Tchau - Lygia Bojunga
Tchau - Lygia Bojunga
Tchau - Lygia Bojunga
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CIP - Brasil. Catalogação-na-fonte
Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ.
ISBN: 85-89020-05-3
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:fito -u#tJúlque procureipra ir estreitando mais e mais
essa relsç pra mim tão gostosa: a que eu tenho com você,
que me lê. Então, em Retratos de Carolina, eu quis
escrever de novo um pra você que me lê. Só que, dessa vez,
o meu papo com você se misturou com a história que eu
l. estava contando, e um passou a fazer parte da outra.
Agora, trabalhando nesta 17. a edição do meu livro
TCHAU (durante quase vinte anos o TCHAU roi
publicado pela Editora Agir,' mês que vem ele muda de
casa:passa a ser publicado pela minha própria editora), me
deu vontade, outra vez, de vir a você, e comecei a pensar
alto, quer dizer, comecei a te escrever o que eu estava aqui
pensando com os meus botões:
..
8 Lygia Bofunga Pu você que me lê 9
Mas tem gente que diz que amigo bem mais velho é É por isso que eu fico perplexa de ver tanta gente
que é bom: sabe ouvir 1ündo tudo que a gente CJuerfalar, tratando livro fêito coisa que ele tem data de validade
sabe dizer com todos os efês-e-erres a fala que a gente na capa:
ainda não sabe arrumar, e sempre tem uma dica legal faz XI; fôi lãbricado ano passado! não deve msis estar
assim, não faz isso assado, faz mais temperado, na hora bom.
que a gente não tem nem idéia de como é que vai fazer 0- Não falaram dele na televisão, é? sh, então é melhor
que-tem-mais-é-que-fazer. não provar.
Tem gente que diz que amigo pra valeré cachorro e gato. Não me diga! fôi lançado faz tempo? ah, então fá
!i3!!!2.gt:nte. como eu=-emqualT:!..erlãse da Vidanão passou.
abre mão, mas não abre mesmo, de ter sempre Ror perto o _
tal "do~ pra valer:LIVR o. Mesmo porque ele é o Isso me lembra uma menininha que veio morar funto
único amigo que nunca cria caso pra ficar com a gente se;ã da minha casa quando eu tinha oito anos. Chegou perto de
~';nde fôr.-:sãJa,quarto, bãiiJleiro, cozinha, sombra d..:.. mim e disse: eu queria tanto ser tua amiga! Então ficamos
ãrvore, areJaâe raia, 1ündo de soa 1ündo de má oa/ e amigas. Mas pouco depois ela fá me declsrsvs: não quero
fica Unto da gente mesmo no plOr ugar do ômbus, do_ msis ser tua amiga. Me espantei;'perguntei por quê. Ela
trem, o avião/ entrenta até numa boa ca eira e :;!entista respondeu convicta: agora fá te conheço: não tem mais
~ita1. Ese quem escreveu o livro consegue novidade.
~
mexer com o nosso pensamento e balançar a nossa Bom, isso tudo eu estava aquipensando e quis te
imaginação - pronto! aí se fôrma uma relação, um laço, passar, mas, pra contar a verdade, o que eu hofe tenho
que smsrrs pra valer quem escreve com quem lê. vontade é de te contar por que - agora que eu tenho a
Essa amarração é tão gostosa, que vaJ'ser diflCi! - Vida minha casa-editora e posso fazer meus livros do feito que
siora - a gente querer desatar. Eu sei disso por mim: os eu quero - escolhi reproduzir na capa do TCHA U um
livros que eu li e amei estão sempre por perto. Não só pra, quadro chamado A Solitária, do pintor norueguês
volta e meia, dar uma namorada de olho com eles, alisar Edvard Munch.
um bocadinho a lombada, fazer uma fêsta na capa, mas
também pra, de vez em quando, convidar. vamos de novo?
c
e lá ficarmos os dois, outra vez esquecidos do inundo, Quando olhei pela primeira vez para A Solitária, logo
nessa tal de amarração de quem escreve e de quem lê. me senti intrigada por este trabalho do Munch, que
e-
10 Lygia Bojunga Pra você que me lê 11
contrasta tanto - pela siuvidsde da iorms e da cor - com ciúme, tanto susto que durante tanto tempo eu tinha
muitos dos quadros dele que me interessam (induSive o fêito eles viverem). Mas agora, olhando slipara A
célebre O Grito) marcados por uma stmostera angustiante Solitária, alguns dos personagens do TCHAU acordavam
e sombria. num pulo, fêito coisa que eu tinha recém-começado a dar
A intriga que senti olhando pr' A Solitária poderia ter VIdaa eles. Por quê? eu me perguntava, por quê? Mas,
sido acionada pelo que há de intrigante naquela figura: como tantos outros por quês? da gente, aquele meu
um cinto prendendo uma cabeleira vigorosa numa também ficou sem resposta. Quer dizer, resposta a gente
cintura delicada/ sempre d<i não é? mas não necessariamente aquela que vai
um olhar que, mesmo a gente não vendo, a gente vê SIlenciar o por quê? pra sempre.
perdido no horizonte/
a brancura intensa de uma veste, acentuando dúvidas:
é uma adolescente? uma mulher? uma noiva? um Um dia a casa-editora que vinha me publicando na
fantasma?,' Noruega (Aschehoug) me convidou para ir a Oslo. Uma
e, em volta da figura: sombras? pedras? areias? vez na terra de Munch, não escondi o interesse que eu
rochedos? sentia pelo pintor. Me levaram pra ver muitos originais
Intrigante, sim, mas a intriga maior que eu sentia era dele nos museus. Procurei A Solitária (contemplar o
pela sensação de familiarIdade que me tomou, assim que original de uma reprodução que nos balançou é sempre
meu olho bateu na figura solitária. Vasculhei minha uma emoção). Não encontrei. Mas na despedida, já no
memória: já tinha visto aquela imagem antes? Não. Não aeroporto, me presentearam com um livro completissimo
mesmo. Então? por que essa sensação de familiaridade? E, sobre a vid« e a obra do Munch.
aumentando ainda mais nunhs intriga, junto com a Foi só me ajeitar na poltrona do avião que comecei a
sensação me invadIa também - rorte - a lembrança de rolhear o livro. E assim que meu olho bateu na reprodução
alguns personagens meus que, fazia tempo, tinham de página inteira d' A Solitária, fúi invadida, como
abandonado meu pensamento. naquela outra vez- pela sensação de familiaridade que, de
Nessa época meu livro TCHA U já tinha SIdo novo, me intrigou, e pela lembrança ioite da Rebecs, da
publicado no Brasil- os personagens criados para os quatro (I
Mãe, da Escritora e do Barco. Só que agora, olhando e
contos que ioimam o livro estavam dormindo fúndo mais olhando pr'aquela imagem, eu enxergava a resposta
dentro de mim (na certa cansados de tanta dúvida, tanto que acabava de vez com a minha intriga: a familiarIdade
12 Lygia Boj1111ga Pu você que me lê 13
que me vinha daquela figura era porque eu já tinha me despertou dentro de mim tanta ressonância, tanta
encontrado com ela, sim. Mas não num livro. familiandade.
