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RITA HELENA DO ESPÍRITO SANTO BORRET

Pentecostalismo, sofrimento social e cuidado na Atenção


Primária à Saúde: uma etnografia na Favela do Jacarezinho

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado


Profissional em Atenção Primária à saúde da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como Dissertação de Mestrado.

Linha de pesquisa: Atenção integral aos ciclos de vida e


grupos vulneráveis

Orientadores: Professora Alicia Regina Navarro Dias de Souza - Faculdade de Medicina da


Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ)
Professor Octavio Bonet – Instituto de Filosofia e Ciências Sociais da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (IFCS – UFRJ)

RIO DE JANEIRO, 2019

1
RITA HELENA DO ESPÍRITO SANTO BORRET

Pentecostalismo, sofrimento social e cuidado na Atenção


Primária à Saúde: uma etnografia na Favela do Jacarezinho

Dissertação apresentada ao Programa de Mestrado


Profissional em Atenção Primária à saúde da Universidade
Federal do Rio de Janeiro como Dissertação de Mestrado.

Linha de pesquisa: Atenção integral aos ciclos de vida e


grupos vulneráveis

Banca examinadora

Professora Fernanda Mendes Lages Ribeiro Instituição: CLAVES/ FIOCRUZ/RJ

Professor Cesar Augusto Orazem Favoretto Instituição: MPAPS/ RJ

Professora Mariana Rodrigues (suplente) Instituição: MPAPS/RJ

Professora Natalia Fazzioni (Suplente) Instituição IFCS/UFRJ/RJ

2
CAPÍTULO I
APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA--------------------------------------------------------------- 08
LUGAR DE FALA--------------------------------------------------------------------------------------12
OBJETIVOS-------------------------------------------------------------------------------------------- -16
MARCOS TEÓRICOS----------------------------------------------------------------------------------17
A perspectiva de Cuidado integral em Atenção Primária à saúde----------------------------17
A amplitude do conceito de saúde---------------------------------------------------------------------17
Cuidado como prática-----------------------------------------------------------------------------------17
Os três setores de atenção à saúde--------------------------------------------------------------------19
As racionalidades médicas------------------------------------------------------------------------------21
O paradigma biomédico e a tensão estruturante ----------------------------------------------------22
A necessidade do cuidado integral no contexto da APS--------------------------------------------24
A atenção primária à saúde e a prática de cuidado relacionada ao território------------------26
Competência e Humildade Cultural-------------------------------------------------------------------28
A Medicina de Família e Comunidade----------------------------------------------------------------29
A participação popular como direito e necessidade------------------------------------------------30
Violência, sofrimento social e o processo de adoecimento--------------------------------------31
Conceituando violência---------------------------------------------------------------------------------31
Aproximação da violência com o campo da saúde------------------------------------------------- 34
As pessoas favelizadas e o conceito de sofrimento social------------------------------------------36
O Estado de emergência permanente, o sofrimento difuso e o apoio social---------------------37
Espiritualidade, religiosidade e saúde----------------------------------------------------------------41
O pentecostalismo---------------------------------------------------------------------------------------44
O pentecostalismo e a nova ordem mundial----------------------------------------------------------44
Breve história do pentecostalismo no Brasil---------------------------------------------------------46
A mobilização pela emoção-----------------------------------------------------------------------------49
O pentecostalismo e a relação com as demais religiões brasileiras------------------------------50
METODOLOGIA----------------------------------------------------------------------------------------53
CAPÍTULO II
RESULTADOS e DISCUSSÃO-----------------------------------------------------------------------56
OS PARTICIPANTES ENTREVISTADOS---------------------------------------------------------57
DESCREVENDO O JACAREZINHO ---------------------------------------------------------------60
PRIMEIRA PARTE -A percepção de saúde------------------------------------------------------65
SEGUNDA PARTE - Crescer e viver no Jacarezinho------------------------------------------67
Infância, oportunidades e ausências------------------------------------------------------------------67
Mundo de dentro e mundo de fora do Jacarezinho--------------------------------------------------73
As forças violentas: o tráfico, o Estado e a polícia--------------------------------------------------76
As sensações despertadas: a impotência e o medo--------------------------------------------------78
TERCEIRA PARTE - A igreja e a comunidade--------------------------------------------------81
Cultura da igreja na comunidade----------------------------------------------------------------------81
Relação da igreja com o tráfico de drogas-----------------------------------------------------------85
As experiências que a Igreja promove----------------------------------------------------------------88
A COMUNHÃO -----------------------------------------------------------------------------------------89
O CULTO-------------------------------------------------------------------------------------------------90
O ACOLHIMENTO-------------------------------------------------------------------------------------91
A MISSÃO SALVADORA DA IGREJA------------------------------------------------------------92
O PROSELITISMO--------------------------------------------------------------------------------------94
O papel do Pastor----------------------------------------------------------------------------------------95
A igreja de humanidades--------------------------------------------------------------------------------97
Fé x religião x denominações-------------------------------------------------------------------------105
3
QUARTA PARTE - Reflexões sobre o cuidado em Atenção Primária à saúde----------106
CONCLUSÃO------------------------------------------------------------------------------------------117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS---------------------------------------------------------------121
ANEXO A – TCLE-------------------------------------------------------------------------------------128
ANEXO B – ROTEIRO ENTREVISTA------------------------------------------------------------130

4
AGRADECIMENTOS

Em primeiro lugar, agradeço aos moradores do Jacarezinho, usuários da clínica da


Família Anthidio Dias da Silveira, que tem me permitido participar em suas vidas, me
ensinando, afetando e transformando em um contínuo. Por, ao compartilhar suas histórias e
vivências comigo, me permitir aprender tanto, agradecerei sempre. Em especial agradeço à
cinco moradoras da comunidade com quem tenho o prazer de trabalhar e trocar tanto. Essa
pesquisa é fruto de inquietações e diálogos onde vocês sempre me convidam a novas
perspectivas, novos olhares e muitas reflexões: Simone Floriano, Cintia Costa, Maria Mayane
Porfirio, Margareth Rosa, Paloma Monteiro,
À equipe de profissionais da CFADS, pelo convívio diário, pelo compartilhamento de
casos, ideias, sofrimentos e ressignificações. Minha prática profissional e minha formação
pessoal são modificadas constantemente por nosso convívio e pela história que construímos
juntes. Em especial agradeço à André Gonçalves, Dyannah Joia, Renan Lima, Luane Tássia
Paz e Ulysses Costa, que me apoiam, seguram as pontas e me incentivam cotidianamente.
Às médicas de família e comunidade Juliana Machado, Ana Carolina Xavier, Monique
França e Gabriella Magalhães Salgueiro, que ao se proporem a fazer a residência em MFC no
cenário do Jacarezinho, tornaram nosso projeto possível por algum tempo. Tempo esse que
nunca será suficiente para medir a quantidade de conhecimento que juntas e com o território
pudemos construir. Pela parceria, pela confiança e pela paciência, muito obrigada. E agradeço
imensamente à Cynthia Guerra, Clarice Smirdele, Gleida Pego Miranda, Luciano Hickman,
Juliana Montez por idealizar e lutar por esse projeto e por me deixarem fazer parte dele.
A todos que participaram e participam do meu contínuo processo de formação em
MFC e que, nas atitudes e nos afetos me apresentam e me fazem apaixonada por essa
especialidade.
Aos meus pais, minha base, minha referência e meu porto seguro na vida. Pelo apoio
de sempre, pelo amor imenso e por me ensinar sobre cuidado desde quando posso me lembrar.
A minha esposa, amiga, parceira e amor da vida Renata Carneiro Vieira. Por tornar
meus dias menos pesados, por me trazer para a realidade quando necessário e ressignificar a
realidade quando preciso. Por ser meu casulo de paz em meio a um mundo cada vez menos
humano ou justo e por topar compartilhar comigo essa inusitada experiência que é viver.
E a meus amigues de hoje e de sempre e minha família, que me motivam, me ensinam
e me cuidam, tornando a experiência de viver estimulante e prazerosa mesmo diante de
incertezas e contextos desfavoráveis.

5
RESUMO

Enquanto sujeitos sociais no Brasil, estamos condicionados aos símbolos e signos de


um modelo econômico pautado nos princípios do capitalismo e do liberalismo. A divisão em
classes que este modelo promove, por vezes coloca os profissionais de saúde e as pessoas por
eles atendida em inserções sociais muito distintas, o que possibilita vivências no mundo
diferentes. O Cuidado em Atenção Primária propõe a capacidade de empatizar, de dialogar e
construir com o outro, pessoa atendia, um cuidado em saúde pautado na autonomia e no
estímulo à cidadania. Essa pesquisa etnográfica tem como objetivo compreender a relação da
comunidade do Jacarezinho, favela marginalizada da cidade do Rio de Janeiro submetida a
violência estrutural, com o Pentecostalismo e, a partir dessa leitura refletir o cuidado praticado
na Atenção Primária à Saúde (APS). Através da pesquisa de campo, foi possível entrar em
contato com situações, sentimentos e construções sociais que fazem parte de um universo
pouco acessível para a classe de trabalhadores de saúde de nível superior, reconhecendo-se
assim, a necessidade do agir com humildade cultural para perceber, reconhecer e lidar com
outras perspectivas e com os saberes populares, diminuindo a chance de uma crise de
interpretação. Além disso, ouvir e ver sobre os mecanismos do pentecostalismo que auxiliam
os moradores do jacarezinho a lidar com o sofrimento social, estimula a pensar nas
ferramentas da APS que tem sido subjugadas e pouco valorizadas, como as tecnologias leves
relacionais, a busca e a valorização do contexto social, da abordagem coletiva e do incentivo
ao apoio social. Por último, cabe um paralelo entre o papel social desempenhado pelo
pentecostalismo e o papel que a Atenção Primária à saúde pode desempenhar e aquele que
tem optado por desempenhar em relação a desigual e não equânime sociedade brasileira.

6
ABSTRACT

As social subjects in Brazil, we are conditioned to the symbols and signs of an


economic model based on the principles of capitalism and liberalism. The division into
classes that this model promotes, sometimes puts healthcare professionals and the people they
serve in very different social insertions, which allows different experiences in the world. Care
in Primary Care proposes the ability to empathize, to dialogue and to build knowledge with
the people attended. It´s a health care based on autonomy and on stimulating citizenship. This
ethnographic research aims to understand the relationship of the Jacarezinho community, a
marginalized favela in Rio de Janeiro, subjected to structural violence, with Pentecostalism
and, from this reading, reflect the care practiced in Primary Health Care (PHC). Through field
research, it was possible to get in touch with situations, feelings and social constructions that
are part of a universe that is not easily accessible to the upper-class health workers,
recognizing the need to act with cultural humility to perceive, recognize and deal with other
perspectives and popular knowledge, reducing the chance of a crisis of interpretation. In
addition, listening and seeing about the mechanisms of Pentecostalism that help Jacarezinho
residents to deal with social suffering, stimulates to think of the tools of the PHC that have
been subjugated and little valued, such as light relational technologies, the search and the
valorization the social context, the collective approach and the encouragement of social
support. Lastly, there is a parallel between the social role played by Pentecostalism and the
role Primary Health Care can play and the role it has chosen to play in relation to unequal and
unequal Brazilian society.

7
CAPÍTULO I
APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
A atenção primária à saúde, compreendida como “o primeiro nível de contato dos
indivíduos, das famílias e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os
cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem
e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à
saúde.” (OMS, 1978), tem o objetivo de ser a porta de entrada preferencial da população ao
sistema nacional de saúde, oferecendo cuidado em saúde de acordo com as necessidades
individuais e comunitárias.

Para além de porta de entrada preferencial, a APS apresenta como atributos essenciais:
a continuidade do cuidado, onde a equipe de profissionais de saúde acompanha aquela
população ao longo do tempo, estabelecendo uma relação de vínculo de confiança
longitudinal; a integralidade ou abrangência do cuidado ofertado, que determina que este nível
de atenção é responsável por ofertar serviços que vão ao encontro das necessidades em saúde
daquela população de forma abrangente e considerando os mais variados aspectos que
influenciam no processo de saúde e adoecimento; e a coordenação do cuidado, que coloca sob
esse nível de atenção a responsabilidade de organizar e coordenar o cuidado das pessoas,
facilitando as informações em saúde e ordenando os demais níveis de atenção conforme a
necessidade dos usuários. A centralidade na família, a orientação comunitária e a valorização
por meio da competência cultural são os atributos derivados que se somam aos essenciais na
conceituação da APS.

A cidade do Rio de Janeiro vivenciou entre os anos de 2008 a 2016, um processo de


grande e rápida expansão do serviço de atenção primária à saúde (APS) ofertado à população.
O município passou de três por cento de sua população coberta pela estratégia de saúde da
família (ESF), para algo em torno de setenta por cento em pouco mais de dez anos. Esse
avanço possibilitou que uma parte da população carioca, que nunca teve seu direito à saúde
garantido, em poucos anos, pudesse ao menos acessar o Sistema Único de Saúde (SUS) por
sua porta de entrada preferencial, a atenção primária à saúde, no modelo da estratégia de
saúde da família.

Essa expansão que, atualmente, encontra-se em processo de sedimentação, enfrentou


uma série de dificuldades para sua efetivação. A falta de profissionais de saúde capacitados
para atuar na APS foi uma das dificuldades flagrantes, que vem paulatinamente sendo vencida
com os projetos de formação em serviço, via residência de medicina de família e comunidade,
8
residência de enfermagem em saúde da família e residência multiprofissional em saúde da
família. Ainda assim, a demanda por profissionais capacitados é maior do que a quantidade de
especialistas formados na área.

Cabe não desvalorizar e visibilizar outras dificuldades do processo de expansão, como


a fragilização de vínculos empregatícios, a falta de plano de carreira para os profissionais, a
falta de protagonismo dos usuários nos processos decisórios das unidades de saúde, as
discrepâncias salariais entre as diferentes categorias profissionais que se propõem a trabalhar
em equipe, a dificuldade em construir redes intersetoriais, a dificuldade em determinar
prioridades na carteira de serviços ofertada pelos serviços de APS, entre tantas outras.

Para garantir equidade no acesso à saúde, a expansão se deu inicialmente pelas áreas
da cidade com menor índice de desenvolvimento social (IDS), como bairros distantes do
centro da cidade e regiões de favelas e complexos, marcados pela ausência e negligência
históricas do Estado. Além da desconfiança dos moradores nos equipamentos públicos, os
profissionais de saúde depararam-se com a falta de serviços essenciais de saneamento básico,
iluminação, áreas de lazer, serviços de segurança pública, transporte e educação, e ainda, com
dinâmicas de poder e influência territoriais complexas como a presença em diversos
territórios do narcotráfico e das milícias e de confrontos armados em decorrência da “política
de guerra às drogas”.

Conseguir profissionais de saúde dispostos a estar nesses espaços de forma continuada


tem sido um desafio constante. O abismo socioeconômico flagrante entre médicas e médicos e
moradores dessas regiões vulnerabilizadas da cidade, além de evidenciar o elitismo vigente na
classe médica, impõe uma grande barreira para o entendimento das necessidades em saúde e
das perspectivas do processo de adoecimento das pessoas que vivem nessas áreas, interferem
na maneira de ofertar cuidado em saúde de forma efetiva para essas populações.

O tema deste trabalho é fruto de uma vivência, que tem como pano de fundo esse
processo de expansão da atenção primária na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa é
idealizada e desenvolvida em uma unidade básica de saúde que fica na favela do Jacarezinho,
na zona norte da cidade, chamada Clínica da Família Anthidio Dias da Silveira, inaugurada
em junho de 2011 com sete equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Com o processo
de expansão, as unidades básicas de saúde novas que foram surgindo receberam o nome de
clínicas da família. A favela do Jacarezinho, atualmente coberta integralmente pela ESF,
conta com duas unidades básicas de saúde em seu território. A favela apresenta-se com um
9
dos menores índices de desenvolvimento social do município e vivência rotineiramente
intensos conflitos armados entre o narcotráfico e o Estado, na figura da Polícia Militar e
outras policiais especiais do Rio de Janeiro, que contribui sobremaneira para o processo de
adoecimento de moradores e profissionais de saúde da unidade.

São constantes os atravessamentos desses conflitos armados nos processos de trabalho


da unidade de saúde e no processo de vida cotidiano dos moradores. Mudanças no horário de
abertura e fechamento da unidade, não abertura da mesma em dias de operação policial,
impedimento de visitas ao território, mudanças frequentes no quadro de profissionais bem,
como sensação de medo e insegurança por parte destes, são alguns desses atravessamentos.
Para os moradores, o medo de circular livremente no território, a preocupação consigo, com
familiares e vizinhos expostos a grandes riscos, a falta de espaço protegido para realização de
atividades físicas e de lazer, a incerteza sobre coleta de lixo, ausência de abastecimento de
água, de luz e transporte público, além da constante preocupação com a perda de emprego,
são alguns dos atravessamentos que Valla chama de “estado de emergência permanente”.
Todas essas situações e vivências estão muito vivas e atuam diretamente no processo de
sofrimento e adoecimento dessas comunidades.

Para os profissionais de saúde, abordar o tema junto aos usuários tem se revelado um
grande desafio, assim como pensar em propostas para o acolhimento e enfrentamento dessa
situação. Por mais urgente e necessário que possa parecer, o tema da violência por meio dos
conflitos armados se manifesta como uma questão de difícil manejo no espaço da unidade
básica de saúde. Se, por um lado, parece faltar habilidade empática e competência cultural por
parte dos profissionais de saúde para compreender toda a pluralidade da relação estabelecida
entre moradores e o narcotráfico, os conflitos armados e as diversas formas de violência
vivenciadas no território, por outro, as iniciativas de ofertas de cuidado em saúde que se
propõe a lidar com o tema, seja dentro do consultório ou em atividades coletivas, se mostram
pouco efetivas.

Ainda no ano de 2016, preocupada com os recorrentes episódios de operação policial


na comunidade do Jacarezinho e em como isso vinha afetando a saúde dos moradores que
atendia, comecei a me debruçar em maneiras diversas de ofertar cuidado em saúde para essa
população. Nesse contexto, vivi duas situações importante que ajudaram a trilhar o caminho
dessa pesquisa.

10
A primeira foi a sugestão de uma atividade coletiva para discutir a temática da
violência comigo e entre pares na clínica. Ora, se o tema aparecia com tanta frequência nas
consultas individuais, me parecia lógico que teríamos um grande público disposto a fazer
parte dessa discussão. Três tentativas e nenhuma pessoa interessada em participar do grupo
que até então parecia uma grande ideia. Em duas ou três outras oportunidades, quando
questionados sobre os principais problemas da comunidade, por vezes os usuários da clínica
eram capazes de citar diversos problemas e não lembrar da violência como uma questão.

A segunda situação chamou muito minha atenção e me possibilitou perceber algo que
já vinha surgindo com frequência no consultório. Em uma manhã de domingo, a morte de um
pastor evangélico pentecostal, que foi assassinado pela polícia quando confundido com um
jovem do narcotráfico, estimulou pela primeira vez uma ação articulada de moradores da
comunidade de protesto às operações violentas e as situações de repressão que vinham sendo
submetidos. Até aquele momento, por mais agressivo que o Estado fosse, na minha
perspectiva, os moradores apenas se resignavam e seguiam com suas vidas da maneira que
fosse possível. A partir daquele protesto, daquele potencial de organização comunitária que
comecei a prestar maior atenção nas denominações evangélicas pentecostais locais.

Foi diante dessa necessidade de melhor entender a maneira como os usuários lidam
com o sofrimento causado pela violência estrutural e diante de uma inabilidade de
comunicação, que a ideia de explorar ferramentas que alguns moradores já utilizam para lidar
com o tema, pareceu ser um caminho para pensar o cuidado em saúde consonante com as
demandas e necessidades dessa população.

A religião evangélica, em sua dimensão pentecostal, vem ganhando espaço crescente


no cenário religioso nacional, principalmente entre as classes sociais mais desfavorecidas
economicamente, ditas classes populares. Na comunidade do Jacarezinho esse fenômeno é
flagrante. De acordo com a Associação de moradores local, não existe nenhum terreiro de
umbanda, existem duas igrejas católicas e mais de setenta igrejas evangélicas, sendo dessas,
cinquenta e três pentecostais ou neopentecostais. O grande número de denominações
evangélicas pentecostais no território encontra-se em consonância com a alta prevalência de
usuários da unidade de saúde que se manifestam pertencentes a essas religiões.

O discurso algo recorrente da igreja (evangélica pentecostal) como o único caminho


para lidar com todo o sofrimento gerado pelas situações de violências na comunidade foi o
que chamou minha atenção para a necessidade de olhar para esse fenômeno, para
11
compreender o que os moradores do Jacarezinho que o vivenciam, querem expressar. Sob a
perspectiva do cuidado em saúde, superando preconceitos que o saber científico e o classismo
social vigente criam, para compreender os modos em que essas denominações interagem com
os processos de saúde e adoecimento de tal população.

Parece haver mais nessa interação entre o pentecostalismo, a favela do Jacarezinho e


os processos de cuidado que se estabelecem do que a nossa capacidade, enquanto
profissionais de saúde das classes médias e alta conseguem perceber.

LUGAR DE FALA

Todo sujeito que se vê na tarefa de produzir conhecimento científico é, em sentido


lato, um sujeito implicado. Contudo, o desenvolvimento do modo de produzir esse
tipo de conhecimento fez surgir, também, mecanismos aceitos pelas comunidades
epistêmicas capazes de controlar a implicação. O pressuposto da neutralidade da
ciência é visto hoje, majoritariamente, como uma quimera. Não há desinteresse em
ciência, logo, nenhuma neutralidade é possível. (MARTINS FILHO, 2003, p.647)

A certeza da não neutralidade da ciência e do impacto das subjetividades do olhar da


pesquisadora para o objeto pesquisado, me tomam na necessidade de me apresentar e
apresentar um pouco das construções sociais que me atravessam e de onde construí minha
perspectiva, meu lugar de fala, como pessoa e como profissional implicada.

A realidade não é um processo fechado e autocontido, mas um processo fluido em


permanente desdobramento, um universo aberto, sempre afetado e moldado pelas
ações e crenças do indivíduo. (...) Estamos sempre e necessariamente envolvidos na
realidade, ao mesmo tempo transformando-a e sendo transformados por ela. O ser
humano é um agente materializado, que age e julga num contexto que jamais pode
ser totalmente 'objetificado', com orientações e motivações que jamais podem ser
totalmente aprendidas ou controladas. O sujeito consciente jamais está separado do
corpo ou do mundo, que constituem o pano de fundo e a condição de todo ato
cognitivo. (TARNAS, 1999 p.59)

Como médica de família e comunidade (MFC), atuando na Atenção Primária à Saúde,


tenho me preocupado com a presença da violência social, que compreendo por “uso
intencional da força física ou do poder real ou em forma de ameaça, contra si próprio, contra
outra pessoa, ou contra um grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha qualquer
possibilidade de resultar em lesão, morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento
ou privação.” (KRUG et al.,2002), como determinante de sofrimento e adoecimento na
comunidade do Jacarezinho, local de minha atuação prática nos últimos quatro anos.

12
Por ser um recurso da comunidade onde estou inserida, entendo que oferecer cuidado
em saúde, de forma integral para a população adscrita ao território de abrangência de minha
equipe de saúde da família, inclui não só acolher, diagnosticar e manejar doenças, mas
também pensar em ações de saúde em conjunto com a comunidade e, a partir de suas
necessidades, ofertar possibilidades de promoção de saúde e prevenção de adoecimento.

Cumprir com tais responsabilidades exige, para além de estudo e constante atualização
clínica, estar sempre atenta ao território, dialogando com moradores e aprendendo com suas
experiências e vivências para criar pontes de compreensão de uma realidade que não me é
familiar. Além disso, exige o constante exercício de me auto perceber, de perceber limites,
preconceitos e afetações com o trabalho e com as relações construídas com os usuários e a
comunidade.

Ao longo dos anos de prática, a comunidade do Jacarezinho me apresentou um cenário


com o qual tinha pouca familiaridade. Famílias em situação de flagrante pobreza, cidadãos
tendo seus direitos humanos cotidianamente violados, crianças lidando desde muito cedo com
a presença de armamento ostensivo e o recorrente barulho de tiros disparados, a falta de oferta
de atividades culturais, o acesso restrito à cidade devido a um sistema de transporte público
falho, pessoas vivendo o preconceito e a discriminação de morar em favela, à margem da
cidade, num espaço de ausências de políticas públicas e atenção do Estado.

Ao passo que me sentia progressivamente incomodada, indignada e adoecida com o


cenário apresentado, a resposta da comunidade que eu conseguia perceber era de aparente
aceitação e resignação em relação ao problema das múltiplas violências, mesmo diante de
grande sofrimento individual e comunitário. Essa aparente dicotomia me convidou a refletir e
observar mais sobre esse fenômeno para tentar entender as diferentes perspectivas.

Dada a frequente relação que usuários da clínica costumam fazer, de seu adoecimento
com a violência, me causa grande estranheza perceber esse tema não é levantado em reuniões
coletivas na comunidade, como grupos de atenção à saúde, fóruns comunitários, espaços de
convivência, entre outros. Seja por medo, insegurança, desmotivação ou falta de credibilidade
nos aparelhos do Estado para lidar com tal problemática, não discutir sobre ele não tem
ajudado a reduzir o sofrimento das pessoas e tampouco reduzir as mais diversas formas de
ações violentas na região. Neste exercício, conhecer as perspectivas da própria população
sobre como o território e a violência social as influenciam, bem como quais instrumentos e
ferramentas a mesma busca utilizar para alívio do sofrimento, tanto no campo individual
13
como no campo coletivo, pode dar visibilidade às ações de organização social e participação
popular já presentes na comunidade e não reconhecidas como tal por mim.

Ao mesmo tempo, a dimensão da espiritualidade dentro da prática do cuidado em


saúde já vem sendo estudada, principalmente no campo da saúde mental, há muitos anos, e
tem-se produzido extensa bibliografia sobre o tema. No entanto, a prática da Medicina de
Família e Comunidade ainda aborda o tema de forma muito incipiente. A religião, tema que se
insere na espiritualidade, mas não lhe é sinônimo, começou a ser abordada pela saúde no
início do século XX, porém começou a ganhar destaque na academia a partir da década de
70/80 com o avanço dos estudos em psicologia sobre enfrentamento religioso. Desde então,
muito se tem produzido sobre a vivência religiosa como fator protetor/potencializador de
processos de adoecimento. É frequente que encontremos na sociedade pessoas espiritualizadas
que não tenham vivência religiosa, uma vez que espiritualidade se relaciona com o conceito
de transcendentalidade, de busca por explicações sobre aquilo que não se pode explicar. A
vivência religiosa é comumente envolvida por alguma forma de espiritualidade, no entanto,
em alguns cenários, esta pode encontrar-se preterida ou colocada em segundo plano no viver
os ritos, regras e códigos religiosos.

Observando um pouco mais a conformação cultural do território, percebi ainda um


fator que chama muita atenção: a comunidade do Jacarezinho conta com mais de setenta
igrejas evangélicas em seu território de abrangência e, dessas, um pouco mais de cinquenta
são denominações evangélicas pentecostais. Um outro fator que muito me chamou a atenção
foi quando, em 2016, um pastor evangélico pentecostal foi assassinado “acidentalmente”
(coloco o termo entre aspas por não compactuar com o pensamento de que existem vítimas
acidentais em uma guerra às drogas que é violenta e agressiva para com pessoas
faveladas/marginalizadas, mas não igualmente violenta para com atores do narcotráfico que
estão inseridos (em outras camadas da sociedade) na comunidade. Embora não tenha sido o
primeiro caso de morte “acidental’”, fruto de uma guerra civil entre policiais e o narcotráfico
na região, o fato trouxe enorme comoção comunitária e conseguiu, pela primeira vez,
mobilizar pessoas para um ato pela paz naquela região. Essa presença marcante das igrejas
evangélicas pentecostais no território do Jacarezinho, a força organizacional e articuladora
dessas instituições dentro e junto à comunidade e, ainda, a constante presença de referência a
estas no ambiente da clínica, relacionando a prática religiosa com o bem-estar, tem me
convidado a buscar compreender, de forma mais ampliada e aprofundada, essa correlação

14
saúde-pentecostalismo na perspectiva de uma comunidade que vivencia o sofrimento social
cotidianamente.

Antes de médica de família e comunidade, sou uma mulher, preta, lésbica e agnóstica.
Cresci na cidade do Rio de Janeiro, no “asfalto” (que num desenho dicotômico da cidade, se
contrapõe às favelas), em uma família de classe média e católica, religião da qual
compartilhei por longo período da minha vida. Minha relação com a religião evangélica
pentecostal é atravessada por uma série de preconceitos pessoais e vivências de
discriminação. Seja em virtude do grande incômodo em relação a forma como as
denominações pentecostais lidam com as religiões de matriz africana, ou pela maneira como
homossexuais e transexuais são considerados anormais e por isso rechaçados do espaço de
convívio ou ainda devido à rigidez de regras e condutas, que inflexibiliza a participação de
pessoas e cerceia a liberdade e autonomia de seus participantes, a imagem que tenho
construída das denominações pentecostais não é positiva. No entanto, a quantidade de pessoas
que, no espaço da relação de cuidado, apontou a religião pentecostal como único caminho
para se manter são em meio a cenários muito adversos, me fez ponderar se não há, na imagem
que construí, um erro de interpretação ou ainda, se meu preconceito impossibilita perceber
outros aspectos da prática religiosa pentecostal que podem ser interessantes para a população
que atendo.

A força que o coletivo das igrejas aparenta ter, e o grupo de regras claras e orientadas
que as igrejas definem para seus participantes, vai de encontro à proposta de estímulo a
liberdade e autonomia da população que, pautada nos princípios pedagógicos de Paulo Freire,
me proponho a fazer. Avaliar como a população percebe, entende e aceita essas diferentes
propostas pode ser de grande ajuda para uma prática clínica que dialogue melhor com a
comunidade.

15
OBJETIVOS
Objetivo geral
Diante da importância da determinação social no processo saúde doença e da
ineficiência da biomedicina em dar respostas efetivas para o sofrimento social, conhecer
melhor os mecanismos que as comunidades submetidas mais intensamente a esse sofrimento
se utilizam para o enfrentamento da violência estrutural é de fundamental importância para
que a Atenção Primária à Saúde (APS) e seus profissionais possam atuar, de forma mais
eficaz e integrada à comunidade, frente ao que lhes é exposto cotidianamente.

O objetivo da pesquisa é entender os modos em que as religiões pentecostais


interagem no processo de saúde e doença da população da comunidade do Jacarezinho, frente
à situação de constante sofrimento social e violência estrutural, com o propósito de pensar
ações de cuidado em saúde que vão ao encontro dessas demandas e contribuir para um melhor
acolhimento e manejo do sofrimento experienciado por essas comunidades.

Objetivos específicos
Compreender as concepções de saúde, violência e sofrimento construídas por esta
comunidade e refletir em como a Atenção Primária à Saúde (APS) pode interagir com elas, no
sentido de tornar a prática do cuidado mais próxima das necessidades dos moradores locais;

Conhecer ferramentas utilizadas pela religião pentecostal para lidar com a violência e
o sofrimento social experienciados pela comunidade do Jacarezinho e buscar, se possível,
interlocução com o cuidado em saúde;

Entender, a partir do crescimento organizado das religiões pentecostais em regiões


periféricas do país, como se desenvolve esse resgate de autoestima e protagonismo,
estimulado por essas religiões junto a população dessas áreas;

Conhecer a relação estabelecida entre religiosos pentecostais e a parcela da


comunidade que não segue essas religiões, buscando entender a perspectiva dos evangélicos
em relação ao meio em que está inserido, nesse caso, a favela do Jacarezinho.

16
MARCOS TEÓRICOS

A perspectiva de Cuidado integral em Atenção Primária à saúde

A amplitude do conceito de Saúde


Para pensar as práticas de cuidado em saúde, antes é preciso definir o que se entende
por saúde. Segundo Scliar, o conceito de saúde reflete a conjuntura social, econômica, política
e cultural. (SCLIAR, 2007). Assim, compreende-se que saúde não tem sempre o mesmo
significado e este dependerá da época, do lugar e da classe social em que está sendo
analisando, e a prática de cuidado em saúde precisa considerar essas variáveis. Se olharmos
para saúde como a ausência de doenças, seguiremos um caminho, mas se pensamos saúde
como qualidade de vida, então é preciso determinar o que seria e para quem seria qualidade de
vida, e, a partir daí, seguir por um outro caminho.

A Organização Mundial de Saúde (OMS), em 1948, definiu saúde como “o estado de


mais completo bem-estar físico, mental e social, e não apenas a ausência de enfermidade”
(OMS, 1948). Essa perspectiva ampla do termo possibilitou a valorização e agregação de
inúmeros aspectos distintos, que interferem diretamente no processo de saúde e adoecimento
das pessoas. Por outro lado, um conceito tão amplo e subjetivo gerou muitas críticas e ia de
encontro ao pensamento moderno que se constituía. Seria possível pensar em caminhos para
garantir o mais completo bem-estar físico, mental e social de toda a população mundial?

O rompimento entre mente e corpo, produto da era moderna, fragmenta a dimensão do


todo e passa a compreender o tratamento de corpo, alma, natureza e sociedade como
fenômenos isolados, analisados e abordados de maneira independente. Nesse sentido, o
pensamento moderno passa a analisar o corpo por partes e, dessas partes, suas possíveis
patologias. Desta forma, a doença passa a ser objeto das intervenções médicas, surgindo o
modelo biomédico. O conceito de saúde, cunhado por Christopher Boorse (1977), como “a
ausência de doença” aparece em consonância com essa fragmentação do todo e com a
racionalidade biomédica. Esse conceito de saúde esbarra em problemas quando, no ano
seguinte, a OMS responde às críticas acerca de seu conceito inicial de saúde. (BOORSE,
1977)

17
Em 1978, durante a Conferência Internacional de Assistência Primária à Saúde em
Alma Ata, a OMS, organizadora do evento, enfatizou as enormes desigualdades na situação
de saúde entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, reafirmou o significado da saúde
como um direito humano fundamental e destacou a responsabilidade governamental na
provisão da saúde, além da importância da participação das pessoas e comunidades no
planejamento e implantação dos cuidados à saúde, chamando atenção para a importância de,
mais uma vez, serem considerados aspectos múltiplos e variados na promoção e produção de
saúde.

A América Latina vivenciou, entre as décadas de 1970 e 1980, um período de regimes


autoritários e de crise dos sistemas nacionais de saúde pública, em vários de seus países.
Nesse contexto de perda de direitos, e como fruto de intensa mobilização social, na VIII
Conferência Nacional de Saúde (VIII CNS), realizada em Brasília, no ano de 1986, surgiu um
conceito ampliado de saúde, que ficou definida como: a resultante das condições de
alimentação, habitação, educação, renda, meio ambiente, trabalho, transporte, emprego, lazer,
liberdade, acesso e posse da terra, e acesso aos serviços de saúde, determinadas
pelas formas de organização social e de produção, as quais podem gerar grandes
desigualdades nos níveis de vida. (LOURENÇO, 2012).

No dia 05 de outubro de 1988, entra em vigor a Constituição Federal Brasileira,


determinando

A saúde é um direito de todos e um dever do Estado, garantido mediante políticas


sociais e econômicas, que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e
ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e
recuperação (BRASIL, 1988 - Art. 196).

A chamada “constituição cidadã” de 88, não só define saúde como direito de todos e
dever do Estado, como também cria o Sistema Único de Saúde (SUS), sistema nacional de
saúde público, universal e gratuito, que tem a finalidade de alcançar a meta estipulada. Para
tal, o SUS tem como princípios doutrinários a universalidade, a integralidade e a equidade.
(BRASIL, 1988)

Cuidado como prática


Cuidar advém da palavra cogitare - cogitatus, que significa cogitar, colocar atenção,
mostrar interesse, demonstrar uma atitude de preocupação. Assim, o cuidado aparece quando
a existência de alguém tem importância para mim. Quando isso acontece, passo então a
dedicar-me, disponho-me a participar de seu destino, de seus sofrimentos e de sua vida.
18
Cuidado é então um modo de ser onde a pessoa sai de si, para focar, centrar-se no outro com
atenção, solicitude e preocupação uma vez que está sendo, pelo outro, envolvido e afetado.

Cuidar das coisas implica ter intimidade, acolhê-las, dar-lhes sossego e repouso. Essa
relação de cuidado não se estabelece como uma relação sujeito-objeto exclusivamente, mas
uma relação sujeito-sujeito, onde a relação que se estabelece não é de domínio sobre, mas de
convivência. Não é de intervenção, mas interação e comunhão. Quando define o ato de cuidar
como relação que se estabelece entre sujeitos, Boff (1999) rivaliza o conceito de cuidar com a
ditadura do trabalho, onde as relações que se estabelecem são necessariamente sujeito - objeto
e pressupõe uma hierarquia.

