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Protagonismo Feminino na floresta amazônica: uma leitura de Regina Melo

Margarete Edul Prado de Souza Lopes Lopes1

RESUMO

Com essa comunicação, vamos discutir as relações de gênero e poder partindo da


mitologia das guerreiras amazonas. Buscamos, no imaginário da cultura indígena,
da figura das mulheres guerreiras, um mito dos mais fecundos desta região, para
mostrar antecipações do feminismo e uma luta antiga de combate ao machismo.
Selecionamos duas narrativas que tematizassem as Ykamiabas, lendárias guerreiras
da floresta amazônica, para um estudo da representação dessas mulheres na ficção,
pelo viés dos estudos de gênero e feminismo. O viés teórico utilizado inclui artigos
científicos básicos, da autoria de Elódia Xavier e Rita Terezinha Schimidt, para
efetivar a leitura do romance de autoria feminina, Ykamiabas, filhas da noite,
mulheres da lua (2004), de Regina Melo.

Palavras-chave: Literatura. Gênero. Regina Melo.

1. INTRODUÇÃO

A Região Norte do Brasil contém um rico imaginário popular, o qual contém


um conjunto específico de símbolos, rituais, mitos e crenças que, em geral, consiste
no entendimento que as pessoas de uma comunidade ou grupo incorporam sobre os
mistérios e o insólito no cotidiano. Nesse artigo, adotamos o conceito de Denis
Moraes (1998), do imaginário como sendo uma espécie de “depósito da memória”,
que a família e os grupos sociais recolhem de suas vivências no cotidiano. Como
pesquisadora na Amazônia, buscamos estudar não somente o imaginário dos povos
da floresta, mas, especificamente, o imaginário da cultura indígena, aqui
representado pela figura das mulheres guerreiras, as Amazonas, na linguagem
indígena, as Ykamiabas, valorosas mulheres mitológicas que deram nome à região,
representando um mito dos mais fecundos e estudados das terras nortistas.

1
Professor doutora em Teorias da Crítica e da Cultura; Universidade Federal do Acre; pesquisadora
da CAPES; [email protected]

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Por conseguinte, selecionamos como objeto de estudo um romance de
autoria feminina, que tematizasse as Ykamiabas, as lendárias guerreiras da floresta
amazônica, com a intenção de descrever a representação dessas mulheres, pelo
viés da teoria literária e dos estudos da Crítica Feminista. O viés teórico adotado
inclui artigos científicos básicos, da autoria de Elódia Xavier e Rita Terezinha
Schimidt; enquanto para efetivar a leitura específica do romance contemporâneo
Ykamiabas, filhas da noite, mulheres da lua (2004), de Regina Melo, utilizamos o
livro Mito e Literatura, de Marcos Frederico Krüger, de 2009. Estes artigos e livros
dialogam com a crítica literária que faremos da obra selecionada de Regina Melo.
Ainda faremos breves menções ao romance histórico, de Abguar Bastos, Terra de
Icamiabas (1934), e do mais recente O amante das Amazonas (2007), de Rogel
Samuel.
A literatura produzida na região Norte é recheada de entidades mitológicas e
lendárias, tais como o Mapinguari, o Caboquinho da Mata, a Caipora, a Matinta
Pereira e outros. Já temos escrito alguns artigos sobre estas figuras mágicas, a
partir de contos de autoria feminina na Região Norte. Entretanto, nada nos pareceu
mais instigante e recoberto de ambiguidades do que o Mito da Ykamiabas. Nesse
artigo, decidimos adotar a grafia do nome indígena das guerreiras mitológicas,
conforme registrada no romance de Regina Melo, com Y e K, Ykamiabas, em razão
de ser um nome indígena, cuja grafia adota com mais frequência o K em lugar do C,
bem como o Y no lugar do I. Além disso, a figura das Ykamiabas é o mais poderoso
símbolo de empoderamento das mulheres na história da humanidade.

2. Contexto histórico e primeiras impressões


Ykamiabas, Filhas da Lua, Mulheres da Terra foi o primeiro romance
publicado pela autora amazonene Regina Melo, o qual já teve duas edições. A
primeira edição foi realizada pela Editora Valer, através do selo da Travessia, em
2004, com patrocínio da Petrobrás. Mais tarde, surgiram duas novas edições, em
2011 e 2013, pelo selo da Nepal, editora paulista, com apoio do Banco da
Amazônia.

