Ebook Antropologia Comunicacao
Ebook Antropologia Comunicacao
Ebook Antropologia Comunicacao
PRINCÍPIOS RADICAIS
Vice-Reitor
Pe. Josafá Carlos de Siqueira, S.J.
Decanos
Profª Maria Clara Lucchetti Bingemer (CTCH)
Prof. Luiz Roberto A. Cunha (CCS)
Prof. Reinaldo Calixto de Campos (CTC)
Prof. Francisco de Paula Amarante Neto (CCBM)
PRINCÍPIOS RADICAIS
© Editora PUC-Rio
Rua Marquês de S. Vicente, 225 – Projeto Comunicar
Praça Alceu Amoroso Lima, casa Editora
Gávea – Rio de Janeiro – RJ – CEP 22453-900
Telefax: (21)3527-1838/3527-1760
Homepage: www.puc-rio.br/editorapucrio
E-mail: [email protected]
Conselho Editorial
Augusto Sampaio, Cesar Romero Jacob, José Ricardo Bergmann,
Maria Clara Lucchetti Bingemer, Fernando Sá, Luiz Roberto A. Cunha,
Reinaldo Calixto de Campos, Miguel Pereira.
ISBN: 978-85-87926-30-2
SUMÁRIO
Apresentação 9
CAPÍTULO I:
Homens. Homem? 13
CAPÍTULO II:
Sobre a necessidade e outros mitos 53
Da ciência à sapiência 54
Mecanismo, organismo, informação 57
Ecologia social dos chimpanzés 62
Um pressuposto viciado 65
Nem só de pão... 67
Necessidades orgânicas? 69
Sobrevivência. Qual? De quem? 75
O mito de origem 78
A falácia da miséria original 80
Natureza viva 86
Trabalho 88
Razões. Razão? 90
Homo oeconomicus 95
Conclusão 99
CAPÍTULO III:
111 Os outros e os outros
181 Bibliografia
Apresentação
Contra o positivismo, que pára diante dos fenômenos e diz: “Há apenas fatos”,
eu digo: “Ao contrário, fatos é o que não há; só há interpretações”. (Nietzsche,
de um dos fragmentos póstumos)
CAPÍTULO I
Homens. Homem?
Lévi-Strauss
Neutralidade? Objetividade?
É possível que se objete que as idéias até aqui expostas pequem por
ignorar o trabalho de cientistas, em busca de conhecimentos neutros e
objetivos sobre a história humana. É possível que se argumente, contra
o nosso raciocínio, que a ciência, fornecendo-nos conhecimentos
baseados em documentos “insofismáveis” e construídos de maneira
metódica e rigorosa, poderá um dia colocar entre nossas mãos a palavra
verdadeira (e derradeira) sobre o lugar do Homem na existência. É
possível que se estranhe que exatamente de um antropólogo provenha
a afirmativa de que o enigma do Homem é indecifrável.
As páginas seguintes tratarão de derreter essas objeções. Não ob-
stante, é preciso reconhecer que os conhecimentos científicos sobre o
tema o que é o Homem?, por mais objetivos e neutros, serão apenas
mais uma resposta dentre as multiplíssimas formuladas por homens.
Como todas as outras, reconheçamos humildemente, a resposta
científica será perfeitamente válida para aqueles que nela tiverem fé,
pois a legitimidade dos conhecimentos “racionais” depende
Mundos. Mundo?
Esta nova colocação do problema o que é o Homem? corresponde a
uma nova perspectiva científica. Preside-a a tentativa de compreender
a diferença como caracterizadora da semelhança dos homens entre si,
assumindo a diferença como um dado positivo, que não deve ser
diluído e dissipado sob a semelhança. Procura evitar o etnocentrismo,
que superestima as verdades desta ou daquela fração da humanidade,
mas procura também neutralizar o antropocentrismo, que imagina
Vida e comunicação
Sustentar que todos os seres vivos comunicam pode parecer óbvio,
e o será certamente. Mas é preciso considerar que apesar de óbvia essa
perspectiva nem sempre foi tida como relevante para pensar a questão
dos atributos distintivos do Homem. Além disso, mesmo que
admitamos a obviedade da colocação, somos obrigados a reconhecer
que ela volta nosso pensamento para determinado lado e impulsiona
Símbolos e sinais
Nesse território comum a todos os seres vivos – relações sociais e
comunicação – quais seriam as características mais gerais e abrangentes
da comunicação social? Que linhas demarcatórias definiriam o terreno
próprio aos animais e plantas? Em relação a estas linhas fronteiriças,
onde estaria situado o domínio próprio do Homem, também ser
vivo, social e comunicante?
Uma primeira observação, já há muito registrada e reafirmada
(mas merecendo as ponderações que adiante formularemos), emerge:
os animais, e talvez as plantas, se comunicam por sinais organicamente
programados. Dito de outro modo, faz parte da constituição biológica
de determinados organismos que se comuniquem exatamente da
maneira como o fazem, sendo a atividade comunicacional mera
manifestação ou atualização do funcionamento fisiológico de um
organismo particular.
26 Essa primeira observação poderia ser ilustrada por um mecanismo
conhecido como “impregnação”, mediante o qual [Cuisin: 1973, p.
45] patos, gansos, cisnes, cordeiros etc. seguem o primeiro ser
semovente que vêem ao nascer – por exemplo, um homem – como se
fosse a mãe (que, pelas probabilidades naturais, seria normalmente a
primeira a ser vista). Antes de nascer, estes animais estão, por assim
dizer, “programados” a apreender certas informações, que em grande
medida comandarão seu comportamento futuro. Em muitas ocasiões,
pode-se comprovar em laboratório a programação orgânica: por
exemplo, criando separadamente certo número de animais e verificando
que ainda assim estes animais se entregam a comportamentos
específicos extraordinariamente complexos (nidificação, corte à fêmea,
resistência a adversários...), como os congêneres criados em liberdade.
Nenhum de nós, homens, está assim organicamente programado
para a comunicação. Não está absolutamente dado por nossa estrutura
orgânica que usemos o preto como expressão de luto, pois há congêneres
nossos que preferem o branco para este fim. Que descubramos a cabeça
ao entrar em um templo, nada tem de orgânico, pois faremos exatamente
o contrário disso se formos mulheres católicas ou judeus do sexo
masculino. Nada existe em nossa estrutura biológica que nos obrigue a
*
Quarta observação: o sinal tem a característica de ser intransformável.
Se o combate dos antílopes se constitui de sinais determinados organi-
camente, se os odores que decidem quem poderá ser aceito em uma
colméia fazem parte da estrutura biológica de abelhas particulares, se a
delimitação elétrica do território se faz por peixes de constituição fisiológica
especial, se a confissão de “derrota” diante de um rival se exprime pela
adoção de posturas especiais que inibem o ataque do “vitorioso” em função
de certa estrutura nervosa e anatômica geneti-camente programada... se
o orgânico é determinante, em suma, então, cada indivíduo pertencente
a certa categoria biológica estará definitivamente constrangido a se
submeter aos sinais característicos dessa classe.
Esta é uma constatação quase evidente, cujas conseqüências,
entretanto, são inestimáveis: assim como os joões-de-barro do mesmo
tipo estão fadados a construir suas “casas” repetindo sempre o mesmo
padrão e borboletas noturnas destinadas a reproduzir o mesmo modelo
de comunicação olfativa da espécie, assim também as sociedades que
se baseiam na comunicação por sinais estarão obrigadas a repetir por
toda parte a mesma estrutura ditada pela natureza dos organismos 29
que as compõem. Térmitas de tal tipo, tal tipo de sociedade; abelhas
organi-camente de tipo y, tipo y de organização social... Resultado:
atreladas à fixidez no tempo e no espaço, tais sociedades não poderão
apresentar história ou diversidade cultural.
As conseqüências sociológicas da comunicação apoiada em
símbolos são inteiramente distintas. Que o casamento seja
monogâmico ou poligâmico; que o beijo na boca seja emblema
padronizado de erotismo, falta de higiene ou manifestação
antropofágica; que homens se olhem reciprocamente nos olhos por
vários segundos ou o evitem para não passarem por homossexuais;
que se use ou não a mão esquerda para manipular alimentos; que
formas roliças se afastem do ideal de beleza feminina; que homens
sejam proibidos de usar xampus ou brincos; que mulheres possam
dirigir maridos, empresas e até automóveis; que homens possam
conseguir “liberar” seus lados femininos e mulheres “conseguir atingir
o orgasmo”... tudo isso depende de convenções que variam de sociedade
para sociedade, de tempo para tempo.
