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Capítulo III - Saberes tradicionais e a segurança alimentar

Odara Horta Boscolo


Joyce Alves Rocha

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BOSCOLO, O.H., and ROCHA, J.A. Saberes tradicionais e a segurança alimentar. In: SANTOS, M.G., and
QUINTERO, M., comps. Saberes tradicionais e locais: reflexões etnobiológicas [online]. Rio de
Janeiro: EDUERJ, 2018, pp. 50-71. ISBN: 978-85-7511-485-8.
https://doi.org/10.7476/9788575114858.0005.

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CAPÍTULO III
Saberes tradicionais e a segurança alimentar

Odara Horta Boscolo


Joyce Alves Rocha

Saberes tradicionais: um valor diferencial

De forma geral, os grupos humanos, dispondo de recursos tanto em


ambiente antropogênico como em área natural, tendem a conceber os
recursos vegetais segundo uma concepção de utilidade, que pouco tem
a ver com a compreensão dos pesquisadores. O significado da utilidade
de uma planta varia muito de comunidade para comunidade e de pes-
soa para pessoa. De certo modo, a utilidade pode não se concretizar na
materialidade, mas pode estar muito ligada às práticas imateriais que se
estabelecem enquanto patrimônio cognitivo de uma dada comunidade,
pois o conhecimento sobre um determinado uso não tem a ver somente
com seu uso prático, mas com a capacidade de atender às múltiplas neces-
sidades de uma população.
A utilização de plantas combina uma série de fatores, mostrando a
interdependência entre o homem biológico, o social e o cultural. Dessa
forma, as relações entre o ser humano e o meio ambiente são estabeleci-
das. O interesse das pessoas pelo conhecimento sobre as plantas se con-
funde com a sua própria história (Almeida, 2003). Os primeiros registros
encontrados revelam uma forte relação do homem com os vegetais como
matéria-prima para suprir suas necessidades básicas. Trata-se do conhe-
cimento humano a respeito dos recursos naturais, que é construído pelo
tempo de interação entre estes (a partir de sistemáticas observações), o
que gera processos adaptativos garantidores da sobrevivência de socie-
dades humanas em determinados ambientes. Tal interação constitui-se

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em um saber experimentado nas tarefas e prática diárias e na pluralidade


cultural das populações humanas habitantes dos mais diversos ambientes
(Guarim-Neto e Carniello, 2007).
Branquinho (2007) pondera que o interesse pelos saberes tradicionais
tem assumido novas tendências, a fim de enfrentar os atuais problemas
socioambientais, que exigem a emergência de soluções interdisciplinares
para lidar, por exemplo, com as questões de manutenção da biodiversida-
de global e com a segurança alimentar. Desse modo, consolida-se o ponto
de vista de que as plantas e o conhecimento sobre elas são fatores indisso-
ciáveis, e que, portanto, investigações a esse respeito precisam considerar
o contexto sócio-histórico, o ecológico, as tradições em que se baseiam e
a cultura mantida no local, constituindo um cenário multifacetado para
elaboração desse conhecimento.
É com base no saber sobre a natureza, mantido por um modo de vida
peculiar dentro dessas populações, que conhecimentos são gerados, sele-
cionados, mantidos e transmitidos, em sua maioria oralmente, de gera-
ção a geração (Pirrelli, 2008; Rezende-Silva, 2012).
Os saberes tradicionais podem ser compreendidos no sentido de expe-
riências e conhecimentos acumulados por um grupo humano sobre seus
recursos naturais e transmitidos de forma dinâmica, mutável e transge-
racional, podendo passar por transformações e adaptações ao longo do
tempo, e de acordo com uma gama de conjecturas e interesses envolvidos
(Albuquerque, 2005; Elisabetsky, 2003).
Nos últimos dois séculos, esses saberes, apesar de gerar e orientar as
práticas sociais desde sempre, continuam a não ter status de ciência. Du-
rante séculos, os ricos conhecimentos elaborados e mantidos por gru-
pos sociais considerados à margem da sociedade arrastaram consigo o
sentido de desvalor relacionado às expressões “conhecimento popular”
e “conhecimento vulgar”, o que demarcou o distanciamento entre esses
saberes e o mundo das ciências.
Mas, afinal, o que pode ser considerado como saberes tradicionais?
Tendo como princípio que o conhecimento empírico das gerações ante-
riores a nossa está presente em nós e no meio em que vivemos, ele pode
ser entendido como conhecimento adquirido através de tentativas e er-
ros, num agrupamento de ideias e ações que pode ser considerado válido,
observável, analisável, compreensível, e até replicável, mesmo que seja
considerado fora dos padrões cientificistas. Para Bandeira (2001), o que

