03 - o Enquadre No Processo Psicodiagnóstico

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Capítulo 3 - O Enquadre no Processo Psicodiagnóstico

Em todas as atividades clínicas, e entre elas se inclui o psicodiagnóstico, é necessário


partir de um enquadre.
O enquadre pode ser mais estrito, mais amplo, mais permeável ou mais plástico,
conforme as diferentes modalidades do trabalho individual ou conforme as normas da
instituição na qual se trabalhe. Varia de acordo com o enfoque teórico que serve como
marco referencial predominante para o profissional, conforme a sua formação (seus
antecedentes genealógicos, dizia Heinrich Racker), suas características pessoais e
também conforme as características do consultante.
Alguns profissionais afirmam que trabalham sem enquadre. Esta afirmação, no entanto,
encerra uma falácia, pois essa posição de não-enquadre já é por si mesma uma forma
de enquadre, em todo caso do tipo laissez-faire. Cada profissional assume um sistema
de trabalho que o caracteriza, além das variáveis que possa introduzir no caso.
A qualidade e grau da patologia do consultante nos obrigam a adaptar o enquadre a
cada caso. Não é possivel trabalhar da mesma forma com um paciente neurótico, com
um psicótico ou com um psicopata grave. Cada caso implica diferentes graus de
plasticidade. Uma pessoa absolutamente dependente exigirá esclarecimentos
permanentes do que deve ou não fazer, enquanto que outros sentirão nossas
intervenções como interferências desagradáveis. Um psicopata precisa ser limitado
constantemente. O psicótico exige de nossa parte uma total concentração, precisa ser
limitado, mas também cuidado, protegido…e precisamos também proteger-nos.
A idade do paciente também influi no enquadre escolhido. Com uma criança pequena,
sentaremos para brincar no chão se ela assim o solicitar; mas não com um adulto. Com
adolescentes, sabemos que precisamos ser mais tolerantes quanto à sua freqüência,
sua pontualidade e suas resistências para realizar certos testes dos quais “não
gostam”. Talvez queiram antes acabar de escutar uma música em seu toca-fitas, A
escutaremos até ele dizer que podemos começar. Talvez fizéssemos o mesmo com
uma criança ou com um adulto psicõtico.
Conclusão: é impossível trabalhar sem um enquadre, mas não existe um único
enquadre.
Quando questionados sobre o enquadre que usamos, muitas vezes acontecerá que a
reflexão vem a posteriori da prática clínica. Em primeiro lugar, agimos, e depois
refletimos sobre como e por que trabalhamos daquela forma. Bion recomenda trabalhar
com absoluta atenção flutuante e liberdade, e após terminada a ses-

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são, então sim, é aconselhável tomar notas e pensar sobre o ocorrido, No