Em sua tese de doutorado, Fazzioni (2018) aponta o cuidado como uma categoria de
análise plástica e relacional, que envolve um desejo e uma ação. Podendo “significar, por
exemplo, o simples ato de amar para uma mãe, um dever profissional para um enfermeiro, ou
um direito universal para o Estado.” Com essa proposição, o cuidado assume uma dimensão
da ordem do afeto e da ordem do trabalho, o trabalho de cuidar. Contribui para a cisão entre
razão e emoção quando se rivaliza o cuidado como afeto ou trabalho, como proposto por Boff
(1999). Quando o cuidado é lido como algo mais plástico, mais fluido e onde o afeto e o
trabalho coexistem, esse dualismo começa a se diluir.

Fazzioni (2018) propõe ainda outro dualismo presente na categoria de análise cuidado,
o da dependência e autonomia. Lembra que, ao focar a análise entre esses dois polos,
reforçamos a ideia de dominação do cuidador e perdemos de vista a interdependência e a
reciprocidade presentes nas relações que se estabelecem.

Quando focamos o olhar sobre a prática de cuidado em saúde, é preciso estar atento
para não o reduzir ao aspecto de trabalho, presente e fundamental, mas não exclusivo, da
relação que se estabelece, e para o aspecto de controle e poder do cuidador sobre o objeto de
cuidado. A leitura que se faz quase em automático do ato de cuidar em saúde, remete a
fragmentação e uniformização dos corpos e despessoalização de indivíduos propostos pela
racionalidade biomédica, ao que Foucault (1988) chama de controle dos corpos e biopoder.

Os três setores de atenção à saúde e a prática de cuidado


São diversas as formas de buscar cuidado em saúde. Muitas vezes, quando
consideramos a prática de cuidado, nos limitamos a discutir o setor profissional de cuidado à
saúde. Assim, desconsideramos a prática cultural intrafamiliar de cuidados, o uso de chás,

19
garrafadas ou infusões, a proteção do corpo para evitar mudanças de temperatura, as
diferentes ofertas de alimentos para garantir-se saudável ou tratar determinados sintomas, a
realização de simpatias e rituais ou a busca por curandeiros, rezadeiras ou pastores para a
recuperação de saúde. Todos esses aspectos são culturalmente compartilhados por
determinados grupos e vão influenciar diretamente na percepção de saúde e doença destes. Ao
não considerar os demais setores de cuidado, ignoramos que, além de buscar o setor
profissional de saúde, 70 a 90% da população acessa primeiro ou em paralelo os setores
informal e popular (HELMAN, 2003).

Ao examinar qualquer sociedade complexa, pode-se identificar três setores


sobrepostos e interconectados de cuidados de saúde: o setor informal, o setor
popular e o setor profissional. Cada setor tem seus próprios modos de explicar e
tratar a má saúde, definir quem é a pessoa que cura e quem é o paciente e especificar
como o agente de cura e o paciente devem interagir em seu encontro terapêutico
(KLEINMAN apud HELMAN, 2003, p.80).

O setor informal é o local onde a má saúde é identificada pela primeira vez e onde se
iniciam os cuidados em saúde. Esse setor é de domínio leigo, não profissional e geralmente
inclui, de acordo com cada cultura, um conjunto de crenças sobre os melhores caminhos para
a manutenção da saúde, incluindo orientações de comportamento em relação a modos de se
comer, beber, vestir, trabalhar, rezar, dormir e conduzir a vida em geral, a fim de evitar a má
saúde para si mesmo e para os demais. As práticas de cuidado nesse setor costumam
acontecer dentro da rede social do próprio indivíduo, muitas vezes dentro do seio familiar, na
vizinhança, na igreja, no salão de cabeleireiro entre outros, sempre com pessoas que
compartilham presunções semelhantes sobre saúde e doença. Nesse setor existe muita fluidez
entre ser e a pessoa que recebe cuidado e a pessoa quem cura. (HELMAN, 2003)

O setor popular de saúde tende a ser particularmente maior dentre as sociedades não
industrializadas e seria intermediário entre o setor informal e o setor profissional. Nesse setor,
o cuidado é praticado por indivíduos especializados em formas de cura que podem ser
sagradas, seculares ou ambas. Os exemplos de curandeiros populares são muitos e diversos
como herbalistas, xamãs, parteiras, sahy, isangomas, mambos de vodu... Em geral, os
curandeiros populares compartilham os valores culturais e a visão de mundo das comunidades
em que vivem, inclusive as crenças sobre origem, significado e tratamento do adoecimento.
(HELMAN, 2003)

Nas sociedades em que o adoecimento é relacionado a questões sociais ou


sobrenaturais, os curandeiros sagrados são comuns. Os curandeiros populares costumam fazer
uma abordagem holística, onde lidam com todos os aspectos da vida do paciente, desde
20
sintomas físicos e emocionais, até fatores relacionados com o ambiente natural e forças
sobrenaturais. Essa prática de cuidado, holística e integral, tende a dialogar e se aproximar
mais do conceito de saúde apresentado no capítulo anterior do que da prática biomédica
vigente e dominante no setor profissional da cultura ocidental. (HELMAN, 2003)

Conhecer os diferentes setores de saúde se faz necessário, não apenas para melhor
compreender as construções culturais dos sentidos de saúde e doença de cada grupo social,
mas também para valorizar diferentes itinerários terapêuticos e atuar de forma respeitosa e
valorizando conhecimentos prévios, explicações coletivas e singulares sobre os processos de
saúde e adoecimento. (HELMAN, 2003)

O setor profissional de saúde, reconhecido e valorizado na cultura ocidental


atualmente, é a racionalidade médica, a biomedicina. Apesar do nome, a biomedicina não se
refere apenas a atuação médica, mas também de todas as profissões de saúde afins, como a
enfermagem, a fisioterapia, a odontologia, a fonoaudiologia entre outras. A biomedicina
vigente apresenta um conflito importante com o conceito de abordagem holística apresentado
previamente, que está mais de acordo com os princípios do Sistema Único de Saúde no que
tange à integralidade, e sua proposta de oferta de cuidado em saúde.

As racionalidades médicas

Tesser e Luz (2008) definem como racionalidade médica um conjunto integrado e


estruturado de práticas e saberes composto de cinco dimensões que se interconectam: uma
morfologia humana, uma dinâmica vital (fisiologia), um sistema de diagnose, um sistema
terapêutico e uma doutrina médica (que explica o que é a doença ou adoecimento, origem ou
causa, evolução ou cura). Essas cinco dimensões são abraçadas de forma implícita ou
explícita por uma cosmologia. Essa delimitação, precisa e específica, permite distinguir
sistemas médicos complexos como a biomedicina, a medicina tradicional chinesa ou a
ayurveda e terapias ou métodos diagnósticos isolados ou fragmentados, como os florais de
Bach ou a iridologia. (TESSER e LUZ, 2008)

O trabalho de Luz é fundamental para romper com o imaginário contemporâneo de


que a biomedicina seja a única forma de se fazer medicina. Com razões médicas e eficácia
terapêuticas próprias e que dialogam com diferentes estilos de pensamento e cultura, a
medicina tradicional chinesa e a homeopatia são exemplos de sistemas médicos complexos
que ganham popularidade crescente no país. (TESSER e LUZ, 2008)

21
Na biomedicina, a construção das teorias das doenças associa-se à organização
institucional de prática clínica especializada e de produção de saber (restrito a grupos
fechados de cientistas, pesquisadores e profissionais de saúde) em torno das especialidades.
Por sua vez, estas se organizam em torno das doenças e partes específicas do ser humano
(órgãos, aparelhos, sistemas). Essa racionalidade apresenta uma cosmologia de caráter
analítico, fruto do imaginário mecânico da física clássica, e de uma doutrina implícita que vê
a doença como entidade concreta, que se expressa por sinais e sintomas objetiváveis,
manifestações de lesões que devem ser buscadas no âmago do organismo físico e corrigidas
por algum tipo de intervenção concreta. (TESSER e LUZ, 2008)

Essa centralização e hipervalorização das doenças, hipertrofiou de forma significativa


a diagnose, criando uma dicotomia entre o fazer diagnóstico e a terapêutica. Enquanto o
primeiro se desenvolveu em consonância com o imaginário científico das ciências naturais, o
saber terapêutico ficou centrado no combate e controle das doenças, desviando-se do paciente
e de sua vida, tornando-se progressivamente padronizado, num processo de apagamento e
desindividualização da ação biomédica em relação aos sujeitos reais, que passam a ser vistos
cada vez mais como unidades homogêneas. (TESSER e LUZ, 2008)

Para Luz, a integralidade do cuidado, que permite uma visão global do sujeito coloca-
se como um problema epistemológico para a racionalidade biomédica e, sendo esta a
referência teórico/prática e institucional do SUS, a questão desloca-se para o próprio SUS.
(TESSER e LUZ, 2008)

O paradigma biomédico e a tensão estruturante


em toda racionalidade médica, há uma lógica mais racional ou teórica, centrada no
saber, e outra, sintética, intuitiva, "artística" (que também porta um saber
historicamente construído), centrada na missão curadora de acolher, mobilizar os
doentes e orientar o tratamento individualmente. Na biomedicina, essas duas lógicas
estão em flagrante e progressivo desequilíbrio, com a primeira parte sobrepujando e
dominando a segunda. Isso é incentivado pela supremacia de caráter mitológico que
a ciência conquistou no mundo moderno e nessa medicina. (TESSER e LUZ, 2008
p.200)

A biomedicina é o paradigma pelo qual se explica o mundo a partir de uma


perspectiva mecanicista e dualista do homem (corpo e pessoa). Ela se coloca intimamente
relacionada com a hegemônica concepção individualista da cultura ocidental moderna, fruto
de mudanças na visão de mundo que ocorreram entre os séculos XVI e XVII e promove como
consequência, a racionalização e afastamento do sensível, a fragmentação dos domínios e a
universalização dos saberes e a interiorização e psicologização dos sujeitos.

22
Assim, a medicina moderna surge a partir de uma ruptura epistemológica ocasionada
pelo advento da filosofia mecanicista. Nesse momento, as explicações religiosas sobre a
natureza perdem espaço para as explicações racionalistas, justificadas através de fatos
apreensíveis por um pensamento metódico e racional.

A pessoa surge, nesse cenário, como ser individualizado, tendo o corpo como fator de
individualização. O corpo seria, segundo Breton, a fronteira que diferencia um homem e
outro, colocando o como corpo afastado de si mesmo, da comunidade e do meio social. Está
colocado então o dualismo entre o corpo, que é mensurável, alcançável e objetivável e a
pessoa, associada com o espiritual, o social e o psicológico. Nessa dualidade, a biomedicina
valoriza o corpo anatomizado e mensurável em detrimento da pessoa.

Por sua indissociabilidade do conhecimento científico, esse paradigma se legitima no


mundo moderno, tornando-se assim o paradigma predominantemente reproduzido na
formação de profissionais de saúde (DUARTE apud BONET, 2004). O local escolhido para a
prática e o ensinamento da biomedicina, onde é possível tentar dissociar e valorizar
sobremaneira o corpo em detrimento da pessoa se dá preferencialmente no cenário hospitalar.

A biomedicina, em sua fragmentação e despessoalização, promove, para a prática de


saúde, uma cisão entre o corpo biológico e a mente psicossocial, desenhando como
possibilidade à medicina, debruçar-se sobre os aspectos biológicos do sofrimento
corporificado, num esforço grande para silenciar os aspectos sociais que os originam.

Segundo Bonet (2004), a prática biomédica se configura em uma tensão estruturante


entre o saber e o sentir, o material e o espiritual, o profissional e o humano, que nos coloca,
enquanto profissionais de saúde em uma posição dividida entre o que se deve fazer e o como
se sente ao fazê-lo. Essa tensão estruturante passa pela tentativa de diminuir ou invisibilizar os
fenômenos da subjetividade. No entanto, ao passo que se elege a doença como categoria de
intervenção da prática biomédica, a dimensão do sofrimento estará sempre presente no
cotidiano da prática médica. (BONET, 2004)

Se a integralidade pode ser fomentada e facilitada pelo saber especializado, e assim


construída parcialmente pela teoria, como ocorre em outras racionalidades médicas, deve ficar
claro que sua concretização se dá eminentemente na parte prática, que é toda voltada para o
doente em sua situação de vida real. Essa segunda parte é a protagonista da integralidade e é
ela que, na biomedicina, está sendo sufocada e enfraquecida pela primeira e seus infinitos

23
saberes e tecnologias especializadas, que não permitem um retorno à globalidade do sujeito
doente. (TESSER e LUZ, 2008)

A prática da biomedicina no cenário da atenção primária à saúde provoca um


tensionamento ainda maior, uma vez que a proximidade com o território e o contexto social
das pessoas, dificulta muito o silenciamento das subjetividades do processo saúde-doença.

A necessidade do cuidado integral no contexto da APS


Um paciente não se reduz a uma lesão que no momento lhe causa sofrimento. Não
se reduz a um corpo com possíveis lesões ainda silenciosas, escondidas à espera de
um olhar astuto que as descubra. Tampouco se reduz a um conjunto de situações de
risco. O profissional que busque orientar suas práticas pelo princípio da
integralidade busca sistematicamente escapar aos reducionismos (MATTOS, 2001
p.65).

A reforma sanitária da década de 70 e o surgimento do Sistema Único de saúde na


década de 80 foram marcos temporais fundamentais para a revisão da prática de cuidado
oferecida à população brasileira. Na mesma década de 70 surge nos Estados Unidos um
movimento de medicina integral que discutia o currículo e a formação médica no modelo
biomédico, o modelo flexneriano. O movimento, em linhas gerais criticava a atitude
fragmentária e reducionista de médicos diante de seus pacientes, onde só se valorizava os
aspectos biológicos do processo de adoecimento. Esse movimento, no Brasil se juntou ao
processo da reforma sanitária e deu vazão ao surgimento da saúde coletiva. (MATTOS,
2001)

O processo de redemocratização do Brasil e a luta de movimentos sociais para ter


assegurado o direito à saúde, impulsionam a priorização da atenção primária à saúde, que
desde 1978 em Alma Ata era defendida pela OMS como caminho para assegurar cuidado em
saúde de forma efetiva considerando diferentes cenários e contextos sociais.

A atenção primária se constitui, assim, em uma modalidade assistencial que aproxima


profissionais de saúde dos contextos sociais, culturais e afetivos em que vivem os usuários.
Possibilitando assim o surgimento de uma viva e inerente relação cotidiana dos profissionais
com os aspectos sociais e subjetivos constitutivos do processo de adoecer. Ao promover um
maior vínculo e diálogo entre profissionais e pacientes, seria capaz de ampliar a perspectiva
integral na clínica. Mas, o que seria essa perspectiva integral?

Integralidade é uma palavra com conceito polissêmico e diverso. Mattos (2001) a


propõe como parte de uma “imagem-objetivo”, e como toda imagem-objetivo, distingue o que

24
se almeja construir do que já existe, sendo esta o indicativo da transformação que queremos
imprimir a realidade.

Ela é uma “bandeira de luta”, parte de uma “imagem-objetivo”, um enunciado de


certas características do sistema de saúde, de suas instituições e de suas práticas que
são consideradas por alguns (diria eu, por nós), desejáveis. Ela tenta falar de um
conjunto de valores pelos quais vale lutar, pois se relacionam a um ideal de uma
sociedade mais justa e mais solidária (MATTOS, 2001 p.45).

Segundo Favoretto (2007), a integralidade, quando centra no sujeito o objeto da


atenção dos serviços e de seus profissionais, obriga a discussão de questões que são
transversais às ações de saúde como a efetividade, continuidade e terminalidade do cuidado
ofertado. Dá relevo às relações entre os sujeitos envolvidos no projeto do cuidado e, por
conseguinte, abre o cenário dos serviços e das práticas para o diálogo entre diferentes saberes
(biomédicos e não biomédicos). (FAVORETTO, 2007)

A insurgência epidemiológica de doenças crônicas, incentiva a prática clínica a lidar


com perspectivas como o manejo longitudinal e o cuidado, no lugar de somente tratamento e
cura. Essa mudança de objetivo, torna se fundamental na abordagem dessas situações de
adoecimento. Nessas condições de adoecer, estão implícitos os aspectos que guardam relação
direta com a vida cotidiana. As estratégias de manejo implicam em rupturas do modo de andar
a vida, da identidade social destas pessoas e de sua autonomia. (FAVORETTO, 2007) Cabe
ressaltar a importância e o protagonismo que o desafio e a necessidade de manejar o
HIV/AIDS tiveram nessa mudança de objetivo e finalidade e no reconhecimento, pela força
do movimento social, da importância de repensar o paradigma biomédico e propor outros
paradigmas que incluíssem o contexto social para o manejo mais adequado dessa
enfermidade.

Se dentro do hospital e de laboratórios a prática biomédica parece suficiente para dar


respostas às demandas que a população apresenta, na mudança de cenário para as unidades de
atenção primária, isso se desconstrói. Com o relevante crescimento epidemiológico de
doenças crônicas e a aproximação com o território e, por conseguinte com o contexto social
em que as pessoas adoecidas se inserem, o paradigma biomédico fragmentado deixa de ser
uma panaceia, evidenciando suas limitações para com as demandas e necessidades de saúde
das pessoas. Especificamente para a medicina, essa mudança de paradigma apresentou (e
apresenta) o campo das incertezas, cenário este estranho, desconfortável e incômodo para uma
categoria profissional que tende a se perceber como detentora do saber e da verdade
científicas.

25
A situação dos profissionais de saúde biomédicos é complexa. Somos cobrados pelos
usuários, pelo SUS, pela Estratégia de Saúde da Família e por nossa missão ética de curadores
uma atenção integral à saúde, mas nosso saber é centrado em algo que pode corresponder ao
oposto dessa integralidade. Oferecer esse cuidado integral pressupõe uma dose elevada de
inventividade, criatividade, intuição, dedicação ética e artística e, principalmente, em equipes
multidisciplinares que permitam trocas de saberes e construções conjuntas de novos caminhos
para o cuidado.

O desafio em lidar com aspectos aos quais a biomedicina oferece pouco aporte teórico
não deve ser um impeditivo para não fazê-lo. Sim, torna-se necessário entrar em contato com
outras formas de se fazer e ler o comportamento humano em sociedade e a ciência, como
através das ciências sociais, das produções acadêmicas na área da saúde que não apresentam
perspectiva fragmentada do todo, como as produções em saúde pública, atenção primária e
saúde coletiva tanto no Brasil como em outras partes do mundo que guardem contexto similar
ao brasileiro.

Por vezes, estar diante de uma proposta de abordagem integral é entrar em contato
com situações em que não existe necessariamente um protocolo a ser seguido ou remédio a
ser prescrito para solucionar o problema. É precisar lidar com as próprias emoções e, por
vezes, com a sensação de perceber-se impotente diante de adoecimentos gerados por uma
violência estrutural e institucional, mas também é reconhecer que o não saber abre espaço
para muitas e novas descobertas, conhecimentos e possibilidades de construções coletivas do
saber seja com catedráticos, com usuários da rede de atenção à saúde ou com colegas de
profissão.

A atenção primária à saúde e a prática de cuidado relacionada ao território


Neste trabalho, compreendo atenção primária à saúde como o conceito da OMS em
Alma Ata, que a define por:

cuidados essenciais de saúde baseados em métodos e tecnologias práticas,


cientificamente bem fundamentadas e socialmente aceitáveis, colocadas ao alcance
universal de indivíduos e famílias da comunidade, mediante sua plena participação e
a um custo que a comunidade e o país possam manter em cada fase de seu
desenvolvimento, no espírito de autoconfiança e automedicação. Fazem parte
integrante tanto do sistema de saúde do país, do qual constituem a função central e o
foco principal, quanto do desenvolvimento social e econômico global da
comunidade. Representam o primeiro nível de contato dos indivíduos, da família e
da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os cuidados de saúde são
levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem e trabalham,
e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à saúde
(OMS, 1978 p.2).
26
Para Ayres (2004), não é possível cuidar de indivíduos sem cuidar de populações, e
não há verdadeira saúde pública que não passe por um atento cuidado de cada um de seus
sujeitos. Essa indissociação do sujeito de seu meio social se configura no entendimento de
que o adoecer é também histórica e socialmente configurado; de que tanto os determinantes
do adoecimento quanto os saberes e instrumentos tecnicamente dirigidos a seu controle são
fruto do modo socialmente organizado de homens e mulheres relacionarem-se entre si e com
seu meio. Ele define então cuidado como designação de uma atenção à saúde imediatamente
interessada no sentido existencial da experiência do adoecimento, físico ou mental, e, por
conseguinte, também das práticas de promoção, proteção ou recuperação da saúde. (AYRES,
2004)

Ora, diante dos conceitos aqui apresentados, pensar em cuidado na atenção primária
exige, fundamentalmente considerar os modos de viver, ser, sofrer e adoecer dos indivíduos
em uma determinada comunidade, valorizando as experiências, cultura e história que esta
compartilha e centralizando a atenção à saúde na pessoa, na família e no território por ela
determinado.

Com a Estratégia de Saúde da Família (ESF), modelo preferencial de organização da


atenção primária no país, orientada para o cuidado de uma determinada população em um
território adstrito, este território passa a ser uma categoria de análise fundamental para a
prática de cuidado. Sobre ele pode se dizer que:

É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele o objeto da análise
social. Trata-se de uma forma impura, um híbrido, uma noção que, por isso mesmo,
carece de constante revisão histórica. O que ele tem de permanente é ser nosso
quadro de vida. Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar o risco de
alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de
renúncia ao futuro (SANTOS, 1994, p.15).

De acordo com Santos (1994), o conceito de território relaciona-se com a ideia de


fixos e fluxos. A associação entre eles, reflete a dinâmica de vida de cada formação social. Os
fixos retratam os objetos da paisagem local, as praças, os estabelecimentos, a via férrea e as
construções. Os fluxos referem-se aos movimentos, ou seja, a circulação de pessoas, ideias,
mercadorias, pautando-se por ritmos, intensidades, volumes e sentidos. Conhecer os fixos e
fluxos de um determinado território permite conhecer sua história sociocultural, a relação que
se estabelece entre as pessoas daquele lugar e delas com o território onde estão inseridas,
respeitando a constante dinamicidade deste e seus processos de construção e reconstrução
continuados.

27
Competência e Humildade cultural
A relação que se constrói entre profissionais de saúde e usuários, é comumente
comprometida por vários desencontros socioculturais, motivados pela falta de conhecimento
dos profissionais de saúde acerca das experiências de vida, e crenças sobre saúde dos usuários
e de processos intencionais e não intencionais de reprodução de racismo, classismo, lgbtfobia
e sexismo por parte desses profissionais.

A competência cultural, atributo da Atenção primária à saúde, se propõe a fazer essa


conexão entre saberes e culturas diversas, com o intuito de respeitar e valorizar as demandas
em saúde do paciente em toda sua integralidade, sentidos, razões e percepções. Com essa
proposta audaciosa, torna-se importante evitar que a competência cultural seja tomada por
uma dimensão reducionista de que, para exercê-la, basta demonstrar conhecimentos sobre
diferentes culturas e saberes.

A competência cultural é mais bem definida como um comprometimento e


engajamento ativo, em um processo longitudinal de construção contínua que profissionais de
saúde estabelecem com usuários, comunidades, colegas e consigo mesmo no lugar de um
ponto final a ser alcançado e demonstrado. É um processo que, para ser colocado em prática
verdadeiramente, requer humildade, para que os profissionais se mantenham ao longo da vida
engajados em processos de autorreflexão e autocrítica. Requer humildade também na forma
em que os profissionais vão lidar com o desequilíbrio de poder existente na relação com o
paciente, que exige entrevista e cuidado centrados no paciente e, ainda, requer humildade para
o desenvolvimento e manutenção de uma relação de parceria respeitosa e dinâmica com a
comunidade e seus indivíduos.

Nesse sentido, Tervalon (1998) propõe, no lugar de competência cultural, o termo


humildade cultural, pois, além de valorizar o conhecimento sobre as práticas de cuidado
existentes nas diferentes comunidades, é preciso estar em constante processo de autorreflexão
e comprometimento com esse processo contínuo de aprendizagem. (TERVALON, 1998)
Nesse processo, os profissionais de saúde precisam ser flexíveis e humildes o suficiente para
renunciar à falsa sensação de segurança que as estereotipações de culturas diversas podem
oferecer, compreendendo que, por vezes, as mesmas dimensões culturais são experienciadas

28
de formas diferentes por cada paciente. E precisam também da humildade e coragem para
reconhecer para si e para o outro que não sabem aquilo que realmente não sabem, e estar
disposto a comprometer-se em pesquisar e buscar informações que possam melhorar o
cuidado do paciente e de sua prática médica futura.

A Medicina de Família e Comunidade


A Medicina de Família e Comunidade (MFC), se apresenta como a prática médica
especializada em atenção primária à saúde. McWhinney (2010) define como alguns de seus
princípios que: O MFC é comprometido em primeiro lugar com a pessoa e sua prática não é
limitada a problemas de saúde rigidamente definidos: a pessoa define o problema; O MFC
procura entender o contexto da experiência com a doença e muitas dessas experiências não
podem ser completamente entendidas a não ser que sejam observadas dentro do contexto
pessoal, familiar e comunitário; O MFC é parte de uma rede comunitária de atenção à saúde e
é um recurso de sua comunidade e o MFC confere importância aos aspectos subjetivos da
medicina (McWHINNEY, 2010).

A medicina de família e comunidade se propõe a utilizar o método clínico centrado na


pessoa, que apresenta didaticamente seis componentes descritos por Stewart (2010): (1)
Explorando a doença e a experiência da doença, (2) Entendendo a pessoa como um todo, em
seu contexto familiar e comunitário, (3) Elaborando um plano conjunto de manejo dos
problemas identificados, (4) Incorporando prevenção e promoção de saúde, (5) Intensificando
o relacionamento entre pessoa e o profissional de saúde médica (o), (6) Sendo realista.
(STEWART, 2010)

O método reconhece que pessoas estão inseridas em relações familiares, comunitárias


e sociais diversas e que essas relações influenciam direta ou indiretamente em todo o processo
vital dessas pessoas. (STEWART, 2010)

A MFC propõe-se também a fazer o cuidado em saúde de forma longitudinal,


acompanhando as diversas mudanças de ciclo de vida por que as pessoas passam e as
comunidades passam ao longo do tempo.

Considerando o cuidado longitudinal e integral, por vezes, o maior cuidado de um


MFC está em proteger o usuário de iatrogênias e intervenções desnecessárias que a cultura
biomédica contemporânea tende a produzir em nosso meio social.

29
Os atributos acima mencionados se, por um lado, dialogam muito coerentemente com
o conceito de cuidado e de atenção primária aqui apresentados, por outro conflitam com a
prática biomédica ensinada nas escolas de formação médica e em saúde de uma maneira geral.
Extrair do paradigma biomédico conhecimentos que possam ser aplicados dentro de um
paradigma capaz de ofertar cuidado verdadeiramente integral e atento aos mais variados
aspectos da vida das pessoas é um dos desafios que está colocado para a especialidade da
Medicina de Família e Comunidade. Não reduzir a oferta de cuidado ao domínio exclusivo do
biomédico, não desvalorizar os saberes populares e outras racionalidades médicas e revisitar
cotidianamente os conhecimentos já teoricamente dominados são desafios da prática cotidiana
dessa especialidade.

A participação popular como direito e necessidade


O Sistema Único de Saúde, através da lei que o regulamente, apresenta o princípio da
participação popular, que garante constitucionalmente a participação da sociedade na
formulação e controle das políticas públicas de saúde. Esse princípio justifica-se pela
conjuntura de redemocratização do país no momento da promulgação da Constituição cidadã
e pela força, à época, de movimentos sociais por todo o país. A Lei orgânica do SUS constrói
organismos formais de representação popular à nível municipal, estadual e federal.

Retomando o enfoque para os cuidados primários em saúde, abrir canais de diálogo


com a população é essencial para a construção de um entendimento das verdadeiras demandas
e necessidades em saúde desta determinada comunidade. Pensar em propostas de cuidados em
saúde que não considerem essas demandas implica em desvalorizar o contexto social e impor
aquilo que se considera tecnicamente relevante para a população a partir de observação
externa.

É importante ressaltar que existe uma compreensão de sociedade e dos meios para se
alcançar determinados objetivos que, às vezes, se apresenta de maneiras muito distintas para
as pessoas de classes sociais mais pobres e para profissionais técnicos de saúde. Uma
população acostumada a ter seus direitos em saúde sistematicamente negados pelo Estado,
muito provavelmente não vá depositar neste a confiança para cuidar de sua saúde (VALLA,
1994). Esta diferente percepção da mesma sociedade a partir de locais sociais distintos,
implica em uma dificuldade por parte de técnicos e moderadores em compreender a fala e o
fazer de classes populares para lidar com as questões que se apresentam, Valla (2002) refere-

30
se a esse impasse como “crise de interpretação”, conceito criado por Martins (MARTINS
apud VALLA, 1998).

Nesse sentido, é importante para a medicina de família e comunidade na APS não só


reconhecer a importância de estar atento e ouvir sua população, mas também reconhecer que
esse ouvir precisa ser feito desconstruindo pré julgamentos e preconceitos e que, em muitos
momentos, as demandas levantadas pela população e os caminhos para solucioná-las irão de
encontro ao que se imagina como certo do ponto de vista técnico científico. O desafio está
então em saber ouvir, acolher e ser capaz de efetivamente construir conjuntamente caminhos
para um cuidado em saúde que seja socialmente centrado e destinado.

Violência, sofrimento social e o processo de adoecimento

Conceituando violência

Ao pensar em violência, a primeira coisa que talvez nos venha à mente seja as
situações cotidianas de violência urbana que a mídia apresenta diuturnamente em jornais e
revistas. Assaltos, confrontos armados, sequestros, situações de brigas mais violentas na rua
seja por motivo de problemas no trânsito, por questões relacionadas a futebol entre outros.
Mas não podemos resumir o conceito de violência apenas a essas situações. É um termo
amplo e complexo que deve ser empregado de forma dinâmica, em diálogo constante com o
contexto social vigente.

Violência é uma palavra que se traduz em significados diversos a depender da cultura


em que se insere e da ótica sob a qual se olha para o termo. É um fenômeno complexo e
multifacetado. Hoje, é possível afirmar quase como consenso que a violência não faz parte da
natureza humana e não tem origem biológica, mas é a vida em sociedade que propicia sua
criação e desenvolvimento. Por isso, é preciso entender contextos históricos e sociais para a
compreender.

Hannah Arendt procura diferenciar violência e poder, conceitos que, às vezes, são
tomados como sinônimos. Para a autora, poder advém de uma construção coletiva. É dado
poder a um determinado grupo social em um determinado contexto, ele nunca é do indivíduo.
A este grupo é incumbida a tarefa de falar e se posicionar pelo todo. Arendt considera o poder
como um fim em si mesmo, e não o caminho para algo. O poder também se configura como
um momento fugaz que, por si só, não garante a durabilidade da comunidade política.
(PERISSINOTO, 2004)

31
Segundo Arendt, a violência se coloca como oposta ao poder. Onde o poder domina
absolutamente, a violência encontra-se ausente e onde a violência se opera de forma
recorrente, é porque o poder já se desintegrou. Arendt não atribui ao poder o conceito de
obediência inquestionável, mas sim o conceito de consentimento. Nas relações de poder por
ela compreendida, somente a violência é capaz de impor esse tipo de obediência
inquestionável. A violência teria assim, um caráter instrumental, tratar-se-ia, portanto, do
instrumento utilizado para alcançar uma finalidade almejada. Assim sendo, a violência não
pode ser considerada como legitima, mas justificar-se-ia seu uso para reequilíbrio da balança
da justiça, seja ao avaliarmos sua natureza política ou ainda, quando todos os outros meios
possíveis tenham sido esgotados. (PERISSINOTO, 2004)

Segundo Hsiao (2007), Arendt constrói uma linha relacional entre o aumento da
burocratização da esfera pública, a transformação dos governos em órgãos meramente
administrativos e a consequente percepção de impotência de grupos e indivíduos na
capacidade de influenciar e consensuar ações, o que resultaria na percepção de declínio do
poder, no sentido de estabelecer o consenso através da argumentação democrática. Essa
redução do poder como caminho, estimula a invasão da violência no espaço público da ação.
A aceitação e crescimento da ação por meios violentos que vemos no mundo contemporâneo
estaria então, diretamente ligada à impotência e à frustração na capacidade de agir em meio a
essa burocratização da vida pública. (HSIAO,2007)

Agudelo (1990), caracteriza violência sob a perspectiva da utilização de força física ou


de coerção psíquica e moral por parte de um indivíduo ou grupo, contra si mesmo, objetos,
pessoas ou grupos que resulte em destruição ou dano do objeto ou limitação ou negação de
qualquer direito estabelecido pela pessoa ou grupo vítimas da violência. Para o autor, a
violência seria uma ação humana em decorrência das grandes desigualdades de direitos nas
sociedades (AGUDELO, 1990). Sob a mesma ótica, Domenach ressalta que, a depender dos
interesses do Estado, algumas violências serão mais ou menos valorizadas.

Suas formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam outras situações
menos escandalosas por se encontrarem prolongadas no tempo e protegidas por
ideologias ou instituições de aparência respeitável. A violência dos indivíduos e
grupos tem que ser relacionada com a do Estado. A dos conflitos com a da ordem
(DOMENACH apud MINAYO, 1994, p.7)

Compreendendo que a violência não se configura apenas como uma forma de ação
unidirecional de grupos oprimidos sobre grupo opressores, e que é preciso entender todo o
contexto social que organiza e perpetua opressões, Minayo sugere uma classificação da

32
violência em: violência estrutural, violência de resistência e violência de delinquência.
(MINAYO, 1994)

A violência estrutural seria definida pelas estruturas organizadas e institucionalizadas


da família e de outros sistemas econômicos, culturais e políticos, que induzem a opressão de
grupos, nações, classes e indivíduos que têm direitos sociais negados, tornando-os mais
vulneráveis ao sofrimento e ao adoecimento. Exemplos dessa forma de violência no Brasil são
o racismo, o patriarcado, a opressão de classe, entre outras. (MINAYO, 1994)

A violência de resistência é a forma pela qual os grupos, nações, classes e indivíduos


oprimidos respondem a violência estrutural. De uma maneira geral, esta forma de violência
não costuma ser naturalizada e sim fortemente oprimida pelos detentores do poder político,
econômico e/ou cultural. (MINAYO, 1994)

Por último, mas não menos importante, a violência de delinquência seria qualquer
forma de violência que se enquadre fora da lei socialmente reconhecida. A análise desse tipo
de violência, necessariamente, precisa considerar a violência estrutural produzida pela
sociedade. (MINAYO,1994)

Ao aprofundar um pouco mais no conceito do termo violência, entende-se que, como


sugerem os autores previamente mencionados, a violência pode ser fruto de uma ação prévia
de violência, uma forma de buscar equilibrar a balança da justiça social ou ainda uma forma
de manter o poder quando este não foi atribuído pelo coletivo, quando não houve decisão
consensual sobre esse poder.

Por vezes a mídia televisiva e jornalística ajuda a criar um imaginário coletivo de que
favelas e periferias são as principais responsáveis por situações de violência urbana
(violências que acontecem dentro de cidades grandes). Esse olhar negligencia as situações de
violência que as pessoas que moram nesses territórios socialmente marginalizados sofrem,
negligencia a violência estrutural e silencia as diferenças com que o Estado trata pessoas que
vivem numa mesma cidade, mas ocupam territórios físicos e sociais diferentes. É necessário,
nesse sentido, ampliar o olhar para não reproduzir injustiças e opressões já imputadas na
construção social vigente. Perceber essas várias formas de violência ajuda a entender melhor
as violências de delinquência e resistência em sua origem causal.

Pensando no conceito de violência e, principalmente em sua apresentação estrutural, é


importante percebermos o quanto as instituições formais são reprodutoras e perpetuadoras de

33
violências. Enquanto profissionais de saúde, somos seres socialmente construídos e, portanto,
pertencentes a grupos sociais que oprimem e são oprimidos. Enquanto médicas e médicos,
nos inserimos profissionalmente na instituição saúde. A violência institucional na saúde existe
em variados aspectos, um deles é o racismo institucional. O programa de combate ao racismo
institucional explica o conceito deste, que pode ser ampliado para outras formas de reproduzir
violências institucionais no setor saúde.

O racismo institucional é o fracasso das instituições e organizações em prover um


serviço profissional e adequado às pessoas em virtude de sua cor, cultura, origem
racial ou étnica. Ele se manifesta em normas, práticas e comportamentos
discriminatórios adotados no cotidiano do trabalho, os quais são resultantes da
ignorância, da falta de atenção, do preconceito ou de estereótipos racistas. Em
qualquer caso, o racismo institucional sempre coloca pessoas de grupos raciais ou
étnicos discriminados em situação de desvantagem no acesso a benefícios gerados
pelo Estado e por demais instituições e organizações (CRI, 2006, p.22).