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permite distinguir os conhecimentos tradicionais dos conhecimentos


científicos não é uma questão hierárquica, e sim o fato de não correspon-
derem às teorias construídas tal qual o modelo ocidental moderno. Tra-
ta-se de formas de conhecimento guiadas por critérios de validade locais
(materiais e simbólicos), podendo sofrer variações regionais e culturais; e
serem fortemente vinculadas aos contextos nos quais vêm sendo produ-
zidas e transmitidas.
Mesmo aceitando seu dinamismo, é preciso considerar que os sabe-
res localmente construídos associados aos recursos naturais têm sofrido
ameaças de modificações extremas, muito além de seu potencial de re-
siliência. A erosão desses saberes está muito associada ao abandono dos
esquemas de manejo dos recursos e às alterações no modo de vida das
populações (Berkes, 1999). Segundo Amorozo (2007), esse processo de
interferência na manutenção dos saberes tradicionais tem limitado a fle-
xibilidade e a capacidade adaptativa do mesmo. De acordo com a autora,
razões como a superação do valor de uso pelo valor de mercado, a intro-
dução de tecnologias de exploração mais agressivas, as modificações na
densidade populacional, as condições de subsistência no local, o desem-
prego, dentre outras, têm levado a alterações de difícil reversão, tanto
para o meio ambiente quanto para as populações ligadas a ele.

Plantas alimentícias: perda de sua diversidade

Desde que o homem era estritamente caçador-coletor, já conhecia os re-


cursos da natureza e os usava para diversos fins, incluindo a alimentação.
Há cerca de 10 mil anos, o homem torna-se sedentário e passa a domesti-
car animais e plantas, desenvolvendo a agricultura. E, hoje em dia, esses
conhecimentos vêm se transformando, perdendo, e os etnobotânicos, em
certa medida, se esforçam para fornecer subsídios para valorizá-los.
Estamos vivendo em um momento de grandes mudanças climáticas
globais e de forte pressão para aumentar drasticamente a produção de ali-
mentos, a fim de atender ao crescimento da população mundial. A prática
da monocultura – consequentemente, a perda dos saberes tradicionais
e da biodiversidade – é uma ameaça real e ocorre de forma rápida, em
todos os lugares do planeta.

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Um outro grave problema apontado por economistas da FAO1 é a es-


peculação orquestrada pelos mercados futuros. Segundo a entidade, as
manobras especulativas do mercado contribuem para elevar os preços
dos alimentos, o que dificulta a aquisição.
Juntos, a especulação e os fenômenos climáticos extremos já somam
razões suficientes para desequilibrar toda a oferta de alimentos mundial.
Mas ainda tem mais: a má distribuição decorrente de diversos fatores
econômicos e políticos. Para se colocar alimento ao alcance das pessoas,
não é questão apenas de aumentar a produção global, mas sim de que
esses alimentos tenham a garantia de produzir, distribuir até o consu-
midor final. Estudos feitos pelo órgão das Nações Unidas concluem que
há alimentos suficientes para alimentar toda a população do planeta. O
problema é que eles não chegam onde mais se precisa, o que vem sendo
agravado, no Brasil, nas últimas cinco décadas.
Nem precisamos ir muito atrás. Pensemos em nossos avós: eles ti-
nham uma dieta muito mais variada que a nossa. Conte nos dedos o que
encontramos nos mercados e hortifrútis: umas 25 espécies, no máximo
cinquenta, que incluem bananas, maçãs, batata, cebola, ou seja, espécies
encontradas em praticamente qualquer mercado do mundo. Segundo a
FAO (2014), o comércio mundial se faz com cerca 110 espécies, sendo as
mais importantes o trigo, o milho, a batata e o arroz. Em terceiro plano,
ficam nossas espécies nativas, que detêm alguma importância local, mas
não avolumam o mercado, como a mandioca, abacaxi, caju, cupuaçu,
maracujá, castanha, guaraná, jabuticaba, amendoim, açaí, dentre outras
(Santilli 2009).
Mesmo com toda essa riqueza de espécies vegetais nativas, a agricul-
tura brasileira está apoiada no cultivo de poucas e exóticas espécies do-
mesticadas. De acordo com Coradin (2006), a agricultura brasileira está
baseada em recursos genéticos da cana-de-açúcar proveniente da Nova
Guiné, do café da Etiópia, do arroz das Filipinas, da soja e da laranja
da China, da batata da região andina, do milho do México, do cacau da
América Central e México e do trigo da Ásia menor. Das quatro espécies
cultivadas mais importantes para o homem (arroz, batata, milho e trigo),

