Mirtes Ingred Tavares MARINHO

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MARCAS DO PODER: IMAGEM, CORPO E ABJEÇÃO NO AMOR ENTRE


MULHERES EM FILMES DE HORROR

Mirtes Ingred Tavares MARINHO (Labedisco/UESB)


[email protected]
Nilton MILANEZ (Labedisco/UESB)
[email protected]

RESUMO: O presente trabalho está sendo desenvolvido no quadro dos estudos do


Labedisco/UESB – Laboratório de Estudos do Discurso e do Corpo, vinculado ao projeto
“Materialidades do Corpo e do Horror”. Propomo-nos descrever, analisar e interpretar como a
sexualidade é constituída discursivamente nas imagens em movimento inerentes aos filmes,
utilizados como corpus, Carmilla (1970), Luxúria de Vampiros (1971), Filhas do Drácula
(1972), Alucarda (1977) e Matadores de Vampiras lésbicas (2009), que fazem emergir
discursos sobre o campo do lesbianismo. As estratégias de produção das materialidades
fílmicasdas referidas imagens, ou seja, recursos de enquadramento, movimento e ângulo da
câmera, serão por nós entendidas e analisadas como meios de produção discursiva do
dispositivo fílmico, susceptível derepetições e descontinuidades. Tais materialidades irão nos
levar a um olhar discursivo em torno da sexualidade, permitindo-nos problematizar de que
maneira o sujeito mulher experiencia a si enquanto sujeito de sexualidade e como o
lesbianismo pode ser constituído como uma abjeção, associando a uma construção do monstro
discutido por Foucault, aquele que transgride normas sociais e naturais, produzindo o medo
pela ruptura de uma norma instaurada. O conceito de corpo também será significativo, pois ao
mostrarmos o sujeito nos deparamos com as seguintes dúvidas: que elementos corporais são
destacados nessas materialidades? E de que maneira? Que sentidos são produzidos sobre nós?
Acreditamos que providos dessas indagações poderemos entender que corpo é esse
constituído do sujeito mulher lésbica mensurado pela heteronormatividade, a partir das
discussões teórico-metodológicas desenvolvidas por Michel Foucault no campo do discurso.
PALAVRAS-CHAVE: Abjeção; Corpo; Discurso; Imagem e Sujeito de Sexualidade.

INTRODUÇÃO
O corpus Carmilla (1970), Luxúria de Vampiros (1971), Filhas do Drácula (1972)
analisado narra a história de Carmilla Karnstein, a rainha vampira. A trilogia Karnstein
apresenta a figura de uma vampira em busca de mulheres jovens para saciar seu desejo sexual
e de sangue. Alucarda (1977) filme produzido poucos anos depois da trilogia, retrata a história
de uma garota misteriosa, que por meio de um ritual satânico selado com sangue, sela um
pacto com seu amor por Justine. Em seguida temos um filme contemporâneo o Matadores de
Vampiras lésbicas (2009), que faz uma paródia do conto da rainha vampira, Carmilla.
Verificamos que os recursos visuais e as estratégias cinematográficas de produção das
materialidades audiovisuais nos levam a problematizar a sexualidade, possibilitando
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compreender como se constitui o sujeito mulher enquanto sujeito de sexualidade e como são
construídas, discursivamente, as práticas homoafetivas numa perspectiva sócio-histórica.
A análise partirá das noções foucaultianas e dos estudos de Perrot, tais como, a noção
do sujeito-mulher e o lugar de subjugação e também de quem subjuga, ou seja, as relações de
poder constituintes ao sujeito mulher, a partir da compreensão do mesmo enquanto sujeito de
sexualidade. Os filmes tomados enquanto seu valor de materialidades imagética traz a
emergência de uma temática gay.