Por mais que, enquanto profissionais de saúde da atenção primária que atuam
na oferta cotidiana de cuidado em saúde, não tenhamos os instrumentos para combater a
violência institucional criando políticas e diretrizes, temos um papel importante em garantir
que essas unidades sejam espaços verdadeiramente acolhedores, e não reprodutores de
violências. Estar atento para não reproduzir ou negligenciar violências é um passo
fundamental para garantir o princípio da equidade no Sistema Único de Saúde.

A aproximação do tema violência com o campo da saúde

A Organização Mundial de Saúde (OMS) define violência por uso intencional da força
física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um
grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão,
morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (KRUG et al., 2002)

Por ser essencialmente um processo social, a violência não se caracteriza como um


problema específico da área da saúde, mas precisa ser abordado por esta área uma vez que
afeta diretamente a vida e o processo de saúde e adoecimento das pessoas. (MINAYO,1994)

ela representa um risco maior para a realização do processo vital humano: ameaça a
vida, altera a saúde, produz enfermidade e provoca a morte como realidade ou como
possibilidade próxima (AGUDELO apud MINAYO, 1994, p.9)

A organização Pan Americana de Saúde (OPAS) em 1993, já apontava a violência


como uma endemia e um problema de saúde pública em diversos países. Esse caráter
endêmico se dá pelo número de vítimas e a magnitude de sequelas orgânicas e emocionais que
produz. Para a instituição, o setor saúde seria o local para onde confluem todas as
consequências da violência. (MINAYO, 1994)
34
Um problema que se apresenta para o aprofundamento do estudo da violência no
campo da saúde está na dificuldade de quantificar muitos de seus aspectos. Muitos são os
estudos que abordam as taxas de mortalidade, mas os desafios em gerar dados fidedignos
através dos sistemas de informação preenchidos por profissionais de saúde, limita muitas
possibilidades de leitura desses dados. Ainda é um desafio, por exemplo, conseguir
desagregar os dados de mortalidade gerados por raça/cor. Se os dados gerados para
mortalidade são difíceis de se estudar de forma aprofundada, aqueles que abordam a
morbidade são ainda mais complexos. Por um lado existe grande dificuldade em dimensionar
os traumas físicos, psicológicos e morais relacionados à violência, por outro existe também a
certeza de subnotificação de casos de violência contra mulheres, crianças ou população LGBT
e de situações de racismo que, ora não chegam ao serviço de saúde ou não são percebidas
pelos profissionais de saúde que deveriam acolher e gerar essas notificações. (MINAYO,
1994)

A agenda que a violência impõe para o serviço de saúde é ampla, com a necessidade
de abordar seus efeitos diretos e indiretos, orgânicos e simbólicos. O elevado custo financeiro
da abordagem dos efeitos físicos e a sobrecarga de demanda que os efeitos indiretos e
simbólicos geram, congestionam os serviços de pronto atendimento e atenção primária,
afetando diretamente a qualidade global da oferta de serviço de saúde (MINAYO, 1994)

Não se pode omitir, também, um efeito por vezes difuso, por vezes direto, que a
violência provoca sobre a estrutura e o funcionamento dos serviços de saúde,
sobretudo quando os conflitos por eles atendidos afetam os profissionais, pelo
amedrontamento, pelas ameaças, pelos danos físicos e/ou psicológicos. Tais
situações são hoje frequentes nos hospitais de emergência, nos serviços de
emergência dos hospitais gerais e, até, nos centros de saúde (p.13).

Acima, Minayo (1994) aponta para outro importante fator que contribui para a
dificuldade de oferta de serviços de saúde em áreas marginalizadas, o impacto direto e
indireto que a violência gera nos profissionais de saúde. Na cidade do Rio de Janeiro tem sido
crescente o número de vezes em que, como consequência de conflitos armados entre forças
policiais e narcotráfico/milícia em comunidades favelizadas, as unidades básicas de saúde
precisam interromper seu funcionamento ou deixam de abrir para ofertar cuidado às pessoas.
Essa proximidade com conflitos armados tem provocado uma rotatividade grande de
profissionais nas unidades de saúde, assim como têm desencadeado processos de adoecimento
entre esses profissionais.

O município do Rio de Janeiro, em parceria com o Comitê Internacional da Cruz


Vermelha, criou, em 2009, o Projeto Rio, uma adaptação de um projeto internacional de
35
redução e resposta às consequências da exposição da população e de profissionais a contextos
de violência armada em meio urbano - Programa Acesso Mais Seguro – para os serviços
essenciais da cidade. De janeiro a julho do ano de 2017, o Acesso Mais Seguro precisou ser
acionado mais de mil vezes pelas unidades básicas de saúde da cidade. (COMITÊ
INTERNACIONAL DA CRUZ VERMELHA, 2018)

A violência a qual comunidades marginalizadas e periféricas estão submetidas,


esconde por trás de episódios de confrontos armados entre a Polícia Militar e o Narcotráfico,
uma série de fatores estruturais que podem intensificar e alimentar a força de grupos de poder
paralelo ao Estado (narcotráfico, milícias, igrejas). Esta população, base da pirâmide
socialmente constituída, enfrenta diariamente uma carga de estresse significativo que provoca
sofrimento e, por conseguinte, adoecimento.

A reflexão interdisciplinar e multiprofissional no campo da práxis violência e saúde se


faz urgente, não apenas por uma imposição externa, mas por exigência intrínseca de
aprofundar o conhecimento sobre o tema.

As pessoas favelizadas e o conceito de sofrimento social

Ao estudar os fenômenos relacionados ao processo de adoecimento das pessoas


moradoras de favelas, por vezes nos limitamos a explorar a perspectiva da violência armada,
por sua característica imediatista e pelo grande impacto que esses eventos de conflitos
armados geram na população e em profissionais de saúde. No entanto, para conseguirmos
olhar para este fenômeno de forma mais integral, é necessário ampliar a lente de observação,
incluindo a percepção das origens e fatores perpetuadores desse tipo de violência, assim como
as consequências diretas e indiretas que provoca nessas pessoas.

A Antropologia médica tem muito a contribuir nesse processo de ampliação da


perspectiva do olhar da saúde para o sofrimento humano e sua relação com o adoecimento.
Segundo Kleinman et al (1997), sofrimento é uma condição humana que tem um caráter de
indissociabilidade entre suas dimensões física, psicológica, mental e espiritual, e precisa ser
considerado sempre dentro do contexto sociocultural em que está inserido. (KLEINMAN et
al, 1997)

O Sofrimento social, termo cunhado pela antropologia, visa entender o sofrimento


tanto em sua perspectiva individual quanto coletiva e a partir das diversas interações da
população com o meio em que ela está inserida. Segundo Kleinman, a definição de sofrimento
36
social seria o resultado de danos devastadores que a força social inflige na experiência
humana. ((KLEINMAN et al, 1997)

Assim, o olhar antropológico para esse fenômeno se volta fundamentalmente para os


processos sociais, políticos, culturais e econômicos que, combinados, engendram
formas corporificadas de sofrimento e para como essas formas corporificadas de
sofrimento também contribuem para a especificidade da vida social (VICTORA,
2011, p. 4).

Ao relacionar o sofrimento humano com a violência estrutural, Farmer (2009) nos


convida a refletir sobre os motivos que levam a academia a subvalorizar o sofrimento da
população marginalizada (aqui entendido como população favelizada) em pesquisas
científicas. Ressalta que qualquer característica distintiva, seja ela social ou biológica, pode
ser considerada como um pretexto para discriminação e, assim, provocar alguma forma de
sofrimento ou desconforto para pesquisadores e grupos pesquisados. (FARMER, 2009)

Em outra análise, propõe que o sofrimento de indivíduos cujas lutas se assemelham


com as nossas, tende a nos mobilizar mais, enquanto o sofrimento daqueles que estão
distantes no aspecto geográfico, de gênero, raça ou cultura tende a nos afetar menos. Por
último, recorda o quanto a população mais pobre, vítima recorrente da violência estrutural é,
por essa mesma estrutura, silenciada e sofre anonimamente na maioria das vezes. (FARMER,
2009)

Ao fazer essa avaliação, Farmer (2009) evidencia mais uma vez o abismo social
existente entre a maioria dos profissionais de saúde médicas e médicos e a população
favelizada no nosso país, fruto da desigualdade social vigente e das diferentes oportunidades
ofertadas para cada um desses grupos. A atitude empática e a capacidade de compreender as
demandas e anseios da população favelizada, por vezes fica prejudicada por essa barreira que
não deve ser, mas tende a ser muitas vezes intransponível, provocando o que Valla chama de
crise de interpretação. (VALLA, 1994)

O estado de emergência permanente, o sofrimento difuso e o apoio social

A corporificação do sofrimento, muitas vezes, é decodificada no campo da saúde,


como doenças ou ainda, como o que Valla intitulou de sofrimento difuso, que seria, em suas
palavras:

(...)um problema que vem sendo levado pelas classes populares aos serviços de
saúde: a queixa designada pelo nome de “sofrimento difuso”, apresentada, segundo
alguns profissionais, por seis em cada dez pacientes. (...) Queixa sobre dores de
cabeça, dores em outros locais do corpo, medo, ansiedade – sintomas para os quais o

37
sistema de saúde não dispõe nem de tempo, nem de recursos para tratar. O resultado
é a medicalização do problema. (VALLA, 2002, p.19)

Uma questão complexa, que sinaliza de forma objetiva o quanto o olhar estritamente
biomédico da saúde não tem condições de oferecer ajuda eficaz para esses casos.

Para uma melhor compreensão do sofrimento ao qual as populações favelizadas estão


submetidas, Valla e Stotz (1999) se utilizam de um outro termo: estado de emergência
permanente, que é por eles definido pelas cotidianas emergências à que as classes populares
estão submetidas. (VALLA e STOTZ,1999).

Diferente do estado de emergência que é como a mídia conveniou chamar eventos


passageiros que assolam toda a sociedade, como enchentes ou blecautes por exemplo, para
muitos moradores de favelas e periferias, as condições de vida estão constantemente
vinculadas com este estado de emergência permanente através da distribuição irregular de
água, do difícil acesso às unidades de saúde, da exposição permanente aos conflitos armados e
às balas “perdidas”, de buscar ganhar a sobrevivência através do mercado informal em
processo de saturação, entre outras questões que contribuem para o aumento do estresse,
angústia e medo dessa população. (VALLA, 2005)

Segundo Castel (2005), quando o Estado deixa de prover o cuidado a que se propõe, a
população sofre de forma significativa, minando sua estrutura psíquica e promovendo
dissociações sociais. Ao falar sobre esse sentimento de não poder pensar o presente e planejar
o futuro, vivenciado de forma recorrente pelas classes populares, o autor cunha o termo
insegurança permanente, que define como

não poder nem controlar o presente, nem antecipar positivamente o futuro. É a


famosa imprevidência das classes populares incansavelmente denunciada pelos
moralistas do século XIX. Mas como poderia aquele que é corroído todos os dias
pela insegurança projetar-se no futuro e planejar sua vida? A insegurança social faz
desta vida um combate pela sobrevivência dia após dia, cuja saída é cada vez mais
incerta (CASTEL, 2005, p.531).

Em sua tese de doutorado, Vital da Cunha (2009), compara o contexto da França do


século XIX à que Castel se refere com a história de nosso país. Diferente do contexto a partir
do qual Castel elabora suas análises, no Brasil, um Estado de Bem-Estar social nunca foi
experimentado por toda sua população. O Estado Democrático, ao mal distribuir os bens de
cidadania por grupos sociais, não desenvolveu ações que garantissem a universalidade e
qualidade dos serviços públicos prestados à sociedade. A insegurança e a vulnerabilidade
social no Brasil atravessam a experiência cotidiana de grande parte da população (VITAL da
CUNHA, 2009).
38
É de extrema importância ainda ressaltar a relevância de contemplar a questão da
aflição pessoal ou grupal simultaneamente aos processos que estão além do controle
individual, mas que tem implicações diretas no cotidiano das pessoas. Esse forte componente
da coletividade no que se refere às causas e efeitos do sofrimento social que o olhar
antropológico nos oferece é fundamental para perceber alguns mecanismos de organização
local que independem do Estado, mas que oferecem formas de apoio social.

Vital da Cunha (2009) reconhece que, como forma de sobreviver subjetiva e


objetivamente em territórios com intenso sofrimento social, os moradores de comunidades
acionam tanto os laços primordiais que seriam os laços de consanguinidade, afinidade natural,
espiritual ou comunitária como as redes de solidariedade, que seriam redes formais e
informais como a associação de moradores, grupos culturais e religiosos e afirma que, ao se
estudar esses laços, é possível ampliar a compreensão de valores, relações políticas, formas de
sociabilidade e estratégias de vida dessas comunidades. (VITAL da CUNHA, 2009)

Uma outra forma de perceber e denominar esses laços de solidariedade estabelecidos


em comunidades que sofrem com a violência e o sofrimento social seria por apoio social.
Conceitua-se apoio social como sendo qualquer informação, falada ou não, e/ou auxílio
material oferecido por grupos e/ou pessoas que se conhecem e que resultam em efeitos
emocionais e/ou comportamentos positivos. Trata-se de um processo recíproco, ou seja, que
gera efeitos positivos tanto para o recipiente, como também para quem oferece o apoio, dessa
forma permitindo que ambos tenham mais sentido de controle sobre suas vidas.
Essencialmente, o debate acerca da questão do apoio social se baseia em investigações que
apontam para o papel deste na manutenção de saúde, na prevenção contra doença e como
forma de facilitar a convalescença. (VALLA, 1999)

A proposta central do apoio social é que, quando as pessoas sentem que contam com o
apoio de um grupo de pessoas (associação, vizinhança, igreja, por exemplo), isso tem o efeito
de causar melhora em sua saúde. Esse apoio normalmente ocorre, de forma sistemática, entre
pessoas que se conhecem, razão pela qual frequentemente envolve uma instituição ou
entidade como pano de fundo. (VALLA, 2001)

O associativismo religioso fortemente encontrado nas áreas marginalizadas da


sociedade, principalmente onde o Estado se faz mais ausente tende a se comportar como um
mecanismo potente de apoio social, através do qual a população busca um caminho para
atenuação do sofrimento provocado pela vulnerabilidade social em que se encontra inserida.
39
Ribeiro e Minayo (2014), puderam perceber como a religião pode exercer um papel de
apoio eficaz na vivência de situações adversas, de interferência positiva no ambiente e de
colaboração no ajustamento dos presos em situação de encarceramento. Segundo as autoras, a
religião contribuiria para diminuir a vulnerabilidade a estressores, provendo sentido e
coerência de vida e teria ainda papel importante na construção de expectativas de futuro, na
promoção da esperança e na motivação para mudança desses indivíduos encarcerados
(RIBEIRO E MINAYO, 2014).

A essa percepção das autoras do quanto a religião pode influenciar positivamente o


comportamento de pessoas encarceradas, traço um paralelo para o quanto esses mesmos
aspectos podem se fazer presentes na vida dos moradores de favelas como o Jacarezinho, que,
por mais que não estejam encarcerados, estão constantemente com seus direitos humanos
cerceados pela violência estrutural.

Um outro aspecto importante que Ribeiro e Minayo trazem por meio de uma extensa
revisão bibliográfica, diz respeito às atividades coletivas de socialização que as organizações
religiosas propõem:

No trabalho religioso destaca-se o papel das comunidades morais, dando forma ao


grupo e desenvolvendo ações de prevenção e de reabilitação que operam
exitosamente como controle social. A comunidade provê suporte e espaço para a
reafirmação de crenças, reforçando ou substituindo a sociabilidade que o indivíduo
havia construído no grupo ao qual pertencia anteriormente. (...) a religião se torna,
para muitos, uma estratégia de afastamento ou de abandono do envolvimento com a
violência e a entrada em uma vida pautada por novas regras, quase sempre tratadas
como preceitos divinos (RIBEIRO E MINAYO, 2014, p.1786).

Esse aspecto da sociabilidade que as religiões promovem também dialogam com a


falta de oferta de atividades sociais para os moradores de comunidades periféricas como o
Jacarezinho. A falta de atividades culturais, de esporte e lazer oferecidas pelo Estado nessa
região, pode contribuir para que os moradores vejam nas ofertas de sociabilidade das
instituições religiosas, espaços seguros de interação social com outros moradores locais.

Reinaldo (2016), em um estudo que relaciona o sofrimento mental com as instituições


religiosas como forma de apoio social afirma

O que a pessoa em sofrimento procura nas agências religiosas, seja qual for sua
orientação, é aceitação, acolhimento, continência e sentimento de pertença diante de
um mundo que nem sempre o compreende (p.542).

e ainda
O elemento motivador para procurar o alento da religião é o sofrimento, quando o
sofredor encontra esse alento ele permanece fiel ao local e às pessoas que encontrou
e lhe proporcionaram tal sentimento. (p.543)
40
Espiritualidade, religiosidade e saúde
Existe consenso entre cientistas sociais, filósofos e psicólogos sociais de que a
religião é um importante fator de significação e ordenação da vida, sendo
fundamental em momentos de maior impacto na vida das pessoas. Os problemas
espirituais, afetivos e sociais são demandas importantes na vida de qualquer um, e a
principal delas, é o problema de saúde, motivo pelo qual as pessoas recorrem ao
santuário e aos santos como se estes fossem uma espécie de “pronto socorro” de
atendimento integral” (MURAKAMI,2012, p.362)

A experiência do sagrado sempre mobilizou o ser humano, dando significado e


propósito para a vulnerabilidade característica da vida, cujos mistérios, experiências abstratas
e subjetivas foram traduzidas em valores, crenças e mitos. Tais fatos influenciaram o
aparecimento de diversas religiões capazes de oferecer conforto espiritual, orientação e
satisfação emocional (TAVARES et al, 2016)

Espiritualidade tem o significado etimológico de sopro de vida. O termo relaciona-se


com o significado da vida e à razão de viver, com a busca pela transcendência e com a
concepção de que há mais na vida do que aquilo que pode ser visto ou plenamente entendido.
Spiritus em latim, que dá origem a palavra espiritualidade, significa a parte essencial da
pessoa que controla a mente e o corpo. Espiritualidade é também um caminho para suportar
sentimento de culpa, raiva, medo, impotência e ansiedade. A religião é uma expressão da
espiritualidade, mas não seu sinônimo. (CASTILHO, 2015; MURAKAMI, 2012).

Religião por sua vez, pode ser definida por um sistema de crenças e práticas
relacionadas ao transcendente, observadas por uma determinada comunidade, sustentada por
rituais e valores que reconhecem, idolatram, comunicam-se com, ou aproximam-se do
sagrado, do divino. Em geral, são compostas por uma doutrina, que representa um conjunto de
crenças e mitos sobre a origem do cosmos, o sentido da vida, da morte, do sofrimento e do
além; ritos e cerimônias, que empregam e atualizam símbolos religiosos; um sistema ético,
com leis, proibições e regras de conduta; e por último, uma comunidade de fiéis, com
diferentes tipos de líderes e sacerdotes, que estão mais ou menos convencidos das crenças e
que seguem os preceitos dessa religião (CASTILHO, 2015; MURAKAMI, 2012).

Para Marx, a religião nada mais é do que a realização fantástica do ser humano
enquanto ser que não tem a verdadeira realidade. Ela desempenha o papel de sanção moral,
consolação e justificação universal para sociedades em que se produz opressão e hierarquia
em sua estrutura organizacional. Na perspectiva materialista histórica de Marx, que analisa o
mundo sob a ótica do modo de produção e da organização das estruturas sociais a partir deste,
41
a religião se apresenta como expressão máxima da miséria real e o protesto contra ela
(MARX, 2010).

É o ópio do povo. A verdadeira felicidade do povo implica que a religião seja


suprimida, enquanto felicidade ilusória do povo. A exigência de abandonar as
ilusões sobre sua condição é a exigência de abandonar uma condição que necessita
de ilusões. Por conseguinte, a crítica da religião é o germe da crítica do vale de
lágrimas que a religião envolve numa auréola de santidade. A crítica arrancou as
flores imaginárias que enfeitavam as cadeias, não para que o homem use as cadeias
sem qualquer fantasia ou consolação, mas para que se liberte das cadeias e apanhe a
flor viva. A crítica da religião desengana o homem para que este pense, aja e
organize sua realidade como um homem desenganado que recobrou a razão a fim de
girar em torno de si mesmo e, portanto, de seu verdadeiro sol. A religião é apenas
um sol fictício que se desloca em torno do homem enquanto este não se move em
torno de si mesmo." (p.145-147)

O sociólogo Weber faz uma outra leitura de religião, considerando-a, não como fruto
da racionalidade prática da humanidade, mas sim como um conjunto de símbolos por onde
grupos humanos formulam a razão de ser da vida e do mundo em que vivem. Na medida em
que a religião produz a perda de consciência do mundo humano como socialmente construído
e mantido, assume papel de agente privilegiado na alienação social. (GIGANTE, 2013)

Weber propõe que a singularidade da civilização ocidental moderna está intimamente


relacionada com a combinação de processos como a racionalização, o desencantamento com o
mundo e a secularização. Sugere uma análise articulada entre estratificação social e filiação
religiosa, como a magia e o campesinato, o sistema de castas e a doutrina do karma ou ainda o
protestantismo ascético e a insurgência da classe média burguesa capitalista. (GIGANTE,
2013)

Para Weber, mais importante do que o produto cultural religioso, o poder que este
exerce sobre a mente e o modo de viver a vida das pessoas que é principal aspecto de sua
análise. Assim, considera que o protestantismo calvinista foi fundamental para o
desenvolvimento e estabelecimento do Capitalismo econômico na idade moderna.
(GIGANTE, 2013)

Durkheim defende que o indivíduo precisa ser entendido a partir do meio social e não
ao contrário. Sugere que a racionalidade humana está mais densamente vinculada a bases do
campo emocional do que racional, demandando assim uma cosmologia e solidariedade pré
contratual. (COSTA, 2017)

Analisa assim, a religião sob a ótica da consciência coletiva. Para ele, a religião é um
sistema social que une indivíduos em uma comunidade moral, definida pelos seus aspectos

42
exteriores: crenças, ritos e práticas. Distingue ainda magia e religião, por entender que,
embora as duas tratem de coisas sagradas, a magia estaria mais para a ordem do indivíduo e a
religião para a ordem do coletivo. (COSTA, 2017)

Há uma emoção profunda de origem que para Durkheim é reativada nos ritos, sendo
que reativar não é repetir. A experiência de origem, ao passar por um trabalho de
simbolização, socializa-se e é universalizada, ou ainda, domesticada. E ele ainda diz
que, nesse percurso, algo pode se degenerar. (COSTA, 2017, p.8)

A religiosidade, por sua vez compreende as ações (institucionalizadas, ritualizadas e


ideológicas) desempenhadas ou experienciadas pelo indivíduo, relacionadas com sua crença
religiosa.

Allport (1967) sugeriu a classificação mais utilizada no meio acadêmico para a


orientação religiosa, considerando seu aspecto moral, em dois tipos: a intrínseca e a
extrínseca. Na religiosidade intrínseca o indivíduo apresenta uma fé bem amadurecida,
procurando viver de acordo com os princípios doutrinários que acredita, harmonizando suas
necessidades e interesses às suas crenças, apresentando um relacionamento saudável com a
sua religião e comprometimento com ela, já que o princípio motivador de suas atitudes se
encontra na própria religião, que atribui significado à vida. Na religiosidade extrínseca, a
religião é utilizada como um meio para atingir outros fins, benefícios exteriores de status,
segurança e distração. A pessoa, nesse caso, se volta ao sagrado, mas sem desapegar-se de si,
com a religião ocupando um lugar superficial na vida. Ao estabelecer uma comparação entre
as duas orientações, os extrínsecos se utilizam da religião enquanto os intrínsecos a
experienciam (ALLPORT e ROSS, 1967).

Segundo Brelsford et al (2015), fatores estressores, correspondem a respostas físicas,


mentais e emocionais que se apresentam diante do encontro com alguma mudança na vida. Os
recursos desenvolvidos para lidar com esses fatores, vão se relacionar de forma significativa
com os efeitos destes sobre a saúde de cada indivíduo. (BRELSFORD, 2015)

Diversos mecanismos de enfrentamento (coping) têm sido relatados e pesquisados no


meio acadêmico devido a sua forte interação com as consequências decorrentes de eventos
estressores. Segundo Park et al (2012), a maioria dos estudos tem dividido os mecanismos em
dois grandes grupos: Enfrentamento Focado em Problema (compreendido por esforços ativos
para controlar ou minimizar efeitos estressores) e Enfrentamento Focado em Emoção
(Envolvendo aceitação dos fatores estressores e estratégias para controlar as consequências

43
emocionais do fator estressor). Ainda segundo os autores, melhores resultados têm sido
percebidos com o uso do Enfrentamento Focado em Problemas. (PARK et al, 2012)

No contexto de enfrentamento, religiosidade e espiritualidade têm sido consideradas


um capítulo de especial interesse, não apenas por sua grande prevalência, mas também devido
à sua pluralidade de aspectos. Entre idosos, grupos minoritários e oprimidos e indivíduos
enfrentando crises com ameaça a vida, a religião é citada mais frequentemente do que
qualquer outro mecanismo como forma de enfrentamento. (PARGAMENT et al, 2000).

Perdão religioso, apoio espiritual, enfrentamento religioso colaborativo, conexão


espiritual, purificação religiosa e enquadramento religioso benevolente são considerados
padrões positivos de enfrentamento, enquanto descontentamento religioso, reenquadramento
punitivo, descontentamento religioso interpessoal, reenquadramento demonizante e
reenquadramento do poder de Deus são considerados padrões negativos de enfrentamento. Os
aspectos positivos e negativos do enfrentamento religioso são de especial interesse para a
academia, devido a relação que guardam com resultados melhores ou piores diante de grandes
eventos estressores. (PARGAMENT et al. 1998)

Somente em 1999, através de uma emenda constitucional, o conceito multidisciplinar


de saúde passou a incluir o âmbito espiritual (CASTILHO, 2015). Este, que é um aspecto tão
vivo e presente na cultura brasileira ainda é muito pouco valorizado e reconhecido pelo setor
profissional de saúde de uma maneira geral.

Parte dessa dificuldade em lidar com a dimensão espiritual está relacionada com a
ruptura, na idade moderna, com a tradicional filosofia religiosa, que cede lugar ao surgimento
e fortalecimento da filosofia científica. A negação da dimensão subjetiva e intersubjetiva no
encontro clínico biomédico, também dificulta a abordagem desse aspecto. Fato é que essa
dimensão do indivíduo e da sociedade contribui significativamente para o processo de saúde e
adoecimento da população e para as formas e símbolos como se entende doenças, sofrimento
e cuidado.

O Pentecostalismo
O Pentecostalismo e a Nova Ordem Mundial
De meados da década de 80 para os dias atuais, o mundo tem vivenciado dois
fenômenos que, talvez não por acaso, ocorrem em paralelo: A globalização do mercado
econômico com a Nova Ordem Mundial e o acentuado crescimento da religião evangélica

44
pentecostal em todo o mundo, mas principalmente nas regiões consideradas
subdesenvolvidas, como nos países da América Latina e África. (ARENARI, 2017)

Com a acentuada mudança econômica, política (redemocratização em quase todos os


países do terceiro mundo) e social (o rápido processo de urbanização e o avanço do uso de
tecnologias e a velocidade das informações) dos últimos quarenta anos, uma nova classe
social emerge nesse cenário: a classe dominada do capitalismo periférico - a massa de
trabalhadores excluída da expansão capitalista, que fica na periferia, à margem desse sistema
opressor e gerador de iniquidades.

Há quem defenda que a religiosidade pentecostal está diretamente relacionada com o


surgimento e desenvolvimento desse novo tipo social na história do capitalismo. O
pentecostalismo seria lido como a expressão religiosa por excelência de uma classe social
com maior presença numérica em sociedades periféricas. (CORTEN, 1996)

Assumindo o papel de religião das classes dominadas do capitalismo periférico, o


pentecostalismo não teria apenas assimilado o modelo religioso das classes dominadas à
estrutura do cristianismo, mas também seria responsável por recriar facetas marcantes deste
tipo de religiosidade. O pentecostalismo se estabeleceu em um local social específico, e
procurou dar respostas religiosas para o drama social coletivo desta nova classe social.

O pentecostalismo toma para si, via linguagem religiosa, a realização das principais
promessas modernas que não se efetivaram para uma parcela significativa da
população. Para além de confortos psicológicos oferecidos por quase todas as
religiões, as noções de inclusão (o valor moderno de igualdade), ascensão social
(mobilidade) e modelos de vida individual (individualismo) aparece como o pano de
fundo das promessas salvíficas do pentecostalismo. Desenvolve-se, desse modo, um
modelo de salvação intramundana em que a força de Deus se confirma na vida
cotidiana e na promoção das promessas modernas para uma gente que a
modernidade não integrou plenamente. Os subintegrados na vida social, econômica
e nos padrões étnicos das primeiras expansões da sociedade moderna encontraram
no pentecostalismo um discurso que atendesse a seus dramas e a suas ansiedades
coletivas. Nisto, o pentecostalismo se tornou o cristianismo dos negros e mestiços,
dos pobres e todos os outros que se sentiam deslocados naquele mundo em que
viviam, mas sabiam que não faziam parte. Em outras palavras, podemos afirmar que
essas novas religiosidades são as respostas religiosas para os novos desafios e as
demandas sociais enfrentadas pelos novos grupos sociais. (ARENARI, 2017, p. 188)

No século 20 umas das mais extraordinárias transformações religiosas ocorreu na


América Latina. Até o final do século XIX, quase todos os latino americanos eram católicos
romanos. Mais recentemente, em dados de 2001, 11% dessa população se declara evangélica
e por volta de 40% de todos os membros da religião pentecostal no mundo se encontravam na
América Latina (De MATVIUK, 2002).

45
O protestantismo surge na Europa no século XVI organizado por Martinho Lutero,
que, incomodado com as disparidades entre os princípios bíblicos e a prática católica,
postulou as Noventa e Cinco teses na porta da Igreja do Castelo. Lutero foi excomungado
quando suas teses chegaram até Roma. Na Alemanha de Lutero, os cristãos reformados que se
opunham a Roma eram chamados de protestantes. Entre esse grupo, os cristãos chamavam-se
por evangélicos, como o fazem ainda hoje.

Ao contrário do que acreditava a fé católica, os protestantes acreditam que podem se


colocar diretamente perante a Deus, sem a necessidade de intermediação do clero. Além disso
reconhecem que a salvação se dá exclusivamente pela fé em Jesus Cristo. Todos os cristãos
seguem Jesus Cristo e a Bíblia, mas existe entre eles, diferenciações na forma de organização,
práticas e crenças. (SILVEIRA, 2008)

A Europa foi palco de guerra entre católicos e protestantes, e esses foram em grande
quantitativo perseguidos e mortos. Foi nesse contexto que muitos protestantes migraram para
os Estado Unidos da América (EUA).

Breve história do pentecostalismo no Brasil


O Brasil é um país constitucionalmente laico. No entanto a cultura brasileira pós
colonização, como ocorreu por toda a América Latina, foi construída com forte influência da
religião católica, com seu conjunto de ritos, símbolos e crenças.

No século XIX, o protestantismo chega ao Brasil como consequência dos processos


migratórios, quando europeus (Alemãs) migram para o país e fundam uma igreja evangélica
protestante, e também por via das atividades missionárias no país, que traz missionários dos
EUA e da Europa para o Brasil que fundam a Igreja Congregacional do Brasil e a Igreja
Presbiteriana do Brasil. Posteriormente outra denominações evangélicas históricas (batista e
anglicanos) também chegam ao Brasil. (SILVEIRA, 2008)

O pentecostalismo surge como um movimento iluminista dentro do protestantismo. O


nome advém do dia de Pentecostes, dia em que o Espírito Santo desce sobre os apóstolos, o
que marca importante característica do movimento: a crença e fé no Espírito Santo.

O pentecostalismo chega ao Brasil por volta dos anos de 1910 e 1911. Em 1910 foi
fundada a Congregação Cristã do Brasil, cujo fundador, um Italiano que era membro da Igreja
Presbiteriana, converteu-se a denominação pentecostal nos EUA. A Congregação Cristã
ganhou público entre os imigrantes italianos de São Paulo e do Paraná e foi a primeira igreja
46
pentecostal brasileira. Embora muito importante, essa igreja não chegou a sair dos meios da
imigração italiana. (CORTEN, 1996; FIGUEIRA, 1996)

Em 1911 é fundada no Brasil a Assembleia de Deus, na região Norte do País, em


Belém do Pará. Seus fundadores, dois irmãos Suecos, membros da Igreja Batista, foram
convertidos ao pentecostalismo nos EUA. No Brasil, inicialmente participaram de forma ativa
na igreja Batista, até que, por discordâncias de suas práticas dentro da denominação histórica,
foram expulsos da mesma. Parte das práticas que motivaram a expulsão dos irmãos, foi o uso
da glossolalia nos cultos, isto é, a prática de falar em línguas incompreensíveis, motivadas
pela manifestação do Espírito Santo. A experiência do falar em línguas propagou-se entre as
classes mais populares da cidade rapidamente e, em 1911, os irmãos suecos fundam então a
primeira Assembleia de Deus do Brasil. Já na década de 40, a denominação ultrapassa em
importância a Congregação Cristã no Brasil e até hoje situa-se como uma das principais,
senão a principal, igreja evangélica pentecostal no Brasil e no mundo. (CORTEN 1996)

Entre as décadas de 10, 20 e 30, o pentecostalismo cresceu e se consolidou entre as


classes mais populares do país. Entre outros fatores, esse crescimento acelerado seria fruto do
fenômeno que Rolim chamou de nucleação, em que fiéis pentecostais fundam igrejas sempre
que chegam a um local estranho/novo. Entre as décadas de 50 e 70, em paralelo ao processo
de êxodo rural e urbanização acelerada do país, o pentecostalismo vê seu número de membros
triplicar. (ROLIM, 1985)

O movimento pentecostal em crescente no país, oferecia oportunidade para que


pessoas iletradas e sem qualificação profissional pudessem ascender dentro da igreja,
alcançando postos como o de pastores, antes reservado apenas para os mais educados,
mostrando uma postura claramente antielitista. Em outra análise, como ocorreu com o próprio
movimento de criação da Assembleia de Deus, as igrejas pentecostais eram independentes,
criando núcleos locais de lideranças. (RABUSKE, 2012)

Alguns autores dividem o crescimento pentecostal em três ondas. A primeira onda


sendo marcada pelas igrejas Assembleia de Deus e Congregação Cristã, como anteriormente
mencionadas. A segunda onda, com início por volta dos anos 50, marca a fragmentação e o
surgimento de várias pequenas denominações pentecostais pelo Brasil, tendo como principais
representantes a Igreja do Evangelho Quadrangular, de origem Norte-Americana, a igreja O
Brasil para Cristo, primeira com um fundador brasileiro e a Igreja Pentecostal Deus é Amor,
que atinge as camadas mais pobres da população. Essas duas últimas denominações e muitas
47
outras que surgem nesse período, apresentam um culto com rituais parecidos com os
praticados na Assembleia de Deus, porém as vezes com um teor mais espetacularizado e
arrebatador. Nesse período surge a prática de “cura divina”, que acontece pela imposição das
mãos, sendo este um contato que exprime emoção de compaixão e oferece um poderoso
reconforto, principalmente diante das questões sociais que afligem e adoecem as camadas
mais populares. O sucesso dos efeitos da cura emocional, relaciona-se diretamente com o
estilo de animação do culto da igreja e, por isso, muitas igrejas menores vão surgindo, para
dar conta das diversas formas de animação de culto que os pastores entendem como mais
apropriados. (CORTEN, 1996)

A terceira onda, que ocorre entre as décadas de 70 e 80, é chamada de onda


neopentecostal e tem como principal representação a Igreja Universal do Reino de Deus. Com
enfoque na ferrenha batalha contra o diabo e suas representações terrenas e por pregar a
Teologia da Prosperidade, onde o cristão deve ser próspero, saudável, feliz e vitorioso em
seus empreendimentos terrenos, a onda neopentecostal se difere em muitos aspectos das
primeiras denominações pentecostais aqui mencionadas.

A teologia da prosperidade foi fundada nos EUA em 1940 e passou a ser uma doutrina
considerada a partir da década de 70. Pela Teologia da prosperidade, o cristão entende que
tem direito a saúde perfeita, riqueza material, poder para subjugar Satanás, uma vida plena de
felicidades e sem espaço para problemas. Em contrapartida, espera-se que o cristão não
duvide do recebimento das bênçãos. Nessa Teologia a relação do homem com Deus se dá de
forma recíproca, o cristão faz sua parte, por meio de dízimos, ofertas e evangelização e Deus
cumpre suas promessas. (SILVEIRA M, 2007) Seja pela Teologia da prosperidade ou pela
estrutura organizacional como uma empresa, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
trouxe muitos aspectos inovadores para o ramo pentecostal do protestantismo. Desde então, é
uma das igrejas que cresce de forma mais acelerada no país e no mundo.