Nem tampouco em nenhuma galeria de arte. Eu tinha Só que isso eu não vou saber te responder. Bem que
me encontrado com ela dentro de mim. Não assim, eu gostaria de sacar mais da química que se produz entre
naquela veste tão branca, naquela stmosiera tão lá dos os seres, e que faz a gente se sentir tão em casa-de-pé-no-
Nortes. Brasileira fêita eu sou, tão partícula enamorada chão com alguém que acabemos de conhecer, e tão a
aqui deste Sul eu tinha me encontrado com aquela quilômetros de distância de outro, com quem convivemos
figura de outro jeito: cú'ariamente.
vestida de Rebeca, se agarrando com fôrça na mala Qusntss vezes, não é? a gente se sente /àscinada por
que vai deixar ela sem mãe/ uma pintura ou por um livro que, nem de leve, conseguiu
vestida de Mãe, olhando perdida pro mar, querendo mexer com o interesse da nossa maior amiga.
encontrar nele a torça para agüentar uma torrente de E o que é que você me diz de, quando a gente sai do
paixão/ cinema tão identiiicsda com a personagem do filme, que é
vestida de Escritora, amarrada a uma mesa de trabslho capaz até de jurar que conhece ela desde criança.
i= E quando a gente chora de emoção ouvindo uma
poder criar e - criando - poder viver,' música e escuta o namorado ao lado dizendo: puxa VIda!
vestida de Barco, empacado, lá no mar, preso a uma mas que saco esse troço que estão tocando.
grande saudade. Pois é...
Ali estava a imagem criada pela mão de um Quando mostrei a nova capa do TCHAU pra duas
pintor, me revelando, em outra linguagem, o mesmo que amigas minhas, uma delas exultou: mas que máximo! é a
a minha mão de escritora tinha procurado pintar nos tua cara! é a cara dos teus personagens! A outra se limitou
meus contos. Por que então não me sentir tomada a comentar: gostava msis como era antes.
pela sensação de familiarIdade se o pintor e eu
falávamos de uma mesma sentença a ser cumprida:
--------
a solidâo.
O que, talvez, você queira saber é por que que esse
Muitas vezes meus leitores perguntam o que me
inspirou pra escrever tal livro ou para criar tal personagem.
trabalho do Munch - e não outro, dos tantos que, de um Ousntss vezesjá se disse, não é mesmo, que inspiração é
jeito mais brasileiro, mais nosso, falaram do mesmo tema - sinônimo de trabalho, e mais trabalho, e mais trabslho. Eu
14 Lygia Bojl111ga Pra você que me lê 15
concordo. Mas, pra começar o meu trabalho, eu preciso de O livro que eu ganhei no aeroporto de Oslo passou a
um estímulo que, fêito um palito de fOsfôro, risque a viver perto de mim, como -já te contei isso antes - vivem
minha imaginação produzindo a faísca e, em segwda, a todos os livros que eu amei e começo a amar. Quando
chama que vai clsresr o caminho. É a partir desse risco que fôlheio aquelas páginas e me encontro com A Solitária -
eu crio, que eu procuro dar vida aos meus personagens e, se talvez até por já ter criado o hábito, não sei -, associo ela
consigo, eles passam a dar vida aos meus livros. de novo à Rebeca, à Mãe, à Escritora, ao Barco e - por
Várias vezes, artistas plásticos já riscsrsm a minha extensão, e não, necessariamente, por solidão - aos outros
imaginação, incendiando meu pensamento. As vezes, personagens do livro.
brasileiros; às vezes, pertencentes a outras culturas. Estou Então, agora que o TCHAU vem morar na minha
me lembrando agora que pelo menos três de meus livros casa, achei que tinha tudo a ver reproduzir em primeiro
(A Casa da Madrinha, Corda Bamba e Retratos de plano a figura associada àqueles personagens. QUiS
Carolina) tiveram, como ponto de partida, o estímulo também que as outras pouquinhas imagens que aparecem
criado por uma determinada imagem. Outras vezes, o que no livro tossem, apenas, l111S rabiscos que a Rebeca andou
estimula a minha imaginação vem de um sonho-sonhado, fazendo, e que eu encontrei numa mochila velha que ela
um som-escutado, um encontro-scontcado, uma largou pra lá.
lembrsnçs-revivids. Mas acho que não importa quem ou o
que vai riscar nossa imaginação - desde que o risco nos Bom ... acho que era mais ou menos isso que, hoje, eu
ajude a criar. . queria te contar.
A capacidade de criar mora dentro de cada um de nós.
Quanto mais uso a gente faz dela, mais ela nos surpreende,
por nos mostrar o quanto dependemos de criarpra poder
aI tJ?AAfO //7e;"'4«'" 1mum-b", -
crescer.
Cada um cria de um jeito, já que "cada um é outro '~
como se diz lá em Minas. O problema é que, as vezes, a
gente custa à beça pra encontrar o nosso jeito. ~ho p;!! é ..
ouvindo contar do jeito que cada um cria,prestando
atenção no eito que o outro criou, que - ~
aca a encontrando o Jeito que a gente tem pra criar.
gente 1f:c t//f, ~
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Tchau 19
1
O buquê
A campainha tOCOlLRebeca correu pra abrir a
porta. Até se admirou de ver um buquê tão bonito.
- Mãe! - ela gritou - chegou flor pra você. -
Fechou a porta.
A Mãe veio correndo da cozinha e pegou o
buquê. Tinha um envelope preso no papel; a
Mãe tirou depressa um cartão lá de dentro; leu. O
telefone tocou; a Mãe largou tudo e foi atender.
Rebeca quis ler o cartão. Mas estava escrito
em língua estrangeira, era francês? Olhou pra
assinatura: Nikos. Lembrou de uma voz
estrangeira que andava telefonando, chamando a
Mãe. Botou devagarinho o cartão em cima do
envelope; foi chegando disfarçado pra perto do
telefone, sem tirar o olho da Mãe. Franziu a
testa: a Mãe estava parecendo nervosa,
encabulada; mas muito mais bonita de repente!
