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vinte Sinais de cena 12. 2009 Dossiê temático Bruno Schiappa Mulheres fora do teatro

Mulheres fora do teatro 1

Bruno Schiappa

>
Mulheres em recreio,
de autor anónimo.

1
Este trabalho foi
realizado no âmbito do Durante o séc. XVIII, as mulheres estavam proibidas de o reinado de D. José I, devido ao profundo ciúme da rainha
projecto de investigação actuar, primeiro, nos espectáculos de Corte e, mais tarde, Mariana, não eram sequer admitidas entre o público nos
“História do Teatro nos teatros públicos. Durante o reinado de D. Maria I, espectáculos reais. Em 1772, dois estrangeiros, Richard
Português online” chegaram mesmo a ser banidas não apenas dos palcos, Twiss e William Wraxall, escreveram:
financiado pela FCT mas também do auditório. Esta circunstância limitou a
(PTDC/HAH/72397/2006), evolução do Teatro em Portugal e tornou mais moroso o A 17 de Novembro, desloquei-me ao palácio do rei, em Belém
desenvolvido no Centro desenvolvimento da sociedade portuguesa no que diz (...) onde assisti à ópera italiana Ezio. A orquestra é excelente;
de Estudos de Teatro da respeito às ideias promovidas pelo Iluminismo. O Iluminismo não se admitem mulheres, excepto as da casa real, a este
Universidade de Lisboa. considerava o teatro uma escola de civilização, um moderador espectáculo. Também não são admitidas no teatro: castrados
de vícios e um construtor de moralidade e, para que tal disfarçados de mulheres tomam o seu lugar, e a ilusão é perfeita.
Bruno Schiappa acontecesse, devia ser sempre vraisemblable. Mas a Mas chocou-me ver os ballets dos intervalos executados por
é actor e encenador de atmosfera teatral portuguesa – na qual apenas os homens homens, cujas barbas negras e largos ombros sob trajos de
teatro e Mestre em representavam todos os papéis – considerada ridícula por mulher não inspiram nada de agradável. Este costume invulgar
Estudos de Teatro pela muitos estrangeiros que visitaram Portugal na altura, não é atribuído ao ciúme da rainha. (Twiss apud Carreira 1988: 391)
Faculdade de Letras da podia ser um grande contributo para a concretização desse
Universidade de Lisboa. título tão elevado que o resto do mundo ocidental conferia Uma circunstância distinguia estas representações de tudo
Prepara actualmente, ao teatro. o que eu tinha visto noutros locais; poderá parecer bastante
com uma bolsa da FCT, extraordinário, pelo que dificilmente a acreditarão: as mulheres
um doutoramento na As mulheres gradualmente banidas do teatro eram completamente excluídas, não só da sala, mas também
mesma área científica Já durante os últimos anos do reinado de João V, as mulheres do palco; assim, nenhuma podia ser espectadora nem actriz.
na FLUL. começaram a ser afastadas dos teatros de Corte. Durante (Wraxall apud ibidem)
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Mulheres fora do teatro Bruno Schiappa Dossiê temático Sinais de cena 12. 2009 vinte e um