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Neste romance de estreia, Regina Melo apresenta sua versão do famoso mito
da Amazonas, lendárias mulheres guerreiras, de origem europeia, sob a ótica
feminina, porque até então somente tínhamos circulando romances de autoria
masculina como os já mencionados de Abguar Bastos e de Roger Samuel. Regina
Melo afirma nas entrevistas na mídia que este romance foi o primeiro de uma trilogia
de histórias de regastes de mitos ocidentais, composta ainda das obras Oceano
Primeiro – Mar de Leite, Rio da Criação, editado também em 2011, pela Editora
Nepal, sobre o mito dos continentes perdidos de Atlântida e Lemúria; e do terceiro
romance mitológico, ainda inédito, A fênix e o dragão: paixão e eterno retorno,
tratando da mito de Diana, de Éfeso e a simbologia da Fênix. Este último romance
foi aprovado para publicação, segundo publicação no Diário Oficial de 3012/2014,
tendo a autora concorrido ao Edital DLLLB/FBN/MinC nº 03/2014 – de Bolsas de
Fomento à Literatura
Nas pesquisas sobre a biografia da autora, o primeiro romance, das
Ykamiabas, resultou de um trabalho de 12 anos, somando pesquisa, investigação de
campo, composição da história e romance. Autodidata, como ela própria de se
classifica, Regina Melo considera que a pesquisa bibliográfica seja imprescindível
para a confrontação das ideias que auxiliam na criação da narrativa. Ela conta ainda
que costuma desenvolver os enredos de seus livros a partir de um processo de
investigação próprio, buscando leitura leituras que lhe possibilitem criar suas
histórias, sendo ler uma das suas grandes paixões. A trilogia escrita pela autora é,
portanto, marcada pela mitologia, pelos cenários da Amazônia, inspirada em suas
leitura do pensamento junguiano, das obras de Joseph Campbell, de Gaston
Bachelard, Fritjof Capra, Heinrich Zimmer, entre outros.
Seu nome completo é Regina Lucia Azevedo de Melo, nascida em Manaus,
em 01 de fevereiro de 1959. A autora é formada em Comunicação Social, com
habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Amazonas (UFAM), na
qual também realizou o curso de pós-graduação em Marketing Empresarial e
Design, Propaganda e Marketing. Ela também é membro do Instituto Geográfico e
Histórico do Amazonas/IGHA, Cadeira Nº. 7, cujo patrono é Alfred Wallace. Regina
Melo trabalhou como jornalista em vários jornais, sendo autora dos livros de poesia

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“Pariência” (1984), “Estação do Nada” (1988) e “O Poema” (1998); dos romances
“Ykamiabas – Filhas da Lua, Mulheres da Terra” (2004, 2011, e 2013) e “Oceano
Primeiro – Mar de Leite, Rio da Criação” (duas edições: 2011 e 2012). Pesquisou e
escreveu: “História do Abastecimento de Água de Manaus” (1989) e “História do
Saneamento de Manaus” (1991).
Seria adequado ainda mencionar que Regina Melo teve um projeto “Centro de
Estudos Monte Ykamiaba” aprovado pelo Ministério da Cultura, em 1997, e
apresentado nesse mesmo ano no III Congresso Patrimônio Cultural: Contexto y
Conservacion, em Havana, Cuba. Produziu vídeo sobre o patrimônio histórico e
artístico de Manaus, “Manaus, Imagem e Memória” (1986) e sobre saneamento de
Manaus, “O som das águas” (1992), além de um curta para uma campanha de
conservação das águas do Rio Negro, “Você vive, porque o rio vive” (2007).
Regina Melo tem passagem especial pela música também, tendo participado
de festivais de música, obtendo premiação em Manaus, com as músicas “Terra
Índia, Vida Índia” (1981) e “Um bolero para Manaus” (1997). Outras premiações
foram recebidas na cidade de São Paulo (III FIF), com as músicas “Troncos” e
“Cogumelo Atômico” (1983). O romance de sua autoria, nosso objeto de estudo,
Ykamiabas – Filhas da Lua, Mulheres da Terra foi tema da Escola de Samba
Acadêmicos da Rocinha (2010) e tem inspirado inúmeros trabalhos acadêmicos,
artísticos e culturais.
Com o romance “Oceano Primeiro – Mar de Leite, Rio da Criação” foi
agraciada com o Prêmio Governo do Estado do Amazonas (2010) e venceu o Edital
do Banco da Amazônia (2011), que lhe possibilitou publicar o referido livro. Em
2012, foi aprovada pelo Banco da Amazônia uma nova edição do romance
“Ykamiabas – Filhas da Lua, Mulheres da Terra”. Recentemente foi premiada no
edital Carmem Santos, de Cinema de Mulheres, para produzir o curta-metragem “Os
anseios das cunhãs”. Possui composições em parceria com músicos amazonenses,
uma peça para Teatro de Rua sobre a loucura, “Os loucos de ontem não são os de
hoje”; um monólogo, “O céu é pra quem sabe voar”, e uma ópera inédita sobre “As
Amazonas”, com o compositor amazonense Adalberto Holanda, e o musical “Ritual
das Ykamiabas”, com o compositor Pedro César Ribeiro (biografia e informações