A terceira onda traz consigo o avanço televisivo dos testemunhos. Cabe ressaltar que o
televangelismo não é de uso inédito das denominações pentecostais, outras denominações
anteriormente fundadas já se utilizavam dessa tecnologia, mas o uso proselitista das mídias
eletrônicas é mais acentuado na terceira onda pentecostal. Na terceira onda, a atividade
televisiva apresenta uma forte intencionalidade proselitista e de incentivo a curiosidade das
pessoas. A televisão tem a função de apresentar e levantar interesse das pessoas para que, uma
vez na igreja, estes possam ser arrebatados pela emoção religiosa.

48
Em 2015, pela primeira vez no Brasil, um pastor da denominação evangélica
neopentecostal IURD foi eleito para um cargo executivo. Marcelo Crivella, ou bispo Crivella,
como é reconhecido dentre os pentecostais da IURD, foi eleito prefeito de uma das principais
cidades do Brasil, o Rio de Janeiro, com larga margem de vantagem no segundo turno.

A marcada presença de evangélicos neopentecostais no campo político partidário,


parece contrapor um dos fundamentos iniciais da Assembleia de Deus quando à época de sua
criação, de estar distante das disputas e representações políticas.

A mobilização pela emoção.


O pentecostalismo leva os próprios pobres, esses pobres esmagados pela dor, a um
grande movimento de júbilo, de entusiasmo, de alegria divina. O pentecostalismo
que não para de crescer no Brasil e no conjunto do Terceiro Mundo, reivindica
experiência-emoção como sendo do domínio religioso (CORTEN, 1996, p.45).

O pentecostalismo propõe o batismo no Espírito Santo, sendo este uma experiência de


contato com Deus, de sentimento do Divino. Essa experiência e sentimento manifesta-se na
glossolalia (falar em línguas). O culto pentecostal é um culto em primeiro lugar de louvação à
Deus, de emoção, de arrebatamento. É um espaço de sentir, de vivenciar a presença do
Espírito Santo em coletividade.

São três marcos necessários para se pertencer plenamente ao pentecostalismo. O


primeiro seria o marco de aceitar Jesus como Salvador; O segundo seria o batismo nas águas,
cerimônia que acontece dentro do culto religioso; o terceiro, que seria o batismo de fogo, é a
irrupção da glossolalia e significaria o reconhecimento do fiel pela divindade. Este último
pode acontecer logo após o primeiro marco ou muito tempo depois que o fiel já está inserido
na denominação.

A música e os cantos que acontecem nos cultos pentecostais ajudam a alcançar e


prolongar o estado emocional, uma vez que o falar em línguas não ocorre com todos os
membros do culto e não dura muito tempo. Com auxílio de diversos instrumentos e estilos
musicais e com a alternância entre cantos e palavras que aparecem de forma ilocutória, sem
linearidade e desconexas, a musicalidade contribui para fazer do culto um acontecimento, tal
como a sensação que se tem ao sair de uma peça de teatro.

Corten aponta que algumas correntes de estudiosos defendem que o pentecostalismo


surge como corrente dissidente da religião evangélica metodista, no entanto, outros, como
MacRobert, apontam que esse movimento tenha raízes originárias africana. Três seriam os
elementos que poderiam justificar essa relação com África: o elemento geográfico, por seu
49
desenvolvimento de maneira geral no Terceiro Mundo – no Brasil, na América Latina, e na
África; o elemento antropológico, que constata uma influência africana nos clamores, na
glossolalia, aplausos, batidas de pés, tripúdios, saltinhos, dança, entre outros que são
praticados nas religiões da África Ocidental e nas correntes pentecostais; e o elemento
histórico, que lembra a forma como o metodismo foi adaptado e vivido nas igrejas negras
americanas antes e depois a abolição da escravatura nos EUA, aponta a fundação do
pentecostalismo por um norte americano afrodescendente negro, William J. Seymour, bem
como sua rápida difusão entre o público afro-americanos. MacRobert, ao propor essa
influência africana como importante e fundamental, não nega a origem metodista do
pentecostalismo, mas ressalta a importância de considerar essa relação multicultural na
análise do surgimento e consolidação do movimento pentecostal. (MACROBERT apud
CORTEN, 1996)

Em sua chegada ao contexto brasileiro, o pentecostalismo passou também por um


processo de transnacionalização, adaptando-se a cultura religiosa vigente no país (CORTEN,
1996). Entender as raízes africanas em sua origem e algumas similaridades com as práticas e
o público alcançado pelas religiões de matriz africana no Brasil, pode ajudar a compreender a
relação que se estabeleceu entre pentecostais e as religiões de matriz africana.

O pentecostalismo e a relação com as demais religiões brasileiras


Segundo Corten, ao ouvir os televangélicos, tem-se a impressão de verdadeira guerra
contra a umbanda e o candomblé, religiões de matriz africana, que surgem no Brasil em
decorrência do período escravocrata, que trouxe milhões de pessoas negras do continente
africano de diferentes grupos culturais para serem escravizados no Brasil por mais de três
séculos. (CORTEN, 1996)

Os cultos de matriz africana representavam para os negros escravizados um retorno


para a África, para suas origens e cultura. Nesses cultos, está presente um sistema de crenças
em que figuram as forças da natureza. As forças boas, - orixás- e as forças ruins -exus-. O
transe em que estas forças se revelam, pode ser comparado com o estado de consciência
alterado que ocorre no momento do falar em línguas para os pentecostais. Os cultos de matriz
africana assemelham-se mais aos rituais dos cultos pentecostais do que ao catolicismo.
(CORTEN, 1996)

50
O catolicismo num primeiro momento rechaça e reprime essas religiões de matriz
africana para, num segundo momento, se acomodar a elas. O catolicismo se coloca como a
verdadeira cabeça das denominações de Umbanda e Candomblé que seriam inferiores a ele.

enquanto o catolicismo mantinha sempre, quer pela repressão, quer pela


condescendência sua hegemonia sobre os pobres, os pentecostais estão engajados
numa luta a mãos nuas, numa luta corpo a corpo com as religiões afro-brasileiras.
(CORTEN, 1996, p.55-56)

Disputando espaço entre as classes mais populares do Brasil, que é historicamente


composta por pessoas negras em sua maioria, o pentecostalismo declara guerra às religiões de
matriz africana com quem disputa o mesmo público. O pentecostalismo está em guerra contra
as superstições. O exorcismo costuma ser o momento crucial de confrontação, por este meio,
os pentecostais expulsam os demônios dos fiéis em vias de conversão e afirmam a
predominância religiosa na luta entre o bem e o mal. O demônio convocado nessas cenas, que
costumam ser dramáticas, é o “santo” das religiões de matriz africana. Por um lado, ao fazer
esses rituais, as denominações pentecostais, diferentemente da religião católica, reconhecem a
existência dessas entidades espirituais que povoam as crenças afro-brasileiras e fazem parte
do universo dos pobres.

A demonização das religiões de matriz africana e as práticas rituais que em muito se


assemelham, mostram tal disputa de público. Nesse contexto, a sociedade brasileira vai
gradativamente percebendo seus terreiros de umbanda e candomblé diminuindo de
quantidade, enquanto acompanha o crescimento da população negra e pobre entre os fiéis
pentecostais.

Alguns historiadores afirmam que o pentecostalismo guarda associação com o


movimento católico da Teologia da Libertação, sendo que o movimento pentecostal toma o
lugar das Comunidades Eclesiásticas de Base, (CEBs) por mais que essas guardem diferenças
importantes entre si. Se na CEBS acreditava-se no papel político da religião e na troca de
saberes pela troca de palavras, no pentecostalismo defende-se a não politização da religião, a
mobilização pela emoção. Por mais que sejam significativamente diferentes, entender uma
como evolução da outra, implica em compreender o movimento das classes populares nesse
cenário. (CORTEN, 1996)

Ainda em relação a guerra às religiões, o pentecostalismo se opõe às superstições do


catolicismo popular, às crenças e valorizações de imagens e referências às santas e santos da
igreja católica.

51
O pentecostalismo, embora carregue características do catolicismo popular e das
religiões de matriz africana em sua cultura e símbolos, representa uma radical ruptura social
com as religiões anteriores. Para Mafra (2009), o pentecostalismo, ao contrário das demais
religiões, não investe no fracassado modelo relacional que propõe diálogo com as classes
superiores para a resolução de grandes ou pequenos problemas cotidianos para as classes
marginalizadas. (MAFRA, 2009)

Essa ruptura pentecostal responde à mensagem contraditória enviada pela própria


metrópole aos habitantes das periferias e favelas, insistindo em um caminho de
desinvestimento completo no modelo relacional e, com isso, de renovação do
cristianismo. O catolicismo tradicional e as religiões afro-brasileiras, por seu
imbricamento com o modelo relacional, são incapazes de produzir essa ruptura.
(p.144)

O pentecostalismo cresce, sobretudo, na pobreza e na periferia das regiões


metropolitanas. Seus fiéis concentram-se majoritariamente na base da pirâmide
socioeconômica. Comparados à média da população brasileira, os pentecostais congregam
mais mulheres do que homens, mais crianças e adolescentes do que adultos, mais negros,
pardos e indígenas do que brancos, apresentam maior proporção de pessoas com cursos de
alfabetização de adultos, antigo primário e primeiro grau, ocupam mais empregos domésticos
e precários e, em sua maioria, recebem até três salários mínimos. (MARIANO, 2008).

52
METODOLOGIA
Para a realização desta pesquisa, optei pela abordagem qualitativa, capaz de alcançar
um nível mais profundo das ações, relações, processos e fenômenos, que não são perceptíveis
ou captáveis em análises estatísticas (MINAYO, 2002).

Como médica de família e comunidade inserida no campo estudado, a comunidade do


Jacarezinho, de forma profissional desde março de 2015, e “oficialmente” como pesquisadora
desde fevereiro de 2017, escolhi observar de forma crítico reflexiva um fenômeno local
específico, qual seja as relações entre o sofrimento, a violência, o papel e crescimento das
igrejas evangélicas pentecostais no território e sua inter-relação com a saúde e o bem-estar da
população. Acredito que a partir deste estudo, será possível construir diálogos mais frutíferos
com a prática profissional de cuidado em saúde na atenção primária para a população
moradora deste território.

O caminho metodológico de escolha foi a pesquisa etnográfica, que se entende por


uma atividade de pesquisa no terreno por prolongados períodos, com contato direto com o
objeto de estudo, seguido pela sistematização em formato de texto da experiência. Mas além
da longa estada no terreno, a pesquisa etnográfica não é o espaço empírico no qual se pretende
aplicar ou avaliar uma teoria antropológica. Trata-se de uma atividade durante a qual vai
sendo construído o saber teórico conjuntamente à coleta dos dados (PIZZA, 2005). Assim,
não é somente um método de pesquisa, mas um processo conduzido com sensibilidade
reflexiva, tomando em conta a própria experiência no campo junto às pessoas com as quais o
antropólogo trabalha (GEERTZ, 1989).

Estudar um terreno onde já me insiro há algum tempo exigiu o esforço de poder


estranhar aquilo que já me era familiar. Por outro lado, as desigualdades socioculturais
existentes entre a minha história de vida e a realidade imposta à comunidade que trabalho e
me propus investigar, me permite um contínuo estranhamento daquilo que não me é familiar
ou natural, e sim exótico. Nas palavras de Velho (1978):

O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não necessariamente
conhecido, e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto,
conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos
como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente (p.126),

e ainda
O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de
confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e
interpretações existentes a respeito de fatos, situações (p. 131).

53
Com esse constante movimento de aproximar e afastar o olhar de forma
reflexiva para o objeto de estudo, procurei conseguir manter esse estranhamento do familiar,
sem que isso gerasse um afastamento prejudicial ao estudo.

O estudo etnográfico aborda o fenômeno ou o processo particular, mas sem que se


exclua este processo da totalidade maior que o determina e com o qual mantém certas formas
de relacionamento. Metodologicamente, implica em complementar a informação de campo
com aquela relativa a ordens sociais presentes e buscar interpretações e explicações a partir de
elementos externos à situação particular (ROCKWELL, 1986).

A etnografia, através de entrevistas semi estruturadas (vide roteiro no anexo B), com
consentimento livre e esclarecido dos entrevistados (vide anexo A), e de diálogos informais
no dia a dia com usuários da clínica da família e com outros atores do território, foi o método
através do qual a pesquisa buscou se aproximar de conceituações e ideias que a comunidade
organiza e estrutura em relação ao sofrimento, à violência, ao papel e crescimento das igrejas
evangélicas pentecostais no território e sua inter-relação com a saúde e o bem-estar da
população. O diário de campo foi usado de forma a registrar o que foi por mim visto,
vivenciado e discutido com moradores do território, provocando um estado de constante
reflexão crítica da experiência vivida e um diálogo com a teoria acadêmica trazida pelos
referenciais teóricos previamente apresentados.

Foram realizadas entrevistas semiestruturadas, com perguntas abertas sobre saúde,


violência e atuação em denominações pentecostais. As entrevistas foram realizadas com
moradores da comunidade do Jacarezinho, cadastrados na Clínica da Família Anthidio Dias
da Silveira e atuantes em denominações evangélicas pentecostais. Alguns dos entrevistados
são, além de moradores, trabalhadores da clínica da família na condição de agentes
comunitários de saúde. Quando os participantes da pesquisa eram também pacientes da
pesquisadora, como parte do processo, foi tomado o cuidado ético de garantir que as
entrevistas gravadas ocorressem fora do espaço de consulta médica com a pesquisadora.

A pesquisa não se debruça sobre aspectos específicos de cada uma das diversas
religiões pentecostais presentes na comunidade, busca uma percepção mais ampla sobre
aspectos do pentecostalismo compartilhados entre elas e que interajam diretamente com o
processo de significação do sofrimento social a que estão submetidos os moradores do
Jacarezinho.

54
Dentre os moradores entrevistados, foram incluídos, homens, mulheres, pastores,
membros que participam de algum grupo nas igrejas ou que apenas frequentam os cultos,
jovens, idosos, membros recentes e antigos de diferentes denominações evangélicas
pentecostais, com predominância da Assembléia de Deus, denominação da maioria dos
participantes da pesquisa , ainda que de diferentes filiais.

As entrevistas foram gravadas e posteriormente transcritas. Após ler e ouvi-las


repetidamente, apresento alguns tópicos relevantes que surgiram em consonância com os
diários de campo realizados ao longo da pesquisa.

Para a apresentação dos resultados e discussão, após a caracterização dos participantes


da pesquisa e do campo estudado, optei por separar o texto em quatro partes. Na primeira,
exploro a percepção de saúde dos moradores da comunidade do Jacarezinho, que são também
membros ativos em Igrejas evangélicas pentecostais, e como esta percepção dialoga com os
conceitos que a medicina e a APS utilizam; na segunda parte, exploro as sensações e
percepções desses moradores sobre o nascer e viver no Jacarezinho, reconhecendo a
perspectiva deste grupo sobre as violências a que estão submetidos cotidianamente. Na
terceira parte, debruço-me sobre a relação que se estabelece entre a comunidade e as igrejas
evangélicas pentecostais, sob a perspectiva dos moradores que são membros destas
denominações. Nesta parte, procuro explorar os aspectos mais recorrentes, apresentados tanto
no diário de campo como nas entrevistas. Por último, na quarta parte, faço uma discussão de
como as três primeiras partes dialogam com a prática de cuidado ofertada na Atenção
Primária à Saúde. Nessa parte, um pouco mais reflexiva, procuro traçar conexões entre as
percepções de saúde dos participantes da pesquisa, o nascer e viver no Jacarezinho e a
cosmologia Pentecostal com as ferramentas utilizadas pela MFC no âmbito da APS.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo comitê de ética em pesquisa da Secretaria de


Saúde do município do Rio de Janeiro sob o parecer de número: 91328218.8.3001.5279.
Todos os nomes aqui mencionados, são fictícios.

55
CAPITULO II
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A quantidade de conhecimentos, de novas e diferentes percepções sobre situações já
conhecidas, a significação e ressignificação dada para os processos vivenciados e os caminhos
escolhidos para lidar com a violência estrutural a que estão submetidos os moradores do
Jacarezinho, possibilitou a identificação de uma ampla gama de aspectos para serem melhor
analisados.

Cabe ressaltar que, como essa pesquisa de campo se debruça em ouvir e entender as
percepções de um grupo – os evangélicos pentecostais – não podemos generalizar suas
percepções, signos e símbolos para toda a comunidade do Jacarezinho, nem tampouco para
todas as populações favelizadas da cidade do Rio de Janeiro. Cada território vivo carrega
consigo uma história, que vai modificar sua cultura e modo de interpretar e lidar com as
diferentes situações que se apresentam. Mesmo com algumas aproximações, cada grupo social
inserido em um território apresenta especificidades que não podem, com a generalização,
correr o risco de serem invisibilizadas.

Nessa pesquisa, não tenho a intenção de reduzir a pluralidade das religiões evangélicas
pentecostais a uma coisa única, visto que cada denominação pentecostal carrega consigo uma
fé, uma doutrina e um contrato de convivência específicos e essas diferenças influenciam na
percepção de cada grupo sobre os modos de viver a religião. Me propus a ouvir
frequentadores ativos de variadas denominações pentecostais, buscando alguns aspectos que
puderam ser percebidos nas entrevistas e nos diários de campo, de uma maneira ampla e geral,
sobre questões às quais pretendo me debruçar para pensar as relações com o cuidado em
Atenção Primária à Saúde.

A vivência da religião evangélica pentecostal, como em todas as outras religiões, pode


apresentar aspectos que influenciam de maneira positiva ou negativa a vida de seus
seguidores. Não é a proposta dessa pesquisa etnográfica julgar moralmente a Igreja e aqueles
que a ela recorrem, por mais que isso possa se manifestar pelo olhar sempre parcial de quem
pesquisa. Nesse estudo busco conhecer, me familiarizar com os símbolos, com a cosmologia,
com as formas de organizar respostas e de produzir resiliência e resistência, compartilhadas
pelos pentecostais do Jacarezinho.

Nesta segunda parte, opto por apresentar os resultados da pesquisa de campo em


conjunto com as discussões que o campo suscitou. Faço essa opção por compreender a não

56
assepsia dos resultados e para explicitar a escolha por cada uma das categorias construídas e
escolhidas.

Antes de apresentar as quatro partes da análise realizada, faço uma breve apresentação
dos personagens entrevistados que são citados ao longo do texto; faço também uma
caracterização do campo de pesquisa, a partir de dados estatísticos em conjunto com minha
perspectiva do campo já em modificação pela instalação do processo de pesquisa e pelo
contato com os moradores e entrevistados.

Para facilitar a leitura e compreensão dos fragmentos de entrevistas trazidos, ao longo


dessa segunda parte, quando me referir a igreja com letra maiúscula (Igreja), estarei me
referindo às instituições evangélicas pentecostais como um todo, como a maior parte dos
participantes da pesquisa fez ao longo do processo.

Além das entrevistas realizadas, o diário de campo, construído a partir de minha


experiência etnográfica, também será utilizado ao longo desta parte.

OS PARTICIPANTES ENTREVISTADOS
Dentre os participantes da pesquisa, foram entrevistados 13 mulheres e 05 homens,
entre 31 e 65 anos, com diferentes papéis nas cinco denominações pentecostais das quais são
membros (Tabela 1).

Os participantes entrevistados foram escolhidos a partir de uma conversa minha com


todos os agentes comunitários de saúde (ACS) da Clínica da Família Anthidio Dias da
Silveira, onde expliquei sobre minha intenção de fazer a pesquisa, o tema e os objetivos desta.
Nessa conversa, pedi ajuda para levantar nomes de pessoas moradoras da comunidade que
fossem membros de Igrejas evangélicas pentecostais. Elucidei algumas dúvidas sobre a não
necessidade de ser participantes apenas de Igrejas dentro do território e sobre a não
necessidade de serem pessoas necessariamente frequentadoras da Clínica da Família. Me
foram então apontadas pessoas que os ACS entenderam que seria interessante que eu ouvisse
e conversasse. Foram sugeridos nomes de pastores e pastoras, pessoas convertidas nos últimos
anos, pessoas que cresceram nas Igrejas e alguns ACS também se ofereceram para participar
da pesquisa.

Entrei em contato com muitos dos nomes sugeridos, alguns não faziam parte de Igrejas
evangélicas pentecostais, outros poucos não se sentiram à vontade em participar da pesquisa.
Com alguns dos que se sentiram confortáveis em participar, marquei entrevistas em horário e
57
local mais confortáveis para cada um. É interessante ressaltar que, para muitos dos
entrevistados, o próprio espaço da clínica era esse local mais confortável. Com alguns, não
consegui marcar e realizar entrevistas, seja por falta de agenda ou por imprevistos pessoais de
cada um, mas as trocas e diálogos que ocorreram tanto por telefone, como pessoalmente,
foram registradas em diário de campo, para que não fossem perdidas as contribuições dessas
pessoas. Dentre os entrevistados, todos estavam cadastrados em alguma das unidades básicas
de saúde que cobrem o território do Jacarezinho, ainda que alguns deles não as
frequentassem.

No diário de campo anotei impressões sobre o comportamento e a comunicação não


verbal dos participantes, durante as entrevistas. Com frequência, ocorreram momentos em que
os entrevistados se emocionaram ao falar sobre o território ou sobre o percurso dentro da
Igreja. Pude notar, em diversas ocasiões, mudanças na postura e na forma de falar de muitos,
quando a entrevista deixava de abordar aspectos sobre o território e passava ao tema da Igreja.
Essa percepção me gerou grandes reflexões sobre autoestima e pertencimento, que exploro
mais adiante, na segunda e terceira parte.

Do grupo de entrevistados, alguns referem desempenhar atividades de liderança na


Igreja, como pastores e presbíteros, outros relatam participar ativamente em grupos de
mulheres ou apoiar grupos de crianças. Muitos referem ser membros e se engajar em algumas
atividades da igreja, mas não sentem-se à vontade para se dizer parte de um grupo ou se
colocar como obreiro da Igreja, reconhecendo que essas são atividades de grande
responsabilidade. É importante pontuar que, dentre os membros entrevistados, muitos
passaram por mais de uma denominação evangélica pentecostal ao longo da vida, essa troca
de Igrejas, realizada pela maioria dos entrevistados, será também um tema explorado mais a
frente.

Aproximadamente um terço das pessoas entrevistadas na pesquisa, são agentes


comunitárias de saúde. Em algumas dessas entrevistas, aparece um paralelo entre o trabalho
realizado como ACS e o trabalho de acolhimento e comunhão realizados na Igreja. É
interessante perceber as aproximações de oferta de cuidado feita pela APS e pelas Igrejas com
alguma naturalidade para esse grupo de entrevistados, e ainda, como em alguns momentos
aparecem borrados os dois limites de atuação das duas funções. A participação dos ACS, que
atuam nas Igrejas seja como pastor ou membros foi de suma importância para as reflexões
realizadas na quarta parte deste capítulo.

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Tabela 1: Dados sociodemográficos dos participantes entrevistados.
IDADE PAPEL DENTRO DA IGREJA
IGREJA
Entrevistada A 35 Membro Assembleia de Deus
Entrevistada B 46 Membro Leão de Judá
Entrevistada C 47 Grupo de Mulheres Igreja Batista Pentecostal Restaurando
Vidas
Entrevistada D 31 Membro Igreja Batista em Renovação Espiritual
Nova Jerusalém.
Entrevistada E 62 Pastora Assembleia de Deus
Entrevistada F 65 Membro IURD
Entrevistado G 31 Obreiro IURD
Entrevistado H 54 Pastor Assembleia de Deus
Entrevistado I 40 Pastor Assembleia de Deus
Entrevistado J 45 Presbítero Assembleia de Deus
Entrevistada K 54 Membro IURD
Entrevistada L 44 Membro Igreja Batista Renovada
Entrevistada M 38 Membro Congregacional Pentecostal
Entrevistada N 36 Escola dominical de Congregacional Pentecostal
crianças
Entrevistada O 49 Pastora Igreja Batista Pentecostal Restaurando
Vidas
Entrevistada P 53 Grupo de Mulheres Igreja Batista Pentecostal Restaurando
Vidas
Entrevistada Q 43 Membro Assembleia de Deus
Entrevistado R 58 Obreiro IURD

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DESCREVENDO O JACAREZINHO
Ao atravessar a Avenida Dom Hélder Câmara ou Suburbana, poucas pessoas podem
imaginar que algumas de suas ruas perpendiculares permitem acesso para a favela do
Jacarezinho. Logo ali, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, em frente ao complexo de
favelas de Manguinhos e em frente ao extenso território da Cidade da Polícia, situa-se uma
comunidade densamente povoada e historicamente negligenciada pelo Estado.

O município do Rio de Janeiro, de acordo com o Instituto Pereira Passos (IPP) é


dividido em cinco grandes áreas (Central, Zona Sul, Zona Norte, Barra/Jacarepaguá e Zona
Oeste) e conta com trinta e três regiões administrativas. O que o Instituto Brasileiro de
Geografia e Estatística (IBGE) considera e classifica como Aglomerados Subnormais no
Brasil, no Rio de Janeiro convencionou-se chamar pelo nome popularmente já utilizado:
favela. São inúmeras e heterogêneas as favelas existentes no município, sendo algumas
urbanizadas, outras em processo de urbanização e outras não urbanizadas, para citar uma das
perspectivas que as diferenciam. Outra perspectiva seria a quantidade de pessoas morando
nessas favelas e se estas são constituídas em complexos de favelas (como complexo do
Alemão, Maré e Manguinhos) ou em apenas uma grande favela, como é o caso do Jacarezinho
e da Rocinha.

O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) considera o Jacarezinho uma


das Regiões Administrativas (RA) da cidade. Entre os mais de 37 mil moradores dessa RA,
89% vivem em favela, sendo o maior percentual de moradores de favela dentre as RA do
município, que conta com, entre outras, Rocinha, Complexo do Alemão e Complexo da Maré
e Cidade de Deus.

Dirigindo pela Avenida Suburbana, no sentido centro, chama a atenção a inusitada


placa “Evite -virar à direita- em dias de chuva, risco de alagamento” que aponta para o acesso
ao Buraco do Lacerda, desnível que conecta a Avenida Dom Hélder Câmara à Rua Bráulio
Cordeiro, fundada em 1960, quando Carlos Lacerda era o Governador do Estado da
Guanabara. Se por um lado, a placa demonstra uma preocupação do Estado com as pessoas
que trafegam na Suburbana em seus carros indo de um lado à outro da cidade, por outro,
evidencia a negligência perpetuada com os cidadãos que ali, naquela curva à direita proibida,
vivem e sofrem cotidianamente com as chuvas, alagamentos e enchentes.

Ainda olhando de fora, independentemente da época do ano, na entrada principal da


comunidade está sempre estendida uma faixa-convite para a “Marcha para Jesus no
60
Jacarezinho”, evento organizado por um conjunto de igrejas evangélicas locais, que ocorre
anualmente no dia 7 de setembro nas ruas da comunidade.

Na entrada, uma quantidade enorme de pequenos comércios e vendinhas se espalham


pela rua principal, chamada pelos moradores de prainha, estimulando grande fluxo de pessoas
de dentro e fora da comunidade na região. Além dos comércios e das pessoas, uma grande
quantidade de mototáxis e carros circulam na rua principal, que não é estreita, mas parece
pequena demais para o fluxo intenso de pessoas que por ali passa. Em lojas físicas de
alvenaria, no andar de baixo de um prédio de dois ou três andares ou em tendinhas, frutas,
roupas, eletrônicos, eletrodomésticos, móveis, farmácias, vendinhas, papelarias, lanchonetes,
pensões, restaurantes, salões de beleza, açougues, aviários... a pluralidade de pessoas e ofertas
de serviços dão o tom e o cheiro de um dia de semana qualquer na prainha.

Entrando pela prainha ou pelo Buraco do Lacerda, muitas são as vielas estreitas que
dão acesso a outras vielas ainda mais estreitas repletas de construções de alvenaria, numa
arquitetura que em muito difere do que se vê no asfalto. Pouco espaço entre as casas, paredes
que bloqueiam a circulação de ar, construções de prédios que desafiam a engenharia e
microespaços que se tornam lar para famílias inteiras e numerosas. Andar pelo Jacarezinho
sem a companhia de um morador ou um conhecedor da região torna-se assim uma missão
quase impossível.

A origem do nome Jacarezinho tem duas teorias contadas por seus moradores. Em
ambas, o rio Jacaré que nasce na Tijuca, no morro do Elefante e atravessa os bairros do
Jacaré, Méier, Engenho Novo e Triagem, comunicando-se com a favela vizinha, Manguinhos,
até chegar na Baía de Guanabara pelo Canal de Cunha, onde deságua está presente. Para uns,
Jacaré, derivado do termo “Yacaré”, que significa aquilo que é torto e sinuoso teria sido o
nome escolhido para batizar o rio que atravessa a cidade com todas suas curvas e
tortuosidades. Para outros moradores, o nome teria sido escolhido por moradores que
encontraram, no rio da região, dois jacarés. (OLIVEIRA, 2018) Na década de 40, o rio Jacaré
foi aterrado para a construção da Avenida Brasil, sendo hoje invisível para a população.

Antes de ser conhecida como Jacarezinho, a região era conhecida por outros nomes,
Estação de Vieira Fazenda, Mato do Padre Paulo e Morro da Titica foram alguns desses
nomes, de acordo com os moradores.

61
Em relatos, conta-se que, no processo de ocupação da região do Jacarezinho, foram
encontrados grilhões de escravos e ossos, resgatando o que teria sido um quilombo.
Informações mais precisas sobre isso, assim como boa parte da história negra brasileira, não
existe de forma oficial.

A Favela do Jacarezinho, como quase todas do Rio de Janeiro, começa a ganhar forma
na década de 20, com o processo de industrialização do bairro do Méier. Em 1940, após a
Segunda Guerra Mundial, a acentuada instalação de indústrias e grandes empresas na região
foi um forte chamariz para pessoas do Brasil inteiro, mas principalmente da região do
Nordeste, mudarem-se para o bairro à procura de empregos e oportunidades de carreira.

Além da grande oferta de empregos, outro fator que contribuiu para o rápido
crescimento e adensamento da região foi sua localização estrategicamente privilegiada na
cidade. Próximo ao centro, à linha ferroviária que cruza a comunidade e com acesso fácil às
grandes avenidas da cidade. Até os dias de hoje, essa posição estratégica chama a atenção.
São poucos metros de distância entre a comunidade e as linhas Amarela e Vermelha, a
Avenida Brasil e a Avenida Suburbana, facilitando o acesso do local para qualquer ponto da
cidade.

Os moradores do Jacarezinho passaram por diversas tentativas de remoção da


comunidade, seja por interesse de empresas ou do próprio Estado, descontentes com o rápido
crescimento da região. Não demorou muito para que os moradores entendessem a necessidade
se organizar comunitariamente para lutar pela garantia de seus direitos de cidadãos, luta essa
que se perpetua até os dias atuais.

Em uma dessas tentativas de desapropriação do território, líderes locais se


organizaram para pedir ajuda ao então presidente do País, Getúlio Vargas para manter a
concessão do terreno. No final da década de 40, Vargas concede a permanência dos
moradores e ainda promove junto ao então Governador, Carlos Lacerda, a ida de muitas
indústrias para o local, transformando o Jacarezinho no segundo maior polo industrial da
cidade. Até os dias de hoje, uma das principais ruas da comunidade recebe o nome de Darcy
Vargas, em homenagem a esposa do ex-presidente.

Se o crescimento do polo industrial ocorreu de forma acelerada, foi na mesma


velocidade que a comunidade acompanhou o processo de transferência e falência de muitas
empresas da região. Da década de 70 para os dias atuais, a quantidade de indústrias

62
metalúrgicas na região, por exemplo, caiu pela metade. A crise do petróleo, que ocorreu na
década de 90, provocando a transferência de grandes empresas como a General Eletrics (GE)
da região, o enorme vácuo na oferta de empregos e o grande adensamento populacional,
fizeram com que a comunidade mudasse sua característica de polo industrial para o polo de
comércio e serviços que reconhecemos nos dias de hoje.

Toda a necessidade de resistência e de organização comunitária em meio as ausências


do Estado, evoca uma relação muito sólida entre os moradores do Jacarezinho e o território.
Um exemplo simbólico dessa relação foi com o programa Mutirão, que ocorreu na década de
80, sendo um projeto de obras de infraestrutura essenciais para o melhoramento da favela. No
programa, o Governo custeia materiais necessários para as obras de esgotamento sanitário,
drenagem e pavimentação de ruas e a mão de obra utilizada era dos próprios moradores do
local. É comum ouvir dos moradores que “No Jacarezinho, o esgoto foi construído pelas
nossas próprias mãos, cada um puxando de um lado e todo mundo junto.”

Com o crescimento acelerado que a comunidade viveu, ficaram poucos espaços


amplos e abertos no território do Jacarezinho para os moradores. O campo da GE (Área que
era da empresa General Eletrics e que está abandonada desde o fechamento de sua unidade no
jacarezinho), o campo de futebol do abóbora e a quadra da escola de samba Unidos do
Jacarezinho são algumas dessas poucas referências. A falta de espaços ao ar livre costuma ser
reclamação recorrente entre moradores locais, que sentem falta de lugares para fazer
atividades física e para que as crianças possam brincar.

Se faltam espaços abertos por um lado, não faltam placas sinalizando igrejas pequenas
ou grandes espalhadas por todo o território. Com mais de setenta igrejas evangélicas e duas
igrejas católicas (matriz e filial), as igrejas locais, muitas vezes, cumprem esse papel de
ofertar espaço para convívio social e lazer para crianças, adolescentes, adultos e idosos.

Logo na entrada da prainha, uma barricada de buracos e ferros se posicionam de forma


estratégica para dificultar a passagem de carros grandes (como o carro blindado – caveirão -
da polícia militar), sinalizando que aquele território não é acessível para qualquer pessoa.

Segundo contam os moradores, o tráfico de drogas ganhou força e organização no


Jacarezinho durante o regime da Ditadura Militar, quando muitas pessoas migraram para a
comunidade numa tentativa de se esconder do sistema violento e opressor vigente no país. É
nesse contexto de interlocução entre refugiados políticos e pequenos traficantes locais que

63
surge o Comando Vermelho, facção ainda dominante no território. Na década de 80 o tráfico
já exercia presença marcante, mas foi com a virada do século XXI que a atividade vivenciou
um intenso crescimento. Não raramente, quando se fala na comunidade do Jacarezinho hoje
em dia nos veículos midiáticos, o teor é sempre a questão do narcotráfico e os conflitos
armados que a comunidade experiência entre estes e as forças policiais.

De 2000 a 2012 os noticiários frequentes abordando o narcotráfico no Jacarezinho,


estimularam o Estado a implementar uma Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na região. A
presença dessa força policial dentro da comunidade garantiu um período de aparente
tranquilidade entre os anos de 2012 e 2015. Porém, no final do ano de 2015, com a expulsão
da UPP de parte do território, a comunidade passou a vivenciar situações de conflitos ainda
muito piores que as anteriores.

Atualmente a favela do Jacarezinho está dividida entre a parte alta e a parte baixa. Na
parte alta circulam os policiais da UPP cotidianamente com seus fuzis e outros armamentos
pesados. Na parte baixa circulam os jovens “soldados” e “aviões” do tráfico, também com
seus fuzis, pistolas e rádios. Nessa região, uma enorme quantidade de bancas vendendo
drogas ilícitas. Essa divisão do território provoca um tensionamento e instabilidade
constantes. Os moradores precisaram se acostumar a atravessar ruas com policiais do alto
chamando a atenção de jovens do tráfico e esses jovens na parte de baixo fazendo o mesmo
com policiais, estando as pessoas ali, na recorrente iminência de estar no meio de um conflito
armado.

Essa divisão no território, além de provocar um medo constante de que algo vá


acontecer, também dificulta a livre circulação das pessoas pelos territórios. Seja pelo medo,
pelo estranhamento de um lado em relação ao outro, ou para evitar confusões e mal
entendidos para qualquer dos lados, os moradores repetem a queixa de que andar pela
comunidade já não é tarefa tão simples, alguns inclusive relatam essa dificuldade para acessar
a clínica da família, que fica na parte baixa do território

A Clínica da Família Anthídio Dias da Silveira foi inaugurada em 29 de junho de


2011, durante o governo do prefeito Eduardo Paes. A clínica está localizada em um território
que era conhecido na comunidade anteriormente como cena de uso intenso de drogas. A
construção do espaço, que envolve a clínica, e um Espaço de Desenvolvimento Infantil (EDI),
é fruto de luta e conquista dos moradores locais articulados. De forma curiosa, o nome da
Clínica é uma homenagem ao Bispo Anthídio Dias da Silveira, teólogo e assistente social
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nascido em 1918, que iniciou suas atividades de missionário no primeiro templo batista no
Jacarezinho em 1946, na Igreja Vieira Fazenda, localizada na Rua Amaro Rangel. O nome do
EDI homenageia outro líder religioso local, o Padre Nelson Carlos Del Mônaco, considerado
por muitos como um pai para a comunidade. Padre Nelson começou sua atuação no
Jacarezinho em 1955. Em sua missão evangelizadora, envolveu empresas e moradores locais
no sonho de construir uma igreja católica (Igreja Nossa Senhora de Auxiliadora) e um escola
(Colégio Alberto Monteiro de Carvalho - Salesiano). Por volta de 1962, com a ajuda de
muitos, as obras da igreja foram iniciadas e, junto com ela, o pensamento de uma provável
desocupação da comunidade foi desaparecendo entre os moradores.

