Tchau - Lygia Bojunga

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LYGIA BO]UNGA

4rgia Bojunga nasceu em Pelotas,


no Rio Grande do Sul;
ainda criança se mudou para
TCHAU
o Rio; há vinte anos mora um 17: edição
pedaço do seu tempo em
Londres (é casada com um inglês),
e considera o Rio de Janeiro
o seu chão verdadeiro.
Trabalhou como atriz,
tradutora e autora em rádio,
teatro e televisão. Escreveu
20 livros. Tevetraduções
em dezenove idiomas. Foi
a primeira escritora, fora do •
eixo Europa-Estados Unidos,
a ganhar o Prêmio Hans Christian
Andersen, o mais prestigioso
prêmio internacional do gênero,
conhecido como o Prêmio
Nobel da literatura voltada para
crianças e jovens.
Em 2002 Lygia publicou
RETRATOS DE CAROLINA,
inaugurando a
Editora Casa Lygia Bojunga.
~
Rio de Janeiro - 2003
COPYRIGHT 1984 de Lygia Bojunga
Todos os direitos reservados à Editora CASA LYGIA BOJUNGA LTOA.
Rua Eliseu Visconti, 425 - CEP 20251-250 - Rio de Janeiro - RJ
Telefax: (21) 2222-0266
email: [email protected]
www.casalygiabojunga.com.br

Printed in Brazil/Impresso no Brasil

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permissão da detentora do copyright.

Projeto Gráfico: Lygia Bojunga


Desenhos: Rebeca
Caligrafia: Rodrigo
q:r~5ftr
Assistente Editorial: Vera Abrantes
Produção: João Carlos Guimarães
Revisão: José T edim
Ilustração da capa: Edward Munch: The Lonely One (1896)
Aquatint and drypoint
Munch Museum, Oslo
Arte: © MunCJ1Museum/The Munch-Ellingsen Group/BONO 2003
Foto: © Munch Museum (Andersen/de Jong)


CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.

B67t Bojunga, Lygia,


17.ed. Tchau / Lygia Bojunga. - 17. ed. - Rio de Janeiro: Casa Lygia
Bojunga, 2003

ISBN: 85-89020-05-3

I. Literatura infanto-juvenil. I. Título.

03-1714. CDD 028.5


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:fito -u#tJúlque procureipra ir estreitando mais e mais
essa relsç pra mim tão gostosa: a que eu tenho com você,
que me lê. Então, em Retratos de Carolina, eu quis
escrever de novo um pra você que me lê. Só que, dessa vez,
o meu papo com você se misturou com a história que eu
l. estava contando, e um passou a fazer parte da outra.
Agora, trabalhando nesta 17. a edição do meu livro
TCHAU (durante quase vinte anos o TCHAU roi
publicado pela Editora Agir,' mês que vem ele muda de
casa:passa a ser publicado pela minha própria editora), me
deu vontade, outra vez, de vir a você, e comecei a pensar
alto, quer dizer, comecei a te escrever o que eu estava aqui
pensando com os meus botões:

Tem gente que precisa de amigo da mesma idade: diz


que sendo mais moço ou mais velho a gente não se acerta
bem um com o outro.
Tem gente que precisa de amigo sempre grudado. Pra
olhar dentro do olho,' pra segurar na mão,' pra dar risada
junto,' pra cochichar-cantar-dançar peitinho, bem pertuiho
aSSim •

..
8 Lygia Bofunga Pu você que me lê 9

Mas tem gente que diz que amigo bem mais velho é É por isso que eu fico perplexa de ver tanta gente
que é bom: sabe ouvir 1ündo tudo que a gente CJuerfalar, tratando livro fêito coisa que ele tem data de validade
sabe dizer com todos os efês-e-erres a fala que a gente na capa:
ainda não sabe arrumar, e sempre tem uma dica legal faz XI; fôi lãbricado ano passado! não deve msis estar
assim, não faz isso assado, faz mais temperado, na hora bom.
que a gente não tem nem idéia de como é que vai fazer 0- Não falaram dele na televisão, é? sh, então é melhor
que-tem-mais-é-que-fazer. não provar.
Tem gente que diz que amigo pra valeré cachorro e gato. Não me diga! fôi lançado faz tempo? ah, então fá
!i3!!!2.gt:nte. como eu=-emqualT:!..erlãse da Vidanão passou.
abre mão, mas não abre mesmo, de ter sempre Ror perto o _
tal "do~ pra valer:LIVR o. Mesmo porque ele é o Isso me lembra uma menininha que veio morar funto
único amigo que nunca cria caso pra ficar com a gente se;ã da minha casa quando eu tinha oito anos. Chegou perto de
~';nde fôr.-:sãJa,quarto, bãiiJleiro, cozinha, sombra d..:.. mim e disse: eu queria tanto ser tua amiga! Então ficamos
ãrvore, areJaâe raia, 1ündo de soa 1ündo de má oa/ e amigas. Mas pouco depois ela fá me declsrsvs: não quero
fica Unto da gente mesmo no plOr ugar do ômbus, do_ msis ser tua amiga. Me espantei;'perguntei por quê. Ela
trem, o avião/ entrenta até numa boa ca eira e :;!entista respondeu convicta: agora fá te conheço: não tem mais
~ita1. Ese quem escreveu o livro consegue novidade.
~
mexer com o nosso pensamento e balançar a nossa Bom, isso tudo eu estava aquipensando e quis te
imaginação - pronto! aí se fôrma uma relação, um laço, passar, mas, pra contar a verdade, o que eu hofe tenho
que smsrrs pra valer quem escreve com quem lê. vontade é de te contar por que - agora que eu tenho a
Essa amarração é tão gostosa, que vaJ'ser diflCi! - Vida minha casa-editora e posso fazer meus livros do feito que
siora - a gente querer desatar. Eu sei disso por mim: os eu quero - escolhi reproduzir na capa do TCHA U um
livros que eu li e amei estão sempre por perto. Não só pra, quadro chamado A Solitária, do pintor norueguês
volta e meia, dar uma namorada de olho com eles, alisar Edvard Munch.
um bocadinho a lombada, fazer uma fêsta na capa, mas
também pra, de vez em quando, convidar. vamos de novo?
c
e lá ficarmos os dois, outra vez esquecidos do inundo, Quando olhei pela primeira vez para A Solitária, logo
nessa tal de amarração de quem escreve e de quem lê. me senti intrigada por este trabalho do Munch, que
e-
10 Lygia Bojunga Pra você que me lê 11

contrasta tanto - pela siuvidsde da iorms e da cor - com ciúme, tanto susto que durante tanto tempo eu tinha
muitos dos quadros dele que me interessam (induSive o fêito eles viverem). Mas agora, olhando slipara A
célebre O Grito) marcados por uma stmostera angustiante Solitária, alguns dos personagens do TCHAU acordavam
e sombria. num pulo, fêito coisa que eu tinha recém-começado a dar
A intriga que senti olhando pr' A Solitária poderia ter VIdaa eles. Por quê? eu me perguntava, por quê? Mas,
sido acionada pelo que há de intrigante naquela figura: como tantos outros por quês? da gente, aquele meu
um cinto prendendo uma cabeleira vigorosa numa também ficou sem resposta. Quer dizer, resposta a gente
cintura delicada/ sempre d<i não é? mas não necessariamente aquela que vai
um olhar que, mesmo a gente não vendo, a gente vê SIlenciar o por quê? pra sempre.
perdido no horizonte/
a brancura intensa de uma veste, acentuando dúvidas:
é uma adolescente? uma mulher? uma noiva? um Um dia a casa-editora que vinha me publicando na
fantasma?,' Noruega (Aschehoug) me convidou para ir a Oslo. Uma
e, em volta da figura: sombras? pedras? areias? vez na terra de Munch, não escondi o interesse que eu
rochedos? sentia pelo pintor. Me levaram pra ver muitos originais
Intrigante, sim, mas a intriga maior que eu sentia era dele nos museus. Procurei A Solitária (contemplar o
pela sensação de familiarIdade que me tomou, assim que original de uma reprodução que nos balançou é sempre
meu olho bateu na figura solitária. Vasculhei minha uma emoção). Não encontrei. Mas na despedida, já no
memória: já tinha visto aquela imagem antes? Não. Não aeroporto, me presentearam com um livro completissimo
mesmo. Então? por que essa sensação de familiaridade? E, sobre a vid« e a obra do Munch.
aumentando ainda mais nunhs intriga, junto com a Foi só me ajeitar na poltrona do avião que comecei a
sensação me invadIa também - rorte - a lembrança de rolhear o livro. E assim que meu olho bateu na reprodução
alguns personagens meus que, fazia tempo, tinham de página inteira d' A Solitária, fúi invadida, como
abandonado meu pensamento. naquela outra vez- pela sensação de familiaridade que, de
Nessa época meu livro TCHA U já tinha SIdo novo, me intrigou, e pela lembrança ioite da Rebecs, da
publicado no Brasil- os personagens criados para os quatro (I
Mãe, da Escritora e do Barco. Só que agora, olhando e
contos que ioimam o livro estavam dormindo fúndo mais olhando pr'aquela imagem, eu enxergava a resposta
dentro de mim (na certa cansados de tanta dúvida, tanto que acabava de vez com a minha intriga: a familiarIdade
12 Lygia Boj1111ga Pu você que me lê 13

que me vinha daquela figura era porque eu já tinha me despertou dentro de mim tanta ressonância, tanta
encontrado com ela, sim. Mas não num livro. familiandade.
Nem tampouco em nenhuma galeria de arte. Eu tinha Só que isso eu não vou saber te responder. Bem que
me encontrado com ela dentro de mim. Não assim, eu gostaria de sacar mais da química que se produz entre
naquela veste tão branca, naquela stmosiera tão lá dos os seres, e que faz a gente se sentir tão em casa-de-pé-no-
Nortes. Brasileira fêita eu sou, tão partícula enamorada chão com alguém que acabemos de conhecer, e tão a
aqui deste Sul eu tinha me encontrado com aquela quilômetros de distância de outro, com quem convivemos
figura de outro jeito: cú'ariamente.
vestida de Rebeca, se agarrando com fôrça na mala Qusntss vezes, não é? a gente se sente /àscinada por
que vai deixar ela sem mãe/ uma pintura ou por um livro que, nem de leve, conseguiu
vestida de Mãe, olhando perdida pro mar, querendo mexer com o interesse da nossa maior amiga.
encontrar nele a torça para agüentar uma torrente de E o que é que você me diz de, quando a gente sai do
paixão/ cinema tão identiiicsda com a personagem do filme, que é
vestida de Escritora, amarrada a uma mesa de trabslho capaz até de jurar que conhece ela desde criança.
i= E quando a gente chora de emoção ouvindo uma
poder criar e - criando - poder viver,' música e escuta o namorado ao lado dizendo: puxa VIda!
vestida de Barco, empacado, lá no mar, preso a uma mas que saco esse troço que estão tocando.
grande saudade. Pois é...
Ali estava a imagem criada pela mão de um Quando mostrei a nova capa do TCHAU pra duas
pintor, me revelando, em outra linguagem, o mesmo que amigas minhas, uma delas exultou: mas que máximo! é a
a minha mão de escritora tinha procurado pintar nos tua cara! é a cara dos teus personagens! A outra se limitou
meus contos. Por que então não me sentir tomada a comentar: gostava msis como era antes.
pela sensação de familiarIdade se o pintor e eu
falávamos de uma mesma sentença a ser cumprida:

--------
a solidâo.
O que, talvez, você queira saber é por que que esse
Muitas vezes meus leitores perguntam o que me
inspirou pra escrever tal livro ou para criar tal personagem.
trabalho do Munch - e não outro, dos tantos que, de um Ousntss vezesjá se disse, não é mesmo, que inspiração é
jeito mais brasileiro, mais nosso, falaram do mesmo tema - sinônimo de trabalho, e mais trabalho, e mais trabslho. Eu
14 Lygia Bojl111ga Pra você que me lê 15

concordo. Mas, pra começar o meu trabalho, eu preciso de O livro que eu ganhei no aeroporto de Oslo passou a
um estímulo que, fêito um palito de fOsfôro, risque a viver perto de mim, como -já te contei isso antes - vivem
minha imaginação produzindo a faísca e, em segwda, a todos os livros que eu amei e começo a amar. Quando
chama que vai clsresr o caminho. É a partir desse risco que fôlheio aquelas páginas e me encontro com A Solitária -
eu crio, que eu procuro dar vida aos meus personagens e, se talvez até por já ter criado o hábito, não sei -, associo ela
consigo, eles passam a dar vida aos meus livros. de novo à Rebeca, à Mãe, à Escritora, ao Barco e - por
Várias vezes, artistas plásticos já riscsrsm a minha extensão, e não, necessariamente, por solidão - aos outros
imaginação, incendiando meu pensamento. As vezes, personagens do livro.
brasileiros; às vezes, pertencentes a outras culturas. Estou Então, agora que o TCHAU vem morar na minha
me lembrando agora que pelo menos três de meus livros casa, achei que tinha tudo a ver reproduzir em primeiro
(A Casa da Madrinha, Corda Bamba e Retratos de plano a figura associada àqueles personagens. QUiS
Carolina) tiveram, como ponto de partida, o estímulo também que as outras pouquinhas imagens que aparecem
criado por uma determinada imagem. Outras vezes, o que no livro tossem, apenas, l111S rabiscos que a Rebeca andou
estimula a minha imaginação vem de um sonho-sonhado, fazendo, e que eu encontrei numa mochila velha que ela
um som-escutado, um encontro-scontcado, uma largou pra lá.
lembrsnçs-revivids. Mas acho que não importa quem ou o
que vai riscar nossa imaginação - desde que o risco nos Bom ... acho que era mais ou menos isso que, hoje, eu
ajude a criar. . queria te contar.
A capacidade de criar mora dentro de cada um de nós.
Quanto mais uso a gente faz dela, mais ela nos surpreende,
por nos mostrar o quanto dependemos de criarpra poder
aI tJ?AAfO //7e;"'4«'" 1mum-b", -
crescer.
Cada um cria de um jeito, já que "cada um é outro '~
como se diz lá em Minas. O problema é que, as vezes, a
gente custa à beça pra encontrar o nosso jeito. ~ho p;!! é ..
ouvindo contar do jeito que cada um cria,prestando
atenção no eito que o outro criou, que - ~
aca a encontrando o Jeito que a gente tem pra criar.
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Tchau 19

1
O buquê
A campainha tOCOlLRebeca correu pra abrir a
porta. Até se admirou de ver um buquê tão bonito.
- Mãe! - ela gritou - chegou flor pra você. -
Fechou a porta.
A Mãe veio correndo da cozinha e pegou o
buquê. Tinha um envelope preso no papel; a
Mãe tirou depressa um cartão lá de dentro; leu. O
telefone tocou; a Mãe largou tudo e foi atender.
Rebeca quis ler o cartão. Mas estava escrito
em língua estrangeira, era francês? Olhou pra
assinatura: Nikos. Lembrou de uma voz
estrangeira que andava telefonando, chamando a
Mãe. Botou devagarinho o cartão em cima do
envelope; foi chegando disfarçado pra perto do
telefone, sem tirar o olho da Mãe. Franziu a
testa: a Mãe estava parecendo nervosa,
encabulada; mas muito mais bonita de repente!
Tchau 21
20 Lygia Bojunga

Rebeca foi se esquecendo de prestar atenção


na língua estrangeira que a Mãe estava
2
falando pra só ficar assim: olhando: curtindo Na beira do mar
a Mãe.
A conversa no telefone acabou.
A Mãe voltou logo pra junto das flores. As duas tinham saído pra fazer compras, a
- Coisa linda esse buquê, não é Rebeca? Mãe e a Rebeca. E na volta a Mãe falou:
_ Quem sabe a gente vai andando pela
-É.
- Com esse calor é melhor botar ele logo praia?
dentro d'água. - Foi indo pra cozinha. - Você Atravessaram a rua, tiraram o sapato,
não quer me ajudar a arrumar o vaso? entraram na areia. E foram andando pela beira
Rebeca ficou parada. do mar.
A Mãe olhou pra ela; parou também: assim: Rebeca a toda hora olhava pra trás

meio abraçada com o buquê. pra ver o caminho que o pé ia marcando


E durante um tempo as duas ficaram se na areia.
olhando. E a Mãe olhando pro mar e mais nada.
Rebeca então foi indo distraída pra cozinha. Era de tardinha. Não tinha quase ninguém na

A Mãe (distraída também) pegou um vaso, praia.


encheu de água. E teve uma hora que a Mãe convidou:

E as duas arrumaram as flores devagar, - Vamos descansar um pouco?


sem falar nada; sem nem levantar o olho Sentaram. Rebeca logo brincou de fazer
do vaso. castelo.
Tchau 23
22 Lygia Bojunga

E a Mãe olhando pro mar. Olhando. Até que Rebeca esperando.


no fim ela disse: Esperando.
- Rebeca, eu vou me separar do pai: não tá De repente a Mãe ficou de joelhos,
dando mais pra gente viver junto. agarrou as duas mãos da Rebeca e foi
Rebeca largou o castelo; olhou num susto pra despejando a fala:
Mãe. _ Eu me apaixonei por um outro
- Neste último ano tudo ficou tão ruim entre homem, Rebeca. Eu estou sentindo por
o pai e eu. Eu sei que ele sempre teve paixão por ele uma coisa que nunca! nunca eu tinha
música, eu já conheci ele assim. Mas desde que o sentido antes. Quando eu conheci o
Donatelo nasceu que ele só vive às voltas com teu pai eu fui gostando cada dia mais um
aquele violino! é só tocar, estudar, compor, pouco dele, me acostumando, ficando
ensaiar; ele me deixou sozinha demais. - Pegou a amiga, querendo bem. A gente construiu
mão da Rebeca. na calma um amor gostoso e foi feliz
Mas a mão da Rebeca escapou. uma porção de anos. E mesmo
- Sozinha, como? e eu? e o Donatelo? a gente quando eu reclamava que ele gostava
tá sempre junto, não tá? nós três. E quando mais da música do que de mim, eu
o pai não tá com a orquestra, ele também tá era feliz...
sempre em casa. Então? nós quatro. Sozinha _ O pai adora você! você não pode ...
por quê? _ ...e mesmo no tempo que o dinheiro era
- É que eu não sei como é que eu te explico superapertado a gente era feliz...
direito, mas ah, Rebeca, eu ando tão confusa! - _ Ele gosta de você! ele gosta demais de
Apertou a boca e ficou olhando pro mar. você.
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Tchau 25
24 Lygia Bojunga

_ Ai! não aperta a minha mão assim.


- ...mas este último ano a gente tá sempre
_ Se ele me diz vem te encontrar comigo,
discutindo, a gente briga a toda hora.
mesmo não querendo, eu vou; se ele fala que
- Por quê?
quer me abraçar, mesmo achando que eu não
- Não sei; quer dizer, eu sei; eu sei mais ou
devo, eu deixo; tudo que eu faço de dia,
menos, essas coisas a gente nunca sabe direito,
cuidar de vocês, da casa, de tudo, eu faço
mas eu sei que eu fui me sentindo sozinha...
feito dormindo: sempre sonhando com ele; e
vazia... vazia de amor. Amor assim... de um
de noite eu fico acordada, só pensando,
homem. É claro que isso não tem nada a ver
com o amor que eu sinto por você. E pelo pensando nele.
Donatelo então nem se fala. - Ai, não...
_ Ele diz eu gosto do teu cabelo é solto, eu
- Não se fala por quê? você gosta mais do
digo é justo como eu não gosto, e é só ir
Donatelo que de mim?
dizendo isso pr' eu já ir soltando o cabelo; ele
- Não, não, Rebeca! entende: é porque
diz às 5 horas eu te telefono, eu digo NÃO!
ele é tão pequeno ainda, e você já está
eu não atendo, e já bem antes das 5 eu tô
ficando uma mocinha: então é um
junto do telefone esperando; só de chegar
amor do mesmo tamanho mas um pouco
perto dele eu fico toda suando, e cada vez que
diferente que eu sinto por vocês
eu fico longe eu só quero é ir pra perto,
dois. Mas isso não tem nada a ver
Rebeca! Rebeca! eu tô sem controle de mim
com... ah, Rebeca, como é que eu te explico?
mesma, como é que isso foi me acontecer,
como é que eu te explico a paixão que eu
Rebeca?! Ele me disse que vai voltar pra terra
senti por esse homem desde a primeira vez
dele e me levar junto com ele, eu disse logo eu
que a gente se viu.
Tchau 27
26 Lygia Boj1111ga

não vou! sabendo tão bem aqui dentro que


não querendo, não podendo, não devendo, é
3
só ele me levar que eu vou. - Botou de palma No sofá da sala
pra cima as duas mãos da Rebeca e enterrou a
cara lá dentro.
Ficaram assim.
- Isso é que é paixão? - Rebeca acabou A Mãe bateu a porta do quarto e correu
perguntando. pra sala.
A Mãe meio que sacudiu o ombro. Já era tarde da noite, mas Rebeca estava
Quietas de novo. acordada. Ouviu a Mãe soluçando. Levantou;
- Como é que... como é que ele se chama? olhou pro Donatelo na cama ao lado:
esse cara. dormindo. Correu pra sala. A Mãe estava
- Nikos. jogada no sofá.
- Que nome esquisito. - Que foi?!
- Ele é grego. A Mãe tapou o choro com a almofada; o
- Grego? e você entende o que ele fala?
corpo ficou sacudindo.
- A gente conversa em francês.
_ Mãe, que foi, que foi!
Rebeca ficou olhando pro castelo
~ Estava escuro na sala. Mas o Pai abriu a
desmanchado. Depois de um tempo
~ porta do quarto e veio luz lá de dentro. Rebeca
suspIrou:
escorregou pro chão e ficou meio escondida
- E ainda mais essa! com tanto homem no
Brasil. atrás do sofá. O Pai chegou perto e falou com
.~~ ~.-.~. O ~cY\ /'~ J..~f'('V~(1t.-j
l.IZ. .~ ~ c~ê) G'- :fC>'-':::t:"t,,~ ~
28 Lygia Bojunga Tcnau 29

uma voz de raiva, de mágoa, uma voz que a - O que que eu posso fazer? ele não quer
Rebeca nunca tinha ouvido ele falar:
que eu leve as crianças agora.
- Você tá chorando por quê? Quem tem - ELE NÃO QUER!! Então ele agora
que chorar sou eu e não você. Não sou eu que
manda em você. Ele é um deus que desceu do
tô abandonando a minha família, é você; não
Olimpo pra dizer o que ele quer e o que ele não
sou eu que tô deixando os meus filhos
quer que você faça.
" e voce.Ar
pra 1a:
Rebeca franziu a testa, ele é um deus que
A Mãe tirou a almofada da cara; a voz saiu
desceu de onde? E aí o Pai gritou:
metade soluço, metade fala:
- Pois eu também não quero, viu? eu não
- Você não tá querendo entender: eu não tô
quero o que você quer. E você vai ter que
deixando a Rebeca e o Donatelo: um dia eu
escolher: ou fica ou leva as crianças
volto pra buscar os dois.
com você agora.
- Você vai embora com esse estrangeiro pra
- Mas eu não ...
viver lá do outro lado do mundo ...
- Se você não leva elas agora, eu não
- Eu juro que eu volto!
deixo você levar nunca mais. Abandono do
- ...mas o estrangeiro não quer as crianças, só
quer você. lar, da família, de tudo: a lei vai estar do
meu lado. Então você escolhe: ou ele ou as
- Eu sei que eu acabo convencendo
ele... crianças.

- E se um dia você convence ele, aí você


vem buscar a Rebeca e o Donatelo, não é?
Lindo!
30 Lygia Bojl111ga Tchau 31

4 o sorvete pingou na calça do Pai.


