ele’ e é ‘todos’; ele é um indivíduo com as
suas peculiaridades e, nesse sentido, sem igual, mas ao mesmo
tempo é representativo de todas as características da raça humana.
(FROMM, 1974, p. 42).

A partir da análise do fragmento anterior, pode-se sublinhar que, a psicanálise


humanista parte do pressuposto de que o indivíduo é único em sua singularidade,
mas que, ao mesmo tempo, divide com os outros seres de sua espécie caraterísticas
que os agrupam na categoria de ser humano. Para Fromm, o ser humano deve ser
compreendido em sua integralidade, isto é, em sua dimensão corpórea, psicossocial e
espiritual. Deve-se ressaltar que cada uma dessas dimensões humanas são
entendidas na psicanálise humanista como indissociáveis.
Em outras palavras, cada dimensão irá repercutir em saúde ou em doença,
caso não sejam cuidadas e nutridas pelo próprio sujeito. Neste contexto, Fromm
(2009), reforça que o atrofiamento de qualquer uma dessas três dimensões acarreta
o adoecimento e/ou o sofrimento do indivíduo. O tópico a seguir visa aclarar as
influências religiosas que impactaram a cosmovisão de Fromm e que, nos permitem
vislumbrar a ideia de espiritualidade humanista advinda do psicanalista alemão.

O PROCESSO DE SISTEMATIZAÇÃO DA ESPIRITUALIDADE HUMANISTA: AS TRÊS


GRANDES INFLUÊNCIAS RELIGIOSAS QUE IMPACTARAM A COSMOVISÃO
FROMMIANA

Conforme nos adverte o psicanalista e comentador frommiano Rainer Funk, a


vida de Erich Fromm foi uma jornada de muitos encontros e desencontros. Desde a
sua infância e juventude (marcadas pela prática do judaísmo ortodoxo) até a sua
morte, a vida de Fromm esteve permeada por valores morais, como a ética, a
liberdade e o amor à vida. Segundo Funk (1999), depois de estudar a psicanálise
freudiana, Erich Fromm abandonou a prática religiosa do judaísmo, contudo, não
abandonou as raízes éticas e humanistas da tradição judaica.
Ainda segundo Funk (1982), no que tange ao contexto moral de Fromm, deve-
se ressaltar a influência de uma das correntes místicas presentes no judaísmo,
chamada hassidismo. No início da década de 1920, o jovem Fromm estudava na
Escola Judaica Livre, localizada em Frankfurt, na Alemanha. Durante esse período,
Fromm se encontrou com o filósofo judeu Martin Buber, que lecionava na mesma
escola. Neste período, Buber já havia publicado obras sobre o movimento hassídico,
como os livros: As histórias do Rabi Nakhman [1906] e A lenda do Baal Schem
[1908]206. Neste contexto, vale elucidar que as contribuições realizadas por Martin
Buber a respeito do conhecimento do movimento hassídico seriam comentadas por
Fromm em sua obra O Espírito de liberdade. Todavia, apesar da relação de
proximidade acadêmica com Buber, o principal influenciador de Fromm no estudo do

206
As datas entre colchetes indicam a data de publicação original das obras.
636

hassidismo foi o professor talmúdico Salman Baruch Rabinkow. Os estudos da


tradição hassídica iniciados com o rabino Rabinkow entre os anos de 1920 até 1925,
propiciaram ao jovem Fromm uma releitura mais humanística dos textos sagrados do
judaísmo (FUNK, 1999).
Posteriormente, em meados da década de 1950, Fromm inicia contatos de
proximidade com o professor de filosofia budista chamado Daisetz Teitaro Suzuki. O
relacionamento de amizade com Suzuki culminou em uma nova e revigorante
experiência espiritual para Erich Fromm. De acordo com Funk (1999), a prática e a
filosofia do zen-budismo e a sua relação com a psicanálise humanista instauraram em
Fromm a percepção de novos conceitos referentes à dimensão e à possibilidade de
aperfeiçoamento do ser humano em sua totalidade.
A terceira grande influência sobre o pensamento frommiano se refere à três
vertentes místicas de feição cristã, sendo elas o autor desconhecido da obra
intitulada A nuvem do não saber, Mestre Eckhart e Thomas Merton. Nos escritos de
cada um desses místicos supracitados, o psicanalista alemão identifica valores morais
importantes para a vida do sujeito contemporâneo. Em uma de suas primeiras obras,
Análise do Homem publicada originalmente em 1947, Fromm já citava o pensamento
de Mestre Eckhart, sobretudo no que se refere à ideia de liberdade do espírito
humano (FUNK, 1999).
Diante do encontro entre essas três tradições religiosas (salvaguardando as
peculiaridades e as singularidades de cada uma), o psicanalista alemão elucida que o
âmbito espiritual do humano deve ser constituído em síntese: pela liberdade, pelo
amor e pela capacidade de transcendência do ego. Fromm ainda esclarece que a vida
espiritual produtiva do sujeito está intrinsecamente associada ao abandono de uma
existência alienada de si mesmo e do mundo que o cerca. Desse modo, cabe frisar
que, a essência da saúde integral sublinhada pelo pai da psicanálise humanista entra
em conflito com a Sociedade da Aquisição, que tenta transformar o indivíduo em um
autômato, isto é, um ser desprovido de espírito207 comparável à figura mítica judaica
do Golem (FROMM, 2009).
Em uma de suas obras mais tardias intitulada Rever Freud, Erich Fromm
ressalta que por muitos anos procurou uma definição de espiritualidade, e que, a
formulação mais propícia ao seu ver se refere à noção de espiritualidade advinda da
escritora e ativista norte-americana Susan Sontag (1933-2004). A formulação de
espiritualidade supracitada se refere a: “[...] ‘planos, terminologias, ideias
relacionadas a uma conduta que visa a resolver uma contradição estrutural penosa
inerente à condição humana, à plena realização da consciência humana, à
transcendência.’ Eu [Fromm]208 acrescentaria, no entanto, ‘desejos apaixonados’,
antes de planos, terminologias, ideias” (SONTAG, 1969 apud FROMM, 2013, p. 38).
De modo geral, de acordo com o psicanalista humanista, a ideia de
espiritualidade integra o espectro de desejos e paixões humanas racionais, pois se

207
Cabe ressaltar que, na ótica frommiana a noção de espírito humano não se refere a uma ideia metafísica no
sentido de vida após a morte, mas reflete uma esfera antropológica de abertura ao semelhante, à natureza em
toda a sua diversidade.
208
Grifo nosso.
637

referem a um modo específico pelo qual o sujeito visa responder duas questões
existenciais fundamentais. A primeira se refere à necessidade de estabelecer uma
nova forma de harmonia com a natureza pautada pela racionalidade; e a segunda
está associada a atribuição do sentido da vida (FROMM, 2013). A seguir, pretende-se
elucidar que a indiferença à vida deve ser compreendida como uma crise espiritual
que assola o sujeito contemporâneo e, que, o priva de uma existência mais saudável.

A CRISE ESPIRITUAL CONTEMPORÂNEA: A INDIFERENÇA À VIDA COMO UMA FACE


DO MAL

Segundo Fromm, uma das principais causas de adoecimento do sujeito


contemporâneo se refere ao estado de indiferença à vida. Para o nosso autor, o
sentimento de indiferença pela existência, presente em algumas pessoas, pode
acabar por instaurar a paralisação de suas potencialidades produtivas. Essa
paralização, por sua vez, pode conduzir o sujeito à um processo patológico chamado
de síndrome de deterioração (FROMM, 1981).
De acordo com o pai da psicanálise humanista, a síndrome de deterioração
começa quando a pessoa não consegue tratar de modo produtivo as suas questões
inconscientes, como por exemplo: as paixões irracionais, os traumas, as neuroses,
dentre outras questões de sofrimento mental. Em outras palavras, quando o sujeito
não realiza o processo terapêutico de trazer ao consciente os aspectos do
inconsciente, ele (o sujeito) pode ser acometido por algum tipo de neurose (em casos
mais severos pode se instaurar um transtorno mental), fato que acaba por privá-lo de
uma existência saudável e produtiva (FROMM, 2013).
Nesse viés, o embotamento da vida, é considerado por Fromm como um
sintoma da alienação que provoca no indivíduo um distanciamento de si mesmo e,
que, consequentemente corrobora para a paralisação do crescimento de suas
potencialidades. De acordo com o psicanalista alemão, esse estado de alienação
torna o sujeito um ser indiferente à vida e ao próximo. Em termos gerais, neste
processo de alienação, o indivíduo acaba por ser tornar um autômato, isto é, um ser
desprovido de espírito (FROMM, 1976).
Diante dessa perspectiva, a saber, da indiferença à vida, Fromm (1976, p. 93)
adverte que, “[...] devemos considerar a crise espiritual pela qual está passando o
homem ocidental nesta época histórica decisiva, e a função da psicanálise nessa
crise”. Para o nosso autor, a crise espiritual pela qual o indivíduo contemporâneo
atravessa deve ser entendida em toda a sua complexidade, ou seja, essa crise acaba
por impactar negativamente a orientação biófila (amor à vida) da pessoa.
Segundo o pai da psicanálise humanista, o fracasso no ato de viver
produtivamente, pode levar a pessoa a formular pensamentos destrutivos e,
posteriormente, colocá-los em ação. A sistematização do conceito de destrutividade
humana foi desenvolvida de modo mais específico na obra frommiana Anatomia da
destrutividade humana, em que o autor aborda variadas tipologias de agressão,
salientando as suas características, dentre outros elementos. Nesse viés, para Fromm
(1987), a indiferença à vida é um elemento que integra o espectro da destrutividade,
638

é segundo o autor uma faceta do mal e não da neutralidade. Um dos principais


elementos que caracterizam esse estado de indiferença se refere à falta de
valorização da vida de si mesmo e do outro, o que pode levar o sujeito à um nível
elevado da destrutividade, a saber, o autoextermínio.
Neste sentido, vale destacar os altos índices de suicídio divulgados pela OMS209
em 2019 em que é possível perceber dados alarmantes à respeito de sofrimento do
sujeito contemporâneo, sofrimento este que em certa medida é nutrido pelas
promessas (e mazelas) oriundas da sociedade capitalista. A sociedade da aquisição
realiza por meio do marketing, por exemplo, grandes promessas a respeito de uma
felicidade que pode ser alcançada sem o esforço e sem a dedicação do indivíduo.
Contudo, as promessas realizadas pela indústria do marketing se mostram ineficazes
pois não são capazes de oferecer a felicidade genuína. Na perspectiva frommiana, a
felicidade (alegria de viver) só pode ser conquistada pelo indivíduo mediante a
prática da coragem, da determinação e do amor (FROMM, 2009).
Mediante estas ponderações acerca da problemática associada à noção de
indiferença à vida, cabe salientar a possibilidade de se pensar na ideia de
espiritualidade humanista como um instrumento de ressignificação e de
aprimoramento integral do sujeito contemporâneo. Em outras palavras, o referido
conceito de espiritualidade se propõe (dentre de seus alcances e limites
interpretativos) a estudar o fenômeno religioso que abarca o sujeito na
contemporaneidade, mais especificamente a problemática referente ao estado de
indiferença à vida.

CONCLUSÃO

Para Fromm, o humano deve ser entendido como um ser integral, constituído
de necessidades existenciais que visam o estabelecimento de sua harmonia com a
natureza. Assim, com o objetivo de restabelecer a harmonia na existência, o sujeito
se volta para o âmago de seu ser com o intuito de aprimorar a expressão de sua
espiritualidade.
De acordo com o paradigma psicanalítico humanista, a espiritualidade deve ser
entendida como uma resposta antropológica do indivíduo, isto é, uma forma
produtiva em que a pessoa visa aperfeiçoar as suas potencialidades mais elevadas.
Em outras palavras, a espiritualidade deve ser compreendida como uma arte de viver,
que se desenvolve durante toda a existência da pessoa.
Nesse viés, para que o indivíduo contemporâneo se desvincule do estado de
alheamento de si e do outro, é necessário que ele (o sujeito) realize uma
reorientação existencial. Em termos gerais, essa ressignificação existencial está
associada a uma maneira mais saudável, altruísta e consciente do ato de viver. Em
última instância, a espiritualidade humanista é a capacidade de experienciar a

209
A World Health Organization (WHO), conhecida no Brasil como Organização Mundial de Saúde (OMS),
apresentou dados alarmantes sobre o suicídio em nível global em seu último levantamento no ano de 2019.
Segundo a OMS, a cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo.
639

existência de modo mais desperto, ciente das mazelas e das alegrias da vida, sem
perder no entanto, a sensibilidade e o cuidado com o outro.

REFERÊNCIAS

BUBER, M. As histórias do rabi Nakhman. São Paulo: Perspectiva, 2000.


BUBER, M. A lenda do Baal Shem. São Paulo: Perspectiva, 2003.
COTTA, D. A experiência religiosa católica do Encontro de Casais com Cristo (ECC):
uma análise sob a perspectiva da psicanálise humanista de Erich Fromm. Curitiba:
CRV, 2020.
FROMM, E. Análise do homem. 9. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1974.
FROMM, E. Anatomia da destrutividade humana. 2. ed. Rio de Janeiro: Guanabara,
1987.
FROMM, E. La condición humana actual y otros temas de la vida contemporánea.
Barcelona: Paidós, 2009.
FROMM, E. O coração do homem: seu gênio para o bem e para o mal. 6. ed. Rio de
Janeiro: Zahar, 1981.
FROMM, E. O espírito de liberdade: uma interpretação radical do velho testamento e
de sua tradição. 3. ed. Rio de Janeiro: Zahar, 1975.
FROMM, E. Rever Freud: por uma outra abordagem em psicanálise. São Paulo:
Loyola, 2013.
FROMM, E. Psicanálise e zen budismo. In: SUZUKI, D.T.; FROMM, E.; MARTINO, R. Zen
budismo e psicanálise. São Paulo: Cultrix, 1976. p. 92-162.
FUNK, R. Erich Fromm: el amor a la vida, una biografia ilustrada. Barcelona: Paidós,
1999.
FUNK, R. Erich Fromm: the courage to be human. Nova York: Continuum, 1982.
WORLD HEALTH ORGANIZATION. Suicide in the world: global health estimatives.
Disponível em: <https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/326948/WHO-
MSD-MER-19.3-eng.pdf?ua=1>. Acesso em: 10 out. 2019.
640
641

OS SENTIDOS DE VIDA E DE MORTE NA TEMÁTICA DO


ABORTO

AMÁLIA MARIA MACHADO DE OLIVEIRA


Mestranda em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
[email protected]

RESUMO: A escolha pelo aborto pode ter significado simultâneo, real ou simbólico,
de morte ou de vida conforme a perspectiva adotada por quem acessa a questão. O
tema do aborto a pedido deixou o âmbito privado e alcançou o espaço público;
tornou-se questão de vulto político. Instaurou-se, no mundo ocidental, uma disputa
entre atores favoráveis e atores contrários à realização e descriminalização do
aborto. O Estado foi se tornado um dos palcos de disputa desta questão. Os
envolvidos na querela se autodenominam pró-escolha e pró-vida, conforme
defendem a aceitação do acesso amplo ao procedimento ou à defesa de restrições à
disponibilidade legal ao aborto procurado. Esta comunicação busca apresentar os
valores que sustentam as respectivas demandas entre os oponentes e os
proponentes em torno da temática. Busca demonstrar os argumentos usados por
ambos os grupos nas reivindicações em torno do aborto a pedido. Procura verificar as
mudanças nas proposições elaboradas, na busca por aceitação pública da questão
pleiteada. Intenta ainda encontrar intercessões estratégicas destes dois movimentos
sociais. Esta é pesquisa bibliográfica. Foram acessados livros relacionados à temática
e se realizou uma busca on line dos termos “feminismo”, “religião”, “pró-escolha” ou
“pró-vida”, cada um destes, sempre associado ao termo “aborto”. A pesquisa revelou
diversidade nas ações e mudanças nos discursos e proposições de ambos os grupos
no Brasil. As narrativas e propostas sofrem influência do grupo opositor,
frequentemente, sendo respostas ao grupo oponente. Muitas vezes, há
compartilhamento das mesmas linhas argumentativas. Mantém-se o impasse na
nação brasileira e a disputa continua.

Palavras-chave: Aborto; Feminismo; Pró-escolha; Pró-vida; Religião.

INTRODUÇÃO

O aborto provocado se insere no rol de experiências humanas que pode


revelar ou trazer consigo os opostos que integram inexoravelmente a experiência do
existir. Produz expectativas e resultados contraditórios, às vezes de forma
simultânea: alívio e dor, impotência e poder, frustração e vitória. Saúde e doença.
Aborto fala de vida e fala de morte. É experiência do corpo e da alma. É experiência
642

pessoal e social. Os significados de sua ocorrência podem ser apreendidos,


produzidos ou alterados. A temática do aborto deixa transparecer de forma nítida o
imbricamento biológico-psíquico-social-religioso do ser humano.

A DISPUTA EM TORNO DA TEMÁTICA

O aborto procurado constitui uma controvérsia moral. A discussão sobre a


moralidade do aborto reflete numa disputa concreta a respeito do direito à sua
execução (BIROLI, 2014). Esta disputa é percebida e apresentada principalmente
entre dois grupos sociais, embora não se restrinja aos mesmos. Por um lado,
religiosos de matriz cristã rejeitam a execução e a ampla legalização do aborto. Do
lado oposto, grupos sociais progressistas, particularmente o movimento feminista,
pleiteiam o acesso fácil, legal e amplo ao procedimento.
Internacionalmente, os termos “pro-life” (Pró-vida) e “pro-choice” (pró-
escolha) são os mais conhecidos e utilizados para distinguir os dois movimentos
sociais principais, antagônicos, que se manifestam pública e prioritariamente sobre a
interrupção voluntária da gravidez (RIBEIRO, 2012). O movimento pró-escolha (pro-
choice) defende a prática do aborto de maneira segura e legal. O movimento pró-vida
(pro-life) advoga a defesa da vida − da concepção até a morte natural −, sendo
caracterizado principalmente por sua oposição à prática do aborto induzido (MAZZA,
2018).
Tratado historicamente de forma velada, a discussão pública deste tema
tomou amplo vulto social e político com o movimento feminista. O aborto a pedido
foi inserido na pauta de reivindicações do movimento das mulheres, como quesito
para redução de desigualdades de gênero. O movimento feminista se iniciou pela
busca dos mesmos direitos políticos, sociais e econômicos entre homens e mulheres.
O feminismo elaborou uma teoria crítica a respeito das relações de gênero
(SCAVONE, 2010), que desencadeia questionamentos a verdades estabelecidas e
abrange a questão do aborto.
Na perspectiva feminista, a sociedade tem um modelo patriarcal, que busca a
manutenção do status quo de dominação masculina. Estes se mantêm através de
uma política de controle patrimonial dos corpos, dos desejos e da sexualidade das
mulheres (BENCKE, 2019; ROSTAGNOL, 2016). Quando se debate o direito legal ao
aborto procurado, entende-se que o que está em jogo, de fato, são as relações de
poder. A mulher não consegue ser reconhecida, neste modelo de sociedade, como
um sujeito pleno de direitos, com interesses e perspectivas diversos da maternidade
(BIROLI, 2014; JESUS, 2018; MORI, 1997). O direito ao aborto voluntário é tido como
base necessária para garantir a igualdade entre homem e mulher (ROSTAGNOL,
2016). É uma das condições para que as mulheres sejam vistas como indivíduos que
tenham plena autonomia sobre si (BIROLI, 2014).
O feminismo recusa o paradigma hegemônico da maternidade que é imposto
às mulheres e rejeita a maternidade compulsória. Na ótica feminista, ao se admitir o
aborto, mata-se uma “ideia de mulher” (MORI, 1997, p. 87). Poder optar pelo aborto
significa poder recusar e transgredir o papel esperado das mulheres. Propiciar a
643

completa dissociação entre e sexo e filhos. Amplia para as mulheres seu espectro
profissional e social. Pode proporcionar ainda um aumento da satisfação das
mulheres em sua vida sexual (FERRAND, 2008).
Vários argumentos são utilizados na reivindicação feminista em prol da
legalização do aborto voluntário. Apela-se ao princípio do direito individual. A
questão do direito individual está ligada ao direito ao próprio corpo e à
autodeterminação. Proibir o aborto é imoral para as feministas, pois terceiros não
têm direito de decidir sobre o que as mulheres podem ou não fazer do próprio corpo
(NUNES, 2006). Reconhecer o sexo feminino como indivíduo, seria reconhecer sua
capacidade de fazer julgamentos éticos e tomar decisões morais. Reconhecer a
mulher como agente moral, capaz e apto a fazer escolhas deveria implicar em dar-lhe
o “controle sobre sua capacidade biológica de gerar um novo ser” (NUNES, 2006, p.
31).
O apelo à laicidade estatal e à democracia tem sido um argumento feminista
recorrente a favor da descriminalização do aborto no Brasil (GEBARA, 2007;
MACHADO, 2017; ROSTAGNOL, 2016). Restringir o acesso legal ao aborto fere, assim,
os interesses de uma sociedade pluralista. A interdição legal ao aborto voluntário
indica a adoção de uma cosmovisão específica na normatividade jurídica do país.
Revela a existência e realidade de uma normatividade metafísica. A expansão do
alcance do cuidado e proteção, pelo Estado, à vida intrauterina, demonstra
concordância, por parte do Estado, da intenção de religiosos de estenderem e
imporem seus valores morais e religiosos para toda a sociedade (DOMINGUES, 2008;
MACHADO, 2017).
O conceito de direitos sexuais e reprodutivos se originou dentro do
movimento feminista. Tais direitos foram inseridos pela Organização Mundial de
Saúde (OMS) como constitutivos e parte dos direitos humanos. Traduzem poder
escolher se, quando e quantos filhos ter. Para que a mulher tenha autonomia sexual
e reprodutiva, a vivência da sua sexualidade deve ser desvinculada da possibilidade
de reprodução (FERRAND, 2008). Isto necessariamente deve incluir o direito ao
aborto seguro.
Outra argumentação na defesa pelo direito legal ao aborto tem sido o impacto
do aborto ilegal sobre a saúde das mulheres, particularmente as mais pobres. O
aborto tem sido apresentado como um direito social e um problema de saúde
pública. A criminalização do aborto impele à prática clandestina. A clandestinidade
pode levar à sua realização em condições precárias. Os procedimentos realizados de
maneira precária e insegura (abortos inseguros) constituem um risco para a saúde e a
vida das pessoas que a ele se submetem. Isto atinge de maneira particular as
mulheres mais pobres (VENTURA; CAMARGO, 2016). O aborto é um problema de
saúde pública em várias nações (MORI, 2006; SCAVONE, 2008), mas apresenta taxa
maior de mortalidade em países onde o procedimento não é legalizado.
Os principais oponentes da despenalização do aborto voluntário são atores e
instituições cristãs. O valor subjacente às suas reivindicações é a defesa da vida
humana. A defesa da vida desde seu início ocorre em função do status moral
atribuído ao feto. Enquanto atores pró-escolha apelam ao argumento de que não há
644

consenso social, científico ou mesmo religioso de quando a vida humana teria seu
início, atores pró-vida entendem que devem ser dados aos seus argumentos os
mesmos benefícios de dúvida que se gostaria de receber ao se fazer uma proposição.
Entende-se que o começo da vida humana é questionamento insolúvel e não
existem dados convincentes para saber quando começa a pessoa
(LEPARGNEUR,1983). É pessoa desde o zigoto, admitindo-se que não se possa provar
que seja nem que não seja assim (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2008). Se o feto é uma
pessoa, existem danos a eles feitos por outras pessoas. Então não é apenas
moralmente aceitável, mas moralmente necessário defender em seu nome
(LEATHERS, 2016). Dessa maneira, a vida intrauterina deve ser salvaguardada com o
máximo de cuidado desde seu início.
A Igreja cristã invoca o saber científico para corroborar seus argumentos. O
embrião que se desenvolve a partir da concepção é cientificamente humano. A
evolução da ciência permitiu que se conhecesse que já desde a fecundação surge um
material biológico com material genético distinto do pai e da mãe. A observação dos
processos biológicos revela que a vida acontece por etapas. A fecundação é o começo
de um processo que tem etapas, de incontestável continuidade biológica e que
termina apenas com o fim natural da vida humana (CNBB, 2008). Na perspectiva pró-
vida, e biologicamente, o embrião não é parte do corpo materno, e, portanto, a
mulher não pode dispor do mesmo.
Teólogos e instituições cristãs têm argumentado que a questão do aborto não
está relacionada à questão da laicidade estatal ou separação igreja-Estado. O aborto
não é uma controvérsia entre religiosos e os demais. É questão humana e de
humanidade. A separação jurídico-constitucional da Igreja e do Estado não dá conta
das complexidades sociais e das disputas políticas relacionadas ao tema do aborto.
Embora muitos autores enquadrem a controvérsia do direito ao aborto voluntário
exclusivamente na categoria de matérias morais, não é possível estabelecer limites
nítidos e inquestionáveis entre o secular e o confessional com respeito ao tema.

ANÁLISE DE DISCURSOS E ESTRATÉGIAS

Atores favoráveis e atores contrários à descriminalização do aborto utilizam e


misturam argumentos morais e científicos em defesa do seu posicionamento. Na
questão do aborto há disputas simbólicas no que diz respeito ao começo da vida
(BENCKE, 2019), mas não só. A temática envolve simultaneamente juízos científicos,
morais, éticos e/ou religiosos (PINHEIRO, 2008). Os dois grupos afirmam defender a
vida e lutar contra a morte. Ambos alegam a defesa dos direitos humanos.
Defensores e opositores da legalização do aborto se queixam das narrativas do
movimento opositor. Enquanto atores pró-escolha reclamam do estigma em torno do
termo aborto, atores pró-vida se queixam do encobrimento da morte de fetos com o
uso de eufemismos verbais.
A questão do aborto envolve indicadores de saúde. O aborto é considerado
uma causa evitável de mortalidade e morbidade materna. Como com outros agravos
de saúde, os números são piores na população socialmente mais vulnerável. Está
645

atrelada a desigualdades sociais. Há dificuldade em se precisar o volume de abortos


realizados em qualquer país, mas a estimativa é mais difícil onde o procedimento é
restringido legalmente (MENEZES, 2020). No Brasil, tem havido uma ampla
apresentação do aborto inseguro como problema social e de saúde pública. O
número estimado de abortos no país varia em torno de 100.000 a 1 milhão,
anualmente. O número de mortes decorrentes do aborto induzido é avaliado em
cerca de 160 a 250 ocorrências ao ano.
Baixa confiabilidade nos números estimados de aborto é referida pelos dois
lados na disputa pela legalização do aborto. Os meios de informação são tidos como
inexatos. Há diferenças e dificuldades técnicas e metodológicas nas estimativas.
Fontes dos dados obtidos são interpretadas ora como subestimando, ora como
inflacionando os possíveis números reais (SANCHES, 2012). A variabilidade dos dados
apresentados, as dificuldades técnicas e metodológicas nas estimativas e a
constatação da existência de possíveis conflitos de interesses das instituições
pesquisadoras ainda é um problema para ampla aceitação dos números fornecidos.
Atores pró-escolha e pró-vida fazem uso, por vezes, das mesmas linhas de
argumentos na sua demanda, através de perspectivas e fontes diferentes. Ambos
expõem imprecisões terminológicas e de conceitos na abordagem teórica do assunto.
A produção de verdades e o uso de semântica persuasiva são citados pelos dois lados.
Ambos afirmam a defesa de valores humanos inalienáveis. Os religiosos focam a vida
intrauterina, sendo acusados de displicência para com a vida feminina. As feministas
focam os interesses das mulheres, obscurecendo a questão da vida embrionária.
Ambos os grupos buscam influenciar a opinião pública e acessam o Estado como
palco de disputa. De maneiras diferentes, ambos esperam atuação do Estado na
questão. Ambos representam grupos de interesse na disputa política. Feministas e
religiosos acusam a violação de direitos humanos por parte do grupo oponente. Os
dois lados afirmam diferentes propósitos do grupo opositor encobertos na questão
do aborto. Finalmente, há grande variabilidade dos números apresentados. Conflitos
de interesses podem estar embutidos nos cálculos. Mantém-se a controvérsia e as
disputas.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A mulher está entre a escolha da vida e a escolha da morte. Sua ou do feto.


