Dissertaà à o Completa Pagina 1 é Folha de Rosto
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RITA HELENA DO ESPÍRITO SANTO BORRET
Banca examinadora
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CAPÍTULO I
APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA--------------------------------------------------------------- 08
LUGAR DE FALA--------------------------------------------------------------------------------------12
OBJETIVOS-------------------------------------------------------------------------------------------- -16
MARCOS TEÓRICOS----------------------------------------------------------------------------------17
A perspectiva de Cuidado integral em Atenção Primária à saúde----------------------------17
A amplitude do conceito de saúde---------------------------------------------------------------------17
Cuidado como prática-----------------------------------------------------------------------------------17
Os três setores de atenção à saúde--------------------------------------------------------------------19
As racionalidades médicas------------------------------------------------------------------------------21
O paradigma biomédico e a tensão estruturante ----------------------------------------------------22
A necessidade do cuidado integral no contexto da APS--------------------------------------------24
A atenção primária à saúde e a prática de cuidado relacionada ao território------------------26
Competência e Humildade Cultural-------------------------------------------------------------------28
A Medicina de Família e Comunidade----------------------------------------------------------------29
A participação popular como direito e necessidade------------------------------------------------30
Violência, sofrimento social e o processo de adoecimento--------------------------------------31
Conceituando violência---------------------------------------------------------------------------------31
Aproximação da violência com o campo da saúde------------------------------------------------- 34
As pessoas favelizadas e o conceito de sofrimento social------------------------------------------36
O Estado de emergência permanente, o sofrimento difuso e o apoio social---------------------37
Espiritualidade, religiosidade e saúde----------------------------------------------------------------41
O pentecostalismo---------------------------------------------------------------------------------------44
O pentecostalismo e a nova ordem mundial----------------------------------------------------------44
Breve história do pentecostalismo no Brasil---------------------------------------------------------46
A mobilização pela emoção-----------------------------------------------------------------------------49
O pentecostalismo e a relação com as demais religiões brasileiras------------------------------50
METODOLOGIA----------------------------------------------------------------------------------------53
CAPÍTULO II
RESULTADOS e DISCUSSÃO-----------------------------------------------------------------------56
OS PARTICIPANTES ENTREVISTADOS---------------------------------------------------------57
DESCREVENDO O JACAREZINHO ---------------------------------------------------------------60
PRIMEIRA PARTE -A percepção de saúde------------------------------------------------------65
SEGUNDA PARTE - Crescer e viver no Jacarezinho------------------------------------------67
Infância, oportunidades e ausências------------------------------------------------------------------67
Mundo de dentro e mundo de fora do Jacarezinho--------------------------------------------------73
As forças violentas: o tráfico, o Estado e a polícia--------------------------------------------------76
As sensações despertadas: a impotência e o medo--------------------------------------------------78
TERCEIRA PARTE - A igreja e a comunidade--------------------------------------------------81
Cultura da igreja na comunidade----------------------------------------------------------------------81
Relação da igreja com o tráfico de drogas-----------------------------------------------------------85
As experiências que a Igreja promove----------------------------------------------------------------88
A COMUNHÃO -----------------------------------------------------------------------------------------89
O CULTO-------------------------------------------------------------------------------------------------90
O ACOLHIMENTO-------------------------------------------------------------------------------------91
A MISSÃO SALVADORA DA IGREJA------------------------------------------------------------92
O PROSELITISMO--------------------------------------------------------------------------------------94
O papel do Pastor----------------------------------------------------------------------------------------95
A igreja de humanidades--------------------------------------------------------------------------------97
Fé x religião x denominações-------------------------------------------------------------------------105
3
QUARTA PARTE - Reflexões sobre o cuidado em Atenção Primária à saúde----------106
CONCLUSÃO------------------------------------------------------------------------------------------117
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS---------------------------------------------------------------121
ANEXO A – TCLE-------------------------------------------------------------------------------------128
ANEXO B – ROTEIRO ENTREVISTA------------------------------------------------------------130
4
AGRADECIMENTOS
5
RESUMO
6
ABSTRACT
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CAPÍTULO I
APRESENTAÇÃO DO PROBLEMA
A atenção primária à saúde, compreendida como “o primeiro nível de contato dos
indivíduos, das famílias e da comunidade com o sistema nacional de saúde, pelo qual os
cuidados de saúde são levados o mais proximamente possível aos lugares onde pessoas vivem
e trabalham, e constituem o primeiro elemento de um continuado processo de assistência à
saúde.” (OMS, 1978), tem o objetivo de ser a porta de entrada preferencial da população ao
sistema nacional de saúde, oferecendo cuidado em saúde de acordo com as necessidades
individuais e comunitárias.
Para além de porta de entrada preferencial, a APS apresenta como atributos essenciais:
a continuidade do cuidado, onde a equipe de profissionais de saúde acompanha aquela
população ao longo do tempo, estabelecendo uma relação de vínculo de confiança
longitudinal; a integralidade ou abrangência do cuidado ofertado, que determina que este nível
de atenção é responsável por ofertar serviços que vão ao encontro das necessidades em saúde
daquela população de forma abrangente e considerando os mais variados aspectos que
influenciam no processo de saúde e adoecimento; e a coordenação do cuidado, que coloca sob
esse nível de atenção a responsabilidade de organizar e coordenar o cuidado das pessoas,
facilitando as informações em saúde e ordenando os demais níveis de atenção conforme a
necessidade dos usuários. A centralidade na família, a orientação comunitária e a valorização
por meio da competência cultural são os atributos derivados que se somam aos essenciais na
conceituação da APS.
Para garantir equidade no acesso à saúde, a expansão se deu inicialmente pelas áreas
da cidade com menor índice de desenvolvimento social (IDS), como bairros distantes do
centro da cidade e regiões de favelas e complexos, marcados pela ausência e negligência
históricas do Estado. Além da desconfiança dos moradores nos equipamentos públicos, os
profissionais de saúde depararam-se com a falta de serviços essenciais de saneamento básico,
iluminação, áreas de lazer, serviços de segurança pública, transporte e educação, e ainda, com
dinâmicas de poder e influência territoriais complexas como a presença em diversos
territórios do narcotráfico e das milícias e de confrontos armados em decorrência da “política
de guerra às drogas”.
O tema deste trabalho é fruto de uma vivência, que tem como pano de fundo esse
processo de expansão da atenção primária na cidade do Rio de Janeiro. A pesquisa é
idealizada e desenvolvida em uma unidade básica de saúde que fica na favela do Jacarezinho,
na zona norte da cidade, chamada Clínica da Família Anthidio Dias da Silveira, inaugurada
em junho de 2011 com sete equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF). Com o processo
de expansão, as unidades básicas de saúde novas que foram surgindo receberam o nome de
clínicas da família. A favela do Jacarezinho, atualmente coberta integralmente pela ESF,
conta com duas unidades básicas de saúde em seu território. A favela apresenta-se com um
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dos menores índices de desenvolvimento social do município e vivência rotineiramente
intensos conflitos armados entre o narcotráfico e o Estado, na figura da Polícia Militar e
outras policiais especiais do Rio de Janeiro, que contribui sobremaneira para o processo de
adoecimento de moradores e profissionais de saúde da unidade.
Para os profissionais de saúde, abordar o tema junto aos usuários tem se revelado um
grande desafio, assim como pensar em propostas para o acolhimento e enfrentamento dessa
situação. Por mais urgente e necessário que possa parecer, o tema da violência por meio dos
conflitos armados se manifesta como uma questão de difícil manejo no espaço da unidade
básica de saúde. Se, por um lado, parece faltar habilidade empática e competência cultural por
parte dos profissionais de saúde para compreender toda a pluralidade da relação estabelecida
entre moradores e o narcotráfico, os conflitos armados e as diversas formas de violência
vivenciadas no território, por outro, as iniciativas de ofertas de cuidado em saúde que se
propõe a lidar com o tema, seja dentro do consultório ou em atividades coletivas, se mostram
pouco efetivas.
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A primeira foi a sugestão de uma atividade coletiva para discutir a temática da
violência comigo e entre pares na clínica. Ora, se o tema aparecia com tanta frequência nas
consultas individuais, me parecia lógico que teríamos um grande público disposto a fazer
parte dessa discussão. Três tentativas e nenhuma pessoa interessada em participar do grupo
que até então parecia uma grande ideia. Em duas ou três outras oportunidades, quando
questionados sobre os principais problemas da comunidade, por vezes os usuários da clínica
eram capazes de citar diversos problemas e não lembrar da violência como uma questão.
A segunda situação chamou muito minha atenção e me possibilitou perceber algo que
já vinha surgindo com frequência no consultório. Em uma manhã de domingo, a morte de um
pastor evangélico pentecostal, que foi assassinado pela polícia quando confundido com um
jovem do narcotráfico, estimulou pela primeira vez uma ação articulada de moradores da
comunidade de protesto às operações violentas e as situações de repressão que vinham sendo
submetidos. Até aquele momento, por mais agressivo que o Estado fosse, na minha
perspectiva, os moradores apenas se resignavam e seguiam com suas vidas da maneira que
fosse possível. A partir daquele protesto, daquele potencial de organização comunitária que
comecei a prestar maior atenção nas denominações evangélicas pentecostais locais.
Foi diante dessa necessidade de melhor entender a maneira como os usuários lidam
com o sofrimento causado pela violência estrutural e diante de uma inabilidade de
comunicação, que a ideia de explorar ferramentas que alguns moradores já utilizam para lidar
com o tema, pareceu ser um caminho para pensar o cuidado em saúde consonante com as
demandas e necessidades dessa população.
LUGAR DE FALA
12
Por ser um recurso da comunidade onde estou inserida, entendo que oferecer cuidado
em saúde, de forma integral para a população adscrita ao território de abrangência de minha
equipe de saúde da família, inclui não só acolher, diagnosticar e manejar doenças, mas
também pensar em ações de saúde em conjunto com a comunidade e, a partir de suas
necessidades, ofertar possibilidades de promoção de saúde e prevenção de adoecimento.
Cumprir com tais responsabilidades exige, para além de estudo e constante atualização
clínica, estar sempre atenta ao território, dialogando com moradores e aprendendo com suas
experiências e vivências para criar pontes de compreensão de uma realidade que não me é
familiar. Além disso, exige o constante exercício de me auto perceber, de perceber limites,
preconceitos e afetações com o trabalho e com as relações construídas com os usuários e a
comunidade.
Dada a frequente relação que usuários da clínica costumam fazer, de seu adoecimento
com a violência, me causa grande estranheza perceber esse tema não é levantado em reuniões
coletivas na comunidade, como grupos de atenção à saúde, fóruns comunitários, espaços de
convivência, entre outros. Seja por medo, insegurança, desmotivação ou falta de credibilidade
nos aparelhos do Estado para lidar com tal problemática, não discutir sobre ele não tem
ajudado a reduzir o sofrimento das pessoas e tampouco reduzir as mais diversas formas de
ações violentas na região. Neste exercício, conhecer as perspectivas da própria população
sobre como o território e a violência social as influenciam, bem como quais instrumentos e
ferramentas a mesma busca utilizar para alívio do sofrimento, tanto no campo individual
13
como no campo coletivo, pode dar visibilidade às ações de organização social e participação
popular já presentes na comunidade e não reconhecidas como tal por mim.
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saúde-pentecostalismo na perspectiva de uma comunidade que vivencia o sofrimento social
cotidianamente.
Antes de médica de família e comunidade, sou uma mulher, preta, lésbica e agnóstica.
Cresci na cidade do Rio de Janeiro, no “asfalto” (que num desenho dicotômico da cidade, se
contrapõe às favelas), em uma família de classe média e católica, religião da qual
compartilhei por longo período da minha vida. Minha relação com a religião evangélica
pentecostal é atravessada por uma série de preconceitos pessoais e vivências de
discriminação. Seja em virtude do grande incômodo em relação a forma como as
denominações pentecostais lidam com as religiões de matriz africana, ou pela maneira como
homossexuais e transexuais são considerados anormais e por isso rechaçados do espaço de
convívio ou ainda devido à rigidez de regras e condutas, que inflexibiliza a participação de
pessoas e cerceia a liberdade e autonomia de seus participantes, a imagem que tenho
construída das denominações pentecostais não é positiva. No entanto, a quantidade de pessoas
que, no espaço da relação de cuidado, apontou a religião pentecostal como único caminho
para se manter são em meio a cenários muito adversos, me fez ponderar se não há, na imagem
que construí, um erro de interpretação ou ainda, se meu preconceito impossibilita perceber
outros aspectos da prática religiosa pentecostal que podem ser interessantes para a população
que atendo.
A força que o coletivo das igrejas aparenta ter, e o grupo de regras claras e orientadas
que as igrejas definem para seus participantes, vai de encontro à proposta de estímulo a
liberdade e autonomia da população que, pautada nos princípios pedagógicos de Paulo Freire,
me proponho a fazer. Avaliar como a população percebe, entende e aceita essas diferentes
propostas pode ser de grande ajuda para uma prática clínica que dialogue melhor com a
comunidade.
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OBJETIVOS
Objetivo geral
Diante da importância da determinação social no processo saúde doença e da
ineficiência da biomedicina em dar respostas efetivas para o sofrimento social, conhecer
melhor os mecanismos que as comunidades submetidas mais intensamente a esse sofrimento
se utilizam para o enfrentamento da violência estrutural é de fundamental importância para
que a Atenção Primária à Saúde (APS) e seus profissionais possam atuar, de forma mais
eficaz e integrada à comunidade, frente ao que lhes é exposto cotidianamente.
Objetivos específicos
Compreender as concepções de saúde, violência e sofrimento construídas por esta
comunidade e refletir em como a Atenção Primária à Saúde (APS) pode interagir com elas, no
sentido de tornar a prática do cuidado mais próxima das necessidades dos moradores locais;
Conhecer ferramentas utilizadas pela religião pentecostal para lidar com a violência e
o sofrimento social experienciados pela comunidade do Jacarezinho e buscar, se possível,
interlocução com o cuidado em saúde;
16
MARCOS TEÓRICOS
17
Em 1978, durante a Conferência Internacional de Assistência Primária à Saúde em
Alma Ata, a OMS, organizadora do evento, enfatizou as enormes desigualdades na situação
de saúde entre os países desenvolvidos e subdesenvolvidos, reafirmou o significado da saúde
como um direito humano fundamental e destacou a responsabilidade governamental na
provisão da saúde, além da importância da participação das pessoas e comunidades no
planejamento e implantação dos cuidados à saúde, chamando atenção para a importância de,
mais uma vez, serem considerados aspectos múltiplos e variados na promoção e produção de
saúde.
A chamada “constituição cidadã” de 88, não só define saúde como direito de todos e
dever do Estado, como também cria o Sistema Único de Saúde (SUS), sistema nacional de
saúde público, universal e gratuito, que tem a finalidade de alcançar a meta estipulada. Para
tal, o SUS tem como princípios doutrinários a universalidade, a integralidade e a equidade.
(BRASIL, 1988)
Cuidar das coisas implica ter intimidade, acolhê-las, dar-lhes sossego e repouso. Essa
relação de cuidado não se estabelece como uma relação sujeito-objeto exclusivamente, mas
uma relação sujeito-sujeito, onde a relação que se estabelece não é de domínio sobre, mas de
convivência. Não é de intervenção, mas interação e comunhão. Quando define o ato de cuidar
como relação que se estabelece entre sujeitos, Boff (1999) rivaliza o conceito de cuidar com a
ditadura do trabalho, onde as relações que se estabelecem são necessariamente sujeito - objeto
e pressupõe uma hierarquia.
Em sua tese de doutorado, Fazzioni (2018) aponta o cuidado como uma categoria de
análise plástica e relacional, que envolve um desejo e uma ação. Podendo “significar, por
exemplo, o simples ato de amar para uma mãe, um dever profissional para um enfermeiro, ou
um direito universal para o Estado.” Com essa proposição, o cuidado assume uma dimensão
da ordem do afeto e da ordem do trabalho, o trabalho de cuidar. Contribui para a cisão entre
razão e emoção quando se rivaliza o cuidado como afeto ou trabalho, como proposto por Boff
(1999). Quando o cuidado é lido como algo mais plástico, mais fluido e onde o afeto e o
trabalho coexistem, esse dualismo começa a se diluir.
Fazzioni (2018) propõe ainda outro dualismo presente na categoria de análise cuidado,
o da dependência e autonomia. Lembra que, ao focar a análise entre esses dois polos,
reforçamos a ideia de dominação do cuidador e perdemos de vista a interdependência e a
reciprocidade presentes nas relações que se estabelecem.
Quando focamos o olhar sobre a prática de cuidado em saúde, é preciso estar atento
para não o reduzir ao aspecto de trabalho, presente e fundamental, mas não exclusivo, da
relação que se estabelece, e para o aspecto de controle e poder do cuidador sobre o objeto de
cuidado. A leitura que se faz quase em automático do ato de cuidar em saúde, remete a
fragmentação e uniformização dos corpos e despessoalização de indivíduos propostos pela
racionalidade biomédica, ao que Foucault (1988) chama de controle dos corpos e biopoder.
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garrafadas ou infusões, a proteção do corpo para evitar mudanças de temperatura, as
diferentes ofertas de alimentos para garantir-se saudável ou tratar determinados sintomas, a
realização de simpatias e rituais ou a busca por curandeiros, rezadeiras ou pastores para a
recuperação de saúde. Todos esses aspectos são culturalmente compartilhados por
determinados grupos e vão influenciar diretamente na percepção de saúde e doença destes. Ao
não considerar os demais setores de cuidado, ignoramos que, além de buscar o setor
profissional de saúde, 70 a 90% da população acessa primeiro ou em paralelo os setores
informal e popular (HELMAN, 2003).