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retiradas do site da autora). Regina Melo concorreu ao Edital de Incentivo à Cultura,
na cidade de Manaus, em 2014, obtendo com a aprovação uma renda de 350 mil
reais, para montar a ópera inédita sobre as famosas Guerreias, em 2015.
A grande importância da obra de Regina Melo está em resgatar os mitos mais
primordiais da humanidade com sua trilogia. Aqui, estudamos o mito da Ykamiabas,
que simboliza o empoderamento das mulheres, a recolocação das mulheres na
posição de sujeito de suas vidas e a recuperação da imagem da Deusa Mãe. O
grande mitólogo Marcos Krüger explica:
Os mitos são narrativas que possuem um forte componente
simbólico. Como os povos da antiguidade não conseguiam explicar os
fenômenos da natureza, através de explicações científicas, criavam mitos
com este objetivo: dar sentido às coisas do mundo. Os mitos também
serviam como uma forma de passar conhecimentos e alertar as pessoas
sobre perigos ou defeitos e qualidades do ser humano. Deuses, heróis e
personagens sobrenaturais se misturam com fatos da realidade para dar
sentido a vida e ao mundo (2009, p.15).

O primeiro romance de Regina Melo tem tido grande repercussão e sido


largamente estudado, inspirou trabalhos de doutorado como o da arqueóloga Helen
Lima, como também artigos científicos, como o trabalho de Iêda Vilas-Bôas,
apresentado no III Congresso Latino-Americano de Compreensão Leitora (2010), e
como o estudo de Maria Aparecida Oliveira, comparando Regina Melo com Virginia
woof e Bishop, em trabalho apresentado no II Colóquio de Estudos Feministas e de
Gênero: Articulações e perspectivas, realizado em Brasília, na UNB, em 2014.

3. O mito das Ykamiabas, as lendárias guerreiras.

O romance em estudo aborda a mitologia das mulheres guerreiras do vale


Paraná-Guassu (Amazonas), com parte importante da narrativa transcorrendo em
Nhamundá, cidade que existe realmente no Estado do Amazonas. Este livro, além
de resgatar o mito que originou o nome do Estado do Amazonas, traz o registro de
importantes fatos da história das mitológicas gurreiras, e propõe um novo olhar
sobre o universo mítico amazônico.

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Regina Melo transporta seu leitor por uma viagem histórica ao mundo das
Amazonas, uma vez que o romance é produto de uma densa pesquisa mitológica e
histórica sobre as guerreiras fantásticas, que teriam habitado o vale do Amazonas,
em época pré-colombiana e combatido com os conquistadores europeus. Essas
batalhas teriam sido testemunhadas por Frei Carvajal, que as registrou em crônica
sobre as viagens do conquistador espanhol Francisco Orellana, quando da sua
passagem pela região, em 1542. Além de Carvajal, também são citados trechos da
obra do naturalista e botânico, Barbosa Rodrigues, em sua extensa bibliografia
sobre o assunto, na qual as guerreiras míticas renascem na trama tão bem tecida
pela escritora Regina Melo.
No romance de Regina Melo, temos a história de uma estudante universitária,
que faz graduação em História, a jovem Yara. A protagonista um dia recebe um
estranho e misterioso presente em sua casa, um amuleto das intrépidas guerreiras,
o Muiraquitã. Enquanto narra a trajetória de Yara, para descobrir o remetente do
presente e pesquisar a história por trás do amuleto que ganhou de presente, Regina
Melo, resgata o mito da Mãe Terra e as migrações que ocorreram na terra durante
milênios, pra fazer emergir as guerreiras ykamiabas do Amazonas. O romance
resgata o mito das mulheres que se adoravam com o muirakitã (muiraquitã), amuleto
que elas mesmas confeccionavam para usar nas festas, como nos rituais de
iniciação da vida adulta, sempre ao luar, que perpetuavam as tradições para ser
uma guerreira Ykamiaba (MELO, 2004, p.46).
O enredo se inicia numa manhã de abril, quando chega o misterioso amuleto
acompanhado da curta e simples mensagem “Você recebeu um legado. Procure no
Mito”, (MELO, 2004, p.20). Ela recebeu nesse momento mais do que legado,
recebeu a missão de resgatar o mito, de revelar o enigma e preservar a tradição das
guerreiras mitológicas. Com sua jornada de leituras e viagens, acompanhada de seu
professor de História, Benjamim, Yara faz sua iniciação como herdeira das
Ykamiabas, retirando passo a passo a névoa secular que encobre o Mito.
Aos poucos o leitor vai se inteirando de que Yara é uma jovem adulta de 26
anos, que o bilhete e o presente vieram da Capadócia, Turquia, que jamais
conheceu seu pai, que foi criada por uma mãe solteira. Enquanto nas aulas de