Real ou simbólica. A mulher está entre a escolha da vida e a escolha da morte. Sua ou
do feto. Real ou simbólica. A interrupção voluntária da gestação ou extermínio ou
morte fetal pode ter o sentido de solução de problemas, de vida então...? A escolha
da mulher pode matar a escolha do feto. Ao ser “feto” não é dado, assim, qualquer
opção. É ser, senão não precisaria deixar de ser. O feto, se vivesse, poderia viver uma
vida de morte. Quem sabe? As injustiças milenares relacionadas ao gênero serão
assim resolvidas? Poder abortar minimizará a inferiorização feminina, o abandono, o
desprezo, os abusos e a violência? Esta é a escolha por vida?
646

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648

CORPO, POLÍTICA E RELIGIÃO: A LUTA PELA


DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO BRASIL E ARGENTINA
– UM DESAFIO AOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES

ANA KAROLINE DIRINO


Mestranda em Direitos Humanos
Universidade Federal de Goiás
[email protected]

MARGARETH PEREIRA ARBUÉS


Doutora em Ciências da Religião
Universidade Federal de Goiás.
[email protected]

RESUMO: Este trabalho tem como objeto de estudo as experiências ocorridas no


Brasil e na Argentina, sobre a influência política das narrativas de grupos religiosos
nos direitos sexuais e reprodutivos, em especial no direito ao aborto. A partir de uma
análise do desenvolvimento histórico do pensamento cristão sobre o corpo e a
reprodução, bem como do desenvolvimento patriarcal na América Latina. Seu
objetivo foi verificar as interferências destas concepções sobre as disputas por
direitos reprodutivos das mulheres e como agem nos processos políticos nestes
países. A pesquisa desenvolveu-se por meio de revisão bibliográfica e documental,
apoiada no método hipotético-dedutivo, com auxílio dos métodos histórico, jurídico,
comparativo e estatístico. Foram analisados estudos acerca dos direitos reprodutivos,
do pensamento religioso sobre as mulheres, bem como os tratados internacionais de
direitos humanos, legislações e projetos de lei dos dois países em referência. Tanto o
Brasil quanto a Argentina passaram por um processo de colonização que articulava a
exploração econômica e a imposição dos costumes cristãos sobre os povos. Em
ambos, o cristianismo ainda é predominante em relação às outras religiões, realidade
que se mistura de forma efetiva com a política nesses países, desde a eleição de
candidatos até a implementação de projetos políticos diversos. Mesmo com
evidentes divergências históricas entre grupos cristãos, a defesa majoritária e
intransigente é de que a vida se inicia a partir da concepção. Neste sentido, as
tentativas de descriminalização do aborto e efetivação de direitos reprodutivos nos
países em estudo, enfrentam grupos e concepções religiosas, que exercem pressão
sobre os movimentos sociais de mobilizações de mulheres, exigem compromissos de
candidatos em eleições e articulam movimentos ‘pró-vida’. No Brasil estima-se que
em 2014 quase 500 mil mulheres entre 18 e 39 anos realizaram um aborto (PNA,
2016) e entre 400 e 600 mil abortos na argentina em 2007 (CARBAJAL, 2007). Em
meio aos enfrentamentos de grupos feministas e grupos religiosos, o aborto é uma
649

dura realidade a ser enfrentada em toda a América Latina, que tem como regra a
criminalização e o desrespeito às concepções adotadas por tratados e cartas
internacionais de direitos humanos.

Palavras-chave: Direitos Reprodutivos; Patriarcado; Decolonialidade; Movimentos


Feministas.

INTRODUÇÃO

O aborto ganha relevância em toda na América Latina e Caribe, onde se torna


problema jurídico e político antes de ser um problema de saúde. Nesta região, cerca
de 90% das mulheres em idade reprodutiva está submentida a alguma forma de
criminalização da prática do aborto (SAHUQUILLO, 2018), sendo que apenas Cuba,
Uruguai, Guiana e Guiana Francesa, o descriminalizaram (KILL AGUIAR, DA SILVA et
al., 2019). Soma-se à diferença latitudinal, marcada pela colonização, as
desigualdades sociais. Elas complexificam a pauta política por legalidade, tornando-a
necessariamente “justiça reprodutiva” em sua completude, que vai desde a saúde
gratuita, pública e universal ao compartilhamento do cuidado na sociedade patriarcal
(ARRUZA, BHATTACHARYA, FRASER, 2019, p.42).
Desta forma, a demanda dos feminismos pela legalização do aborto ganhou
força na região, seguindo os impulsos das greves de mulheres espalhadas pelo
mundo em 2018. Na Argentina a “onda verde” fez pela sétima vez entrar pauta do
congresso o projeto de lei pela Interrupción Voluntaria del Embarazo (IVE), tendo sido
votada e aprovada pela câmara, posteriormente barrada no senado. No mesmo ano,
no Brasil, as mulheres organizaram o Festival Pela Vida das Mulheres, com a bandeira
“nem presa, nem morta” em substituição a “meu corpo, minhas regras”210. No
evento, mulheres de todo o país acompanharam a audiência pública sobre a Arguição
de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) n°442, que pede a não
recepção, pela Constituição Federal de 88, do artigo do código penal que criminaliza
o aborto no país.
Tanto o Brasil, como a Argentina, passaram por mudanças significativas de
governo nos anos anteriores, quando os governos de Cristina Kirchner (2015) e Dilma
Roussef (2016), primeiras mulheres eleitas presidentas nestes países e consideradas
“progressistas”, deram lugar a presidentes com posições mais à direita, e amplo
comprometimento com o conservadorismo. Estes dois governos de mulheres - ambas
de partidos posicionados à esquerda - não deram lugar à legalização do aborto. Por
isso nos propomos a debater alguns aspectos comuns na formação destes dois
países, que influenciam na pauta política do aborto, enquanto reivindicação de um
direito humano na atualidade: a religião, a política e o corpo.

210
O Festival pela vida das mulheres aconteceu em Brasília, de 03 a 06 de agosto e segundo Gabriela Rondon,
uma das organizadoras do evento, a mudança da bandeira de luta, foi uma estratégia de ampliação do alcance
da pauta às mulheres que são mais atingidas. https://youtu.be/LA0UHN7WtbU
650

O ABORTO E OS DIREITOS HUMANOS NO SUL

Da teoria à prática dos vários feminismos, os direitos reprodutivos como um


direito humano tem sido uma pauta constante. Contudo, não ecoa de forma una -
nem enquanto teoria, nem enquanto reivindicação política -, pois estão imbricados
por especificidades sociais e regionais de difícil análise. Temos como pressuposto que
a diferença colonial, enfrentada pelas mulheres latino-americanas, muito interfere
nas condições concretas em que os direitos reprodutivos, enquanto direitos
humanos, são exercidos, pautados e disputados na região. O Estado, enquanto um
perpetrador de violência por meio da criminalização, foi constituído na América
Latina a partir desta realidade, onde a colonização, classe, raça, gênero tem
implicação direta na vida das mulheres.
Apesar de em 1994 a Conferência Internacional sobre População e
Desenvolvimento (CIPD) ter reconhecido os Direitos Reprodutivos enquanto
categoria de Direitos Humanos (p.62), bem como a responsabilidade dos estados em
assegurar “o acesso universal aos serviços de assistência médica, inclusive os
relacionados com saúde reprodutiva” (p.43), nenhuma alteração legislativa
significativa foi efetuada para alcançar esta finalidade nos países analisados. O Estado
brasileiro continua contundente na lógica de cercamento do corpo, e mantém no
código penal de 1940 a criminalização do aborto (BRASIL, 2017b), com penas de um a
dez anos. Do mesmo modo o código penal argentino, de 1921 (reformado pela última
vez em 1984) criminaliza a interrupção da gravidez com pena que varia de um a
quatro anos. A maioria dos países onde o aborto é legalizado se posiciona no norte
global enquanto os países com as leis que mais restringem o aborto estão na América
Latina e na Africa (ONU, 2011).
Apesar do reconhecimento e, em grande medida acolhimento legal das
normas de DH nos países do sul global, sobre a necessidade de garantia de saúde nas
decisões sobre a própria reprodução, por que o aborto continua sendo crime?
Diversos autores e autoras têm debatido que teorias clássicas de direitos
humanos, desconsideram alguns sujeitos enquanto humanos (BALDI, 2016;
LUGONES, 2010). César Badi (2016) salientou em seu trabalho sobre “Direitos
Humanos e Islam: uma mirada desde las mujeres” que:

de ahí resulta que, la expresión “todos los pueblos” quiere decir “todos,
menos los indígenas” y estos, a su vez, quedan fuera de la condición de
“sujetos” en la mayor parte de los pueblos de América, África y Asia.

Da mesma forma, Maria Lugones (2010, p. 946), em sua análise sobre a


colonialidade de gênero destacou o entrelaçado de opressões na dicotomia que
estabelece exclusão, à medida que institui humanos e não humanos:

Ver a colonialidade é ver a poderosa redução de seres humanos a animais, a


inferiores por natureza, em uma compreensão esquizóide de realidade que
dicotomiza humano de natureza, humano de não-humano, impondo assim
uma ontologia e uma cosmologia que, em seu poder e constituição,
651
indeferem a seres desumanizados toda humanidade, toda possibilidade de
compreensão, toda possibilidade de comunicação humana.

Estes elementos contêm o fio que explica o porquê da concepção de


humanidade não ser uma só. Como foi historicamente pautado nos movimentos pelo
aborto legal, seguro e gratuito espalhados mundo, não “desceram” aos países do sul
global e enfrentam obstáculos singulares, como o racismo, o patriarcado, as
consequências da violência da missão civilizatória nos corpos, e etc. Para Baldi (2016),
a construção de uma narrativa que pressupõe um consenso em torno dos Direitos
Humanos, esconde que estes são um campo de lutas e contestações.

CORPO, COLONIZAÇÃO E CRISTIANISMO

À época da colonização, concepções cristãs universalizantes e a criação de


inimigos e bruxas na América serviram para sobrepujar resistências (DOUZINAS,
2011) (FEDERICI, 2017). Sempre na medida da conveniência política, as concepções
religiosas, especificamente as cristãs, têm sido utilizadas como argumento contra as
reivindicações de controle da própria vida e corpo das mulheres por elas mesmas.
Para Silvia Federici (2017, p. 357), as acusações de adoração ao demônio, e a
empreitada de caça às bruxas contra as mulheres européias foi transplantada à
América “para romper a resistência das populações locais, justificando assim a
colonização e o tráfico de escravos ante os olhos do mundo”. Aponta também que a
caça às bruxas - fenômeno intimamente ligado a disseminação do cristianismo -
constituiu uma “estratégia de cercamento” tanto da terra, como dos corpos e
relações sociais, dependendo do contexto em que podia ser encontrada. Tal
cercamento garantiu amplos poderes políticos ao cristianismo na América Latina, que
não foram desfragmentados, nem sequer reduziram, com a visão de laicidade do
Estado por meio da Declaração Universal dos Direitos do Homem e do Cidadão em
1789.
A visão cristã (majoritária) de que a vida começa a partir da concepção e a
condenação pela prática do aborto, apenas tornou-se a postura oficial da igreja
católica a partir de 1869 com a Apostólica Sedis de Pio IX, dento este o documento
que fundamentou “o apelo ao direito à vida como superior a todos os outros direitos,
inclusive o da gestante” (GONÇALVES; LAPA, 2008, p.74). Gonçalves e Lapa (2008)
fazem uma relação da criminalização do aborto pela igreja, com a sua defesa da
família monogâmica, já que a prática do abortamento era utilizada para esconder as
relações fora do casamento monogâmico.
Como aponta Federici (2017, p. 401, grifo nosso), a monogamia foi
brutalmente imposta durante a colonização e na época criminaliza as relações
poligâmicas:

A nova legislação espanhola, que declarou a ilegalidade da poligamia,


constituiu outra fonte de degradação para as mulheres. Do dia para a noite,
os homens se viram obrigados a se separar de suas mulheres, ou então
convertê-las em criadas (Mayer, 1981), ao passo que as crianças que haviam
652
nascido dessas uniões eram classificadas de acordo com cinco 402 403
categorias diferentes de ilegitimidade (Nash, 1980, p. 143).

Este se torna então um motivo a partir do qual “as mulheres se converteram


nas principais inimigas do domínio colonial, negando-se a ir à missa, a batizar seus
filhos ou a qualquer tipo de cooperação com as autoridades coloniais e com os
sacerdotes” (FEDERICI, 2017, p. 401).

POLÍTICA E O ABORTO

São estas as condições que consolidam as relações de poder vigentes, e


interferem significativamente na política, em especial nos processos eleitorais dos
países analisados. Segundo o último Censo do IBGE (2010), a população brasileira é
87% cristã, sendo destes 64,3% de católicos. Na Argentina cerca de 79% são cristãos,
62,9% católicos (MALLIMACI, et al. 2019, p. 15), sendo que a constituição do país
garante status jurídico diferenciado à igreja católica, exigindo até os dias de hoje que
o presidente e o vice, sejam cristãos católicos.
Nas eleições de 2010, a ex-presidenta Dilma Roussef foi pressionada a abrir
mão da pauta da descriminalização do aborto, em troca de apoio político, recebendo
apoio direto do Santo Papa neste pleito (MACHADO, 2012). Desde 2007, Cristina
Kirchner vem se manifestando contra o aborto (PRESSE, 2007) e ao tratar do assunto
quando era deputada chegou a pedir que as mulheres não ficassem com raiva da
igreja (DIREITO AO ABORTO, 2018).
Nas eleições de 2018 no Brasil, Jair Messias Bolsonaro foi o principal expoente
da pauta pró-vida, mas também deu centralidade a questões misóginas, machistas,
LGBTfóbicas e antifeministas em sua campanha, reunindo um leque de propostas
conservadoras, anticiência e em defesa da família. Nesta eleição, Bolsonaro foi o
único presidenciável a se manifestar contra o aborto no período em que aconteciam
as audiências públicas sobre a ADPF 442 e o Festival Pela Vida das Mulheres em
Brasília (LIMA, 2018). Após eleito fez o compromisso de vetar qualquer proposta
sobre o aborto legal (BOLSONARO SE POSICIONA, 2018).
Maurício Macri, presidente Argentino (2015-2019), desde o período de
campanha se posicionou contra a descriminalização do aborto (REYES, 2015). Em
2019, quando Macri perdeu as eleições para Alberto Fernández, o presidente
brasileiro disse “Fernández e Cristina Kirchner agora vão legalizar o aborto na
Argentina” (BOLSONARO CITA, 2020) e, mesmo que Fernandez tenha reiterado de
fato este compromisso, ele entrará no segundo período legislativo do país (2021) sem
realizar ações efetivas para que aconteça.
Ainda que nos últimos anos os elementos relacionados à pauta do aborto
tenham sido semelhantes no Brasil e na Argentina, os países caminham em direções
diferentes no que diz respeito às estratégias dos movimentos feministas no âmbito
jurídico. Enquanto no Brasil a pauta tem se expressado em torno da ADPF 442 que
apenas discute questões relacionadas a “preceitos fundamentais”, especialmente a
dignidade humana, na Argentina a disputa está pautada num entrelaçado de projetos
653

de lei, que vai desde a Educação Sexual Integral, a saúde da mulher e o processo
decisório com participação popular envolvendo o tema. Este último tem envolvido
amplas discussões e mobilização popular que ganhou destaque pela força nas ruas e
ficou conhecido como a Onda Verde.
Este é um dos aspectos que têm tornado o aborto na Argentina uma questão
central até mesmo para o executivo. Elizabeth Gomez Alcorta, ministra de las
Mujeres, Géneros y Diversidad da Argentina se pronunciou, dizendo que Alberto
Fernandes, não irá quebrar o compromisso de apresentar a lei pela descriminalização
do aborto, e culpa a pandemia pela demora (CAMACHO, 2020). Contrariamente no
Brasil, os movimentos pró-vida é que conseguiram força no âmbito legislativo com a
apresentação de inúmeros projetos de lei e mobilizações de rua nos últimos anos,
pedindo mais criminalização. Agora têm no executivo seu total apoio e sustentação,
principalmente a partir da figura da pastora Damares Alves no ministério da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Longe de dizer que o secularismo é sempre um benefício às mulheres,


devemos contudo considerar que as atuais concepções cristãs, não unânimes, mas
majoritárias a respeito da vida e do aborto, são um problema, sobretudo político que
interfere diretamente no âmbito jurídico dos países que passaram por processos de
colonização cristã e enfrentam as estruturas coloniais ainda hoje. Cristianismo que
não foi elegido, não foi escolhido, pelo contrário, foi brutalmente imposto pela
violência colonial, como meio “civilizatório” e universalizante, que hoje se alia com
uma estrutura patriarcal e racista, consolidada nas instituições e na estrutura Estatal.
A pauta dos Direitos Reprodutivos enquanto direitos humanos, dentro dos
movimentos feministas, precisa ter isto em mente para a elaboração de estratégias
políticas que garantam na prática a efetivação do direito das mulheres e dos homens
trans negros, negras e pobres destes países ao aborto seguro.

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656

REFLEXÕES SOBRE O ANDROCENTRISMO NA HIERARQUIA


SACERDOTAL DA IGREJA MESSIÂNICA MUNDIAL NO BRASIL

BRENO CORRÊA MAGALHÃES


Mestre em Ciências Sociais
Universidade do Estado do Rio de Janeiro
[email protected]

RESUMO: A partir da pesquisa de mestrado sobre a trajetória de três ministros da


Igreja Messiânica Mundial do Brasil (IMMB), uma Nova Religião Japonesa (NRJ), nas
décadas de 1970-1980, proponho neste artigo uma análise sociológica do marcador
social de gênero. Sendo as instituições religiosas mecanismos de controle e
reprodução social, busco tencionar os fundamentos do pensamento religioso
messiânico que naturalizam a divisão de gênero e a submissão feminina com base em
uma interpretação anacrônica dos ensinamentos do fundador, o que potencializa o
poder catalizador de um “habitus” marcadamente androcêntrico. O presente
trabalho baseou-se em minha experiência, de 17 anos, como insider do corpo
ministerial da religião e em entrevistas realizadas, tendo em vista analisar o
desenvolvimento da instituição na sociedade brasileira no período em questão. Dos
entrevistados, as vivências de duas senhoras, também sacerdotisas, me chamaram
atenção para a fragilidade da posição feminina na hierarquia sacerdotal e os
episódios nos quais foram/são vítimas de “violência simbólica”. Após levantamento
de informações quantitativas do quadro de sacerdotes, dados de maio de 2019,
seccionei a distribuição destes na hierarquia sacerdotal em três níveis hierárquicos:
diretivo, gerencial e operacional. Por meio destes dados, desejo refletir sobre a
posição da mulher na hierarquia sacerdotal. Apresento, por fim, reminiscências do
fundador no cotidiano com sua esposa e posturas que este tinha diante da sociedade
japonesa dos anos 1940 e 1950, marcadamente patriarcal, que ao caminharem na
contramão do senso comum da época seriam fundamentos para reflexões e debates
ulteriores sobre o tema objetivando desnaturalizar a condição de dominação de
gênero no seio institucional.

Palavras-chave: Sociologia da Religião; Religião e Gênero; Androcentrismo


Institucional; Igreja Messiânica Mundial; Novas religiões japonesas.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho decorre da análise interseccional de marcadores sociais


dentre a hierarquia sacerdotal da Igreja Messiânica Mundial do Brasil (IMMB)
realizada como parte de minha dissertação. Nesta a distinção de gênero no seio
657

institucional foi um tema transversal, mas que, no entanto, fez ressoar questões que
agora trago à tona.
A separação entre “sagrado” e “profano” como esferas opostas da vida
(DURKHEIM, 1996) são herança que na milenar tradição judaico-cristã estruturam as
relações de poder entre gêneros, segundo a escritura bíblica, desde Gênesis. A
mulher não é simplesmente criada a partir da costela do homem, é também
simbolicamente aquele que tomada pelo desejo não contido toma do fruto do
pecado, condição esta que leva o ser humano para fora do Jardim do Éden.
Alicerçada nesta tradição, toda forma de tentação da matéria que atormenta a
humanidade é associada à carne e a fragilidade da mulher. Em contrapartida,
demarcando ainda mais claramente as expectativas sociais da mulher ideal, que
resiste ainda hoje no campo religioso brasileiro, está a paradigmática figura feminina
da Virgem Maria. Virgem (sinal de castidade e pureza) e mãe ao mesmo tempo,
simbolizando o mito da “Mãe de Deus”, no qual se define a mulher pela maternidade
reduzindo-as a essa capacidade, dedicando todo o sentido de sua existência aos filhos
(TOMITA, 2006, p. 153).
Este fato pode ser observado também nas religiões afro-brasileiras. A
umbanda, por exemplo, nas quais com base nesta tradição cristã de separação entre
o bem e o mal, clivou o panteão de seus deuses entre os de direita e os de esquerda,
ou seja, os primeiros trabalham apenas para o bem enquanto os do segundo grupo
são invocados para “trabalhar para o mal”. Dentre estes uma das figuras mais
populares é a Pombagira, espírito de uma mulher “que em vida teria sido uma
prostituta ou cortesã, mulher de baixos princípios morais, capaz de dominar os
homens por suas proezas sexuais, amante do luxo, do dinheiro, e de toda sorte de
prazeres” (PRANDI, 1996, p. 141). Segundo Prandi, com base na moralidade cristã que
estabelece o código do certo e errado, não é de se estranhar que o culto a Pombagira
esteja no lado mais escondido destas religiões, “pois as motivações básicas do culto
também pertencem a dimensões do indivíduo muito encobertas pelos padrões de
moralidade da sociedade ocidental-cristã” (PRANDI, 1996, p. 161).
Inserida neste contexto religioso, a IMMB reproduz igualmente, com base em
princípios androcêntricos, um ideal de submissão da mulher tal como ficará
demonstrado por meio de dados quantitativos em relação à participação feminina
em sua hierarquia sacerdotal.

RELIGIÃO COM PRODUTO CULTURAL QUE REPRODUZ A DISTINÇÃO DE GÊNERO

Em minha observação, da interseccionalidade dos marcadores, na IMMB,


aquele que indiscutivelmente ficou claro, e isto nada tem de novo no universo
religioso, foi a distinção de gênero. Este fato não é novidade no campo religioso, pois,
ao menos no Brasil, as mulheres são maioria entre o corpo de fiéis enquanto a esfera
sacerdotal continua sendo seara masculina. Um verdadeiro “clube do bolinha”.
Segundo Sandra Duarte de Souza (2006, p. 41):
658
A ativa presença leiga feminina tem garantido a longevidade dos grupos
que frequentam, apesar de normalmente ocuparem posições de menos
prestígio. Talvez aí repouse a contradição que temos encontrado no campo.
Se, por um lado, as mulheres são a maioria e os sujeitos mais ativos no
grupo religioso, por outro, em termos proporcionais, são as que possuem
menos acesso às posições de poder institucional.

No caso da Messiânica constatei, igualmente, haver um “teto de vidro” (STEIL,


1997) a impedir a ascensão hierárquica de mulheres que se dedicam
profissionalmente ao sacerdócio na instituição. Tal como tantas outras Novas
Religiões Japonesas, muitas das quais fundadas por mulheres, à medida que seu
carisma se tornava rotineira (WEBER, 1991), “os homens assumiriam a chefia”
(HOLM; BOWKER, 1999, p. 215). A natureza contemporânea da igreja, fundada na
década de 1930 no Japão, apresenta alguns avanços diante de outras tradições ao
permitir o ordenamento de mulheres como ministras. Todavia, visto à luz do atual
debate em torno da igualdade de gênero, isto me parece insuficiente. Na verdade,
sinto que o fato de a instituição as admitir em seu corpo eclesial acaba contribuindo
ainda mais para uma condição de submissão e desigualdade de gênero, uma vez que
cria uma circunstância de aparente equidade de oportunidades. São estas condições
que criam o “teto de vidro”, ou seja, “uma barreira que, de tão sutil, é transparente,
mas suficientemente forte para impossibilitar a ascensão de mulheres a níveis mais
altos da hierarquia organizacional” (STEIL, 1997, p.62).
Neste sentido vale a teoria bourdiesina do habitus, uma força de tal modo
incorporada a subjetividade do indivíduo que o leva a reproduzir inconscientemente
as condições de sua própria dominação. Dito em outras palavras, a socialização
religiosa tende a alimentar a submissão de mulheres à posição de inferioridade no
seio familiar, na própria igreja e em todos os meios sociais, utilizando como
justificativas argumentos metafísicos de que esta distinção, de base biológica, é em
verdade revelação da vontade divina. Gebara (2006, p. 140-141) defende como grave
equívoco o fato que “somos capazes de afirmar a relatividade das produções
culturais, mas não somos capazes de reconhecer a igual relatividade de nossas
produções religiosas. Continuamos a atribuir-lhes uma origem transcendente que se
distancia do humano real”, por isso, segundo ela, “as teologias nada mais são que
expressões da cultura dominante e servem para manter os privilégios da cultura
dominante”.

JUSTIFICATIVAS À PREDOMINÂNCIA MASCULINA NO SACERDÓCIO COMO


PROFISSÃO

Bourdieu (2018, p. 24) afirma que na construção social da noção do próprio


corpo, a diferenciação biológica (anatômica) entre o masculino e feminino pode “ser
vista como justificativa natural da diferença socialmente construída entre gêneros e,
principalmente, da divisão social do trabalho”, reservando aos homens o espaço
público, ao passo que para a mulher, o privado. Desta forma, a matriz desta ordem
androcêntrica está inscrita nos próprios corpos, na própria rotina “da divisão do
659

trabalho ou dos rituais coletivos ou privados” (BOURDIEU, 2018, p. 41), o que por sua
vez faz com que as diferenças biológicas pareçam pressupostos fundamentais que
estão na base das diferenças sociais.
Observei que a clivagem social do trabalho associada às expectativas da Igreja
em relação aos que realizam o trabalho missionário implica impedimentos à carreira
por mulheres. Creio que no âmbito do exercício sacerdotal da IMMB, tal como define
Castro (2016) acerca do perfil de trabalhador de Tecnologia da Informação (TI), a
prerrogativa de flexibilidade e disponibilidade plena para o atendimento das
demandas institucionais acentuem a divisão de gênero nela existente. Uma vez que
na relação entre a vida privada familiar e a do trabalho as tarefas de reprodução não
são consideradas como parte desta:

Quando pensamos em papéis tradicionais de gênero, com as mulheres


responsáveis pelas tarefas ligadas à reprodução da vida, tais quais os
cuidados da casa, dos filhos e da família, notamos que essa ideia de
disponibilidade total não pode ser performada por todos os trabalhadores
(CASTRO, 2016, p. 187).

Esta divisão sexual do trabalho é uma das justificativas utilizadas pela IMMB
para explicar a posição secundária reservada às ministras. Matsuoka (2007, p. 187,
tradução nossa) deixa isto claro quando aponta que:

Tanto no Japão quanto no Brasil, a Messiânica coloca importância


primordial no kaitaku fukyo - propagação em áreas onde ainda não há
seguidores. No Brasil, essa política doutrinária acabou sendo uma desculpa
para dar menos importância ao sacerdócio feminino, porque se afirma que
é perigoso demais permitir que elas realizem tal atividade211.

Contudo, esta alegação do suposto perigo a que estão expostos sacerdotes no


desenvolvimento da difusão pioneira não tem plausibilidade uma vez que de modo
geral a IMMB se estabeleceu, sobretudo, nos grandes centros urbanos, onde possui
unidades relativamente bem estruturadas. Caso esta justificativa baseada no caráter
“desbravador” tivesse de fato alguma lógica, aplicar-se-ia a áreas geográficas
limitadas e em casos pontuais.
Com base em dados de março de 2019, obtidos junto a IMMB, analisei a
distribuição de sacerdotes em três níveis da estrutura funcional da organização, a
saber: diretivo, gerencial e operacional. No estrato de base há uma proporção de
54,20% de homens para 45,80% de mulheres; no nível gerencial a desproporção é
abissal, são 94,51% de homens para 5,49% de mulheres. Na direção da IMMB não
existe uma representante sequer do gênero feminino. Embora no seio institucional

211
O texto em língua estrangeira é: “In both Japan and Brazil, Messianity put prime importance in kaitaku fukyo
(propagation in areas where there are not yet any followers). In Brazil, this doctrinal policy has turned out to be
an excuse for putting less importance on female clergy because it is claimed that it is too dangerous to allow
them carry out such a program”.
660

lhes falte espaço, é no trabalho pastoral, aquele cotidiano das unidades religiosas que
implica o atendimento aos fiéis, a organização do funcionamento da igreja, a
celebração diária dos ofícios religiosos e a difusão do Johrei e dos ensinamentos do
fundador que elas são maioria. Neste nível da estrutura funcional que classifiquei de
operacional atuam, sobretudo, como responsáveis de unidades religiosas ministros
dedicantes. Aqui o jogo se inverte as mulheres são 61,43% para 38,57% de homens.
Estes dados reforçam que mesmo nas “posições dominantes, que elas ocupam
em número cada vez maior, situam-se essencialmente nas regiões dominadas da área
do poder”, ou seja, exercem o trabalho comunitário de base nas igrejas, tal como se
pensa ser seu papel no lar, aonde se credita a elas as tarefas regulares e
desvalorizadas na disputa de bens simbólicos, tais como: cuidar dos filhos,
administrar as tarefas do lar dentre outras (BOURDIEU, 2018, p. 129).
Como afirmou-me uma de minhas entrevistadas na pesquisa de mestrado, “o
trabalho missionário foi, é e sempre será alavancado pelas mulheres”. Nas décadas
de 1970 e 1980 isto ocorria sobretudo pela maior disponibilidade de tempo, visto que
muitas mulheres viviam ainda exclusivamente para a vida familiar. “Antigamente as
mulheres ficavam em casa. [Na igreja] tinham que fazer reunião durante a semana,
visitavam as pessoas, faziam assistência religiosa em hospital”. Esta ministra disse-me
que apesar de as transformações ocorridas com a entrada das mulheres no mercado
de trabalho terem “mudado a cara da igreja”, acredita que “ainda estamos aquém do
deveria ser”, deixando clara sua crítica ao fato de apenas uma mulher brasileira [in
memorian], em cerca de 65 anos desde o estabelecimento da igreja no Brasil, ter
alcançado o título de ministra dirigente (reverenda), grau máximo da carreira
sacerdotal.
A despeito das competências e capacidade das ministras, as posições
superiores de planejamento e orientação de outros sacerdotes, por exemplo, dos
níveis diretivo e gerencial, ainda hoje continuam sendo território para homens. Ou
seja, na IMMB há um local reservado as mulheres no qual são escassas as
possibilidades de ascensão o que reforça a lógica da dominação masculina. Dados
como os apresentados até aqui demostram o quanto estão marcados pelo gênero os
níveis, as carreiras e cargos na hierarquia da instituição.

