Puc-Ciencias Da Religião
Puc-Ciencias Da Religião
Puc-Ciencias Da Religião
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SUMÁRIO
APRESENTAÇÃO
Carolina Teles Lemos
José Reinaldo F. Martins Filho .............................................................................. 15
ST 11 – SUICÍDIO E RELIGIÃO
OS DIÁLOGOS E EMBATES ENTRE RELIGIÃO E CIÊNCIA NA ANÁLISE SOCIOESPACIAL
EM TEMPOS DE COVID-19
Diego Lopes da Silva............................................................................................... 441
ESPIRITUALIDADE, RESILIÊNCIA E DEPRESSÃO
Rosana Maria Ferreira Borges ............................................................................... 447
“O CACO ENTRE OS CACOS”: A SAÚDE MENTAL, ENTRE OS LIMITES DA CIÊNCIA E DA
RELIGIÃO NA ERA DO CORONAVÍRUS
Rosa Maria Pereira de Melo .................................................................................. 453
ST 19 – GÊNERO E RELIGIÃO
OS SENTIDOS DE VIDA E DE MORTE NA TEMÁTICA DO ABORTO
Amália Maria Machado de Oliveira ....................................................................... 641
CORPO, POLÍTICA E RELIGIÃO: A LUTA PELA DESCRIMINALIZAÇÃO DO ABORTO NO
BRASIL E ARGENTINA – UM DESAFIO AOS DIREITOS HUMANOS DAS MULHERES
Ana Karoline Dirino
Margareth Pereira Arbués ..................................................................................... 648
REFLEXÕES SOBRE O ANDROCENTRISMO NA HIERARQUIA SACERDOTAL DA IGREJA
MESSIÂNICA MUNDIAL NO BRASIL
Breno Corrêa Magalhães ....................................................................................... 656
UM CORPO HERÉTICO NO RAP: RELIGIÃO E EROTISMO EM ALICE GUÉL
Bruno de Carvalho Rocha....................................................................................... 664
DADOS SOBRE OS SEM RELIGIÃO NA PESQUISA NACIONAL DO PERFIL LGBTI+ 2018:
APONTAMENTOS SOBRE O SENSO RELIGIOSO
Sandson Almeida Rotterdan .................................................................................. 671
ST 20 – INICIAÇÃO CIENTÍFICA
BANCADA RELIGIOSA, ELEIÇÕES E CONSERVADORISMO NO BRASIL: UMA ANÁLISE
DO FIEL PENTECOSTAL E NEOPENTECOSTAL E SEU IDEÁRIO ENTRE 2002 E 2016.
Logan Silva Fitipaldi ................................................................................................ 678
TEOLOGIA POLÍTICA CONTEMPORÂNEA E O DEBATE SOBRE A SOBERANIA
MODERNA.
Laís Ramalho Dos Santos
Douglas Ferreira Barros ......................................................................................... 684
O HOMO OECONOMICUS COMO EMPRESÁRIO DE SI MESMO E UMA INSTITUIÇÃO
NEOPENTECOSTAL
Natália Fernandes Mororó
Glauco Barsalini...................................................................................................... 691
14
APRESENTAÇÃO
1
Na linguagem do sociólogo Pierre Bourdieu (1974) existe nas nossas sociedades a necessidade de provisão
material, e, de provisão daquilo que não é material, como sentido e felicidade. Esses últimos seriam bens
simbólicos. Os “bens religiosos”, ou, “bens de salvação” são “capital simbólico” e a igreja, ou Igrejas,
distinguem muito bem entre aqueles que estão desprovidos desses bens, os fiéis em geral, e aqueles que estão
de posse desses bens ou os manipulam. A gestão dos “bens de salvação”, “bens simbólicos” é realizada por um
corpo de sacerdotes que aparelham suas instituições para a disputa num mercado, o mercado religioso.
22
2
SAHIUM, Pedro Fernando. Church in Connection: Igreja, Show Midiático e Juventude. Programa de Pós-
Graduação Stricto Sensu em Ciências da Religião, Goiânia, 2018.
23
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
RESUMO: Benjamin afirma o capitalismo como uma religião, e não que seja uma
religião, o que nos traz que o capitalismo não é religião, mas assume funções e papeis
que antes eram próprias da religião. O presente artigo tenta demonstrar, através da
análise de como alguns elementos budistas foram introduzidos no Brasil e se
destacam como produtos essenciais na produção de bem-estar, que há uma
associação do capitalismo com um Budismo alterado de seus parâmetros fundantes.
Assim como aconteceu com o Cristianismo – guardadas as devidas diferenças – tenta-
se mostrar como acontece esse processo e como se dão as alterações na prática e na
concepção do Budismo que acabam gerando um desvirtuamento do sentido
soteriológico. O budismo Mahāyāna parte do pressuposto da busca do completo
despertar, samyaksaṃbodhi, não apenas para o próprio praticante, mas também
para o benefício de todos os seres sencientes; esse benefício passa pela compreensão
dos seres, não apenas por uma mera compra de artefatos ou pelo uso de textos
numa língua que as pessoas não compreendem. Os pilares fundamentais da tradição
budista Mahāyāna são contrários a essa ‘felicidade’ promovida pelo neoliberalismo,
da busca incessante de bens materiais e do individualismo atomizado. Por essa razão
é que produtos rentáveis ligados ao budismo são destacados de suas origens e do seu
sentido, e transformados pelo mercado religioso para reforçar os valores culturais
dominantes.
Benjamin afirma sobre o capitalismo como uma religião, o que nos traz que o
capitalismo não é religião, mas assume funções e papeis que antes eram próprias da
religião: “O capitalismo deve ser visto como uma religião, isto é, o capitalismo está
essencialmente a serviço da resolução das mesmas preocupações, aflições e
inquietações a que outrora as assim chamadas religiões quiseram oferecer resposta”
(BENJAMIN, 2013, p. 21).
O capitalismo como religião passa a constituir uma área vasta da reflexão,
ainda mais pensando no aspecto de qual resposta as religiões tentariam oferecer a
esse sistema. Podemos utilizar uma pista deixada por Hannah Arendt, em seu texto
intitulado Ação e Felicidade. Arendt faz sua reflexão a partir da Declaração da
Independência dos EUA: “É um fato peculiar, constantemente notado, que Jefferson,
quando esboçou a Declaração de Independência [dos EUA], mudou a fórmula
corrente pela qual os direitos inalienáveis estão enumerados como ‘vida, liberdade e
propriedade’ para ‘vida, liberdade e busca da felicidade’ (2018, p. 138 e 139).
Essa declaração estadunidense, que serviu como uma das inspirações para a
elaboração da Constituição Federal brasileira, bem como a de outros países, é uma
das fontes para o surgimento do american way of life, em cuja base está o sonho de
vida através do consumo.
Se a felicidade está atrelada à propriedade, então o consumo é o meio para se
obter essa felicidade, ganhando cada vez mais destaque nos tempos atuais. Dessa
forma, seria detentor de direitos aquele que consome, aquele que possui condições
materiais para tal. Os que não tem as condições mínimas para consumir são excluídos
do sistema de garantias, por não se enquadrarem nos requisitos e pressupostos de
funcionamento da sociedade.
3
Os termos técnicos traduzidos do sânscrito foram baseados nas traduções elaboradas por Plínio Marcos Tsai,
como constam na obra Sermão do Grande Fundamento, pp. 421, 780 e 793. Na mesma obra há os equivalentes
no cânone chinês.
33
Após ter ensinado os seus cinco primeiros alunos o Sūtra do Giro da Roda do
Dharma (Dharma-cakra-pravartana-sūtra), o Buddha disse a eles para ensinar.
Mesmo após a morte do Buddha e a disseminação das comunidades budistas
pelo território indiano, com o rei Aśoka (séc. III a.C.), há uma expansão do Dharma
para os reinos vizinhos, o que ele chamou de dharma-vijaya ou conquista através do
Dharma5.
Os textos budistas eram compilados e escritos em outras línguas mantendo o
seu rigor para não haver alterações no que fora dito pelo Buddha, sendo que a
variedade de formatos de templos, vestes e ritos se devem à adaptação aos locais em
que o budismo foi disseminado6.
Porém, ao chegar no Brasil vemos uma segunda onda, diferente da ocorrida da
Índia para outros países: a manutenção das culturas estrangeiras (que por sua vez são
4
Por sofrimentos existenciais utilizamos a expressão que é da tradição, que se refere aos tipos de sofrimento
inexoráveis segundo o Buddha histórico ou Buddha Śākyamuni, que são os sofrimentos do nascimento,
envelhecimento, adoecimento e morte. Há outros sofrimentos que decorrem desses primeiros em combinação
com as aflições raízes e suas subsidiárias. O Sūtra mencionado é o do Giro da Roda do Dharma – Dharma-
cakra-pravartana-sūtra em sânscrito, ou 轉法輪經 (Zhuǎn fǎlún jīng, em mandarim tradicional), preservado no
cânone chinês, e ཆོས་ཀྱི་འཁོར་ལོའྱི་མདོ (chos kyi ‘khor lo’i mdo) no cânone tibetano.
5
Édito n° 13 de Aśoka, traduzido para língua inglesa por HULTZSCH, Eugen. Inscriptions of Asoka. India: Oxford
Clarenden Press, 1925.
6
Sobre os textos canônicos podemos mencionar por exemplo o caso da China, em que durante séculos
câmaras de tradução dos textos a partir do sânscrito e do páli foram traduzidos para o mandarim, com rigor
aos termos técnicos, de maneira a não perder o que fora dito pelo Buddha. O mesmo ocorreu em outros países
asiáticos e graças a esses esforços os cânones foram preservados até os dias de hoje. A adaptação cultural
também é algo interessante de ser observado diante da grande quantidade de escolas surgidas a partir das
primeiras divisões, a partir dos concílios budistas.
34
7
Sobre esse fato há de se mencionar o esforço internacional para a tradução dos textos para o inglês, mas
pouco se fala para a língua portuguesa, sendo então uma religião em que há limitado acesso aos poucos textos
traduzidos e por isso há um reforço da ideia de exclusividade e ‘mágica’ pelo pensamento de mercado, quase
como um convite ao escapismo moderno das pressões.
8
O fator da preservação do budismo nesses países em que fora adaptado não pode ser descartado (sendo
importante em termos de história da tradição), entretanto, é necessário considerar que esse fechamento
dentro da cultura sem uma abertura para traduções, compreensão do que é adaptação e o que é parte do
budismo podem se tornar problemas para que uma compreensão adequada dos ensinamentos do Buddha
ocorra em uma adaptação ao país em que nos encontramos.
9
Mantra é uma palavra que possui muitos significados no sânscrito, mas uma das mais utilizadas é como
proteção mental, e não é uma palavra inerentemente mágica, apesar de ser assim vendida. Mantras existem
não apenas na tradição budista, mas também em outras religiões indianas. Os mantras seriam um método de
trazer à mente os ensinamentos do Buddha de maneira condensada em poucas sílabas ou versos, trazendo
proteção mental ao praticante através da reflexão sobre os sofrimentos e a aplicação dos antídotos. Vide
Dicionário Princeton de Termos Budistas.
10
A opção pelo termo classe ao se referir à varna se justifica diante de seu uso rotineiro por mais de um autor e
pesquisador na área do estudo do budismo, vide: TSAI, Plínio Marcos. História da Tradição Budista Indiana.
Valinhos: ATG, 2017. HIRAKAWA, Akira. A History of Indian Buddhism. Hawaii: University of Hawaii Press, 1990.
E também: HARVEY, Peter. An Introduction to Buddhism. Cambridge: Cambridge University Press, 2013.
35
sistema religioso que o Buddha histórico rompera, por inúmeras outras questões
além da mencionada.
O budismo Mahāyāna parte do pressuposto de buscar o completo despertar,
samyaksaṃbodhi, não apenas para o próprio praticante, mas também o beneficiar a
todos os seres sencientes e esse beneficiar passa pela compreensão dos seres, não
apenas por uma mera compra de artefatos ou textos em língua que não a que
compreendem.
O produto best-seller que foi extraído do budismo, removendo seus contextos
e sua finalidade se chama mindfulness e é um exemplo de como essa expansão de
fronteiras tem sido bem recepcionada nos mercados internacionais. Segundo Purser
(2019, p. 13)11 “Mindfulness é a mais recente iteração de uma espiritualidade
capitalista cuja linhagem remonta à privatização da religião nas sociedades
ocidentais. Isso começou há algumas centenas de anos como forma de reconciliar a
fé com o conhecimento científico moderno. A experiência privada não podia ser
medida pela ciência, então a religião foi internalizada.” Figuras importantes nesse
processo incluem o psicólogo do século XIX William James, fundamental para a
psicologização da religião, bem como Abraham Maslow, cuja psicologia humanística
forneceu o ímpeto para o movimento da Nova Era. Em Selling Spirituality: The Silent
Takeover of Religion, Jeremy Carrette e Richard King argumentam que as tradições da
sabedoria asiática foram sujeitas à colonização e mercantilização desde o século XVIII,
produzindo uma espiritualidade altamente individualista, perfeitamente acomodada
aos valores culturais dominantes e não exigindo nenhuma mudança substantiva em
estilo de vida.
Além disso, Purser traz mais elementos para pensarmos a questão do
capitalismo como religião e os produtos espirituais que tornam ainda mais
individualista e acomodada aos valores culturais dominantes que promovem
desigualdade social e conformismo: “Essa espiritualidade individualista está
claramente ligada à agenda neoliberal de privatização, especialmente quando
mascarada pela linguagem ambígua utilizada pelo mindfulness (PURSER, 2019, p. 14).
A ideia por detrás do mindfulness é o treino de atenção com o objetivo de
produzir mais, ser mais rápido nas tomadas de decisões além de um efeito de
relaxamento e aceitação de tudo o que ocorre. Enfim, é uma ferramenta excelente
para a produção de indivíduos isolados em suas visões próprias de mundo,
destacados do senso de coletividade, preocupados em produzir mais, obter mais e
serem úteis para o sistema capitalista. Tanto o é que o mercado dos aplicativos de
meditação para celulares teve um aumento considerável de rendimentos, chegando
aos 195 milhões de dólares em 201912 e em tempos de pandemia ainda mais13.
11
Todas as traduções do presente foram feitas pela autora, com o intuito de facilitar e promover o
entendimento.
12
Conforme matéria da Revista Forbes Brasil, n° 76, que pode ser acessada no sítio de internet:
https://www.forbes.com.br/forbeslife/2020/07/aplicativos-que-ensinam-a-meditar-viram-segmento-
bilionario/ (último acesso em 20/10).
13
Conforme matéria da Revista Veja que pode ser acessada no sítio de internet:
https://veja.abril.com.br/saude/o-sucesso-dos-aplicativos-para-meditacao-no-isolamento/ (último acesso em
20/10).
36
14
Por soteriológica entenda-se a finalidade de sair do ciclo de existências condicionadas pelo sofrimento
juntamente do ato de beneficiar a todos os seres sencientes.
15
Essa visão pode ser encontrada em diversos autores, como Matthieu Ricard e o próprio Dalai Lama.
37
REFERÊNCIAS
16
O presente trabalho foi realizado com apoio da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível
Superior – Brasil (CAPES) – Código de financiamento 002.
39
Não basta compreender o conteúdo textual de uma produção cultural, seja ela
literária ou científica, mas também não é suficiente estabelecer uma relação imediata
e direta entre o texto e seu contexto (BOURDIEU, 2003, p.20). Na dimensão em que
estão “inseridos os agentes e as instituições que produzem, reproduzem ou
difundem” qualquer objeto cultural vindo da ciência, da literatura ou da arte (id, ibid)
– cada campo é um universo social, com leis próprias que podem ser mais ou menos
específicas, e que possuem uma autonomia, que não é isolada do campo maior, e
nem é estanque, mas sim está na relação com a forma como o próprio campo se
articula, com seus participantes e suas especificidades (id). Ainda que um
determinado campo faça parte de um “macrocosmo” as leis deste não são as
mesmas do campo, ainda que nunca exista uma inteira liberdade perante as
imposições dele.
O presente texto visa estabelecer uma relação entre uma publicação de
Friedrich Max Müller (1823-1900) sobre o Budismo, de 1857, e o ambiente intelectual
vitoriano proporcionado pelas revistas, tendo como pano de fundo o contexto
colonial britânico. Neste ambiente do século XIX, que estabeleceu domínios na Ásia e
na África, Müller atua na construção do campo da história comparada das religiões, e
inauguraria o campo epistemológico das Ciências da religião, da qual é considerado o
pai (GIRARDOT, 2002). Em conjunto com outros autores, Müller colabora para a
construção de certas noções gerais sobre as religiões orientais em diversos ambientes
intelectuais. Seu papel nesta questão foi muito grande.
De fato, se na relação entre o campo intelectual e o campo político, o
envolvimento de Müller é extenso e intenso, no que diz respeito aos temas das
religiões indianas, ele é considerado como um personagem predominante na Europa
de seu tempo (WELBON, 1965). Estabeleceu metodologia para os estudos das
religiões e linguagens vindas do Oriente, sistematizou o projeto Sacred Books of the
East, no qual atuou como editor e tradutor, deu aulas e palestras (BOSCH, 2002). Do
lado político, sua obra conta com financiamento dos empreendimentos coloniais. Sua
atuação intelectual mescla-se a um grande capital e prestígio político, circulando
entre e dialogando com figuras eminentes da época do que é exemplar sua
participação no conselho privado da Rainha e ter como apoiador o embaixador da
Prússia, Christian von Bunsen (id, ibid).
Os primeiros vinte e cinco anos do século XIX poderiam ser considerados como
a era das Revistas (RIED apud CHRISTIE, 2013, p. 115). Nestas ele também esteve
presente, tendo publicado na Ediburgh Review, Quartely Review, Oxford Essays,
Macmillan Magazines, Frasers Magazines, Saturday Review e Times (MÜLLER, 2020).
Tais publicações estavam engajadas em promover uma circulação de ideias e
informações pertinentes a formação de pessoas ou uma sociedade culta. Assim, a
produção e acesso a áreas do conhecimento tais como teologia, filosofia, filologia,
artes, literatura, na Grã Bretanha, se tornaram um investimento econômico e
também objeto de entusiasmo perante aquilo que fosse considerado conhecimento
de alguma utilidade ou importância (CHRISTIE, p.121). Em suma, o conhecimento era
40
um produto sob grande demanda, que estava sendo atendida em grande medida
pelas revistas, como as citadas.
Além disso, também abrangiam comunicações com a esfera política (id, p.116)
pois grandes revistas como Edinburgh Review (1802) e Quarterly Review (1809)
exerciam grande influência sobre a opinião pública, o que confirma seu papel na
cultura do conhecimento na Inglaterra do século XIX. Seu editor e colaboradores
estavam cientes deste movimento de dupla influência, em ambos os campos,
intelectual e político (id, p.115).
A Edinburgh foi responsável pelo estabelecimento de uma forma, que afetou o
cenário editorial, na organização e na sistematização de suas publicações – também
pelo fato de ser a mais antiga (CHRISTIE, 2013, p. 116). Na visão dos editores e
colaboradores tais como Francis Horner, conhecimento e economia não eram objetos
de esferas distintas, pelo contrário, deveriam ser vistas em conjunto, e um dos pilares
da revista seria também a questão política (id, p.122). Sua abordagem no que diz
respeito ao pagamento foi o que a colocou em lugar diferenciado: os valores
dedicados ao editor e aos colaboradores eram muito mais altos do que em outras
revistas, o que lhe concedeu um status de publicação profissional muito mais do que
uma publicação comercial (id, ibid). Isso dava ao editor um status de um indivíduo
esclarecido, intelectualmente diferenciado, da mesma forma, os textos publicados ali
adquiriam status de serem de autoria técnica (CHRISTIE, 2013, p. 121) e não de
jornalismo corriqueiro. Para a Edinburgh Review, segundo Mark Schoenfield, a
interpenetração entre valor econômico e intelectual era uma justificação primária
para a Revista e seu compromisso com os ideais de uma organização analítica de
conhecimento (apud CHRISTIE, 2013, p.120).
Um dos movimentos envolvidos nestas publicações era o de valorização de
resenhas de livros (CHRISTIE, 2013, p. 122). Leitores procuravam por seleção e
recomendação de livros, de maneira que as Reviews nascem atendendo essa
demanda. Desenvolveu-se então um determinado modelo de resenha: os autores
dedicavam um majoritário espaço do texto desde o início para referências às suas
próprias ideias, expondo-as exaustivamente, e somente ao final ou em segundo plano
falariam do livro em questão (id, ibid). Isso colocava o responsável pela resenha em
uma posição de leitor onisciente, dando a ele uma posição de autoridade frente ao
leitor mas também perante até mesmo o autor da obra em questão (id, ibid).
Somando-se status de linguagem técnica e pagamentos consideráveis, a Edinburgh
competia no cenário editorial com dois tipos de capital, e estava acima das outras.
político, social e econômico que por sua vez dá sentido, alimenta e também
movimenta a produção de conhecimento (CHRISTE, 2013, p.120).
Desde o século XVIII, de acordo com William Christie, o conhecimento se
tornou cada vez mais uma moeda social de circulação, valorizando não apenas o
acesso a ele como também o seu estoque (CHRISTE, 2013, p.120). Isso joga certo foco
para interpretar a avidez no acesso ao estudo das religiões orientais. De fato, o
próprio Müller comenta que até a segunda década do século XIX o conhecimento
europeu sobre o budismo era um tanto quanto esparso e embora tivesse chegado
pelas mãos de alguns missionários e viajantes, não haveria clareza neste
conhecimento, que tampouco era mantido por uma profusão de textos (MÜLLER,
1881). Mudanças importantes ocorreram com o avanço das relações coloniais nos
territórios asiáticos. Neste ponto ele cita e valoriza as empreitadas de diferentes
personagens que cada qual em um território colonial movimentaram a circulação de
textos para dentro de bibliotecas e sociedades europeias, estabelecidas também no
período para o estudo da língua, cultura e religiões asiáticas (Id, p. 167).
É pela presença da Companha Britânica das Índias no território asiático que se
estabelece uma rota pela qual materiais e conhecimento sobre a Índia chegam na
Europa, em abundância monumental, para não dizer industrial. Com efeito, segundo
Beinorius, essa história tem seu marco inicial com Brian Houghton Hodgson, um
oficial da Companhia das Índias Ocidentais. Atuando no Nepal em 1837, ele
conseguiu acesso a mais de quatrocentos manuscritos budistas até então totalmente
desconhecidos, escritos em tibetano e em sânscrito (BEINORIUS, 2005, p. 14). Ele os
enviou para Calcutá, Londres e Paris, para relatar diretamente à coroa britânica o que
o Nepal tinha em sua cultura (id, ibid). Nestes esforços, Hodgson afirma
categoricamente não achar digno abordar em detalhes o significado de determinadas
palavras e conceitos (WELBON, 1968, p. 37). Autores tais como William Jones (1746-
1794) e Henry T. Colebrook (1765-1837) produziriam estudos de impacto a partir
destes manuscritos, levando a fundação de instituições tais como as Sociedades
Asiáticas da Índia, Londres e Paris (DAVIS, NICHOLS, 2016).
Este cenário de avanço sobre o estudo das religiões e as línguas orientais pode
ser visto em consideração com o cenário maior de uma economia do conhecimento.
Como exemplo de seu peso como moeda cultural, é interessante mencionar a
compra de alguns destes manuscritos pelo rei da Prússia, que em seguida os
depositou na Biblioteca da Universidade de Berlim. Cabe lembrar também a própria
existência de uma biblioteca de manuscritos no interior da sede da Companhia das
Índias Orientais – bem como o financiamento feito por esta aos trabalhos de
tradução do Rig Veda de Müller.
Na Inglaterra do século XVIII e XIX o acesso ao conhecimento em geral, no
sentido de sua produção e todas as ocupações e instituições dedicadas a
disseminação passa a envolver também a ação de personagens como os editores das
revistas e seus colaboradores, que estavam autoconscientes de seu papel, engajados
e envolvidos em atividades profissionais ligadas ao conhecimento. Tudo isso se
tornou certamente uma indústria complexa, interligada e largamente autônoma. Esse
também é o caso da produção do conhecimento sobre as religiões orientais. Se
42
revistas como Edinburg Review concedem capital cultural para leitores e autores,
então é possível que ter publicado ali tenha aumentado o capital cultural de Müller e
vice-versa. Além disso, o texto recebe status de ser autoritativo no assunto por seguir
o modelo de resenha do autor onisciente e com autoridade, com detalhamentos
exaustivos diversos, inclusive sobre a trajetória do Budismo na Europa até ali.
Republicado depois na coletânea Chips from a German Workshop, o texto teria uma
difusão grande.
Propunha ser uma resenha sobre um trabalho de Jules Barthélemy Saint-
Hilaire – sendo este autor também importante jornalista e político atuante. Seguindo
o modelo, Müller dedica uma parte da apresentação inicial do seu texto para uma
discussão sobre a utilidade de conhecer o Budismo, e sobre se mesmo um cristão
poderia considerar digno esse empreendimento. Como “gancho” inicial na
justificação desta empreitada ele utiliza uma referência bíblica: “examinai tudo,
retende o bem” (1 Tessalonicenses 5:2) e também afirma que não poderia haver uma
única religião no mundo que não contivesse uma centelha de verdade (MULLER,
1881, p.161). Nesse sentido, ele aborda a valorização da própria religião e terra natal
como motivador do conhecimento das outras (id, ibid):
Em toda essa digressão, percebe-se uma linguagem detratora inicial para falar
do Budismo e também do Hinduísmo. Ele chega a afirmar (MÜLLER, 1881, p.162):
17
Tradução nossa. No original: “Many are the advantages to be derived from a careful study of other
religions, but the greatest of all is that it teaches us to appreciate more truly what we possess in our own.
When do we feel the blessings of our own country more warmly and more truly than when we return from
abroad?”
18
Tradução nossa. No original: “It sounds like a degradation of the very name of religion to apply it to the
wild ravings of the Hindu yogins, or the blank blasphemies of Chinese Buddhists”
43
sentido de que o conhecimento sobre outros povos irá colaborar para que de um
lado se valorize ainda mais sua própria religião, por ter como conhecer “o que é que
outros povos tem por religião” - e que isso permitiria ainda que eles se sentissem
abençoados por terem podido respirar desde o nascimento o “ar puro de uma terra
de luz e conhecimento cristãos” 19 (MÜLLER, 1881, p.161).
Por outro lado, fazendo parte de uma corrente de autores sobre religião que
visavam fazer para ela um campo de estudo científico (DAVIS, NICHOLLS, 2016),
Müller valoriza a empreitada também porque seria necessário, segundo ele, trazer
todo o conhecimento disperso no mundo para aquilo que ele chama a “língua da
ciência”; isto colaboraria para deixar para trás uma ideia fechada de nacional, para
superar o mesmo “impulso helênico”, ainda presente no cristianismo, o de querer
separar o mundo entre gregos e bárbaros (MÜLLER, 1881, p.162). Tal ideia de romper
com o desejo de não conhecer o mundo estrangeiro, somada à noção de trazer para a
“língua da ciência” (id, ibid) todo o conhecimento, parece se desdobrar em uma
explícita fala sobre a conquista espiritual do Oriente, quando Müller falasse nas
palestras “India What can it Teach us”, em 1882 (WIRTH, 2016).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
19
Tradução nossa. No original: “Let us see what other nations have had and still have in the place of religion;
(...) and we shall then understand more thoroughly what blessings are vouchsafed to us in being allowed to
breathe from the first breath of life the pure air of a land of Christian ligh and knowledge”.
44
BOURDIEU, Pierre. Os usos sociais da ciência: por uma sociologia clínica do campo
científico. São Paulo: Unesp, c2003
BOSCH, L. P. Friedrich Max Muller: A life devoted to the humanities. Neitherlands:
E.J.Brill, 2002
CHRISTIE, William. "The Modern Athenians: the Edinburgh Review in the Knowledge
Economy of the Early Nineteenth Century," In: Studies in Scottish Literature: Vol. 39:
Iss. 1, 2013,p. 115–138. Disponível em :
https://scholarcommons.sc.edu/ssl/vol39/iss1/12 Acesso em 15 ago 2020
DAVIS, Davis. NICHOLLS, Angus. Friedrich Max Müller: The Career and Intellectual
Trajectory of a German Philologist in Victorian Britain. English Goethe Society, 85:2-3,
67-97, DOI: 10.1080/09593683, 2016. Disponível em:
https://pdfs.semanticscholar.org/71c4/c0b2b4cacde84ef8a919d1cfc566884d00dd.pd
f acesso em 15 nov 2020
GIRARDOT, "Max Müller's ‘Sacred Books’ and the Nineteenth-Century Production of
the Comparative Science of Religions," In: History of Religions 41, no. 3 (Feb., 2002):
213-250. https://doi.org/10.1086/463683 Acesso em 15 nov 2020
MULLER, Max. Selected Essays on Language, Mithology and Religion. Vol.II. London:
Longsmans, Green and Co. 1881, 615p. Disponível em:
https://ia800302.us.archive.org/15/items/selectedessayso02mlgoog/selectedessayso
02mlgoog.pdf Acesso em 15 nov 2020
MULLER, Max. Chips from a German Workshop. Vol I. Frankfurt: Outlook Verlag
GmbH, 2020.
WELBON, G. R. “Comments on Max Muller Interpretation of the Buddhist Nirvana”.
In: Numen, Vol.12 Fasc 3 (Sept 1965), 21p. Disponível em
https://www.jstor.org/stable/3269445?seq=1#page_scan_tab_contents Acesso em
27 dez. 2018.
WIRTH, Lauri “Religião e Epistemologias pós-coloniais” in PASSOS, João Décio.
USARSKI, Frank. Compêndio de Ciência da Religião. São Paulo: Paulinas; 2013.
Reimpressão: 2016.
45
RELIGIÃO E MODERNIDADE
20
Castro (2005) relata que Engels escreveu a “A origem da família, da propriedade privada e do Estado” se
utilizando amplamente das notas que Marx realizou de sua leitura de “A sociedade antiga” de Lewis Morgan
(1818-1881), outro ilustre representante da escola antropológica evolucionista, que dividia a história humana
em três grandes períodos: selvageria, barbárie e civilização.
21
Durkheim em “As formas elementares da vida religiosa” (DURKHEIM, 1989), ao refutar o Animismo e o
Naturismo como concepções elementares de religião, para defender a tese do Totemismo como sistema
religioso mais elementar, embora não se possa inferir de sua tese alguma concepção propriamente
evolucionista da história religiosa, não deixa de estar às voltas com o interesse investigativo comum da época:
a origem da religião.
47
22
Quem pensa nesses termos é Jessé Souza sobre a tradição weberiana no Brasil, associando-a à ideologia do
atraso brasileiro (SOUZA, 1998).
48
23
A palavra “invenção” é tomada por Wagner no seu sentido de criação e não de falseamento, e é usada como
conceito para explicar uma experiência ordinária e constituinte da existência (e não uma ação extraordinária
produzida pela genialidade de um artista, por exemplo). Já o conceito de “metáfora” tomamos a partir da
crítica da linguagem de Nietsche (2009); ela é a primitiva mediação entre esferas heterogêneas e a
transposição significativa que ocorre entre elas (linguagem e realidade), e não como figura de linguagem no
sentido convencional.
24
O termo “dialética” será entendido de maneira indiferente à tipologia hegeliana e marxista, ressaltando o
que Wagner afirma sobre “uma tensão ou alternância, ao modo de um diálogo, entre duas concepções ou
pontos de vista simultaneamente contraditórios e solidários entre si.” (WAGNER, 2017, p. 88).
49
REFERÊNCIAS
ALDEMIR FRANZIN
Doutorando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]
artigo: que sentido e densidade tem uma romaria virtual para os romeiros do
Muquém? Nossa hipótese é que romeiros deram sentido à sua participação virtual
por meio de experiências religiosas também inéditas, pelas quais expressaram
necessidades, pedidos e expectativas, reafirmaram sua ligação com a romaria e
recompuseram sua identidade (religiosa).
INTRODUÇÃO
25
A gripe espanhola, também conhecida como gripe de 1918, foi uma vasta e mortal pandemia do
vírus influenza. De janeiro de 1918 a dezembro de 1920. Disponível em:
<https://pt.wikipedia.org/wiki/Gripe_espanhola>. Acesso em: 20 de jul. 2020.
26
A cronologia e epidemiologia do vírus SARS-CoV-2 (2019-nCoV) durante o período de novembro de 2019 a
janeiro de 2020. Disponível em: <pt.wikipedia.org/wiki/Cronologia_da_pandemia_de_COVID-19>. Acesso em:
23 de jul. 2020.
54
27
A crise pandêmica global já tem dez meses de existência (em setembro de 2020) e embora alcance tamanha
envergadura, continuamos sem um tratamento eficaz contra a doença, embora haja testes clínicos de vacinas
em seres humanos em fase avançada, como as vacinas de Oxford (Reino Unido), Coronavac (China), Sputnik
(Rússia), Pfizer (Alemanha), Moderna (USA) e a vacina desenvolvida pela Fiocruz no Brasil
28
Decreto no. 9653, de 19 de abril de 2020, do Governador de Goiás.
55
diminuindo ainda mais a presença de fiéis nos espaços religiosos para que as
denominações religiosas não fossem classificadas como lugares de transmissão do
corona vírus.
A quarentena forçada de isolamento social, a recomendação do “fique em
casa” e a restrição de movimentação para conter o avanço do novo corona vírus, não
trouxe apenas os seus evidentes benefícios na contenção da propagação da doença e
na diminuição do número de mortos. Infelizmente a nova situação tem facilitado
também o surgimento de doenças psicossociais em pessoas e comunidades, gerado
um índice alto de ansiedade, provocado um abuso do álcool por parte de muita
gente, medo, pânico, depressão, aumento da agressão contra as mulheres e até
mesmo suicídio. As mulheres novamente foram as mais afetadas e mais expostas ao
risco de contaminação, à vulnerabilidade social, ao desemprego, violência doméstica,
aumento da pobreza e falta de acesso aos serviços de saúde 29. No caso do Brasil, no
contexto da pandemia, uma mulher tem sido agredida a cada dois minutos. 30
Até que ponto a pandemia do COVID-19 diminui ou impulsionou a religião? A
cultura pandêmica impulsionou, de forma muito pragmática, a atividade missionária
das religiões no mundo inteiro. A pandemia levou muitas denominações religiosas a
utilizarem as novas tecnologias do Facebook, Instagran, Youtube, Twitter, Zoom,
Blogs e tantas outras plataformas de Internet, se tornaram espaços privilegiados para
líderes religiosos transmitirem a religião e suas práticas (CAMPBELL, 2006). Muito
parecido com a realidade das religiões em todo o mundo, o Santuário do Muquém
recorreu, a partir de 19 de março de 2020, à sua rede de comunicação virtual
WEBTVSANTUÁRIO para comunicar-se com os romeiros e fiéis, próximos ou
distantes. Através dessa rede de TV por Internet estabeleceu-se um fluxo de
comunicação de informações, uma modalidade de prática religiosa com o propósito
de fortalecer, apoiar e manter a vida religiosa dos romeiros. Desconhecemos na
história das romarias do Muquém, uma mudança tão abrupta e rápida no
oferecimento de serviços e no atendimento dos romeiros como os serviços on-line,
que de um golpe passaram a incluir todas atividades antes presenciais, como as
missas, orações, bênçãos, mensagens, leituras bíblicas, velas virtuais, novenas, leitura
de cartas enviadas por fiéis e outras atividades.
Em tempos de guerra, pandemias, catástrofes e crises, as pessoas recorrem à
religião para encontrar apoio, consolo, explicação e lidar com as adversidades e
incerteza, situações negativas e imprevisíveis, e as pessoas oram mais buscando uma
relação mais próxima com Deus ou explicam a tragédia através da referência a um
desígnio ou ato de Deus (BENTZEL, 2020). Janet S. Bentzel pesquisou dados diários do
Google em 95 países e identificou que durante a pandemia houve um aumento na
busca por orações, atingindo o nível mais alto já registrado até então. A pandemia, ao
que tudo indica, levou as pessoas a orar mais; segundo a autora, 85% da população
29
ONU: mulheres fazem chamado ao setor privado por igualdade de gênero na resposta à Covid-19. Acesso
em: 31 de jul. 2020. Disponível em:
<https://nacoesunidas.org/?post_type=post&s=Mulheres+no+centro+da+luta+contra+a+ crise+Covid-19>.
30
Violência doméstica contra a mulher. Disponível em:< https://oimpacto.com.br/2020/10/10/violencia-
domestica-a-cada-2-minutos-uma-mulher-e-agredida-no-brasil/. Acesso em: 20 de out. 2020.
56
mundial havia rezado pelo fim da pandemia ou para vencer o(s) medo(s) advindo(s)
dela (BENTZEL, 2020). Diante do cenário pandêmico, a oração amortece a ansiedade
e o sofrimento emocional; as pessoas recorrem à religião para encontrar alívio,
consolo e coragem para vida num contexto estranho, ameaçador e complexo.
Nesta mesma linha de pensamento, o estudo feito por Harold George Koenig
(2020) mostrou que a religião pode funcionar como uma ajuda poderosa na
manutenção da saúde e do bem-estar das pessoas. As práticas e a fé religiosa,
segundo Koenig, ajudam a manter o sistema imunológico ativo, protegendo de
infecções e doenças e outros sintomas, como ansiedade, medo, febre, falta de ar,
perda do paladar ou problemas intestinais. Para este autor, a oração em tempos de
pandemia pode criar nas pessoas emoções positivas e imunizantes, gerar disposições
espirituais que favorecem atitudes de alegria, paz, tolerância, bondade, controle e
autodomínio. A pesquisa de Koenig (2020) mostrou seis meios de resiliência
espiritual, mental e física para o enfrentamento de infecções ou doenças provocadas
pela pandemia: a oração a Deus, a meditação, a leitura de textos sagrados; a
audiência a programas religiosos no rádio, internet ou TV; e o serviço da caridade aos
necessitados.
A COVID-19 trouxe caos para boa parte do mundo, provocou implicações e
consequências profundas, mas não fez diminuir ou desaparecer a referência à
religião. Ela provocou inovações na metodologia do trabalho pastoral, nas formas de
transmissão da mensagem e nas práticas religiosas; para quase tudo isso as
organizações religiosas passaram a utilizar ferramentas tecnológicas. No caso da
romaria do Muquém, observamos que essa forma de devoção típica do catolicismo
tradicional e popular não desapareceu e nem parece ter diminuído com o uso, por
parte dos fiéis, da Internet. As práticas religiosas como as celebrações, ritos, missas,
bênçãos, orações, adorações e leituras bíblicas transmitidas via Web TV encontraram
boa receptividade e audiência significativa.
Web TV, como Missas, Terços da Divina Misericórdia31 e Novenas, manteve-se uma
relação de acessibilidade e confiabilidade entre romeiros e celebrantes, e esta
interação se deu por meio da comunicação ao vivo das mensagens, pois, os romeiros
enviaram pedidos de oração, depoimentos de milagres, fotografias, agradecimentos,
testemunhos curas e doações. Os romeiros acessaram com assiduidade o sistema de
transmissão do santuário (WEBTVSANTUÁRIO) pela Internet, e assim puderam
acompanhar as celebrações religiosas que o santuário organizou especificamente
para eles. Através do registro automático dos IPs dos aparelhos que realizam o acesso
à rede, é possível medir a duração, quantificar os acessos e até localizar em termos
mais amplos, de país, a origem dos acessos remotos. Todos esses dados serão
posteriormente analisados e cruzados com indicadores obtidos por outras fontes.
CONCLUSÃO
Estudos feitos por Stewart M. Hoover (2006) apontam que religião e mídia
existem como formas institucionais na esfera pública, se misturam, colidem e
ocupam os mesmos espaços de experiência cultural. Segundo Hoover, religião e
mídia se encontram num impressionante movimento histórico de convergência,
servindo a muitos dos mesmos propósitos e revigorando as mesmas práticas
simbólicas na modernidade tardia.
À medida que a pandemia do COVID-19 continua e influencia toda a vida
social, as organizações e denominações religiosas se verão diante do desafio de
encontrar adaptações e inovações, inclusive tecnológicas, para responder
adequadamente às novas condições, sob o risco de tornarem-se insignificantes no
campo da produção e internalização dos sentidos. Diante do enfrentamento da
pandemia global e da perspectiva mais ou menos realista de que as novas ameaças
pandêmicas vieram para ficar, as religiões e romarias, provavelmente, nunca
retornarão às suas práticas religiosas exatamente “como antes”. Dependendo dos
tipos e perfis dos seus romeiros e frequentadores – como imigrantes brasileiros e
goianos no exterior – as instituições religiosas precisarão imaginar novas formas de
encontro, novas modalidades para construir relacionamento e novas maneiras que
possibilitem aos seus fiéis expressar sua devoção, de forma à atender tanto às novas
condições sociais como às novas demandas subjetivas criadas pelas pandemias.
Há indícios consistentes na nossa pesquisa que apontam que através de sua
participação virtual no novo formato de “romaria em casa”, os romeiros, sobretudo
aqueles que vivem em contextos socioculturais instáveis ou distantes – como os mais
de mil imigrantes brasileiros nos Estados Unidos que seguiram a romaria do Muquém
pela Internet -, absorveram e integraram o recurso simbólico oferecido pela
mensagem online como modo de reafirmar um lugar de pertencimento, conferir um
31
O Terço da Divina Misericórdia é uma devoção religiosa católica baseada nas aparições que Santa Faustina
Kowalska (1905-1938) teria recebido de Cristo. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Ter%C3%A7o_da_Divina_Miseric%C3%B3rdia. Acesso em: 10 ago. 2020.
59
REFERÊNCIAS
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Covid Economicis Issue 20, 20 May 2020:58-108 Disponível em: <
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de transcendência transnacional. Universidade da Califórnia, San Diego, EUA, 2009.
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Publication Date: Feb 2015. Disponível em:
<https://www.oxfordhandbooks.com/view/10.1093/oxfordhb/9780199935420.001.0
001/oxfordhb-9780199935420-e-43>. Acesso em: 04 de ago. 2020.
STEWART, M. Hoover. Religion in the Media Age. Taylor & Francis e-Library. New
York, 2006.
60
61
32
“Os animais devem ser saudáveis, em perfeitas condições físicas e aprovados pelas autoridades sanitárias
competentes. O abate é executado apenas por um mulçumano mentalmente sadio, que entenda, totalmente,
o fundamento das regras e das condições relacionadas ao abate Halal. A frase “Em nome de Deus, Deus é o
maior” (BismillahAllahuAkbar) tem de ser invocada imediatamente antes do abate.Os equipamentos e os
utensílios utilizados são exclusivos para esse tipo de degola e a faca do abate deve ser afiada porque a sangria
deve ser realizada apenas uma vez, diminuindo o sofrimento infringido. O ato do abate corta a traqueia, o
esôfago, as artérias e a veia jugular, para apressar o sangramento e a morte do animal.” (ZOGHBI, 2018)
33
A degola é o meio de sacrifício do animal, trata-se de método rápido que não provoca o sofrimento, uma vez
que o fluxo de sangue que iria para o cérebro é interrompido imediatamente, causando a morte instantânea e
eliminando a possibilidade de liberação de toxinas que contaminem a carne, portanto, além de não provocar
sofrimento ao animal produz uma carne de melhor qualidade para o consumo humano.
34
A festividade do Hajj, peregrinação a Meca, se encerra nas comemorações da Festa do Sacrifício – Eid Adhha,
neste dia deve-se sacrificar um carneiro ou outro animal relembrando a história de Abraão que foi ordenado
por Deus a sacrificar seu filho Ismael, tal festa é realizada pela comunidade muçulmana no Brasil (SACRIFÍCIO,
2007).
63
ASPECTO ECONÔMICO
ASPECTO POLÍTICO-JURÍDICO
ASPECTO ECOLÓGICO
35
Segundo o Dep. Antonio Goulart dos Reis “Um exemplo para o correto abate de animais é o seguido pelo
Islamismo. O Islã estabelece normas humanitárias de abate animal (abate Halal), que insiste que a melhor
maneira de abate deve ser aquela menos dolorosa para o animal, exigindo, entre outras coisas, que um animal
não seja abatido na frente do outro. Nunca, antes do Islã, o mundo tinha testemunhado tamanha preocupação
com os animais. De acordo com as técnicas do abate Halal, o abate deve ser feito o mais rápido possível para
que o animal tenha uma morte rápida. Há provas científicas de que, com a degola do sistema Halal, o animal
tem a interrupção sanguínea ao cérebro, que causa morte instantânea, não dando chance de liberação de
toxinas que contaminam a carne.Com a saída quase completa do sangue, se o animal estiver com alguma
moléstia, as chances do ser humano ser contaminado será menor.” (REIS, 2016)
36
Recurso Extraordinário nº 494601/RS do Supremo Tribunal Federal (STF), que julga em 28/03/2019 a
constitucionalidade de lei de proteção animal que, afim de resguardar a liberdade religiosa, permite o sacrifício
de animal realizado pelas Religiões Tradicionais Africanas.
65
A cultura Africana pode nos ajudar a conceber e viver as relações do
homem com a natureza para que não sejam puramente relações técnicas,
mas estéticas; não relações do homem conquistador da natureza; mas sim
relações de respeito recíproco, de participação e de complementariedade. E
esta forma de relação íntima tem como finalidade realizar e manter um
equilíbrio harmonioso entre homem e o universo (...) Esta ontologia
antropocêntrica é uma unidade completa. É uma relação de solidariedade
na qual não pode haver ruptura ou destruição. E se acontecer o contrário,
causa desequilíbrio do próprio homem, da natureza, enfim, de todo o
Universo. (DOMINGOS, 2011)
CONCLUSÃO
37
Segundo a reportagem de Ana Lucia Azevedo: Se hoje a pecuária é uma das atividades mais importantes do
país — representa 6,8% do Produto Interno Bruto ( PIB) — também é uma das mais ineficientes do mundo,
baseada na prática extensiva e, por isso mesmo, barata. Os lucros estão no tamanho da área usada e não na
eficiência produtiva. A pecuária brasileira tem um dos menores custos do mundo. Cerca de 60% menos que na
Austrália e 50% inferior ao dos Estados Unidos. (AZEVEDO, 2015)
66
REFERÊNCIAS
ABATE Halal. [Porto Alegre]: Correio do Povo play, [?]. 1 vídeo (2:22 min). Disponível
em: https://www.youtube.com/watch?v=b9Aet6no7m4&feature=youtu.be. Acesso
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https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/515844/noticia.html?sequenc
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de março de 2017. Regulamenta a Lei nº 1.283, de 18 de dezembro de 1950, e a Lei
nº 7.889, de 23 de novembro de 1989, que dispõem sobre a inspeção industrial e
sanitária de produtos de origem animal. Disponível em:
http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/decreto/D9013.htm.
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Ministério Público do Rio Grande do Sul. Reclamado: Assembleia Legislativa do
Estado do Rio Grande do Sul e Governador do Estado do Rio Grande do Sul. Relator:
Min. Marco Aurélio, 28 mar. 2019. Diário de Justiça Eletrônico,Brasília, DF, 28 mar.
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67
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Acesso em: 09 jul. 2020.
68
INTRODUÇÃO
38
Segundo a prof. Drª. Elisa Gonsalves Possebon, a educação emocional significa conhecimento e
autoconhecimento de questões relacionadas ao universo emocional, abrangendo também a aquisição de
conhecimentos e habilidades que vem proporcionar a consciência e a modulação das ações, educando o
indivíduo para o bem-estar (2018, p.09).
70
METODOLOGIA
Art. 5.º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a
inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade, nos termos seguintes: […] VI – é inviolável a liberdade de
consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos
religiosos e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a
suas liturgias.
PRECONCEITOS E INTOLERÂNCIA
relação entre os membros dos grupos de psicologia. Esse cuidado é necessário para
que se possa dar continuidade ao processo terapêutico propriamente dito.
LAICIDADE
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
(1961), podemos destacar que nas obras de Tomás de Aquino seu personalismo
teológico antecede o personalismo humanista, pois vamos encontrar suas ideias
acerca de pessoa já no tratado da Trindade e da Encarnação. Tomás de Aquino, para
justificar-se, escreve que tudo aquilo que há de mais perfeito no mundo das
criaturas há num grau muito maior de perfeição em Deus, deste modo, a pessoa que
é considerada uma perfeição no mundo das coisas criadas deve realizar-se num grau
incomparável de perfeição no Criador.
Na questão 29 da Suma Teológica, Tomás de Aquino questiona se a definição
de pessoa de Boécio seria a mais cabível e adequada. O autor escreve que “entre as
outras substâncias os indivíduos de natureza racional têm o nome especial de
pessoa”. (ST I q. 29 a. 1)
Boécio (2005) define que pessoa é uma substância individual de natureza
racional39. É importante ressaltar que pessoa e indivíduo não são o mesmo, pois vamos
encontrar o termo indivíduo dentro da definição de pessoa, portanto são conceitos
distintos. Filho (2016 p. 51) escreve que de acordo com a análise das intenções
lógicas, temos gênero, espécie e indivíduo. Se esta substância individual possuir
natureza racional, pode ser considerada pessoa, caso contrário, não. Toda pessoa é
considerada indivíduo, mas nem todo indivíduo pode ser considerado pessoa.
Em sua resposta, o Doutor Angélico ensina que os indivíduos substanciais são
diferentes um dos outros devido a um nome especial, pois podem ser ditos como
hipóstases (para o latim “substantia”) ou substâncias primeiras. É nas substâncias
racionais que o individual e o particular são manifestados de forma mais perfeita,
isto se acentua devido ao fato de terem autonomia sobre seus atos, ou seja, para
Tomás, ser substância racional significa, além de possuir alma racional e captar o
inteligível, é poder dominar ou controlar suas atitudes e não somente agir de
maneira instintiva. Deste modo, pode-se dizer que a substância racional é senhora de
seus atos. A razão transcende os instintos. Segundo Wojtyla (1961), a pessoa, na
visão tomista, é sempre um ser concreto, um ser em quem se realiza uma
potencialidade própria de uma natureza racional, e esta potencialidade se realiza
por meio de um pensamento.
Tomás escreve que “o particular e o indivíduo se realizam de maneira ainda
mais especial e perfeita nas substâncias racionais que têm o domínio de seus atos e
não são apenas movidas na ação como as outras, mas agem por si mesmas. Ora as
ações estão nos singulares”. (ST I q.29 a.1)
Tomás, concordando com Boécio, destaca que os indivíduos de substância
racional recebem o nome especial de pessoa, utiliza-se substância individual nesta
definição para se referir ao singular no gênero da substância, e acrescenta-se
39
Disso tudo decorre que, se há pessoa tão-somente nas substâncias, e naquelas racionais, e se toda
substância é uma natureza, mas não consta (...) nos universais, e, sim, nos indivíduos, a definição que se obtém
de pessoa é a seguinte: “substância individual de natureza racional. (BOÉCIO, 2005. p. 165). Ambas propiedades
espirituales de la naturaleza – la razón y la libertad – se concretan en la persona, donde se convierten en
propiedades de un ser concreto, que existe y actúa en el nivel de una naturaleza que tiene tales propiedades. La
persona, por lo tanto, es siempre un ser concreto racional y libre, capaz de todas aquellas actividades que sólo la
razón y la libertad hacen posible (...) (WOJTYLA, 1961, p. 4).
77
40
(NICOLAS, Marie – Joseph In: Suma Teológica I p.98).
41
En una primera aproximación hemos reunido algunas peculiaridades, que permiten entender por qué a los
hombres, es decir, a los seres que nosotros mismos somos, no nos limitamos a incluirlos em uma determinada
espécie biológica de mamíferos, sino además en una classe completamente distinta, en la classe de las
personas (...) (SPAEMANN, 2000. p. 37).
42
Ciertamente persona es también um nomen dignitatis. Las naturalezas racionales pueden exigir uma classe
determinada de respeto. Sin embargo, el sentido primero de la definición de Boécio es ontológico. La
naturaleza racional existe como identidad (...) Con otras palabras: su denominación no puede ser sustituida por
ninguna descripción. La persona es alguien, no algo (...) (SPAEMANN, 2000. p. 48).
78
pessoa, na origem grega era dita prósopa (máscara que esconde o rosto) e ainda
personare (ressoar) que faz referência às máscaras com certa concavidade específica
para que o som da fala do ator que a utilizasse durante a apresentação teatral fosse
transmitida a maiores distâncias.
O Doutor Angélico ensina que pessoa diz respeito àquilo que é mais perfeito
em toda a natureza (subsiste em uma natureza racional), contudo, quando falamos
em pessoa divina e pessoa humana, é necessário compreendermos que há uma
distinção entre essas pessoas, pois o termo pessoa quando relacionado a Deus quer
dizer o maior grau de perfeição entre todos os entes. Deus é a própria perfeição por
sua essência, pessoa no mais alto grau de excelência. Contudo, não devemos nos
referir a Deus usando o termo pessoa se considerarmos a origem da palavra, mas
sim, o que ela passou a significar. As máscaras eram utilizadas para representar os
célebres, as pessoas constituídas em dignidade, portanto é deste modo que
atribuímos o termo pessoa a Deus, pois, segundo a teologia deste contexto, Ele é o
mais digno, é o que possui mais dignidade, logo é pessoa no mais alto grau.
Considerado este aspecto da dignidade da pessoa divina, também é atribuída a
dignidade à pessoa humana.
Tomás escreve que é “por isso, alguns definem pessoa dizendo que é uma
hipóstase distinta por uma qualidade própria à dignidade. Ora, é grande dignidade
subsistir em uma natureza racional. Por isso dá-se o nome pessoa a todo o indivíduo
dessa natureza, como foi dito. Mas a dignidade da natureza divina ultrapassa toda
dignidade, por isso, o nome de pessoa ao máximo convém a Deus”. (ST I q. 29 a.3)
CONCLUSÃO
A partir deste breve estudo, pode-se inferir que a filosofia grega e medieval
não estão tão ultrapassadas assim como defendem alguns radicais contemporâneos.
Muito pelo contrário, este estudo mostrou quão relevante são as teses e conceitos
fundados desde Aristóteles até Tomás de Aquino tendo sua aplicação maior por
Jacques Maritain no pós guerra. A pejorativamente chamada ‘idade das trevas’
produziu conteúdos que iluminam o direito universal até os dias de hoje
principalmente no que se refere à garantia de direitos fundamentais e também à
liberdade religiosa como descrita no artigo 18 da DUDH. O estudo é limitado no que
se refere à necessidade de ler e visitar outros autores, tal como Kant que possui uma
outra abordagem em relação à dignidade humana, contudo, abre caminhos para
que estudos futuros sejam feitos não só do ponto de vista da filosofia ou teologia,
mas também do ponto de vista das ciências da religião e do direito internacional. É
possível destacar como as garantias estão sendo aplicada pelos governos de cada
país, se de fato a declaração universal é respeitada e assim por diante. Em suma, a
pesquisa contribui para uma visão geral acerca da filosofia tomista, sua relevância
para a contemporaneidade e a aplicabilidade de conceitos tão básicos para o bem
comum da humanidade tal como a liberdade religiosa.
80
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
43
Teologia de Domínio - É caracterizada por um comportamento belicoso e ultraconservador. Surgida nos anos
90 nas igrejas neopentecostais norte-americanas, a Dominion Theology é uma declaração de guerra espiritual
do cristão contra o Diabo. Desigualdade social, injustiça, violência e guerras podem ser explicadas como
maldições hereditárias ou territoriais. Nada está fora da ação demoníaca e seus agentes: futebol, política,
artes, religião, poesia, música, intelectualismo, psicologia. Dessa forma é preciso combater através dos
“soldados cristãos”, e de forma agressiva. O poder político se torna então, uma arma de combate. (DIP, 2018, p
86-93)
44
Todo o homem se submeta às autoridades constituídas, pois não há autoridade que não venha de Deus, e as
que existem foram estabelecidas por Deus. De modo que aquele que se revolta contra a autoridade, opõe-se a
ordem estabelecida por Deus. E os que se opõem atrairão sobre si a condenação. Os que governam incutem
medo quando se pratica o mal, não quando se faz o bem. Queres então não ter medo da autoridade? Pratica o
83
Portanto, foi nosso objetivo através dessa breve revisão histórica relacionada
com o protestantismo, levantar a hipótese que muitos dos conservadores e (ultra)
direitistas protestantes, estão mais alicerçados no “ouvi dizer” do que arraigados a
fundantes ideológicos, o que favorece a intervenção e influência de grupos
fundamentalistas e conservadores ideológicos norte-americanos.
Convém lembrar que até o Pacto de Lausanne (Suíça/1974), nas ocasiões em
que a igreja se envolvia com a política, havia sempre uma onda de protestos. “A
igreja não deve se meter com política. [...] Religião e política não se misturam”.
(STOTT, 1989, p. 27) Entretanto, essa prática vai mudar especialmente na região
norte-americana chamada Bible Belt - Cinturão bíblico, onde a fé cristã protestante
faz parte da cultura local. No Brasil isso acontece a partir de 1986, ano em que as
igrejas se organizaram para eleger políticos representantes na Assembleia
Constituinte. (ROCHA, 2011, p. 583)
bem e dela receberás elogios, pois ela é instrumento de Deus para te conduzir ao bem. Se, porém, praticares o
mal, teme, porque não é à toa que ela traz a espada: ela é instrumento de Deus para fazer justiça e punir quem
pratica o mal. (BÍBLIA DE JERUSALÉM, 1973, p. 1486).
84
Esse discurso também tem sido a base do movimento em toda América Latina
desde o surgimento desse movimento em 1920. Com a eleição de Jimmy Carter
(1977-1980) que frustrou conservadores com suas propostas progressistas, nos anos
oitenta o jogo político americano começou a mudar influenciado pela aliança entre os
neoconservadores e a direita religiosa. “Os cristãos conservadores iniciaram, então,
uma aproximação com o universo judeu americano, dando espaço para discursos
pró-Israel, e consolidando o sionismo cristão moderno”. (MATEO, 2011, p. 2) A partir
da eleição de Ronald Reagan (1981-1989), políticas econômicas neoliberais e
antitrabalhistas começam a ser implantadas. Essa política elege os republicanos
George Bush (1989-1993) e George Walker Bush (2001-2009). Nesse período, os
evangélicos cresceram em número e capacidade de influência e consequentemente
também, as ideias da direita religiosa.