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história do professor Benjamim, o mito das guerreiras famosas vai se descortinando
a cada capítulo, contando a origem, simbologia e lendas que envolvem as
misteriosas mulheres portadoras do Muiraquitã. Do capítulo segundo até o capítulo
vinte, o texto narrativo é dividido em duas formatações, metade do texto em itálico,
referente à história da Ykamiabas; enquanto a segunda parte, sem grifos, retrata o
cotidiano de Yara, a vida no lar e a vida de estudante.
O livro contém a indicação e comentários de uma vasta documentação
histórica, narrando como eram, como surgiram e para que serviam os muiraquitãs.
As Ykamiabas vieram para o Novo Mundo juntamente com os Karaybas, civilizações
que alcançaram o México, o Panamá, a Nova Granada, a Venezuela, o Peru e a
Bolívia, até o Vale do Amazonas. Eles foram os primeiros Karas, depois chamados
karaybas, dos quais de originaram os Tolteca ou Nahua (MELO, 2004, p.26). Quanto
aos muiraquitãs, podemos ler que...
Com os Karaybas vieram também as mulheres guerreiras,
portadoras do Muyrakitãs – artefatos líticos, também conhecidos como
pedras verdes – amuletos que, pelas suas virtudes, proporcionavam
força, saúde e poder. Traziam-nos suspensos ao pescoço, para
assegurar-lhes a vida, livrá-las da moléstia e dos inimigos e garantir-
lhes a supremacia das terras das quais se apossavam (MELO, 2004,
p.27)

Desenhos do muiraquitã e mapas conforme estão ilustrados no romance de Regina Melo, 2004, p.31 e 198.
A passagem esclarece de forma bem detalhada a importância do amuleto
verde na vida dessas mulheres lendárias. Eles compunham uma simbologia que
unia força, magia, saúde e empoderamento para as mulheres que se adornavam
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com ele. As menções mais antigas a este amuleto estão nos escritos de João
Barboza Rodrigues, publicados em 1875 e 1889.
O professor Benjamim vai se apaixonando por Yara e se oferece para
acompanha-las na viagens de estudos da Ykamiabas, ao mesmo tempo que lhe
recomenda escrever toda a história das guerreiras amazônicas. Yara começa a
escrever na mesma noite que ouve o conselho (MELO, 2004, p.41). Assim, a história
escrita por Yara tem início no capítulo cinco, ela inicia por descrever o grande Lago
Yacy-Uaruá e sua importância para as milenares guerreiras, e no capítulo seguinte,
Yara descreve o Monte Yacy-Taperê, no qual elas habitavam.
As míticas mulheres eram adoradoras da Deusa Mãe, e nos rituais de entrada
das meninas na vida adulta, ela cantavam para a grande mãe Terra. Elas era
mulheres livre, autônomas, sem nenhum homem que lhes dessem ordem ou
controlassem seus corpos, atitudes ou comportamento:
“Na lua nova
Trago a vida livre
Para que atua luz
Assim a possa conservar

Trago nas mãos


A força do tempo
Rasgada das entranhas
Da Terra Mãe”, (MELO, 2004, p.46).