O setor informal é o local onde a má saúde é identificada pela primeira vez e onde se
iniciam os cuidados em saúde. Esse setor é de domínio leigo, não profissional e geralmente
inclui, de acordo com cada cultura, um conjunto de crenças sobre os melhores caminhos para
a manutenção da saúde, incluindo orientações de comportamento em relação a modos de se
comer, beber, vestir, trabalhar, rezar, dormir e conduzir a vida em geral, a fim de evitar a má
saúde para si mesmo e para os demais. As práticas de cuidado nesse setor costumam
acontecer dentro da rede social do próprio indivíduo, muitas vezes dentro do seio familiar, na
vizinhança, na igreja, no salão de cabeleireiro entre outros, sempre com pessoas que
compartilham presunções semelhantes sobre saúde e doença. Nesse setor existe muita fluidez
entre ser e a pessoa que recebe cuidado e a pessoa quem cura. (HELMAN, 2003)
O setor popular de saúde tende a ser particularmente maior dentre as sociedades não
industrializadas e seria intermediário entre o setor informal e o setor profissional. Nesse setor,
o cuidado é praticado por indivíduos especializados em formas de cura que podem ser
sagradas, seculares ou ambas. Os exemplos de curandeiros populares são muitos e diversos
como herbalistas, xamãs, parteiras, sahy, isangomas, mambos de vodu... Em geral, os
curandeiros populares compartilham os valores culturais e a visão de mundo das comunidades
em que vivem, inclusive as crenças sobre origem, significado e tratamento do adoecimento.
(HELMAN, 2003)
Conhecer os diferentes setores de saúde se faz necessário, não apenas para melhor
compreender as construções culturais dos sentidos de saúde e doença de cada grupo social,
mas também para valorizar diferentes itinerários terapêuticos e atuar de forma respeitosa e
valorizando conhecimentos prévios, explicações coletivas e singulares sobre os processos de
saúde e adoecimento. (HELMAN, 2003)
As racionalidades médicas
21
Na biomedicina, a construção das teorias das doenças associa-se à organização
institucional de prática clínica especializada e de produção de saber (restrito a grupos
fechados de cientistas, pesquisadores e profissionais de saúde) em torno das especialidades.
Por sua vez, estas se organizam em torno das doenças e partes específicas do ser humano
(órgãos, aparelhos, sistemas). Essa racionalidade apresenta uma cosmologia de caráter
analítico, fruto do imaginário mecânico da física clássica, e de uma doutrina implícita que vê
a doença como entidade concreta, que se expressa por sinais e sintomas objetiváveis,
manifestações de lesões que devem ser buscadas no âmago do organismo físico e corrigidas
por algum tipo de intervenção concreta. (TESSER e LUZ, 2008)
Para Luz, a integralidade do cuidado, que permite uma visão global do sujeito coloca-
se como um problema epistemológico para a racionalidade biomédica e, sendo esta a
referência teórico/prática e institucional do SUS, a questão desloca-se para o próprio SUS.
(TESSER e LUZ, 2008)
22
Assim, a medicina moderna surge a partir de uma ruptura epistemológica ocasionada
pelo advento da filosofia mecanicista. Nesse momento, as explicações religiosas sobre a
natureza perdem espaço para as explicações racionalistas, justificadas através de fatos
apreensíveis por um pensamento metódico e racional.
A pessoa surge, nesse cenário, como ser individualizado, tendo o corpo como fator de
individualização. O corpo seria, segundo Breton, a fronteira que diferencia um homem e
outro, colocando o como corpo afastado de si mesmo, da comunidade e do meio social. Está
colocado então o dualismo entre o corpo, que é mensurável, alcançável e objetivável e a
pessoa, associada com o espiritual, o social e o psicológico. Nessa dualidade, a biomedicina
valoriza o corpo anatomizado e mensurável em detrimento da pessoa.
23
saberes e tecnologias especializadas, que não permitem um retorno à globalidade do sujeito
doente. (TESSER e LUZ, 2008)
24
se almeja construir do que já existe, sendo esta o indicativo da transformação que queremos
imprimir a realidade.
25
A situação dos profissionais de saúde biomédicos é complexa. Somos cobrados pelos
usuários, pelo SUS, pela Estratégia de Saúde da Família e por nossa missão ética de curadores
uma atenção integral à saúde, mas nosso saber é centrado em algo que pode corresponder ao
oposto dessa integralidade. Oferecer esse cuidado integral pressupõe uma dose elevada de
inventividade, criatividade, intuição, dedicação ética e artística e, principalmente, em equipes
multidisciplinares que permitam trocas de saberes e construções conjuntas de novos caminhos
para o cuidado.
O desafio em lidar com aspectos aos quais a biomedicina oferece pouco aporte teórico
não deve ser um impeditivo para não fazê-lo. Sim, torna-se necessário entrar em contato com
outras formas de se fazer e ler o comportamento humano em sociedade e a ciência, como
através das ciências sociais, das produções acadêmicas na área da saúde que não apresentam
perspectiva fragmentada do todo, como as produções em saúde pública, atenção primária e
saúde coletiva tanto no Brasil como em outras partes do mundo que guardem contexto similar
ao brasileiro.
Por vezes, estar diante de uma proposta de abordagem integral é entrar em contato
com situações em que não existe necessariamente um protocolo a ser seguido ou remédio a
ser prescrito para solucionar o problema. É precisar lidar com as próprias emoções e, por
vezes, com a sensação de perceber-se impotente diante de adoecimentos gerados por uma
violência estrutural e institucional, mas também é reconhecer que o não saber abre espaço
para muitas e novas descobertas, conhecimentos e possibilidades de construções coletivas do
saber seja com catedráticos, com usuários da rede de atenção à saúde ou com colegas de
profissão.
Ora, diante dos conceitos aqui apresentados, pensar em cuidado na atenção primária
exige, fundamentalmente considerar os modos de viver, ser, sofrer e adoecer dos indivíduos
em uma determinada comunidade, valorizando as experiências, cultura e história que esta
compartilha e centralizando a atenção à saúde na pessoa, na família e no território por ela
determinado.
É o uso do território, e não o território em si mesmo, que faz dele o objeto da análise
social. Trata-se de uma forma impura, um híbrido, uma noção que, por isso mesmo,
carece de constante revisão histórica. O que ele tem de permanente é ser nosso
quadro de vida. Seu entendimento é, pois, fundamental para afastar o risco de
alienação, o risco da perda do sentido da existência individual e coletiva, o risco de
renúncia ao futuro (SANTOS, 1994, p.15).
27
Competência e Humildade cultural
A relação que se constrói entre profissionais de saúde e usuários, é comumente
comprometida por vários desencontros socioculturais, motivados pela falta de conhecimento
dos profissionais de saúde acerca das experiências de vida, e crenças sobre saúde dos usuários
e de processos intencionais e não intencionais de reprodução de racismo, classismo, lgbtfobia
e sexismo por parte desses profissionais.
28
de formas diferentes por cada paciente. E precisam também da humildade e coragem para
reconhecer para si e para o outro que não sabem aquilo que realmente não sabem, e estar
disposto a comprometer-se em pesquisar e buscar informações que possam melhorar o
cuidado do paciente e de sua prática médica futura.
29
Os atributos acima mencionados se, por um lado, dialogam muito coerentemente com
o conceito de cuidado e de atenção primária aqui apresentados, por outro conflitam com a
prática biomédica ensinada nas escolas de formação médica e em saúde de uma maneira geral.
Extrair do paradigma biomédico conhecimentos que possam ser aplicados dentro de um
paradigma capaz de ofertar cuidado verdadeiramente integral e atento aos mais variados
aspectos da vida das pessoas é um dos desafios que está colocado para a especialidade da
Medicina de Família e Comunidade. Não reduzir a oferta de cuidado ao domínio exclusivo do
biomédico, não desvalorizar os saberes populares e outras racionalidades médicas e revisitar
cotidianamente os conhecimentos já teoricamente dominados são desafios da prática cotidiana
dessa especialidade.
É importante ressaltar que existe uma compreensão de sociedade e dos meios para se
alcançar determinados objetivos que, às vezes, se apresenta de maneiras muito distintas para
as pessoas de classes sociais mais pobres e para profissionais técnicos de saúde. Uma
população acostumada a ter seus direitos em saúde sistematicamente negados pelo Estado,
muito provavelmente não vá depositar neste a confiança para cuidar de sua saúde (VALLA,
1994). Esta diferente percepção da mesma sociedade a partir de locais sociais distintos,
implica em uma dificuldade por parte de técnicos e moderadores em compreender a fala e o
fazer de classes populares para lidar com as questões que se apresentam, Valla (2002) refere-
30
se a esse impasse como “crise de interpretação”, conceito criado por Martins (MARTINS
apud VALLA, 1998).
Conceituando violência
Ao pensar em violência, a primeira coisa que talvez nos venha à mente seja as
situações cotidianas de violência urbana que a mídia apresenta diuturnamente em jornais e
revistas. Assaltos, confrontos armados, sequestros, situações de brigas mais violentas na rua
seja por motivo de problemas no trânsito, por questões relacionadas a futebol entre outros.
Mas não podemos resumir o conceito de violência apenas a essas situações. É um termo
amplo e complexo que deve ser empregado de forma dinâmica, em diálogo constante com o
contexto social vigente.
Hannah Arendt procura diferenciar violência e poder, conceitos que, às vezes, são
tomados como sinônimos. Para a autora, poder advém de uma construção coletiva. É dado
poder a um determinado grupo social em um determinado contexto, ele nunca é do indivíduo.
A este grupo é incumbida a tarefa de falar e se posicionar pelo todo. Arendt considera o poder
como um fim em si mesmo, e não o caminho para algo. O poder também se configura como
um momento fugaz que, por si só, não garante a durabilidade da comunidade política.
(PERISSINOTO, 2004)
31
Segundo Arendt, a violência se coloca como oposta ao poder. Onde o poder domina
absolutamente, a violência encontra-se ausente e onde a violência se opera de forma
recorrente, é porque o poder já se desintegrou. Arendt não atribui ao poder o conceito de
obediência inquestionável, mas sim o conceito de consentimento. Nas relações de poder por
ela compreendida, somente a violência é capaz de impor esse tipo de obediência
inquestionável. A violência teria assim, um caráter instrumental, tratar-se-ia, portanto, do
instrumento utilizado para alcançar uma finalidade almejada. Assim sendo, a violência não
pode ser considerada como legitima, mas justificar-se-ia seu uso para reequilíbrio da balança
da justiça, seja ao avaliarmos sua natureza política ou ainda, quando todos os outros meios
possíveis tenham sido esgotados. (PERISSINOTO, 2004)
Segundo Hsiao (2007), Arendt constrói uma linha relacional entre o aumento da
burocratização da esfera pública, a transformação dos governos em órgãos meramente
administrativos e a consequente percepção de impotência de grupos e indivíduos na
capacidade de influenciar e consensuar ações, o que resultaria na percepção de declínio do
poder, no sentido de estabelecer o consenso através da argumentação democrática. Essa
redução do poder como caminho, estimula a invasão da violência no espaço público da ação.
A aceitação e crescimento da ação por meios violentos que vemos no mundo contemporâneo
estaria então, diretamente ligada à impotência e à frustração na capacidade de agir em meio a
essa burocratização da vida pública. (HSIAO,2007)
Suas formas mais atrozes e mais condenáveis geralmente ocultam outras situações
menos escandalosas por se encontrarem prolongadas no tempo e protegidas por
ideologias ou instituições de aparência respeitável. A violência dos indivíduos e
grupos tem que ser relacionada com a do Estado. A dos conflitos com a da ordem
(DOMENACH apud MINAYO, 1994, p.7)
Compreendendo que a violência não se configura apenas como uma forma de ação
unidirecional de grupos oprimidos sobre grupo opressores, e que é preciso entender todo o
contexto social que organiza e perpetua opressões, Minayo sugere uma classificação da
32
violência em: violência estrutural, violência de resistência e violência de delinquência.
(MINAYO, 1994)
Por último, mas não menos importante, a violência de delinquência seria qualquer
forma de violência que se enquadre fora da lei socialmente reconhecida. A análise desse tipo
de violência, necessariamente, precisa considerar a violência estrutural produzida pela
sociedade. (MINAYO,1994)
Por vezes a mídia televisiva e jornalística ajuda a criar um imaginário coletivo de que
favelas e periferias são as principais responsáveis por situações de violência urbana
(violências que acontecem dentro de cidades grandes). Esse olhar negligencia as situações de
violência que as pessoas que moram nesses territórios socialmente marginalizados sofrem,
negligencia a violência estrutural e silencia as diferenças com que o Estado trata pessoas que
vivem numa mesma cidade, mas ocupam territórios físicos e sociais diferentes. É necessário,
nesse sentido, ampliar o olhar para não reproduzir injustiças e opressões já imputadas na
construção social vigente. Perceber essas várias formas de violência ajuda a entender melhor
as violências de delinquência e resistência em sua origem causal.
33
violências. Enquanto profissionais de saúde, somos seres socialmente construídos e, portanto,
pertencentes a grupos sociais que oprimem e são oprimidos. Enquanto médicas e médicos,
nos inserimos profissionalmente na instituição saúde. A violência institucional na saúde existe
em variados aspectos, um deles é o racismo institucional. O programa de combate ao racismo
institucional explica o conceito deste, que pode ser ampliado para outras formas de reproduzir
violências institucionais no setor saúde.
Por mais que, enquanto profissionais de saúde da atenção primária que atuam
na oferta cotidiana de cuidado em saúde, não tenhamos os instrumentos para combater a
violência institucional criando políticas e diretrizes, temos um papel importante em garantir
que essas unidades sejam espaços verdadeiramente acolhedores, e não reprodutores de
violências. Estar atento para não reproduzir ou negligenciar violências é um passo
fundamental para garantir o princípio da equidade no Sistema Único de Saúde.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) define violência por uso intencional da força
física ou do poder, real ou em ameaça, contra si próprio, contra outra pessoa, ou contra um
grupo ou uma comunidade, que resulte ou tenha grande possibilidade de resultar em lesão,
morte, dano psicológico, deficiência de desenvolvimento ou privação. (KRUG et al., 2002)
ela representa um risco maior para a realização do processo vital humano: ameaça a
vida, altera a saúde, produz enfermidade e provoca a morte como realidade ou como
possibilidade próxima (AGUDELO apud MINAYO, 1994, p.9)
A agenda que a violência impõe para o serviço de saúde é ampla, com a necessidade
de abordar seus efeitos diretos e indiretos, orgânicos e simbólicos. O elevado custo financeiro
da abordagem dos efeitos físicos e a sobrecarga de demanda que os efeitos indiretos e
simbólicos geram, congestionam os serviços de pronto atendimento e atenção primária,
afetando diretamente a qualidade global da oferta de serviço de saúde (MINAYO, 1994)
Não se pode omitir, também, um efeito por vezes difuso, por vezes direto, que a
violência provoca sobre a estrutura e o funcionamento dos serviços de saúde,
sobretudo quando os conflitos por eles atendidos afetam os profissionais, pelo
amedrontamento, pelas ameaças, pelos danos físicos e/ou psicológicos. Tais
situações são hoje frequentes nos hospitais de emergência, nos serviços de
emergência dos hospitais gerais e, até, nos centros de saúde (p.13).
Acima, Minayo (1994) aponta para outro importante fator que contribui para a
dificuldade de oferta de serviços de saúde em áreas marginalizadas, o impacto direto e
indireto que a violência gera nos profissionais de saúde. Na cidade do Rio de Janeiro tem sido
crescente o número de vezes em que, como consequência de conflitos armados entre forças
policiais e narcotráfico/milícia em comunidades favelizadas, as unidades básicas de saúde
precisam interromper seu funcionamento ou deixam de abrir para ofertar cuidado às pessoas.
Essa proximidade com conflitos armados tem provocado uma rotatividade grande de
profissionais nas unidades de saúde, assim como têm desencadeado processos de adoecimento
entre esses profissionais.
Ao fazer essa avaliação, Farmer (2009) evidencia mais uma vez o abismo social
existente entre a maioria dos profissionais de saúde médicas e médicos e a população
favelizada no nosso país, fruto da desigualdade social vigente e das diferentes oportunidades
ofertadas para cada um desses grupos. A atitude empática e a capacidade de compreender as
demandas e anseios da população favelizada, por vezes fica prejudicada por essa barreira que
não deve ser, mas tende a ser muitas vezes intransponível, provocando o que Valla chama de
crise de interpretação. (VALLA, 1994)
(...)um problema que vem sendo levado pelas classes populares aos serviços de
saúde: a queixa designada pelo nome de “sofrimento difuso”, apresentada, segundo
alguns profissionais, por seis em cada dez pacientes. (...) Queixa sobre dores de
cabeça, dores em outros locais do corpo, medo, ansiedade – sintomas para os quais o
37
sistema de saúde não dispõe nem de tempo, nem de recursos para tratar. O resultado
é a medicalização do problema. (VALLA, 2002, p.19)
Uma questão complexa, que sinaliza de forma objetiva o quanto o olhar estritamente
biomédico da saúde não tem condições de oferecer ajuda eficaz para esses casos.
Segundo Castel (2005), quando o Estado deixa de prover o cuidado a que se propõe, a
população sofre de forma significativa, minando sua estrutura psíquica e promovendo
dissociações sociais. Ao falar sobre esse sentimento de não poder pensar o presente e planejar
o futuro, vivenciado de forma recorrente pelas classes populares, o autor cunha o termo
insegurança permanente, que define como
A proposta central do apoio social é que, quando as pessoas sentem que contam com o
apoio de um grupo de pessoas (associação, vizinhança, igreja, por exemplo), isso tem o efeito
de causar melhora em sua saúde. Esse apoio normalmente ocorre, de forma sistemática, entre
pessoas que se conhecem, razão pela qual frequentemente envolve uma instituição ou
entidade como pano de fundo. (VALLA, 2001)
Um outro aspecto importante que Ribeiro e Minayo trazem por meio de uma extensa
revisão bibliográfica, diz respeito às atividades coletivas de socialização que as organizações
religiosas propõem:
O que a pessoa em sofrimento procura nas agências religiosas, seja qual for sua
orientação, é aceitação, acolhimento, continência e sentimento de pertença diante de
um mundo que nem sempre o compreende (p.542).
e ainda
O elemento motivador para procurar o alento da religião é o sofrimento, quando o
sofredor encontra esse alento ele permanece fiel ao local e às pessoas que encontrou
e lhe proporcionaram tal sentimento. (p.543)
40
Espiritualidade, religiosidade e saúde
Existe consenso entre cientistas sociais, filósofos e psicólogos sociais de que a
religião é um importante fator de significação e ordenação da vida, sendo
fundamental em momentos de maior impacto na vida das pessoas. Os problemas
espirituais, afetivos e sociais são demandas importantes na vida de qualquer um, e a
principal delas, é o problema de saúde, motivo pelo qual as pessoas recorrem ao
santuário e aos santos como se estes fossem uma espécie de “pronto socorro” de
atendimento integral” (MURAKAMI,2012, p.362)
Religião por sua vez, pode ser definida por um sistema de crenças e práticas
relacionadas ao transcendente, observadas por uma determinada comunidade, sustentada por
rituais e valores que reconhecem, idolatram, comunicam-se com, ou aproximam-se do
sagrado, do divino. Em geral, são compostas por uma doutrina, que representa um conjunto de
crenças e mitos sobre a origem do cosmos, o sentido da vida, da morte, do sofrimento e do
além; ritos e cerimônias, que empregam e atualizam símbolos religiosos; um sistema ético,
com leis, proibições e regras de conduta; e por último, uma comunidade de fiéis, com
diferentes tipos de líderes e sacerdotes, que estão mais ou menos convencidos das crenças e
que seguem os preceitos dessa religião (CASTILHO, 2015; MURAKAMI, 2012).