1
Food and Agriculture Organization - Organização das Nações Unidas para Alimentação e
Agricultura.

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nenhuma tem como centro de origem o Brasil. Se considerarmos a pro-


dução e o consumo global, dentre os quinze cultivos mais importantes
para o homem, apenas a mandioca e o amendoim são nativos do nosso
território.
Existem na Terra cerca de 50 mil espécies de plantas, 3.000 já foram
usadas para alimentação, mas apenas trinta culturas são responsáveis por
fornecer 95% da energia fornecida pelos alimentos consumidos pelos se-
res humanos; a maior parte delas (60%) se resume a arroz, trigo, milho,
milheto e sorgo (Alisson, 2013). Estudos etnobotânicos têm registrado,
porém, mais de 17 mil espécies comestíveis no mundo todo e suspeita-se
ser mais do que 60 mil as que realmente existam. No fim, usamos cerca
de 150 espécies, ou seja, menos de 1% do que a natureza nos oferece (Ra-
poport, 2009).
Estamos perdendo não somente as espécies em si, mas também as
variedades agrícolas. Nos últimos cem anos perdemos entre 90% e 95%
dessas variedades, e há estimativas de que a taxa de perda da diversidade
genética vegetal seja de 2% ao ano (Coupe e Lewins, 2007).
Esses números começaram a se delinear a partir de 1930, quando a
prática milenar da agricultura começou a mudar. Plantas mais produtivas
avançaram para o campo, expulsando culturas antigas. Foram desenvol-
vidas e selecionadas variedades de plantas capazes de absorver e poten-
cializar os efeitos do uso crescente de adubos e fertilizantes químicos.
Para a adaptação das plantas, a mecanização e as exigências da indústria
agroalimentar, foram selecionadas variedades em função de caracterís-
ticas mais adequadas a colheita mecânica, variedades mais homogêneas
quanto a data de maduração e mais fáceis de debulhar. As melhores espé-
cies eram escolhidas e cruzadas com as nativas, criando os híbridos, com
a promessa de encher o planeta com plantas mais produtivas e com mais
facilidade para o cultivo mecanizado em larga escala (Pollan, 2008).
A Revolução Verde2 trouxe também problemas com as sementes; as
submetidas ao melhoramento vegetal tomaram lugar das nativas. Tal

2
Conceitualmente, a Revolução Verde é considerada como a difusão de tecnologias agríco-
las que permitiram um aumento considerável na produção, sobretudo em países menos
desenvolvidos, que ocorreu principalmente entre 1960 e 1970, a partir da modernização
das técnicas utilizadas. Embora tenha surgido com a promessa de acabar com a fome mun-
dial, não se pode negar que essa revolução trouxe inúmeros impactos sociais e ambientais