REFLEXÃO A PARTIR DE EXEMPLOS DO FUNDADOR

Neste sentido a Igreja não rompe com esta lógica, embora haja, nas posturas e
ensinamentos de seu fundador, elementos suficientes para que ao menos se
refletisse sobre ela. Um caso singular do que aqui exponho é a designação, por
Meishu-Sama (fundador da IMM), da então ministra Kiyoko Higuti para a primeira
missão de difusão da Igreja Messiânica Mundial em um país estrangeiro. Ela foi
enviada ao Havaí, nos Estados Unidos da América (EUA), em 11 de fevereiro de 1953
juntamente com o também ministro Haruhiko Ajiki (FUNDAÇÃO MOKITI OKADA,
2007, p. 208). A saga pioneira de uma mulher fazendo difusão da Igreja nos EUA foi
tema de diversas reportagens e notícias em publicações da instituição no Japão,
tendo inspirado outras pessoas a se entregarem ao que se denominou difusão
661

mundial. Teruko Sato que veio ao Brasil em 1954, como migrante agrícola, é um
exemplo (TOMITA, 2014, p. 56).
Não indicariam estes exemplos uma clara disparidade entre a postura
demostrada por Meishu-Sama e os rumos tomados pela IMM no Brasil? Enquanto as
justificativas repousam sobre a suposta maior disponibilidade dos sacerdotes homens
para as designações missionárias da instituição, permanece sem reflexão, em seu
cerne, a questão da posição da mulher na concepção teológica messiânica.
Segundo Steil (1997, p.65), a demografia organizacional, cuja concentração de
mulheres se restringe a posições hierárquicas inferiores, tende a ser justificada com o
argumento que “ligações extensivas com a família, como o casamento e filhos” são
fatores que “podem diminuir o comprometimento organizacional de homens e
mulheres”. Esta visão, porém, é a reafirmação da ideia dominante.
É possível encontrar referências diferenciadas nas posturas de gestão
organizacional e da vida cotidiana do fundador que muito se distinguiam dos padrões
japoneses da época, como por exemplo, seus cuidados com a família e o trato com a
esposa. Na constituição da tradicional família japonesa “um homem ocupar-se de um
bebê em público era algo inconcebível”, uma vez que “demonstrar afeto e cuidar de
um filho eram tarefas exclusivas das mulheres”. A nova ordem social estabelecida no
pós-guerra marcou definitivamente a transformação dos lares japoneses, nos quais
até então era comum, no espaço público, a “imagem da mulher andando
obrigatoriamente a dois passos atrás do marido, muitas vezes ainda carregada de
embrulhos e segurando as crianças pelo braço” (SAKURAI, 2007, p. 310).
Na coletânea de reminiscências sobre o fundador, sua esposa, Yoshi Okada em
seu depoimento registra a forma pela qual Meishu-Sama a tratava publicamente.
“Era muito raro ver marido e mulher saírem juntos. Assim, chamávamos muito
atenção das pessoas, o que me inibia às vezes. Contudo, Meishu-Sama não se
importava com o olhar dos outros. Neste ponto, também podemos perceber como
ele era uma pessoa extremamente moderna” (OKADA, 2003, p. 29). Sua terceira filha,
Itsuki Okada (2003, p. 84-85) faz igualmente menção a esta mentalidade progressista
da personalidade do pai:

Antigamente, a família era constituída de forma que, em geral, o marido


posicionava-se num nível acima da esposa e dos filhos. No entanto, Meishu-
Sama mantinha uma relação de igualdade com Nidai-Sama, em que os
filhos tinham nos pais o mesmo grau de referência.

Desde modo, figuram, não raro, na prática discursiva da liderança da IMMB,


afirmações desta natureza sobre o tratamento de Meishu-Sama para com a esposa
como forma de demonstrar o quanto o fundador era um homem “a frente de seu
tempo”. No entanto, estas são ideias que me parecem nem sempre passarem das
palavras à prática como se tornou evidente no levantamento documental em
periódicos da IMMB, considerando o recorte de minha pesquisa: décadas de 1970 e
1980, que a concepção sobre o papel e posição da mulher, estavam idealizados em
concordância com valores tradicionais da época.
662

CONCLUSÃO

No presente artigo apresentei dados para uma análise da distinção de gênero


na hierarquia sacerdotal da IMMB. Ficou claro que sob justificativas de ordem
religiosa é construída uma trama que não apenas justifica como reproduz a
dominação masculina construída historicamente a partir da distinção de gênero que
tem na família, igreja, escola e estado os principais instrumentos de reprodução das
estruturas objetivas geradoras da violência simbólica, da qual as mulheres são
vítimas. Desta forma, este trabalho buscou contribuir com reflexões acerca do tema
religião e gênero, desnaturalizando o androcentrismo institucional existente na
IMMB.

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664

UM CORPO HERÉTICO NO RAP: RELIGIÃO E EROTISMO EM


ALICE GUÉL

BRUNO DE CARVALHO ROCHA


Mestrando em Ciências da Religião
Universidade Metodista de São Paulo
[email protected]

RESUMO: Esta comunicação tem como objetivo apresentar e analisar a obra da


rapper Alice Guél em uma perspectiva dos estudos em teopoética. Em meio a
realidade periférica brasileira, o rap se apresenta enquanto um tipo de literatura
marginal, oral e urbana capaz de representar e construir imagens de um cotidiano
pouco visto. Mesmo marcado historicamente por uma hegemonia masculina
heteronormativa, a música e a cultura em torno do rap são constantemente
atravessados por novas questões sobre identidade de gênero, raça e classe. Alice
Guél se desenvolve entre os diversos conflitos sociais relacionados a um corpo negro
e transgênero, reivindicando por meio de sua poesia uma experiência religiosa
singular. Enquanto mulher trans, seu corpo é suporte para novos sentidos teológicos
e artísticos, sendo este corpo um lugar hermenêutico central para o estabelecimento
de uma poética erótico-herética profana, contestatória e política. Veremos neste
trabalho como Guél se encontra com o rap em sua recente trajetória, quais as suas
influências estéticas e o contexto sócio-religioso em que é formada. Sua obra será
contextualizada dentro do rap nacional a partir das recentes discussões e reflexões
sobre gênero dentro do rap e da cultura hip-hop. Para concluir, analisaremos dois
álbuns de Alice Guél, refletindo alguns conteúdos do seu rap em diálogo com
filósofos da religião e teólogos, sem pormenorizar a singularidade do seu texto e de
sua experiência em detrimento à qualquer teoria ou tradição religiosa. Assim,
mostraremos o lugar que o corpo transgênero exerce em sua obra enquanto meio
poético em que se produz e reelabora diferentes teologias e experiências religiosas.

Palavras-chave: Alice Guél; Rap; Teopoética; Erotismo; Corpo.

INTRODUÇÃO

Alice Vilas Boas, conhecida como Alice Guél, nasceu na periferia de Indaiatuba,
interior de São Paulo. Sua carreira se estabeleceu no rap, gênero musical popular que
aos poucos ganha o seu espaço na cultura nacional. Mesmo com um público
historicamente estabelecido na periferia, majoritariamente entre homens e jovens,
nos últimos 15 anos, principalmente por conta da internet e pelos meios de
665

comunicação, o rap alcançou as classes sociais médias e altas e se democratizou


como um gênero plural quanto ao seu uso, acesso e produção.
Por meio de grupos coletivos e produções independentes, a internet
disponibiliza hoje aos agentes do rap caminhos mais dinâmicos de divulgação,
organização e acesso à compra de equipamentos. Abrem-se, então, possibilidades
para uma nova geração de artistas, músicos e mc’s 212 dos mais diversos locais,
assuntos e estética. Uma antiga geração conhecida pelo posicionamento contrário à
associação do rap aos grandes meios de comunicação (TV e gravadoras), com
extremas dificuldades financeiras para produzir e divulgar o material, dá espaço para
artistas cada vez mais populares nas mídias sociais, advindos de classes sociais e
gêneros diversos (mulheres negras e comunidade LGBT). Essa “nova escola” do rap
administra produções e marcas independentes, se apropriam de espaços midiáticos,
entre programas diversos e participações em rede de televisão. Alice Guél se constitui
como parte dessa nova geração do rap que propõe novos discursos, novas estéticas e
novos públicos. Como veremos, ela dispõe seu corpo, sua voz e sua escrita para um
novo tempo, fazendo do erótico seu fazer político e teopoético.

VIDA E OBRA

Desde pequena Alice Guél tem contato com diversas linguagens da arte. Em
entrevista, ela relata que aos 9 anos, sua madrinha a colocou para treinar futebol.
Essa experiência havia se tornado ao longo dos treinos, tediosa e sem funcionalidade,
visto que não conseguia compreender muito bem as posições (p.ex “zaga”) e as
regras dentro do jogo (GUÉL, 2017). Relata também que o local em que treinava
junto com os meninos, separava-os das meninas213. Esportes “radicais” eram
direcionados aos homens – onde o futebol se encaixava – e atividades mais “calmas”
às mulheres (GUÉL, 2017). Neste contexto Guél se encontra com a dança, uma das
atividades que as meninas daquele projeto eram automaticamente incentivadas.
Com a curiosidade e o objetivo de saber como eram as aulas de dança e o que essas
meninas faziam, enquanto ela lidava com as suas dificuldades no futebol, diz Alice
Guél: “eu lembro que uma vez eu fui, ‘loki’ doida assim, meio que fazendo a sonsa,
‘ah, errei de lugar gente, na boba’. E comecei a fazer [dança]. Fiz uma aula de Jazz, daí
todo mundo começou a falar que eu me dava super bem” (GUÉL, 2017).
A necessidade que Alice Guél tem de falar, denunciar e expor a sua realidade
enquanto corpo transexual, negro e periférico, finalmente encontra lugar na cultura
hip-hop. Os quatro elementos que formam esse movimento (Dj, Mc, grafite e B-Boy),
em suas diversas formas de expressão e função, tem como característica transmitir
uma mensagem socialmente engajada e que transcreva a realidade do sujeito e suas

212
Sigla para “Mestre de Cerimônia”, aquele que é responsável por conduzir o público através do canto ou da
fala, a um tipo de comportamento de ânimo, seja em apresentações artísticas ou qualquer outro espaço.
213
Alice Guél descreve as tensões e conflitos em relação à transsexualidade em sua infância: “Pra mim eu tava
fantasiada de menino, até nove anos/Nove anos com uma fantasia quente, e pinicante” (GUÉL, “Intetrlude I”,
2017b); "Vixe, que criança estranha!/ O que tem entre as pernas é minhoca ou aranha?" (GUÉL, “Deus é
travesti”, 2017b).
666

dimensões. O rap (Rhythm and Poetry/ritmo e poesia), compreendido neste artigo


como “literatura oral urbana”214, evoca uma presença social. Sua essência se dá entre
ritmo (corpo, performance e musicalidade) e o fazer poético (oralidade, narrativa e
ficcionalidade). Abordando assuntos diversos, o rap carrega um princípio transgressor
– próprio de sua origem multirracial e periférica215 – ante as ordens sociais
autoritárias e desiguais, para o resgate da voz, do corpo e da imaginação poética dos
excluídos (OLIVEIRA, 2015, p. 36). O rap contém um “esforço pragmático em
relacionar forma estética e realidade social” (SALGADO, 2015, p.154), consolidando
uma “forma de agenciamento comunitário e de resistência cultural” (SALGADO, 2015,
p.153).

TENSÕES SOBRE GÊNERO NO RAP

Nota-se no rap brasileiro, como na maioria dos espaços desta sociedade, o


protagonismo masculino e sua normatividade quanto ao estabelecimento de padrões
em relação a identidade de gênero e a sexualidade. Não que as mulheres não
estivessem presentes desde o início do movimento hip-hop, influenciando,
desenvolvendo e produzindo em todas as linguagens que caracterizam essa
cultura216. Fato é que a participação desta sempre esteve invisibilizada ou
subalternizada. Tanto pela estrutura patriarcal que nega/direciona a participação da
mulher nos espaços sociais e culturais convenientes quanto pelo machismo intrínseco
no comportamento, na linguagem e nas relações simbólicas que a
heteronormatividade cis217, binária218, impõe às outras formas de construção de
gênero.
Nas primeiras coletâneas de rap produzidas no Brasil, por exemplo, das 17 músicas
presentes em “Hip-hop cultura de rua” (1988) e “Consciência Black Vol. 1” (1989),
apenas neste último consta a presença feminina na música “Nossas dias”, cantada
por uma mulher negra chamada Sharylaine219. Grupos e nomes considerados como

214
Conceito desenvolvido pelo professor de literatura Marcus Salgado. Ele diz que o rap é produto da tradição
oral africana, carrega em sua identidade traços de uma musicalidade mítica e performativa: “No código
genético, o rap traz um regime estético em que se entrelaçam som e palavra. Esse regime insere-se
plenamente numa tradição cultural de matriz africana na qual se verifica a sobrevivência das formas orais de
literatura” (SALGADO, 2015, p.151).
215
“Diz-se que o rap despontou primeiramente nos Estados Unidos, guardando relação direta com a presença
de imigrantes negros e latinos nesse país, em meados dos anos 1970. Destaca-se a chegada dos jamaicanos
entre 1960-1970”. (OLIVEIRA, 2015, p.34)
216
No documentário “Nos tempos da São Bento” apresenta depoimentos e filmagens das mulheres que
estavam presentes no início do movimento hip-hop em São Paulo, principalmente através do rap e da dança (b-
girl). Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=z8FtIypGeVs. Acesso em: 18 maio de 2020.
217
O termo “cis” se refere à pessoa que identifica o sexo de nascença com o seu gênero.
218
O termo “binário” se refere à ideia de que existem dois gêneros: homem e mulher.
219
É importante mencionar que sua letra já continha reivindicação política quanto a espaço e reconhecimento
para mulheres negras: “Nós blacks sabemos pensar/ E sobre a vida podemos então opinar/ E assim eu vou
levando harmonia, folia, ironia, critica, auto-critica ligados a política/ Vida de todos analisando é verídica,
artística, enfim/ Eu estou aqui e tudo aceitando não sabendo até quando, em quanto isso vou rezando e aos
poucos esperando por que tudo vai mudar/ Disseram então que eu não poderia cantar/ Que para outros
667

referência na história do rap nacional, como Thaíde e Dj Hum, Ndee Naldinho e


Racionais Mc’s, contribuíram não somente para a evolução e popularização do
gênero musical, sua estruturação política e estética. Mas com a estigmatização da
mulher, hiperssexualização e discurso de ódio contra mulheres e comunidade LGBT,
consolidando uma postura machista sobre o papel e do ethos feminino: como
propriedade masculina, culpada por seduzir o homem e pelo seu “mau”
comportamento:

“Mulher e dinheiro, dinheiro e mulher/ Sem os dois eu não vivo qual dos
dois você quer/ Mesmo que isso um dia, traga problema/ Ir pra cama
sozinho, não vira esquema/ Segunda (a Patricia)/ Terça, a (Marcela)/
Quarta, a (Raíssa)/ Quinta, a (Daniela)/ Sexta, a (Elisângela)/ Sabado, a
(Rosângela)/ E domingo? É matinê, 16 o nome é Ângela” (RACIONAIS MC’S,
“Estilo Cachorro”, 2002).

“Mestiça, negra ou branca, sempre sai uma vagabunda”; “Tire da cabeça


que mulher é incapaz/ Capaz ela é, e mentirosa o quanto quiser/ Nunca se
sabe o que se passa na cabeça dela/ Muda a cada instante de cão pra
cadela” (RACIONAIS MC’S, “Parte II”, 1993).

“As mina geme crime, não o creme” (THAÍDE, “Viagem na rima”, 2000).

“Ela me chame pro cacete e já começa a dar porrada/ Xingo ela de piranha,
de bico de galinha/ Digo lugar de mulher meu bem/ É na cozinha”. (NDEE
NALDINHO, “E essa mulher? De quem é?”, 1991).

“Com muita alegria ele roda a cidade/ Conhecendo pessoas, fazendo


amizade/ Andando pela rua veja quem encontrei/ Meu vozinho caduco,
batendo num gay”. (PEPEU, “Hey vovô, 1989).

“Não quer ser considerada símbolo sexual/ Luta pra chegar ao poder,
provar a sua moral (...) Seu jeito vulgar, suas idéias são repugnantes/ É uma
cretina que se mostra nua como objeto/ É uma inútil que ganha dinheiro
fazendo sexo”. (RACIONAIS MC’S, “Mulheres vulgares”, 1990).

“Vocês consagraram o estilo cachorro” (RACIONAIS MC’S, “Estilo cachorro”,


2002).

“ALICE NO PAÍS QUE MAIS MATA TRAVESTIS”

O ep “Alice no país que mais mata travestis” tem 6 faixas, sendo 3 músicas e 3
“intervenções que ligam as músicas como um chiclete grudento, dramático e
viciante” (GUÉL, 2018). Entre esses interlúdios estão algumas falas 220 e

grupos eu era 13 de azar/ Não ligue meu bem que isso é prosa/ E se tudo se renova Sharyline está à toda
prova/ Esta à todo prova rap girl”. (SHARYLINE, “Nossos dias”, 1989).
220
São colagens de áudios que mostram a fala de transexuais que ficaram conhecidos pela mídia. Por
exemplo:“Mexer com travesti não é bagunçado não... É só o começo viu (...) Que a gente somos seres humanos
também” (ALICE GUÉL, “Interlude III ‘Breu’”, 2017).
668

experimentações sonoras diversas (barulhos, vozes não identificadas, remix de


músicas e instrumentais). A primeira música “As coisas vão mudar” apresenta um
discurso de empoderamento da mulher trans, negra e periférica: “Não estranha, não,
viu?/ É o comecinho tio/ Vocês não mata os homo/ Estupra as mana até o fim?/
Então, agora aceita/ Abaixa o pau, a bola e a mão pra mim”. A linguagem
sexualmente explícita é proposital, marca de forma incômoda e real algumas
dinâmicas da experiência sexual transexual vivida entre violência, preconceito e
experiência erótica: “Só quer me comer se for no beco escuro/ Mas tu não me ganha
só com esse seu pau duro/ Não é você quem diz: - Eu não pego travesti/ Alguém por
favor tira logo ele daqui”.
As outras duas músicas “Deus é travesti” e “Meu templo” revelam aspectos de
uma poética-erótica com elementos e figuras de uma experiência religiosa cristã. O
acesso a Deus na obra gueliana se dá a partir do corpo transgênero, sendo a
sexualidade e o desejo erótico o lugar poético de revelação/relação com sagrado. O
filósofo Georges Bataille, em seu livro “O Erotismo” (2017), diz que o ser humano é o
único animal que faz da prática sexual de reprodução uma atividade erótica, ou seja,
não é simples reprodução de espécie, mas um ato racional que busca prazer e
realização. O ato sexual relacionado à atividade erótica é o desejo de “continuidade”
(transcendência) do qual o filósofo diz atrelar-se à nossa realidade “descontínua”
(imanente). Bataille (2017, p. 38) afirma: “O espermatozóide e o óvulo são, em seu
estado elementar, seres descontínuos, mas se unem e, em consequência, uma
continuidade se estabelece entre eles para formar um novo ser a partir da morte”.
Esse desejo de continuidade determina três formas do erotismo: o erotismo dos
corpos, o erotismo dos corações e o erotismo sagrado (BATTAILE, 2017, p. 39). A
questão envolvida no erotismo é a substituição do isolamento existencial do ser
descontínuo por uma experiência de continuidade profunda estabelecida através do
“corpo”, do “coração” e do “sagrado”, efetivado na experiência mística, sexual-
erótica e no sentimento amoroso.
A música “Deus é travesti” é atravessada por elementos, frases e figuras de
linguagem, que mostram esse desejo que o eu-lírico tem em estabelecer uma
experiência – classificada por Bataille – de “ continuidade”, proporcionada pelo
“erotismo dos corpos” e pelo “erotismo sagrado”. A poesia começa com uma alusão
parafraseada do “Pai-nosso”: “Travesti nossa que estais no céu/ Santificado seja o
nosso nome”. Há nesses versos uma reivindicação de uma experiência religiosa que
passe necessariamente pelo pertencimento de uma identidade de gênero social e
religiosamente marginalizada, que dá significado e valor positivo ao sujeito travesti.
Além disto, troca a posição hierárquica já pré-estabelecida pelo cristianismo entre
Deus e os “homens”. Neste caso, a divindade é destituída ou repartida de sua posição
sagrada estando diante de um sujeito transexual também sagrado. Ao fazer sua
oração ao “Deus travesti”, Guél afirma que a santidade não está no nome divino, nem
que os planos “terra” e “céu” sejam determinantes para estabelecer a noção de
sacralidade, mas que o nome e a vontade das travestis que estão na “esquina”
também são dotados de sacralidade: “Alice, Cecília, Eloá, Érika, Olga/ Amara, Ela,
669

Ametista, Alicia/ Seja feita a vontade das vadias/ Assim na Terra como em qualquer
outra esquina/ A woman” (GUÉL, 2017b).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A obra de Alice Guél se apresenta como desafio tanto para a o rap brasileiro
como para a teologia cristã. De maneira inédita, ela pode ser encontrada não só entre
as mais prestigiadas obras contemporâneas de rap, mas entre a as produções
literárias de gênero marginal que aos poucos conquista seu espaço entre os estilos
literários consolidados. A experiência primária dessa poesia vem da oralidade e da
escuta, se consagrando como literatura do cotidiano, escrita da vida, experiência
erótica e religiosa de um sujeito transgênero. Esta análise se faz pertinente não só
enquanto afirmação de teologias já estabelecidas, mas no estabelecimento da
autonomia da obra gueliana e seus aspectos teológicos próprios. Não só para os
estudos entre poesia e teologia, mas nos estudos de literatura e religião, o fator
“religião” se constitui como base para qualquer tipo de interpretação que se
pretenda fazer sobre a literatura oral urbana de Alice Guél.

REFERÊNCIAS

BATAILLE, Georges. O erotismo. Tradução Fernando Scheiber. 1 ed. 2 reimp. Belo


Horizonte: Autêntica Editora, 2017.
GUÉL, Alice. 1 vídeo (7min 28s) Publicado pelo canal Caneca LAB. 2017. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=53njCW7lkZw&list=LLZ_PP-uZa1fCyF-
XA_MiE3Q&index=15&t=0s. Acesso em: 13 maio 2020.
GUÉL, Alice. Alice Guél no país que mais mata travestis. Hendrix War: 28 fev. 2018.
Entrevista concedida a Fábio Nunes. Disponível em:
https://hendrixwar.wordpress.com/2018/02/28/alice-guel-no-pais-que-mais-mata-
travestis. Acesso em: 13 maio 2020.
GUÉL, Alice. 1 vídeo (30min 28s) Publicado pelo canal Batalha Dominação. 2019.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=GMgZkAnqzxw. Acesso em: 19
maio 2020.
OLIVEIRA, Roberto Camargos. Rap e política: percepções da vida social brasileira. São
Paulo: Boitempo, 2015.
SALGADO, Marcus Rogério. Entre ritmo e poesia: rap e literatura oral urbana. Scripta,
Belo Horizonte, v.19, n.37, p.151-163, 2. sem. 2015.

Musicografia:

ALICE GUÉL. Alice no país que mais mata travestis, 2017b. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=T9KV8gLkihE&t=9s. Acesso em: 14 maio 2020.
670

ALICE GUÉL. Alice em frente ao espelho, 2019. Disponível em:


https://www.youtube.com/watch?v=09NtDJYCbj0&list=PLPdjKhiDQb8A0albtYy7lc1Xlj
qpl2oJf. Acesso em: 18 maio 2020.
PEPEU, “Hey vovô”. Album: The Culture of Rap, 1989. Disponivel em:
https://www.youtube.com/watch?v=Df4HQbYJLhY. Acesso em: 19 maio 2020.
RACIONAIS, “Estilo Cachorro”. Album: Nada como um dia após o outro dia, 2002.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=JQE4aZhytkc. Acesso em: 19
maio 2020.
RACIONAIS, “Parte II”. Album: Raio-X no Brasil, 1993. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=cOje25eSXPo. Acesso em: 19 maio 2020.
RACONAIS, “Mulheres vulgares”. Album: Holocausto urbano, 1990. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=E59EBZwoPFg. Acesso em: 19 maio 2020.
THAÍDE, “Viagem na rima”. Album: Assim caminha a humanidade, 2000. Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=Jwrq2J3HeEk. Acesso em: 19 maio 2020.
ALICE GUÉL, “Interlude I”. Álbum: Alice no país que mais mata travestis, 2017.
Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=T9KV8gLkihE&t=9s. Acesso em:
14 maio 2020
SHARYLINE, “Nossos dias”. Album: Consciência Black Vol. I, 1989. Disponivel em:
https://www.youtube.com/watch?v=CXN21X2YrWk. Acesso em: 19 maio 2020.
671

DADOS SOBRE OS SEM RELIGIÃO NA PESQUISA NACIONAL


DO PERFIL LGBTI+ 2018: APONTAMENTOS SOBRE O SENSO
RELIGIOSO

SANDSON ALMEIDA ROTTERDAN


Doutorando e Mestre em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, bolsista CAPES
[email protected]

RESUMO: No ano de 2018 o Instituto Brasileiro de Diversidade Sexual (IBDSEX)


promoveu ampla pesquisa, com 8.992 entrevistados, para traçar o perfil das pessoas
LGBTI+ no Brasil e nessa pesquisa também foram levantados dados com relação às
pertenças religiosas. Do total de pesquisados 15,7% afirmam não ter nenhuma
religião; 15,2% se declaram ateus; 10,8% agnósticos e 5,8% dizem não saber a qual
religião pertencem. Esses dados apontam para um aspecto importante para se
compreender o senso religioso de pessoas LGBTI+, uma vez que apontam para um
grande número de pessoas não filiadas a alguma instituição religiosa, diferentemente
da média nacional de pessoas sem religião, segundo o censo do IBGE 2010, no qual
este segmento conta com 8,04% das declarações religiosas. Com a presente
comunicação pretende-se interpretar os dados sobre religião, identificar os vestígios
religiosos que se pode encontrar nos dados da pesquisa. Como referência para a
interpretação desses dados, tomar-se-á os estudos sobre senso religioso
contemporâneo, produzidos pelo grupo de pesquisa religião e cultura, do Programa
de pós graduação em Ciências da Religião da PUC Minas, bem como referências das
Teorias e Teologias Queer. O que se pode aferir nos dados é que há um
enfraquecimento da religião em meio a pessoas LGBTI+, o que não significa que haja
um desaparecimento de crenças ou práticas religiosas por completo. A partir disso,
aponta-se que no meio LGBTI+ há um enfraquecimento das instituições religiosas
mais acentuado que em outros segmentos da população brasileira, o que pode ser
uma consequência da maneira com que o cristianismo, religião hegemônica no Brasil,
compreende a sexualidade humana.

Palavras chave: Senso religioso; Sem religião; LGBTI+.