Depois da morte de D. José e a seguir a um hiato teatral nosso país entre 1787 e 1797. William Beckford (1760-
de dois anos, as mulheres foram banidas dos Teatros 1844) esteve em Portugal em 1787/88 e de novo em 1794:
Públicos. Laureano Carreira afirma que, nesta altura, as
mulheres apenas actuavam em casas particulares (Ibidem: Estive mais entretido do que esperava, apesar da récita durar
398). Com D. Maria I, a aplicação das medidas que proibiam mais de quatro horas e meia, das sete até perto da meia-
as mulheres nos palcos tornou-se tão forte que “a proibição noite. Compunha-se o espectáculo de uma empolada tragédia
de subirem mulheres ao palco aparece como condição sine em prosa, em três actos, intitulada Sesostris, dois bailados,
qua non para que um texto teatral possa ser representado” uma pastoral, e uma farsa. As decorações não eram más, e
(Eleutério 2003: 278). Tal afirmação significa que, para os trajos eram pomposos.
conseguir licença da Real Mesa Censória para que um texto Um jovem de andar incerto, e olhar turvo, trajando o
fosse levado a cena, os empresários teatrais tinham que mais pesado luto, guinchou e roncou alternadamente o papel
declarar que o mesmo seria exclusivamente representado de uma princesa viúva. Outro adolescente, mal seguro nos
por homens. D. Maria I defendia que tal imposição visava seus sapatos de tacões altos, representava a Sua Majestade
a manutenção da moral e bons costumes. egípcia, e garganteou duas árias com toda a nauseabunda
Numa carta de 1779, Arthur William Costigan suavidade de um aflautado falsete.
(pseudónimo literário do Major português Diogo Ferrier) Conquanto eu tivesse vontade de lhes esmurrar os
escreveu: ouvidos, por me terem tão grosseiramente aturdido os meus,
o auditório foi de mui diversa opinião, e aplaudiu-os com o
Meu querido irmão: maior entusiasmo. (Beckford 1835: 239-40, tradução nossa)
Prometi numa das minhas cartas contar-vos uma
representação teatral a que assistimos. Foi uma autêntica Duc du Châtelet (1727-1793) esteve em Portugal em
farsa; na minha maneira de ver, excedeu em ridículo e burlesco ano incerto e os seus escritos foram publicados em 1799:
tudo quanto de mais grosseiro, mesmo nos tempos mais
rudes, foi alguma vez produzido no teatro. Agora não há aqui Para levar ao cúmulo da repugnância que inspiram as suas
teatro público, pois a piedosa rainha não permite uma escola representações dramáticas, uma falsa ideia de decência
pública de imoralidade; menos ainda admitiria que mulheres afastou completamente as mulheres, e temos de nos resignar
aparecessem em cena. É de opinião que consentir às mulheres a ver representar por homens, que nem sempre são imberbes,
que se exibam desta maneira em público é parecer patrocinar os papéis de rainhas, de princesas e de amorosas. O belo sexo
o vício favorito do país; visto que a principal preocupação é é excluído mesmo dos ballets. O reportório dos seus actores
evitar o escândalo. Isto confirma o que já disse em tempos, tem sido composto em grande parte, nestes últimos tempos,
assim como concorda com o conselho que os velhos frades, pelas melhores peças traduzidas do francês, do italiano, num
neste país, dão sempre aos novos: si non caste tantum modo grande número do espanhol e algumas somente do inglês.
caute, se não podeis ser casto ao menos sede cauteloso. Em Traduziram mesmo várias das nossas óperas-cómicas. Mas
conformidade com estas razões, Sua Majestade, mercê da as suas peças favoritas são ainda as que lhes contam os
sua autoridade absoluta, pode proibir às mulheres de mistérios da paixão e outros aspectos do Livro Sagrado;
representarem em público: elas, porém, agradecem a Deus aquelas que representam Jesus Cristo, a Virgem Santa e os
o não poder ela impedir de representarem em particular. Santos. (Châtelet 1799: 83, tradução nossa)
(apud Carreira 1988: 476)
Robert Southey (1774-1843) esteve em Portugal nos
Independentemente de as razões acima aduzidas ou anos de 1979 e 1800 e escreveu:
o profundo ciúme da rainha terem sido a causa de tais
medidas, o facto é que apenas em 1800 as mulheres foram, A ópera italiana, cujo absurdo exige uma tal perversidade, é
oficialmente, autorizadas a regressar aos palcos nacionais. normalmente aguardada aqui com interesse. A rainha actual
não admite que as mulheres apareçam no palco, e esta
Testemunhos de estrangeiros sobre o teatro em medida, na verdade uma consequência do seu ciúme, dizem
Portugal que procede da sua preocupação pela moral pública. Tinha
Vários viajantes deixaram as suas impressões sobre a vida sido dada permissão, quando eu cheguei, para que uma
teatral em Portugal durante o séc. XVIII. Seleccionei os bailarina se exibisse e o teatro estava esgotado por essa razão.
testemunhos de três desses estrangeiros que visitaram o Onde estava a preocupação da rainha com a moral pública
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> quando permitiu tal? Não se deveria autorizar nenhum


D. Maria I divertimento que não fosse benéfico para o espectador e
(reinou 1777-1816), fosse vicioso para o intérprete. Tais proibições de índole
de autor anónimo. espartana seriam vistas como despóticas nos nossos Estados
modernos e liberais, onde leis sumptuárias são consideradas
entraves à liberdade. (Southey 1799: 345-46, tradução nossa)

Como se pode inferir, o resultado de homens a


representarem mulheres não era, nestes casos, muito
agradável. De acordo com estes três testemunhos, podemos
imaginar que, para o público local, o resultado fosse
igualmente ridículo, grotesco ou, pelo menos, cómico.
Seria esse, seguramente, o efeito de uma caricatura
constante e, desse modo, não honraria o teatro.