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substituição não atingiu somente as variedades de sementes, mas tam-


bém diversas culturas no mundo. As sementes locais passaram a ser co-
nhecidas como inferiores, embora estas safras, que foram consideradas
marginais, contenham mais nutrientes e sejam mais produtivas do que as
melhoradas (Pollan, 2008).
Essas práticas trouxeram uma acelerada erosão genética. Por exemplo,
existia na Índia, até pouco tempo, 3.000 variedades de arroz desenvolvi-
das por comunidades locais; hoje, está reduzida a apenas treze. Destino
parecido tiveram o trigo grego e o milho mexicano. Uma das consequên-
cias dessa erosão foi vista em 1970, nos EUA: uma raça mutante de fungo
devastou os milharais americanos; cerca de 80% do milho provinha de
uma semente híbrida. Outra decorrência foi após a descoberta das Amé-
ricas. Os europeus levaram para Europa apenas uma variedade de batata,
e, em 1845, uma praga pegou essa espécie. Foi a “fome da batata”, que na
Irlanda levou à morte, por fome, de um milhão de pessoas (Pollan, 2007).
Estamos pagando caro pelos resultados da Revolução Verde. As plan-
tas estão mais suscetíveis a doenças, pragas, e exigem uma quantidade
maior de insumos químicos. Como consequência, temos a contamina-
ção dos alimentos, intoxicação humana e animal, contaminação da água
e dos solos, erosão, salinização, desertificação, devastação de florestas,
marginalização socioeconômica, perda de autossuficiência alimentar,
êxodo rural, imigração para as cidades, desemprego e uma brutal redu-
ção da diversidade de espécies e variedades de plantas existentes no pla-
neta (Santilli, 2009).
No Brasil, ao mesmo tempo que há tentativas de livrar-se da depen-
dência das sementes estrangeiras, não há ainda o cuidado de garantir a
produção e comercialização, em larga escala, de plantas muito utiliza-
das pela população, como quiabo, jiló e mandioca. Em muitas cidades
brasileiras, as hortaliças consumidas são produzidas em outros estados,

negativos. Além de não ter resolvido os problemas nutricional e da fome, a Revolução


Verde também é reconhecida por aumentar a concentração fundiária e a dependência de
sementes, alterando a cultura dos pequenos proprietários que encontraram dificuldades
para se inserir nos novos moldes. A concentração da posse da terra e o decorrente êxodo ru-
ral causaram um inchaço das cidades, levando a uma favelização nunca vista. Houve uma
transferência do lucro decorrente da atividade agrícola para a agroindústria, deixando o
produtor rural com uma estreita margem, levando ao seu endividamento (Otaviano, 2010).

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tendo como consequências altos preços, baixo consumo e deterioração


nutricional.
Para combater essa situação, muitos pesquisadores criam artifícios
para produzir espécies de outras regiões – por exemplo, aplicação de in-
sumos químicos, construção de custosas casas de vegetação, fervura e
esterilização de solo e sementeiras. Outros pesquisadores procuram cole-
tar, selecionar, conservar e reintroduzir espécies regionais, que até então
sua existência no habitat natural foi posta em risco pela expansão das
fronteiras agrícolas (Pollan, 2007).
Onde estão o cubiu (Solanum sessiliflorum Dunal), feijão macuco (Pa-
chyrhizus tuberosus [Lam.] Spreg.), marolo (Annona crassiflora Mart.), taio-
bas (Xanthosoma sp.), ariá (Calathea allouia [Aubl.] Lindl.) e outros então
consumidos por nossa população? Há estimativas de que a perda de uma
planta pode causar o desaparecimento de quarenta tipos de animais e in-
setos que dela dependem para sobreviver, além de combinações genéticas
e moléculas únicas na natureza (Santilli, 2009). Nesse caso, pode entrar
a contribuição do pequeno agricultor local, que não precisa ficar na de-
pendência de variedades de alta produtividade e nem do pesado apoio
tecnológico para se manter no mercado. Pode também se dar ao luxo
de cultivar espécies e variedades em extinção. A seleção de variedades
por meio de processos de inovação conduzidos pelos agricultores, assim
como o intercâmbio de saberes agrícolas e sementes, são práticas tão an-
tigas quanto a própria agricultura. A enorme diversidade de plantas culti-
vadas e ecossistemas agrícolas existentes no mundo deve-se a tais práticas
locais e tradicionais.
Outro fator da perda das espécies domesticadas, como também seus
parentes silvestres, é a devastação dos ecossistemas. Isso demonstra a ne-
cessidade urgente de domesticar espécies de uso reconhecido popular,
reflorestar áreas degradadas, racionalizar o uso das florestas. (Ming et al.,
2010). A preservação, tanto dos saberes tradicionais quanto da vegetação
nativa e exótica introduzidas no passado, que fazem parte do uso por
populações, é necessária, pois o resgate das espécies potencialmente úteis
é de fundamental importância para a manutenção de processos ecossistê-
micos e sociais locais (Santilli, 2009).
Existem muitos desafios para a conservação de espécies com fins ali-
mentícios. Esta questão não é, entretanto, apenas uma questão ambien-
tal. A segurança alimentar e nutricional de toda a população, o desen-