O professor se emociona às lágrimas ao ler o relato de Yara e ela acredita


estar conseguindo dar início à organização de um dos mitos mais fantásticos dos
povos da Amazônia (MELO, 2004, p.47). Yara continua escrevendo, com relatos do
encontro anual das guerreiras com indígenas do sexo masculino, para gerar filhos,
ela faz a descrição física das guerreiras, afirmando que todas possuíam ambos os
seios. E amamentavam seus filhos até um ano de idade.
É comum encontrar nos escritos de autoria masculina uma representação de
imagens estereotipadas das guerreiras, como mulheres aleijadas, de um seio só, por
causa do uso do arco e flecha ao ombro, com o qual se armavam, para melhor
guerrear. Somente os homens poderiam afirmar que mulheres extirpariam os seios,
maior símbolo do corpo feminino, numa tentativa absurda de semelhança com o
corpo masculino; porém, nos escritos de autoria feminina, elas são perfeitas, sempre

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com ambos os seios, vaidosas e corajosas, sempre belas e majestosas. Porém, nos
livros de Abguar Bastos, Frei Carvajal, Barboza Rodrigues, Gastão Crulz e outros
elas são mulheres monstros, aterrorizantes e aterradoras, que até comem
criancinhas.
Entretanto, em sua narrativa mágica, Regina Melo desconstrói essa crença de
mulheres mutiladas, de um seio somente. De fato, o termo Ykamiabas significa
mulheres de seios rachados. No entanto, no capítulo IX, do romance, podemos ler:

No ano seguinte, após a amamentação, os filhos varões serão


entregues aos pais que os conceberam. As filhas, entretanto,
permanecerão na Serra da Lua, onde aprenderão a manter contato com a
vida independente e isolada dos homens. Desde o nascimento,
conhecerão e conviverão com os perigos da floresta e manterão a tradição
das mulheres guerreiras que habitam o Monte Yacy-Taperê – o Monte
Ykamiaba – de prodigiosas alturas. O monte escondido dos homens.
(MELO, 2004, p. 70).

Tal suposição de que existissem mulheres valentes, possuidoras de um só


peito no corpo, somente poderia mesmo surgir em textos masculinos, porque nós
mulheres sabemos o quanto o seio é importante elemento da vaidade feminina, e
que as mulheres jamais aceitariam cortá-lo fora para serrem guerreiras mais fortes e
ágeis. Ao contrário, no relato de autoria feminina, no romance de Regina Melo,
encontramos que as mulheres amazonas escolhiam criar apenas as filhas, as do
sexo feminino, e entregavam os meninos para serem criados pelos pais nas tribos
de origem, após um ano de amamentação com leite materno.
A pesquisadora Simone Lima, em estudo do romance Amazônia Misteriosa,
do carioca Gastão Cruls, que nunca conheceu a Amazônia, descreve a forma
estereotipada e preconceituosa com que os escritos de autoria masculina
descreviam as mulheres guerreiras.
Lugares exóticos e distantes como a Amazônia, são propícios ao
aparecimento dos mitos transplantados pelo colonizador, dotados de
extraordinária força imagético/ideológica, especialmente quando forjados
por mecanismos de poder fortemente controlados, como é o caso da
ideologia colonialista, na qual Gastão Cruls centra seu romance (...) Outro
importante elemento desse cenário imaginado (...) diz respeito à
manipulação experimental dos corpos das crianças rejeitadas pelas
mulheres Amazonas que, como sabemos, só cuidavam em ficar com das
filhas – desprezando os meninos desde o momento de seu nascimento.

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Portanto, esse importante detalhe – componente das estrutura do mito das
Amazonas tradicional, é aproveitado na urdidura da trama de A Amazônia
Misteriosa – e o médico alemão põe-se a fazer experiências com essas
crianças-refugo abandonadas pelas Amazonas (LIMA, 2014, p.146 e 149)