Pina Manique e o afastamento das mulheres do


palco e dos auditórios
A 15 de Dezembro de 1780, dando o seu parecer acerca
de um pedido de Licença para espectáculos de teatro, Pina
Manique escrevia a D. Maria I o seguinte:

Todos este motivos me parecem os Supp.tes dignos da graça


que pretendem muito principalm.te sendo as representaçoens
todas feitas por homens com o q’ não pode haver receio
aconteçam aquelles desturbios q. são infalíveis quando se
de to
dá hum gr. ajuntam. de Pessoas de ambos os Sexos. E
para cortar qualquer abuzo q. se possa introduzir será precizo
que debaixo de qualquer pretexto que se alegue se não
consintam mulheres algumas p.ª dentro das portas do Theatro destacado naquela Corte. Foi o próprio Pina Manique
da reprezentação, bastedores e Cazas de Senario e vestuario; quem a aceitou para a celebração, mas Victor Eleutério
e q. nos Camarotes não haja cortinas nem se consintam refere que “A frieza da recepção, a ausência da família
mulheres e Meretrizes q. vão servir de escolho á virtude. real, a falta de entusiasmo por parte do auditório,
(Intendência Geral da Polícia, Livro I, f. 86v/87) assinalavam dramaticamente a diferença em presença da
actriz cantora mais famosa da Europa” (Eleutério 2003:
Luisa Todi foi a actriz/cantora portuguesa mais famosa 263).
do séc. XVIII. Trabalhou em Lisboa, seguindo depois para Luisa Todi regressaria a Portugal em 1799, acabando
o Porto onde trabalhou entre 1771 e 1776, altura em que por morrer em 1811, pobre e cega. A 21 de Junho de 1793,
deixou Portugal para trabalhar no estrangeiro, tornando- o mesmo Intendente pedia a D. Maria I permissão para
se muito famosa e actuando nos mais prestigiados palcos mudar o nome do novo Teatro de Ópera, de Princesa do
da Europa. Apesar da importância diplomática do facto Brasil, para São Carlos:
de fazer chegar o nome de Portugal onde quer que actuasse,
sofreu as medidas restritivas que não permitiam às Restame agora só rogar a S. A. queira dignar-se permitir a
mulheres actuarem nos palcos portugueses. Só lhe foi licença de se denominar o Theatro da Princeza do Brazil com
permitido o regresso para cantar em 1793, por ocasião o Titulo de S. Carlos, e que o Mesmo Senhor quizesse honrar
da celebração do nascimento da Princesa da Beira, Maria aquella Caza vindo assistir no dia, que o ditto Senhor
Teresa de Bragança. Todi precisou de um visto especial assignalar para a sua abertura, o que os seos Vassallos
que só lhe foi concedido devido à intervenção da Imperatriz esperão anciozam.te, e receberem esta honra em satisfação
da Prússia e ao pedido feito pelo diplomata português do gosto, e disvello, com que a Policia emprehendeo a ditta
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Mulheres fora do teatro Bruno Schiappa Dossiê temático Sinais de cena 12. 2009 vinte e três