A PROBLEMATIZAÇÃO DO SUJEITO

Segundo Foucault (1995) existem algumas maneiras, ou modos pelos quais o


indivíduo torna-se sujeito. O primeiro é o modo de objetivação que tenta agir no estatuto da
ciência, objetivação do sujeito produtivo, o segundo é pela objetivação nas práticas divisórias
“o sujeito é dividido no seu interior e em relações aos outros” e o terceiro é pelo domínio da
sexualidade. Trataremos aqui pelo domínio da sexualidade – “como os homens aprenderam a
se reconhecer como sujeito de sexualidade” (FOUCAULT. 1995, p. 232).
Segundo Foucault o poder exerce uma marca sobre o corpo, o poder age no corpo, e
em consequência disso, instituições como a igreja, fundados no poder do sagrado, tendem a
atuar no controle dos corpos. O sujeito, para Foucault (1995) se constitui historicamente como
experiência, passando a interrogar-se sobre os discursos que articulam o saber e
consequentemente em meio as manifestações do poder. E o nosso autor se pergunta: “porque
o comportamento sexual, as atividades e os prazeres a ele relacionados, são objetos de
preocupação moral? (...) é que eles são objeto de interdições fundamentais cuja transgressão é
considerada falta grave.” (FOUCAULT, 1984, p.14). A exteriorização aqui direciona-nos a
uma critica que se estende para além dos limites sociais, surgindo a figura da monstruosidade
articulada por Foucault e deslocada para pensar a figura do vampiro: “O vampiro, aparece
ressignificado, em nossos tempos, de acordo com as emergências de um sistema de
regularidades e de dispersões.” (MILANEZ, 2011, p. 15). Nesse sentido, as materialidades
aqui analisadas traçam inicialmente um discurso do anormal para o sujeito lésbica e
ressignificando o vampirismo a depender da necessidade histórica no momento.

Para Foucault (1984), a experiência da sexualidade pode ser diferente da experiência


cristã (da carne) por mais que apareça dominada aparentemente pelo princípio do ‘homem de
desejo’. “A noção de sujeito, ou de sujeito desejante constitui, então, senão uma teoria
geralmente aceita.” (FOUCAULT, 1984, P. 10). Para ele analisar a formação e o
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desenvolvimento da experiência da sexualidade, era preciso analisar o sujeito a partir dele


mesmo e do outro, e no desejo descobrir a verdade de seu ser, compreender de que maneira o
sujeito faz a experiência dele mesmo enquanto sujeito de sexualidade.

SUJEITO E IDENTIDADE GAY


A sexualidade faz parte de nossas condutas e práticas. Em o “Nascimento da
Biopolítica” (2008) vemos que para Foucault que o que importa não é o que o sujeito fez ou
faz, e sim o que ele é, sua característica inata proposta pelo naturalismo, que ao que se refere
aos homossexuais nos conduz a uma interpretação errônea, referindo um desejo como
identidade, dando a entender que exista uma essência homossexual.
A homossexualidade não é uma forma de desejo, é algo de desejável. Segunda a História da
Sexualidade de Foucault, na década de 1870, se colocarmos o “homossexual” como um tipo
de categoria, o sujeito não apenas desejava outro sujeito do mesmo sexo, mas que essa nova
categoria denominada homossexual é parte de um todo da humanidade
Houve no início do século XX, o surgimento de ciências da sexualidade e novas
tecnologias do sexo, que tinham como objetivo preservar dentro do sistema capitalista o
discurso religioso da família burguesa, o da procriação. Portanto, os homossexuais, contrários
a norma da procriação, constituiu-se uma nova anomalia:

A homossexualidade apareceu como uma das figuras da sexualidade quando


foi transferida, da prática da sodomia, para uma espécie de androgenia
interior, um hermafroditismo da alma. O sodomita era um reincidente, agora
o homossexual é uma espécie. (FOUCAULT, 2007, P. 51).