A presente comunicação tem por objetivo refletir acerca dos dados sobre
pessoas sem religião que constam na pesquisa sobre o perfil da população LGBTI+
promovida no ano de 2018 pelo Instituto Brasileiro de diversidade sexual e os
apontamentos que esses dados para a compreensão do senso religioso de pessoas
LGBTI+ sem religião. Em um primeiro momento situamos o que entendemos sobre
senso religioso, buscamos os apontamentos sobre o mesmo nos dados da pesquisa e
672

construímos uma interpretação provisória acerca do senso religioso. A comunicação é


uma síntese do capítulo que escrevemos para a obra “Ensaios sobre o perfil da
comunidade LGBTI+”, pela coleção Livres e Iguais, do IBDSEX.
A contribuição que queremos trazer para este GT, no que tange à temática
religião de gênero, é pensar sobre o senso religioso de pessoas LGBTI+ sem religião.
Este tema do senso religioso não é um consenso acadêmico. De antemão, precisamos
dizer que não tratamos como senso religioso uma abertura pretensamente natural
que o ser humano teria para a transcendência ou uma abertura para qualquer Deus
que se pudesse crer.

Falar do senso religioso contemporâneo é hoje abordar algo, a religião (uma


instituição) e, ao mesmo tempo, o sentimento religioso (uma herança).
Contudo, tem ficado evidenciado em nossa reflexão que aquela religião
hegemônica, institucionalizada, na força de seus dogmas e capacidade para
determinar um comportamento moral, já não é mais o que chegou a ser um
dia. Sobrou fragmentos de um passado, de uma teologia, de uma
cosmovisão, de uma moralidade. (SENRA; ROTTERDAN 2015, p. 118).

Quando estudamos sobre religião, sobretudo no Ocidente, não podemos


negligenciar que, histórica e socialmente, o cristianismo não é mais, embora algumas
instituições ainda queiram ser, o cânone que estabelece a norma, que demarque as
fronteiras entre o certo e o errado, entre o permitido e o proibido. A secularização
permite olhares perspectivísticos, a subversão daquilo que fora normatizado, muito
embora isto não seja um dado, uma conquista a ser celebrada. É mais um processo
que um dado, mais uma tarefa do que um dom.
Contudo, há vestígios ainda muito fortes da moral cristã que tenta se impor e
manter ou colocar as sexualidades que não se encaixam no cânone. Em sua obra
“Epistemologia do Armário”, Eve Kosofky Sedgwick (1998, p. 92) escreve que “até no
âmbito individual é notável as poucas pessoas inclusive entre as mais abertamente
gays que não estão deliberadamente no armário com respeito a alguém que é
pessoal econômica ou institucionalmente importante para elas”. 221 Há, na sociedade,
muito do que foi estabelecido e naturalizado como norma a ainda fazer permanecer
em algum armário sexualidades dissonantes.
O cristianismo, religião hegemônica na sociedade brasileira, tem um papel
importante na formação do ethos brasileiro, no qual prevalece a heterossexualidade
como padrão de normalidade da performance de gênero. Aquilo que escapa a essa
norma é anatematizado, deve ser excluído do convívio da sociedade cristã, que tem
na família - compreendida como a união de homem e mulher, tendo em vista a
procriação - a sua célula mater. A religião ainda quer impor os parâmetros de bem,
de sociedade e de verdade que cabem a todas as pessoas seguir. O cristianismo quer

221
Hasta en el ámbito individual es notable las pocas personas, incluso entre las más abiertamente gays, que no
están deliberadamente en el armario con respecto a alguien que es personal, económica o institucionalmente
importante para ellas.
673

se mostrar como a via segura de salvação. Nele há uma receita, um modelo que, se
seguido fielmente, levará a sociedade à redenção.
As Igrejas cristãs, contudo, salvo as exceções das que se autointitulam
inclusivas, sempre manifestaram algum grau de intolerância com relação aos
LGBTQI+. Isso porque as práticas sexuais LGBTQI+ não se encaixam naquilo que as
igrejas compreendem como a ordem natural das coisas, ou seja, as relações sexuais
seriam lícitas e se encaixam no ideal de bem se tivessem como finalidade a
procriação e não somente a dimensão unitiva entre o casal e, menos ainda, o prazer
sexual puro e simples. Esses LGBTQI+, apesar de não se encaixarem no protótipo de
família da sociedade cristã, vivem nessa sociedade e é inevitável que sejam, em
alguma medida, atravessados pelas crenças e ideais morais do cristianismo
hegemônico, independentemente de se considerarem parte ou não da religião cristã.
Há um grupo no meio LGBTQI+ que fica à margem das discussões teológicas e
morais que acontecem no interior das igrejas e teologias cristãs. Talvez, o processo
de secularização o tenha feito prescindir da disputa de narrativas, ou ainda, de querer
a acolhida no seio das igrejas para que fossem assim, respeitados os seus direitos
fundamentais. Com relação a essas pessoas LGBTQI+ que se desvinculam da pertença
religiosa, uma questão pertinente que se impõe é, se essa desvinculação acontece no
intuito de se construir um caminho de liberdade, diante carga da pregação da moral
religiosa heterossexista.
A pesquisa Perfil Nacional da População LGBTI+, do Instituto Brasileiro de
Diversidade Sexual (IBDSEX), realizada online em 2018, em todos os estados da
federação, aponta que, em âmbito de filiação religiosa, dos 8.918 entrevistados,
21,2% se autodeclaram católicos, 15,7% declaram nenhuma religião, 15,2%
agnósticos e 10,8% ateus e 5,8% afirmam não saber a qual religião pertencem.
Somados, 47,5% dos pesquisados afirmam, que não têm religião, e, com isso, se
adota a categoria do IBGE, que engloba, nos sem religião, os ateus, agnósticos.
Esse dado de 47,5% não declararem uma pertença religiosa é significativo, pois
destoa da média nacional de pessoas que se declaram sem religião, que, segundo os
dados do IBGE somam 8,04% da população brasileira. Como a pesquisa não era
acerca das práticas e pertenças religiosas, destacamos aqui alguns dados que podem
apontar para possíveis interpretações sobre o senso religioso das pessoas LGBTI+ sem
religião. O número de agnósticos e ateus é bastante expressivo, somando 26%, mas o
que não se declaram neste campo somam 21,5%. Ou seja, quase a metade dos
pesquisados que se dizem sem religião podem admitir crenças religiosas. Isso não
significa, no entanto, que as igrejas sejam lugares atraentes para os pesquisados.
Entre os que declaram não ter nenhuma religião ou não saber qual religião tem, 66%
(ou 14,4% do total dos pesquisados) responderam que nunca frequentam igreja.
Entre agnósticos e ateus este número é de 82%. Ou seja, não estão inseridos em uma
comunidade, sistema de atos, conjunto de doutrinas ou sedimentação da
experiência, elementos que Greschat (2005) define como constitutivos da religião.
Ser sem religião, contudo, não quer dizer que os participantes fizeram uma
confissão de ateísmo. Sem religião aponta para um grupo de pessoas que não se
identificam com as instituições religiosas, mas que podem conservar em seu modo de
674

viver e dar sentido à vida, práticas e valores que tenham algum resquício de religião,
porém, com uma desvinculação das instituições.
Levando-se em conta que essas pessoas vivem em um país de maioria
religiosa, onde 87% da população se autodeclara pertencente a uma denominação
cristã, faz-se necessário levantar alguns questionamentos que orientaram a pesquisa
que se propôs. O cristianismo afetou, em alguma medida, os homossexuais a ponto
de levá-los a uma autodeclaração de “sem religião”? Se afetou, isso se deu de que
maneira? Diante da heteronormatividade da moral cristã, as pessoas LGBTI+ que
abandonam as igrejas conservam algum resquício da religião em seu modo de
compreender o mundo, de valorar e de construir sentidos para a existência? Existe
alguma causa para os que se autodeclaram ateus, assim o façam? Essa causa, de
alguma maneira, se origina nas instituições religiosas? Para isso é importante,
também, entender o trânsito que fazem até se autodeclararem sem religião, os
caminhos percorridos e o que essas pessoas carregam dos pontos por onde
transitaram em suas buscas religiosas.
A desconfiança que propomos é a de que, no processo de afirmação da
identidade sexual, os LGBTQI+ abandonam a pertença religiosa por não encontrar na
estrutura do cristianismo possibilidade de vivenciar sua sexualidade, visto que esta se
encontra às margens da norma da sexualidade imposta pela compreensão metafísica
que o cristianismo tem de natureza humana e, por conseguinte, da sexualidade.
O exercício de poder sobre a sexualidade, com a demarcação de uma norma
cis e heterossexista acaba por afastar pessoas LGBTQI+ das igrejas cristãs, levando-as
a se autodeclarar sem religião e, assim, vivem suas espiritualidades desvinculadas dos
arcabouços litúrgicos, teológicos e morais. Vivem valores religiosos, sem, no entanto,
se identificarem com alguma religião. Subsistiria, nos homossexuais alguma herança
do cristianismo, uma vez que este compõe as raízes da cultura brasileira. Essa
herança carrega resquícios das tradições religiosas, mas sem fazer com que pessoas
LGBTQI+ se sintam vinculadas a instituições religiosas.
Com relação a esta influência da religião na sociedade, no que diz respeito à
diversidade sexual, o jornalista e ativista de direitos LGBTQI+ Bruno Bimbi (2017, p.
180), em sua obra “O fim do armário”, assim descreve o “calvário” de homofóbicos
religiosos:

Em 2012, o arcebispo de Asolo, Silvano Tomasi, que representava o Vaticano


na ONU, denunciou que os homofóbicos são perseguidos por perseguirem os
gays. Foi o que ele disse, sem ficar vermelho de vergonha: “As pessoas são
atacadas quando tomam uma posição que não é compatível com o
comportamento sexual entre pessoas do mesmo sexo. Quando manifestam
suas crenças morais ou seus pontos de vista sobre a natureza humana, são
estigmatizadas e, pior, desprezadas e perseguidas. [...] O arcebispo já havia
dito algo parecido no ano anterior quando protestou contra uma resolução
do Conselho de Direitos Humanos das Nações Unidas que condenava “os atos
de violência e discriminação em qualquer lugar do mundo em decorrência da
orientação sexual e identidade de gênero. O representante de Bento XVI
reclamou então: “A resolução marca uma mudança. Parece o começo de um
movimento dentro da comunidade internacional e das Nações Unidas para
675
incluir os direitos dos homossexuais na agenda global de Direitos Humanos”,
explicou Tomasi numa entrevista à Agência Católica de Informação. E o que
quis dizer é que isso era errado.

A religião, ao determinar, naturalizar e impor como modelo uma


heterossexualidade compulsiva, estabelece, com o auxílio de ser uma autoridade que
fala em nome de Deus, o limite da identidade aceitável e, ao fazer isso, exclui as
demais expressões humanas que não cabem ou que não aceitam se submeterem a
este discurso exclusivo.
A Igreja católica impõe que a vida sexual moralmente boa para uma ‘ovelha
colorida’ do seu redil é a abstinência sexual, assim como faz com seu quadro de
clérigos. Com isso, cria uma categoria de fiéis com menos direitos de viver uma
dimensão humana, a sua sexualidade, de viver o prazer, ou um prazer condenável,
desordenado.
A suposta vontade de Deus como que cria uma subcategoria de sujeitos que
está, pelo menos em teoria, condenada ou a não viver sua sexualidade ou a viver em
uma subalternidade, ou outro abaixo, que não se configura com um modelo de
perfeição cristã. Isso se dá por um constante controle dos corpos, uma constante
reafirmação da heterossexualidade compulsória.
Vale a pena aqui se deter acerca da problemática da heterossexualidade
compulsória e de como ela se torna mecanismo de controle por parte das Igrejas.
Segundo Butler (2019, p. 213), “a assunção de um sexo não é fruto de uma reflexão,
mediação, mas a partir de algo imposto, o aparato regulatório da
heterossexualidade”. As igrejas cristãs, em nome de uma verdade recebida de Deus
antes de todos os tempos, arrogam para si o direito dessa determinação e
naturalização da sexualidade, de modo que, quem sai da norma, deve ser anátema,
expulso da comunhão.
A não conformidade à norma faz do LGBTQI+ um ser abjeto e, por não se
encaixar nas normatizações impostas, é relegado a um não lugar, a uma espécie de
matéria escura social, onde deve permanecer para não contaminar a comunidade.
Para além das metáforas, os não conformados com a suposta lei natural, se quiserem
fazer parte da comunhão dos santos devem anular as suas sexualidades, prazeres e
desejos, enfim, heteronormatizar o seu corpo. Com isso, colocam-se no armário as
diversas sexualidades e gêneros que não cabem na sua compreensão do que seja
natural.
Os dados sobre o senso religioso de pessoas LGBTIQ+ sem religião apontam
que os vestígios da religião nas construções de sentido na vida dessas pessoas sejam
bastante enfraquecidos, visto que podem contribuir para que as diversas
sexualidades fiquem encerradas dentro de vários armários. A saída da religião, talvez
seja, abandonar os armários metafísicos e naturalizadores da sexualidade. No dizer
de Musskopf (2020, p. 56):

As dificuldades – ou formas de controle - exercidas pelas religiões, e,


particularmente, pelo cristianismo no campo da sexualidade, são bastante
conhecidas. Há uma longa trajetória de discussão e questionamento sobre a
676
forma como as igrejas têm manipulado os corpos, nem sempre com fins tão
sagrados, nas suas motivações e intencionalidades Assim como na política e
na economia, também no âmbito da religião o controle dos corpos e suas
relações com o mundo fazem parte das estruturas de poder.

O cristianismo hegemônico continua a canonizar formas sexuais, naturalizar


seres humanos e isso, talvez, afaste as pessoas LGBTIQ+ do redil das Igrejas. Talvez
seja fora do redil que se encontra a liberdade para não precisar viver em mais um
armário. Os números apontam para algumas possibilidades que exigem dos estudos
de religião conhecer esta faceta da população LGBTIQ+, os que não se sentem parte
das religiões. A esta exigência responderemos aprofundando os estudos em nosso
doutorado que se propõe a esta investigação.

REFERÊNCIAS

BIMBI, Bruno. O fim do armário: lésbicas, gays, bissexuais e trans no século XXI. Rio
de Janeiro: Garamond, 2019.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 18. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião? São Paulo: Paulinas, 2005.
IBDSEX. Pesquisa perfil nacional da população LGBTI+. Curitiba, 2018. Não Publicado.
MUSSKOPF, André S. Viado não nasce, estreia! Não morre, vira purpurina:
diversidade sexual, performatividade e religião. Belo Horizonte: Senso, 2020.
ROTTERDAN, Sandson; SENRA, Flávio. O cristianismo não religioso de Gianni
Vattimo: considerações sobre o senso religioso contemporâneo. Religare, João
Pessoa, v. 12, p. 96-127, 2015.
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemología del Armario. Barcelona: Ediciones de la
tempestad, 1998.
677
678

BANCADA RELIGIOSA, ELEIÇÕES E CONSERVADORISMO NO


BRASIL: UMA ANÁLISE DO FIEL PENTECOSTAL E
NEOPENTECOSTAL E SEU IDEÁRIO ENTRE 2002 E 2016.

LOGAN SILVA FITIPALDI


Graduação em História pela PUC Campinas
e Iniciação Científica PIBIC/FAPIC.
[email protected]

RESUMO: A proposta fundamental deste projeto consiste em dois principais eixos de


análise. O primeiro é buscar entender a orientação política dos fiéis pentecostais e
neopentecostais, analisando como se deu a construção de tal setor religioso no
Brasil, sendo necessário compreender os anseios políticos, culturais e morais dessa
comunidade, tendo em vista a influência do conservadorismo e do liberalismo. O
segundo eixo de análise levará em consideração o crescimento significativo da
quantidade de fiéis da religião evangélica no Brasil, e de como parte de seus
dirigentes, conseguiram uma representação massiva e expressiva na política
brasileira, sendo expoentes na conturbada conjuntura do século XXI. O recorte
temporal escolhido corresponde ao período do governo petista, dotado de
afinidades, no plano político, com o modelo de Estado Social e, no econômico, com o
neodesenvolvimentismo, marcado por diversas disputas e mudanças consideráveis
no cenário político, econômico e social brasileiro, conjuntura importante para o
estudo do fiel evangélico quanto dos seus representantes religiosos e dos órgãos
legislativos e executivos. A metodologia apresenta uma face teórica e outra prática.
Na revisão bibliográfica terá, como pilar, a análise histórica do liberalismo feita por
Domenico Losurdo e, em continuação, utilizará, como referências, os textos de
Ronaldo de Almeida, para a compreensão do conservadorismo religioso na bancada
evangélica, Helerson da Silva, para abranger o aumento da religião evangélica na
América Latina, Silvio Almeida, para a definição do que é o Neoconservadorismo e
sua ligação com o liberalismo econômico e Alfredo Bosi, para a compreensão
histórica das manifestações liberais no Brasil. Outras fontes serão levantadas ao
longo da pesquisa e agregadas ao trabalho. No âmbito prático, pretende-se fazer uso
das bases de dados, serão utilizadas CESOP [Centro de Estudos de Opinião Pública),
CSES (Comparative Study of Electoral Systems Project), Pew Research Center e
Datafolha.

Palavras-chave: Neopentecostalismo; Conservadorismo; Liberalismo; Política.


679

INTRODUÇÃO

A teologia da prosperidade, difundida pelas igrejas neopentecostais, é um


grande expoente político no Brasil do século XXI, arraigadas em um misto religioso e
político, difundem um ultra individualismo e pregam uma doutrina política
fortemente liberal e conservadora, sendo assim, é de suma importância uma análise
histórica de como se manifesta o liberalismo no país.
Para isso, é necessário primeiramente, entender como o conservadorismo e o
liberalismo se unem na história contemporânea, uma vez que outrora foram
pensamentos antagônicos entre si, tendo em vista que os antigos conservadores, os
chamados clássicos, eram opostos às mudanças que o liberalismo propunha e
lutavam principalmente pela não ruptura dos moldes do antigo regime. Quando há a
modificação do poder estatal, através das revoluções liberais (Inglesa, Americana,
Francesa) o entendimento acerca do que é ser conservador se modifica.
O conservador pós revoluções liberais deixa de ser o que defende os moldes
absolutistas, e passa a ser o que resguarda o atual modelo estatal, ou seja, o que luta
pela conservação da lógica implantada, o liberalismo. Na modernidade, que se
desenvolve até o contemporâneo, podemos destacar a existência de um
neoconservadorismo, que preserva o estado burguês, o modo de produção
capitalista e ataca os que se opõe a tal lógica.

A ideia central era “conservar” valores e instituições – como a


monarquia e a religião cristã – considerados como pilares
fundamentais da civilização e da cultura ocidentais. No século XIX, o
surgimento da sociedade industrial daria à ideologia conservadora
um tom de oposição ao racionalismo e ao cientificismo, bem como ao
fim da vida tradicional e hierarquizada, ameaçada pelas
reivindicações por democracia. Pode-se observar também na versão
contemporânea do conservadorismo uma defesa das elites,
consideradas por muitos como mais aptas ao exercício do governo. Já
o neoconservadorismo estrutura-se como reação ao welfare state
[Estado do bem-estar social], à contracultura e à nova esquerda,
fenômenos atrelados ao pós-Segunda Guerra Mundial e ao advento
do regime de acumulação fordista. (ALMEIDA, 2018, p. 28)

Sobre o liberalismo, é necessário pontuar que, na sua atuação na


modernidade, representou apenas uma formal liberdade para uma parcela da
população, a saber, os homens brancos e proprietários. Em sua fase hegemônica, não
houve qualquer preocupação com a liberdade ampla dos indivíduos, não
contemplando em seu espectro as mulheres, os negros, povos originários e
trabalhadores. Lembremos que o liberalismo, na sua fase colonialista, não
apresentou combate algum com a escravidão moderna, sendo seu principal promotor
de financiamento e expansão em escala global, e que, não apenas nos países centrais,
mas para os países centrais, tal prática foi fulcral para o estabelecimento e
manutenção da industrialização.
680

A escravidão não é algo que permaneça não obstante o sucesso das


três revoluções liberais; ao contrário, ela conhece o seu máximo
desenvolvimento em virtude desse sucesso: “O total da população
escrava nas Américas somava aproximadamente 330.000 no ano de
1700, chegou a quase três milhões no ano de 1800, até alcançar o
pico de mais de 6 milhões nos anos ‘50 do séc. XIX”. O que contribui
de forma decisiva para o crescimento desse instituto sinônimo de
poder absoluto do homem sobre o homem é o mundo liberal. Na
metade do séc. XVIII a Grã Bretanha é a que possui o maior número
de escravos (878.000). Não há nada de óbvio nesse dado. (...) Quem
ocupa o segundo lugar é o Portugal, que possui 700.000 escravos e
que na verdade é uma espécie de semi-colônia da Grã Bretanha (...)
Portanto, não há dúvida de que quem se destaca nesse campo pela
sua posição absolutamente eminente é o país que está ao mesmo
tempo na frente do movimento liberal e que conquistou o seu
primado no comércio e na posse dos escravos negros exatamente a
partir da Revolução Gloriosa. (LOSURDO, 2006, p.47)

No Brasil, a lógica desenvolvida por uma historiografia liberal de oposição


entre liberalismo e escravidão nada mais é do que fictício. Como demonstra Alfredo
Bosi, as elites políticas agroexportadoras brasileiras do século XIX, desenvolveram um
projeto liberal de país, um liberalismo em conjunto com a escravidão. Durante as
crises do período imperial, os liberais e conservadores nada mais fizeram do que uma
tentativa de adiar, o máximo possível, o fim da escravidão, até encontrarem uma
forma de dominação do trabalho mais eficiente.

Comércio livre, primeira e principal bandeira dos colonos patriotas,


não significava, necessariamente, e não foi, efetivamente, sinônimo
de trabalho livre. O liberalismo econômico não produz sponte sua, a
liberdade social e política. O comércio franqueado às nações amigas,
que o término do exclusivo acarretou, não surtiu mudanças na
composição da força de trabalho: esta continuava escrava (não por
inércia, mas pela dinâmica mesma da economia agroexportadora), ao
passo que a nova prática mercantil pós-colonial se honrava com o
nome de liberal. Daí resulta a conjunção peculiar ao sistema
econômico-político brasileiro, e não só brasileiro, durante a primeira
metade do século XIX: liberalismo mais escravismo. A boa consciência
dos promotores do nosso laissez-faire se bastava com as franquezas
do mercado. Nesse bloco histórico não é de estranhar absolutamente
que a supressão do tráfico demorasse, como demorou, 25 anos para
efetuar-se ao arrepio de tratados que expressamente o proibiam.
Quanto à abolição total, só viria a ser decretada em 1888, isto é, só
quando a imigração do trabalhador europeu já se fizera um processo
vigoroso em São Paulo e nas províncias do Sul. (BOSI, 1992, pp. 197,
198)
681

Pensando no contemporâneo, com base nas mudanças das práticas


conservadoras e liberais no decorrer da modernidade, também se busca
compreender se é possível falar em antagonismo entre o neoconservadorismo e o
liberalismo.
Primeiramente, é preciso destacar de forma breve uma estrutura
extremamente presente no capitalismo, a crise. Devemos entendê-la não enquanto
momentos de insurgência das massas ou de extrema desigualdade social, isso não se
refere a uma crise da classe dominante, mas sim da classe subalterna. “violência
social, insurgência popular, pobreza ou ilegalidade; tais fenômenos são inerentes ao
capitalismo, mesmo em períodos de estabilidade.” (ALMEIDA, 2018, p. 30). Tal crise
deve ser entendida como algo que afeta sobretudo, a produção e exploração
capitalista, ou seja, o lucro e a mais-valia. “Crise, portanto, refere-se aos mecanismos
estruturais de exploração do trabalho, de circulação mercantil e de concorrência”
(ALMEIDA, 2018, p. 30).
A crise no capital leva suas diversas frações a disputas internas para a
manutenção da lógica econômica, política e social. A democracia representativa nada
mais é do que um aparato, feito para em momentos de estabilidade, resguardar as
instituições e causar um falso efeito de real democracia nas tomadas de decisão no
mundo capitalista, porém, o neoliberalismo, nos momentos críticos, onde sofre
mudanças nas suas práticas econômicas, financia a quebra de tal sistema, para que
seja estabelecido a política de exploração desejada e necessária mediante qualquer
preço para os países.

Diante disso, podemos concluir que a democracia não é nem


nunca foi um valor universal. Como nos ensina Achille
Mbembe, o avanço do projeto neoliberal instaura o que ele
chama de “devir negro no mundo” [7] , circunstância em que
toda a violência e toda a violação de direitos que antes eram
tidas como “coisa de negro” tornam-se o padrão de
tratamento para todos os trabalhadores do mundo. No mesmo
sentido, Christian Laval e Pierre Dardot alertam, em A nova
razão do mundo, para o fato de que o neoliberalismo exige um
processo de desdemocratização, ou seja, uma retirada
progressiva da possibilidade de decisões democráticas ou
oriundas da maioria de interferir na ordem econômica [8] . Só
assim se torna possível o estabelecimento de políticas de
austeridade e de retirada de direitos sociais. (ALMEIDA, apud.
MBEMBE, LAVAL, DARDOT, 2018, p. 32)

Sendo assim, é estritamente necessário para a manutenção do capitalismo, um


campo político que faça a defesa dos ideais liberais, mas que em momentos de crise
esteja prontamente preparado para o desmonte da democracia burguesa. Tal grupo
também tem suas cisões, que se dispersam nos diversos setores da sociedade, seja na
política convencional, nos movimentos sociais, gangues, grupos milicianos e religiões.
682

Será a teologia da prosperidade no campo evangélico, um grupo pertencente a esse


setor? Esse é o primeiro questionamento do vigente trabalho.
Por fim, é necessário compreender-se o crescimento da religião evangélica no
Brasil, e as nuances de como ela conseguiu se expandir e penetrar as camadas
populares em tão pouco tempo e quais as práticas de seus dirigentes, que
possibilitaram uma real inserção na política nacional, não apenas enquanto
representantes na democracia representativa, mas enquanto força massiva de
pressão popular, uma vez que as décadas finais do século XX foram marcadas por
uma profunda modificação religiosa. As vertentes evangélicas foram difundidas e
ampliadas de forma significativa, e a fé católica apostólica romana sofreu com o
afastamento e conversão de seus fiéis.

Em 44 anos, segundo a recente pesquisa realizada pelo instituto


norte-americano Pew Research Center (2014), a segunda fonte
utilizada neste artigo, o catolicismo, que representava 92,00% da
população latino-americana em 1970, passou a representar 69,00%,
em 2014, ou seja, observa-se uma redução de 28,52%. As maiores
quedas nas declarações de pertença ao catolicismo encontram-se na
Nicarágua, Uruguai e Brasil, países onde 81,00% da população foi
batizada no catolicismo romano, mas apenas 61,00% dos fiéis se
considera católico. Neste mesmo período, entretanto, a proporção
de evangélicos, especialmente provenientes dos segmentos
populares (pentecostais) saltou de 4,00% para 19,00% da população.
(SILVA, Helerson, 2018, p.4)
.
Helerson da Silva demonstra que no Brasil o crescimento gradativo dos
evangélicos no final do século XX, foi fundamental para uma inovação no cenário
político no período de redemocratização pós ditadura. Os políticos ligados à religião
mostraram um discurso moralista profundo, sobre a base de um “corporativismo
religioso”, desenvolvendo nas instâncias da política nacional, estadual e municipal as
ideias conservadoras com bases religiosas.

No Brasil o crescimento exponencial das sociabilidades


religiosas protestantes a partir da transição democrática dos
anos 1980 permitiu aos evangélicos, principalmente
pentecostais e neopentecostais, tornarem-se atores na cena
político partidária. Contudo, o engajamento dos evangélicos no
espaço público não se deu em prol da ampliação da
democracia e dos direitos humanos, mas sim sobre a base do
corporativismo religioso visando não apenas o reconhecimento
do Estado como a conquista de privilégios ou vantagens
materiais para as suas sociabilidades religiosas ao mesmo
tempo em que procuravam impor sua moral conservadora ao
conjunto da população. (SILVA, Helerson, 2018, p.15)
683

O debate acerca do liberalismo e sua manifestação no setor evangélico


brasileiro é o primeiro eixo de análise para o vigente projeto, tendo em vista a
necessidade de um entendimento histórico de tal ideologia, suas práticas e formas de
manutenção. O segundo eixo do trabalho, busca compreender o porquê e como se
deu o crescimento da religião evangélica do Brasil, sendo algo estritamente
necessário para a compreensão das práticas políticas e de conversão de massas dos
líderes religiosos pentecostais e neopentecostais.