2. Tea Party – TP é um movimento estadunidense criado entre 2009-2010
visando oferecer suporte a qualquer partido, mas preferencialmente o Partido
Republicano, visando o bloqueio de qualquer candidatura moderada. Sua liderança
(simbólica) é exercida por Sarah Palin, aliada a outros membros conhecidos como
Glenn Beck (mídia conservadora) e Donald Trump. O TP tornou-se uma grande
máquina de arrecadação através de grandes empresas.
Segundo Delcourt, a TP pretende ser a “guardiã das tradições fundadoras da
nação e uma resposta ao declínio dos valores e a erosão dos costumes”. (DELCOURT,
2016, p.127) Identificada também como sendo parte da terceira onda fascista sobre a
45
Fonte: https://brasilianismo.blogosfera.uol.com.br/2019/09/13/segundo-autor-brasil-foi-alvo-de-familia-
antidemocratica-tema-da-netflix/?cmpid=copiaecola
85
CONCLUSÃO
Rubem Alves, em seu texto De dentro do furacão afirma que “há um ditado
zen que diz: ‘o dedo aponta para a lua. Mas ai daquele que confundir o dedo com a
lua’. Quem se deixa enfeitiçar pelo dedo nunca descobrirá a beleza da lua”. (ALVES,
1985, p. 19)
Claro que se olharmos para os “dedos” do poder político, da igreja, da
sociedade, do que se fez e se faz “em nome de Deus”, dos pastores lobos, da soberba
norte-americana, da manipulação midiática e religiosa que incita o povo a não
pensar, teremos grandes frustrações. Que Evangelho é esse? Quem é esse Deus
Encarnado? Mas se olharmos a “lua” teremos esperança e esperança se faz
educando, transformando as mentes pelo ensino da Palavra e suas afinidades.
REFERÊNCIAS
RAUL IÉ
Mestrando em Teologia
Faculdade Batista do Paraná
[email protected]
INTRODUÇÃO
METODOLOGIA
Nesta secção será apresentada a descrição e análise dos dados desta pesquisa,
feita com base na escala de Likert, onde solicitou a especificação do nível de
concordância dos respondentes da pesquisa.
Na aplicação do questionário, primeiramente, pretendeu-se saber se os incisos
III do art. 1, VI e VIII do art. 5, todos eles da Constituição Federal, equilibram a
dignidade humana com a crença e tradição religiosa. Quanto a isso, a maior parte dos
participantes (60,69%) concorda totalmente que os dispositivos da Constituição
Federal supracitados equilibram a dignidade humana com a crença e a tradição
religiosa. Como ilustração, veja-se a tabela 1, em seguida:
Parcialmente
Concordo
96 55,49%
Totalmente
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa
Neutro 37 21,39%
Concordo
48 27,75%
Parcialmente
Concordo
43 24,86%
Totalmente
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa
Concordo
46 26,59%
Parcialmente
Concordo
49 28,32%
Totalmente
Total 173 100%
Fonte: Dados da Pesquisa
CONCLUSÃO
REFERENCIAS
eliminação é abertamente falado por muitos através das redes sociais e, como diz
Hanna Arendt, é o homem achando que é detentor da vida e da morte do outro.
A dinâmica social se dá em função do abandono das discussões dos direitos
humanos, que na legislação federal de 1948, asseguram o princípio a liberdade
religiosa. Mas, este princípio parece estrar sendo destruído, pela imposição de uma
simbólica lâmina cortante, aliados ao projeto de demonização das religiões de
matrizes africanas. HAMPÂTÉ BÂ (2010) fala da negação da natureza, o respeito ao
equilíbrio das forças visíveis. Ao invadirem terreiros, impedirem o culto aos orixás e
até provocam a expulsão dos babalorixás e das babalorixás de suas casas. Acresce-se
a isso a situação de evangélicos aliados ao poder paralelo local e de traficantes que
“são de Jesus”. Provocam um desequilíbrio dessas forças vitais.
Os dados do disque denúncia em 2019, aqui apresentados dizem que 60% das
denúncias de violências religiosa, são de matrizes africana sendo que o Rio de Janeiro
se coloca em primeiro ligar com 116, seguido de São Paulo com 96 casos o que
confirma a presença do racismo religioso, estruturado no Estado do Rio de Janeiro.
Vale ressaltar que motivados por suas lideranças um grande percentual de
evangélicos defendem que os adeptos as religiões de matrizes africanas cultual o
99
Demônio ou falsos deuses. Inclusive Edir Macedo, da URD reeditou o livro publicado
em 1990, Orixás, Caboclos e Guias: Deuses ou Demônio.
E ao sermos atravessado pela pandemia que varreu o mundo, levou vidas pela
contaminação do COVID-19 e cerca de 55% dessas vidas eram de pessoas nega. A
lente de aumento imposta pela pandemia, amplia a visão de como se perpetua a
desumanização, mediada por um suposto sagrado que decidiria por uma
100
CONCLUSÃO
Este texto quero pensar como lidar com o pertencimento, até mesmo
resgatando a possibilidade de um cristianismo possível, e talvez mais originários, de
um Cristo mandingueiro, pobre, sem vestimentas de luxo (ou ternos) e não religioso.
O cristianismo não era uma religião em suas origens, e o cristianismo Romano acaba
por se distanciar do Cristo africano.
Todo território cercado está exposto a ocupações, a disputas, como todo
território sacralizado está exposto a profanações. As lutas históricas no campo do
conhecimento foram e continuam sendo lutas por dessacralizar verdades, dogmas,
rituais, catedráticos e cátedras. A dúvida fez avançar as ciências e converteu o
conhecimento em um território de disputas. (ARROYO, 2011, p. 17)
Pois o processo de resistência se dá no combate a opressão, e do racismo
religioso que fere o estado laico e a própria constituição. Ajudam a desvelar o
discurso, a produção de silenciamentos, e o atravessamento entre os valores e
identidades raciais e religiosas que colocam o respeito a liberdade religiosa em
perigo.
REFERÊNCIAS
HAMPÂTÉ BÂ, Amadou, Amkoullel, O menino fula. São Paulo: Palas Athena: Casa das
Áfricas, 2003.
VERGNE, Sandra Aparecida Gurgel. Teceres, fazeres e narrativas no ensino religioso:
a cosmovisão africana como possibilidade de aplicação da Lei 10639/2003.
Dissertação de mestrado em Ciência da Religião, PUC-SP. São Paulo. 2016. Disponível
em https://tede2.pucsp.br/handle/handle/18919. Acesso em 01 de dezembro de
2017.
102
103
INTRODUÇÃO
Para explorar a questão do bem comum, iremos primeiro nos atentar para sua
singularidade dentro de um contexto socialmente pluralista e então evocá-lo pelas
vias teológicas da teologia prática na tradição do Neocalvinismo.
Com fins de definição, o pluralismo social que estamos nos referindo aqui é o
mesmo dito pelo o anglicano Robinson Cavalcanti quando afirma que "o pluralismo é
46
Subárea da área 44 da CAPES, "Ciências da Religião e Teologia". De acordo com o documento de área, a
"Teologia Prática" é responsável pelo diálogo entre fé e política, bem como teologia e sociedade. Documento
disponível
em:<http://www1.capes.gov.br/images/Documento_de_%C3%A1rea_2019/ciencia_religiao_teologia.pdf>,
acesso 18 de outubro, 2020.
47
Abraham Kuyper foi um profícuo teólogo, pastor, jornalista e político, que, com herança calvinista, elaborou
uma teologia própria e deu início ao Neocalvinismo no fim do século XIX na Holanda.
48
Kuyper argumenta em favor do pluralismo ancorado em sua noção teológica da Soberania das Esferas, a qual
reconhecia a necessidade de autonomia das diferentes esferas sociais, como o Estado, a família, a igreja, etc.
Diferente da proposta do Estado Laico, Kuyper se baseou na ideia bíblica de "organismo vivo" do "corpo de
Cristo" para defender a liberdade tanto das instituições em sua diversidade quanto dos indivíduos em suas
crenças. (BRATT, 2013, Edição Kindle).
105
49
Apesar da abertura para a polissemia dos termos "pluralismo" e "pluralidade", estamos evocando-os como
intercambiáveis quando se referem ao formato social de diversidade de crenças e práticas.
50
Capital moral é, basicamente, a terminologia utilizada por Roel Kuiper para explicar a geração de capitais
morais na conexão social, mas a partir da lógica cristã do pacto e não do contrato social.
51
Cabe dizer que Kuyper, seja como pastor de igreja rural ou como primeiro ministro da Holanda (1901-1905),
não projetou o pluralismo para o formato de um laicismo, devido a conjuntura religiosa dos Países Baixos em
seu tempo, o qual a religião oficial era o Calvinismo.
52
"But perhaps Kuyper’s greatest significance for our own religiously and culturally fractured world is the way
he proposed for religious believers to bring the full weight of their convictions into public life while fully
respecting the rights of others in a pluralistic society under a constitutional government."
106
nota que o bem comum é melhor compreendido quando levamos em conta que cada
forma de vida presente na sociedade, seja religiosa ou não, carrega uma visão de bem
(uma teleologia), que "anima" a vida comum e define os bens a serem perseguidos
por quem compartilha dela. Nesta lógica, a fim de traçar uma teologia pública 53, é
preciso recuperar a noção da teleologia cristã, pois esta traz em seu bojo uma visão
de bem que motiva a colaboração social na vida cotidiana, bem como une o grupo em
seus objetivos (2020, p. 29). Em suas palavras:
53
Termo aqui usado para denominar "uma exposição de como viver em comum com vizinhos que não
acreditam no que acreditamos, não amam o que amamos, não esperam pelo que esperamos." (SMITH, 2020, p.
30) Dessa forma, é também uma compreensão de como viver numa sociedade pluralista.
54
Em certa medida, a distinção entre pluralismo estrutural e confessional exposta acima e defendida pela
maioria dos neocalvinistas reforçam a ideia de que há uma separação entre questões penúltimas e últimas. Por
isso, Smith critica sua própria tradição com o argumento que segue no texto.
108
acerca do bem, do justo e do certo, ainda encontrará em fontes mais estreitas essas
significações. (SMITH, 2020, p. 40) Por sua vez, essas significações acabam por formar
uma macrovisão de questões últimas que afetam a vida comum. Em outras palavras,
sua tese é de que "nossas visões últimas não são agnósticas em relação ao
penúltimo." O último deságua no penúltimo. E continua expondo sua visão teológica:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Observamos assim que o impasse social causado pelo pluralismo social tem
consequências diretas nas concepções de bem, em bem comum. Vimos também que
o bem como concepção teológica é singular, pois é carregada de significações últimas
que não podem ser subsumidas. Porém, precisamos responder diretamente às
questões norteadoras: como podemos compreender a relação da produção do bem
comum com as divergentes concepções de bem presentes na sociedade? O bem no
sentido teológico continua sendo bem comum?
109
Resulta daí a possibilidade deste bem (na concepção teológica) para o bem
comum.
REFERÊNCIAS
BARTHOLOMEW, Craig G. Contours of the Kuyperian Tradition: A Systematic
Introduction. Downers Grove, IL: InterVarsity Press, 2017.
BRASIL. MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO (MEC). Documento de área: área 44: ciências da
religião e teologia. Área 44: Ciências da Religião e Teologia. 2019. Disponível em:
http://www1.capes.gov.br/images/Documento_de_%C3%A1rea_2019/ciencia_religia
o_teologia.pdf. Acesso em: 21 out. 2020.
BRATT, James D. Abraham Kuyper: modern Calvinist, Christian democrat. Wm. B.
Eerdmans Publishing Co, 2013. Edição do Kindle.
CAVALCANTI, Robinson. Cristianismo e política: teoria bíblica e prática histórica.
Viçosa: Ultimato, 2002.
KUIPER, Roel. Capital moral: o poder de conexão da sociedade. Brasília, DF: Editora
Monergismo, 2019.
KOYZIS, David T. Visões & ilusões políticas: uma análise e crítica cristã das ideologias
contemporâneas. São Paulo: Vida Nova, 2014.
SMITH, James K. A. Aguardando o Rei: reformando a teologia pública. São Paulo:
Vida Nova, 2020.
110
RESUMO: O presente artigo tem por escopo analisar aspectos históricos do direito
penal e como o Estado ainda hoje aplica a justiça. E ainda como a espiritualidade age
diretamente no sujeito de direito, influenciando sua forma de ver e aceitar as
mudanças sociais no campo do direito criminal. O sistema retributivo está vinculado a
um conceito jurídico-normativo de crime, que é balizado como fato típico, ilícito e
culpável, resultando em uma ofensa ao Estado. Em contrapartida, se apresenta um
novo olhar, que é a justiça restaurativa como uma nova possibilidade de resolução de
conflitos, propiciando um maior espaço de diálogo e de consenso, uma efetiva
responsabilização do ofensor e um local seguro e de maior atenção as necessidades
da vítima e da comunidade, o que possibilita um ressignificar da vida. O estudo se dá
por intermédio de uma abordagem metodológica bibliográfica. O resultado que
espero é o entendimento do que é justiça restaurativa, como é possível desenvolvê-la
sem exclusão da espiritualidade dos sujeitos e sem confrontar com o Estado Laico,
permitindo aos envolvidos – ofensor, vítima e comunidade um novo começar, onde
as pessoas são o foco central a ser tratado e não o crime.
INTRODUÇÃO
Ao olharmos para o Direito Penal, percebemos que ele atravessou várias fases,
desde a Renascença, quando o mundo se ordenava pelo misticismo, percorrendo o
Período Clássico, que rompeu com o mito ao promover a razão como o centro de
tudo, o paradigma da racionalidade criou-se com raízes fortes observadas ainda hoje.
No período do corpo supliciado, observa-se a teoria da vingança, que consistia
na rigorosa reciprocidade do crime e da pena. Partia-se da perspectiva de que quem
feriu o outro devia ser penalizado em modo idêntico.
Thomas Hobbes (2014), apesar de defensor do Direito Natural, considerava
que a sociedade não poderia se sustentar apenas nesse sistema, o que culminaria em
guerra de todos contra todos, portanto ressaltava a necessidade da criação do Direito
Positivo ou de contrato social, garantido por um poder centralizado, que é o Estado,
com vistas a estabelecer regras de convívio pacífico; surge, pois, disso a ideia de
Justiça Retributiva.
111
OS SUJEITOS
Para Foucault, “Naquele que o Estado quer punir está o fechamento do ciclo
que vai do sujeito ao sujeito. O criminoso aparece como sujeito sujeitado, delimitado
na condição de indivíduo completamente só. Ele e sua pena. Ele e sua morte. Ele e
sua autoria” (Foucault, 2000 apud Sugizaki, 2013, p. 29).
Na Justiça Retributiva, não é somente o ofensor que aparece como “sujeito
sujeitado”. A vítima também o é, afinal, ela é o foco principal do delito. Ela se torna,
porém, mero objeto de informação. Para o detentor do poder punitivo (Estado), a
vítima, apesar de sofrer a ação, interessa mais pelas informações e detalhes que irá
narrar para formar a convicção do julgador do que pelas suas próprias necessidades.
Ela não é vista como sujeito de interesses, mas, unicamente, como objeto de
informação ou estudo.
Esse círculo no qual se encontram vítimas, ofensores e comunidade, como
simples objetos de observação e de punição, que tem como peça central o próprio
delito, gera insatisfação e sensação de impunidade, ocasionando conflito social.
Os sociólogos costumam destacar que os conflitos sociais, especialmente as
lutas de classes, constituem a principal causa ou motor das mudanças sociais e
culturais.
O modelo retributivo, observado em grande parte das culturas existentes, ao
contrário da tranquilidade e da pacificação apregoada, tem gerado crescente
114
CÍRCULOS RESTAURATIVOS
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Nosso sistema jurídico tem muitos rituais, e esses rituais são como um espaço
onde as tradições espirituais podem desempenhar um papel significativo. Um
exemplo típico de um ritual no sistema jurídico é o Tribunal de Júri.
Os ritos possuem um ou vários sentidos e podem oferecer clareza sobre os
mistérios da humanidade. O rito é uma ação seguida de consequências reais, é uma
espécie de linguagem, uma forma de comunicação.
Um ritual importante que se desenvolve na justiça é quando ocorre um crime
ou ofensa. Nesse momento é necessário o ritual do lamento, que se faz necessário
em toda situação conflituosa, possibilitando que os envolvidos se livrem da sensação
de estresse emocional, de algo preso dentro de si, para que sigam suas vidas após o
processo catártico.
Percebendo essa necessidade, a prática restaurativa aplicada nos tribunais
surgiu com o enfoque de mitigá-la, pela realização de rituais de lamentação e cura
para os interessados.
Mudanças são necessárias, as quais só surgirão a partir dos sujeitos.
É esse sujeito pós-moderno, que precisa superar esse estado de estabilidade e
assumir o estado de mudanças, assumindo as múltiplas identidades exigidas nas
sociedades modernas, e se tornando protagonista no conceito de Justiça Criminal,
que deve ver as coisas por um ângulo diferente.
Não há mais espaço, na cultura pós-moderna, para a segregação do indivíduo
que comete um crime em presídios afastados e superlotados, onde não se respeitam
as identidades reconhecidas por cada um.
A Justiça Restaurativa não visa afastar a pena imposta ao ofensor, mas, sim,
permitir que ele perceba seu erro, assuma responsabilidades, tenha a oportunidade
de reparar o dano, sinta-se em paz consigo mesmo e consiga ressignificar sua vida.
Esse sujeito sujeitado, seja vítima, seja algoz, enfim encontra seu espaço nesta
cultura pós-moderna, em que a resiliência se faz necessária. O mundo precisa mais
do que nunca de humanidade. Esta civilização já viveu tempos bárbaros demais, e o
116
REFERÊNCIAS
A DEFINIÇÃO DE VIRTUDE
Todos nós realizamos atos involuntários e não pensados, que podem ser
classificados simplesmente como atos do homem, como por exemplo, respirar ou
coçar a barba, ou seja, ações que também encontramos nos animais irracionais. Mas,
aqueles atos que procedem da faculdade da inteligência e da vontade são chamados
atos humanos, como por exemplo, elaborar determinados conceitos ou deliberar tal
ação. São os atos voluntários, e por estes podemos ser responsabilizados. Os hábitos
são os atos que atualizam as nossas potencialidades ou inclinações. Na medida em
que realizamos nossas inclinações em conformidade com a natureza e a reta razão,
então temos os hábitos que chamamos de virtudes. Não se deve confundir o hábito
118
seria comum para todas as virtudes, tanto infusas como adquiridas (TOMÁS DE
AQUINO, 2005, p.93-99)55.
A VIRTUDE DA JUSTIÇA
55
Apresentamos uma síntese das respostas nos diversos artigos que compõe a discussão da questão 55 da
primeira parte da segunda parte obra Suma Teológica.
56
Resumimos a ideias principais que são discutidas, entre as objeções e respostas dos artigos que compõe a
argumentação da questão 58 da segunda parte da segunda parte da Suma Teológica.
120
Senhor tudo o que d’Ele recebi?”(Salmo 115,3)57 . Por isso, acrescenta-se a religião à
justiça, que consiste, em “apresentar cerimônias e culto à natureza superior
designada pelo nome de divina” (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p.273). Em segundo
lugar, não se retribui em igualdade aos pais, por tudo deles recebido, como esclarece
Aristóteles e, por isso, acrescenta-se a virtude da piedade, pela qual, segundo Cícero:
“Aos consanguíneos e benfeitores da pátria se tributa um culto diligente” (TOMÁS DE
AQUINO, 2005, 273). Em terceiro lugar, não se retribui em igualdade à virtude dos
outros, conforme diz Aristóteles. Por isso, acrescenta à justiça a veneração pela qual,
segundo Cícero: “Aqueles que são superiores por alguma dignidade são cultuados e
honrados” (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p.273). Ademais, a insuficiência quanto ao
devido por justiça pode ser considerada segundo os débitos moral e legal; por isso,
Aristóteles distingue esses dois tipos de débitos. O débito legal consiste em retribuir
aquilo que é determinado por lei. Este débito propriamente pertence à justiça como
virtude principal. O débito moral é aquele exigido pela honestidade da virtude. Como
esse débito implica necessidade, manifesta-se em dois graus: o primeiro grau implica
tal necessidade, que sem ele não se conservará a honestidade dos costumes; neste
grau há, estritamente, o débito. Este débito pode ser considerado da parte do
devedor. O seu débito consiste em ter que mostrar-se ao outro quem de fato é, por
palavras ou atos. Assim, acrescenta-se a justiça a veracidade pela qual, sem
modificações, as coisas tais como foram, são e serão. O segundo grau refere-se a
quem se deva o débito, enquanto se recompensa o outro por aquilo que fez, às
vezes, em bens. Acrescenta-se, então, a gratidão à justiça que, consiste na memória
da amizade e dos bons serviços do outro e a vontade de remunerá-los. Outras vezes,
trata-se de males, acrescentando-se, então, a punição, pela qual, se é levado a se
defender da violência e do ultraje (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p.273). Dito isto,
considera-se que as virtudes anexas ou subordinadas à justiça são nove: religião,
piedade, observância, gratidão, vindicta, verdade, amizade, liberdade e equidade
natural (TOMÁS DE AQUINO, 2005)58
A VIRTUDE DA RELIGIÃO
Muitas ideias se afirmam sobre o que é a religião, para uns é apenas uma
instituição ou forma de comportamento ou simplesmente um sentimento. Neste
estudo retomamos aquele sentido que vigora na civilização ocidental, ou seja, a
religião é uma virtude. Esta compreensão é anterior e posterior a Tomás de Aquino,
todavia, ele nos oferece importante reflexão no seu longo tratado das virtudes. Santo
Tomás apresenta a religião como uma das virtudes mais importantes anexas à virtude
da justiça, não se trata de uma virtude secundária. Considerando as quatro virtudes
cardeais ou morais (prudência, fortaleza, temperança e justiça), ele destaca o que
cada uma delas, concebida em sua noção essencial, contém de específico. Sendo
57
“Quid retribuam Domino, pro omnibus quae retribuit mihi?” (Bíblia Sacra - Vulgata)
58
Apresentamos uma síntese da explicação das virtudes anexas destacando a virtude da religião como gratidão
a quem devemos. Temos aqui a ideia principal do Tratado da Justiça na Suma Teológica.
121
assim, a justiça comporta uma exigência de igualdade que a religião não saberia
manter nas relações entre o homem e Deus do qual ele proclama a transcendência,
exigindo submissão total por parte da criatura. Portanto, se a religião não realiza
integralmente a definição de justiça, realiza da maneira mais perfeita a de virtude,
ocupando entre as virtudes um lugar especial. Na questão 81 da segunda parte da
segunda parte da Suma Teológica, Tomás faz três considerações: sobre a religião em
si mesma, sobre seus atos, e sobre os vícios opostos. Aqui, vamos apenas tratar da
religião em si mesma, e sobre este tema ele desenvolve oito artigos, cada um com
diversas objeções e respostas. Pergunta-se: 1. A religião consiste só na orientação
para Deus? 2. A religião é uma virtude? 3. A religião é uma só virtude? 4. A religião é
uma virtude especial? 5. A religião é uma virtude teológica? 6. A religião deve ser
preferida as outras virtudes morais? 7.A religião tem atos exteriores? 8. A religião é a
mesma coisa que a santidade? Todavia, nosso intuito é tratar apenas da segunda
questão, a saber: a religião é uma virtude? Ao responder sobre esta questão, afirma:
“Virtude é a ato que torna bom quem a tem e boa a sua obra. Por isso, é necessário
afirmar que todos os atos bons pertencem à virtude. É evidente que pagar o devido a
alguém tem a razão de bem, porque o fato de alguém pagar o devido a outro,
restabelece uma relação conveniente com o outro, ordenando-se convenientemente
com ele. Ora, segundo Agostinho, pertencem a razão de bem a ordem, o modo e a
espécie. Logo, como pertence à religião prestar a devida honra a alguém, isto é, a
Deus, torna-se evidente que a religião é uma virtude” (TOMÁS DE AQUINO, 2005,
p.281). A virtude da religião é uma virtude especial, mas não é uma virtude teológica.
As virtudes teológicas (fé, esperança e caridade) tem a Deus como matéria ou objeto,
mas a religião é uma virtude moral, à qual pertencem as coisas que são para o fim, a
saber: o culto com os ritos, sacrifícios ou outras coisas semelhantes (TOMÁS DE
AQUINO, 2005, p. 281-294).
Da mesma forma, não consiste no poder, porque o poder não se dá para o bem
próprio, senão para o dos outros e está à mercê do capricho e do espírito de
insubordinação. Tão pouco na saúde e na beleza corporal porque são bens
inconsistentes e passageiros e, além de tudo, só dão perfeição ao exterior e não ao
interior do homem. Tão pouco nos prazeres dos sentidos, porque são grosseiros
demais, comparados com os gozos delicados da alma. Logo, o objeto da felicidade
consiste nalgum bem que traz perfeição diretamente ao espírito, e este bem só pode
ser Deus, Sumo Bem, Soberano e Infinito. Portanto, aqui Tomás nos encaminha para
a necessidade da prática das virtudes, como condição para atingir o fim para o qual o
homem foi feito, a saber: a felicidade (TOMÁS DE AQUINO, 2005, p.31-60)59.
A felicidade (eudaimonia), possível nesta vida, porém a poucos, foi abordada
por Aristóteles quando tratou da virtude da sabedoria que pode ser alcançada por
uma vida contemplativa ou especulativa (Ética Nicomaquéia, Livro X). Trata-se da
atividade mais excelente do ser humano, que o assemelha ao ser divino, pois aí o
homem contempla a verdade. Santo Tomás fala da felicidade (beatitude), que só será
possível, com a graça sobrenatural, na visão beatífica ou fruição divina que é a
realização de todas as potências intelectivas e volitivas do homem. E isto o diferencia
dos demais animais (STREFLING, 2019, p.20).
O estado laico na medida em que é entendido como o respeito e a tolerância a
religião professada pelas pessoas, seja na sua maioria, seja na sua minoria, que
compõe este mesmo estado, há de proporcionar menos conflitos e maior eficácia na
realização do bem comum, o que é a própria missão do estado. Contudo, parece-nos
que se o estado colaborar para uma desarmonia entre os diversos fins, próprios de
cada pessoa e instituições nas suas diferenças, com o próprio fim último de todas as
pessoas, será dificultado o bem comum. Há que se distinguir os fins intermediários e
diversos com o fim último que é um só, a saber, a busca da felicidade que sem deixar
de ser imanente, também é transcendente. Neste contexto é que se enquadra a
religião como uma virtude anexa da virtude da justiça.
REFERÊNCIAS
59
Ao iniciar seu longo tratado sobre ética, Tomás de Aquino pergunta sobre o fim último do homem. Trata-se
da questão filosófica sobre a felicidade humana, tema desenvolvido na primeira parte da segunda parte da
Suma Teológica, nas questões 1 e 2.
123
ANGELA NATEL
Doutoranda em Teologia
Pontifícia Universidade Católica do Paraná
[email protected]
muito a luta humana se voltou das questões interiores e pela vida para a eleição de
bodes expiatórios sociais, rotulados como hereges e cujos ensinamentos são, muitas
vezes e equivocadamente, tachados de ‘ensinos teológicos liberais’. Já chegou o
tempo em que é preciso rever a história, doutrinas e dogmas, analisar os embates
que deram voz aos vencedores e silenciaram os perdedores. Nessa guerra de
narrativas, que se tenha a humildade e a honestidade para que todos sejam
considerados iguais diante do transcendente e que não haja medo de se ouvir e
aprender com quem pensa e crê diferente.
INTRODUÇÃO
A REFORMA RADICAL
Uma vez que os ensinos dos líderes reconhecidos não foram considerados por
muitos suficientes para causar uma quebra no sistema de opressão religiosa e de
aliança com o Estado, alguns grupos resolveram juntar-se em suas próprias
60
O nome pejorativo ‘lolardo’ (do holandês medieval lollaert, "fofoca") já havia sido aplicado a grupos
europeus suspeitos de heresia. O primeiro grupo lolardo foram alguns companheiros de Wycliffe em Oxford,
liderados por Nicholas of Hereford.
61
Anabatista significa rebatizados, em alemão: denominação criada pelos opositores desse movimento. Os
anabatistas, no entanto, chamavam-se de Täufergesinnte, o que significa ‘os que são batizados
conscientemente’. O termo anabatista, no século XVI estava carregado de conotação pejorativa, em função dos
eventos decorrentes da tomada de Münster pelos anabatistas radicais.
125
62
“Os familistas, ou membros da Família do Amor, podem ser definidos com um pouco mais de exatidão. Eram
seguidores de Henry Niclaes, nascido em Münster, em 1502, que pregou que o céu e o inferno haviam de se
encontrar neste mundo. Acusou-se Niclaes de haver colaborado com Thomas Münzer na insurreição de
Amsterdam [...] os familistas acreditavam que os homens e mulheres pudessem resgatar, na terra, o estado de
inocência que existira antes da Queda: afirmavam, segundo os seus inimigos, que atingiriam a perfeição de
Cristo. Punham em comum as suas propriedades, pensavam que todas as coisas se produziam segundo a
natureza, e que só o espírito de Deus, presente no fiel, pode compreender corretamente as Escrituras.
Converteram a Bíblia em alegorias, queixava-se William Perkins — até mesmo o pecado original. O familismo
foi difundido na Inglaterra graças a Christopher Vittels, um marceneiro itinerante de origem holandesa” (HILL,
1987, p.44).
126
63
O Anarquismo é a teoria que rejeita o governo e deseja que a sociedade seja regulada apenas por meio da
concordância voluntária. Nem todo anarquista propõe a destruição do governo pela violência, embora alguns o
façam. Alguns proponentes do anarquismo secular foram Proudhon, Bakunin, Kropotkin, Max Stirner e o norte-
americano Benjamin Tucker (1854-1939). A teoria tem como pressuposto que a natureza humana seja boa, não
havendo necessidade de leis coercivas. Os anarquistas cristãos proclamavam liberdade da lei com base na
libertação de Cristo. São representados pelos Levelen e Diggers do século dezessete, pelos anabatistas e
Doukhobors e por William Goodwin, que publicou o Enquire Concerning Political Justice, em 1793 (Clark,
Gordon H. Anarquismo In HENRY, Cari F. H. (org.). Dicionário de ética cristã. São Paulo: Cultura Cristã, 2007,
p.41).
127
64
Mateus 5-7.
128
assim, os anabatistas decidiram optar por ela a subtrair a vida de quem quer que seja
por razões doutrinárias.
Faz-se importante mencionar, dentro do contexto da diversidade em que os
grupos identificados como anabatistas se organizaram na história até os dias de hoje,
que seu crescimento somente tem favorecido sua complexidade. Perto do fim do
século XVII havia em torno de cento e sessenta mil menonitas na Holanda
(GIESBRECHT, 2007, p. 143). Por fim, os anabatistas migraram para o leste da Europa
e para a América do Norte e, posteriormente para a América do Sul. Desses grupos
originais se desenvolveram inúmeros segmentos com suas características próprias,
como os Quakers, os Menonitas e os Amish, dos quais muitas comunidades que ainda
atualmente vivem isoladas da sociedade (MELO, 2018, p.74).
A permanência do anabatismo atualmente praticamente se resume ao
menonismo, presente também no Brasil, e configurado de diferentes maneiras,
algumas inclusive diametralmente divergentes entre si – desde comunidades que
celebram o casamento LGBTQIA+, em um grande nicho mundialmente reconhecido
na prática da tolerância, pluralidade e pensamento decolonial, inclusive com atuação
verificável no movimento ecumênico, até outras de caráter Amish,
caracteristicamente ascéticas, literalistas bíblicos e fechadas inclusive ao
desenvolvimento tecnológico. Por causa desse tipo de posicionamento, a
perseguição, o linchamento (atualmente no âmbito virtual), as tentativas de manchar
a reputação até seu martírio definitivo tornaram-se constantes companheiros dos
que se identificam com o movimento anabatista na história.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BOUWEN, Frans. Aceptación mutua y peregrinaje común. In: SCAMPINI. Jorge A.;
ANDIÑACH, Pablo, R. (Orgs.). Fe y Constituición: SUS desafíos. Assemblea de la
Comissión Plenaria. Buenos Aires: WCC Publications, 2006. p. 97-121.
CLARK, Gordon H. Anarquismo In Henry, Cari F. H. Dicionário de ética cristã / Cari F.
H. Henry (org.). São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p.41.
ELLER, Vernand. Anarquia Cristã: a supremacia de Jesus sobre os poderes. Tradução
de Filipe Ferrari disponível em:
<https://espiritualidadelibertaria.files.wordpress.com/2016/07/05_n4_eller.pdf>
acessada em 04/06/2020 às 15:43h.
GIESBRECHT, Ben. Guardando a Fé. São Paulo: LMS do Brasil, 2007, p. 143.
HILL, Christopher. O mundo de ponta-cabeça. Idéias radicais durante a revolução
inglesa de 1640. São Paulo: Companhia das Letras, 1987.
HOOVER, Peter. The Secret ofthe Strength: What Would the Anabaptists Tell This
Generationf Shippensburg, PA: Benchmark Press, 1998.
MELO, Jansen Racco Botelho de. Por uma santidade integral: a problemática do
dualismo no pentecostalismo brasileiro e as contribuições de Karl Barth / Jansen
Racco Botelho de Melo; orientador: Luís Corrêa Lima. – 2018, p.74.
130
131
de um modo inconsciente, três tipos de atitudes básicas: apego a tudo que nos
propicia prazer, objetos, pessoas e ideias; rejeição a tudo que provoca dor ou nos
ameaça; e indiferença ao que não nos causam prazer nem dor.
As principais características desenvolvidas pelas pessoas atingidas pelo
paradigma da separatividade e pela normose são: a possessividade, desejar só para si
objetos, pessoas ou ideias, apegando-se a eles; o ciúme, quando alguém se sente
ameaçado de perder o seu objeto de apego; a competição e a rivalidade entre os que
disputam o mesmo alvo; o orgulho e a vaidade, quando se tem apego a uma
autoimagem de superioridade em relação aos outros; a agressão e a cólera, que se
produzem em consequência do ciúme, do orgulho ferido, da competição ou do
sentir-se agredido (WEIL, 2003).
Sabemos que, ao longo desse caminhar, no paradigma da racionalidade, nossa
educação foi direcionada e supervalorizada a determinadas disciplinas acadêmicas, à
superespecialização, uma vez que todos os fenômenos complexos, para serem
compreendidos, necessitam ser reduzidos às suas partes constituintes. A educação
como parte constituinte desse sistema favoreceu e continua alimentando esse
processo normótico, quando exclui o pensador de seu próprio pensar, quando
esquece os alicerces religiosos que sustentavam os valores da civilização ocidental
em consequência da ciência que passou a predominar, uma ciência materialista,
determinista, destruidora, cheia de certezas, que ignora o diálogo e as interações
entre os indivíduos, entre ciência e sociedade, técnica e política.
Gerou-se então uma educação normótica com consequências que exprimem
negatividade para o ser humano, como a crença no progresso material, no controle
da natureza, no domínio da técnica e seus efeitos sobre a industrialização de bens e
serviços, no aumento da produtividade e da riqueza, na busca do conhecimento
científico tendo como base uma visão utilitária, voltada para a previsão, o controle e
a manipulação do ambiente. Com isso foram desenvolvidos os atuais problemas
críticos de ordem social e global, cujas soluções deveremos buscar começando pela
educação, onde possamos evoluir e reconstruir um mundo melhor para nossas
crianças, adolescente e jovem, em novas bases (MORAES, 1997).
pela sabedoria tradicional, que concebiam a doença como distúrbio da pessoa, que
envolvia seu corpo e sua mente. Uma pessoa espiritualmente inteligente verá a
saúde dessa forma. Hoje temos realidades que se aproximam muito da visão dos
místicos e de numerosas culturas tradicionais, em que o conhecimento da mente e
do corpo humano e a prática de métodos de cura são partes integrantes da filosofia
natural e da disciplina espiritual.
Ter consciência de que tal vida é possível, fazer melhores escolhas, sair do
mundo normótico, estar presente, sair da inconsciência, constitui o primeiro passo na
elevação da inteligência espiritual. Compreender que muitas são as possibilidades de
rotas e que, no curso da vida, percorrer várias talvez seja a maior realização pessoal
da inteligência espiritual. Temos de compreender que há muitos caminhos, que não
há apenas um único para ser espiritualmente inteligente, nem mesmo um melhor
que o outro. Todos são válidos e necessários.
REFERÊNCIAS
65
É importante frisar que esse “escolhido” acima de tudo deve possuir uma qualidade extraordinária, tendo em
vista que uma autoridade carismática exerce um domínio sobre os outros homens, e estes se submetem e
reconhecem a autoridade daquele, baseados na crença de que o líder está revestido de uma qualidade
extraordinária.
141
quer dizer que “não é este líder que cura, pois não têm poderes para tal; ele é apenas
um representante que se sente autorizado por Deus para que possa combater o mal”
(Entrevista, membro assistente, 29 anos, 25 de abril d 2017). Já dizia um instrutor no
curso de capacitação para o ministério da cura e libertação: “nossa luta é espiritual,
não contra carne e sangue, não contra os governantes, as autoridades constituídas.
Nossa luta é contra o diabo e seus anjos dominadores deste mundo tenebroso,
contra os espíritos maus que invadiram o nosso espaço” (esta é uma referência
alusiva a carta aos Efésios, capítulo 6, 11-13). Numa interpretação do palestrante, ele
salientava que “o mal não é só o desemprego, a crise econômica, os problemas
sociais”, mas é a presença concreta de um agente efetivo, um ser espiritual vivo,
pervertido e perversor, e que a autoridade carismática precisa exorcizar do outro,
porque o “amarra”. O líder carismático precisa dar “provas” das qualidades de que
está revestido, através de milagres, de sucesso e êxito em seus empreendimentos
espirituais (WEBER, 1982).
O carismatismo da Vida Nova tem na experiência da sociabilidade comunitária
a busca pela renovação interior pessoal de cada membro. O sucesso, a felicidade, a
sorte, a ascensão social, o emprego, família estruturada, casamento exemplar estão
registrados, nessas representações coletivas e comunitárias, como expressão do
amadurecimento interior e individual. Ou seja, acredita-se que “qualquer mudança
social é sempre concebida como projeto de moralização, de uma moral do indivíduo,
do sexo e das relações mais intensas da vida familiar” (PRANDI, 1997, p. 171). Assim,
essa “renovação espiritual” é encarada como decorrência do relevo que se dá aos
carismas e às implicações trazidas pelos dons do Espírito Santo. A Comunidade Vida
Nova, assim, é esse canal por onde os fiéis se reúnem buscando a renovação
espiritual (propósito principal). Nesta direção, “usam de discursos inflamados
pautados nas leituras bíblicas, cantos de muito louvor, depoimentos de experiências
pessoais. Tudo isso, regado por muita oração e uma fé inabalável” (SANTOS, 2018, p.
5).
O carisma da Comunidade Vida Nova quer representar e tem como proposta
“o renascimento, a mudança e a possibilidade da vida nova”. Os valores considerados
profanos (irreverência, insubmissão, o pecado, a ansiedade, a corrupção, a
infidelidade, prostituição, a mentira, os problemas de saúde, desemprego, finanças
precárias) precisam ser transcendidos (“morrer”) quando se entra no universo
comunitário sacral da Vida Nova. Isto significa dizer que o adepto precisa deixar de
ser o que é e que outra condição deve substituir a precedente. A proposta é de que
“ele renasça sob forma nova” (DURKHEIM, 1989, p. 71) e é por isso que a
Comunidade Vida Nova propõe ser um lugar diferente, não quer se confundir com “o
mundo”, apesar de “o mundo” a invadir. É deste modo que
66
Na Comunidade estuda, o pecado significa que todos precisam ser sarados, porque estão doentes na alma,
enfermos espiritualmente.
144
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
MARX, Karl. Contribuição para a Crítica da Economia Política. São Paulo: Mandacaru,
1989.
_____. A Questão Judaica. 2 ed. São Paulo: Moraes, 1991.
PRANDI, Reginaldo. A religião do planeta global. NER - Núcleo de Estudos da Religião.
Petrópolis: Vozes, p. 63-70, 1997.
SANTOS, Ana Paula dos. Renovação Carismática Católica: uma análise sociológica da
experiência do Espírito Santo na vida dos fiéis. Artigo (Bacharelado Interdisciplinar
em Ciências Humanas) - Universidade Federal de Juiz de Fora – Juiz de Fora, 2018.
SILVA, C.; MARTINÉZ, M. L. Empoderamento: processo nível y contexto. Psykhe,
Chile/Santiago, v. 13, n. 1, p. 29-39, mai. 2004.
WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5. ed. Rio de janeiro: LTC, 1982.
WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. São Paulo: Companhia
das Letras, 2004.
WEBER, Max. Economia e Sociedade: fundamentos da sociedade compreensiva. São
Paulo: Imprensa Oficial, v. 1, 2004a.
146
Era uma noite de chuva forte. Eu e meus amigos saímos de um bar, em São
Paulo, lá pelas duas da manhã, um pouco altos, a gente tinha bebido, mas
queria ir embora, antes que a chuva engrossasse mais. Numa curva, indo
para Ibiúna, perdi o controle do carro [voz embargada], o carro derrapou e
virou umas quatro vezes. Eu me lembro de estar preso nas ferragens, pedi
para Nossa Senhora para não morrer [...], o carro ficou com o teto para
baixo, a capota entortou no mesmo nível do pneu. Deu perda total. Não sei
como, mas Ela me tirou das ferragens. Os meus amigos morreram. Foi
muito triste. Os policiais que me socorreram e quem ainda hoje vê as fotos
do acidente, não acredita, como é que eu pude sobreviver, com o estado
que o carro ficou e porque eu saí sem nenhum arranhão [voz abalada]. Eu
mandei tatuar a imagem de Nossa Senhora Aparecida nas minhas costas.
(MARCOS, 2017, informação verbal).
Num final de tarde, fui surpreendido por alguns homens armados, que
diziam que eu iria pagar pelo que tinha feito. Eu não estava entendendo
nada, mas depois descobri que estavam me confundindo com um inimigo
deles perigoso. Não adiantou, eu falar que não era eu, pedi muitas vezes
para eles conferir meus documentos [ofegante] e ver que não era eu. Me
colocaram um capuz preto [olhar triste]. Eu rezava, dizia que tinha esposa,
filhos e netos. Me mandaram calar a boca. Fui levado para um descampado
deserto, no meio do nada, para ser desovado. Eu chorava igual uma criança
[lágrimas brotam de seus olhos], eu rezava a Ave-Maria, sem parar. No
momento em que senti o cano frio do revólver na minha cabeça, senti
mesmo o gatilho sendo puxado e a bala saindo, então vi Nossa Senhora, de
manto azul descer, sob a forma de um cone, e ficou entre o atirador e eu,
bem ali na minha frente. Nesse momento, então, o assassino abaixou o
150
revólver e disse que eu não era o mesmo homem que procuravam, mas
alguém que eu era muito parecido. Eu trabalhava como cantor de barzinho
a barzinho à noite toda e bebia muito. Depois disso, larguei a boemia e hoje
sou membro do coral da igreja. Vivo para louvar e agradecer a Nossa
Senhora. (CARLOS, 2019, informação verbal).
REFERÊNCIAS
CARLOS, Antônio. Depoimento 3 [dez. 2019]. Entrevistador: Ana Maria de Sousa. São
Paulo, 2019.
151
REFERÊNCIAS
RESUMO: Ao iniciar minha etnografia entre os índios Kiriri, percebi duas categorias
centrais: doença de índio e doença de branco. Como mostra Marco
Nascimento(1994) a primeira refere-se a um conjunto de sintomas que foram
causadas por seres não humanos, os quais podem lhes fazer bem ou mal a depender
de como seja estabelecida a relação que é efetivada através de caminhadas na mata
e dos seus rituais como o toré, onde aprendem a ciência do índio, conjunto de
saberes oriundos da religião. Dentre seus aprendizados está justamente como curar
uma doença de índio e diagnosticá-la. Isso a diferencia da doença de branco, causada
por elementos que podem ser tratados pelos médicos. Ouvi diversos relatos de que
sempre que tomavam remédio para curar as doenças de índio, eles não funcionavam,
mas sempre que seguiam as orientações do pajé se curavam. Para ilustrar melhor
isso, pretendo apresentar como eu adquiri uma doença de índio, após participar de
um longo ritual por alguns dias. Para minha cura os remédios não me auxiliaram, só
melhorei depois de um tratamento envolvendo reza, ervas e chá. Assim, buscarei
analisar de modo científico um processo de cura oriundo de um saber religioso, tal
experiência deixou evidente as possibilidades de construção de diálogo entre saber
científico e religioso, pois ainda que aparentemente irreconciliáveis, é possível fazer
uma análise científica dessa situação contribuindo para o desenvolvimento da ciência
ao mostrar a diversidade de práticas de saúde ao mesmo tempo em que chamo
atenção para a necessidade de valorização dos saberes tradicionais.
67
Os Kiriri são uma etnia indígena que estão situados no contexto dos povos indígenas do Nordeste, localizados
no norte da Bahia, no município de Banzaê, ocupam um território octogonal, que teve seu decreto de
homologação dos 12.320 hectares em 1995. Nesse território, vivem aproximadamente 4 mil indígenas
distribuídos em 13 aldeias.
159
68
todas as sociedades têm um modo próprio de lidar com a saúde e a doença. O conceito sistema de atenção à
saúde é para mostrar que todo grupo produz um conjunto de práticas ligadas à promoção do estado de saúde
e que isso necessariamente está relacionado aos processos educacionais, epistemológicos e ontológicos.
69
Esse ritual dura três dias e constitui em homenagens ao Senhor da Ascenção, padroeiro da aldeia de
Mirandela, a qual fica no centro do território.
160
Sueli havia saído e quando voltou trouxe enrolado em dois papeis diferentes
ervas que o pajé (Adonias) mandou para fazer um chá pra mim , Maicon (filho de
Sueli) fez o chá com umas ervas que estavam em um desses papeis e depois foi no
quarto me entregar eu perguntei de que era, ele disse que não sabia, tinha um gosto
muito forte e amargo acho que tinha boldo nesse chá.
Depois quando acordei novamente já era mais tarde conversei um pouco com
Gabriel levantei e comi arroz, feijão e salada, um tempo depois Sueli chegou e disse
que ia chamar nete pra vim fazer uma esfregação em mim. Quando ela chegou
conversamos um pouco e ela disse que ia fazer uma esfregação, ela saiu e voltou com
uma cuia com alho, acho que tinha cebola e algumas folhas, acho que era coentro,
salsa ou manjericão (não tenho certeza). Além disso, tinha um líquido transparente
acho que era vinagre, mas não tenho certeza de nenhum desses ingredientes apenas
do alho. Ela pegou um pouco dessa mistura e passou nas minhas pernas, braços, pés,
mãos e cabeça fazendo o sinal da cruz. Quando pegou meus pés ela disse que eles
não estavam frios e que eu já devia estar boa. De fato, nesse momento eu já não
sentia mais nenhuma dor, o único sintoma que persistia era um grande cansaço
físico.
Ela me disse que isso deve ter sido olhado, eu perguntei o que era olhado e ela
respondeu que quando uma pessoa é linda, inteligente, luta pelo que quer, faz as
coisas....como eu, alguém ficava olhando e assim eu teria tido olhado. Fiquei
conversando bastante com nete. Depois seu marido chegou e ela saiu. Eu dormi mais
um pouco depois levantei comi e quando Sueli chegou ela fez outro chá, com as ervas
que estavam enroladas no papel que o pajé mandou o qual tinha um gosto bem
diferente ela colocou açúcar, mas não acho que era só isso, porque o chá estava mais
claro e não tinha gosto amargo. Achei que o chá dela poderia ser que tivesse mais
água, mas reparei que era quase a mesma quantidade de água não dava nem pra ver
a diferença, se tinha eu não percebi. Eu perguntei se era o mesmo chá e ela disse que
sim, mas eu suspeito que não era. De qualquer forma ambos os chás me ajudaram a
melhorar. Depois de um tempo, conversando sobre essas situação ela disse que fez
mais fraco, porque eu não era índia e ela não sabia como meu organismo poderia
reagir, percebamos mais uma vez aqui, que existe uma diferença entre o modo como
há uma diferença de tratamento para indígenas e não indígenas
No outro dia eu acordei com uma leve dor de cabeça, mas acho que era só
cansaço, arrumei as coisas e na hora de ficar esperando o ônibus Miro (marido de
Sueli) ficou comigo e disse que o que eu devia ter tido devia ser porque algum ser
invisível se engraçou ou estranhou. Ele também comentou que às vezes quando Sueli
ficava doente ele dava chá pra ela, mas era o mesmo que dar água e quando pajé
receitava alguma coisa logo ela ficava boa. Ele disse que eles iam pra Salvador
geralmente pra fazer exames ou tratamentos médicos e que o filho dele estava para
fazer uma cirurgia, porque certa vez na escola estavam brincando e deram uma
paulada nele e ele perdeu a visão de um olho e que esse olho gradativamente ia
fechando e tinha que fazer cirurgia para abrir.
Essa foi a descrição sobre o dia que eu tive doença de índio. Após voltar para
Salvador, fiquei refletindo sobre isso e demorei a entender o que nete queria dizer
162
com “olhado” e também demorei a entender o que Miro quis dizer com algum
invisível “se engraçou ou estranhou”. Ainda hoje essas categorias são estranhas para
mim. A princípio sempre ouvi a palavra olhado como inveja, como se alguém quisesse
algo que eu tenho e fica olhando tanto que o que eu tenho começa a se perder em
função de “olhado”. Porém, não fazia sentido pensar que esses seres teriam inveja de
mim, além desse pensamento ser absurdamente prepotente, o que eu poderia ter
que seria dos interesses deles?
Isso só ficou mais claro no ano seguinte, em 2018, quando eu estava no
mestrando e havia voltado a campo para dar início a pesquisa que estava realizando
para o PPGA/UFBA. Estava novamente na casa de Sueli e fomos visitar seu Jeromi(pai
de Sueli) a noite com Sueli e suas irmãs ela comentou que na “primeira noite” os
invisíveis me olharam, ela explicou que eles olham tanto para o que gostam quanto
pra o que não gostam, compreendi assim, que olhado é quando chamamos atenção
dos invisíveis e eles ficam nos olhando, seja lá por qual motivo for. Nesse caso Sueli
sugeriu que porque eu estava estudando a língua Kiriri e isso é como se eu tivesse ido
mexer com a cultura. A língua desse grupo ainda que não seja falada cotidianamente,
eles usam bastante em rituais e para se comunicar com suas entidades sagradas, por
isso, era como se eu fosse me relacionar com um elemento que é muito importante
para os invisíveis, o que teria despertado a atenção deles.
Porém, como me falou Miro, eles podem ser se engraçado e estranhado.
Depois de algumas idas a campo percebi que se engraçar seria um modo de se
aproximar, de olhar e provavelmente teriam estranhado, não sei exatamente por
que, mas possa ser que seja porque sou uma pessoa externa a comunidade. No geral,
eles olham apenas indígenas o que não causariam estranhamento, é possível que ao
me olharem eles se aproximaram de mim e isso fez com que eu tivesse ficado
doente. É possível que apenas essa aproximação tenha sido a causa da minha doença
de índio, porém não descarto a possibilidade de que houve um estranhamento que
ocasionou a doença.
Todo esse processo me chamou atenção para o fato de que existe
efetivamente a possibilidade dos Kiriri gerarem conhecimentos sobre saúde que são
eficazes e necessários. Isso contrapõe o que muitos médicos acreditam, ao super
valorizarem a medicina e não conseguirem entender como outros saberes podem ser
tão eficazes quando o conhecimento científico. A partir disso, emerge o discurso de
que tais práticas só tem eficácia, porque as pessoas acreditam nela e essa crença
influência as respostas do corpo ao longo do processo e isso promoveria a cura, dito
de outro modo, as práticas Kiriri não possuem aspectos intrínsecos que geram saúde,
é tudo uma questão de condicionar o corpo a responder positivamente ao
tratamento.
Em partes, esse tipo de pensamento encontrou certo respaldo na
antropologia. Muitos autores tratavam esses processos de cura como eficácia
simbólica (LÉVI-STRAUSS,2008), ou seja, através da relação com os símbolos e rituais
condicionamos nossos corpos a responder de modo esperado, promovendo saúde.
Porém, isso pressupõe que existiria uma relação anterior com o conjunto de práticas
curativas que ensejam o processo de cura, fenômeno que aqui no meu caso não
163
existia. Desse modo, é importante chamar atenção para a incrível potencialidade das
práticas Kiriri e sua eficiência (não eficácia) para me curar.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
...há no homem três coisas: 1º., o corpo ou ser material análogo aos
animais e animado pelo mesmo princípio vital; 2º., a alma ou ser
imaterial, Espírito encarnado no corpo; 3º., o laço (perispírito) que
prende a alma ao corpo, princípio intermediário entre a matéria e o
Espírito ...
... (as mesas) giravam, saltavam e corriam, em condições tais que não
deixavam lugar a qualquer dúvida. ... Eu entrevia, naquelas aparentes
futilidades, no passatempo que faziam daqueles fenômenos,
qualquer coisa de sério como que a revelação de uma nova lei, que
tomei a mim estudar a fundo. (KARDEC apud WANTUIL, 2019, p.261-
262).
170
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
líquidas do coletivo que denota a sociedade do espetáculo. Por fim, destaca-se que
com as neuroses da religião a afirmar que o desmonte de direitos espolia a cultura,
fomenta-se o comércio da religião, perpetua-se o status quo, sonega-se a
representação política das massas alienadas e revela a sociedade desigual, injusta e
de fluxo incessante.
religião tem muitos mais fãs, e estes pagam muito mais dinheiro e
são muito mais sérios do que os organizadores de circo poderiam
esperar. Nada - nenhum espetáculo para nosso entretenimento,
nenhuma reunião política - nada mesmo se compara ao espetáculo
que a religião exibe regularmente (HOVESTOL, 2009, p. 95).
Essa mazela histórica tem gênese nos primórdios da raça humana, com a
simples adição às leis de Deus. Ao reforçar a questão da terra, aproxima a discussão
do próximo tópico, e remonta à Constituição Federal do Brasil, promulgada em 1988,
a qual estabelece, em seu Capítulo III – da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma
Agrária.
Art. 184. Compete à União desapropriar por interesse social, para fins
de reforma agrária, o imóvel rural que não esteja cumprindo sua
função social, mediante prévia e justa indenização em títulos da
dívida agrária, com cláusula de preservação do valor real, resgatáveis
no prazo de até vinte anos, a partir do segundo ano de sua emissão, e
cuja utilização será definida em lei (CF/1988, p. 59).
CONSIDERAÇÕES
REFERÊNCIAS
A GRANDE CONTROVÉRSIA
sentido em considerar algo que não fosse a matéria observável nas suas perquirições,
embora, diante do fenômeno da vida, tenha se visto obrigado a recorrer a uma
abstração, o “princípio vital”, para justificar a animação de que a matéria se mostra
dotada quando viva. Mas ele o fez sem ceder à hipótese de Platão, que admitia a
anterioridade da existência da alma. Para Aristóteles, a alma surgia com a vida,
animada pelo “princípio vital”, e extinguia-se com a morte.70
Ao longo da história essas duas vertentes se mantiveram intactas, e a
controvérsia ganhou uma nova roupagem: que arranjo especial da matéria teria sido
capaz de produzir o singular efeito chamado “vida”?
A SOPA PRIMITIVA
70 A divergência entre o pensamento de Sócrates e Platão é facilmente verificável pela comparação entre as
abordagens do assunto em A República, de Platão e De Ânima, de Aristóteles, clássicos da literatura filosófica.
71 Um artigo que resume essa história está disponível em https://www.ufmg.br/espacodoconhecimento/o-
experimento-de-miller/
181
impressionantes foi o de uma garota de 12 anos que fugiu de sua casa na Índia para ir
ao encontro do seu “marido”, com o qual alegava ter feito o compromisso de
retornar quando do seu falecimento, ainda muito jovem, em uma possível
“encarnação anterior”. Ela atravessou uma grande distância na Índia em condições
extremamente adversas para uma garota de 12 anos e localizou o ex-marido na
cidade onde “havia morado”, cobrando dele o compromisso quando ele já se
apresentava em segundas núpcias. Nessa mesma linha de pesquisas o Dr. Jim Tucker
(2007) analisa casos de crianças estadunidenses, céticas em relação a outras vidas.
No relato mais impressionante o garoto James Leininger, aos menos de dois anos de
idade já sofria com pesadelos nos quais se via caindo dentro de um avião em chamas.
Aficionado por aviões, descrevia-os em detalhes e relatava ter levantado voo de um
barco chamado Natoma, quando teria sido morto pelos japoneses em Iwo Jima.
Pesquisando o caso o Dr. Jim Tucker pode confirmar a existência de um porta-aviões
chamado USS Natoma Bay que participou de operações na Segunda Guerra Mundial
em Iwo Jima e que teve um de seus aviões derrubado pelos japoneses. Um piloto que
participou da operação relatou o fato exatamente como era contado pelo garoto, que
foi encontrando alívio de suas lembranças na medida em que foi tomando contato
com sua história.