Para Marx, a religião nada mais é do que a realização fantástica do ser humano
enquanto ser que não tem a verdadeira realidade. Ela desempenha o papel de sanção moral,
consolação e justificação universal para sociedades em que se produz opressão e hierarquia
em sua estrutura organizacional. Na perspectiva materialista histórica de Marx, que analisa o
mundo sob a ótica do modo de produção e da organização das estruturas sociais a partir deste,
41
a religião se apresenta como expressão máxima da miséria real e o protesto contra ela
(MARX, 2010).
O sociólogo Weber faz uma outra leitura de religião, considerando-a, não como fruto
da racionalidade prática da humanidade, mas sim como um conjunto de símbolos por onde
grupos humanos formulam a razão de ser da vida e do mundo em que vivem. Na medida em
que a religião produz a perda de consciência do mundo humano como socialmente construído
e mantido, assume papel de agente privilegiado na alienação social. (GIGANTE, 2013)
Para Weber, mais importante do que o produto cultural religioso, o poder que este
exerce sobre a mente e o modo de viver a vida das pessoas que é principal aspecto de sua
análise. Assim, considera que o protestantismo calvinista foi fundamental para o
desenvolvimento e estabelecimento do Capitalismo econômico na idade moderna.
(GIGANTE, 2013)
Durkheim defende que o indivíduo precisa ser entendido a partir do meio social e não
ao contrário. Sugere que a racionalidade humana está mais densamente vinculada a bases do
campo emocional do que racional, demandando assim uma cosmologia e solidariedade pré
contratual. (COSTA, 2017)
Analisa assim, a religião sob a ótica da consciência coletiva. Para ele, a religião é um
sistema social que une indivíduos em uma comunidade moral, definida pelos seus aspectos
42
exteriores: crenças, ritos e práticas. Distingue ainda magia e religião, por entender que,
embora as duas tratem de coisas sagradas, a magia estaria mais para a ordem do indivíduo e a
religião para a ordem do coletivo. (COSTA, 2017)
Há uma emoção profunda de origem que para Durkheim é reativada nos ritos, sendo
que reativar não é repetir. A experiência de origem, ao passar por um trabalho de
simbolização, socializa-se e é universalizada, ou ainda, domesticada. E ele ainda diz
que, nesse percurso, algo pode se degenerar. (COSTA, 2017, p.8)
43
emocionais do fator estressor). Ainda segundo os autores, melhores resultados têm sido
percebidos com o uso do Enfrentamento Focado em Problemas. (PARK et al, 2012)
Parte dessa dificuldade em lidar com a dimensão espiritual está relacionada com a
ruptura, na idade moderna, com a tradicional filosofia religiosa, que cede lugar ao surgimento
e fortalecimento da filosofia científica. A negação da dimensão subjetiva e intersubjetiva no
encontro clínico biomédico, também dificulta a abordagem desse aspecto. Fato é que essa
dimensão do indivíduo e da sociedade contribui significativamente para o processo de saúde e
adoecimento da população e para as formas e símbolos como se entende doenças, sofrimento
e cuidado.
O Pentecostalismo
O Pentecostalismo e a Nova Ordem Mundial
De meados da década de 80 para os dias atuais, o mundo tem vivenciado dois
fenômenos que, talvez não por acaso, ocorrem em paralelo: A globalização do mercado
econômico com a Nova Ordem Mundial e o acentuado crescimento da religião evangélica
44
pentecostal em todo o mundo, mas principalmente nas regiões consideradas
subdesenvolvidas, como nos países da América Latina e África. (ARENARI, 2017)
O pentecostalismo toma para si, via linguagem religiosa, a realização das principais
promessas modernas que não se efetivaram para uma parcela significativa da
população. Para além de confortos psicológicos oferecidos por quase todas as
religiões, as noções de inclusão (o valor moderno de igualdade), ascensão social
(mobilidade) e modelos de vida individual (individualismo) aparece como o pano de
fundo das promessas salvíficas do pentecostalismo. Desenvolve-se, desse modo, um
modelo de salvação intramundana em que a força de Deus se confirma na vida
cotidiana e na promoção das promessas modernas para uma gente que a
modernidade não integrou plenamente. Os subintegrados na vida social, econômica
e nos padrões étnicos das primeiras expansões da sociedade moderna encontraram
no pentecostalismo um discurso que atendesse a seus dramas e a suas ansiedades
coletivas. Nisto, o pentecostalismo se tornou o cristianismo dos negros e mestiços,
dos pobres e todos os outros que se sentiam deslocados naquele mundo em que
viviam, mas sabiam que não faziam parte. Em outras palavras, podemos afirmar que
essas novas religiosidades são as respostas religiosas para os novos desafios e as
demandas sociais enfrentadas pelos novos grupos sociais. (ARENARI, 2017, p. 188)
45
O protestantismo surge na Europa no século XVI organizado por Martinho Lutero,
que, incomodado com as disparidades entre os princípios bíblicos e a prática católica,
postulou as Noventa e Cinco teses na porta da Igreja do Castelo. Lutero foi excomungado
quando suas teses chegaram até Roma. Na Alemanha de Lutero, os cristãos reformados que se
opunham a Roma eram chamados de protestantes. Entre esse grupo, os cristãos chamavam-se
por evangélicos, como o fazem ainda hoje.
A Europa foi palco de guerra entre católicos e protestantes, e esses foram em grande
quantitativo perseguidos e mortos. Foi nesse contexto que muitos protestantes migraram para
os Estado Unidos da América (EUA).
O pentecostalismo chega ao Brasil por volta dos anos de 1910 e 1911. Em 1910 foi
fundada a Congregação Cristã do Brasil, cujo fundador, um Italiano que era membro da Igreja
Presbiteriana, converteu-se a denominação pentecostal nos EUA. A Congregação Cristã
ganhou público entre os imigrantes italianos de São Paulo e do Paraná e foi a primeira igreja
46
pentecostal brasileira. Embora muito importante, essa igreja não chegou a sair dos meios da
imigração italiana. (CORTEN, 1996; FIGUEIRA, 1996)
A teologia da prosperidade foi fundada nos EUA em 1940 e passou a ser uma doutrina
considerada a partir da década de 70. Pela Teologia da prosperidade, o cristão entende que
tem direito a saúde perfeita, riqueza material, poder para subjugar Satanás, uma vida plena de
felicidades e sem espaço para problemas. Em contrapartida, espera-se que o cristão não
duvide do recebimento das bênçãos. Nessa Teologia a relação do homem com Deus se dá de
forma recíproca, o cristão faz sua parte, por meio de dízimos, ofertas e evangelização e Deus
cumpre suas promessas. (SILVEIRA M, 2007) Seja pela Teologia da prosperidade ou pela
estrutura organizacional como uma empresa, a Igreja Universal do Reino de Deus (IURD)
trouxe muitos aspectos inovadores para o ramo pentecostal do protestantismo. Desde então, é
uma das igrejas que cresce de forma mais acelerada no país e no mundo.
A terceira onda traz consigo o avanço televisivo dos testemunhos. Cabe ressaltar que o
televangelismo não é de uso inédito das denominações pentecostais, outras denominações
anteriormente fundadas já se utilizavam dessa tecnologia, mas o uso proselitista das mídias
eletrônicas é mais acentuado na terceira onda pentecostal. Na terceira onda, a atividade
televisiva apresenta uma forte intencionalidade proselitista e de incentivo a curiosidade das
pessoas. A televisão tem a função de apresentar e levantar interesse das pessoas para que, uma
vez na igreja, estes possam ser arrebatados pela emoção religiosa.
48
Em 2015, pela primeira vez no Brasil, um pastor da denominação evangélica
neopentecostal IURD foi eleito para um cargo executivo. Marcelo Crivella, ou bispo Crivella,
como é reconhecido dentre os pentecostais da IURD, foi eleito prefeito de uma das principais
cidades do Brasil, o Rio de Janeiro, com larga margem de vantagem no segundo turno.
50
O catolicismo num primeiro momento rechaça e reprime essas religiões de matriz
africana para, num segundo momento, se acomodar a elas. O catolicismo se coloca como a
verdadeira cabeça das denominações de Umbanda e Candomblé que seriam inferiores a ele.
51
O pentecostalismo, embora carregue características do catolicismo popular e das
religiões de matriz africana em sua cultura e símbolos, representa uma radical ruptura social
com as religiões anteriores. Para Mafra (2009), o pentecostalismo, ao contrário das demais
religiões, não investe no fracassado modelo relacional que propõe diálogo com as classes
superiores para a resolução de grandes ou pequenos problemas cotidianos para as classes
marginalizadas. (MAFRA, 2009)
52
METODOLOGIA
Para a realização desta pesquisa, optei pela abordagem qualitativa, capaz de alcançar
um nível mais profundo das ações, relações, processos e fenômenos, que não são perceptíveis
ou captáveis em análises estatísticas (MINAYO, 2002).
O que sempre vemos e encontramos pode ser familiar, mas não necessariamente
conhecido, e o que não vemos e encontramos pode ser exótico, mas, até certo ponto,
conhecido. No entanto, estamos sempre pressupondo familiaridades e exotismos
como fontes de conhecimento ou desconhecimento, respectivamente (p.126),
e ainda
O processo de estranhar o familiar torna-se possível quando somos capazes de
confrontar intelectualmente, e mesmo emocionalmente, diferentes versões e
interpretações existentes a respeito de fatos, situações (p. 131).
53
Com esse constante movimento de aproximar e afastar o olhar de forma
reflexiva para o objeto de estudo, procurei conseguir manter esse estranhamento do familiar,
sem que isso gerasse um afastamento prejudicial ao estudo.
A etnografia, através de entrevistas semi estruturadas (vide roteiro no anexo B), com
consentimento livre e esclarecido dos entrevistados (vide anexo A), e de diálogos informais
no dia a dia com usuários da clínica da família e com outros atores do território, foi o método
através do qual a pesquisa buscou se aproximar de conceituações e ideias que a comunidade
organiza e estrutura em relação ao sofrimento, à violência, ao papel e crescimento das igrejas
evangélicas pentecostais no território e sua inter-relação com a saúde e o bem-estar da
população. O diário de campo foi usado de forma a registrar o que foi por mim visto,
vivenciado e discutido com moradores do território, provocando um estado de constante
reflexão crítica da experiência vivida e um diálogo com a teoria acadêmica trazida pelos
referenciais teóricos previamente apresentados.
A pesquisa não se debruça sobre aspectos específicos de cada uma das diversas
religiões pentecostais presentes na comunidade, busca uma percepção mais ampla sobre
aspectos do pentecostalismo compartilhados entre elas e que interajam diretamente com o
processo de significação do sofrimento social a que estão submetidos os moradores do
Jacarezinho.
54
Dentre os moradores entrevistados, foram incluídos, homens, mulheres, pastores,
membros que participam de algum grupo nas igrejas ou que apenas frequentam os cultos,
jovens, idosos, membros recentes e antigos de diferentes denominações evangélicas
pentecostais, com predominância da Assembléia de Deus, denominação da maioria dos
participantes da pesquisa , ainda que de diferentes filiais.
55
CAPITULO II
RESULTADOS E DISCUSSÃO
A quantidade de conhecimentos, de novas e diferentes percepções sobre situações já
conhecidas, a significação e ressignificação dada para os processos vivenciados e os caminhos
escolhidos para lidar com a violência estrutural a que estão submetidos os moradores do
Jacarezinho, possibilitou a identificação de uma ampla gama de aspectos para serem melhor
analisados.
Cabe ressaltar que, como essa pesquisa de campo se debruça em ouvir e entender as
percepções de um grupo – os evangélicos pentecostais – não podemos generalizar suas
percepções, signos e símbolos para toda a comunidade do Jacarezinho, nem tampouco para
todas as populações favelizadas da cidade do Rio de Janeiro. Cada território vivo carrega
consigo uma história, que vai modificar sua cultura e modo de interpretar e lidar com as
diferentes situações que se apresentam. Mesmo com algumas aproximações, cada grupo social
inserido em um território apresenta especificidades que não podem, com a generalização,
correr o risco de serem invisibilizadas.
Nessa pesquisa, não tenho a intenção de reduzir a pluralidade das religiões evangélicas
pentecostais a uma coisa única, visto que cada denominação pentecostal carrega consigo uma
fé, uma doutrina e um contrato de convivência específicos e essas diferenças influenciam na
percepção de cada grupo sobre os modos de viver a religião. Me propus a ouvir
frequentadores ativos de variadas denominações pentecostais, buscando alguns aspectos que
puderam ser percebidos nas entrevistas e nos diários de campo, de uma maneira ampla e geral,
sobre questões às quais pretendo me debruçar para pensar as relações com o cuidado em
Atenção Primária à Saúde.
56
assepsia dos resultados e para explicitar a escolha por cada uma das categorias construídas e
escolhidas.
Antes de apresentar as quatro partes da análise realizada, faço uma breve apresentação
dos personagens entrevistados que são citados ao longo do texto; faço também uma
caracterização do campo de pesquisa, a partir de dados estatísticos em conjunto com minha
perspectiva do campo já em modificação pela instalação do processo de pesquisa e pelo
contato com os moradores e entrevistados.
OS PARTICIPANTES ENTREVISTADOS
Dentre os participantes da pesquisa, foram entrevistados 13 mulheres e 05 homens,
entre 31 e 65 anos, com diferentes papéis nas cinco denominações pentecostais das quais são
membros (Tabela 1).
Entrei em contato com muitos dos nomes sugeridos, alguns não faziam parte de Igrejas
evangélicas pentecostais, outros poucos não se sentiram à vontade em participar da pesquisa.
Com alguns dos que se sentiram confortáveis em participar, marquei entrevistas em horário e
57
local mais confortáveis para cada um. É interessante ressaltar que, para muitos dos
entrevistados, o próprio espaço da clínica era esse local mais confortável. Com alguns, não
consegui marcar e realizar entrevistas, seja por falta de agenda ou por imprevistos pessoais de
cada um, mas as trocas e diálogos que ocorreram tanto por telefone, como pessoalmente,
foram registradas em diário de campo, para que não fossem perdidas as contribuições dessas
pessoas. Dentre os entrevistados, todos estavam cadastrados em alguma das unidades básicas
de saúde que cobrem o território do Jacarezinho, ainda que alguns deles não as
frequentassem.
58
Tabela 1: Dados sociodemográficos dos participantes entrevistados.
IDADE PAPEL DENTRO DA IGREJA
IGREJA
Entrevistada A 35 Membro Assembleia de Deus
Entrevistada B 46 Membro Leão de Judá
Entrevistada C 47 Grupo de Mulheres Igreja Batista Pentecostal Restaurando
Vidas
Entrevistada D 31 Membro Igreja Batista em Renovação Espiritual
Nova Jerusalém.
Entrevistada E 62 Pastora Assembleia de Deus
Entrevistada F 65 Membro IURD
Entrevistado G 31 Obreiro IURD
Entrevistado H 54 Pastor Assembleia de Deus
Entrevistado I 40 Pastor Assembleia de Deus
Entrevistado J 45 Presbítero Assembleia de Deus
Entrevistada K 54 Membro IURD
Entrevistada L 44 Membro Igreja Batista Renovada
Entrevistada M 38 Membro Congregacional Pentecostal
Entrevistada N 36 Escola dominical de Congregacional Pentecostal
crianças
Entrevistada O 49 Pastora Igreja Batista Pentecostal Restaurando
Vidas
Entrevistada P 53 Grupo de Mulheres Igreja Batista Pentecostal Restaurando
Vidas
Entrevistada Q 43 Membro Assembleia de Deus
Entrevistado R 58 Obreiro IURD
59
DESCREVENDO O JACAREZINHO
Ao atravessar a Avenida Dom Hélder Câmara ou Suburbana, poucas pessoas podem
imaginar que algumas de suas ruas perpendiculares permitem acesso para a favela do
Jacarezinho. Logo ali, na zona norte da cidade do Rio de Janeiro, em frente ao complexo de
favelas de Manguinhos e em frente ao extenso território da Cidade da Polícia, situa-se uma
comunidade densamente povoada e historicamente negligenciada pelo Estado.
Entrando pela prainha ou pelo Buraco do Lacerda, muitas são as vielas estreitas que
dão acesso a outras vielas ainda mais estreitas repletas de construções de alvenaria, numa
arquitetura que em muito difere do que se vê no asfalto. Pouco espaço entre as casas, paredes
que bloqueiam a circulação de ar, construções de prédios que desafiam a engenharia e
microespaços que se tornam lar para famílias inteiras e numerosas. Andar pelo Jacarezinho
sem a companhia de um morador ou um conhecedor da região torna-se assim uma missão
quase impossível.
A origem do nome Jacarezinho tem duas teorias contadas por seus moradores. Em
ambas, o rio Jacaré que nasce na Tijuca, no morro do Elefante e atravessa os bairros do
Jacaré, Méier, Engenho Novo e Triagem, comunicando-se com a favela vizinha, Manguinhos,
até chegar na Baía de Guanabara pelo Canal de Cunha, onde deságua está presente. Para uns,
Jacaré, derivado do termo “Yacaré”, que significa aquilo que é torto e sinuoso teria sido o
nome escolhido para batizar o rio que atravessa a cidade com todas suas curvas e
tortuosidades. Para outros moradores, o nome teria sido escolhido por moradores que
encontraram, no rio da região, dois jacarés. (OLIVEIRA, 2018) Na década de 40, o rio Jacaré
foi aterrado para a construção da Avenida Brasil, sendo hoje invisível para a população.