Tchau 21
20 Lygia Bojunga
uma voz de raiva, de mágoa, uma voz que a - O que que eu posso fazer? ele não quer
Rebeca nunca tinha ouvido ele falar:
que eu leve as crianças agora.
- Você tá chorando por quê? Quem tem - ELE NÃO QUER!! Então ele agora
que chorar sou eu e não você. Não sou eu que
manda em você. Ele é um deus que desceu do
tô abandonando a minha família, é você; não
Olimpo pra dizer o que ele quer e o que ele não
sou eu que tô deixando os meus filhos
quer que você faça.
" e voce.Ar
pra 1a:
Rebeca franziu a testa, ele é um deus que
A Mãe tirou a almofada da cara; a voz saiu
desceu de onde? E aí o Pai gritou:
metade soluço, metade fala:
- Pois eu também não quero, viu? eu não
- Você não tá querendo entender: eu não tô
quero o que você quer. E você vai ter que
deixando a Rebeca e o Donatelo: um dia eu
escolher: ou fica ou leva as crianças
volto pra buscar os dois.
com você agora.
- Você vai embora com esse estrangeiro pra
- Mas eu não ...
viver lá do outro lado do mundo ...
- Se você não leva elas agora, eu não
- Eu juro que eu volto!
deixo você levar nunca mais. Abandono do
- ...mas o estrangeiro não quer as crianças, só
quer você. lar, da família, de tudo: a lei vai estar do
meu lado. Então você escolhe: ou ele ou as
- Eu sei que eu acabo convencendo
ele... crianças.
botequim da esquina: ué: não era o Pai a casquinha, dava uma lambida em cada
sentado bem lá no fundo? Espiou: era, dedo, enxugava eles na saia e suspirava de
sim: entrou. pena do sorvete ter acabado. O Pai suspirou
- Oi, pai. também:
O Pai levantou a cara do copo e olhou pra - A tua mãe não gosta mais de mim.
Rebeca feito custando pra lembrar quem é que Rebeca olhou pra mesa: cheia de copo
ela era. vazio. Será que era o Pai que tinha bebido
- Ôôôooooo filhinha, o que que você tá aquilo tudo?
fazendo por aqui? - E eu gosto tanto dela! Agora então
- Eu, nada, e você? que ela vai me deixar parece até que eu
- Eu, nada. gosto mais.
32 Lygia Bojunga Tchau 33
Rebeca olhou pro Pai; achou que o olho dele o Pai fechou o olho:
estava parecendo de vidro. _ Eu queria que o tempo já tivesse passado e
- Duvido que esse gringo goste dela do que eu já tivesse me esquecido dela.
jeito que eu gosto. Nem metade, aposto. - Eu vou pedir pra ela não ir embora; deixa
. .
Nem metade da metade da me... - Foi se corrugo, pai.
esquecendo da outra metade; ficou olhando - Eu queria que você e o Donatelo já
pra Rebeca. fossem grandes. O que que eu vou fazer com
- Que que você tá me olhando assim, pai? vocês dois? me diz, me diz! Eu não tenho jeito
A Mãe parou de fazer festa na cabeça do e eu tenho que pedir de novo, não vai não
Donatelo e ficou sem se mexer. vai não vai!!
Rebeca ficou,que nem a Mãe: sem se virar, A Mãe cochichou depressa:
sem falar, sem perguntar. - Por favor, Rebeca, me entende, me
a tempo foi passando. perdoa, me entende, eu tenho que ir, é
Passando. mais forte que tudo. Mas eu já te prometi:
Até que de repente a buzina do táxi eu volto.
tocou lá fora e a Mãe levantou num pulo - Diz pra ele que não! você não vai.
de susto. A Mãe pegou a mala. Rebeca não largou.
Rebeca também. E se virou. Ao mesmo A Mãe puxou a mala. Rebeca puxou
tempo que a Mãe se virava. E as duas se olharam também.
com medo, e a Mãe correu e abraçou Rebeca A Mãe puxou mais forte. Rebeca ficou
com força, demorado, bem apertado, ai! Rebeca agarrada na mala.
fechou o olho: que troço danado pra doer a táxi buzinou de novo. As duas se olharam.
aquele abraço. a olho da Mãe pedindo por favor. a olho da
A Mãe largou a Rebeca, correu pra sala, Rebeca também: por bvor.
abriu a porta. A Mãe estava de boca apertada; de
Mas Rebeca já estava atrás dela; e puxou a testa enrugada. E não quis mais olhar pra
mala: Rebeca no olho; e puxou a mala com toda
- Mãe; não vai! eu já te pedi tanto, que eu a força, querendo arrancar ela da mão
não ia pedir mais, mas você tá indo mesmo da Rebeca.
38 Lygia Bo/unga Tchsu 39
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46 Lygia Bojunga o bife e a pipoca 47
De repente o Rodrigo fez um ar meio que os dois eram da mesma idade. E aí falaram !I"
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- Puxa, cara, saquei tudo que você me ..u-t, ~ vou~ ~ A ~
ensinou; acho que você vai ter que ser professor. ~ ~ ~ ~ ef4W! ~ .ffii~~.
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54 Lygia. Bojunga o bilê e a pipoca 55 ~\~~
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nessa hora que o rabo do olho viu os bifes que a os carros dos moradores do edifício e ganhava
cozinheira estava temperando. Era impressão? ou em dobro.
era bife-feito-o-bife-lá-da-esquina? O olho todo Um dia o T uca passou por ali procurando
virou pro bife e o T uca foi se esquecendo da vida. um biscate, já que emprego ele não encontrava
58 Lygia Bojunga o bifê e a pipoca 59
mesmo. Conversa vai, conversa vem, o faxineiro Então você já viu: tô te fazendo um bruto dum
perguntou se o T uca não queria fazer sociedade favor. Não precisa ficar toda vida me
naquele negócio de lavar carro. agradecendo. - Fechou a cara. - Mas também
- Sociedade como? não quero reclamação. Não tá contente, pode
- V ocê pega aí um ou outro carro pra lavar e dar o fora. E já. Tá?
eu te dou 10% de tudo que eu ganho. Os trocados que o T uca recebia lá na
O T uca achou ótimo. E naquele dia mesmo garagem bem que ajudavam pra ir levando
começou a trabalhar. comida pra casa. Então, o que que era melhor,
Mas aí foi acontecendo o seguinte: mal o quer dizer, pior: continuar de matemática
T uca chegava, o faxineiro ia pro botequim da esquisita ou perder o biscate?
esquina tomar umas e outras; quando voltava, se E o T uca continuou lavando carro.
ajeitava num escurinho da garagem; logo depois Às vezes o porteiro do edifício chamava o
estava roncando .. faxineiro. O T uca respondia do jeito que tinha
E o T uca ficava lavando sozinho tudo que é sido ensinado:
carro que tinha pra lavar. - Tá lavando um carro lá fora: vou chamar.