No século XIX o prof. Hyppolite Léon Denizard Rivail entendeu ter encontrado
uma comprovação definitiva para a existência dos espíritos ao observar que
determinados fenômenos intelectuais produzidos mediante o uso de médiuns em
reuniões recreativas, ou mesmo em algumas sessões reservadas do espiritualismo
francês daquela época, tinham como melhor explicação a manifestação de uma
inteligência extracorpórea cuja personalidade poderia ser confirmada pelas
informações por ela apresentadas. Informações pessoais desconhecidas dos
presentes, relatos de pessoas que teriam morrido à distância sem que ninguém
tivesse conhecimento do fato, foram por ele considerados como evidências
suficientes para a comprovação da existência dessa consciência que independe do
corpo biológico, e que permanece atuante mesmo depois da sua morte. Ele estendeu
essa explicação a uma variada gama de fenômenos que sempre desafiaram o
entendimento humano, como as visões de pessoas mortas, os pressentimentos, o
déjà vu, ou o fenômeno das possessões, do âmbito da psiquiatria, quando uma
pessoa entra em surto psicótico e assume uma personalidade estranha à sua, agindo
como se fosse outro personagem. Moraes (2020) entende que ele parece ter achado
mais pertinente transformar as suas conclusões em uma doutrina de conteúdo
religioso e moral do que propriamente em um relatório científico, do que resultou a
criação do Espiritismo sob o pseudônimo de Allan Kardec.
Janet Oppenheim (2002) cita pesquisadores renomados da época, como o
físico William Crokes, que testaram a veracidade de determinados fenômenos
atribuídos aos espíritos, como a movimentação de objetos sem contato humano e
uma espécie de “materialização” de espíritos de pessoas mortas. Por mais que ele
tenha se convencido e apresentado relatórios que considerava conclusivos, seus
métodos de estudo não convenceram seus pares, que entenderam que não haviam
sido adotadas todas as precauções necessárias contra possíveis fraudes, colocando
183
UM CONFLITO DE PARADIGMAS
familiarizada com ela”. Mas mesmo essa expectativa se mostra insuficiente quando
se trata das pesquisas acerca da consciência, uma vez que se trata de uma
divergência milenar e sem nenhuma perspectiva de entendimento à vista. Conforme
Lakatos citado por Borges (2007), “com suficiente habilidade e com alguma sorte,
qualquer teoria pode defender-se progressivamente durante longo tempo, inclusive
se é falsa.”
espécie de superpoder da matéria. Neste caso, essa crença cega no poder da matéria
também pode nos atrasar em séculos na direção de uma melhor compreensão da
consciência e do ser humano que a abriga.
REFERÊNCIAS
RESUMO: No ano de 1964, o médium espírita Chico Xavier publicava o seu 79º livro
psicográfico. Intitulado Contos desta e doutra vida, a obra era espiritualmente
assinada com o enigmático pseudônimo de Irmão X, alcunha com que o espírito do
escritor maranhense, Humberto de Campos, passou a escrever do além após médium
e editora serem processados pelos familiares de Campos. Isto, segundo o imaginário
espírita. Em Contos desta e doutra vida, o conto intitulado “Verdugo e vítima”
apresenta instigantes homologias no âmbito do imaginário com a narrativa “Nhola
dos Anjos e a cheia do Corumbá”, do escritor goiano Bernardo Élis. Constante de sua
obra Ermos e gerais, a narrativa de Élis apresenta riqueza exegética alusiva às
imagens simbólicas da água que se complementa simétrica e culturalmente com a
discursividade de Irmão X, sobretudo quando cotejadas sob a definição de imaginário
do pesquisador francês, Gilbert Durand. Este estudo objetiva, pois, investigar o
imaginário das águas por meio de uma abordagem de literatura comparada entre os
dois contos. Configura-se, ainda, como uma glosa a um sutil trocadilho implícito no
título do volume de Irmão X no contexto comparativista da produção de um autor
vivo ao de um autor morto, conforme advoga o imaginário do sistema simbólico
religioso espírita. O método adotado será o da análise de conteúdo no âmbito das
epistemologias do imaginário e do comparatismo literário. Os resultados alcançados
apontam para a conclusão de que a literatura comparada e o imaginário constituem
fértil campo de diálogo entre a tradição literária e a literatura espírita.
INTRODUÇÃO
metade do século XX, passaria, após a morte, a integrar o conjunto dos autores que
do além-túmulo escreveriam pela mediunidade de Chico Xavier.
A parceria entre o médium e Humberto de Campos renderia um processo na
justiça por direitos autorais. Por conta desse imbróglio, o escritor maranhense
passaria a assinar suas produções com o pseudônimo de Irmão X, segundo a
historiografia espírita. Em Contos desta e doutra vida, de que o título deste trabalho
e suas seções constituem uma glosa, a parceria Chico Xavier/Irmão X traz uma
narrativa que funciona como intertexto da peça literária de Bernardo Élis.
O conto psicográfico de Irmão X se intitula “Verdugo e vítima”. O seu início
remete, do ponto de vista das relações imagéticas, à estrutura narrativa de “Nhola
dos Anjos e a cheia do Corumbá” em suas descrições sobre a enchente. Descreve o
autor: “O rio transbordava. Aqui e ali, na crista espumosa da corrente pesada,
boiavam animais mortos ou deslizavam toras e ramarias. Vazantes em torno davam
expansão ao crescente lençol de massa barrenta (IRMÃO X, 2010, p. 28).”
Atento à cheia que se aproxima, a personagem Quirino, que funcionava como
barqueiro naquela emergência, planeja um crime hediondo. Sabedor de que nas
proximidades do rio vivia um idoso usurário, Licurgo, ele vai até a fazenda onde a
futura vítima residia para adverti-la do perigo da cheia. Licurgo dizia confiar em Deus
e no rio (IRMÃO X, 2010). Tomado de ímpeto assassino, Quirino empurra o velhinho
para dentro de casa e passa a asfixiá-lo, ouvindo entredentes um pedido da vítima
para que não fosse morto covardemente. Em vão.
Praticado o crime, o verdugo se apossa de um molho de chaves que encontra e
passa a buscar pela riqueza do idoso assassinado, encontrando uma considerável
fortuna. Aproveitando-se da forte enchente, enrola o cadáver em um cobertor e o
atira à correnteza forte. Com o passar do tempo, a consciência passa a cobrá-lo pelo
gesto infeliz. Assim, ele resolve retirar-se para cidade distante daquele local, onde
constitui família e monta um comércio, num ethos evocativo do primeiro assassino
bíblico, Caim, que ao matar o irmão Abel se retira para cidade distante, onde se casa
e forma família. Narra Irmão X pela psicografia de Chico Xavier:
Nos contos em foco, estamos obviamente diante da perspectiva das águas fechadas,
violentas.
Autor recorrente no tratado de Durand, Gaston Bachelard traz, em A água e os
sonhos: ensaio sobre a imaginação da matéria, um sem número de considerações
que dialogam com ambos os contos deste estudo ao relacionar o destino humano e
sua finitude à água: “Desaparecer na água profunda ou desaparecer num horizonte
longínquo, associar-se à profundidade ou à infinidade, tal é o destino humano que
extrai sua imagem do destino das águas (1997, p. 14).” Nessa obra seminal do
imaginário, propõe Bachelard (1997, p. 14) os complexos de Caronte e de Ofélia
“para bem caracterizar essa sintaxe de um devir e das coisas, [...] da vida, da morte e
da água.”
Aqui nos interessa o primeiro complexo. Quelemente e Quirino emulam
Caronte, o mitológico barqueiro encarregado de encaminhar a alma defunta pelo rio
que conduzia à mansão dos mortos ou para o outro lado de um rio infernal (DURAND,
2012, p. 204). Tanto um quanto o outro desempenham o papel literário de Caronte.
O primeiro, de forma quase involuntária, tangido pelo instinto de preservação. O
segundo, de forma deliberada, criminosa.
As personagens de “Verdugo e vítima” pertencem ao conjunto relacional de
imagens que compõem o imaginário espírita, cuja correspondência com a narrativa
de “Nhola dos Anjos e a cheia do Corumbá” se instaura a partir das asserções de
Tânia Carvalhal sobre o alcance do comparatismo literário na elucidação de
problemas “que exijam perspectivas amplas (CARVALHAL, 1986, p. 86).”
Em O evangelho segundo o espiritismo, Allan Kardec (2013, p. 68), fundador
epistêmico do espiritismo, estabelece uma exegese da passagem evangélica em que
Jesus diz a Nicodemos que para ver o reino de Deus é necessário nascer de novo, da
água e do espírito. Kardec evoca o pensamento da antiguidade (2013, p. 69),
apontando que a água simbolizava o elemento material, enquanto o espírito
representa o transcendente. Nascer da água e do espírito significaria, portanto,
tomar um novo corpo pelo processo conhecido como reencarnação.
Ao reencarnar, a alma traz em si as consequências de suas vidas passadas,
submetendo-se a provas e expiações para evoluir ao infinito (KARDEC, 2013),
deparando, a todo instante, com as consequências de seus atos. No texto de Chico
Xavier/Irmão X, Quirino recebe sua vítima de volta, reencarnada como filho. No texto
de Bernardo Élis, a consciência de Quelemente se torna seu próprio algoz.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
72
É bom lembrar que, antes da chegada dos portugueses, os indígenas nativos dessa terra já, obviamente,
educavam suas crianças. Curioso que, embora constituam tipos de sociedades extremamente diferentes da
portuguesa, também nelas há uma relação muito íntima entre educação e religião. Em verdade, nas diversas
sociedades indígenas brasileiras, “as várias esferas da vida social encontram-se imbricadas de tal forma que
nunca podemos analisá-las isoladamente [...] são aspectos de um mesmo e único processo: o da reprodução
material e simbólica da vida social” (TASSINARI, 2004, p. 250).
196
ao nosso ver, está em processo de construção, mas que muito pode contribuir com a
educação espírita e a educação de um modo geral73.
METODOLOGIA
RESULTADOS
73
Cremos que a pedagogia espírita tem dado uma contribuição real para a ciência pedagógica, e não estamos
sozinhos nesta compreensão. O pedagogo português José Pacheco, teórico, pesquisador, escritor e educador
atuante, idealizador e fundador da Escola da Ponte em Portugal - instituição de renome internacional e
referência no que diz respeito à inovação educacional - é estudioso da experiência escolar desenvolvida por
Eurípedes e categórico ao afirmar que, “há 102 anos, em 1907, o Brasil teve aquilo que eu considero o projeto
educacional mais avançado do século 20. Se eu perguntar a cem educadores brasileiros, 99 não conhecem. Era
em Sacramento, Minas Gerais, mas agora já não existe. O autor foi Eurípedes Barsanulfo, que morreu em 1918
com a gripe espanhola. Este foi, para mim, o projeto mais arrojado do século 20, no mundo. (PACHECO, 2009,
s/p) Ressalte-se que nem Pacheco nem a Escola da Ponte são espíritas.
197
econômica).
Esta pretensão de universalidade parece, pois, uma marca de uma ética
pedagógica espírita. Na SETE, verificou-se que há igualmente o compromisso com o
acolhimento a todos, gratuitamente, sem qualquer tipo de distinção de credo, cor,
partido político, orientação sexual, etc., inclusive como obrigação estatutária da
referida instituição. Trata-se - a universalidade - de elemento presente na fala dos
diretores e educadores e assumido enquanto princípio da instituição. Vê-se, pois, um
primeiro ponto de convergência74, e a própria relação marcada pela afetividade
identificada no espaço parece corroborar com este elemento.
De fato, um segundo ponto de convergência que podemos visualizar entre a
prática de Eurípedes e a da SETE é a vivência de uma relação pedagógica baseada no
afeto, na amistosidade, no diálogo e na relativização de hierarquias. De acordo com
Silva (2017), o Colégio Allan Kardec “se destacou principalmente por oferecer o
ensino pautado no afeto, em um momento histórico em que a palmatória era
instrumento de ensino aplicado aos indisciplinados e aos que não aprendiam” (2017,
p. 112-113). Não haviam castigos nem punições no Colégio Allan Kardec e as relações
entre adultos e crianças não eram tão rígidas. Os relatos destacam Eurípedes como
uma pessoa carinhosa, sorridente, cativante, jovial, capaz de conversar longo tempo
com os discípulos, e buscando a solução para as discordâncias e conflitos no diálogo
(BIGHETO, 2006, p. 119).
Na SETE, a identificação de algumas práticas usuais na instituição converge com
esta marca da pedagogia espírita basnaulfiana. As relações entre educadores e
crianças são marcadas pelo afeto e diálogo75. O espaço defende a utilização cotidiana
de rodas de conversa, nas quais os educandos são convidados a exporem ideias,
opiniões e sentimentos, aprendendo a falar e a ouvir. Defende, igualmente, o diálogo
no um-a-um, seja nos momentos de entrada ou saída, como também nos momentos
de lanche, realizado em conjunto com educadores e educandos, sem separação.
Defende, ainda, explicitamente, a resolução dialógica de conflitos e a comunicação
não-violenta. Por fim, a presença dos grupos de responsabilidade e assembleias
parecem romper com a hierarquia mais rígida presente nos espaços convencionais de
ensino, tanto quanto promover a responsabilização e o cuidado com o coletivo, outra
marca presente no Colégio Allan Kardec.
Este, aliás, é o terceiro ponto de convergência: para Eurípedes, a educação no
interior da escola deveria promover a responsabilização e a solidariedade de todos
para com todos, seja no trato, nas relações ou mesmo no cuidado com os materiais e
espaço. Ex-alunos afirmam que “se sentiam em casa no colégio, ajudavam em
diversas tarefas, colaboravam mutuamente, vivam como numa grande família”
(BIGHETO, 2006, p. 156-157). Assim, para o funcionamento do Colégio Allan Kardec,
74
Entendemos, no entanto, que pesquisas mais aprofundadas poderiam identificar elementos subliminares de
inclusão e/ou exclusão que ocorrem dentro do espaço pedagógico da SETE e não percebidos pela pesquisa.
75
A pesquisa realizada pelas professoras Gabassa, Elias e Girotto, que investiga a SETE, percebeu também a
presença constante do afeto e do diálogo como marca da prática pedagógica deste espaço. “O diálogo, de fato,
foi percebido como o eixo central na relação entre os educadores(as) e as crianças [...]”. (GABASSA; ELIAS;
GIROTTO, 2017, p. 423)
198
76
Este, aliás, o lema do Espiritismo: fora da caridade não há salvação. De acordo com relato de ex-aluno:
“Eurípedes era um professor muito cuidadoso e afetuoso com os alunos e no colégio todos eram incentivados a
praticar as boas ações. Lembro-me que Eurípedes planejava com os alunos visitas aos doentes, atividades de
auxílio aos necessitados e das ações sociais. Recordo-me bem das nossas visitas aos doentes, das saídas para
ajudar os mais pobres e das várias ações sociais que fazíamos. E no colégio nos ajudávamos mutuamente,
procurávamos ter solidariedade. (BIGHETO, 2006, p. 107).”
199
CONSIDERAÇÕES FINAIS
77
Importante ressaltar o aspecto arrojado da proposta pedagógica de institucionalização das aulas-passeio no
Colégio Allan Kardec, uma vez que somente duas décadas depois aparecerá nas teoria e prática pedagógica do
importante pedagogo francês Celestin Freinet, considerado o inventor de tal modalidade pedagógica.
78
Em relato interessante, durante a 1ª Grande Guerra, por exemplo, Eurípedes, algumas vezes, entrava em
transe diante dos meninos e, ao voltar depois de alguns minutos, descrevia aos alunos as batalhas. Afirma
Novelino: “Enquanto um aluno estava dando a sua lição, às vezes ele caía em transe, sentado na sua cadeira, as
sobrancelhas começavam a tremelicar e os olhos semi abertos viravam, e só se via, como se diz, o branco do
olho, depois ele aprumava o corpo, ficava um certo tempo assim. Nós estávamos habituados com aquilo, então
aguardávamos. Ele voltava e dizia: estive em tal parte.” (INCONTRI, 2001, p. 218). Além disso, Eurípedes
convidava os alunos, sem muitas restrições, à participação, à noite, das reuniões mediúnicas. (INCONTRI, 2001).
79
Poder-se-ia dizer que aqui, há divergência, pois na SETE não há o ensino sistemático do Espiritismo,
diferentemente do que ocorria no Colégio Allan Kardec. No entanto, esta divergência é só aparente, pois, ao
resgatarmos a história política de Eurípedes Barsanulfo, é possível perceber que este sempre foi um árduo
defensor da laicidade do Estado e inclusive era contrário ao ensino religioso em instituições subvencionadas
pelo Poder Público. Embora proporcionasse o ensino e prática religiosa espírita no seu colégio, isto se devia ao
fato de o Colégio Allan Kardec ser particular, sendo que Eurípedes não aceitava qualquer subvenção pública à
escola, que era mantida por doações de amigos e familiares. Além disso, Eurípedes deixava como facultativa a
participação dos educandos nestes momentos, bem como os conduzia a partir de uma leitura inter religiosa e
com debates, nunca numa perspectiva doutrinadora. A SETE, por sua vez, apresenta não só parcerias privadas,
como também com o poder público, o que, dentro da ética de Eurípedes, a impediria do oferecimento regular
de ensino religioso espírita, mantendo-se, apenas, num ensino religioso mais pluralista. De acordo com
Incontri, “toda prática pedagógica espírita deve estar impregnada de intensa espiritualidade, entendendo-se
que não se trata aí de fanatismo religioso e nem de dogmatismo específico. Ao mesmo tempo em que se deve
oferecer aos alunos, o conhecimento de todas as religiões, com suas práticas e filosofias, de forma imparcial e
precisa (e para isso podem ser trazidos os representantes de cada uma ou os próprios alunos-adeptos podem
fazer suas intervenções, mostrando aos outros a sua fé), deve-se cultivar uma religiosidade genérica. Orações
em conjunto; leituras de textos religiosos de diferentes correntes (que não ofendam as outras presentes),
discussões sobre religiões comparadas e filosofia espiritualista — tudo isso deve lançar o aluno na dimensão do
espiritual, fazendo-o compreender que se trata de uma dimensão humana, natural e universal, necessária ao
pleno desabrochar do homem.” (INCONTRI, 2001, p. 300)
200
REFERÊNCIAS
LUIZ SIGNATES
Doutor em Ciências da Comunicação
Professor efetivo do PPG Ciências da Religião da PUC-Goiás
[email protected]
INTRODUÇÃO
O estudo das religiosidades contemporâneas tem exigido cada vez mais dos
teóricos e pesquisadores, em termos da compreensão de uma articulação cultural
religiosa que tem se tornado extremamente complexa e multifacetada. Conceitos e
categorias de análise buscam descrever um quadro fragmentado e difuso, que se
conecta com sentidos culturais vários de modo dinâmico e impermanente, e
geralmente fracassam nesse propósito. Embora seja epistemologicamente normal
que a realidade sempre ultrapasse as redes teóricas que buscam explicá-las, alguns
quadros religiosos contemporâneos, pela dinamicidade de suas transformações,
parecem levar ao limite essa desarticulação.
Este trabalho busca se inserir num dos núcleos desse desafio. Trata-se de um
texto crítico-analítico, mas com aberta finalidade propositiva, no sentido de enfrentar
um conjunto de nomenclaturas e definições de articulações religiosas, especialmente
mas não apenas brasileiras, e colocar em pauta a discussão de uma noção específica,
que possa abranger algo do que tem sido denominado, de forma indefinida, como
“novas religiosidades” ou “movimento New Age”, além de várias outras
denominações.
Evidentemente, toda pretensão guarda consigo um potencial de despretensão.
De modo algum pretende-se ter resolvido o problema conceitual, até por reconhecer
que as religiosidades em estudo são, de fato, complexas e multifacetadas, e qualquer
tentativa definidora de seus conteúdos e práticas sempre deixará algum resto
categorial, alguma sobra em termos de elementos específicos não entrevistos, capaz
de organizar contestações pertinentes, especialmente se inseridas por pesquisas
empíricas. Não há realidade surpreendida pela pesquisa que não encontre faltas e
falhas nas descrições teóricas que adredemente buscaram descrevê-las ou
categorizá-las.
Para este problema, este trabalho considera-se preparado, pois não há
possibilidade nem interesse de se escapar à efemeridade decorrente da dinâmica do
conhecimento que prossiga indagando e buscando os elementos ainda não
percebidos, dos objetos sobre os quais se debruça. O que se quer, neste texto, é mais
contribuir para questionar e, se possível, superar algumas indefinições, muito em
voga nas pesquisas sobre as religiosidades contemporâneas, do que estabelecer
marcos teóricos definitivos ou sequer consolidados.
Assim, iniciaremos o debate sobre o problema das definições, para, em
seguida, efetuarmos o percurso propositivo, voltado, enfim, tanto para a exposição
rápida da rede de descobertas que temos feito, quanto para a orientação de pesquisa
a que esse raciocínio nos leva.
ESPIRITUALISMO, O CONCEITO
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
histórica que estabelece o que pode ou não ser dito, e depende de um arquivo, de
uma memória social que lhe dá certas permissões ou promove certas interdições.
Quando o autor afirma que a verdade tem uma história, ele não quer dizer com
isso que não exista nenhuma verdade objetiva. Ele também não pretende analisar um
discurso com o objetivo de distinguir o que é verdadeiro do falso, mas discutir as
formas de legitimação da verdade, os modos de o indivíduo se relacionar com o
conhecimento e os constrangimentos pelos quais passam os discursos para que
sejam aceitos como verdadeiros. Ou seja, Foucault não se ocupa com o valor de
verdade dos discursos, mas com as respectivas vontades de verdade ligadas a eles.
A NATUREZA DO SABER
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
JOÃO DAMASIO
Doutorando em Ciências da Comunicação
Universidade do Vale do Rio dos Sinos
[email protected]
INTRODUÇÃO
80
O iconoclasmo pode ser compreendido basicamente como a quebra de imagens. A noção remete ao debate
dos chamados Padres da Igreja, divididos entre iconófilos e iconoclastas. Apesar de descrever esse momento
na história do Império Bizantino, nos séculos VIII e IX d.C., sua característica persiste culturalmente.
218
FRAGMENTOS IMAGÉTICOS
REFERÊNCIAS
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géographique et historique des définitions du musée. In : MAIRESSE, François. Définir
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BRAGA, José Luiz. Interagindo com Foucault – Os arranjos disposicionais e a
Comunicação. Questões Transversais, vol. 6, n. 12, jul./dez. 2018.
DIDI-HUBERMAN, Georges. O que vemos, o que nos olha. Trad. Paulo Neves. São
Paulo: Ed. 34, 1998.
DURAND, Gilbert. O imaginário: ensaio acerca das ciências e da filosofia da imagem.
Trad. Renée Eve Levié. 3ed. Rio de Janeiro: Difel, 2004.
FLUSSER, Vilém. Da influência da religião dos gregos sobre o pensamento moderno.
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ROSA, Ana Paula da. Imagens-totens em permanência x tentativas midiáticas de
rupturas. In: ARAÚJO, Denize Correa; CONTRERA, Malena Segura (orgs.). Teorias da
imagem e do imaginário. São Paulo: Compós, 2014, p. 28-49.
223
SAÚDE E ESPIRITUALIDADE
Isso porque o cuidado consigo e com o outro também envolve uma vivência de
espiritualidade, em suas diversas interpretações, e o olhar cuidadoso com o planeta.
Existem inúmeros estudos sobre a relação entre saúde, religião e
espiritualidade. Para citar alguns, Pierre Weil (1992) com a psicologia transpessoal e o
estudo sobre os estados de consciência que transcendem a pessoa, para além do ego;
Levin e Vanderpool (1991) que expuseram sobre o impacto da espiritualidade na vida
e na saúde das pessoas; Fabrega (2000) com discussão sobre a dimensão espiritual
ligada ao binômio saúde-doença, na medicina oriental; Sims (1994), a respeito do
posicionamento das ciências, especialmente as médicas, na interseção de
experiências religiosas com psicopatologias diversas; e Koenig (2012), demonstrando
a importância das emoções e da vivência espiritual na manutenção na saúde; entre
inúmeros outros.
Além do âmbito acadêmico, outras áreas elaboraram documentos, frutos de
pesquisas, abarcando uma concepção mais sistêmica de saúde. Entre eles, a
Organização Pan-Americana da Saúde (OPAS) formulou indicadores de saúde, com
intuito de pormenorizar e verificar a situação de saúde das populações. Estes
atributos se relacionam com a qualidade da saúde, abrangendo o bem-estar físico,
emocional, espiritual, ambiental, mental e social.
Outro movimento nesta direção resultou na chamada “A Carta da Terra”.
Constituída a partir de trabalho conjunto de vários países de entidades civis, é
entendida como uma “declaração de princípios fundamentais para a construção de
uma sociedade global no século XXI, que seja justa, sustentável e pacífica” (A Carta da
Terra, 1992). Entre as suas 16 ações propostas, está a defesa dos direitos “de todas as
pessoas a um ambiente natural e social capaz de assegurar a dignidade humana, a
saúde corporal e o bem-estar espiritual, com especial atenção aos direitos dos povos
indígenas e minorias” (A Carta da Terra, 1992).
As religiões, por sua vez, sempre propuseram, vivências, rituais e premissas,
cada qual com suas interpretações, significados e intensidades, para aproximar seus
adeptos a uma vida plena e saudável.
Especialmente no vínculo entre sagrado, saúde e natureza, os pesquisadores
Isabel Carvalho e Carlos Alberto Steil (2008) apresentam a ideia de uma “mente
ecológica”81, em que “os sujeitos vivem a experiência do sagrado e de bem-estar em
harmonia com a natureza, está dentro e fora do corpo individual” (CARVALHO; STEIL,
2008, p. 300).
São várias as tradições religiosas que relacionam, o sagrado, a saúde e a
natureza, em maior ou menor grau, em diferentes interpretações. As religiões de
matriz africanas estão entre elas. E aqui, especificamente falo sobre a Umbanda, por
ser matéria de meus estudos de pós-graduação, sendo os dados que se seguem
frutos dessas pesquisas (MACHADO, 2003 e 2020).
81
Conceito do biólogo e antropólogo Gregory Bateson que expandiu o conceito de mente em direção ao
mundo e ao ambiente, fazendo com que os sujeitos se tornassem parte de algo maior (Deus).
225
Como preâmbulo desta parte, faço aqui para uma breve apresentação da
Umbanda. É uma religião de matriz africana, nascida no Brasil no início do século 20.
Em seu bojo de formação possui forte influência do Candomblé, do Catolicismo, do
Espiritismo, da pajelança e, mais atualmente de crenças orientais. A variação de
intensidade dessas tradições na formação de cada casa de Umbanda, ou seja, em
uma a influência do Candomblé é maior, em outra é do Espiritismo, traz formatação
diferenciada, dando características próprias para cada local.
É uma tradição com ênfase no ritual de transe, em suas reuniões semanais,
onde possibilita a consulta às chamadas ‘entidades espirituais’, que aconselham,
orientam e promovem benzeduras, receitam banhos, rezas, podendo fazer também
encaminhamentos para terapêuticas oferecidas pela casa. De maneira geral, as
entidades mais comumente encontradas são as categorias dos pretos-velhos,
caboclos, baianos, erês, exus e pombagiras, entre outros.
Existem diferenças significativas entre os tipos de tratamentos, de entidades e
de logística dos rituais encontrados nas diversas casas de Umbanda, mas as casas
comungam de proposição essencial que vincula o sagrado, a saúde e a natureza.
O ritual é fio condutor que concretiza o laço entre sagrado, saúde e natureza.
Segundo Terrin (2004), o rito organiza e classifica o que é imprescindível do
prescindível, separando o caos do não-caótico, dando segurança e harmonia (Terrin,
2004). Na Umbanda, a proposta do rito é trazer equilíbrio às demandas do cotidiano,
como saúde, emprego, amores, família e outras.
TERAPÊUTICAS NA UMBANDA
INTERVENÇÕES TERAPÊUTICAS:
A CONSULÊNCIA
AS OFERENDAS
Este é outro momento fundamental na tradição umbandista, pois sua essência
é reafirmar a conexão da comunidade com o sagrado e a natureza. É o momento de
interação com os orixás em seus domínios, como cachoeira, rios e matas. Elas
ocorrem junto à natureza, com velas, objetos, alimentos ligados ao orixá/entidade e
envolve todos da casa.
A periodicidade é atrelada ao calendário próprio, levando em conta as datas
comemorativas, ou demanda específica. A área da saúde atendida é principalmente a
social, visto que envolve a comunidade e o sagrado. Como é marcadamente
formatada junto com a natureza e suas personificações, os orixás, estes eventos são a
visibilidade da herança candomblecista nesta religião.
A DESOBSESSÃO
O REIKI
A APOMETRIA
LEITURA E ESTUDO
ASSISTÊNCIA SOCIAL
CONSIDERAÇÕES
casas, tanto pela influência de sua formação, seja ela cristã, espírita, xamânica ou
oriental; seja pelas perspectivas particulares de suas lideranças.
Importante destacar ainda que algumas formas terapêuticas podem nem
mesmo existir em algumas casas, como as cirurgias espirituais, o reiki e a apometria.
Ainda assim, com as descrições das terapêuticas supra referenciadas, fica
visibilizado que a Umbanda traz abrangência de áreas da saúde a serem respondidas,
indo ao encontro das propostas da OMS e OPAS, promovendo bem-estar físico,
emocional, espiritual, mental, ambiental e social de seus partícipes.
No que concerne à saúde ambiental, a Umbanda tem, além do simbólico com
os orixás e elementos da natureza, uma recente busca por adaptações mais
sustentáveis, especialmente nas oferendas.
REFERÊNCIAS
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casas em Goiânia. Tese (Doutorado em Sociologia) – UFGo, Goiânia, 2020.
OPAS. Indicadores De Saúde. Elementos Conceituais e Práticos (Cap.1). Disponível
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<https://www.paho.org/hq/index.php?option=com_content&view=article&id=14401
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Paulus, 2004.
WEIL, Pierre. A Consciência Cósmica. Rio de Janeiro: Vozes; 1992.
230
GUILHERME DE SÁ PONTES
Mestrando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]
82
Médico e sacerdote umbandista, discípulo de Mestre Yapacani, fundou a Faculdade de Teologia Umbandista.
83
Por exemplo, o canal do Youtube da Ordem Iniciática do Tríplice Caminho dirigida por Mestre Ygbere:
www.youtube.com/umbandainiciatica
84
Sobre o conceito de escolas nas religiões afro-brasileiras, ler Rivas Neto (2012)
85
Fundamentos Herméticos de Umbanda, Introdução à auto-cura tântrica e Sacerdote, Mago e Médico.
233
86
O espírito é apontado como a única realidade. A realidade absoluta. Eterno. Imaterial. Adimensional.
Amorfo. Dotado de atributos que lhe são próprios, intrínsecos a ele, tais como: consciência, percepção,
entendimento, vontade, volição, etc.
87
A energia etérica seria a proto-forma da matéria exsudada do próprio espírito.
88
Arashas possui o seu significado hierático em Senhores da Luz Espiritual. São potestades cósmicas
incumbidas de regular, direcionar, auxiliar, guiar a evolução de todos os seres.
89
Esseyas são espíritos que exercem a função de executar os desígnios dos Arashas, dando concretude à
vontade.
90
Luz não é compreendida nesta escola umbandista unicamente enquanto ondas eletromagnéticas ou pela sua
estrutura básica, o fóton. Da mesma forma o som não se limita às ondas mecânicas. Compreendem-se esses
fenômenos conferindo-se a eles uma profunda carga simbólica que guarda relação com a estruturação do seres
manifestos na matéria (microcosmos) e do meio no qual se expressaram (macrocosmos), ou natura naturandis.
91
Para a Umbanda Iniciática a matéria encontra-se organizada em 3 dimensões, a qual chamam de mental,
astral e etéreo-física. Em cada dimensão a matéria se apresenta de 7 formas, as quais são chamadas de sólido,
líquido, gasoso, éter químico, éter refletor, éter luminoso e éter vital. Fala-se, pois, na setessência da matéria.
92
Escola de pensamento cuja base doutrinária defende o conceito de unidade-universalidade de todo o saber
humano, reunindo-se os ditos quatro grandes pilares da “gnose” humana: filosofias, artes, ciências e religiões.
93
Doutrina tântrica é relacionada com a luz (iluminação interior e amplificação consciencial), Mântrica com a
som (amor crescente e purificação) e a Yântrica com o movimento (ações positivas libertadoras da consciência
dos apegos mundanos e neutralizadora de um carma negativo).
234
REFERÊNCIAS
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dramatização e poder. Annablume, 2005.
XAVIER, Francisco Cândido. Nosso Lar. Brasília: FEB, 2014.
238
239
RESUMO: O trato dado aos corpos dos mortos e os espaços que os abrigam – isto é,
os cemitérios – retratam uma rica, importante e complexa teia de sentidos, símbolos
e representações de crenças religiosas. A costumeira associação de características
negativas às necrópoles, tais como superstições macabras, insalubridade e
insegurança, convive com a frequente atribuição religiosa de sentimentos e
pensamentos de nostalgia, fé, conforto e esperança aos que participam dos ritos de
passamento. Esse contraste e diálogo entre as experiências e representações de
morte e salvação a partir dos cemitérios é tema do presente artigo, que investiga
essa relação aparentemente paradoxal, mas certamente não incomum, entre o
morrer e o crer. Para tanto, o artigo analisa relatos missionários e obituários nas
edições da Revista Mensal, órgão oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Brasil,
durante o período da pandemia de Gripe Espanhola no país em 1918 a 1920. A
análise documental é feita a partir do acervo da Revista Adventista, nome atual da
Revista Mensal, disponibilizada gratuitamente na internet pela Casa Publicadora
Brasileira, editora da denominação (https://acervo.cpb.com.br/ra). Nos trechos
analisados avalia-se o papel que os cemitérios cumprem como arena onde visões
religiosas de morte e salvação colidem entre si. Como resultado, destacam-se a
importância da crença da denominação adventista na morte como não-existência –
em contraste com crenças que pregam certa continuidade de existência post mortem
a partir da alma ou do espírito – para a elaboração e consolidação de narrativas
antropológico-soteriológicas de conforto e esperança. Além disso, dada a vocação
apocalíptica e missionária da denominação, o cemitério também é retratado como
espaço favorável ao evangelismo, em especial para a difusão da crença adventista
sobre o “verdadeiro” estado dos mortos, fenômeno que se intensifica no período
analisado por conta do aumento de sepultamentos e visitas a cemitérios, fatos
decorrentes da pandemia de Gripe Espanhola.
tem mais que ver com “o destino da alma do que com o destino do corpo” (FIRTH,
2005, p. xv). Ainda assim, o trato dado aos corpos dos mortos e o planejamento e
manutenção dos espaços que os abrigam – isto é, os cemitérios – retratam uma rica,
importante e complexa teia de objetos de estudo que vão da geografia e
antropologia à botânica e climatologia.
Sob a perspectiva da visão do cemitério como espaço de ritos religiosos de
passagem, é útil resgatar a história da evolução e reorganização desses locais no
contexto brasileiro. Durante os períodos colonial e imperial do Brasil, as igrejas eram
os locais que abrigavam os túmulos, sendo os mortos geralmente enterrados nos
templos que frequentavam em vida, em uma tentativa de perpetuação do convívio
social-comunitário e do vínculo religioso-institucional. Dessa forma, o associar-se à
igreja era garantia não somente de bens espirituais, mas também de assistência
funeral familiar. Como herança europeia medieval, era comum, portanto, que as
igrejas se convertessem em necrópoles, estabelecendo-se no espaço urbano como
locais de devoção religiosa e de sepultamento dos falecidos, onde “coabitavam” vivos
e mortos no coração da cidade (PETRUSKI, 2006, p. 98).
No final do Brasil Império e início do Brasil República essa realidade mudou
com a influência do movimento higienista no país (ABREU JÚNIOR e CARVALHO,
2012). Com a demanda social-sanitária de combater epidemias como as de Febre
Amarela ou de Gripe Espanhola, a ordem urbana brasileira foi afetada (COSTA, 2013,
p. 66). As topografias médicas da época consideraram as igrejas-necrópoles como
áreas doentias e perigosas. Como consequência, uma reorganização do espaço
urbano requeria que “a morte fosse higienizada” e, sobretudo, “que os mortos
fossem expulsos de entre os vivos e segregados em cemitérios extra-muros [sic]”
(REIS, 1991, p. 247).
A costumeira e contemporânea associação de características negativas às
necrópoles, tais como superstições macabras, insalubridade e insegurança, convive
com a frequente atribuição religiosa de sentimentos e pensamentos de nostalgia, fé,
conforto e esperança aos que participam dos ritos de passamento. Esse contraste e
diálogo entre as experiências e representações de morte e salvação a partir dos
cemitérios é tema do presente artigo, que investiga essa relação aparentemente
paradoxal, mas certamente não incomum, entre o morrer e o crer.
Para tanto, o artigo analisa relatos missionários e obituários nas edições da
Revista Mensal, órgão oficial da Igreja Adventista do Sétimo Dia no Brasil, durante o
período da pandemia de Gripe Espanhola no país em 1918 a 1920. A análise
documental é feita a partir do acervo da Revista Adventista, nome atual da Revista
Mensal, disponibilizada gratuitamente na internet pela Casa Publicadora Brasileira,
editora da denominação (https://acervo.cpb.com.br/ra). Nos trechos analisados
avalia-se o papel que os cemitérios cumprem como arena onde visões religiosas de
morte e salvação colidem entre si.
A Revista Adventista começou em 1906 como Revista Trimensal, algumas
décadas após a chegada dos primeiros adventistas ao Brasil. Em 1908, passou a ser
um boletim mensal e teve sua denominação alterada para Revista Mensal. O nome
atual – Revista Adventista – surgiu em 1931 (GREENLEAF 2011, p. 120). A história da
241
população foi infectada, em comparação com cerca de 30% para o resto dos
brasileiros (GOULART, 2005).
A pandemia gerou um colapso no sistema de saúde brasileiro em grandes
cidades como Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo, e foi responsável pela morte do
presidente do Brasil, Rodrigues Alves, impedindo-o de cumprir um segundo mandato.
A pandemia também provocou uma renovação do interesse pelo conhecimento
sanitário que culminou na reestruturação do sistema público de saúde brasileiro e na
elaboração de uma política sanitária alinhada com a comunidade científica e
higienista da época (BREITNAUER, 2019, p. 65; QUEIROZ, 2004; GOULART, 2005).
faleceu e Hoefft e equipe relatam que enfrentaram muitas dificuldades para poder
sepultar o colega, “visto o padre não querer aceital-o no cemitério [sic]” (HOEFFT,
2019, p. 12). Por fim, narra Hoefft (2019, p. 12), o padre “permittiu que o
enterrassemos fora do muro do cemitério [sic]”.
Esse relato missionário exemplifica o papel que o cemitério desempenha, no
discurso da Revista Mensal, como espaço de perseguição e conflito religiosos,
especialmente entre católicos e protestantes, comuns à época.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
Europa, os mortos são sepultados “no interior das igrejas, mosteiros e conventos, no
solo, ou em túmulos de pedra, dependendo da situação social” (CARVALHO, 2012). A
chegada da Peste Negra na segunda metade do século XIV, provocou a morte de
milhares de pessoas em pouco tempo, isso possibilitou o abarrotamento de corpos
no interior das igrejas, fazendo necessário desta forma, enterrar os corpos no pátio
da mesma, que com o crescimento das mortes efetivadas pela peste, ocasionou na
criação dos cemitérios ao lado ou aos fundos delas. Neste momento se inicia,
singelamente, os primeiros rituais cristãos fúnebres que perpetuaram por vários
séculos, e que ainda deixaram resquícios nos dias atuais.
Com o crescimento populacional, condições insalubres, proliferação de
doenças e as preocupações do estado com a saúde pública, no século XVIII, se inicia a
proibição dos sepultamentos em templos, e opta-se pela descentralização dos
enterramentos, propondo novos locais específicos para a realização desta prática e
desativando o cemitério medieval, já que “os médicos defendiam que a localização
ideal dos cemitérios era fora das cidades, em terrenos arejados, longe de fontes de
água e onde os ventos não soprassem em direção às cidades” (CARVALHO, 2012).
A partir do século XIX, esses novos “objetos coletivos na geografia urbana”
(SOUZA; RIBEIRO FILHO, 2016), agora denominados de Cemitérios, surgem com
aspectos formais do que vemos atualmente. Os espaços de enterramento que
anteriormente eram regidos por normas religiosas, passam a ter a “laicização do
campo santo”, quando o estado rompe com a igreja e passa administrar esse
equipamento urbano, com base em ações cientificas e médicas. Entretanto ainda
havia no cemitério a presença de mausoléus, túmulos e uma pequena igreja, que
seria responsável por manter o local santo. Ou seja, apesar da laicização desses
espaços, conquistada pela ambição da modernidade, as raízes cristãs fincaram signos
e rituais que não foram distanciados dos cemitérios.
O SIMBOLO NA ARQUITETURA
ALGUMAS CONCLUSÕES
REFERÊNCIAS
FABIANA COMERLATO
Doutora em História
Universidade Federal do Recôncavo da Bahia
[email protected]
APORTES INICIAIS
REFERÊNCIAS
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Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul,
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Anais do VII Encontro Nacional da Associação Brasileira de Estudos Cemiteriais,
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259
INTRODUÇÃO
94
São Vicente de Ferrer localiza-se na porção centro-sul da Baixada Maranhense, sua população é de 20.870
habitantes, com uma área estimada em 390,4 km2.
95
O Programa de Iniciação Científica citado abrange um dos seguintes planos de trabalho: Arte Cemiterial:
História, Iconografias e Devoções na Baixada Maranhense, orientado pelo Prof. Dr. Dimas dos Reis Ribeiro.
96
A recorrência do uso desse tipo de artefato pode ser localizada em mais dois cemitérios da região, em
povoados que ficam entre os municípios de Pinheiro e Santa Helena.
97
A etnopesquisa crítica considera como objetos de estudo: o homem e a produção de artefatos como vias de
interpretação dialógica entre a voz do ator social e o campo empírico analisado (MACEDO, 2010).
98
Nessa perspectiva, entende-se por “descrição densa”, o método de observação de cunho
etnográfico/etnológico que consiste na relação do pesquisador com o campo pesquisado, rompendo com a
noção de distanciamento do objeto e pesquisador uma vez que, a imersão do cientista no local de pesquisa é
consideravelmente importante (GEERTZ, 1978).
262
Figura 2: Dia de Finados no Cemitério Municipal de São Vicente Férrer. Fonte: Foto de
Dimas dos Reis Ribeiro (2017).
Eu acho que desde quando eu comecei logo trabalhar, acho que foi
dessa época que comecei fazer os cofos, Téo Pacheco falou comigo
pra botar água pro gado dele e lá tinha um mato e o mato era doido,
foi lá que eu estalei a pindova, foi lá, fazendo cofo, tinha dia eu fazia
bonito, doto jeito, até que um dia eu fazia dereitinho (SANTANA, 16
de maio de 2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALBERTINI, Verena. Manual de História Oral. 3 ed. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2013.
99
Nome popular dado a folha da palmeira do babaçu e que segundo a denominação do pequeno vocabulário
Tupi-português significa palmeira (BARBOSA, 1951).
266
BARBOSA, Lemos, Pe. A. Pequeno Vocábulo Tupi-Português. Livraria São José: Rio de
Janeiro, 1951.
BENJAMIN, W. Magia e Técnica, Arte e Política: ensaios sobre literatura e história da
cultura. 8. ed. São Paulo: Brasiliense, 2012.
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interpretação das culturas. Rio de Janeiro: Zahar, 1978.
HALBWACHS, Maurice. A Memória Coletiva. São Paulo: Centauro, 2004.
MACEDO, Roberto Sidnei. Etnopesquisa crítica, etnopesquisa-formação. 2ª. Brasília:
Liber Livro Editora, 2010.
MONTEIRO, de Jesus Francisco. Depoimento [16 de maio de 2018]. São Vicente
Férrer-MA. Entrevista concedida à Julyana Cabral Araújo.
RIBEIRO, Berta G. Arte indígena, linguagem visual. Belo Horizonte: Itatiaia: São
Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1989.
SANTANA, S. José. Depoimento [16 de maio de 2018]. São Vicente Férrer-MA.
Entrevista concedida à Julyana Cabral Araújo.
267
Como foi dito acima, a sepultura do Padre Eustáquio se tornou para os fiéis
local de oração, promessas e agradecimentos. Nesse sentido, busca-se identificar
alguns elementos que constituíam a devoção ao túmulo do padre. Para isso, recorre-
se a cinco relatos de graças alcançadas disponíveis no livro “O Vigário de Poá”. Nos
relatos tornou-se possível identificar elementos que configuram a devoção popular ao
Padre Eustáquio, a partir do contato com seu túmulo. Em termos metodológicos, os
relatos foram codificados em um quadro afim de facilitar a análise desses dados.
Segue abaixo o quadro:
Eustáquio e converteu.”
deram-lhe um
pouco da
terra”
Caso “Um menino “Chorando, “De repente, o
5 engoliu um levou-o até a menino começa
prego” sepultura do a tossir e expele
Padre o prego.”
Eustáquio.”
A partir da análise dos dados obtidos pelos relatos, pode-se identificar alguns
dos principais elementos que configuram a devoção ao Padre Eustáquio, em seu
túmulo no cemitério do Bonfim de 1943 a 1949. Como afirma, Hulselmans (1944, p.
242), a sepultura de Eustáquio motiva um espetáculo “[….] impressionante, nunca
visto em Belo Horizonte, desde o dia que inaugurado o cemitério do Bonfim.” Diante
da análise dos relatos, destaca-se os seguintes elementos: a promessa; os milagres; a
sacralidade do espaço.
O que se pode concluir do quadro apresentado, é que a principal motivação de
pedido de auxílio ao Padre Eustáquio, são questões relacionadas a saúde. Dos cinco
relatos, três deles se referem a pedidos de cura de doenças. Os outros dois,
apresentam alguma adversidade do cotidiano. Sobre a relação com o túmulo do
Padre Eustáquio, quatro relatos indicam o contato com a sepultura e um assume o
compromisso de visitá-la. Nesse sentido, fica evidente que o contato com a sepultura
era um fator decisivo para se alcançar o milagre. O túmulo do Padre Eustáquio, era
visto como lugar de encontro com o próprio sacerdote. Nesse sentido, ir ao túmulo,
no imaginário dos devotos significava uma possibilidade mais assertiva da graça ser
atendida.
Outro fator que deve ser ressaltado é a sacralidade do espaço do túmulo.
Todos os elementos que circundam o “corpo santo” se santificam. O sagrado, nesse
sentido, se torna contagioso. De acordo com Hulsemans (1944, p. 242), “Era curioso
que milhares de pessoas levavam flores e, no entanto, o túmulo permanecia sem
flores. E que outras milhares de mãos corriam a retirá-las, para guardá-las,
considerando-as relíquias, apenas porque tocaram a terra da sepultura dos
sacerdote.” Nos relatos é possível confirmar esse imaginário: “Deram-lhe um pouco
de terra”. No caso específico, ao tomar um pouco de terra do túmulo, a criança ficara
curada. Esse aspecto, reafirma a aclamação de santidade do Padre Eustáquio, que por
contágio, afetava o ambiente que circundava seus restos mortais.
Sobre os milagres, observa-se: em dois casos o milagre acontece mediante o
contato e oração diante da sepultura, em um caso o milagre acontece diante da
promessa de ir a sepultura. E por último, em um caso: fazer uma promessa diante da
sepultura. Diante dessas atitudes, em todos os relatos observa-se o alcance do
pedido: em 2 casos, o milagre é imediato e 3 casos após alguns dias. Sobre o
agradecimento, observou-se duas formas: pagar a promessa de ir a sepultura ou
273
doação para igreja do padre Eustáquio. Diante desse dados, observa-se que a
sepultura tem lugar de destaque na devoção ao Padre Eustáquio. Desde o Cemitério
do Bonfim, até os dias atuais, os lugares que acolheram os restos mortais do Beato,
são considerados pelos devotos, lugares privilegiados da manifestação sobrenatural.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ANDRADE, José Vicente de. Padre Eustáquio. Belo Horizonte: Congregação dos
Sagrados Corações, 1990.
PEREIRA, Lucélia Borges. Bem-aventurado Eustáquio: a estrela holandesa que brilhou
na terra de Santa Cruz. São Paulo: PoloPrinter, 2012.
HULSELMANS, Venâncio. Padre Eustáquio van Lieshout SS.CC. O Vigário de Poá. Rio
de Janeiro: Centro Nacional da Entronização, 1944.
LUCAS, Angel. Espiritualidade do Padre Eustáquio van Lieshout, SS.CC. Belo
Horizonte: Congregação dos Sagrados Corações, 2003.
SCHOENENKORB, Leila. Culto da vida, culto da morte – O Bem-aventurado Padre
Eustáquio. PASSOS, Mauro. NASCIMENTO, Mara Regina do Nascimento. A invenção
das devoções crença e formas de expressão religiosa. Belo Horizonte, Editora Lutador,
2013.
274
REUMO: A construção de um abrigo eterno para guardar os restos mortais dos seus,
bem como a escrita da lápide, a escolha da escultura e dos adornos, comumente
permeados por símbolos cristãos que remetem a ressurreição, fazem parte do
processo de ressignificação da morte. No presente estudo, o Cemitério São José,
primeiro cemitério público de Teresina é compreendido como uma clara
possibilidade de conhecer as sensibilidades dos homens teresinenses que viveram
durante a segunda metade do século XIX e início do XX. Estas sensibilidades foram
desenhadas de múltiplas formas, nas diversas sepulturas que resistem ao tempo no
interior daquele “cemitério velho”. Assim, propomos analisar a arte funerária ali
presente utilizando como instrumento basilar o inventário tipológico realizado por
Maria Elizia Borges em seu livro Arte Funerária no Brasil (1890-1930): ofícios de
Marmoristas italianos em Ribeirão Preto. Realizamos, no entanto, algumas alterações
que possibilitaram a adequação à realidade local. Assim, agrupamos as sepulturas
que datavam do período entre 1859 a 1950 em: jazigo-capela, túmulo de porte médio
e túmulo simples, catacumbas aéreas (construídas nos muros do cemitério) e as
sepulturas de anjinhos (forma como eram tratadas as crianças falecidas). A essas
aplicamos uma ficha para catalogação das sepulturas semelhante a ficha utilizada por
Borges (2017) em seu trabalho. Apresentaremos, de forma resumida, alguns dos
exemplares das categorias de sepulturas que foram estudadas. Pudemos concluir que
o cemitério mais antigo de Teresina possui sim uma arte cemiterial passível de estudo
e apreciação e que não pode ser desprezada. Ao contrário, é uma relíquia que ajuda a
compreender uma sociedade imbuída de suas particularidades regionais e citadinas e
que também possui poucos fios e rastros que possam ajudar a tecer uma narrativa
histórica de seu passado. Esse último fator acaba por tornar o seu estudo ainda mais
instigante.
INTRODUÇÃO
100
O presente texto trata-se de uma tentativa de apresentar, ainda que de forma bastante resumida, um
fragmento do terceiro capítulo da dissertação intitulada “Cemitério São José: História, Memória e
Sensibilidades teresinenses” (ROSA, 2019).
276
101
De forma resumida, segundo Maria Elizia Borges, o Jazigo Capela corresponde a uma mini capela cuja
sepultura subterrânea abriga todos os mortos de uma família. O Túmulo Monumental, por sua vez, assemelha-
se aos monumentos celebrativos que foram construídos na Primeira República e apresentam três
características fundamentais, qual sejam: a grandiloquência, qualidade artística e decoração apurada. Além
disso, normalmente, são produções escultóricas exclusivas apesar de apropriar-se de elementos já feitos. O
Túmulo de Porte Médio tem tamanho mediano que varia entre 2,5 a 5,5 m, está assentado sobre uma base
que ocupa parte da área reservada à carneira, estas normalmente são bem altas e sobre elas é que se ergue a
escultura propriamente dita. Por fim, há também os Túmulos simples que, normalmente, são construídos em
alvenaria e recebem apenas uma laje em mármore. Por vezes, esses túmulos eram adornados por esculturas
simples como vasos, cruz, anjos e santos.
102
São covas horizontais construídas em formato de abóbada nos muros mais antigos do cemitério.
Antigamente era um espaço reservado para o enterramento de corpos. A nomenclatura “catacumba” foi
encontrada na documentação que regulamentava aquele espaço público. Sobre isso ver: ROSA, 2019, p. 176.
103
Trata-se das sepulturas destinadas a inumação de crianças, “anjinhos” era a nomenclatura comumente
utilizada para fazer referência a morte pueril.
104
Não aprofundaremos nossos resultados e não apresentaremos as descrições detalhadas do mobiliário
fúnebre encontrado no cemitério estudado devido o pouco espaço que dispomos para a escrita.
277
105
Refere-se ao então presidente da província do Piauí José Antônio Saraiva, conhecido também como
Conselheiro Saraiva. Este foi o principal responsável pela transferência da capital do Piauí de Oeiras para a Vila
Nova do Poti (lugar onde foi construída Teresina) ainda no ano de 1852. A construção do Cemitério São José,
inaugurado apenas em 1859, está relacionada aos primeiros anos da capital. Assim, observando o plano
original da cidade é possível perceber que o cemitério foi estabelecido afastado dos limites urbanos.
278
Imagem 2 - Vista aérea do Cemitério São José, destaque para o sítio original e sua
ampliação em 1862.
Fonte: Google maps
Edição de imagem: Emanoel de Almeida Muniz.
106
Essa ampliação aconteceu em decorrência da necessidade de uma área maior para inumar os corpos devido
ao aumento dos óbitos na província, resultado da epidemia de cólera que se abateu sob Teresina naquele ano
de 1862. A partir de então, o cemitério teve sua área ampliada permitindo um incremento significativo em
relação ao seu projeto inicial.
279
CONCLUSÃO
Por fim, a arte cemiterial inscrita em Teresina não pode ser desprezada, ao
contrário disso, é uma relíquia que ajuda a compreender uma sociedade imbuída de
suas particularidades regionais e citadinas e que também possui poucos fios e rastros
que possam ajudar a tecer uma narrativa histórica de seu passado. Esse último fator
acaba por tornar o seu estudo ainda mais instigante.
REFERÊNCIAS
RENATO KIRCHNER
Coordenador do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Campinas
[email protected]
INTRODUÇÃO
René Karl Wilhelm Johann Josef Maria Rilke (1875-1926), nasceu em Praga,
República Tcheca, e faleceu em Montreux, Suíça, sendo considerando um dos
maiores poetas alemães da contemporaneidade. Mais conhecido como Rainer Maria
Rilke ou simplesmente Rilke.
Rainer Maria Rilke, por vezes também Rainer Maria von Rilke, nasceu em Praga,
Império Austro-Húngaro, atual República Tcheca, a 4 de dezembro de 1875 e faleceu
em Valmont, Suíça, a 29 de dezembro de 1926. Rilke foi um poeta proeminente da
língua alemã do século XX. Mas também escreveu poemas e cartas em francês.
Mudou seu nome, originalmente René, para Rainer, por sugestão de Lou Andréas-
Salomé.
Rilke fez seus estudos nas universidades de Praga, Munique e Berlim. Em 1894,
fez sua primeira publicação, uma coleção de versos de amor, intitulada Vida e
canções (Leben und Lieder). Não exerceu nenhuma “profissão”, tendo vivido, sempre,
à custa de amigas nobres. Alguns anos depois, em 1899 e 1900, Rilke viajou para a
Rússia a convite de Lou Andreas-Salomé, sendo já então escritora e depois também
psicanalista. Ela era filha de um general russo. A passagem de Rilke pela Rússia com
Andreas-Salomé imprimiu uma inspiração religiosa em seus poemas (ANDREAS-
SALOMÉ, 2018).
É possível dizer que Lou Andreas-Salomé tenha sido o grande amor da vida de
Rilke? Daniel Bullen, no livro Amores modernos, dá a entender que sim! Além de
Rainer Maria Rilke e Lou Andreas-Salomé, o autor também aborda os
relacionamentos entre Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, Alfred Stieglitz e
Georgia O’Keeffe, Diego Rivera e Frida Kahlo e Henry Miller e Anaïs Nin (BULLEN,
2014).
De fato, Rilke passou a enxergar a natureza, dadas as dimensões e exuberância
das paisagens russas, como manifestação divina presente em todas as coisas. Sobre
este aspecto publicou, em 1900, a coleção Histórias do Bom Deus. Em 1901, casou-se
com Clara Westhoff, da qual logo se separou. O século XX trouxe para a poesia de
Rilke um afastamento do lirismo e dos simbolistas franceses com os quais ele se
identificara. Em 1905, publicou O livro das horas de grande repercussão na época.
Em O livro das horas seus poemas já apresentavam um estilo concreto, bem
característico desta sua fase de sua obra. Em 1902 foi para Paris, onde trabalhou
como secretário do escultor Auguste Rodin, entre 1905 a 1906. Rodin exerceu grande
influência sobre a obra poética de Rilke, que se reflete em suas publicações de 1907 a
284
1908 (RILKE, 1995b). Quando estourou a Primeira Guerra Mundial, em 1914, Rilke
morava em Munique e lá permaneceu durante todo o conflito.
Antes de se mudar para Munique, Rilke viveu na região do Trieste e publicou,
em 1913, A vida de Maria (Das Merien-Leben) (RILKE, 1995a) e iniciou a redação de
Elegias de Duíno (Duineser Elegien) (RILKE, 2005), texto que só viria a ser publicado
em 1923. Duíno era um castelo na região de Trieste, Itália, onde Rilke morou por dois
anos antes da Guerra, a convite da princesa Maria von Thurn und Taxis. Após o
conflito da Primeira Guerra e suas consequências, Rilke mudou-se para a Suíça, a
última de suas pátrias de eleição, onde viveu seus últimos anos.
Uma das obras de Rilke mais conhecidas mundo afora são as Cartas a um jovem
poeta, com tradução e apresentação de Cecília Meireles. Segundo ela: “O Rilke dessas
cartas é como um intermediário de mistérios, uma espécie de oráculo, que se
consulta e em quem se crê” (RILKE, 1996b, p. 10).
É possível apontar traços da poética de Rilke? Sem dúvida alguma! Rilke possui
uma obra original, marcada pelo tratamento da forma e pelas imagens inesperadas.
Celebra a união transcendental do mundo e do homem, numa espécie de “espaço
cósmico interior”. Sua poesia provocava a reflexão existencialista e instigava seus
leitores a se defrontarem com questões próprias do desencantamento da primeira
metade do século XX. Sua obra foi influenciada pelo expressionismo e influenciou
muitos autores e intelectuais de diversas partes do mundo.