O Pai ficou olhando triste pro pingo; depois
Na mesa falou:
- Senta. - Mas logo se arrependeu: - Quer
do botequim dizer, não senta porque isso aqui não é lugar pra
cnança.
Mas Rebeca já tinha sentado, e o moço
do botequim já tinha trazido um outro
Rebeca saltou do ônibus, comprou
copo cheio pro Pai beber. O Pai bebeu
um sorvete de chocolate e veio lambendo
ele pela rua. Parou em frente do enquanto Rebeca acabava o sorvete, comia

botequim da esquina: ué: não era o Pai a casquinha, dava uma lambida em cada
sentado bem lá no fundo? Espiou: era, dedo, enxugava eles na saia e suspirava de
sim: entrou. pena do sorvete ter acabado. O Pai suspirou
- Oi, pai. também:
O Pai levantou a cara do copo e olhou pra - A tua mãe não gosta mais de mim.
Rebeca feito custando pra lembrar quem é que Rebeca olhou pra mesa: cheia de copo
ela era. vazio. Será que era o Pai que tinha bebido
- Ôôôooooo filhinha, o que que você tá aquilo tudo?
fazendo por aqui? - E eu gosto tanto dela! Agora então
- Eu, nada, e você? que ela vai me deixar parece até que eu
- Eu, nada. gosto mais.
32 Lygia Bojunga Tchau 33

Rebeca olhou pro Pai; achou que o olho dele o Pai fechou o olho:
estava parecendo de vidro. _ Eu queria que o tempo já tivesse passado e
- Duvido que esse gringo goste dela do que eu já tivesse me esquecido dela.
jeito que eu gosto. Nem metade, aposto. - Eu vou pedir pra ela não ir embora; deixa
. .
Nem metade da metade da me... - Foi se corrugo, pai.
esquecendo da outra metade; ficou olhando - Eu queria que você e o Donatelo já
pra Rebeca. fossem grandes. O que que eu vou fazer com
- Que que você tá me olhando assim, pai? vocês dois? me diz, me diz! Eu não tenho jeito

parece até que você nunca me viu. com cnança.


- Como você é parecida com ela! Tudo. - Eu vou pedir.
A boca, o cabelo, o jeito de olhar. E agora - O que que eu faço com vocês dois,
que eu tô percebendo: o teu nariz também Rebeca?
- Deixa comigo, pai, eu te prometo que eu
é igualzinho ao dela, até um pouco de
não deixo a mãe dizer tchau pra gente.
sarda na ponta ele tem; engraçado, eu
- Promete?
ainda não tinha reparado. - Debruçou
- Prometo. E agora pára de beber, tá?
mais na mesa pra olhar pro nariz da
-Tá.
Rebeca, derrubou um copo no caminho;
desanimou.
Rebeca debruçou também:
- Eu vou pedir pra mãe não ir. Eu vou pedir
tão forte, que ela não vai, você vai ver.
34 Lygia Bo/unga Tchau 35

Correu na ponta do pé pra espiar,ah! a mala. Já


5 fechada.No chão. Junto da porta. Pronta pra sair.

A mala V oltou correndo pro quarto; sentou de


novo; pegou o lápis, fez ponta depressa, o
coração num toque-toque medonho; desatou de
Rebeca fingiu que nem tinha visto a mala da novo a riscar.
Mãe aberta em cima da cama'e já quase pronta Parou o lápis; escutou a Mãe discando
pra fechar. telefone, chamando um táxi, explicando que era
pro aeroporto.
Voltou pro quarto.
De rabo de olho viu a Mãe entrar no quarto,
Sentou.
sentar na cama do Donatelo, ficar olhando ele
Fingiu que estava desenhando um barco.
dormir.
Fingiu que nem estava escutando a Mãe Viu que a Mãe estava de meia, de sapato
querendo se despedir do Pai, e o Pai não fechado, de capa de chuva, de bolsa a tiracolo,
deixando a Mãe acabar de falar, saindo zangado, de cara lavada (de choro?), tão diferente de
batendo com a porta. todo dia.
Foi riscando no papel com força, o lápis Viu a Mãe alisando o cabelo do
Donatelo; fazendo festa nele de leve; a mão
pra cá e pra lá cada vez com mais força, dá!
indo e vindo, bem de leve; indo e vindo.
a ponta quebrou.
Viu tudo de rabo de olho e foi riscando
Ouviu a Mãe indo na sala; depois no
forte, mais forte, mais dá! a ponta do lápis
banheiro. quebrou outra vez.
36 Lygia Bo/unga Tchau 37

A Mãe parou de fazer festa na cabeça do e eu tenho que pedir de novo, não vai não
Donatelo e ficou sem se mexer. vai não vai!!
Rebeca ficou,que nem a Mãe: sem se virar, A Mãe cochichou depressa:
sem falar, sem perguntar. - Por favor, Rebeca, me entende, me
a tempo foi passando. perdoa, me entende, eu tenho que ir, é
Passando. mais forte que tudo. Mas eu já te prometi:
Até que de repente a buzina do táxi eu volto.
tocou lá fora e a Mãe levantou num pulo - Diz pra ele que não! você não vai.
de susto. A Mãe pegou a mala. Rebeca não largou.
Rebeca também. E se virou. Ao mesmo A Mãe puxou a mala. Rebeca puxou
tempo que a Mãe se virava. E as duas se olharam também.
com medo, e a Mãe correu e abraçou Rebeca A Mãe puxou mais forte. Rebeca ficou
com força, demorado, bem apertado, ai! Rebeca agarrada na mala.
fechou o olho: que troço danado pra doer a táxi buzinou de novo. As duas se olharam.
aquele abraço. a olho da Mãe pedindo por favor. a olho da
A Mãe largou a Rebeca, correu pra sala, Rebeca também: por bvor.
abriu a porta. A Mãe estava de boca apertada; de
Mas Rebeca já estava atrás dela; e puxou a testa enrugada. E não quis mais olhar pra
mala: Rebeca no olho; e puxou a mala com toda
- Mãe; não vai! eu já te pedi tanto, que eu a força, querendo arrancar ela da mão
não ia pedir mais, mas você tá indo mesmo da Rebeca.
38 Lygia Bo/unga Tchsu 39

Mas Rebeca não se soltou da mala e foi


sendo arrastada no puxão.
6
A buzina do táxi de novo, e mais comprido O pai volta tarde
dessa vez.
A Mãe soltou a mala; fechou o olho; apertou
e encontra um
a testa com a mão feito coisa que estava bilhete no travesseiro
sentindo uma tonteira ou uma dor de cabeça
muito forte.
Rebeca aproveitou pra se agarrar na mala de Querido pai
um jeito que pra Mãe levantar a mala ia ter que Não deu para eu cumprir a promessa. A Mãe
levantar a Rebeca também. foi mesmo embora.
E outra vez a buzina tocou. Mas a mala dela ficou. E eu acho que assim,
A Mãe abriu o olho (parecia que a tonteira sem mala, sem roupa para trocar, sem escova de
tinha passado), disse: dente nem nada, não vai dar para a Mãe ficar
- T chau. - E saiu correndo. muito tempo sem voltar. Não sei. Vamos ver.
Eu arrastei a mala e escondi ela debaixo
da sua cama, viu?
Um beijo da
Rebeca.
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46 Lygia Bojunga o bife e a pipoca 47

2 Foi só a turma rir que o T uca se encolheu de


novo: enterrou o cotovelo na carteira, botou a cara
Na sala de aula na mão, grudou o olho no caderno aberto e ficou
achando que a classe tinha rido era do nome dele.
Quando a aula acabou, todo mundo saiu pro
o professor de geografia perguntou: recreio, mas o T uca nem se mexeu.
- Como é o seu nome? O Rodrigo foi comprar um sanduíche e
- T uríbio Carlos. voltou pra acabar um trabalho. Nem prestou
- Como? atenção no T uca; debruçou no caderno e
- T uríbio Carlos. - Levantou. E levantou começou a escrever.
também um pouco a voz: - Mas lá em casa eles O olho do T uca foi indo pro sanduíche. .
me chamam de T uca. Quando chegou lá: quem diz que ia embor~?
- Quem sabe aqui na escola você ternbém O Rodrigo pegou o sanduíche, deu uma
fica sendo T uca? dentada e aí viu qu~ o olho do T uca tinh~
E o T uca arriscou: ,também mordido o pão.
- Eu topo. A boca do Rodrigo foi mastigando.
O professor de geografia resolveu: O olho do T uca mastigou junto.
- Então pronto. - E escreveu na ficha: - Tuca. A boca deu outra dentada;o olho mordeu também.
A turma riu: era a primeira vez que eles A boca foi parando de mastigar; o olho do
ouviam o T uca falar: ele não puxava conversa, T uca foi ver o que que tinha acontecido: deu de
não entrava em grupo nenhum, e na hora do cara com o olho do Rodrigo: se assustou: voltou
recreio ficava sempre estudando. correndo pro caderno.
48 Lygia Bojunga o bife e apipoca 49 III1

De repente o Rodrigo fez um ar meio que os dois eram da mesma idade. E aí falaram !I"

distraído e estendeu o sanduíche: de estudo.


- Quer? - Sabe que eu era o 1.0 da classe lá na minha
O T uca ficou sem saber o que que respondia; escola?
acabou fazendo que sim. Pegou o sanduíche com Outra vez o Rodrigo se espantou: naqueles
as duas mãos. Olhou pro pão. Cravou o dente. primeiros dias de aula já tinha dado pra ver que
- Pode comer ele todo - o Rodrigo falou. E o T uca estava sempre por fora.
foi só acabar de falar que o sanduíche já tinha - Foi por isso que eu ganhei a bolsa de
sumido. estudo pr' aqui.
O Rodrigo saiu da classe sem dizer nada. O Rodrigo só disse: hmm.
V oltou com mais dois sanduíches. Deu um pro O T uca meio que riu:
T uca. Se olharam. Comeram quietos. E pela - "Escola de rico" feito a gente diz. -
primeira vez o T uca falou com um colega: Suspirou: o sanduíche tinha acabado. - Mas,
- Nossa! nunca vi tanta manteiga e tanto sabe? eu não sei como é que vai ser.
queijo num pão só. - O quê?
Começaram a conversar. Primeiro de idade: o - Acho que eu não vou agüentar a barra: o
Rodrigo tinha I I anos e o T uca já ia fazer I4! estudo aqui é mais adiantado, é diferente, sei lá,
O Rodrigo olhou espantado pra ele: eu só sei que não tá dando. E o pior é isso aqui
- É mesmo?! - olhou pro caderno e espichou um queixo
- Não·pareço não? desanimado: a tal da matemática.
- Bom ... - e o Rodrigo olhou pro pão. O - V ocê não fez o trabalho que a gente tem
T uca era tão miúdo que ele até tinha pensado que fazer?
50 Lygia Bojunga o bifê e a pipoca 51

- De que jeito? eu não saco nada disso.


O Rodrigo olhou pro relógio:
3
- Eu tô quase acabando o meu. Quer que Carta de amigo
depois eu te dê uma explicação?
A cara do Tuca ficou tão contente que o
Rodrigo até achou melhor fingir que não tinha
visto: virou pro caderno e começou a escrever. @)~,~k-m?
Naquele dia só deu tempo de dar uma LW:~~A~
explicação curta pro Tuca. ~)e-r~~~
Mas no outro dia o Rodrigo usou a hora do ~?
~ ~ef
recreio todinha pra explicar tudo melhor. Era a
~)M~~~~:
primeira vez que ele dava aula pra alguém. E ~,;lnJ-~ ~
pelo jeito gostou: nem viu o tempo passando. A
~

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(Yl().(i . ~lA...
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campainha tocou e ele até se assustou: ~ ~ ~ ;e&ftX-~.
ci PA ~ .;»:
- Já?!
E o T uca falou: ~
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-w- di P-~~ ;z::-~
- Puxa, cara, saquei tudo que você me ..u-t, ~ vou~ ~ A ~
ensinou; acho que você vai ter que ser professor. ~ ~ ~ ~ ef4W! ~ .ffii~~.