Um dia o T uca achou que estava trabalhando - E dava uma corrida até o botequim pra avisar.
sozinho demais e que então a tal matemática dos O faxineiro virava a cachaça num gole e saía
10% não estava bem certa: reclamou. correndo. O T uca vinha atrás. Mas sem pressa
O faxineiro não gostou: nenhuma. Só pra poder passar bem devagar pelo
- Escuta aqui, meu irmão, tem pelo menos restaurante lá da esquina. Que beleza! se
100 moleques que passam todo dia aí na rua chamava "O Paraíso dos Bifes". Da calçada a
querendo pegar esse emprego que eu te dei. gente via tudo lá dentro pela parede de vidro.
60 Lygia Bojunga o bifê e a pipoca 61
Mas não se ouvia nada, de tão bem fechado que deus? Tão impressionado, que um dia ele foi
era, de tão ar condicionado por dentro. E gente chegando mais pra perto, mais pra perto, acabou
comendo, e garçom pra cá e pra lá, e tão gostoso achatando o nariz no vidro. Um garçom foi lá
de olhar: assim: feito quando a gente olha pra fora pra dizer que o freguês estava perdendo o
um aquário. Quem diz que o T uca resistia? apetite de tanto que o T uca olhava pro bife.
parava, e toca a olhar. Então, daí pra frente, o T uca passava devagar
Tinha mesa junto do vidro. E sempre, e olhava disfarçado. E só depois de passar
sempre! os fregueses estavam comendo bife. muitas vezes é que ele prestou atenção na placa
A companhia do bife mudava muito: pequena que tinha do lado da porta: era a lista ill
i
com arroz dos bifes da casa: nome, companhia e preço de
com salada cada bife. O T uca era mesmo fraco em
II
I
com aspargos matemática: então ele acabou ficando ali um I
com ovo em erma... tempão querendo calcular quantos carros ele ia ".Ii
A cor do bife mudava um pouco: ter que lavar pra um dia comer um bife daqueles.
ao ponto
mal passado Lá na cozinha do Rodrigo o T uca tinha se
bem passado. esquecido da vida. Só fazia era olhar pros bifes
Mas o que nunca mudava era o jeito fundo que a cozinheira temperava (o dedo dela
que o garfo e a faca entravam no bife. Quanto também se enterrava na carne de um jeito tão
mais o T uca olhava, mais impressionado ele fácil, tão fundo!).
ficava com aquele jeito fundo do talher ir se - T á dormindo em pé, cara? - E o Rodrigo
enterrando; que carne tão macia era aquela, meu puxou o T uca. Foram pra sala.
62 Lygia Bojunga o hifê e apipoca 63
••
A mãe do Rodrigo viu que o olho do T uca
6 não largava a mão dela: quis se livrar: perguntou:
Meio que tomou fôlego. Pegou o garfo e - Não precisa não: por favor! - o T uca pediu.
espetou no bife, ah, que coisa mais linda: tanta - Me dá aqui o seu prato. - A mãe do
força pra quê?! o garfo tinha se enterrado macio Rodrigo estendeu a mão.
que só vendo, e o T uca, entusiasmado, pegou a
O T uca ficou olhando outra vez pros anéis;
faca pra cortar o bife do mesmo jeito que o
a fome tinha sumido; e tinha aparecido uma
irmão mais velho (carpinteiro) pegava o serrote
vontade danada de fazer que nem a fome e sumir
pra cortar madeira. Atacou! O bife não
também.
agüentou: escorregou pra fora do prato, deslizou
O pai do Rodrigo resolveu puxar conversa:
pela toalha levando de companhia um ovo frito,
- O Rodrigo contou que você ganhou
duas rodelas de beterraba e um monte de grãos
uma bolsa do governo. - O T uca fez que sim.
de arroz. Foi tudo se estatelar no tapete.
Que era bege bem clarinho. - Você teve sorte, rapaz, aquela escola
- Ai! - o T uca gemeu. E mais que depressa custa uma nota firme. - O T uca fez
levantou pra catar o almoço do chão. que sun.
- Deixa!- A mãe do Rodrigo mandou. E - Como bolsista, você não tem que pagar
tocou o sininho. nada, tem? - O Tuca fez que não. - E livro,
A empregada veio; primeiro disse xi! depois caderno, todo o material escolar: eles
perguntou: também dão?
- Não é melhor botar um pouco de talco - O T uca fez que sim. - Tudo?! - O T uca
aqui no tapete pra chupar a gordura? fez que sim. - Mas que sorte!! Você está
- É melhor, sim. - A empregada saiu correndo. acompanhando bem o ensino lá?
- E vê se dá pra fazer outro bife pro menino! - O T uca fez que não.
66 Lygia Bojunga o hifê e a pipoca 67
A empregada voltou com uma lata de talco e E quando a empregada virou a lata, a tampa
uma escova; despejou talco no tapete; a sala de furinho caiu e o talco todo se despencou no
ficou perfumada. chão (saiu até nuvem de talco voando pela sala).
- Boto mais? - Xi! - o Rodrigo levantou.
A mãe do Rodrigo levantou: - Depressa, depressa! vai buscar o aspirador
- Será que é preciso? -- Examinou o tapete. - a mãe do Rodrigo mandou.
- Passa a escova aqui pra ver se não ficou A empregada saiu correndo. O pai do
nenhuma manchinha. Rodrigo se abaixou:
A empregada passou. - Escova aqui, ó, ó - e deu a escova pra mãe.
O Rodrigo apontou com o pé:
- Ainda tem mancha, sim senhora. Posso
- Aqui é que tem um monte, Ó.
botar mais?
- Ah, coitado do meu tapete! é talco demais:
- Mas dizem que tapete não gosta de talco
ele vai ficar manchado, aposto.
demais. - Virou pro pai do Rodrigo: - O que
A empregada voltou correndo com o
que você acha, meu bem?
aspirador. Ligou.
- O quê?
- Passa aqui!