Isso é possível porque o símbolo é eminentemente transformável. Não depende
diretamente da natureza orgânica, pois é feito de outra matéria. Assim, as
sociedades humanas se habilitam não somente a inventar suas próprias
Nem só de mel...
As abelhas talvez proporcionem a melhor oportunidade de ilustrar
essas observações. Sabe-se já há algum tempo que possuem uma
organização social das mais interessantes e que esta organização se
apóia em um sistema de comunicação complexo, cujo desvendamento,
sobretudo a partir dos trabalhos de Karl von Frisch [1976], não tem
cessado de causar espanto em meios leigos e científicos, pelo que tem
revelado de refinamento e precisão.
As abelhas de uma colméia devem cumprir, a partir de estrita
programação orgânica, uma série de tarefas ou funções sociais, que se
sucedem uma após a outra, em uma ordem definida e invariável, na
medida em que vão vivendo as suas vidas. Até onde se sabe, as passagens
entre as diferentes fases são determinadas por mudanças químicas
30 ocorridas no corpo das abelhas.
Cada abelha [Fox: 1940, pp. 107-109] começa a vida com um ovo
posto pela rainha em lugar apropriado. Do ovo, vem uma larva, que se
transforma em crisálida, de cuja casca uma abelha surge em seguida. Tão
logo saída da casca, a abelha se limpa e enxuga, fazendo o mesmo com o
alvéolo onde passou sua juventude como larva e crisálida: somente depois de
limpo, a rainha botará outro ovo neste local. Ao final de três dias, a “operária”
começará tarefa diferente, passando a alimentar larvas em suas células: recolhe
mel e polen, dando este alimento às larvas. Após alguns dias neste trabalho,
muda de novo de ocupação: agora suga néctar das bocas de trabalhadoras
mais idosas, que retornam de suas excursões fora da colméia para coletar este
líquido doce e trazê-lo para casa. Dentro do corpo de nossa abelha, o néctar
se transforma em mel, sendo então expelido para dentro de células especiais,
nas quais é estocado. Além disso, recebe o pólen que as mais velhas trazem
para a colméia, guardando-o em outras células de estocagem.
Depois de um ou dois dias nesta função, a abelha passa alguns dias
carregando “lixo” para fora da colméia. Em seguida, transforma-se em
produtora de cera, construindo com esta secreção de seu corpo novas células
para a habitação. Terminada a tarefa, uma outra ainda: ser guardiã, barrando
a entrada de qualquer congênere que não pertença à comuni-dade. Enfim,
para uma mesa, onde se lhes pode oferecer alimento sobre um cartão
de cor azul. As abelhas sugam este mel que, depois de transportado
para a colméia, será passado às companheiras. Diversas vezes as abelhas
retornam à fonte de alimento que acabaram de descobrir. Após algum
tempo, entretanto, Von Frisch retirou o cartão azul perfumado com
mel, introduzindo dois novos cartões, sem perfume ou alimento, na
mesma posição da primitiva fonte nutritiva. Um cartão azul à esquerda
e um vermelho à direita: se as abelhas forem capazes de recordar que
o alimento estava sobre o cartão azul e de distinguir o vermelho do
azul, então, é lógico que pousarão sobre o azul.
Foi isto exatamente o que verificou. Não somente em relação ao
azul, mas também ao alaranjado, amarelo, verde, violeta e púrpura.
Contudo as abelhas foram incapazes de distinguir o preto do vermelho.
Ficou provado que possuem percepção cromática, mas também que
esta não é idêntica à do ser humano, uma vez que são cegas no que
diz respeito ao vermelho, confundem amarelo com alaranjado e verde,
e azul com violeta. Em compensação, são capazes de perceber o
ultravioleta, cor a que os homens não têm acesso. Verificou-se também
32 que estas características são inatas e presentes em cada abelha
individual, mesmo nas descendentes de abelhas que foram isoladas
experimentalmente por diversos anos, impedidas de contato com
outras abelhas e com o ambiente natural.
Von Frisch dedicou-se também ao estudo da percepção química
das abelhas. Seriam capazes de distinguir os perfumes das flores?
Também através de procedimentos experimentais, foi possível
demonstrar que as abelhas poderiam ingressar em caixas marcadas
por um perfume especial, reconhecendo este perfume e podendo
distingui-lo de numerosos outros aromas, fazendo uso de suas antenas,
seu principal órgão de olfato. Descobriu-se ainda que, apesar de
sensível, o olfato da abelha não pode perceber de longe o odor da
maior parte das flores, funcionando mais como um instrumento de
curta distância e de certificação, complementar à percepção de cores,
capacidade utilizada para a percepção de objetos a longa distância.
Tais descobertas foram de extraordinária importância para o
desenvolvimento ulterior da pesquisa.
Esses mecanismos perceptivos estão na raiz daquilo que Von Frisch
chamou de “linguagem das abelhas”. Observou, quando fazia expe-
rimentos sobre percepção, que às vezes era obrigado a esperar muitas
horas e mesmo vários dias até que uma abelha descobrisse a fonte de
alimento. Mas, tão logo uma abelha tivesse descoberto o mel que oferecia,
muitas outras, às vezes centenas, apareciam, provenientes todas da colméia
daquela que primeiro encontrara o alimento. Evidentemente, ela deve
ter comunicado sua descoberta às companheiras. Mas, como?
Colocando-se perto da fonte de alimentos, Von Frisch passou a
marcar as abelhas que o descobriam, a fim de estudar o comportamento
delas quando de retorno à colméia. Pôde, assim, testemunhar que,
chegando à “casa”, em primeiríssimo lugar a abelha assinalada entregava
o material coletado a suas companheiras. Feito isso, começava a executar
aquilo que Von Frisch chamou de “dança circular”, movimento que
consiste em dar uma volta para a direita e outra para a esquerda, refazendo
esta circunferência várias vezes. Verificou também que às vezes a abelha
interrompia a “dança”, voltando à fonte para colher outra amostra do
alimento e recomeçar tudo de novo.
Durante a “dança”, as abelhas próximas à dançarina mostravam
uma enorme agitação, amontoando-se atrás dela, aproximando suas
antenas do seu corpo. De repente, uma destas abelhas deixava a
colméia. Outras faziam a mesma coisa, de modo que algumas das
abelhas excitadas logo atingiam o lugar da fonte alimentar. Retornando 33
à colméia, estas também “dançavam”, de forma que quanto mais
dançarinas havia tanto mais abelhas compareciam à fonte. Ficava, assim,
bastante claro que a “dança” dentro da colméia comunicava a presença
de alimento. Mas, como explicar que as abelhas excitadas pela dança
fossem capazes de atingir a fonte?
Para saber, então, se a dança circular oferecia informação a respeito
da direção em que se encontrava a fonte, forneceu alimento a diversas
abelhas em lugar situado dez metros a oeste da colméia. Nos quatro
pontos cardeais, dispôs um recipiente cheio de água açucarada e um
pouco de mel. Minutos depois do início da dança circular no interior
da colméia, abelhas apareciam simultaneamente perto de todos os
recipientes, sem nenhuma diferença quanto aos deslocamentos destes.
A mensagem transmitida pela dançarina era, pois, extremamente
simples: “voem para o exterior e procurem nas vizinhanças.”
Quando na fonte existia, entretanto, uma indicação precisa (algum
tipo de flor, por exemplo) e as descobridoras levavam essa informação
para a colméia, as demais abelhas passavam a voar rumo a um objetivo
determinado, mudando de meta cada vez que uma modificação se
estabelecia na fonte de alimento – exceto quando nesta se introduzia
Conclusão
A perspectiva comunicacional nos permitiria, assim, mergulhar a
cultura na Natureza e descobrir que os universos de diferenças que se
constatam entre os homens têm fundamentos profundos na história
natural pré-humana. Autorizar-nos-ia também lançar a hipótese de
que assim como os animais estão, por obra dos sinais e segundo as
espécies, naturalmente programados para a semelhança, os homens
também estariam, por intermédio da capacidade de comunicação
simbólica, naturalmente condenados à diferença. A diferença
constituiria assim, o que de mais igual, comum e semelhante existiria
entre os homens: a cultura.