O Jacarezinho, para além de favela, é hoje considerado um bairro da cidade e


configura-se como a XXIII Região Administrativa do Jacarezinho, deixando de compor a
Região Administrativa de Inhaúma e do Méier.

PRIMEIRA PARTE - A PERCEPÇÃO DE SAÚDE

Em geral, saúde é definida pelos entrevistados como bem-estar, como a sensação de


sentir-se bem consigo mesmo e em paz, em alinhamento com o conceito ampliado da
Organização Mundial de Saúde (1948). Em algumas entrevistas, no entanto, saúde surge
como desdobramento da garantia de alguns direitos humanos fundamentais. O direito de sair
de casa quando necessário, de circular pela comunidade ou de comprar um pão. O direito de
sentir-se em segurança dentro da própria casa ou ainda, o direito de ter acesso a saúde de
forma digna ou de ter certeza que a luz não acabará novamente na próxima chuva ou ventania,
aumentando a chance de queimar algum eletrodoméstico da casa.

Saúde é eu poder fazer o que eu quero. Saúde é o meu direito de ir e vir. De


trabalhar. De poder passear com meu filho. De poder comprar um pão, uma carne.
Coisa simples assim, que tem. Oh, quando entrou a UPP, eu lembro na época, que
muita gente que vivia com a pressão alta não tinha mais. Que vivia vindo aqui com a
pressão alta e seguiam passando mal, pararam de vir. Depois que entrou a UPP, né,
na época, né, lá atrás. Claro que hoje, né. Então pra mim saúde é isso. É você ter o
direito de ir e vir. É você não ter preocupação com... a violência, né, com o tiro ou
com alguma coisa assim. (Entrevistada D)
Por mais que seja ilusória a capacidade de o Estado garantir saúde para todos os
brasileiros, em um país onde saúde está colocada como direito constitucional garantido aos
cidadãos, perceber que uma parcela dessa mesma população sofre pela falta desse e de outros

65
direitos básicos é um importante ponto a ser analisado. Que sensação de pertencimento essa
população desenvolve em relação à cidade que a marginaliza cotidianamente?

É recorrente a associação de ausência de saúde com a enumeração de afecções físicas


e mentais. Essa associação, no entanto, não impede o reconhecimento de saúde como algo
maior, mais amplo e estruturante.

Acho que saúde é bem-estar, de um modo geral. Você só tem saúde se você, se tudo
tiver bem, senão... Se nada na tua vida tiver bem, você não tem saúde. Se não tiver
um bom emprego, não tiver um bom salário, não tiver uma boa casa com paz,
tranquilidade. Não morar num lugar tranquilo, você não tem saúde. Nada. Não deixa
ter saúde? Jacarezinho não deixa ninguém ter saúde. (Entrevistada C)
Durante a pesquisa de campo pude perceber a associação direta que muitos moradores
fazem entre as situações vivenciadas de violências, o sofrimento que elas provocam na pessoa
e o desenvolvimento de sintomas físicos no corpo e doenças. A pressão arterial
descompensada, a diabetes descontrolada, a insônia, a queda de cabelos ou até mesmo lesões
na pele por vezes são associadas, pelos usuários da clínica da família, com a exposição
cotidiana a condições humanas inadequadas. Seria como se o corpo fosse capaz de
corporificar todo aquele sofrimento e, por vezes, ao tornar física essas sensações, esse
sofrimento passa a ser legitimado para a pessoa que sofre e para o meio em que ela está
inserida.

as pessoas ficam descontroladas, as pessoas ficam ansiosas, as pessoas ficam


desesperadas porque não sabem o que você faz até mesmo quando você tá dentro de
casa, isso gera uma ansiedade, isso gera uma doença, pode vir a causar síndrome de
pânico, pode causar uma depressão, por vários outros motivos, fatores, não só
também por tiroteio, mas sim também por ver coisas que a gente não quer ver
entendeu? Isso tudo causa, pode causar sim eu acho que pode causar sim um tipo de
enfermidade que a gente sabe que o que tá matando muito é depressão, as pessoas
não tem mais vontade de sair na rua, só sai mesmo por necessidade, mas quem pode
ficar dentro de casa não sai, porque fica com medo, até mesmo dentro de casa a
gente fica com medo (Entrevistada B).

“já tava vindo um cara todo rebentado, aí entrava no beco, antes de passar
arrebentado eu já pegava uma cerveja, (...)quando eu chegava no serviço e ia
conversar com o meu chefe que eu gostava muito, era pra gente conversar, falava da
viagem eu falava do meu final de semana, ele falou “você tá gritando, você tá
falando alto”, mas eu não sentia, né, quer dizer, comecei a ter problema de pressão
alta, infartei.” (Entrevistada F)

66
Outra dimensão de saúde que aparece por vezes nas entrevistas é a saúde espiritual.
Esta surge como dimensão paralela à saúde física e mental (assim dividida rotineiramente pela
academia e por moradores da comunidade) e com necessidade de ser alimentada e cuidada no
ambiente religioso, na vivência da fé e nas atitudes do dia a dia para consigo e para com
outras pessoas.

Relaciono saúde à parte física, no momento tô pensando nisso. Porque tem saúde
espiritual, a gente sabe. Né? Tem pessoas que eu já fui visitar em hospitais em que
as pessoas nos confortam. Ao invés de nós levarmos conforto, eles estão mais
inteiros, felizes, mais dispostos espiritualmente do que a gente. A gente pensa que
vamos encontrá-la moribunda, e tal, mas está com aquela força. (Entrevistada D)

SEGUNDA PARTE - Crescer e Viver no Jacarezinho


Infância, oportunidades e ausências
Crescer no Jacarezinho é a experiência da maior parte dos entrevistados e de
moradores da comunidade de uma maneira geral. Muitos são os moradores que sempre
estiveram no Jacarezinho, ali cresceram e seguem vivendo e criando suas famílias na mesma
região. Outros tantos passam por mudanças de endereço, ao longo da vida, dentro do próprio
território. A migração para fora e interna na comunidade acontece com uma frequência baixa,
produzindo um grande quantitativo de idosos que passam a vida inteira na comunidade e
vivenciam toda sua história e suas modificações.

Em uma das entrevistas, O relata uma significativa mudança do cenário do


Jacarezinho da época em que era criança, na década de 70, para os tempos atuais, revelando
memórias de infância muito diferentes daquelas que imagina que seu filho terá e apontando
mudanças que percebeu na dinâmica da comunidade.

“A gente ficava até madrugada na rua, jogando bola, não tinha problema nenhum.
Aí a pessoa dizia " ah, vocês gostam de morar na comunidade". Havia um bandido
que alimentava, que dava presente, que toda confusãozinha de marido que bateu ele
ia lá e resolvia na conversa ou às vezes até metia um pau e hoje...nada se compara a
violência de hoje. Jacarezinho de hoje, não tem nada a ver, nada a ver... infelizmente
assim, eu falo pros meus filhos: vocês não sabem nem o que é morar em
comunidade. Hoje eu tenho medo de deixar meu filho ficar até de madrugada, eu
não deixo, coisa que a minha mãe podia dormir que eu tava ali jogando bola,
jogando queimado” (Entrevistada O)

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Dos anos 80 em diante, em virtude do acelerado processo de industrialização
capitalista, urbanização e produção de uma periferia moderna, a acentuação das desigualdades
sociais, que atinge de forma flagrante os países da América Latina e África contribui
diretamente para o aumento e fortalecimento das ações de violência de resistência e
delinquência nesses países.

A experiência de viver em um território socialmente marginalizado é trazida em


relatos que apontam a exposição constante a armamentos pesados, o uso e venda de drogas
ilícitas nas ruas e vielas e a observação não intencional de situações de brutalidade física
como alguns atravessamentos cotidianos para essas pessoas.

“Quando eu vejo esses caras armados passando nas motos num lugar que eu queria
morar e que sempre a preferência são deles. Sabe, as vezes chega até a jogar a moto
para cima da gente, às vezes até machuca e a gente não pode nem falar nada, tudo
armado. Sabe, tudo me agride como pessoa, por eu não ter um lugar legal para
morar, a gente não tem um lugar legal para passear, porque tudo envolve drogas
sempre, tudo envolve droga, o melhor frango assado você tem que andar um pedaço
para comprar e você só vê droga e muitos drogados. (Entrevistada K)”

“ aí quando ele fazia assim (Em uma das pontas do beco, um gritava para o outro:
“Vai morrer um”), já tava vindo um cara todo arrebentado, aí entrava no beco, antes
de passar arrebentado, eu já pegava uma cerveja, que a carne tremia (...) Você tá
muito bem, daqui a pouco passa aquela pessoa toda amarrada, já era para morrer, e
aquilo, e bebia, e bebia, pra poder as carnes parar de tremer, então muita violência
aqui, eu fico apavorada, então quando a gente passa e que vê uma coisa, eu já fico
apavorada, fico doida pra sair dali, né porque você assiste muitas coisa...”
(Entrevistada F)

Na busca por alguma forma de proteção dessas exposições, muitas famílias delimitam
o território de sociabilidade das crianças, com o objetivo de reduzir o contato com o meio
social local, compreendido como promotor de comportamentos desviantes da norma
socialmente aceita, por estimular o contato com o mundo do tráfico, das armas e das drogas.
“Porque minha mãe não deixava eu brincar na rua, eu não conhecia o morro, eu não
conhecia a favela. Eu vim conhecer os becos daqui de baixo depois que eu comecei
a trabalhar aqui (Na Clínica da Família). Minha mãe nunca deixou eu ir em um baile
aqui dentro, porque é um... como vou explicar, é um ambiente muito propício a você
estar sempre fazendo coisa errada. Então se você não tiver uma boa formação da sua

68
família, já começando daí, você pira, você já vai pelo caminho errado. Entendeu?”
(Entrevistada A)

A sensação de medo aparece como vivência traumática para muitas das famílias que
criam seus filhos na comunidade, onde a ausência do Estado e a desigualdade de direitos se
manifesta mais acentuadamente. No diário de campo, aparece com frequência em conversas
de corredor e diálogos pela comunidade, a angústia de criar filhos nesse ambiente, lido como
inadequado e violento para crianças. Como evitar exposição as armas e as barracas de vendas
de drogas, como evitar a exposição a situações de agressões físicas na rua ou como proteger
as crianças da experiência traumática de ouvir ou estar no meio de um confronto armado na
rua são preocupações que aparecem rotineiramente entre moradores que estão
responsabilizados pela criação de crianças. Para os responsáveis por adolescentes, outras
angústias se somam: como estimular e valorizar a independência destes, quando não se tem
segurança para andar ou estar nas ruas da comunidade, como permitir a socialização do jovem
com outros jovens do território, quando a principal atividade de lazer na região são os bares, o
baile e a rua. Para muitas famílias, os caminhos que aparecem como possíveis para a criação
dos filhos passam a ser o de cercear o trânsito pela e com a comunidade ou o de oferecer um
espaço e socialização considerados seguro e moralmente aceito – a Igreja.

A percepção de favela como ambiente perigoso e produtor de violência é socialmente


construída, multiplicada pelo senso comum e sustentada na grande mídia televisiva, de
maneira sistemática, com notícias sobre ações violentas do narcotráfico em que não há um
cuidado por investigar os fatos de forma correta e neutra como preza o jornalismo
profissional, para noticiar com veracidade as informações divulgadas à população. Esse
desencadear de ideias também tende a ser reproduzido na academia, conforme o fragmento
abaixo:
As autoridades policiais e os jornalistas costumam afirmar que nos bairros pobres da
periferia é onde a violência é mais crua e deflagrada. Isto não quer dizer que os
pobres são, naturalmente, mais violentos. Quer isto significar que o grau de
impotência que lhes foi imposto acua-os de tal forma que, em certos momentos, só
os atos de violência se apresentaram para eles como alternativa de liberação e
sobrevivência. (MORAIS, 2010, p.33)

Por vezes, no trabalho de campo, houve a reprodução dessa teoria de que o meio seria
o responsável por induzir a criminalidade, a violência e a delinquência, como se fosse culpa e
consequência da comunidade do Jacarezinho produzir pessoas violentas e agressivas.

Quando afirmamos que a violência estrutural convida à criminalidade e a ilegalidade,


reforçamos essa teoria do ambiente como promotor de violências. No que tange à mídia, e sua
69
intencionalidade de reproduzir e manter abismos sociais, cabe ressaltar as diferenças no
discurso aplicadas a crimes realizados por pessoas de classes sociais distintas. Enquanto o
menino preto, pobre, favelado é regularmente caracterizado como bandido, marginal,
criminoso violento e inescrupuloso, os crimes realizados por pessoas brancas de classe média
e alta tendem a ser reportados como um erro, uma ação de desespero ou até como doença,
sempre com uma exploração de contexto e explicitação de motivos que permitam trazer
humanidade e empatia do grande público para o ser que comete aquela corrupção ou ato
ilegal.

O Estado e a mídia tendem a tratar a criminalidade e a violência provocadas por


grupos não marginalizados de outra forma. A relação com a justiça e os processos de
encarceramentos não se aplicam da mesma maneira para grupos marginalizados e não
marginalizados e essas diferenças provocam impactos na representação social que se constrói
sobre pobreza e criminalidade.

Há uma maior visibilidade das violências geradas pela população marginalizada e


favelizada, expondo frequentemente a chamada violência de delinquência, que comporta
ações de assaltos, sequestros e tiroteios, culpabilizando uma determinada parcela da
população (pretos, pobres e favelados) por todas as situações que promovem o medo social.
Essa massiva culpabilização de um grupo específico de pessoas, gera ideias como a da teoria
das classes perigosas ou teoria das marginalidades. (STOTZ, 2014).

Há, então, uma tendência em justificar, com a pobreza e a marginalidade, a violência


urbana. Essa tendência se traduz em números, que mostram homens, pretos e pobres como a
maioria absoluta de pessoas encarceradas no país. Para esse perfil de pessoas, ser interpelado
pelo Estado ou reprimido pela polícia torna-se uma condição comum, uma vez que é o perfil
social identificado como classe perigosa. (STOTZ, 2014). Os pobres e pretos, que em sua
maioria não estão na criminalidade, passam a ter que lidar com a condição de ter sua figura
associada a essa imagem negativa.

Foram inúmeras as vezes em que, após operações policiais, dezenas de moradores do


Jacarezinho foram levados para a delegacia, considerados e tratados como culpados para
depois ter a possibilidade de se justificar. Não foi uma ou duas vezes que familiares
procuraram a unidade em desespero por ter um parente inocente preso ou para denunciar as
condições absolutamente desumanas em que familiares encarcerados estavam (e estão)
vivendo nos presídios.
70
Ter a imagem social atrelada à criminalidade, crescer em um território visto como
produtor de pessoas agressivas e violentas, e imaginar a cadeia ou o narcotráfico como
caminho natural ou esperado, se traduz em uma carga de sofrimento considerável. Quando o
discurso acadêmico e midiático passa a fazer parte da construção de identidade da própria
população marginalizada, perde-se potencialidades e oportunidades. Por vezes os
entrevistados identificam o caminho da Igreja como sendo a alternativa possível para evitar
esse futuro pré-determinado para si.

O fragmento de texto de A, acima colocado, representa a internalização dessa


perspectiva, por parte de moradores de favelas, que também são sujeitos construídos
socialmente. É cruel ao passo que culpabiliza o ambiente e as pessoas, que assim como a
pessoa entrevistada, são marginalizadas e oprimidas por um sistema que é, por essência,
desigual e mantenedor dessas desigualdades como forma de manter sua estrutura econômica e
funcionalidade.
Por outro lado, como expõe B, outros moradores conseguem avaliar a situação de
uma maneira mais sistêmica, compreendendo que o problema não está necessariamente nos
moradores da favela em si, mas naqueles que se beneficiam com a existência dela e com as
desigualdades sociais que esta representa.
“o povo quer culpar os meninos que estão lá dentro, aí fica difícil, né? Porque eles
(as classes economicamente dominantes no país) não saem de lá de dentro da
comunidade, eles levam as coisas grandes, as patricinhas. Quem que movimenta a
comunidade? Como movimenta o tráfico de drogas? É os grandões, por isso que eu
sei, eu tenho quase certeza que não vai mudar, o país da gente não vai mudar, sabe
por quê? Porque vem um de lá de dentro de lá de cima, os altos. Nós somos esses
daqui o que a gente vai mudar? O que? Na verdade, na verdade o tráfico é
gerenciado pelos grandes, não é pelos pequenos, os pobres chega lá? Chega, mas o
que mesmo que banca tudo são os grandes e isso que tá gerando as violências
porque é roubo toda hora é furto é morre daqui, morre de lá e faz aqui, faz aqui
porque tá cada vez pior...” (Entrevistada B)

“Só que a gente sabe que também isso teria como acabar. Não acaba porque tem
forças muito maiores que isso. Porque a polícia tem como acabar com isso, não
acaba porquê de uma forma ou de outra tem alguém que leva alguma coisa aí em
cima, né, do tráfico. Porque eles ganham em cima disso. Não só a polícia, mas muita
gente acima, delegado, muita gente acima. E quem sofre infelizmente são os
moradores, né. A população.” (Entrevistada D)

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A falta de oportunidades e ofertas de atividades culturais dentro da comunidade são
pontuadas com frequência e denotam grande insatisfação para os moradores entrevistados.
Seja para crianças, jovens, adultos ou idosos, o que se tem de oferta na comunidade parece
muito aquém do que percebe como necessário e/ou esperado.

“Se a pessoa não tem estudo, não fala um idioma, a pessoa tem que se inteirar dessas
coisas, né? Procurar estudar pra se formar, fazer faculdade e os jovem daqui, nosso
bairro aqui, tá perdido mesmo, ninguém fala em faculdade, ninguém fala em estudo,
ninguém fala em melhorar nada. A falta de emprego também, a falta de
oportunidade pro jovem. Eu mesmo to com menino em casa que ele tem 22 anos,
né? Agora que ele veio arrumar um trabalhinho lá em Copacabana, numa empresa
de patins, segundo ele, falou que terminando agora esse emprego eles vão contratar
ele pra ele ficar direto, né? Falta de oportunidade, aí as pessoas se entregam à
violência, aos vícios, às drogas.” (Entrevistado H)

“O projeto da parte de baixo é ele (o tráfico) dar um dinheirinho pra criança que fica
ali. Ele vai ficando todo dia, vai ganhando um dinheirinho. Ali ele vai crescendo.
Quando não vê, ficou.” (Entrevistada C)
A opção do Estado, por se fazer presente apenas de forma militarizada em áreas como
o Jacarezinho, é, novamente, apontada pelos entrevistados como um fator que favorece a
manutenção do ciclo de desigualdade, ao tornar a busca pela carreira no tráfico uma das
poucas opções possíveis. A dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho, a falta de
atividades culturais e esportivas que ocupem o tempo ocioso de crianças e jovens e os
permitam conhecer e explorar coisas novas e a ausência de estímulo para produzir, valorizar e
publicizar as atividades culturais produzidas localmente são alguns dos aspectos que
contribuem para essa diminuição de opções.

As possibilidades ofertadas para o morador de favela no Rio de Janeiro hoje, são lidas
como muito estreitas, e isso se reflete na forma como essas pessoas vão se conduzir pelo
mundo. A Igreja, que para as classes média e alta parece castrador a de liberdade, é percebida,
para quem não tem muitas perspectivas de liberdade, como um mundo de oportunidades que
se abre e promove planos e sonhos que podem, de fato, ser alcançados.

Lá (na Igreja) tem um projeto chamado VIDA (nome fictício) e aí as crianças têm a
oportunidade de chegar uma e meia (...) até às cinco. Elas lançam uma palavrinha e
elas ficam. Elas ficam lá a vontade fora dessa violência que a gente acabou de falar
ne? É como se fosse um casulo o VIDA.” (Entrevistada N)

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O espaço protegido para crianças trazido no relato de N, toca em uma questão que,
segundo os moradores, vem transformando as relações na comunidade: a presença de
adolescentes e crianças cada vez mais jovens como participantes do narcotráfico. Para G, “o
Jacarezinho é selva, é terra de leões, vencem os mais fortes. Os adolescentes são só as presas
fáceis (do tráfico e da polícia)”. Nos relatos, a falta de respeito desses jovens para com os
moradores, as atitudes, lidas como intempestivas e infantis, frente as intervenções do Estado
colocando-os e a todos em maior risco e a desesperança de moradores em perceber o futuro de
muitas crianças sendo diretamente atravessado pela carreira no narcotráfico, aparecem com
frequência.

“eu não sei se porque no meu tempo os bandidos não eram, que eu me lembre, era
homens, então eu, com oito anos, eu olhava homens, homens talvez assim vinte e
sete anos. E hoje o que a gente tem é meninos, treze ou quatorze anos. Se não
respeita a mãe, não tem como me respeitar, essa foi a mudança que eles fazem, a
polícia entrar mais, porque eles não...polícia passa quer atirar, quer fazer acontecer
coisa que não tinha.” (Entrevistada O)

“Eu acho que a violência contra as crianças. essas crianças daí de dentro, eu acho
que tem muita violência. Essas meninas novas. sei lá, eu tenho uma menina, uma
adolescente também, tenho muito medo de afetar... Pô, os adolescentes... eu acho
que eles tão se concentrando muito nos adolescentes da comunidade e tipo
assim...antes eu não via muito adolescente em boca de fumo, você não via
adolescente fumando do jeito, essa pessoa hoje em dia de uniforme de colégio aí
dentro fumando carreirinha assim oh, super... entendeu? Eu não via isso.”
(Entrevistada M)

Mundo de dentro e mundo de fora do Jacarezinho


Para alguns moradores, existe uma marcada diferença entre o que se chama de “mundo
de fora” da comunidade do Jacarezinho, que seria a cidade que circunda a comunidade, e o
“mundo de dentro”, a própria comunidade. Para além das diferenças relacionadas com a oferta
de serviços essenciais do Estado, segundo os moradores, a dinâmica social que se estabelece
nesses territórios é diferente, tornando difícil a adaptação em ambos. Estar no mundo de fora e
precisar retornar para o mundo de dentro, ou iniciar atividades no ambiente exterior, se
revelam como um aspecto importante no processo de adoecimento de algumas pessoas. É
frequente o relato de mulheres que passaram a vida inteira trabalhando como domésticas e
morando em casas de outras famílias, fora da comunidade e que, com a chegada da
aposentadoria, não conseguem se adaptar à realidade cotidiana da favela.
73
Algumas pessoas, como a entrevista S, dizem preferir as dinâmicas de dentro da
favela, onde os problemas já são conhecidos, bem como os caminhos para lidar com eles, ao
invés do mundo externo, que apresenta situações desconhecidas, com as quais têm medo de
interagir. Além disso, os entrevistados citam o temor de como serão lidos nos espaços fora da
comunidade, sendo moradores de favela, e a dificuldade em criar rede de apoio e vínculos de
confiança nesses espaços. Muito me chama atenção a sensação de que, mesmo morando em
uma mesma cidade, as pessoas que vivem na favela do Jacarezinho sentem que vivem em um
espaço outro, submetidos a outras regras de conduta e outras leis.

"Vim do Ceará para cá há muitos anos, sou mais carioca que cearense. Não saio
daqui do morro não. A comunidade é legal porque a gente vê as pessoas que
cresceram junto com a gente. Todo mundo se conhece, você se sente em casa. Você
cria uma raiz, isso é muito gostoso. Só é ruim quando tem operação da polícia, que
entra atirando" (entrevistada S)

“E eu achava aquilo ali normal até eu conhecer outras pessoas quando eu sai pro
mercado de trabalho aí eu vi que o mundo não era o meu território Jacarezinho, que
tinha outras oportunidades, existia outro estilo de vida, existia outra perspectiva
depois que eu comecei a sair do jacarezinho para o mercado de trabalho. E
conhecendo esse outro estilo de vida o que eu via dentro do jacarezinho me afetou
muito mais porque eu comecei a ver que aquilo ali não era normal e sim uma
consequência de estilos de vida. Então assim afetou muito, muito mesmo, e hoje
pensando no meu filho eu fico com muito medo do que ele vê e do que fazem com
ele né? Eu fico sempre muito receosa, as vezes acho até que sou meio louca, mas eu
não quero que ele passe o que eu passei, de ter que descobrir só na maturidade o que
é ser normal” (Entrevistada N)

Essa sensação de sofrimento ao lidar com as dinâmicas do mundo de fora da realidade


em que se está inserido permite um paralelo com um movimento que ocorre no meio
pentecostal. Existe uma proposta e uma incitação a evitar a circulação nos espaços não
evangélicos (referidos como mundanos), privilegiando os espaços entre evangélicos
pentecostais, num propósito de evitar que essa população se coloque espiritualmente
vulnerável, ao contactar o mundo exterior, conforme afirma Mafra (2009)

No espaço público da cidade, os crentes podem circular acessando diferentes nichos


de espaço crente - ou seja, locais de recepção e audiência da voz do Espírito Santo -
mas não muito mais que isso se não quiserem se expor e tornarem-se espiritualmente
vulneráveis. Aquela outra cidade, aquela da audiência secular e das pessoas
mundanas, supostamente indiferente à voz do Espírito Santo e, portanto, produtora
constante de perjúrio ao sagrado, deve ser acessada com cuidado (p.149)

74
No período do verão de 2018, uma situação chamou minha atenção: era crescente o
número de arrastões que acontecia nas praias de Leblon e Ipanema, na zona sul do município
do Rio de Janeiro. Os arrastões eram frequentemente associados à linha de ônibus 474 que, na
cidade, fazia o trajeto Jacarezinho – Ipanema. Como caminho para solucionar tal problema, o
Estado achou que a decisão mais acertada seria modificar o trajeto da linha de ônibus, fazendo
com que essa deixasse de passar pela comunidade do Jacarezinho. Antes do verão e das
notícias de arrastão ganharem a mídia, muitos moradores e usuários da Clínica da Família já
vinham reclamando de assaltos, insegurança e outros problemas com esta linha de ônibus que,
por muitos, era utilizada como forma rápida de chegar ao trabalho ou curso na zona sul da
cidade. A forma que o Estado entendeu como melhor para lidar com o problema em momento
algum considerou os trabalhadores da favela, as queixas destes foram muito menos
valorizadas do que as queixas que vinham da turística zona sul.

Essa acentuada diferenciação na forma de abordar o problema foi recebida pelos


moradores do Jacarezinho sem surpresa, com alguma indignação, mas com a resignação de
que aquela não era a primeira ou seria a última vez em que os problemas da comunidade
seriam considerados menos importantes que os problemas dos demais cidadãos cariocas.

Em um país socialmente desigual como o Brasil, a prática em APS no Sistema Único


de Saúde enfrenta alguns desafios específicos, oriundos da nossa realidade. Ao passo que os
profissionais de saúde e os moradores de comunidades estão inseridos na mesma sociedade,
essa inserção se dá, em geral, de forma muito díspar, provocando um distanciamento da vida
social experienciada entre aqueles que precisam ser cuidados e aqueles que se propõem a
cuidar.

A Atenção Primária à Saúde demanda uma abordagem contextual dos indivíduos


para uma oferta de cuidado integral e equânime. É esperado, portanto, que apareça como
complexa e dificultosa a tentativa de profissionais de saúde, majoritariamente oriundos das
classes média e alta da sociedade, de analisar e lidar com as situações vivenciadas por
moradores de comunidades. Essa dificuldade se acentua quando os profissionais de saúde
buscam, como referência para o outro, suas próprias perspectivas e compreensões sociais.

A inércia aparente da população marginalizada do Jacarezinho diante das situações de


violência recorrentes, que sugiro no início desse trabalho, é um exemplo de como esse viés da
perspectiva pode nos enganar. A expectativa de ver a comunidade se organizar para

75
reivindicar, junto às autoridades e órgãos competentes, mudanças e melhorias na condição de
vida que lhes é oferecida, nada mais é do que a maneira que foi por mim apreendida como
eficaz na resolução de problemas. Essa expectativa, no entanto, impossibilita a percepção de
que, para os moradores do Jacarezinho, o caminho da construção via diálogo parece ter se
esgotado, e outros caminhos se constroem como possibilidades reais de lidar com o
sofrimento causado por esses mecanismos de opressão, como o fortalecimento da fé e da
participação em denominações pentecostais – movimento organizado intra-classes dominadas
- que foi aqui apresentado.

Essa dificuldade em conseguir perceber e valorizar os movimentos de grupos sociais


distintos, é o que Valla (2002) chama de crise de interpretação, onde, por exemplo, a classe
média não consegue compreender a fala das classes marginalizadas, principalmente por que se
propõe a estudá-la, a observá-la, mas na maioria das vezes, não se propõe a ouvi-la sem
preconceitos e juízo de valores.

As forças violentas: O Tráfico, o Estado e a Polícia


Fere o livre arbítrio, não deixa sair de casa, uma violência que não é nossa, que não
fomos nós que criamos. Sofre a comunidade com uma guerra que não é nossa. A
gente não sabe sobre a hora de entrada e a hora de saída, as vezes indo pro trabalho
com tiroteio. É por isso que a gente ora a Deus pra ele nos guardar, que guarde nossa
saída e nossa chegada (Entrevistada P).

Se, por um lado, as ações violentas do narcotráfico são frequentemente lembradas nas
entrevistas e em conversas nos corredores, também o é a forma como o Estado, através das
forças de segurança, atua na favela de forma agressiva e desrespeitosa. Nas operações
policiais, ornamentadas com ostensivo armamento, ou no comportamento preconceituoso e
violento com que policiais consideram todos da comunidade como participantes ativos ou
coniventes com o narcotráfico, as pessoas se percebem reprimidas e subjugadas por essa
representação do governo que deveria lhes garantir segurança e não provocar sensação de
medo.

Policial antigamente...hoje são raros que passam pela gente e dá bom dia, difícil.
Muito difícil! A maioria trata, vou dizer assim, me trata como se eu fosse bandida
também e isso antigamente não, eles tinham uma certa educação, uma criação...ou
foram criados diferentes eu não sei, mas era diferente (Entrevistada O).

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Hoje, até comentei isso aqui, o portão da minha igreja a gente não usa chave mais
porque eu cansei de colocar fechadura nova. Tinha semana da gente colocar
fechadura três ou quatro vezes e quando chegava de manhã pra escola dominical a
fechadura estava quebrada. Corria, mandava trocar, chegava a noite para o culto e a
fechadura estava novamente quebrada, entendeu? porque a polícia quebrava, não era
bandido, porque eles achavam que eles tinham esse direito de entrar lá pra usar
banheiro, pra beber água, entendeu? e eles abriam, arrombavam, estragavam a
fechadura (Entrevistada E).

“Eu mesmo fui levantado de madrugada, de madrugada, invadiram lá em casa e


perguntaram o que a gente era, perguntaram quem era meu filho, ele falou ´´Não,
porque mataram um delegado``, ´´Nós estamos fazendo nosso trabalho``, fazer o
quê? Um problema (Entrevistado H).

Especificamente sobre a entrada da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) na


comunidade, os relatos são de decepção. A promessa de ocupação do território com projetos
sociais e possibilidades para os moradores se materializou como a presença de policiais com
armamento ostensivo circulando pela comunidade que, embora tenha inibido o narcotráfico
por um período de aproximadamente três anos, não o desarticulou e não promoveu mudanças
no território capazes de realmente gerar outro cenário a longo prazo.

A ocupação, que se iniciou em janeiro de 2013, passou por mudanças radicais a partir
de novembro de 2015, quando o narcotráfico empurrou a UPP para uma parte específica da
comunidade, que ficou popularmente conhecida como parte alta, por ficar na região mais
elevada da comunidade. A partir desse momento, o Jacarezinho entrou em um período de
conflitos armados intensificados entre a UPP e o narcotráfico, com o objetivo, por parte de
ambos, de retomar/avançar na disputa territorial.

“Igual à polícia pacificadora, aqui na comunidade...eu não vejo projeto, não vejo
pacificação, não são os piores, pelo menos na parte onde eu moro, os que vêm de
fora são assim... totalmente outro nível de homens que vem, mas na pacificação não
aconteceu” (Entrevistada O)

“Porque o governo quando vem, eles vêm dando tiro, bomba e porrada nos outros.
Ele quer combater a violência com a própria violência. Então, ele não vai ter sucesso
nenhum, não vai ter sucesso.” (Entrevistado H)

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“A esperança que a gente tinha era a UPP entrar e fazer alguma coisa pela
comunidade e não fez nada pelo contrário trouxe mais violência, mais morte”
(Entrevistada A)

Para Franco (2014), o problema das Unidades de Polícia Pacificadora como política de
Segurança Pública do Estado se evidencia desde a escolha do nome do projeto. Ora, para
efetivar uma necessária mudança cultural em um território em que a presença do Estado não
ocorre de forma plena e onde configura-se o controle por grupos criminosos armados, o
necessário seria que a sigla fosse a abreviação do termo Unidades de Políticas Públicas, com
uma mudança qualitativa no desenho do projeto, que levasse para as áreas marginalizadas
aquilo que falta, os serviços básicos essenciais, e não a já conhecida repressão policial.
(FRANCO, 2014)

Por mais que a proposta das UPPs incluísse uma aproximação da polícia com a
comunidade, por meio da criação de projetos sociais, talvez fosse mais estratégico optar por
outra ponte, que não a polícia, para a aproximação do Estado com a comunidade, já
historicamente negligenciada e oprimida pelas forças militarizadas deste. (FRANCO, 2014)

Na realidade, as UPPs ocuparam o Jacarezinho, assim como várias outras favelas


cariocas, sem os projetos sociais saírem efetivamente da fase de planejamento, tornando-se
incompleto e fracassado. O período de “pacificação”, gerado pela presença da polícia na
comunidade, não foi capaz de garantir e manter a paz, e ainda desencadeou um processo de
confronto mais intenso entre os atores da segurança pública do Estado e o narcotráfico, como
consequência de uma proposta de se atingir a paz com violência e militarização das políticas
públicas (FRANCO, 2014).

As sensações despertadas: A impotência e o medo


Um sentimento que muitas vezes ressoa, entre a população do Jacarezinho, é o de
impotência. Impotência diante dos cenários que se apresentam na comunidade, impotência
diante da falta de oportunidades e do caminho trilhado por muitos moradores, impotência
diante de muitas injustiças que sofrem e são testemunhas, e impotência por sentir que existem
interesses maiores e mais poderosos na manutenção das desigualdades exatamente como
estão. Essa sensação de impotência pode ser percebida nos relatos.

“É meio complicado, assim, meio sofrido nesse ponto de ver as coisas, você não
poder fazer nada, você não poder falar nada, entendeu? E ter que conviver com
aquilo. Assim, mas, muita gente fica abalado quando tem tiroteio. Eu consigo

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separar ou tentar ajudar porque tenho muito paciente que tem parente envolvido. Aí
assim, eu converso, a gente acaba escutando, absorvendo isso, entendeu, tentando
passar tranquilidade, que vai dar tudo certo, essas coisas, mas é complicado pra
caramba” (Entrevistada L)

Se, por um lado, a impotência traz a sensação de desesperança, o medo tende a ser
paralisador. Nas entrevistas e no campo, o medo aparece inúmeras vezes em formas e
intensidades variadas. O constante medo do momento seguinte, de, ao sair de casa, não saber
se será possível retornar ou a necessidade de garantir um meio de comunicação eficaz para
situações de tiroteios, são algumas das preocupações que rondam cotidianamente a vida das
pessoas no Jacarezinho.

De uma sensação muito ruim, de que você vai morrer, você tenta manter a calma e
você não consegue. Você deita e você levanta e aquela sensação de que alguma
coisa vai acontecer. Você querer dormir e não conseguir. Eu tipo assim, tentando
pensar...a única coisa que eu pensava era nos meus filhos, meu deus, meus filhos...
aí eu tento me acalmar, entendeu? Pensando nos meus filhos eu consigo me acalmar,
entendeu? Aí eu me acalmei, mas foram dois episódios que eu não quero sentir mais
isso não, Deus me livre! É horrível, parece que você vai surtar (Entrevistada M);

O medo, né? O medo de poder sair na rua, o medo de ir e vir muitas das vezes tem
momentos, eu pelo menos, não consigo ir em certos lugares com medo do que pode
acontecer no meio da rua. E acho que isso atinge muito, o medo (Entrevistada Q);

as pessoas ficam totalmente descontroladas, ficam com medo, ansiedade, isso


também causa essas diversas enfermidade que tá, por exemplo, esse negócio de
síndrome do pânico que tá matando muito aí, as pessoas nem saem mais pra rua, as
pessoa se enclausuram dentro de casa como se fossem um..., que até dentro de casa
mesmo a gente não tem mais segurança (Entrevistada B).