E no dia seguinte lá estava o Rodrigo outra ~ ~ -vc:ú. f,,.;.~~:


vez explicando. ~~411= +T!-»L
E o T uca se animando: "Agora, sim, tô
sacando!"
j ~~~
T ~~-~ ~ r-. ~

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4 ~ ~ ~ .~
54 Lygia. Bojunga o bilê e a pipoca 55 ~\~~
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4 quando ele acabou de pensar no assunto: - Quer


ir comer pipoca lá em casa no sábado?
VOcêgosta O Rodrigo fez que sim.
Naquele dia, quando os dois se despediram,
de pipoca? o T uca resolveu o seguinte:
- No sábado, eu venho te encontrar aqui
embaixo: você não vai saber subir o morro
- o quê? sozinho. É que eu moro lá no alto, sabe.
O T uca cochichou mais alto: - Então você se encontra comigo na minha
- Você gosta de pipoca? - (Estavam no meio casa: a gente almoça e depois vai.
da aula de português.)
O T uca não respondeu logo. Ficou olhando
O Rodrigo fez que sim.
pro tênis. Depois perguntou devagar:
- Todo sábado a minha irmã faz pipoca ... - Almoçar na sua casa?
O Rodrigo fez cara de quem diz a.h é?
-É.
E depois de um tempo o T uca acabou a frase: Se olharam.
- ...mas pipoca só é bom na hora.
- Então tá.
- O quê? E foi assim. No sábado ao meio-dia o Tuca
- Pipoca só é bom na hora que faz... estava chegando na casa do Rodrigo. Ele nunca
-Ahé.
tinha pisado num edifício daqueles: porteiro,
O T uca ficou quieto. Mas depois continuou: tapete, espelho por todo lado, elevador subindo
- ...se não fosse, eu trazia a pipoca pra gente macio, empregada abrindo a porta pra ele entrar.
comer aqui na escola. - E a aula já estava no fim
Ele entrou.
56 Lygia Bojunga o bife e a pipoca 57

E quando viu o tamanho da sala; e quando


entrou no quarto que o Rodrigo tinha (só pra
5
ele?!)com TV, aparelho de som, armário em O bife-lá -da .esquinu
toda a parede (uma porta estava aberta, nossa!
quanta roupa lá dentro); e quando o Rodrigo
perguntou: Quando o T uca saía da escola, ele ia direto
- tá com sede? ajudar um amigo a lavar carro.
- tô - e foram na geladeira (que é isso! que Quer dizer, não era bem um amigo, era mais
cozinha tão grande! que cozinheira de uniforme! um patrão.
que monte de comida lá dentro da geladeira!) e Ou melhor, não era bem um patrão, era mais
quando o Rodrigo encheu um copo de suco de um sócio.
laranja: Quer dizer, não era bem um sócio ... Um
- toma. - o olho do T uca ficou feito momentinho: vamos começar outra vez:
hipnotizado pelo lá-dentro da geladeira. quando o T uca saía da escola, ele ia direto
Quando a porta da geladeira se fechou, o ajudar um cara a lavar carro. O cara era
T uca achou que o Rodrigo não ia achar uma faxineiro de um edifício lá na Rua São
idéia assim tã.o formidável subir uma favela Clemente. Ganhava salário mínimo. Então, pro
todinha pra ir comer pipoca lá em cima. Foi dinheiro não ficar assim tão mínimo, ele lavava
I

nessa hora que o rabo do olho viu os bifes que a os carros dos moradores do edifício e ganhava
cozinheira estava temperando. Era impressão? ou em dobro.
era bife-feito-o-bife-lá-da-esquina? O olho todo Um dia o T uca passou por ali procurando
virou pro bife e o T uca foi se esquecendo da vida. um biscate, já que emprego ele não encontrava
58 Lygia Bojunga o bifê e a pipoca 59

mesmo. Conversa vai, conversa vem, o faxineiro Então você já viu: tô te fazendo um bruto dum
perguntou se o T uca não queria fazer sociedade favor. Não precisa ficar toda vida me
naquele negócio de lavar carro. agradecendo. - Fechou a cara. - Mas também
- Sociedade como? não quero reclamação. Não tá contente, pode
- V ocê pega aí um ou outro carro pra lavar e dar o fora. E já. Tá?
eu te dou 10% de tudo que eu ganho. Os trocados que o T uca recebia lá na
O T uca achou ótimo. E naquele dia mesmo garagem bem que ajudavam pra ir levando
começou a trabalhar. comida pra casa. Então, o que que era melhor,
Mas aí foi acontecendo o seguinte: mal o quer dizer, pior: continuar de matemática
T uca chegava, o faxineiro ia pro botequim da esquisita ou perder o biscate?
esquina tomar umas e outras; quando voltava, se E o T uca continuou lavando carro.
ajeitava num escurinho da garagem; logo depois Às vezes o porteiro do edifício chamava o
estava roncando .. faxineiro. O T uca respondia do jeito que tinha
E o T uca ficava lavando sozinho tudo que é sido ensinado:
carro que tinha pra lavar. - Tá lavando um carro lá fora: vou chamar.
Um dia o T uca achou que estava trabalhando - E dava uma corrida até o botequim pra avisar.
sozinho demais e que então a tal matemática dos O faxineiro virava a cachaça num gole e saía
10% não estava bem certa: reclamou. correndo. O T uca vinha atrás. Mas sem pressa
O faxineiro não gostou: nenhuma. Só pra poder passar bem devagar pelo
- Escuta aqui, meu irmão, tem pelo menos restaurante lá da esquina. Que beleza! se
100 moleques que passam todo dia aí na rua chamava "O Paraíso dos Bifes". Da calçada a
querendo pegar esse emprego que eu te dei. gente via tudo lá dentro pela parede de vidro.
60 Lygia Bojunga o bifê e a pipoca 61

Mas não se ouvia nada, de tão bem fechado que deus? Tão impressionado, que um dia ele foi
era, de tão ar condicionado por dentro. E gente chegando mais pra perto, mais pra perto, acabou
comendo, e garçom pra cá e pra lá, e tão gostoso achatando o nariz no vidro. Um garçom foi lá
de olhar: assim: feito quando a gente olha pra fora pra dizer que o freguês estava perdendo o
um aquário. Quem diz que o T uca resistia? apetite de tanto que o T uca olhava pro bife.
parava, e toca a olhar. Então, daí pra frente, o T uca passava devagar
Tinha mesa junto do vidro. E sempre, e olhava disfarçado. E só depois de passar
sempre! os fregueses estavam comendo bife. muitas vezes é que ele prestou atenção na placa
A companhia do bife mudava muito: pequena que tinha do lado da porta: era a lista ill
i
com arroz dos bifes da casa: nome, companhia e preço de
com salada cada bife. O T uca era mesmo fraco em
II
I
com aspargos matemática: então ele acabou ficando ali um I

com ovo em erma... tempão querendo calcular quantos carros ele ia ".Ii
A cor do bife mudava um pouco: ter que lavar pra um dia comer um bife daqueles.
ao ponto
mal passado Lá na cozinha do Rodrigo o T uca tinha se
bem passado. esquecido da vida. Só fazia era olhar pros bifes
Mas o que nunca mudava era o jeito fundo que a cozinheira temperava (o dedo dela
que o garfo e a faca entravam no bife. Quanto também se enterrava na carne de um jeito tão
mais o T uca olhava, mais impressionado ele fácil, tão fundo!).
ficava com aquele jeito fundo do talher ir se - T á dormindo em pé, cara? - E o Rodrigo
enterrando; que carne tão macia era aquela, meu puxou o T uca. Foram pra sala.
62 Lygia Bojunga o hifê e apipoca 63

••
A mãe do Rodrigo viu que o olho do T uca
6 não largava a mão dela: quis se livrar: perguntou:

O almoço - Você também é que nem o Rodrigo? filho


único?
O T uca acordou:
Foi só o T uca sentar pra almoçar que o -Hmm?
olho não teve mais sossego: pra cá, pra lá, - Você também é filho único?
pra cá, pra lá, querendo ver disfarçado o garfo - Não: eu tenho dez irmãos.
que o pai do Rodrigo pegava, o jeito que o A mãe do Rodrigo se engasgou pequeno:
Rodrigo dava no guardanapo, o que que a - Dez?!
mãe do Rodrigo fazia com o pratinho do lado, O T uca fez que sim, hmm!! que coisa mais
e mais as duas facas, e mais os três garfos, gostosa era aquela da tigela.
e mais a colher, e nossa! que monte de coisa - E o seu pai? o que que ele faz?
em cima daquela mesa, e o olho pra cá, pra lá, O T uca sentiu a testa suando. Em vez de
pra cá, pra lá, na aflição de copiar. responder, esvaziou a tigelinha.
A empregada serviu uma tigelinha pra cada A empregada levou as tigelas e trouxe o resto da
um. O T uca viu todo mundo começando a comida. Botou tudo na frente da mãe do Rodrigo.
comer. Será que o almoço era aquilo e pronto? A mãe do Rodrigo ia servindo e a empregada
Olhou de rabo de olho pra mãe do Rodrigo. Ela ia distribuindo os pratos.
estava botando um tiquinho de manteiga no pão. O T uca ficou olhando pro enorme bife que
O T uca foi ficando hipnotizado outra vez: a tinha chegado na frente dele. Enxugou a testa
mão dela tinha um anel em cada dedo. com a mão. Enxugou a mão no guardanapo.
64 Lygia Bojunga o bifê e a pipoca 6S

Meio que tomou fôlego. Pegou o garfo e - Não precisa não: por favor! - o T uca pediu.
espetou no bife, ah, que coisa mais linda: tanta - Me dá aqui o seu prato. - A mãe do
força pra quê?! o garfo tinha se enterrado macio Rodrigo estendeu a mão.
que só vendo, e o T uca, entusiasmado, pegou a
O T uca ficou olhando outra vez pros anéis;
faca pra cortar o bife do mesmo jeito que o
a fome tinha sumido; e tinha aparecido uma
irmão mais velho (carpinteiro) pegava o serrote
vontade danada de fazer que nem a fome e sumir
pra cortar madeira. Atacou! O bife não
também.
agüentou: escorregou pra fora do prato, deslizou
O pai do Rodrigo resolveu puxar conversa:
pela toalha levando de companhia um ovo frito,
- O Rodrigo contou que você ganhou
duas rodelas de beterraba e um monte de grãos
uma bolsa do governo. - O T uca fez que sim.
de arroz. Foi tudo se estatelar no tapete.
Que era bege bem clarinho. - Você teve sorte, rapaz, aquela escola

- Ai! - o T uca gemeu. E mais que depressa custa uma nota firme. - O T uca fez
levantou pra catar o almoço do chão. que sun.
- Deixa!- A mãe do Rodrigo mandou. E - Como bolsista, você não tem que pagar
tocou o sininho. nada, tem? - O Tuca fez que não. - E livro,
A empregada veio; primeiro disse xi! depois caderno, todo o material escolar: eles
perguntou: também dão?
- Não é melhor botar um pouco de talco - O T uca fez que sim. - Tudo?! - O T uca
aqui no tapete pra chupar a gordura? fez que sim. - Mas que sorte!! Você está
- É melhor, sim. - A empregada saiu correndo. acompanhando bem o ensino lá?
- E vê se dá pra fazer outro bife pro menino! - O T uca fez que não.
66 Lygia Bojunga o hifê e a pipoca 67