CONCLUSÃO

Com a finalização de tal pesquisa, busca-se compreender a formação da


religião evangélica no Brasil enquanto força política massiva e expressiva no cenário
nacional, elucidando suas ações, ideário e moral no decorrer de sua inserção no país.
Para isso, será analisado as crises do capitalismo brasileiro no século XXI e as formas
que tal grupo político se portou nesses momentos, sendo necessário observar as
manifestações públicas e os debates internos da democracia representativa
brasileira. Alguns dados, pertinentes para o entendimento do crescimento evangélico
no país, intenção de voto de fiéis religiosos e ideário político estão presentes nas
bases de dados, CESOP [Centro de Estudos de Opinião Pública), CSES (Comparative
Study of Electoral Systems Project), Pew Research Center e Datafolha, as quais serão
amplamente analisadas no projeto.
O debate histórico acerca do liberalismo e conservadorismo, será ampliado,
porém terá como base as contribuições de Domenico Losurdo, Silvio Almeida e
Alfredo Bosi, buscando elucidar e fazer uma “contra história” dos paradigmas
desenvolvidos por autores liberais, da falácia de uma teoria política que defendeu e
defende uma liberdade ampla, irrestrita e pacífica.
Busca-se através dessa “contra história” demonstrar que os golpes, chacinas e
práticas inescrupulosas realizadas pelas elites liberais, não são simples exceções, mas
fazem parte da ordem do dia desse setor. Tal análise histórica, serve como base para
entender a conturbada conjuntura econômica, política e social brasileira do século
XXI e será utilizada para buscar entender se o campo político evangélico, atrelados a
teologia da prosperidade, fazem parte dos defensores dessa ideologia.

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. Neoconservadorismo e liberalismo. In Esther Solano Gallego (Org.)


O ódio como política. Boitempo, 2018.

BOSI, Alfredo. Dialética da colonização. Companhia das letras, 3º edição. 1992.


LOSURDO, Domenico. Contra história do Liberalismo. Editora Ideias e Letras, 2º
edição. 2006.
SILVA, Helerson. Os novos atores “evangélicos” e a conquista do espaço público na
América Latina. Campinas, PUC-Campinas, 2018.
684

TEOLOGIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA E O DEBATE SOBRE A


SOBERANIA MODERNA.

LAÍS RAMALHO DOS SANTOS


Graduanda em Direito
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

DOUGLAS FERREIRA BARROS


Doutor em Filosofia
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

RESUMO: O objetivo do presente trabalho é apresentar a existência de um


paralelismo entre a doutrina católica e a soberania estatal, frente aos estudos e
conceituações schmittianos. Em Teologia Política (2005), Carl Schmitt estuda duas
concepções essenciais para este trabalho: soberania e secularização. Após, em
Catolicismo Romano e Forma Política (1998), o filósofo apresenta a estrutura da
Igreja Católica Apostólica Romana, colocando-a em paralelo à figura estatal. Neste
momento, Schmitt aponta os fatores que mantêm sua formulação orgânica estável e
intacta. Nesse sentido, identifica o dogmatismo católico a um complexio
oppositorum, ou seja, um complexo das oposições de grupos e doutrinas.
Encontramos aí uma força agregadora, nomeada de “vontade de decisão”. Ela
mostra-se como responsável por manter intacta e preservada a estrutura
organizacional eclesiástica e, enfim, reforçar a infalibilidade e a inquestionabilidade
papal. Mediante esses estudos, o jurista coloca lado a lado as figuras da Igreja e do
Estado, atentando-se às suas semelhanças, e, acrescenta, ao fim, o princípio da
representação de algo invisível e unicamente concretizável a partir de seu
representante. Enquanto, para a Igreja, esta posição é ocupada pelo Papa, como
encarnação do próprio Cristo e mediador de Deus e dos homens; no contexto estatal,
tal atuação configura-se na imagem do soberano em relação a seu povo. Indaga-se,
então, quanto às peculiaridades autoritárias e tirânicas vislumbradas no no soberano
schmittiano e se elas poderiam ser encontradas, também, na figura papal, como
intérprete da realidade religiosa.

Palavras-chave: Soberania; Schmitt; Teologia política; Secularização.


685
SOBERANIA E SECULARIZAÇÃO

Busca-se, com este trabalho, estudar alguns dos principais conceitos presentes
em duas obras do filósofo e jurista Carl Schmitt, de modo a traçar um paralelo entre a
estrutura hierárquica do Estado e da Igreja, após a modernidade, utilizando-se como
premissas os conceitos de soberania e secularização. Ainda, ao final, pretende-se
indagar sobre uma possível correlação entre a figura papal e o soberano, em seu
aspecto mais autoritário.
Em um primeiro momento, faz-se mister a análise da obra Teologia Política
(2009), na qual Schmitt estabelece duas questões de fundamental reflexão: a posição
do soberano como aquele “quien decide sobre el Estado de excepción” [quem decide
sobre o Estado de exceção] (SCHMITT, 2009, p. 13). e seu conceito de secularização
como manutenção dos conceitos teológicos na doutrina moderna de Estado.
Sem buscar inverter a ordem cronológica destes fatores, mas para fins de
melhor estruturação e elucidação desta tese, trabalharemos primeiro com a segunda
colocação: a secularização inacabada, como bem intitula Pedro Hermílio Castelo
Branco em uma de suas obras.
Schmitt, ao afirmar que “Todos los conceptos centrales de la moderna teoría
del Estado son conceptos teológicos secularizados” [todos os conceitos centrais da
teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados] (SCHMITT, 2009, p.
37), visa expressar o que Castelo Branco (2011, p. 21) ressalta como uma ampla
compreensão a esse respeito:

O conceito de secularização apresenta uma notável amplitude


semântica e, entre outros sentidos, exibe um critério hermenêutico
capaz de revelar uma continuidade entre a modernidade e a
tradição cristã. Esse sentido se opõe à concepção iluminista da
secularização, segundo qual a modernidade se emancipou da
experiência marcada pela tradição cristã. (grifo nosso)

Relevante é, pois, o entendimento de Schmitt que, contrariamente ao


reiterado pela vertente iluminista, identifica parte do processo de secularização como
uma espécie de continuidade e manutenção dos conceitos e estruturas
anteriormente classificados como teológicos, mas que, agora, apresentam-se como
secularizados, laicos e afastados da religião. Nesse sentido, o jurista inova na
tentativa de evidenciar a permanência de antigas estruturas de poder cristãs na
organização estatal, de tal modo que Castelo Branco complementa:

[...] ao se destronar o Deus transcendental da antiga metafísica, não


se elimina a ocupação de uma posição central por outro sujeito em
condições de exercer uma função análoga à daquele que o
precedeu. A secularização revelaria um sentido hermenêutico cujo
emprego desvendaria a estrutura metafísica da realidade composta
de uma instância absoluta, de um último ponto de legitimidade.
(2011, p. 23 - grifo nosso)
686
O comentador deixa claro que o afastamento social da religião não
proporcionou automaticamente a criação de novos alicerces de poder. Mas, pelo
contrário, implicou na persistência daqueles já existentes, os quais, neste momento,
passaram a ser ocupados por outros que clamam sua legitimidade.
Portanto, aquele lugar que, durante a Idade Média, era ocupado pela Coroa,
apresentando completo apoio da Instituição cristã, sofre tais modificações. Se, em
primeiro momento, a soberania necessitava da Igreja como forma de convalidação
divina de sua ocupação, agora, em um segundo plano, distancia-se desta, sem, no
entanto, desvencilhar-se dela por completo.
Isto ocorre, na visão de Schmitt, justamente porque faz-se possível traçar,
ainda que de modo extremamente sucinto, um paralelo entre estes dois Institutos.
Uma vez vislumbrada a forte estrutura do catolicismo que, ao longo de todas as
mudanças dos últimos séculos, permanece intacto e influente no seio social, o jurista
percebe a importância da forma organizacional nele contida, formando, a partir daí,
uma reflexão ideológica da formatação estatal, partindo do conceito de soberania, já,
na época, dimensionado.
Diante desta aproximação, Carl Schmitt passa a evidenciar, na obra
Catolicismo Romano e Forma Política (1998), os fatores que induzem esta
estabilidade institucional, a começar pela classificação da Igreja em uma complexio
oppositorum.
Ao afirmar a existência de um complexo de oposições, ou seja, de uma tensão
política, que é interna à doutrina católica, Schmitt parece entender que as
contradições não se mostram como problemas, uma vez que, neste cenário, não se
constituem como “uma síntese de antíteses, no sentido hegeliano, como uma síntese
em cuja imediatidade se conjugaria a oposição de vários momentos ou mediações
antitéticos” (SÁ 1998, p. 8). Em sentido contrário,

a unidade constitutiva da complexio oppositorum católica romana


surge [...] a partir de uma vontade que constrange a uma unidade
formal, uma realidade em si mesma informe e irredutível a
mediações, ou seja, partir de uma força agregadora que,
determinada como uma vontade de decisão (Wille zur Dezision),
como se lhe refere Schmitt no presente texto, se concretiza na
doutrina católica romana da infalibilidade papal. (ibid, p. 9 - grifo
nosso)

Esta racionalidade, que não segue a lógica racional hegeliana, e sim o oposto,
impõe ao intérprete uma noção diferente daquela usual:

O catolicismo romano assume assim realidade como ela é, ou seja,


como algo obscuro informe; deste modo, ele, como escreve Schmitt,
«permanece na existência concreta», «é algo vivo», assumindo
realidade tal como é, na obscuridade que essencialmente lhe
pertence, que catolicismo romano configura, através daquilo que
poderíamos chamar a sua vontade de decisão enformadora, a sua
687
racionalidade específica; é assim que Schmitt apresenta ser o
catolicismo, para além de algo vivo, «racionalidade na medida mais
elevada». (ibid, p. 9-10 - grifo nosso)

Diante desses pontos, analisamos que a doutrina católica, em face da


complexio oppositorum, mantém-se intacta pela existência de uma força agregadora,
a qual Schmitt nomeia de vontade de decisão 222. A prerrogativa de decidir, em última
instância, dá-se pela figura inscrita na cabeça desta estrutura formal eclesiástica.
Portanto, é o caráter decisionista e concentrador da autoridade que impõe a
infalibilidade e inquestionabilidade papal, preservando a integridade do próprio
dogmatismo católico.
Ainda, frente à apresentação da realidade cristã como informe e obscura, uma
vez imersa no conflito necessário entre as suas posições, exige-se, para sua
compreensão, uma racionalidade específica fundada em um princípio da
representação. Destarte, “a racionalidade jurídica ou institucional própria do
catolicismo romano determina-se, segundo Schmitt, por assentar «no desempenho
rigoroso do princípio da representação” (ibid, p. 10).
Portanto, esta representação, como bem evidencia Sá (1998), reflete não a
simples delegação de poderes de um ser a outro, mas uma quase encarnação de um
ente invisível e ausente por outro, visível e presente. De forma que o primeiro apenas
mostra-se verdadeira e unicamente existente na realidade fática, por meio de um
outro, perceptível aos sentidos humanos. É desta maneira que Schmitt explica:
“representar quer dizer tornar visível e personificar um ser invisível através de um ser
publicamente presente” (SCHMITT apud SÁ, 1998, p. 10).
Com efeito, a Igreja Católica representa o Cristo, pois este apenas pode ser
concretizado, nesse mundo, por meio dela. De modo que, ocupando este lugar, a
Instituição católica passa a ser a visibilização permanente de Cristo, ao longo da vida
dos homens, nas palavras de Alexandre Franco de Sá (2009, p. 8).
Por conseguinte, correlacionando esta reflexão com o tema da soberania,
podemos traçar um paralelo entre a autoridade soberana e a figura papal. Uma vez
que ambas encontram-se no ápice de cada Instituto hierárquico e a elas é
resguardado o poder de decisão, indagamo-nos se haveria uma projeção da
representatividade eclesiástica na figura do soberano. Em vista disso, chegamos à
resposta de que sim: o soberano, em mesmo sentido que a figura papal, representa
uma ideia abstrata. Neste caso, seria possível dizer, portanto, que ele representaria o
“povo”, cujo conceito, igualmente como ocorre com Cristo, é abstrato.
Na Igreja católica, trata-se do Cristo encarnado, cujo corpo encontra-se
desaparecido (BENTO, 2017) e, por isso, intangível. Já no Estado é o conceito de
“povo”, diante de sua imaterialidade, que denota a representação. Observemos:

222
Nesse primeiro momento, nota-se de antemão como Schmitt retoma o caráter decisionista, desenvolvido
anteriormente em Teologia Política (2009), porém, agora, dentro de uma análise do dogmatismo católico. A
força e a imposição de uma decisão parece se constituir, em sua visão, como a responsável pela estabilidade
destes institutos - Estado e Igreja.
688
Ela [a representação] não é nenhum conceito pragmático. Num
sentido eminente, só uma pessoa pode representar – diferenciando-
se da simples “delegação do lugar” –, e representar uma pessoa
autoritária ou uma ideia que, na medida em que é representada,
precisamente se personifica. Deus ou, na ideologia democrática, o
povo, ou ideias abstractas como liberdade e igualdade, são o
conteúdo pensável de uma representação, mas não a produção e o
consumo. (SCHMITT apud BENTO, 2017, p. 409 - grifo nosso)

Uma vez que “povo” não se equivale nem às pessoas, em suas


individualidades, nem aos meros coletivos, mostra-se como invisível e ausente,
revelando-se carente de representação. Esta carência será, portanto, suprida pela
imagem do soberano.
Feita esta análise, retomamos às semelhanças vislumbradas nestes dois
Institutos sociais, de modo a reiterar a noção schmittiana de secularização, a qual
demonstra efetiva aproximação dos conceitos teológicos daqueles que passam a
construir a noção do Estado, dentro da perspectiva de Carl Schmitt. Nesse sentido,
faremos uma breve comparação dos conceitos de soberania desenvolvidos por Bodin
e Hobbes, de modo a entender a existência de um autoritarismo submerso naquela
perspectiva tomada por Schmitt. Por isto, faz-se necessário retomarmos ao ponto da
soberania, analisado na obra Teologia Política (2009), de modo a entendermos
melhor como o filósofo esclarece sua noção do soberano. De modo que, após,
possamos esclarecer nossas reflexões sobre o paralelismo aqui apresentado.
Diante da análise já posta, observamos que, quando o jurista dispõe que
“Soberano es quien decide sobre el Estado de excepción” [Soberano é quem decide
sobre o Estado de exceção] (SCHMITT, 2009, p. 13), ele busca entender o Estado em
seu formato hobbesiano, qual seja absoluto, e cuja concentração de poder se mostre
centralizada na figura soberana223.
Seguindo esta linha, Schmitt trabalha com a situação de uma
excepcionalidade, na qual o Direito e o Estado não conseguem mais preservar a
ordem social. Neste aspecto, o soberano é o único com a prerrogativa de cindir os
conceitos de ordem e ordem jurídica, suspendendo o ordenamento jurídico até então
vigente em prol da manutenção da ordem e do próprio Estado (SÁ, 2009). É esta
circunstância que configura o caráter decisionista do Estado, na leitura schmittiana.
Diante disto, torna-se possível relacionar, de certo modo, esta situação
excepcional, de confusão entre ordem, ordem jurídica, e o que se mostra necessário
para preservação do Estado, como, também, uma realidade informe e obscura.
Tendo em vista que é o ordenamento jurídico o responsável por conferir certa
segurança diante das possibilidades infinitas de condutas, a exata suspensão desta é
o que faz retornar a insegurança social e a incerteza nas procedências.
Diante desta realidade que, agora, vemos como informe, obscura e imprecisa,
buscamos em Barros (2004, p. 716) uma percepção de supremacia que se faz lógica.

223
De modo intrinsecamente semelhante àquele discutido no dogmatismo católico. Em um momento, observa-
se o soberano no ápice da hierarquia estatal. Em outro, nota-se a figura papal auge da constituição religiosa.
689
Ao confrontar os conceitos de soberania, ao longo da modernidade, o comentarista
supracitado evidencia que Bodin, ao contrário de Schmitt, teve o

cuidado de distinguir o soberano do tirano, mostrando que o


primeiro necessitava de outros poderes internos à república, como o
magistrado [...]. Parece claro a Schmitt que reconhecer a autoridade
suprema implica desconsiderar que outras autoridades mantenham
vínculos com esta, de forma que a decisão da primeira possa estar
condicionada à avaliação das consequências pela segunda. Isto é o
que se pode considerar por princípio radical da autonomia do
soberano. Talvez muito próximo daquilo que Bodin vislumbra na
figura do soberano. (2004, p. 716 - grifo nosso)

De mesmo modo, em Hobbes vemos as raízes das teses schmittianas, com um


porém, no entanto. Como observa Barros (2004), existe certa diferença no conceito
de soberano criado por Schmitt e aquele desenvolvido na tese hobbesiana,
anteriormente. Enquanto no último a vontade do soberano encontra-se limitada
perante a legitimidade de seu agir, qual seja a finalidade do próprio pacto social de
proteção e concessão de segurança a todos os súditos contra ameaça de outros que
os possam escravizar. No caso do conceito schmittiano, Barros explica que “ao se
efetivar a exceção, [...] afirma-se que o contrato não é garantia suficiente e muito
menos necessária para a instituição e perpetuação da ordem política” (ibid, p. 717).
À vista disso, pode-se dizer que a declaração da exceção, de acordo com
Schmitt, observada sob a ótica da legalidade estabelecida, é um atentado contra a
legitimidade do Estado e do contrato social firmado entre os súditos e aquele que
assumiu a condição de soberano. Ocorre, portanto, a ruptura do pacto.
Portanto, diante do demonstrado, até que ponto podemos afirmar que a
figura do soberano schmittiano não se encontra próximo à imagem do autoritário? E,
diante disso, parecendo claro que Schmitt estudou a doutrina católica e traçou este
paralelo com o Estado, até que ponto não poderíamos assemelhar, também, à figura
papal esta característica de autoritarismo? Até que momento esta vontade de
decisão, instaurada no cume da hierarquia católica, não configura, em si só, uma
imposição autoritária e tirânica de interpretação da realidade religiosa informe?
É certo que, neste trabalho, estudamos os principais conceitos presentes nas
obras schmittianas citadas acima, fazendo uso de comentários e interpretações feitos
por Sá (2009a), Bento (2017), Barros (2005) e Castelo Branco (2011). Ao traçar um
paralelo entre a Igreja e o Estado, observou-se as semelhanças contidas nas
Instituições, em detrimento de uma secularização “inacabada” que sobrepôs os
institutos de poder eclesiásticos àqueles governamentais. Em razão desta troca de
poder e das diversas indagações sobre a existência de um autoritário ou um tirano no
soberano schmittiano, evidenciamos a possibilidade de a própria figura papal, por
conta do paralelo traçado, ser, a seu modo, autoritário também. Neste sentido,
perguntamo-nos quais seriam as consequências, para a doutrina católica, da
concepção de um tirano nesta posição de poder; e como isso impactaria a própria
690
realidade religiosa informe e obscura. A resposta desta reflexão, no entanto, deverá
ser desenvolvida na continuação dos presentes estudos. Neste momento, pois,
resguardemo-nos a evidenciar a correspondência disposta entre os Institutos
religioso e governamental, e ressaltar a clara ligação que ainda existe entre religião e
poder, apesar de sua laicização estatal.

REFERÊNCIAS

BARROS, Douglas Ferreira. Soberania: lugar legítimo do poder de um "fora da lei"?.


In: GIACOIA JUNIOR, Oswaldo et al (org.). Fragmentos de Cultura. Goiânia: Editora da
Ucg, 2005. p. 705-723.
BENTO, Antonio. Do corpus mysticum da Igreja à persona mystica do Estado: carl
schmitt e ernst kantorowicz. Revista de Filosofia: Aurora, Curitiba, v. 29, n. 47, p.
405-434, maio 2017.
CASTELO BRANCO, P. H. V. B, Secularização inacabada: política e direito em Carl
Schmitt. Curitiba: Aprpris, 2011.
SÁ, Alexandre Franco de. O conceito de Teologia Política no Pensamento de Carl
Schmitt e o Decisionismo como Ficção Jurídica. Artigos LusoSofia, Covilhã, 2009.
SÁ, Alexandre Franco de. Prefácio. In: SCHMITT, Carl. Catolicismo Romano e Forma
Política. Lisboa: Hugin Editores, 1998. p. 7-16. Prefácio, tradução e notas por
Alexandre Franco de Sá.
SCHMITT, Carl. Teología Política. Madrid: Editora Trotta, 2009. 180 p. (Série
Derecho). Tradução de Francisco Javier Conde e Jorge Navarro Pérez. Epílogo de José
Luis Villacañas.
691
O HOMO OECONOMICUS COMO EMPRESÁRIO DE SI MESMO
E UMA INSTITUIÇÃO NEOPENTECOSTAL

NATÁLIA FERNANDES MORORÓ


Graduanda em Ciências Sociais pela PUC Campinas
e Iniciação Científica PIBIC/CNPq

GLAUCO BARSALINI
Doutor em Filosofia pela UNICAMP

RESUMO: Movidos por interesses e influências da Antropologia da Religião e das


Ciências da Religião pretendemos, a partir de estudos e debates acerca da Igreja
Universal do Reino de Deus (IURD), analisar as particularidades do universo religioso
neopentecostal, com o objetivo de verificar como a IURD se adapta a um contexto
econômico neoliberal. Diante das diversas colocações e contribuições que aparecem
no cotidiano da vida dos fiéis desta Igreja, propomos explorar como o rito do dízimo é
a ideologia mais marcante do desenvolvimento desta religião, a qual se situa no
âmbito da terceira onda pentecostal. Enquanto principal referência ao
neopentecostalismo, a IURD é um local privilegiado para observarmos a expansão e a
capacidade de desenvolver ritos que não se encontram em outras igrejas evangélicas
no Brasil. Portanto, é essencial compreendermos como o procedimento dos cultos
concentram-se diariamente na vida dos brasileiros, a partir do que determinada
religião chamará de “organização de vida” e “superação das dificuldades do
cotidiano”. Para isso, buscamos traçar um estudo da Igreja Universal do Reino de
Deus, com foco na teologia da prosperidade. Aplicaremos, neste sentido, uma nova
vertente filosófica na observação da mesma. Será apreciado e levantado um estudo
analítico comparativo com a contribuição do vocabulário conceitual de Michel
Foucault, que envolve os termos governamentalidade neoliberal e homo
oeconomicus. Referenciada no pensamento do filósofo francês, a metodologia será
bibliográfica, baseando-se principalmente nas pesquisas dos estudiosos da religião, o
sociólogo Ricardo Mariano e o antropólogo Ronaldo de Almeida, além de utilizar-se
de fontes primárias também publicadas pela própria Igreja.

Palavras-chave: Neopentecostalismo; Neoliberalismo; Homo oeconomicus.

INTRODUÇÃO

A Igreja Universal do Reino de Deus (IURD) desenvolve-se a partir da Teologia


da Prosperidade – confiar, doar, receber e ter retorno – o que pode ser interpretado
como uma negociação com o divino. Sua forma de organização e composição dos
692
discursos marca uma racionalidade neoliberal, elemento essencial nos estudos de
dispositivos de poder em Michel Foucault, eixo principal desta comunicação. A partir
do pensador francês, pode-se pensar a forma neoliberal no interior das técnicas
biopolíticas224 para entender o governo e a forma de conduta da IURD.
Pretende-se, desta maneira, compreender como a subjetividade neoliberal se
enraizou nas condutas dos membros de uma instituição neopentecostal e analisar,
também, o processo de racionalidade neoliberal empregado nas relações e práticas
dos discursos e ritos presentes nas promessas de glória, como símbolo do empresário
de si mesmo, explicado pela oferta transferida como prosperidade.

O UNIVERSO RELIGIOSO NEOPENTECOSTAL

Não é novidade para ninguém que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
tem uma grande participação na política partidária, mas, sobretudo, na mídia. De
acordo com o sociólogo da religião Ricardo Mariano (2014), a instituição religiosa
contém projetos de expansão territorial, não somente no Brasil, como no mundo, de
seus templos. Não é à toa que a IURD está classificada entre as maiores igrejas
evangélicas do país.
Conforme sua autobiografia, Edir Bezerra Macedo (2012) se converteu na
igreja pentecostal Nova Vida, entretanto, seu desejo se direcionava para a vocação
de evangelização de pessoas que ainda não conheciam seu Senhor. Na Nova Vida,
Macedo não conquistou este desejo, decidindo, desta forma, começar sua própria
igreja. Suas primeiras pregações foram realizadas em uma praça, especificamente em
um coreto, na cidade do Rio de Janeiro. Em um período bem pequeno, juntamente
com seu cunhado Romildo Ribeiro Soares (conhecido também como R.R. Soares,
criador da Internacional da Graça de Deus), já verificavam os resultados obtidos da
IURD.
À frente, por ser considerado mais carismático e dinâmico, Macedo, com apoio
de seus fiéis, adquiriu mais destaque por conta de um programa da Rádio
Metropolitana do Rio, mesmo com pouca duração – cerca de 15 minutos225. A
expansão desta instituição se deve ao investimento efetivo do uso das mídias e os
meios de comunicação em massa.

Em 1980, com apenas três anos e duas dezenas de templos, a


Universal já fazia incursões pela TV. Transmitia O Despertar da Fé na
Rede Bandeirantes, para os Estados de São Paulo, Rio de Janeiro,
Paraná, Pernambuco e, na TV Itapuã, Bahia. Em abril de 1983, o
programa já era exibido, pela mesma Bandeirantes, para quase todo
o território nacional. Se isso constituía um feito e tanto, não se

224
“Foucault recorre ao conceito de biopolítica para tratar de um poder disciplinador e normalizador, que
começa a aparecer no final do século XVIII, incidindo não mais sobre os corpos dos indivíduos, mas na vida e no
corpo da população, que deveria ser, então administrada e controlada por políticas de Estado” (CAMELO;
SOUZA, 2019, p. 122).
225
“Alugado inicialmente com doações de uma fiel curada na igreja” (MARIANO, 2014, p. 56).
693
comparava à façanha que foi a aquisição, por US$ 45 milhões, da
Rede Record de Rádio e TV, em novembro de 1989. Para comprar
esta tradicional, porém decadente e virtualmente falida rede de
televisão – com uma dívida na faixa dos 300 milhões de dólares,
posteriormente quitada -, a liderança da igreja, oculta na transação,
feita por testas-de-ferro, não mediu esforços, ou melhor, sacrifícios.
Realizou a campanha “sacrifício de Isaac”, na qual seus pastores
doaram cinco salários mensais, carros, casas e apartamentos. Com o
mesmo espirito de renúncia e despojamento, fieis de todo o país
foram convocados a participar do sacrifício, doando, além de dízimos
e ofertas, jóias, poupança e prosperidade. Desde então a Universal
não parou mais de fazer aquisições e negócios milionários.
(MARIANO, 2014, p. 66)

Este é grande marco da Universal, uma vez que o pentecostalismo de primeira


onda não se adapta ao uso midiático e, sim, demoniza aspectos televisivos, como é o
caso da Congregação Cristã do Brasil226. Por isto, dividem o pentecostalismo em três
grandes ondas ou até mesmo modificam o nome, com o objetivo de explorar suas
diferenças e teologias.
Conforme os escritos de Paul Freston (1993), a IURD é um exemplo da terceira
onda pentecostal, ou então, nos termos de Mariano (2014), do neopentecostalismo -
novo pentecostalismo brasileiro, que realiza cultos transmitidos em TV e rádios.
Tanto no templo, quanto nas mídias, os fiéis são considerados servos do Senhor. As
igrejas neopentecostais, além de utilizarem-se destes meios de comunicação de
massa, também enfatizam “rituais de cura e exorcismo, estruturam-se
empresarialmente, adotam técnicas de marketing e retiram dinheiro dos fiéis ao
colocar ‘no mercado religioso serviços e bens simbólicos que são adquiridos
mediante pagamento’” (MARIANO, 2014, p. 35). São neo também pois trabalham a
ideia de libertação dos demônios, enquanto os pentecostais de primeira onda
privilegiam a oração em línguas. As três grandes visíveis diferenças do
neopentecostalismo podem ser analisadas a partir da:

1) Exacerbação da guerra espiritual contra o Diabo e seu séquito


de anjos decaídos;
2) Pregação enfática da teologia da prosperidade;
3) Liberação dos estereotipados usos e costumes de santidade
(MARIANO, 2014, p. 36).

Por isto, seus cultos não são preestabelecidos rigidamente, há uma liberdade
entre os pastores no direcionamento dos cultos, ainda conforme Mariano.
Consequentemente, na organização da rotina, a igreja apresenta bastante arranjo.