Essa perspectiva teórica autorizaria ainda conviver com o paradoxo
de ter a antropologia um discurso próprio sobre o Homem e ao mesmo
tempo não o querer erigir em saber imperial, sendo antropologia até
às últimas conseqüências: relativizando conceitos como “verdade”,
“razão”, “realidade’, relativizando-se a si mesma e se vendo como
discurso parcial e setorial, cujas ambições globalizadoras devem ser
refreadas, contextualizadas culturalmente e mostradas como
52 manifestação característica da visão de mundo de um segmento de
uma sociedade particular, a ocidental, em um momento definido de
sua trajetória histórica. Relativizar a própria antropologia significa,
então, não atribuir a seu saber a condição de absoluto, reconhecer
que ele não é melhor nem mais válido que outros saberes, científicos
ou não.
Dentro do paradoxo de uma ciência que se relativiza a si mesma,
a resposta antropológica à solicitação de explicar o que é o Homem só
pode ser paradoxal: o Homem não se explica; compreende-se através
de homens. Ao invés de garbosos, intelectuais prontos a fazer uso da
pouquíssima humana capacidade de responder aos que lhe perguntam
o que é o Homem?, os antropólogos poderão se sentir, das lições que
continuamente lhes ministram os homens, humildes exemplares,
aprendizes e testemunhas: homens enfim.
Da ciência à sapiência
Os homens, quando pensam o mundo, fazem-no por meio de
categorias intelectuais. Idéias, noções, conceitos, teorias são ferramentas
cognitivas, por meio das quais se fragmenta o mundo e se estabelecem
relações entre os domínios resultantes da fragmentação. Por definição,
e sob pena de se tornar rigorosamente inútil, o pensamento não se
confunde com o “real”, com o mundo “objetivo”, com as coisas tais
quais “realmente” são. Se fosse mera redundância do que lhe é exte-
rior, que sentido teria aquilo que povoa os cérebros humanos?
Toda fragmentação a que o mundo seja submetido pelo
pensamento é, pois, arbitrária. Na melhor das hipóteses, seria o mundo
mais o ser que o pensa. Conseqüentemente, resulta impossível afirmar
que os domínios que compõem o mundo no pensamento humano
encontrem justificativa na composição do mundo, no universo tal
qual “é”. Os domínios nos quais o “real” é parcelado no pensamento
não têm existência “objetiva”, não são independentes do ser que
procedeu à parcelização.
Os conteúdos que habitam os intelectos humanos são antropo-
54 cêntricos. Tão antropocêntricos quanto é crocodilocêntrico aquilo que
mora nos cérebros dos crocodilos. E isto é compreensível, porque o
ponto de vista daquele que categoriza o universo seleciona domínios
que considera pertinentes, inventa domínios inexistentes, institui,
em suma, os “lotes” de que o mundo deverá ser composto. Não seria
ingênuo supor que peixes, aves, baratas e homens loteassem o mundo
igualmente nos mesmos domínios? Por acaso poderíamos esquecer
que “peixes”, “aves”, “baratas” e “homens” são categorias resultantes
de um ponto de vista humano? Não seria errôneo omitir que dentro
destas categorias estão alojados elementos que são considerados
homogêneos apenas no âmbito de um prisma antropocêntrico? Ora,
sabemos muito bem que foi preciso o aparecimento da espécie humana
sobre o planeta para que este ponto de vista fosse possível: nada tem
de universal.
A não ser uma compreensível ilusão de óptica, nada há, pois, que
fundamente que as divisões do mundo que nos são apresentadas como
“naturais” correspondam a algo existente “lá” na natureza: os “reinos”
animal, vegetal e mineral, os níveis inorgânico, orgânico e superorgânico,
as “categorias” indivíduo, grupo e sociedade... Nada garante que não
correspondam apenas a leituras singulares do mundo; nada garante
por diante, por oposição à qual a primeira encontraria sentido. A própria idéia
de “’indivíduo” não se poderia formular individualmente.
Há, por conseguinte, um problema filosófico e semântico funda-mental,
na raiz da questão da “relação dos seres com a natureza”: afinal de contas, o
que é “natureza”? O que é “ser”? O que autoriza pensar os “seres” como
separados da “natureza”? Onde começa, onde termina, no tempo e no
espaço, um ser “individual”? Qual o limite entre um “ser” e outro?
Tudo indica que tal problema é também lógico, pois suas soluções
serão sempre axiomáticas, jamais se as podendo comprovar. Não ob-
stante – e o que é especialmente grave – dessas soluções iniciais
incomprováveis irão se desdobrar raciocínios e mais raciocínios, nos
diferentes sistemas de pensamento, querendo demonstrar que tais e
tais verdades derivadas são “verdades comprovadas”, fundamentadas
no “ser das coisas”. Não estarão, assim, os sólidos edifícios das “verdades
comprovadas” erigidos sobre fundações precárias?
É claro que isto tudo vale para as “verdades” que estou proferindo.
Talvez seja a sina de todo conhecimento a de em última instância se
reduzir (ou se elevar) a uma declaração de fé. Desse destino não escapam
56 os conhecimentos que se autoproclamam “objetivos”, que se querem
verdadeiros porque sustentados por “fatos” e “evidências” empíricas:
apenas expressam a fé em que o critério que define a Verdade reside nas
evidências factuais. Dele também não fogem os conhecimentos que se
arvoram verdadeiros em nome da razão: não é algo como uma espécie
de fé nos poderes especiais da razão o que os sustenta?
Assim, há vários séculos nossos filósofos vêm pateticamente se
esforçando para comprovar factualmente o primado dos fatos, ou para
demonstrar racionalmente a superioridade da razão. Não faltaram os
que quisessem comprovar racionalmente a precedência dos fatos; nem
estiveram ausentes os que se dispusessem a fornecer evidências
empíricas de que é pela razão que se acede à verdade. Ora, tantos
séculos de esforços baldados talvez sejam um indício de que o problema
possa estar sendo mal colocado, de que a questão da verdade não
comporte maiúscula ou singular. É possível que tenha chegado a hora
de sair do círculo vicioso, relativizando tudo isso e relembrando algo
palmar: verdade é algo em que se crê, se previamente se aceitam como
verdadeiros os critérios que a definem como verdade.
No que diz respeito a nosso problema específico, decorreria então
que todo esforço seria vão, de descobrir o “verdadeiro” e “objetivo”
caráter da relação dos seres vivos com o mundo. A fortiori, seria vão
querer desvendar a “verdade” da relação dos homens com a natureza.
Assim, por reconhecer a precariedade das bases sobre as quais a
discussão se assenta, está longíssimo da intenção deste trabalho
qualquer ambição de Verdade. Por isso – e este é o grande fascínio do
jogo intelectual – o leitor será convidado a confrontar pontos de vista,
estabelecer diálogo entre teorias, sepultar provisoriamente idéias
dominantes, ressuscitar conceitos, inverter pressupostos, desrespeitar
o “óbvio”, praticar irreverência diante das autoridades do saber,
relativizar “verdades”, relativizar a própria relativização...
Sem compromisso com a “verdade”, utilizar-se-ão nas páginas
seguintes noções precárias e arbitrárias, noções que muitas vezes serão
objeto de crítica – o que será feito sem sentimento de culpa,
simplesmente porque não há outras, simplesmente por não se
pretender “fechar” aqui a questão. Para mim, e espero que para o
leitor, tratar-se-á de um exercício com a linguagem, de um
cometimento quase lúdico de escancarar portas e janelas da mente,
pelo prazer simples de liberar o pensamento, de fazer da reflexão algo
flexível. Talvez isso não seja ciência. Pouco importa: sapiência talvez? 57
é suficiente para esclarecer por que razão este vivente não ingere
qualquer coisa, não elimina em qualquer lugar, não copula em qualquer
época. Sabemos, ao contrário, que lhe é necessário discernir, através
de sinais característicos, qual é e onde está o alimento, em que lugar
é possível eliminar, quando está a fêmea sexualmente disponível...
Além disso, para se manifestar, muitas vezes requer o “instinto”a
presença de certas condições contextuais (que a presa esteja dentro
do território, que o sol já tenha se posto, que o organismo esteja
carente, que outros machos não estejam nas imediações...), condições
estas para cujo reconhecimento uma espécie de “leitura” ou “cálculo”
seria exigência prévia.
Não é necessário ser um expert em comportamento animal para
compreender isto, pois não se trata de coisa estranha à observação de
nosso cotidiano. Eis um exemplo banal: acreditamos (enganadamente,
por sinal) ser o gato um caçador “por instinto”. Pela janela do quintal
vejo um, escondido atrás de um arbusto e que se prepara para atacar
o desavisado passarinho, que bebe da água contida em um vaso distante
cerca de metro e meio do esconderijo. De longe, contemplo a cena:
muito silêncio, movimentos cuidadosíssimos, atenção incisiva. Zás! 59
Salto preciso, pássaro liquidado, ponto final. Mas não foi na direção
do vaso que o gato saltou – foi para o alto, obliquamente que o caçador
“decidiu” voar: será que o bichano “sabia” que ao percebê-lo o
passarinho “decidiria” alçar vôo? Teriam estes animais “calculado”,
em relação a si e ao outro, coisas como velocidades, ângulos,
trajetórias?