psicodiagnóstico isto aplica-se principalmente à entrevista inicial. Nas seguintes já é
necessário agir de outra forma para atingir nosso objetivo.
Seja com um adolescente, um adulto ou com os pais de uma criança, a primeira
entrevista nos dará subsídios que facilitarão o enquadre a ser escolhido. Seu
comportamento, seu discurso, suas reações, são indicadores que nos ajudam a
resolver que tipo de enquadre usaremos, se mais estrito ou mais permissivo
O enquadre inclui não somente o modo de formulação do trabalho mas também o
objetivo do mesmo, a freqüência dos encontros, o lugar, os horários, os honorários e,
principalmente, o papel que cabe a cada um.
O papel do psicólogo não é o do que sabe enquanto que o do paciente é o do que não
sabe. Ambos sabem algo e ambos desconhecem muitas coisas que irão descobrindo
juntos. O que marca a assimetria de papéis é que o psicólogo dispõe de conhecimentos
e instrumentos de trabalho para ajudar o paciente a decifrar os seus problemas, a
encontrar uma explicação para os seus conflitos e para aconselhá-lo sobre a maneira
mais eficiente de resolvê-los.
Quando alguém chega pela primeira vez, eu pergunto: “Em que posso ajudá-lo?” e com
a resposta obtenho a primeira chave sobre a forma de encarar o caso. Se a resposta
for: “Venho porque estou preocupado, estou muito nervoso, não consigo dormir, não me
concentro no trabalho e não sei por que isso acontece”, não provoca a mesma reação
do que se responde: “Não sei, foi o médico que me mandou porque estou com úlcera e
ele diz que é psicológico”. Perguntaríamos: “Mas você, o que pensa. Acha que o
médico está certo?” Sua resposta pode ser afirmativa, o que abre uma perspectiva mais
favorável, ou pode responder: “Não, eu não acredito nessas coisas”. Essa resposta
deixa pouquíssima margem para encarar qualquer tipo de trabalho. Se o médico nos
enviou seu paciente e espera receber um informe psicológico, devemos explicar-lhe
que mesmo que ele não acredite faremos alguns testes para poder enviar ao médico
uma resposta conforme o que ele espera de nós.
Não sendo assim, é muito difícil realizar o psicodiagnóstico e quase é conveniente
colocar que o prorrogaremos até que ele sinta a necessidade de fazê-lo, até que esteja
mais convencido de que seu médico está com a razão. Do contrário, mesmo que ele
faça de boa vontade o que lhe pedirmos, as conclusões que obtivermos não terão valor
nenhum para ele, e a entrevista de devolução poderia tornar-se uma espécie de desafio
no qual nós queremos convencê-lo de algo que ele se nega a aceitar.
Sobre o assunto do enquadre cabe lembrar José Bleger, respeitado e prestigiado
psicanalista argentino, que em seu artigo “El psicoanálisis dei encuadre psicoanalítico”
(A psicanálise do enquadre psicanalítico) publicada na “Revista Argentina de
Psicoanálisis” comenta que existem certos aspectos do enquadre que permanecem
“mudos” até que alguma circunstância nos obriga a rompê-los, e então aparecem com
clareza.
Suponhamos que o terapeuta tenha sido sempre pontual, até que um dia um problema
no trânsito o obriga a chegar vinte minutos mais tarde. O paciente está esperando
furioso, quase o insulta e grita “porque o senhor deve estar aqui quando eu chego”. Se
não houvesse surgido esta “ruptura” do enquadre, essa reação teria permanecido
sempre encoberta pela seriedade do comportamento do terapeuta.
Tanto Bleger como Donald Meltzer, em sua obra “El proceso psicoanalítico” (Paidós) (O
processo psicanalítico), concordam em que tanto o profissional como o paciente trazem
para o encontro um aspecto mais infantil e outro mais maduro. Se o contrato analítico (e
o do psicodiagnóstico também) é feito sobre a base dos aspectos infantis de ambos, os
resultados serão negativos e perigosos. Assim, por exemplo, a avareza de um
profissional pode levá-lo a aceitar um enquadre fixado pelos

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pais, que podem ser horários exóticos, ou menos vezes por semana do que seria
aconselhável em troca de poder receber ótimos honorários. O mesmo pode ocorrer
entre a criança ou o adolescente e o profissional, se este aceitar condições de trabalho
que eles impõem por um capricho. Suponhamos que a criança propõe brincar de quem
escreve mais rapidamente o maior número de palavras que começam com uma letra
determinada. E óbvio que o terapeuta será o vencedor. A náo ser em casos nos quais
seja terapêutico fazer a criança passar por esta prova de realidade, aceitar o desafio é
colocar-se à altura da criança onipotente que pode vencer o adulto em tudo.
Em La entrevista psicológica (publicação interna da Faculdade de Filosofia e Letras da
Universidade de Buenos Aires), coloca Bieger:

Para obter o campo particular da entrevista que descrevemos, devemos contar com um
enquadre fixo que consiste na transformação de certo conjunto de variávcis em
constantes. Dentro deste enquadre inclui-se não somente a atitude técnica e o papel do
entrevistador como o temos descrito nias também os objetivos, o lugar e a duração da
entrevista. O enquadre funciona como um tipo de padronização da situação estímulo
que oferecemos ao entrevistado, e com isso não pretendemos que deixe de agir como
estimulo para ele mas que deixe de oscilar como variável para o entrevistador. Se o
enquadre sofre alguma modificação (por exemplo, porque a entrevista é realizada em
um lugar diferente) essa modificação deve ser considerada como uma variável sujeita á
observação, tanto como o próprio entrevistado. Cada entrevista possui um contexto
definido (conjunto de constantes e variáveis) devido ao qual ocorrem os emergentes e
estes só fazem sentido e são significativos em relação e devido a esse contexto. O
campo da entrevista também não é fixo, mas dinâmico, o que significa que está sujeito
a uma mudança permanente, e a observação deve se estender do campo especifico
existente a cada momento à continuidade e sentido dessas mudanças…Cada situação
humana é sempre única e original, sendo assim também o será a entrevista, fias isto
não se aplica somente aos fenómenos humanos mas também aos fenômenos da
natureza, o que já era do conhecimento de Heráclito. Esta originalidade de cada
acontecimento não impede o estabelecimento de constantes gerais, ou seja, das
condições em que os fatos se repetem com maior freqüência. O individual não exclui o
geral nem a possibilidade de introduzir a abstração e categorias de análise…a forma de
observar bem é ir formulando hipóteses enquanto se observa, e no transcurso da
entrevista verificar e retificar as hipóteses durante seu próprio transcurso em função das
observações subseqüentes que, por sua vez, vão ser enriquecidas pelas hipóteses
prévias. Observar, pensar e imaginar coincidem totalmente e fazem parte de um único
processo dialético.