O tradutor brasileiro de O livro de horas, Geir Campos, anota que “o poeta
francês Maurice Betz no começo de uma espécie de introdução a seu excelente livro
Poésie, seleção de poemas de Rainer Maria Rilke por ele traduzidos”, escreve:
“Ninguém pode falar de Rilke a não ser ele mesmo” (RILKE, 1994, p. 9). Além disso,
em “Nota do tradutor”, Geir Campos também escreve: “E que nos diz o mesmo Rilke
a propósito do livro que aqui mais nos interessa? O poeta diz-se espantado por ter
tido a ocasião, ou as ocasiões, de o escrever e de encontrar neste livro ‘a pureza e a
modéstia do que é grandioso’. E o mesmo Rilke escreverá, alhures: ‘Eu serei sempre
um convalescente desse livro’” (RILKE, 1994, p. 9). E um pouco mais adiante: “Numa
de suas numerosas cartas à princesa Marie von Thurm und Taxis [1855-1934], Rilke
escreveu: ‘Tenho saudades de quando eu me sentia interiormente em perigo, como
nos tempos de O livro de horas’” (RILKE, 1994, p. 10). Além disso, é notório que em
forma de dedicatória ou até mesmo como epígrafe, encontremos este registro logo
no início do mesmo livro: “Deposto nas mãos de LOU ANDREAS-SALOMÉ” (RILKE,
1994, p. 8).
O problema “da” morte acompanha toda obra poética de Rilke. Em O livro das
imagens (Das Buch der Bilder), do ano de 1902, podemos ler: “A Morte é grande. Nós
somos suas bocas ridentes: se fala a Vida por nossa voz, Ela, atrevida, soluça em nós”
(RILKE, 1975, p. 83).
Em A princesa branca (Die weisse Fürstin), publicado em 1904, o poeta
estabelece uma distinção entre a morte própria (der eigene Tod) e a morte alheia (der
285
fremde Tod), ou seja, a morte alheia é a morte que se aproxima da nossa vida desde
fora, isto é, como algo de fortuito e estranho, e nos impressiona antes da vida atingir
a sua plena maturidade; a morte própria é a morte estipendiada por Deus (pago em
forma de salário ou soldo, ou seja, tem a sua própria “gravidade” e “preço”), isto é,
que promana de uma espécie de necessidade intrínseca da própria vida (RILKE,
1996a, p. 17-47).
O ser humano, portanto, deve apropriar-se interiormente da morte alheia de
modo a transformá-la em morte de si mesmo e em si mesmo. Ao lado desta
distinção, Rilke amplia de tal modo o conceito de morte que ela acaba por caber
dentro da vida. Vemos, portanto, que a morte está na vida, isto é, aparece aqui a
palavra decisiva que assinala a ruptura com a concepção anterior da morte. A morte
deixa de ser pensada como o último acontecimento do qual não podemos ter
experiência alguma e passa a ser pensada como um elemento constitutivo desta
mesma vida presente aqui e agora.
O grito de O livro de horas (Das Stunden-Buch), publicado pela primeira vez em
1905, eleva-se contra este processo degenerativo da vida inautêntica do homem
massificado nestes termos:
melhor nesta bela passagem, onde, na sequência ao trecho citado, Rilke escreve:
“Antigamente sabíamos (ou talvez pressentíamos) que contínhamos a morte em nós,
como a fruta contém sua semente. Crianças tinham uma pequena; adultos, uma
grande. Mulheres a carregavam no regaço; os homens no peito. A gente possuía a
morte, e isso dava uma singular dignidade, um orgulho silencioso” (RILKE, 1979, p. 9):
Como último passo desta reflexão sobre o tema “Da morte própria ou da sua
massificação nas obras de Rainer Maria Rilke”, gostaríamos de apresentar dois
registros – também poéticos! – sobre a mesma temática de dois grandes escritores
brasileiros, na medida em que eles mesmos se referem ao poeta tcheco-austríaco.
Primeiramente, Vinicius de Moraes, numa crônica intitulada “Relendo Rilke (e
com direito a Jorge Amado)”, publicado no livro Para viver um grande amor:
287
REFERÊNCIAS
ANDREAS-SALOMÉ, Lou. Na Rússia com Rilke: Diário da viagem com Rainer Maria
Rilke em 1900. Lisboa: Relógio D’Água, 2018.
BOLLNOW, Otto Friederich. Filosofia existencial. São Paulo: Saraiva, 1946.
BULLEN, Daniel. Amores modernos: A vida amorosa, erótica e sexual de artistas e
intelectuais que abriram as fronteiras de seus relacionamentos. São Paulo: Seoman,
2014.
GULLAR, Ferreira. Os melhores poemas de Ferreira Gullar. Coautoria de Alfredo Bosi.
2. ed. São Paulo: Global, 1985.
MORAES, Vinicius. Para viver um grande amor. Rio de Janiero: MEDIAfashion, 2008.
RILKE, Rainer Maria. Livro de horas (Das Stundenbuch). 2. ed. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 1994.
_____. Os cadernos de Malte Laurids Brigge. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1979.
_____. A vida de Maria. Petrópolis: Vozes, 1995a.
_____. A princesa branca: Cena à beira-mar. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996a.
_____. Cartas a um jovem poeta. A canção de amor e de morte do porta-estandarte
Cristóvão Rilke. 25. ed. São Paulo: Globo, 1996b.
_____. Rodin. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1995b.
_____. Poemas e cartas a um jovem poeta. Rio de Janeiro: Ediouro, 1975.
_____. Sonetos a Orfeu; Elegias de Duíno. 4. ed. Bragança Paulista: Edusf, 2005.
289
107
Para o levantamento adotamos as metodologias desenvolvidas em trabalhos de Cymbalista (2002), Castro
(2008) e Herberts; Castro (2011) e Borges (2017).
108
Estes cemitérios se enquadram na tipologia que se convencionou a chamar de ‘cemitérios secularizados’.
São cemitérios que começaram a serem construídos a partir século XIX no Brasil, em substituição às práticas de
sepultamento dentro das Igreja ou a sua volta. Este movimento é chamado de secularização dos cemitérios por
autores como: Ariès (1981), Volvelle (1997) e Reis (1991).
290
109
No Estado do Amapá existem três cemitérios israelitas, todos em Macapá e são anexos aos cemitérios
municipais. O primeiro cemitério construído no Cemitério Municipal Nossa Senhora da Conceição, no centro, e,
segundo Wolff (1983), esta necrópole está entre os cemitérios Sefarditas mais importantes do Brasil, com
túmulos datados do início do século XX; o segundo está no Cemitério Municipal São José um terceiro, em fase
de construção, no Cemitério Municipal São Francisco de Assis.
291
OS TÚMULOS CASTILHOS
110
Wolff (1983).
292
Crianças, datas em que os túmulos são retocados pelos familiares ou substituídos por
completo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ARIÈS, Philippe. O homem diante da morte. Trad. Luiza Ribeiro. Rio de Janeiro:
Francisco Alves, 1981. (Coleção Ciências Sociais, v. 1)
BORGES, Maria Elizia. Arte funerária no Brasil (1890-1930): ofício de marmoristas
italianos em Ribeirão Petro = Funerary art in Brazil (1890-1930): italian marble caver
cra in Ribeirão Preto – bilíngue 2. Ed. – Goiânia: Gráfica UFG, 2017.
_____, Maria Elizia. Expressiones artísticas de cuño popular en cementerios
brasileños. In: VIÑUALES, Rodrigo Gutiérrez (diretor). Arte latino-americano del siglo
XX. Otras historias de la Historia. Zaragoza: Prensas Universitarias de Zaragoza, 2005.
CASTRO, Elisiana Trilha. O patrimônio funerário catarinense. Coleção Horizontes do
Patrimônio Cultural. V.1. Florianópolis: FCC, 2017.
CATROGA, Fernando. O céu da memória: cemitério romântico e culto cívico dos
mortos. Coimbra: Minerva, 1999.
CYMBALISTA, Renato. A cidade dos vivos: arquitetura e atitudes perante a morte
nos cemitérios do estado de São Paulo. Editora Fapesp; 2002.
HERBERTS, Ana Lucia; CASTRO, Elisiana Trilha. Cemitérios no caminho: o patrimônio
funerário ao longo do Caminho das Tropas nos Campos de Lages. Blumenau, SC:
Nova Letra, 2011.
MENDONÇA, Maria Silvia de, FRANÇA, José Ferreira, OLIVEIRA, Andréia Barroncas,
PRATA, Ressiliane Ribeiro, AÑEZ, Rogério Benedito da Silva. Etnobotânica e saber
295
“Pois bem, disse-lhe eu, vá buscar mais uns vinte pretos que gostam
de Deus e da Senhora do Rosário, cortem tabocas, amassem barro e
levantem aquela parede atrás do altar-mor, porque no domingo
quero ali celebrar”. Fizeram tudo o que ordenei aqueles bons amigos
de Deus. Depois da missa abracei-os um por um e entreguei-lhes a
igreja para que dela zelassem (SILVA, 2007, p. 80-81).
111
Eduardo Duarte Silva nasceu em 27 de janeiro de 1852, na atual Florianópolis, e faleceu no dia 16 de
outubro de 1924. Aos 15 anos, partiu para Roma, onde cursou Filosofia e Teologia, na Universidade Gregoriana,
na qual obteve os títulos de bacharel, licenciado e doutor. Em 27 de janeiro de 1891, foi eleito bispo de Goyaz
(biografia completa foi elaborada por Josmar Divino Ferreira, in SILVA, 2007, p. 15-22). A obra Passagens “tem
o seu original em um manuscrito autógrafo escrito com base em lembranças, anotações e documentos
recolhidos pelo autor” (Antônio César Caldas Pinheiro, supervisor da transcrição dos manuscritos, devidamente
guardados no Instituto de Pesquisa e Estudos Históricos do Brasil Central/PUC Goiás. In: SILVA, 2007, p. 11-14).
299
rezam o terço, porque este era em idioma português. Mas assistem à missa, toda em
latim, provavelmente dando respostas oracionais com variações fonéticas, pois as
tinham aprendido apenas “de ouvido” (FERRETI, 1988, p. 188). Fazem o conserto do
templo católico, assim como edificaram “capelas com imagens de santos católicos em
quilombos como o de Palmares, considerando a persistência do sincretismo afro-
brasileiro como um modo de aculturação” (FERRETI, 1988, p. 190).
Segundo Salles (1984), os negros, em Goyaz colonial, formavam a parcela
majoritária da população goiana. A partir da terceira década do século XVIII, eram a
mão de obra quase que exclusiva tanto no trabalho agro-pastoril (roça), quanto nas
fábricas de mineração (garimpo). Em Vila Boa (Cidade/município de Goiás) – sede da
diocese de dom Eduardo Duarte -, na documentação de 1783, consta que existiam
990 escravizados trabalhando na lavoura, garimpo e serviço doméstico, numa média
de 30 negros escravizados para cada um dos 33 engenhos e engenhocas. No Julgado
de Meia Ponte (atual Pirenópolis), em 1812, segundo Saint-Hilaire, havia 2.282
municípios (negros escravizados), numa média de 40 escravizados para cada
engenho. Em Crixás, eram 439 negros escravizados que trabalhavam em 29 engenhos
e mais 1.491 negros forros (que haviam obtido a carta de alforria). Além desse
trabalho de negros escravos nos engenhos e garimpos, também havia os que
exerciam trabalhos urbanos, como ourives, ferreiros, carpinteiros, alfaiates etc. E
ainda, havia os que se misturavam às demais atividades de produção, como
agregados, faiscadores livres (catadores de faíscas de ouro na ganga das minas já
exploradas), tropeiros, pequenos comerciantes, pequenos sitiantes lavouristas,
feitores, vaqueiros, carreiros e, ainda, militares, funcionários administrativos e
comerciantes estabelecidos (SALLES, 1984, p. 73-78). Se os negros escravizados são a
maioria da população, pelo sincretismo também irão compor a maioria dos católicos
em Goiás. Faziam uma releitura do catolicismo e das expressões religiosas indígenas
(catimbó e pajelança), integrando-as em sua cosmovisão religiosa (MIRA, 1983, p.
104-105).
O sincretismo ocorreu de modo diverso entre os bantos, os sudaneses, os
iorubas e daomeanos. Mas a todos esses povos a religião não era uma dimensão da
vida a ser vivenciada nos fins-de-semana; a espiritualidade tecia toda a trama de suas
existências. Por isso, sobretudo aos bantos, numa perspectiva sincrética,
convivência social rural. Essa era, então, a situação religiosa durante os festejos da
romaria de Trindade. Entretanto, outro foi o olhar daquele bispo formado em Roma e
disposto a aplicar as normas do concílio tridentino em Goyaz.
Essa “reunião de gente ruim” era a romaria dos filhos do Pai Eterno, em Goiás.
E, no relato do bispo, movimentava desde suas origens grande receita financeira: “a
renda anual do santuário é avultada e dela até a minha chegada era dona e
proprietária uma comissão de três indivíduos, a que davam o nome de Irmandade!!
Irmãos de mesa, irmãos do cobre é que eles eram” (SILVA, 2007, p. 86).
Depois de um mês e meio de ocorrida a romaria de Trindade, dom Eduardo
retornou ao local. O objetivo era somente um:
113
Seu antecessor era dom Cláudio José Gonçalves Ponce de Leão, que havia sido transferido para a diocese de
Porto Alegre em razão da acolhida da Igreja católica aos imigrantes europeus recém chegados àquele Estado.
114
Essa visita formal dos bispos de todas as dioceses do mundo à Roma - para o encontro com o papa e a
apresentação de relatórios nos dicastérios do Vaticano -, é uma prescrição canônica e deve ser feita a cada
cinco anos.
302
Que direi das rezas e das ladainhas, que cada família promete lá [em
Barro Preto] ir cantar? Quantos arranhões no latim! Começando pelo
Deus in adjutorium [meum intende] [Deus, vinde em meu auxílio],
cantam: Deus no oratória não me en[tende] e respondem: É o dom
da Joana e da Fostina {Domine ad adjuvandum me festina].
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Os tempos atuais são outros. Aquela antiga cristandade - que teve uma
vigência de séculos, sob diversas ênfases, modalidades e contextos -, erodiu pela
crise de seus paradigmas e pela avaliação da consequência de suas práticas. Foi
necessário um gigantesco e complexo concílio ecumênico para mudar a direção dessa
grande nau. Seu leme e sua bussola indicavam uma viagem com uma única direção
histórica. Mas o encontro multicultural, com experiências e vozes eclesiais
provenientes de diversos lugares do mundo, revelou que é possível ser universal sem
deixar se ser local e singular. Inculturar seria o caminho (ANJOS, 1994), não obstante
os riscos e as incertezas!
As opções do hoje nos povos africanos (Ecclesia in Africa, 1995), a formulação
da Teologia Negra norte-americana (WILMORE; CONE, 1986) e o reposicionamento
dos brasileiros afro-descendentes – vários deles oriundos de pertenças às antigas
irmandades e confrarias -, agora, paulatinamente, assumem suas origens e sua
originalidade. E organizam-se para isso. Quilombolas e kalungas, em Goiás, não se
esquecem do Goyaz de outrora e, por isso, trazem um outro lado da história que não
foi contado, evocam os direitos territoriais originários, refundam os horizontes da
política e da cidadania e reivindicam novas abordagens, descoloniais e multiculturais
(WOLKMER et alii, 2016).
REFERÊNCIAS
ANJOS, Márcio Fabri dos. Inculturação: desafios de hoje. Petrópolis: Vozes, 1994.
FERRETI, Sérgio E. Sincretismo afro-brasileiro e resistência cultural. Revista
Horizontes Antropológicos. Porto Alegre, ano 4, nº 8, jun./1988.
JACÓB, Amir Salomão. A Santíssima Trindade de Barro Preto. História da Romaria de
Trindade. Goiânia: Ed. UCG, 2003.
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[1979].
WOLKMER, Antonio Carlos et alii. Os direitos territoriais quilombolas: além do
marco temporal. Goiânia: Ed. PUC Goiás, 2016.
304
INTRODUÇÃO
Propomos uma breve apresentação das músicas sacras que são executadas
nos rituais que abrangem os tradicionais festejos católicos em Pirenópolis, Goiás. Ao
falarmos de tradições festivas nos remetemos a um dos primeiros núcleos
populacionais do Brasil central, a antiga Meia Ponte, que segundo Bertran (2011), foi
povoada por portugueses natos e emboabas (p. 170), nas primeiras décadas do
século XVIII.
A vida em sociedade é uma sucessão de performances que se adapta a um
espaço e a um tempo determinado. As experiências religiosas e suas relações com as
práticas culturais estão quase sempre aliadas ao fazer musical e permitem perceber
como a própria sociedade se organiza envolta das festividades. Em Meia Ponte,
segundo Silva (2000), as festas e as tradições populares, de um modo geral, tiveram
um importante papel na mediação entre as diversas culturas que se confrontaram, a
partir da colonização do Brasil.
Coube à Igreja o papel de difusão dessas manifestações, embora muitas delas
fizessem parte do gosto da população portuguesa que, mesmo em terras distantes,
procurava praticá-las e repeti-las de maneira que as experiências vividas
aprimoraram o desempenho e reforçaram as identidades. Desse modo, as músicas
entoadas nos rituais festivos, foco de nossa discussão, revitalizaram a fé,
alimentaram narrativas, reuniram diversos atores sociais, sendo entendidas como
sonoridades sagradas que propiciaram e ainda hoje atuam na permanência das
tradições.
Propõe-se neste texto, com destaque para a participação do centenário Coral
de Nossa Senhora do Rosário, discutir num primeiro momento a presença da música
sacra nos rituais das festividades católicas tradicionais em Pirenópolis, demonstrando
sua singularidade e sua perpetuação no tempo e no espaço. Adentrando no acervo
musical executado pelo Coral Nossa Senhora do Rosário, o segundo momento
apresenta o repertório sacro e religioso executadas nos rituais, e como essas músicas
do passado ecoam no presente e se refazem vivas nos festejos católicos, criando
significados próprios.
musicais da Europa do século XVIII, mas que ao se atracar em terras brasileiras essa
musicalidade cria seu próprio formato e no eterno retorno, voltam de ano em ano, se
recriando e adquirindo formas de expressão.
A história da música em Meia Ponte e seus acervos é segundo Pina uma ação
conjunta de pessoas do lugar que além de se afeiçoarem aos bens culturais foram
capazes de preservá-lo e passá-los às gerações seguintes. Acrescenta-se a isso o
desenvolvimento do gosto dos meiapontenses pelas artes. Sobre o início das práticas
musicais e sua ambientação na sociedade da época a musicista afirma
O Coro e Orquestra Nossa Senhora do Rosário desde que foi fundado no ano
de 1893, em conjunto com a Banda Phoenix arcou com a continuidade da execução
das músicas nos rituais católicos festivos. “O coral participa da novena do Espírito
Santo cantando em latim um repertório tradicional de música sacra, acompanhado
por uma pequena orquestra formada por músicos da Banda Phoenix (DOSSIÊ IPHAN,
2017, p. 102).
A carga afetiva calcificada na cultura do lugar dá a este universo erudito a
obrigação da repetição das músicas ano após ano, sendo estas aguardadas nos
momentos dos rituais por aqueles que vivenciam a cultura local, entendem que a
música “é o meio expressivo mais eficaz para dizer esse indizível religioso” (TERRIN, p.
310) e entendem que a execução é parte intrínseca dos rituais para que estes sejam
reconhecidos como tradição.
Talvez seja o canto, uma das mais antigas maneiras do homem entrar
em contato com o transcendente, com forças divinizadas da
natureza, com a ideia de um ser supremo. As canções e danças
indígenas, os cantos Gregorianos, os mantras, as ladainhas, os
spirituals, os “pontos” de terreiro, as incelências, enfim, as evocações
religiosas, funcionam como um canal de comunicação entre céu e
terra, entre homem e Deus (MILLECO FILHO, 2001, p. 48).
Te Deum. Contém ainda, as músicas da Semana Santa como: Os Motetos Das Dores,
os Motetos de Passos, Heu, Pange Língua, Vos omnes que é o canto da Verônica. Tem
várias missas - Glória, Credo, Sanctum, Benedictus e Agnus Dei, como a Calahorra,
Missa do Rosário, Del Moro, Santa Infância, dentre outras. Sem contar o repertório da
Banda Phoenix com as marchas fúnebres, as valsas e os dobrados que são partituras
de músicas que são executadas durante os cortejos e procissões.
O repertório contém também várias músicas de compositores anônimos,
transcrições que levam o nome do copista, além de compositores locais, como Padre
José Joaquim Pereira de Veiga, Antônio da Costa Nascimento o Tonico do Padre,
Padre José Inácio (irmão do Tonico do Padre), José Odilom de Pina, Silvino, Agenislau,
o casal Alaor e Ita da família Siqueira, que engrossaram o acervo com suas
composições.
A escolha das músicas para acompanhar os rituais depende do interesse do
regente e das peculiaridades, como o gosto do imperador do Divino, as exigências do
pároco em relação ao tempo da missa ou da novena, os músicos e cantores
disponíveis para ensaiar e o tempo de ensaio. As músicas das Semana Santa, como os
motetos e solos são os mesmos todos os anos, mas os novenários e as missas variam,
o maestro atual Aurélio Afonso da Silva, por exemplo, ensaia um repertório
adequando-o ao coral e ao tempo de ensaio.
O coral se reúne para os ensaios normalmente na sede da Banda Phoenix,
maestro e músicos dividem as semanas entre ensaios do coral e os da banda de
música. Normalmente ocorre em dois períodos, logo após o carnaval, começam os
ensaios das músicas da Semana Santa. Logo após a Páscoa começam os ensaios para
os rituais da Festa do Divino, as novenas e a Missa de Pentecoste. Na festa da
padroeira Nossa Senhora do Rosário, em outubro, cantam na missa. Parte do coral,
recentemente voltou a cantar nos festejos do Senhor do Bonfim, e de Nossa Senhora
do Carmo.
A reprodução a cada ano, ora quase sumindo, como observou Brandão, ao
participar da Semana Santa em Pirenópolis no ano de 1988: “entoavam os motetos
das dores, hoje silenciados — razão para que alguns músicos do lugar temam que os
dos passos, da procissão do dia seguinte, sigam o mesmo destino” (2010, p. 146); ora
reavivadas por partícipes interessados em dar manutenção e continuidade, como
tem acontecido recentemente.
Atualmente várias partituras foram digitalizadas, a fim de preservar os
manuscritos antigos puídos pela ação do tempo. Há uma preocupação em inserir ao
grupo participantes jovens no intuito que aprendam a valorizar a cultura local e a
manter viva as estruturas das práticas dos rituais festivos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
As músicas sacras entoadas pelo Coral Nossa Senhora do Rosário, mesmo com
as transformações ao logo do tempo, traz “ao presente fatos e pessoas do passado,
numa projeção de esperança e que tais riquezas possam perpetuar-se no futuro”
310
(BARROS, 2015, p. 218). Para continuar existindo, as tradições adaptam-se aos novos
tempos e ajustam-se às demandas impostas pelas necessidades da atualidade.
A continuidade e perpetuação no espaço e no tempo das manifestações da
música sacra nas festividades de Pirenópolis, destina a repetir anualmente o treino, o
encontro, os ajustes do repertório e a participação nos rituais de grupos de
personagens músicos, cantores e cantoras, pároco e organizadores dos eventos, fiéis
e curiosos que se fazem presentes. É um empreendimento de uma comunidade que
reproduz os rituais por séculos, em que os conflitos, a cooperação e a solidariedade
fazem parte de um emaranhado para que tudo transcorra dentro das expectativas
para o bom desenvolvimento das práticas rituais.
Kong (2009) destaca o papel simbólico da música na vida social e na
constituição das paisagens, sendo a música um meio através do qual as pessoas
transmitem experiências de vida. Entende-se assim, que a representação das músicas
sacras nas festividades católicas em Pirenópolis compõe as celebrações culturais e
mantem o modo de ser e fazer dos pirenopolinos, tornando o local popularmente
conhecido como berço da cultura em Goiás.
REFERÊNCIAS
SILVA, Mônica Martins da. A Festa do Divino: Romanização, Patrimônio & Tradição
em Pirenópolis (1890-1988). / Mônica Martins da Silva. Goiânia, 2000. 259 p.
TERRIN, Aldo Natale. O rito: antropologia e fenomenologia da ritualidade. São Paulo:
Paulus, 2004. 448p.
WISNIK, José Miguel. O som e o Sentido. 2ª ed., 8ª reimpressão. São Paulo:
Companhia das Letras, 1999. 283 p.
312
INTRODUÇÃO
O CATOLICISMO POPULAR
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
manifestavam insatisfação com a Igreja no que se refere à fé, aos ritos e aos valores.
Tal constatação requer, por um lado, uma melhor compreensão dos processos
envolvidos na integração da sexualidade à personalidade dos sujeitos católicos na
modernidade e, por outro, a análise de como se dá a formação da identidade sexual e
religiosa no contexto moderno.
Parece-nos que os sujeitos católicos modernos realizam uma releitura da fé,
criando novos paradigmas de crenças, firmados em valores cristãos aproximados aos
da modernidade, a fim de legitimar a sua própria sexualidade e integrá-la à
personalidade, de modo psiquicamente saudável. Isso revela também a vitalidade do
próprio catolicismo, enquanto lugar de sentido, pois “não é a religião enquanto
conservação e permanência que deve interessar à sociologia, mas, sim, a religião
como possibilidade de ruptura e inovação, a mudança religiosa e, portanto, a
mudança cultural” (PIERUCCI; PRANDI. In: OROZCO, 2000, p. 9).
tudo acontece mais rápido e nos parece mais próximo” (MARDONES, 1996, p. 109).
Sendo assim, a globalização supõe mudanças estruturais que afetam a vida cotidiana
em geral, o que influencia a consciência de cada um ao questionar sobre mudanças
de valores. E a tradição é o principal aspecto da religião que se vê conturbado pelos
efeitos da globalização, uma vez que aspectos e conceitos anteriormente
considerados absolutos são questionados e relativizados pela modernidade.
Fundamentando-se em Giddens, Mardones (1996) nomeia tal fenômeno de
“destradicionalização”, ou seja, o processo em que as tradições, sejam quais forem,
inclusive as religiosas, submetem-se à reflexão crítica: “Não desaparecem, repetimos,
mas são reinterpretadas, reformuladas, submetidas a uma justificativa” (MARDONES,
1996, p. 109).
É nesse sentido que podemos compreender o comportamento sexual e a
identidade religiosa dos sujeitos católicos na modernidade: reavaliando a tradição
religiosa, eles assumem valores do Catolicismo enquanto cristianismo, mas
reinterpretam as questões referentes à sexualidade, aproximando seus conceitos aos
valores da modernidade.
Tal fator, uma vez que traz a perda da segurança que a tradição estruturava,
com conflitos na identidade tanto pessoal como grupal, forja, como resposta dessa
perda de referencial, o crescimento também dos movimentos fundamentalistas, que
surgem como uma alternativa de manter algum referencial de sentido e segurança na
vida.
RUPTURAS E PERMANÊNCIAS
115
As pessoas acompanhadas, na sua maioria, são de classe média, com nível médio e superior de
escolarização, inseridas num contexto social urbano, metropolitano e marcadas pela cultura atual. Geralmente
esses sujeitos vêm de uma educação religiosa católica desde a primeira infância, sendo filhos de pais católicos,
com a primeira socialização mais conservadora, marcada pelos preceitos morais da sua religião. Percebe-se
que, numa segunda socialização, esses sujeitos vão assumindo uma postura mais liberal em relação à
sexualidade em suas vidas.
323
não assumida pelo catolicismo oficial, a práxis desses sujeitos já revela uma
adequação dos ensinamentos tradicionais à cultura moderna.
CONCLUSÃO
Catolicismo, família e raízes culturais, como se fosse algo genético. Assim, o que não
dá sentido não se importa, mas adapta-se. Utilizam a interpretação pessoal da Bíblia
para aplicar em sua vida prática, o que demonstra pensamento crítico e alto nível de
autonomia pessoal entre eles. Contudo, as condutas pessoais desses sujeitos
parecem não gerar alterações institucionais na Igreja, pois movimentos organizados
nesse sentido quase sempre são punidos pela mesma.
REFERÊNCIAS
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Brasiliense,1984.
CIAMPA, Antônio da Costa. A Estória do Severino e a História da Severina: um ensaio
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1993.
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MARDONES, José Maria. Adónde va la religión? Cristianismo y religión en nuestro
tiempo. Santander: Editorial Sal Terrae, 1996.
OROZCO, Yuri Del Carmen Puello. Mulheres, AIDS e Religião: uma análise da
experiência religiosa de mulheres portadoras do vírus HIV e AIDS. Dissertação de
mestrado apresentada ao Programa Ciências da Religião PUC/SP. São Paulo, 2000.
RYAN, Penelope J. Católico Praticante: a busca de um catolicismo para o terceiro
milênio. São Paulo: Loyola, 1999.
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CNP-CNBB: Brasília, 2003.
VALLE, Edênio. Psicologia e Experiência Religiosa. São Paulo: Loyola, 1998.
VIDAL, Marciano. Ética da Sexualidade. São Paulo: Loyola, 2002.
326
116
Disponível em: https://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2019-10/brasil-tem-107-milhoes-de-
deficientes-auditivos-diz-estudo.
328
A DIVERSIDADE AUDITIVA
No que dicendi as causas da surdez podem ser tanto por patologias adquiridas
quanto de causas congênitas. Infecções contraídas durante a gestação, ingestão de
remédios e drogas podem provocar má formações no sistema auditivo do bebê.
Acidentes com traumatismos cranianos e lesões de trabalho (ruído intenso) podem
levar a desenvolverem a surdez.
Atualmente com o avanço da medicina é possível voltar a ouvir em caso de
surdez profunda. Os principais tratamentos para melhorar a capacidade auditiva são
os aparelhos auditivos (os aparelhos auditivos são colocados atrás da orelha onde fica
um microfone que amplia o som para uma pequena coluna que é colocada dentro do
ouvido, permitindo que o paciente consiga ouvir com um pouco mais de nitidez) e
implante coclear. (O IC é um dispositivo eletrônico desenhado para ser inserido
cirurgicamente numa parte do ouvido interno conhecida como cóclea, levando
estímulos elétricos codificados diretamente ao nervo auditivo) a fonoaudióloga Rosa
Maria Rodriguez Antonio, assim explica:
Distribuição das Regionais nos moldes da CNBB (Conferência Nacional dos Bispos do Brasil), pelas seguintes
regionais: Norte 1 – estados do Amazonas e de Roraima –; Norte 2 – estados do Amapá e do Pará –; Norte 3 –
estados do Tocantins e da região norte do estado de Goiás –; Nordeste 1 – estado do Ceará –; Nordeste 2 –
estados de Alagoas, da Paraíba, de Pernambuco e do Rio Grande do Norte –; Nordeste 3 – estados da Bahia e
de Sergipe –; Nordeste 4 – estado do Piauí; Nordeste 5 – estado do Maranhão –; Leste 1 – estado do Rio de
Janeiro –; Leste 2 – estados do Espírito Santo e Minas Gerais –; Centro-Oeste –, estados de Goiás, do Tocantins
e Distrito Federal –; Oeste 1 – estado do Mato Grosso do Sul –; Oeste 2 – estado do Mato Grosso –; Sul 1 –
estado de São Paulo –; Sul 2 – estado do Paraná; Sul 3 – estado do Rio Grande do Sul –; Sul 4 – estado de Santa
Catarina.
331
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
118
CERTEAU, Michel. A invenção do cotidiano: 1. Artes de fazer. Petrópolis, RJ, 1994.
119
VATTIMO, Gianni. Depois da cristandade. Rio de Janeiro: Record, 2004; VATTIMO, Gianni. Igrejas sem
religião, religião sem igrejas? Interações – Cultura e Comunidade, v. 5, n. 7, p. 165-172, jan./jun. 2010.
334
Tantas polêmicas e reflexões sobre os conteúdos ideológicos e os
enquadramentos institucionais para lhe fornecer não foram [...]
acompanhadas de um elucidação acerca da natureza do ato de crer.
Hoje, não basta mais manipular, transportar e refinar a crença. É
preciso analisar-lhe a composição, pois há a pretensão da fabricá-la
artificialmente [...] Existem agora demasiados objetos para crer e
muita escassa credibilidade (CERTEAU, 1994, p. 279).
120
Importante ressaltar que Vattimo compreende o Cristianismo como religião estrutural para a cultura
ocidental e, neste sentido, falar em Ocidente é, também, falar em Cristianismo (VATTIMO, 2004).
336
121
“Nesta nova cena, campo indefinidamente extensível das investigações óticas e de uma pulsão escópica,
subsiste ainda a estranha coalização entre o crer e a questão do real. Mas agora ela se joga no elemento do
visto, do observado ou do mostrado” (CERTEAU, 1994, p. 289).
337
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
122
Publicação vinculada ao Projeto de Pesquisa “Os Gostos do Divino: a comensalidade nas festas do Divino
Espirito Santo em Goiás” TECCER/PrP-UEG, 2020-2021.
339
A Festa do Divino Espírito Santo é uma devoção europeia que translada para o
Brasil Colônia, se espalhou constituindo novas formas das devoções populares, se
difundindo pelas terras brasileiras em momentos distintos de sua ocupação.
Em Goiás as primeiras descrições ou menções sobre a Festa do Divino recaem
em período posterior ao momento destinado à mineração, atividade responsável
pela ocupação oficial e ocorrida no início do século XVIII. Os registros apontam para o
princípio do século XIX, quando a população era predominantemente rural e vivia das
atividades agropecuárias, em sua maioria destinada apenas à subsistência, cujas
colheitas ocorriam por ocasião de Pentecostes, quiçá daí as homenagens ao Divino
Espírito Santo terem sido significativas no território goiano.
Magalhães (2014, p. 85) ao estudar alimentos e saúde em Goiás também no
século XIX, nos lembra que não havia uma dieta específica para doentes
hospitalizados, sendo que as informações disponíveis indicam que a “composição
alimentar dos enfermos, que quase nada diferia da comida dos demais segmentos
daquela sociedade. Nutriam-se de carne bovina, arroz, feijão, farinha de milho e de
mandioca, refogados com toucinho e temperados com sal, alho e vinagre”.
Ingredientes bastante comuns e recorrentes nas mesas dos pousos de folia como
veremos a seguir.
Antes, porém, é necessário destacar algumas características da Folia aqui em
estudo que possui três momentos rituais ligados à alimentação: a janta, logo após a
chegada dos foliões à fazenda e que precede o pedido de esmolas — caracterizador
do bando precatório, seguindo uma das definições de Câmara Cascudo (2012) para
tal prática no Brasil, diferenciando-a de Portugal. Posteriormente a alvorada, que
começa com música para acordar os foliões, sendo que logo após ocorre o café da
manhã e as orações matinais; e a última alimentação do grupo na fazenda do Pouso
de Folia é o almoço, finalizado com os agradecimentos de mesa e partida dos foliões
em direção ao próximo pouso, em que os rituais são repetidos, inclusive os
mencionados que são voltados para a alimentação na Folia do Divino Espírito Santo,
nosso foco de investigação no presente texto.
O interesse pauta-se não apenas na descrição dos rituais e dos alimentos na
Folia, mas, principalmente, percepções por intermédio da alimentação “sobretudo
quanto às diferentes formas de permanências e rupturas que tem marcado suas
configurações religiosas” (ANDRADE; PESSOA, 2019, p. 5), uma vez que a proposição
da discussão tem por premissa as alterações, inclusive rituais que vem ocorrendo na
Folia do Divino Espírito Santo, em Pirenópolis/Goiás, em especial no último meio
século. Entendemos que tanto as rupturas como as permanências permitem perceber
340
Neste meio século do recorte temporal delimitado muita coisa foi alterada, as
estradas para as fazendas foram melhoradas, as propriedades rurais passaram a ter
energia elétrica e recentemente com antenas que possibilitam a comunicação móvel.
Estradas e carros facilitaram a condução das pessoas, podendo o veículo ser
próprio, carona ou mesmo contratando o serviço de vans que fazem o transporte
para as fazendas em que ocorrem os pousos de Folia, que se constituem os
momentos noturnos em que os foliões param o giro, a caminhada, no intuito de
descansar a si e aos animais nos quais passam grande parte do dia montados em
deslocamentos.
A Folia é uma festa religiosa, mesmo que popular, e a não participação durante
o giro não é o suficiente para que o antigo folião entenda que “a religião não deixa de
ser o que ela é, mas já não é o que ela foi. Não, não se trata de uma contradição em
termos ou lógica. Mas de um paradoxo, como tantos de uma sociedade cada vez mais
complexa” (PORTELLA, 2008, p. 34). Sociedades que exigem adaptações, inclusive no
que tange ao festar, mantendo permanências nas rupturas até mesmo na interação
com a religião ou religiosidade. “Assim, crença, religião, não significa mais,
necessariamente, um pertencimento a um grupo religioso ou a sensação de tal
pertencimento” (PORTELLA, 2008, p. 45), o estar na Folia é o suficiente, mesmo que
não mais no papel de folião e sim como um participante, que não se envolve como
antes com os rituais, mas cuja fé ao Divino Espírito Santo continua prevalecendo.
Os acampamentos outrora simples e improvisados locais de dormida para o
folião, passou a contar com uma estrutura típica de campings; dividindo os foliões em
grupos (quase todos com denominações e faixas indicativas); a organização ocorre
por integrantes que não fazem o giro seguindo as bandeiras a cavalo e sim em
caminhões ou caminhonetes capazes de acomodar todo o equipamento necessário
para o acampamento, com barracas dos foliões e até mesmo uma cozinha
improvisada. Nem sempre a função de motorista, de cozinheiro e do responsável pela
montagem e desmontagem dos acampamentos estão com a mesma pessoa, o que
amplia o número de pessoas envolvidas, assim como os gastos.
O folião atual não possui muita preocupação durante o giro, pois conta com
uma rede de organização que agiliza o deslocar junto às bandeiras da Folia. Não
precisa transportar roupas, mantimentos; não dorme ao relento como os antigos o
faziam, pois, as barracas e as estruturas de acampamento são aprontadas enquanto
alguns giram. Outro fato que merece menção é que muitas vezes quando a Folia
chega à fazenda para o pouso, nos acampamentos tira-gostos, churrasco ou mesmo
comida estão prontos esperando pelos foliões do grupo. Tal situação visa sanar a
fome, pois, geralmente o almoço foi a última refeição. Ao mesmo tempo faz com
muitos foliões não participem mais das ritualidades junto à mesa.
A chegada da Folia a fazenda do pouso é marcada por peditórios de pouso
cantados e a passagem pelos dois arcos que delimitam os espaços festivos; o segundo
só é ultrapassado quando os regentes, segundo encargo na hierarquia da Folia,
acham o presente que é uma garrafa de pinga, e que após deixar as bandeiras no
342
A ALIMENTAÇÃO NA FOLIA
CONSIDERAÇÕES
REFERÊNCIAS
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WACHHOLZ, Wilhelm. Identidades religiosas brasileiras e seus exclusivismos. In:
Horizonte. Belo Horizonte, v. 9, n. 23, 2011. pp. 782-798.
345
INTRODUÇÃO
CONCLUSÃO
A comunicação da alegria do Evangelho deve ser para todos, sem exclusão, sem
distinção, mediadora da construção de uma cidadania responsável e alterizante,
sempre de encontro ao outro, de forma misericordiosa, pobre com os pobres,
encarnada, sentida. Pode ser de forma direta o anúncio da lógica da boa notícia, ou
como sugere o Papa, por novas metáforas, como os óculos para enxergar, a semente
em terra boa, o pão partilhado, este último como símbolo da reciprocidade, da
multiplicação, da generosidade criativa. Cada metáfora exige uma interpretação, e
cada interpretação elenca seus significados coletivos e particulares. Distintas,
diversas, mas verdadeiras e autênticas, comprometidas na comunicação da essência
da palavra divina.
351
REFERÊNCIAS:
INTRODUÇÃO
O CONCÍLIO VATICANO II
João XXIII (1881-1963) se tornou Papa em 1958, após a morte de Pio XII (1876-
1958). De forma surpreendente, ele anunciou ao mundo sua intenção de realizar um
Concílio Ecumênico em janeiro de 1959, e o tornou oficial no Natal de 1961, pela bula
Humanae Salutis.
A necessidade de um concílio já rondava a Igreja há algumas décadas,
entretanto, ela atravessou a primeira metade do século XX hesitando sobre a
convocação de um novo concílio. O fim da segunda guerra mundial, as mudanças de
mentalidade no ocidente e o contexto da Guerra Fria, tudo isso contribuiu para que
354
123
Palavra italiana que significa atualização.
355
No Brasil, o nome maior da resistência foi Dom Antônio de Castro Mayer, bispo
diocesano de Campos dos Goytacazes entre 1948 e 1981. Ele viu de forma negativa o
fortalecimento das conferências episcopais do mundo em detrimento da Cúria
Romana e do poder monárquico do Papa. De igual maneira, Dom Antônio Mayer
criticou o ecumenismo, a tolerância à liberdade religiosa e principalmente a Reforma
Litúrgica (CALDEIRA, 2009). Por isso mesmo, o missal romano de Paulo VI,
promulgado em 1969, só foi oficialmente implantado em Campos no ano de 1981,
ano que Dom Antônio Mayer se aposentou e a diocese foi assumida por Dom Carlos
Alberto Etchandy Gimeno Navarro (1931-2003). Mesmo assim, Dom Carlos Alberto
Navarro celebrava o rito de Paulo VI em latim para não escandalizar os fiéis (SEIBLITZ,
1992, p. 97).
A carta escrita ao Papa em 12 de setembro de 1969 evidencia bem a posição
de Dom Antônio Mayer sobre o Novus Ordo Missae. Segundo Mayer:
Após as reformas propostas pelo concílio, Dom Antônio Mayer voltou a sua
diocese onde procurou dar uma correta intepretação do “aggiornamento” proposto
por João XXIII, o que na prática significou conservar o mesmo modelo de Igreja pré-
Vaticano II, adotando apenas algumas reformas propostas pelo missal de 1962
(MÉRIDA, 2016). Assim, nos anos que seguiram o término do concílio, Dom Antônio
Mayer foi se afastando paulatinamente da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil,
CNBB, uma vez que ele e a maioria do episcopado brasileiro trilharam caminhos
distintos.
Em 1981, Dom Antônio Mayer, com 77 anos de idade, tornou-se bispo emérito
de Campos dos Goytacazes, após trinta e três anos à frente da diocese, e com a sua
substituição inicia-se um grave problema: a divisão diocesana.
Até àquele momento, a maioria absoluta do clero diocesano ainda celebrava o
rito tridentino, a exemplo do bispo (emérito) de Campos. Nos anos seguintes a sua
124
ARQVCM: Arquivo de Pesquisa Pessoal Vinícius Couzzi Mérida
356
CONCLUSÃO
125
CARTA APOSTÓLICA "ECCLESIA DEI" DO SUMO PONTÍFICE
JOÃO PAULO II SOB FORMA DE "MOTU PROPRIO". Disponível em: <http://w2.vatican.va/content/john-paul-
ii/pt/motu_proprio/documents/hf_jp-ii_motu-proprio_02071988_ecclesia-dei.html#_ftn4>. Acesso em 08 de
setembro de 2020.
358
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WHITE, D. A. The Mouth of the Lion, Ed. Angelus Press, Kansas, 1993.
359
360
INTRODUÇÃO
A RELEITURA NEOTESTAMENTÁRIA
detrimento dos que não creram (BRUCE, 2002, p. 20). Dessa forma, a justiça divina
consideraria a fé como elemento justificador, e não as práticas.
Esse princípio é retomado em Romanos. Por ter sido posteriormente escrita
pelo apóstolo, possibilitou-lhe maior tempo para refinamento do argumento já
iniciado aos Gálatas (BRUCE, 2002, p. 19). Dirigia-se a uma igreja composta por
judeus e gentios. De acordo com Champlin (2002, p. 560), o reiterado apelo de Paulo
acerca da cegueira e eventual restauração da nação de Israel demonstram que a
congregação possuía um caráter judaico – o que poderia justificar seu interesse por
esclarecimentos relacionados ao tema.
A epístola aos Romanos é escrita sob um argumento apologético, em que
Paulo faz oposição aos judaizantes e ao conceito de salvação através das obras,
formalidades e ritos religiosos. Porém, o apóstolo tem também de discutir sobre
aspectos de natureza doutrinária e prática, como membros gentios que abusavam da
liberdade cristã e tomavam parte de alimentos oferecidos aos ídolos, bem como de
outras práticas perniciosas (CHAMPLIN, 2002, p. 565).
Tanto em Gálatas quanto em Romanos, Paulo recorre à citação de Habacuque
como uma forma de demonstrar não apenas como a igreja deveria viver, mas seu
princípio básico e pessoal de vida. Aquele que é justo, vive pela fé (BRUCE, 2002, p.
41). O apóstolo cita literalmente a tradução da Septuaginta do trecho profético, sem
qualquer interferência no significado do trecho.
É possível que essa literalidade demonstre que Paulo, em certa medida,
corrobore com o pensamento de Habacuque no que diz respeito à vida do justo pela
fé. Comparando o vocabulário utilizado nas versões hebraica e grega da citação, não
são perceptíveis grandes diferenças no significado atribuído à expressão.
Assim como no hebraico tzadiq, o grego díkaios pode se referir a um indivíduo
observador de regras, cumpridor da justiça perante os deuses, ou Deus, e os homens.
Esse sentido é atribuído tanto no uso secular do idioma, quanto no Novo Testamento.
Um díkaios é um indivíduo que, em seu aperfeiçoamento moral, manifestará a diké, a
justiça (VINE; UNGER; WHITE JR, 2002, p. 734-735).
Com relação à fé, percebe-se no grego písteos uma semelhante ênfase na
convicção, na fidedignidade e na fidelidade. A fé seria uma firme convicção, que
produz pleno reconhecimento da revelação ou verdade de Deus. Esse
reconhecimento produziria, no indivíduo, uma entrega pessoal aos propóstios
divinos, guiando dessa forma sua conduta (VINE; UNGER; WHITE JR, 2002, p. 648).
O vocábulo que se refere à vida nas citações paulinas, zêsetai, também é
utilizado de forma bastante semelhante ao hebraico ykhyeh. Refere-se à vida física,
às inclinações da vida natural, e também ao curso, conduta e caráter dos seres
humanos. É notório que o termo grego é utilizado para se referir à transformação
experimentada por ocasião da ressurreição dos mortos (VINE; UNGER; WHITE JR,
2002, p. 1057). Embora o termo hebraico não tenha uma associação tão clara com os
aspectos eternais da vida, autores como Harris, Archer Jr. e Waltke (1998, p. 454-458)
já argumentaram a favor de sua utilização nesse sentido, sobretudo nos livros de
sabedoria.
365
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Cada uma das citações da expressão alvo deste estudo, na Bíblia, é alvo de um
contexto diferente. Obviamente, isso por si já é o suficiente para levar o leitor a
depreender que o texto assuma um sentido necessariamente diferente em cada
citação. Ainda assim, é necessário considerar que existem pontos de convergência
entre os textos, fazendo com que os mesmos não sejam esvaziados de seu contexto
original.
366
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Que relação tem a saúde com a espiritualidade humana? Esse é um tema que
recentemente tem se tornado objeto de mais pontual reflexão no meio religioso e
cristão, embora teologicamente possa ser identificado como uma das preocupações
manifestas por alguns escritores bíblicos. São muitas as ocorrências bíblicas alusivas à
saúde em conexão com a vida religiosa e muitas delas permanecem abertas à
pesquisa literária e teológica. Uma dessas ocorrências pode ser notada em 3 Jo 2, na
qual o autor parece conectar a saúde com a espiritualidade no âmbito da vivência
cristã. E esse mesmo texto tem sido interpretado por diversos autores posteriores,
como no caso de Ellen G. White, em abordagens que abrem margem para reflexões
adicionais sobre o tema.
Considerada uma carta pessoal que foi escrita próximo ao final da vida do
apóstolo João, seu curto conteúdo é direcionado a Gaio (v.1), um cristão quatro vezes
chamado de “amado” (v. 1, 2, 5, 11), embora também se mencione dois outros
personagens, Diótrefes (v.9) e Demétrio (v.12). O destinatário da carta é reconhecido
como alguém “prospero” (v. 2), que em relação a Deus “anda na verdade” (v. 3-4); e
em relação aos semelhantes “procede fielmente” naquilo que pratica, sejam estes
conterrâneos ou estrangeiros (v. 5). Esse modo de vida fez com que fosse
reconhecido pelos outros como alguém amoroso (v. 6) e por João como um
“cooperador da verdade” (v. 8).
Entretanto, em qualificação distinta, Diótrefes é apresentado como alguém
que impediu que uma carta de João chegasse à Igreja (v. 9a), evidenciando com isso
que “gosta de exercer a primazia” (v. 9b), não acolhe a João e os que apoiam suas
ideias (v. 9c), profere contra eles “palavras maliciosas” (v. 10b), não acolhe os que
João envia (v. 10c), além de impedir os membros da comunidade de receber esses
enviados, chegando inclusive a expulsar esses pretensos hospedeiros, e talvez os
próprios hóspedes, da igreja (v. 10d). Já quanto a Demétrio, é dito que a própria
verdade, assim como João e “todos” os demais irmãos, lhe dá testemunho (v. 12).
Nesse contexto, as “obras” de Diótrefes são consideradas em oposição ao
testemunho de Gaio, Demétrio, e do próprio João. A descrição feita mostra se tratar
de uma circunstância de divisões e desacordos entre líderes e membros da igreja. E é
claro, essas discordâncias também ocorriam em relação ao próprio João, a essa altura
já bem idoso. Pesquisadores sugerem que uma possível causa disso seria o
gnosticismo, que teria motivado as exortações presentes nas três cartas pastorais de
Paulo, as três Joaninas, além de Colossenses e Judas (RUTHERFURD, 2018, p. 1242). O
cenário era emblemático, e mesmo estando geograficamente longe, o apóstolo
acompanhava com amorável interesse as necessidades daquela comunidade cristã.
369
Embora João tenha escrito outras cartas, o conteúdo que se afigura como a
terceira representa um estágio de bastante profundidade em sua macro
hermenêutica. Nela, a perspectiva joanina se revela bastante integralista. João não
apenas mostra preocupação com as tendências cismáticas vivenciadas na igreja, mas
ao argumentar contra isso evidencia que seu pensamento não se limitava aos
assuntos e problemas práticos no âmbito eclesiástico. Para responder a tais questões,
ele apresenta argumentos que sinalizam seu olhar prévio à vida cristã, entendida no
contexto pessoal e coletivo de uma vivência integral.
Para além do nível micro hermenêutico, nota-se, na saudação feita por João,
sua possível noção de espiritualidade, destacando-se nesse contexto o papel da
saúde e suas conexões como componente essencial da religiosidade cristã. A forma
como cumprimenta Gaio denota sua perspectiva macro hermenêutica da
integralidade cristã. O idoso apóstolo se dirige amoravelmente ao presbítero dizendo:
“Amado, acima de tudo, faço votos por tua prosperidade e saúde, assim como é
próspera a tua alma” (v. 2, ARA). Três são os conceitos mais gerais que João articula
aqui: prosperidade, saúde e alma.
O termo εὐοδόομαι (euodoomai), traduzido como prosperidade, é uma forma
do verbo grego εὐοδόω (euodoō) que aparece apenas quatro vezes no NT (duas delas
em 3 Jo 2). Tem o sentido amplo de ser exitoso, “ter sucesso em realizar alguma
atividade ou evento - para concluir, ter sucesso em” (LOUW, 1996, p. 657) e o sentido
mais específico de “estar em um bom caminho, ter sucesso, ir bem” (BALZ, 1990, p.
81). É aplicado metaforicamente tanto para um aspecto exterior da vida (recursos
materiais, como em 1Co 16:2) quanto para seus aspectos interiores (relações
afetivas, como Rm 1:10). Essa noção mais abrangente segue seu equivalente no AT,
que é ( צָ לַחṣā·lǎḥ), que indica avançar, prosperar, progredir, “realizar com êxito uma
tarefa ou objetivo” em variados aspectos da vida (SWANSON, 1997). É possível que
ao usar o termo, João também tivesse em mente essa conotação mais geral do
mesmo.
Já a saúde é um tema que aparece na bíblia, de forma mais direta, ao menos
15 vezes, evidenciando assim sua relevância textual e, por desdobramento, teológica
(2Rs 20:7; Sl 38:3; Pv 3:8, 4:22; Is 38:16, 21; Jr 30:17, 33:6; Mt 15:31; Lc 15:27; At
3:16, 15:29, 23:26, 30; 3 Jo 2). O termo ὑγιαίνω (hygiainō), usado no NT, é um verbo
que significa “estar em boa saúde física e mental, livre de enfermidades ou doenças”
(Mt 8:13; Lc 5:31, 7:10, 15:27), bem como metaforicamente “estar livre de erros,
estar correto” (1Tm 1:10; 2Tm 4:3; Tt 1:9, 2:1); (ARNDT, 2000, p. 1023). O termo
equivalente usado no Antigo Testamento é ( ָשלֹוםšā·lôm), que carrega um amplo
sentido de “paz; prosperidade, sucesso; bem-estar, estado de saúde; simpatia;
libertação, salvação” (LEXHAM, 2012).
Portanto, a forma em geral como o termo ὑγιαίνω (hygiainō) é empregado –
quanto aos aspectos físicos, mentais e morais do ser humano – indica se tratar de
uma condição ideal de existência e vivência saudável da pessoa vista em sua
370
Assim como ocorreu com João, e ocorre com os demais escritores religiosos,
White respondeu aos desafios de seu tempo com argumentos construídos a partir de
noções gerais de seu pensamento teológico. Tomando-se como critério a
hermenêutica teológica do mesmo texto bíblico Joanino (3 Jo 2), é possível notar
como o conteúdo desse texto foi apropriado e aplicado por White em sua teologia
(notadamente em sua antropologia). Em seus escritos, há citações diretas ao referido
texto, e talvez a mais conhecida seja a seguinte:
âmbito “pessoal” (ou individual) “é da mais alta importância” para o ser humano. A
segunda, é que existe uma relação inseparável entre o corpo (aspecto específico,
físico, exterior e visível) e a alma (aspecto geral, todo o ser incluindo os seus aspectos
não visíveis). A terceira, é que essa individualidade integral se manifesta em palavras
e atos que tem efeitos em relação a Deus, a si mesmo, e aos demais humanos.
Em nível meso hermenêutico, estão aí articulados os elementos: antropológico
da religiosidade integral (“a saúde do corpo depende em grande parte da saúde da
alma”), intencionalidade (“tudo para a glória de Deus”) e proatividade (“palavras e
atos”), e seus correspondentes resultados, tanto soteriológico (“produz crescimento
até que...”) quanto escatológico (“afinal a perfeição”). Nesse contexto mais amplo, é
proposto que o bem estar de cada aspecto do ser está conectado e depende das
condições gerais de bem estar da pessoa, ao mesmo tempo que contribuiu ou não
para isso.
Em outros de seus argumentos, White parecer fazer “alusão” à mesma
combinação dos três verbos mencionados em 3 Jo 2. A articulação que ela faz dos
verbos prosperidade, saúde e alma, se afigura muito próxima àquela feita por João.
Lembra que: “Em todo o sentido da palavra foi Cristo um médico-missionário. Veio a
este mundo para pregar o evangelho e curar os enfermos. Como restaurador da
saúde tanto do corpo como da alma dos seres humanos. Sua mensagem era que a
obediência às leis do reino de Deus trará aos homens e mulheres saúde e
prosperidade” (CSS, 317.4).
Note que neste texto se destaca, primeiro, a saúde como interesse de Cristo e
como componente do evangelho por ele deixado aos cristãos. Em seguida, tal saúde é
apresentada como condição conjunta, tanto do aspecto físico específico (corpo),
quanto de todo o ser em sua totalidade (alma). Por fim, há uma menção de como isso
poderia ser usufruído, em prosperidade, mediante a “observância às leis do reino de
Deus”. Que leis seriam essas? perguntaria o leitor. Em outros textos, White fala em
três conjuntos de leis que correspondem, respectivamente, aos três aspectos do ser
humano visto em sua integralidade. Para ela, as leis morais (tendo como principal
expressão “os dez mandamentos”) orientam primariamente as faculdades morais; as
leis da consciência126 às faculdades mentais (racionalidade e emoções); e as leis de
saúde (ou leis naturais) às faculdades físicas (CSE, 10.2). Como essas faculdades são
vistas ontologicamente como aspectos inseparáveis do ser, as orientações divinas
dirigidas primariamente a cada uma delas também se estendem e se desdobram às
demais de forma inseparável.
Nesse cenário, o pensamento de espiritualidade integral de White propõe que,
“seja o que for que afete ao corpo tem seu efeito correspondente na mente e na
126
Algumas dessas leis interiores incluem: consciência influenciada pela graça (T5, 361.2), pura (CI, 322.3),
sensível (CP, 357.1), esclarecida (GC, 138.4), justa, culta e orientada por Deus (MS, 123.4), iluminada (MCP1,
323.5), ciente do bem e do mal (GC, 262.1), advertida (GC, 500.1), santificada (ME3, 204.4), livre para o
exercício da fé (GC, 592.3), não controlada nem manipulada (DTN, 385.2), respeitosa consigo mesmo (MCP1,
260.1), respeitosa com outros (T5, 563.2), responsável (RC, 130.5), inviolável (GC, 295.3), regida por convicções
(MCP2, 475.1), direcionadora de palavras e atos (OC, 137.4), “faculdade reguladora” (CT, 65.6), harmoniosa
com as demais leis do ser (FEC, 146.2).
373
alma” (CI, 234.5). Isso porque “a relação existente entre a mente e o corpo é muito
íntima. Quando um é afetado, o outro também o é” (CSS, 28.2). Desta forma, tanto
“um corpo doente afeta o cérebro” (Te, 14.3) quanto “o estado da mente afeta a
saúde do sistema físico” (MCP1, 59.3). E a condição de ambos impacta o exercício das
faculdades morais. Por essa razão, entendia que “a religião e as leis da saúde andam
de mãos dadas” (MCH, 315). Deus foi quem “concedeu-nos faculdades físicas,
mentais e morais” (FEC, 218.2) e deseja que elas sejam “desenvolvidas
harmoniosamente” (FEC, 433.3.). O objetivo divino é sempre “dar saúde ao corpo,
mente e espírito” (RC, 137.2).