Mais de uma vez surpreendi o felino exercitando assim o seu “instinto”:
armando sempre a mesma emboscada, levantando sempre o mesmo vôo,
para fazer vítimas sempre novas. Um dia, finalmente penalizado, resolvi
aumentar de apenas alguns centímetros a distância entre o arbusto e o
recipiente. E isto foi o bastante para que o gato desistisse de armar a
emboscada, passando a contemplar com desatenta indiferença os
passarinhos a beber. Não teria havido aí algo como “armazenagem” de
informação, “memória”, “cálculo”, “previsão” – algo mais, enfim, que
atuação de um “instinto” mecânico, algo de comunicacional, embutido
no impulso orgânico que levaria o gato a caçar?
Não se trata de um acidente, ou de um privilégio particular aos
felinos. Há registros atestando que chimpanzés cativos aos quais se
havia fornecido caixas e bastões acabaram ao final de algum tempo
Um pressuposto viciado
Se não tomarmos o cuidado prévio de afastar os ilusórios
pressupostos que apresentam o Homem como um individuo desde
sempre pronto e acabado, como alguém completo em sua
individualidade, a questão das “relações do Homem com a natureza”
será de compreensão difícil. De fato, o fantasma do indivíduo
autônomo, dono de si e de seus interesses, vem há muito inspirando
as teorias antropológicas e sociológicas. Assim, tanto as que derivam
da concepção hobbesiana de que a sociedade é uma espécie de “guerra”
de todos contra todos que o Estado vem evitar, como as que se
inspiram no pensamento de Rousseau, de que a vida social seria uma
espécie de “contrato” associativo, representam – ambas – teorias que
supõem a preexistência de indivíduos prontos para “guerrear” ou
“contratar”, de indivíduos anteriores e exteriores à sociedade.
Não é difícil compreender que concepções dessa natureza sejam
compatíveis com a visão de mundo de uma sociedade que cultua a
individualidade, que tem o indivíduo, seus “direitos”, suas
“necessidades”, sua “originalidade”, sua “propriedade”, etc. como uma
Nem só de pão...
A alimentação sempre foi considerada um terreno privilegiado
para se refletir sobre o caráter das “relações do Homem com a
Necessidades orgânicas?
Os homens não podem apenas definir largamente o que da natureza
é “alimento”. Eles não se limitam a decidir convencionalmente que classes
de alimentos são adequadas para que categorias de homens, ou a
estabelecer o que se deva comer em circunstâncias especiais (como
70 aniversários, casamentos, funerais, natal, ano novo, semana santa,
menstruação, recuperação de doença...). Decidem também quais deles
deverão se relacionar diretamente com a natureza para obter a comida de
que todos necessitam.
Assim, se entre os Bororo as mulheres cultivam o solo, entre os Zuñi
esta é uma atividade tipicamente masculina. Entre os Guayaki, os homens
caçam enquanto as mulheres coletam e transportam. Estas últimas não
devem caçar também para os esquimós, mas para algumas tribos do
oeste americano é delas a responsabilidade pela captura de coelhos. Os
bosquímanos africanos pensam que os homens não devam colher, embora
deles se aguarde a coleta de determinados produtos vegetais. Em cada
sociedade, poderemos encontrar uma organização social a comandar as
relações dos indivíduos com a natureza, a decidir quem trabalha em quê,
com quem e para quem; a estabelecer quem poderá receber o que se
produzir, como os produtos deverão circular e quem poderá ser dispensado
de produzir diretamente a sobrevivência natural.
De tal modo é importante a intermediação da sociedade nas
“relações dos homens com a natureza”, que hoje se tornou possível,
sem absoluta-mente incorrer em absurdo, perguntar se é mesmo a
sobrevivência orgânica dos indivíduos a razão de ser das relações da
sociedade com o mundo. Afinal, será mesmo aquilo que possa satisfazer
às necessidades orgânicas individuais, o que os homens vão buscar na
natureza? Nas sociedades humanas, terá mesmo a economia a função
de prover às necessidades primárias? Estarão mesmo as instituições,
as crenças, os ritos, as técnicas, os tabus, os saberes... a serviço da
manutenção dos organismos humanos individuais?
Até certo ponto, a resposta a estas questões poderia ser positiva,
pois para animais, plantas ou homens, não poderia existir sociedade
sem população, nem esta última sem indivíduos vivos. Mas, como
explicar então que os homens não sejam como árvores, ou como animais
de vida social menos elaborada, que extraem da natureza, cada um
individual-mente, aquilo de que o organismo individual necessita
para viver? Como compreender que nas suas relações com a natureza,
os homens não extraiam dela somente o que teria uma explicação
imediata na “satisfação de necessidades”? Que sentido atribuir ao fato
de que muitas vezes aquilo que se destina a ser trocado, coisas por
intermédio das quais se possa (ou não) obter os bens que viriam a
satisfazer necessidades orgânicas, seja objetivo das “relações com a
natureza”? Em outras palavras, por que os homens produzem também 71
aquilo que não consomem, aquilo que nada tem a ver diretamente
com “sobrevivência orgânica”?
Muito mais ainda: que razões levariam os homens ao luxo de
dispensar, muitas vezes em situação de fome, a ingestão de elementos
nutritivos, a destruir ou deixar perecerem montanhas de alimentos?
Se “satisfazer necessidades” fosse o motivo fundamental que levasse os
homens a procurá-los na natureza, por que então não consumir os
alimentos imediatamente e in loco? Por que os gestos de matar, colher,
pescar, capturar, coletar, etc., não se confundem com os atos de comer,
saciar, satisfazer? Que sentido teria a interposição de rituais, mitos,
tabus, se a captura de alimentos e a deglutição deles fossem
cometimentos de caráter apenas gastrointestinal?
Por toda parte, não se limitam os homens a engolir seus alimentos,
uma vez os encontrando na natureza. Não existe alimento humano
em estado bruto, devendo cada um receber tratamento ritual e
simbólico destinado a promovê-lo de algo “cru” a algo “cozido”.
Assando diretamente no fogo, cozinhando com auxílio de água,
descascando, lavando, cortando, misturando a outros alimentos,
temperando, ralando, estabelecendo condições especiais e maneiras
O mito de origem
Uma espécie de antropologia de folk, algo como uma teoria popular
e caseira sobre a natureza e a história do Homem, povoa nossas mentes.
Nas culturas ocidentais, quase por toda parte, admitem-se “verdades”
sobre o surgimento da espécie humana, suas singularidades, potencia-
lidades, destino. Entre nós, no âmbito deste saber folclórico, há um
consenso praticamente inquestionável: os homens teriam vindo da
penúria e da miséria, de um estado em que mal teriam podido prover
à própria subsistência, escravizados à ditadura da natureza e às
imposições das necessidades orgânicas.
De acordo com esta teoria, o Homem primordial mal se poderia
distinguir dos animais, nos quais teria encontrado inimigos cruéis
prontos a destruí-lo. Contra estes, conseqüentemente, deveria manter
incessante combate. “Luta pela vida”, na qual a vitória viria a significar
“sobre-vivência” e continuidade da espécie. Embate sem fim, do qual
78 iria sair vitorioso o “mais forte”. Da agressão de tudo e de todos
(predadores, chuva, vento, raios...) este quase-animal, entregue à sua
fraqueza, despo-jado, desprotegido, desequipado de garras, presas,
venenos, asas ou força física, teria conseguido milagrosamente triunfar
e sobreviver. E isto porque teria disposto de uma espécie de força
superior, dom que o singulariza, que lhe permite fazer curvar diante
de si toda a criação: a inteligência.
Estamos profundamente embebidos desta teoria. Cedo em nossa
vida aprendemos a repetir que o Homem é um “animal racional”,
por oposição aos outros, que não o seriam. Fomos desde crianças
conduzidos a pensar a Razão como atributo humano por excelência,
como aquilo que o teria feito superior ao resto da existência e que o
teria dotado de direitos especiais sobre as outras espécies. Em virtude
da razão, segundo acreditamos, poderíamos conquistar o mundo, fazê-
lo escravo, acumular nossas forças, fazendo-nos mais e mais poderosos,
mais e mais capazes de domesticar o ambiente hostil, de realizar nossa
humanidade, vendo-nos, conseqüentemente, mais e mais felizes.