A empregada voltou com uma lata de talco e E quando a empregada virou a lata, a tampa
uma escova; despejou talco no tapete; a sala de furinho caiu e o talco todo se despencou no
ficou perfumada. chão (saiu até nuvem de talco voando pela sala).
- Boto mais? - Xi! - o Rodrigo levantou.
A mãe do Rodrigo levantou: - Depressa, depressa! vai buscar o aspirador
- Será que é preciso? -- Examinou o tapete. - a mãe do Rodrigo mandou.
- Passa a escova aqui pra ver se não ficou A empregada saiu correndo. O pai do
nenhuma manchinha. Rodrigo se abaixou:
A empregada passou. - Escova aqui, ó, ó - e deu a escova pra mãe.
O Rodrigo apontou com o pé:
- Ainda tem mancha, sim senhora. Posso
- Aqui é que tem um monte, Ó.
botar mais?
- Ah, coitado do meu tapete! é talco demais:
- Mas dizem que tapete não gosta de talco
ele vai ficar manchado, aposto.
demais. - Virou pro pai do Rodrigo: - O que
A empregada voltou correndo com o
que você acha, meu bem?
aspirador. Ligou.
- O quê?
- Passa aqui!
- Bota ou não bota mais talco? - Aqui, ó! ,
O pai do Rodrigo levantou pra examinar o - Não: primeiro aqui!
tapete. O T uca e a mesa-de-almoço se olharam feito
- Olha, aqui saiu tudo - a empregada falou. se despedindo; o guardanapo enxugou um suor
E escovou mais um pouco. que pingava da testa; a cadeira foi pra trás pra
- Pode botar mais um bocado aqui - o pai deixar o T uca levantar. E, de pé, olho no tapete,
do Rodrigo mandou. o T uca ficou vendo o aspirador funcionar.
~cA-'~ ~ K(YJru~.~ ~(Lo k .(ovvdf/,-I(
68 Lygia Bofunga o bifê e a pipoca 69

7 podendo: já estava botando a alma pela boca de


tanto subir.
Aplpoca Quantas vezes, com a luz de tudo que é
barraco se espalhando pelo morro, o Rodrigo
tinha escutado dizer: que bonito que é favela de
I~I
I
Assim que eles saíram do edifício o T uca foi noite! as luzes parecem estrelas.
logo dizendo: E o Rodrigo ia olhando cada barraco, cada
- É melhor a gente ficar aqui por baixo: tá criança, cada bicho, vira-lata, porco, rato,
muito calor pra subir o morro. olhando tudo que passava: bonito? estrela? cadê?!
Mas o Rodrigo não topou: Não era à toa que quando caía chuva forte
- Você não disseque tem uma porção de irmãos? sempre falavam de barraco desabando no morro,
Então? vai ser leg~ conhecer eles todos. Vem! e o Rodrigo parava no caminho pra ficar vendo
Falaram pouco até chegar no morro. como é que alguém podia morar num troço tão
O caminho. .
que subia era estreito. O T uca foi parecendo que ia despencar se a gente desse um
na frente. Quase correndo. Feito querendo soprão.
escapar da discussão que crescia lá dentro 'dele: Será que criança nenhuma tinha sapato?
um T uca dizendo que amigo-que-é-amigo não E aquele cheiro de lata de lixo? não ia passar
tá ligando se a gente mora aqui ou lá; o outro não?
T uca não acreditando e cada vez mais E toca a querer assobiar pra disfarçar o susto
arrependido da idéia de ir comer pipoca. de ver tanta gente assim vivendo tão feito bicho.
E atrás dos dois lá ia o Rodrigo, querendo Quando chegaram no alto, o Rodrigo estava
assobiar pra disfarçar. Querendo mas não sem fôlego. O T uca parou:
70 Lygia BOJimga o bifê e a pipoca 71

- Eu moro aqui. - Entrou. da casa dele; e eram onze irmãos morando ali! e
Só os irmãos pequenos estavam em casa. mais a mãe?! Ili
Uma vez o Tuca tinha contado pro Rodrigo: I
Quatro. O Tuca foi apresentando cada um.
Os grandes ainda estavam "lá em baixo se "O meu pai era marinheiro. Só aparecia em
virando"; e a irmã mais velha tinha saído. casa de vez em quando. Um dia ele não apareceu
- Mas, e a pipoca? - o T uca quis logo mars. "
"

saber -, ela esqueceu que ia fazer pipoca "EIe morreu:~"


pra gente? "N"mguem, sab"e.
- Não - um irmão explicou -, ela já fez. "E a tua maer
- ~"
Mas ficou com medo da gente comer tudo "Ela mora lá com a gente. Mas quem faz de
antes de você chegar e então guardou ali - mãe lá em casa é a minha irmã mais velha."
espichou o queixo pra uma porta que "P or que:
"~,,
estava fechada. H
E que a mm h a mae...
' • - e, d oente. "
Fez cara de sabido e piscou o olho: - A chave "O que que elaa tem:
tem?"
tá na vizinha... "T em lá umas coisas. Mas a minha irmã é a
Enquanto o garoto falava, o Rodrigo ia pessoa mais legal que eu já vi até hoje: agüenta
olhando pro barraco: dois cômodos qualquer barra."
pequenos, um puxado lá fora pro fogão e pro
tanque, e a tal porta fechada que o garoto o T uca virou pro Rodrigo:
tinha mostrado e que devia ser um outro - T á vendo que vista legal a gente tem aqui
quarto; ou quem sabe o banheiro? Juntando de cima?
tudo, o tamanho era menor que a cozinha - Legal mesmo.
72 Lygia Bojunga o bife e apipoca 73

- Nesse canto é que eu estudo. Tem que ser Era um quarto com uma cama, um
de noite, porque quando eu saio da escola eu armário velho de porta escancarada e uns
vou lavar carro. E também de noite tá todo colchões no chão.
mundo dormindo, é mais quieto. Tinha uma mulher jogada num colchão.
-É. Tinha uma panela virada no chão.
\

- Só que de noite eu tô cansado. E também Tinha pipoca espalhada em tudo.


não é bom ficar de luz acesa: gasta eletricidade. A criançada logo invadiu o quarto e começou
Então eu deixo pra estudar no recreio. a catar pipoca no chão.
-É. Ninguém ligou pra mulher querendo se
OS dois ficaram quietos. levantar do colchão.
A criançada pequena olhando. O Rodrigo estava de olho arregalado.
Lá pelas tantas o T uca quis acabar com a O Tuca olhou pra ele. Olhou pra mulher.
discussão que continuava dentro dele: Olhou pras pipocas sumindo.
- V am' embora, Rodrigo. V ocê agora - Pronto - ele resolveu -, você não vai
já sabe onde eu moro e se quiser aparecer comer pipoca do chão, vai? Então não tem mais
a casa é sua. nada pra gente fazer aqui. - Empurrou o
- Mas, e a pipoca? - o Rodrigo perguntou. Rodrigo pra fora do barraco .. - Agora você já
Não precisou mais nada: a criançada desatou a sabe o caminho. Desce por lá. - Apontou.
falar na pipoca, a querer a pipoca, a pedir a pipoca. O Rodrigo estava atarantado:
Uma barulhadal O T uca ficou olhando pro chão. - Lá onde?
De repente saiu correndo. Pegou a chave na casa da - Vem!! eu te mostro. - E desceu correndo
vizinha. Abriu a porta que estava trancada. na frente. Num instantinho chegou na curva que
Á '\A~v..4 ,)..0 O'M ck ~ ~ oif~

111 II
74 Lygia Bojunga o bifê e apipoca
li 7S

ele tinha mostrado. Respirou fundo. Lembrou mãe já tá tão bêbada que faz qualquer besteira
do perfume do talco. Olhou pro lado: estava um pra continuar bebendo mais. - Começou a
lameiro medonho naquele pedaço do morro: sacudir o Rodrigo. - Você olhou bem pra
tinha chovido forte na véspera e uma mistura de cara dela, olhou? pena que ela não tava
água e de lixo tinha empoçado ali. chorando e gritando pra você ver. Ela chora e
O Rodrigo chegou de língua de fora: o T uca grita (feito neném com fome) pedindo
tinha descido tão depressa que mais parecia um cachaça por favor.
cabrito. - Me solta, T uca!
- Pô, cara! - ele reclamou -, assim não dá. - Solto! solto, sim. Mas antes você vai ficar
Você quase me mata nessa des... igual a mim. - E botou toda a força que tinha
Mas o T uca já tinha virado pra ele de cara pra derrubar o Rodrigo no lameiro.
feia e já estava gritando: O Rodrigo deu pra trás.
- Não precisa me dizer! eu sei muito bem O T uca não largou; puxou de volta.
que não dá. Como é que vai dar pra gente ser O Rodrigo outra vez conseguiu dar pra trás.
amigo com você cheirando a talco... Mas o T uca foi puxando ele de novo. E
- Eu?! quando sentiu os pés se encharcando se atirou
- ...e eu aqui nesse lixo todo. Não precisa no lameiro levando o Rodrigo junto. Aí largou.
me dizer, tá bem? eu sei, EU SEI que não dá. O Rodrigo levantou num pulo. Não
Você é que ainda não sabe de tudo. Quer precisava tanta pressa: ele já estava imundo,
saber mais, quer? quer? - Pegou o Rodrigo pingando lixo.
pela camisa. - Quando a minha irmã tranca a O T uca levantou devagar. E de cabeça baixa
minha mãe daquele jeito é porque a minha foi subindo o morro de volta pra casa.
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78 Lygia Bojunga o bife e a pipoca 79

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foi sem querer
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N a terça também não.
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Na quarta ele entrou na classe de olho
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procurando o olho do Rodrigo.
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Mas o olho do Rodrigo se escondeu.
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Então na quinta o T uca achou melhor
./1 _.r~ _ - -: fingir que não tinha visto o Rodrigo na classe.
L~~ .: · V
.: E na sexta o Rodrigo resolveu que se o
T uca não via ele, por que que ele ia ver o T uca?
Passou o sábado.
Passou o domingo.
Na segunda-feira o Tuca resolveu que ia
falar com o Rodrigo de qualquer maneira. Ele
tinha que explicar que não sabia por que que
tinha empurrado o Rodrigo no lameiro.
~

80 Lygia Bojunga o bife e a pipoca 81

No recreio, o Tuca foi chegando pra perto se explicado pensado e agora ficava assim sem
do Rodrigo e quando já ia falando com ele o dizer nada?
Rodrigo deu as costas. O T uca ficou cismado: O Rodrigo se abaixou: fmgiu que estava
tinha sido de propósito? Tinha ou não tinha?
amarrando o sapato.
Acabou achando que tinha. E voltou quieto pra Quando no fim a fala destrancou, o T uca
classe. Mas na terça-feira ele achou, que besteira!
perguntou:
é claro que não foi de propósito; então ele ia
- Você acha que vai chover?
falar com o Rodrigo de qualquer jeito.
O Rodrigo olhou pra janela. Fez cara de que
Ficou esperando a campainha tocar.
não sabia. E ficou amarrando o outro sapato.
Esperou tão forte que chegou a suar. E
O T uca meio que suspirou:
quando a campainha tocou ele levantou num
- Você sabe pescar?
pulo de susto. Justo quando o Rodrigo ia
O Rodrigo levantou:
passando. Deram o maior esbarrão.
- Bom, às vezes eu ia lá no Arpoador pescar
- Ô cara, me desculpa! foi sem querer.
com um amigo meu, o Guilherme. - Encolheu o
O Rodrigo achou que o T uca estava se
desculpando pelo banho de lama. Ficou ombro. - Mas ele mudou pro Rio Grande do

pensando o que que ia dizer (quem sabe ele Sul...


dizia pro T uca que não tinha entendido nada O T uca ficou quieto.
daquela história?). Acabou falando: Depois de um tempo o Rodrigo acabou
- Esquece. confessando:
O T uca estava de fala trancada; foi - Eu nunca peguei peixe nenhum.
ficando chateado: tantas vezes ele tinha - Ah, não?
82 Lygia Bojunga o bifê e a pipoca 83

-Não.
Aí O T uca contou:
10
- Eu aprendi a pescar com um cara lá do Bilhete e PS
morro que saca muito de peixe.
- Ah, é? de amigo
02&, a~~!
- Ele foi pescador, sabe. Mas agora ele já tá
velho. A gente é um bocado amigo.
;I:;;M
~ - O-~J' 7-
-Hmm.
- Esse negócio de pescaria tem uma porção
de macetes.
.~~AúYn;eWJ
~~Avm;t:i . ~..
O Rodrigo não disse nada. Então o T uca
falou: 0f-~
.:
- V ocê querendo, eu te ensino.
-Bom ...
- Será que no sábado vai chover?
?S.: o :r~ ~ ~
O Rodrigo olhou pra janela. Fez cara de que
não sabia. O T uca arriscou:
- Se não chover a gente podia combinar de ir
~~/~4r~~
~