Antes de ser conhecida como Jacarezinho, a região era conhecida por outros nomes,
Estação de Vieira Fazenda, Mato do Padre Paulo e Morro da Titica foram alguns desses
nomes, de acordo com os moradores.
61
Em relatos, conta-se que, no processo de ocupação da região do Jacarezinho, foram
encontrados grilhões de escravos e ossos, resgatando o que teria sido um quilombo.
Informações mais precisas sobre isso, assim como boa parte da história negra brasileira, não
existe de forma oficial.
A Favela do Jacarezinho, como quase todas do Rio de Janeiro, começa a ganhar forma
na década de 20, com o processo de industrialização do bairro do Méier. Em 1940, após a
Segunda Guerra Mundial, a acentuada instalação de indústrias e grandes empresas na região
foi um forte chamariz para pessoas do Brasil inteiro, mas principalmente da região do
Nordeste, mudarem-se para o bairro à procura de empregos e oportunidades de carreira.
Além da grande oferta de empregos, outro fator que contribuiu para o rápido
crescimento e adensamento da região foi sua localização estrategicamente privilegiada na
cidade. Próximo ao centro, à linha ferroviária que cruza a comunidade e com acesso fácil às
grandes avenidas da cidade. Até os dias de hoje, essa posição estratégica chama a atenção.
São poucos metros de distância entre a comunidade e as linhas Amarela e Vermelha, a
Avenida Brasil e a Avenida Suburbana, facilitando o acesso do local para qualquer ponto da
cidade.
62
metalúrgicas na região, por exemplo, caiu pela metade. A crise do petróleo, que ocorreu na
década de 90, provocando a transferência de grandes empresas como a General Eletrics (GE)
da região, o enorme vácuo na oferta de empregos e o grande adensamento populacional,
fizeram com que a comunidade mudasse sua característica de polo industrial para o polo de
comércio e serviços que reconhecemos nos dias de hoje.
Se faltam espaços abertos por um lado, não faltam placas sinalizando igrejas pequenas
ou grandes espalhadas por todo o território. Com mais de setenta igrejas evangélicas e duas
igrejas católicas (matriz e filial), as igrejas locais, muitas vezes, cumprem esse papel de
ofertar espaço para convívio social e lazer para crianças, adolescentes, adultos e idosos.
63
surge o Comando Vermelho, facção ainda dominante no território. Na década de 80 o tráfico
já exercia presença marcante, mas foi com a virada do século XXI que a atividade vivenciou
um intenso crescimento. Não raramente, quando se fala na comunidade do Jacarezinho hoje
em dia nos veículos midiáticos, o teor é sempre a questão do narcotráfico e os conflitos
armados que a comunidade experiência entre estes e as forças policiais.
Atualmente a favela do Jacarezinho está dividida entre a parte alta e a parte baixa. Na
parte alta circulam os policiais da UPP cotidianamente com seus fuzis e outros armamentos
pesados. Na parte baixa circulam os jovens “soldados” e “aviões” do tráfico, também com
seus fuzis, pistolas e rádios. Nessa região, uma enorme quantidade de bancas vendendo
drogas ilícitas. Essa divisão do território provoca um tensionamento e instabilidade
constantes. Os moradores precisaram se acostumar a atravessar ruas com policiais do alto
chamando a atenção de jovens do tráfico e esses jovens na parte de baixo fazendo o mesmo
com policiais, estando as pessoas ali, na recorrente iminência de estar no meio de um conflito
armado.
65
direitos básicos é um importante ponto a ser analisado. Que sensação de pertencimento essa
população desenvolve em relação à cidade que a marginaliza cotidianamente?
Acho que saúde é bem-estar, de um modo geral. Você só tem saúde se você, se tudo
tiver bem, senão... Se nada na tua vida tiver bem, você não tem saúde. Se não tiver
um bom emprego, não tiver um bom salário, não tiver uma boa casa com paz,
tranquilidade. Não morar num lugar tranquilo, você não tem saúde. Nada. Não deixa
ter saúde? Jacarezinho não deixa ninguém ter saúde. (Entrevistada C)
Durante a pesquisa de campo pude perceber a associação direta que muitos moradores
fazem entre as situações vivenciadas de violências, o sofrimento que elas provocam na pessoa
e o desenvolvimento de sintomas físicos no corpo e doenças. A pressão arterial
descompensada, a diabetes descontrolada, a insônia, a queda de cabelos ou até mesmo lesões
na pele por vezes são associadas, pelos usuários da clínica da família, com a exposição
cotidiana a condições humanas inadequadas. Seria como se o corpo fosse capaz de
corporificar todo aquele sofrimento e, por vezes, ao tornar física essas sensações, esse
sofrimento passa a ser legitimado para a pessoa que sofre e para o meio em que ela está
inserida.
“já tava vindo um cara todo rebentado, aí entrava no beco, antes de passar
arrebentado eu já pegava uma cerveja, (...)quando eu chegava no serviço e ia
conversar com o meu chefe que eu gostava muito, era pra gente conversar, falava da
viagem eu falava do meu final de semana, ele falou “você tá gritando, você tá
falando alto”, mas eu não sentia, né, quer dizer, comecei a ter problema de pressão
alta, infartei.” (Entrevistada F)
66
Outra dimensão de saúde que aparece por vezes nas entrevistas é a saúde espiritual.
Esta surge como dimensão paralela à saúde física e mental (assim dividida rotineiramente pela
academia e por moradores da comunidade) e com necessidade de ser alimentada e cuidada no
ambiente religioso, na vivência da fé e nas atitudes do dia a dia para consigo e para com
outras pessoas.
Relaciono saúde à parte física, no momento tô pensando nisso. Porque tem saúde
espiritual, a gente sabe. Né? Tem pessoas que eu já fui visitar em hospitais em que
as pessoas nos confortam. Ao invés de nós levarmos conforto, eles estão mais
inteiros, felizes, mais dispostos espiritualmente do que a gente. A gente pensa que
vamos encontrá-la moribunda, e tal, mas está com aquela força. (Entrevistada D)
“A gente ficava até madrugada na rua, jogando bola, não tinha problema nenhum.
Aí a pessoa dizia " ah, vocês gostam de morar na comunidade". Havia um bandido
que alimentava, que dava presente, que toda confusãozinha de marido que bateu ele
ia lá e resolvia na conversa ou às vezes até metia um pau e hoje...nada se compara a
violência de hoje. Jacarezinho de hoje, não tem nada a ver, nada a ver... infelizmente
assim, eu falo pros meus filhos: vocês não sabem nem o que é morar em
comunidade. Hoje eu tenho medo de deixar meu filho ficar até de madrugada, eu
não deixo, coisa que a minha mãe podia dormir que eu tava ali jogando bola,
jogando queimado” (Entrevistada O)
67
Dos anos 80 em diante, em virtude do acelerado processo de industrialização
capitalista, urbanização e produção de uma periferia moderna, a acentuação das desigualdades
sociais, que atinge de forma flagrante os países da América Latina e África contribui
diretamente para o aumento e fortalecimento das ações de violência de resistência e
delinquência nesses países.
“Quando eu vejo esses caras armados passando nas motos num lugar que eu queria
morar e que sempre a preferência são deles. Sabe, as vezes chega até a jogar a moto
para cima da gente, às vezes até machuca e a gente não pode nem falar nada, tudo
armado. Sabe, tudo me agride como pessoa, por eu não ter um lugar legal para
morar, a gente não tem um lugar legal para passear, porque tudo envolve drogas
sempre, tudo envolve droga, o melhor frango assado você tem que andar um pedaço
para comprar e você só vê droga e muitos drogados. (Entrevistada K)”
“ aí quando ele fazia assim (Em uma das pontas do beco, um gritava para o outro:
“Vai morrer um”), já tava vindo um cara todo arrebentado, aí entrava no beco, antes
de passar arrebentado, eu já pegava uma cerveja, que a carne tremia (...) Você tá
muito bem, daqui a pouco passa aquela pessoa toda amarrada, já era para morrer, e
aquilo, e bebia, e bebia, pra poder as carnes parar de tremer, então muita violência
aqui, eu fico apavorada, então quando a gente passa e que vê uma coisa, eu já fico
apavorada, fico doida pra sair dali, né porque você assiste muitas coisa...”
(Entrevistada F)
Na busca por alguma forma de proteção dessas exposições, muitas famílias delimitam
o território de sociabilidade das crianças, com o objetivo de reduzir o contato com o meio
social local, compreendido como promotor de comportamentos desviantes da norma
socialmente aceita, por estimular o contato com o mundo do tráfico, das armas e das drogas.
“Porque minha mãe não deixava eu brincar na rua, eu não conhecia o morro, eu não
conhecia a favela. Eu vim conhecer os becos daqui de baixo depois que eu comecei
a trabalhar aqui (Na Clínica da Família). Minha mãe nunca deixou eu ir em um baile
aqui dentro, porque é um... como vou explicar, é um ambiente muito propício a você
estar sempre fazendo coisa errada. Então se você não tiver uma boa formação da sua
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família, já começando daí, você pira, você já vai pelo caminho errado. Entendeu?”
(Entrevistada A)
A sensação de medo aparece como vivência traumática para muitas das famílias que
criam seus filhos na comunidade, onde a ausência do Estado e a desigualdade de direitos se
manifesta mais acentuadamente. No diário de campo, aparece com frequência em conversas
de corredor e diálogos pela comunidade, a angústia de criar filhos nesse ambiente, lido como
inadequado e violento para crianças. Como evitar exposição as armas e as barracas de vendas
de drogas, como evitar a exposição a situações de agressões físicas na rua ou como proteger
as crianças da experiência traumática de ouvir ou estar no meio de um confronto armado na
rua são preocupações que aparecem rotineiramente entre moradores que estão
responsabilizados pela criação de crianças. Para os responsáveis por adolescentes, outras
angústias se somam: como estimular e valorizar a independência destes, quando não se tem
segurança para andar ou estar nas ruas da comunidade, como permitir a socialização do jovem
com outros jovens do território, quando a principal atividade de lazer na região são os bares, o
baile e a rua. Para muitas famílias, os caminhos que aparecem como possíveis para a criação
dos filhos passam a ser o de cercear o trânsito pela e com a comunidade ou o de oferecer um
espaço e socialização considerados seguro e moralmente aceito – a Igreja.
Por vezes, no trabalho de campo, houve a reprodução dessa teoria de que o meio seria
o responsável por induzir a criminalidade, a violência e a delinquência, como se fosse culpa e
consequência da comunidade do Jacarezinho produzir pessoas violentas e agressivas.
“Só que a gente sabe que também isso teria como acabar. Não acaba porque tem
forças muito maiores que isso. Porque a polícia tem como acabar com isso, não
acaba porquê de uma forma ou de outra tem alguém que leva alguma coisa aí em
cima, né, do tráfico. Porque eles ganham em cima disso. Não só a polícia, mas muita
gente acima, delegado, muita gente acima. E quem sofre infelizmente são os
moradores, né. A população.” (Entrevistada D)
71
A falta de oportunidades e ofertas de atividades culturais dentro da comunidade são
pontuadas com frequência e denotam grande insatisfação para os moradores entrevistados.
Seja para crianças, jovens, adultos ou idosos, o que se tem de oferta na comunidade parece
muito aquém do que percebe como necessário e/ou esperado.
“Se a pessoa não tem estudo, não fala um idioma, a pessoa tem que se inteirar dessas
coisas, né? Procurar estudar pra se formar, fazer faculdade e os jovem daqui, nosso
bairro aqui, tá perdido mesmo, ninguém fala em faculdade, ninguém fala em estudo,
ninguém fala em melhorar nada. A falta de emprego também, a falta de
oportunidade pro jovem. Eu mesmo to com menino em casa que ele tem 22 anos,
né? Agora que ele veio arrumar um trabalhinho lá em Copacabana, numa empresa
de patins, segundo ele, falou que terminando agora esse emprego eles vão contratar
ele pra ele ficar direto, né? Falta de oportunidade, aí as pessoas se entregam à
violência, aos vícios, às drogas.” (Entrevistado H)
“O projeto da parte de baixo é ele (o tráfico) dar um dinheirinho pra criança que fica
ali. Ele vai ficando todo dia, vai ganhando um dinheirinho. Ali ele vai crescendo.
Quando não vê, ficou.” (Entrevistada C)
A opção do Estado, por se fazer presente apenas de forma militarizada em áreas como
o Jacarezinho, é, novamente, apontada pelos entrevistados como um fator que favorece a
manutenção do ciclo de desigualdade, ao tornar a busca pela carreira no tráfico uma das
poucas opções possíveis. A dificuldade de inserção no mercado formal de trabalho, a falta de
atividades culturais e esportivas que ocupem o tempo ocioso de crianças e jovens e os
permitam conhecer e explorar coisas novas e a ausência de estímulo para produzir, valorizar e
publicizar as atividades culturais produzidas localmente são alguns dos aspectos que
contribuem para essa diminuição de opções.
As possibilidades ofertadas para o morador de favela no Rio de Janeiro hoje, são lidas
como muito estreitas, e isso se reflete na forma como essas pessoas vão se conduzir pelo
mundo. A Igreja, que para as classes média e alta parece castrador a de liberdade, é percebida,
para quem não tem muitas perspectivas de liberdade, como um mundo de oportunidades que
se abre e promove planos e sonhos que podem, de fato, ser alcançados.
Lá (na Igreja) tem um projeto chamado VIDA (nome fictício) e aí as crianças têm a
oportunidade de chegar uma e meia (...) até às cinco. Elas lançam uma palavrinha e
elas ficam. Elas ficam lá a vontade fora dessa violência que a gente acabou de falar
ne? É como se fosse um casulo o VIDA.” (Entrevistada N)
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O espaço protegido para crianças trazido no relato de N, toca em uma questão que,
segundo os moradores, vem transformando as relações na comunidade: a presença de
adolescentes e crianças cada vez mais jovens como participantes do narcotráfico. Para G, “o
Jacarezinho é selva, é terra de leões, vencem os mais fortes. Os adolescentes são só as presas
fáceis (do tráfico e da polícia)”. Nos relatos, a falta de respeito desses jovens para com os
moradores, as atitudes, lidas como intempestivas e infantis, frente as intervenções do Estado
colocando-os e a todos em maior risco e a desesperança de moradores em perceber o futuro de
muitas crianças sendo diretamente atravessado pela carreira no narcotráfico, aparecem com
frequência.
“eu não sei se porque no meu tempo os bandidos não eram, que eu me lembre, era
homens, então eu, com oito anos, eu olhava homens, homens talvez assim vinte e
sete anos. E hoje o que a gente tem é meninos, treze ou quatorze anos. Se não
respeita a mãe, não tem como me respeitar, essa foi a mudança que eles fazem, a
polícia entrar mais, porque eles não...polícia passa quer atirar, quer fazer acontecer
coisa que não tinha.” (Entrevistada O)
“Eu acho que a violência contra as crianças. essas crianças daí de dentro, eu acho
que tem muita violência. Essas meninas novas. sei lá, eu tenho uma menina, uma
adolescente também, tenho muito medo de afetar... Pô, os adolescentes... eu acho
que eles tão se concentrando muito nos adolescentes da comunidade e tipo
assim...antes eu não via muito adolescente em boca de fumo, você não via
adolescente fumando do jeito, essa pessoa hoje em dia de uniforme de colégio aí
dentro fumando carreirinha assim oh, super... entendeu? Eu não via isso.”
(Entrevistada M)
"Vim do Ceará para cá há muitos anos, sou mais carioca que cearense. Não saio
daqui do morro não. A comunidade é legal porque a gente vê as pessoas que
cresceram junto com a gente. Todo mundo se conhece, você se sente em casa. Você
cria uma raiz, isso é muito gostoso. Só é ruim quando tem operação da polícia, que
entra atirando" (entrevistada S)
“E eu achava aquilo ali normal até eu conhecer outras pessoas quando eu sai pro
mercado de trabalho aí eu vi que o mundo não era o meu território Jacarezinho, que
tinha outras oportunidades, existia outro estilo de vida, existia outra perspectiva
depois que eu comecei a sair do jacarezinho para o mercado de trabalho. E
conhecendo esse outro estilo de vida o que eu via dentro do jacarezinho me afetou
muito mais porque eu comecei a ver que aquilo ali não era normal e sim uma
consequência de estilos de vida. Então assim afetou muito, muito mesmo, e hoje
pensando no meu filho eu fico com muito medo do que ele vê e do que fazem com
ele né? Eu fico sempre muito receosa, as vezes acho até que sou meio louca, mas eu
não quero que ele passe o que eu passei, de ter que descobrir só na maturidade o que
é ser normal” (Entrevistada N)
74
No período do verão de 2018, uma situação chamou minha atenção: era crescente o
número de arrastões que acontecia nas praias de Leblon e Ipanema, na zona sul do município
do Rio de Janeiro. Os arrastões eram frequentemente associados à linha de ônibus 474 que, na
cidade, fazia o trajeto Jacarezinho – Ipanema. Como caminho para solucionar tal problema, o
Estado achou que a decisão mais acertada seria modificar o trajeto da linha de ônibus, fazendo
com que essa deixasse de passar pela comunidade do Jacarezinho. Antes do verão e das
notícias de arrastão ganharem a mídia, muitos moradores e usuários da Clínica da Família já
vinham reclamando de assaltos, insegurança e outros problemas com esta linha de ônibus que,
por muitos, era utilizada como forma rápida de chegar ao trabalho ou curso na zona sul da
cidade. A forma que o Estado entendeu como melhor para lidar com o problema em momento
algum considerou os trabalhadores da favela, as queixas destes foram muito menos
valorizadas do que as queixas que vinham da turística zona sul.
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reivindicar, junto às autoridades e órgãos competentes, mudanças e melhorias na condição de
vida que lhes é oferecida, nada mais é do que a maneira que foi por mim apreendida como
eficaz na resolução de problemas. Essa expectativa, no entanto, impossibilita a percepção de
que, para os moradores do Jacarezinho, o caminho da construção via diálogo parece ter se
esgotado, e outros caminhos se constroem como possibilidades reais de lidar com o
sofrimento causado por esses mecanismos de opressão, como o fortalecimento da fé e da
participação em denominações pentecostais – movimento organizado intra-classes dominadas
- que foi aqui apresentado.