Seria “racional”, assim, tudo o que materializasse o controle do
mundo pelo Homem. E “mais racional” aquilo que concretizasse o
incremento dessa ascendência. Reside aí o motivo pelo qual gostamos
incompatível com seres para os quais o estômago seja mais urgente que o
intelecto ou a sensibilidade.
Assim, chegamos a uma encruzilhada fundamental da antropologia
econômica, bem enunciada por Pierre Clastres [1974: p. 166]: “Eis-nos,
pois, bem longe do miserabilismo que envolve a idéia de economia de
subsistência. Não somente o homem das sociedades primitivas não é de
modo algum constrangido a esta existência animal que seria a procura
permanente para assegurar a sobrevivência, mas é mesmo ao preço de um
tempo de atividade notavelmente curto que este resultado é conseguido e
ultrapassado. Isto significa que as sociedades primitivas dispõem, caso
desejem, de todo o tempo necessário para aumentar a produção de bens
materiais. O bom senso questiona, então: por que os homens destas
sociedades quereriam trabalhar mais e produzir mais, se três ou quatro
horas de calmas atividades cotidianas bastam para assegurar o atendimento
das necessidades do grupo? De que isto lhes serviria? Para que serviriam os
excedentes assim acumulados? Qual seria o destino destes? É sempre forçados
que os homens trabalham além de suas necessidades. E é precisamente
esta força que está ausente do mundo primitivo...” Assim, não é
86 propriamente uma falta que caracteriza estas sociedades, mas a recusa de
um excesso sem sentido; não a marca de alguma, deficiência ou incapacidade,
mas a intolerância em relação ao que seja insignificante e demais.
Natureza viva
É certamente difícil para nós, ocidentais, que estamos habituados a
acreditar no mito da origem miserável do Homem, compreender a
atitude desprendida e generosa desses povos em relação à natureza e às
riquezas que dela poderiam obter. Nossas filosofias incutem quase sempre
em nossas mentes a idéia da supremacia dos humanos sobre as outras
formas de vida, assim como a da necessidade de escravização e exploração
destas como condição da realização de nossa potencialidade. A natureza
se transformou, assim, para nós, em apenas um cenário destinado a
enquadrar a existência dos homens sobre o planeta. A propósito, não é
isto que sugere esta conhecida passagem do Gênesis (1, 28-29)?
Vejamos agora como esta nossa atitude pode soar a uma anciã
Wintu: “A gente branca nunca quis saber da terra, dos gamos ou dos
ursos. Quando os índios matam carne, comem-na toda. Quando
desenterramos raízes, fazemos buracos pequenos... Não derrubamos
as árvores. Só usamos madeira morta. Mas a gente branca revolve a
terra, abate as árvores, mata tudo... O espírito da terra a odeia. Os
brancos arrancam as árvores e tumultuam as entranhas da terra.
Serram as árvores. Isto faz-lhe mal, causa-lhe dores. Os índios jamais
magoam seja o que for...” [Dubois: 1935]. Quando, por exemplo,
quer se referir às suas dificuldades na caça, um Wintu nunca diz “não
posso mais matar gamos”, mas “os gamos não querem mais morrer
para mim”, pois tem com a natureza uma relação de intimidade e
cortesia mútuas tendo horror ao desperdício, não como nós, por
acreditar nas virtudes intrínsecas da poupança e da acumulação,
mas por respeito aos seres que matam e às plantas que recolhem.
Por conseguinte, se quisermos compreender as razões pelas quais os
“primitivos” deixam de fazer os “progressos” de que tanto nos orgu-lhamos,
é mister que comecemos por retirar os óculos através dos quais estamos
habituados a enxergar a natureza e por meio dos quais aprendemos o que 87
significa “Razão”. Acontece que estes povos têm outras razões, outras
concepções sobre o que seja bem-estar, felicidade, plenitude... Em nome
dessas razões, mesmo em situação de dificuldade material, podem recusar
propostas “milionárias” para negociar suas terras. Podem rejeitar a aplicação
de técnicas agrícolas, embora as conheçam bem, para a produção mais fácil
do alimento de base – como o arroz selvagem entre os Menomini, da região
dos Grandes Lagos – mas ao preço de “ferir” a terra: é que concebem o
terreno onde vivem como uma espécie de “mãe”, à qual os ligam sagrados
vínculos afetivos, que por nada no mundo ousariam profanar. Entre os
Koji, de Serra Nevada, acontece coisa parecida, pois se obrigam a trabalhar
glebas pequenas, distantes e pouco férteis, quando nas imediações existem
terras muito “melhores”, capazes de lhes “poupar trabalho” e de lhes oferecer
“rentabilidade” maior: mas nestas terras habitam os espíritos dos mortos,
razão pela qual as evitam, aí só comparecendo para lhes levar oferendas.
Nós, que estamos acostumados a considerar a natureza como um objeto
exterior e distante, certamente nos enriqueceremos com o entendimento do
significado da floresta para os Mbuti, conforme a descrição de Maurice Godelier
[1978: p. 169]: “A prática religiosa dos Mbuti adota a forma de um culto à
Floresta. Esta prática é diária e está presente em todas as atividades: pela
Trabalho
Sociedades como estas que estamos considerando não têm as nossas
razões para trabalhar – se é que entre elas se encontre algo parecido
com o que faz o burocrata na repartição ou o operário na fábrica,
Razões. Razão?
Tudo isso se aplica também à tecnologia. É claro que, do ponto
de vista de uma Razão Absoluta (tal qual nós a definimos em nossa
cultura), a serra elétrica é mais racional que o machado de pedra.
Contudo, não são os princípios dessa Racionalidade que operam no
dia-a-dia das sociedades não-ocidentais. Assim, vários povos que
receberam o machado de aço excluíram-no rigorosamente da produção
dos bens de subsistência, porque fortes razões de ordem simbólica
vinculavam os alimentos aos machados tradicionais: uma ordem prévia
de idéias e sentimentos deveria ser preservada. Outras vezes, como
entre os Siane, longe de aumentar a produção, como poderíamos
Homo oeconomicus
Pensemos também nos sistemas de trocas de bens, onde nem
sempre vigoram os princípios de nossa racionalidade. Raramente se
imagina, por exemplo, que os bens possam ser indiscriminadamente
trocados, ou que “quantidade” possa ser um denominador comum
para as transações. É comum, em várias sociedades, que os bens sejam
considerados qualita-tivamente diferentes, o que impõe limites
bastante definidos às permutas.
É assim que acontecia entre os Nuer [Evans-Pritchard: 1951, 1956
e 1978], antes de a moeda européia destruir o sistema. Concebiam três
esferas diferentes e separadas de bens, entre os quais a convertibilidade
era impossível: as mulheres, os obteníveis por guerra ou comércio e os
domésticos, como galinhas, cestas, potes, etc. As trocas, conseqüen-
temente, eram compartimentadas, pois os bens carregavam valores e
significados diferentes, sendo impensável trocar um bem por outro
qualquer. Percebe-se facilmente ser o dinheiro inimigo desta racio-
nalidade, por funcionar como conversor de um bem em qualquer outro:
neste contexto, a “liquidez absoluta” do dinheiro (como gostam de
dizer nossos economistas) é completamente irracional. 95
Coisa parecida acontecida entre os Tiv, segundo o testemunho de
Paul Bohannan [1955 e 1968]. Aqui, os bens se dividiam em três
categorias: os de “subsistência”, os de “prestígio” (escravos, gado, metais)
e as mulheres. As trocas eram livres dentro da mesma categoria; entre a
segunda e a terceira, certas regras bem definidas permitiam o acesso às
mulheres mediante barras de cobre; mas era proibido converter a primeira
na segunda e incogitável transformá-la na terceira. Neste caso, igual-
mente, a moeda não poderia desempenhar seu papel de denominador
comum, senão sob pena de destruir todo o sistema de idéias e senti-
mentos. Por esta razão, quando a moeda apareceu, os Tiv tentaram salvar
seu sistema de circulação inventando uma quarta categoria: dentro dela,
o dinheiro poderia ser trocado por bens europeus ou por si mesmo.