Se os períodos em que estão ocorrendo repetidas situações de operação policial geram


medo e insegurança, aqueles nos quais a comunidade fica mais de um ou dois meses sem ser
alvo de uma operação policial também o fazem. A população, por vezes, estranha a ausência
de conflitos e imagina uma próxima operação policial com grande intensidade, ou que a
polícia ou o narcotráfico estão organizando algo mais complexo para os próximos dias. De
qualquer maneira, raro é o momento em que a população explicita uma sensação de
tranquilidade e paz no território.

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Em relação ao medo e sua construção, por vezes é possível perceber como as
diferentes situações que acontecem no contexto familiar ou próximo vão modificando e
acentuando a sensação de medo das pessoas. Durante uma operação policial, um jovem negro
morador da comunidade foi baleado no pescoço de forma não (diretamente) intencional. Ele
estava na laje de casa, soltando pipa, sem perceber que estava começando uma incursão
policial na comunidade. Desde esse dia, o jovem, que sobreviveu, tornou-se paraplégico. Para
a família dele, ouvir um tiro, de perto ou de longe, nunca mais trouxe a mesma sensação. A
angústia e o desespero cresceram significativamente, como se, através desse fato, fosse
possível materializar o risco real a que a comunidade está submetida durante incursões
policiais no território. Abaixo, incluo dois relatos de pessoa que vivenciaram, em contexto
familiar próximo, situações similares.

eu podia sair na rua tranquilamente, hoje se soltar um fogos ou alguém falar tá


tendo tiroteio a quilômetros de mim, eu já fico achando que a bala vai pegar em
mim, que vai acontecer alguma coisa comigo e o negócio tá tão distante e eu já
começo a me sentir muito mal e hoje eu entendo pessoas que querem sair da
comunidade, entendo pessoas que não vão à igreja (Entrevistada O).

Eu sou outra pessoa, eu durmo menos. Qualquer tiro me deixa preocupada. Eu tenho
que saber se todo mundo tá em casa, onde tá todo mundo. Eu tenho medo. Antes eu
não tinha tanto medo de tiro, de homem armado. Hoje eu tenho medo (Entrevistada
C).
Em outro registro de diário de campo, durante uma atividade coletiva na comunidade,
uma mãe contou um pouco de como sua filha havia passado, pela primeira vez, por uma
situação de tiroteio na rua, quando estava saindo de casa e como, desde então, toda vez que a
criança, de apenas nove anos, percebia um carro de polícia passando, não conseguia se
movimentar. O trauma que tais situações vão desencadear no futuro dessas crianças é
imensurável.

Um outro marcador importante de mudança em relação ao sentimento de medo, foi por


mim percebido no espaço físico da clínica da família Anthidio Dias da Silveira com seus
funcionários, grupo no qual me incluo. Durante o segundo semestre de 2018, houve uma
operação policial no Jacarezinho que ganhou a grande mídia (situação extremamente rara para
os conflitos que ocorrem na favela em questão) devido a um fato inusitado: durante a
operação, as forças armadas, de helicópteros, atiraram contra uma das bases da UPP. Apesar
deste ter sido o fato de comoção nacional, por trazer à tona a óbvia percepção de que não é

80
possível ter precisão ao atirar do alto de um helicóptero em movimento, não é essa situação
específica que pretendo analisar. Tudo isso ocorreu em um domingo (14 de janeiro de 2018).
Na segunda-feira, quando a Clínica abriu, foram encontrados projéteis de bala em uma das
lixeiras que fica no corredor da unidade, na porta de um dos consultório, havia uma marca do
impacto de um projétil no chão e um buraco nos fundos de um dos consultórios, além de
inúmeros projéteis na área onde fica a horta comunitária da unidade. Desde esse dia, passar
por situações de confronto armado entre policiais e o narcotráfico, estando dentro da unidade,
nunca mais foi parecido. O pânico, o medo coletivo, o desespero se intensificaram
significativamente. É como se, ao perceber os furos e projéteis dentro da unidade, a
fragilidade e insegurança dessa fosse finalmente tomada como real para os trabalhadores.

Muitos são os relatos que apontam para esse medo como principal motivo de
adoecimento das pessoas no Jacarezinho. E se, por um lado, associam o medo com
adoecimento, também por diversas vezes associam a Igreja como caminho para lidar com esse
sentimento.

TERCEIRA PARTE - O Pentecostalismo e a comunidade


Cultura da Igreja na comunidade

Algumas vezes ao ano, os profissionais da Clínica da Família se engajam em oferecer


uma atividade cultural para os usuários, com espaço para poesias, apresentação de dança,
música e outras formas de expressão de arte. Estes saraus vêm ocorrendo, periodicamente,
desde 2015. O ano de 2017 foi difícil para a clínica (quando todos os funcionários entraram
em greve, durante um período do ano, devido a demissões e atrasos salariais que aconteciam
em todo o município) e para a comunidade, que vinha sofrendo com, além da dificuldade de
acessar saúde, as recorrentes operações policiais muito agressivas na comunidade. No final
desse ano foi realizado um sarau de encerramento do ano, estimulando a confraternização
entre profissionais da clínica e usuários. Como nas versões anteriores, o sarau estava cheio e
contou com uma série de apresentações musicais.

Uma situação, que foi inesperada para mim, aconteceu perto do final da atividade.
Algumas agentes comunitárias, que trabalham na clínica e moram na comunidade, fazem
parte de grupos de canto e louvores em suas respectivas Igrejas. Após muita insistência do
público, algumas delas decidiram fazer uma breve apresentação. Enquanto elas cantavam,
quase todas as pessoas que estavam ali e moravam na comunidade deram as mãos, cantaram
junto as músicas e muitos (evangélicos ou não) se emocionaram ao fazê-lo. Naquele
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momento, pela primeira vez em muitos saraus que participei, vi uma organicidade que me era
estranha. Uma sensação compartilhada de pertencimento entre as pessoas que ali moravam
(mesmo sem necessariamente pertencer a uma denominação pentecostal), uma emoção quase
palpável no ambiente. Um aspecto cultural local se revelava naquele momento para mim, com
uma profundidade de significados muito mais densa do que eu podia imaginar.

O canto de louvores durante o sarau, a sensação que se tem ao caminhar pela


comunidade e os relatos de muitos entrevistados confirmaram uma perspectiva: a fé
evangélica pentecostal é parte da cultura da comunidade.

“Nós somos quase cem Igrejas aqui dentro do Jacarezinho. Então, não tem uma
pessoa que não conheceu uma. Não tem uma criança que não foi numa festa do dia
das crianças na igreja. Então, todo mundo, de alguma forma, vai a igreja.”
(Entrevistada C)

“Quando eu era pequena eu era da Igreja Fonte de Água Viva aqui na Concórdia
mesmo. Era pequenininha pedia o pastor pra cantar lá na frente. É. Aí depois fui pra
Igreja Batista também aqui. Fiquei até a adolescência, até uns 15, 16 anos. Aí depois
fui pra Mundial e da Mundial fui pra essa igreja. A minha vida toda eu fui da igreja,
desde pequenininha, entendeu? Sempre fui. Minha mãe sempre me criou e meu
irmão assim.” (Entrevistada D)

“Gostava dos louvores, das músicas, desde pequena pedia pra minha mãe, quero ser
da igreja. Eu via os grupos, os cantos e queria participar. Conheci meu marido lá, ele
era evangélico, mas agora está desviado.” (Entrevistada P)

A igreja se constrói para a comunidade do Jacarezinho como o ambiente, lugar físico e


simbólico, onde é possível alcançar bem-estar, paz, lazer e acolhimento. A igreja se coloca
como local que oferta e promove a sensação de segurança. Em um território onde as pessoas
não alcançam essa sensação nem dentro da própria casa, poder experienciar isso torna-se caro
para muitos moradores.

“O que me agrada? Ah, estar lá né? Orar, sentir a presença de Deus, fazer as coisas
que tem de fazer. É, eu sinto falta do convívio dos irmãos, aquela paz que você sente
lá dentro. Se eu não tivesse essa paz que eu sinto agora, eu tinha surtado,”
(Entrevistada M)

Uma considerável parcela das pessoas que participam das denominações pentecostais,
por vontade pessoal ou por orientação da Igreja, abandonam práticas como beber, fumar, usar
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drogas, frequentar bailes ou ficar pelas ruas da comunidade, comportamentos tidos como
potencialmente problemáticos por estimular violências e escolhas erradas, e que, ao serem
interrompidos, conferem maior sensação de segurança para as pessoas em sua vida cotidiana e
na comunidade, segundo a perspectiva pentecostal.

“Ali termina um culto, a gente vai pra casa. Não vai tomar cerveja e tudo, passar a
noite, perder noite de sono. A pessoa perde noite de sono, isso aí também ajuda a
ficar debilitado. E também, a pessoa na igreja, ele passa a mudar. Ele passa a ser
assim, mais educado, mais manso com as pessoas. O cara no mundo ele é bravo. Ele
na igreja fica mais manso. Isso também ajuda, até pra própria saúde dele. Ajuda no
bem-estar do cara. O cara fica mais leve, mais suave, conversa melhor com as
pessoas. Ah é o Espírito Santo que faz isso. O evangelho ajuda a pessoa a viver até
melhor.” (Entrevistado H)
Se, para algumas pessoas, a igreja sempre fez parte da vida através de seus pais,
familiares ou vizinhos, para outros, a necessidade da experiência religiosa surge diante de
situações complicadas que parecem não ter solução ou que são muito difíceis de suportar. São
vários os relatos que contam da aproximação com a igreja a partir de enfermidades, desilusões
amorosas e outras situações de sofrimento, que pareciam não ter mais caminhos possíveis e a
igreja aparece como última esperança.

“Eu ia lá fazia corrente conseguia aí depois no decorrer do dia a dia eu abandonava ,


eu ia muito pouco mas eu passei a ficar firme há doze anos atrás quando eu passei a
separação com meu marido da noite pro dia a gente tinha então 21 anos de casados
da noite para o dia eu descobri que ele tinha uma amante, e já tinha ela há uns
quatro, cinco anos e tinha um filho com ela e o filho na época tinha três meses foi
em 2006 aí meu mundo acabou, meu mundo caiu. Ele foi embora e aquilo ali foi a
minha salvação.”” (Entrevistada K)

“Um dia saindo da escola tinha uma igreja, aí eu olhei para a igreja e eu falei assim:
cara sua mãe serve a um Deus lá que ela falou q é bom e que foi ele que me colocou
na sua vida e eu não aguento mais você. (Não aguento mais) Viver assim, eu gosto
de você mas eu não quero viver minha vida toda assim batendo de frente contigo.
Então vamos fazer um negócio, ali tem uma igreja. Vamos assistir um culto? Porque
se deus não fizer nada pela gente, isso não vai rolar, não vai adiante então essa é
nossa última chance.” (Entrevistada A)

“Entrei porque estava no fundo do poço, era viciado em bebida, droga, cigarro e
perdi tudo. Tava catando papelão na rua. tinha me separado da esposa, estava

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sozinho. A causa foi espiritual, quando a gente se afasta de Deus, abre espaço pro
inimigo, aí vem a depressão.” (Entrevistado R)

Para Ribeiro (2014), as entidades religiosas, em especial as Igrejas, reafirmam sua


importância e necessidade visto que se configuram como uma das únicas opções para alcançar
um comportamento moralmente adequado, uma vez que há, na esfera pública, escassez de
oportunidades (RIBEIRO, 2014). A Igreja aparece, para muitos dos entrevistados como ponto
de salvação, de transformação, como o caminho possível para alcançar a moralidade ou aquilo
que muito se deseja. É interessante perceber esse exercício, feito por muitos dos entrevistados,
de compartilhar com as Igrejas a responsabilidade por alcançar algo. A Igreja, e não a pessoa
individualmente, passa a ser essencial para a transformação que se quer atingir.

O caminho “território com violência – sofrimento/adoecimento – Igreja”, é muito


comentado nas entrevistas e por vezes percebido no campo de pesquisa. Para muitos
entrevistados, as opções que, nesse ciclo de adoecimento poderiam se apresentar como
alternativa à igreja, seriam as drogas ou os remédios, que são entendidos como uma forma de
aliviar, não de resolver os problemas que se apresentam.

“Vive a base de remédio. A base de calmante. Eu conheço pessoas que vive a base
de calmante. "se não fosse a clínica da família, se não fosse os remédios eu já tinha
surtado, já tinha morrido, já tinha me matado" Aí eu falo - Vamo lá na igreja
comigo, com a minha mãe! A minha mãe vai te levar pra igreja.” (Entrevistada M)

“Eu falei é, aí eu fazia tudo correndo pra mim poder sentar na pista pra beber pra
dançar, meu negócio era beber, era dançar, né, pensa que é ali que você vai esquecer
os problemas, mas o problema tá atrás da bebida né, passa o efeito da bebida
continua, aí” (Entrevistada F)

É interessante perceber como a medicalização da vida e do sofrimento aparecem nas


entrevistas, exatamente nesse momento da incapacidade de resolver/lidar com problemas,
como algo para aliviar os sintomas e diminuir a carga emocional que as pessoas precisam
suportar. Embora remédios sejam vistos com limitado escopo de funcionamento, paliativo
para o sofrimento, a opção por estes parece melhor aceita socialmente do que a opção pelo
uso de drogas não prescritas por profissional de saúde. O uso da maconha, por exemplo, tende
a ser rechaçado, mesmo por aqueles que fazem uso crônico de benzodiazepínicos.

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Relação da Igreja com o Tráfico de drogas
A igreja pentecostal, dentro da comunidade do Jacarezinho, hoje, desempenha um
papel importante como alicerce moral e cultural. Sendo ou não praticante de uma
denominação evangélica, o respeito e reconhecimento do status da Igreja dentro da
comunidade é notório e comum à grande maioria de seus moradores. O tráfico de drogas, a
associação de moradores, a região administrativa e outras formas de organização coletiva e
representativa dentro da comunidade, interagem e dialogam com as Igrejas locais,
reconhecendo a influência que apresentam como parte da cultura local. Nos fragmentos
abaixo, temos relatos de uma pastora que usa de sua influência local para negociar com atores
do tráfico:

“O rapaz amarrou a menina e estava tentando afogar e eu fiquei desesperada olhando


da janela falei - "Senhor, eu não posso deixar! Eu tenho que fazer alguma coisa".
Quando eu desci, ele já tinha soltado ela e chamei ela que entrasse na igreja, entrou
ela mais dois amigos. E veio um rapaz subindo a escada da igreja, eu falei com ele
que lá dentro da igreja ele não ia fazer nada com ela, e ele falou "Não vamos fazer
nada com ela. O menino só mandou avisar que vai ficar a noite toda esperando ela
ali do lado de fora.” (Entrevistada O)

“Outra vez foi um policial com um menino mais ou menos 14/15 anos, batendo na
porta da Igreja e ele começou a gritar "Igreja, igreja!" O menino tava apanhando,
desci, falei com o policial, ele perguntou se eu o conhecia, eu falei: "não conheço,
mas você tá na porta da minha igreja e ele tá chamando eu tenho que descer." O
policial falou que ia levar ele pra delegacia de menor, ele tava, o telefone dele tava
com fotos de meninos, foto dele armado e eu me propus, eu falei: "se o Senhor levar,
eu vou ter que acompanhar." E ele perguntou: " Mas você vai acompanhar por quê?"
e eu falei: "porque está na porta da minha Igreja, e como pastora eu não posso deixar
um menino com quatorze anos ser levado sem que eu acompanhe. Ou você liga pra
mãe dele, pra mãe dele vir e ir com ele. Se a mãe dele não for, eu terei que ir.
Evangélicos aqui já tiraram pessoas da CREC, onde bota aquela faixa pra matar
muitos.” (Entrevistada O)

Se consideramos que a cultura evangélica faz parte da cultura da favela do


Jacarezinho, não é de se surpreender que essa cultura também seja compartilhada por aqueles
que estão atores do narcotráfico local. Como diz a entrevistada O, “A maioria dos meninos
envolvidos tem pai ou mãe crente”. No fragmento abaixo, C explica como percebe ser mais
efetivo abordar jovens atores do tráfico utilizando o discurso das Igrejas no lugar de outros
discursos possíveis:
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Quando eu vejo um menino que eu conheci desde pequeno na bandidagem, eu falo,
independente da religião. Eu falo: “Vou orar por você”. É uma questão de aceitação.
Se você falar só por você, sem usar a religião, eles aceitam menos. Se você falar, se
você usar a religião, eles já conseguem aceitar mais. Entendeu? Aí você consegue
ver. Pelo lado da religião. Não é usar a religião pra poder falar, mas é uma forma de
você conseguir chegar. Você tem outra visão olhando. Não a que você tem, na
verdade. Eles têm uma outra visão de você crente, do que você pessoa, tá falando. Aí
acaba levando pra você esse olhar. Você tem outra...Você olha de outro jeito. Você
fala que tem potencial, que tem condições. Você, às vezes, não fala nem que: “você
pode estudar. Você sai daí”. Você fala: “Jesus salva, Jesus cura, Jesus liberta”, pra
ver se alguma coisa entra na cabeça, né? (Entrevistada C)

Embora seja conflitante em uma primeira análise, devido ao paradoxo moral que se
apresenta, a relação que se estabelece entre o narcotráfico e a Igreja passa a ser
compreensível, quando se analisa suas raízes, semelhanças e interlocuções. Essa relação
encontra-se em crescente aproximação desde a década de 80, quando a cultura, os símbolos e
signos evangélicos assumem, junto ao tráfico, o lugar que antes era ocupado pela cultura das
religiões de matriz africana (Vital da Cunha, 2015). C lembra que “Uma maioria que tá lá
(envolvido com o tráfico) é filho de crente, é mole? A maioria foi tudo criado na igreja.”

Vital da Cunha (2015), em sua etnografia intitulada “Oração de Traficante”, faz uma
análise dessa proximidade entre evangélicos e traficantes, que em muito se assemelha com o
observado no Jacarezinho:

Pudemos observar a aproximação dos traficantes aos evangélicos. essa aproximação,


que se revelou, em muitos casos, uma afinidade de perspectivas sobre o mundo,
expressa o reconhecimento por parte dos traficantes do poder de agir sobre o mundo
a partir de uma intervenção, de uma influência divina, do Espírito Santo (p.400.);
O demônio está aí para salvá-los nos casos em que a eficácia de sua mensagem é
relativizada. Explico: Recaem sobre o indivíduo e satanás os limites da ação
evangélica (p.403).

A cultura evangélica, a evangelização constante e para qualquer grupo social, inclusive


os marginalizados (população em situação de rua, população encarcerada, usuários de drogas
em cenas de uso, entre outros), popularizou as denominações evangélicas entre os atores do
tráfico. (VITAL DA CUNHA, 2015)

Para os pentecostais, independente da vontade de cada um, todos os seres humanos


encontram-se em uma batalha espiritual entre o lado bom/certo e as forças demoníacas do
mal. À medida que as pessoas são iniciadas na religião, vão aprendendo a se colocar do lado
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correto, e moralmente aceito, e vão abandonando as práticas que estariam fazendo por
influências demoníacas. Essa crença de que o mal que se está fazendo, por vezes, não é da
responsabilidade do sujeito, mas sim dos símbolos demoníacos que agem sobre ele, também
tornam a cultura evangélica mais palatável e popular entre as pessoas que estão “em um
caminho desviado”, como os traficantes.

“então quando a gente passa e que vê uma coisa, eu já fico apavorada, fico doida
pra sair dali, né porque você assiste muitas coisa, aquilo ali é, como é que eu falo
para você, é, você vê outros pessoal, ali comprando aquela coisa, mas você sente que
ali tem demônio solto doido pra... ou pior que aquele ali. Então eu tive meu filho, eu
brincava carnaval, eu bebia, eu fazia, tive meu filho mas sempre conversando com
meu filho, meu filho não entra naquilo, porque aquilo ali, como que eu falo pra
você, aquilo ali, empresta um dinheiro para você comprar uma coisa, depois vem, a
arma, para você assaltar.” (Entrevistada F)

“Aí saia pro futebol seis e meia da manhã às vezes era dez horas da noite não tinha
chegado aí eu ficava assim "meu deus, onde será que ele está?". Aí daqui a pouco
chegava, só para me xingar, mandava eu tomar em tudo quanto era lugar...(...)dizia
que não ia comer porque eu tinha posto veneno, me xingava, depois tomava banho e
ia dormir bêbado, bêbado, era assim.
E eu tinha uma culpa e eu achava que eu tinha que, saber, que ser aquela melhor
mulher para ele porque no outro dia ele não lembrava de nada mas eu lembrava e eu
não conseguia ser a mesma pessoa para ele porque ainda estava doendo e eu fiquei
com essa culpa, falei poxa se eu fosse uma outra mulher né? Porque lá na igreja a
gente aprendeu que não era ele, era um espírito maligno que se apossava dele. É.
Trata ele bem não é o seu marido. Aí quando ele chegava assim querendo arrumar
briga, eu falava pro meu filho: "não é o seu pai não".” (Entrevistada K)

O relato de K suscita uma discussão que apareceu com alguma frequência durante a
pesquisa: o sofrimento de algumas pessoas para conseguir se manter e seguir as regras da
doutrina religiosa. Permanecer em uma relação abusiva para não romper com o casamento ou
entrar em um relacionamento com outro membro da Igreja, mesmo sem que haja um
sentimento de amor, e não aceitar as próprias identidades de gênero e sexualidade quando esta
está fora da normatividade (transexuais, homo ou bissexuais), são algumas escolhas que os
membros precisam fazer para se adequar ao que as Igrejas definem como correto ou
moralmente aceito. Esse dilema, entre silenciar as situações que são geradoras de sofrimento,
para se manter na Igreja, ou lidar com a sensação de não fazer parte desta e não contar com
sua rede de apoio, é complexo para quem o vivencia, porém difícil de empatizar para o
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profissional de saúde que não conhece a importância da Igreja para a vida desses moradores
do Jacarezinho.

A associação do narcotráfico com a umbanda e o candomblé, diferente do que


acontece com as denominações evangélicas pentecostais, sempre foi representada na mídia
como associação negativa e depreciativa. As religiões de matriz africana foram
recorrentemente subjugadas e suas entidades e símbolos eram responsabilizados pelas ações
violentas do narcotráfico. A maneira de interpretar e culpabilizar as denominações de matriz
africana na relação com a violência do narcotráfico, pode ser atribuída ao racismo estrutural
socialmente construído no Brasil, visto que a mesma associação depreciativa não ocorre na
forma em que a mídia faz a leitura da relação que se estabelece entre a Igreja evangélica e o
narcotráfico.

Se, por um lado, fazer parte do tráfico representa uma espécie de status social dentro
do Jacarezinho, esse status e respeito também são alcançados por pessoas convertidas e
batizadas na Igreja.

“Ah, meu marido! Você vai ver o marido, uma coisinha pequenininha, mas tá na
boca. É o marido delas, entendeu? Parece que virou status ser da boca, ter marido da
boca.” Às vezes pode ser o garoto mais magrinho, mas feinho, mas entrou pro
tráfico tem mulher aí... já quer... porque não vê roupa bonita, não andam bonito, mas
anda armado, às vezes não aguenta nem segurar uma pistola de tão magrinho que é,
mas tá no tráfico e tem respeito...” (Entrevistada K)

“Entrei pro tráfico com 11 anos de idade, quando comecei a fumar maconha. Tive a
primeira cadeia com 17/18 anos. Lá comecei no crack. Total, fiquei uns 5 a 6 anos
no tráfico. Às vezes os amigos daquele tempo chamavam para voltar. Mas agora me
chamam de irmão, me veem passar com a roupa arrumada do culto e me respeitam,
nem chamam mais pelo apelido antigo” (Entrevistado G)

As experiências que a Igreja promove

"Às vezes a pessoa tem tudo, tem dinheiro, mas não tem a certeza da salvação,
que é o mais importante”. (Entrevistado R)

Nas entrevistas e durante a pesquisa, não resta dúvida de que a Igreja se apresenta para
a comunidade como um importante fator de manutenção do bem-estar dos moradores. O lugar
onde buscar acolhimento, amparo frente ao desespero, força que sustenta e dá coragem para

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continuar, a palavra que orienta o caminho a ser seguido ou, ainda, Deus como o conforto
necessário são algumas das referências feitas à Igreja e à experiência de fazer parte da Igreja
ao longo dessa pesquisa.

A COMUNHÃO
Apontada por muitos estudiosos como aspecto essencial a ser estudado e pesquisado
no âmbito do pentecostalismo, a rede de apoio social, construída nas igrejas pentecostais, é
apresentada pelos entrevistados como um importante mecanismo que permite aos membros
partilhar experiências, vivências, construir espaços alternativos de cooperação, de lazer e de
trabalho.

Apoio social, portanto, é definido como sendo qualquer informação, falada ou não,
e/ou auxílio material oferecidos por grupos e/ou pessoas que se conhecem e que
resultam em efeitos emocionais e/ou comportamentos positivo s. Trata-se de um
processo recíproco, ou seja, que gera efeitos positivos tanto para o recipiente, como
também para quem oferece o apoio, dessa forma permitindo que ambos tenham mais
sentido de controle sobre suas vidas (HOLANDA, 2015 p.176)

Os pentecostais entrevistados não se referem a este como apoio social, mas sim como
comunhão entre irmãos. Especialmente, para um grupo marginalizado socialmente e sem
esperança ou confiança no Estado e em outras instituições formais, essa rede de comunhão
torna-se uma forma de sobreviver no mundo, que se revela não acolhedor e opressor para o
morador do Jacarezinho.

“Amizade. Unidade. Entendeu? Porque mesmo dentro da sua família se nem todos
estiverem em unidade, mas a maioria estiver em unidade, a coisa fluiu, entendeu?
Faz você ter prazer de estar naquele lugar. Eu vou ali porque eu gosto dali, tem
fulano ali, tem ciclano ali, tem beltrano ali, eu me sinto bem naquele lugar. Mesmo
que tenha um ou dois que não estejam em unidade com o círculo, tem um monte que
está. Então, a unidade, a comunhão, aquele convívio, a força que as pessoas dão a
você numa hora difícil, um abraço. Ali você recebe uma palavra, você recebe um
abraço, um olhar, às vezes até de uma criança que faz você chorar, que às vezes é
preciso.
E ninguém tem nada não, é tudo pobre igual eu, mas o carinho que passa, aquele
apoio... Ontem mesmo foi uma me buscar em casa "vou ajudar a senhora a subir,
vamos devagarzinho conversando" isso para mim é tudo” (Entrevistada E)

“O que me faz bem na igreja é ter comunhão, sabe? Com pessoas que têm o mesmo
objetivo. A gente tenta falar a mesma coisa. Se entender nas mesmas coisas. Acho
que é comunhão. Estar com os irmãos, é. Porque acho que a gente fala sempre a
mesma coisa. A gente tá sempre cuidando de um, como vou explicar? De um bem
comum. A gente quer, todos querem a mesma coisa. Ninguém vai puxar pra um

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lado. Eu quero isso, eu quero aquilo. Todo mundo sabe que quer mesmo, o mesmo
propósito. A gente tem o mesmo propósito. Mais ou menos parecido, bem parecido.
É difícil quando alguém diverge de alguma coisa, mas são opiniões, a gente se senta,
conversa, discute e tenta entrar, chegar num bom senso.” (Entrevistada C)

Essa rede construída entre os participantes das denominações pentecostais, ressalta a


importância dada ao fazer parte de algo em que se acredita, onde se compartilha as mesmas
ideias e é possível experimentar pertencimento.

O CULTO
Outro aspecto da cultura evangélica, trazido pelos entrevistados, são as sensações e
emoções despertadas durante o culto. A sensação de paz, a presença de Deus, do Espírito
Santo ou um êxtase são descritos. Para Corten (1996), a mobilização pela emoção é a
principal característica da fé pentecostal, manifestada, em última análise, nos cultos, pelo falar
em línguas (glossolalia) e pelas falas ilocutórias durante a leitura da palavra ou testemunho.
(CORTEN, 1996)

O culto é, por muitos, considerado o momento de renovação de fé e de esperança. É o


evento único que promove a sensação da presença de Deus, capaz de curar e de promover
bem-estar, mesmo diante de situações cotidianas muito complexas. Algumas pessoas relatam
que, quanto maiores seus medos, problemas e ansiedades, mais vezes elas frequentam os
cultos, enquanto outras, independente de problemas, se comprometem a estar uma, duas, três
ou quatro vezes por semana participando dessas atividades.

os louvores é bom? É. Os testemunhos são bons? São maravilhosos. Mas o que


edifica mesmo é a palavra, porque através da palavra você se liberta, através da
palavra te cura porque Deus é um refúgio entendeu? Eu acredito que Deus é um
refúgio, então o que é melhor pra mim é a palavra, a hora da palavra ali te edifica, te
fortalece, Deus fala contigo ali tete a tete, entendeu? (Entrevistada B)

“eu me sinto bem, então, eu não sei, muitas das vezes a gente tá em casa assim com
algum problema e para os nossos olhos é impossível resolver e quando você vai pra
lá não vou dizer que aquele problema vai ser resolvido naquele exato momento ou
vai ser resolvido, mas você vai e você sai dali com mais fé, com mais esperança que
dias melhores virão, coisas melhores virão e sai esperanço.” (Entrevistada Q)

“tem umas outras religiões que tomam chá, tomam alguma coisa pra ter um êxtase e,
e tem culto que a gente tem esse êxtase sem precisar tomar nada que explicar,
explicar, eu acho meio confuso. Quando a gente tá, assim, à toa, às vezes eu falo

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assim na igreja, às vezes a gente acorda de manhã e pensa assim: “Cara, como é que
eu sinto Jesus, como é que eu tenho certeza que Jesus existe, como é que eu tenho
certeza que Deus existe?” E quando você tá na presença d'Ele, a palavra diz: “Na
presença d'Ele há abundância de alegria. Isso é fato! Isso é fato. Você sente vontade
de chorar, você se sente alegre, você se sente satisfeito. Sabe, uma coisa assim, que,
por mim, eu seria como - Que eu sempre habite na casa do Senhor - acho que eu ia
morar lá, sabe? Seria o melhor lugar, que a gente se sente protegido de verdade”
(Entrevistada O)

Pelos relatos, nos cultos, as pessoas se sentem mobilizadas e tomadas por uma emoção
diferente, capaz de trazer paz e sensação de proteção. Essa emoção, que não se justifica na
ótica da explicação científica, é muito valorizada pelos entrevistados e evoca nestes um bem-
estar que não conseguem experienciar em outras situações.

No pentecostalismo, a mediação entre o homem e o divino se dá com por intermédio


do Espírito Santo. É nesse contato com o divino que se produz o sentimento de bem-estar
citado acima. A intermediação pode acontecer de três maneiras distintas, sendo que numa
delas, o êxtase, ocorre fusão do divino com o humano. Essas experiências só acontecem em
coletivo e diante de muitos cuidados rituais entre os pentecostais. (ROBBINS apud MAFRA,
2009)

Para Mafra (2009), as outras duas formas de mediação da comunicação entre o homem
e o divino seriam: a mediação na qual Espírito Santo fala diretamente com a pessoa, de forma
intermitente e em momento imprevisível – conferindo destaque ao valor do indivíduo -, e
no adensamento da presença do Espírito Santo na pessoa que, com o passar do tempo, permite
que estas se tornem lideranças reconhecidas e que tenham circulação social ampliada.
(ROBBINS apud MAFRA, 2009)

O ACOLHIMENTO
Se a Igreja se apresenta como local de renovação de fé e esperança, um caminho para
isso é o acolhimento realizado por ela, muito citado entre os entrevistados. Para alguns, o
acolhimento acontece em tempo integral, pois sempre que se chega para um culto ou para
uma roda de oração, ou qualquer outra atividade, o pastor, decano, missionário ou obreiro lá
estará para lhe receber, ouvir e oferecer a palavra de Deus como conforto e cuidado.

“A Assembleia de Deus de Vigário Geral, que eu comecei de novo ali, eu peguei


firme mesmo e comecei a voltar pra Jesus ali, entendeu? Foi quem me abrigou, me
acolheu com muito amor com muito carinho foi ali aí depois eu vim de lá pra cá
91
porque ficava muito longe e aí também vieram a me acolher muito foi a igreja Leão
de Judá aqui do..., era na época no Buraco da Lacerda, agora tá aqui na Suburbana.”
(Entrevistada B)
Para ser inicialmente bem acolhido na igreja, não é necessário estar em acordo com as
regras estabelecidas pela denominação, todas e todos são bem vindos a chegar, conhecer e
ficar, sem distinções de raça, gênero, classe social, vestimenta, emprego ou qualquer outro
desses fatores que são geralmente motivo para que as pessoas sofram alguma forma de
preterimento fora da igreja,

Fui muito bem recebida pela minha igreja que fez eu desejar ficar. Aí já comecei a
olhar pro meu filho e eu falei assim: Porque criar ele como... diferente do que eu fui
criada, né? Que era o evangelho, cheguei cheia de medo, fiquei muito tempo com o
brinco no nariz ainda, a igreja não questionou, por isso que eu falo, um monte de
tatuagem, brinco.” (Entrevistada O)
Para muitos dos entrevistados, esse momento inicial de acolhimento atento, cuidadoso
e sem preconceitos foi fundamental para que trilhassem o caminho dentro da fé evangélica.
Saber que existe um lugar onde se pode ir para falar de seus problemas, de suas preocupações,
de seus medos e receber ouvidos atentos, apoio e conselhos parece ser algo muito caro para os
membros das denominações evangélicas pentecostais.

“aí a igreja me ajudou a tirar essa culpa. Toda hora que eu chegava lá, tinha um
pastor e eu podia conversar e ele me ouvia entendeu? Tinha dias que eu chegava, só
chorava na frente do pastor, mas no outro dia eu já chegava bem, eu já saia
diferente.” (Entrevistada K)

A MISSÃO SALVADORA
Por vezes pude perceber, ao longo da pesquisa, uma mudança significativa no modo
de falar e na postura corporal das pessoas quando eu abordava o assunto da fé pentecostal sem
demonstrar um caráter preconceituoso e julgador. A forma de falar sobre a experiência dentro
da Igreja, as atribuições e responsabilidades, a fé, as coisas que acreditam e pregam, eram
completamente diferentes. Muda a velocidade da fala, muda o brilho no olhar, muda a altivez
e posso dizer, que percebi uma mudança na estima pessoal quando a pessoa era convidada a
falar sobre sua experiência religiosa. Antes de começar a pesquisa etnográfica, talvez esta
mudança tenha sido uma das coisas que mais me chamou atenção e despertou curiosidade
para melhor compreender esse fenômeno. Fosse no espaço de consulta, em uma reunião de
equipe, em uma conversa no corredor, ou em um encontro fora do horário de trabalho, a
mudança na forma e no conteúdo do discurso eram, e ainda são facilmente percebidos.
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Ao longo da pesquisa, e nas entrevistas, fui procurar motivos que justificassem essa
percepção inicial. Algo repetido pelos entrevistados, que me chamou atenção, foi o quanto
participar da Igreja lhes oferecia a possibilidade de fazer algo pelos outros. Levar a palavra de
Deus, dar testemunho, contribuir para o sucesso de outros, orar para proteger a comunidade,
visitar e evangelizar nos presídios e cenas de uso de drogas, foram funções realizadas que
permitem aos membros da Igreja se sentirem úteis e com possibilidade de intervir nas
injustiças que sofrem e percebem no cotidiano da comunidade.

Cabe lembrar que, diante da desconfiança e descrença existente nas instituições do


Estado por parte dos moradores da comunidade, voltar a fazer parte de algo em que se
acredita que de fato pode fazer diferença na vida das pessoas parece ser uma sensação que há
muito não vinha sendo experienciada pelos moradores da comunidade do Jacarezinho.