- Bota ou não bota mais talco? - Aqui, ó! ,
O pai do Rodrigo levantou pra examinar o - Não: primeiro aqui!
tapete. O T uca e a mesa-de-almoço se olharam feito
- Olha, aqui saiu tudo - a empregada falou. se despedindo; o guardanapo enxugou um suor
E escovou mais um pouco. que pingava da testa; a cadeira foi pra trás pra
- Pode botar mais um bocado aqui - o pai deixar o T uca levantar. E, de pé, olho no tapete,
do Rodrigo mandou. o T uca ficou vendo o aspirador funcionar.
~cA-'~ ~ K(YJru~.~ ~(Lo k .(ovvdf/,-I(
68 Lygia Bofunga o bifê e a pipoca 69
- Eu moro aqui. - Entrou. da casa dele; e eram onze irmãos morando ali! e
Só os irmãos pequenos estavam em casa. mais a mãe?! Ili
Uma vez o Tuca tinha contado pro Rodrigo: I
Quatro. O Tuca foi apresentando cada um.
Os grandes ainda estavam "lá em baixo se "O meu pai era marinheiro. Só aparecia em
virando"; e a irmã mais velha tinha saído. casa de vez em quando. Um dia ele não apareceu
- Mas, e a pipoca? - o T uca quis logo mars. "
"
- Nesse canto é que eu estudo. Tem que ser Era um quarto com uma cama, um
de noite, porque quando eu saio da escola eu armário velho de porta escancarada e uns
vou lavar carro. E também de noite tá todo colchões no chão.
mundo dormindo, é mais quieto. Tinha uma mulher jogada num colchão.
-É. Tinha uma panela virada no chão.
\
111 II
74 Lygia Bojunga o bifê e apipoca
li 7S
ele tinha mostrado. Respirou fundo. Lembrou mãe já tá tão bêbada que faz qualquer besteira
do perfume do talco. Olhou pro lado: estava um pra continuar bebendo mais. - Começou a
lameiro medonho naquele pedaço do morro: sacudir o Rodrigo. - Você olhou bem pra
tinha chovido forte na véspera e uma mistura de cara dela, olhou? pena que ela não tava
água e de lixo tinha empoçado ali. chorando e gritando pra você ver. Ela chora e
O Rodrigo chegou de língua de fora: o T uca grita (feito neném com fome) pedindo
tinha descido tão depressa que mais parecia um cachaça por favor.
cabrito. - Me solta, T uca!
- Pô, cara! - ele reclamou -, assim não dá. - Solto! solto, sim. Mas antes você vai ficar
Você quase me mata nessa des... igual a mim. - E botou toda a força que tinha
Mas o T uca já tinha virado pra ele de cara pra derrubar o Rodrigo no lameiro.
feia e já estava gritando: O Rodrigo deu pra trás.
- Não precisa me dizer! eu sei muito bem O T uca não largou; puxou de volta.
que não dá. Como é que vai dar pra gente ser O Rodrigo outra vez conseguiu dar pra trás.
amigo com você cheirando a talco... Mas o T uca foi puxando ele de novo. E
- Eu?! quando sentiu os pés se encharcando se atirou
- ...e eu aqui nesse lixo todo. Não precisa no lameiro levando o Rodrigo junto. Aí largou.
me dizer, tá bem? eu sei, EU SEI que não dá. O Rodrigo levantou num pulo. Não
Você é que ainda não sabe de tudo. Quer precisava tanta pressa: ele já estava imundo,
saber mais, quer? quer? - Pegou o Rodrigo pingando lixo.
pela camisa. - Quando a minha irmã tranca a O T uca levantou devagar. E de cabeça baixa
minha mãe daquele jeito é porque a minha foi subindo o morro de volta pra casa.
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foi sem querer
;ti~. Na segtmda-feirao T uca não apareceu na escola.
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N a terça também não.
~ ~ (}Ú?71. ~ voA.~-
Na quarta ele entrou na classe de olho
.R~. .
procurando o olho do Rodrigo.
:J~~ ;-vo-tL ~ ~
Mas o olho do Rodrigo se escondeu.
~~~.
Então na quinta o T uca achou melhor
./1 _.r~ _ - -: fingir que não tinha visto o Rodrigo na classe.
L~~ .: · V
.: E na sexta o Rodrigo resolveu que se o
T uca não via ele, por que que ele ia ver o T uca?
Passou o sábado.
Passou o domingo.
Na segunda-feira o Tuca resolveu que ia
falar com o Rodrigo de qualquer maneira. Ele
tinha que explicar que não sabia por que que
tinha empurrado o Rodrigo no lameiro.
~
No recreio, o Tuca foi chegando pra perto se explicado pensado e agora ficava assim sem
do Rodrigo e quando já ia falando com ele o dizer nada?
Rodrigo deu as costas. O T uca ficou cismado: O Rodrigo se abaixou: fmgiu que estava
tinha sido de propósito? Tinha ou não tinha?
amarrando o sapato.
Acabou achando que tinha. E voltou quieto pra Quando no fim a fala destrancou, o T uca
classe. Mas na terça-feira ele achou, que besteira!
perguntou:
é claro que não foi de propósito; então ele ia
- Você acha que vai chover?
falar com o Rodrigo de qualquer jeito.
O Rodrigo olhou pra janela. Fez cara de que
Ficou esperando a campainha tocar.
não sabia. E ficou amarrando o outro sapato.
Esperou tão forte que chegou a suar. E
O T uca meio que suspirou:
quando a campainha tocou ele levantou num
- Você sabe pescar?
pulo de susto. Justo quando o Rodrigo ia
O Rodrigo levantou:
passando. Deram o maior esbarrão.
- Bom, às vezes eu ia lá no Arpoador pescar
- Ô cara, me desculpa! foi sem querer.
com um amigo meu, o Guilherme. - Encolheu o
O Rodrigo achou que o T uca estava se
desculpando pelo banho de lama. Ficou ombro. - Mas ele mudou pro Rio Grande do
-Não.
Aí O T uca contou:
10
- Eu aprendi a pescar com um cara lá do Bilhete e PS
morro que saca muito de peixe.
- Ah, é? de amigo
02&, a~~!
- Ele foi pescador, sabe. Mas agora ele já tá
velho. A gente é um bocado amigo.
;I:;;M
~ - O-~J' 7-
-Hmm.
- Esse negócio de pescaria tem uma porção
de macetes.
.~~AúYn;eWJ
~~Avm;t:i . ~..
O Rodrigo não disse nada. Então o T uca
falou: 0f-~
.:
- V ocê querendo, eu te ensino.
-Bom ...
- Será que no sábado vai chover?
?S.: o :r~ ~ ~
O Rodrigo olhou pra janela. Fez cara de que
não sabia. O T uca arriscou:
- Se não chover a gente podia combinar de ir
~~/~4r~~
~
~.~~~o~.