Como vemos, Bleger enfatiza a importância do enquadre para manter o campo da


entrevista de uma forma tal que uma série de variáveis (aquelas que dependem do
entrevistador) se mantenham constantes. Isto contribui para uma melhor observação.
Meltzer, de formação puramente kleiniana, enfatizou a importância do respeito ao
enquadre, mas a sua idéia de enquadre defendia a atitude do terapeuta como a de uma
tela de projeção (conceito de Paula Heimann) ou um espelho mudo, o que o conduziu a
exageros ridiculos, suprimidos na atualidade.
Segundo Bleger, o enquadre seria o fundo ou a base, e o processo analítico (nós o
chamaríamos de processo psicodiagnóstico), a imagem do que, unindo ambos os
conceitos (enquadre e processo) configuraria a situação analítica. O enquadre seria o
fator constante, o que não é processo. O processo seria aquilo que é variável, o que se
modifica. Isto é o que explica de que forma vai se desenvolvendo o processo
terapêutico. No caso de um psicodiagnõstico podemos fazer uso destes conceitos. A
situação não é a analítica. Mas, da mesma forma, precisamos observar o indivíduo para
fazer um diagnóstico correto. Devemos ter certeza de que aquilo que surgir será
material do paciente (variáveis por ele introduzidas) e não nosso.
Como colocamos anteriormente, Bleger e Meltzer concordam ao afirmar que tanto o
terapeuta como o paciente trazem um lado infantil e outro mais maduro. O enquadre,
ponto de partida de importância decisiva para o processo psicodiagnóstico,

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tanto como para o terapêutico, se torna ainda mais complicado quando consideramos
que cada um dos pais e de seus filhos também trazem ambos aspectos. Por isso,
advertimos sobre o risco de que se estabeleçam situações nas quais são colocadas em
jogo as partes infantis (primitivas e onipotentes) de cada um, inclusive do próprio
profissional.
Vejamos um exemplo. Uma senhora marcou uma consulta para uma menina de seis
anos. Chamou minha atenção o fato de que me chamara de você desdé o início.
Atualmente, este é um fato comum, mas não há quinze anos. Eu mantive a postura de
chamá-la de senhora e disse-lhe que deveria comparecer com seu esposo à primeira
entrevista. Ela negou-se terminantemente, alegando que ele viajava constantemente e
não dava atenção à menina. Acrescentou ainda que ele “não acreditava nessas coisas”
e que a deixava resolver esses assuntos. Esta senhora colocou-se no papel de “dona
de casa” e colocou-me num papel tipo o de uma professorinha para a menina que
estava com problemas na escola. Sua forma autoritária de dispor o contrário daquilo
que eu solicitava já me fazia pensar em outros problemas além daqueles que ela
colocava. Expliquei-lhe, sempre ao telefone, que eu tinha interesse em escutar a
opinião do pai e que tudo o que fosse resolvido devia ser responsabilidade do pai e não
somente da mãe. Mesmo assim, na hora marcada chegou sozinha e tentou
constantemente estabelecer comigo uma aliança contra o marido, a quem ao mesmo
tempo usava, dispondo, em seu lugar, das suas decisões e da sua situação financeira.
Isto poderia ser produto do despeito de uma esposa abandonada, mas de fato impunha
a mim a exclusão do marido.
Além do mais, esclareceu que a menina era filha adotiva e que não devia sabê-lo
nunca. Isto criou dificuldades intransponíveis para trabalhar, pois não só excluia o
marido como também a própria filha. Devido à minha insistência, o marido assistiu à
segunda entrevista e foi possível falar sobre a relação dos problemas de aprendizagem
com os desentendimentos do casal e o fato de ocultarem da menina a verdade sobre a
sua origem. O marido era, de fato, evasivo e resistente, mas não tanto quanto ela o
fazia parecer, devido ao seu rancor de esposa e mãe frustrada. Eu insisti quanto à
necessidade de contar à menina sobre a adoção e não aceitei vê-la enquanto eles não
decidissem encarar a situação sem mais mentiras. Nunca mais ouvi sobre eles.
Em outro caso semelhante, o resultado foi positivo, pois a consulta ficou centralizada na
necessidade que eles tinham de uma ajuda externa para encarar a dificuldade do
momento de dizer a verdade.
Perto do final da primeira entrevista, costumamos explicar ao paciente (ou a seus pais)
que deverá fazer alguns desenhos, inventar algumas estórias, etc, e que logo após nos
reuniremos para conversar sobre os resultados. Quando está prevista uma entrevista
familiar, devemos também adverti-lo com tempo. Geralmente não há resistência quando
é dito que desejamos conhecer como é a família quando estão todos juntos.
Durante a hora do jogo diagnóstico e das entrevistas familiares diagnósticas, nosso
papel será o de um observador não participante. O mesmo acontece no momento de
aplicar os testes. Somente após colher a produção espontãnea do individuo deveremos
intervir mais ao fazer algum inquérito (como no Rorschach, TAT, CAT ou Phillipson) e
inclusive algum exame de limites.
Nosso papel é muito mais ativo durante a entrevista final, na qual o esperado é
justamente que demos a nossa opinião sobre o que ocorre. A recomendação da
estratégia terapêutica mais adequada deve ser formulada e devidamente fundamentada
pelo profissional, dada a autoridade que o seu papel lhe confere. Quando, para o
paciente, é muito difícil assimilar toda a informação que temos para dar-lhe, é
aconselhável marcar mais uma ou duas entrevistas.