Nessa ótica, diz White, “a questão de como preservar a saúde é de primordial
importância” (JM, 290.3). Nesse objetivo, sugere se evitar tudo aquilo que
“enfraquecem as faculdades físicas, mentais e morais” (CE, 61.2). Isso inclui a
abstinência de substâncias nocivas à saúde integral, bem como os excessos naquilo
que em si mesmo é benéfico, como por exemplo o trabalho, os estudos, etc. Quanto
a isso, disse ela em tom de estímulo a outros: “Tenho consciência do fato de que sou
mortal e preciso proteger minhas faculdades físicas, mentais e morais” (ME3, 81.4).
Além de se evitar o que é prejudicial, White valoriza como elementos
preventivos e restaurativos da saúde integral os chamados “oito remédios naturais”,
que apresentou como sendo “ar puro, luz solar, abstinência, repouso, exercício,
regime conveniente, uso de água e confiança no poder divino” (CBV, 127.2). E
completa ponderando que, “se nossa vontade e modo de viver se acham em
harmonia com a vontade de Deus e com os Seus caminhos; se fazemos a vontade de
nosso Criador, Ele conservará em boas condições o organismo humano, e restaurará
as faculdades morais, mentais e físicas, a fim de que possa trabalhar por meio de nós
para Sua glória” (CD, 19.6).
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2020.
375
INTRODUÇÃO
127
A palavra “espírito”, na Bíblia, é derivada do latim spiritus, que traduz o grego pneuma (πνευμα). Em seu
significado original é muito semelhante ao sentido da palavra hebraica ruah ()רוח. A palavra “espírito” guarda o
sentido original de ruah, o movimento do ar, vento ou sopro vital, respiração. Daí o sentido de “ânimo”,
"coragem", "vigor" (MACKENZIE, 1983, p. 305, verbete “espírito”).
377
PREDISPOR-SE
“Se eu quiser...”, isto é, tem-se a liberdade para, quando e onde quiser, buscar
uma comunicação direta com o divino, sem intermediação de ninguém ou de
instituição religiosa alguma. É algo pessoal, de fórum íntimo.
Na comunicação/relação com Deus, a pessoa é interpelada a fazer algo por si
mesma, como um imperativo categórico: “Tenho que...”. Desse modo, para falar com
Deus, o ser humano vulnerável tem de enfrentar a si mesmo, como sugere a canção:
ASSUMIR-SE
Percebe-se, logo de início, pelo menos três aspectos da condição humana que
devem ser enfrentados no cotidiano da vida, como algo necessário para se cultivar a
espiritualidade:
- “lamber o chão dos palácios, dos castelos suntuosos do meu sonho”: fazer o melhor,
na simplicidade de um servo;
- “me ver tristonho”: assumir esse sentimento como contingencial, do momento;
- “me achar medonho: perceber-se estranho e capaz de fazer o mal (mesmo quando
não quer;
- e apesar de um mal tamanho, “alegrar meu coração”: mesmo em meio a todas as
dificuldades, encontrar formas de ser feliz.
Enfim, no cultivo da espiritualidade, relativizam-se as dificuldades da vida,
enquadrando tudo como algo natural, da própria condição de ser humano. Fruto
disso é a alegria interior, algo que não vem deste mundo, mas do espírito que habita
nele, que tudo perpassa e que pode ser capaz de tudo superar.
TRANSCENDER-SE
b) Confiar: “Tenho que subir aos céus sem cordas pra segurar”. Essa é uma excelente
metáfora para expressar a necessidade de “alçar voo”, “voar”, com confiança
unicamente em Deus. A experiência de conexão com uma força superior, capaz de
impulsionar a decolar é algo sublime, embora pessoal e intransferível. Mesmo que
essa experiência com Deus possa ser narrada ou expressa de alguma forma, continua
sendo algo muito pessoal: “Eu tenho que ousar fazê-la”. Por meio da experiência de
“subir aos céus”, sente-se – na finitude do aqui e agora existencial – o frescor de uma
brisa leve que reporta à plenitude da eternidade.
c) Despedir-se: “Tenho que dizer adeus, dar as costas, caminhar”. Despedir-se das
pessoas, dos lugares e da própria vida até então vivida, é algo circunstancial à
natureza de tudo que existe, em sua realidade finita. Na despedida, é fundamental
assimilar as perdas com resiliência. Quem deseja cultivar a espiritualidade sente-se
fortalecido a “dizer adeus”, encarando as perdas com naturalidade, como bem
enfatiza a escritora Lya Luft, no belo livro “Perdas & Ganhos” (2004).
d) Caminhar com decisão: é necessário ter decisão e firmeza para dar o primeiro
passo e seguir o caminho.
1274), escreveu: “Neste mundo estamos “a caminho” (in via), e quando estivermos
em Deus estaremos finalmente “na pátria” (in pátria)”, e o caminho de cada ser
humano, em seu itinerário pessoal, está atrelado ao caminho de toda humanidade,
que vem de muito, muito longe. Conforme explica Susin (2018, p. 58):
...viemos da terra, e com ela viemos das estrelas; somos da mesma massa
da poeira estelar, da matéria-prima de todo o universo... É o universo
imenso, obscuro, caótico, indiferente à ética porque impessoal, o seio do
qual evoluímos. Este universo impessoal, sem palavras, em grandioso
silêncio não diz nada a respeito de sua origem nem do que havia antes:
simplesmente está aí... Em nossa experiência, nós viemos de alguém muito
pessoal, de nossas mães. Este é um ponto de partida inteiramente humano:
o que há de mais íntimo da pessoa, o “seio” ... O seio é a primeira metáfora
da criação, a mãe é a primeira metáfora do Criador.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Impressiona o fato de os poetas tratarem brilhantemente de temas essenciais
à vida, por meio de singelas palavras bem escolhidas, que brotam de suas intuições e
observações sem terem necessariamente de dedicar-se ao estudo sistemático
daquilo que escreveram em seus poemas.
Gilberto Gil é, sem dúvida, uma dessas pessoas. Em sua canção “Se eu quiser
falar com Deus”, ele mostra seu lado de poeta teólogo, tocando com muito respeito e
sutiliza em temas delicados, pertinentes à espiritualidade. Não é qualquer pessoa que
consegue fazer isso. Muitas vezes, os próprios teólogos, “especialistas” nos estudos
sobre Deus, não conseguem alcançar tamanha sensibilidade, na reflexão teológica.
De fato, fazer a experiência do encontro com Deus exige uma decisão pessoa, mas
também um aprofundamento na vida cotidiana, por meio de um itinerário espiritual.
Trata-se de uma experiência surpreendente, que, ao findar, vai dar em nada.
Nada, nada, nada, do que se esperava encontrar... A vida, apesar de finita, é uma
382
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
Pelas suas estética e musicalidade, pelo que apela à memória, cada nome
tem um poder misterioso e evocador, poético e musical. Já diziam os latinos
que os nomes se convertem em presságios e o seu som em magia. (BELO,
1992, p. 8)
Identidade não resulta de uma procura nem é uma construção. Ela se revela
ou nos é revelada. É uma descoberta: a descoberta de uma intimidade
anímica comum. É, portanto, uma descoberta que se faz “em comum”, em
convívio com “irmãos”, com “espíritos gêmeos”. É antes uma experiência
que um dado [...] é em primeiríssimo lugar um modo de se “experimentar a
si próprio. Identidade é, em sua essência mais profunda, um modo de se
afirmar a si mesmo. É pois um modo de “ser”, de ser indivíduo e pessoa. É
uma experiência de profundidade”, uma experiência que se desenvolve
toda no plano subjetivo. A experiência da identidade é sempre uma
experiência religiosa em seu âmago. [...] O sentimento de liberdade
interior, que a experiência de identidade desperta, inclui como contraponto
o sentido de “contenção íntima”, a sensação de poder, de energia
disponível, de reserva acumulada. Essa consciência de “unidade interior”
representa a fonte mais poderosa de “energia vital” e é de todos os sinais
de saúde psíquica o que menos se presta a equívocos (BACH, 1985, p. 309-
312).
chamamento. De fato, ele é chamado a dar início a um episódio que assinala uma
fratura com o passado (os onze primeiros capítulos do Gênesis) e, ao mesmo tempo,
uma abertura a um novo início. O chamamento de Abraão é o protótipo, narrativo e
teológico, de todos os chamamentos sucessivos. Vejamos em Gn 12,1-3:
Iahweh disse a Abrão: “Sai da tua terra, da tua parentela e da casa de teu
pai, para a terra que te mostrarei. Eu farei de ti um grande povo, eu te
abençoarei, engrandecerei teu nome; sê uma benção! Abençoarei os que te
abençoarem, amaldiçoarei os que te amaldiçoarem. Por ti serão benditos
todos os clãs da terra.”
Dessa forma, podemos dizer que YHWH é amor e é único. Nesse caso, temos o
mesmo resultado também para o valor ordinal.
Apresentamos apenas um exemplo, mas será fácil encontrar outros tantos que
indiquem conotações diferentes. Para isso, basta encontrarmos palavras cuja soma
em hebraico resulta em 26, ou então combinações de palavras com a mesma soma
numérica.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O ato de Deus ter criado algo por meio da palavra (Deus disse), para depois
nomeá-la, é reproduzido na Torá. Percebe-se logo no primeiro capítulo do livro do
Gênesis, a criação da luz e logo após sua nomeação: “Deus disse: ‘Haja luz’ e houve
luz. Deus viu que a luz era boa, e Deus separou a luz e as trevas. Deus chamou à luz
‘dia’ e às trevas ‘noite’” (Gn 1,3-5).
O misticismo judaico dá muito valor ao quesito “nome”, sobretudo na Torá, já
que a mesma apresenta o significado de diversos nomes em seus textos.
389
REFERÊNCIAS
SOD, Lochem. Tratado sobre Cabalá Literal. Apostila, 2013. Disponível em:
< https://pt.scribd.com/doc/187557048/Tratado-sobre-Cabala-Literal-Gematria-
Lochem-Sod-pdf> Acesso em 12 de jan. 2020.
TAGE, Danea. Curso de Cabala Com noções de Hebraico & Aramaico. Volume I.
Lusitânia: Edições Horizonte, 2007.
TRACHTENBERG, Joshua. Jewish Magic and Superstition: A Study in Folk Religion.
New York: Martino Fine Books, 2013.
391
INTRODUÇÃO
O presente artigo é uma proposta de leitura bíblica utilizando uma via não
muito convencional, a do significado dos nomes. A etimologia e o significado dos
392
nomes bíblicos podem enriquecer bastante uma narrativa. Para salientar a relevância
desta proposta, será utilizado como exemplo, a história dos irmãos Caim e Abel, que
o livro do Gênesis apresenta como os primeiros “filhos” de Adão e Eva. Estes irmãos
são famosos, sobretudo, por causa da tragédia que os envolveu, um fratricídio. Caim
matou seu irmão Abel. No livro intitulado “Palavra, Parábola”, do Padre Rômulo
Cândido de Souza, existe um comentário sobre este fratricídio mostrando a
impossibilidade de Caim ter matado Abel, ao menos no sentido histórico. Inclusive,
segundo o livro citado, Caim poderia argumentar a seu favor: “Se eu for Caim, não
sou filho de Adão e Eva. E se eu for filho de Adão e Eva, não sou Caim” (SOUZA, 1990,
p. 5). Esta afirmação citada é uma provocação no sentido de demonstrar que a
história de Caim e Abel não pode ser lida como uma narrativa histórica, não é um fato
histórico pontual, com data e endereço definidos.
A literatura bíblica usa bastante um recurso que acabou sendo ignorado com o
passar dos séculos: o significado dos nomes próprios. Aliás, sem o conhecimento
deste artifício literário, não seria possível uma abordagem que entendesse de fato a
mensagem do autor sagrado em muitas situações. Faz-se necessário, portanto, como
afirma Fitzmyer (1997, p. 13), que “os leitores atuais voltem no tempo para alcançar
uma compreensão apropriada” da Palavra de Deus, pois “a tensão entre o que
significava e o que significa, entre sua redação antiga e seu objetivo atual, cria a
dificuldade de entendê-la”. A mensagem nas entrelinhas do texto, a partir do
significado dos nomes, em algumas situações é fator crucial.
A releitura do texto em questão, Gn 4,1-16, levará em conta a etimologia dos
nomes Caim e Abel, a partir de pesquisa bibliográfica de vários autores e assim
aponta novas possibilidades de leituras, sobretudo, chama a atenção para a riqueza
de certas mensagens que somente serão evidenciadas levando-se em conta a
etimologia dos nomes, caso contrário a leitura permanecerá obscura e até mesmo
sem sentido, quando não contraditória com a imagem que se tem sobre Deus nos
mesmos textos bíblicos. Evidentemente, outros nomes relacionados aos de Caim e
Abel serão necessariamente citados na elaboração deste artigo, o que possibilitará
novas reflexões e abordagens na leitura bíblica.
CONCLUSÃO
entre os povos primitivos, o nome em todo o antigo Oriente define a essência de uma
coisa” (2003, p. 66). Segundo ainda De Vaux (2003, p. 67), “Finalmente, como o nome
define a essência, revela o caráter e o destino daquele que o tem”. “Inclusive os
nomes bíblicos normalmente são verdadeiras mensagens que, além de identificarem
determinados personagens, expressam de fato a história daquelas pessoas, desvelam
sua vida e sua missão” (GOUVEIA, 2015, p. 15). E assim, se a tarefa de um tradutor
em si já representa enorme desafio, já que todo tradutor é de certo modo um traidor
como dizem os italianos (traduttore traditore), desconhecer o significado dos nomes
bíblicos empobrece consideravelmente o entendimento da própria Bíblia. O presente
artigo teve como propósito provocar uma reflexão neste campo, possibilitando assim
uma leitura bíblica mais contextualizada.
Percebe-se ainda que na medida que se descobre o significado dos nomes
bíblicos a leitura ganha leveza e harmonia em relação com a própria história que é
narrada, desfazendo certas arestas difíceis de serem entendidas de outro modo. Ora,
a Bíblia não é para criar dificuldades ou ser um peso. O próprio Jesus de Nazaré ao
interpretar as Escrituras Sagradas faz duas afirmações que não podem ser
esquecidas. Primeiro que Ele não veio para modificar os textos bíblicos, mas para
cumpri-los: “Não penseis que vim revogar a Lei e os Profetas. Não vim revogá-los,
mas dar-lhes pleno cumprimento” (Mt 5,17)128. E depois que a palavra não pode ser
um peso ou um entrave, pois Deus não é um fardo, e Jesus conclui: “pois o meu jugo
é suave e o meu fardo é leve” (Mt 11,30). Ora, se Jesus diz que sua proposta (que é
bíblica) não é pesada, porque alguns insistem em torná-la pesada?
Assim, a narrativa sobre Caim e Abel é um instrumento literário usado por
Deus, cujo propósito é melhor percebido dentro do contexto de Gn 1-11, composto
de variadas histórias, mas com um ponto em comum, deixar claro a soberania de
Deus e a importância do homem, imagem do Criador. De sorte que cada ser humano
precisa do Caim. Não é possível viver, crescer, sem a persistência do ferreiro (Caim);
mas não se deve matar ou desprezar o Abel, o homem que perde a consciência de
seus limites (Abel) perde o equilíbrio necessário para uma vida saudável.
REFERÊNCIAS
128
As citações bíblicas seguiram A BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulinas, 1987.
397
Partilha, 2015.
HOLLADAY, W. L. Léxico Hebraico e Aramaico do Antigo Testamento. São Paulo:
Vida Nova, 2010.
MAZZAROLO, I.; Antigo Testamento. Rio de Janeiro: PUC-Rio, 2011.
MCKENZIE, John L. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulinas, 1984.
SANTOS, J. B. R. Dicionário Bíblico. Conhecendo e entendendo a Palavra de Deus.
São Paulo: Didática Paulista, 2006.
SOUZA R. C. Palavra parábola. Uma aventura no mundo da linguagem. Aparecida:
Santuário, 1990.
ZORELL, F.; Lexicon Hebraicum Veteris Testamenti. Roma: Editrice Pontificio Istituto
Biblico, 1989.
398
RESUMO: Este trabalho pretende fazer uma leitura do trecho bíblico de Ex 1,15-22,
que narra a atuação de duas parteiras, chamadas Séfra e Fua, no Egito, que deveriam
matar os meninos hebreus e salvar as meninas hebreias, por ordem do rei do Egito.
Porém, por temerem a Deus, ambas desobedeceram ao rei e mantiveram vivos os
meninos. A leitura pretende mostrar os elementos vida e morte da narrativa e
apontar para a conexão entre religião e saúde. Pretende também fazer uma leitura
de alguns elementos da narrativa na perspectiva da psicologia analítica de C. G. Jung.
Trata-se de um estudo bibliográfico a partir da análise exegético-teológica dos livros
sobre o Êxodo de Pablo Andiñach, Brevard Childs, Alex Villas Boas e Matthias Grenzer
e da análise de conceitos da psicologia analítica propostos pelos autores junguianos
Murray Stein e Edward F. Edinger. O estudo mostrará que os temas religião e saúde
estão conectados na narrativa uma vez que a religião está representada pelo temor
das parteiras a Deus e a saúde representada pelo trabalho dessas mulheres, de trazer
as crianças ao mundo, num contexto em que delas dependia o êxito dos partos e,
portanto, de ser dada à luz cada nova vida. Isto implica em saúde, proteção e
preservação da vida. Também apontará para a conexão entre religião e morte, uma
vez que a narrativa bíblica conta o objetivo do rei egípcio de matar os meninos
hebreus e mostra que a influência da religião levou as parteiras a driblar o faraó e
evitar a morte. O morrer e o viver de novos rebentos do povo israelita dependiam
dessas duas mulheres tementes a Deus. A interface com a psicologia analítica
mostrará alguns elementos da psique das personagens principais, o faraó e as duas
parteiras, a partir dos conceitos de ego, persona, consciente, inconsciente e Si-
mesmo.
INTRODUÇÃO
O texto bíblico escolhido narra a conversa entre o rei do Egito e duas parteiras,
às quais dá instruções para que matem os meninos hebreus na hora do parto. Elas,
no entanto, desobedecem à ordem do faraó, rei do Egito e, ao serem questionadas
sobre o não cumprimento da ordem dada, mentem ao rei com a explicação de que as
mulheres hebreias são cheias de vida e não precisam de parteiras. A atitude delas é
uma forma de se rebelar contra o rei poderoso. Tal ousadia poderia condená-las à
morte, porém, sua astúcia é capaz de enganar o soberano poderoso e cruel. Andiñach
diz que “Ao desejo de morte dos poderosos as mulheres contrapõem sua vocação à
vida e sua vontade de proteger as crianças”. (ANDIÑACH, 2010, p. 27).
A atitude estratégica de recorrer a uma mentira parece, como diz Grenzer, um
momento humorístico da narrativa. Pois dá-se a entender que o faraó, apesar de
muito poderoso, não entende nada de mulher, nem de parto. (GRENZER, 2006, p.
30). Ou seja, não entende nada de saúde. Não tem conhecimento sobre cuidar da
400
129
Tradução nossa do espanhol.
401
A narrativa não apresenta o faraó com seu nome próprio, o que poderia
sinalizar, em psicologia analítica, para o conceito de persona, que é uma estrutura
psíquica que se compreende como “a interface entre o indivíduo e a sociedade que
constitui a identidade social de uma pessoa”. (STEIN, 2006, p. 206). A persona não se
trata da pessoa em si, mas de uma máscara social que a pessoa emprega, e pode
chegar ao extremo da pessoa se confundir com a persona. Não ter nome indica a
ausência de um conteúdo de estabilidade do ego. (STEIN, 2006, p. 30). O indivíduo já
não se apresenta com a sua identidade, mas se confunde com a função ou
representação social que tem diante da sociedade. Não ter nome na narrativa pode
indicar que o indivíduo, que está por trás da persona faraó, já não se reconhece a si
mesmo, mas somente como sua máscara social.
Também podemos identificar um processo de projeção psíquica da parte do
faraó. A projeção é “a exteriorização de conteúdos psíquicos inconscientes, ora para
fins defensivos (...), ora para fins de desenvolvimento e integração (...).” (STEIN, 2006,
p. 206). Nos versículos anteriores no mesmo capítulo 1 de Êxodo, a narrativa bíblica
conta que o faraó afirmou que o povo israelita se tornara mais numeroso e mais
poderoso que os egípcios e que era preciso tomar medidas sábias para impedir o
crescimento do povo israelita, pois se houvesse guerra, os israelitas aumentariam o
número de adversários dos egípcios e sairiam do país (Ex 1,9-10). Assim podemos
pensar que o faraó do Egito projeta nos escravos conteúdos inconscientes, que
poderiam ser a sua incapacidade na administração ou seu sentimento de
inferioridade perante um povo que se mostrava mais forte e estava mais numeroso
que o povo egípcio. Ao projetar possíveis conteúdos, o faraó manda matar os filhos
dos escravos. Pode ser uma projeção psíquica porque o ego, que é o “eu”, o “centro
da consciência”, está confundido com a persona, uma persona de poder, que se
atribui o direito de decidir se os subordinados vivam ou morram, como um deus
soberano sobre toda a terra. (STEIN, 2006, p. 28).
402
obedecer a Deus garantindo a vida dos meninos hebreus pode indicar que elas têm
uma boa relação com o transcendente, o que indica que “o ego está bem ligado ao si-
mesmo”. Murray Stein diz que em pessoas como as duas parteiras “existe uma
qualidade sem ego, como se estivessem consultando uma realidade mais profunda e
mais ampla do que as meras considerações práticas, racionais e pessoais típicas da
consciência do ego”. (STEIN, 2006, p. 138). Daí, compreendemos porque foram
capazes de desobedecer ao rei cruel mesmo que isto pudesse implicar em perigo
para suas vidas, ou seja, foram capazes de superar as condições práticas ao seu redor
por sua conexão profunda com o centro e a totalidade do ser, que é o Si-mesmo, na
narrativa representado por Deus.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
VILLAS BOAS, Alex; GRENZER, Mathias. “A resistência das parteiras (Ex 1,15-22):
especificidades de uma teologia literário-narrativa”. Estudos de Religião. V. 29, n. 1,
p. 129-152, jan.-jun. 2015. Acessado em 15 de setembro de 2020.
https://dialnet.unirioja.es/servlet/articulo?codigo=6342631
405
130
Na documentação de Tell el-Amarna, existe um grupo de seis tabuletas que oferece um amplo panorama
sobre o governo do reino de Judá bem como suas possibilidades econômicas. Tais cartas demonstram o reino
como uma região montanhosa, pouco povoada e sem grande controle por parte da cidadela real (FINKELSTEIN
e SILBERMAN, 2018, p. 166/167 e 241/244).
407
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
136
A confederação israelita, confederação articulada militarmente, foi concebida ainda no processo de
formação das tribos protoisraelitas para a proteção destas (WEBER, 1987-88, p. 49/50). Acredito que a
confederação está relacionada aos exércitos, no século XIV a. E. C., de Abdi-Heba (FINKELSTEIN e SILBERMAN,
2018, p. 244/245).
409
RESUMO: A presente comunicação objetiva fazer uma análise sobre a religião e sua
importância como promotora de ações que valorizam a vida, com base nas relações
de cuidado e solidariedade narradas em Rute. O livro de Rute convida seus leitores ao
jogo dos sentidos e lhes permite recriações, entre elas, Rute como modelo de
solidariedade. O livro de Rute une temas e preocupações que são de suma
importância à reflexão nestes dias, tais como o resgate às leis que garantem direitos a
uma mulher estrangeira, pobre, órfã e viúva. O problema que se apresenta para esta
pesquisa é: Qual o papel da religião como promotora da vida e de virtudes como
gentileza, compaixão e solidariedade? Que relação existe entre os problemas que
espelhavam a vida daquele período de Rute com a sociedade atual? Que valores se
mantêm como válidos para hoje? A partir da compreensão de que religião está
associada à paz, ao bem comum, ao amor e à proteção aos menos favorecidos, no
livro de Rute a observância religiosa é primordial, bem como a preocupação com a
identidade de Israel e o culto a YHWH, porém, atos de solidariedade se apresentam
como evidência de uma possível interpretação da identidade de Israel como adesão
religiosa, independente da genealogia. A lealdade e a solidariedade dos estrangeiros
deveriam ser acolhidas.
INTRODUÇÃO
Rute apresenta-se como aquela que adere à causa do outro, participa do sofrimento
alheio e se propõe a aliviá-lo. O livro de Rute, com prerrogativa universal, apresenta
uma narrativa sensível, profundamente humana, cujas situações delineadas
destacam amplo potencial de identificação. Na cultura judaica, como encontramos
nos relatos do Antigo Testamento, a vida é um dom sagrado, sob proteção de leis que
garantem sua integridade (SILVA, 2015, p. 209).
A religião é definida por Durkheim (1989, p. 79) como “um sistema de crenças
e práticas em relação ao sagrado, que unem em uma mesma comunidade moral
todos os que a ela aderem.” Assim sendo, só pode haver moral se a sociedade possuir
um valor superior à média de seus membros. Deus e a sociedade têm o mesmo
significado, pois a religião é a adoração da sociedade transfigurada. A religião tem,
assim, a função de agregar os indivíduos à sociedade, servindo enquanto um
instrumento de controle social, funcionando como um código moral, um modelo a
ser seguido por seus adeptos, promovendo gentileza, compaixão e solidariedade.
Para Geertz, os símbolos sagrados têm a capacidade de estabelecer padrões
morais, sociais e estéticos, que são assumidos pelo indivíduo enquanto realidade.
Este estabelecimento dá a ideia de realidade eterna para o grupo, a tal ponto que
essas realidades depois de objetivadas, passam a fazer parte da cosmovisão dos
sujeitos sociais (GEERTZ, 1989, p. 136). A simbologia religiosa se constrói a partir de
representações compartilhadas socialmente.
Sendo a religião apresentada como instrumento legitimador de uma ideologia
social, pode também apresentar-se como arma de perversão e mudança cultural na
sociedade, visto ser a cultura uma produção humana, ela está sujeita a reconstrução
e desconstrução, por meio das ações do próprio indivíduo.
A religião está popularmente associada com a paz, com o bem comum da
humanidade, com o amor, com a proteção daqueles e daquelas menos favorecidas. O
solidarizar-se, por ser uma das virtudes que mais ressaltam nossa humanidade, é uma
característica pressuposta em todas as tradições religiosas, mesmo que não de modo
tematizado. Isso porque é próprio das religiões contribuírem para o processo de
humanização de seus adeptos.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, João Ferreira. Bíblia Sagrada. Ed. rev. e corrigida. São Paulo: Sociedade
Bíblica do Brasil, 1995.
BOURDIEU, P. A. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectivas, 1998.
DELAZARI, Neuza Maria. A resistência de Rute e das mulheres. São Leopoldo: CEBI,
2017.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o Sistema Totêmico da
Austrália. São Paulo: Paulinas, 1989.
GEERTZ, Clifford. A religião como sistema cultural. In: GEERZ, Clifford. A interpretação
das culturas. São Paulo: LTC, 1989. p. 65 – 91.
KIEFER, Alex. Religiões contra a cultura da violência: uma alternativa de paz.
http://domtotal.com/noticia/1232793/2018/02/religioes-contra-a-cultura-da-
violencia-uma-alternativa-de-paz/. Acesso em 10/04/2020.
LEMOS, Carolina Teles. Religião e o sentido da vida. In: REIMER, Ivoni Richter; SOUZA,
João Oliveira. O sagrado na vida: subsídios para aulas de teologia. Goiânia: PUC
Goiás, 2009. p. 31-36.
LEMOS, Carolina Teles. Administrar: praticar solidariedade e construir justiça. In:
REIMER, Ivoni Richter; SOUZA, João Oliveira. O sagrado na vida: subsídios para aulas
de teologia. Goiânia: PUC Goiás, 2009. p. 105-110.
414
VALMOR DA SILVA
Doutor em Teologia Bíblica e em Ciências da Religião
Professor na Pontifícia Universidade Católica de Goiás (PUC Goiás)
[email protected]
XEOL EM PROVÉRBIOS
137
Grafado como soa em português, Xeol, o termo aparece, com frequência, como transliterado do original
šeol e com traduções que variam entre tumba, sepultura, mundo dos mortos, inferno etc, como se verá
adiante.
416
geral designa a morada dos mortos, mas a explicação exata se refere ora a um
destino final, ora a uma esperança de sobrevida, sem falar da distinção entre prêmio
e castigo, ou destino de justos e ímpios. Xeol aponta, sempre, para um lugar físico,
geográfico, assim como os conceitos de vida e morte em todo o livro de Provérbios
(MEDINA, 2010, 199-211).
Seguem-se, neste estudo, as 9 ocorrências do termo Xeol no livro bíblico de
Provérbios, com análise do seu significado e aplicação em cada contexto.
“Os pés dela” e “os passos dela” referem-se à mulher estrangeira ou estranha
(zarah), contra a qual a Sabedoria dirige agora suas recomendações. Duas metáforas
descrevem a ameaça da estranha, a da fala, com linguagem lisonjeira, e a do
caminho, com passos que conduzem à Morte e ao Xeol. A metáfora do caminhar
138
“Engoliremos” (da raiz nbl) refere-se à figura do Xeol como uma garganta aberta. “Na mitologia de Ugarit, o
deus Mot (“Morte”) engole os vivos, incluindo Baal. A mandíbula de Mot se estende da terra ao céu (CTA 5.ii.2-
3); morrer é descer para a sua garganta (CTA 5.i.7)” (FOX, 2006, p. 87). A ideia do Xeol com garganta
desmesuradamente aberta se encontra em Is 5,14; Hab 2,5; Sl 5,10.
139
“Os que descem” (yoredey, particípio da raiz yrd, descer) seria traduzido como “os descendentes”, não fosse
o sentido que o termo adquiriu em português. Os dois provérbios seguintes, desta análise, possuem
ocorrências idênticas (Pr 5,5; 7,27).
140
Propõe-se a tradução literal, o mais fiel possível ao original, por isso, as expressões que, de fato, não existem
em hebraico, são grafadas entre colchetes.
417
coloca em paralelo, no provérbio, “os pés dela” e “os passos dela”, juntamente com
“descer à Morte” e “conduzir ao Xeol”.
Morte e Xeol, em paralelo, designam, novamente, o mesmo lugar inferior, em
que a vida cessa. O provérbio seguinte amplia a metáfora do trilho dela que “não
segue o caminho da vida” (Pr 5,6). Nessa oposição entre vida e morte, contextualiza-
se o Xeol como uma experiência de tolice, falta de paz e vida reduzida (MEDINA,
2010, p. 207).
O provérbio conclui a primeira coleção (Pr 1-9), que forma uma espécie de
prólogo ao livro de Provérbios. Refere-se à pessoa ingênua que “não conheceu” os
perigos da senhora insensatez que arremeda a senhora Sabedoria.
Xeol está agora em paralelismo com “Sombras” (refaim). O termo pode aludir
a um texto de Ugarit, em que o deus El convida as “Sombras” para um banquete em
seu palácio (FOX, 2006, p. 302-303). A expressão “vales do Xeol” retoma a ideia dos
diversos setores na morada dos mortos e indica que “as partes mais profundas do
submundo são as piores” (FOX, 2006, p. 302). Outras passagens bíblicas referem-se às
“profundezas” ou às “regiões subterrâneas” do Xeol (Sl 86,13; Ez 26,20; 31,14-18;
32,24).
O provérbio apresenta uma novidade com relação aos anteriores até aqui
analisados, porque estabelece uma clara separação entre quem sobe e quem desce,
entre o caminho para a vida e o caminho para a morte. O contexto literário (Pr 15,21-
27) confirma essa distinção entre pessoa idiota e pessoa inteligente (v. 21), entre
falta de reflexão e bons conselheiros (v. 22), entre soberbos e viúvas (v. 25), entre
pensamentos maus (v. 26) e palavras oportunas (v. 23.26) e, enfim, entre corrupção e
vida (v. 27). Nesse contexto, o versículo em análise estabelece uma dupla afirmação,
pessoas prudentes ou sensatas seguem a “via de vida para cima” e se desviam do
Xeol que está embaixo.
Por certo, o dístico não se refere à tradição posterior que distingue céu e
inferno, mas situa-se na esteira da tradição bíblica que distingue a sorte dos maus da
sorte dos justos. Assim como o autor de Eclesiastes constata que o alento do homem
sobe para o alto e o do animal desce para a terra (Ecl 3,21), assim também o salmista
fiel pede a Deus que não abandone sua vida no Xeol nem o deixe ver a cova (Sl 16,10)
enquanto outro declara: “Se subo aos céus, tu lá estás; se me deito no Xeol, aí te
encontro” (Sl 139,8). (BAR, 2015, p. 149-151).
DIFICULDADES NA TRADUÇÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
WALTKE, Bruce K. The Book of Proverbs. Chapters 1-15. Michigan: Eerdmans, 2004.
WALTKE, Bruce K. The Book of Proverbs. Chapters 15-31. Michigan: Eerdmans, 2005.
422
A busca por sentido pelo ser humano é algo que o acompanha em sua própria
caminhada de ordem existencial. O sentido aqui é o mesmo que fundamento, a busca
423
por uma superfície sólida em que o homem possa lançar todos seus anseios, crenças,
preocupações e aspirações. A ideia de o ser humano se ancorar em algo que lhe
confira uma direção segura, do ponto de vista epistemológico, já foi pensada desde o
início das preocupações de ordem filosófica. A este respeito, Blaise Pascal (1623-
1662), no século XVII, dizia que o estado natural do homem é o de desejar um
fundamento para que nele seja edificada uma torre que o lance até o mais alto que
puder, ou seja, até o infinito (PASCAL, Br 72141).
Tal desejo por fundamento, em geral, transita no âmbito da religião. Aquilo
que a humanidade acredita, cada um ao seu modo ou conforme o imaginário da
sociedade da qual faz parte, normalmente é expresso enquanto fazer religioso.
Contudo, as características deste fazer religioso, nas sociedades ocidentais, têm
passado por algumas mudanças apontadas por sociólogos, antropólogos e filósofos
da religião, em que pese conceitos como: desencantamento do mundo – proposto
por Max Weber (1864-1920); o de pós-modernidade – proposto por Jean-François
Lyotard (1924-1998); e o de pluralismo religioso – proposto por Peter L. Berger (1929-
2017)142.
Aliás, mesmo com o aforismo nietzschiano intitulado de o homem louco, da
obra A Gaia Ciência (1882), cujo barulho ecoa até os dias hodiernos, a expressão
“Deus está morto”, entendida por muitos como a morte da própria religião, não
atingiu a expectativa de muitos intelectuais que viam nesta expressão uma espécie
de libertação do “obscurantismo medieval”. Pelo contrário, quando esta sentença foi
proferida por Friedrich Nietzsche (1844-1900) o efeito que ela trouxe ao imaginário
do homem ocidental, sobretudo o do europeu, foi um efeito adverso que, na visão de
Lyotard (2009, p.15), deu origem à incredulidade em relação aos metarrelatos
assentados na religião, na política, na ciência e até mesmo na própria razão filosófica.
Se, por um lado, a própria estrutura de sentido que a religião oferecia enquanto
metanarrativa, foi posta em xeque, por outro lado, houve uma espécie de revival da
experiência religiosa com a pulverização e atomização das práticas religiosas,
traduzidas na personalização e alta subjetivação que caracteriza o fazer religioso do
homem pós-moderno. Nota-se, então, que o pluralismo religioso praticado pelas
sociedades ocidentais tem sua raiz no esmiuçamento das metanarrativas, em muito,
capitaneado pela filosofia nietzschiana do martelo143. Eis, portanto, alguns indícios
que apontam para o ser humano como criatura que, independente de sua condição
epistemológica e posição sociológica, está sempre em busca de sentido e propósito,
cujo locus desta busca é propriamente o âmbito religioso.
Esta busca, pelo menos no Ocidente, tem sido acompanhada de um anseio
pelo ultrapassamento das cadeias da morte sugerindo a ideia de eternidade, seja de
141
Este formato de citação refere-se à obra póstuma de Blaise Pascal intitulada Pensées – Pensamentos – a
partir da edição de Léon Brunschvicg (Br).
142
Em um campo epistemológico mais abrangente, os conceitos: desencantamento do mundo, pós-
modernidade e pluralismo religioso podem ser tomados como aspectos sociológicos distintos, porém,
correlacionados, no que tange a experiência religiosa dos últimos três séculos.
143
Nietzsche se propôs em suas obras a esmiuçar os ídolos imaginários até então alçados a esta condição pelo
homem ocidental. Uma de suas últimas obras, Crepúsculo dos ídolos (1888), traz o subtítulo Como filosofar com
o martelo.
424
uma única vida que se prolonga eternamente com Deus, seja de uma sucessão de
vidas que retornam à esfera terrena, compreendida como reencarnação. Na
literatura cristã, sobretudo o Novo Testamento, difundida no Ocidente como
escritura sagrada, aventa-se fortemente a ideia de vida após a morte, como a maior
dádiva que um ser humano poderia receber do seu Criador, uma vez que a antítese
ao conceito de vida eterna é, nada menos, que o conceito de morte eterna. Em várias
passagens bíblicas, do Antigo ao Novo Testamento, a certeza quanto à vida após a
morte é clara e evidente para quem lê e toma este livro como regra de fé.
O livro do Apocalipse, último livro da bíblia, também conhecido como
Revelação (tradução do grego) remete diretamente a um período escatológico em
que, após a vitória do bem contra o mal, uma parte da humanidade, os salvos,
viverão com Deus em um estado de gozo eterno para sempre. Logo percebe-se que a
noção de eternidade, da vida em um estado futuro de paz, perfeição e
contentamento, é algo notório para a maioria dos povos ocidentais influenciados
pelas ideias cristãs de vida após a morte.
Há, contudo, um texto bíblico em especial que remete ao anseio existencial do ser
humano pela eternidade, que se encontra no livro de Eclesiastes. Este livro faz parte
do Antigo Testamento dentre a porção chamada de Escritos – Ketuviim. O próximo
tópico visa à explicação e contextualização deste texto bíblico, além de situá-lo como
um indicativo de que o senso de eternidade é ao mesmo tempo uma espécie de
senso da divindade.
144
Para os que sustentam a hipótese de que o sábio rei Salomão tenha escrito este livro, a época de sua
redação pode ter ocorrido entre os séculos X e IX a.C.
425
algo escondido como em Levítico, capítulo 20, verso 4. Além da ideia de eternidade,
conforme consta no primeiro livro das Crônicas, capítulo 16, verso 36.
Todos estes sentidos remetem a uma mesma compreensão, isto é, a de algo
que aponta para a ordem do mistério, do não revelado, daquilo que extrapola o
entendimento humano. Após uma extensa explanação no capítulo 3 sobre os
desígnios de Deus acerca do tempo, conforme compreendido e assimilado pelo ser
humano, o autor de Eclesiastes lança-se a expor a ideia de eternidade, porém, de um
modo paradoxal. Ao mesmo tempo em que o autor fornece pistas de que a
eternidade pode ser entendida como da ordem do mistério, enquanto busca
investigativa do ser humano por sentido, ele também se utiliza de um pessimismo
filosófico para, em quase todo o livro de Eclesiastes, não criar expectativas quanto à
vida após a morte. É apenas ao final do livro (Eclesiastes 12,4) que o autor resume e
conclui de um modo no mínimo estranho ao restante do livro sobre a necessidade de
se temer a Deus em função do juízo que recairia para todos indistintamente.
145
A outra hipótese acerca do autor e do período da redação do livro de Eclesiastes, dentre outras razões,
sugere que o Pregador estava muito mais para um Filósofo influenciado pelo epicurismo grego dos séculos III e
II a.C., além do caráter niilista de suas considerações e conclusões sobre a situação do homem lançado no
mundo.
426
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
146
Paralelos não irônicos entre as duas narrativas também podem ser encontrados: os dois profetas parecem
perturbados e buscam solidão (Elias em Berseba [1Rs 19,3] e Jonas fora de Nínive [4,5]). Os dois profetas
esperam (Elias entra em uma caverna e espera [1Rs 19,9]; Jonas se assenta ao leste da cidade sob uma
tenda e espera [4,5]). Em ambas as narrativas, Deus instrui seus profetas por meio da natureza (vento,
terremoto e fogo em 1Rs 19,11-12; e vento, tempestade, mar, peixe, planta e verme no livro de Jonas).
429
Acabe fez saber a Jezabel tudo quanto Elias havia feito e como matara os
profetas à espada. Então, Jezabel mandou um mensageiro a Elias a dizer-
lhe: Façam-me os deuses como lhes aprouver se amanhã a estas horas não
fizer eu à tua vida como fizeste a cada um deles.
Temendo, pois, Elias, levantou-se, e, para salvar sua vida, se foi, e chegou a
Berseba, que pertence a Judá; e ali deixou seu moço.
ֵשב תַ חַ ת רֹתֶ ם אֶ חָ ת וַיִ ְּשאַ ל אֶ ת־נ ְַּפשֹו לָמות ַוי ֹאמֶ ר׀ ַרב
ֶ וְּהוא־הָ לְַך בַ ִמ ְּדבָ ר דֶ ֶרְך יֹום ַו ָיב ֹא ַוי
עַ תָ ה יְּהוָה קַ ח נ ְַּפ ִשי כִ י־ל ֹא־טֹוב אָ נֹכִ י מֵ ֲאבֹתָ י׃
O narrador relata que Elias continua sua jornada após uma série de
abandonos: abandona Israel e entra em Judá; em seguida, abandona Judá e chega ao
deserto (sem mais qualquer companhia humana). O fato de deixar seu servo em
Berseba e continuar sua jornada ao deserto parece prenunciar o que está implícito no
v. 4: Elias procura desistir de sua tarefa, renunciar seu chamado profético.
Ironicamente, Elias pede a morte a Deus. Como é possível o profeta que teme a
ameaça de morte e foge, fazer agora esse pedido a Deus? O insight psicológico
presente aqui parece revelar uma dimensão mais profunda: seu senso de
desesperança, de desilusão e desespero, da futilidade de qualquer esforço adicional.
Na sua perspectiva, o triunfo no Carmelo não obteve efeito duradouro: a perseguição
de Jezabel aos profetas continua, e Acabe aparentemente continua o mesmo. Walsh
(1996, p. 268) observa:
Tendo apresentado seu dilema, Elias não age mais. Ou melhor, suas ações
exemplificam sua realidade psicológica, ele se deita e dorme (v. 5).
Ah! Senhor! Não foi isso que eu disse, estando ainda na minha terra? Por
isso, me adiantei, fugindo para Társis, pois sabia que és Deus clemente e
misericordioso, e tardio em irar-se, e grande em benignidade, e que te
arrependes do mal.
147
Com algumas variações, componentes desse credo ocorrem em: Salmos 86,15; 103,8; 145,8; Neemias 9,17;
Joel 2,14.
432
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
GREGORY, R. “Irony and the Unmasking of Elijah”. In: HAUSER, A. J.; GREGORY, R.
From Carmel to Horeb: Elijah in Crisis. Sheffield: Almond Press, 1990. (The Library of
Hebrew Bible/Old Testament Studies, 85).
GUNN, D. M.; FEWELL, D. N. Narrative in the Hebrew Bible. Oxford: Oxford University
Press, 1993.
HOLBERT, J. C. “‘Deliverance belongs to Yahweh!’: satire in the book of Jonah”.
Journal for the Study of the Old Testament, 21, p. 59-81, October 1981.
MAGONET, J. Form and Meaning: studies in literary techniques in the book of Jonah.
Sheffield: The Almond Press, 1983.
MARCUS, D. From Balaam to Jonah: anti-prophetic satire in the Hebrew Bible.
Atlanta: Scholars Press, 1995. (Brown Judaic Studies, 301).
STUART, D. Word Biblical Commentary: Hosea-Jonah. Dallas: Word, Incorporated,
2002. V. 31.
WALSH, J. T. 1Kings. COTTER, D. W.; FRANKE, C. (Orgs.). Collegeville: The Liturgical
Press, 1996. (Berit Olam Series).
434
RESUMO: O livro de Jonas narra o chamado desse profeta e sua fuga da presença de
Deus e a realização de sua missão. Analisa-se como essa relação conflituosa conduziu
Jonas a desejar a morte, buscando o significado de morte para esse personagem e as
consequências dessa decisão de morte na sua relação com Deus e com a
comunidade. A análise do livro de Jonas se faz com o uso do método narrativo,
visando a explorar as ações de Deus e de Jonas nessa busca pela morte. Considera-se
o conceito de qualidade de vida da Organização Mundial de Saúde (OMS), que afirma
ser a forma como o ser humano encara a vida com seus objetivos, expectativas, e
também a vivência e a realização de valores nos quais ele acredita. Conclui-se que o
distanciamento de Deus pode levar à morte e a proximidade com ele pode gerar vida
tanto individualmente como comunitariamente.
INTRODUÇÃO
A relação de Jonas com a vida e a morte só pode ser compreendida quando ele
é inserido na tradição de Israel. A existência de Israel está vinculada à sua relação
com Deus. A partir desse instante, todos os âmbitos da sua vida são perpassados por
essa relação. Diversos textos do livro dos Salmos apresentam a morte como
consequência natural da vida. O viver está associado ao andar com Deus. Assim,
aquele que não anda com Deus, escolhe o caminho da morte, ou da infelicidade,
segundo o livro do Deuteronômio 30,15. Portanto, analisar Jonas e sua trajetória por
esse princípio é acompanhá-lo em seu desejo constante pela morte. Cada uma das
ações de Jonas desde sua fuga até o final quando se afasta de Nínive aguardando sua
destruição revelam essa busca pela morte e sua desistência da vida.
Nínive, caso ela não se arrependesse. Ele foge para o lugar mais distante, o outro
extremo, Társis, desobedecendo a voz de Deus.
Na Bíblia, esse livro está localizado entre os profetas, no entanto, ele não se
enquadra no gênero profético. Os estudiosos se dividem quanto à sua caracterização,
qualificam-no como narrativa didática, novela, conto, sátira, ou, ainda, como
parábola sobre a universalização da salvação. A obra representa uma grande
mudança de mentalidade do povo judeu acerca da abertura da salvação aos povos
pagãos. Acompanha-se através dos quatro capítulos do livro a tentativa de fuga de
Jonas da presença de Deus. Posteriormente, observa-se o significado dessas ações na
vida de Jonas e na sua relação com Deus.
No primeiro capítulo, o personagem é chamado por Deus a ir até Nínive e
anunciar sua destruição. Ele é convocado a levantar-se, no entanto, empreende o
deslocamento contrário, afasta-se, segue até o navio onde inicia um movimento de
descida, ao fundo do navio, em seguida ao fundo do mar, situação final. O clímax se
dá na revelação de sua fuga da presença do Senhor, quando Deus envia uma grande
tempestade sobre o navio. Jonas é descoberto como culpado, é lançado ao mar como
forma de acalmar a tempestade (FERNANDES, 2010, p. 26).
Os personagens presentes, nesse capítulo, são: Deus, Jonas e os marinheiros.
Deus comanda todas as ações: convoca Jonas e o envia em missão; quando percebe
sua fuga, envia uma tempestade ao mar e sabota seu plano. Jonas não emite uma
palavra diante de Deus, apenas ocupa-se em contrariar sua vontade. No navio,
também permanece calado até ser inquirido pelos marinheiros, após a sorte ser
lançada e recair sobre ele, como causa daquela tempestade. Indagado sobre sua
missão, ele responde com uma profissão de fé: “Sou hebreu e venero a Iahweh, o
deus do céu, que fez o mar e a terra”. Mais uma vez, a ironia permeia o relato (ALTER;
KERMODE, 1997, p. 254). Será que ele venera mesmo o Deus criador, aquele que tem
domínio sobre terra e céu? São os marinheiros que irão invocar a IHWH e oferecer
sacrifícios, além, é claro, de lançar Jonas ao mar.
A situação inicial do segundo capítulo é a determinação de IHWH que surgisse
um peixe grande que engolisse Jonas, a situação final é a ordem dada ao animal que
vomite Jonas sobre a terra firme (FERNANDES, 2010, p. 27). O clímax desse quadro é
o pedido de Jonas pela libertação de sua vida, por meio de um salmo de ação de
graças que surge no meio da narrativa. O salmo traz relatos dos sofrimentos passados
e o clamor por libertação das profundezas dos mares.
Deus, o peixe e Jonas são personagens desse capítulo. Deus continua dirigindo
os acontecimentos através de suas ações: envia um grande peixe para engolir Jonas e
depois determina que o vomite. O peixe aparece mais como um cenário no qual
Jonas profere o salmo de ação de graças. Jonas, por sua vez, sai da indolência e passa
a orar a Deus, clamando por sua vida (ALTER; KERMODE, 1997, p. 255).
No desfecho, há a revogação da destruição da cidade de Nínive. O clímax desse
quadro se dá no momento em que toda a população – incluindo o rei, sua corte,
homens e animais – faz jejum e penitência. Arrependimento e conversão sem
precedentes na tradição profética de Israel. Mais uma vez, o narrador coloca seus
leitores diante de acontecimentos fantásticos, povos pagãos que aderem à fé israelita
437
sem pestanejar. O mais estranho é que mesmo em Israel, com toda a sua tradição
profética, nunca se deu tal fenômeno (ALTER; KERMODE, 1997, p. 256).
Os personagens, se ampliam, além de Deus e de Jonas, os habitantes de
Nínive, o rei e os animais da cidade também são ativos na narrativa. Deus dirige a
palavra a Jonas, revoga o decreto contra os ninivitas. Jonas prega na cidade. Os
habitantes crêem em Deus, o rei adere a Deus, e os animais participam de todo o
processo de conversão da grande cidade de Nínive.
No último capítulo, a situação inicial traz o desgosto e a ira de Jonas pela
atitude tomada por Deus. A situação final traz uma interrogação aos leitores sobre a
resposta de Deus em relação ao motivo de não ter destruído a grande cidade de
Nínive. Aqui é esclarecida a razão da fuga de Jonas e o pedido explícito pela sua
morte por três vezes. Jonas não responde aos argumentos de Deus, a narrativa
finaliza sem o conhecimento dos leitores da opinião de Jonas após a justificativa
divina (SKA; SONNET; WÉNIN, 2001, p. 48).
Os personagens que seguem até o fim do relato são Deus e Jonas. Deus
continua um ser de ação, vai ao encontro de Jonas, questiona sua revolta, explicita
suas razões e tenta dissuadi-lo a mudar de atitude. Jonas revela, finalmente, o motivo
de sua fuga: a bondade e a misericórdia divina. Por isso, instala-se a leste da cidade e
pede a morte, mostra-se teimoso e intransigente na discussão com Deus.
Até esse momento, todos os seus gestos e ações demonstravam essa obstinação,
mas, agora fica claro, ele decidiu pela morte e não quer dialogar com Deus. Sua fuga
culmina com uma afirmação resoluta de rejeição da oferta de Deus de manter um
relacionamento próximo. Através das ações de Jonas sua decisão é pela morte, pela
rejeição da presença e intimidade com Deus, por três vezes, ele clama por sua morte
(4,3.8.9).
A decisão de Jonas de fugir de Deus acarreta graves consequências para ele e
para as pessoas com as quais ele se depara. Ao entrar no navio, ele coloca em risco a
vida de toda a tripulação. Todos são salvos quando ele é lançado ao mar. Ao pregar
para a população de Nínive, eles são salvos, recebem então a vida e ele pede a morte.
É interessante observar esse jogo de vida e morte presente a cada ação de Jonas e de
Deus. Enquanto ele busca a morte, Deus procura salvar a vida dele, dos tripulantes do
navio, da população de Nínive e de todos os animais. A morte da planta é utilizada
para fazê-lo entender a salvação desse povo estrangeiro.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
ALTER, Robert; KERMODE, Frank (orgs.). Guia literário da Bíblia. São Paulo: Editora
Unesp, 1997.
BÍBLIA DE JERUSALÉM. São Paulo: Paulus, 2000. 9ª impressão.
FERNANDES, Leonardo Agostini. Jonas. São Paulo: Paulinas, 2010 (Coleção
Comentário Bíblico Paulinas).
GEFFRÉ, Claude. Morte In: LACOSTE, Jean-Yves. Dicionário crítico de Teologia. São
Paulo: Loyola; Paulinas, 2014, p. 1195-1199.
MCKENZIE, John L. Dicionário bíblico. São Paulo: Paulus, 2005.
MORA, Vincent. Jonas. Navarra: Verbo Divino, 1981. (Cuadernos Bíblicos).
439
RESUMO: O tema explorado nesta comunicação diz respeito tem por base retratar as
diferentes formas de relacionar ciência e religião, sendo estas categorizadas por Ian
Barbour em Ways of Relating Science and Religion, utilizando como fundamentos
para sua classificação os pressupostos científicos de objetividade e racionalidade que
estão intrinsecamente ligados ao processo de observação do mundo e dos seus
habitantes, enquanto a subjetividade e caráter emocional estão ligados aos
segmentos religiosos que tem como fundamento sua tradição. Barbour discorre na
sua narrativa sobre dois tipos ideais para as relações entre conhecimento científico e
a religião; conflito e diálogo. Na relação conflituosa, Barbour coloca como os
extremos da relação entre ciência e religião, o materialismo científico e o literalismo
bíblico, respectivamente, observando que mesmo tecnicamente distantes, existem
características comuns entre essas escolas, tendo em vista o uso errôneo da ciência
feita por ambos os movimentos. Tal afirmativa é justificada pelo entendimento de
que ambas desrespeitam os limites de atuação e entendimento de suas respectivas
disciplinas, este opinando a respeito de assuntos científicos que estão além dos
limites de compreensão da religião, e aquele por buscar fazer avaliações filosóficas de
conteúdos não filosóficos. Na visão de Barbour, aqueles que defendem o
materialismo científico tendem a buscar a autoridade da ciência para temas e ideias
que não são próprias do conhecimento científico, sendo considerada falsa e incorreta
toda e qualquer realidade que não seja considerada natural. Desta forma, uma visão
científica do mundo não permite uma interpretação filosófica dos pressupostos
científicos, sendo assim toda publicação tratando de assuntos relacionados às
ciências naturais, ditas “ciências duras”, “não passariam de um sistema de crenças
alternativas, cada uma delas pretendendo representar a sua e exclusiva realidade
como um todo”. Considerando que ambas trazem consigo uma pretensão de estatuto
da verdade, o confronto entre ciência e religião poderia ser evitado se religião e
ciência fossem consideradas como esferas distintas da realidade, com metodologias
que pudessem ser justificadas em seus próprios termos, e não com termos universais
e generalistas. Esta independência, além de evitar conflitos totalmente
desnecessários, permitiria as escolas que tivessem a livre expressão do modo de
entender e compreender sua área de investigação. Tanto a religião quanto a ciência
são aspectos fundamentais para a compreensão da vida social, e o uso do diálogo e a
conciliação em suas teorias propiciam um melhor desenvolvimento para ambas no
442
148
BARBOUR, Ian. “Ways of Relating Science and Religion”. In Religion and Science - Historical and
Contemporary Issues. London: SCM Press, 1998. Pp. 77-105.
149
Barbour, afirma que, do mesmo modo que as interpretações alegóricas de passagens controversas da Bíblia
vêm sendo oferecidas desde a Antiguidade, constata-se que os reformadores João Calvino e Martinho Lutero
também seguiram, pelo menos no início, essa tradição, não menos verdadeira é a constatação que grupos
443
fundamentalistas, especialmente nos EUA, mantêm até os dias de hoje uma fé inabalável na interpretação
literal das Escrituras.
150
Trecho do livro de Jó 38:24-34
444
Jó: ... Quem somos nós para nos ocupar com os assuntos celestiais,
sabendo que somos matéria e temos muito de pó e de cinzas?
Assim, ouça o que te pergunto: tanto a água como os alimentos
são engolidos pela boca e passam pela mesma garganta, mas são
eliminados do nosso corpo de modo diferente. Quem os separa?
Baldas: Eu não sei a resposta.
Jó: Se és incapaz de entender o funcionamento de seu próprio corpo,
como queres entender as coisas do céu?
151
RUSSELL, Bertrand. Religion y Ciencia. Cidade do México: Fondo de Cultura Econômica, 2000.
152
RUSSELL, Bertrand. Op. cit. Pp. 9-10.
153
Astrônomo de origem grega que viveu em Alexandria a maior parte de sua vida (310 a.C.-230 a.C.), autor Da
Magnitude e da Distância do Sol e da Lua.
445
154
RUSSELL, Bertrand. Op. cit. P. 33.
155
RUSSELL, Bertrand. Op. cit. P. 43.
156
RUSSELL, Bertrand. Op. cit.. P. 52.
157
Palavra grega que representa a volta de Jesus Cristo para resgatar os puros do mundo perverso
446
REFERÊNCIAS
BARBOUR, Ian. “Ways of Relating Science and Religion”. In Religion and Science -
Historical and Contemporary Issues. London: SCM Press, 1998
DAWKINS, Richard. O Relojoeiro Cego. São Paulo: Companhia das Letras, 2001.
GRUENWALD, Ithamar. Apocalyptic and Merkavah Mysticism. Leiden / Köln: E. J.
Brill, 1980.
HOOYKAAS, R. A Religião e o Desenvolvimento da Ciência. Brasília: Editora UnB,
1972.
RUSSELL, Bertrand. Religion y Ciencia. Cidade do México: Fondo de Cultura
Econômica, 2000.
SWINBURNE, Richard. Faith and Reason. New York: Oxford Universsity Press, 2005.
447
INTRODUÇÃO
DESENVOLVIMENTO
Viver com sentido significa pôr-se a serviço de algo, com engajamento, com
emoção, com vontade utilizando todas as suas aptidões, é viver com propósito.