Este trecho ilustra nitidamente a concepção tradicional sobre as guerreiras


Ykamiabas, em estudos fora das questões feministas e dos Estudos de Gênero. O
romance de Regina Melo desconstrói essa visão estereotipada das Amazonas,
como mulheres que abandonavam os filhos homens. Nos escritos na narradora
Yara, elas primeiramente amamentavam seus filhos pelo tempo regulamentar, antes
de entregarem os meninos para serem criados por seus pais, portanto, não havia
abandono, mas tão somente transferência da responsabilidade de criação.
Num estudo aprofundado sobre o corpo feminino, a crítica feminista Elódia
Xavier classifica o corpo das personagens femininas, conforme os analisa em
romances e novelas, como corpos subalternos, imobilizados, disciplinados,
envelhecidos, violentados, erotizados, degradados e por fim, liberados. Nessa última
classificação, não negativa do corpo da mulher, colocando o corpo feminino
finalmente não aviltado como nas outras classificações, enfim, nos corpos liberados,
temos a mulher finalmente dona de sua vida e de seu corpo. Elódia Xavier
esclarece:
A narrativa de autoria feminina, da década de 90 para cá, vem
apresentando protagonistas mulheres que passam a ser sujeitos da
própria história, conduzindo suas vidas conforme valores redescobertos
através de um processo de autoconhecimento. Este processo é
exatamente o conteúdo da narrativa, que nos leva da personagem
enredada nos “laços de família” ou nas próprias dúvidas existenciais á
personagem, enfim, liberada (2007, p.167).

No romance de Regina Melo, transcorre exatamente como Elódia Xavier


afirma, sendo a escrita de Melo um exemplo perfeito de apresentação da
protagonista que se torna sujeito de sua história, que é o processo que ocorre com
Yara, conforme ela se apropria e reconstrói o mito de suas ancestrais, as guerreiras
míticas da Amazônia. Yara também passa a conduzir sua vida conforme os valores
recém redescobertos, e uma vez completado o resgate do mito das Ykamiabas, ela
aceita se casar com Benjamim. Juntos, eles trabalham num projeto de criação da
Fundação Monte Ykamiaba, que contempla os estudos dos povos indígenas da
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Amazônia brasileira e a proteção das áreas indígenas do Baixo Amazonas (MELO,
2004, p.189).
O romance Ykamiaba rompe com a representação da mulher submissa e de
corpo controlado pelas leis do patriarcado. As guerreiras são mulheres livres e
emancipadas de corpo e alma, fora do controle masculino e das leis temporais dos
homens, elas seguem as leis da natureza e da terra, da mãe terra. Rita Terezinha
Schmidt explica didaticamente a histórica dominação do corpo feminino, nos termos
do patriarcado.
A constância do dualismo natureza/cultura e seus efeitos na concepção do
corpo feminino são indissociados de interpretações das relações
mulher/natureza, as quais ocupam um lugar central na imaginação da
cultura ocidental. Na mitologia, nas artes visuais, nas doutrinas religiosas,
nos tratados filosóficos, nas ciências médicas e sociais, na psicanálise, na
literatura e nos meios midiáticos, o corpo feminino é sacralizado pela sua
capacidade gerativa, exaltado pela beleza, repudiado pela impureza,
erotizado pelo olhar masculino, controlado pelo aparato estatal, e
explorado e aviltado pela violência de discursos e práticas que se
disseminam no campo social. Tudo o que sabemos sobre o corpo
feminino, no passado e presente, existe na forma de representações e
discursos, que são efeitos de mediações, nunca inocentes e nunca isentos
de interpretações. Isso quer dizer que o significado cultural do corpo
feminino não se reduz à referencialidade de um ser empírico de carne e
osso, mas constitui um constructo simbólico, produzido e reproduzido na
cultura e na sociedade ocidental ao longo dos tempos (Schmidt, 2012,
p.234).

4. Considerações finais
Em nosso estudo, foi possível verificar que na escrita de autoria masculina foi
construída uma figura monstruosa e desfigurada para representar as mulheres
guerreiras, figura centrada no insólito; enquanto nas narrativas de autoria feminina,
as denominadas “Ykamiabas” são mulheres comuns, porém valentes e
independentes, que vivem numa comunidade somente de mulheres, elas excluem o
casamento de suas vidas, porém não a maternidade.
Sobre seu romance das Ykamiabas, Regina Melo afirma que “é um livro de
ficção com fatos reais”, ela defende que apesar de muitas pessoas não acreditarem,
existem evidências arqueológicas, mapas e documentos sobre a presença da
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guerreiras no Antigo Amazonas. A professora Maria Aparecida Oliveira considera
que Regina Melo viajou por meio da história e da literatura para recuperar o mito das
Amazonas. A autora mergulha profundamente nas águas esverdeadas e turvas do
rio para trazer à tona a história dessas mulheres fortes e guerreiras, cujas raízes
viajaram da Ásia para a América, da Califórnia ao México, e do Peru ao Amazonas
(OLIVEIRA, 2014, p.05). Oliveira afirma ainda que este romance é fundamental para
ajudar na preservação da tradição oral e ajudar aqueles que querem mergulhar nas
águas escuras do mito para clarificá-lo (Idem, idem).
Com séria e profunda pesquisa, a escritora mergulha no mito para
tecer uma fina tapeçaria que define nossas ancestrais e suas vidas. Assim
como Virgínia Woolf, em Um teto todo seu, em seu trabalho arqueológico
de resgatar suas mães literárias, Melo, também, engaja-se nessa tarefa
arqueológica de redescobrir o mito das nossas mães míticas, as guerreiras
do Amazonas. Misturando ficção e realidade, literatura e historia, Melo
rompe não apenas com as convenções literárias, mas também com as
barreiras geográficas para mostrar que as raízes das Amazonas estão em
todas as partes do Globo, confirmando minha teoria de que a Amazônia
está em todo lugar e, sobretudo, dentro de cada um de nós (2014, p.05).