WYn~;ek~
~~04-~ ~.
pescar.
- É... podia.
~~~
A troca e a tardá 87
r;~o.. .h ~
Lá no colégio o Ciúme aparecia pouco; era porta; procurar a chave; entrar. E no dia seguinte
nas férias que ele não me largava: quando eu esperar de novo o Ornar chegar. Pra namorar ele
voltava pra casa e encontrava todo mundo mais um pouco só de olhar.
fascinado pela minha irmã. N o dia que as férias acabaram, na hora do
Ornar pegar a chave pra entrar, ele se virou e
olhou pra janela. E ficou muito, muito tempo
Um dia (era férias) em frente da nossa olhando.
casa veio morar um rapaz chamado Ornar. Mas não era pra minha janela: era pra outra:
Eu ficava horas na janela esperando ele a da sala: onde estava a minha irmã.
chegar. Pra ver ele aquele pouquinho só:
chegando, tirando a chave do bolso e entrando.
Quando eu soube que o nome dele era Ornar Lá no colégio eu não tinha mais tempo pra
eu fui pro quarto e escrevi uma poesia chamada nada, nem pra estudar, nem pra fazer dever, eu
o mar. não tinha mais tempo nem pra ver o Ciúme, de
Foi a primeira coisa que eu escrevi. Aquela tanto que eu passava o meu tempo só pensando
poesia pro Ornar. E eu me senti tão feliz. no Ornar.
Eu nunca tinha me sentido assim feliz; fiquei Mas era tão bom pensar no Ornar como eu
pensando que era por causa do Ornar (nem gostava de pensar, que eu nunca pensei nele
pensei que podia ser por causa da poesia). como eu não queria pensar, quer dizer, olhando
E quando eu vi, as férias já tinham acabado. pra outra janela.
De tanto que o tempo passou depressa comigo Um dia chegou uma carta da minha mãe
lá na janela esperando o Ornar chegar; parar na dizendo assim:
92 Lygia Bojunga A troca e a tarefá 93
"...da mesma maneira que eu dei uma festa pai, minha irmã, todo mundo se arrumando, se
pra festejar os 15 anos da tua irmã, agora eu enfeitando que nem a casa.
quero comemorar os teus 15 anos. Mas desta "Anda, menina, anda!" (era a minha mãe
vez a festa vai ser dupla: a tua irmã ficou noiva, e dizendo), "vai tirar esse uniforme, o teu vestido
então eu quero festejar junto as duas grandes já está passado em cima da cama, olha que daqui
datas. Já avisei à diretora que você vai sair no a pouco os convidados já estão chegando."
sábado de manhã." A mesa na sala de jantar estava de toalha
Foi só ler a notícia do noivado que eu pensei bordada (a toalha que a minha vó tinha bordado
na outra janela, e o Ciúme apareceu logo: e se o pro casamento da minha mãe), e quanto doce,
noivo fosse o Ornar? quanta coisa gostosa, e que lindo que era o bolo
Fiquei doida pra chegar logo em casa e saber com as velas que eu ia soprar.
de tudo. Mas ao mesmo tempo eu tinha tanto Eu andava devagar pela casa, olhando pra
medo de saber, que comecei a querer um tudo em volta, mas só pensando uma coisa: é o
pretexto pra não ir: quem sabe eu ficava doente? Ornar? é ele? é com ele que ela vai casar?
Na noite de sexta pra sábado eu nem dormi: Mas em vez de perguntar eu não perguntava.
ia pra casa ou ficava doente? Só pra continuar esperando que o noivo que ia
Mas a curiosidade foi mais forte, e eram três chegar fosse outro, qualquer outro! mas não o
e meia da tarde quando eu entrei em casa. Ornar.
Que bonito que estava tudo, quanta rosa, Foi chegando gente.
quanto cravo enfeitando cada canto, é só fechar Família.
o olho que o perfume ainda chega aqui; e tinha Amigo.
uma agitação que só vendo, a minha mãe, o meu Presente.
94 Lygia Bojunga A troca e a tarefá 95
Até me espantei de ouvir a voz perguntando. Eu acordei. A noite já ia virando dia; o céu era
- Abre - eu respondi. - Eu quero ver do meio vermelho e a praia estava muito bonita.
outro lado. Dentro de mim tinha uma curiosidade nascendo:
A janela continuou fechada. Mas a voz falou: será que eu ia conseguir fazer uma história da
- Eu te livro desse amor, desse peso. dor que eu estava sentindo?
- O quê? Voltei pro internato.
- Esse amor que você está sofrendo, essa Cada hora de recreio, cada domingo inteiro,
vontade que você está sentindo de morrer: eu te cada hora-de-fazer-dever eu escrevia a história
livro disso. da minha vontade de morrer. E fui achando tão
- De que jeito?! difícil de fazer, que, em vez de sentir vontade de
98 Lygia Bojunga A troca e a tarefã 99
morrer, eu só pensava como é que se fazia a alguém me dizendo: tua irmã não faz assim.
história de uma vontade de morrer; em vez de" Bastava isso e pronto: o Ciúme já aparecia
.......-.......
sentir a dor do amor, eu só sentia a força que eu outra vez.
fazla E!:acontar a dor. Então um dia eu pensei: quem sabe a troca
~ -----,
Então, quando um dia a história ficou que eu sonhei no sonho serve pro Ciúme
pronta, a vontade de morrer tinha sumido; o também? E resolvi transformar o Ciúme em
amor pelo Ornar também: no lugar deles agora história. Só pra ver se acontecia a mesma coisa:
só tinha a história deles. se fazendo a história do Ciúme eu me livrava
Fiz que nem na poesia: transformei o Ornar dele e só ficava com a história.
no mar. Um mar tão bom de olhar. E inventei O Ornar eu tinha transformado em mar.
uma ilha pra botar nele: uma ilha pra eu ir lá E o Ciúme? no que que eu ia virar?
morar: de praia de areia fininha, onde o mar Eu achava ele tão feio. Resolvi virar ele numa
chegava a toda hora. E fui inventando uma coisa pra gostar de olhar. Transformei ele num
porção de coisas pra acontecer na ilha. pássaro lindo! bem grande; de peito amarelo e de
A história ficou tão grande. Acabou virando penacho vermelho na cabeça. E pra ele não
um livro. Foi o meu primeiro livro. Se chamou poder mais entrar na minha vida eu prendi ele
"Do outro lado da ilha". numa gaiola.