“O que pra mim me faz mais feliz dentro da Igreja por incrível que pareça, o que me
faz mais feliz dentro da igreja não é comigo mesmo. É quando eu vejo uma pessoa
que eu ajudei bem, entendeu? Assim, quando eu vejo: poxa, fiquei do lado daquela
pessoa, ajudei, ajudei, ajudei, aconselhei, quando a pessoa tava querendo desistir, eu
tava lá do lado falando não desiste do seu casamento, ainda tem jeito; não desiste da
sua família, ainda tem jeito; não desiste do seu filho, ainda tem jeito e eu passo e a
pessoa me dá um abraço e fala "A gente tá aqui. Obrigada por tudo" isso me faz
mais feliz porque eu me sinto, é quando eu me vejo útil, entendeu? Dentro da
igreja.” (Entrevistada A)

“"Eu penso de maneira positiva, eu vejo o hoje, se a gente mudar o hoje, a gente
consegue mudar o futuro. Eu já vivi no meio deles. A gente quando fala eles
desmontam, da pra fazer a palavra entrando pra eles, eles se emocionam. É muito
triste quando a gente vê uma mãe lutando pelo filho, mas ela vê outras pessoas,
consegue tirar outras pessoas, isso pelo menos conforta." (Entrevistado R)

"O trabalho que a gente faz é um trabalho bíblico. Levar comida, roupa, ajuda pra
quem precisa. Está na Bíblia. Ajudar quem mais precisa, quando você sabe que
precisa. Às vezes você fala a palavra pra quem está afastado da palavra do Senhor.
Eu me sinto muito bem, muito feliz fazendo esse trabalho. Eu preciso mostrar pra
ele que ta ali, que pra mim não tem diferença, eles só estão nesse caminho tortuoso,
por conta do inimigo. Esse trabalho de capelania social, é muito bonito, me faz um
bem danado. (entrevistada S)"

Em uma pesquisa realizada na favela de Manguinhos, vizinha ao Jacarezinho, Ribeiro


ao entrevistar os moradores da comunidade, percebeu que
93
Os participantes ressaltaram com ênfase a importância das ações de suas igrejas na
promoção do bem-estar da população local, ao mesmo tempo em que descreveram o
cenário de carências sociais e de falta de investimento em políticas públicas. Além
de sua atuação na prevenção, enfatizaram a recuperação de pessoas envolvidas com
atos ilícitos. Sua visão de promoção da qualidade de vida, ainda que restrita, procura
dar sentido novo às vidas das pessoas, causar impacto de reorientação em suas
decisões diárias e criar hábitos saudáveis a partir da doutrinação religiosa e da
inclusão social. (Ribeiro,2014, p.86-87)

O PROSELITISMO
Muitos autores atribuem o avanço pentecostal acelerado dos últimos 40 anos, para
além do momento político (redemocratização) e econômico (Nova ordem mundial e
Liberalismo) do país, para um de seus principais aspectos, o caráter proselitista e doutrinador.

E depois que a gente fechou a porta dificultou muito mais, quer quiser, mais fome,
mais pessoas sem ouvir a palavra, porque a palavra de Deus é o seguinte, ela é igual
uma cachoeira, a pedra é dura, mas a água até que bate um dia ela fura, então você
tem que tá ali pregando, você tem que ficar ali ensinando, não fumar, não usar
droga, não se prostituir, tem que ficar falando. Um dia o espírito santo vai comover
aquela pessoa e ele vai parar, só se ele não for mesmo um filho da salvação, se ele
for um filho da perdição aí não tem jeito. (Entrevistado H)

a gente faz um trabalho muito bom lá a gente eu não né? Eles... Eu ajudo a arrecadar
as coisas e dou às vezes uma vez no mês a gente vai para a Central a gente da sopa
aí vai um grupo que chama anjo da madrugada uns cortam cabelo, outros dão banho,
outros dão roupa. Eu às vezes ajudo a separar roupa as vezes eu boto comida. To
ajudando na comida aí dos presídios a gente tá arrecadando camisetas brancas para
levar a gente pede papel higiênico, pasta de dente aí forma um kit ai quando o
pessoal vai lá leva para eles. Entendeu? Aí é assim. Inclusive eles também dão ajuda
a quem tá preso aos familiares deles, entendeu a pessoa faz tudo para que a outra
volte novamente para a sociedade. Entendeu? Errou estava passando por algum
problema quem somos nós para estar ali falando de ninguém a gente tenta né?
Mostrar que aquilo foi um erro mas que ainda há chance a pessoa tá viva, Deus tá aí
é só
ele se voltar que Deus vai até ele. Tem vários empresários que eles contratam quem
tá saindo da igreja da igreja não do presídio (Entrevistada K)

Uma religião que está atenta à tarefa de divulgar, constante e insistentemente, as


qualidades de seu Deus e sua cosmologia, apresenta maiores chances de crescimento em
comparação com as outras. O pentecostalismo, em todas as suas denominações, por mais que
o faça de maneiras diferenciadas, assume essa característica proselitista e a utiliza de maneira
sistemática, consolidando seu crescimento.
94
Mafra (2014) considera que a conversão é a individualização de um acontecimento
que faz parte de um processo coletivo, referido ao contexto religioso. O rompimento com a
vida pregressa e com um modo de ser socialmente, visto como problemático pela
comunidade. Assim, a conversão nunca ocorre apenas no sujeito em relação a ele próprio, mas
faz parte de uma crença que envolve o grupo social e é por ele monitorada por critérios de
moralidade. (Mafra apud Ribeiro, 2014)

O papel do Pastor
Um papel muito importante dentro da Igreja evangélica é o desempenhado pelo pastor.
Sua função e responsabilidades variam de acordo com a denominação evangélica pentecostal.
Em algumas, sua responsabilidade é exclusivamente de organizar os cultos e levar a palavra
para os irmãos da igreja. Em outras, acumula ainda a função de organizar os grupos de
atividades, os eventos e as celebrações festivas, ainda pode acumular também a função de
administração financeira da filial ou da sede da denominação também. Mas,
independentemente do acúmulo de atribuições, a figura do pastor é vista como o exemplo a
ser seguido dentro daquele grupo de pessoas, a pessoa que pode e vai amparar o membro da
igreja quando mais precisar, a pessoa responsável pelo cuidado, pelo acolhimento e, por
vezes, pela cura das pessoas.

“Agora a gente que é pastor é porque tem um pouco de problema, né. Porque tu que
é o pastor da igreja, né. Se o cara dá um peido lá fora ele corre e conta pro pastor.
Tem muita demanda. E é muita mesmo. Não é brincadeira não. Eu quase não durmo.
É problema. Quer misturar tudo, eles acham que eu tenho que ser pai, mãe,
psicólogo, fisioterapeuta. Não tem como, não tem como. Pra cuidar dessa turma
aí...” (Entrevistado H)
Em diversos relatos, aparece uma preocupação dos entrevistados com a falta de
cuidado que os membros da Igreja as vezes apresentam com o pastor, se esquecendo que este
também é um ser humano, que a função de acolher e ouvir os problemas dos outros pode ser,
por vezes, uma tarefa muito difícil. Mais de um entrevistado lembra de episódios nos quais
pastores de igrejas pentecostais cometeram suicídio.

“Ultimamente muitos pastores têm se suicidado, porque as pessoas esquecem de


cuidar do pastor, esquecem que ele tem vida, que trabalha que também tem suas
lutas e seus problemas. ´É como o cuidando de quem cuida, a gente precisa respeitar
os problemas que eles tão passando também. Eu sou sincera, falo o que ta
acontecendo, se não vou poder ir ao culto um domingo ou outro, se eu tiver
passando por algum problema eu vou lá e falo, o pastor não é obrigado a ficar

95
sabendo o que ta acontecendo comigo, ele fica de olho, sente falta das pessoas, mas
se eu posso falar eu vou lá e falo o que tá havendo, sou honesta, isso é fundamental.”
(Entrevistada P)

“É um ledo engano a pessoa achar que por ser cristão não precisa de medicação,
nem psicólogo ou psiquiatra, conselheiros. É um engano. Pastor é o que mais precisa
de conselho e psicólogo. É sério! Porque tudo dos outros você absorve! É se você
pisar fora da linha 1mm, já sabe, todo mundo que você ajudou vai te julgar. Não tem
perdão ou desculpa. “Como é que você ensinou uma coisa e agora fez outra? Como
você me aconselhou a não fazer ou a suportar dessa maneira e você se portou
dessa?” Ninguém vai entender que você também é um ser humano.” (Entrevistada
E)

Por outro lado, também aparece nos relatos a necessidade de o pastor apresentar
comportamento exemplar, diante das doutrinas da Igreja que participa e da palavra de Deus. A
expectativa é de que o pastor seja espelho para a comunidade de como se comportar, como se
este fosse a representação mais próxima da divindade no meio da Igreja. Além de ser
exemplo, ele também precisa ser fonte de cuidado e cura para os demais membros da
denominação.

“Eu acho que cuidar de alguém, tipo assim... pastor ele cuida, ele tem que cuidar,
tem que ser o exemplo, tipo, eu penso assim. E como eu falei, eu sou meio rebelde,
eu não sou exemplo. Então eu nunca quis” (Entrevistada Q)

“Não é correto, na minha posição de presbítero, não agir da forma como prego. Pra
mim não é correto. Eu saio de terno, gravata, as pessoas olham, não acho certo, não
gosto de participar, de estar no meio de rodinha de fofoca, de tititi. Não concordo,
então eu me afasto logo, prefiro evitar.” (Entrevistado J)

Uma outra questão que surge é a do pastor morador da comunidade onde congrega, e
como isso o torna capaz de conhecer e entender o cotidiano da comunidade e dos membros da
igreja, os problemas que se apresentam, as opções que se tem acesso e os possíveis parceiros.

“Vinham pessoas de fora pra dirigir a filial e as vezes são pessoas que não conhecem
a comunidade, não tem contato, acaba o culto ali e eles vão embora pra longe, pra
onde moram, outros bairros, outros lugares e não sabem o que está acontecendo na
filial, na comunidade. Então a pessoa sendo da comunidade para liderar a filial é
muito melhor, eu acho.” (Entrevistada E)

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Para Ribeiro (2014), além da proximidade com os membros das comunidades de fé,
morar na comunidade em que congrega permite ao pastor conhecer de perto as famílias e suas
necessidades materiais e espirituais, e a propor mudanças em suas vidas. A proximidade entre
religiosos e moradores nas comunidades, propicia encontros que, muitas vezes, podem
provocar mudanças radicais. (RIBEIRO, 2014)

Embora não seja uma questão que apareça com frequência nas falas dos entrevistados,
pude perceber o movimento de migração das pessoas de Igrejas mais distantes para Igrejas
dentro ou no entorno da comunidade. Seja pela comodidade ou pela necessidade de estar em
comunhão com quem vive situações similares, o fator proximidade se revela como uma
questão comum em quase todas as entrevistas.

Para alguns entrevistados, é possível traçar um paralelo entre a figura do pastor e a


figura da médica ou médico de família e comunidade atuando na Clínica da Família. Como a
MFC é uma especialidade médica recente no país e que, ao contrário das outras
especialidades, não se volta para um grupo etário ou parte do corpo específica, sua
compreensão torna-se um desafio para os usuários.

“Hoje, Deus conhece o meu coração, se Ele chegasse hoje, e eu não fosse pastora, se
Ele, por acaso, me perguntasse, eu falaria que não, porque é uma responsabilidade
com a vida dos outros, muito grande, muito grande. É, viver, é coisas que, que não
eram pra eu viver e eu, eu acabo vivendo (...) então você acaba indo, estando em
coisas que não eram pra você estar e acaba aquilo mexendo um pouco com teu
coração. Eu não precisava saber, eu não precisava estar e a gente acaba entrando.
Como um médico, né, de família. A gente acaba vivendo aquilo. E o ruim é levar pra
casa. Eu faço tudo pra desvencilhar. Senhor, não vou levar isso pra casa. Não vou
levar isso pra casa, quando não vê eu tô em casa já tô chorando, já tô deprimida com
a situação de, de outra pessoa.” (Entrevistada O)

A igreja de humanidades
“A Igreja é feita pelo homem, representa a Doutrina a partir da
interpretação do homem e por isso é passível de falhas, mas a fé, a palavra de Deus
não são.”

“Aí eu saí por ver coisas que a gente vê, entendeu? Mas a religião é complicada,
tanto seja espírita, como católica, como... você vai ver coisa mesmo porque ninguém
é perfeito, perfeito é só Deus, então você vai ver em qualquer religião que tem
defeitos, tem qualidades e tem defeitos, então eu saí da outra vez por isso, aí voltei

97
pra evangélica, voltei pela dor, não foi pelo amor, entendeu? Voltei pela dor no
sentido, fiquei doente e tal, com depressão, entendeu? E eu era espírita, eu saí da
igreja e fui pra espiritualidade” (Entrevistada B)

“Eu tive uma decepção muito grande com essa igreja , Segunda , que eu era , e
assim, todo, todas as, é a minha percepção, todas as igrejas daqui, é...não vou dizer
que aceitaram, mas fizeram parte do que aconteceu e que não me fez bem na época,
entendeu? Aí eu preferi sair e fiquei procurando outras depois que saí.”
(Entrevistada L)

Em quase todas as entrevistas e em muitas conversas durante a pesquisa de campo


aparece, em algum momento, um momento de decepção com alguma denominação ou com
um episódio de corrupção de membros da Igreja. O que chama atenção não é essa recorrência,
mas o fato de que, apesar desse momento crítico, a grande maioria dos entrevistados, quando
se afasta, o faz por um período e logo busca outra denominação para fazer parte. Esse
movimento revela que fazer parte de uma denominação evangélica pentecostal é mais
importante, para os entrevistados, do que a índole ou moral de cada Igreja ou das pessoas que
dela participam.

É interessante perceber que existe um desequilíbrio na forma como membros da Igreja


encaram fatos e atividades de corrupção de uma denominação ou de uma pessoa desta
denominação e como este mesmo fato é visto pelas pessoas mundanas (que não fazem parte
da Igreja). Enquanto, para os primeiros, esses eventos são esperados e justificados pela
humanidade dos membros da Igreja, para os demais, os fatos ferem a moral pentecostal de
maneira irreversível, mostrando que os principais envolvidos na organicidade das Igrejas
pentecostais são imorais. Se sim ou se não, o fato é que, aparentemente, o que mobiliza, cativa
e mantém os membros das Igrejas pentecostais não são as pessoas que as gerem, mas sim o
que a Igreja é capaz de proporcionar em termos de sensações, de apoio, de acolhimento e
conforto, em meio a um cenário de opções escassas.

Se, para o senso comum de pessoas que observam as denominações evangélicas


pentecostais do exterior, a rigidez de regras e condutas da Igreja sobressaem como
característica estruturante, para muitos dos membros entrevistados, essas características
aparecem como aspecto importante, mas não estruturante do processo de viver a fé cristã
pentecostal. Em alguns relatos a frase “Tudo posso, mas nem tudo me convém” surge para
explicar que, mesmo dentro da doutrina, existe o livre arbítrio e as escolhas individuais de

98
cada pessoa. Para outros entrevistados, no entanto, as regras rígidas são muito importantes,
para manter os membros da Igreja e a si mesmos no caminho certo da palavra de Deus.

Então assim, eu sou livre, eu posso fazer tudo que eu quero. Apesar de ser da igreja
eu posso fazer tudo que eu quero, mas a bíblia diz: tudo me é permitido, mas nem
tudo me convém. Entendeu? Porque que eu pensava naquela época que eu não ia
poder mais usar meu short curto, minha saia, não ia poder mais ir pro pouco pagode
que minha deixava... E eu vi que não é assim, depois que eu aceitei Jesus eu
continuei fazendo isso tudo. Continuei usando meu shortinho, continuei bebendo
minha cerveja, continuei bebendo meu vinho, continuei indo pro meu pagode,
continuei indo pro meu baile e aos poucos o que não era pra fazer eu fui deixando
sem ninguém falar pra mim "Oh, você não pode fazer." Entendeu? O próprio espírito
santo de Deus foi me convencendo de que aquilo ali eu posso até fazer, mas não me
faria bem (Entrevistada A).

Eu não vou pra pagode e samba, isso não me pertence. Mas quem disse que
evangélico não pode se divertir? Não pode ir no cinema, num teatro, viajar. Hoje em
dia tem igreja pra todo mundo, eu sigo na minha obra e na minha missão. Hoje só eu
estou na igreja, meu marido e os filhos não estão mais, eles crescem e decidem por
si, mas eu sigo na igreja, eles têm os compromissos deles e eu tenho os meus
(Entrevistada P).

Esses dois fragmentos acima trazem a percepção de regras e doutrinas fluidas dentro
da Igreja. Apontam para a pluralidade de possibilidades que as denominações evangélicas
pentecostais têm oferecido. No entanto, é importante ressaltar que, para muitos moradores da
comunidade, as regras e as doutrinas ainda se colocam como fator de afastamento dos espaços
pentecostais.

A homossexualidade, tema polêmico para as Igrejas de uma maneira geral, é tratada


por alguns entrevistados como uma questão a ser abordada com cuidado, com respeito, mas
onde o conflito de ideias permanece. A palavra de Deus, de acordo com alguns entrevistados,
determina que o Homem e a Mulher foram feitos um para o outro e esta perspectiva é
imperativa. Contudo, são apontadas denominações pentecostais que aceitam homossexuais em
suas comunidades. Essa fluidez na interpretação dos dizeres bíblicos pode representar um
aceno para uma reflexão menos estreita dos signos da bíblia, assim como pode ser apenas a
tentativa de alcançar um público socialmente marginalizado, a população LGBT, em
crescente visibilidade na sociedade.

99
eu tenho minha opinião e minha verdade da bíblia. Deus criou o homem e a mulher
para formar uma família. Não significa que a minha opinião seja verdade para as
outras pessoas. Eu respeito todo mundo, eu tenho a minha verdade que eu já disse
qual é, mas respeito as pessoas todas. Não é porque eu tenho minha opinião, que é
homofobismo, eu não quero impor e nem que você faça o que eu quero, mas tenho
minha opinião e respeito os outros. Eu acho que respeito é o mais importante pra
todo mundo, o mundo seria muito melhor se as pessoas se respeitassem mais. Na
igreja as vezes as pessoas não se aceitam. Deus já disse, eu preciso me amar pra
amar o outro. As pessoas precisam se amar e se aceitar pra depois poderem amar os
outros.” (Entrevistada P)

O processo para se tornar pastor dentro da Igreja também varia conforme a


denominação evangélica que se está estudando. Para algumas é preciso estudar teologia por
quatro ou mais anos, enquanto, para outras, o processo envolve apenas o chamado de Deus
para fazer a obra. Alguns relatos trazem aspectos interessantes sobre como acontece essa
caminhada na Igreja.

Em alguns deles, a carreira religiosa é comparada com a carreira empresarial. A


pessoa, ao mostrar um bom trabalho no processo de evangelização, cresce em
responsabilidades e prestígio dentro da Igreja. Embora este não devesse ser um caminho que
apresenta o preterimento de uns em relação à outros, ele se assemelha ao ocorre na escalada
empresarial meritocrática.

“Eu não tinha na mente esse caminho, não pensava nisso, fui caminhando, como
numa empresa você vai subindo de posição. Só estar na igreja não me garante nada,
tem que seguir os preceitos da bíblia sim, o que ta escrito. Senão não serve de nada.”
(Entrevistado J)

“fui crescendo dentro da igreja, fazendo a obra e estudando dentro da igreja.


Evangelizava e fazia obras dando aula. Não pretendia ser pastor, as coisas foram
acontecendo naturalmente.” (Entrevistado G)

Se, para o gênero masculino, o caminho para pastorear parece descomplicado e


natural, em algumas Igrejas, as mulheres não-casadas não podem se responsabilizar por
papéis mais importantes. Em outras denominações, como algumas vertentes da Assembleia de
Deus, não é permitido que mulheres exerçam o papel de pastoras, sendo essa uma função
exclusivamente masculina. Nessas correntes da Assembleia de Deus, mulheres não podem
assumir esse posto uma vez que não existe na bíblia relato de mulheres como pastoras no
100
passado, assim, o papel mais importante que a mulher alcança nessas denominações é o de
esposa do Pastor.

“Eu participo assim do culto, ajudo na limpeza da igreja, assim, entendeu? Por eu
não ser casada, porque tem uma norma dentro da igreja, né. O evangelho, você tem
que tá casada pra você seguir o ensinamento, porque você tem que ter uma
comunhão com Deus. Isso na palavra de Deus diz que você tem que tá casada
entendeu? Porque você tem que tá com a vida no altar e como eu ainda não sou
casada, ainda tô na peleja do casamento eu sou só um membro da igreja entendeu?”
(Entrevistada B)

“Se você procurar a bíblia você não vê que tem ninguém, nenhuma pastora, têm
pastor! Entendeu? Pastora não. Mas hoje em dia as coisas foram evoluindo e tudo e
o homem assim ser humano, né? Foi percebendo que a mulher tem uma voz na
Igreja, tem uma influência na igreja. Então, hoje em dia algumas igrejas consagram
a mulher do pastor a pastora ou se não for mulher do pastor também. Se a pessoa
tiver um chamado, tiver um desenvolvimento, ajudar as pessoas, entendeu? Tiver
uma função da igreja, a igreja reconhece como pastora.” (Entrevistada A)

Muitas pesquisas debruçam-se em estudar o papel das mulheres e o machismo


presentes dentro da Igreja. Se uns afirmam que as denominações evangélicas respeitam pouco
e oferecem pouco espaço para as mulheres dentro da Igreja, outros sugerem que a mulher tem
centralidade no vínculo entre a família e a Igreja, e por isso são muito valorizadas, respeitadas
e consideradas nos processos internos das Igrejas. Seja por uma ou outra perspectiva, fato é
que a cultura machista e patriarcal não é colocada em xeque em nenhum momento por essas
Igrejas.

A maior parte dos seguidores da religião evangélica pentecostal é negro (MARIANO,


2008) e é possível perceber uma quantidade significativa de pastores evangélicos negros nas
Igrejas da comunidade e do entorno. No entanto, no espaço públicos de televisão, essa
representatividade não aparece da mesma maneira. Em uma entrevista, a questão do racismo é
apontada como uma situação que ocorre dentro da Igreja e que precisa ser combatida.

Não abraça. Finge que tá legal, mas, não. Não tá legal. Nem na questão de pele, na
questão de cabelo. Já fui abordada várias vezes. Quando eu chego pra dar palestra,
pra pregar e a pessoa já fala assim... Eu cheguei com uma moça branca, e ela que
tava dirigindo, e quando eu passei, ela: “rapaz, pastora” falou com a menina. Ela
falou que não, (apontou pra mim) ela que é. “Aí meu Deus! Eu pensei em uma
pessoa tão diferente”. (Entrevistada O)
101
O machismo, o racismo, a LGBTfobia são formas de violências estruturais produzidas
pelo meio social e reproduzida pelas pessoas inseridas nesse meio. No âmbito das Igrejas
pentecostais essas formas de violência também se reproduzem, uma vez que são espaços
construídos e organizados por pessoas que também fazem parte do meio social, por mais que
seus motivos de associação sejam a comunhão da fé e a transcendentalidade.

“(Reunião na associação de moradores) que foram várias pessoas de várias igrejas.


Se aquilo dali não morresse, eu não sei se continua ou não, mais se aquilo ali
continuasse, entendeu? Eu acho que seria o caminho pra poder a gente, entendeu, se
unir mesmo como igreja e tentar resolver, tentar fazer alguma coisa pelo povo,
contra a violência, entendeu? Mas infelizmente as pessoas, as igrejas cada um pensa
muito no seu umbigo sabe. Porque acha que " Ah, a igreja de fulano de tal usa véu, a
minha não usa é melhor" ou " A minha que usa véu é melhor" "Deus tá mais aqui do
que ali" Não. Aquela igreja ali pode usar calça, aquela ali não pode. Coisas do
homem, não é coisa que vem de Deus. Porque Deus não tá preocupado com isso,
entendeu? Isso é só um detalhe que lá na frente a gente vai resolver.” (Entrevistada
A)

“Acho que tem igreja que tem espaço suficiente pra dar curso. Tem gente inteligente
na igreja pra fazer isso. Tem gente com estudo, mas ninguém se une pra fazer isso.
Tendeu? A não ser se eu dou o curso e a pessoa fica na minha igreja, mas eu vou dar
o curso pra criança que não tem igreja nenhuma. Pra mãe que nem crente é. Eu acho
que a mente tá muito fechada, assim. Tem pastor que dá Muay Thai há mais de dez
anos, mas só pras pessoas da igreja dele. Só pras crianças deles. Uma porção de
criança precisando. Podia fazer e não faz.” (Entrevistada C)

As disputas para definir qual Igreja é melhor ou mais capaz de seguir à risca a doutrina
bíblica, para os entrevistados, muitas vezes se coloca à frente da possibilidade de união dessas
denominações para promover ações sociais no território do Jacarezinho que sejam benéficas
para toda a comunidade.

Um tópico que surge em algumas entrevistas é a relação que se estabelece entre


evangélicos pentecostais e o sistema formal de saúde. Para alguns dos entrevistados,
antigamente os pentecostais entendiam que os processos de cura tinham relação direta e
exclusiva com a fé e a vivência religiosa. Essa percepção está se modificando, de acordo com
entrevistados e, cada vez mais, os membros das denominações evangélicas têm entendido e
valorizado o papel tanto da fé religiosa como desse sistema no bem-estar das pessoas. Essa
construção possibilita uma maior aproximação entre o sistema formal e as denominações
102
pentecostais, com a finalidade de oferecer um cuidado em saúde mais integral para a
população, que é o cerne da proposta da atenção primária à saúde.

Eu vi pessoas morrerem de AIDS porque achavam que estavam curadas quando não
estavam, eu vi pessoas pararem tratamento e isso acontece hoje, mas muito pouco. E
foi o que eu te falei, tem uns crentes novos que tão molhado, tão cuidando da saúde,
tão se alimentando direito, coisas que gente...botar esses pontinhos (Auriculoterapia)
na orelha Deus me livre! Isso é coisa do Demônio totalmente, eu me lembro tempo
remoto, tempos atrás que isso era coisa do Demônio.
A igreja trabalhar junto com a saúde, né? Porque poderia orientar que as pessoas que
elas têm que buscar a saúde, ela tem que buscar a medicina, assim... até mesmo o
psicológico que eu acho que é a área mais difícil pra gente entender...que a gente
não tem depressão, na visão das pessoas crentes não tem depressão e o que mais tá
acontecendo hoje é crente em depressão. Infelizmente, o que eu ouço falar é de
muito crente com depressão porque não pode se expor, eu não posso chegar na
Igreja e falar " eu chego no meu quarto, eu me sinto como se eu tivesse descendo
uma escada para um buraco (Entrevistada O).

agora se eu tenho uma doença e eu preciso fazer um tratamento nela o que eu tenho
que fazer? Tratar, ambas as partes, tratar nos dois lugares fisicamente e
mentalmente, se eu tô fisicamente sendo tratada e espiritualmente a minha tendência
é o que? É melhorar, agora se eu só me tratar espiritualmente e não fisicamente aí é
Deus que foi culpado não? Aí a minha ignorância me levou pra isso porque temos
que dividir, temos que saber. Sabedoria, Deus fala o que cê sabe, Deus fala o que?
Vigiai e orai não orai pra vigiar, não, você tem que vigiar primeiro entendeu? Então
eu acho assim, eu penso dessa forma, mas tem muita gente que não, tem muita gente
que não, se Deus quiser curar ele vai curar, sim, se Deus quiser ressuscitar ele vai
ressuscitar, se Deus quiser te dar saúde ele vai te dar, mas você precisa também se
cuidar, pra isso que existe os médicos, se fosse assim era muito fácil, Deus falava
assim, ´´ Olha só´´, na palavra ele fala assim, ´´Vou curar´´, não precisa ter médico,
pra que que ele vai estudar? Pra que ele vai dar sabedoria ao homem? Se ele deu
sabedoria ao homem de ser médico é pra nos tratar porque nossa matéria precisa ser
tratada, precisa ser tratada, é o que eu tô falando, fisicamente e mentalmente os dois,
juntos porque é pra isso que Deus fez a medicina (Entrevistada B).

As denominações evangélicas pentecostais desempenham um importante papel social


dentro da favela do Jacarezinho. De certa maneira, possibilitar alguma redução do sofrimento
ou uma melhor acomodação a este, diante de muitas opressões, parece essencial para tornar
possível viver nessa situação. Se, para uns, o caminho da Igreja é uma escolha, para muitos

103
parece ser o único caminho possível. É em meio a cenários como o do Jacarezinho, de grande
sofrimento social, que as Igrejas vêm crescendo de forma mais acelerada e onde encontra
maior público.

Cada uma das denominações têm seus mecanismos próprios de organização interna e
de crescimento, algumas com mais burocracias e outras com menos. A Igreja Universal do
Reino de Deus, por exemplo, exige uma série de requisitos para que seja possível abrir uma
filial que leve seu nome. Já a Assembleia de Deus e muitas das Igrejas batistas pentecostais
não têm muitas pré exigências para que uma pessoa possa abrir uma filial, em seu quintal ou
em outro terreno propício.

Cabe considerar que essas denominações têm ganhado certo status e muito poder, no
plano local e, a cada dia mais, nos planos municipal, estadual e federal. Como aparece ao
longo da pesquisa, as Igrejas têm, hoje, quase tanta influência no território quanto o
narcotráfico, ainda que não precise se utilizar de armas de fogo para reivindicar esse poder.

Em diversos momentos, ao longo da pesquisa, é apontado o quanto a Igreja, por ser


uma instituição organizada e cuidada por seres humanos, é passível de falhas. Inclusive,
muitos são os entrevistados que relatam momentos de grande decepção com membros da
Igreja. Sob a ótica do cuidado, esse é um aspecto que chama atenção: ao mesmo tempo em
que acolhe e ajuda a lidar com o sofrimento, as Igrejas também se apresentam como fonte de
sofrimento para alguns moradores do Jacarezinho.

A aposta em um código de conduta moralmente imposto, seja ele mais ou menos


rígido, implica em excluir pessoas vivam dentro desses padrões ou, ainda, incentivar
comportamentos que sejam adequados a essa conduta moral, a despeito de trazerem prejuízos
para o bem-estar individual. Nesses casos, a Igreja também se apresenta como uma instituição
que promove e mantém opressões. É o caso, por exemplo, de mulheres que se submetem a
relações abusivas para se manterem casadas e, assim, respeitadas dentro da Igreja; ou de
homossexuais, que não assumem sua sexualidade dentro da Igreja pelo risco de serem
agredidos ou expulsos da micro-comunidade da qual fazem parte. Por vezes, quando em
situações de ambivalência, as pessoas buscam no pastor o aconselhamento sobre o melhor
caminho a seguir, uma vez que, sendo hierarquicamente inferiores a ele, não se sentem aptos a
tomar a melhor decisão para si.

104
Embora tragam possibilidades e que muitas delas ainda sejam responsáveis por
trabalhos sociais junto às populações favelizadas, as Igrejas, de uma maneira geral, oferecem
poucos espaços de reflexão sobre o contexto socioeconômico e político que coloca as pessoas
na condição de marginalizados. Elas permitem pouca autonomia e liberdade e fecham seus
membros “entre muros”, elegendo um pequeno grupo de pessoas que pode circular livremente
entre mundanos e reivindicar os interesses dos que estão à margem social. É também com
certa ambivalência que percebo o crescimento das Igrejas nas áreas onde o Estado só se
apresenta através da violência policial, ainda mais por estas receberem isenção fiscal como
auxílio para se manter e ocupar essas regiões. Cabe a reflexão: o dinheiro que o Estado deixa
de recolher com as Igrejas não poderia financiar outros investimentos sociais nas áreas
marginalizadas? E, em isso não acontecendo, quem se beneficia dessa forma indireta de
investimento?

Ao passo que a Igreja cresce como a principal voz das populações


marginalizadas, ela talvez se preocupe mais em acomodar essa população a suas opressões e
oferecer propósitos extra-terrenos para compreender o sofrimento social experienciado, do
que em fazer um movimento de interrupção desse ciclo de opressões. Para a maioria dos
entrevistados, as denominações não são exemplos de integridade e estão sujeitas à corrupção
de seus membros. Ainda assim, o bem-estar imediato que conseguem promover parece mais
importante o que fica evidente quando percebemos que a maioria das pessoas que se
decepcionou em algum momento, acabou retornando à Igreja por sentir necessidade.

Fé x Religião x Denominações
Dentre as entrevistas realizadas, surge um ponto de reflexão sobre as religiões
pentecostais que cabe considerar. Para alguns dos entrevistados, o mais importante aspecto da
Igreja não está em suas regras, doutrinas, ou símbolos, mas na fé que ela mobiliza. A fé, a
espiritualidade sendo a primeira e principal razão para manter o bem-estar e trazer segurança
para aqueles que compartilham desse sentimento. Nesse sentido, algumas pessoas apontam
para o poder da oração e do diálogo diretamente com Deus, sem intermediários como uma
força necessária e fundamental para a vivência da religião.

é que religião significa religar. Religar o homem há Deus, religar o homem ao seu
criador porque religião significa isso porque por causa do pecado o homem foi
desligado e aí surgiu a religião, mas não... é. Porque você liga a religião a
assembleia, batista, presbiteriana... a denominações e não tem nada a ver ou não tem
muito a ver, religião é diferente de denominação. A denominação surge daquilo que

105
eu acho errado, que eu acho melhor pra mim, como eu falei "ah, isso aqui eu acho
que é pecado". Então eu não concordo com isso aqui e vou criar uma igreja que
pensa do jeito que eu penso e vai fazendo uma mistureba. As denominações causam
isso. Porque a gente sabe que Jesus Cristo quando veio a terra não disso "sejais
assembleianos" ou disse "sejais batistas" ou "sejais católicos". Ele não falou nada
disso. Esses dias li um versículo que achei superinteressante "a religião pura e
imaculada é: amar o Senhor sobre todas as coisas e amar o teu próximo como a ti
mesmo" olha que coisa simples. E a gente é que complica, mas a fé é boa a religião a
boa Deus é maravilhoso (Entrevistada E).

É a fé. Tudo tá, eu acho que tudo, tudo que a gente vive tá no meio da nossa fé, que
a gente acredita. Eu acredito em Deus, outra pessoa acredita na, em outo Deus na,
na, Senhora, então. A fé dela tá ali, no que ela acredita. Pra mim, a questão era da fé
mesmo (Entrevistada L).

QUARTA PARTE - Reflexões sobre o cuidado na Atenção Primária à Saúde

Merhy e Franco (2003) definem que o trabalho em saúde, além de ser orientado pelos
saberes científicos, é construído a partir de sua finalidade social, pois se propõe a modificar
alguma coisa e produzir algo novo, e compromete-se, assim, com as necessidades da estrutura
social produtiva e com as necessidades do usuário direto, também atravessadas pelas
construções sociais e por sua singularidade no mundo.

No encontro entre o profissional e o usuário do sistema de saúde, para um ato de


cuidado, estabelece-se uma relação. Esta se dá entre um agente produtor, que tem
conhecimentos técnicos e concepções de mundo, e um agente consumidor, que é em parte
objeto do ato produtivo, mas também agente ativo, que interage e interfere no processo, uma
vez que traz para essa relação seus conhecimentos, suas concepções do mundo e suas
necessidades (MERHY, 2003). Esse encontro, no qual se estabelece o ato de cuidar, acontece
em meio a um cenário de incertezas pois, ao passo que existe uma certa regularidade nos
processos sociais e biológicos de adoecimentos, existe também as singularidades de cada
indivíduo, na maneira em que manifesta, significa e reage às afecções e às propostas
terapêuticas. Mesmo quando a biomedicina tensiona a produção de cuidado para que seja
reproduzido da mesma maneira para todos, ela se depara com as singularidades de respostas e
manifestações biológicas que serão diferentes para os diferentes indivíduos cuidados.

Finalmente, nesse encontro, o profissional de saúde se utiliza de ferramentas


tecnológicas para agir que estão divididas em três grupos – tecnologias duras, leve-duras e
106
leves. As tecnologias duras seriam relacionadas com o saber científico e a capacidade de
realizar investigações diagnósticas e raciocínio clínico a partir do manuseio de máquinas,
equipamentos e protocolos. As tecnologias leve-duras permitiriam ao profissional considerar
as necessidades e apreensões de mundo do usuário, através de saberes bem definidos e
da interação que se estabelece no momento de cuidado, sendo sempre um campo de tensão
entre a dureza do pensamento estruturado e a leveza que o usuário singular e imprevisível
exige. (MERHY e FRANCO, 2003)

A relação que se estabelece no encontro é produzida a partir das tecnologias leves: a


escuta, o acolhimento, a construção de vínculos de confiança. É essa tecnologia que
possibilita captar a singularidade, o contexto, o universo cultural, os modos específicos de
viver determinadas situações, e que enriquece e amplia o raciocínio clínico do trabalhador de
saúde. Também é nesse território que o usuário atua e interage de forma ativa, podendo trazer
sua subjetividade para a relação construída e podendo afetar o profissional e a relação. A esse
campo, onde atuam os processos de subjetivação e afetação nas relações de poder socialmente
estabelecidas, chamamos micropolítica. (MERHY e FRANCO, 2003)

Para Ayres (2001), o ato de cuidar em saúde não se reduz à ação de curar, tratar ou
controlar o outro, como se este fosse um objeto da prática de cuidado. Essas práticas supõem,
no fundo, uma relação estática, individualizada e objetificadora dos sujeitos-alvo de nossas
intervenções. O ato de cuidar pressupõe a subjetividade do sujeito, que é dinâmico e está em
contínua reconstrução, e a intersubjetividade, caráter imediatamente relacional e
irremediavelmente contingente de nossas identidades e historicidades como indivíduos e
grupos. No ato de cuidar, agente e objeto de cuidado são sujeitos que, ao se encontrar,
estabelecem entre si uma relação intersubjetiva que vai interagir e atravessar a ação técnica,
em maior ou menor grau, ainda que a biomedicina tente ignorar isso como fato. (Ayres, 2001)

Como aparecem, naquele encontro de sujeitos, no e pelo ato de cuidar, os projetos de


felicidade ou de sucesso prático de quem quer ser cuidado? Que papel temos desempenhado
nós, que queremos ser cuidadores, nas possibilidades de conceber essa felicidade, em termos
de saúde? Que lugar podemos ocupar na construção desses projetos que estamos ajudando a
conceber? (Ayres, 2001). As reflexões de Merhy (2003) e Ayres (2001) sobre o ato de cuidar
são muito caras para o cuidado em APS. Os questionamentos de Ayres, sobre como as
subjetividades são abordadas na prática clínica, são fundamentais para pensarmos um cuidado
em saúde que se propõe integral, abrangente e que se constrói ao longo do tempo.