Destarte, o encontro entre os valores e crenças amazônicas e europeias


legou ao mundo a imagem de guerreiras indômitas, autônomas, valorosas, dispostas
à ação contra quem quer que seja, para fazer prevalecer sua soberania e liberdade.
Vivendo sem necessidade da presença masculina, mulheres sem par, adotando a
expressão de Elaine Showater, mas sem para por opção e felizes assim.
No século XXI, parte desta mística centenária está sendo incorporada por
mulheres amazonenses e de toda a região Norte, num ressurgimento do
protagonismo feminino ancestral, podemos verificar isto na ação lideradas por
executivas de instituições públicas e privadas, que assumem, em igualdade de
condições com os homens, a responsabilidade pelos destinos do Estado.
Como exemplo de mulheres empoderadas, em nossos tempos atuais,
podemos citar Flávia Skrobot Barbosa Grosso, de tradicional família manauense,
católica, conservadora, economista formada pela UFAM, casada, mãe de três filhos,
foi o mais emblemático exemplo da ascensão feminina aos postos de comando no
Amazonas, por tornar-se, em 2003, superintendente da Suframa. Essa

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superintendência consiste no terceiro cargo mais influente do Estado, também com
poder de decisão no Acre, Rondônia, Roraima e Amapá.
Outro exemplo, ainda mais contundente, temos na figura consagrada de
Marina Silva. A ex-ministra foi candidata à Presidência da República, em 2010 e
2014, pelo Partido Verde na primeira vez, obtendo a terceira colocação entre nove
candidatos; e pela Rede Sustentabilidade, na segunda candidatura, após a morte de
Eduardo Campos. Embora derrotada pela atual presidente Dilma Rousseff, Marina
Silva, que nasceu em 08 de fevereiro de 1958, é conhecida mundialmente como
defensora da floresta amazônica e seus habitantes, como ambientalista,
historiadora, pedagoga e política brasileira. Marina foi senadora pelo Estado do
Acre, durante 16 anos e ainda Ministra do Meio Ambiente, no Governo Lula, do seu
início (2003) até 13 de maio de 2008. Ela obteve todas estas conquistas mesmo
sendo mulher e negra, que foi alfabetizada somente aos 16 anos.

REFERÊNCIAS:
KRÜGER, Marcos Frederico (2009). Mito e Literatura. Manaus: Editora Valer.

LIMA, Simone de Souza. Amazônia Misteriosa: cidade & monstruosidades, in:


NASCIMENTO, Luciana Marino & LIMA, Simone de Souza (Orgs.). Caleidoscópios
da Cultura Brasileira. Rio de Janeiro: Letras Capital, 2014, p. 140 q 156.

LOPES, Margarete Edul Prado (2007). Motivos de Mulher na Amazônia. Rio


Branco: Editora da UFAC.

MELO, Regina (2004). Ycamiabas: filhas da Lua, Mulheres da Terra. Manaus:


Editora Travessia/Petrobrás.

OLIVEIRA, Maria Aparecida. “Transamerican, Transatlantic and Transamazonia


Woof: a meeting of Waters: woof, Bishop and tha Amazon writes”. Manuscrito
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SCHMIDT, Rita Terezinha. Para além do dualismo natureza/cultura: ficções do corpo


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XAVIER, Elódia. Que corpo é esse? O corpo no imaginário feminino.


Florianópolis: Editora Mulheres, 2007.
1647
1648

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