Tudo que o Ciúme tinha feito eu sofrer eu
transformei em aventuras que aconteciam com
Minha irmã tinha se casado. Mas a minha aquele pássaro.
mãe, o meu pai, todo mundo não parava de falar Quando um dia eu cheguei no fim da
nela; e se eu fazia alguma bobagem tinha sempre história, a troca tinha acontecido de novo: no
100 Lygia Bo;'unga
A troca e a tarefá 101
Pulei a janela. E logo ali, entre o mar e a E eu comecei a sentir medo. Um medo que
praia, bem junto de onde a onda chegava, a eu nunca tinha sentido. E aí eu ouvi a mesma
tarefã estava toda desenhada. voz que tinha me falado da troca. A voz me
Tinha 27 livros desenhados na areia. disse assim:
Eu fui andando. "Cada um tem uma tarefa na vida. A tua é
Olhando pra cada desenho. escrever,27 livros. Na hora que você botar o
Reconhecendo cada um dos meus livros. ponto final no vigésimo sétimo livro, a tua tarefa
Lembrando de cada história. De cada vai estar acabada e a tua vida vai terminar."
personagem. Sentindo saudade de fazer cada um. E me repetiu o aviso, e me repetiu de novo.
Fui passando por todos até chegar ao último Tapei o ouvido não querendo escutar mais.
livro. Ficou de noite, o azul de tudo tão marinho!
Cada um dos 27 tinha sido desenhado na areia e eu acordei (tinha dormido aqui mesmo na
chegando sempre mais um pouco pra perto do mar. mesa, debruçada no último capítulo do meu
O último ficou tão perto, que quando a onda 27.0 livro).
vinha bater na praia apagava um pouco dele. Olhei pro papel: e agora? Da mesma maneira
Me ajoelhei na areia, querendo riscar de novo que tinha sido verdade o aviso da troca, agora eu
o pedaço que a água tinha desmanchado. sabia que ia ser verdade o aviso da tarefã.
Mas a onda veio de novo e apagou. Empurrei o papel.
Meu dedo riscou outra vez. Lápis, borracha, empurrei tudo pra lá: era só
A onda desmanchou. não acabar o 27.0 livro que a minha tarefã não se
O dedo desenhou. acabava e a minha vida também não.
O mar apagou. Apaguei a lâmpada.
106 Lygia Bojunga. A troca. e a. tarefá 107
disseram que eu não escrevia cartas, escrevia história, que eu vou fazer outras, que - ah!! vai
histórias, e que eles estavam juntando elas todas ser feito ressuscitar.
pro meu editor publicar.
Que medo! que aflição de recolher tudo
correndo: qualquer livro publicado vai ser o meu Tenho ido todas as semanas ao médico.
vigésimo sétimo.
Eu não ando me sentindo bem. Tenho ido Estou me sentindo cada vez mais fraca.
ao médico -.Ele disse que eu estou emagrecendo Não saio mais aqui da mesa. Esta noite nem fui
muito. Pediu uns exames. pra cama: botei a minha cabeça num papel em
branco e dormi.
Mais exames.
LÁ NO MAR
Hoje, finahnente, eu tomei a decisão de
acabar o meu livro.
"I!".."..,;... "--<OJf
* Nota de Lygia Bojunga: A escritora morreu sem acabar a frase. Deram com
ela debruçada na mesa, a ponta do lápis fincada na paixão.
~
Lá no Mar 113
sombra de um homem chegando; se virou; sentiu pai, sumiu avô; e o Barco sentiu no casco a mão
outro homem vindo. Iam tomar o barco dele? do Pescador se agarrando.
- Eu não entrego! - ele gritou - , esse barco Começou a agonia.
é meu. - E se agarrou alucinado no leme. Agonia de só ser barco: de não ter mão pra
O Barco ouviu o grito do companheiro; ficou estender pro companheiro e puxar ele pra dentro
atarantado: quem é que tinha chegado? Mal se de novo.
equilibrando na subida de cada onda, mal Quanto tempo durou aquilo? Já ninguém
agüentando a descida, ele já se descontrolava sabia mais.
também: virava pra cá, pra lá, rodopiava. Era a onda? era o vento, era quem? que
Um relâmpago jogou luz forte no Barco. puxava o Pescador assim tão forte pro fundo do
O Pescador reconheceu os dois homens. A mar?
cara se abriu de contente: E o Barco esperando. Esperando a mão
- Ô pai! Ô vô! Que saudade que eu tinha de agüentar.
vocês! - Largou o leme pra lá e se abraçou com Mas quem puxava era mais forte, e o Barco
os dois. sentiu no casco os dedos escorregando.
E assim abraçados, o filho, o pai e o avô Depois, o vento foi parando. Só lá longe,
pareciam até que dançavam, de tanto que o quase feito assim suspirando, se ouvia um resto
Barco rodava, rodava pra cá e pra lá. de temporal.
Cansado de tanto medo, o mar dormiu.
O Barco também: cansado (muito cansado),
Numa virada do barco a dança toda se tinha ficado quieto.
acabou: o Pescador foi atirado pro mar, sumiu O dia foi nascendo.
118 Lygia Bojunga Lá no Mar 119
Tudo parecia parado. Só um fiozinho d'água dia, quando ele estava pensando nisso, viu
escorrendo, escorrendo, escorrendo lá do Barco chegar perto dele um barco de pesca,
(justo aonde a mão do Pescador tinha se agarrado). pequeno feito ele, com o nome escrito na
Podia parecer que era um restinho de chuva proa: Bem-te-vi.
que tinha se atrasado no caminho. O pescador que vinha no Bem-te- vi encostou um
Podia parecer que era respingo do mar. casco no outro, espiou pra tudo admirado de ver o
Podia até parecer que era o orvalho. Barco ali daquele jeito, tão sozinho e abandonado.
Cutucou o filho que estava dormindo:
- Ei! espia pra isso aqui.
E o Barco não quis mais voltar pra praia, O Menino (era um menininho pequeno
resolveu ficar morando lá mesmo. Quando o assim) levantou e ficou olhando pro Barco com
vento soprava, ele se firmava na água pra não ser olho meio de sono.
levado pra longe; quando batia temporal, ele - Sabe o que que eu vou fazer? - o pescador
lutava com cada onda pra poder continuar por resolveu de repente - vou ganhar uma grana
ali; e quando tudo passava e vinha a calmaria de com esse barco: levo ele comigo, dou uma boa
novo, ele ficava achando que ele e o Pescador pintura nele e pronto: vendo. Pega a corda lá pra
ainda estavam perto um do outro e que então a mim: vamo amarrar ele aqui.
vida não era ruim. O Menino, sem tirar o olho do Barco, pegou
Passou muito tempo. a corda, trouxe pro pai.