Se, por um lado, as ações violentas do narcotráfico são frequentemente lembradas nas
entrevistas e em conversas nos corredores, também o é a forma como o Estado, através das
forças de segurança, atua na favela de forma agressiva e desrespeitosa. Nas operações
policiais, ornamentadas com ostensivo armamento, ou no comportamento preconceituoso e
violento com que policiais consideram todos da comunidade como participantes ativos ou
coniventes com o narcotráfico, as pessoas se percebem reprimidas e subjugadas por essa
representação do governo que deveria lhes garantir segurança e não provocar sensação de
medo.
Policial antigamente...hoje são raros que passam pela gente e dá bom dia, difícil.
Muito difícil! A maioria trata, vou dizer assim, me trata como se eu fosse bandida
também e isso antigamente não, eles tinham uma certa educação, uma criação...ou
foram criados diferentes eu não sei, mas era diferente (Entrevistada O).
76
Hoje, até comentei isso aqui, o portão da minha igreja a gente não usa chave mais
porque eu cansei de colocar fechadura nova. Tinha semana da gente colocar
fechadura três ou quatro vezes e quando chegava de manhã pra escola dominical a
fechadura estava quebrada. Corria, mandava trocar, chegava a noite para o culto e a
fechadura estava novamente quebrada, entendeu? porque a polícia quebrava, não era
bandido, porque eles achavam que eles tinham esse direito de entrar lá pra usar
banheiro, pra beber água, entendeu? e eles abriam, arrombavam, estragavam a
fechadura (Entrevistada E).
A ocupação, que se iniciou em janeiro de 2013, passou por mudanças radicais a partir
de novembro de 2015, quando o narcotráfico empurrou a UPP para uma parte específica da
comunidade, que ficou popularmente conhecida como parte alta, por ficar na região mais
elevada da comunidade. A partir desse momento, o Jacarezinho entrou em um período de
conflitos armados intensificados entre a UPP e o narcotráfico, com o objetivo, por parte de
ambos, de retomar/avançar na disputa territorial.
“Igual à polícia pacificadora, aqui na comunidade...eu não vejo projeto, não vejo
pacificação, não são os piores, pelo menos na parte onde eu moro, os que vêm de
fora são assim... totalmente outro nível de homens que vem, mas na pacificação não
aconteceu” (Entrevistada O)
“Porque o governo quando vem, eles vêm dando tiro, bomba e porrada nos outros.
Ele quer combater a violência com a própria violência. Então, ele não vai ter sucesso
nenhum, não vai ter sucesso.” (Entrevistado H)
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“A esperança que a gente tinha era a UPP entrar e fazer alguma coisa pela
comunidade e não fez nada pelo contrário trouxe mais violência, mais morte”
(Entrevistada A)
Para Franco (2014), o problema das Unidades de Polícia Pacificadora como política de
Segurança Pública do Estado se evidencia desde a escolha do nome do projeto. Ora, para
efetivar uma necessária mudança cultural em um território em que a presença do Estado não
ocorre de forma plena e onde configura-se o controle por grupos criminosos armados, o
necessário seria que a sigla fosse a abreviação do termo Unidades de Políticas Públicas, com
uma mudança qualitativa no desenho do projeto, que levasse para as áreas marginalizadas
aquilo que falta, os serviços básicos essenciais, e não a já conhecida repressão policial.
(FRANCO, 2014)
Por mais que a proposta das UPPs incluísse uma aproximação da polícia com a
comunidade, por meio da criação de projetos sociais, talvez fosse mais estratégico optar por
outra ponte, que não a polícia, para a aproximação do Estado com a comunidade, já
historicamente negligenciada e oprimida pelas forças militarizadas deste. (FRANCO, 2014)
“É meio complicado, assim, meio sofrido nesse ponto de ver as coisas, você não
poder fazer nada, você não poder falar nada, entendeu? E ter que conviver com
aquilo. Assim, mas, muita gente fica abalado quando tem tiroteio. Eu consigo
78
separar ou tentar ajudar porque tenho muito paciente que tem parente envolvido. Aí
assim, eu converso, a gente acaba escutando, absorvendo isso, entendeu, tentando
passar tranquilidade, que vai dar tudo certo, essas coisas, mas é complicado pra
caramba” (Entrevistada L)
Se, por um lado, a impotência traz a sensação de desesperança, o medo tende a ser
paralisador. Nas entrevistas e no campo, o medo aparece inúmeras vezes em formas e
intensidades variadas. O constante medo do momento seguinte, de, ao sair de casa, não saber
se será possível retornar ou a necessidade de garantir um meio de comunicação eficaz para
situações de tiroteios, são algumas das preocupações que rondam cotidianamente a vida das
pessoas no Jacarezinho.
De uma sensação muito ruim, de que você vai morrer, você tenta manter a calma e
você não consegue. Você deita e você levanta e aquela sensação de que alguma
coisa vai acontecer. Você querer dormir e não conseguir. Eu tipo assim, tentando
pensar...a única coisa que eu pensava era nos meus filhos, meu deus, meus filhos...
aí eu tento me acalmar, entendeu? Pensando nos meus filhos eu consigo me acalmar,
entendeu? Aí eu me acalmei, mas foram dois episódios que eu não quero sentir mais
isso não, Deus me livre! É horrível, parece que você vai surtar (Entrevistada M);
O medo, né? O medo de poder sair na rua, o medo de ir e vir muitas das vezes tem
momentos, eu pelo menos, não consigo ir em certos lugares com medo do que pode
acontecer no meio da rua. E acho que isso atinge muito, o medo (Entrevistada Q);
79
Em relação ao medo e sua construção, por vezes é possível perceber como as
diferentes situações que acontecem no contexto familiar ou próximo vão modificando e
acentuando a sensação de medo das pessoas. Durante uma operação policial, um jovem negro
morador da comunidade foi baleado no pescoço de forma não (diretamente) intencional. Ele
estava na laje de casa, soltando pipa, sem perceber que estava começando uma incursão
policial na comunidade. Desde esse dia, o jovem, que sobreviveu, tornou-se paraplégico. Para
a família dele, ouvir um tiro, de perto ou de longe, nunca mais trouxe a mesma sensação. A
angústia e o desespero cresceram significativamente, como se, através desse fato, fosse
possível materializar o risco real a que a comunidade está submetida durante incursões
policiais no território. Abaixo, incluo dois relatos de pessoa que vivenciaram, em contexto
familiar próximo, situações similares.
Eu sou outra pessoa, eu durmo menos. Qualquer tiro me deixa preocupada. Eu tenho
que saber se todo mundo tá em casa, onde tá todo mundo. Eu tenho medo. Antes eu
não tinha tanto medo de tiro, de homem armado. Hoje eu tenho medo (Entrevistada
C).
Em outro registro de diário de campo, durante uma atividade coletiva na comunidade,
uma mãe contou um pouco de como sua filha havia passado, pela primeira vez, por uma
situação de tiroteio na rua, quando estava saindo de casa e como, desde então, toda vez que a
criança, de apenas nove anos, percebia um carro de polícia passando, não conseguia se
movimentar. O trauma que tais situações vão desencadear no futuro dessas crianças é
imensurável.
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possível ter precisão ao atirar do alto de um helicóptero em movimento, não é essa situação
específica que pretendo analisar. Tudo isso ocorreu em um domingo (14 de janeiro de 2018).
Na segunda-feira, quando a Clínica abriu, foram encontrados projéteis de bala em uma das
lixeiras que fica no corredor da unidade, na porta de um dos consultório, havia uma marca do
impacto de um projétil no chão e um buraco nos fundos de um dos consultórios, além de
inúmeros projéteis na área onde fica a horta comunitária da unidade. Desde esse dia, passar
por situações de confronto armado entre policiais e o narcotráfico, estando dentro da unidade,
nunca mais foi parecido. O pânico, o medo coletivo, o desespero se intensificaram
significativamente. É como se, ao perceber os furos e projéteis dentro da unidade, a
fragilidade e insegurança dessa fosse finalmente tomada como real para os trabalhadores.
Muitos são os relatos que apontam para esse medo como principal motivo de
adoecimento das pessoas no Jacarezinho. E se, por um lado, associam o medo com
adoecimento, também por diversas vezes associam a Igreja como caminho para lidar com esse
sentimento.
Uma situação, que foi inesperada para mim, aconteceu perto do final da atividade.
Algumas agentes comunitárias, que trabalham na clínica e moram na comunidade, fazem
parte de grupos de canto e louvores em suas respectivas Igrejas. Após muita insistência do
público, algumas delas decidiram fazer uma breve apresentação. Enquanto elas cantavam,
quase todas as pessoas que estavam ali e moravam na comunidade deram as mãos, cantaram
junto as músicas e muitos (evangélicos ou não) se emocionaram ao fazê-lo. Naquele
81
momento, pela primeira vez em muitos saraus que participei, vi uma organicidade que me era
estranha. Uma sensação compartilhada de pertencimento entre as pessoas que ali moravam
(mesmo sem necessariamente pertencer a uma denominação pentecostal), uma emoção quase
palpável no ambiente. Um aspecto cultural local se revelava naquele momento para mim, com
uma profundidade de significados muito mais densa do que eu podia imaginar.
“Nós somos quase cem Igrejas aqui dentro do Jacarezinho. Então, não tem uma
pessoa que não conheceu uma. Não tem uma criança que não foi numa festa do dia
das crianças na igreja. Então, todo mundo, de alguma forma, vai a igreja.”
(Entrevistada C)
“Quando eu era pequena eu era da Igreja Fonte de Água Viva aqui na Concórdia
mesmo. Era pequenininha pedia o pastor pra cantar lá na frente. É. Aí depois fui pra
Igreja Batista também aqui. Fiquei até a adolescência, até uns 15, 16 anos. Aí depois
fui pra Mundial e da Mundial fui pra essa igreja. A minha vida toda eu fui da igreja,
desde pequenininha, entendeu? Sempre fui. Minha mãe sempre me criou e meu
irmão assim.” (Entrevistada D)
“Gostava dos louvores, das músicas, desde pequena pedia pra minha mãe, quero ser
da igreja. Eu via os grupos, os cantos e queria participar. Conheci meu marido lá, ele
era evangélico, mas agora está desviado.” (Entrevistada P)
“O que me agrada? Ah, estar lá né? Orar, sentir a presença de Deus, fazer as coisas
que tem de fazer. É, eu sinto falta do convívio dos irmãos, aquela paz que você sente
lá dentro. Se eu não tivesse essa paz que eu sinto agora, eu tinha surtado,”
(Entrevistada M)
Uma considerável parcela das pessoas que participam das denominações pentecostais,
por vontade pessoal ou por orientação da Igreja, abandonam práticas como beber, fumar, usar
82
drogas, frequentar bailes ou ficar pelas ruas da comunidade, comportamentos tidos como
potencialmente problemáticos por estimular violências e escolhas erradas, e que, ao serem
interrompidos, conferem maior sensação de segurança para as pessoas em sua vida cotidiana e
na comunidade, segundo a perspectiva pentecostal.
“Ali termina um culto, a gente vai pra casa. Não vai tomar cerveja e tudo, passar a
noite, perder noite de sono. A pessoa perde noite de sono, isso aí também ajuda a
ficar debilitado. E também, a pessoa na igreja, ele passa a mudar. Ele passa a ser
assim, mais educado, mais manso com as pessoas. O cara no mundo ele é bravo. Ele
na igreja fica mais manso. Isso também ajuda, até pra própria saúde dele. Ajuda no
bem-estar do cara. O cara fica mais leve, mais suave, conversa melhor com as
pessoas. Ah é o Espírito Santo que faz isso. O evangelho ajuda a pessoa a viver até
melhor.” (Entrevistado H)
Se, para algumas pessoas, a igreja sempre fez parte da vida através de seus pais,
familiares ou vizinhos, para outros, a necessidade da experiência religiosa surge diante de
situações complicadas que parecem não ter solução ou que são muito difíceis de suportar. São
vários os relatos que contam da aproximação com a igreja a partir de enfermidades, desilusões
amorosas e outras situações de sofrimento, que pareciam não ter mais caminhos possíveis e a
igreja aparece como última esperança.
“Um dia saindo da escola tinha uma igreja, aí eu olhei para a igreja e eu falei assim:
cara sua mãe serve a um Deus lá que ela falou q é bom e que foi ele que me colocou
na sua vida e eu não aguento mais você. (Não aguento mais) Viver assim, eu gosto
de você mas eu não quero viver minha vida toda assim batendo de frente contigo.
Então vamos fazer um negócio, ali tem uma igreja. Vamos assistir um culto? Porque
se deus não fizer nada pela gente, isso não vai rolar, não vai adiante então essa é
nossa última chance.” (Entrevistada A)
“Entrei porque estava no fundo do poço, era viciado em bebida, droga, cigarro e
perdi tudo. Tava catando papelão na rua. tinha me separado da esposa, estava
83
sozinho. A causa foi espiritual, quando a gente se afasta de Deus, abre espaço pro
inimigo, aí vem a depressão.” (Entrevistado R)
“Vive a base de remédio. A base de calmante. Eu conheço pessoas que vive a base
de calmante. "se não fosse a clínica da família, se não fosse os remédios eu já tinha
surtado, já tinha morrido, já tinha me matado" Aí eu falo - Vamo lá na igreja
comigo, com a minha mãe! A minha mãe vai te levar pra igreja.” (Entrevistada M)
“Eu falei é, aí eu fazia tudo correndo pra mim poder sentar na pista pra beber pra
dançar, meu negócio era beber, era dançar, né, pensa que é ali que você vai esquecer
os problemas, mas o problema tá atrás da bebida né, passa o efeito da bebida
continua, aí” (Entrevistada F)
84
Relação da Igreja com o Tráfico de drogas
A igreja pentecostal, dentro da comunidade do Jacarezinho, hoje, desempenha um
papel importante como alicerce moral e cultural. Sendo ou não praticante de uma
denominação evangélica, o respeito e reconhecimento do status da Igreja dentro da
comunidade é notório e comum à grande maioria de seus moradores. O tráfico de drogas, a
associação de moradores, a região administrativa e outras formas de organização coletiva e
representativa dentro da comunidade, interagem e dialogam com as Igrejas locais,
reconhecendo a influência que apresentam como parte da cultura local. Nos fragmentos
abaixo, temos relatos de uma pastora que usa de sua influência local para negociar com atores
do tráfico:
“Outra vez foi um policial com um menino mais ou menos 14/15 anos, batendo na
porta da Igreja e ele começou a gritar "Igreja, igreja!" O menino tava apanhando,
desci, falei com o policial, ele perguntou se eu o conhecia, eu falei: "não conheço,
mas você tá na porta da minha igreja e ele tá chamando eu tenho que descer." O
policial falou que ia levar ele pra delegacia de menor, ele tava, o telefone dele tava
com fotos de meninos, foto dele armado e eu me propus, eu falei: "se o Senhor levar,
eu vou ter que acompanhar." E ele perguntou: " Mas você vai acompanhar por quê?"
e eu falei: "porque está na porta da minha Igreja, e como pastora eu não posso deixar
um menino com quatorze anos ser levado sem que eu acompanhe. Ou você liga pra
mãe dele, pra mãe dele vir e ir com ele. Se a mãe dele não for, eu terei que ir.
Evangélicos aqui já tiraram pessoas da CREC, onde bota aquela faixa pra matar
muitos.” (Entrevistada O)
Embora seja conflitante em uma primeira análise, devido ao paradoxo moral que se
apresenta, a relação que se estabelece entre o narcotráfico e a Igreja passa a ser
compreensível, quando se analisa suas raízes, semelhanças e interlocuções. Essa relação
encontra-se em crescente aproximação desde a década de 80, quando a cultura, os símbolos e
signos evangélicos assumem, junto ao tráfico, o lugar que antes era ocupado pela cultura das
religiões de matriz africana (Vital da Cunha, 2015). C lembra que “Uma maioria que tá lá
(envolvido com o tráfico) é filho de crente, é mole? A maioria foi tudo criado na igreja.”
Vital da Cunha (2015), em sua etnografia intitulada “Oração de Traficante”, faz uma
análise dessa proximidade entre evangélicos e traficantes, que em muito se assemelha com o
observado no Jacarezinho:
“então quando a gente passa e que vê uma coisa, eu já fico apavorada, fico doida
pra sair dali, né porque você assiste muitas coisa, aquilo ali é, como é que eu falo
para você, é, você vê outros pessoal, ali comprando aquela coisa, mas você sente que
ali tem demônio solto doido pra... ou pior que aquele ali. Então eu tive meu filho, eu
brincava carnaval, eu bebia, eu fazia, tive meu filho mas sempre conversando com
meu filho, meu filho não entra naquilo, porque aquilo ali, como que eu falo pra
você, aquilo ali, empresta um dinheiro para você comprar uma coisa, depois vem, a
arma, para você assaltar.” (Entrevistada F)
“Aí saia pro futebol seis e meia da manhã às vezes era dez horas da noite não tinha
chegado aí eu ficava assim "meu deus, onde será que ele está?". Aí daqui a pouco
chegava, só para me xingar, mandava eu tomar em tudo quanto era lugar...(...)dizia
que não ia comer porque eu tinha posto veneno, me xingava, depois tomava banho e
ia dormir bêbado, bêbado, era assim.
E eu tinha uma culpa e eu achava que eu tinha que, saber, que ser aquela melhor
mulher para ele porque no outro dia ele não lembrava de nada mas eu lembrava e eu
não conseguia ser a mesma pessoa para ele porque ainda estava doendo e eu fiquei
com essa culpa, falei poxa se eu fosse uma outra mulher né? Porque lá na igreja a
gente aprendeu que não era ele, era um espírito maligno que se apossava dele. É.
Trata ele bem não é o seu marido. Aí quando ele chegava assim querendo arrumar
briga, eu falava pro meu filho: "não é o seu pai não".” (Entrevistada K)
O relato de K suscita uma discussão que apareceu com alguma frequência durante a
pesquisa: o sofrimento de algumas pessoas para conseguir se manter e seguir as regras da
doutrina religiosa. Permanecer em uma relação abusiva para não romper com o casamento ou
entrar em um relacionamento com outro membro da Igreja, mesmo sem que haja um
sentimento de amor, e não aceitar as próprias identidades de gênero e sexualidade quando esta
está fora da normatividade (transexuais, homo ou bissexuais), são algumas escolhas que os
membros precisam fazer para se adequar ao que as Igrejas definem como correto ou
moralmente aceito. Esse dilema, entre silenciar as situações que são geradoras de sofrimento,
para se manter na Igreja, ou lidar com a sensação de não fazer parte desta e não contar com
sua rede de apoio, é complexo para quem o vivencia, porém difícil de empatizar para o
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profissional de saúde que não conhece a importância da Igreja para a vida desses moradores
do Jacarezinho.