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É muito difícil definir o papel do psicólogo no momento da devolução de informação.


Com alguns adultos ou adolescentes poderemos trabalhar com elasticidade e
plasticidade, enquanto que com outros deveremos ser mais drásticos.
Lembro um caso bem sério, de uma menina de quatorze anos que já havia passado por
um aborto e duas fugas de seu lar com seus namorados. Toda vez que eu tentava
mostrar a gravidade destes fatos, os pais, principalmente a mãe, desconsideravam
minha opinião, dizendo que esses eram fatos habituais entre os adolescentes. Precisei
então adotar um papel mais fechado e definido. Essa senhora era uma executiva
importante e não soltou sua pasta durante toda a entrevista, como se isso definisse o
seu papel: o de unia executiva. Usando essa linha de pensarnento estabelecida por ela,
coloquei: “Bem, a senhora sabe mais do que eu sobre como administrar uma empresa,
mas eu sei mais do que a senhora sobre o que é um adolescente, e posso afirmar que
o caso da sua filha não é algo habitual nem inconseqüente. Mas ela é sua filha e não
minha. Portanto, pode acreditar ou não em mim. Faça de conta que eu fiz nela um
exame de sangue e lhe disse que está anêmica e a senhora me responde que é
habitual na adolescência. O que acha? Quem está mais próxima da verdade?
Este não é o meu modo habitual de trabalhar, mas a ética profissional orienta-nos a
dizer a verdade, porque para isso somos consultados, e se em determinados casos
precisamos fazer intervenções mais drásticas, é imprescindível fazê-lo, pelos pais, pela
filha e por nós mesmos.
Muitas vezes o processo psicodiagnóstico não acaba com a aceitação fácil de nossas
conclusões. Os consultantes precisam tempo para pensar, para assimilar o que lhes foi
dito. Muitas vezes também nós precisamos de tempo para ratificar e retificar as nossas
hipóteses. De modo que algumas vezes é necessário modificar o enquadre inicial no
que se refere ao número de entrevistas e deixar mais espaço para concluir o processo
com maior clareza.
Até aqui tenho feito uma descrição de meu trabalho particular. Quero agora dedicar um
breve espaço ao enquadre no âmbito institucional.
Cada instituição pode (e deve) fixar os limites dentro dos quais vai se desenvolver o
trabalho do psicólogo. Por exemplo, a duração de cada entrevista, o tipo de diagnóstico
que se espera, o modo de deixar registrado e arquivado o material, o tipo de informe
final, etc.
Mas o tipo de bateria que será usada e a sua seqüência é de responsabilidade
exclusiva dos psicólogos. Eles decidirão de comum acordo o modus operandi. Do
contrário, podem ocorrer situações ridículas, iatrogênicas e até legalmente objetáveis.
Lembro como exemplo o caso de um grupo de psicólogos que me solicitou uma
supervisão. No caso, o Questionário Desiderativo era indispensável para concluir o
diagnóstico, mas os psicólogos me responderam que esse teste não era aplicado nessa
instituição: assim fora estabelecido pelo Chefe de Serviço, médico psiquiatra. Em outra
ocasião, tomei conhecimento de que em outro Serviço de Psicopatologia era proibido
fazer testes porque “isso já passou de moda e é uma perda de tempo”.
Como pode-se pretender que o profissional arrisque um diagnóstico e realize uma
psicoterapia se ao mesmo tempo não lhe é dada a liberdade para usar os instrumentos
cientificos dos quais precisa para esse fim?
Os jovens psicólogos, ávidos por experiência clínica, não percebem essas armadilhas e
tornam-se suas vítimas quando devem recorrer à supervisão para satisfazer as
exigências da instituição.

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