~.~~~o~.
WYn~;ek~

~~04-~ ~.
pescar.
- É... podia.
~~~
A troca e a tardá 87
r;~o.. .h ~

Eu tinha 9 anos quando a gente se


encontrou: o Ciúme e eu.
Era verão. Eu dormia no mesmo quarto que
a minha irmã. A janela estava aberta.
De repente, sem nem saber direito se eu
estava acordada ou dormindo, eu senti direitinho
que ele estava ali: entre a cama da minha irmã e
a minha. A noite não tinha lua nem tinha estrela;
e quando eu fui estender o braço pra acender a
luz, ele não quis:
"Me deixa assim no escuro."
Que medo que me deu.
Senti ele chegando cada vez mais perto. Fui
me encolhendo.
"Pega a minha irmã", eu falei. "Ali, Ó, na
outra cama. Eu sou pequena e ela já fez 14 anos,
pega ela! Ela é bonita e eu sou feia; o meu pai, a
minha mãe, a minha tia, todo mundo prefere ela:
por que você não prefere também?"
Mas o Ciúme não queria saber da minha
irmã, e eu já estava tão espremida no canto
88 Lygia Bojunga A troca e a tarefã 89

(a minha cama era contra a parede) que não


tinha mais pra onde fugir, então eu pedia e F ui crescendo. E cada ano que passava o
pedia de novo: Ciúme aparecia mais vezes pra me ver. Eu não
"Ela. é a primeira da turma e eu tenho precisava nem olhar: de repente eu sentia que ele
horror de estudar; olha, ela tá logo aí; e ela é tão estava lá. E bastava ele chegar perto pra eu
inteligente pra conversar! ela diz poesia, ela sabe começar a sentir um peso dentro de mim. Feito
dançar, o meu pai tá ensinando inglês coisa que eu carregava uma pedra no peito.
e francês pra ela e diz que pra mim não vale a O peso só aliviava quando o Ciúme ia embora.
pena porque eu não presto atenção; então você Mas cada vez ele demorava mais. Acabou
pensa que eu não vejo o jeito que o meu pai olha morando lá em casa.
pra ela quando todo mundo diz que encanto de Aí eu quis me mudar.
moça que é a sua ftlha mais velha? pega, pega, Mas eu ainda ia fazer 13 anos: onde é que eu
PEGA ela!" ia morar?
"Não. Eu quero é você." Resolvi ir pra um colégio interno.
E o Ciúme disse aquilo com uma voz tão A minha mãe não gostou da idéia: "vai custar
calma que eu fui me acalmando. E o medo meio . caro."
muito
que foi passando. Mas o meu pai achou ótimo: "lá ela vai
"Bom", eu acabei suspirando, "pelo aprender a estudar direito feito a irmã dela".
menos tem alguém que gosta mais de mim (Ah, que depressa que o Ciúme apareceu quando
do que dela." o meu pai falou assim.)
E aí o vento do mar entrou pela janela, E eu fui pro internato. Fiquei vivendo separada
soprou no Ciúme e apagou ele feito vela. da minha família, só ia em casa nas férias.
90 Lygia Bojunga A troca e a tarefâ 91

Lá no colégio o Ciúme aparecia pouco; era porta; procurar a chave; entrar. E no dia seguinte
nas férias que ele não me largava: quando eu esperar de novo o Ornar chegar. Pra namorar ele
voltava pra casa e encontrava todo mundo mais um pouco só de olhar.
fascinado pela minha irmã. N o dia que as férias acabaram, na hora do
Ornar pegar a chave pra entrar, ele se virou e
olhou pra janela. E ficou muito, muito tempo
Um dia (era férias) em frente da nossa olhando.
casa veio morar um rapaz chamado Ornar. Mas não era pra minha janela: era pra outra:
Eu ficava horas na janela esperando ele a da sala: onde estava a minha irmã.
chegar. Pra ver ele aquele pouquinho só:
chegando, tirando a chave do bolso e entrando.
Quando eu soube que o nome dele era Ornar Lá no colégio eu não tinha mais tempo pra
eu fui pro quarto e escrevi uma poesia chamada nada, nem pra estudar, nem pra fazer dever, eu
o mar. não tinha mais tempo nem pra ver o Ciúme, de
Foi a primeira coisa que eu escrevi. Aquela tanto que eu passava o meu tempo só pensando
poesia pro Ornar. E eu me senti tão feliz. no Ornar.
Eu nunca tinha me sentido assim feliz; fiquei Mas era tão bom pensar no Ornar como eu
pensando que era por causa do Ornar (nem gostava de pensar, que eu nunca pensei nele
pensei que podia ser por causa da poesia). como eu não queria pensar, quer dizer, olhando
E quando eu vi, as férias já tinham acabado. pra outra janela.
De tanto que o tempo passou depressa comigo Um dia chegou uma carta da minha mãe
lá na janela esperando o Ornar chegar; parar na dizendo assim:
92 Lygia Bojunga A troca e a tarefá 93

"...da mesma maneira que eu dei uma festa pai, minha irmã, todo mundo se arrumando, se
pra festejar os 15 anos da tua irmã, agora eu enfeitando que nem a casa.
quero comemorar os teus 15 anos. Mas desta "Anda, menina, anda!" (era a minha mãe
vez a festa vai ser dupla: a tua irmã ficou noiva, e dizendo), "vai tirar esse uniforme, o teu vestido
então eu quero festejar junto as duas grandes já está passado em cima da cama, olha que daqui
datas. Já avisei à diretora que você vai sair no a pouco os convidados já estão chegando."
sábado de manhã." A mesa na sala de jantar estava de toalha
Foi só ler a notícia do noivado que eu pensei bordada (a toalha que a minha vó tinha bordado
na outra janela, e o Ciúme apareceu logo: e se o pro casamento da minha mãe), e quanto doce,
noivo fosse o Ornar? quanta coisa gostosa, e que lindo que era o bolo
Fiquei doida pra chegar logo em casa e saber com as velas que eu ia soprar.
de tudo. Mas ao mesmo tempo eu tinha tanto Eu andava devagar pela casa, olhando pra
medo de saber, que comecei a querer um tudo em volta, mas só pensando uma coisa: é o
pretexto pra não ir: quem sabe eu ficava doente? Ornar? é ele? é com ele que ela vai casar?
Na noite de sexta pra sábado eu nem dormi: Mas em vez de perguntar eu não perguntava.
ia pra casa ou ficava doente? Só pra continuar esperando que o noivo que ia
Mas a curiosidade foi mais forte, e eram três chegar fosse outro, qualquer outro! mas não o
e meia da tarde quando eu entrei em casa. Ornar.
Que bonito que estava tudo, quanta rosa, Foi chegando gente.
quanto cravo enfeitando cada canto, é só fechar Família.
o olho que o perfume ainda chega aqui; e tinha Amigo.
uma agitação que só vendo, a minha mãe, o meu Presente.
94 Lygia Bojunga A troca e a tarefá 95

E a sala já estava cheia quando o Omar Ah. Que vontade de morrer.


chegou. Já tinha ficado de noite, a festa estava
Eu e a minha irmã vimos ele entrando na animada, todo mundo dançando, até o meu pai,
mesma hora. Ela correu. Eu me escondi. Pra tão sério sempre. Corri pro quarto. Me tranquei.
ninguém ver que eu estava vendo: o jeito que eles Queria matar a vontade de chorar, de gritar, de
se olhavam, se davam a mão, se abraçavam, o morrer. Nem acendi a luz. E nem deu tempo de
jeito igualzinho que eu tinha pensado tantas correr pra cama: o choro saiu ali mesmo, de cara
vezes que ele ia me abraçar. encostada na porta; o grito saiu lá mesmo, e a
Nem precisei olhar pra ver: era o Ciúme que música abafou; pulei a janela e corri pro mar.
estava outra vez do meu lado, me dizendo, no Lá na praia tinha pouca estrela, barulho manso
ouvido, não vou mais te largar. de onda e a lua era quarto minguante. Tirei o
Que vontade de chorar. sapato e fui pela areia. Já ia entrando no mar. Mas
Peguei a vontade e virei ela num soprão: senti medo. Dei pra trás. Me deitei na areia e
apaguei as 15 velas de uma vez. fiquei lá tanto tempo que acabei dormindo.
Tocaram música. Sonhei um sonho que mudou a minha vida.
O Omar me pegou pra dançar. Falando
comigo feito eu fosse criança.
Que vontade de gritar. Era um sonho muito bonito, todo
A minha irmã estava tão feliz que nunca ela acontecido em azul; tinha azul pra qualquer
tinha sido assim tão bonita; e ainda por cima era gosto, do mais fraquinho ao mais forte.
ela que tinha feito o bolo dos meus 15 anos e Eu estava lá mesmo, deitada na praia. E era
que delícia! todo mundo dizia na hora de provar. de madrugada.
A troca e a tarefã 97
96 Lygia Bojunga

- Quando a história estiver pronta você


Na minha frente tinha uma parede tapando
ornar. vai ver.
Vi duas janelas na parede. Me levantei pra - História? que história?
ir olhar. Numa estava escrito A TROCA; na A voz falou mais baixo:
_ Escreve a história dessa dor e eu te livro
outra, A T AREF A. Uma estava fechada; espiei
pelo vidro fosco mas não enxerguei' nada do dela. É uma troca: eu te prometo.
outro lado. Bati no vidro, bati, bati com força. - O quê? fala mais alto, eu quase que só
Mas só ouvi o barulho do mar. escuto o mar.
Fui pra outra janela. Também fechada. E o - O mar. Lembra da poesia que você
vidro também: não me deixando ver do outro escreveu?
lado. Bati. - Foi tão bom!
- Que é? Aí a voz se confundiu com o barulho do mar.

Até me espantei de ouvir a voz perguntando. Eu acordei. A noite já ia virando dia; o céu era
- Abre - eu respondi. - Eu quero ver do meio vermelho e a praia estava muito bonita.
outro lado. Dentro de mim tinha uma curiosidade nascendo:
A janela continuou fechada. Mas a voz falou: será que eu ia conseguir fazer uma história da
- Eu te livro desse amor, desse peso. dor que eu estava sentindo?
- O quê? Voltei pro internato.
- Esse amor que você está sofrendo, essa Cada hora de recreio, cada domingo inteiro,
vontade que você está sentindo de morrer: eu te cada hora-de-fazer-dever eu escrevia a história
livro disso. da minha vontade de morrer. E fui achando tão
- De que jeito?! difícil de fazer, que, em vez de sentir vontade de
98 Lygia Bojunga A troca e a tarefã 99

morrer, eu só pensava como é que se fazia a alguém me dizendo: tua irmã não faz assim.
história de uma vontade de morrer; em vez de" Bastava isso e pronto: o Ciúme já aparecia
.......-.......
sentir a dor do amor, eu só sentia a força que eu outra vez.
fazla E!:acontar a dor. Então um dia eu pensei: quem sabe a troca
~ -----,
Então, quando um dia a história ficou que eu sonhei no sonho serve pro Ciúme
pronta, a vontade de morrer tinha sumido; o também? E resolvi transformar o Ciúme em
amor pelo Ornar também: no lugar deles agora história. Só pra ver se acontecia a mesma coisa:
só tinha a história deles. se fazendo a história do Ciúme eu me livrava
Fiz que nem na poesia: transformei o Ornar dele e só ficava com a história.
no mar. Um mar tão bom de olhar. E inventei O Ornar eu tinha transformado em mar.
uma ilha pra botar nele: uma ilha pra eu ir lá E o Ciúme? no que que eu ia virar?
morar: de praia de areia fininha, onde o mar Eu achava ele tão feio. Resolvi virar ele numa
chegava a toda hora. E fui inventando uma coisa pra gostar de olhar. Transformei ele num
porção de coisas pra acontecer na ilha. pássaro lindo! bem grande; de peito amarelo e de
A história ficou tão grande. Acabou virando penacho vermelho na cabeça. E pra ele não
um livro. Foi o meu primeiro livro. Se chamou poder mais entrar na minha vida eu prendi ele
"Do outro lado da ilha". numa gaiola.
Tudo que o Ciúme tinha feito eu sofrer eu
transformei em aventuras que aconteciam com