Frankl (2008), destaca que a realização de sentido se efetiva através dos valores:
valores experienciais – uma experiência que seja positiva em si, ou amar alguém;
valores criativos – criar uma obra ou se dedicar a um trabalho criativo, com
motivação; e, assumir atitude diante de um sofrimento inevitável - valores
atitudinais.
O número dos que lamentam da falta de sentido da vida aumenta
exponencialmente, trazendo à tona a falta de objetivos, de tarefas e envolvimento
criativos que caracterizam o nosso tempo. A depressão surge também como
449
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Para Frankl (2008), quando o homem está sobre o chão firme da fé religiosa,
não se pode objetar ao uso do efeito terapêutico das suas convicções religiosas e,
assim, ao aproveitamento de seus recursos espirituais. A espiritualidade,
compreendida como uma experiência pessoal de encontro com o sagrado, o
transcendente, ocorre dentro do indivíduo e o auxilia a dar nomos e significado a sua
vida. Difere de pessoa para pessoa, e varia conforme as circunstâncias em que
estamos inseridos.
O tema espiritualidade, resiliência e depressão abre extenso campo de
pesquisa interdisciplinar. Atual, urgente e relevante, merece atenção por parte
daqueles que trabalham pelo bem-estar de indivíduos e da sociedade.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
capacidade de agir ficaria, por assim dizer, limitada a um único ato do qual jamais nos
recuperaríamos; seríamos sempre vítimas de suas consequências.”
doença afetiva do outro lado” (SCHUCKIT, 1985 apud FORTES, 1991, p. 256). Sabemos
que um grande gatilho para os sofrimentos e transtornos psíquicos são as drogas.
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
RESUMO: O artigo tem como objeto de estudo a análise da perícope de Isaías 49,1-6,
o Segundo Canto do Servo de Yhwh, que narra a missão profética do Servo de reunir
o povo de Deus no contexto do exílio babilônico, em que a opressão, o sofrimento e a
dor eram presentes. Mas não somente! A condição de escravos em terra estrangeira
intensificava o sofrimento e, neste contexto, o povo de Deus sonhava com a
libertação/salvação. Neste estudo, com base na perícope mencionada, a partir do
método histórico-crítico e da leitura conflitual, demonstraremos que o Servo, um
profeta anônimo, descrito pelo Dêutero-Isaías, tem a missão de proclamar a
libertação/salvação do povo de Deus por meio da justiça, da solidariedade e da
mística, considerando, sobretudo a sua própria experiência de sofrimento, de servo e
de escravo, portanto, de alguém que conhecia a dor do outro não somente de ouvir
dizer, mas de experenciar. Um profeta que nasce em meio ao sofrimento do povo
escravo. Esse profeta anônimo surgira no contexto do exílio Babilônico e recebeu a
alcunha de profeta-servo (SILVA, 2007) e profeta-escravo (SILVA, 2014), cuja origem
da sua vocação tem início no “seio, no ventre de minha mãe” (Is 49,1), lugar de
aconchego, segurança, de sentir-se amado e amar. É deste lugar íntimo, que Deus
chama e modela o seu profeta-servo/profeta-escravo. De forma que profeta-servo
(SILVA, 2007) e profeta-escravo (SILVA, 2014) são duas categorias, cunhadas pela
exegese bíblica, que contribuem, significativamente, para a hermenêutica do texto
sagrado, a partir da análise da perícope.
158
Parte do trabalho aqui apresentado já foi publicado como artigos de revistas e de livro nos anos de 2007,
2014 e 2020.
461
A EXPERIÊNCIA DO PROFETA
A experiência que o profeta fazia de Deus era sempre relacionada com o Deus
de seus pais, que trazia consigo a lembrança de tudo o que fez no passado e oferecia
olhos para entender e atualizar o seu sentido. O profeta, nesse contexto, tornou-se a
memória do povo, que lhes recordava as coisas que incomodava, o que o povo
sofrido, oprimido, escravizado, o povo escolhido do Deus de Israel, gostaria de nunca
se lembrar, como, por exemplo, o Êxodo (Ex 22,20). Faziam memória também da
presença carinhosa do Deus libertador que conduziu o povo para uma nova terra, que
fez, com eles, Aliança (Dt 32,10-11). Essas memórias que o profeta trazia consigo
eram as que ajudavam o povo a identificar, se de fato, era um verdadeiro ou um falso
profeta.
Esse profeta, por meio da experiência de Deus, tornou-se o defensor da
Aliança, alguém que cobrava do povo um compromisso, uma postura de fidelidade a
esse pacto. Ele encarnava as exigências da Aliança ou da Santidade de Deus, exigia
fidelidade e pedia a observância prática da Lei de Deus.
A experiência feita pelo profeta era norteada pela Santidade de Deus, pois
experienciava aquilo que o povo deveria ser e não era. Por meio dessa experiência, o
profeta percebia quando o povo agia contra a Aliança e, deles, exigia uma mudança
de vida. Foi a partir dessa experiência do Deus do Povo e do Povo de Deus que
nasceu, no profeta, a consciência de sua missão. Nesse momento, ele começou a
gritar e a anunciar a profecia de Deus, denunciando as injustiças, anunciando o amor
e o apelo à conversão.
A realidade era a fonte de onde os profetas retiravam os elementos que
comporiam o seu discurso. As mensagens dos profetas sempre eram endereçadas a
seus contemporâneos, homens e mulheres da sua própria geração, neste caso, o
povo escravizado, e o conteúdo de seus discursos relacionavam-se com os
acontecimentos que os rodeava com a preocupação final de denunciar a
precariedade de vida imposta à sociedade (ROSSI, 2008).
O PROFETA-SERVO/PROFETA-ESCRAVO DE DEUTERO-ISAÍAS
A JUSTIÇA
SOLIDARIEDADE
MÍSTICA
O profeta do exílio foi aquele que rezava com a comunidade, uma oração
encarnada, de viver a dor do outro, que buscava a libertação e o sentido de ser
comunidade, de partilhar e de festejar. Esse era de fato o verdadeiro profeta
chamado por Deus, do meio do povo, para experienciar seu amor através do
sofrimento desse povo escravizado.
Para anunciar a justiça e a solidariedade, o profeta foi perseguido, maltratado,
humilhado e até torturado por seus inimigos. Esse profeta-servo/profeta-escravo
suportou todas as perseguições, humilhações, encontrando forças no Deus libertador
e ao mesmo tempo anunciando a construção do reino de liberdade, de fraternidade,
igualdade, paz e comunhão (NAKANOSE; PEDRO, 2004, p. 50).
465
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BÍBLIA DE JERUSALÉM – Nova edição revista e ampliada. São Paulo: Paulus, 2001.
CRB NACIONAL. A leitura profética da história. São Paulo: Loyola, 1994.
FERREIRA, Joel Antonio. Paulo, Jesus e os marginalizados: leitura conflitual do novo
testamento. Goiânia: Ed. Da UCG, Ed. América, 2009.
NAKANOSE, Shigeyuki; PEDRO, Enilda de Paula. Como ler o Segundo Isaías 40-55. Da
semente esmagada brota nova vida. São Paulo: Paulus, 2004.
ROSSI, Luiz Alexandre Solano. Cultura militar e de violência no mundo antigo. Israel,
Assíria, Babilônia, Pérsia e Grécia. São Paulo: Annablume; Fapesp, 2008.
SILVA, Rosemary Francisca Neves. Missão profética: uma experiência de libertação e
esperança no exílio da Babilônia a partir do Segundo Canto do Servo de YHWH (Is
49,1-6). Dissertação (Mestrado) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia,
2007.
SILVA, Rosemary Francisca Neves. Análise do Segundo Canto de Servo de YHWH.
Caminhos, Goiânia, v. 11, n. 1, p. 85-106, 2013. Acesso:
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SILVA, Rosemary Francisca Neves. O servo de YHWH solidário com o povo escravo da
Babilônia. Tese (Doutorado) - Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Goiânia,
2014.
WEBER, Max. Economia e sociedade. Tradução Regis Barbosa e Karen Elsabe
Barbosa. Brasília: UNB, 1991.
466
RESUMO: O título sugestivo “Apóstolo Paulo in: e tu, que dizeis quem eu sou?”
propõe, através do presente artigo, descrever algumas características identitárias
atribuídas ao apóstolo Paulo descritas nos textos bíblicos. Paulo é detentor de um
extenso curriculum vitae onde não faltam suas habilitações e os aspectos
relacionados aos seus atributos de origem nacionalista (grega e romana), religiosa
(judaica e cristã) e social (Saulo e Paulo). O objetivo desta pesquisa é entender as
diversas formas de identidade utilizadas por apóstolo Paulo, em um período de
opressão social. A escravidão praticada pelos romanos e o modelo de exclusão
promovido pelos judeus, contribuem para a construção identitária de Saulo, àquele
que perseguia e encarcerava os cristãos (At 8,1-3). Já a sabedoria grega excluía as
mulheres, os pobres e escravos em ouvir as retóricas filosóficas dos gregos, e dos
discursos religiosos. O cosmopolita Paulo está situado dentro de um contexto
multicultural, cercado por diversas culturas e religiões, contribuindo para a
construção e manutenção de uma identidade que se adeque aos seus ensejos. A
pesquisa foi realizada tendo como aparato crítico a pesquisa bibliográfica
desenvolvida com base em materiais já publicados, que ajudará a entender a pessoa
do apóstolo Paulo e sua relação com as diversidades religiões e povos da antiguidade
bíblica do período do primeiro século. Nota-se que que existem duas composições
bem diferentes entre o modelo de identidade atribuído ao apóstolo Paulo. A
primeira, se constrói seguindo o modelo escravagista proposto por Roma, e da
estrutura separatista idealizada pelos judeus do primeiro século, ajudando a construir
a personalidade de Saulo, o fariseu. A segunda, estabelece uma ampla ligação entre
Paulo e o modelo cosmopolita de cidadania apresentado pela Grécia antiga, que lhe
dava condições suficientes para alcançar tanto judeus quanto gentios no novo
modelo de cidadania cristã (Fl 3,20), que visava promover a união entre os indivíduos.
Todas as características de Saulo contribuem para o surgimento de sua identidade,
como judeu e romano e de Paulo como grego e cristão.
159
O termo “cristão” foi utilizado pela primeira vez na cidade de Antioquia, como nos relata o livro de Atos dos
apóstolos 11,26.
468
160
Kyrios κύριος é um título que poderia ser utilizado somente ao imperador romano.
469
161
A paideia παιδεία (educação) era a maior virtude para os cínicos; segundo Diógenes, a educação é a graça
para o jovem, consolo para o ancião, abundância para o pobre e ornamento para o rico (Diógenes, Laertius, VI,
68). Monimus afirmava que era melhor ser cego do que não educado (MAZZAROLO, 2019, p. 16).
162
Assim, nascem contemporaneamente o indivíduo e o cosmopolita. O ser humano já não é o ser da cidade (o
ateniense já não é de Atenas...), mas um cidadão do mundo. E, como tal, eis um novo dogma que se anuncia:
todos os homens são iguais, irmãos, pois todos estão sob o mesmo logos, e isso - insista-se - nasce antes do
cristianismo, embora depois se fortaleça com ele, com outra fundamentação. Esta é a matriz, helenista e cristã,
da igualdade moderna (ASSMANN. 1994, p. 30).
163
A paideia παιδεία (educação) era a maior virtude para os cínicos; segundo Diógenes, a educação é a graça
para o jovem, consolo para o ancião, abundância para o pobre e ornamento para o rico (Diógenes, Laertius, VI,
68). Monimus afirmava que era melhor ser cego do que não educado (MAZZAROLO, 2019, p. 16).
164
O questionamento e o contraditório sempre fizeram parte da chamada identidade judaica. O que é ser
judeu? Quem define o que é ser judeu? Parece evidente que existem várias formas de ser judeu. Para muitos,
ser judeu é se sentir judeu e viver dentro dos valores éticos propostos pelo judaísmo (ASNIS, 2015, p. 77).
165
Segundo a tradição legal do judaísmo, são considerados judeus todos aqueles nascidos de mães judias ou
que tenham se convertido ao judaísmo através de um ritual próprio (GALINKIN, 2008, p. 90).
166
O período helênico marcou o início das atividades de conversão. Os judeus se mudaram para muitos lugares
fora da Judeia em decorrência das conquistas de Alexandre o Grande. Houve muitos casos de judeus que se
casaram com mulheres gentias que decidiram aceitar a religião de seus maridos (SCHLESINGER, 2011, p. 73).
470
167
É que, naquele mesmo dia, tinham-no visto na cidade com Trófimo, gentio de Éfeso, julgando que Paulo o
tivesse levado ao templo (At 21,27).
168
No contexto de Filemon 3,20, a palavra “cidade” aparece como tradução do termo grego politeuma.
Todavia, em língua portuguesa, não significa exatamente cidade, mas “comunidade de cidadãos”, pessoas que
pertence à polis grega (LARA, 2019, p. 131).
471
Mas o que para mim era lucro, passei a considerar perda, por causa de
Cristo. Mais do que isso, considero tudo como perda, comparado com a
suprema grandeza do conhecimento de Cristo Jesus, meu Senhor, por cuja
causa perdi todas as coisas. Eu as considero como esterco para poder
ganhar a Cristo (Fl 3,7-8).
Para Paulo, o jogo de identidades utilizado por ele durante o seu período
evangelístico, serviu para que ele pudesse levar o evangelho de Cristo aos gentios
sem que houvesse algum tipo de interferência por parte dos romanos, dos gregos ou
dos judeus.
O apóstolo Paulo não se intimida com tais aflições, e via no cristianismo a sua
cidadania através do evangelho de Cristo: “Não importa o que aconteça, exerçam a
sua cidadania de maneira digna do evangelho de Cristo [...] (Fl 1,27). A maior de
todas as formas identitárias de Paulo, é sem sombra de dúvidas a cristã, que dava a
ele uma cidadania eterna, celestial: “Mas a nossa pátria está no céu, de onde
também aguardamos um Salvador, o Senhor Jesus Cristo (Fl 3,20).
REFERÊNCIAS
questão que se impõem é de que, em curso dessas mudanças culturais e sociais, “os
modelos tradicionais e institucionais da religião não conseguem responder de forma
plena, segura e efetiva aos permanentes anseios humanos pela razão da existência”
(ADAM, 2019, p. 315). Se esse processo já se encontrava a pleno vapor antes da
pandemia, as limitações e, ao mesmo tempo, as oportunidades que surgem da crise
sugerem uma aceleração desse processo. Surgem novas dinâmicas de vivência
espiritual e religiosa, bem como novas propostas eclesiológicas que buscam
responder ao contexto presente. Pretendo, aqui, fazer algumas observações
preliminares sobre essas dinâmicas. Ressalto que são preliminares pois o processo
está em curso e o ritmo das mudanças é muito rápido. Ao que tudo indica,
continuaremos com as sociabilidades restritas até que uma vacina se torne viável e o
desafio será acompanhar as mudanças que se mostram a cada dia, a medida que esse
percurso vai se colocando diante de nós.
Quando a pandemia se instalou globalmente, o cenário religioso mundial já se
caracterizava como um ambiente de pluralismo religioso, no qual a bricolagem das
referências religiosas e a fluidez dos processos de identidade do indivíduo se fazem
presentes e, até mesmo, caracterizam o cenário. A “virtualização” da experiência
religiosa, ao mesmo tempo que ampliou o alcance das propostas, também lhe impôs
novas dinâmicas, possibilitando que, mesmo indivíduos que tenham alguma espécie
de afiliação religiosa ou denominacional, possam vivenciar sua espiritualidade a
partir, em paralelo ou mesmo apesar da instituição. Esses diferentes direcionamentos
buscam, de alguma forma, encontrar caminhos e respostas para que fiéis/crentes
possam lidar, da melhor forma possível, com a situação presente. Moisés
Sbardelotto, ao abordar a religiosidade online, já em 2012, já apontava que
Para que a fé possa ser vivenciada a partir de recursos virtuais, o desafio vai
além do conteúdo a ser compartilhado em redes sociais, sites ou plataformas de
encontros virtuais. Os diferentes direcionamentos na vivência da religião e/ou da
espiritualidade, buscados pelas pessoas em tempos de pandemia, intencionam
articular ideias do divino que não somente sejam significativas e façam sentido
dentro desse contexto, mas que de alguma forma proporcionem esse sentido,
orientem diante das incertezas do cenário mundial, que lhes confiram esperança e
propósito. E, uma vez que isso não mais pode ser feito na presença física e no amparo
da comunidade, o processo tende a tornar-se ainda mais individualizado e centrado
na experiência individual, conferindo maior agência e autonomia à pessoa, para optar
e direcionar sua própria trajetória.
Nesse sentido, os meios de comunicação e mídia se fortalecem como novos
ambientes, que facilitam e estruturam a interação e a comunicação humanas. Geram
477
não necessariamente um novo tipo de fé, mas uma nova situação social e cultural na
qual ela é definida e praticada.
indivíduo, ou seja, de suas escolhas pessoais. Se essas escolhas são orientadas por
tendências ou algoritmos, é um assunto ainda a ser estudado e os dados e indícios
dessa influência começaram a ser sentidos, pressentidos e descobertos nos últimos
meses. Esse é um importante fator a ser considerado, que entretanto, não será
possível aprofundar nesse texto.
O horizonte de possibilidades para as vivências religiosas e/ou espirituais, ao
invés de se reduzir nesse momento, parece estar em constante ampliação. No caso
da igreja luterana, conversando com ministros e ministras sobre o futuro próximo,
com a volta progressiva das celebrações presenciais, alguns/algumas afirmaram seus
planos de continuar com programações dirigidas e produzidas exclusivamente para o
ambiente digital. Ou seja, não pretendem necessariamente transmitir cultos
presenciais pela internet, mas continuar produzindo material e conteúdo para as
redes sociais e de streaming, engendrando em um novo paradigma eclesiástico, que
ainda não sabemos se constituem um alargamento das propostas de igreja existentes
ou uma nova igreja, 100% digital em suas programações.
O peso de uma maior individualização da fé não será demasiado?
Quando voltarmos, se voltarmos, (e me parece ser ponto pacífico que as coisas
não serão, ou já não são mais as mesmas), quais serão os desdobramentos das
práticas religiosas online sobre aquelas que acontecem/acontecerão offline? E quais
serão os deslocamentos que esse novo contexto irá até mesmo impor sobre a
experiência religiosa como a conhecíamos até então?
Este texto propõem mais perguntas do que respostas, não apenas por
estarmos vivendo ainda a pandemia em grande intensidade, mas também pela
velocidade das mudanças. No contexto da religião em ambiente virtual, tenho
acompanhado as mudanças e desenvolvimento nas dinâmicas de cultos e celebrações
ao longo desses meses e, provavelmente por conta da saturação, percebo que igrejas
e instituições estão constantemente reavaliando, revendo e readaptando suas
propostas. Vimos aqui alguns caminhos que parecem se abrir, como uma maior
agência do indivíduo sobre sua prática espiritual-religiosa, a aderência a propostas
mais holísticas de bem-estar emocional e espiritual, a virtualização da religião. Esses
novos caminhos podem vir a servir de material de reflexão para que igrejas pensem e
repensem seu papel na sociedade e na vida do indivíduo. Para tal, contam com o
auxílio da hermenêutica da religião vivida, que pode indicar possibilidades de
inserção e atuação a partir das mudanças que se impõem com a pandemia, tanto no
contexto cultural e social, quanto no comportamento, bem como o futuro pós-
pandemia.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
169
Cf. O GLOBO. OMS decreta pandemia mundial por novo coronavírus. O Globo, Rio de Janeiro, 11 mar. 2020.
Disponível em: https://oglobo.globo.com. Acesso em: 1 maio 2020.
170
Cf. VATICANO anuncia que celebrações da Semana Santa serão realizadas sem fiéis na Praça São Pedro. G1,
Rio de Janeiro, 15 mar. 2020. Disponível em: https://g1.globo.com. Acesso em 1 ago. 2020.
171
Cf. MICROSOFT diz que número de usuários do Skype aumentou 70% em meio à pandemia. Estadão, São
Paulo, 31 mar. 2020. Disponível em: https://estadao.com.br. Acesso em: 31 mai. 2020.
172
O clipping ou press clipping trata-se de uma atividade característica no jornalismo moderno e que consiste
no trabalho de pesquisar, selecionar, reunir e fornecer recortes de publicações de jornais, revistas ou outras
publicações periódicas sobre um determinado tipo de assunto para um cliente ou assinante. Com o avanço das
tecnologias no cenário global e uma maior consolidação do jornalismo no ambiente da internet, tornou-se
comum os termos e-clipping (eletronic clipping) ou clipping digital.
173
Trata-se de um mecanismo baseado em um motor de buscas, que reúne manchetes e editorias de
diferentes portais, sites e blogs de notícias. Diferente do Google Busca (google.com), o Google Notícias
recupera páginas prestadoras de informações qualificadas com base em uma criteriosa política estabelecida
por organizações de checagem de fatos. Cf. COMO as matérias do Google Notícias são selecionadas. Ajuda do
Google News. Disponível: https://support.google.com. Acesso em: 6 jul. 2020.
174
A dedução lógica para escolha das palavras-chave foi considerar os termos abrangentes sobre religião,
portanto, adotou-se na pesquisa: “fé” e “religião”. E para acompanhar estas primeiras palavras utilizou-se
483
100%
90%
80%
70% Sacrificial
60%
50% Passagem
40%
30% Orientação
20% Missional
10%
0% Iniciação
Expiação
Cúltico
176
Embora seja complexa uma classificação universal, buscou-se considerar os critérios de finalidade dos ritos
(CROATTO, 2010) diante das ocorrências encontradas, portanto: cúltico (celebração, comunhão, oração);
expiação (meditação, purificação, introspecção); iniciação (agregação, batismo, consagração) orientação
(aconselhamento, ensino, exortação); missional (agregação, conversão, doutrinação) passagem (maturação,
matrimônio, fúnebre); e sacrifício (beneficência, oferta, penitência).
485
CONSIDERAÇÕES FINAIS
177
VILARDAGA, Vicente. A fé resiste. IstoÉ, São Paulo, 22 maio 2020. Disponível em: https://istoe.com.br.
Acesso em: 21 ago. 2020.
178
Cf. CORRÊA, Júlia. Como a pandemia afeta a relação das pessoas com a fé e as práticas religiosas. Estadão,
São Paulo, 22 maio 2020. Disponível em: https://estadao.com.br. Acesso em: 20 ago. 2020.
486
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
ver com a relação do ser humano com um ser transcendente, ao passo que,
espiritualidade, não significa ligação nenhuma com um ser superior. Ela quer afirmar
sobre a possibilidade de uma pessoa mergulhar em si mesma, de toda vivência que
pode produzir mudança profunda no seu interior, levando-a à integração pessoal e
com outros seres humanos. Sendo assim, espiritualidade implica valores e
significados. É a dimensão que permite ao humano fazer a experiência da
profundidade, da captação do simbólico, de mostrar que o que move a vida é um
sentido para a sua existência.
Dito isso, ressaltamos o que afirma Antony:
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
liberdade, no Brasil onde o Poder Judiciário prende, não existem tratamentos para os
condenados, os alvarás de soltura são expedidos, o criminoso reincide na prática
criminal e novamente ocorrem as prisões sem a solução no que se refere à dimensão
social da pena exacerbadamente defendida pelo Direito Penal brasileiro. Em várias
fontes das chamadas literaturas apaqueanas, conta-se que em uma tentativa de fuga
por parte de presos na cidade de Jacareí-SP, em 1981, o próprio jurista Mario
Ottoboni (1932-2019), bem como o seu companheiro Franz de Castros Holzwarth
(1942-1981), ardentes defensores dos Direitos Humanos, colocaram-se como escudos
humanos para evitarem mortes em motim deflagrado, à época, sendo que após o
disparo de armas de fogo contra o comboio fugitivo, houve a morte de Holzwarth,
bem como de vários presos tendo, Ottoboni, sobrevivido. Esse fato, além de criar,
com base em uma perspectiva sociológico-religiosa, um mito de derramamento de
sangue ou martírio por parte do ato heroico de Holzwarth, também conferiu a
Ottoboni uma liderança para a criação das APAC’s com a nomenclatura inicial
“Amarás ao Próximo, Amarás a Cristo”, migrando, posteriormente para Associação de
Proteção e Apoio aos Condenados.
Desta feita, Ottoboni e Holzwarth são apontados como principais fundadores
do método APAC que teve suas primeiras unidades em São José dos Campos-SP e
Itaúna-MG, multiplicando-se nos estados e municípios acima apostos.
Os livros de Mario Ottoboni são de suma importância para entender a
taxonomia do método APAC dentre os quais destacamos: Vamos matar o criminoso?
(2006)179 e Ninguém é irrecuperável: APAC, a revolução do sistema penitenciário
(1997)180.
A FBAC181 (2019), no portal http://www.fbac.org.br, no link sobre os
elementos fundamentais do método APAC, disponível em
http://www.fbac.org.br/index.php/pt/metodo-apac, acessado em 14/11/2020, traz
em um quadro demonstrativo os doze elementos da metodologia APAC, a saber:
179
Vamos matar o criminoso?, publicada em 2001, é a obra em que o autor traz uma abordagem pática e
didática mostrando a valorização humana interdisciplinarmente com a mensagem do evangelho cristão visando
proporcionar ao apenado tanto o pagamento de pena à Justiça, quanto sua recuperação frente ao crime.
180
Ninguém é irrecuperável: APAC, a revolução do sistema penitenciário, de 1997, o autor aponta que o ser
humano é maior do que o erro (crime) que cometeu e, por conseguinte, tem total condições de reerguer-se
também por meio da religião.
181
FBAC (Fraternidade Brasileira de Apoio aos Condenados) é outra entidade que presta assistência e
consultoria administrativa, pedagógica, social e jurídica para as diversas unidades apaqueanas no Brasil e tem
sede em Itaúna-MG. Atualmente, a FBAC é presidida por Valdeci Antônio Ferreira, um dos principais
colaboradores contemporâneos do método APAC.
497
Fonte: http://www.fbac.org.br/index.php/pt/metodo-apac
182
A obra Manicômios, prisões e conventos, de Erwing Goffman publicado em 1961, apresenta aspectos de
identidade virtual e real dos indivíduos conceituando, ademais, estigmas que trazem reflexos com a ordem
social também apontado nos estudos de Durkheim.
183
Sistema penitenciário comum é classificado pela FBAC (Fraternidade Brasileira de Apoio aos Condenados),
bem como pelas unidades do método APAC (Centros de Ressocialização ou Reintegração apaqueanos) como
sendo unidades prisionais que não possuem o método APAC como forma de cumprimento de pena restritiva de
liberdade no sistema penitenciário brasileiro.
499
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
BOURDIEU, P. A economia das trocas simbólicas. 7. ed. São Paulo: Perspectiva, 2011.
214 p.
DURKHEIM, David Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo:
Martins Fontes, 1996.
GOFFMAN, Erwing. Manicômios, prisões e conventos. São Paulo: Perspectiva, 1974.
MEAD, George Herbert. Espiritu, persona y sociedad: desde el punto de vista del
500
(1999), Rego, Cunha e Souto (2007), Mitroff e Denton (1999), Zohar e Marshall
(2006), Bradley e Kauanui (2003), Souza, Gerhard e Pinto (2017).
O que podemos inferir é que a espiritualidade nos artigos, aparecem como um
elemento que está para além do espaço institucional religioso, e o seu cultivo não
depende dele. Porém, isso não quer dizer que está desvinculada do religioso. É
preciso ressaltar que o desafio conceitual e a delimitação do que seja espiritualidade
não é consensual nem mesmo na teologia e nas ciências da religião. Segundo Calvani
(2014), o termo é vago e impreciso, invoca diferentes situações e carece de uma
reflexão teórica capaz de apontar sua formação histórica, forma de desenvolvimento
e aplicações.
Em nossa análise, podemos identificar que mesmo com a tentativa de separar
religião e espiritualidade, o modelo de espiritualidade organizacional vem com uma
roupagem mítica numa tentativa de não ser mítica. Outra questão levantada na
pesquisa foi sobre o interesse/intencionalidade pela temática dentro das
organizações. Percebemos que são diversos, dentre eles o reconhecimento de uma
vida interior, que é alimentada pela realização de um trabalho com significado. A
espiritualidade é uma forma de dar significado ao que se faz, gerando um laço afetivo
mais forte, lealdade e mais produtividade; valorizando o colaborador não como um
recurso, mas como pessoa humana. (REGO; CUNHA; SOUTO, 2007).
Outros autores pontuam que a espiritualidade estimula a criatividade e a
inovação, bem-estar, e a eficácia nas tarefas (JULIÃO; NASCIMENTO-SANTOS; PAIVA,
2017). Salientam que a dimensão da espiritualidade (senso de comunidade, trabalho
com significado e vida interior) é influenciadora na criação de conhecimento,
contribuindo diretamente na eficácia organizacional (TECCHIO; CUNHA; BRAND,
2018).
Aqui gostaríamos de inferir que essa discussão colabora com a compreensão
do que seja uma espiritualidade não religiosa, como um “modo alternativo de manter
o que se entende por espiritualidade desvinculando-a das formas institucionalizadas
de religião” (CALVANI, 2014, p. 676). Conforme se pôde constatar, a discussão sobre
o tema espiritualidade está presente nas publicações no campo das ciências
administrativas e tem crescido na última década.
REFERÊNCIAS
TECCHIO, Edivandro Luiz; CUNHA, Cristiano José Castro de Almeida; BRAND, Josiane
Luisa. Espiritualidade nas organizações e criação de conhecimento. Organizações em
contexto, São Bernardo do Campo, v.14, n. 27, jan./jun. 2018.
VASCONCELOS, Anselmo Ferreira. The scope and implications of spirituality: a dual
approach. O&S, Salvador, v. 24, n. 83, p. 600-617, out./dez. 2017.
VASCONCELOS, Anselmo Ferreira. The spiritually-based organization: a theoretical
review and its potential role in the Third Millennium. Cadernos EBAPE.BR, Rio de
Janeiro, v. 13, n. 1, jan./mar. 2015.
ZOHAR, Danah; MARSHAL, Ian. Capital espiritual: usando as inteligências racional,
emocional e espiritual para realizar transformações pessoais e profissionais. Tradução
de Evelyn Kay Massaro. Rio de Janeiro: Best Seller, 2006.
508
tem provocado” (LIBÂNIO, 2011, p. 362). Nessa perspectiva, surge a vivência religiosa
da chamada Nova Era (New Age), “não se trata somente da superação do
Cristianismo por meio de uma nova religião universal, mas vive-se uma efervescência
mística muito mais ampla que o projeto de uma religião única” (LIBÂNIO, 1997, p.
15).
Nenhuma religião tem o monopólio da espiritualidade, pois ela é o caminho
codificado por cada ser humano, é a capacidade que o ser humano tem de diálogo
consigo, com o outro e com o espiritual, “essa dimensão espiritual que cada um de
nós tem se revela pela capacidade de diálogo consigo mesmo e com o próprio
coração, se traduz pelo amor, pela compaixão, pela escuta do outro, pela
responsabilidade e pelo cuidado como atitude fundamental” (BOFF, 2001, p. 80). A
espiritualidade é oposta ao sentido dominante que sempre imperou em várias
culturas e contextos diferentes, inclusive na contemporaneidade o que prevalece é o
espírito do mercado, que é marcado fortemente pelas relações de consumo, pela
concorrência e pelo negócio visando interesses e lucros, numa luta desenfreada do
individualismo. No ambiente plural e diverso que é a universidade, percebe-se que há
vertentes da religiosidade crente e secular entre os universitários. O jovem
contemporâneo está imerso em um mundo secular, em uma fase de busca por
conhecimento e de busca de sentido para a existência que enfrentará na fase adulta,
por isso busca firmar estes sentidos em ambientes que lhes proporcione segurança,
como a família e a religião; a religiosidade pode ser uma base de busca que a
juventude faz para “guiar-se por alguma direção para tomar decisões estratégicas
que serão determinantes para o resto de sua vida” (RIBEIRO, 2009, p. 110).
Historicamente, há uma predominância do sincretismo religioso, desde o
início da colonização do país, houve várias metamorfoses referentes à crenças
religiosas, como a sincretização de crenças indígenas, africanas ao catolicismo oficial,
mais tarde o princípio da laicidade norteou a instauração da República brasileira,
“ficamos intrigados com o crescimento dos ‘sem religião’ e, ao mesmo tempo, do
espiritismo; com o vigor e as combinações dos pentecostalismos cristãos, além das
crises e renovações do catolicismo” (PANASIEWICZ, 2015, p. 1861), entre os jovens a
categoria “sem religião” é um destaque, ela se dá de forma mais abrangente que em
outras faixas etárias.
Muitos jovens que se declaram “sem Deus”, “sem Religião”, desenvolvem,
talvez, seu ateísmo ou seu agnosticismo como uma rejeição, não especificamente
contra Deus, e sim contra as crenças que foram herdadas e as práticas das quais
participavam anteriormente como pertença familiar. Há um resíduo de crença em
algumas frases pronunciadas pelos jovens universitários pesquisados, “‘percebo Deus
como um ser pessoal’, ‘ter fé é mais importante que ter crenças e religiões’, ‘uma
crença ou ritual são verdadeiros se produzem efeito positivo em minha vida’”
(RIBEIRO, 2009, p. 162).
Na pós-modernidade a espiritualidade ganhou uma dimensão de libertadora
de qualquer realidade de aprisionamento, dentre elas a institucional. Ela busca a
liberdade até mesmo da realidade que a secularização impôs, a qual houve a
substituição do Deus transcendente institucionalizado por um deus imanente como a
513
REFERÊNCIAS
ECOLOGIA E ESPIRITUALIDADE
UMA INTERDEPENDÊNCIA A SER RESGATADA
Percebe-se que a ciência ecológica desde a criação de seu termo em 1869, pelo
biólogo alemão Ernst Haechel (1834-1919), vem sendo desenvolvida a partir de suas
raízes biológicas, encontrando abertura para novas percepções, que integram as
ciências naturais e sociais. Segundo Giardina (apud VATTIMO 2015, p.26), em suas
reflexões sobre o caminho da ecologia, esclarece que até a metade do século XX, a
ecologia era uma ciência empírica dependente da biologia e fundamentada pelo seu
516
184
O nascimento da ciência moderna foi precedido e acompanhado por um desenvolvimento do pensamento
filosófico que deu origem a uma formulação extrema do dualismo espírito/matéria. Essa formulação veio à tona
no século XVII, através da filosofia de René Descartes. Para este filósofo, a visão de natureza derivava de uma
divisão fundamental em dois reinos separados e independentes: o da mente (res cogitans) e o da matéria (res
extensa). A divisão cartesiana permitiu os cientistas tratar a matéria como algo morto e inteiramente apartado
de si mesmos, vendo o mundo material como uma vasta quantidade de objetos reunidos numa máquina de
grandes proporções (CAPRA, 2011, p. 35).
185
Homo Noeticus é um conceito que resume uma profecia antropológica apoiada por Pierre Teilhard
Chardin, que vê o Homo Noeticus como o ponto de chegada (“novo homem”) do futuro processo evolutivo da
espécie humana. O termo Homo noeticus foi usado por alguns expoentes das correntes da Nova Era para se
referir a um estágio evolutivo futuro da humanidade.
518
REFERÊNCIAS
186
A sugestão do nome de Hadot feita por Foucault ocorre em 1980, mas a eleição para concorrer à cadeira no
College de France acontece em 1982.
522
filosofia na Antiguidade, que conforme este filósofo, pode ser entendido a partir da
distinção entre o discurso filosófico e a prática vivida. São, portanto, exercícios.
Os exercícios espirituais são exercícios práticos, como os diálogos, na escola
platônica, ou a revisão dos atos diários e antecipação dos males, no estoicismo, que
põem em prática a escolha de vida, permitindo ao discípulo aprender como viver e
levar adiante aquilo que cada escola propõe. Eles também validam e fundamentam
as teses expostas pelos textos dos fundadores de cada escola ou movimento
Nesse sentido, há, mediante ao fundamento de cada escola proposta, uma
perspectiva de formação, obedecendo critérios que irão contribuir na vida
diretamente daquele que o pratica. Os exercícios espirituais praticados não ficam à
margem da conotação impressa pela a importância dos textos. Trata-se, sobretudo,
de confirmar esse caráter validador oriundo das teses desenvolvidas pela teoria.
Vejamos como Hadot os compreende a partir do seu estudo da Antiguidade e ainda a
complexidade em defini-los levando em consideração o sentido do significado do
termo espiritual:
Hadot reitera que por meio dos exercícios espirituais, há uma transformação
integral da maneira de viver do indivíduo. Trata-se “[...] de um esforço na direção da
tomada de consciência vivaz da totalidade” (Hadot, 2014a, p. 281). Esta perspectiva
percebida no pensamento helênico e, essencialmente, no estoicismo. A teoria à
serviço da vida filosófica eclodindo num só modo de viver. Sobre este modo estoico,
Hadot salienta que:
do logos. Assim, conforme Hadot, o filósofo estoico não é aquele que discursa sobre
os logos, mas, fala, vive no e enquanto logos.
De acordo com Hadot, a vida, a reflexão filosófica, bem como a elaboração
dos discursos estão estreitamente ligados aos exercícios e estes estavam presentes
em diversos materiais como os diálogos, anotações e cartas, por exemplo, com a
característica fundamental de ser uma prática filosófica, na qual um dos principais
objetivos era conhecer e curar os males da alma. O filósofo francês destaca que tal
prática contempla desde a tradição greco-romana até o âmbito do pensamento
filosófico moderno (final do século XVII, início do século XVIII) e contemporâneo (a
partir do século XIX), mesmo que, de certa maneira com menos intensidade.
Nestes dois últimos períodos citados acima – moderno e contemporâneo,
Hadot ressalta nomes expressivos no âmbito da história da filosofia como Descartes
(1596 -1650), Nietzsche (1844 -1900), Montaigne (1533-1592), Bergson (1859 -1941)
e Wittgenstein (1889 -1951), para citar alguns. Há, com bastante intensidade o
destaque ainda para a produção do poeta alemão Johann Wolfgang Von Goethe
(1749-1832) como um representante expressivo dos exercícios espirituais,
principalmente, a partir da perspectiva estética da natureza. Para estes pensadores,
filósofos e também os da Antiguidade, a atividade filosófica enquanto exercício
espiritual é uma prática exercitada, na qual se faz constantemente no conflito
necessário, mas não excludente, entre ação e discurso. É, portanto, como reitera
Hadot, para:
partir deste período – uma forma vivaz de filosofia que se ocupa com uma prática,
como exercício espiritual.
REFERÊNCIAS
DANILO KAMMERS
Mestrando em História das Teologias de Religiões
pela Faculdade EST – São Leopoldo/RS e Bolsista CAPES
[email protected]
RESUMO: Às vezes parece que a igreja está sempre um passo atrás, respondendo
perguntas que não se fazem mais, investindo em mídias já ultrapassadas,
menosprezando a individualidade como se houvesse um descompasso entre o
indivíduo religioso com sua experiência de fé e a instituição religiosa. Como a igreja
cristã pode ser “Corpo de Cristo” se não se compreende como “organismo vivo”, mas
apenas como “organização”? A presente comunicação pretende refletir a relação
entre a igreja institucional e experiência pessoal: como compreender a religião em
movimento? A vida humana que flui entre as instituições eclesiais nem sempre se
submete a ordem estabelecida pela estrutura cristalizada nas normas. O ser humano
busca na experiência pessoal com Deus sentido para a própria existência no mundo.
Poderemos verificar já no Antigo Testamento a relação entre a autonomia humana da
experiência de Deus e o posterior estabelecimento em espaços sagrados. A revelação
de Deus (hierofania) e a legitimação do espaço sagrado de culto, e o templo de
Jerusalém como local central de contato com o divino. Um povo que é nômade tem
um Deus que “caminha junto”, porém ao se estabelecer percebe um Deus que “mora
junto”. Já a experiência da cristandade tem Jesus Cristo como a revelação plena de
Deus, o Emanuel, Deus não está mais distante da vida humana porque Ele mesmo se
faz presente nesta história. Nesta correlação entre autonomia humana e instituição
religiosa, organismo e organização, Deus revelado e Deus oculto, sagrado e profano a
humanidade peregrina busca em suas experiências pessoais de fé repouso e
fortalecimento diante de suas mazelas.
INTRODUÇÃO
187
O altar edificado durante o caminho, na peregrinação do povo ou do indivíduo, quando estes tem uma
experiência com Deus, representa a multiplicidade de ambientes aonde o povo poderia legitimar a revelação.
Lugar de lembrança, primeiramente, de que Deus está antes em relação com o povo, do que vinculado
rigidamente a um determinado lugar. Este é um traço da essência divina, a fé baseada na proximidade
(SCHIMDT, 2004, p. 49-50)
529
DEUS CONOSCO
188
Por volta do ano 1000 a.C., foi instituída a monarquia de Israel, primeiramente com Saul (1Sm 28.31), depois
com Davi. No seu reinado, Davi expandiu o seu poder quanto às ocupações territoriais, o que foi importante
também para a fé de Israel. Davi fixou moradia em Jerusalém (2Sm 5.6ss) e no mesmo período levou a arca da
aliança (2Sm 6), transformando a cidade no centro cúltico da fé do povo e capital política do reinado (SCHIMDT,
1994, p. 26-28).
530
O SAGRADO E O PROFANO
A PORTA E A AUTONOMIA
189
As revoluções (tecnológica, política e religiosa) e a crescente urbanização nos trouxeram uma nova
compreensão espacial. O povo que uma vez foi peregrino de repente se organiza em aldeias fixas. A aldeia vive
do que planta e colhe, e o espaço daquele povo se configura entre a casa, o trabalho e o templo. Os lugares
parecem bem definidos: o lugar da habitação; do labor e da religião. O centro deste espaço é a vida do povo
em seu cotidiano. cf. LIBANIO, 2001, p. 27-31.
532
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
A BÍBLIA Sagrada. Tradução de João Ferreira de Almeida. Ed. rev. e atual. São Paulo:
Sociedade Bíblica do Brasil, 2003.
HERVIEU-LÉGER, Danièle. O peregrino e o convertido: a religião em
movimento. Petrópolis: Vozes, 2008.
LOHSE, Eduard. Contexto e Ambiente do Novo Testamento. São Paulo: Paulinas,
2000.
SCHIMDT, Werner H. Introdução ao Antigo Testamento. São Leopoldo: Sinodal,
1994.
SCHIMDT, Werner H. A fé do Antigo testamento. São Leopoldo: Sinodal, 2004.
GUNNEWEG, Antonius H. J. História de Israel: dos primórdios até Bar Kochba e de
Theodor Herzl até os nossos dias. São Paulo: Teológica, Loyola, 2005.
ROBINSON, John A. T. A face humana de Deus. Petrópolis: Vozes, 1977.
533
FORTE, Bruno. Jesus de Nazaré, história de Deus, Deus da história: ensaio de uma
cristologia como história. São Paulo: Paulinas, 1985.
DURKHEIM, Émile. As formas Elementares da Vida Religiosa. São Paulo: Paulinas,
1989.
BORTOLLETO FILHO, Fernando (Org.). Dicionário Brasileiro de Teologia. São Paulo,
SP: ASTE, 2008.
ELIADE, Mircea. O Sagrado e o Profano: A essência das religiões. São Paulo: Martins
Fontes, 2011.
INTRODUÇÃO
190
Por se tratar de uma tradução da palavra original em inglês - transhumanism - e ainda não constar
efetivamente no dicionário de português, observam-se controvérsias em relação ao Novo Acordo Ortográfico
para o correto uso do termo, se transhumanismo ou transumanismo. No entanto, a palavra “transumano” já
está no dicionário, conforme o Dicionário Priberam da Língua Portuguesa, onde se encontram os vocábulos:
“transumanar |z| v. tr. Dar natureza humana a; humanizar.” e “transumano |z| adj. Que vai além do
humano.”. Portanto, optou-se aqui por adotar a forma transumanismo (TRANSUMANO, 2020).
536
PÓS-MODERNIDADE E AMBIVALÊNCIA
191
Sir Julian Sorell Huxley vinha de família de intelectuais. Seu avô foi o biólogo evolucionista Thomas Henry
Huxley, defensor das ideias de Charles Darwin. Era irmão do escritor Aldous Huxley, e meio-irmão do também
biólogo e Prêmio Nobel de Fisiologia ou Medicina (1963), Andrew Huxley. Foi nomeado Cavaleiro da Coroa
Britânica em 1958, sendo o primeiro diretor-geral da UNESCO.
538
possibilidades de, e para, sua natureza humana” (HUXLEY, 1957, p. 13, tradução
nossa).192
Nos anos 1990, Max More (1964 -), filósofo britânico, delineou os princípios do
transumanismo, para quem se constitui uma nova filosofia de vida (HUMANITY +,
2016-2020), e em 2003, Nick Bostrom, PhD em Filosofia, Mestrado em Filosofia e
Física com tese em Neurociência computacional, Professor da University of Oxford, e
diretor do Future of Humanity Institute, acrescenta, sobre o Transumanismo:
CONCLUSÕES PRÉVIAS
192
We need a name for this new belief. Perhaps transhumanism will serve: man remaining man, but
transcending himself, by realizing new possibilities of and for his human nature.
539
profetizadas nas tradições apocalípticas dos apóstolos João e Daniel, sugerem que
alguns aspectos milenaristas estejam sendo manifestados, aqui e agora, com as
próprias mãos humanas, como tentativa de antecipação da era de mil anos de
benesses, em termos contemporâneos e culturais.
Em diálogo com o conceito de ambivalência proposto por Bauman, a
necessidade de administrar as inseguranças trazidas por uma modernidade líquida e
dura, pode favorecer com que se busque administrar a vida e a morte, acabar com as
incertezas e determinar o fim da história, com o apoio da ferramenta tecnológica.
Portanto, mais que estar restrito à Antiguidade, quando nasce o fenômeno
stricto sensu, a investigação do tema milenarista-escatológico se torna atual e
profícuo a fim de buscar-se respostas sobre certas dimensões das relações entre
religião e contemporaneidade à medida em que as propostas transumanistas
parecem retomar, de forma secularizada, as questões de felicidade milenar e
imortalidade percebidas no antigo movimento cristão. Ainda em pesquisa, esse
trabalho pode oferecer apenas reflexões iniciais, que podem ou não ser confirmadas.
REFERÊNCIAS
2045. 2045 Avatar project milestones. In: 2045 Strategic Social Iniciative. Disponível
em: http://2045.com. Acesso em 20 out. 2020.
FÁBIO L. STERN,
Doutor em Ciência da Religião
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
[email protected]
SILAS GUERRIERO,
Doutor em Ciências Sociais
Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
[email protected]
RESUMO: A Nova Era deixou de ser visível apenas entre grupos exclusivistas. Seus
valores começaram a ser disseminados na cultura mais ampla naquilo que foi
chamado de ethos da Nova Era. Esta pesquisa mostrará como esses valores são vistos
até mesmo no pentecostalismo brasileiro. Para isso, adotamos o coaching como
objeto. Retornamos brevemente à história do coaching e sua relação com a Nova Era.
Explicamos, então, como a difusão do ethos da Nova Era na sociedade em geral levou
à incorporação de práticas da Nova Era em formas mais tradicionais de religião.
Finalmente, discutimos como o coaching foi incorporado à pletora de bens religiosos
também oferecidos pelos pentecostais brasileiros, e como o coaching evangélico
mantém grande parte da lógica religiosa da própria Nova Era.
INTRODUÇÃO
Pesquisar a Nova Era no século XXI está muito diferente do que costumava ser
em momentos anteriores. Embora grupos e práticas de outrora, como comunidades
hippies e cultos a extraterrestres, continuem a existir, não se trata mais de focarmos
apenas os grupos milenaristas específicos. Precisamos agora nos ater em como os
valores da Nova Era, introduzidos desde a década de 1960, se difundiram na cultura
dominante.
Isso se deu pela característica econômica do Ocidente, o berço da Nova Era.
Embora a Contracultura de 1960 se opusesse ao consumismo, o capitalismo tem a
capacidade de se apropriar também de ideias a ele opostas (p. ex., ambientalismo,
diversidade cultural, medicinais tradicionais), convertendo tais ideais em mais uma
commodity. Mas ao passo que transforma algo em bem de consumo, o capitalismo
541
Segundo Berni (2008, pp. 88-89), por muitos anos a palavra coaching em inglês
foi usada quase que exclusivamente para se referir a treinadores físicos. Com a
difusão do ethos da Nova Era, porém, seu papel se expandiu. Hoje, coach é alguém
que ajuda seus clientes a descobrirem seus potenciais e resolverem problemas.
Foi na década 1980, de acordo com Reis (2014, p. 27), que o coaching
começou a ser visto dessa forma. Inicialmente os coaches se concentraram em
garantir o sucesso profissional de seus clientes, mas logo começaram também a
ajudar em suas conquistas pessoais e espirituais. Como a busca pela elevação
espiritual é central à Nova Era, o coaching foi adotado pelos novaeristas como uma
ferramenta essencial.
Berni (2008, pp. 30-43) atesta a relação entre coaching e Nova Era,
argumentando que a transdisciplinaridade e o Movimento do Potencial Humano são
suas bases. Durante as décadas de 1970 e 1980, tais movimentos influenciaram
diversas áreas do conhecimento. Dentro da psicologia, eles levaram ao
desenvolvimento da psicologia humanista, que enfatiza o lado saudável do paciente,
adotando uma perspectiva de que todos temos uma tendência natural ao bem-estar.
Segundo Hanegraaff (1996), a psicologia humanista serviu de trampolim para a
emergência de um ramo psicológico mais amplo: a psicologia transpessoal, que se
baseia na transdisciplinaridade e tem fortes influências da cosmologia novaerista.
Tais movimentos influenciaram mudanças na concepção do que é ser um líder.
A partir do ethos da Nova Era, o líder se tornou aquele que inspira seus subordinados,
e não apenas alguém responsável por eles. No típico orientalismo novaerista, grandes
figuras espirituais da Ásia inspiraram involuntariamente este novo conceito de
liderança (p. ex. Gandhi e Dalai Lama). Como explica Berni (2008, pp. 82-83), o bom
líder passou a ser visto como aquele que ouve sua “voz interior”. Em outras palavras,
alguém que busca o poder dentro de si.
Na década de 1970, muitos manuais de como conseguir “ouvir” tal “voz
interior” foram vendidos. Como demonstrou Hanegraaff (1996), a cultura da
autoajuda foi central à Nova Era. Ações afirmativas e métodos de ampliação da
consciência estavam em voga na literatura novaerista, visando o sucesso e o
autodesenvolvimento. A cosmologia da Nova Era considera que uma pessoa cria sua
própria realidade de acordo com a vibração de seus padrões mentais. Logo, a
542
COACHING EVANGÉLICO
RESISTÊNCIAS
REFERÊNCIAS
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‘um terror psicológico.’” Extra. Retrieved from
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mandou-para-cura-gay-um-terror-psicologico-24027151.html (accessed January 23,
2020).
Rosario, M. (2018). “Pastor e coach: Tiago Brunet acumula milhões de seguidores.”
Veja São Paulo. Retrieved from https://vejasp.abril.com.br/cidades/tiago-brunet-
coaching (accessed January 17, 2020).
547
INTRODUÇÃO
ateísmo que foi característico do séc. XIX, um ateísmo mais agressivo e radical, que
atualmente tem sido chamado de “novo ateísmo” ou “neoateísmo”.
Escritores neoateus se revestem de uma aura cientificista em suas publicações,
no entanto, muitas de suas alegações são rechaçadas por especialistas em genética
como sendo hipóteses não comprovadas e/ou mitos científicos já descartados. A
palavra “mito” vem do grego clássico (μυθος; transl.: mithós), e em seu sentido
original significa “narrativa” ou “história”. Mitos científicos são histórias relacionadas
com cientistas, com descobertas e experimentos científicos, ou com hipóteses e
teorias que são apresentadas como comprovadas pela Ciência sem que as mesmas
sejam de fato reais ou tenham sido confirmadas experimentalmente. De acordo com
Douglas Allchin, mitos científicos são: “Histórias populares da Ciência que
romantizam os cientistas, inflam o drama de suas descobertas e lançam os cientistas
e o processo da Ciência em proporção monumental... tudo para contar uma boa
história” (ALLCHIN, 2003, p.329, tradução nossa).193
Assim, foram estabelecidos três objetivos principais para tentar compreender
a gama de aspectos que estão relacionados com o discurso neoateísta, são eles: a)
conhecer a origem e o desenvolvimento do discurso neoateísta; b) averiguar o
embasamento científico desse discurso sob a perspectiva de descobertas no campo
da Genética; e c) compreender a influência do discurso dos novos ateus e o modo
como ele mantem sua hegemonia no sistema superior de ensino. Desse modo,
abordamos questões que vão desde o surgimento da primeira teoria científica
moderna e a gênese da teoria evolutiva, passando por questões como as leis
mendelianas, as hipóteses neodarwinianas, as comparações entre genoma e as
implicações da Epigenética, até chegar na análise dos sistemas de controle dos
discursos descritos por Michel Foucault (1926-1984) no livro “A Ordem do Discurso”
publicado em 1970. Investigando, por fim, as consequências da hegemonia das
narrativas dos novos ateus para a Academia e para a sociedade de modo geral.
193
ALLCHIN: “popular histories of science that romanticize scientists, inflate the drama of their discoveries, and cast
scientists and the process of science in monumental proportion. [...] all for the sake of telling a good story”.
549
194
STARK: “The objections raised by many biologists and geologists in Darwin’s time–it was not merely that Darwin’s
claim that species arise through eons of natural selection was offered without supporting evidence, but that the
available evidence was overwhelmingly contrary. Unfortunately, rather than concluding that a theory of the origin of
species was yet to be accomplished, many scientists urged that Darwin’s claims must be embraced, no matter what”.
550
CONSIDERAÇÕES FINAIS
não serem explicações que possuem uma ancoragem científica, elas cumprem o
papel de apresentar supostas respostas naturalistas, que representam simplesmente
argumentos diferentes daqueles que muitos acreditam ser a “versão religiosa”. A
partir do surgimento e do suposto embasamento científico para as versões
naturalista, aos poucos, os acadêmicos deixaram de se perguntar qual discurso era
mais lógico? O naturalista ou o “religioso”? Qual a explicação mais cientificamente
fundamentada? A Academia passou a adotar as versões que, antes de mais nada, se
opunham à “versão religiosa” de criação, de planejamento. Talvez isso ocorra porque
a mente humana tem uma tendência a trabalhar com dicotomias (luz-escuridão,
quente-frio, esquerda-direita, amor-ódio, justo-injusto, certo-errado...). E talvez, por
isso os mitos e o discurso antirreligioso concebidos no século XIX continuaram sendo
reproduzidos nos séculos seguintes por escritores militantes do ateísmo e por
acadêmicos cientificistas.
Chega a ser chocante para um principiante em pesquisas científicas como ele
não consegue encontrar provas empíricas do materialismo proposto pelo
neoateísmo. E ainda mais surpreendente é ver um número incomensurável de provas
de um planejamento e ordenamento do universo e da vida. E em verdade, se alguém
se interessar em estudar a história dos grandes cientistas e pensadores da
humanidade verá que raríssimos deles foram ateus (ou permaneceram ateus até o
final da vida).
O que podemos deduzir como um dos pontos mais relevantes desse nosso
amplo estudo é a necessidade patente de que haja uma nova abertura para
metodologias e premissas que possam conceber algo além de concepções
materialistas. Com isso, não se pretende esclarecer os fenômenos em sua totalidade,
oferecendo uma resposta definitiva para eles, antes disso, trata-se de pleitear a
possibilidade de usarmos uma explicação mais racional para a origem do que vemos,
tocamos e medimos. Talvez, com o olhar renovado, possamos compreender melhor
aquilo que está à nossa volta, superando esse aparente momento de estagnação
científica, onde temos mais desenvolvimento tecnológico e menos reflexão sobre a
origem da vida e do Universo.
É válido destacar que o presente estudo não teve como objetivo refutar o
paradigma da Evolução. Não obstante, o que acreditamos ter sido demonstrado
nessa pesquisa foi como ocorreu a hegemonia desse paradigma na Academia, como a
Genética não apoia o Darwinismo (e nem mesmo o Neodarwinismo), e como o
sistema de controle social do discurso garante a adesão contínua ao evolucionismo
darwiniano, mesmo que as descobertas genéticas já o tenham desacreditado.
Evidentemente que as mais de duzentas e trinta páginas que compõem essa
dissertação (dais quais, quinze são só de referências bibliográficas) não poderiam ser
detalhadas no número limitado de laudas permitido nesse artigo, por isso convido a
todos os leitores a conhecer a pesquisa completa para que façam seus próprios
estudos nos assuntos que aqui abordamos. Verão que nada do que foi apresentado é
novidade, e que as conclusões desse estudo não são discurso religioso disfarçado de
Ciência. O que foi explanado aqui atendeu todos os rigores científicos exigidos.
553
REFERÊNCIAS
CLÓVIS ECCO
Doutor em Ciências da Religião pela PUC Goiás e
Coordenador do Programa de Ciências da Religião da PUC Goiás
[email protected]
INTRODUÇÃO
Uma vez que já foram realizadas outras pesquisas de campo com pessoas que
se autodenominam sem religião, optou-se por conceder voz aos estudantes e
profissionais operadores das Ciências da Religião. Tal tarefa emerge no intuito de se
buscar descortinar o cenário atual, marcado tanto pelo discreto acento do ateísmo e
pela presença mais expressiva dos sem religião, desde a rede de significados
apresentados pelos profissionais da área. A saber: trata-se de investigar a percepção
que os(as) pesquisadores(as) apresentam acerca dos sem religião. Nesse intuito foi
elaborado um roteiro de entrevista com cinco questões abertas a tratar diretamente
as temáticas do ateísmo e dos sem religião. Temáticas estas, caras à presente
pesquisa.
Foram entrevistados(as) ao todo dez docentes e dezesseis doutorandos(as)
pertencentes a dois programas de pós-graduação em Ciências da Religião no Brasil.