226
A Assembleia de Deus, entretanto, também faz parte da primeira onda pentecostal, segundo Paul Freston
(1993), mas utiliza de alguns suportes midiáticos como o Jornal Mensageiro da Paz, e também ingressou na
política partidária.
694
São fixados calendários dos cultos e ritos de cada dia da semana, juntamente com
seus horários. Por exemplo, em todas as sextas-feiras são feitos os rituais da
libertação (mais conhecidos como exorcismo). Os pastores e bispos pregam aos seus
fiéis que o demônio somente será retirado e suas vidas serão repletas de
prosperidade quando depositarem toda a fé e generosidade no dízimo.
O que antes pode ser considerado racional em um contexto neoliberal
econômico com as devidas desigualdades sociais e a elevação do consumo
cotidianamente, torna-se magia no movimento neopentecostal. Para os fiéis que
frequentam esta instituição religiosa – IURD -, não são as decisões públicas ou
políticas que definem o bem-estar social da população, e sim a luta contra o diabo –
considerado o destruidor do bem-estar da saúde e da riqueza. Para isto, é necessário
o cristão ser totalmente dedicado, correto, ético e disciplinado para que possa
desenvolver virtudes em seu trabalho e a elevação de ganhos econômicos em sua
vida, já que a teologia do neopentecostalismo é a da prosperidade. A missão dos fiéis
para receber benções gira em torno de uma auto-gestão de produção e de lucro que
satisfaz “das finitudes do viver humano no histórico em comunhão com o sistema
econômico e político” (FERRARI, 2007, p. 92)227.
A relação com Deus no fenômeno neopentecostal situa-se no ideário
neoliberal, pois se trata de uma fé baseada no investimento 228, em que tudo se torna
negócio e onde se promete livrar os indivíduos do sofrimento - “o
neopentecostalismo ganha espaço, principalmente, em situações de violência,
pobreza e doença” (ABREU, 2017, p. 52). Fiéis que se encontram nestas situações de
subalternidade, vulnerabilidade social, falta de auxílio etc., acabam buscando uma
saída a partir da esfera do divino. Em resumo, fazem um investimento com a igreja, a
partir de sua entrega espiritual e bens materiais, em busca da ascensão social. A
analogia entre doação e investimento, proposta pela instituição, ganha importância
na medida em que o contexto contemporâneo define o investimento do indivíduo
enquanto seu próprio capital humano.
Portanto, as relações são conduzidas e passam a ser espontaneamente de
investimento. “No âmbito neopentecostal, fazer a doação é, também, um
investimento, posto como necessário para acessar o divino” (ABREU, 2017, p. 53). O
filósofo francês Michel Foucault (2008) desenvolve o conceito de
governamentalidade229. A governamentalidade neoliberal, segundo Foucault, é o
controle do indivíduo sobre si mesmo - o indivíduo se torna seu próprio controlador,
se auto-governa. Na perspectiva da biopolítica neoliberal, instaura e define todas as
ações dos sujeitos por uma perspectiva econômica, já que o mesmo é seu próprio
governo e se tornará o empresário de si mesmo.

227
“Este enfoque de comunhão entre essa ética religiosa e o sistema econômico refletia a modernidade com
seu individualismo centrado na competição criativa e sacrifícios para acumular” (FERRARI, 2007, p. 93).
228
“As pessoas investem buscando resultados futuros, o que fundamenta a ação no presente é a ideia de uma
melhora do futuro” (ABREU, 2017, p. 52).
229
Michel Foucault, apropriou-se do termo “governamentalidade” indagando-se diante da “arte de governar”.
O que antes era um governo soberano, na modernidade passou a ser entendido, a partir das proposições do
filósofo, como extensas práticas multiplicas de governar, cada um se auto governa.
695
O neoliberalismo pode ser definido como um conjunto de discursos,
dispositivos e práticas que modelam uma nova forma de governo dos homens. É
neste sentido que Foucault (2008) desenvolve o conceito de “racionalidade política”,
dedicando pesquisas ao tema em torno do conceito de “governamentalidade”,
sobretudo no curso ministrado no Collège de France em 1979, intitulado: O
nascimento da biopolítica. O governo, para Foucault, não é como uma instituição,
mas uma atividade em que se exerce a condução das condutas dos homens.

O termo “governamentalidade” foi introduzido precisamente para


significar as múltiplas formas dessa atividade pela qual homens, que
podem ou não pertencer a um governo, buscam conduzir a conduta
de outros homens, isto é, governá-los. (DARDOT; LAVAL, 2016, p. 18)

De acordo com Foucault (2008), esse novo “espírito” do capitalismo exige que
os sujeitos tenham visão empreendedora, que assumam riscos, se adaptem ao
inesperado e sejam flexíveis em suas funções. No liberalismo clássico acredita-se que
o livre mercado proporciona igualdades jurídicas e políticas. Já no neoliberalismo,
todavia, a desigualdade é o elemento que motiva o mercado. Aqui, o sujeito
estabelece suas próprias regras, sem intervenção do Estado. O neoliberalismo
permite que a inteligibilidade econômica passe a ser aplicada em relações e
processos não econômicos, produzidos no âmbito da vida cotidiana por meio da
“condução da conduta” neoliberal. Nele é necessária uma nova recomendação de
conduta, que possa reconhecer e inventar novas formas de administração da vida,
resultado em uma subjetivação ética.
A ideia de empresário de si mesmo leva todas as relações criadas a serem
puramente investimentos, “e, nesse contexto, o indivíduo se responsabiliza por
possíveis fracassos, pois se não consegue prosperar na vida é por falta de
investimento em si mesmo” (ABREU, 2017, p. 62-63). A grande ascensão do
neopentecostalismo só é possível a partir da política de governamentalidade
neoliberal, uma vez que é crescente, atualmente, o número de sujeitos que confiam
no discurso da meritocracia, com propósitos de superar as precárias condições de
existência e de organizarem suas vidas em forma de investimento.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O objetivo do texto lidou com a ideia do homo oeconomicus como aquele que
se sacrifica, e vai atrás de suas ideias, de suas realizações, de sua “magia” – o lucro. O
neopentecostalismo lida com o rito do dízimo (doação e oferta), aquele que vai em
busca de uma vida melhor, aquele que crê e, como retorno, recebe o amor divino, as
curas, a ascensão social e o significado de felicidade no mundo neoliberal. É nessa
ideia que tanto o neoliberalismo quanto o neopentecostalismo transferem, entre si,
responsabilidades de fracasso ou vitória para os indivíduos. Nos dois contextos há um
governo de si mesmo (autogoverno), de forma que os indivíduos devam investir em si
mesmos para conseguir atingir a prosperidade. Como sistematização, esta pesquisa
696
pretendeu jogar luz à esta temática: debater e entender como o neopentecostalismo,
com base na governamentalidade neoliberal, produz sujeitos como “máquinas”
empreendedoras que investem na fé através do sacrifício de dar seu dízimo.

REFERÊNCIAS

ABREU, Nayara dos Santos. Magia neopentecostal e "espírito" neoliberal.


Universidade Federal de Uberlândia. [s/n], 2017.
CAMELO, Marcos Dias; SOUSA, Kátia Menezes. A fábrica do sujeito neopentecostal.
Cadernos do IL, Porto Alegre, n.º 59, outubro. p. 111-124.
DARDOT, Pierre; LAVAL, Christian. A nova razão do mundo: ensaio sobre a sociedade
neoliberal. São Paulo: Boitempo, 2016.
FERRARI, Odêmio Antonio. Bispo S/A: A Igreja Universal do Reino de Deus e o
exercício do poder. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2007.
FOUCAULT, Michel. O nascimento da biopolítica. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
FRESTON, Paul. Protestantismo e política no Brasil: da constituinte ao impeachment.
Tese (doutorado) – Universidade Estadual de Campinas, Instituto de Filosofia e
Ciências Humanas, Campinas-SP. 1993.
MACEDO, Edir. Nada a perder. v. 1. São Paulo: Planeta, 2012.
MARIANO, Ricardo. Neopentecostais: Sociologia do Novo Pentecostalismo do Brasil.
5ed. São Paulo: Loyola, 2014.
697
ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO BRASILEIRO: OS
VENTOS DEMOCRÁTICOS SEMPRE ESTIVERAM PRESENTES
NA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL?

GISELLE ROCHA CLEMENTE


Graduanda em Direito pela UniEuro
e Iniciação Científica (UniEuro/FAPDF)

RESUMO: A reorganização dos aparelhos estatais que levam à emergência de um


Estado pós-moderno, corresponde ao surgimento reflexo de um Direito. Assim, o
Direito adapta-se ao concreto, aproximando-se aos indivíduos e adequando-se ao
contexto das sociedades que rege, passando a necessitar de demonstração concreta
de sua legitimidade. Logo, nota-se que a reordenação do dispositivo jurídico é
imposta por um imperativo de segurança jurídica, que aparece doravante como uma
exigência fundamental do Estado Democrático, o qual age por meio do Direito e que
se subordina ao Direito. No tocante ao Brasil, a análise histórica tem o propósito de
investigar os conceitos, os quais estabeleceram na Constituição de 1988,
especificamente, os dispositivos: proteção dos direitos do homem e a democracia.
Portanto, o debate do artigo mira no que é considerado “estado democrático de
direito no que tange a evolução histórica das constituições brasileiras” - indicando
sua importância e como a mesma se apresenta na ordem constitucional brasileira,
pós proclamação da República, em 1889. Somando-se a isso, será elucidado que o
Estado é regido pelo Direito, e por essa razão se torna o responsável pela ordem no
sistema jurídico em sua totalidade. A pesquisa também arrebatará o significado do
Direito e a importância da tripartição de poderes, para garantir a existência de uma
Democracia. Por fim, será dissertado pontos de reflexão sobre como o Brasil
caminhou rumo a Democracia. Apresentará análise interpretativo e científico dos
autores Jacques Chevallier, Hebert Lionel Adolphus Hart, António Manuel Hespanha e
Niklas Luhmann.

Palavras-Chave: Evolução; Constituições Brasileiras; Estado Democrático de Direito.

INTRODUÇÃO

O Estado é regido pelo Direito, o qual é responsável pela promoção da ordem,


no sistema jurídico, em sua totalidade. Segundo Chevallier (2009, p. 115) 2 “Estado e
Direito são realidades estritamente ligadas, a ponto de aparecerem tradicionalmente
como indissociáveis, consubstanciais uma à outra”.
698
O Direito, trata-se de uma forma de coerção para estabelecer direitos e
deveres para os cidadãos, ou seja, ele é responsável por dispor sobre certas
“punições” para as condutas consideradas reprováveis. Nesse toar, o Direito refere-se
“às regras morais que impõe obrigações e retiram certas zonas de conduta da livre
opção do indivíduo de agir” (HART, 2007, p. 11)”.
No que diz respeito aos direitos e deveres jurídicos, cabe ressaltar que os seus
recursos coercitivos são responsáveis por proteger a liberdade individual de cada
indivíduo e, concomitantemente, estabelece limites para cada sujeito exercê-los. Em
virtude disso, independente da norma ser considerada maléfica ou benéfica, ela é
crucial para a ordem da sociedade e para a existência do direito. Assim considerado,
o Estado de Direito é entendido como “um dos pilares da ordem internacional, ao
lado da democracia e dos direitos do homem com os quais ele forma um tríptico
cujos elementos se põem como indissociáveis” (CHEVALLIER, 2009, p. 204). Isto
posto, compreende-se que o Direito é responsável por proporcionar o impulso
necessário para o surgimento da Democracia e da Ordem Jurídica.
A Democracia é conceituada por Chevallier (2009), como um sistema de
governo que preza pela liberdade na relação política. Nesse sentido, o Brasil começou
a caminhar rumo à Democracia, na promulgação da Constituição de 1891, após a
proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Sabe-se que o Brasil passou
a adotar a forma Federativa de Estado e estabeleceu o Presidencialismo no País
(fatores estritamente ligados a Democracia). Nisso, ao adentrar nos pilares do Estado
Democrático de Direito, não cabe prosperar a existência de concentração de poderes.
Desse modo, a Constituição supracitada prezou pela independência dos poderes
(tripartição de poderes de Montesquieu) e extinguiu o poder Moderador.
Sendo assim, nota-se o grande avanço do Brasil em busca de tornar-se uma
Democracia, uma vez que para implementá-la o País adotou medidas relevantes
como as supracitadas e, concomitantemente, separou o Estado da Igreja, ou seja, o
País passou a ser laico, como também, ampliou o sufrágio vigente na época.
O modelo arrebatado pela Constituição de 1891 deve ser considerado um
grande início para a implementação de um Estado Democrático de Direito, em razão
de ser a primeira vez que é observada a existência da tripartição de poderes no Brasil
e, consequentemente, extinto o Imperialismo do País. No mais, sabe-se que,
posteriormente, o Brasil teve novas Constituições importantes para a consolidação da
Democracia no País, como a de 1934, a qual passou a permitir o voto feminino e
ampliou os direitos individuais dos cidadãos. Além dela, o Brasil contou também com
a Constituição de 1946, a qual redemocratizou o País, no período em que o
autoritarismo vivia regressando ao solo brasileiro. Contudo, conta-se, ainda, que o
Brasil retroagiu várias vezes, até consolidar sua Democracia, pois o País contou com a
existência de regimes autoritários, como os das Constituições de 1937 e 1967
(juntamente com a Emenda Constitucional de 1969). Períodos esses que marcaram a
história constitucional do Brasil, pela existência da centralização de poder no
Executivo, restrição de liberdades e do exercício do direito ao voto.
699
Ante o exposto, cabe destacar que o Estado Democrático de Direito somente
foi consolidado no País com a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual
estabelece a tripartição de poderes, conforme consta do “Artigo 2º: São os poderes
da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o Executivo e o
Judiciário”. Destarte, é relevante destacar a frase do Ministro do STF, Gilmar Mendes:
“A Constituição de 1988 garante os pressupostos para que essa democracia plena
seja atingida”4.
À vista disso, pode-se entender que, a Constituição de 1988 resignou o
significado do Estado Brasileiro e ostentou a expressão de seu poderio coletivo, haja
vista que um dos seus dispositivos basilares é que: o poder emana do povo; e é
exercido pelo sufrágio universal. O Estado Democrático de Direito Brasileiro,
consolidado em 1988, foi criterioso em aclarar em seus dispositivos a inexistência de
hierarquia dos poderes Executivo, Judiciário e Legislativo.
E com essa nova organização, no escopo do Texto Constitucional, afirma-se
que a Democracia foi autora do novo processo de racionalização de organização da
sociedade Brasileira, sobre os novos aspectos vigentes. Devido a essa reorganização
dos dispositivos jurídicos, é possível vislumbrar a existência de uma segurança
jurídica, a qual é responsável por atrelar-se a importância do Estado de Direito.
Considere-se, ainda, que o debate no que diz respeito a evolução histórica das
Constituições Brasileiras, abarca pontos importantes para o entendimento da
consolidação do Estado Democrático de Direito no Brasil.

ESTADO DE DEMOCRÁTICO DE DIREITO

O Estado Democrático de Direito é entendido como “um dos pilares da ordem


internacional, ao lado da democracia e dos direitos do homem com os quais ele
forma um tríptico cujos elementos se põem como indissociáveis” (CHEVALLIER, 2009,
p. 204), ou seja, ele é responsável por proporcionar o impulso necessário para a
democracia e também para a inexistência do socialismo. Acrescente-se também uma
definição distinta: “a exigência de reger-se por normas democráticas, com eleições
livres, periódicas e pelo povo, bem como o respeito das autoridades públicas aos
direitos e garantias fundamentais. (MORAIS, 2000, p. 43).

Além disso, os responsáveis por fundar o Estado de Direito, são os direitos


fundamentais concebidos como essenciais e destinados a comandar a ordem jurídica.
Em relação à Democracia, ela é considerada:

Um sistema de governo que tende a incluir a liberdade na relação


política de fato, a autoridade é organizada ‘de maneira tal que,
fundada sobre a adesão daqueles que lhe são submissos, ela
permanece compatível coma liberdade deles’: aquela não é senão
uma autoridade secundária, derivada, delegada. (CHEVALLIER, 2009,
pp.184-185)
700
Isto posto, o povo regido por uma Democracia, não é detentor de uma
responsabilidade direta nas questões relativas aos poderes que regem o país, uma
vez que o poder efetivo é exercido pelos cidadãos que ingressam por meio do
sufrágio universal (artigo 14 da Constituição Federal de 1988).
Ante disso, o Estado Democrático de Direito, refere-se a existência de um
poder legítimo, desde que ele emane do povo coincidentemente a existência de
coerção admissível considerando que o poder emana do povo (artigo 1º, § único da
Constituição Federal de 1988), ou seja, os governantes são subordinados durante
todo o mandato ao interesse público.
No Estado Democrático Brasileiro, é oportuno dizer que se instalou de maneira
permanente no país com a proclamação da Constituição Federal (CF) de 1988. Cabe
ressaltar que, somente foi possível falar em democracia brasileira após a
Proclamação da República, em 1889, responsável por extinguir o império no país.
Com a vigência do império, sabe-se que não prospera a democracia, em razão de que
não se pode falar em Estado Democrático de Direito diante da existência de
concentração de poder.
Destarte, verifica-se que o Estado Democrático de Direito mira na tripartição
dos poderes de Montesquieu, assim como preceitua a Carta Magna vigente: “Art. 2º
São Poderes da União, independentes e harmônicos entre si, o Legislativo, o
Executivo e o Judiciário”. Seguidamente, compulsando a Constituição de 1988, nota-
se que o Estado Democrático de Direito, outrossim, só é efetivado quando propicia
uma proteção/garantia dos direitos humanos em seu texto constitucional. Logo,
ressalta-se a importância de entender alguns pontos basilares do Estado Democrático
de Direito, em prol de visualizar a evolução das constituições brasileiras e,
concomitantemente, as marcas do Estado Democrático de Direito em algumas delas.

CONCLUSÃO

A reorganização dos aparelhos estatais, que levam à emergência de um estado


pós-moderno, corresponde ao surgimento reflexo de um Direito pós-moderno. O
Direito adapta-se ao concreto aproximando-se aos indivíduos e adequando-se ao
contexto das sociedades que rege, passando a necessitar de demonstração concreta
da sua legitimidade.
A reorganização do dispositivo jurídico é imposta por um imperativo de
segurança jurídica, que aparece doravante como uma exigência fundamental do
Estado de Direito, o qual age por meio do Direito e que se subordina ao Direito. No
tocante ao Brasil, a análise histórica tem propósito de investigar os conceitos
atrelados ao Estado Democrático Brasileiro, estabelecidos na Constituição Federal de
1988, especificamente aos dispositivos: Democracia Brasileira e consequentemente a
proteção dos direitos do homem. O debate da evolução histórica dos dispositivos da
Primeira Constituição Republicana 1891, até a Constituição Federal de 1988 é foco da
pesquisa, uma vez que o direito, é produção social.
701
Assim posto, é possível dizer que o Brasil começa a progredir como Estado em
1889, logo após a Proclamação da República, quando ele adota uma vertente
federativa de Estado, tornando-se secular, ao separar o Estado da Igreja.
A Constituição Federal de 1988 remete ao marco da consciência histórica na
Democracia Moderna Brasileira. Suscita-se que o Estado e Direito são fatores que
estão conexos. É tanto que, Chevallier, refere-se da seguinte forma: “Estado e Direito
são realidades estritamente ligadas, a ponto de aparecerem tradicionalmente como
indissociáveis, consubstanciais uma à outra (p. 115)”. Por conseguinte, o Direito
trata-se do vetor da modernidade, haja vista que objetiva a racionalização da
organização social de um Estado.
Por conseguinte, no que concerne ao Estado, apresenta-se como uma
entidade jurídica governada e regida pelo Direito, ou seja, ao falar-se em Estado de
Direito se atrela a Proteção dos Direitos do Homem e Democracia.

REFERÊNCIAS

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sua aplicação pelo Supremo Tribunal Federal, Brasília: IDP, Ano 6, no.2, jul./dez.
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Goiás, 2018.
702
ESTUDO COMPARADO: EXPECTATIVAS DE FUTURO DOS
ESTUDANTES DE ENSINO MÉDIO NO BRASIL E NA COREIA DO
SUL

ANA PAULA VELOSO DE ASSIS SOUSA


Mestre em Ciências Ambientais pela UniEvangélica
[email protected]

Helmer Marra Rodrigues


Graduando em Direito pelo Centro Universitário de Anápolis,
UniEvangélica – Campus Ceres
[email protected]

NAYALA NUNES DUAILIBE


Doutoranda em Antropologia Social pela UFG,
Mestre em Antropologia Social pela UFG
[email protected]

RESUMO: A presente produção científica tem como tema o estudo das expectativas
de futuro dos estudantes de Ensino Médio no Brasil e na Coreia do Sul. A partir desse
tema, surge a problemática de ser possível um estudo comparado entre discentes
provindos de sistemas educacionais com construções sócio-históricas-culturais tão
diferentes como a Coreia do Sul e o Brasil? Provém desse problema os objetivos de
estruturar, assim como contrastar as diferenças e similitudes entre os jovens de
Ensino Médio no Brasil e na Coreia do Sul. De maneira a sustentar esses objetivos, foi
utilizado o método comparado para obter resultados mais concisos dentro da
temática. Esse sendo sustentado no método comparado proposto por Dutra (2016),
em que podem ser comparadas instituições jurídicas e não-jurídicas, para a obtenção
precisa de resultados. Ainda para que esse método fosse melhor fundamentado, a
pesquisa bibliográfica em artigos científicos de repositórios acadêmicos e notícias
eletrônicas de jornais sul-coreanos, assim como brasileiros, foram utilizadas,
observando as leis que regem ambos os países. E também, as maneiras que elas são
aplicadas para os adolescentes, que devem estar no Ensino Médio, e sobre seus
pensares para o futuro em uma carreira, visto que essa é uma fase turbulenta da
vida, em razão de uma série de mudanças para com o ser. Com base nos dados
angariados, pode-se verificar que existe uma série de similaridades para a formação
dos alunos de nível médio no que refere-se a estrutura escolar, contudo as grandes
diferenças encontram-se na maneira com a qual cada sistema educacional aplica a
legislação e tenciona os discentes a terem visões diferentes para seu futuro, algo
703
também implicado pelas construções sócio-históricas-culturais, seja no Brasil ou na
Coreia do Sul.

Palavras-chave: Brasil; Coreia do Sul; Ensino Médio; Sistema Educacional.

INTRODUÇÃO

A temática desta produção de conhecimento cerca-se no estudo das


expectativas de futuro dos estudantes de Ensino Médio do Brasil e da Coreia do Sul.
Desse tema, tem-se uma problemática: será possível um estudo comparado dessas
expectativas de futuro dos alunos de nível médio do Brasil e da Coreia do Sul? Disso
parte o objetivo de estruturar essas expectativas dentro do espaço dos citados
países. Para estruturar o texto, será apresentado, sequencialmente, as expectativas
dos alunos de nível médio da Coreia, e posteriormente do Brasil. Sendo então feita a
comparação dentro das considerações finais, de acordo com os resultados
angariados.
Acreditamos que a temática aqui tratada, bem como sua relevância, se
justifica pela falta de conteúdo concentrado sobre os assuntos tratados, na área das
ciências jurídicas. Também acreditamos ser pertinente para a comunidade
acadêmica, a necessidade de discussão de alguns dos assuntos a serem tratados.
Os objetivos estão concentrados em responder as problemáticas propostas e
estruturados sequencialmente ao decorrer do texto. O primeiro objetivo é o de
estudar as expectativas de futuro dos jovens de ensino médio brasileiro e coreano,
sendo o segundo uma comparação dessas expectativas, verificando esse segundo nas
considerações finais as principais diferenças e similaridades entre elas.
Para a realização desse trabalho, foi empregada a metodologia da pesquisa
bibliográfica, com a leitura de teses, artigos científicos, notícias de jornais eletrônicos
e análises musicais de sítios eletrônicos especializados. Para complementar, foi
utilizada uma pesquisa documental em relatórios governamentais oficiais, tanto do
Brasil, quanto da Coreia do Sul, sobre números acerca da saúde mental dos
estudantes. Como o método que engloba a maior parte da pesquisa, foi feito um
estudo comparado dentro da temática, mas levando em consideração os ditos de
Dutra (2016), sobre a comparação ter de ser feita dentro das realidades dos
comparados.

ESTUDO COMPARADO DAS EXPECTATIVAS DE FUTURO DOS ESTUDANTES DE


ENSINO MÉDIO NO BRASIL E NA COREIA DO SUL

Os sistemas educacionais do Brasil e da Coreia do Sul, independentemente de


sua localização, construíram suas próprias visões, mesmo com influências regionais.
O sistema coreano teve influência do neoconfucionismo chinês e o brasileiro das
704
várias nações colonizadoras230, que eram, em sua maioria do cartesianismo. Mas,
cada um adequa essas bases às suas próprias realidades, de maneira a consolidar
melhor a construção social educacional, assim como formação histórica.
O Brasil, assim como a Coreia do Sul, possui diferenças latentes quanto ao
sistema de ensino, estando especificado em dados de provas internacionais, e acima
disso, a formação socio-histórico-cultural de cada país. O primeiro desses países
sendo secular e o segundo milenar, então tendo o segundo uma maior experiência
histórica sobre os “certos” e “errados” para a educação dos jovens do que o primeiro.
A educação foi algo frequentemente valorizado na sociedade coreana, herança
de tradições do confucionismo, que valorizavam o aprendizado e o desejo nacional
por grandes ganhos (ROK, 2015, p. 06). O neoconfucionismo prega a importância do
respeito hierárquico, começando pela faixa etária, no trabalho e na família, que é
igualmente aplicado no âmbito das amizades, da escola e de outros círculos sociais,
exigindo a utilização de honoríficos, quando alguém for dirigir-se a uma determinada
pessoa (ZHANG, LIN, NONAKA, BEOM, 2005, p. 9). Todavia, rememorando o século
XV, “responsável por promover as desigualdades entre os gêneros, o pensamento
Neo Confucionista afetou fortemente as mulheres no que diz à liberdade que tinham
até o final da Dinastia Goryo (dinastia precedente à Joseon)”. Pregando a
desigualdade entre os gêneros feminino e masculino, assim com relação ao concurso
público e à educação, que passaram a ser exclusividade para a nobreza (SANTOS, 201,
p. 629-630). No corrente sistema educacional coreano, que repassa por constantes
reformas, aquele modelo é conhecido como tradicional. Entretanto, mesmo sendo
um modelo tradicional, vários dos ensinamentos provindos do mesmo ainda estão
envoltos em problemáticas, ou para com hierarquia ou para a necessidade de
excelência acadêmica (K-PAPO, 2019; ASIAN BOSS, 2018, Online). Logo, prejudicando
em parte a saúde mental, com consequências graves na vida desses mesmos jovens.
O sentido de ter respeito é defeituoso a partir do momento que os jovens têm de
suprimir suas verdadeiras naturezas, desde maneiras de agir até sobre divergência de
pensamento de decisões, que afetarão seu futuro.
Então, quando K-idols231 como BTS, ATEEZ, Dean e JongHyun fazem críticas ao
sistema educacional, a saúde mental dos sul-coreanos em suas músicas, estão tanto
adereçando problemas por eles vividos, quanto algo presente em sua sociedade;
essas adversidades apresentadas precisam ser observadas com mais cuidado e a
devida atenção por parte do governo sul-coreano, da sociedade, assim como pelo
sistema educacional.
O boygroup BTS, nas músicas, assim como nos mvs (music videos232), “No More
Dream” e “N.O” questionam se “eles” (alunos sul-coreanos) são máquinas de estudo,
porque eles não impõem-se sobre esse ideal deturpado e seguem para a realização

230
Entende-se aqui como tendo o Reino de Portugal sendo o principal colonizador, mas também havendo um
grande fluxo migratório, assim como outros colonizadores por toda a extensão do país. Visto que foram várias
as influências que o Brasil teve ao longo de sua história escrita.
231
Ídolos sul-coreanos, em tradução livre, que são pessoas treinadas e construídas dentro de um modelo da
indústria da música popular sul-coreana (DEWET, IMENES, PAK, 2017)
232
Vídeos musicais – Tradução livre
705
de seus próprios sonhos? (GENIUS, Online; RODRIGUES; VIEIRA, 2019, p. 174). Outro
apontamento encontra-se em várias outras músicas do BTS; eles discutem sobre as
dificuldades de ser jovem em uma sociedade opressiva, que exige deles mais do que
eles podem doar. Em contrapartida, as músicas falam sobre como cuidar da própria
saúde mental nesse ambiente, lições para amor próprio e entre outras temáticas
necessárias, em vista de transtornos nos meios sociais da Coreia.
Dean, um rapper sul-coreano, apresentou sobre a liquidez das relações sociais,
em sua música “Instagram”, em que ele crítica que as pessoas estão dando
preferência a relações, por vezes, passageiras, construídas em redes sociais virtuais
(DKDKTV, 20, Online). ATEEZ, também um boygroup sul-coreano, descreve sobre a
necessidade de os mais velhos ficarem “de lado” e deixarem que eles, como jovens,
sigam o próprio ritmo, pois caso tenham de errar, que o façam, mas por escolha
própria, como é tratado na letra da música ‘Thanxx’, “걱겅은 no, thanks, I`m okay
(oh-ooh) 난 그저 나일뿐인걸 (Hey, hey)”233 (ATEEZ; BOOKISH THOERIES; GENIUS,
2020, Online). Jong Hyun, em “Lonely” retratou sobre tristeza e miséria, que em
coreano somente diferem por uma letra e o idol faz um trocadilho com essas
palavras, que inferem o mesmo significado, apesar de afirmarem estados diferentes
(GENIUS, 2020, Online).
As críticas trazidas nessas letras podem ser identificadas como alertas para os
números de suicídios na Coreia, em grande parte, devido à pressão pela perfeição. Os
próprios cidadãos consideram comum a depressão motivada pelo perfeccionismo, e
caso alguém procure um psiquiatra para tratar dela, será considerado dispensável
pelos outros, em seu meio social, e não alguém proativo, necessário para a sociedade
coreana (ASIAN BOSS, 2018, Online).
Em 2012, houve a inauguração do National Youth Healing Center234, órgão do
Ministério de Gênero, Igualdade e Família, para a prevenção ao suicídio dos jovens
coreanos (DEWET; IMENES; PAIK, 2019; NYHC, Online), havendo aumento do
investimento em políticas públicas de promoção a saúde mental, em 8%, no ano de
2017, pelo governo da Coreia (K-PAPO, 2019; NYHC, Online).
Em reportagem do ‘The Korean Herald’, baseada em relatório do ‘Statistis
Korea’, foi descrito que o suicídio é um problema crônico da Coreia, sendo até
considerado como uma praga, visto que em uma “taxa de 7.7% de 100.000 pessoas,
se apresentam com idade entre 9 e 24 anos”, de mortes por suicídio, em 2017,
“havendo uma baixa de 7.8 em 2016” (KOSTAT, 2019, Online). Dentre as principais
causas apontadas pelo relatório, estão as pressões sociais que esses adolescentes
sofrem, como: o futuro emprego, a performance acadêmica e a aparência física. Esse
relatório descrimina que 45% dos adolescentes coreanos, de 13 a 24 anos, relataram
sofrer de muito estresse em 2018, tendo como maiores causas, o trabalho e a escola.
Outro tópico a ser observado, está no aumento das taxas de pessoas com depressão,