Minha irmã tinha se casado. Mas a minha aquele pássaro.
mãe, o meu pai, todo mundo não parava de falar Quando um dia eu cheguei no fim da
nela; e se eu fazia alguma bobagem tinha sempre história, a troca tinha acontecido de novo: no
100 Lygia Bo;'unga
A troca e a tarefá 101

lugar do Ciúme eu agora tinha um livro. Um


tido aos 10 anos de ser astronauta e
livro que eu chamei "A gaiola".
transformava ela numa viagem espacial em
--
Achei tão bom poder transformar o que eu
_.- ~
sentia em história, ÇJ,ueeu resolvi que era asstrn
200 páginas; pegava a saudade da minha
~------------~-------
que eu queria viver: transformando.
----
Foi por isso
mãe que tinha morrido (ela se chamava
-que eu me virei em escritora. - ---- Violeta) e transformava a saudade num
buquê que o herói do meu último livro ia
dar pra namorada.

o s anos foram passando. E eu não parei


mais de transformar: tinha me acostumado
Fui me sentindo tão poderosa de poder
transformar tudo assim!
Quando acabava um livro, mal descansava: já
com aquilo.
começava outro. Eu não queria mais descansar:
Levantava (levanto cedo), tomava café (com
eu só queria ficar assim: virando, escrevendo:
leite), escovava os dentes (já pensando o que que
aqui: na minha mesa de trabalho. Cada ano que
eu ia escrever), fechava a porta (não sei
passava eu ficava mais e mais horas aqui.
transformar de porta aberta) e começava:
pegava a lembrança de uma amiga de
infância que eu nunca mais tinha visto,
Eu conheço essa mesa mais que qualquer
imaginava a vida que ela tinha levado,
outra coisa.
virava ela num personagem principal;
Cada pedacinho dela.
pegava o quarto de um hotel em que eu
Sei de cor onde a madeira é mais dara, mais
tinha ficado numa viagem e virava ele num
escura;se tem racha, arranhão, se tem mancha, de
capítulo; pegava a vontade que eu tinha
olhos fechados eu boto o meu dedo em cima: é aqui!
A troca e a tarefã 103
102 Lygia Bojunga

na minha frente também: esbranquiçada; tapando o


Tudo tem lugar certo na minha mesa, o
mar. E na parede as duas janelas: A TROCA eA
papel, o lápis, o apontador, a borracha. Não sei
T AREF A escritas em azul bem forte.
transformar com máquina, só sei virar à mão:
Me levantei. Sabendo que uma janela já tinha
apagando, riscando, sentindo o cheiro do lápis
me respondido, mas a outra ainda não. Eu
(na hora de fazer ponta, então!).
queria a resposta!
A lâmpada também: está sempre no mesmo
Bati com força no vidro, e a janela se
lugar. Bem aqui do meu lado esquerdo. E eu me
escancarou: na minha frente estava o mar! toda
habituei a ficar tantas horas nessa mesa, que a
vida; azul-turquesa e de calmaria.
lâmpada ficava muito, muito tempo acesa.
No peitoril da janela tinha um bilhete azul
Um dia eu dei pra transformar coisa. curta:
clarinho: dizendo assim: .
transformava uma dor em vírgula;
virava um alívio em ponto de exclamação;
"No dia que você acabar a tarefa
transformava uma esperança em interrogação.
a tua vida acaba também."
Gostei. Me senti meio feiticeira.
Escrevi 26 livros.
Tarefa? que tarefa, eu pensei. E virei o papel.
Mas quando eu estava escrevendo o último
Feito me respondendo, o bilhete dizia assim
capítulo do meu vigésimo sétimo livro, o sonho
do outro lado:
voltou!! O mesmo. O mesmo sonho que eu tinha
tido na noite dos meus 15 anos. Todo sonhado
"A tarefa está desenhada na areia;
em azul.
na parte da areia que fica mais junto do
Começava igualzinho: eu estava deitada na
mar. "
praia; e o azul da areia era esbranquiçado. A parede
104 Lygia Bojunga A troca e a tarefá 105

Pulei a janela. E logo ali, entre o mar e a E eu comecei a sentir medo. Um medo que
praia, bem junto de onde a onda chegava, a eu nunca tinha sentido. E aí eu ouvi a mesma
tarefã estava toda desenhada. voz que tinha me falado da troca. A voz me
Tinha 27 livros desenhados na areia. disse assim:
Eu fui andando. "Cada um tem uma tarefa na vida. A tua é
Olhando pra cada desenho. escrever,27 livros. Na hora que você botar o
Reconhecendo cada um dos meus livros. ponto final no vigésimo sétimo livro, a tua tarefa
Lembrando de cada história. De cada vai estar acabada e a tua vida vai terminar."
personagem. Sentindo saudade de fazer cada um. E me repetiu o aviso, e me repetiu de novo.
Fui passando por todos até chegar ao último Tapei o ouvido não querendo escutar mais.
livro. Ficou de noite, o azul de tudo tão marinho!
Cada um dos 27 tinha sido desenhado na areia e eu acordei (tinha dormido aqui mesmo na
chegando sempre mais um pouco pra perto do mar. mesa, debruçada no último capítulo do meu
O último ficou tão perto, que quando a onda 27.0 livro).
vinha bater na praia apagava um pouco dele. Olhei pro papel: e agora? Da mesma maneira
Me ajoelhei na areia, querendo riscar de novo que tinha sido verdade o aviso da troca, agora eu
o pedaço que a água tinha desmanchado. sabia que ia ser verdade o aviso da tarefã.
Mas a onda veio de novo e apagou. Empurrei o papel.
Meu dedo riscou outra vez. Lápis, borracha, empurrei tudo pra lá: era só
A onda desmanchou. não acabar o 27.0 livro que a minha tarefã não se
O dedo desenhou. acabava e a minha vida também não.
O mar apagou. Apaguei a lâmpada.
106 Lygia Bojunga. A troca. e a. tarefá 107

Não transformei mais nada. Experimentei pintar uma aquarela; pintar


Mais nada.
com tinta a óleo eu também quis; pintar de
Nada.
qualquer jeito, mas quem diz? Tentei, tentei,
cansei; não sei mesmo como é que se vira

o último capítulo do meu livro, o lápis, o


apontador - ficou tudo como eu deixeihá cinco anos.
uma coisa com tinta, eu só sei, eu só quero é
virar com letra.

Continuo paralisada: acabando a tare/à, a


minha vida se acaba também, eu sei. Tempos atrás eu comecei a escrever essas
Vivi desesperada esses cinco anos. Um dia, anotações. Mas parei logo. Achei que as minhas
pra ver se sossegava um pouco essa agonia de lembranças do passado estavam com jeito de
não poder mais terminar um livro, eu quis história.
transformar de outras maneiras. Por exemplo: É preciso muito cuidado.
experimentei virar o meu desespero num boneco, Não quero que ninguém, NINGUÉM, possa
num cavalinho, numa figura qualquer de barro. pensar que eu estou transformando as minhas
Mas a minha mão se grudava na massa, me dava lembranças em livro.
tanta aflição mexer com aquilo, era só enterrar os
meus dedos no barro que eles ficavam ainda com
mais saudade da madeira enxuta do lápis. Há seis meses que eu não abria esse
Experimentei transformar usando nota caderno, não pegava um lápis. Um dia (foi em
musical. Mas que o quê! - eu não me ligo agosto, eu me lembro) não agüentei mais: desatei
nos sons.
a escrever carta pros amigos. Mas eles me
108 Lygia Bojunga A troca e a tarefã 109

disseram que eu não escrevia cartas, escrevia história, que eu vou fazer outras, que - ah!! vai
histórias, e que eles estavam juntando elas todas ser feito ressuscitar.
pro meu editor publicar.
Que medo! que aflição de recolher tudo
correndo: qualquer livro publicado vai ser o meu Tenho ido todas as semanas ao médico.
vigésimo sétimo.

P arei de novo com as anotações. Que nem


o médico hoje veio aqui: não tive mais força
pra sair de casa.Ele disse que não sabe que doença
eu pare! com as cartas. é essa que eu tenho: os examesnão acusam nada.

Eu não ando me sentindo bem. Tenho ido Estou me sentindo cada vez mais fraca.
ao médico -.Ele disse que eu estou emagrecendo Não saio mais aqui da mesa. Esta noite nem fui
muito. Pediu uns exames. pra cama: botei a minha cabeça num papel em
branco e dormi.

Se eu não tivesse me apaixonado por essa


mania de transformar a vida em livro eu não ia Hoje eu e um papel em branco ficamos
me importar de morrer. nos olhando tanto tempo, que minha vista doeu.
Mas eu estou sempre achando que eu vou me N a hora eu pensei que era um cisco no olho; fui
esquecer do aviso, que eu vou acabar a minha no espelho ver. Que susto quando eu dei de cara
110 Lygia Bojunga

comigo (nunca mais tinha me olhado no


espelho): eu devo estar mesmo muito doente.
E os médicos só fazem é pedir mais exames.

Mais exames.

LÁ NO MAR
Hoje, finahnente, eu tomei a decisão de
acabar o meu livro.

o aviso não me interessa mais. Tenho


que transformar de novo: o resto não
me interessa mais. Se
,,~
• '\; 4' essa é a minha
_.
~-----::T;II:<>- .
palx...
*

"I!".."..,;... "--<OJf

* Nota de Lygia Bojunga: A escritora morreu sem acabar a frase. Deram com
ela debruçada na mesa, a ponta do lápis fincada na paixão.
~

Lá no Mar 113

F oi o Pescador mesmo que fez o Barco que


ele usava todo dia pra pescar: quando ele era
garoto, tinha aprendido com o pai a fazer barco.
E o pai tinha aprendido com o avô.
E o avô tinha aprendido com o bisavô.
Mas o Pescador não tinha filho pra ensinar
como é que se fazia barco nem como é que se
pegava peixe. Ele não tinha casado, não tinha se
acertado com ninguém: se ele gostava de uma
moça, a moça não gostava dele. E vice-versa. E
com amigo, a mesma coisa. Então, assim, nesse
nunca-se-acertando, o Pescador se habituou a
viver sozinho. Sozinho, não: ele e o Barco; ele e
o Barco; ele e o Barco lá no mar.
Eles engrenavam tão bem! o Pescador e o
Barco. Um sabendo o jeito do outro. Os dois
sentindo juntos a hora certa de esperar o peixe,
de arrastar a rede.
E lá no mar alto, atravessando a noite, eles
conversavam até não poder mais. Quer dizer, o
Lá no Mar 115
114 Lygia Bojunga

uma ventania assim tão forte; nunca tinham


Pescador pensava em voz alta e o Barco escutava:
visto tanto raio estalando.
era assim o papo dos dois.
Deu medo.
E o Barco então ouviu muita história.
E o mar também: o mar se apavorou: foi
História de pescaria.
ficando todo arrepiado, todo encrespado.
História de amor (desacerto com moça, essas
Quando o temporal viu o medo que ele
coisas).
estava espalhando, se achou tão forte! quis dar
História de saudade. Saudade que o Pescador
ainda mais medo: fez o céu parecer pegando
sentia do pai e do avô (os dois tinham morrido
fogo de tanto estalo e clarão.
no mar); saudade do tempo que ele era criança e
O mar nem quis mais ver: desatou a levantar
ficava sentado na praia consertando rede e
onda. Uma atrás da outra. Uma mais alta que a
escutando os casos que o pai e o avô iam
outra. Pra ver se uma delas tapava o céu.
contando e que agora ele contava pro Barco.
O Barco subia na onda; o Pescador pedia
O Barco escutava. E tanto escutou e tanto
coragem; a onda largava eles de qualquer jeito; o
ano passou, que ele foi tendo a impressão de que
Barco tentava agüentar; e já o mar levantava
era com ele que tudo tinha acontecido; que era
outra onda; e o Barco subia de novo; e o
ele que contava aquilo tudo pro Pescador. O
Pescador pedindo coragem, coragem! e o Barco
Pescador, a mesma coisa: se habituou a achar