Entre os Siane [Godelier: 1978], do mesmo modo, havia três cate-
gorias: os bens de “subsistência”, os de “luxo” (tabaco, sal, óleo, por
exemplo) e os “preciosos” (bens que faziam parte das despesas rituais
em casamentos, iniciações, festas religiosas, etc). A regra principal da
circulação de bens era a de que objetos de uma categoria não poderiam
ser trocados por bens de outra, razão pela qual não havia uma moeda
universal. Em compensação, existiam diferentes moedas para categorias
Conclusão
A civilização em que vivemos se vê em movimento. Concebe-se
descrevendo trajetória ascendente de “progressos”, vencendo e
superando estágios sucessivos. A história do Homem, segundo a
idéia de que dela fazemos, é feita de contínuos aperfeiçoamentos,
de avanços intermináveis, de vitórias acumuladas. Figuramos o
tempo como uma espécie de linha ascendente, da qual cada ponto
retém e supera os anteriores, além de conter os fundamentos das
aquisições vindouras. Nesse enquadramento intelectual, não é
surpreendente que pudéssemos ter formulado o mito (teorias) sobre
a origem miserável do Homem. Não é incoerente que a “penúria
inicial” tivesse soado como algo pacificamente inquestionável, como
algo confirmado por todos os saberes.
Antes de ser resultado das investigações sofisticadas ou de teorias
cientificamente estabelecidas, esta representações da “miséria original” pode 99
ser vista como uma decorrência necessária do modo pelo qual nossa civilização
se vê. É quase uma imposição lógica de nossa cultura, fácil de compreender,
pois quando se imagina que o tempo seja linear, cumulativo, e que o
complexo suceda o simples ter-se-á necessariamente que postular um
momento inicial, em que tudo o que se conquistou, em que todos os
progressos feitos, absolutamente inexistiam. Não é compreensível que, caso
não exista, este degrau primeiro, o estágio de nulidade, terá que ser inventado,
para servir de fundamento lógico ao edifício evolucionista? Não foi assim
que se inventou a “noite de mil anos”, para justificar os “progressos” do
capitalismo (e do socialismo)? Não se inventou a “selvageria” para atribuir
sentido às conquistas da civilização?
No mesmo sentido, criamos a “promiscuidade primitiva” para dar
testemunho de como se “humanizaram” nossos costumes sexuais, o “pré-
lógico” para sustentar a Razão, a Idade da Pedra para justificar a da
Máquina e a Termonuclear. Não é evidente que este estágio inicial deva
por definição ser desprovido de todas as características positivas do estágio
avançado? Riqueza, cultura, lazer, saber, tecnologia, bem-estar, decência,
liberdade, segurança, inteligência... não são coisas obrigatoriamente
excluídas do estágio original? Nessas observações, muito bem formuladas
Os outros e os outros
M. Merleau-Ponty
Homens e crocodilos
“O mundo começou sem o Homem e terminará sem ele”. Não
há nessa afirmação de Lévi-Strauss [1957, p. 442] um bom começo
para qualquer antropologia? Para uma ciência que tem na relativização
sua alavanca mais poderosa, relativizar a idéia de “Homem”, mostrá-
la como função de outras, não deveria ser o passo inaugural? Mas
seria possível fazê-lo, sem tomar a relativização por um absoluto? Isto
é, sem contraditar em essência o próprio método antropológico? Que
ciências (ou melhor, cientistas) iriam ao extremo de uma honestidade
suicida, dissolvendo seu objeto e seu método “próprios”?
O antropólogo é um pouco como um astrônomo: contempla o
mundo em perspectiva macroscópica, fazendo com que enormes
“todos” se resumam a partículas de outros muito maiores. Mas a
antropologia é ainda algo diferente, por não se contentar com o olhar
globalizante do astrônomo: fustiga seus objetos também com lentes
de microscópio, esforçando-se por mostrar os “todos” como efêmeros,
como não sendo efetivamente “todos” – como consistindo mais
apropriadamente totali-zações resultantes de operações intelectuais
112 comprometidas com determinados critérios e pontos de vista. “Todos”
são, portanto, tota-lizações artificiais, fadadas à dissolução quando se
abalam os pontos de vista e critérios a partir dos quais foram
constituídos.
Entre o “macro” e o “micro”, os antropólogos se espremem e (se)
angustiam. Entre dois tipos de morte: o da rigidez do cristal, do para
sempre muito definido, do “todo” constituído, pronto e constante, e
o da volatilidade da fumaça, dos “todos” sempre e sempre
decomponíveis, dos fragmentos esvoaçantes e intangíveis [Atlan: 1979].
Aliás, não é próprio da antropologia interessar-se pelo que está morto,
ou em vias de morrer? Fósseis, índios, cultura popular, relações
comunitárias e agora, neste nosso terrível século, o próprio Homem,
não o confirmariam? Oscilemos um pouco por essas inquietações.
*
Que nos diria um astrônomo sobre o Homem? Muito provavel-
mente não se sentiria à vontade para considerá-lo como totalidade.
Talvez tentasse enquadrá-lo em totalidades cósmicas maiores. Ao
fazê-lo, forneceria ao antropólogo algo muito importante, com o
auxílio do que poderia começar qualquer relativização: colocaria o
Homem na escala do Universo. Não seria isso frutífero para nós,
A cultura, as culturas
A Cultura é a lente humana por excelência, e ser antropocêntrico
é enxergar o mundo através dela. Como já pudemos ver, o homem é
capaz de independer em larga medida das programações orgânicas,
podendo convencionar socialmente sua própria visão de mundo,
instituir de maneira em grande parte autônoma o seu próprio universo.
116 Conven-cional, o mundo inventado pelo homem é frouxamente
transformável no tempo e no espaço, submetendo-se apenas às suas
leis próprias de transformação. Não é esta, afinal, a essência da
comunicação simbólica?
Por conseguinte, o próprio dessa lente antropocêntrica é ser multi-
focal. Não existe rigorosamente A Cultura, que é apenas um conceito
totalizador, um artifício de raciocínio; mas miríades de culturas,
correspondentes à multiplicidade dos grupos humanos e a seus
momentos históricos. A Cultura é uma abstração, um artefato de
pensamento por meio do qual se faz economia da extraordinária
diversidade que os homens apresentam entre si e com o auxílio do
qual se organiza o que os homens têm de semelhante. A Cultura é
também o que os distingue das demais formas vivas: a capacidade de
diferir de seus coespecíficos.
No sentido menos abstrato, as culturas são sistemas simbólicos.
Dito de outro modo: mais que um somatório de valores, artefatos,
crenças, mitos, rituais, comportamentos, etc. (como queria a definição
inaugural de Tylor), cada cultura é uma gramática que delineia e gera
os elementos que a constituem e lhe são pertinentes, além de atribuir
sentido às relações entre os mesmos. As culturas não se definem apenas
yellow
Nele observamos que a palavra galesa glas cobre tudo o que o
inglês chamaria de azul, algumas cores que os ingleses chamariam de
verde e ainda parte considerável das que designaria por cinza. Llwyd
abrange o resto do cinza e abarca também o marrom e algumas
tonalidades do vermelho. Entre os Tiv, por outro lado, todos os verdes,
alguns azuis e alguns tons de cinza são ii; mas azuis muito claros,
assim como o cinza claro, são pupu. Nyian, que recobre o marrom,
também cobre o vermelho e o amarelo.
Não se trata absolutamente de sustentar que os membros dessas
120 culturas sejam cegos em relação às cores não-nomeadas, ou incapazes
de discriminar cores “diferentes” que são reunidas na mesma categoria.
Os japoneses, por exemplo, têm apenas uma palavra, aoi, para designar
a parte do espectro que abrange o verde e o azul. Mas o fato de não
fazerem distinção lingüística entre elas não significa que não as possam
separar se assim quiserem – pois obviamente o fazem através de
descrições, comparações e metáforas. Significa apenas que a língua e,
de um modo geral, a cultura japonesa não parecem exigir essa distinção
para efeitos da vida cotidiana.
Talvez por procederem de cultura que atribui relativamente pouca
importância ao olfato como meio positivo de organização do mundo
(estamos mais preocupados em nos proteger dos cheiros), os
antropólogos não dedicaram atenção comparável ao seu estudo em
perspectiva transcultural. É claro que aqui e ali se encontram referências
à extrema sensibilidade olfativa de certos povos como os esquimós,
capazes de se orientar olfativamente em ambientes pouco definidos
pela visão, ou os ilhéus andamaneses, que elaboraram um calendário
olfativo, apoiando-se nos perfumes que a natureza exala regularmente.