233
“Your worries? No thanks, I’m ok//I’m just doing me”, em tradução livre fica: “Suas preocupações? Não,
obrigado, estou bem//Estou fazendo por mim” (ATEEZ; GENIUS, 2020, Online)
234
Centro Nacional da Cura para a Juventude (Tradução livre)
706
número de fumantes e consumidores de álcool de alguma forma entre os anos de
2017 e 2018 (KOSTATISTICS, 2019; YONHAP, 2019, Online – Tradução livre).
Quando apontadas essas legendas para o Brasil, que tem um sistema
educacional diferenciado, tem-se outros resultados. Segundo apontou a diretora da
Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, Fátima Marinho, o suicídio
é a quarta maior causa de mortes de jovens brasileiros, abaixo apenas dos acidentes
automobilísticos (MOREIRA, 2018, Online). Dentre as principais causas estão
problemas ligados à situação financeira familiar, distúrbios mentais e famílias
desestruturadas, e entre os principais meios para dar fim à vida, estão o
enforcamento, a intoxicação exógena e armas de fogo (BRASIL, 2017, Online),
diferenciando-se da Coreia, por seu sistema educacional e sua formação histórica,
contando com uma melhor assistência de saúde, mesmo com o tabu contra os
cuidados a saúde mental (ASIAN BOSS, 2018, Online).
Existe certa dificuldade em comparar, de forma mais aproximada, os números
de pessoas que tiraram a própria vida no Brasil, com os da Coreia. O próprio Boletim
Epidemiológico do Ministério da Saúde, assim como o Atlas da Violência de 2019 e
2020, confirmaram que no que se refere aos casos de suicídio, que chegam às
Delegacias de Polícia, os investigadores não conseguem adequar, dentro de um crime
específico, para seguir a investigação. Eles o colocam como crimes de difícil ou
impossível identificação, mesmo com a presença de lesões auto infligidas pela vítima,
logo prejudicando os dados a serem coletados e havendo uma boa compreensão
daquilo que pode estar ocorrendo com a população, dentro de casos de violência,
que podem acercar os estudantes de nível médio (BRASIL, 2020, Online), havendo,
portanto, imprecisão nessa definição somente por perfis socioeconômicos.
A educação no Brasil é uma adaptação do método cartesiano, com as figuras
do professor como educador e do aluno como educando. Todavia, agora o educador
atua mais como facilitador na compreensão do conhecimento em relação ao
educando (OLIVIERA, 2017, p. 59). Com os educadores tornando-se mais adeptos às
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), eles estão aprendendo junto com o
educando maneiras mais simples, na forma de se ministrar as aulas e os
conhecimentos serem apreendidos (CARVALHO; KIPNIS, 2010, online). Esses fatos
estão tornando-se reais, pelas necessidades de ensino mais próximas da realidade
dos educandos, sendo, então, desnecessárias as diversas dificuldades criadas pelo
método cartesiano do ensino mais tradicional, em que práticas como exemplos
abstratos, por vezes continuam a ser utilizados (CARVALHO; KIPNIS, 2010, online).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Em vista dos dados apresentados, verifica-se que existem diferenças latentes


entre os sistemas de ensino e entre as expectativas de futuro dos jovens de Ensino
Médio do Brasil e da Coreia do Sul. Entretanto, apesar das grandes diferenças,
também existem semelhanças, que podem ser traçadas e alguns pontos positivos,
tais quais negativos, em que um país pode aprender com o outro.
707
Um ponto comum entre os estudantes de nível médio brasileiros e sul-
coreanos, seria a questão do trabalho, a diferença sendo a finalidade primária desses
estudantes. Para os brasileiros, muitas vezes está a necessidade de ajudar na renda
da família, trabalhando durante e após o curso do Ensino Médio, não tendo uma
obrigatoriedade de cursar uma graduação, como é na cultura da Coreia do Sul. Os
estudantes coreanos de nível médio, geralmente tem empregos de meio período,
que os auxiliam em sua renda própria, guardando o excedente para em uma
poupança para a graduação.
Essa questão do trabalho, atrelada ao estudo, também leva a outros tópicos,
tais como: a pressão para o estudo, mesclada com uma excelência acadêmica, para
entrada na Universidade. O número de pessoas que adentram na graduação na
Coreia é muitas vezes maior que no Brasil, conforme apontam várias produções
científicas que pesquisam sobre saúde na educação, estado psicológico, ou mesmo
sobre cumprimento de medidas legais de segurança da saúde mental escolar.
Prontamente, não havendo esse culto ao pedigree acadêmico pelos estudantes de
ensino médio brasileiros no mesmo nível. Um último ponto a ser destacado, é a
dificuldade de compilação de dados sobre suicídio, pelos sistemas governamentais
brasileiros responsáveis. Há uma probabilidade de ser pela falta de ensino e
discussão acerca da temática com maior frequência, de maneira a romper esse tabu
social de que o debate sobre suicídio influência de forma direta na prática do ato.

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___________. “N.O”. Letras por: Pdogg; “Hitman” Bang; RM; Suga; Supreme Boi. O!
RUL8, 2?. Produzida por: Pdogg. Big Hit Entertainment, 2013. CD. Track 2.
710
GOVERNO, PASTORADO CRISTÃO E CONDUTA NO
CRISTIANISMO PRIMITIVO: UMA LEITURA A PARTIR DE
SEGURANÇA, TERRITÓRIO E POPULAÇÃO DE MICHEL
FOUCAULT (2008)

GABRIELA MARIOTTO DE ALMEIDA SANTOS


Graduanda em Filosofia
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

DOUGLAS FERREIRA BARROS


Doutor em Filosofia
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]

RESUMO: O objetivo do resumo é mostrar uma parcela da pesquisa intitulada


“Governo, pastorado cristão e conduta do cristianismo primitivo”, que busca analisar
o pastorado cristão, tendo como foco a relação do pastor com seus fiéis e como se
estabelecem, dentro do contexto do cristianismo primitivo. Desde o curso ministrado
por Michel Foucault, cuja titulação é Em Defesa da Sociedade, de 1976-77, o filósofo
se propõe a fazer uma revisão do poder. No curso seguinte, no qual essa leitura se
dedica a analisar, no que refere à obra Segurança, Território e População, de 1977-
78, o filósofo desloca sua análise sobre os mecanismos de controle sobre a vida,
chamado de forma mais consistente, posteriormente, de biopoder. Pretendemos dar
ênfase à aula de 1 fevereiro de 1978, na qual é colocada em questão a problemática
do governo e como será entendido o poder, nesse exercício perante os homens.
Assim, a partir da breve apresentação que o filósofo faz, no que diz respeito sobre a
passagem do governo, da soberania para governo movido por determinadas técnicas,
será possível fazer a relação com o contexto do cristianismo primitivo, na próxima
etapa. Mencionaremos noções importantes para compreensão do contexto, como:
governo, poder e o que podemos dizer que é o começo do corpo teórico da
biopolítica. Portanto, a partir da interpretação dos textos de Michel Foucault, come
este trabalho pretendemos estudar noções, como: governo, poder e biopolítica,
visando como resultado demonstrar as relações entre os mesmos e como estas se
fazem necessárias visando um fim específico da vida cristã.

Palavras-chave: Governo; Pastorado cristão; Cristianismo primitivo; Foucault.


711
INTRODUÇÃO

O cristianismo é uma religião que está intimamente ligada à formação do que


se convencionou chamar de cultura ocidental. Ao longo dos séculos, manteve forte
presença nas instituições políticas e postura dominante sobre as populações, por
meio de um discurso potente, materializando-se por técnicas de controle sobre a vida
dos homens, que se encaixam e se moldam conforme o período histórico.
A partir da leitura de “Segurança, Território e População 235 (2008)”, esse
trabalho busca analisar o momento em que Michel Foucault esclarece a problemática
do “governo”. Procura-se aprofundar a passagem do governo soberano, para um
modelo de governo que se estrutura a partir de certas técnicas específicas. Vale-se
ressaltar que Foucault faz essa análise a partir da perspectiva dos modernos e o
estudo se estabelece no período do séc. XVI ao séc. XVIII.

O PROBLEMA DO GOVERNO - MULTIPLICIDADES DAS PRÁTICAS DE GOVERNO

Michel Foucault inicia a aula proferida em primeiro de fevereiro, evidenciando


que em períodos passados, como na Antiguidade greco-romana e na Idade Média, os
tratados de como governar já eram estruturados com a finalidade de manter o
principado, pela subordinação, com o “exercer o poder”. Porém, destaca a
notoriedade dos tratados da ciência política, que começam a ser desenvolvidos do
séc. XVI ao séc. XVIII, que são apresentados socialmente como as artes de governar.
Após feita essa distinção, vemos que o problema do "governo" é circunscrito
por Foucault no séc. XVI, em que se aprofundam múltiplos aspectos no que se refere
às práticas de governo, como por exemplo, governo de si, governo das almas e
condutas236, dentre outros.
Diante desses aspectos, são estudadas as questões como: governar, ser
governado, como aceitar e quais os métodos utilizados para tais práticas. Assim,
surgiram em meio a dois processos distintos, mas que se influenciaram, a
modificação da estrutura feudal, para a instauração dos grandes Estados
(“concentração estatal”), o processo conturbado da reforma e contrarreforma
(“dispersão religiosa”).

GOVERNO DO ESTADO SOB SUA FORMA POLÍTICA: LITERATURA SOBRE O GOVERNO


– TRATADO DAS HABILIDADES DO PRÍNCIPE X TRATADO DO GOVERNO

Após a contextualização da problemática “governo”, bem como falar sobre os


múltiplos aspectos e problemas que o acompanham, Foucault inicia o processo da
análise da passagem de um governo soberano para o novo contexto. Essa passagem é

235
Segurança, Território e População(2008) foi um curso ministrado pelo filósofo Michel Foucault no Collège de
France no período de 1977-1978.
236
Michel Foucault ao longo da aula, esclarece alguns dos múltiplos aspectos que se referem às práticas de
governo, e destaca que essas que são citadas são problema específico da pastoral cristã e protestante, vale-se
ressaltar, porque será de extrema importância para próxima etapa da pesquisa.
712
feita com base na obra O príncipe, de Maquiavel, que reaparece nesse período do
séc. XV,I pela noção de reestruturação territorial. A literatura anti-Maquiavel, que
surgiu também nesse período, vem dos meios católicos. O filósofo analisa pelos
reflexos, no conhecimento prático, ou melhor, da arte de governar.
Foucault primeiro estabelece na análise práticas de governo em
diversas modalidades interiores ao Estado, o que se opõe à singularidade proposta
em Maquiavel, o qual tem como foco manter seu principado de forma violenta.
Referente a três tipos de governo que se encontram no interior do Estado,
como: governo de si mesmo, arte de governar a família (pertence à economia) e
governo do Estado (pertence à política), são apresentadas por Foucault como
continuidade uma das outras, ao contrário da doutrina do príncipe, que estabelece a
sua separação. Essa continuidade proposta é dividida em dois processos, sendo a
continuidade ascendente, que é saber governar a si e a sua família antes de tudo, e o
outro que é o descendente, que é quando o bom governo do Estado reflete na
conduta dos indivíduos e na gestão familiar.
O filósofo avalia uma forma específica e particular de governo, que se
aplica tanto ao Estado, quanto ao governo da família, que é uma chave importante
para a compreensão do processo ascendente e descendente, de exercício de poder,
reconhecido por “economia”. A essa introdução econômica no exercício político,
Foucault classifica como “meta essencial do governo”. Ao se governar um Estado, o
responsável pelo governo aplica a “economia”, no sentido de governar corretamente
os indivíduos por formas de vigilância237.

REVERSÃO DA LEI COMO UM BENEFÍCIO DE TÁTICAS DIVERSAS DE GOVERNO

Evidenciado o problema, bem como se inicia seu processo de mudança na


história, acerca do governo, Foucault (2008, p.128) classifica a diferença dos modelos
de governo, no que diz respeito ao que visam como um fim. Para o príncipe, as
“coisas” são os objetos sobre as quais age o seu poder, e o alvo desse poder é o
território e as pessoas que o habitam. Já essa definição de “coisas” no governo, não
se refere ao território, mas ao modo como “governam-se as coisas”, se referindo-se
também aos homens e suas relações com as “coisas”, que, no caso, se entende pelos
bens, meios de subsistência, etc. classificados como hábitos e maneiras de pensar.
Nessa perspectiva, o governo acerca do território como propriedade é visto como
algo secundário e variável.
Conclui-se que o governo dispõe das coisas visando um fim, aspecto
esse também de diferenciação entre governo e soberania. O soberano propõe
sempre um fim adequado, visando o bem comum e a salvação de todos, sendo que
esse bem comum é visto como obediência às leis do soberano, tendo como finalidade
a obediência para manter o principado. Já o governo dispõe das coisas para o “bem

237
Essa arte de governar, como descreve Michel Foucault, do modelo familiar, é exercer o poder na forma e
segundo o modelo da economia. Até então, nesse momento da análise, classifica como a “essência desse
governo” (FOUCAULT, 2008, p. 127).
713
adequado”, para as coisas que devem ser governadas. O objetivo do governo, se
alcança dispondo e se apropriando das coisas, através de táticas, fazendo parecer agir
em função de seus governados. Ao contrário do soberano, um “bom governador”
deve demonstrar “paciência, sabedoria e diligência”, tendo conhecimento das coisas
(objetivos) e demonstrando estar a serviço dos governados. As diferenciações entre
governo e soberano se dão na caracterização.

OS OBSTÁCULOS À APLICAÇÃO DE UMA ARTE DE GOVERNAR ATÉ O SÉC. XVIII

Quanto a essa noção de governo analisada até aqui, Foucault diz que “ainda é
muito tosca, apesar de alguns aspectos de novidade” (FOUCAULT, 2008, p.133). O
filósofo esclarece que o motivo era porque essa noção, ainda um esboço, não ficava a
cargo de teóricos políticos. Já a teoria da arte de governar foi desenvolvida, porque
se concentrou nas monarquias territoriais, e o aparecimento dos aparelhos de
governo e dos seus representantes, estava relacionado com o modelo de saberes que
se desenvolvia no séc. XVI e, de forma mais ampla, no séc. XVII. Tais conhecimentos
se alinhavam aos conhecimentos do Estado, a partir de uma “ciência do Estado”, que
ficou conhecida como “estatística”.
A busca por uma nova arte de governar só se amplia no séc. XVIII,
permanecendo até esse período, no interior da monarquia administrativa, segundo
Foucault (2008, p.135), por um número de razões, como: razão histórica, as guerras
que se deram na Europa no sec. XVII, as crises geradas e o reflexo que isso teve na
política monárquica ocidental.
O fato de o exercício do poder ter sido pensado como exercício da soberania, a
arte de governar não poderia se desenvolver de maneira específica e autónoma; Um
exemplo disso é o mercantilismo, que ele classifica como primeira sanção dessa arte
de governar. Sendo assim, foi “a primeira racionalização de exercício de poder como
prática de “governo”238 (FOUCAULT, 2008, p.136).
O objetivo do mercantilismo era o poder soberano e seus
instrumentos/ferramentas como as leis e os decretos. E esse caminho seguido pelo
mercantilismo procurava uma arte refletida no governo, que entrasse na estrutura
institucional e mental da soberania. Porém, esse movimento circular bloqueia essa
arte específica. Entre o séc. XVII e início do século XVIII, com mudanças nos temas
mercantilistas, a arte de governar ficou estagnada, sendo a soberania vista como um
problema. Assim, teve que ser reavaliada por juristas, tendo que atualizar a teoria do
contrato, focando seus princípios não mais nela mesma, mas nas relações recíprocas
entre os soberanos e seus súditos.
O desbloqueio dessa arte de governar se deveu especificamente pela
“emergência do problema da população”. É a partir do desenvolvimento da ciência
do governo que a economia se recentraliza, para além da família e também parte

238
Momento em que os saberes do governo e conhecimento do Estado estavam se entrelaçando e desvelando
um saber do Estado capaz de ser utilizado como tática de governo, porém só se desenvolve de fato, com o
problema da população.
714
daqui a análise da problemática da população. A partir dessa percepção, é possível a
Foucault pensar o problema do governo fora do marco jurídico soberano. A
“estatística” é pensada no marco mercantilista, no interior da administração
monárquica, sendo favorável no campo da problemática da população, mas como um
dos fatores técnicos principais para o desbloqueio da arte de governar.
A análise da população e dos fenômenos que partem dela própria,
contribuíram para o desbloqueio dessa arte de governar ao concentrar a noção
econômica em outra perspectiva que não a familiar. A “estatística” mostra como a
população é, a partir das suas regularidades próprias, comportando sua agregação e
seus fenômenos não são mais reduzidos ao modelo da família 239. Foucault (2008,
p.138) demonstra também como a população produz efeitos econômicos específicos.
Temas morais e religiosos são exemplos de temas específicos, que provam que a
especificidade da população é irredutível ao âmbito da família, e essa como modelo
de governo some. Mas, aparece no interior da população, e como segmento
privilegiado é um apoio importante para governar a população.
O filósofo esclarece o deslocamento da família, de nível modelo para o
nível que será utilizado como algo instrumental. A população passa a ser uma meta e
um instrumental final do governo, isto é, aquela finalidade já citada, que começa a
ser pensada no séc. XVII. A relação entre quem governa e quem é governado fica
mais clara nesse momento. A população como finalidade é uma forma de melhorar
sua “própria sorte”. Assim, a população é usada como um mecanismo que age
diretamente sobre ela mesma, por meio de campanhas, tendo como exemplo,
campanhas de vacinação, e de forma indireta, por técnicas, possibilitando seu
controle sem que as pessoas percebam240. Foucault demonstra, a partir dos
mecanismos de controle, como o sujeito aparece como consciente perante o
governo, porém, sem a noção completa do processo de assujeitamento. Os interesses
e aspirações individuais dos sujeitos que compõem a população vão ser o
instrumento fundamental do governo das populações. Assim nasce uma arte, ou em
todo caso, táticas e técnicas novas.
A população vai ser o objeto que o governo passa a levar em consideração nas
suas observações, seus saberes, para retornar a “paciência do soberano”, que já foi
classificada como uma característica importante anteriormente, para esse novo
governo. Assim, governando de maneira racional, refletida nas ações, a constituição
de um saber de governo, deve considerar todos os processos que cercam a
população, os quais são chamados por “economia”.
As relações que vão se desvelar entre a população, território e riqueza,
constituirão a “economia política” e uma intervenção característica do governo, pois

239
Foucault esclarece quais são os fenômenos que não se encaixam mais no modelo familiar, como: “serão as
grandes epidemias, as expansões epidêmicas, a espiral do trabalho e da riqueza”. (FOUCAULT, 2008, p.138)
Pois não suportam mais por si mesmas no modelo familiar, precisam de uma outra forma, que possa ser
utilizado também como mecanismo de controle da população.
240
Esse controle é feito de modo que as pessoas não percebam, como por exemplo, através “taxa de
natalidade, ou dirigindo nesta ou naquela região, para determinada atividade, fluxos e etc” (FOUCAULT, 2008,
p.140)
715
intervêm no campo econômico e populacional no séc XVIII. Foucault evidencia que a
soberania não desaparece por conta dessa reorganização política e jurídica, mas
quando a arte de governar toma corpo na forma institucional e, de forma sutil,
substitui a soberania no fundamento do direito que caracteriza o Estado. Essa
constituição do princípio geral de governo, que se forma a partir de certas noções,
coloca o princípio jurídico soberano, como elemento que caracteriza também a arte
de governar.
Nesse contexto, a disciplina é um importante fator para administrar a
população, de forma sutil, detalhada e profunda. Não se excluem as formas de
governo, ou melhor, de controle. Forma-se o que o filósofo chama de triângulo:
soberania, disciplina e gestão governamental. E assim, o governo, ou como é
colocado por Foucault, “a gestão governamental”, se classifica pela população e a
economia política, a partir do séc. XVIII, promovendo por essa série uma sólida
estrutura de governo.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O estudo presente é uma análise estabelecida segundo a perspectiva


filosófica, pelo método genealógico241. Foucault classifica tal método como um
instrumento de investigação, que tem por objetivo ativar saberes locais e
descontínuos, e assim, combater os saberes produzidos e relacionados a uma
instituição. Na análise dessa aula percebe-se essa investigação, pelo estudo da
problemática do “governo”, que foi estruturado como uma prática de manipulação
sobre as pessoas.
Assim, a próxima etapa da pesquisa consiste em investigar, a partir das
introduções de poder que Foucault desenvolve ao longo da problemática do
“governo”242, como as múltiplas práticas e técnicas de governo sobre a vida se dão,
nessa passagem dos tratados da arte de governar, e vão servir na dinâmica de
governo da vida do cristianismo primitivo analisando como, a partir do controle do
pastor sobre os fiéis, reflete de forma significativa fazendo com que eles reproduzam
uma disciplina sobre si mesmos, diante de um controle total.

241
Michel Foucault define em Microfísica do poder(2018), no subtítulo Genealogía e poder, que a genealogia
como instrumento de investigação não faz uma análise histórica, mas sim “trata-se de uma insurreição dos
saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao
funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa”. (FOUCAULT,
2018, p.268)
242
Como é analisado por Fabio Gonzaga em sua tese de mestrado, evidencio aquilo que podemos
compreender de maneira geral por governo, para explicar melhor esse processo das introduções de poder.
Assim, vale ressaltar, especificamente na modernidade, que isso ocorre de maneira substancial, pois se desvela
nas condutas dos sujeitos, isto é, relações de poder que podem acarretar “condução de condutas” (GONZAGA,
2020, p.5)
716
REFERÊNCIAS

GONZAGA, F. G. Um cristianismo por Michel Foucault: pastorado cristão e vida


monástica a partir de uma leitura das práticas de governo. Dissertação. (Dissertação
em Ciências da Religião) - PUC. Campinas, 2020.
FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. Tradução e organização Roberto Machado.
8 ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2018.
FOUCAULT, Michel. Segurança, território, população: curso dado Collège de France
(1977-1978). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2008.
717
LEVANTAMENTO HISTÓRICO ARTÍSTICO DA MULHER NA
PINTURA NO SÉCULO XV

LAURA BEATRIZ ALVES DE OLIVEIRA


Mestranda e Graduanda em História
Pontifícia Universidade Católica de Goiás
[email protected]

CLÓVIS ECCO
Doutor em Ciências da Religião pela PUC Goiás e
Coordenador do Programa de Ciências da Religião da PUC Goiás
[email protected]

“As mulheres foram, durante muito tempo, deixadas na sombra


da História”. 243

RESUMO: O Século XV foi um período peculiar para a História da Arte, pois, inicia-se
ainda acorrentado ao preceitos medievais e termina no auge da pintura
Renascentista e da busca pela Razão. No período Medieval o feminino foi sacralizado
na visão de Maria ou deturpado relacionado ao pecado com Eva ou as Bruxas. Com o
Renascimento, e principalmente com o artista Sandro Botticelli e sua Vênus, foi
possível romper com os padrões impostos sobre o corpo da mulher. Trazendo então
a pureza e a beleza feminina sem intenção de vulgarizar, mas sim de valorizar.

Palavras-chave: Renascimento; Feminino; Pintura.

INTRODUÇÃO

O gênero enquanto uma categoria de análise histórica, conforme propôs Joan


Scott (1995), é tanto um elemento constitutivo das relações sociais, fundado sobre as
diferenças percebidas entre os sexos, quanto uma maneira primária de significar
relações de poder. Tal perspectiva de estudo ampliou-se ao longo dos anos 1990, e
teve na referida autora um de seus marcos teóricos. Falar de gênero significava
deixar de focalizar a ‘mulher’ ou as ‘mulheres’. Tratava-se de relações entre homens
e mulheres, mas também entre mulheres e entre homens. Nessas relações, o gênero
se constituiria. Gênero não é sinônimo de estudo sobre as mulheres.

243
(DUBY; PERROT, 1995, p. 07)
718
Trata-se assim do estudo das relações sociais entre os sexos, pontuando a
necessidade de estudar as mulheres em e na relação com os homens. A utilização,
nas obras historiográficas, do gênero como categoria socialmente construída,
constituiu-se em questionamento eficaz do determinismo biológico, chamando a
atenção para as relações de poder, relações estas, que podem ser analisadas através
da Arte, como a pintura no final do medievo e início do Renascimento durante o
século XV. Sendo este período, o objeto fundamental de pesquisa deste artigo para
se compreender a situação do feminino no período.
Partindo do pressuposto de gênero e o determinismo biológico imposto
sobre o feminino no renascimento para se compreender a degradação da mulher na
história e como isto refletiu na História da Arte, é necessário retornar à Reforma de
Josias244. Onde o culto das deusas desaparecera, sinalizando uma transformação
cultural, característica do mundo recém-civilizado e conquistado por Javé, o único
deus. Daí em diante, até os dias atuais, as mulheres foram marginalizadas,
inferiorizadas, subjugadas pelo masculino. A partir de então, foram colocadas em
situação de inferioridade pelo patriarcalismo, e depois de Javé, também pelo aspecto
religioso. Aspecto historiográfico este, essencial que contribuiu para a construção do
feminino durante a idade média e renascimento no século XV. Onde, seu processo de
inferiorização pode ser analisado nas obras de arte, em especial a pintura, desde o
fim do medievo até o renascimento, sendo o objetivo principal desta pesquisa.

O FEMININO REPRESENTADO NO FINAL DA IDADE MÉDIA

Javé passou a ser intitulado o único deus pela Reforma religiosa introduzida
por Josias245 (649 – 609 a.C.), rei de Judá. Àquela altura, a nação das tribos israelitas
de Canaã tinha sido dividida em dois reinos. O culto das deusas então desapareceu,
sinalizando uma transformação cultural característica do mundo recém-civilizado e
conquistado por Javé, o único deus. Daí em diante, até os dias atuais, as mulheres
foram marginalizadas, inferiorizadas, subjugadas pelo masculino. Colocadas em
situação de inferioridade pelo sistema patriarcal, e depois de Javé, também pelo
aspecto religioso246. Aspecto historiográfico este, essencial que contribuiu para a
construção do feminino nos séculos posteriores e na pintura durante o fim da idade
média e inicio do renascimento no século XV.
No fim da Idade Média e inicio do Renascimento as mulheres por sua
condição de cristianização e religiosidade, fez gerar estereótipos e valores, as

244
Javé passou a ser intitulado o único deus pela reforma religiosa introduzida por Josias (649 – 609 a.C.), rei de
Judá. Àquela altura, a nação das tribos israelitas de Canaã tinha sido dividida em dois reinos. Um ao norte, o de
Israel, e um ao sul, o de Judá. E o de cima havia sido derrotado e conquistado pelo Império Assírio. Josias não
queria o mesmo destino. E parte de seus esforços para fortalecer a unidade interna de Judá e resistir aos
invasores foi uma maior centralização da vida religiosa do reino. Para isso, ele começou a transformar Javé no
único deus adorado por seus súditos. Disponível em:< LOPES, José. (2016). Deus, uma biografia. Disponível em:
https://super.abril.com.br/historia/deus-uma-biografia/.