O Barco ficou velho. Deu pra pensar que o O pescador foi preparando a corda.
casco dele ia apodrecer. Gostou: ia afundar: - Vou pintar ele bem vermelho. Ele vai ficar
ia morar ainda mais perto do amigo. E um com cara de novo, 'cê vai ver.
120 Lygia Bojunga Lá no Mar 121
Quando o Barco foi se encolher, a corda - Mas por que que esse diabo desse barco tá
pegou ele. assim tão pesado?! - Encostou outra vez um
Quando o Barco quis escapar, a corda casco no outro, desligou o motor; começou a
amarrou bem. preparar a corda de novo.
O Barco se revoltou: ele estava velho, E o Menino sempre daquele jeito, sem tirar o
cansado, e agora pintavam ele de vermelho pra olho do Barco, sonhando um sonho que ele tinha
ele ficar com cara de novo e vendiam ele não sei dado pra sonhar: ter um barco pra brincar. Mas
pra quem, pra ele começar outra vez uma vida um barco de verdade. Grande feito o barco do pai
de luta, pra baixo e pra cima, pro mar e pra dele. Só que em vez de ser marrom feito o Bem-
areia, arrastando rede, carregando peixe? Ah, te-vi; o barco dele ia ser todo colorido. Só que
não! já bastava ele ter que agüentar todo dia a em vez de vir assim pra longe no mar, o barco ia
saudade do companheiro; não ia dar pra morar lá na praia (bem lá na ponta da areia,
agüentar a luta toda de pescaria outra vez. O naquele escondidinho atrás do morro,
jeito então era se travar, botar a força que ele onde a onda chegava mansa, onde ele ia
ainda tinha pra não ser levado embora. O casco sempre brincar).
não ia aturar, ia rebentar; a água ia entrar; ele ia O Barco estava descansando da força que ele
afundar; ia se juntar com o Pescador! tinha feito pra não ser levado embora. Mas o
E pronto: o Barco se travou; botou toda a pescador começou a amarrar ele de novo. E
força que tinha pra não sair do lugar. ligou o motor.
Em vez do casco, foi a corda que rebentou. A corda puxou.
O pescador não entendeu o que que estava O Barco se travou forte.
acontecendo: A corda rebentou outra vez.
122 Lygia Bojunga Lá no Mar 123
- Mas o que que esse barco tem que não pro Barco que ele tinha um gato malhado
desempaca daí! - o pescador gritou. e uma coleção de tampinhas de cerveja.
O Menino feito que acordou. E já doido pra Contou onde é que ele tinha encontrado as
entrar no barco dele falou: tampinhas e onde é que o gato tinha
- Eu vou lá dentro olhar. - Nem esperou o encontrado ele. O Barco foi prestando
pai falar: um casco já estava encostando no atenção nas histórias e se esqueceu de pensar
outro e o Menino - pufi - pulou pra dentro do na corda.
Barco e foi direto pra cabine espiar tudo de O Menino nem ouvia o pai chamando, agora
perto. era só ele e o Barco, ele e o Barco, ele e o Barco
O Barco tomou um susto quando o Menino lá na praia.
pisou nele: quanto! quanto tempo sem sentir E quando o' Menino parou de falar, o Barco
alguém assim perto. só ficou pensando ah, será que ele não tem mais
O Menino alisou a madeira do banco, a nada pra contar?
ponta do dedo tocou no leme, de leve, feito Laralalalalalá, o Menino começou a
fazendo uma festa. cantarolar.
E o susto do Barco virou suspiro. O Barco ficou impressionado: será que ele
O suspiro meio que sacudiu a porta da estava escutando bem? era canto que tinha lá
cabine: ela se fechou devagar. E o Menino então dentro dele?
começou a imaginar que o Barco já estava Mas o pescador pulou pro Barco; abriu a
morando lá na prainha onde ele brincava, e que porta da cabine:
os dois tinham toda a vida pra conversar. - Você não tá ouvindo eu chamar, menino?!
Trepou no banco. Se ajeitou. E foi contando que que 'cê tá fazendo aí!
124 Lygia Bojunga Lá no Mar 125
- Não vou. estava falando? será que ele estava outra vez
O pescadorlevantoua mão pra mostrar que o cantando? E, em vez de fazer força pra ficar, a
Menino ia apanhar.O Menino ficou supertrombudo: força que o Barco fazia era pra escutar.
- Só vou se ele vem comigo. O pescador estava bobo: parecia que o Barco
- Só que ele não vai! você não viu que ele tá nem precisava de corda pra vir atrás!
encalhado? não adianta você querer que ele O Menino desatou a laralalar de um jeito
não sai daí. que o Barco bem que sentiu vontade de
- Sai. cantarolar também. E os dois assim, um de olho
- Não sai! no outro, lá se foram pelo mar. Aqui e ali vinha
- Sai. uma onda de tristeza e o Barco se esquecia do
O pescador suspirou: será que agora o filho canto pra pensar no Pescador; mas depois ele
dele também não desencalhava de lá? escutava outra vez o Menino e começava a
- Tá bem: a gente amarra ele outra vez e imaginar onde é que eles iam arrumar as
leva: vem! tampinhas de cerveja, a cara do gato malhado, a
O Menino saiu correndo e pulou pro praia lá atrás do morro, as histórias que... puxa,
Bem-te-vi: que luz! quanto sol! que engraçado que ficava o
De tão certo que a corda ia arrebentar, o cabelo do Menino quando
pescador amarrou ela de qualquer jeito. Ligou o vento batia
o motor. assim.
O Barco tomou um susto; começou a se
travar; mas viu o Menino debruçar no Bem-te- vi -.:----
Os Colegas - 1972
Angélica - 1975
A Bolsa Amarela - 1976
A Casa da Madrinha - 1978
Corda Bamba - 1979
O Sofá Estampado - 1980
Tchau - 1984
O Meu Amigo Pintor - 1987
Nós Três- 1987
Livro, um encontro com Lygia Bojunga - 1988
O Pintor (teatro) - 1989
Nós Três (teatro) - 1989
Fazendo Ana Paz - 1991
Paisagem - 1992
Seis Vezes Lucas - 1995
O Abraço - 1995
Feito à Mão - 1996 1"""16 , í)
~ s. r:
A Cama - 1999
O Rio e eu - 1999
Retratos de Carolina - 2002
Impressão e Acabamento GRÁFICA LIDADOR LIDA.
Rua Hilário Ribeiro, 154 - Pça. da Bandeira
Te!.: (21) 2569-0594/Fax: (21)2204-0684
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