obra para ornamento desta famoza Capital, e o mais que hé Europa, onde havia estado. Hé certo, que nenhum Pai de
prezente a S. A. (Intendência Geral da Polícia, Livro IV, f. 38v) familia está obrigado a admitir em sua Caza pessoa algũa
contra sua vontade; Hé igualm.e certo, que a mulher, e filhos
O teatro tinha sido construído com fundos estão sujeitos áquelle; e que o recorrente tem dado provas
providenciados por vários comerciantes e as receitas de que conserva sua mulher, e filha sem nota alguma no
reunidas eram destinadas ao financiamento do bom seo preocedimento, o que assas raro entre gentes que se
funcionamento da Casa Pia, um Orfanato para rapazes occupão em Theatros. (Intendência Geral da Polícia, Livro
fundado por Pina Manique. D. Maria I não estava VIII, f. 85v)
interessada em promover um Teatro, uma vez que tinha
sido decisão sua o afastamento das mulheres dos palcos Tanto a esposa como a filha de Catalani eram actrizes
oficiais, logo, para que um teatro público obtivesse a sua e cantoras e o episódio teve lugar a seguir a uma estreia
bênção era melhor que tivesse um título religioso. Uma no Teatro S. Carlos.
vez que o arquitecto do S. Carlos – José da Costa e Silva
– tinha seguido o plano do teatro S. Carlo em Nápoles, a Quer devido a uma autoridade déspota ou sob razões de
escolha do nome era fácil. De facto, se estas estavam ordem religiosa, a censura contra as mulheres criou um
proibidas de actuar como poderia um Teatro ter o nome abismo ainda maior do que aquele que já existia entre
de uma mulher e, principalmente, de uma mulher da Portugal e o resto da Europa. Limitou a evolução teatral
realeza? O facto de o Teatro S. Carlos ter sido nomeado, porque ignorou a importância das mulheres para
anteriormente, Teatro da Princesa do Brasil, induziu em veicularem emoções femininas. Falhando este aspecto, o
erro alguns dos nossos historiadores sobre a origem do papel do teatro enquanto “escola de civilização” também
actual nome. falhava. Em consequência, as ideias do Iluminismo não
tiveram, entre a população portuguesa, o esperado alcance,
A extensão do preconceito pelo menos no que diz respeito ao teatro. Foi um retrocesso
Parafraseando Roland Barthes, as mentalidades demoram em relação ao que o Marquês de Pombal tinha avançado.
mais tempo a mudar do que as ideologias. O preconceito Foi um retrocesso em relação ao resto do mundo. Foi esta
pertence ao âmbito da mentalidade e, por isso, quando se a consequência de uma situação que durou mais de duas
instala, mesmo que as circunstâncias sociais e políticas décadas. Uma situação que manteve o público afastado
mudem, aquele permanece inalterável por longo tempo. da verdade e da seriedade, privando-o de ver mulheres a
A 3 de Janeiro de 1805, o Intendente da Polícia à época, actuarem. Foram estas as consequências de manter as
ainda sob a autoridade de D. Maria I (apesar de a loucura mulheres fora do teatro, silenciando as vozes das mesmas
desta estar já num estado muito avançado e de o seu filho e proibindo as suas vidas.
ser o regente desde 1799), escreveu nos Livros da
Intendência Geral da Polícia:
Referências bibliográficas
Reprezentando-me Agostinho Catalani, que em sua propria
Caza havia sido insultado por Jozé Antonio Caminha, Lucio AA. VV., Contas da Secretaria da Intendência Geral da Polícia, Livros I, IV
Jozé Bolonha, e Manoel Izidro da paz, dando-lhes algũas e VIII, A. N. T. T.
bofetadas, e pertendendo lança-lo pela escada abaixo por BECKFORD, William (1835), Italy, with Sketches of Spain and Portugal, Vol.
querer o Sobredito Agostinho Catalani conservar a honra da II, London, Richard Bentley.
sua caza, e não os consentir nella; não deferi logo a esta CARREIRA, Laureano (1988), O Teatro e a censura em Portugal na segunda
reprezentação por elle ma fazer pelas nove horas da noite metade do séc. VXIII, Lisboa, Imprensa Nacional – Casa da Moeda.
do dia Vinte e Oito de Dezembro proximo passado, e por CHÂTELET, Duc du (1799), Voyage en Portugal, vol. II, B.
pensar que esta queixa fosse effeito de demaziados licores, ELEUTÉRIO, Victor Luís (2003) Luisa Todi, Lisboa, Montepio Geral.
que houvesse bebido: na manhãa porém do dia seguinte, SOUTHEY, Robert (1799), Letters Written during a Short Residence in Spain
Veio banhado em lagrimas repertir-me a mesma and Portugal, Bristol, Longman and Rees.
reprezentação, expondo-me novamente, que não queria
perder a boa opinião, em que sempre tinha conservado sua
mulher, e filha tanto na Italia, como em diversos Paizes da

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