Mas são excepcionais os trabalhos etnolingüísticos que descrevam a
classificação dos odores como se estudaram as classificações das cores.
fato que tratemos o olfato com uma certa desconfiança, negando-lhe quase
sempre a autoridade de critério formulador de verdades? Quando dizemos
“isso não me cheira bem”, “sinto cheiro de confusão”, não é antes de tudo
uma hipótese, uma intuição que estamos lançando? Quem acreditaria que
São Tomé realmente tocou as chagas de Cristo, se não houvesse testemunhas
“oculares” do acontecimento? Quem ousaria duvidar entre nós de que
sociedades que desenvolveram meios de se visualizar o que se diz, e que
adotaram a escrita, sejam “civilizações superiores”?
*
Se os canais pelos quais os homens captam informações sobre o
mundo exterior estão culturalmente codificados, com muito mais razão
podemos compreender que o estejam as categorias intelectuais por
intermédio das quais essas informações são processadas. Boa parte do
esforço fundador da escola sociológica francesa, materializada nas
contribuições de Durkheim, Mauss e seus seguidores, residiu na
demonstração das origens sociais das chamadas categorias do enten-
dimento. Para eles, noções como causa, conseqüência, tempo, espaço,
etc., longe de resultarem das experiências singulares dos indivíduos (a
posteriori) ou de alguma preexistência nas mentalidades individuais (a 123
priori), derivariam da experiência dos indivíduos em uma sociedade já
organizada por uma lógica da qual essas noções proviriam. As categorias
do entendimento seriam, segundo esta perspectiva, simultaneamente
a priori e a posteriori: os indivíduos seriam uma tabula rasa, na qual a
sociedade escreveria um texto cujas categorias gramaticais já possuísse
com antecedência [Durkheim e Mauss: s/d].
Uma breve reflexão sobre a noção de “tempo” que povoa nossas
mentes clarificará inapelavelmente a questão. Basta compararmos os
conceitos de tempo vigorante nas modernas sociedades industriais
com os nelas dominantes algumas décadas ou séculos atrás. Quando
o ritmo de vida era predominantemente rural, os dias eram medidos
pelo nascimento e pelo pôr do sol, os anos e meses pela sucessão de
plantios e colheitas, pelas folhas que caíam ou pelo gelo que derretia.
O tempo era considerado um processo de transformações naturais
cíclicas e os homens não se preocupavam em medi-lo com rigor: os
“relógios” de areia, de sol, de água, as lamparinas que queimavam
cera, davam indicações muito vagas e a utilidade deles com freqüência
era duvidosa.
Os primeiros relógios modernos surgiram por volta do século
A relativização do etnocentrismo
Relativização é o conceito que designa a atitude intelectual
diferente da do etnocentrismo. É o esforço de compreender a
significação dos comportamentos, pensamentos e sentimentos do
“outro”, nos termos da cultura do “outro”. A relativização é o
concepção “crua”, tem-se tornado cada vez mais aceita a idéia de que a
ciência no fundamental não difere das linguagens em geral,
correspondendo por isso a um ponto de vista específico (que as próprias
linguagens, ou a ciência, definem) e referindo-se a um “objeto” que as
próprias linguagens (ou a ciência) instituem. A ciência, como todas as
linguagens, é, portanto, autonímica: faz referência em última instância a
si mesma; é um sistema fechado, que encontra em si a própria prova.
Recordo-me, a propósito, de minha experiência como estudante
de geometria. Ensinaram-me que “ponto” era uma noção fundamental,
componente da definição de quase todas as outras; uma “circunferência”
era um conjunto de “pontos” eqüidistantes de um “ponto” central;
por dois “pontos” passava uma “linha reta” ; o “vértice” de um triângulo
era o “ponto” de encontro de dois de seus “lados”; uma “reta” era um
conjunto de “pontos” que... Mas, e a definição de “ponto”? Diziam
meus professores: “ponto é aquilo que não tem partes”. “Mas, o que
não tem partes?”, voltava a perguntar aflito. “O ponto!”, eis a resposta
que recebia. Era a cobra mordendo a própria cauda, a circularidade
de um discurso autonímico se estabelecendo.
140 Aprendemos que tempo e espaço eram dimensões objetivas do
mundo, espécies de parâmetros naturais, aos quais o conhecimento
deveria se adequar. O espaço seria uma substância em si mesma e o
tempo uma concretude: aí dentro, as coisas e suas modificações
encontrariam lugar. Com essas idéias colocadas em minha cabeça pelos
professores de “ciências”, quanta dificuldade posterior para
compreender que “tempo” e “espaço” eram convenções destinadas a
descrever relações também convencionais entre objetos convencionais!
Para mim, que tinha aprendido que o espaço “é” plano, quanta
dificuldade para compreender que ele também “é” curvo! Era fácil
compreender que a soma dos ângulos de um triângulo valia dois ângulos
retos quando imaginava essas relações sobre uma folha de papel plana.
Mas como compreender que, se eu desenhasse um triângulo sobre a superfície
de uma esfera, encontraria três ângulos retos? Foi preciso ter compreendido
que o “espaço” não “é” uma coisa em si, mas um modo pelo qual pensamos.
Que não “é” nem curvo nem plano, que pode ser uma coisa ou outra, de
acordo com a linguagem utilizada. Somente então questões como estas
passaram a ser menos aflitivas para mim: não se tratava de “certo” ou “errado”,
de “neutralidade” ou “objetividade” mas de representação, de relatividade,
de conveniência e de ponto de vista.
A cultura da ciência
Nas épocas de Montaigne e Bacon o modo científico de conhecer
a “verdade” do mundo ainda era inabitual e distava de ser dominante.
Nos tempos medievais ainda recentes, o universo era concebido como
uma espécie de amálgama único, em que o natural, o divino, o humano
se fundiam: nos espíritos, uma rede cerrada de correspondências entre
a anotomia e a fisiologia humanas, entre as diferentes idades da vida
e o tempo cósmico, remetia a um sistema mais abrangente de
correspon-dências entre o micro e o macrocosmos, entre a
individualidade, a sociedade e o universo. Todo um conjunto de
interinfluências e interde-pendências podia ser constatado entre signos
O etnocentrismo da relativização
Montaigne e Bacon prenunciam critérios diferentes de produção
de verdade: por isso, opõem-se em primeiro lugar ao “senso comum”,
à “opinião pública”, quer dizer, às formas de saber até então vigentes.
Não esqueçamos, entretanto, que advogam também uma visão de
mundo muito especial, provavelmente inédita, típica de uma sociedade
nova: separar espírito e matéria, sujeito e objeto, natural e sobrenatural,
leigos e especialistas, verdades de fato e verdades de razão, são
procedimentos característicos de uma determinada cultura, em
determinado momento de sua história.
São procedimentos “científicos”. Mas também são procedimentos
próprios de uma cultura cujo universo simbólico celebra a
“racionalidade” como componente da vida cotidiana; de uma cultura
que acredita que “tempo”, “espaço”, “causa”, “conseqüência”,
“estrutura”, “organização”, “sistema”, etc. são meios adequados de
falantes ou que haja uma língua, como a italiana, por exemplo, anterior
a seus dialetos – o que é redondamente “falso”!
Se quisermos, para compreender uma sociedade “de dentro”,
recuperar diferenças que foram colocadas de lado pelo conceito de
“cultura”, não é uma adaptação, nem uma manipulação desse conceito
que deve ser feita. Não se devem multiplicar conceitos como o de
“subcultura” e similares, pois estes, exceto pelo grau autoproclamado
e supostamente menor de abstração (o que é ilusório, aliás) carregam
as mesmas insuficiências de sua matriz. Seria mais profícuo optar por
outro(s) conceito(s), formulado(s) em bases teóricas diferentes,
apontando para propriedades sociológicas outras: conceito(s) que se
adicionaria(m) ao de “cultura”, sem o abolir.
Do telescópio ao microscópio
Considerar a sociedade como sistema de comunicação e
significação implica tomá-la também como sistema de distanciamento
e diferenças: qualquer forma de comunicação supõe necessariamente
um distancia-mento prévio que o ato comunicativo pretende superar.
154 Tal distan-ciamento é antes de tudo teórico e jamais será abolido
pela comunicação: é pré-requisito lógico, sem o qual a própria noção
de comunicação não tem razão de ser. Por exemplo, quando sonho,
quando faço anotações em minha agenda, quando escrevo um
rascunho, quando amarro um barbante no dedo para não esquecer
de algo, quando toco piano para mim mesmo ou vejo-me no espelho,
existe um “eu emissor” transmitindo uma mensagem para um “eu
receptor”: embora empiricamente possa se tratar de um mesmo e
idêntico “eu”, cada um desses “eus” é uma entidade teoricamente
diferente.