Se, por um lado, fazer parte do tráfico representa uma espécie de status social dentro
do Jacarezinho, esse status e respeito também são alcançados por pessoas convertidas e
batizadas na Igreja.
“Ah, meu marido! Você vai ver o marido, uma coisinha pequenininha, mas tá na
boca. É o marido delas, entendeu? Parece que virou status ser da boca, ter marido da
boca.” Às vezes pode ser o garoto mais magrinho, mas feinho, mas entrou pro
tráfico tem mulher aí... já quer... porque não vê roupa bonita, não andam bonito, mas
anda armado, às vezes não aguenta nem segurar uma pistola de tão magrinho que é,
mas tá no tráfico e tem respeito...” (Entrevistada K)
“Entrei pro tráfico com 11 anos de idade, quando comecei a fumar maconha. Tive a
primeira cadeia com 17/18 anos. Lá comecei no crack. Total, fiquei uns 5 a 6 anos
no tráfico. Às vezes os amigos daquele tempo chamavam para voltar. Mas agora me
chamam de irmão, me veem passar com a roupa arrumada do culto e me respeitam,
nem chamam mais pelo apelido antigo” (Entrevistado G)
"Às vezes a pessoa tem tudo, tem dinheiro, mas não tem a certeza da salvação,
que é o mais importante”. (Entrevistado R)
Nas entrevistas e durante a pesquisa, não resta dúvida de que a Igreja se apresenta para
a comunidade como um importante fator de manutenção do bem-estar dos moradores. O lugar
onde buscar acolhimento, amparo frente ao desespero, força que sustenta e dá coragem para
88
continuar, a palavra que orienta o caminho a ser seguido ou, ainda, Deus como o conforto
necessário são algumas das referências feitas à Igreja e à experiência de fazer parte da Igreja
ao longo dessa pesquisa.
A COMUNHÃO
Apontada por muitos estudiosos como aspecto essencial a ser estudado e pesquisado
no âmbito do pentecostalismo, a rede de apoio social, construída nas igrejas pentecostais, é
apresentada pelos entrevistados como um importante mecanismo que permite aos membros
partilhar experiências, vivências, construir espaços alternativos de cooperação, de lazer e de
trabalho.
Apoio social, portanto, é definido como sendo qualquer informação, falada ou não,
e/ou auxílio material oferecidos por grupos e/ou pessoas que se conhecem e que
resultam em efeitos emocionais e/ou comportamentos positivo s. Trata-se de um
processo recíproco, ou seja, que gera efeitos positivos tanto para o recipiente, como
também para quem oferece o apoio, dessa forma permitindo que ambos tenham mais
sentido de controle sobre suas vidas (HOLANDA, 2015 p.176)
Os pentecostais entrevistados não se referem a este como apoio social, mas sim como
comunhão entre irmãos. Especialmente, para um grupo marginalizado socialmente e sem
esperança ou confiança no Estado e em outras instituições formais, essa rede de comunhão
torna-se uma forma de sobreviver no mundo, que se revela não acolhedor e opressor para o
morador do Jacarezinho.
“Amizade. Unidade. Entendeu? Porque mesmo dentro da sua família se nem todos
estiverem em unidade, mas a maioria estiver em unidade, a coisa fluiu, entendeu?
Faz você ter prazer de estar naquele lugar. Eu vou ali porque eu gosto dali, tem
fulano ali, tem ciclano ali, tem beltrano ali, eu me sinto bem naquele lugar. Mesmo
que tenha um ou dois que não estejam em unidade com o círculo, tem um monte que
está. Então, a unidade, a comunhão, aquele convívio, a força que as pessoas dão a
você numa hora difícil, um abraço. Ali você recebe uma palavra, você recebe um
abraço, um olhar, às vezes até de uma criança que faz você chorar, que às vezes é
preciso.
E ninguém tem nada não, é tudo pobre igual eu, mas o carinho que passa, aquele
apoio... Ontem mesmo foi uma me buscar em casa "vou ajudar a senhora a subir,
vamos devagarzinho conversando" isso para mim é tudo” (Entrevistada E)
“O que me faz bem na igreja é ter comunhão, sabe? Com pessoas que têm o mesmo
objetivo. A gente tenta falar a mesma coisa. Se entender nas mesmas coisas. Acho
que é comunhão. Estar com os irmãos, é. Porque acho que a gente fala sempre a
mesma coisa. A gente tá sempre cuidando de um, como vou explicar? De um bem
comum. A gente quer, todos querem a mesma coisa. Ninguém vai puxar pra um
89
lado. Eu quero isso, eu quero aquilo. Todo mundo sabe que quer mesmo, o mesmo
propósito. A gente tem o mesmo propósito. Mais ou menos parecido, bem parecido.
É difícil quando alguém diverge de alguma coisa, mas são opiniões, a gente se senta,
conversa, discute e tenta entrar, chegar num bom senso.” (Entrevistada C)
O CULTO
Outro aspecto da cultura evangélica, trazido pelos entrevistados, são as sensações e
emoções despertadas durante o culto. A sensação de paz, a presença de Deus, do Espírito
Santo ou um êxtase são descritos. Para Corten (1996), a mobilização pela emoção é a
principal característica da fé pentecostal, manifestada, em última análise, nos cultos, pelo falar
em línguas (glossolalia) e pelas falas ilocutórias durante a leitura da palavra ou testemunho.
(CORTEN, 1996)
“eu me sinto bem, então, eu não sei, muitas das vezes a gente tá em casa assim com
algum problema e para os nossos olhos é impossível resolver e quando você vai pra
lá não vou dizer que aquele problema vai ser resolvido naquele exato momento ou
vai ser resolvido, mas você vai e você sai dali com mais fé, com mais esperança que
dias melhores virão, coisas melhores virão e sai esperanço.” (Entrevistada Q)
“tem umas outras religiões que tomam chá, tomam alguma coisa pra ter um êxtase e,
e tem culto que a gente tem esse êxtase sem precisar tomar nada que explicar,
explicar, eu acho meio confuso. Quando a gente tá, assim, à toa, às vezes eu falo
90
assim na igreja, às vezes a gente acorda de manhã e pensa assim: “Cara, como é que
eu sinto Jesus, como é que eu tenho certeza que Jesus existe, como é que eu tenho
certeza que Deus existe?” E quando você tá na presença d'Ele, a palavra diz: “Na
presença d'Ele há abundância de alegria. Isso é fato! Isso é fato. Você sente vontade
de chorar, você se sente alegre, você se sente satisfeito. Sabe, uma coisa assim, que,
por mim, eu seria como - Que eu sempre habite na casa do Senhor - acho que eu ia
morar lá, sabe? Seria o melhor lugar, que a gente se sente protegido de verdade”
(Entrevistada O)
Pelos relatos, nos cultos, as pessoas se sentem mobilizadas e tomadas por uma emoção
diferente, capaz de trazer paz e sensação de proteção. Essa emoção, que não se justifica na
ótica da explicação científica, é muito valorizada pelos entrevistados e evoca nestes um bem-
estar que não conseguem experienciar em outras situações.
Para Mafra (2009), as outras duas formas de mediação da comunicação entre o homem
e o divino seriam: a mediação na qual Espírito Santo fala diretamente com a pessoa, de forma
intermitente e em momento imprevisível – conferindo destaque ao valor do indivíduo -, e
no adensamento da presença do Espírito Santo na pessoa que, com o passar do tempo, permite
que estas se tornem lideranças reconhecidas e que tenham circulação social ampliada.
(ROBBINS apud MAFRA, 2009)
O ACOLHIMENTO
Se a Igreja se apresenta como local de renovação de fé e esperança, um caminho para
isso é o acolhimento realizado por ela, muito citado entre os entrevistados. Para alguns, o
acolhimento acontece em tempo integral, pois sempre que se chega para um culto ou para
uma roda de oração, ou qualquer outra atividade, o pastor, decano, missionário ou obreiro lá
estará para lhe receber, ouvir e oferecer a palavra de Deus como conforto e cuidado.
Fui muito bem recebida pela minha igreja que fez eu desejar ficar. Aí já comecei a
olhar pro meu filho e eu falei assim: Porque criar ele como... diferente do que eu fui
criada, né? Que era o evangelho, cheguei cheia de medo, fiquei muito tempo com o
brinco no nariz ainda, a igreja não questionou, por isso que eu falo, um monte de
tatuagem, brinco.” (Entrevistada O)
Para muitos dos entrevistados, esse momento inicial de acolhimento atento, cuidadoso
e sem preconceitos foi fundamental para que trilhassem o caminho dentro da fé evangélica.
Saber que existe um lugar onde se pode ir para falar de seus problemas, de suas preocupações,
de seus medos e receber ouvidos atentos, apoio e conselhos parece ser algo muito caro para os
membros das denominações evangélicas pentecostais.
“aí a igreja me ajudou a tirar essa culpa. Toda hora que eu chegava lá, tinha um
pastor e eu podia conversar e ele me ouvia entendeu? Tinha dias que eu chegava, só
chorava na frente do pastor, mas no outro dia eu já chegava bem, eu já saia
diferente.” (Entrevistada K)
A MISSÃO SALVADORA
Por vezes pude perceber, ao longo da pesquisa, uma mudança significativa no modo
de falar e na postura corporal das pessoas quando eu abordava o assunto da fé pentecostal sem
demonstrar um caráter preconceituoso e julgador. A forma de falar sobre a experiência dentro
da Igreja, as atribuições e responsabilidades, a fé, as coisas que acreditam e pregam, eram
completamente diferentes. Muda a velocidade da fala, muda o brilho no olhar, muda a altivez
e posso dizer, que percebi uma mudança na estima pessoal quando a pessoa era convidada a
falar sobre sua experiência religiosa. Antes de começar a pesquisa etnográfica, talvez esta
mudança tenha sido uma das coisas que mais me chamou atenção e despertou curiosidade
para melhor compreender esse fenômeno. Fosse no espaço de consulta, em uma reunião de
equipe, em uma conversa no corredor, ou em um encontro fora do horário de trabalho, a
mudança na forma e no conteúdo do discurso eram, e ainda são facilmente percebidos.
92
Ao longo da pesquisa, e nas entrevistas, fui procurar motivos que justificassem essa
percepção inicial. Algo repetido pelos entrevistados, que me chamou atenção, foi o quanto
participar da Igreja lhes oferecia a possibilidade de fazer algo pelos outros. Levar a palavra de
Deus, dar testemunho, contribuir para o sucesso de outros, orar para proteger a comunidade,
visitar e evangelizar nos presídios e cenas de uso de drogas, foram funções realizadas que
permitem aos membros da Igreja se sentirem úteis e com possibilidade de intervir nas
injustiças que sofrem e percebem no cotidiano da comunidade.
“O que pra mim me faz mais feliz dentro da Igreja por incrível que pareça, o que me
faz mais feliz dentro da igreja não é comigo mesmo. É quando eu vejo uma pessoa
que eu ajudei bem, entendeu? Assim, quando eu vejo: poxa, fiquei do lado daquela
pessoa, ajudei, ajudei, ajudei, aconselhei, quando a pessoa tava querendo desistir, eu
tava lá do lado falando não desiste do seu casamento, ainda tem jeito; não desiste da
sua família, ainda tem jeito; não desiste do seu filho, ainda tem jeito e eu passo e a
pessoa me dá um abraço e fala "A gente tá aqui. Obrigada por tudo" isso me faz
mais feliz porque eu me sinto, é quando eu me vejo útil, entendeu? Dentro da
igreja.” (Entrevistada A)
“"Eu penso de maneira positiva, eu vejo o hoje, se a gente mudar o hoje, a gente
consegue mudar o futuro. Eu já vivi no meio deles. A gente quando fala eles
desmontam, da pra fazer a palavra entrando pra eles, eles se emocionam. É muito
triste quando a gente vê uma mãe lutando pelo filho, mas ela vê outras pessoas,
consegue tirar outras pessoas, isso pelo menos conforta." (Entrevistado R)
"O trabalho que a gente faz é um trabalho bíblico. Levar comida, roupa, ajuda pra
quem precisa. Está na Bíblia. Ajudar quem mais precisa, quando você sabe que
precisa. Às vezes você fala a palavra pra quem está afastado da palavra do Senhor.
Eu me sinto muito bem, muito feliz fazendo esse trabalho. Eu preciso mostrar pra
ele que ta ali, que pra mim não tem diferença, eles só estão nesse caminho tortuoso,
por conta do inimigo. Esse trabalho de capelania social, é muito bonito, me faz um
bem danado. (entrevistada S)"
O PROSELITISMO
Muitos autores atribuem o avanço pentecostal acelerado dos últimos 40 anos, para
além do momento político (redemocratização) e econômico (Nova ordem mundial e
Liberalismo) do país, para um de seus principais aspectos, o caráter proselitista e doutrinador.
E depois que a gente fechou a porta dificultou muito mais, quer quiser, mais fome,
mais pessoas sem ouvir a palavra, porque a palavra de Deus é o seguinte, ela é igual
uma cachoeira, a pedra é dura, mas a água até que bate um dia ela fura, então você
tem que tá ali pregando, você tem que ficar ali ensinando, não fumar, não usar
droga, não se prostituir, tem que ficar falando. Um dia o espírito santo vai comover
aquela pessoa e ele vai parar, só se ele não for mesmo um filho da salvação, se ele
for um filho da perdição aí não tem jeito. (Entrevistado H)
a gente faz um trabalho muito bom lá a gente eu não né? Eles... Eu ajudo a arrecadar
as coisas e dou às vezes uma vez no mês a gente vai para a Central a gente da sopa
aí vai um grupo que chama anjo da madrugada uns cortam cabelo, outros dão banho,
outros dão roupa. Eu às vezes ajudo a separar roupa as vezes eu boto comida. To
ajudando na comida aí dos presídios a gente tá arrecadando camisetas brancas para
levar a gente pede papel higiênico, pasta de dente aí forma um kit ai quando o
pessoal vai lá leva para eles. Entendeu? Aí é assim. Inclusive eles também dão ajuda
a quem tá preso aos familiares deles, entendeu a pessoa faz tudo para que a outra
volte novamente para a sociedade. Entendeu? Errou estava passando por algum
problema quem somos nós para estar ali falando de ninguém a gente tenta né?
Mostrar que aquilo foi um erro mas que ainda há chance a pessoa tá viva, Deus tá aí
é só
ele se voltar que Deus vai até ele. Tem vários empresários que eles contratam quem
tá saindo da igreja da igreja não do presídio (Entrevistada K)
O papel do Pastor
Um papel muito importante dentro da Igreja evangélica é o desempenhado pelo pastor.
Sua função e responsabilidades variam de acordo com a denominação evangélica pentecostal.
Em algumas, sua responsabilidade é exclusivamente de organizar os cultos e levar a palavra
para os irmãos da igreja. Em outras, acumula ainda a função de organizar os grupos de
atividades, os eventos e as celebrações festivas, ainda pode acumular também a função de
administração financeira da filial ou da sede da denominação também. Mas,
independentemente do acúmulo de atribuições, a figura do pastor é vista como o exemplo a
ser seguido dentro daquele grupo de pessoas, a pessoa que pode e vai amparar o membro da
igreja quando mais precisar, a pessoa responsável pelo cuidado, pelo acolhimento e, por
vezes, pela cura das pessoas.
“Agora a gente que é pastor é porque tem um pouco de problema, né. Porque tu que
é o pastor da igreja, né. Se o cara dá um peido lá fora ele corre e conta pro pastor.
Tem muita demanda. E é muita mesmo. Não é brincadeira não. Eu quase não durmo.
É problema. Quer misturar tudo, eles acham que eu tenho que ser pai, mãe,
psicólogo, fisioterapeuta. Não tem como, não tem como. Pra cuidar dessa turma
aí...” (Entrevistado H)
Em diversos relatos, aparece uma preocupação dos entrevistados com a falta de
cuidado que os membros da Igreja as vezes apresentam com o pastor, se esquecendo que este
também é um ser humano, que a função de acolher e ouvir os problemas dos outros pode ser,
por vezes, uma tarefa muito difícil. Mais de um entrevistado lembra de episódios nos quais
pastores de igrejas pentecostais cometeram suicídio.
95
sabendo o que ta acontecendo comigo, ele fica de olho, sente falta das pessoas, mas
se eu posso falar eu vou lá e falo o que tá havendo, sou honesta, isso é fundamental.”
(Entrevistada P)
“É um ledo engano a pessoa achar que por ser cristão não precisa de medicação,
nem psicólogo ou psiquiatra, conselheiros. É um engano. Pastor é o que mais precisa
de conselho e psicólogo. É sério! Porque tudo dos outros você absorve! É se você
pisar fora da linha 1mm, já sabe, todo mundo que você ajudou vai te julgar. Não tem
perdão ou desculpa. “Como é que você ensinou uma coisa e agora fez outra? Como
você me aconselhou a não fazer ou a suportar dessa maneira e você se portou
dessa?” Ninguém vai entender que você também é um ser humano.” (Entrevistada
E)
Por outro lado, também aparece nos relatos a necessidade de o pastor apresentar
comportamento exemplar, diante das doutrinas da Igreja que participa e da palavra de Deus. A
expectativa é de que o pastor seja espelho para a comunidade de como se comportar, como se
este fosse a representação mais próxima da divindade no meio da Igreja. Além de ser
exemplo, ele também precisa ser fonte de cuidado e cura para os demais membros da
denominação.
“Eu acho que cuidar de alguém, tipo assim... pastor ele cuida, ele tem que cuidar,
tem que ser o exemplo, tipo, eu penso assim. E como eu falei, eu sou meio rebelde,
eu não sou exemplo. Então eu nunca quis” (Entrevistada Q)
“Não é correto, na minha posição de presbítero, não agir da forma como prego. Pra
mim não é correto. Eu saio de terno, gravata, as pessoas olham, não acho certo, não
gosto de participar, de estar no meio de rodinha de fofoca, de tititi. Não concordo,
então eu me afasto logo, prefiro evitar.” (Entrevistado J)
Uma outra questão que surge é a do pastor morador da comunidade onde congrega, e
como isso o torna capaz de conhecer e entender o cotidiano da comunidade e dos membros da
igreja, os problemas que se apresentam, as opções que se tem acesso e os possíveis parceiros.