A constituição do sujeito gay estará vinculado a um discurso que está além do sujeito
desejante, incluindo e dispersando esse sujeito de sua singularidade em um conjunto de
universais, construindo assim uma identidade. Aos poucos o sujeito homossexual é
estabelecido como “identidade gay”. Não existe ser gay, ser gay é ser um sujeito gay em
condições que exigem que você seja de determinada maneira, existe tornar-se gay, bem como
tornar-se sujeito.
Segundo Foucault nada do que o homossexual é escapa a sua sexualidade “ele é preso
e subjacente a todas as suas condutas, já que ele é o princípio insidioso e infinitamente ativo
das mesmas.” (FOUCAULT, 2007, p. 52). Podemos dizer que a sociedade tem medo de ceder
espaço ao homossexual, pelo modo de vida homossexual como nos explica Foucault em uma
entrevista intitulada Da amizade como modo de vida, Foucault (1981, p. 02), ao dizer que “o
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problema não é o de descobrir em si a verdade sobre seu sexo, mas, mais importante que isso,
usar, daí em diante, de sua sexualidade para chegar a uma multiplicidade de relações.”.
A partir das considerações foucaultianas, devemos pôr fim a essa renúncia dos
prazeres e trabalhar sobre nós mesmos, inventar uma maneira de ser. Precisamos ser capazes
de sentir prazer e diluir a imagem que formulou sobre o puro encontro sexual e a fusão
amorosa das identidades. A relação não se baseia apenas na consumação sexual, as pessoas se
juntam por amizade, e não precisam necessariamente ser indivíduos de mesma idade e status
social. Ser gay é procurar expor e elaborar um modo de vida, e não ser definido por traços
psicológicos do homossexual.

MATERIALIDADES REPETÍVEIS E IMAGÉTICAS

Podemos analisar materialidades repetíveis a serviço de uma memória que se atualiza,


a imagem do vampiro como o monstro, bem como os elementos dispostos, o cenário do
cemitério, os crucifixos, o sangue e o próprio modo em que são narradas as histórias de
horror, e materialidades raras mostradas na anomalia do lesbianismo em algo que pode ser
aceito socialmente.
A materialidade fílmica reafirma um lugar, construído sócio-históricamente, para a
mulher, traçado por um discurso cristão. Em Matadores de Vampiras Lésbicas este lugar é
reafirmado durante todo o filme e temos, por exemplo, a cena em que os protagonistas do
filme descrevem as qualidades das mulheres que eles gostaram. Jimmy (Mathew Horne) “ela
é bem legal e amigável, como se ela tivesse um espírito puro, ela é muito dócil, e tem olhos
incríveis”. Enquanto Fletch (James Corden) declaram: “gosto das que falam pouco”. De
acordo com Perrot (2008) – no discurso cristão – a mulher ideal deve ser dócil, bonita e muda,
para agradar o seu esposo. Portanto, o filme nos mostra um discurso cristão de como a mulher
deve ser na sociedade. Já em As Filhas de Drácula o discurso religioso aparece de outra
forma, o protagonista Gustav Well (Peter Cushing) pastor, comanda uma Irmandade que tem
como objetivo erradicar o mal e todas as anomalias, ou seja, a monstruosidade do ser vampiro
e lésbica, o que é considerado transgressor e deixando escapar o que é o puro, o dócil.

O vampiro no domínio da sexualidade vive muitas relações (homem/mulher). Séries


de quadros traçam relações de avizinhamento, dentro de uma construção genealógica que nos
autorizam dizer sobre a existência da relação homoafetiva, e dentre os cinco filmes a relação
que mais se destaca é a mordida como metáfora do ato sexual. Em todos os filmes em analise
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a mordida é uma das materialidades que se repetem, como traço do desejo por sangue e pelo
grande apetite sexual, um grande misto de horror e sedução.

Fotograma 1. (1970) Fotograma 2. (1971) Fotograma 3. (1972)

Fotograma 4. (1977) Fotograma 5. (2009)

As imagens discursivas que constituem o sujeito historicamente, segundo Nilton


Milanez (2011), aproximando o corpo e a imagem, a constituição do sujeito se dá a partir de si
mesmo, “um campo de conversão do sujeito para si próprio”, indo além da sua relação com as
instituições. As normas estabelecidas retratadas nos filmes indicam o corpo perfeito da mulher
como aquele que é bem delineado e proporcional, bem como a cor vermelho, como indicativo
de poder e sangue.