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volvimento rural sustentável, a inclusão social e o combate à fome e à


miséria estão, direta ou indiretamente, relacionados à conservação e ao
uso dos recursos da biodiversidade. Hoje cerca de 75% dos mais pobres
do mundo – 1,2 bilhão de pessoas – vivem em áreas rurais e dependem da
agricultura para sua subsistência (Santilli, 2009).
Os pequenos agricultores, pertencentes a populações tradicionais ou
não, são os maiores promotores e detentores da diversidade agrícola mun-
dial e possuem uma forte ligação com seus modos de vida. Suas culturas
são baseadas na produção para subsistência, podendo ocorrer a venda de
excedentes, na mão-de-obra familiar, na tecnologia simples e principal-
mente cultivando várias espécies diferentes em uma mesma área. Essas
práticas garantem a segurança alimentar e nutricional, ao mesmo tempo
que asseguram o plantio contra estresses abióticos e bióticos, como as
alterações climáticas e ataques de pragas e doenças (Cultrera, 2008).
Conforme Castro (1995), no Brasil, apesar de parcos estudos relacio-
nados com a avaliação nutricional dos componentes alimentícios produ-
zidos nos quintais, estes, geralmente, representam, para as populações de
baixa renda, uma contribuição significativa na dieta alimentar familiar.
Praticamente em todas as regiões do país, os quintais assumem um im-
portante papel na subsistência sustentada da população brasileira.
Observamos aqui no Brasil e em muitos países que o modelo da agri-
cultura industrial está mudando o estilo de vida dessas populações rurais
(Amorozo, 2006). Agricultores comerciais e pecuaristas pressionam os
pequenos agricultores, e estes são coagidos a vender suas terras, ou são
desestimulados a continuar plantando. A concorrência torna-se desleal e
o preço de mercado do agronegócio fica impraticável para o pequeno pro-
dutor. Os programas do governo e outras multinacionais do agronegócio
estimulam o uso de sementes melhoradas e o uso de insumos químicos
e maquinários modernos, em vez do uso de sementes locais ou crioulas,
tornando uma ameaça à economia agrícola familiar. Segundo Amorozo
(2006), essas intervenções desestabilizam e desarticulam os sistemas agrí-
colas voltados para a subsistência, além de terem efeito negativo sobre
o conjunto de germoplasma de plantas de cultivo, que estas sociedades
mantêm, e sobre os saberes tradicionais.
No âmbito das ações governamentais, em 2011, foi instituído um Pro-
grama de Fomento à redução da pobreza, que surgiu a partir do eixo

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de inclusão produtiva do Plano Brasil Sem Miséria.3 De acordo com a


Lei Federal n.° 11.326/2006, existem formas de obter apoio financeiro se
inserindo no eixo de inclusão produtiva do governo federal, que subsidia
agricultores familiares4 e povos e comunidades tradicionais em situação
de pobreza. Esses recursos apoiam o desenvolvimento do projeto produ-
tivo de cada família e permitem ampliar ou diversificar a produção de
alimentos e as atividades geradoras de renda.
No caso de populações tradicionais, outra verba governamental
disponível para fomento à geração de renda que pode ser obtida por
comunidades tradicionais advém da Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais5 que apoia projetos
específicos, definidos por meio de editais públicos, e que auxiliam as
famílias a produzirem alimentos de qualidade, com regularidade e em
quantidade suficiente para o autoconsumo. Para buscarem a inserção nes-
sa seara, eles reconhecem necessitar de mecanismos para compreender o
processo e consideram ser fundamental motivar alguns de seus membros
a se instrumentalizarem para encarar esse desafio, em favor dos demais.