“Vinham pessoas de fora pra dirigir a filial e as vezes são pessoas que não conhecem
a comunidade, não tem contato, acaba o culto ali e eles vão embora pra longe, pra
onde moram, outros bairros, outros lugares e não sabem o que está acontecendo na
filial, na comunidade. Então a pessoa sendo da comunidade para liderar a filial é
muito melhor, eu acho.” (Entrevistada E)
96
Para Ribeiro (2014), além da proximidade com os membros das comunidades de fé,
morar na comunidade em que congrega permite ao pastor conhecer de perto as famílias e suas
necessidades materiais e espirituais, e a propor mudanças em suas vidas. A proximidade entre
religiosos e moradores nas comunidades, propicia encontros que, muitas vezes, podem
provocar mudanças radicais. (RIBEIRO, 2014)
Embora não seja uma questão que apareça com frequência nas falas dos entrevistados,
pude perceber o movimento de migração das pessoas de Igrejas mais distantes para Igrejas
dentro ou no entorno da comunidade. Seja pela comodidade ou pela necessidade de estar em
comunhão com quem vive situações similares, o fator proximidade se revela como uma
questão comum em quase todas as entrevistas.
“Hoje, Deus conhece o meu coração, se Ele chegasse hoje, e eu não fosse pastora, se
Ele, por acaso, me perguntasse, eu falaria que não, porque é uma responsabilidade
com a vida dos outros, muito grande, muito grande. É, viver, é coisas que, que não
eram pra eu viver e eu, eu acabo vivendo (...) então você acaba indo, estando em
coisas que não eram pra você estar e acaba aquilo mexendo um pouco com teu
coração. Eu não precisava saber, eu não precisava estar e a gente acaba entrando.
Como um médico, né, de família. A gente acaba vivendo aquilo. E o ruim é levar pra
casa. Eu faço tudo pra desvencilhar. Senhor, não vou levar isso pra casa. Não vou
levar isso pra casa, quando não vê eu tô em casa já tô chorando, já tô deprimida com
a situação de, de outra pessoa.” (Entrevistada O)
A igreja de humanidades
“A Igreja é feita pelo homem, representa a Doutrina a partir da
interpretação do homem e por isso é passível de falhas, mas a fé, a palavra de Deus
não são.”
“Aí eu saí por ver coisas que a gente vê, entendeu? Mas a religião é complicada,
tanto seja espírita, como católica, como... você vai ver coisa mesmo porque ninguém
é perfeito, perfeito é só Deus, então você vai ver em qualquer religião que tem
defeitos, tem qualidades e tem defeitos, então eu saí da outra vez por isso, aí voltei
97
pra evangélica, voltei pela dor, não foi pelo amor, entendeu? Voltei pela dor no
sentido, fiquei doente e tal, com depressão, entendeu? E eu era espírita, eu saí da
igreja e fui pra espiritualidade” (Entrevistada B)
“Eu tive uma decepção muito grande com essa igreja , Segunda , que eu era , e
assim, todo, todas as, é a minha percepção, todas as igrejas daqui, é...não vou dizer
que aceitaram, mas fizeram parte do que aconteceu e que não me fez bem na época,
entendeu? Aí eu preferi sair e fiquei procurando outras depois que saí.”
(Entrevistada L)
98
cada pessoa. Para outros entrevistados, no entanto, as regras rígidas são muito importantes,
para manter os membros da Igreja e a si mesmos no caminho certo da palavra de Deus.
Então assim, eu sou livre, eu posso fazer tudo que eu quero. Apesar de ser da igreja
eu posso fazer tudo que eu quero, mas a bíblia diz: tudo me é permitido, mas nem
tudo me convém. Entendeu? Porque que eu pensava naquela época que eu não ia
poder mais usar meu short curto, minha saia, não ia poder mais ir pro pouco pagode
que minha deixava... E eu vi que não é assim, depois que eu aceitei Jesus eu
continuei fazendo isso tudo. Continuei usando meu shortinho, continuei bebendo
minha cerveja, continuei bebendo meu vinho, continuei indo pro meu pagode,
continuei indo pro meu baile e aos poucos o que não era pra fazer eu fui deixando
sem ninguém falar pra mim "Oh, você não pode fazer." Entendeu? O próprio espírito
santo de Deus foi me convencendo de que aquilo ali eu posso até fazer, mas não me
faria bem (Entrevistada A).
Eu não vou pra pagode e samba, isso não me pertence. Mas quem disse que
evangélico não pode se divertir? Não pode ir no cinema, num teatro, viajar. Hoje em
dia tem igreja pra todo mundo, eu sigo na minha obra e na minha missão. Hoje só eu
estou na igreja, meu marido e os filhos não estão mais, eles crescem e decidem por
si, mas eu sigo na igreja, eles têm os compromissos deles e eu tenho os meus
(Entrevistada P).
Esses dois fragmentos acima trazem a percepção de regras e doutrinas fluidas dentro
da Igreja. Apontam para a pluralidade de possibilidades que as denominações evangélicas
pentecostais têm oferecido. No entanto, é importante ressaltar que, para muitos moradores da
comunidade, as regras e as doutrinas ainda se colocam como fator de afastamento dos espaços
pentecostais.
99
eu tenho minha opinião e minha verdade da bíblia. Deus criou o homem e a mulher
para formar uma família. Não significa que a minha opinião seja verdade para as
outras pessoas. Eu respeito todo mundo, eu tenho a minha verdade que eu já disse
qual é, mas respeito as pessoas todas. Não é porque eu tenho minha opinião, que é
homofobismo, eu não quero impor e nem que você faça o que eu quero, mas tenho
minha opinião e respeito os outros. Eu acho que respeito é o mais importante pra
todo mundo, o mundo seria muito melhor se as pessoas se respeitassem mais. Na
igreja as vezes as pessoas não se aceitam. Deus já disse, eu preciso me amar pra
amar o outro. As pessoas precisam se amar e se aceitar pra depois poderem amar os
outros.” (Entrevistada P)
“Eu não tinha na mente esse caminho, não pensava nisso, fui caminhando, como
numa empresa você vai subindo de posição. Só estar na igreja não me garante nada,
tem que seguir os preceitos da bíblia sim, o que ta escrito. Senão não serve de nada.”
(Entrevistado J)
“Eu participo assim do culto, ajudo na limpeza da igreja, assim, entendeu? Por eu
não ser casada, porque tem uma norma dentro da igreja, né. O evangelho, você tem
que tá casada pra você seguir o ensinamento, porque você tem que ter uma
comunhão com Deus. Isso na palavra de Deus diz que você tem que tá casada
entendeu? Porque você tem que tá com a vida no altar e como eu ainda não sou
casada, ainda tô na peleja do casamento eu sou só um membro da igreja entendeu?”
(Entrevistada B)
“Se você procurar a bíblia você não vê que tem ninguém, nenhuma pastora, têm
pastor! Entendeu? Pastora não. Mas hoje em dia as coisas foram evoluindo e tudo e
o homem assim ser humano, né? Foi percebendo que a mulher tem uma voz na
Igreja, tem uma influência na igreja. Então, hoje em dia algumas igrejas consagram
a mulher do pastor a pastora ou se não for mulher do pastor também. Se a pessoa
tiver um chamado, tiver um desenvolvimento, ajudar as pessoas, entendeu? Tiver
uma função da igreja, a igreja reconhece como pastora.” (Entrevistada A)
Não abraça. Finge que tá legal, mas, não. Não tá legal. Nem na questão de pele, na
questão de cabelo. Já fui abordada várias vezes. Quando eu chego pra dar palestra,
pra pregar e a pessoa já fala assim... Eu cheguei com uma moça branca, e ela que
tava dirigindo, e quando eu passei, ela: “rapaz, pastora” falou com a menina. Ela
falou que não, (apontou pra mim) ela que é. “Aí meu Deus! Eu pensei em uma
pessoa tão diferente”. (Entrevistada O)
101
O machismo, o racismo, a LGBTfobia são formas de violências estruturais produzidas
pelo meio social e reproduzida pelas pessoas inseridas nesse meio. No âmbito das Igrejas
pentecostais essas formas de violência também se reproduzem, uma vez que são espaços
construídos e organizados por pessoas que também fazem parte do meio social, por mais que
seus motivos de associação sejam a comunhão da fé e a transcendentalidade.
“Acho que tem igreja que tem espaço suficiente pra dar curso. Tem gente inteligente
na igreja pra fazer isso. Tem gente com estudo, mas ninguém se une pra fazer isso.
Tendeu? A não ser se eu dou o curso e a pessoa fica na minha igreja, mas eu vou dar
o curso pra criança que não tem igreja nenhuma. Pra mãe que nem crente é. Eu acho
que a mente tá muito fechada, assim. Tem pastor que dá Muay Thai há mais de dez
anos, mas só pras pessoas da igreja dele. Só pras crianças deles. Uma porção de
criança precisando. Podia fazer e não faz.” (Entrevistada C)
As disputas para definir qual Igreja é melhor ou mais capaz de seguir à risca a doutrina
bíblica, para os entrevistados, muitas vezes se coloca à frente da possibilidade de união dessas
denominações para promover ações sociais no território do Jacarezinho que sejam benéficas
para toda a comunidade.
Eu vi pessoas morrerem de AIDS porque achavam que estavam curadas quando não
estavam, eu vi pessoas pararem tratamento e isso acontece hoje, mas muito pouco. E
foi o que eu te falei, tem uns crentes novos que tão molhado, tão cuidando da saúde,
tão se alimentando direito, coisas que gente...botar esses pontinhos (Auriculoterapia)
na orelha Deus me livre! Isso é coisa do Demônio totalmente, eu me lembro tempo
remoto, tempos atrás que isso era coisa do Demônio.
A igreja trabalhar junto com a saúde, né? Porque poderia orientar que as pessoas que
elas têm que buscar a saúde, ela tem que buscar a medicina, assim... até mesmo o
psicológico que eu acho que é a área mais difícil pra gente entender...que a gente
não tem depressão, na visão das pessoas crentes não tem depressão e o que mais tá
acontecendo hoje é crente em depressão. Infelizmente, o que eu ouço falar é de
muito crente com depressão porque não pode se expor, eu não posso chegar na
Igreja e falar " eu chego no meu quarto, eu me sinto como se eu tivesse descendo
uma escada para um buraco (Entrevistada O).
agora se eu tenho uma doença e eu preciso fazer um tratamento nela o que eu tenho
que fazer? Tratar, ambas as partes, tratar nos dois lugares fisicamente e
mentalmente, se eu tô fisicamente sendo tratada e espiritualmente a minha tendência
é o que? É melhorar, agora se eu só me tratar espiritualmente e não fisicamente aí é
Deus que foi culpado não? Aí a minha ignorância me levou pra isso porque temos
que dividir, temos que saber. Sabedoria, Deus fala o que cê sabe, Deus fala o que?
Vigiai e orai não orai pra vigiar, não, você tem que vigiar primeiro entendeu? Então
eu acho assim, eu penso dessa forma, mas tem muita gente que não, tem muita gente
que não, se Deus quiser curar ele vai curar, sim, se Deus quiser ressuscitar ele vai
ressuscitar, se Deus quiser te dar saúde ele vai te dar, mas você precisa também se
cuidar, pra isso que existe os médicos, se fosse assim era muito fácil, Deus falava
assim, ´´ Olha só´´, na palavra ele fala assim, ´´Vou curar´´, não precisa ter médico,
pra que que ele vai estudar? Pra que ele vai dar sabedoria ao homem? Se ele deu
sabedoria ao homem de ser médico é pra nos tratar porque nossa matéria precisa ser
tratada, precisa ser tratada, é o que eu tô falando, fisicamente e mentalmente os dois,
juntos porque é pra isso que Deus fez a medicina (Entrevistada B).
103
parece ser o único caminho possível. É em meio a cenários como o do Jacarezinho, de grande
sofrimento social, que as Igrejas vêm crescendo de forma mais acelerada e onde encontra
maior público.
Cada uma das denominações têm seus mecanismos próprios de organização interna e
de crescimento, algumas com mais burocracias e outras com menos. A Igreja Universal do
Reino de Deus, por exemplo, exige uma série de requisitos para que seja possível abrir uma
filial que leve seu nome. Já a Assembleia de Deus e muitas das Igrejas batistas pentecostais
não têm muitas pré exigências para que uma pessoa possa abrir uma filial, em seu quintal ou
em outro terreno propício.
Cabe considerar que essas denominações têm ganhado certo status e muito poder, no
plano local e, a cada dia mais, nos planos municipal, estadual e federal. Como aparece ao
longo da pesquisa, as Igrejas têm, hoje, quase tanta influência no território quanto o
narcotráfico, ainda que não precise se utilizar de armas de fogo para reivindicar esse poder.
104
Embora tragam possibilidades e que muitas delas ainda sejam responsáveis por
trabalhos sociais junto às populações favelizadas, as Igrejas, de uma maneira geral, oferecem
poucos espaços de reflexão sobre o contexto socioeconômico e político que coloca as pessoas
na condição de marginalizados. Elas permitem pouca autonomia e liberdade e fecham seus
membros “entre muros”, elegendo um pequeno grupo de pessoas que pode circular livremente
entre mundanos e reivindicar os interesses dos que estão à margem social. É também com
certa ambivalência que percebo o crescimento das Igrejas nas áreas onde o Estado só se
apresenta através da violência policial, ainda mais por estas receberem isenção fiscal como
auxílio para se manter e ocupar essas regiões. Cabe a reflexão: o dinheiro que o Estado deixa
de recolher com as Igrejas não poderia financiar outros investimentos sociais nas áreas
marginalizadas? E, em isso não acontecendo, quem se beneficia dessa forma indireta de
investimento?
Fé x Religião x Denominações
Dentre as entrevistas realizadas, surge um ponto de reflexão sobre as religiões
pentecostais que cabe considerar. Para alguns dos entrevistados, o mais importante aspecto da
Igreja não está em suas regras, doutrinas, ou símbolos, mas na fé que ela mobiliza. A fé, a
espiritualidade sendo a primeira e principal razão para manter o bem-estar e trazer segurança
para aqueles que compartilham desse sentimento. Nesse sentido, algumas pessoas apontam
para o poder da oração e do diálogo diretamente com Deus, sem intermediários como uma
força necessária e fundamental para a vivência da religião.
é que religião significa religar. Religar o homem há Deus, religar o homem ao seu
criador porque religião significa isso porque por causa do pecado o homem foi
desligado e aí surgiu a religião, mas não... é. Porque você liga a religião a
assembleia, batista, presbiteriana... a denominações e não tem nada a ver ou não tem
muito a ver, religião é diferente de denominação. A denominação surge daquilo que
105
eu acho errado, que eu acho melhor pra mim, como eu falei "ah, isso aqui eu acho
que é pecado". Então eu não concordo com isso aqui e vou criar uma igreja que
pensa do jeito que eu penso e vai fazendo uma mistureba. As denominações causam
isso. Porque a gente sabe que Jesus Cristo quando veio a terra não disso "sejais
assembleianos" ou disse "sejais batistas" ou "sejais católicos". Ele não falou nada
disso. Esses dias li um versículo que achei superinteressante "a religião pura e
imaculada é: amar o Senhor sobre todas as coisas e amar o teu próximo como a ti
mesmo" olha que coisa simples. E a gente é que complica, mas a fé é boa a religião a
boa Deus é maravilhoso (Entrevistada E).
É a fé. Tudo tá, eu acho que tudo, tudo que a gente vive tá no meio da nossa fé, que
a gente acredita. Eu acredito em Deus, outra pessoa acredita na, em outo Deus na,
na, Senhora, então. A fé dela tá ali, no que ela acredita. Pra mim, a questão era da fé
mesmo (Entrevistada L).
Merhy e Franco (2003) definem que o trabalho em saúde, além de ser orientado pelos
saberes científicos, é construído a partir de sua finalidade social, pois se propõe a modificar
alguma coisa e produzir algo novo, e compromete-se, assim, com as necessidades da estrutura
social produtiva e com as necessidades do usuário direto, também atravessadas pelas
construções sociais e por sua singularidade no mundo.
Para Ayres (2001), o ato de cuidar em saúde não se reduz à ação de curar, tratar ou
controlar o outro, como se este fosse um objeto da prática de cuidado. Essas práticas supõem,
no fundo, uma relação estática, individualizada e objetificadora dos sujeitos-alvo de nossas
intervenções. O ato de cuidar pressupõe a subjetividade do sujeito, que é dinâmico e está em
contínua reconstrução, e a intersubjetividade, caráter imediatamente relacional e
irremediavelmente contingente de nossas identidades e historicidades como indivíduos e
grupos. No ato de cuidar, agente e objeto de cuidado são sujeitos que, ao se encontrar,
estabelecem entre si uma relação intersubjetiva que vai interagir e atravessar a ação técnica,
em maior ou menor grau, ainda que a biomedicina tente ignorar isso como fato. (Ayres, 2001)
107
Numa unidade básica de saúde, uma pessoa que apresenta elevado risco de Infarto
Agudo do Miocárdio, por exemplo, receberá infinitas orientações sobre cessação de
tabagismo, mas talvez tenha pouco espaço para falar das preocupações com o vínculo frágil
de emprego e do valor elevado das contas que tem para pagar no fim do mês; uma mulher
com diagnóstico de diabetes, que faz uso de altas doses de insulina, recebe, por vezes,
recomendações dietéticas, sem ter espaço para contar como cozinhar para a família é único
momento do dia em que sente prazer de viver e que assim consegue forças para lidar com o
alcoolismo do marido; ao homen que está com dificuldade de controlar a pressão arterial é
quase exigido que faça caminhadas diárias, mas lhe é dado pouco espaço de escuta sobre o
medo de andar em sua comunidade e ficar no meio de um conflito armado ou sobre como o
fato de ser preto o coloca em situações de racismo, sendo abordado por agentes da segurança
pública do Estado que o confundem com atores do tráfico; à mulher jovem que tem um teste
rápido de urina positivo para gravidez, é dado parabéns e inicia-se os cuidados pré-natais,
antes mesmo de abordar o desejo e significado daquela gestação para ela, muitas vezes sem
espaço para explorar qual seria sua rede de apoio ou inferindo que a mulher esteja em uma
relação heterossexual monogâmica, sem ponderar as diversas possibilidades outras de
cenários.