As entrevistas ocorreram via presencial mediante a gravação dos áudios e via remota
por meio da utilização de emails. Optou-se por trabalhar com entrevista narrativa,
uma vez que essa possibilita a análise mais acurada e em profundidade do discurso
trazido à tona por meio das respostas/relatos dos(as) participantes de pesquisa.
Ademais, tal método possibilita que surjam narrativas importantes à compreensão do
fenômeno dos sem religião, as quais podem incorporar as vivências e concepções
pertinentes a cada participante em sua experiência como discente ou como docente.
195
Segundo os dados do IBGE (2012), são mais de quinze milhões de pessoas que em 2010 se declararam sem
religião. Para Vieira (2018, p. 64), nos últimos decênios “a média de crescimento dos sem religião é
continuamente superior à da população brasileira [...]”.
556
196
A sistematização desses passos deu-se em sintonia com a obra de Bauer e Gaskell (2008).
557
Dos dados coletados por meio das entrevistas propõe-se aqui abordar aqueles
referentes à compreensão e à concepção dos sem religião. Trata-se dos relatos
tangentes às perguntas 6 e 7 do roteiro de entrevista:
Questão 06- Estabeleça distinção (aproximações e distanciamentos) entre o ateísmo,
o agnosticismo e os sem religião.
Questão 07- Segundo os dados do Censo Demográfico 2010, tem crescido o número
de pessoas que se reconhecem sem religião. Na sua percepção, como se pode
conjugar ateísmo e os sem religião?
Uma vez tabulados os dados levantados, delinearam-se os dois gráficos
apresentados a seguir:
a b c d e f g h i j k l m n o p
Obs.: a) Os sem religião podem até crer, mas não possuem prática religiosa e não
participam de religião organizada.
b) O sem religião não possui adesão à crença ou possui crenças tradicionais
vagas.
c) Os sem religião são os sem instituição, mas têm uma crença. Não se filiam a
uma instituição.
d) O sem religião pode acreditar em algo, há possibilidade de crença (sagrado,
sobrenatural, divindade). Entretanto não segue nenhuma instituição
hierárquica.
e) O sem religião busca não estar vinculado a nenhuma instituição religiosa.
f) Sem religião: definição muito polêmica, categoria imprecisa.
g) Os sem religião apresentam postura crítica e de descrença frente às
religiões institucionais e das práticas das instituições.
h) O sem religião positivamente valoriza a liberdade do ser humano.
558
12
10
6 5
4 3
2 2
2 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 1
0
Respostas dos(as) doutorandos(as)
a b c d e f g h i j k l m n o p q r s t
Obs.: a) O sem religião transita por lugares. Sem instituição, sem vínculo com a
instituição, sem religião institucionalizada.
b) O sem religião apresenta a não crença específica em alguma coisa.
c) O sem religião pode ou não acreditar, ter ou não ter uma crença.
d) Os sem religião não fazem parte de uma religião institucionalizada, mas
constituem uma crença em si.
e) O sem religião é o desprendido da religião, mesmo tendo sua
espiritualidade.
f) Os sem religião são um grupo mais expressivo que os ateus.
g) Os sem religião são uma grande maioria. Grupo confundido com os ateus.
Os sem religião negam a institucionalidade.
559
• Embora não haja consenso acerca de uma definição para os sem religião,
encontra-se bastante consolidada a noção segundo a qual os sem religião
não apresentam vínculo institucional e podem ter ou não ter crença em
relação ao divino. Consequentemente, apresentam atitude de negação e
de distanciamento das instituições e das doutrinas tradicionais. Vale
ressaltar: a não pertença institucional não implica a não crença. Antes, abre
espaço para a possibilidade da existência de crenças pessoais.
• Há um olhar de valoração positiva acerca das pessoas sem religião ao se
considerar característica desse coletivo o exercício da liberdade – inclusive
liberdade da não necessidade da religião. Os sem religião não são menos
reflexivos do que os ateus e os agnósticos. Assim sendo, reconhecer-se sem
religião não significa postura adotada mediante carência e/ou incapacidade
de se debruçar sobre o estudo de doutrinas, normas e dogmas das
religiões.
• Ênfase deve ser dada para o que aqui se denomina, ainda que
provisoriamente, postura nômade do sem religião: nômade institucional,
nômade de pertença, nômade de crença. Poder-se-ia pensar aqui da
560
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
197
NUNES, Marise Eterna, Corpo e espiritualidade nas perspectivas cristã e em Core Energetics. Dissertação
(mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Goiás, Escola de Formação de Professores e Humanidades,
Goiânia, 2020. 175 f.
564
numinosa para o sentimento de “humildade” religiosa. (OTTO, 2007,
p. 52)
ABORTO
Um outro aspecto abordado por este grupo foi o medo pela discriminação e
violência diante do cenário social e político vivido atualmente no Brasil. Essa
preocupação é pertinente diante de dados divulgados pela mídia.
Dados aos quais o UOL teve acesso revelam, contudo, uma questão
alarmante: 8.027 pessoas LGBTs foram assassinadas no Brasil entre
1963 e 2018 em razão de orientação sexual ou identidade de gênero.
Parte dos dados, inéditos, foram tabulados no ano passado por Julio
Pinheiro Cardia, ex-coordenador da Diretoria de Promoção dos
Direitos LGBT do Ministério dos Direitos Humanos, e repassados ao
UOL. Ele formulou o relatório a pedido da Comissão Interamericana
de Direitos Humanos no final de 2018 e o entregou à AGU
(Advocacia-Geral da União). Esses dados estavam em poder do
governo federal, que nos últimos anos decidiu cancelar a divulgação
dos relatórios sobre o assunto. No documento, Cardia somou as
denúncias de assassinato registradas entre 2011 e 2018 pelo Disque
100 (um canal criado para receber informações sobre violações aos
direitos humanos), pelo Transgender Europe e pelo GGB (Grupo Gay
da Bahia), totalizando 4.422 mortos no período. Isso equivale a 552
mortes por ano, ou uma vítima de homofobia a cada 16 horas no
país. (PREITE SOBRINHO, 2019)
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
mil-lgbt-desde-1963-governo-dificulta-divulgacao-de-dados.htm?cmpid=copiaecola.
Acesso em: 7 jan. 2020.
SILVA, L. R. T. A corporeidade de jovens católicos pertencentes à Renovação
Carismática. 2015. 117 f. Dissertação (Mestrado em Educação Física) – Faculdade de
Educação Física, Universidade de Brasília, Brasília, DF, 2015. Disponível em:
http://repositorio.unb.br/handle/10482/18710. Acesso em: 19 nov. 2019.
WHO. World Health Organization. Amendments to the Constitution. Geneva: WHO,
1999. Disponível em: http://apps.who.int/gb/archive/pdf_files/wha52/ew24.pdf.
Acesso em: 19 nov. 2019.
ZILLES, U. Espiritualidade cristã. In: TEIXEIRA, E. F. B.; MÜLLER, M. C.; SILVA, J. D. T.
(Org.). Espiritualidade e qualidade de vida. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2004. p. 10–22.
573
INTRODUÇÃO
198
Para nós, os principais argumentos para a composição dos “sem religião” na última década remetem às
origens da sociedade moderna, estando entre eles: a) o primado do racionalismo a partir dos séculos XVII e
XVIII; b) a construção dos direitos políticos e a invenção do “indivíduo”; c) as revoluções materialistas; d) o
fenômeno da secularização; e) o colapso da plausibilidade nos discursos; f) a crise nas instituições; g) o
crescente monopólio da identidade ante a comunidade; h) a emancipação feminina; i) a reconfiguração dos
núcleos familiares; j) e, enfim, a globalização e o multiculturalismo.
575
informações sem sentido para a vida concreta, para o dia a dia das relações que se
estreitam, para as composições ensaiadas e para a nova formação social daí derivada,
composta não simplesmente por organismos vivos, mas por humanos. No mundo dos
humanos, então, os conceitos devem ser encarados como maleáveis, para não dizer
completamente fluidos, ao ponto de múltiplas identidades poderem confluir num
mesmo sujeito.
princípios religiosos. Note-se, por exemplo, como nas pesquisas que tivemos em
conta199 predominam manifestações que relacionam religião e amor ao próximo,
religião e uma sociedade mais justa etc. Apesar de se autodefinirem como “sem
religião” tais indivíduos – e com eles, provavelmente, uma parte significativa dos
consultados pelo censo de 2010 – permanecem orientando suas vidas por fontes de
legitimação e sentido com origem religiosa; mais especificamente, com origem cristã.
199
Em outras oportunidades nos deparamos com o problema dos “sem religião”, como é o caso da entrevista
realizada ao catalão Marià Corbí, que também se desdobrou num artigo (cf. MARTINS FILHO; ECCO, 2017 e
2018), ou da participação na pesquisa conduzida pela professora Carolina Lemos, que resultou na publicação
de um livro (LEMOS; SOUSA; MARTINS FILHO, 2018).
578
parte das festas populares brasileiras, tenham estas mantido ou não sua relação com
o âmbito institucional da religião).
Diante do que dissemos até aqui, perguntamo-nos:
Seja pelas vias da tradição familiar, tema ao qual retornaremos a seguir, seja
pelo que acabamos de refletir acerca do fundamento moral do Ocidente e do
significado cultural da religião, ao tomarmos mais de perto o depoimento dos que se
intitularam “sem religião” é impossível não considerarmos o predomínio da matriz
cristã. Daí franquearmos a questão, para a qual honestamente não possuímos uma
resposta definitiva: estamos mesmo diante de um cenário realmente plural no que
tange à esfera da religião ou, escamoteado por debaixo do apenas aparente
pluralismo perdura a manutenção do cristianismo como religião hegemônica, o que
neste momento denominamos monoculturalismo cristão?
Este tópico, reproduz com fidelidade o atual estado da nossa reflexão.
Conforme as evidências com as quais estabelecemos contato, o superficial pluralismo
religioso explicitado no caso do Brasil parece esconder, na verdade, a presença
massiva do cristianismo na matriz religiosa brasileira, com destaque inclusive em
modalidades religiosas aparentemente mais distantes, como é o caso de
espiritualismos como o espiritismo, a umbanda e o candomblé. Para além das
referências a um Deus que é Pai, todo-poderoso, criador, fonte do Bem,
Misericordioso e, até mesmo, trinitário, todas retiradas das bases mais fundamentais
do cristianismo, tal impostação também se faz presente nas ritualidades e
simbologias: cruzes, velas, imagens, pinturas e, o que nos chamou especial atenção, a
Bíblia.
Assim, não estaríamos simplesmente falando do que já se preconizou pelo
sincretismo religioso, especialmente em vista da constituição de uma ritualidade
mista, oriunda da mescla entre alguns simbolismos típicos dos cultos africanos e o
catolicismo colonial, mas do uso direto de orações e referências cristãs no contexto
de cultos de religiões cuja doutrina afasta-se diametralmente do cristianismo (e o
exemplo da reencarnação é o mais emblemático na relação entre os chamados
“espiritualismos” e o catolicismo – embora haja referências bíblicas que possam ser
utilizadas como fundamento para diferentes interpretações do que seria a vida após
a morte). Curiosamente, o mesmo processo de construção mista ocorre junto aos
“crentes sem religião”. Entre os entrevistados por nossas pesquisas, muitos foram os
que responderam praticar a sua crença rezando um “Pai nosso” ou uma Ave-Maria.
Outros mencionaram ler a Bíblia com frequência, além de pautar a sua vida a partir
dos ensinamentos dela extraídos. Em resumo, não somente devemos falar em
“crentes sem religião”, o que nos levaria ao conceito já explicitado de “religiosos
desinstitucionalizados”, mas de “cristãos sem instituição”, que, embora recusem
objetivamente a sua filiação institucional, continuam cristãos de um ponto de vista
essencial. Há, portanto, pluralismo com a mesma intensidade com que também há
579
monoculturalismo, numa leitura monolítica ou, na melhor das hipóteses, como vimos,
relativa à existência de uma base comum.
REFERÊNCIAS
BARRETO, Tobias. A Cultura Acadêmica. Recife, ano I, vol. I, jul-ago, 1904. pp. 3-18.
BERGER, Peter Ludwig. O dossel sagrado: elementos para uma teoria sociológica da
religião. Tradução de José Carlos Barcellos. São Paulo: Paulinas, 1985. (Coleção
sociologia e religião; 2)
BITTENCOURT FILHO, José. Matriz religiosa brasileira: religiosidade e mudança social.
Petrópolis: Vozes; Rio de Janeiro: Koinomia, 2003.
CANCLINI, Nestor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da
modernidade. Tradução de Heloísa Pezza Cintrão, Ana Regina Lessa; tradução da
introdução de Gênese Andrade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
2011. (Ensaios Latinoamericanos, 1)
CORBÍ, Marià. Hacia una espiritualidad laica: sin creencias, sin religiones, sin dioses.
Barcelona: Herder Editorial; Grammata.es, 2007.
581
A RELIGIOSIDADE NO CARIMBÓ
costumes e crenças religiosas. Por mais que vivessem uma vida dura, sem liberdade,
sem autonomia, longe da sua terra natal, eles tinham os seus raros momentos de
descanso, necessários à produtividade. Eles não abandonaram a sua cultura,
aproveitando o pouco tempo livre para realizarem os rituais de veneração aos
ancestrais, bem como, os seus momentos de lazer com os seus batuques, músicas e
danças (SALLES, 1971, p.187).
Boa parte deles, ao serem catequizados pela religião católica oficial preferiam
adorar os santos negros, por acreditar que eles poderiam compreender melhor a sua
vida dura, as suas angústias, pois, consideravam que havia uma maior aproximação
com os santos da sua etnia. Conforme destaca Vanildo Palheta Monteiro (2016,
p.101) “Desse modo, as invocações dos santos negros não o eram apenas pela
afinidade epidérmica ou pela identidade de origem geográfica, mas também pela
identidade com as suas agruras”.
Maria Cristina Caponero (2009, p.119), destaca que São Benedito é
reverenciado em diversas culturas populares, dentre elas o Carimbó na Região Norte,
e a Congada na Região Centro-Oeste. Desse modo, percebe-se o sincretismo
religioso, pois, observam-se aspectos das religiões de matrizes africanas, com os
rituais de devoção aos ancestrais, se entrelaçando com os aspectos da religião
católica, visto que, esse santo foi beatificado pela Igreja Católica em 25 de maio de
1807. Esse sincretismo é denominado de “catolicismo popular”, na qual a religião
dominante engloba elementos de outras religiões populares, como práticas,
costumes, rituais, símbolos. Brandão (1986) destaca que a cultura popular adere aos
símbolos e rituais da religião erudita, no entanto, traz no seu bojo, os seus próprios
significados.
O catolicismo pressupõe valores e costumes que, quando confrontados com
etnias de origens diversas, acaba se mesclando com novas culturas. Apesar de
hegemônico na colônia, o catolicismo não conseguiu se impor plenamente. Houve
espaço para o sincretismo à medida que não se conservou a religiosidade como nos
locais de origem, mas ganhou novas características ao se defrontar uma com as
outras formas religiosas, transcendendo a configuração anterior ao contato. Entre as
heranças culturais portuguesas na religiosidade brasileira está o forte apego aos
santos (SOUZA, 2002). Nesse caldeirão religioso, os afrodescendentes participavam
de certas irmandades em devoções a determinados santos utilizados para catequizá-
los como Santa Efigênia, Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. E dessas
irmandades surgiram as Folias, as Congadas, as procissões, os folguedos, que
consistiam em manifestações coletivas de louvores aos santos negros. Nessas festas
religiosas, a posição predominante apontava para as suas raízes africanas, evidentes
na dança e nos ritmos, embora fossem importantes veículos de cristianização dos
africanos e dos seus descendentes (SIMONI, 2017, p.65).
Na cidade de Santarém Novo (PA), o Carimbó da Irmandade de São Benedito é
uma festa bastante prestigiada. Os relatos orais e alguns documentos apontam ser
uma festa centenária. Essa festa trata-se, portanto de uma cultura ancestral que traz
em seu bojo todo um simbolismo religioso e cultural. “Em sua estrutura, a festividade
pode ser dividida nos seguintes momentos: as alvoradas, o carregamento do mastro,
586
natureza, sendo capazes de transitar por dois mundos, o mundo físico e o mundo
sobrenatural. A natureza é considerada encantada e viva, com sentimentos e
vontades, parecidas com as humanas (alegria, tristeza, ira). Por esse motivo, há
nessas regiões, grande respeito pela natureza, uma verdadeira sacralização e temor
frente a ela.
A religião cristã evangélica, destaco aqui, a pentecostal, não “caminha”
harmoniosamente com o carimbó, pois, as visões de mundo, de sociedade, de modos
de viver são diferenciadas, causando assim, determinados atritos. Os pentecostais,
buscam que os seus membros se afastem dos “desejos carnais”, ou seja, que seus
adeptos tenham um estilo de vida sem vícios e desejos lascivos. O Carimbó, é uma
cultura alegre, regada a muita dança, diversão, uso de bebidas alcoólicas e
entorpecentes, além da adoração a diversos santos. As religiões trazem em seu bojo
uma maneira de se relacionar com o mundo, com o ser transcendental, e com o
outro. A conversão traz impactos diretos ao carimbó, devido o radical afastamento do
mestre ou do integrante. O carimbó é uma cultura repassada por ancestrais,
necessitando que as novas gerações deem continuidade para que ela não venha a
desaparecer. Essa problemática foi apontada por Bruna Muriel Huertas Fuscaldo
(2015), onde apresenta essa dicotomia entre o sagrado e os aspectos profanos do
carimbó.
REFERÊNCIAS
Assim, tem-se que desvincular a ideia de Deus com o mal, pois o mal deve ser
tratado em si mesmo, em um primeiro momento. Aqui o nosso autor introduz o
conceito de ponerologia. Para ele:
CONSIDERAÇÕES FINAIS
No fim desse itinerário, pode se perceber que uma teodiceia atualizada mostra
a possibilidade de assegurarmos a coerência de Deus como o Antimal. A revelação de
Deus ao mundo se dá como amor. Deus não vem mostrar coisas para os homens e
mulheres, para que assim se passe a conhecer coisas que jamais conheceria. Sua
manifestação no amor visa os tornar seres humanos mais autênticos e melhores.
Deus está interessado nisso e luta continuamente contra o mal que atinge tão
fortemente e misteriosamente a vida.
O Deus Antimal nos convoca na luta contra todo e qualquer mal no mundo,
especialmente aquele que ataca o ser humano. A constatação da inevitabilidade do
mal, que aparentemente poderia nos acomodar, ao contrário, deve nos empenhar
continuamente no trabalho contra o mal. É uma tarefa solidária em que somos
convocados a unir todo esforço humano. Esse é o critério mais definitivo de nossa fé
em Deus. Tarefa essa, não fadada ao fracasso, mas alimentada fortemente pela
esperança.
Assim sendo, Esperança fundada numa pessoa concreta, Jesus de Nazaré, que
“passou fazendo o bem” (At 10, 28). Jesus é o modelo sempre vivo e inesgotável que
nos protege contra todas as manipulações das tendências e ideologias. O Deus que
Ele prega e pratica se opõe a todo mal e se coloca do lado de todos os que o
padecem, especialmente ou últimos. Por isso, a teodiceia que quer ser cristã me
coloca nesse dinamismo do Deus Antimal, que busca iluminar e sustentar a existência
humana.
596
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
vive, Bonaccorso, discípulo de Aldo Natale Terrin, tem dedicado grande parte de sua
pesquisa aos estudos acerca do rito. Podemos encontrar entre a bibliografia de sua
autoria, pelo menos oito títulos dedicados ao rito. A saber: 1) L'estetica del rito:
sentire Dio nell'arte; 2) La liturgia e la fede: la teologia e l'antropologia del rito; 3) Il
dono efficace: rito e sacramento; 4) Il rito e l'altro: la liturgia come tempo linguaggio
e azione; 5) La liminalità del rito; 6) Il corpo di Dio: vita e senso della vita; 7) Rito; 8) La
fede e il telecomando: televisione, pubblicità e rito. Todos em diálogo com a
antropologia, a história, a biologia, a neurociência, a psicologia, a sociologia, a
linguística, a filosofia, a teologia, a fenomenologia e a arte, entre outras.
O Ritual das Exéquias (REx) católico romano passou por diversas reformas
desde os primeiros registros de sua existência, no século VII, até sua última edição,
em 1969, a pedido da Constituição Dogmática Sacrosanctum Concilium (n.81-82). De
acordo com Vida (2016, p.11-16), a ênfase dos ritos fúnebres estava posta,
inicialmente, sobre a dimensão pascal da morte cristã. Contudo, no alto medievo, as
preces exequiais exprimiam mais a necessidade de libertação dos castigos pós-morte
e da purificação das almas por meio de sufrágios que a índole pascal. A Sacrosanctum
Concilium (n. 81) exigiu que tal índole fosse devolvida ao centro dos rituais fúnebres.
Sobre a índole pascal das exéquias, o subsídio “Nossa Páscoa” (2003, p.7), proposto
pela Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) para as celebrações junto aos
defuntos, apresenta a seguinte síntese:
deseje provocar alguma reação no sagrado, mas que tenha como função primordial
agir sobre as emoções humanas daqueles que o executam.
Sempre pensamos que o tempo fosse um rio fluindo sem parar e nós,
navegantes, indo do passado para o futuro. E agora se diz que do
futuro, do ainda não, vem alguma coisa. Quebra-se a continuidade do
passado, rasgam-se as mortalhas herdadas, rompe-se o domínio dos
mortos. Surge um tempo novo, não da história dos homens, mas da
graça de Deus, do inesperado, do Mistério.
200
Tradução nossa.
600
201
Questão tratada por Terrin (2004) na obra: Antropologia e horizontes do sagrado, p. 376-405.
601
CONSIDERAÇÕES
rito religioso pode ser compreendido como uma triangulação entre: ação sagrada (o
que se faz), emoção religiosa (o que se sente) e razão teológica (o que se entende).
Contudo, a dimensão do sentir é primordial. Nesse sentido, é estar vivo é sentir-se
vivo. O suicídio, nesse caso, é a prova de que é mais importante sentir-se vivo do que
estar vivo. Os valores – as coisas que importam – são definidos pelas emoções. Por
isso, o autor defenderá que diante do rito só existem duas possibilidades: ser imerso
por ele ou ser expectador dele. É como viver no presídio ou ser vizinho a ele. Duas
experiências completamente diferentes.
O rito só pode ser vivido quando somos imergimos nele. Frente à falência da
vida, a antífona apresenta vida nova, de mais qualidade e eterna. A procissão não
prescinde da compreensão racional, mas prescinde de que aqueles que conduzem a
urna mortuária sintam que entregam seu defunto aos anjos que o levarão ao paraíso,
onde será acolhido pelos moradores mais ilustres da cidade santa. A caminhada
proposta pelo ritual das exéquias, portanto, dá-se no limiar, no entremeio posto
entre a terra, onde a morte silenciou o corpo vivente, e o paraíso, onde o corpo
viverá para sempre e em paz. O final da caminhada é o cruzamento da linha: da
morte para a vida. De vivos-morrentes para mortos-viventes (BONACCORSO, 2009,
p.156). Portanto, a tese de Bonaccorso pode ser verificada nos ritos fúnebres do
catolicismo latino.
REFERÊNCIAS
AGOSTINHO. Obras completas de San Agustín. Vol. 23. (Sermones 117-183). Madrid:
Biblioteca de autores cristianos, 1983.
ALVES, R. Variações sobre a vida e a morte: o feitiço erótico-herético da teologia.
2.ed. São Paulo: Paulus, 1985.
BERLANGA, A. Liturgia y teologia: del dilema a la sínteses. Barcelona: Centro de
Pastoral Litúrgica, 2013.
BONACCORSO, G. Inculturazione cristiana i riti di iniziazioni nel Togo. In: TERRIN, A. N.
Liturgia e Inculturazione. Padova: EMP, 2009, p. 151-174.
BONACCORSO, G. Rito. Padova: EMP, 2015.
BONACCORSO, G. La liminallitá del rito. Padova: EMP, 2014.
CONCÍLIO VATICANO. Constituição Sacrosanctum Concilium: sobre a sagrada liturgia.
In: Documentos do Concílio Ecumênico Vaticano II. São Paulo: Paulus, 2001, p. 32-
86. (Col. Clássicos de bolso).
TERRIN, A. N. Antropologia e horizontes do sagrado: culturas e religiões. São Paulo:
Paulus, 2004.
VIDA, H. M. A. J. O Ritual das Exéquias reformado pelo Concílio Vaticano II: Passos
dados e desafios na Igreja de hoje. Dissertação (Mestrado em Teologia). Faculdade de
Teologia, Universidade Católica Portuguesa. Porto. 2006. 98f. Disponível em:
https://repositorio.ucp.pt/bitstream/10400.14/20316/1/HIP%C3%93LITO%20VIDA%2
0DISSERTA%C3%87%C3%83O%20SOBRE%20AS%20EX%C3%89QUIAS.pdf Acesso em:
20/10/2020.
603
INTRODUÇÃO
202
https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/15700-dados-do-
censo-2010-mostram-11-4-milhoes-de-pessoas-vivendo-em-favelas
606
ator/atriz religioso (a) com seu ambiente, e sua própria condição de existência
precária.
Para responder à pergunta que intitula este trabalho, desenvolveremos a) a
precarização condicionada das vidas humanas na favela e a violência como processos
históricos, b) os mecanismos de alienação da produção de conteúdos teológicos, que
ajudam a gerir essas condições precarizantes, e por fim, c) como alguns
deslocamentos de conteúdo, feitos de forma orgânica, operam para a reconstrução
das chaves hermenêuticas sacrificiais comuns à teologia e que dialogam com o
cotidiano das favelas.
Diante dos dados indicados, fica claro que a vida nas favelas, de forma geral,
consiste numa intensa batalha pela sobrevivência diante dos conflitos diversos
performatizados neste ambiente, bem como uma luta constante pelo
reconhecimento da dignidade e da minoração da precariedade característica a todo
ser humano, além da precariedade resultante de sistemas socioeconômicos
históricos.
203
Utilizamos a expressão “solteiras com filhos” como uma crítica à nomenclatura usual do IBGE, e de canais de
comunicação que geralmente utilizam o termo “mães solteiras”. Entendemos que “mãe” não é um estado civil,
e apesar de não termos o objetivo de problematizar amplamente a questão, nos posicionaremos desta maneira
quando necessária a utilização do termo.
608
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
INTRODUÇÃO
A AMEAÇA DO NÃO-SER
O trecho supracitado, nos mostra a angústia nas três formas que Tillich
sistematizou em seu livro A Coragem de Ser. Na lamentação de Chicó estão presentes
“a angústia da morte”, “a angústia da culpa” e “a angústia do vazio”. Segundo Tillich o
período medieval foi responsável por acentuar a angústia da culpa através da
mensagem judaico-cristã. Nesta mesma perspectiva, a obra Auto da Compadecida é
tecida com sentido moralizante, retratando a ética e moral cristã, por isso há muitos
momentos que evidencia a angústia da culpa e condenação.
No primeiro ato, quando o cachorro é enterrado, o Sacristão em tom de canto
gregoriano intercede (2000, p. 71) “absolve, Domine, animas omnium fidelium
defunctorum ab omni vinculi delictorum” - Absolve Senhor as almas dos fiéis defuntos
dos vínculos dos pecados. Segundo o interesse do padeiro e sua mulher, João Grilo
tramou para que o enterro do cachorro fosse feito em latim. Fica evidente que a
relação entre o animal e os personagens na literatura suassuniana é em certa medida
uma forma de antropomorfismo204. O cachorro é enterrado com uma cerimônia
fúnebre, como se fosse um parente do padeiro. A angústia da culpa e condenação
não afeta os animais, mas é sentimento peculiar no ser humano.
No último ato, onde todos depois de mortos se encontram no além para serem
julgados, manifestam explicitamente a angústia da culpa e condenação. Mesmo
diante da defesa de Nossa Senhora, o Encourado continua a apavorar com
“acusações graves” (2000, p. 173). Então todos rezam (2000, p. 173) “Santa Maria,
mãe de Deus, rogai por nós, pecadores, agora na hora de nossa morte. Amém”. As
almas rezam na tentativa de livrar-se da angústia da culpa e condenação, efeito da
“ameaça do não-ser”.
Podemos observar que mais uma vez as formas de angústia se manifestam
juntas. A “angústia da culpa” está atrelada com a “angústia da morte”. Esta
associação de ambas formas de angústia é antiga, desde o cristianismo dos apóstolos.
São Paulo mostrou esta ligação da “culpa” com a “morte” quando escreveu “o
aguilhão da morte é o pecado, e a força do pecado é a lei” (I Coríntios 15,56). Tillich
complementa que “a ameaça do destino e da morte sempre acordou e incrementou
a consciência da culpa” (1976, p. 41).
O teólogo afirma que a angústia da vacuidade e insignificação é mais intenso
na modernidade, onde o homem não recorre exclusivamente a religião para
204
O antropomorfismo é uma forma de pensamento que atribui características ou aspectos humanos a
animais, deuses, elementos da natureza e constituintes da realidade em geral.
615
A CORAGEM DE SER
João Grilo nos três atos enfrentou “a ameaça do não-ser”, fazia parte de sua
rotina enquanto sobrevivência. Enfrentou a enfermidade, a desigualdade e injustiça
dos patrões e da sociedade em geral, a violência dos cangaceiros de Severino, a
morte e a figura temível do diabo (Encourado). Em suas confusões terrenas João Grilo
usou e abusou de sua astúcia e inteligência, mas quando a adversidade ultrapassou a
imanência de sua finita capacidade, exerceu fé e confiança demonstrando a coragem
de ser. Para o teólogo “(...) a coragem não afasta a angústia. Uma vez que a angústia
é existencial, não pode ser afastada. Mas a coragem incorpora a angústia de não-ser
dentro de si. Coragem é auto-afirmação ‘a despeito de’, a saber: a despeito de não-
ser” (TILLICH, 1976, p. 51).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Bíblia King James Atualizada (KJA). Trad. Sociedade Bíblica Ibero-Americana. 1 ed.
São Paulo: Abba Press, 2012.
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida; capa, Rubens Gerchman. - 34. ed. 6.imp. -
Rio de Janeiro: Agir, 2000 (Teatro moderno)
SUASSUNA, Ariano. Auto da Compadecida/ ilustração de Manuel Dantas Suassuna/
textos de Braulio Tavares, Carlos Newton Júnior e Raimundo Carrero. - Ed.
comemorativa de 50 anos - Rio de Janeiro: Agir, 2004.
TILLICH, Paul. A Coragem de Ser. Trad. Eglê Malheiros. 6 ed. Rio de Janeiro: Paz e
terra, 2001.
617
618
moderno, pois defendia que Deus era fonte de compromisso social e não mais fonte
de alienação histórica. Nos recortes selecionados, fica perceptível a presença de um
discurso outro no discurso religioso católico, um discurso que se mescla ao discurso
autoritário religioso para ter mais força. É forte a presença de palavras, até nessa
época, incomuns para hinos religiosos.
INTRODUÇÃO
tempo em que uma reinterpretação e uma ressignificação dos textos sagrados, por
um viés marxista, de modo a promover a justiça e a equidade social.
O discurso da TL articula o que pode e deve ser dito em uma FD, com o que, a
princípio, seria não dizível na FD católica. Por meio da utilização de ideais que, de
certa forma, se aproximavam de ideais comunistas, a Teologia da Libertação criou
bases sólidas que se aproximavam de um discurso de igualdade social e de luta
contra a opressão. Palavras como ‘libertação’, ‘luta contra a ‘opressão’ e ‘justiça’
fazem parte da FD que a TL manifestava. A FD da TL não se constitui uma FD à parte;
entretanto, se inscreve na FD conservadora católica, introduzindo nela novos
elementos de saber.
Na época das primeiras manifestações da Teologia da Libertação, na década de
1960, tendo como um dos principais representantes no Brasil, Frei Leonardo Boff,
ocorreram várias críticas e silenciamentos por parte da Igreja em relação ao discurso
que se formava. A Teologia da Libertação foi criticada por parecer contraditória em si
mesma, pois possuía, de um lado, características de um discurso marxista e, por
outro lado, um discurso religioso.
Não seria possível que um movimento religioso se apropriasse desses
princípios marxistas, pois senão estaria corrompido e fadado ao fim em si mesmo. Foi
necessário, pois, que se fizesse o uso de alguns conhecimentos marxistas, mas que se
negassem outros. Em relação aos preconstruídos do marxismo, a TL se posicionou
com um discurso de negação e de acréscimo de novos saberes antes não ditos. A TL,
por exemplo, tinha, por princípio, que a fé e o evangelho não eram fatalmente
fatores de alienação ou de ajustamento e acomodação a essa realidade, mas que as
Igrejas podiam ser motoras de mobilização popular em vista de transformação e
libertação. O cristianismo já não poderia mais ser chamado de ópio do povo, pois era
um fator de compromisso de libertação. Em contraposição ao ateísmo marxista, a TL
se colocava como a mais convincente refutação do ateísmo moderno, pois defendia
que Deus era fonte de compromisso social e não mais fonte de alienação histórica.
Nos recortes selecionados, no corpus da pesquisa realizada, fica perceptível a
presença de um discurso outro no discurso religioso católico, um discurso que se
mescla ao discurso autoritário religioso para ter mais força. É forte a presença de
palavras, até nessa época, incomuns para hinos religiosos. Vejamos o seguinte trecho
de um hino: “A nossa comunidade luta por libertação, pra formar uma corrente, pra
quebrar a opressão”. (autor desconhecido, Sou feliz na comunidade – in.: GREBOJ,
1992)
Percebe-se, nesse recorte, duas palavras fortes de sentido ‘reacionário’, que
são: libertação e opressão. O eixo da Teologia da Libertação é a figura do ‘Cristo
libertador’, que veio libertar os homens, não apenas do pecado, mas também de
todas as suas consequências, inclusive as injustiças. O seu método hermenêutico
deixa de lado as categorias idealistas tradicionais e emprega categorias históricas. A
mensagem de salvação é interpretada à luz das opressões de que o homem precisa
ser libertado. Ao narrar a libertação dos hebreus do cativeiro no Egito e a sua marcha
para a Terra Prometida, o Êxodo é a imagem bíblica da mensagem da salvação e a
621
Nossa alegria é saber que um dia, todo esse povo se libertará, pois
Jesus Cristo é o Senhor do mundo, nossa esperança realizará. Jesus
manda libertar os pobres, pois ser cristão é ser libertador. Nascemos
livres pra crescer na vida, não pra ser pobres nem viver na dor. (autor
desconhecido, Nossa Alegria – in.: GREBOJ, 1992)
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
205Ouvi os Clamores do meu povo – CNBB; Nordeste, o homem proibido – ACO são alguns deles.
627
pouco presentes no meio operário. Depois, a entidade expandiu a sua atuação entre
os metalúrgicos, trabalhadores da construção civil até chegar aos feirantes e
domésticas, algumas delas, companheiras dos operários já militantes.
A sua participação na fundação de vários sindicatos e contribuição na
construção das pautas da luta sindical é bem relevante, a ponto de ser a ACO
responsável por comandar uma das primeiras greves durante o período da ditadura
militar, no setor têxtil, no município de Escada, Pernambuco, área pastoral da
Arquidiocese de Olinda e Recife.
No interior do espaço eclesial, em Recife, a ACO registrou distintos períodos de
atuação conjunta com outras inciativas de ação pastoral junto aos operários. No
primeiro momento da sua criação até inícios dos anos 1980, teve na sua criação a
participação de ex-militantes da JOC. Nesses anos, o MEB (Movimento de Educação
de Base), no encerramento de sua fase de atuação nesse período, em colaboração
com a JOC, criou uma experiência de capacitação profissional que ficou conhecida
por CTC (Centro de Trabalho e Cultura), uma escola profissional para operários,
baseada em princípios da educação popular. Essa organização manteve intercâmbio e
colaboração com a ACO através de assistentes regionais e militantes que lá
estudaram e colaboraram como monitores (as).
Nos anos 1980, junto com a ACO em Recife, atuaram com trabalhadores (as)o
MEIR (Movimento Encontro de Irmãos – Urbano), em chapas de oposição sindical, e
também a PJMP (Pastoral de Juventude do Meio Popular), com seus (suas) militantes,
participando de chapas e diretorias de sindicatos de funcionários (as) públicos (as) e
professores (as). É também, nesse período, que se formou a CPO (Comissão de
Pastoral Operária) que, em âmbito nacional, contou fortemente com a colaboração
da JOC e ACO para sua constituição como um serviço das dioceses ao movimento
operário. A ampliação da ação pastoral no mundo operário, a partir da experiência da
ação católica especializada, em um processo que se observam mudanças no mundo
do trabalho e na estrutura de organização das pastorais, nos oferece um rico material
para análise de concepções de ação e teologia pastoral, discutindo sobre a relação
mundo do trabalho urbano e igreja católica ou catolicismo hoje.
A formação pastoral e política que o Movimento oferecia aos militantes,
conforme relatos registrados em suas documentações, contribuiu para a formação da
“consciência de classe”, para construção de um sentido de pertença a um grupo que
vive do trabalho assalariado, por isso se dispunha ao combate das formas de
exploração advindas da classe patronal e do modelo econômico vigente. Essa
experiência de vinculação à classe operária, a classe trabalhadora, implicou no
envolvimento e apoio com a participação direta de militantes da ACO na criação da
CUT (Central Única dos Trabalhadores), via oposições sindicais e de um partido
político, formado por trabalhadores (as). Vários de seus militantes disputaram cargos
eletivos nas primeiras chapas lançadas pelo PT (Partido dos Trabalhadores), em 1982,
e em eleições seguintes. O exemplo mais emblemático foi a vitória de um de seus ex-
militantes na eleição para prefeito da capital pernambucana em 2000, o prefeito João
Paulo (primeiro prefeito do Recife eleito pelo PT) que, antes disso, ainda na ACO, foi o
primeiro presidente da CUT em Pernambuco, em 1988.
629
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
DENIS COTTA
Doutorando em Ciências da Religião
Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais
[email protected]
INTRODUÇÃO
206
As datas entre colchetes indicam a data de publicação original das obras.
636
207
Cabe ressaltar que, na ótica frommiana a noção de espírito humano não se refere a uma ideia metafísica no
sentido de vida após a morte, mas reflete uma esfera antropológica de abertura ao semelhante, à natureza em
toda a sua diversidade.
208
Grifo nosso.
637
referem a um modo específico pelo qual o sujeito visa responder duas questões
existenciais fundamentais. A primeira se refere à necessidade de estabelecer uma
nova forma de harmonia com a natureza pautada pela racionalidade; e a segunda
está associada a atribuição do sentido da vida (FROMM, 2013). A seguir, pretende-se
elucidar que a indiferença à vida deve ser compreendida como uma crise espiritual
que assola o sujeito contemporâneo e, que, o priva de uma existência mais saudável.
CONCLUSÃO
Para Fromm, o humano deve ser entendido como um ser integral, constituído
de necessidades existenciais que visam o estabelecimento de sua harmonia com a
natureza. Assim, com o objetivo de restabelecer a harmonia na existência, o sujeito
se volta para o âmago de seu ser com o intuito de aprimorar a expressão de sua
espiritualidade.
De acordo com o paradigma psicanalítico humanista, a espiritualidade deve ser
entendida como uma resposta antropológica do indivíduo, isto é, uma forma
produtiva em que a pessoa visa aperfeiçoar as suas potencialidades mais elevadas.
Em outras palavras, a espiritualidade deve ser compreendida como uma arte de viver,
que se desenvolve durante toda a existência da pessoa.
Nesse viés, para que o indivíduo contemporâneo se desvincule do estado de
alheamento de si e do outro, é necessário que ele (o sujeito) realize uma
reorientação existencial. Em termos gerais, essa ressignificação existencial está
associada a uma maneira mais saudável, altruísta e consciente do ato de viver. Em
última instância, a espiritualidade humanista é a capacidade de experienciar a
209
A World Health Organization (WHO), conhecida no Brasil como Organização Mundial de Saúde (OMS),
apresentou dados alarmantes sobre o suicídio em nível global em seu último levantamento no ano de 2019.
Segundo a OMS, a cada 40 segundos uma pessoa comete suicídio no mundo.
639
existência de modo mais desperto, ciente das mazelas e das alegrias da vida, sem
perder no entanto, a sensibilidade e o cuidado com o outro.
REFERÊNCIAS
RESUMO: A escolha pelo aborto pode ter significado simultâneo, real ou simbólico,
de morte ou de vida conforme a perspectiva adotada por quem acessa a questão. O
tema do aborto a pedido deixou o âmbito privado e alcançou o espaço público;
tornou-se questão de vulto político. Instaurou-se, no mundo ocidental, uma disputa
entre atores favoráveis e atores contrários à realização e descriminalização do
aborto. O Estado foi se tornado um dos palcos de disputa desta questão. Os
envolvidos na querela se autodenominam pró-escolha e pró-vida, conforme
defendem a aceitação do acesso amplo ao procedimento ou à defesa de restrições à
disponibilidade legal ao aborto procurado. Esta comunicação busca apresentar os
valores que sustentam as respectivas demandas entre os oponentes e os
proponentes em torno da temática. Busca demonstrar os argumentos usados por
ambos os grupos nas reivindicações em torno do aborto a pedido. Procura verificar as
mudanças nas proposições elaboradas, na busca por aceitação pública da questão
pleiteada. Intenta ainda encontrar intercessões estratégicas destes dois movimentos
sociais. Esta é pesquisa bibliográfica. Foram acessados livros relacionados à temática
e se realizou uma busca on line dos termos “feminismo”, “religião”, “pró-escolha” ou
“pró-vida”, cada um destes, sempre associado ao termo “aborto”. A pesquisa revelou
diversidade nas ações e mudanças nos discursos e proposições de ambos os grupos
no Brasil. As narrativas e propostas sofrem influência do grupo opositor,
frequentemente, sendo respostas ao grupo oponente. Muitas vezes, há
compartilhamento das mesmas linhas argumentativas. Mantém-se o impasse na
nação brasileira e a disputa continua.
INTRODUÇÃO
completa dissociação entre e sexo e filhos. Amplia para as mulheres seu espectro
profissional e social. Pode proporcionar ainda um aumento da satisfação das
mulheres em sua vida sexual (FERRAND, 2008).
Vários argumentos são utilizados na reivindicação feminista em prol da
legalização do aborto voluntário. Apela-se ao princípio do direito individual. A
questão do direito individual está ligada ao direito ao próprio corpo e à
autodeterminação. Proibir o aborto é imoral para as feministas, pois terceiros não
têm direito de decidir sobre o que as mulheres podem ou não fazer do próprio corpo
(NUNES, 2006). Reconhecer o sexo feminino como indivíduo, seria reconhecer sua
capacidade de fazer julgamentos éticos e tomar decisões morais. Reconhecer a
mulher como agente moral, capaz e apto a fazer escolhas deveria implicar em dar-lhe
o “controle sobre sua capacidade biológica de gerar um novo ser” (NUNES, 2006, p.
31).
O apelo à laicidade estatal e à democracia tem sido um argumento feminista
recorrente a favor da descriminalização do aborto no Brasil (GEBARA, 2007;
MACHADO, 2017; ROSTAGNOL, 2016). Restringir o acesso legal ao aborto fere, assim,
os interesses de uma sociedade pluralista. A interdição legal ao aborto voluntário
indica a adoção de uma cosmovisão específica na normatividade jurídica do país.
Revela a existência e realidade de uma normatividade metafísica. A expansão do
alcance do cuidado e proteção, pelo Estado, à vida intrauterina, demonstra
concordância, por parte do Estado, da intenção de religiosos de estenderem e
imporem seus valores morais e religiosos para toda a sociedade (DOMINGUES, 2008;
MACHADO, 2017).
O conceito de direitos sexuais e reprodutivos se originou dentro do
movimento feminista. Tais direitos foram inseridos pela Organização Mundial de
Saúde (OMS) como constitutivos e parte dos direitos humanos. Traduzem poder
escolher se, quando e quantos filhos ter. Para que a mulher tenha autonomia sexual
e reprodutiva, a vivência da sua sexualidade deve ser desvinculada da possibilidade
de reprodução (FERRAND, 2008). Isto necessariamente deve incluir o direito ao
aborto seguro.
Outra argumentação na defesa pelo direito legal ao aborto tem sido o impacto
do aborto ilegal sobre a saúde das mulheres, particularmente as mais pobres. O
aborto tem sido apresentado como um direito social e um problema de saúde
pública. A criminalização do aborto impele à prática clandestina. A clandestinidade
pode levar à sua realização em condições precárias. Os procedimentos realizados de
maneira precária e insegura (abortos inseguros) constituem um risco para a saúde e a
vida das pessoas que a ele se submetem. Isto atinge de maneira particular as
mulheres mais pobres (VENTURA; CAMARGO, 2016). O aborto é um problema de
saúde pública em várias nações (MORI, 2006; SCAVONE, 2008), mas apresenta taxa
maior de mortalidade em países onde o procedimento não é legalizado.
Os principais oponentes da despenalização do aborto voluntário são atores e
instituições cristãs. O valor subjacente às suas reivindicações é a defesa da vida
humana. A defesa da vida desde seu início ocorre em função do status moral
atribuído ao feto. Enquanto atores pró-escolha apelam ao argumento de que não há
644
consenso social, científico ou mesmo religioso de quando a vida humana teria seu
início, atores pró-vida entendem que devem ser dados aos seus argumentos os
mesmos benefícios de dúvida que se gostaria de receber ao se fazer uma proposição.
Entende-se que o começo da vida humana é questionamento insolúvel e não
existem dados convincentes para saber quando começa a pessoa
(LEPARGNEUR,1983). É pessoa desde o zigoto, admitindo-se que não se possa provar
que seja nem que não seja assim (PESSINI; BARCHIFONTAINE, 2008). Se o feto é uma
pessoa, existem danos a eles feitos por outras pessoas. Então não é apenas
moralmente aceitável, mas moralmente necessário defender em seu nome
(LEATHERS, 2016). Dessa maneira, a vida intrauterina deve ser salvaguardada com o
máximo de cuidado desde seu início.
A Igreja cristã invoca o saber científico para corroborar seus argumentos. O
embrião que se desenvolve a partir da concepção é cientificamente humano. A
evolução da ciência permitiu que se conhecesse que já desde a fecundação surge um
material biológico com material genético distinto do pai e da mãe. A observação dos
processos biológicos revela que a vida acontece por etapas. A fecundação é o começo
de um processo que tem etapas, de incontestável continuidade biológica e que
termina apenas com o fim natural da vida humana (CNBB, 2008). Na perspectiva pró-
vida, e biologicamente, o embrião não é parte do corpo materno, e, portanto, a
mulher não pode dispor do mesmo.
Teólogos e instituições cristãs têm argumentado que a questão do aborto não
está relacionada à questão da laicidade estatal ou separação igreja-Estado. O aborto
não é uma controvérsia entre religiosos e os demais. É questão humana e de
humanidade. A separação jurídico-constitucional da Igreja e do Estado não dá conta
das complexidades sociais e das disputas políticas relacionadas ao tema do aborto.
Embora muitos autores enquadrem a controvérsia do direito ao aborto voluntário
exclusivamente na categoria de matérias morais, não é possível estabelecer limites
nítidos e inquestionáveis entre o secular e o confessional com respeito ao tema.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
dura realidade a ser enfrentada em toda a América Latina, que tem como regra a
criminalização e o desrespeito às concepções adotadas por tratados e cartas
internacionais de direitos humanos.
INTRODUÇÃO
210
O Festival pela vida das mulheres aconteceu em Brasília, de 03 a 06 de agosto e segundo Gabriela Rondon,
uma das organizadoras do evento, a mudança da bandeira de luta, foi uma estratégia de ampliação do alcance
da pauta às mulheres que são mais atingidas. https://youtu.be/LA0UHN7WtbU
650
de ahí resulta que, la expresión “todos los pueblos” quiere decir “todos,
menos los indígenas” y estos, a su vez, quedan fuera de la condición de
“sujetos” en la mayor parte de los pueblos de América, África y Asia.
POLÍTICA E O ABORTO
de lei, que vai desde a Educação Sexual Integral, a saúde da mulher e o processo
decisório com participação popular envolvendo o tema. Este último tem envolvido
amplas discussões e mobilização popular que ganhou destaque pela força nas ruas e
ficou conhecido como a Onda Verde.
Este é um dos aspectos que têm tornado o aborto na Argentina uma questão
central até mesmo para o executivo. Elizabeth Gomez Alcorta, ministra de las
Mujeres, Géneros y Diversidad da Argentina se pronunciou, dizendo que Alberto
Fernandes, não irá quebrar o compromisso de apresentar a lei pela descriminalização
do aborto, e culpa a pandemia pela demora (CAMACHO, 2020). Contrariamente no
Brasil, os movimentos pró-vida é que conseguiram força no âmbito legislativo com a
apresentação de inúmeros projetos de lei e mobilizações de rua nos últimos anos,
pedindo mais criminalização. Agora têm no executivo seu total apoio e sustentação,
principalmente a partir da figura da pastora Damares Alves no ministério da Mulher,
da Família e dos Direitos Humanos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
institucional foi um tema transversal, mas que, no entanto, fez ressoar questões que
agora trago à tona.
A separação entre “sagrado” e “profano” como esferas opostas da vida
(DURKHEIM, 1996) são herança que na milenar tradição judaico-cristã estruturam as
relações de poder entre gêneros, segundo a escritura bíblica, desde Gênesis. A
mulher não é simplesmente criada a partir da costela do homem, é também
simbolicamente aquele que tomada pelo desejo não contido toma do fruto do
pecado, condição esta que leva o ser humano para fora do Jardim do Éden.
Alicerçada nesta tradição, toda forma de tentação da matéria que atormenta a
humanidade é associada à carne e a fragilidade da mulher. Em contrapartida,
demarcando ainda mais claramente as expectativas sociais da mulher ideal, que
resiste ainda hoje no campo religioso brasileiro, está a paradigmática figura feminina
da Virgem Maria. Virgem (sinal de castidade e pureza) e mãe ao mesmo tempo,
simbolizando o mito da “Mãe de Deus”, no qual se define a mulher pela maternidade
reduzindo-as a essa capacidade, dedicando todo o sentido de sua existência aos filhos
(TOMITA, 2006, p. 153).
Este fato pode ser observado também nas religiões afro-brasileiras. A
umbanda, por exemplo, nas quais com base nesta tradição cristã de separação entre
o bem e o mal, clivou o panteão de seus deuses entre os de direita e os de esquerda,
ou seja, os primeiros trabalham apenas para o bem enquanto os do segundo grupo
são invocados para “trabalhar para o mal”. Dentre estes uma das figuras mais
populares é a Pombagira, espírito de uma mulher “que em vida teria sido uma
prostituta ou cortesã, mulher de baixos princípios morais, capaz de dominar os
homens por suas proezas sexuais, amante do luxo, do dinheiro, e de toda sorte de
prazeres” (PRANDI, 1996, p. 141). Segundo Prandi, com base na moralidade cristã que
estabelece o código do certo e errado, não é de se estranhar que o culto a Pombagira
esteja no lado mais escondido destas religiões, “pois as motivações básicas do culto
também pertencem a dimensões do indivíduo muito encobertas pelos padrões de
moralidade da sociedade ocidental-cristã” (PRANDI, 1996, p. 161).
Inserida neste contexto religioso, a IMMB reproduz igualmente, com base em
princípios androcêntricos, um ideal de submissão da mulher tal como ficará
demonstrado por meio de dados quantitativos em relação à participação feminina
em sua hierarquia sacerdotal.
trabalho ou dos rituais coletivos ou privados” (BOURDIEU, 2018, p. 41), o que por sua
vez faz com que as diferenças biológicas pareçam pressupostos fundamentais que
estão na base das diferenças sociais.
Observei que a clivagem social do trabalho associada às expectativas da Igreja
em relação aos que realizam o trabalho missionário implica impedimentos à carreira
por mulheres. Creio que no âmbito do exercício sacerdotal da IMMB, tal como define
Castro (2016) acerca do perfil de trabalhador de Tecnologia da Informação (TI), a
prerrogativa de flexibilidade e disponibilidade plena para o atendimento das
demandas institucionais acentuem a divisão de gênero nela existente. Uma vez que
na relação entre a vida privada familiar e a do trabalho as tarefas de reprodução não
são consideradas como parte desta:
Esta divisão sexual do trabalho é uma das justificativas utilizadas pela IMMB
para explicar a posição secundária reservada às ministras. Matsuoka (2007, p. 187,
tradução nossa) deixa isto claro quando aponta que:
211
O texto em língua estrangeira é: “In both Japan and Brazil, Messianity put prime importance in kaitaku fukyo
(propagation in areas where there are not yet any followers). In Brazil, this doctrinal policy has turned out to be
an excuse for putting less importance on female clergy because it is claimed that it is too dangerous to allow
them carry out such a program”.
660
lhes falte espaço, é no trabalho pastoral, aquele cotidiano das unidades religiosas que
implica o atendimento aos fiéis, a organização do funcionamento da igreja, a
celebração diária dos ofícios religiosos e a difusão do Johrei e dos ensinamentos do
fundador que elas são maioria. Neste nível da estrutura funcional que classifiquei de
operacional atuam, sobretudo, como responsáveis de unidades religiosas ministros
dedicantes. Aqui o jogo se inverte as mulheres são 61,43% para 38,57% de homens.
Estes dados reforçam que mesmo nas “posições dominantes, que elas ocupam
em número cada vez maior, situam-se essencialmente nas regiões dominadas da área
do poder”, ou seja, exercem o trabalho comunitário de base nas igrejas, tal como se
pensa ser seu papel no lar, aonde se credita a elas as tarefas regulares e
desvalorizadas na disputa de bens simbólicos, tais como: cuidar dos filhos,
administrar as tarefas do lar dentre outras (BOURDIEU, 2018, p. 129).
Como afirmou-me uma de minhas entrevistadas na pesquisa de mestrado, “o
trabalho missionário foi, é e sempre será alavancado pelas mulheres”. Nas décadas
de 1970 e 1980 isto ocorria sobretudo pela maior disponibilidade de tempo, visto que
muitas mulheres viviam ainda exclusivamente para a vida familiar. “Antigamente as
mulheres ficavam em casa. [Na igreja] tinham que fazer reunião durante a semana,
visitavam as pessoas, faziam assistência religiosa em hospital”. Esta ministra disse-me
que apesar de as transformações ocorridas com a entrada das mulheres no mercado
de trabalho terem “mudado a cara da igreja”, acredita que “ainda estamos aquém do
deveria ser”, deixando clara sua crítica ao fato de apenas uma mulher brasileira [in
memorian], em cerca de 65 anos desde o estabelecimento da igreja no Brasil, ter
alcançado o título de ministra dirigente (reverenda), grau máximo da carreira
sacerdotal.
A despeito das competências e capacidade das ministras, as posições
superiores de planejamento e orientação de outros sacerdotes, por exemplo, dos
níveis diretivo e gerencial, ainda hoje continuam sendo território para homens. Ou
seja, na IMMB há um local reservado as mulheres no qual são escassas as
possibilidades de ascensão o que reforça a lógica da dominação masculina. Dados
como os apresentados até aqui demostram o quanto estão marcados pelo gênero os
níveis, as carreiras e cargos na hierarquia da instituição.
Neste sentido a Igreja não rompe com esta lógica, embora haja, nas posturas e
ensinamentos de seu fundador, elementos suficientes para que ao menos se
refletisse sobre ela. Um caso singular do que aqui exponho é a designação, por
Meishu-Sama (fundador da IMM), da então ministra Kiyoko Higuti para a primeira
missão de difusão da Igreja Messiânica Mundial em um país estrangeiro. Ela foi
enviada ao Havaí, nos Estados Unidos da América (EUA), em 11 de fevereiro de 1953
juntamente com o também ministro Haruhiko Ajiki (FUNDAÇÃO MOKITI OKADA,
2007, p. 208). A saga pioneira de uma mulher fazendo difusão da Igreja nos EUA foi
tema de diversas reportagens e notícias em publicações da instituição no Japão,
tendo inspirado outras pessoas a se entregarem ao que se denominou difusão
661
mundial. Teruko Sato que veio ao Brasil em 1954, como migrante agrícola, é um
exemplo (TOMITA, 2014, p. 56).
Não indicariam estes exemplos uma clara disparidade entre a postura
demostrada por Meishu-Sama e os rumos tomados pela IMM no Brasil? Enquanto as
justificativas repousam sobre a suposta maior disponibilidade dos sacerdotes homens
para as designações missionárias da instituição, permanece sem reflexão, em seu
cerne, a questão da posição da mulher na concepção teológica messiânica.
Segundo Steil (1997, p.65), a demografia organizacional, cuja concentração de
mulheres se restringe a posições hierárquicas inferiores, tende a ser justificada com o
argumento que “ligações extensivas com a família, como o casamento e filhos” são
fatores que “podem diminuir o comprometimento organizacional de homens e
mulheres”. Esta visão, porém, é a reafirmação da ideia dominante.
É possível encontrar referências diferenciadas nas posturas de gestão
organizacional e da vida cotidiana do fundador que muito se distinguiam dos padrões
japoneses da época, como por exemplo, seus cuidados com a família e o trato com a
esposa. Na constituição da tradicional família japonesa “um homem ocupar-se de um
bebê em público era algo inconcebível”, uma vez que “demonstrar afeto e cuidar de
um filho eram tarefas exclusivas das mulheres”. A nova ordem social estabelecida no
pós-guerra marcou definitivamente a transformação dos lares japoneses, nos quais
até então era comum, no espaço público, a “imagem da mulher andando
obrigatoriamente a dois passos atrás do marido, muitas vezes ainda carregada de
embrulhos e segurando as crianças pelo braço” (SAKURAI, 2007, p. 310).
Na coletânea de reminiscências sobre o fundador, sua esposa, Yoshi Okada em
seu depoimento registra a forma pela qual Meishu-Sama a tratava publicamente.