107
Numa unidade básica de saúde, uma pessoa que apresenta elevado risco de Infarto
Agudo do Miocárdio, por exemplo, receberá infinitas orientações sobre cessação de
tabagismo, mas talvez tenha pouco espaço para falar das preocupações com o vínculo frágil
de emprego e do valor elevado das contas que tem para pagar no fim do mês; uma mulher
com diagnóstico de diabetes, que faz uso de altas doses de insulina, recebe, por vezes,
recomendações dietéticas, sem ter espaço para contar como cozinhar para a família é único
momento do dia em que sente prazer de viver e que assim consegue forças para lidar com o
alcoolismo do marido; ao homen que está com dificuldade de controlar a pressão arterial é
quase exigido que faça caminhadas diárias, mas lhe é dado pouco espaço de escuta sobre o
medo de andar em sua comunidade e ficar no meio de um conflito armado ou sobre como o
fato de ser preto o coloca em situações de racismo, sendo abordado por agentes da segurança
pública do Estado que o confundem com atores do tráfico; à mulher jovem que tem um teste
rápido de urina positivo para gravidez, é dado parabéns e inicia-se os cuidados pré-natais,
antes mesmo de abordar o desejo e significado daquela gestação para ela, muitas vezes sem
espaço para explorar qual seria sua rede de apoio ou inferindo que a mulher esteja em uma
relação heterossexual monogâmica, sem ponderar as diversas possibilidades outras de
cenários.

Esses exemplos demonstram como, no cenário atual da APS, há pouco espaço para a
valorização das subjetividades, dos desejos, anseios e medos daqueles de quem nos propomos
a cuidar e, também, para a abordagem de contexto, para o reconhecimento deste no processo
de sofrimento e adoecimento das pessoas e de como esse contexto interfere e interage na
prática de cuidado. Em geral, o paciente, que vem em busca de cuidado por estar sofrendo,
tende a ser responsabilizado pelas escolhas que fez, pelo comportamento e ações que tomou,
como se, a partir de outras tomadas de decisões, o sofrimento e o adoecimento pudessem ser
evitados ou contornados. Nessa perspectiva individualista, não há espaço para considerar o
contexto social que tanto produz quanto acolhe e ameniza sofrimento. É como se a
responsabilidade do cuidado em saúde estivesse colocada para cada individuo e este, à parte
de todo o cenário em que se insere e com auxílio do saber científico, fosse capaz de garantir
seu bem-estar. Nesse sentido, por vezes, na prática clínica, retomamos o conceito de saúde
como a ausência de doenças, por mais que este já tenha sido academicamente superado.

Temos reproduzido, na APS, um espaço de cuidado pautado em julgamento, em


silenciamento de opressões e de hierarquização de saberes, que subjuga o usuário e o
enquadra em protocolos baseados em evidências científicas, geralmente construídas em
108
cenários sociais distintos dos do Brasil, mas aqui aplicados como verdades incontestáveis e
capazes de promover saúde e bem-estar. Por sua complexidade, a abordagem comunitária, que
valoriza contexto e os diversos aspectos sociais que contribuem para o sofrimento e
adoecimento, tendem a ficar marginalizados ou esquecidos nos espaços de cuidado em saúde,
bem como as perspectivas pessoais do indivíduo e seu projeto de felicidade, tendem a ser
invisibilizados diante da necessidade de enquadrar as pessoas em determinado diagnóstico e
seguimento protocolar de ações de cuidado.

A cosmologia pentecostal, por outro lado, ao propor a luta do bem contra o mal,
oferece para seus integrantes uma perspectiva de construção de discurso em que escolhas e
comportamentos considerados ruins ou desviantes podem ser lidos como fruto da ação do
mal, do diabo, de forças ruins agindo sobre eles. Nessa perspectiva, a culpabilização por ações
erradas do passado podem ser relevadas, uma vez que a pessoa ainda não havia sido libertada
ou entrado em contato com a palavra. A pessoa, quando passa a compor o mundo evangélico
pentecostal, tem a oportunidade de libertar-se do mundo de pecados do passado e sabe que
incorrer em novas atitudes erradas pode ser fruto de forças do mal agindo sobre si, por alguma
situação de vulnerabilidade. Nessa percepção do mundo, existe um espaço menor para a culpa
e o remorso, pois estes podem ser compartilhados ou terceirizados. O ambiente e o convívio
na Igreja são os espaços para apoio mútuo e renovação da fé na busca por manter-se imune a
forças do mal.

Enquanto a Atenção Primária e a MFC têm oferecido culpa e julgamento, o espaço das
Igrejas pode oferecer a ressignificação de sofrimentos e ações e, ainda, a possibilidade de
recomeço a qualquer momento em que a pessoa se sinta sensibilizada.

Na medicina de família e comunidade, dá-se, atualmente, um significativo valor ao


que se chama de Medicina Baseada em Evidências (MBE), onde a prática clínica se baseia
nas melhores e mais atuais evidências científicas, buscando evitar iatrogênias e intervenções
desnecessárias e oferecendo aquilo que se entende como o melhor cuidado em saúde, com a
produção e aplicação de protocolos e linhas de cuidado que sejam facilmente reprodutíveis
por um MFC em qualquer cenário nacional. Essa tendência de valorização da MBE, uma
tecnologia-dura, em um cenário médico nacional (e internacional) onde existe
hipervalorização de exames complementares, intervenções e medicalização de forma
indiscriminada, é fundamental para garantir boas práticas de cuidado. No entanto, o uso desta
em detrimento do, ou em desequilíbrio com, o investimento nas tecnologias relacionais

109
aparece como um problema complexo. Em que medida nós, médicas e médicos de família e
comunidade, estamos atentos a subjetividades do outro? Como nos esforçamos para incluir o
contexto familiar e comunitário no encontro clínico? Estamos investindo nessa relação que se
estabelece entre nós e o outro e estamos nos permitindo afetar? Como se encontra o equilíbrio
entre o uso de tecnologias leves e duras no ato de cuidar que nos propomos a realizar?

A Medicina Baseada em Evidências permite um cuidado em saúde qualificado apenas


quando alinhada ao Método Clínico Centrado na Pessoa, que permite a individualização e o
reconhecimento das subjetividades de cada pessoa, valorizando vivências contextualizadas e
respeitando o aspecto relacional estabelecido entre a pessoa cuidada e o profissional de saúde
médico.

É necessário ponderar que a realização do ato de acolher e criar vínculo, demanda


tempo e espaço adequados para que ocorra. Embora não seja possível quantificar esse tempo,
quando um processo de trabalho se organiza de maneira caótica, é de se esperar que privilegie
o uso de tecnologias duras, que são rígidas, práticas e permitem uma diminuição do campo
das incertezas da relação, transformando o ato de acolher em ouvir sem ser capaz de escutar
de verdade. Então, para que o cuidado em APS aconteça segundo suas atribuições e de
maneira humanizada, é preciso garantir condições de trabalho razoáveis, como, por exemplo,
uma relação de 2000 a 3500 usuários por equipe de saúde da família como recomenda a
Política Nacional de Atenção Básica (PNAB) e que poucos municípios do país têm
respeitado. (BRASIL, 2017)

A utilização de tecnologias leves de cuidado prescinde disponibilidade,


amadurecimento emocional e disponibilidade para se deixar afetar pelo outro. Em primeiro
lugar, é preciso reconhecer que o outro detém saberes e conhecimentos que devem ser
valorizados, e que, embora diferentes dos conhecimentos trazidos pelo profissional, também
têm papel fundamental no cuidado que se estabelece. Precisa o profissional estar disposto a
considerar possíveis outras perspectivas de mundo, outras maneiras de significar e realizar a
vida.

Além disso, para estar com e acolher o outro, é preciso ser capaz de estar consigo,
olhar para si e para as afetações que se apresentam. Ora, se falta à biomedicina capacidade
para perceber o outro, também são escassas as ferramentas que ela propõe para o
autoconhecimento e autopercepção. Balint, em seu livro “O médico, o paciente e a doença”
(1988) postula que o remédio mais usado na medicina é o próprio médico, e, paradoxalmente,
110
pouco se sabe sobre a posologia, os efeitos colaterais e adversos dessa prescrição. Ao fazer
essa colocação, Balint chama atenção para a necessidade de se investir no aprofundamento do
estudo da relação entre médico e paciente e nos efeitos positivos e negativos que essa relação
traz para os dois polos envolvidos nessa relação (Balint, 1988). Por vezes, a afetação de
profissionais de saúde inseridos em favelas e áreas marginalizadas, como a do Jacarezinho,
por exemplo, acontece pelo medo ou pela sensação de insegurança que surge com as
vivências de operações policiais e momentos de tiroteios. Esses sentimentos vão modificar a
forma como muitos vão se relacionar com o trabalho e com as pessoas que cuidam. É urgente
a necessidade de olhar com especial atenção para como os profissionais lidam com esses
sentimentos despertados.

Essa necessidade, de se disponibilizar emocionalmente para o ato de acolher, é uma


das questões que torna a aplicabilidade dessas tecnologias leves complexa e desafiadora na
prática clínica, uma vez que os profissionais de saúde são formados, em sua maioria, para e
pelo modelo biomédico de cuidado. Acolher, gerar e fortalecer vínculo, estar próximo,
empatizar e estimular autonomia são práticas estruturantes para a APS e para a MFC, mas,
para que sejam colocadas em prática, é preciso que sejam ensinadas e valorizadas ao longo
dos processos de formação. Quando se fala, na pesquisa, sobre o papel do pastor, chama
atenção a preocupação com o cuidado ofertado a essa pessoa que, por ser a referência da
Igreja, é a pessoa que acolhe e participa dos problemas que acontecem com quase todos os
membros. É interessante perceber essa preocupação no campo da Igreja e a forma como esse
tema é pouco valorizado dentro das práticas de saúde.

Uma das ferramentas utilizadas pelas denominações evangélicas pentecostais para


lidar com o sofrimento de seus participantes é o investimento no processo de acolhimento,
prática essa que confere sensação de conforto, de alívio e que ameniza o sofrimento de alguns
moradores da comunidade, como relatado previamente. O poder falar, ter alguém disposto a
ouvir e que demonstra verdadeira preocupação e afeto, sentir que outra pessoa se importa com
aquilo são lembrados, em diversos momentos, como essenciais para o sentir-se bem dentro da
Igreja e têm um poder por si só de amenizar sofrimentos. Para além do acolhimento, as
relações que se estabelecem entre os próprios membros da igreja, entre eles e o pastor ou entre
eles e as pessoas que pretendem evangelizar (afetar) se mostram aspectos importantes na
produção da sensação de bem-estar. O que quero destacar é essa prática relacional, essa
micropolítica dos afetos que propõe e produz cuidado.

111
Além disso, quando se fala na pesquisa sobre o papel do pastor, chama atenção a
preocupação destes e dos outros membros da congregação com o cuidado ofertado a essa
pessoa que, por ser a referência da Igreja, é a pessoa que acolhe e participa dos problemas que
acontecem com quase todos os membros. A preocupação com os pastores pressupõe a
percepção destes como pessoas, como alguém que, ao se relacionar, afeta e pode ser afetado,
ainda que sua vivência espiritual seja hierarquicamente superior à dos demais membros da
igreja. O paradigma biomédico, em sua fragmentação do indivíduo e na sistematização de
protocolos instrumentais, além de despersonalizar o objeto de cuidado, despersonaliza
também o agente cuidador, que domina e reproduz técnicas, aplica protocolos, mas não se
comove com o ato de cuidar.

A importância das dimensões da espiritualidade e da religiosidade torna urgente a


necessidade de incluí-las no cuidado em APS. Compreender de que maneira se dá sentido à
vida parece essencial para a relação de cuidado e para a formulação e realização de um plano
compartilhado. Não abordar esse aspecto da construção social dos sujeitos é, de certa maneira,
negar parte de sua subjetividade.

Ao passo que, em muitas falas, pude perceber uma depreciação do Jacarezinho, o


julgando como território violento, responsável por más escolhas na vida e por produzir
sofrimento, o mesmo território é apontado como produtor de caminhos possíveis para lidar
com esse sofrimento. As potencialidades de um território vivo e dinâmico, como a favela do
Jacarezinho, por vezes nos passam despercebidos, por exemplo, quando não consideramos as
práticas religiosas locais.

Outro aspecto apontado na pesquisa é o enaltecimento do apoio social (sob o nome de


comunhão para os entrevistados) como forma de lidar com a violência estrutural e o
sofrimento social, aumentando a capacidade de suportar ou até gerando uma sensação de
controle sobre as situações estressantes. A sensação de pertencimento, as trocas e o apoio-
mútuo são sinalizadas como fatores que contribuem diretamente para a manutenção do bem-
estar de seus membros.

O campo da saúde pública já reconhece, há algum tempo, a relação positiva entre o


apoio social e o bem-estar das pessoas. No entanto, ao refletir sobre como a Atenção Primária
à Saúde tem valorizado esta relação ou como tem se proposto a interagir com esse
mecanismo, percebe-se o pouquíssimo investimento que vem sendo feito. Seja pela busca ou
interação com equipamentos sociais comunitários capazes de promover o apoio social ou pelo
112
investimento em atividades coletivas que possam criar esses espaços de cuidado, a APS tem
gradativamente conferido menor importância a essa prática.

Pensando em criar espaços coletivos de cuidado e tentar abordar o sofrimento que essa
população vivencia, propondo um grupo de conversa sobre violência, me parecia uma ideia
inicialmente convidativa. Hoje, compreendendo a perspectiva de muitos usuários, soa tão
inocente quanto inadequado. Afinal, por que alguém iria sair de casa para se sentar, com
desconhecidos e comigo, em um espaço institucional do mesmo Estado que o oprime, a
Clínica da Família, para discutir algo que está presente em seu cotidiano, mas sobre o qual eu
não tenho nenhum domínio prático? É preciso dispor de certa arrogância para achar que esse
convite faria algum sentido para os moradores do Jacarezinho.

Propor atividades coletivas que possam promover apoio social parece um caminho
interessante como oferta de cuidado, como afirmam os teóricos da educação popular em
saúde. No entanto, a primeira coisa que se faz necessária, ao propor uma atividade coletiva,
principalmente quando tem por objetivo promover trocas e apoio mútuo, é que essa proposta
seja uma demanda ou uma necessidade dos usuários, reconhecida por eles e não uma
necessidade ou um desejo exclusivo do profissional de saúde. Por exemplo, a partir dos
resultados levantados na pesquisa, talvez no lugar de propor uma atividade coletiva sobre
violência, seria interessante oferecer espaço para discussão sobre educar crianças e jovens no
Jacarezinho, aspecto trazido por muitos dos entrevistados, e que, ao invés de em uma
abordagem individual no consultório, seria melhor abordado coletivamente, com pessoas que
vivenciam essas dificuldades sendo convidadas a trocar ideias e construir caminhos possíveis.

Para além da tarefa de propor temas que sejam interessantes para os usuários, é preciso
se comprometer a estar em grupo, um ambiente no qual, diferente do consultório, o
profissional não detém nenhum controle sobre as variáveis. Nesses espaços coletivos é preciso
lidar com diferentes objetivos e expectativas, com imprevisibilidades, com o reconhecimento
da vontade e da velocidade do grupo, em detrimento das vontades pessoais. Ou seja, além de
dominar as técnicas já bem descritas de facilitação de grupo, é preciso estar à vontade com o
baixo controle de situações, sensação pouco familiar para a maioria dos profissionais de
saúde. Assim, em geral, privilegia-se o cuidado individual, a consulta ambulatorial, como
caminho para lidar com os mais variados aspectos do sofrimento. As atividades coletivas
usualmente ofertadas, como grupos de renovação de receitas, de orientação alimentar ou de

113
escovação dentária, embora sejam atividades coletivas, não se propõem a gerar autonomia,
pertencimento ou trocas entre seus membros.

Surgiram, ao longo da pesquisa, outras percepções: os moradores da parte alta do


morro vivem um pouco mais tranquilos, em relação à violência armada, porém, têm mais
dificuldade de acessar a unidade de saúde, que se localiza na parte baixa; as pessoas mais
idosas, por sua dificuldade de locomoção, sentem-se mais expostas ao risco de ficar presas em
um tiroteio; as mulheres costumam falar sobre o sofrimento de ter filhos ou maridos presos ou
mortos, sobre a necessidade de manter casamentos que não são saudáveis como forma de se
manter na Igreja ou de se proteger de outras violências; mães, principalmente, e pais
convivem com o medo dos filhos se envolverem com o tráfico de drogas ou serem mortos em
conflitos armados; os moradores negros relatam diversas vivências de racismo. Essas
situações apontam para uma questão fundamental para a prática de cuidado em APS: ela
precisa ser pensada de forma equânime, ou seja, com ofertas de cuidado diferentes para as
pessoas que sofrem de maneiras e por motivos diferentes. O cuidado em APS, seja em cenário
individual ou coletivo, precisa atentar para o fato de que os moradores do Jacarezinho,
embora estejam expostos a uma situação de violência estrutural similar, a de classe social,
experimentam esse sofrimento de maneiras distintas. Crenshaw (1991) sugere que alguns
grupos específicos estão submetidos a uma interseccionalidade de opressões, ou seja, são
oprimidos por sua condição social, mas também por seu gênero (mulher) ou por sua raça
(negros), por exemplo. Essa interseção de opressões submete alguns a maneiras novas e
distintas de opressão e vão provocar outras vivências de sofrimento. É o caso das mulheres do
Jacarezinho, que sofrem com a violência estrutural, mas também sofrem com o machismo e
os altos índices de feminicídio na comunidade, ou da população LGBT, que ainda vivenciam
a opressão do tráfico e de boa parte da comunidade evangélica local. (CRENSHAW, 1991)

Por todo o exposto acima, para atuar na APS, ainda que no âmbito individual, é
necessário ter conhecimento do contexto social que envolve a pessoa de quem se propõe a
cuidar e, a partir deste panorama, individualizar as experiências de sofrimento e adoecimento.
A máxima da abordagem centrada na pessoa não pode ser confundida com o atendimento da
pessoa de forma asséptica, sem considerar seu contexto e sua inserção social. Ainda que o
profissional de saúde não esteja convencido ou disposto a pensar ou promover atividades
coletivas em seu território, reconhecer as que existem, dialogar com estas e pensar estratégias
conjuntas para lidar com as necessidades em saúde dos usuários é parte do trabalho que esse
nível de atenção se propõe a realizar.
114
O sistema profissional de saúde, por vezes, foi referido na pesquisa como o local que
oferece remédios para amenizar a dor e o sofrimento. Se, por um lado, é importante que se
construa a imagem do setor saúde como caminho para diminuir o sofrimento, é angustiante
perceber que nossa prática de cuidado, que deveria ser integral, longitudinal, equânime e
contextual, tem se reduzido a medicalizar o sofrimento.

Pergunto: a que interesses serve a prática clínica que ignora a raiz do adoecimento e
age de modo a silenciá-lo e manter a população marginalizada e oprimida funcional e
produtiva? Enquanto seguimos aumentando ao máximo as doses de anti-hipertensivos e
ajustando constantemente a insulina, esses indivíduos seguem sofrendo eventos vasculares
agudos a cada nova operação policial na comunidade, seguem perdendo direitos
constitucionais e se adaptando, como possível, a uma sociedade cada vez mais opressora para
muitos e que garante privilégios a outros.

Quando a declaração de Alma Ata (1978) coloca que os sistemas baseados na Atenção
Primária à Saúde são essenciais para o desenvolvimento e a justiça social, espera-se que este
nível de atenção realize um cuidado em saúde comprometido com as questões sociais que
interagem com o processo de adoecimento da população. Ainda que isso não signifique dizer
que esse nível de atenção tenha a responsabilidade de promover uma revolução social, ele
deveria estar, ao menos, comprometido com a não reprodução dos diversos tipos de violências
aos quais a população está submetida.

Olhando tão de perto e se permitindo ser afetado pelas desigualdades promovidas no


nosso país, precisamos, enquanto médicas e médicos de família e comunidade e enquanto
profissionais da APS, decidir se a nossa prática de cuidado será pautada em apenas
medicalizar o sofrimento da população ou se vamos nos engajar no combate aos sofrimentos,
seja apenas não silenciando as opressões vivenciadas, ou seja atuando de forma ativa,
intersetorial, interseccional e em conjunto com a população no combate a elas.

A Atenção Primária à Saúde, por fazer parte e ser a articuladora de um Sistema Único
de Saúde cada vez mais precarizado, percebe mais as dificuldades de manter o compromisso
com a humanização e justiça social no Brasil. Seja no plano nacional, estadual ou municipal, a
rede de atenção à saúde tem se mostrado cada vez mais débil, ineficiente e incapaz de atender
às demandas da população. No caso do município do Rio de Janeiro, com a fragilização dos
vínculos trabalhistas e uma gestão cada vez mais centralizadora e menos dialógica, a APS
vem sofrendo perda de profissionais da rede pública tanto para outros municípios quanto para
115
a rede privada de saúde. Nos últimos dois anos, a violência institucional sofrida por esses
profissionais, através de atrasos salariais, demissões, redimensionamentos territoriais com
aumento do número de pessoas cadastradas para cada equipe de saúde da família e
intervenções diretas na organização do processo de trabalho das equipes de saúde, tem sido
responsável por mais sofrimento entre os profissionais de saúde do que a violência estrutural
ou os ecos da violência urbana.

Ora, como demandar comprometimento e afetação em um cenário de incertezas? A


micropolítica das relações de trabalho que se estabelecem nessas unidades básicas tendem a
reproduzir cada vez mais trabalho morto (instrumental, protocolar e despersonalizado),
deixando menos espaço para o trabalho vivo em ato, para a criatividade, para as
intersubjetividades e para as afetações. Esse desinvestimento na área da saúde, que deveria ser
a responsável por conferir desenvolvimento e justiça social para a população, interessa a
quem?

O ato de cuidar em saúde, por si só, é um ato desafiador, por todas as nuances
presentes na relação que se estabelece. Praticar esse cuidado em saúde em uma sociedade
extremamente desigual, que marginaliza e oprime uma parcela significativa de seus membros,
é ainda mais complexo. Ainda assim, fazer desse cuidado um ato de resgate da cidadania, de
retomada de dignidade e de estímulo à autonomia das pessoas é o papel da Atenção Primária à
Saúde no Sistema Único de Saúde. Se não é possível pensar em um modelo eficiente de setor
profissional de saúde sem que haja grande investimento na APS, também não é possível
considerar uma APS de qualidade que não valorize os princípios de equidade e integralidade
na sua forma de coordenar o cuidado da população nesse sistema. A prática de cuidado em
saúde não é neutra, ela é essencialmente um ato político.

116
CONCLUSÃO

A pesquisa realizada é plural e unilateral. É plural ao acolher perspectivas diferentes


dentro da fé pentecostal e unilateral ao se aproximar apenas das pessoas evangélicas
pentecostais e suas perspectivas sobre a experiência de crescer e viver na favela do
Jacarezinho. Cabe propor, como seguimento para a pesquisa, uma investigação sobre outras
perspectivas presentes na comunidade, e as semelhanças e diferenças que podem ser
encontradas entre elas.

Seja por seu caráter abrangente e integrador, seja pela ampliação da perspectiva do
modelo biomédico, ou pelo necessário compromisso com o outro em seu contexto familiar e
comunitário, a Atenção Primária à Saúde se apresenta como uma área de desafio continuado
para a atuação médica. Esse cuidado em saúde na Atenção Primária, no entanto, só é possível,
em sua essência, com uma comunicação bem estabelecida entre profissionais de saúde e
usuários, onde todos se permitem aprender, trocar e interagir, e se reinventar continuamente,
buscando uma prática de cuidado que também se reinventa e se molda às necessidades
dinâmicas de cada população.

A nossa sociedade, desigual e promotora de injustiças, além de não garantir direitos


para a classe marginalizada, sequestra dela a possibilidade de criar expectativas e sonhos ao
sistematicamente colocar a criminalidade e a violência urbana como condição natural à esta.
Quando, enquanto profissionais de saúde atuando em unidade básica em áreas de favela,
descrevemos o Jacarezinho como “território violento” ou “área de risco”, reproduzimos e
consolidamos essa representação social negativa. Assim como é preciso dar visibilidade para
as violências sofridas por essa população, é fundamental que o território não seja reduzido
apenas a este aspecto, invisibilizando potencialidades e aspectos outros deste e de seus
moradores.

Ainda que trabalhasse no território do Jacarezinho por um longo período, não me seria
possível experienciar o viver em uma região diariamente oprimida, reprimida e negligenciada
da cidade. Compreender um pouco tudo isso só foi possível graças a moradores que, de forma
generosa, têm confiado a mim suas histórias, sensações, percepções e caminhos, me
permitindo aprender muito. Conhecer as religiões evangélicas pentecostais, e como estas se
relacionam com as vivências cotidianas de sofrimento, possibilitou alcançar diferentes
perspectivas e maneiras de ressignificar o sofrimento para muitos moradores da favela do
Jacarezinho. Esse conhecimento, com investimento reflexivo sobre a prática de trabalho em
117
APS, me permitiu perceber uma série de ferramentas de cuidado que essas denominações se
utilizam, na tentativa de aplacar ou melhor acomodar o sofrimento social.

O preconceito gerado pela crise de interpretação das classes médias e altas, onde se
insere a maioria dos profissionais de saúde de nível superior, dificulta o reconhecimento de
saberes populares e a construção de um processo dialógico com esses saberes. A riqueza de
informações, detalhes e aspectos que se perdem só podem ser retomados a partir de uma
postura de humildade cultural desses profissionais, que se coloquem dispostos a entrar em
contato e se deixar afetar por sensações que não lhe são conhecidas e vivenciadas. Ouvir, ler e
escrever sobre as percepções de moradores evangélicos pentecostais da favela do Jacarezinho
sobre si mesmos, sobre seu sofrimento e sua vivência na Igreja é uma excelente maneira de
explicitar o quanto as barreiras de comunicação invisibilizam diversas questões aqui
apresentadas.

De uma maneira geral, o pentecostalismo acolhe, escuta, oferece relações interpessoais


e redes de apoio, oferece opções de lazer e engajamento e de ressignificação da violência
estrutural para seus membros, diminuindo o sofrimento social vivenciado. Por outro lado, a
Atenção Primária à Saúde demonstra, cada vez mais, um predomínio do trabalho morto,
processual e protocolar, em detrimento do investimento na micropolítica das relações. A
necessidade de atender cada vez mais gente, em um período cada vez menor (situação que
acontece especialmente na cidade do Rio de Janeiro neste momento em particular, mas
também em praticamente todo o território nacional, devido ao aumento de pessoas utilizando
o SUS e seu contínuo processo de sucateamento e não investimento pelo Estado), contribui
para a efetivação dessa prática de cuidado que não individualiza, não contextualiza e não
propõe uma relação dialógica com o cuidando. As ferramentas que mais são lembradas pelos
entrevistados não são ferramentas desconhecidas para a APS, mas são ferramentas que vêm
perdendo espaço e valor no contexto do cuidado em saúde.

Esta capacidade da Igreja de gerar apoio social, de tornar as pessoas membros de um


grupo que se apoia, que troca, que cresce junto e que lida coletivamente com as situações
cotidianas, embora não seja necessariamente a principal proposta da religião, traz efeitos
importantes, e aparece como uma questão recorrente nas entrevistas. Em uma sociedade cada
vez mais individualizada, meritocrática e menos solidária, reconhecer a força que o coletivo
exerce é muito significativo. Para a medicina de família e comunidade, perder a comunidade
simboliza perder aquilo que torna a prática clínica verdadeiramente centrada na pessoa. É

118
preciso, portanto, retomar o valor dado às práticas coletivas e às influências do contexto social
no cuidado em saúde.

Se as denominações evangélicas pentecostais apresentam uma oportunidade para uma


classe marginalizada, que tem pouco acesso a bens, serviços e direitos, elas, ao acomodarem
seus membros nesse sofrimento, mantendo-os produtivos, mas não combativos socialmente,
respondem de maneira muito positiva aos interesses do capital econômico de uma classe
privilegiada. Ao ocupar espaços marginalizados, onde o Estado se propõe ausente, as religiões
evangélicas pentecostais desempenham papel de grande importância na sociedade brasileira.
Por outro lado, é importante lembrar que o crescimento dessas denominações, ao passo que
recebem isenção fiscal e outros benefícios, tem, de alguma forma, seu crescimento apoiado e
incentivado por este mesmo Estado.

Olhando para o papel social que o pentecostalismo desempenha, é preciso ser crítica
também sobre que papel a Atenção Primária à Saúde tem desempenhado e que papel pretende
exercer. Medicalizar o sofrimento social, adaptar a população a situações de estresse crônico,
produzido pela violência estrutural e gerado por um estado de emergência permanente, é uma
escolha possível para a área, embora não seja o que a Organização Mundial de Saúde
preconiza ao afirmar que a APS é o caminho para combater iniquidades e injustiças sociais.
Para o Brasil, optar por uma prática de cuidado em saúde que leve à acomodação e adaptação
dos sujeitos a condições de vida desumanas, não é combater iniquidades.

Olhar de forma crítico-reflexiva para as ofertas de cuidado que temos produzido, a


partir da perspectiva dos usuários e dos profissionais de saúde, deveria ser prática recorrente
na APS, pois possibilita perceber mudanças de rumo e se reconectar com objetivos essenciais
para o nível primário de atenção à saúde. Abrir mão dessa prática reflexiva, seja pelas
condições de trabalho, que não são ideais, seja para não se afetar com e pelo contexto social,
se traduz em grande risco de reproduzir e perpetuar violências e opressões, por ação direta ou
por negligência. É preciso reconhecer que são inúmeras e complexas as desigualdades
socioeconômicas existentes no Brasil e, sendo assim, não estar atento significa reproduzir
opressões.

À saúde, de uma maneira geral, e, em especial, à medicina, é atribuído um poder social


grande, que costuma ser desempenhado de forma hierárquica, mas pode também ser usado a
favor do combate a iniquidades. Importante é compreender que o papel desempenhado pela

119
medicina, o fazer ciência e o produzir cuidado em saúde nunca são neutros, sempre serão, por
essência, um ato político.

Se Marx (2010) sugere que as religiões são o ópio do povo oprimido, como devemos
considerar a prática de cuidado em saúde que, diante de tantas possibilidades de ação, se
reduz a manter os marginalizados funcionais, para seguir produzindo e alimentando um
sistema de classes, privilégios e desigualdades?

120
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127
ANEXO A – TCLE
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) do Formulário para os Pacientes
Participantes da Entrevista

Prezado(a) participante,
Você está sendo convidado(a) para participar da pesquisa de Mestrado intitulada
“Pentecostalismo na comunidade do Jacarezinho: sofrimento social e violência urbana”,
desenvolvida pela discente Rita Helena do Espírito Santo Borret para obtenção do título de
mestrado pelo Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (HESFA/UFRJ), sob orientação da professora Dra. Alicia Regina Navarro
Dias de Souza e Prof. Dr. Octavio Bonet.

O objetivo da pesquisa é entender os modos em que as religiões pentecostais e


neopentecostais podem contribuir como fator de proteção frente à situação de constante
sofrimento e violência social que se configuram no processo de saúde e doença de
comunidades vulneráveis.

A entrevista acontecerá em caráter individual entre a pesquisadora e o(a) usuário da clínica da


família Anthídio Dias da Silveira e/ou morador da comunidade do Jacarezinho, ocorrerá
sempre fora do espaço de consulta médica e consistirá em responder a perguntas abertas que
versam sobre religião, violência e a comunidade do Jacarezinho. Mediante seu consentimento,
a entrevista será gravada e posteriormente transcrita. Serão abordadas questões de foro íntimo
e que podem implicar emoções.

Existe o risco de você se sentir desconfortável ao responder algumas questões, por solicitarem
informações pessoais, porém a sua participação é voluntária e a qualquer momento você
poderá desistir de participar e retirar seu consentimento, ou apenas negar a resposta para
algumas das perguntas. Seus dados serão mantidos em sigilo. O tempo da entrevista não é
pré-determinado, porém estimamos que possa variar entre 40 e 60 minutos.

Este material será guardado pela pesquisadora por um período de cinco anos, sendo
posteriormente destruído, conforme a Resolução nº 466/12 do Ministério da Saúde.

A pesquisadora se compromete a apresentar os resultados da pesquisa aos participantes,


pessoalmente ou virtualmente, após a conclusão da dissertação de mestrado. Sua participação
no estudo não implicará em custos adicionais, não tendo qualquer despesa com a realização
dos procedimentos previstos neste estudo.

O nome dos participantes da pesquisa (ou qualquer outra informação que possa levar à sua
identificação de alguma forma) será mantido em sigilo. A pesquisadora se responsabiliza por
manter a confidencialidade das informações e a não exposição dos dados desta pesquisa.

128
O CEP é o órgão que tem o objetivo de defender os interesses dos participantes da pesquisa e
que o desenvolvimento da pesquisa ocorra dentro de padrões éticos. Desta forma, o CEP
avalia e monitora o andamento do projeto para que este respeite os princípios éticos da
proteção aos direitos humanos, da dignidade, da autonomia, da não maleficência, da
confidencialidade e da privacidade.

Neste termo de consentimento constam os contatos da pesquisadora e do orientador do


mestrado e do Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Escola de Enfermagem Anna
Nery/HESFA/UFRJ. Uma via do termo assinado pela pesquisadora e
pelo(a)participante da pesquisa ficará com a pesquisadora e a outra com o(a) participante.
Todas as folhas devem ser assinadas.

Considerações ou dúvidas sobre a ética da pesquisa podem ser esclarecidos mediante contato
com o CEP da Escola de Enfermagem Anna Nery/HESFA/UFRJ – R. Afonso Cavalcanti,
275 – Cidade Nova, pelos telefones (21) 3938-8999/ 39388098/ 3938-0528 / 3938-8048/
3938-8899 / 3938-8148, ou pelo email: [email protected]

Declaração: Eu, ______________________________________________________,


declaro que entendi os objetivos sobre o estudo acima citado, os procedimentos, os
desconfortos e riscos, a garantia de confidencialidade e de esclarecimentos permanentes.
Ficou claro também que minha participação é isenta de despesas. Concordo voluntariamente
em participar deste estudo e poderei retirar o meu consentimento a qualquer momento, sem
penalidades ou prejuízos. Eu receberei uma via deste
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) e a outra ficará com o pesquisador
responsável por essa pesquisa. Além disso, estou ciente de que eu e a pesquisadora
responsável deveremos rubricar todas as folhas deste TCLE e assinar na última folha.

Local: __________________________ Data: ____/____/____ Telefone: (___)


_____________
Assinatura: ___________________________
Pesquisadora responsável: Rita Helena do Espírito Santo Borret
E-mail: [email protected]
Assinatura: ___________________________
Orientador: Profa. Dra. Alicia Regina Navarro Dias de Souza
E-mail: [email protected]
Orientador: Octavio Bonet
E-mail: [email protected]

129
ANEXO B – ROTEIRO DE ENTREVISTA

O que você considera violência? Como ela tem mudado nos últimos anos?
Como a violência atinge você na comunidade do Jacarezinho?
Para você, como você percebe sua saúde? O que você entende por saúde?
Você percebe relação entre a violência e sua saúde?
Você participa de alguma igreja evangélica pentecostal na comunidade? Qual? Como foi sua
trajetória de entrada nessa igreja?
Como é sua relação com a Igreja da qual participa? O que mais te agrada/faz bem na igreja?
Você tem alguma atribuição específica dentro da igreja?
Como é sua relação com as pessoas de fora da igreja/Mundanas?
Você percebe alguma relação entre a Igreja que participa e a violência na comunidade? Como
é pra você, participando da igreja, vivenciar a violência na comunidade?
Você percebe alguma relação entre a igreja e seu estado de saúde?

OBSERVAÇÕES:

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