Esses exemplos demonstram como, no cenário atual da APS, há pouco espaço para a
valorização das subjetividades, dos desejos, anseios e medos daqueles de quem nos propomos
a cuidar e, também, para a abordagem de contexto, para o reconhecimento deste no processo
de sofrimento e adoecimento das pessoas e de como esse contexto interfere e interage na
prática de cuidado. Em geral, o paciente, que vem em busca de cuidado por estar sofrendo,
tende a ser responsabilizado pelas escolhas que fez, pelo comportamento e ações que tomou,
como se, a partir de outras tomadas de decisões, o sofrimento e o adoecimento pudessem ser
evitados ou contornados. Nessa perspectiva individualista, não há espaço para considerar o
contexto social que tanto produz quanto acolhe e ameniza sofrimento. É como se a
responsabilidade do cuidado em saúde estivesse colocada para cada individuo e este, à parte
de todo o cenário em que se insere e com auxílio do saber científico, fosse capaz de garantir
seu bem-estar. Nesse sentido, por vezes, na prática clínica, retomamos o conceito de saúde
como a ausência de doenças, por mais que este já tenha sido academicamente superado.
A cosmologia pentecostal, por outro lado, ao propor a luta do bem contra o mal,
oferece para seus integrantes uma perspectiva de construção de discurso em que escolhas e
comportamentos considerados ruins ou desviantes podem ser lidos como fruto da ação do
mal, do diabo, de forças ruins agindo sobre eles. Nessa perspectiva, a culpabilização por ações
erradas do passado podem ser relevadas, uma vez que a pessoa ainda não havia sido libertada
ou entrado em contato com a palavra. A pessoa, quando passa a compor o mundo evangélico
pentecostal, tem a oportunidade de libertar-se do mundo de pecados do passado e sabe que
incorrer em novas atitudes erradas pode ser fruto de forças do mal agindo sobre si, por alguma
situação de vulnerabilidade. Nessa percepção do mundo, existe um espaço menor para a culpa
e o remorso, pois estes podem ser compartilhados ou terceirizados. O ambiente e o convívio
na Igreja são os espaços para apoio mútuo e renovação da fé na busca por manter-se imune a
forças do mal.
Enquanto a Atenção Primária e a MFC têm oferecido culpa e julgamento, o espaço das
Igrejas pode oferecer a ressignificação de sofrimentos e ações e, ainda, a possibilidade de
recomeço a qualquer momento em que a pessoa se sinta sensibilizada.
109
aparece como um problema complexo. Em que medida nós, médicas e médicos de família e
comunidade, estamos atentos a subjetividades do outro? Como nos esforçamos para incluir o
contexto familiar e comunitário no encontro clínico? Estamos investindo nessa relação que se
estabelece entre nós e o outro e estamos nos permitindo afetar? Como se encontra o equilíbrio
entre o uso de tecnologias leves e duras no ato de cuidar que nos propomos a realizar?
Além disso, para estar com e acolher o outro, é preciso ser capaz de estar consigo,
olhar para si e para as afetações que se apresentam. Ora, se falta à biomedicina capacidade
para perceber o outro, também são escassas as ferramentas que ela propõe para o
autoconhecimento e autopercepção. Balint, em seu livro “O médico, o paciente e a doença”
(1988) postula que o remédio mais usado na medicina é o próprio médico, e, paradoxalmente,
110
pouco se sabe sobre a posologia, os efeitos colaterais e adversos dessa prescrição. Ao fazer
essa colocação, Balint chama atenção para a necessidade de se investir no aprofundamento do
estudo da relação entre médico e paciente e nos efeitos positivos e negativos que essa relação
traz para os dois polos envolvidos nessa relação (Balint, 1988). Por vezes, a afetação de
profissionais de saúde inseridos em favelas e áreas marginalizadas, como a do Jacarezinho,
por exemplo, acontece pelo medo ou pela sensação de insegurança que surge com as
vivências de operações policiais e momentos de tiroteios. Esses sentimentos vão modificar a
forma como muitos vão se relacionar com o trabalho e com as pessoas que cuidam. É urgente
a necessidade de olhar com especial atenção para como os profissionais lidam com esses
sentimentos despertados.
111
Além disso, quando se fala na pesquisa sobre o papel do pastor, chama atenção a
preocupação destes e dos outros membros da congregação com o cuidado ofertado a essa
pessoa que, por ser a referência da Igreja, é a pessoa que acolhe e participa dos problemas que
acontecem com quase todos os membros. A preocupação com os pastores pressupõe a
percepção destes como pessoas, como alguém que, ao se relacionar, afeta e pode ser afetado,
ainda que sua vivência espiritual seja hierarquicamente superior à dos demais membros da
igreja. O paradigma biomédico, em sua fragmentação do indivíduo e na sistematização de
protocolos instrumentais, além de despersonalizar o objeto de cuidado, despersonaliza
também o agente cuidador, que domina e reproduz técnicas, aplica protocolos, mas não se
comove com o ato de cuidar.
Pensando em criar espaços coletivos de cuidado e tentar abordar o sofrimento que essa
população vivencia, propondo um grupo de conversa sobre violência, me parecia uma ideia
inicialmente convidativa. Hoje, compreendendo a perspectiva de muitos usuários, soa tão
inocente quanto inadequado. Afinal, por que alguém iria sair de casa para se sentar, com
desconhecidos e comigo, em um espaço institucional do mesmo Estado que o oprime, a
Clínica da Família, para discutir algo que está presente em seu cotidiano, mas sobre o qual eu
não tenho nenhum domínio prático? É preciso dispor de certa arrogância para achar que esse
convite faria algum sentido para os moradores do Jacarezinho.
Propor atividades coletivas que possam promover apoio social parece um caminho
interessante como oferta de cuidado, como afirmam os teóricos da educação popular em
saúde. No entanto, a primeira coisa que se faz necessária, ao propor uma atividade coletiva,
principalmente quando tem por objetivo promover trocas e apoio mútuo, é que essa proposta
seja uma demanda ou uma necessidade dos usuários, reconhecida por eles e não uma
necessidade ou um desejo exclusivo do profissional de saúde. Por exemplo, a partir dos
resultados levantados na pesquisa, talvez no lugar de propor uma atividade coletiva sobre
violência, seria interessante oferecer espaço para discussão sobre educar crianças e jovens no
Jacarezinho, aspecto trazido por muitos dos entrevistados, e que, ao invés de em uma
abordagem individual no consultório, seria melhor abordado coletivamente, com pessoas que
vivenciam essas dificuldades sendo convidadas a trocar ideias e construir caminhos possíveis.
Para além da tarefa de propor temas que sejam interessantes para os usuários, é preciso
se comprometer a estar em grupo, um ambiente no qual, diferente do consultório, o
profissional não detém nenhum controle sobre as variáveis. Nesses espaços coletivos é preciso
lidar com diferentes objetivos e expectativas, com imprevisibilidades, com o reconhecimento
da vontade e da velocidade do grupo, em detrimento das vontades pessoais. Ou seja, além de
dominar as técnicas já bem descritas de facilitação de grupo, é preciso estar à vontade com o
baixo controle de situações, sensação pouco familiar para a maioria dos profissionais de
saúde. Assim, em geral, privilegia-se o cuidado individual, a consulta ambulatorial, como
caminho para lidar com os mais variados aspectos do sofrimento. As atividades coletivas
usualmente ofertadas, como grupos de renovação de receitas, de orientação alimentar ou de
113
escovação dentária, embora sejam atividades coletivas, não se propõem a gerar autonomia,
pertencimento ou trocas entre seus membros.
Por todo o exposto acima, para atuar na APS, ainda que no âmbito individual, é
necessário ter conhecimento do contexto social que envolve a pessoa de quem se propõe a
cuidar e, a partir deste panorama, individualizar as experiências de sofrimento e adoecimento.
A máxima da abordagem centrada na pessoa não pode ser confundida com o atendimento da
pessoa de forma asséptica, sem considerar seu contexto e sua inserção social. Ainda que o
profissional de saúde não esteja convencido ou disposto a pensar ou promover atividades
coletivas em seu território, reconhecer as que existem, dialogar com estas e pensar estratégias
conjuntas para lidar com as necessidades em saúde dos usuários é parte do trabalho que esse
nível de atenção se propõe a realizar.
114
O sistema profissional de saúde, por vezes, foi referido na pesquisa como o local que
oferece remédios para amenizar a dor e o sofrimento. Se, por um lado, é importante que se
construa a imagem do setor saúde como caminho para diminuir o sofrimento, é angustiante
perceber que nossa prática de cuidado, que deveria ser integral, longitudinal, equânime e
contextual, tem se reduzido a medicalizar o sofrimento.
Pergunto: a que interesses serve a prática clínica que ignora a raiz do adoecimento e
age de modo a silenciá-lo e manter a população marginalizada e oprimida funcional e
produtiva? Enquanto seguimos aumentando ao máximo as doses de anti-hipertensivos e
ajustando constantemente a insulina, esses indivíduos seguem sofrendo eventos vasculares
agudos a cada nova operação policial na comunidade, seguem perdendo direitos
constitucionais e se adaptando, como possível, a uma sociedade cada vez mais opressora para
muitos e que garante privilégios a outros.
Quando a declaração de Alma Ata (1978) coloca que os sistemas baseados na Atenção
Primária à Saúde são essenciais para o desenvolvimento e a justiça social, espera-se que este
nível de atenção realize um cuidado em saúde comprometido com as questões sociais que
interagem com o processo de adoecimento da população. Ainda que isso não signifique dizer
que esse nível de atenção tenha a responsabilidade de promover uma revolução social, ele
deveria estar, ao menos, comprometido com a não reprodução dos diversos tipos de violências
aos quais a população está submetida.
A Atenção Primária à Saúde, por fazer parte e ser a articuladora de um Sistema Único
de Saúde cada vez mais precarizado, percebe mais as dificuldades de manter o compromisso
com a humanização e justiça social no Brasil. Seja no plano nacional, estadual ou municipal, a
rede de atenção à saúde tem se mostrado cada vez mais débil, ineficiente e incapaz de atender
às demandas da população. No caso do município do Rio de Janeiro, com a fragilização dos
vínculos trabalhistas e uma gestão cada vez mais centralizadora e menos dialógica, a APS
vem sofrendo perda de profissionais da rede pública tanto para outros municípios quanto para
115
a rede privada de saúde. Nos últimos dois anos, a violência institucional sofrida por esses
profissionais, através de atrasos salariais, demissões, redimensionamentos territoriais com
aumento do número de pessoas cadastradas para cada equipe de saúde da família e
intervenções diretas na organização do processo de trabalho das equipes de saúde, tem sido
responsável por mais sofrimento entre os profissionais de saúde do que a violência estrutural
ou os ecos da violência urbana.
O ato de cuidar em saúde, por si só, é um ato desafiador, por todas as nuances
presentes na relação que se estabelece. Praticar esse cuidado em saúde em uma sociedade
extremamente desigual, que marginaliza e oprime uma parcela significativa de seus membros,
é ainda mais complexo. Ainda assim, fazer desse cuidado um ato de resgate da cidadania, de
retomada de dignidade e de estímulo à autonomia das pessoas é o papel da Atenção Primária à
Saúde no Sistema Único de Saúde. Se não é possível pensar em um modelo eficiente de setor
profissional de saúde sem que haja grande investimento na APS, também não é possível
considerar uma APS de qualidade que não valorize os princípios de equidade e integralidade
na sua forma de coordenar o cuidado da população nesse sistema. A prática de cuidado em
saúde não é neutra, ela é essencialmente um ato político.
116
CONCLUSÃO
Seja por seu caráter abrangente e integrador, seja pela ampliação da perspectiva do
modelo biomédico, ou pelo necessário compromisso com o outro em seu contexto familiar e
comunitário, a Atenção Primária à Saúde se apresenta como uma área de desafio continuado
para a atuação médica. Esse cuidado em saúde na Atenção Primária, no entanto, só é possível,
em sua essência, com uma comunicação bem estabelecida entre profissionais de saúde e
usuários, onde todos se permitem aprender, trocar e interagir, e se reinventar continuamente,
buscando uma prática de cuidado que também se reinventa e se molda às necessidades
dinâmicas de cada população.
Ainda que trabalhasse no território do Jacarezinho por um longo período, não me seria
possível experienciar o viver em uma região diariamente oprimida, reprimida e negligenciada
da cidade. Compreender um pouco tudo isso só foi possível graças a moradores que, de forma
generosa, têm confiado a mim suas histórias, sensações, percepções e caminhos, me
permitindo aprender muito. Conhecer as religiões evangélicas pentecostais, e como estas se
relacionam com as vivências cotidianas de sofrimento, possibilitou alcançar diferentes
perspectivas e maneiras de ressignificar o sofrimento para muitos moradores da favela do
Jacarezinho. Esse conhecimento, com investimento reflexivo sobre a prática de trabalho em
117
APS, me permitiu perceber uma série de ferramentas de cuidado que essas denominações se
utilizam, na tentativa de aplacar ou melhor acomodar o sofrimento social.
O preconceito gerado pela crise de interpretação das classes médias e altas, onde se
insere a maioria dos profissionais de saúde de nível superior, dificulta o reconhecimento de
saberes populares e a construção de um processo dialógico com esses saberes. A riqueza de
informações, detalhes e aspectos que se perdem só podem ser retomados a partir de uma
postura de humildade cultural desses profissionais, que se coloquem dispostos a entrar em
contato e se deixar afetar por sensações que não lhe são conhecidas e vivenciadas. Ouvir, ler e
escrever sobre as percepções de moradores evangélicos pentecostais da favela do Jacarezinho
sobre si mesmos, sobre seu sofrimento e sua vivência na Igreja é uma excelente maneira de
explicitar o quanto as barreiras de comunicação invisibilizam diversas questões aqui
apresentadas.
118
preciso, portanto, retomar o valor dado às práticas coletivas e às influências do contexto social
no cuidado em saúde.
Olhando para o papel social que o pentecostalismo desempenha, é preciso ser crítica
também sobre que papel a Atenção Primária à Saúde tem desempenhado e que papel pretende
exercer. Medicalizar o sofrimento social, adaptar a população a situações de estresse crônico,
produzido pela violência estrutural e gerado por um estado de emergência permanente, é uma
escolha possível para a área, embora não seja o que a Organização Mundial de Saúde
preconiza ao afirmar que a APS é o caminho para combater iniquidades e injustiças sociais.
Para o Brasil, optar por uma prática de cuidado em saúde que leve à acomodação e adaptação
dos sujeitos a condições de vida desumanas, não é combater iniquidades.
119
medicina, o fazer ciência e o produzir cuidado em saúde nunca são neutros, sempre serão, por
essência, um ato político.
Se Marx (2010) sugere que as religiões são o ópio do povo oprimido, como devemos
considerar a prática de cuidado em saúde que, diante de tantas possibilidades de ação, se
reduz a manter os marginalizados funcionais, para seguir produzindo e alimentando um
sistema de classes, privilégios e desigualdades?
120
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127
ANEXO A – TCLE
Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE) do Formulário para os Pacientes
Participantes da Entrevista
Prezado(a) participante,
Você está sendo convidado(a) para participar da pesquisa de Mestrado intitulada
“Pentecostalismo na comunidade do Jacarezinho: sofrimento social e violência urbana”,
desenvolvida pela discente Rita Helena do Espírito Santo Borret para obtenção do título de
mestrado pelo Instituto de Atenção à Saúde São Francisco de Assis da Universidade Federal
do Rio de Janeiro (HESFA/UFRJ), sob orientação da professora Dra. Alicia Regina Navarro
Dias de Souza e Prof. Dr. Octavio Bonet.
Existe o risco de você se sentir desconfortável ao responder algumas questões, por solicitarem
informações pessoais, porém a sua participação é voluntária e a qualquer momento você
poderá desistir de participar e retirar seu consentimento, ou apenas negar a resposta para
algumas das perguntas. Seus dados serão mantidos em sigilo. O tempo da entrevista não é
pré-determinado, porém estimamos que possa variar entre 40 e 60 minutos.
Este material será guardado pela pesquisadora por um período de cinco anos, sendo
posteriormente destruído, conforme a Resolução nº 466/12 do Ministério da Saúde.
O nome dos participantes da pesquisa (ou qualquer outra informação que possa levar à sua
identificação de alguma forma) será mantido em sigilo. A pesquisadora se responsabiliza por
manter a confidencialidade das informações e a não exposição dos dados desta pesquisa.
128
O CEP é o órgão que tem o objetivo de defender os interesses dos participantes da pesquisa e
que o desenvolvimento da pesquisa ocorra dentro de padrões éticos. Desta forma, o CEP
avalia e monitora o andamento do projeto para que este respeite os princípios éticos da
proteção aos direitos humanos, da dignidade, da autonomia, da não maleficência, da
confidencialidade e da privacidade.
Considerações ou dúvidas sobre a ética da pesquisa podem ser esclarecidos mediante contato
com o CEP da Escola de Enfermagem Anna Nery/HESFA/UFRJ – R. Afonso Cavalcanti,
275 – Cidade Nova, pelos telefones (21) 3938-8999/ 39388098/ 3938-0528 / 3938-8048/
3938-8899 / 3938-8148, ou pelo email: [email protected]
129
ANEXO B – ROTEIRO DE ENTREVISTA
O que você considera violência? Como ela tem mudado nos últimos anos?
Como a violência atinge você na comunidade do Jacarezinho?
Para você, como você percebe sua saúde? O que você entende por saúde?
Você percebe relação entre a violência e sua saúde?
Você participa de alguma igreja evangélica pentecostal na comunidade? Qual? Como foi sua
trajetória de entrada nessa igreja?
Como é sua relação com a Igreja da qual participa? O que mais te agrada/faz bem na igreja?
Você tem alguma atribuição específica dentro da igreja?
Como é sua relação com as pessoas de fora da igreja/Mundanas?
Você percebe alguma relação entre a Igreja que participa e a violência na comunidade? Como
é pra você, participando da igreja, vivenciar a violência na comunidade?
Você percebe alguma relação entre a igreja e seu estado de saúde?
OBSERVAÇÕES:
130