“Era muito raro ver marido e mulher saírem juntos. Assim, chamávamos muito
atenção das pessoas, o que me inibia às vezes. Contudo, Meishu-Sama não se
importava com o olhar dos outros. Neste ponto, também podemos perceber como
ele era uma pessoa extremamente moderna” (OKADA, 2003, p. 29). Sua terceira filha,
Itsuki Okada (2003, p. 84-85) faz igualmente menção a esta mentalidade progressista
da personalidade do pai:
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
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capitalismo flexível. Lua Nova, São Paulo, v. 99, p. 169-199, 2016. Disponível em:
<https://www.scielo.br/pdf/ln/n99/1807-0175-ln-99-00169.pdf>. Acesso em: 09 set.
2020.
DURKHEIM, Émile. As Formas Elementares da Vida Religiosa: o sistema totêmico na
Austrália. São Paulo: Martins Fontes, 1996.
FUNDAÇÃO MOKITI OKADA. Luz do oriente: Biografia de Mokiti Okada volume 3;
Tradução IMMB. 3. ed. São Paulo: Fundação Mokiti Okada, 2007.
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Sandra Duarte de. (org.). Gênero e religião no Brasil: ensaios feministas. São
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OKADA, Itsuki. O sublime amor entre Meishu-Sama e Nidai-Sama. Reminiscências
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PRANDI, R. Herdeiras do axé. São Paulo: HUCITEC, 1996.
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SOUZA, Sandra Duarte de. Religião e secularização: o gênero dos discursos e das
práticas das mulheres protestantes. In: SOUZA, Sandra Duarte de (org.). Gênero e
663
INTRODUÇÃO
Alice Vilas Boas, conhecida como Alice Guél, nasceu na periferia de Indaiatuba,
interior de São Paulo. Sua carreira se estabeleceu no rap, gênero musical popular que
aos poucos ganha o seu espaço na cultura nacional. Mesmo com um público
historicamente estabelecido na periferia, majoritariamente entre homens e jovens,
nos últimos 15 anos, principalmente por conta da internet e pelos meios de
665
VIDA E OBRA
Desde pequena Alice Guél tem contato com diversas linguagens da arte. Em
entrevista, ela relata que aos 9 anos, sua madrinha a colocou para treinar futebol.
Essa experiência havia se tornado ao longo dos treinos, tediosa e sem funcionalidade,
visto que não conseguia compreender muito bem as posições (p.ex “zaga”) e as
regras dentro do jogo (GUÉL, 2017). Relata também que o local em que treinava
junto com os meninos, separava-os das meninas213. Esportes “radicais” eram
direcionados aos homens – onde o futebol se encaixava – e atividades mais “calmas”
às mulheres (GUÉL, 2017). Neste contexto Guél se encontra com a dança, uma das
atividades que as meninas daquele projeto eram automaticamente incentivadas.
Com a curiosidade e o objetivo de saber como eram as aulas de dança e o que essas
meninas faziam, enquanto ela lidava com as suas dificuldades no futebol, diz Alice
Guél: “eu lembro que uma vez eu fui, ‘loki’ doida assim, meio que fazendo a sonsa,
‘ah, errei de lugar gente, na boba’. E comecei a fazer [dança]. Fiz uma aula de Jazz, daí
todo mundo começou a falar que eu me dava super bem” (GUÉL, 2017).
A necessidade que Alice Guél tem de falar, denunciar e expor a sua realidade
enquanto corpo transexual, negro e periférico, finalmente encontra lugar na cultura
hip-hop. Os quatro elementos que formam esse movimento (Dj, Mc, grafite e B-Boy),
em suas diversas formas de expressão e função, tem como característica transmitir
uma mensagem socialmente engajada e que transcreva a realidade do sujeito e suas
212
Sigla para “Mestre de Cerimônia”, aquele que é responsável por conduzir o público através do canto ou da
fala, a um tipo de comportamento de ânimo, seja em apresentações artísticas ou qualquer outro espaço.
213
Alice Guél descreve as tensões e conflitos em relação à transsexualidade em sua infância: “Pra mim eu tava
fantasiada de menino, até nove anos/Nove anos com uma fantasia quente, e pinicante” (GUÉL, “Intetrlude I”,
2017b); "Vixe, que criança estranha!/ O que tem entre as pernas é minhoca ou aranha?" (GUÉL, “Deus é
travesti”, 2017b).
666
214
Conceito desenvolvido pelo professor de literatura Marcus Salgado. Ele diz que o rap é produto da tradição
oral africana, carrega em sua identidade traços de uma musicalidade mítica e performativa: “No código
genético, o rap traz um regime estético em que se entrelaçam som e palavra. Esse regime insere-se
plenamente numa tradição cultural de matriz africana na qual se verifica a sobrevivência das formas orais de
literatura” (SALGADO, 2015, p.151).
215
“Diz-se que o rap despontou primeiramente nos Estados Unidos, guardando relação direta com a presença
de imigrantes negros e latinos nesse país, em meados dos anos 1970. Destaca-se a chegada dos jamaicanos
entre 1960-1970”. (OLIVEIRA, 2015, p.34)
216
No documentário “Nos tempos da São Bento” apresenta depoimentos e filmagens das mulheres que
estavam presentes no início do movimento hip-hop em São Paulo, principalmente através do rap e da dança (b-
girl). Ver em: https://www.youtube.com/watch?v=z8FtIypGeVs. Acesso em: 18 maio de 2020.
217
O termo “cis” se refere à pessoa que identifica o sexo de nascença com o seu gênero.
218
O termo “binário” se refere à ideia de que existem dois gêneros: homem e mulher.
219
É importante mencionar que sua letra já continha reivindicação política quanto a espaço e reconhecimento
para mulheres negras: “Nós blacks sabemos pensar/ E sobre a vida podemos então opinar/ E assim eu vou
levando harmonia, folia, ironia, critica, auto-critica ligados a política/ Vida de todos analisando é verídica,
artística, enfim/ Eu estou aqui e tudo aceitando não sabendo até quando, em quanto isso vou rezando e aos
poucos esperando por que tudo vai mudar/ Disseram então que eu não poderia cantar/ Que para outros
667
“Mulher e dinheiro, dinheiro e mulher/ Sem os dois eu não vivo qual dos
dois você quer/ Mesmo que isso um dia, traga problema/ Ir pra cama
sozinho, não vira esquema/ Segunda (a Patricia)/ Terça, a (Marcela)/
Quarta, a (Raíssa)/ Quinta, a (Daniela)/ Sexta, a (Elisângela)/ Sabado, a
(Rosângela)/ E domingo? É matinê, 16 o nome é Ângela” (RACIONAIS MC’S,
“Estilo Cachorro”, 2002).
“As mina geme crime, não o creme” (THAÍDE, “Viagem na rima”, 2000).
“Ela me chame pro cacete e já começa a dar porrada/ Xingo ela de piranha,
de bico de galinha/ Digo lugar de mulher meu bem/ É na cozinha”. (NDEE
NALDINHO, “E essa mulher? De quem é?”, 1991).
“Não quer ser considerada símbolo sexual/ Luta pra chegar ao poder,
provar a sua moral (...) Seu jeito vulgar, suas idéias são repugnantes/ É uma
cretina que se mostra nua como objeto/ É uma inútil que ganha dinheiro
fazendo sexo”. (RACIONAIS MC’S, “Mulheres vulgares”, 1990).
O ep “Alice no país que mais mata travestis” tem 6 faixas, sendo 3 músicas e 3
“intervenções que ligam as músicas como um chiclete grudento, dramático e
viciante” (GUÉL, 2018). Entre esses interlúdios estão algumas falas 220 e
grupos eu era 13 de azar/ Não ligue meu bem que isso é prosa/ E se tudo se renova Sharyline está à toda
prova/ Esta à todo prova rap girl”. (SHARYLINE, “Nossos dias”, 1989).
220
São colagens de áudios que mostram a fala de transexuais que ficaram conhecidos pela mídia. Por
exemplo:“Mexer com travesti não é bagunçado não... É só o começo viu (...) Que a gente somos seres humanos
também” (ALICE GUÉL, “Interlude III ‘Breu’”, 2017).
668
Ametista, Alicia/ Seja feita a vontade das vadias/ Assim na Terra como em qualquer
outra esquina/ A woman” (GUÉL, 2017b).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A obra de Alice Guél se apresenta como desafio tanto para a o rap brasileiro
como para a teologia cristã. De maneira inédita, ela pode ser encontrada não só entre
as mais prestigiadas obras contemporâneas de rap, mas entre a as produções
literárias de gênero marginal que aos poucos conquista seu espaço entre os estilos
literários consolidados. A experiência primária dessa poesia vem da oralidade e da
escuta, se consagrando como literatura do cotidiano, escrita da vida, experiência
erótica e religiosa de um sujeito transgênero. Esta análise se faz pertinente não só
enquanto afirmação de teologias já estabelecidas, mas no estabelecimento da
autonomia da obra gueliana e seus aspectos teológicos próprios. Não só para os
estudos entre poesia e teologia, mas nos estudos de literatura e religião, o fator
“religião” se constitui como base para qualquer tipo de interpretação que se
pretenda fazer sobre a literatura oral urbana de Alice Guél.
REFERÊNCIAS
Musicografia:
ALICE GUÉL. Alice no país que mais mata travestis, 2017b. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=T9KV8gLkihE&t=9s. Acesso em: 14 maio 2020.
670
A presente comunicação tem por objetivo refletir acerca dos dados sobre
pessoas sem religião que constam na pesquisa sobre o perfil da população LGBTI+
promovida no ano de 2018 pelo Instituto Brasileiro de diversidade sexual e os
apontamentos que esses dados para a compreensão do senso religioso de pessoas
LGBTI+ sem religião. Em um primeiro momento situamos o que entendemos sobre
senso religioso, buscamos os apontamentos sobre o mesmo nos dados da pesquisa e
672
221
Hasta en el ámbito individual es notable las pocas personas, incluso entre las más abiertamente gays, que no
están deliberadamente en el armario con respecto a alguien que es personal, económica o institucionalmente
importante para ellas.
673
se mostrar como a via segura de salvação. Nele há uma receita, um modelo que, se
seguido fielmente, levará a sociedade à redenção.
As Igrejas cristãs, contudo, salvo as exceções das que se autointitulam
inclusivas, sempre manifestaram algum grau de intolerância com relação aos
LGBTQI+. Isso porque as práticas sexuais LGBTQI+ não se encaixam naquilo que as
igrejas compreendem como a ordem natural das coisas, ou seja, as relações sexuais
seriam lícitas e se encaixam no ideal de bem se tivessem como finalidade a
procriação e não somente a dimensão unitiva entre o casal e, menos ainda, o prazer
sexual puro e simples. Esses LGBTQI+, apesar de não se encaixarem no protótipo de
família da sociedade cristã, vivem nessa sociedade e é inevitável que sejam, em
alguma medida, atravessados pelas crenças e ideais morais do cristianismo
hegemônico, independentemente de se considerarem parte ou não da religião cristã.
Há um grupo no meio LGBTQI+ que fica à margem das discussões teológicas e
morais que acontecem no interior das igrejas e teologias cristãs. Talvez, o processo
de secularização o tenha feito prescindir da disputa de narrativas, ou ainda, de querer
a acolhida no seio das igrejas para que fossem assim, respeitados os seus direitos
fundamentais. Com relação a essas pessoas LGBTQI+ que se desvinculam da pertença
religiosa, uma questão pertinente que se impõe é, se essa desvinculação acontece no
intuito de se construir um caminho de liberdade, diante carga da pregação da moral
religiosa heterossexista.
A pesquisa Perfil Nacional da População LGBTI+, do Instituto Brasileiro de
Diversidade Sexual (IBDSEX), realizada online em 2018, em todos os estados da
federação, aponta que, em âmbito de filiação religiosa, dos 8.918 entrevistados,
21,2% se autodeclaram católicos, 15,7% declaram nenhuma religião, 15,2%
agnósticos e 10,8% ateus e 5,8% afirmam não saber a qual religião pertencem.
Somados, 47,5% dos pesquisados afirmam, que não têm religião, e, com isso, se
adota a categoria do IBGE, que engloba, nos sem religião, os ateus, agnósticos.
Esse dado de 47,5% não declararem uma pertença religiosa é significativo, pois
destoa da média nacional de pessoas que se declaram sem religião, que, segundo os
dados do IBGE somam 8,04% da população brasileira. Como a pesquisa não era
acerca das práticas e pertenças religiosas, destacamos aqui alguns dados que podem
apontar para possíveis interpretações sobre o senso religioso das pessoas LGBTI+ sem
religião. O número de agnósticos e ateus é bastante expressivo, somando 26%, mas o
que não se declaram neste campo somam 21,5%. Ou seja, quase a metade dos
pesquisados que se dizem sem religião podem admitir crenças religiosas. Isso não
significa, no entanto, que as igrejas sejam lugares atraentes para os pesquisados.
Entre os que declaram não ter nenhuma religião ou não saber qual religião tem, 66%
(ou 14,4% do total dos pesquisados) responderam que nunca frequentam igreja.
Entre agnósticos e ateus este número é de 82%. Ou seja, não estão inseridos em uma
comunidade, sistema de atos, conjunto de doutrinas ou sedimentação da
experiência, elementos que Greschat (2005) define como constitutivos da religião.
Ser sem religião, contudo, não quer dizer que os participantes fizeram uma
confissão de ateísmo. Sem religião aponta para um grupo de pessoas que não se
identificam com as instituições religiosas, mas que podem conservar em seu modo de
674
viver e dar sentido à vida, práticas e valores que tenham algum resquício de religião,
porém, com uma desvinculação das instituições.
Levando-se em conta que essas pessoas vivem em um país de maioria
religiosa, onde 87% da população se autodeclara pertencente a uma denominação
cristã, faz-se necessário levantar alguns questionamentos que orientaram a pesquisa
que se propôs. O cristianismo afetou, em alguma medida, os homossexuais a ponto
de levá-los a uma autodeclaração de “sem religião”? Se afetou, isso se deu de que
maneira? Diante da heteronormatividade da moral cristã, as pessoas LGBTI+ que
abandonam as igrejas conservam algum resquício da religião em seu modo de
compreender o mundo, de valorar e de construir sentidos para a existência? Existe
alguma causa para os que se autodeclaram ateus, assim o façam? Essa causa, de
alguma maneira, se origina nas instituições religiosas? Para isso é importante,
também, entender o trânsito que fazem até se autodeclararem sem religião, os
caminhos percorridos e o que essas pessoas carregam dos pontos por onde
transitaram em suas buscas religiosas.
A desconfiança que propomos é a de que, no processo de afirmação da
identidade sexual, os LGBTQI+ abandonam a pertença religiosa por não encontrar na
estrutura do cristianismo possibilidade de vivenciar sua sexualidade, visto que esta se
encontra às margens da norma da sexualidade imposta pela compreensão metafísica
que o cristianismo tem de natureza humana e, por conseguinte, da sexualidade.
O exercício de poder sobre a sexualidade, com a demarcação de uma norma
cis e heterossexista acaba por afastar pessoas LGBTQI+ das igrejas cristãs, levando-as
a se autodeclarar sem religião e, assim, vivem suas espiritualidades desvinculadas dos
arcabouços litúrgicos, teológicos e morais. Vivem valores religiosos, sem, no entanto,
se identificarem com alguma religião. Subsistiria, nos homossexuais alguma herança
do cristianismo, uma vez que este compõe as raízes da cultura brasileira. Essa
herança carrega resquícios das tradições religiosas, mas sem fazer com que pessoas
LGBTQI+ se sintam vinculadas a instituições religiosas.
Com relação a esta influência da religião na sociedade, no que diz respeito à
diversidade sexual, o jornalista e ativista de direitos LGBTQI+ Bruno Bimbi (2017, p.
180), em sua obra “O fim do armário”, assim descreve o “calvário” de homofóbicos
religiosos:
REFERÊNCIAS
BIMBI, Bruno. O fim do armário: lésbicas, gays, bissexuais e trans no século XXI. Rio
de Janeiro: Garamond, 2019.
BUTLER, Judith. Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade. 18. ed.
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2019.
GRESCHAT, Hans-Jürgen. O que é ciência da religião? São Paulo: Paulinas, 2005.
IBDSEX. Pesquisa perfil nacional da população LGBTI+. Curitiba, 2018. Não Publicado.
MUSSKOPF, André S. Viado não nasce, estreia! Não morre, vira purpurina:
diversidade sexual, performatividade e religião. Belo Horizonte: Senso, 2020.
ROTTERDAN, Sandson; SENRA, Flávio. O cristianismo não religioso de Gianni
Vattimo: considerações sobre o senso religioso contemporâneo. Religare, João
Pessoa, v. 12, p. 96-127, 2015.
SEDGWICK, Eve Kosofsky. Epistemología del Armario. Barcelona: Ediciones de la
tempestad, 1998.
677
678
INTRODUÇÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
Busca-se, com este trabalho, estudar alguns dos principais conceitos presentes
em duas obras do filósofo e jurista Carl Schmitt, de modo a traçar um paralelo entre a
estrutura hierárquica do Estado e da Igreja, após a modernidade, utilizando-se como
premissas os conceitos de soberania e secularização. Ainda, ao final, pretende-se
indagar sobre uma possível correlação entre a figura papal e o soberano, em seu
aspecto mais autoritário.
Em um primeiro momento, faz-se mister a análise da obra Teologia Política
(2009), na qual Schmitt estabelece duas questões de fundamental reflexão: a posição
do soberano como aquele “quien decide sobre el Estado de excepción” [quem decide
sobre o Estado de exceção] (SCHMITT, 2009, p. 13). e seu conceito de secularização
como manutenção dos conceitos teológicos na doutrina moderna de Estado.
Sem buscar inverter a ordem cronológica destes fatores, mas para fins de
melhor estruturação e elucidação desta tese, trabalharemos primeiro com a segunda
colocação: a secularização inacabada, como bem intitula Pedro Hermílio Castelo
Branco em uma de suas obras.
Schmitt, ao afirmar que “Todos los conceptos centrales de la moderna teoría
del Estado son conceptos teológicos secularizados” [todos os conceitos centrais da
teoria moderna do Estado são conceitos teológicos secularizados] (SCHMITT, 2009, p.
37), visa expressar o que Castelo Branco (2011, p. 21) ressalta como uma ampla
compreensão a esse respeito:
Esta racionalidade, que não segue a lógica racional hegeliana, e sim o oposto,
impõe ao intérprete uma noção diferente daquela usual:
222
Nesse primeiro momento, nota-se de antemão como Schmitt retoma o caráter decisionista, desenvolvido
anteriormente em Teologia Política (2009), porém, agora, dentro de uma análise do dogmatismo católico. A
força e a imposição de uma decisão parece se constituir, em sua visão, como a responsável pela estabilidade
destes institutos - Estado e Igreja.
688
Ela [a representação] não é nenhum conceito pragmático. Num
sentido eminente, só uma pessoa pode representar – diferenciando-
se da simples “delegação do lugar” –, e representar uma pessoa
autoritária ou uma ideia que, na medida em que é representada,
precisamente se personifica. Deus ou, na ideologia democrática, o
povo, ou ideias abstractas como liberdade e igualdade, são o
conteúdo pensável de uma representação, mas não a produção e o
consumo. (SCHMITT apud BENTO, 2017, p. 409 - grifo nosso)
223
De modo intrinsecamente semelhante àquele discutido no dogmatismo católico. Em um momento, observa-
se o soberano no ápice da hierarquia estatal. Em outro, nota-se a figura papal auge da constituição religiosa.
689
Ao confrontar os conceitos de soberania, ao longo da modernidade, o comentarista
supracitado evidencia que Bodin, ao contrário de Schmitt, teve o
REFERÊNCIAS
GLAUCO BARSALINI
Doutor em Filosofia pela UNICAMP
INTRODUÇÃO
Não é novidade para ninguém que a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
tem uma grande participação na política partidária, mas, sobretudo, na mídia. De
acordo com o sociólogo da religião Ricardo Mariano (2014), a instituição religiosa
contém projetos de expansão territorial, não somente no Brasil, como no mundo, de
seus templos. Não é à toa que a IURD está classificada entre as maiores igrejas
evangélicas do país.
Conforme sua autobiografia, Edir Bezerra Macedo (2012) se converteu na
igreja pentecostal Nova Vida, entretanto, seu desejo se direcionava para a vocação
de evangelização de pessoas que ainda não conheciam seu Senhor. Na Nova Vida,
Macedo não conquistou este desejo, decidindo, desta forma, começar sua própria
igreja. Suas primeiras pregações foram realizadas em uma praça, especificamente em
um coreto, na cidade do Rio de Janeiro. Em um período bem pequeno, juntamente
com seu cunhado Romildo Ribeiro Soares (conhecido também como R.R. Soares,
criador da Internacional da Graça de Deus), já verificavam os resultados obtidos da
IURD.
À frente, por ser considerado mais carismático e dinâmico, Macedo, com apoio
de seus fiéis, adquiriu mais destaque por conta de um programa da Rádio
Metropolitana do Rio, mesmo com pouca duração – cerca de 15 minutos225. A
expansão desta instituição se deve ao investimento efetivo do uso das mídias e os
meios de comunicação em massa.
224
“Foucault recorre ao conceito de biopolítica para tratar de um poder disciplinador e normalizador, que
começa a aparecer no final do século XVIII, incidindo não mais sobre os corpos dos indivíduos, mas na vida e no
corpo da população, que deveria ser, então administrada e controlada por políticas de Estado” (CAMELO;
SOUZA, 2019, p. 122).
225
“Alugado inicialmente com doações de uma fiel curada na igreja” (MARIANO, 2014, p. 56).
693
comparava à façanha que foi a aquisição, por US$ 45 milhões, da
Rede Record de Rádio e TV, em novembro de 1989. Para comprar
esta tradicional, porém decadente e virtualmente falida rede de
televisão – com uma dívida na faixa dos 300 milhões de dólares,
posteriormente quitada -, a liderança da igreja, oculta na transação,
feita por testas-de-ferro, não mediu esforços, ou melhor, sacrifícios.
Realizou a campanha “sacrifício de Isaac”, na qual seus pastores
doaram cinco salários mensais, carros, casas e apartamentos. Com o
mesmo espirito de renúncia e despojamento, fieis de todo o país
foram convocados a participar do sacrifício, doando, além de dízimos
e ofertas, jóias, poupança e prosperidade. Desde então a Universal
não parou mais de fazer aquisições e negócios milionários.
(MARIANO, 2014, p. 66)
Por isto, seus cultos não são preestabelecidos rigidamente, há uma liberdade
entre os pastores no direcionamento dos cultos, ainda conforme Mariano.
Consequentemente, na organização da rotina, a igreja apresenta bastante arranjo.
226
A Assembleia de Deus, entretanto, também faz parte da primeira onda pentecostal, segundo Paul Freston
(1993), mas utiliza de alguns suportes midiáticos como o Jornal Mensageiro da Paz, e também ingressou na
política partidária.
694
São fixados calendários dos cultos e ritos de cada dia da semana, juntamente com
seus horários. Por exemplo, em todas as sextas-feiras são feitos os rituais da
libertação (mais conhecidos como exorcismo). Os pastores e bispos pregam aos seus
fiéis que o demônio somente será retirado e suas vidas serão repletas de
prosperidade quando depositarem toda a fé e generosidade no dízimo.
O que antes pode ser considerado racional em um contexto neoliberal
econômico com as devidas desigualdades sociais e a elevação do consumo
cotidianamente, torna-se magia no movimento neopentecostal. Para os fiéis que
frequentam esta instituição religiosa – IURD -, não são as decisões públicas ou
políticas que definem o bem-estar social da população, e sim a luta contra o diabo –
considerado o destruidor do bem-estar da saúde e da riqueza. Para isto, é necessário
o cristão ser totalmente dedicado, correto, ético e disciplinado para que possa
desenvolver virtudes em seu trabalho e a elevação de ganhos econômicos em sua
vida, já que a teologia do neopentecostalismo é a da prosperidade. A missão dos fiéis
para receber benções gira em torno de uma auto-gestão de produção e de lucro que
satisfaz “das finitudes do viver humano no histórico em comunhão com o sistema
econômico e político” (FERRARI, 2007, p. 92)227.
A relação com Deus no fenômeno neopentecostal situa-se no ideário
neoliberal, pois se trata de uma fé baseada no investimento 228, em que tudo se torna
negócio e onde se promete livrar os indivíduos do sofrimento - “o
neopentecostalismo ganha espaço, principalmente, em situações de violência,
pobreza e doença” (ABREU, 2017, p. 52). Fiéis que se encontram nestas situações de
subalternidade, vulnerabilidade social, falta de auxílio etc., acabam buscando uma
saída a partir da esfera do divino. Em resumo, fazem um investimento com a igreja, a
partir de sua entrega espiritual e bens materiais, em busca da ascensão social. A
analogia entre doação e investimento, proposta pela instituição, ganha importância
na medida em que o contexto contemporâneo define o investimento do indivíduo
enquanto seu próprio capital humano.
Portanto, as relações são conduzidas e passam a ser espontaneamente de
investimento. “No âmbito neopentecostal, fazer a doação é, também, um
investimento, posto como necessário para acessar o divino” (ABREU, 2017, p. 53). O
filósofo francês Michel Foucault (2008) desenvolve o conceito de
governamentalidade229. A governamentalidade neoliberal, segundo Foucault, é o
controle do indivíduo sobre si mesmo - o indivíduo se torna seu próprio controlador,
se auto-governa. Na perspectiva da biopolítica neoliberal, instaura e define todas as
ações dos sujeitos por uma perspectiva econômica, já que o mesmo é seu próprio
governo e se tornará o empresário de si mesmo.
227
“Este enfoque de comunhão entre essa ética religiosa e o sistema econômico refletia a modernidade com
seu individualismo centrado na competição criativa e sacrifícios para acumular” (FERRARI, 2007, p. 93).
228
“As pessoas investem buscando resultados futuros, o que fundamenta a ação no presente é a ideia de uma
melhora do futuro” (ABREU, 2017, p. 52).
229
Michel Foucault, apropriou-se do termo “governamentalidade” indagando-se diante da “arte de governar”.
O que antes era um governo soberano, na modernidade passou a ser entendido, a partir das proposições do
filósofo, como extensas práticas multiplicas de governar, cada um se auto governa.
695
O neoliberalismo pode ser definido como um conjunto de discursos,
dispositivos e práticas que modelam uma nova forma de governo dos homens. É
neste sentido que Foucault (2008) desenvolve o conceito de “racionalidade política”,
dedicando pesquisas ao tema em torno do conceito de “governamentalidade”,
sobretudo no curso ministrado no Collège de France em 1979, intitulado: O
nascimento da biopolítica. O governo, para Foucault, não é como uma instituição,
mas uma atividade em que se exerce a condução das condutas dos homens.
De acordo com Foucault (2008), esse novo “espírito” do capitalismo exige que
os sujeitos tenham visão empreendedora, que assumam riscos, se adaptem ao
inesperado e sejam flexíveis em suas funções. No liberalismo clássico acredita-se que
o livre mercado proporciona igualdades jurídicas e políticas. Já no neoliberalismo,
todavia, a desigualdade é o elemento que motiva o mercado. Aqui, o sujeito
estabelece suas próprias regras, sem intervenção do Estado. O neoliberalismo
permite que a inteligibilidade econômica passe a ser aplicada em relações e
processos não econômicos, produzidos no âmbito da vida cotidiana por meio da
“condução da conduta” neoliberal. Nele é necessária uma nova recomendação de
conduta, que possa reconhecer e inventar novas formas de administração da vida,
resultado em uma subjetivação ética.
A ideia de empresário de si mesmo leva todas as relações criadas a serem
puramente investimentos, “e, nesse contexto, o indivíduo se responsabiliza por
possíveis fracassos, pois se não consegue prosperar na vida é por falta de
investimento em si mesmo” (ABREU, 2017, p. 62-63). A grande ascensão do
neopentecostalismo só é possível a partir da política de governamentalidade
neoliberal, uma vez que é crescente, atualmente, o número de sujeitos que confiam
no discurso da meritocracia, com propósitos de superar as precárias condições de
existência e de organizarem suas vidas em forma de investimento.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
O objetivo do texto lidou com a ideia do homo oeconomicus como aquele que
se sacrifica, e vai atrás de suas ideias, de suas realizações, de sua “magia” – o lucro. O
neopentecostalismo lida com o rito do dízimo (doação e oferta), aquele que vai em
busca de uma vida melhor, aquele que crê e, como retorno, recebe o amor divino, as
curas, a ascensão social e o significado de felicidade no mundo neoliberal. É nessa
ideia que tanto o neoliberalismo quanto o neopentecostalismo transferem, entre si,
responsabilidades de fracasso ou vitória para os indivíduos. Nos dois contextos há um
governo de si mesmo (autogoverno), de forma que os indivíduos devam investir em si
mesmos para conseguir atingir a prosperidade. Como sistematização, esta pesquisa
696
pretendeu jogar luz à esta temática: debater e entender como o neopentecostalismo,
com base na governamentalidade neoliberal, produz sujeitos como “máquinas”
empreendedoras que investem na fé através do sacrifício de dar seu dízimo.
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
CONCLUSÃO
REFERÊNCIAS
RESUMO: A presente produção científica tem como tema o estudo das expectativas
de futuro dos estudantes de Ensino Médio no Brasil e na Coreia do Sul. A partir desse
tema, surge a problemática de ser possível um estudo comparado entre discentes
provindos de sistemas educacionais com construções sócio-históricas-culturais tão
diferentes como a Coreia do Sul e o Brasil? Provém desse problema os objetivos de
estruturar, assim como contrastar as diferenças e similitudes entre os jovens de
Ensino Médio no Brasil e na Coreia do Sul. De maneira a sustentar esses objetivos, foi
utilizado o método comparado para obter resultados mais concisos dentro da
temática. Esse sendo sustentado no método comparado proposto por Dutra (2016),
em que podem ser comparadas instituições jurídicas e não-jurídicas, para a obtenção
precisa de resultados. Ainda para que esse método fosse melhor fundamentado, a
pesquisa bibliográfica em artigos científicos de repositórios acadêmicos e notícias
eletrônicas de jornais sul-coreanos, assim como brasileiros, foram utilizadas,
observando as leis que regem ambos os países. E também, as maneiras que elas são
aplicadas para os adolescentes, que devem estar no Ensino Médio, e sobre seus
pensares para o futuro em uma carreira, visto que essa é uma fase turbulenta da
vida, em razão de uma série de mudanças para com o ser. Com base nos dados
angariados, pode-se verificar que existe uma série de similaridades para a formação
dos alunos de nível médio no que refere-se a estrutura escolar, contudo as grandes
diferenças encontram-se na maneira com a qual cada sistema educacional aplica a
legislação e tenciona os discentes a terem visões diferentes para seu futuro, algo
703
também implicado pelas construções sócio-históricas-culturais, seja no Brasil ou na
Coreia do Sul.
INTRODUÇÃO
230
Entende-se aqui como tendo o Reino de Portugal sendo o principal colonizador, mas também havendo um
grande fluxo migratório, assim como outros colonizadores por toda a extensão do país. Visto que foram várias
as influências que o Brasil teve ao longo de sua história escrita.
231
Ídolos sul-coreanos, em tradução livre, que são pessoas treinadas e construídas dentro de um modelo da
indústria da música popular sul-coreana (DEWET, IMENES, PAK, 2017)
232
Vídeos musicais – Tradução livre
705
de seus próprios sonhos? (GENIUS, Online; RODRIGUES; VIEIRA, 2019, p. 174). Outro
apontamento encontra-se em várias outras músicas do BTS; eles discutem sobre as
dificuldades de ser jovem em uma sociedade opressiva, que exige deles mais do que
eles podem doar. Em contrapartida, as músicas falam sobre como cuidar da própria
saúde mental nesse ambiente, lições para amor próprio e entre outras temáticas
necessárias, em vista de transtornos nos meios sociais da Coreia.
Dean, um rapper sul-coreano, apresentou sobre a liquidez das relações sociais,
em sua música “Instagram”, em que ele crítica que as pessoas estão dando
preferência a relações, por vezes, passageiras, construídas em redes sociais virtuais
(DKDKTV, 20, Online). ATEEZ, também um boygroup sul-coreano, descreve sobre a
necessidade de os mais velhos ficarem “de lado” e deixarem que eles, como jovens,
sigam o próprio ritmo, pois caso tenham de errar, que o façam, mas por escolha
própria, como é tratado na letra da música ‘Thanxx’, “걱겅은 no, thanks, I`m okay
(oh-ooh) 난 그저 나일뿐인걸 (Hey, hey)”233 (ATEEZ; BOOKISH THOERIES; GENIUS,
2020, Online). Jong Hyun, em “Lonely” retratou sobre tristeza e miséria, que em
coreano somente diferem por uma letra e o idol faz um trocadilho com essas
palavras, que inferem o mesmo significado, apesar de afirmarem estados diferentes
(GENIUS, 2020, Online).
As críticas trazidas nessas letras podem ser identificadas como alertas para os
números de suicídios na Coreia, em grande parte, devido à pressão pela perfeição. Os
próprios cidadãos consideram comum a depressão motivada pelo perfeccionismo, e
caso alguém procure um psiquiatra para tratar dela, será considerado dispensável
pelos outros, em seu meio social, e não alguém proativo, necessário para a sociedade
coreana (ASIAN BOSS, 2018, Online).
Em 2012, houve a inauguração do National Youth Healing Center234, órgão do
Ministério de Gênero, Igualdade e Família, para a prevenção ao suicídio dos jovens
coreanos (DEWET; IMENES; PAIK, 2019; NYHC, Online), havendo aumento do
investimento em políticas públicas de promoção a saúde mental, em 8%, no ano de
2017, pelo governo da Coreia (K-PAPO, 2019; NYHC, Online).
Em reportagem do ‘The Korean Herald’, baseada em relatório do ‘Statistis
Korea’, foi descrito que o suicídio é um problema crônico da Coreia, sendo até
considerado como uma praga, visto que em uma “taxa de 7.7% de 100.000 pessoas,
se apresentam com idade entre 9 e 24 anos”, de mortes por suicídio, em 2017,
“havendo uma baixa de 7.8 em 2016” (KOSTAT, 2019, Online). Dentre as principais
causas apontadas pelo relatório, estão as pressões sociais que esses adolescentes
sofrem, como: o futuro emprego, a performance acadêmica e a aparência física. Esse
relatório descrimina que 45% dos adolescentes coreanos, de 13 a 24 anos, relataram
sofrer de muito estresse em 2018, tendo como maiores causas, o trabalho e a escola.
Outro tópico a ser observado, está no aumento das taxas de pessoas com depressão,
233
“Your worries? No thanks, I’m ok//I’m just doing me”, em tradução livre fica: “Suas preocupações? Não,
obrigado, estou bem//Estou fazendo por mim” (ATEEZ; GENIUS, 2020, Online)
234
Centro Nacional da Cura para a Juventude (Tradução livre)
706
número de fumantes e consumidores de álcool de alguma forma entre os anos de
2017 e 2018 (KOSTATISTICS, 2019; YONHAP, 2019, Online – Tradução livre).
Quando apontadas essas legendas para o Brasil, que tem um sistema
educacional diferenciado, tem-se outros resultados. Segundo apontou a diretora da
Secretaria de Vigilância em Saúde, do Ministério da Saúde, Fátima Marinho, o suicídio
é a quarta maior causa de mortes de jovens brasileiros, abaixo apenas dos acidentes
automobilísticos (MOREIRA, 2018, Online). Dentre as principais causas estão
problemas ligados à situação financeira familiar, distúrbios mentais e famílias
desestruturadas, e entre os principais meios para dar fim à vida, estão o
enforcamento, a intoxicação exógena e armas de fogo (BRASIL, 2017, Online),
diferenciando-se da Coreia, por seu sistema educacional e sua formação histórica,
contando com uma melhor assistência de saúde, mesmo com o tabu contra os
cuidados a saúde mental (ASIAN BOSS, 2018, Online).
Existe certa dificuldade em comparar, de forma mais aproximada, os números
de pessoas que tiraram a própria vida no Brasil, com os da Coreia. O próprio Boletim
Epidemiológico do Ministério da Saúde, assim como o Atlas da Violência de 2019 e
2020, confirmaram que no que se refere aos casos de suicídio, que chegam às
Delegacias de Polícia, os investigadores não conseguem adequar, dentro de um crime
específico, para seguir a investigação. Eles o colocam como crimes de difícil ou
impossível identificação, mesmo com a presença de lesões auto infligidas pela vítima,
logo prejudicando os dados a serem coletados e havendo uma boa compreensão
daquilo que pode estar ocorrendo com a população, dentro de casos de violência,
que podem acercar os estudantes de nível médio (BRASIL, 2020, Online), havendo,
portanto, imprecisão nessa definição somente por perfis socioeconômicos.
A educação no Brasil é uma adaptação do método cartesiano, com as figuras
do professor como educador e do aluno como educando. Todavia, agora o educador
atua mais como facilitador na compreensão do conhecimento em relação ao
educando (OLIVIERA, 2017, p. 59). Com os educadores tornando-se mais adeptos às
Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), eles estão aprendendo junto com o
educando maneiras mais simples, na forma de se ministrar as aulas e os
conhecimentos serem apreendidos (CARVALHO; KIPNIS, 2010, online). Esses fatos
estão tornando-se reais, pelas necessidades de ensino mais próximas da realidade
dos educandos, sendo, então, desnecessárias as diversas dificuldades criadas pelo
método cartesiano do ensino mais tradicional, em que práticas como exemplos
abstratos, por vezes continuam a ser utilizados (CARVALHO; KIPNIS, 2010, online).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
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___________. “N.O”. Letras por: Pdogg; “Hitman” Bang; RM; Suga; Supreme Boi. O!
RUL8, 2?. Produzida por: Pdogg. Big Hit Entertainment, 2013. CD. Track 2.
710
GOVERNO, PASTORADO CRISTÃO E CONDUTA NO
CRISTIANISMO PRIMITIVO: UMA LEITURA A PARTIR DE
SEGURANÇA, TERRITÓRIO E POPULAÇÃO DE MICHEL
FOUCAULT (2008)
235
Segurança, Território e População(2008) foi um curso ministrado pelo filósofo Michel Foucault no Collège de
France no período de 1977-1978.
236
Michel Foucault ao longo da aula, esclarece alguns dos múltiplos aspectos que se referem às práticas de
governo, e destaca que essas que são citadas são problema específico da pastoral cristã e protestante, vale-se
ressaltar, porque será de extrema importância para próxima etapa da pesquisa.
712
feita com base na obra O príncipe, de Maquiavel, que reaparece nesse período do
séc. XV,I pela noção de reestruturação territorial. A literatura anti-Maquiavel, que
surgiu também nesse período, vem dos meios católicos. O filósofo analisa pelos
reflexos, no conhecimento prático, ou melhor, da arte de governar.
Foucault primeiro estabelece na análise práticas de governo em
diversas modalidades interiores ao Estado, o que se opõe à singularidade proposta
em Maquiavel, o qual tem como foco manter seu principado de forma violenta.
Referente a três tipos de governo que se encontram no interior do Estado,
como: governo de si mesmo, arte de governar a família (pertence à economia) e
governo do Estado (pertence à política), são apresentadas por Foucault como
continuidade uma das outras, ao contrário da doutrina do príncipe, que estabelece a
sua separação. Essa continuidade proposta é dividida em dois processos, sendo a
continuidade ascendente, que é saber governar a si e a sua família antes de tudo, e o
outro que é o descendente, que é quando o bom governo do Estado reflete na
conduta dos indivíduos e na gestão familiar.
O filósofo avalia uma forma específica e particular de governo, que se
aplica tanto ao Estado, quanto ao governo da família, que é uma chave importante
para a compreensão do processo ascendente e descendente, de exercício de poder,
reconhecido por “economia”. A essa introdução econômica no exercício político,
Foucault classifica como “meta essencial do governo”. Ao se governar um Estado, o
responsável pelo governo aplica a “economia”, no sentido de governar corretamente
os indivíduos por formas de vigilância237.
237
Essa arte de governar, como descreve Michel Foucault, do modelo familiar, é exercer o poder na forma e
segundo o modelo da economia. Até então, nesse momento da análise, classifica como a “essência desse
governo” (FOUCAULT, 2008, p. 127).
713
adequado”, para as coisas que devem ser governadas. O objetivo do governo, se
alcança dispondo e se apropriando das coisas, através de táticas, fazendo parecer agir
em função de seus governados. Ao contrário do soberano, um “bom governador”
deve demonstrar “paciência, sabedoria e diligência”, tendo conhecimento das coisas
(objetivos) e demonstrando estar a serviço dos governados. As diferenciações entre
governo e soberano se dão na caracterização.
Quanto a essa noção de governo analisada até aqui, Foucault diz que “ainda é
muito tosca, apesar de alguns aspectos de novidade” (FOUCAULT, 2008, p.133). O
filósofo esclarece que o motivo era porque essa noção, ainda um esboço, não ficava a
cargo de teóricos políticos. Já a teoria da arte de governar foi desenvolvida, porque
se concentrou nas monarquias territoriais, e o aparecimento dos aparelhos de
governo e dos seus representantes, estava relacionado com o modelo de saberes que
se desenvolvia no séc. XVI e, de forma mais ampla, no séc. XVII. Tais conhecimentos
se alinhavam aos conhecimentos do Estado, a partir de uma “ciência do Estado”, que
ficou conhecida como “estatística”.
A busca por uma nova arte de governar só se amplia no séc. XVIII,
permanecendo até esse período, no interior da monarquia administrativa, segundo
Foucault (2008, p.135), por um número de razões, como: razão histórica, as guerras
que se deram na Europa no sec. XVII, as crises geradas e o reflexo que isso teve na
política monárquica ocidental.
O fato de o exercício do poder ter sido pensado como exercício da soberania, a
arte de governar não poderia se desenvolver de maneira específica e autónoma; Um
exemplo disso é o mercantilismo, que ele classifica como primeira sanção dessa arte
de governar. Sendo assim, foi “a primeira racionalização de exercício de poder como
prática de “governo”238 (FOUCAULT, 2008, p.136).
O objetivo do mercantilismo era o poder soberano e seus
instrumentos/ferramentas como as leis e os decretos. E esse caminho seguido pelo
mercantilismo procurava uma arte refletida no governo, que entrasse na estrutura
institucional e mental da soberania. Porém, esse movimento circular bloqueia essa
arte específica. Entre o séc. XVII e início do século XVIII, com mudanças nos temas
mercantilistas, a arte de governar ficou estagnada, sendo a soberania vista como um
problema. Assim, teve que ser reavaliada por juristas, tendo que atualizar a teoria do
contrato, focando seus princípios não mais nela mesma, mas nas relações recíprocas
entre os soberanos e seus súditos.
O desbloqueio dessa arte de governar se deveu especificamente pela
“emergência do problema da população”. É a partir do desenvolvimento da ciência
do governo que a economia se recentraliza, para além da família e também parte
238
Momento em que os saberes do governo e conhecimento do Estado estavam se entrelaçando e desvelando
um saber do Estado capaz de ser utilizado como tática de governo, porém só se desenvolve de fato, com o
problema da população.
714
daqui a análise da problemática da população. A partir dessa percepção, é possível a
Foucault pensar o problema do governo fora do marco jurídico soberano. A
“estatística” é pensada no marco mercantilista, no interior da administração
monárquica, sendo favorável no campo da problemática da população, mas como um
dos fatores técnicos principais para o desbloqueio da arte de governar.
A análise da população e dos fenômenos que partem dela própria,
contribuíram para o desbloqueio dessa arte de governar ao concentrar a noção
econômica em outra perspectiva que não a familiar. A “estatística” mostra como a
população é, a partir das suas regularidades próprias, comportando sua agregação e
seus fenômenos não são mais reduzidos ao modelo da família 239. Foucault (2008,
p.138) demonstra também como a população produz efeitos econômicos específicos.
Temas morais e religiosos são exemplos de temas específicos, que provam que a
especificidade da população é irredutível ao âmbito da família, e essa como modelo
de governo some. Mas, aparece no interior da população, e como segmento
privilegiado é um apoio importante para governar a população.
O filósofo esclarece o deslocamento da família, de nível modelo para o
nível que será utilizado como algo instrumental. A população passa a ser uma meta e
um instrumental final do governo, isto é, aquela finalidade já citada, que começa a
ser pensada no séc. XVII. A relação entre quem governa e quem é governado fica
mais clara nesse momento. A população como finalidade é uma forma de melhorar
sua “própria sorte”. Assim, a população é usada como um mecanismo que age
diretamente sobre ela mesma, por meio de campanhas, tendo como exemplo,
campanhas de vacinação, e de forma indireta, por técnicas, possibilitando seu
controle sem que as pessoas percebam240. Foucault demonstra, a partir dos
mecanismos de controle, como o sujeito aparece como consciente perante o
governo, porém, sem a noção completa do processo de assujeitamento. Os interesses
e aspirações individuais dos sujeitos que compõem a população vão ser o
instrumento fundamental do governo das populações. Assim nasce uma arte, ou em
todo caso, táticas e técnicas novas.
A população vai ser o objeto que o governo passa a levar em consideração nas
suas observações, seus saberes, para retornar a “paciência do soberano”, que já foi
classificada como uma característica importante anteriormente, para esse novo
governo. Assim, governando de maneira racional, refletida nas ações, a constituição
de um saber de governo, deve considerar todos os processos que cercam a
população, os quais são chamados por “economia”.
As relações que vão se desvelar entre a população, território e riqueza,
constituirão a “economia política” e uma intervenção característica do governo, pois
239
Foucault esclarece quais são os fenômenos que não se encaixam mais no modelo familiar, como: “serão as
grandes epidemias, as expansões epidêmicas, a espiral do trabalho e da riqueza”. (FOUCAULT, 2008, p.138)
Pois não suportam mais por si mesmas no modelo familiar, precisam de uma outra forma, que possa ser
utilizado também como mecanismo de controle da população.
240
Esse controle é feito de modo que as pessoas não percebam, como por exemplo, através “taxa de
natalidade, ou dirigindo nesta ou naquela região, para determinada atividade, fluxos e etc” (FOUCAULT, 2008,
p.140)
715
intervêm no campo econômico e populacional no séc XVIII. Foucault evidencia que a
soberania não desaparece por conta dessa reorganização política e jurídica, mas
quando a arte de governar toma corpo na forma institucional e, de forma sutil,
substitui a soberania no fundamento do direito que caracteriza o Estado. Essa
constituição do princípio geral de governo, que se forma a partir de certas noções,
coloca o princípio jurídico soberano, como elemento que caracteriza também a arte
de governar.
Nesse contexto, a disciplina é um importante fator para administrar a
população, de forma sutil, detalhada e profunda. Não se excluem as formas de
governo, ou melhor, de controle. Forma-se o que o filósofo chama de triângulo:
soberania, disciplina e gestão governamental. E assim, o governo, ou como é
colocado por Foucault, “a gestão governamental”, se classifica pela população e a
economia política, a partir do séc. XVIII, promovendo por essa série uma sólida
estrutura de governo.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
241
Michel Foucault define em Microfísica do poder(2018), no subtítulo Genealogía e poder, que a genealogia
como instrumento de investigação não faz uma análise histórica, mas sim “trata-se de uma insurreição dos
saberes antes de tudo contra os efeitos de poder centralizadores que estão ligados à instituição e ao
funcionamento de um discurso científico organizado no interior de uma sociedade como a nossa”. (FOUCAULT,
2018, p.268)
242
Como é analisado por Fabio Gonzaga em sua tese de mestrado, evidencio aquilo que podemos
compreender de maneira geral por governo, para explicar melhor esse processo das introduções de poder.
Assim, vale ressaltar, especificamente na modernidade, que isso ocorre de maneira substancial, pois se desvela
nas condutas dos sujeitos, isto é, relações de poder que podem acarretar “condução de condutas” (GONZAGA,
2020, p.5)
716
REFERÊNCIAS
CLÓVIS ECCO
Doutor em Ciências da Religião pela PUC Goiás e
Coordenador do Programa de Ciências da Religião da PUC Goiás
[email protected]
RESUMO: O Século XV foi um período peculiar para a História da Arte, pois, inicia-se
ainda acorrentado ao preceitos medievais e termina no auge da pintura
Renascentista e da busca pela Razão. No período Medieval o feminino foi sacralizado
na visão de Maria ou deturpado relacionado ao pecado com Eva ou as Bruxas. Com o
Renascimento, e principalmente com o artista Sandro Botticelli e sua Vênus, foi
possível romper com os padrões impostos sobre o corpo da mulher. Trazendo então
a pureza e a beleza feminina sem intenção de vulgarizar, mas sim de valorizar.
INTRODUÇÃO
243
(DUBY; PERROT, 1995, p. 07)
718
Trata-se assim do estudo das relações sociais entre os sexos, pontuando a
necessidade de estudar as mulheres em e na relação com os homens. A utilização,
nas obras historiográficas, do gênero como categoria socialmente construída,
constituiu-se em questionamento eficaz do determinismo biológico, chamando a
atenção para as relações de poder, relações estas, que podem ser analisadas através
da Arte, como a pintura no final do medievo e início do Renascimento durante o
século XV. Sendo este período, o objeto fundamental de pesquisa deste artigo para
se compreender a situação do feminino no período.
Partindo do pressuposto de gênero e o determinismo biológico imposto
sobre o feminino no renascimento para se compreender a degradação da mulher na
história e como isto refletiu na História da Arte, é necessário retornar à Reforma de
Josias244. Onde o culto das deusas desaparecera, sinalizando uma transformação
cultural, característica do mundo recém-civilizado e conquistado por Javé, o único
deus. Daí em diante, até os dias atuais, as mulheres foram marginalizadas,
inferiorizadas, subjugadas pelo masculino. A partir de então, foram colocadas em
situação de inferioridade pelo patriarcalismo, e depois de Javé, também pelo aspecto
religioso. Aspecto historiográfico este, essencial que contribuiu para a construção do
feminino durante a idade média e renascimento no século XV. Onde, seu processo de
inferiorização pode ser analisado nas obras de arte, em especial a pintura, desde o
fim do medievo até o renascimento, sendo o objetivo principal desta pesquisa.
Javé passou a ser intitulado o único deus pela Reforma religiosa introduzida
por Josias245 (649 – 609 a.C.), rei de Judá. Àquela altura, a nação das tribos israelitas
de Canaã tinha sido dividida em dois reinos. O culto das deusas então desapareceu,
sinalizando uma transformação cultural característica do mundo recém-civilizado e
conquistado por Javé, o único deus. Daí em diante, até os dias atuais, as mulheres
foram marginalizadas, inferiorizadas, subjugadas pelo masculino. Colocadas em
situação de inferioridade pelo sistema patriarcal, e depois de Javé, também pelo
aspecto religioso246. Aspecto historiográfico este, essencial que contribuiu para a
construção do feminino nos séculos posteriores e na pintura durante o fim da idade
média e inicio do renascimento no século XV.
No fim da Idade Média e inicio do Renascimento as mulheres por sua
condição de cristianização e religiosidade, fez gerar estereótipos e valores, as
244
Javé passou a ser intitulado o único deus pela reforma religiosa introduzida por Josias (649 – 609 a.C.), rei de
Judá. Àquela altura, a nação das tribos israelitas de Canaã tinha sido dividida em dois reinos. Um ao norte, o de
Israel, e um ao sul, o de Judá. E o de cima havia sido derrotado e conquistado pelo Império Assírio. Josias não
queria o mesmo destino. E parte de seus esforços para fortalecer a unidade interna de Judá e resistir aos
invasores foi uma maior centralização da vida religiosa do reino. Para isso, ele começou a transformar Javé no
único deus adorado por seus súditos. Disponível em:< LOPES, José. (2016). Deus, uma biografia. Disponível em:
https://super.abril.com.br/historia/deus-uma-biografia/.
246
ARMSTRONG, KAREN. 2009. Um Único Deus: O Fundamentalismo no judaísmo, no cristianismo e no
islamismo. Trad. Hildegard Feist. (1º ed). São Paulo: Editora Companhia de Bolso.
719
deixando “invisíveis” ao mundo. Por meio dessa cultura masculinizada, agregando
uma desigualdade entre o masculino e o feminino, fica evidente e reforça os
discursos eclesiásticos que caracterizam a inferioridade das mulheres, denominadas
como responsáveis por atos de feitiços e magias, passando a serem representadas
como detentoras do pecado (fig.01, p.4). A influência das instituições eclesiásticas na
sociedade medieval contribuiu para uma moral que definia os papéis sociais ligadas
ao gênero, a partir dos discursos religiosos, surgindo então, a figura da mulher
comparada a Eva, responsável pelo pecado original, e à Virgem Maria. A Virgem
Maria (Fig.02, p.4) seria então o modelo do feminino a ser seguido, criando, assim,
representações por meio dessas figuras, que se relacionam entre o poder e o
imaginário, que estão representados na arte deste período. Considerando o conceito
de representação para nos auxiliar nos estudos que abordam sobre as mulheres no
fim do período medieval e inicio do Renascimento, pode-se articular com a categoria
de gênero, sendo apresentadas como submissas e controladas pelo poder masculino,
estabelece-se, assim, uma subjetividade nas práticas sociais, nas políticas culturais e
nas diferenças entre os sexos. Joan Scott apresenta a seguinte afirmação:
247
Disponível em: https://upload.wikimedia.org/wikipedia/commons/1/19/Albrecht_D%C3%BCrer_-
_As_quatro_feiticeiras.jpg
248
Disponível em: https://virusdaarte.net/stephan-lochner-a-virgem-do-jardim-das-rosas/
720
De acordo com a afirmação de Dalarun “O prazer é antes de mais, o prazer do
homem” (DALARUN, 1993, p. 85), pois, a sexualidade feminina neste período era
considerada como um ato desviante no meio social, pois, para a Igreja, a mulher
deveria permanecer pura, ou manter relações sexuais após o casamento, com a
finalidade de procriação. As mulheres não tinham o direito ao prazer sexual, uma vez
que a sociedade masculina era incumbida de não deixá-las ter orgasmo. Como
reforça o autor MACEDO (1990):
249
Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sandro_Botticelli#/media/File:Sandro_Botticelli_-
_La_nascita_di_Venere_-_Google_Art_Project_-_edited.jpg.
722
que foram ensinadas em casa. Nota-se, que quando se busca a representação da
mulher ao longo da História da Arte, há implicações ideológicas enfrentadas por elas
em cada época. A mulher aparece segundo idealizações neutras ou contraditórias,
elaboradas segundo os valores de cada momento histórico. De qualquer forma, em
todas as sociedades, há sempre alguma idealização da figura feminina. Geralmente
elas aparecem como arquétipos, isto é, imagem formada no inconsciente coletivo da
humanidade, que transmitem alguma informação ao longo de diversos anos. A figura
feminina vai sendo destituída ao longo do Renascimento de seu significado
primordial como portal entre a vida e a morte e passa a associar-se aos poderes
econômicos e sociais, mas principalmente, mundanos, pois, agora, algo imaculado,
sagrado é despido diante da sociedade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
INTRODUÇÃO
250
Termo adotado por SANTANA, Uziel; MORENO, Jonas; TAMBELINI, Roberto, 2014, p. 40.
728
LIBERDADE DE CONSCIÊNCIA, DE CRENÇA, DE CULTO E A ESCUSA DE CONSCIÊNCIA –
UMA GARANTIA CONSTITUCIONAL
251
VIEIRA, Thiago Rafael; REGINA, Jean Marques, 2018, p. 113.
729
de uma fé a possibilidade de desobrigar-se de agir na contramão de sua consciência e
dos princípios morais estabelecidos pela crença que elegeu. Outro sustentáculo para
o dever de observância à escusa de consciência encontra-se nos ditames do Pacto de
São José da Costa Rica – Convenção Americana sobre Direitos Humanos (1969), mais
especificamente estampado em seu Artigo 12252.
Mesmo cuidando de assegurar esse direito fundamental, o constituinte tratou
o instituto de maneira condicional: quer dizer, para se valer da desobrigação de
determinada incumbência que a todos é direcionada, o fiel deve cumprir prestação
alternativa prevista em lei. Sobre o tema, ressaltou Cunha Júnior (2009, p. 674) que
só estará a pessoa obrigada ao cumprimento alternativo se esse encontrar-se fixado
por lei, de modo que, não havendo, pode o fiel deixar de cumprir obrigação a todos
imposta em razão de sua fé sem se sujeitar à prestação alternativa.
Exemplo prático da situação delineada é o disposto no art. 143 da Constituição
Federal, o qual estabelece a obrigatoriedade do serviço militar, mas, em
contrapartida, também delegando às Forças Armadas a necessidade de atribuir
serviço alternativo àqueles que alegarem imperativo de consciência. Ou seja, apesar
de ser uma imposição legal direcionada a todos, poderá um cidadão eximir-se se esse
invocar impedimento derivado de sua convicção religiosa. Para tanto, as Forças
Armadas lhe atribuirão serviço alternativo, razão pela qual estabeleceu-se a Lei nº
8.239 de 4 de outubro de 1991, a qual traz tratamento próprio no que se refere à
prestação de serviço alternativo ao serviço militar obrigatório.
Vale ressaltar, entretanto, que “o direito à escusa de consciência não está
adstrito simplesmente ao serviço militar obrigatório, mas pode também abranger
quaisquer obrigações coletivas que conflitem com as crenças religiosas, convicções
políticas ou filosóficas” (MORAES, 2016, p. 112). Por fim, pertinente é o instituto,
devido ao fato de que “o constrangimento à pessoa humana de forma a renunciar
sua fé representa o desrespeito à diversidade democrática de ideias, filosofias e a
própria diversidade espiritual” (MORAES, 2016, p. 113), motivo suficiente para que
seja esse devidamente honrado.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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Artigo 12 - Liberdade de consciência e de religião
1. Toda pessoa tem direito à liberdade de consciência e de religião. Esse direito implica a liberdade de
conservar sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças, bem como a liberdade de
professar e divulgar sua religião ou suas crenças, individual ou coletivamente, tanto em público como em
privado. 2. Ninguém pode ser submetido a medidas restritivas que possam limitar sua liberdade de conservar
sua religião ou suas crenças, ou de mudar de religião ou de crenças.
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de todo o arcabouço legal vigente, e que pressupõe do Estado um relacionamento
com a religião dotado de neutralidade positiva, significando profundo respeito às
variadas expressões religiosas e aos direitos que dela decorrem.
REFERÊNCIAS