CONCLUSÃO
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Os filmes resgatam historicamente um discurso no qual, o amor entre mulheres, é um


tabu que vem sendo reorganizado, transgredido, e questionado se tal comportamento é aceito
ou não socialmente. Para tanto pensar o lugar do corpo dentro desse discurso é importante
para analisarmos as posições que são produzidas sobre nós e nos quais o sujeito discursivo se
submete a construção imagética do tempo em que se encontra.

Olho para o corpo como uma construção simbólica, um verdadeiro corpo


fictício, que se constrói meio a redes de poder e resistências, orientado
historicamente e, por isso, apresentando tipos de saberes, memórias e
arquivos, que colocam em imagens a nossa maneira de ver e viver.
(MILANEZ, 2008).

Segundo Milanez “o cotidiano é tomado e repetido” e “o corpo filmado mostra seu


movimento”, pois as imagens que temos mostram-se fora e dentro de nós, portanto a produção
audiovisual (re)cria o cotidiano em imagens em movimento, sendo exteriorizada de acordo
também com o processo histórico. A imagem reverbera fora e dentro do nosso corpo.
As cenas das mulheres se beijando constroem um sujeito de sexualidade, e mostra que
o sujeito de sexualidade é clivado pelo discurso religioso. Percebemos então a questão da
conduta, pois os filmes reafirmam o lugar da mulher que gosta de mulher, porém colocando-a
no lugar do sujeito homem, no qual estabelecido no sistema heterossexual deve haver um
sujeito que ocupa o lugar do homem e o outro sujeito que ocupa o lugar da mulher.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:

CECCATY. R, Danet. J.,Bitoux, J. De l'amitiécommemode de vie. Entrevista de Michel


Foucault, publicada no jornal GaiPied, nº 25, abril de 1981, pp. 38-39. Tradução de
wanderson Flor do Nascimento.
FOUCAULT, Michel. Nascimento da Biopolítica. Martins Fontes, 2008. Tradução de
Eduardo Brandão.
______________. História da Sexualidade 1: A Vontade de Saber. Graal, 2007. Tradução
de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque.
______________.História da Sexualidade 2: O uso dos prazeres. Edições Graal. Rio de
Janeiro, 1984
______________.O sujeito e o Poder.In:Dreyfus, Hubert; Rabinow, Paul. Michel Foucault:
Uma trajetória filosófica – para além do Estruturalismo e da Hermenêutica. Rio de Janeiro:
Forense Universitária, 1995, p. 231 – 249.
MILANEZ, Nilton. Discurso e imagem em movimento: o corpo horrorífico do vampiro no
trailer. São Carlos: Claraluz, 2011.
_________. O nó discursivo entre corpo e imagem. Intericonicidade e Brasilidade. In:
TFOUNI, Leda Verdiani; CHIARETTI, Paula; MONTE-SERRAT, Dionéia Motta. (Org.). A
Análise do discurso e suas interfaces. 1ed. São Carlos: Pedro & João, 2011, v. 1, p. 147-.
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PERROT, Michele. Minha história das Mulheres. São Paulo: Contexto, 2008.

VIDEOGRAFIA:

ALUCARDA, Diretor: Lopez Moctezuma, Yuma Films, 1978.


AS FILHAS DE DRÁCULA: O FINAL SANGRENTO DA TRILOG KARNSTEIN,
Diretor John Hought, 1972.
CARMILLA A VAMPIRA DE KARNSTEIN, Diretor Roy Ward Baker, Hammer Films,
1970.
LUXÚRIA DE VAMPIROS: A REENCARNAÇÃO DE CARMILLA KARNSTEIN,
Diretor Jimmy Sangster, 1971.
MATADORES DE VAMPIRAS LÉSBICAS, Diretor: Phil Claydon, The Weinstein
Company, 2009.

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