tentando agüentar.
que o Barco e ele eram um só.
Os dois já estavam exaustos.
Uma noite um temporal horrível pegou os
Em vez de se acalmar, o temporal piorava.
dois no mar alto.
O Pescador não tinha mais controle do leme.
Quantas vezes eles já tinham agüentado
E perdeu o controle dos nervos também: sentiu a
temporal no mar. Mas nunca tinham sentido
116 Lygia Bojunga Lá no Mar 117

sombra de um homem chegando; se virou; sentiu pai, sumiu avô; e o Barco sentiu no casco a mão
outro homem vindo. Iam tomar o barco dele? do Pescador se agarrando.
- Eu não entrego! - ele gritou - , esse barco Começou a agonia.
é meu. - E se agarrou alucinado no leme. Agonia de só ser barco: de não ter mão pra
O Barco ouviu o grito do companheiro; ficou estender pro companheiro e puxar ele pra dentro
atarantado: quem é que tinha chegado? Mal se de novo.
equilibrando na subida de cada onda, mal Quanto tempo durou aquilo? Já ninguém
agüentando a descida, ele já se descontrolava sabia mais.
também: virava pra cá, pra lá, rodopiava. Era a onda? era o vento, era quem? que
Um relâmpago jogou luz forte no Barco. puxava o Pescador assim tão forte pro fundo do
O Pescador reconheceu os dois homens. A mar?
cara se abriu de contente: E o Barco esperando. Esperando a mão
- Ô pai! Ô vô! Que saudade que eu tinha de agüentar.
vocês! - Largou o leme pra lá e se abraçou com Mas quem puxava era mais forte, e o Barco
os dois. sentiu no casco os dedos escorregando.
E assim abraçados, o filho, o pai e o avô Depois, o vento foi parando. Só lá longe,
pareciam até que dançavam, de tanto que o quase feito assim suspirando, se ouvia um resto
Barco rodava, rodava pra cá e pra lá. de temporal.
Cansado de tanto medo, o mar dormiu.
O Barco também: cansado (muito cansado),
Numa virada do barco a dança toda se tinha ficado quieto.
acabou: o Pescador foi atirado pro mar, sumiu O dia foi nascendo.
118 Lygia Bojunga Lá no Mar 119

Tudo parecia parado. Só um fiozinho d'água dia, quando ele estava pensando nisso, viu
escorrendo, escorrendo, escorrendo lá do Barco chegar perto dele um barco de pesca,
(justo aonde a mão do Pescador tinha se agarrado). pequeno feito ele, com o nome escrito na
Podia parecer que era um restinho de chuva proa: Bem-te-vi.
que tinha se atrasado no caminho. O pescador que vinha no Bem-te- vi encostou um
Podia parecer que era respingo do mar. casco no outro, espiou pra tudo admirado de ver o
Podia até parecer que era o orvalho. Barco ali daquele jeito, tão sozinho e abandonado.
Cutucou o filho que estava dormindo:
- Ei! espia pra isso aqui.
E o Barco não quis mais voltar pra praia, O Menino (era um menininho pequeno
resolveu ficar morando lá mesmo. Quando o assim) levantou e ficou olhando pro Barco com
vento soprava, ele se firmava na água pra não ser olho meio de sono.
levado pra longe; quando batia temporal, ele - Sabe o que que eu vou fazer? - o pescador
lutava com cada onda pra poder continuar por resolveu de repente - vou ganhar uma grana
ali; e quando tudo passava e vinha a calmaria de com esse barco: levo ele comigo, dou uma boa
novo, ele ficava achando que ele e o Pescador pintura nele e pronto: vendo. Pega a corda lá pra
ainda estavam perto um do outro e que então a mim: vamo amarrar ele aqui.
vida não era ruim. O Menino, sem tirar o olho do Barco, pegou
Passou muito tempo. a corda, trouxe pro pai.
O Barco ficou velho. Deu pra pensar que o O pescador foi preparando a corda.
casco dele ia apodrecer. Gostou: ia afundar: - Vou pintar ele bem vermelho. Ele vai ficar
ia morar ainda mais perto do amigo. E um com cara de novo, 'cê vai ver.
120 Lygia Bojunga Lá no Mar 121

Quando o Barco foi se encolher, a corda - Mas por que que esse diabo desse barco tá
pegou ele. assim tão pesado?! - Encostou outra vez um
Quando o Barco quis escapar, a corda casco no outro, desligou o motor; começou a
amarrou bem. preparar a corda de novo.
O Barco se revoltou: ele estava velho, E o Menino sempre daquele jeito, sem tirar o
cansado, e agora pintavam ele de vermelho pra olho do Barco, sonhando um sonho que ele tinha
ele ficar com cara de novo e vendiam ele não sei dado pra sonhar: ter um barco pra brincar. Mas
pra quem, pra ele começar outra vez uma vida um barco de verdade. Grande feito o barco do pai
de luta, pra baixo e pra cima, pro mar e pra dele. Só que em vez de ser marrom feito o Bem-
areia, arrastando rede, carregando peixe? Ah, te-vi; o barco dele ia ser todo colorido. Só que
não! já bastava ele ter que agüentar todo dia a em vez de vir assim pra longe no mar, o barco ia
saudade do companheiro; não ia dar pra morar lá na praia (bem lá na ponta da areia,
agüentar a luta toda de pescaria outra vez. O naquele escondidinho atrás do morro,
jeito então era se travar, botar a força que ele onde a onda chegava mansa, onde ele ia
ainda tinha pra não ser levado embora. O casco sempre brincar).
não ia aturar, ia rebentar; a água ia entrar; ele ia O Barco estava descansando da força que ele
afundar; ia se juntar com o Pescador! tinha feito pra não ser levado embora. Mas o
E pronto: o Barco se travou; botou toda a pescador começou a amarrar ele de novo. E
força que tinha pra não sair do lugar. ligou o motor.
Em vez do casco, foi a corda que rebentou. A corda puxou.
O pescador não entendeu o que que estava O Barco se travou forte.
acontecendo: A corda rebentou outra vez.
122 Lygia Bojunga Lá no Mar 123

- Mas o que que esse barco tem que não pro Barco que ele tinha um gato malhado
desempaca daí! - o pescador gritou. e uma coleção de tampinhas de cerveja.
O Menino feito que acordou. E já doido pra Contou onde é que ele tinha encontrado as
entrar no barco dele falou: tampinhas e onde é que o gato tinha
- Eu vou lá dentro olhar. - Nem esperou o encontrado ele. O Barco foi prestando
pai falar: um casco já estava encostando no atenção nas histórias e se esqueceu de pensar
outro e o Menino - pufi - pulou pra dentro do na corda.
Barco e foi direto pra cabine espiar tudo de O Menino nem ouvia o pai chamando, agora
perto. era só ele e o Barco, ele e o Barco, ele e o Barco
O Barco tomou um susto quando o Menino lá na praia.
pisou nele: quanto! quanto tempo sem sentir E quando o' Menino parou de falar, o Barco
alguém assim perto. só ficou pensando ah, será que ele não tem mais
O Menino alisou a madeira do banco, a nada pra contar?
ponta do dedo tocou no leme, de leve, feito Laralalalalalá, o Menino começou a
fazendo uma festa. cantarolar.
E o susto do Barco virou suspiro. O Barco ficou impressionado: será que ele
O suspiro meio que sacudiu a porta da estava escutando bem? era canto que tinha lá
cabine: ela se fechou devagar. E o Menino então dentro dele?
começou a imaginar que o Barco já estava Mas o pescador pulou pro Barco; abriu a
morando lá na prainha onde ele brincava, e que porta da cabine:
os dois tinham toda a vida pra conversar. - Você não tá ouvindo eu chamar, menino?!
Trepou no banco. Se ajeitou. E foi contando que que 'cê tá fazendo aí!
124 Lygia Bojunga Lá no Mar 125

- Brincando ... que vai me dar um presente e nunca dá. E agora


O pescador, já irritado, apressado, foi você diz que vai largar o meu barco pra lá; eu
examinando tudo, leme, cabine, casco. não quero. Eu quero ele pra mim.
- Xi, mas este barco tá muito mais estragado O pescador ficou olhando espantado pro
do que eu pensei, olha aqui pra essa madeira: ela Menino: mas que garoto mais esquisito aquele
tá toda apodrecendo. Sabe do que mais? não vale filho dele! tão pequenininho ainda e já com
a pena perder mais tempo com ele, vam'embora! umas manhas...
larga essa droga pra lá. - E voltou pro Bem-te-vi - Pra que que você quer esse barco? você
resmungando: - Eu só não entendo é por que tem medo do mar. .. você não gosta de sair
que ele não desempaca daí. Deve ter encalhado comigo pra pescar... Ontem eu quase que tive
num troço qualquer. que trazer você à força; e mal a praia ficou
O Menino ficou sem se mexer: abandonar o longe você deitou aí e chorou até dormir. ..
barco dele? largar pra lá? pra que que você quer um barco de pesca,
E o Barco esperando: o Menino não ia mais me diz?!
cantar? - Pra deixar ele lá na praia. Num
- Tá esperando o que, meu ftlho? Anda! escondidinho que eu descobri atrás do morro.
Vem! O sol tá ficando alto, vamo pra casa. Lá o mar é bem manso. E a gente vai brincar.
O Menino foi fechando a cara, fechando, O pescador chamou o Menino com a
emburrou: cabeça:
- Sozinho eu não vou. - Vem.
- Sozin.ho? -Não.
- Esse barco é meu. Você tá sempre dizendo -Vem!
126 Lygia Bojunga Lá no Mar 127

- Não vou. estava falando? será que ele estava outra vez
O pescadorlevantoua mão pra mostrar que o cantando? E, em vez de fazer força pra ficar, a
Menino ia apanhar.O Menino ficou supertrombudo: força que o Barco fazia era pra escutar.
- Só vou se ele vem comigo. O pescador estava bobo: parecia que o Barco
- Só que ele não vai! você não viu que ele tá nem precisava de corda pra vir atrás!
encalhado? não adianta você querer que ele O Menino desatou a laralalar de um jeito
não sai daí. que o Barco bem que sentiu vontade de
- Sai. cantarolar também. E os dois assim, um de olho
- Não sai! no outro, lá se foram pelo mar. Aqui e ali vinha
- Sai. uma onda de tristeza e o Barco se esquecia do
O pescador suspirou: será que agora o filho canto pra pensar no Pescador; mas depois ele
dele também não desencalhava de lá? escutava outra vez o Menino e começava a
- Tá bem: a gente amarra ele outra vez e imaginar onde é que eles iam arrumar as
leva: vem! tampinhas de cerveja, a cara do gato malhado, a
O Menino saiu correndo e pulou pro praia lá atrás do morro, as histórias que... puxa,
Bem-te-vi: que luz! quanto sol! que engraçado que ficava o
De tão certo que a corda ia arrebentar, o cabelo do Menino quando
pescador amarrou ela de qualquer jeito. Ligou o vento batia
o motor. assim.
O Barco tomou um susto; começou a se
travar; mas viu o Menino debruçar no Bem-te- vi -.:----

e ficar mexendo com a boca; o que será que ele ""'_.~


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OBRAS DA AUTORA

Os Colegas - 1972
Angélica - 1975
A Bolsa Amarela - 1976
A Casa da Madrinha - 1978
Corda Bamba - 1979
O Sofá Estampado - 1980
Tchau - 1984
O Meu Amigo Pintor - 1987
Nós Três- 1987
Livro, um encontro com Lygia Bojunga - 1988
O Pintor (teatro) - 1989
Nós Três (teatro) - 1989
Fazendo Ana Paz - 1991
Paisagem - 1992
Seis Vezes Lucas - 1995
O Abraço - 1995
Feito à Mão - 1996 1"""16 , í)
~ s. r:
A Cama - 1999
O Rio e eu - 1999
Retratos de Carolina - 2002
Impressão e Acabamento GRÁFICA LIDADOR LIDA.
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Te!.: (21) 2569-0594/Fax: (21)2204-0684
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