Por outro lado, mesmo quando entre duas posições se possa
imaginar uma distância tão infinitamente grande que se procura vetar
qualquer possibilidade de comunicação, a própria proibição é já, em
outro nível, uma maneira de expressar na natureza da relação entre
essas posições extremas e o resto do sistema – tal como acontece quando
se evita que reis desposem plebeus, que vivos e mortos troquem
intimidades ou que entre genro e sogra haja intercâmbio de palavras.
A própria ausência empírica de comunicação seria, assim, transformada
teoricamente em comunicação e a sociedade inteira seria considerada
um imenso ato comunicacional.
pena que não se tivesse percebido antes que a imagem do edifício era
paupérrima para descrever um sistema de relações sociais e que os
estudos tivessem se concentrado fundamentalmente nas distâncias
sociais verticais (posições superiores e inferiores, dominantes e
dominadas, mobilidade social, etc.). É uma pena que a intuição inicial,
de que a apreensão afetiva e intelectual da sociedade tinha a ver com
a posição de indivíduos e grupos na sociedade, tivesse sido melada
pela discussão maniqueísta da “verdadeira”/“falsa consciência”,
obrigando a injetar a problemática da classe social onde ela
absolutamente não era pertinente, ou obrigando, pelo outro lado, a
silenciar a questão da apreensão diferenciada onde se fosse obrigado a
reconhecer a inexistência de classes sociais.
Foi assim que se inventaram estórias sobre a “verdadeira
consciência” e o “fim das ideologias” na futura “sociedade sem classes”,
na qual todo homem seria uma espécie de sábio-cientista, conhecedor
das verdades “objetivas” e “neutras” do universo. Foi assim que se
inventaram “classes sociais” em sociedades tribais, atribuindo, por
exemplo, aos anciãos afri-canos o papel de dominantes e exploradores
[Meillassoux: 1977]. Foi assim também que se criou, correlativamente, 157
a imagem de sociedades tribais marcadas pela homogeneidade, por
indivíduos e grupos quase rigorosamente idênticos, possuidores dos
mesmas pontos de vista, posto que sem “diferenças internas” (leia-se
“sem classes sociais”) e sem “ideologias” (ou melhor, sem “visões
mistificadas do real”).
*
Foi uma pena que tudo isso tivesse acontecido, pois o termo “ideo-
logia” teria sido excelente, se não tivesse sido tão conspurcado.
Excelente para designar as diferentes, intercambiáveis, não-fixas,
relativas e mutáveis posições cognitivas em que os participantes das
relações sociais podem se encontrar nos processos de comunicação.
Excelente para designar as transformações conotativas de sentido a
que os atores, as regras, as instituições, etc. são submetidos como
decorrência de sua leitura a partir de uma posição social particular.
Para apontar para os diferentes contextos em que os encontros sociais
se dão, para as gramáticas internas de conjunção e disjunção de
símbolos e papéis sociais. Excelente para colocar em evidência, enfim,
o como a grande lente de uma cultura particular é lida por sua vez a
partir de pontos de vista diferentes existentes no e produzidos pelo(s)
Então, o indivíduo?
A infinita plasticidade – que o conceito de “ideologia” assim
proposto propicia – desemboca necessariamente na questão teórica
do “indivíduo”. Mas estaríamos enganados se supuséssemos que a
resultante dessa apologia das diversidades internas fosse algo do tipo
“bem, no fim cada indivíduo é diferente; cada um percebe o mundo
através de suas lentes ideológicas individuais”. Embora afirmativa de
tal teor seja aceitável de certo modo, contém como pressuposto a
idéia de que este “indivíduo” teria uma existência soberana e seria o
ponto ontológico de dissipação final de todas as relatividades: o
“indivíduo” absolutizado, absolutizador das relatividades.
É verdade que as lentes antropocêntricas, etnocêntricas, ideológicas
são ainda mais uma vez deformadas pelas lentes individuais, por cada
um dos homens. É compreensível que cada indivíduo veja as lentes
da humanidade, as de sua cultura, as das posições sociais, através de
suas “próprias” lentes e que aquelas são efetivas apenas quando
Conclusão
Será preciso enriquecer muito o nosso aparato intelectual se
quisermos pensar questões deste teor, que a tradição intelectual
associou à expressão “natureza humana”. As antinomias simplistas e
simplificadoras que desde muito vêm presidindo a reflexão sobre o
tema deveriam liminarmente ser afastadas: psíquico/biológico,
cultural/natural, indivíduo/sociedade, social/cultural, semelhante/
diferente, universal/particular, essencial/acessório, e assim por diante,
são instrumentos débeis e inadequados para enfrentar a questão.
Será preciso compreender que estas antinomias foram resultado 175
da separação artificial de “níveis” e que estas separações são
insuficientes e falseadoras quando o pensamento quer se aplicar a
problemas que englobam todos os níveis – dissolvendo-os, por
isso mesmo, em suas relações recíprocas. Mais do que isso e ainda
mais grave, as dicotomias mencionadas, apesar de simplistas,
complicam paradoxalmente o entendimento, pois, uma vez
dissecado o humano e decomposto nestes “níveis”, fica muito mais
difícil recompô-lo e pensá-lo em sua inteireza. Esquartejando o
fenômeno humano, será impossível observar a advertência de Marcel
Mauss, aquela que deveria figurar no portal de todas as escolas de
antropologia: “Corpo, alma, sociedade, tudo se mistura.”
Esta diretriz que Mauss apontou para a antropologia dificilmente
poderá coexistir com a reificação dos “níveis” em que o todo humano
foi decomposto artificialmente na história da ciência, apenas para
atender aos interesses das diversas estratégias teóricas especializadas
(as diferentes “ciências”, as “áreas” do conhecimento, os “princípios”
filosóficos, etc.). Assim sendo, será forçoso repudiar as famosas
concepções “arquite-tônicas” do homem, aquelas que dele fazem um
edifício composto de vários andares (o “biológico”, o “psicológico”, o
merecido, não seria útil lembrar, a propósito, que em si mesma uma tal
tese é já uma generalização?
Mais ainda, ressalvar a positividade das diferenças entre os homens
também não pode significar a celebração do cultural (= variâncias) contra
o biológico (= invariâncias), como se o próprio do homem fosse a cultura
(= comunicação simbólica) e como se isso nada tivesse a ver com natureza
e com biologia. Nada disso: é preciso ser suficientemente “culturalista”
para ver, nas teorias que pensam o cultural como inteiramente
independente do biológico, mitos – tão típicos da nossa civilização
industrial – que expressam a recusa da natureza pela cultura e a sonho
de dominação da primeira pela segunda.
É claro que não há razão alguma de ordem biológica, que faça que os
ingleses dirijam seus automóveis por um lado da rua, enquanto os franceses
o fazem pelo outro. Todavia, nem sempre as coisas são assim tão simples.
Quando se consideram questões como – por que os homens falam? por
que cozinham os alimentos? poderiam existir sociedades humanas sem
socialização das crianças? sem sistemas de parentesco? por que razão sempre
se proíbem algumas relações sexuais como incestuosas? é possível um
sistema social sem sistema de status? sem concepções de crime? sem tabus 177
e evitações? sem ritos de iniciação? sem ritos funerários? sem rituais de
corte entre os sexos? como explicar o transe e a possessão, a universalidade
da divisão social e sexual das tarefas, as semelhanças formais entre certos
aspectos das sociedades animais e alguns das sociedades humanas? –
quando se consideram questões deste teor, as coisas tornam-se imediata e
extraordinariamente complexas.
Nenhuma dessas questões poderá receber resposta do tipo tudo-
ou-nada, sim-ou-não. Nenhuma poderá se limitar ao biológico, ao
psicológico, ao social ou ao cultural. Nenhuma poderá se ater apenas
ao particular ou inteiramente ao universal.
Nunca será demais insistir sobre a importância antropológica da
diferença. Não obstante, é possível considerar ao mesmo tempo que as
diferenças supõem processos diferenciadores e que estes podem ser
invariantes. Mesmo que – inspirados pela extraordinária amplitude da
diversidade das crenças e das práticas no tempo e no espaço, segundo
as sociedades e a história, de acordo com os grupos e os indivíduos – se
possa à primeira vista ter a impressão de os homens tudo poderem
inventar, tal capacidade provavelmente não é ilimitada e a relatividade
possivelmente não é absoluta: de dentro da imensidão da diversidade