246
ARMSTRONG, KAREN. 2009. Um Único Deus: O Fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no
islamismo. Trad. Hildegard Feist. (1º ed). São Paulo: Editora Companhia de Bolso.
719
deixando “invisíveis” ao mundo. Por meio dessa cultura masculinizada, agregando
uma desigualdade entre o masculino e o feminino, fica evidente e reforça os
discursos eclesiásticos que caracterizam a inferioridade das mulheres, denominadas
como responsáveis por atos de feitiços e magias, passando a serem representadas
como detentoras do pecado (fig.01, p.4). A influência das instituições eclesiásticas na
sociedade medieval contribuiu para uma moral que definia os papéis sociais ligadas
ao gênero, a partir dos discursos religiosos, surgindo então, a figura da mulher
comparada a Eva, responsável pelo pecado original, e à Virgem Maria. A Virgem
Maria (Fig.02, p.4) seria então o modelo do feminino a ser seguido, criando, assim,
representações por meio dessas figuras, que se relacionam entre o poder e o
imaginário, que estão representados na arte deste período. Considerando o conceito
de representação para nos auxiliar nos estudos que abordam sobre as mulheres no
fim do período medieval e inicio do Renascimento, pode-se articular com a categoria
de gênero, sendo apresentadas como submissas e controladas pelo poder masculino,
estabelece-se, assim, uma subjetividade nas práticas sociais, nas políticas culturais e
nas diferenças entre os sexos. Joan Scott apresenta a seguinte afirmação:

Uma maneira de indicar “construções sociais” - a criação


inteiramente social de ideias sobre papéis adequados aos homens e
às mulheres. É uma maneira de se referir às origens exclusivamente
sociais das identidades subjetivas dos homens e das mulheres. O
gênero é, segundo essa definição, uma categoria social imposta sobre
o corpo sexuado. (SCOTT, 1995, p. 75)

Imagens 01 e 02: As Quatro Bruxas, Durer (1497), e A virgem no Caramanchão de


Rosas, Stefan Lochner (1440).

Fonte: WIKIPEDIA, As Quatro Bruxas de Albrecht Durer.247


VIRUS DA ARTE, A Virgem do Jardim das Rosas, Stephan Lochner. 248

247
Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/19/Albrecht_D%C3%BCrer_-
_As_quatro_feiticeiras.jpg
248
Disponível em: https://virusdaarte.net/stephan-lochner-a-virgem-do-jardim-das-rosas/
720
De acordo com a afirmação de Dalarun “O prazer é antes de mais, o prazer do
homem” (DALARUN, 1993, p. 85), pois, a sexualidade feminina neste período era
considerada como um ato desviante no meio social, pois, para a Igreja, a mulher
deveria permanecer pura, ou manter relações sexuais após o casamento, com a
finalidade de procriação. As mulheres não tinham o direito ao prazer sexual, uma vez
que a sociedade masculina era incumbida de não deixá-las ter orgasmo. Como
reforça o autor MACEDO (1990):

[...] A mulher era vista pelos religiosos como “naturalmente” inferior


ao “sexo viril”. Deus havia criado primeiro o homem. Ele foi criado à
imagem e semelhança do Todo-Poderoso. Ela era meramente um
reflexo da imagem masculina, uma imagem secundária. [...]
Considerada a responsável pela queda da humanidade no pecado, a
dominação do esposo sobre ela e as dores do parto eram vistos como
o seu castigo. (MACEDO, 1990, p.19)

O corpo feminino e suas concepções durante os séculos sobre sangue,


temperatura e principalmente menstruação, vai conectar à mulher ainda mais ao
diabólico, colocando-as como seguidoras naturais do senhor das trevas. A gravura em
metal identificada como “As Quatro Bruxas” de 1497 (fig.01, p,4) traz uma cena com
figuras femininas e seus corpos afrodisíacos, onde o nu popularmente nesse período
para os autores Le Goff e Truong (2006), estava frequentemente associado ao perigo,
se não ao mal. Acompanhado pelo código do homem e da mulher selvagem, o nu
estava também ao lado da barbaria e da irracionalidade.
Durante a Idade Média, o povo não possuía o hábito da leitura, visto que
eram poucos os que tinham acesso à escrita e que podiam ler. Portanto, as artes
visuais foram um dos principais meios encontrados, principalmente pela Igreja
Católica, de passar para a sociedade os valores do cristianismo, pois a obra de arte,
sendo uma forma de “escrita”, conduzia o olhar dos iletrados para o conhecimento
do que se pretendia ensinar e expressar.

O FEMININO NO INÍCIO DO RENASCIMENTO

O século XV também testemunhou avanços do mais longo alcance como; a


queda de Constantinopla e a conquista do sudeste da Europa pelos turcos, as viagens
de navegação, que levaram à fundação de impérios no Novo Mundo, na África,
América e Ásia. A consequente rivalidade entre as duas maiores potências coloniais,
Espanha e Inglaterra, as profundas crises espirituais da Reforma e da Contrarreforma.
Contudo, nenhum desses fatores pode ser apontado como deflagrador da nova era
Renascentista, a era onde foi possível o feminino se destacar na arte através de sua
beleza e não mais como obras moralizantes e de modelos femininos a serem
seguidos. O Renascimento foi o primeiro período da história a ser consciente de sua
própria existência e, também, a cunhar um termo para se autodesignar, dando assim
início ao que chamamos de modernidade, na qual a história e o homem passaram a
721
ter consciência de si mesmo. Para JANSON (1996), foi um período de transição onde a
igreja começa a perder o seu poder político e a tecnologia avança. Surge então, como
uma proposta de transição de todos os paradigmas medievais, em especial, porque
recolocou o homem como centro de todas as coisas (postura central das civilizações
grega e romana), em oposição ao teocentrismo medieval.
No campo das artes o Renascimento teve por objetivo estudar a influência do
despertar da humanidade para novos caminhos artísticos, humanos, mitológicos e
filosóficos, e como esse despertar influenciou diretamente na segunda fase do
Renascimento, o Quatrocento, e seu principal artista, Botticelli. Botticelli trouxera o
primeiro nu feminino na arte, colocando um status de beleza no corpo da mulher.
Sandro Botticelli, ao pintar a Vênus traz a intenção da pureza e valorização do corpo
feminino. Sua intenção não é de mostrar os traços do corpo, sexualizar, vulgarizar o
feminino, e sim expressar uma nudez onde não á nada a se esconder, rompendo pela
primeira vez os padrões impostos no medievo de se representar o feminino.

Figura 03: Botticelli, O Nascimento de Vênus. (1484-1485).

Fonte: WIKIPEDIA, O Nascimento de Vênus.249

Com essa quebra do paradigma na exibição do corpo feminino, suas curvas


estão voltadas ao mistério, ora cobertos, ora despidos. O corpo passa a ter idealidade
mítica e simbólica com Botticelli. E resta de um lado, segundo a visão de uma
sociedade patriarcal, a “mulher-decorativa” na sociedade, feita para exibição e
manutenção de status social e de outro, a “mulher-sexo”, submissa à libido dos
homens. “Ambas tem em comum a perda da aura simbólica que antes envolvia esses
corpos e que denotava uma certa consideração por suas qualidades humanas”.
GOMES (2014).
Um importante fator também do Renascimento foi a falta de mulheres
pintoras do período. De acordo com BEATRIZ (2017), para um artista iniciar o
aprendizado, era preciso mudar-se de casa e viver na casa do mestre pelo menos por
quatro anos. As poucas mulheres que se tornaram pintoras conseguiram prosseguir
nesta carreira por duas razões principais: ou eram provenientes de famílias nobres
que lhes permitia uma liberdade excepcional para a época, ou eram filhas de pintores

249
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sandro_Botticelli#/media/File:Sandro_Botticelli_-
_La_nascita_di_Venere_-_Google_Art_Project_-_edited.jpg.
722
que foram ensinadas em casa. Nota-se, que quando se busca a representação da
mulher ao longo da História da Arte, há implicações ideológicas enfrentadas por elas
em cada época. A mulher aparece segundo idealizações neutras ou contraditórias,
elaboradas segundo os valores de cada momento histórico. De qualquer forma, em
todas as sociedades, há sempre alguma idealização da figura feminina. Geralmente
elas aparecem como arquétipos, isto é, imagem formada no inconsciente coletivo da
humanidade, que transmitem alguma informação ao longo de diversos anos. A figura
feminina vai sendo destituída ao longo do Renascimento de seu significado
primordial como portal entre a vida e a morte e passa a associar-se aos poderes
econômicos e sociais, mas principalmente, mundanos, pois, agora, algo imaculado,
sagrado é despido diante da sociedade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Devido à Reforma religiosa introduzida por Josias245, o culto das deusas


então desapareceu com Javé, sinalizando uma transformação cultural característica
do mundo recém-civilizado e conquistado pelo único deus. Veremos então à partir
daqui as mulheres sendo colocadas em situação de inferioridade pelo patriarcalismo
e depois de Javé também pelo aspecto religioso. A ideia instaurada e reforçada pela
tradição judaico-cristã que se implementa por toda a Europa utilizando da simbologia
da figura masculina de Deus para caracterizar e divinizar a figura do Homem o
tornando uma representação plena da imagem e semelhança do criador e atribuindo
ao comportamento masculino as obrigações de ser forte, corajoso, viril, provedor e
dominante. Enquanto utiliza-se do papel da representatividade feminina como uma
figura submissa, quieta e fragilizada que deve servir ao homem. Os padrões
instituídos e disseminados pela Igreja se tornam vigentes e intrinsecamente se
conectam com toda a narrativa criada acerca do comportamento de gênero que é
esperado.
A definição do corpo feminino sob a óptica da Igreja Católica constrói uma
moral que define os papéis sociais de gênero, surgindo então, uma dualidade
feminina nos discursos da História Medieval, onde Eva é a pecadora e Virgem Maria é
um exemplo a ser seguido, portanto, cria representações do corpo através de
imagens que se relacionam com o poder e o imaginário. Assim, a representação da
mulher transmite práticas e virtudes quanto à castidade, submissão, comportamento
e obediência à doutrina da Igreja. A representação do feminino diante o contexto
social durante a Idade Média, consiste de heranças que retratam a inferioridade e
submissão, desde os discursos proferidos pelos filósofos da antiguidade clássica, visto
que as mulheres encontravam-se à beira da sociedade e sua contribuição era apenas
de auxiliar aos homens, cuidar dos filhos e da família. Na Idade Média, a instituição
católica apenas oficializou essas teorias, com o objetivo de estabelecer o seu poder
na sociedade, principalmente sobre o feminino.
Já no período do Renascimento durante o século XV, o pintor Sandro
Botticelli com a pintura “O Nascimento de Vênus” (1485), apresentou à sociedade o
723
primeiro nu feminino na arte depois quase um milênio. A mulher aqui não mais se
trata de uma imagem santificada, mas de uma valorização do feminino sem vulgarizá-
lo. O Renascimento veio então para quebrar o paradigma na exibição do corpo
feminino estabelecido na idade média e que influenciou grande parte do século XV.
As curvas femininas agora estão voltadas ao mistério, ora cobertos, ora despidos.

REFERÊNCIAS

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cristianismo e no islamismo. (1º ed). São Paulo: Editora Companhia de Bolso, 2009.
Trad. Hildegard Feist.
BEATRIZ. Mulheres pintoras na Renascença. 2017. Disponível em:
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SCOTT, Joan. Gênero, uma categoria útil de análise histórica. Educação & Realidade.
JulDez. v. 20, (2), p. 71-99, 1995.
724
DIREITO RELIGIOSO: ANÁLISE DA ABORDAGEM RELIGIOSA
NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E A CORRELAÇÃO
DA LIBERDADE RELIGIOSA COM OS DEMAIS DIREITOS E
GARANTIAS CONSTITUCIONAIS

BEATRIZ CUNHA DUARTE


Graduanda em Direito pelo Centro Universitário de Anápolis,
UniEvangélica – Campus Ceres
[email protected]

RESUMO: como cidadão pertencente a um Estado Democrático de Direito e Laico, o


brasileiro tem a faculdade de determinar suas ações de acordo com sua convicção
religiosa. A liberdade religiosa em muitos outros direitos e liberdades se desdobra e
de tal modo com eles se relaciona, o que configura o objeto de estudo do presente
trabalho. O objetivo sustentou-se no ideal de perceber a liberdade religiosa como
sendo a liberdade mais intrínseca ao ser humano, uma vez que essa se desdobra em
tantas outras. Ademais, procurou-se conhecer as bases da liberdade religiosa, seus
princípios orientadores e a legislação que a ela é aplicada, como também identificar
sua correlação com os direitos fundamentais consolidados na Constituição. Como
método de construção do trabalho, adotou-se a perspectiva qualitativa e hipotético-
dedutiva, quer dizer, os resultados alcançados foram apresentados mediante análises
e interpretações de aspectos imateriais, como a legislação pátria vigente e
posicionamentos de estudiosos quanto à temática. Obteve-se como resultado a
percepção de que há que se considerar ainda presente a influência da religião no
âmbito jurídico brasileiro. À vista disso, pode-se considerar o aspecto religioso como
um dos mais notórios reflexos da instituição do Estado Democrático de Direito, já que
a liberdade religiosa tem como fundamento a garantia da dignidade da pessoa
humana, princípio esse pilar do arcabouço legal.

Palavras-chave: Liberdade religiosa; Ordenamento jurídico; Garantias.

INTRODUÇÃO

Desde os tempos mais remotos, o nexo existente entre a religião e a formação


das sociedades é demasiadamente percebido na história, de tal modo que os
seguimentos religiosos inclusive nortearam disposições legais pátrias. Quer dizer, o
pensamento religioso vem sendo elemento essencial para a compreensão que o
homem tem de si mesmo e da sociedade e realidade que o norteia. Não obstante a
essa verdade, e mesmo com a metamorfose ocorrida na relação entre Estado e
725
Igreja, hodiernamente, com o advento da Constituição Federal de 1988, o cidadão
brasileiro tem a faculdade de determinar suas ações segundo as predileções de sua
convicção religiosa, posto que sujeito pertencente a um Estado Democrático de
Direito e Laico.
Justamente por isso, positivamente encontra-se garantida a liberdade
religiosa, liberdade essa que, destaca-se, em decorrência de sua significativa
qualidade intrínseca ao ser humano, em muitos outros direitos e liberdades se
desdobra e de tal modo com eles se relaciona, o que configura o objeto de estudo do
presente trabalho. Para tanto, procurou-se conhecer as bases da liberdade religiosa,
a legislação que a ela é aplicada, como também identificar sua correlação com os
demais direitos fundamentais consolidados na Constituição. Usando-se da
perspectiva qualitativa e hipotético-dedutiva, os resultados alcançados restaram
apresentados mediante análises e interpretações de aspectos imateriais, como a
legislação pátria vigente e posicionamentos e reflexões de estudiosos quanto à
temática.

LIBERDADE RELIGIOSA E A CORRESPONDÊNCIA COM O PRINCÍPIO DA DIGNIDADE


DA PESSOA HUMANA

Como expressiva novidade normativa trazida quando da promulgação da


Constituição Federal de 1988, o princípio da dignidade da pessoa humana é
consagrado ostentando caráter de fundamento da República Federativa do Brasil.
Isso implica afirmar que se tem um Estado enquanto organização cujo referencial é o
ser humano. Por gozar de tal status, o mencionado princípio será, com efeito, norte
para aplicação do Direito, de sorte que “todos os princípios constitucionais devem se
confrontar com a dignidade da pessoa humana, para, então, conformar-se com ela”
(VIEIRA & REGINA, 2018, p. 94).
Nessa mesma esteira, Alexandre de Moraes (2016, p. 74) enfatizou a qualidade
da dignidade enquanto valor moral e espiritual inerente à pessoa, de maneira que
ela, em sua essência, pretende o respeito por parte das demais pessoas e consiste no
mínimo a ser protegido nos ordenamentos jurídicos, sendo que a limitação ao
exercício dos direitos fundamentais somente se dará em situações excepcionais, não
deixando, destaca-se, macular a necessária estima que merecem todas as pessoas.
Mesmo que impossibilitada à definição específica que harmonize com a
diversidade dos valores das sociedades modernas, não há que se olvidar que a
dignidade é uma qualidade intrínseca de cada cidadão. Além disso, consubstancia-se
na derivação do simples existir do ser humano, sendo, portanto, irrenunciável,
inalienável e de natureza jusnaturalista. É valor jurídico fundamental, funcionando
como diretriz para se legitimar a ordem legal, à medida que, também, assegura o
respeito da integridade física e psíquica do indivíduo e sua identidade pessoal.
Diante das qualidades tantas do princípio da dignidade da pessoa humana, não
é de se contrariar a ideia de que o reconhecimento e efetividade da liberdade
726
religiosa também experimenta reflexos desse princípio, tendo-se como melhor
exemplo dessa realidade a existência de normas garantidoras desse direito.
Muito embora a liberdade religiosa contasse com previsão legal à época do
Império, “não significa que esse direito foi amparado a contento pelo Estado”
(SILVEIRA & FACHINI, 2019, p. 54). Por assim ter sido, observou-se que foi somente
com o advento da Constituição contemporânea – quando efetivamente se teve um
“reposicionamento das relações existentes entre o Estado e a Igreja” (SILVEIRA &
FACHINI, 2019, p. 54) – que o cidadão brasileiro pôde contemplar de modo eficaz a
sua liberdade de autodeterminação em relação à religião.
Quando, portanto, da observância dos reflexos do princípio aqui em comento
no direito do cidadão ao exercício da liberdade religiosa, esses significam o
reconhecimento de que, nas lições de Santana, Moreno & Tambelini (2014, p. 32), ela
não está limitada à liberdade de crença e religião; antes, abarca diversas outras,
como a liberdade de comunicação e expressão, a liberdade de reunião pacífica,
liberdade de pensamento, liberdade de adotar um modo de vida segundo os
preceitos da convicção religiosa escolhida.
Isto é, a repercussão do princípio da dignidade da pessoa humana é de tal
modo irradiante que não se quedou a legislação brasileira em deixar de testificar sua
observância quando do tratamento da liberdade religiosa de modo positivado. Prova,
então, da correspondência entre os dois institutos é o desdobramento dessa em
tantos outros direitos consolidados, todos fundamentados pelo dever de obediência
e garantia da aplicação do princípio norteador: a dignidade da pessoa humana.

LIBERDADE RELIGIOSA E A CORRESPONDÊNCIA COM A LIBERDADE DE EXPRESSÃO E


PENSAMENTO

Nem todos os discursos de cunho religioso se veem amparados pelos


parâmetros do livre exercício da liberdade religiosa. Indubitavelmente, aqueles cujo
conteúdo incitam o ódio, o repúdio ou a discriminação à crença que não aquela
adotada pelo grupo insultador, certamente são reprovados e não passíveis de
proteção normativa. Ou seja, havendo discursos que manifestamente incitam o
desrespeito a essa ou àquela crença, devem eles suportar a devida restrição a fim de
que se vejam assegurados os direitos de igualdade e não-discriminação.
Em se tratando do âmbito do discurso, a vigente Constituição traz em seu rol
de direitos e garantias fundamentais a “liberdade de expressão” e a “liberdade de
pensamento”, cujas previsões encontram-se nos incisos IX e IV, respectivamente, do
seu art. 5º. Acerca do desdobramento das duas formas de liberdade, CUNHA JÚNIOR
(2009) dita que a primeira corresponde às atividades intelectuais, artísticas,
científicas, cujo fundamento, inevitavelmente, subsiste na liberdade de pensamento.
Essa, por sua vez, também significa a possibilidade de manifestação de juízos,
convicções e conclusões sobre algo por intermédio de sensações que se materializam
através da pintura, teatro, fotografia.
727
Diante dos sucintos conceitos e exemplificações práticas dessas liberdades,
facilmente pode-se perceber a estreita relação existente entre elas e a liberdade
religiosa. Isto é, atentando-se ao seu “forum externum”250, que significa o
componente ativo, ou seja, a manifestação propriamente dita da crença, ele se vale
do discurso, da arte, da argumentação, para se concretizar no ambiente social. Uma
vez exteriorizado no ambiente, “pode vir a afetar direitos alheios, razão pela qual
essa liberdade não pode ser protegida de forma absoluta” (SANTANA, MORENO, &
TAMBELINI, 2014, p. 40) quando o cidadão se vale de sua liberdade de expressão e
pensamento para denegrir as convicções religiosas de outrem.
Logo, as liberdades públicas não estão suscetíveis de serem exercidas de modo
incondicional e irrestrito. Antes, devem funcionar em harmonia aos limites morais e
jurídicos estabelecidos. Nesse viés, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e
Políticos cuidou de estabelecer em seu Artigo 18 que toda pessoa terá o direito de
adotar a crença que escolher, bem como professá-la publica e privativamente por
meio de ritos e celebrações, sendo que, destaca-se, estará limitado seu exercício
frente aos direitos e liberdades das demais pessoas.
Tendo em vista que o Brasil é signatário do referido Pacto Internacional, não
há que se discordar que o país, enquanto Estado laico que “relaciona-se com a
religião com neutralidade positiva, garantindo que todas as modalidades de
expressões religiosas se manifestem livremente em seu território nacional” (VIEIRA &
REGINA, 2018, p. 113), cuide de devidamente observá-lo.
Para tanto, é dever do estado a garantia de observância à determinação legal,
de modo que, consoante às lições de Silveira & Fachini (2019, p. 55), o exercício da
liberdade de manifestar uma religião pressupõe uma conduta negativa e positiva ao
Estado: havendo violação a direitos alheios, deve intervir reprimindo-a, e, não deve
ele discriminar qualquer credo, buscando, na medida do possível, tutelar os religiosos
e não religiosos. Não obstante, dos particulares também é esperada uma conduta
positiva: respeito às crenças religiosas e suas manifestações.
Desse modo, em que pese o fato de que “o modelo brasileiro de laicidade não
significa ausência da religiosidade na esfera pública, mas a garantia e a salvaguarda
de todas as suas expressões” (VIEIRA & REGINA, 2018, p. 135), faculta-se ao Estado o
poder-dever de restringir aqueles discursos proferidos com o único fim de
discriminar. Melhor dizendo: as disposições legais, bem como o posicionamento
estatal frente à religião, não impõem ao Estado a faculdade de limitar a decisão do
cidadão em aderir essa ou aquela crença, ou mesmo nenhuma; antes, pressupõe a
incumbência de reprimir o exercício irrestrito e desrespeitoso da liberdade religiosa
quando essa fere crença diversa, para que, com a necessária restrição, vejam-se
protegidos os direitos de igualdade e não-discriminação.

250
Termo adotado por SANTANA, Uziel; MORENO, Jonas; TAMBELINI, Roberto, 2014, p. 40.
728
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA, DE CRENÇA, DE CULTO E A ESCUSA DE CONSCIÊNCIA –
UMA GARANTIA CONSTITUCIONAL

A liberdade religiosa proporciona ao cidadão a faculdade de determinar suas


condutas de acordo com suas convicções religiosas. Isso de tal modo é, em
contrapartida, um dever do Estado e dos demais particulares de exercerem o
respeito frente à autodeterminação daquele cidadão que optou por essa ou aquela
crença, ou mesmo nenhuma. Por assim ser, pode-se perceber a liberdade religiosa
como uma resultante da instituição do Estado Democrático de Direito e Laico, dado
que esse objetiva uma sociedade plural distante dos fundamentalismos religiosos e
um relacionamento com a religião dotado de neutralidade positiva251.
Por ter-se preservado a separação outrora estabelecida entre Estado e Igreja, a
Constituição de 1988 “protege todas as crenças, consagrando uma era de profundo
respeito à liberdade religiosa” (CUNHA JÚNIOR, 2009, p. 673), não se limitando a uma
corrente ou denominação específica. Para tanto, traz a Constituição em seu art. 5º as
garantias de liberdade de consciência, de crença e de culto, materializando, então, os
ideais de um reconhecido Estado Democrático de Direito, e laico.
Tem-se a liberdade de crença como a “garantia que qualquer cidadão tem,
brasileiro ou não, de optar por professar qualquer religião que assim escolher, assim
como, em razão da liberdade de consciência, também, optar por não escolher
nenhuma” (VIEIRA & REGINA, 2018, p. 86 e 87). Doutra sorte, “a liberdade de culto
está relacionada à manifestação exterior da crença, ou seja, da manifestação de atos
que são próprios a essa religião” (COSTA & MOLINARO, 2018). Dessa forma, constata-
se “a liberdade religiosa dividida em dois aspectos, um interno, que seria a liberdade
de crença, e outro externo, que seria a manifestação do culto, que pode ser no
templo, mas também em grupos ou mesmo individualmente” (COSTA & MOLINARO,
2018, p. 266).
Ademais, vale o destaque de que as mencionadas liberdades, apesar de
decorrerem mutuamente uma das outras, não se embaraçam no conceito e
entendimento da liberdade de consciência. Essa última, por sua vez, resguarda os
conhecidos ateus e agnósticos que, pela liberdade de suas consciências, decidem por
nenhuma crença adotar, como também outros cidadãos que aderem valores de
ordem moral, ou mesmo espiritual, que não consubstanciam religião determinada.
Tendo isso posto, verifica-se que, apesar de singulares quanto às suas
conceituações, as liberdades e direitos que decorrem da liberdade religiosa se
escoram em dispositivos comuns, os quais exprimem a necessidade de que “deve
haver uma convivência harmoniosa entre as religiões majoritárias com respeito às
manifestações religiosas minoritárias” (COSTA & MOLINARO, 2018, p. 265), de
maneira que os cidadãos possam exercer livremente o direito de professarem sua fé.
Oportunamente, tratar-se-á do que se denomina “escusa de consciência”, a
qual encontra-se positivada no inciso VIII do art. 5º da Constituição Federal.
Sucintamente, o instituto da escusa de consciência viabiliza ao cidadão professante

251
VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques, 2018, p. 113.
729
de uma fé a possibilidade de desobrigar-se de agir na contramão de sua consciência e
dos princípios morais estabelecidos pela crença que elegeu. Outro sustentáculo para
o dever de observância à escusa de consciência encontra-se nos ditames do Pacto de
São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), mais
especificamente estampado em seu Artigo 12252.
Mesmo cuidando de assegurar esse direito fundamental, o constituinte tratou
o instituto de maneira condicional: quer dizer, para se valer da desobrigação de
determinada incumbência que a todos é direcionada, o fiel deve cumprir prestação
alternativa prevista em lei. Sobre o tema, ressaltou Cunha Júnior (2009, p. 674) que
só estará a pessoa obrigada ao cumprimento alternativo se esse encontrar-se fixado
por lei, de modo que, não havendo, pode o fiel deixar de cumprir obrigação a todos
imposta em razão de sua fé sem se sujeitar à prestação alternativa.
Exemplo prático da situação delineada é o disposto no art. 143 da Constituição
Federal, o qual estabelece a obrigatoriedade do serviço militar, mas, em
contrapartida, também delegando às Forças Armadas a necessidade de atribuir
serviço alternativo àqueles que alegarem imperativo de consciência. Ou seja, apesar
de ser uma imposição legal direcionada a todos, poderá um cidadão eximir-se se esse
invocar impedimento derivado de sua convicção religiosa. Para tanto, as Forças
Armadas lhe atribuirão serviço alternativo, razão pela qual estabeleceu-se a Lei nº
8.239 de 4 de outubro de 1991, a qual traz tratamento próprio no que se refere à
prestação de serviço alternativo ao serviço militar obrigatório.
Vale ressaltar, entretanto, que “o direito à escusa de consciência não está
adstrito simplesmente ao serviço militar obrigatório, mas pode também abranger
quaisquer obrigações coletivas que conflitem com as crenças religiosas, convicções
políticas ou filosóficas” (MORAES, 2016, p. 112). Por fim, pertinente é o instituto,
devido ao fato de que “o constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar
sua fé representa o desrespeito à diversidade democrática de ideias, filosofias e a
própria diversidade espiritual” (MORAES, 2016, p. 113), motivo suficiente para que
seja esse devidamente honrado.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Como resultado, tem-se a percepção de que, apesar de a exteriorização da fé


encontrar-se inserida num contexto de secularização da sociedade, há que se
considerar ainda presente a influência da religião no âmbito jurídico brasileiro. À vista
disso, pode-se considerar o aspecto religioso como um dos mais notórios reflexos da
instituição do Estado Democrático de Direito, já que a liberdade religiosa tem como
principal fundamento a garantia da dignidade da pessoa humana, princípio esse pilar

252
Artigo 12 - Liberdade de consciência e de religião
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de
conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de
professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em
privado. 2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar
sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.
730
de todo o arcabouço legal vigente, e que pressupõe do Estado um relacionamento
com a religião dotado de neutralidade positiva, significando profundo respeito às
variadas expressões religiosas e aos direitos que dela decorrem.

REFERÊNCIAS

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