3
Responsabilidade conjunta do Ministério do Desenvolvimento Social (MDS) e do Minis-
tério do Desenvolvimento Agrário (MDA). O objetivo fundamental é possibilitar que os
beneficiários possam produzir para o seu consumo e melhorar a alimentação de sua fa-
mília, bem como obter renda por meio da comercialização da produção, participando de
uma rota de inclusão produtiva.
4
Aqui a concepção de agricultura familiar está amparada no que preconiza o artigo 3.º da
Lei Federal n.º 11.326 de 24 de junho de 2006, o qual determina que o estabelecimento
para ser classificado como familiar deve apresentar, a qualquer título, área inferior a 4
(quatro) módulos fiscais e utilizar predominantemente mão-de-obra da própria família
nas atividades econômicas do seu estabelecimento ou empreendimento.
5
Por meio do Decreto n.º 6.040/2007, instituiu-se a Política Nacional de Desenvolvimento
Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais (PCTs) que define esses povos como
grupos culturalmente diferenciados e com formas próprias de organização social. Esses
grupos ocupam e usam, de forma permanente ou temporária, territórios tradicionais e
recursos naturais como condição para sua reprodução cultural, social, religiosa, ances-
tral e econômica. Para isso, são utilizados conhecimentos, inovações e práticas gerados e
transmitidos pela tradição.

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Precisamos sair da mesmice

O ato de comer, que é um dos alicerces de nossas tradições sociais, fami-


liares e rituais, regrediu a um ato de irritação, pressa e culpa. O próprio
significado do alimento e alimentação está sendo transformado; antes
era um elemento central para a manutenção da estrutura social e da
tradição, e hoje está sendo extorquido pela cultura alimentar globaliza-
da, na qual o custo e a conveniência são dominantes e a refeição social
tornou-se obsoleta.
Até pouco tempo atrás acreditava-se que o problema alimentar resu-
mia-se à fome, entretanto foi preciso que o mundo acumulasse exceden-
tes consideráveis de produção, ao mesmo tempo que persistia a fome em
diferentes partes do planeta, para que essa limitada tese fosse desmora-
lizada, ainda que não abandonada por aqueles que também insistem em
que meros avanços tecnológicos com seus suspeitos incrementos na pro-
dução podem, isoladamente, eliminar a fome.
A constatação de que a produção de alimentos é suficiente para asse-
gurar alimentação adequada para todo o mundo leva Adas (1988) a afir-
mar que o problema da fome não é crise de alimentos, e sim seu mau uso,
desperdício, concentração de riquezas e é a expressão biológica de um
problema social.
Outro fato muito importante em que precisamos atentar é que negli-
genciamos e subutilizamos as espécies nativas com potencial alimentício.
Nossa biodiversidade tem uma grande capacidade de uso alimentar a ser
pesquisado para que haja maior variação de nosso cardápio, seja fonte de
renda familiar e diversifique nossa matriz agrícola.
Outro ponto relevante é a devastação da biodiversidade brasileira
em prol do incremento da produção mundial de soja, milho e trigo, que
alimentam bois, frangos, porcos e peixes, principalmente de outros
países. Ao reduzir à tamanha limitação de variedades, percebemos o
empobrecimento alimentar a que estamos submetidos. A liberdade dos
cultivos, a diversificação nutricional e espacial não fazem parte des-
se modelo que transformou em monocultura o rico cerrado brasileiro.
Também prejudica a vida de muitos agricultores familiares e outros, que
vivem endividados junto às multinacionais produtoras de sementes.

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Saberes tradicionais e a segurança alimentar 61

Kinupp (2007) é um dos maiores entusiastas da introdução de plantas


ruderais como fonte complementar de alimentação e exalta seu poder
nutricional que muitas vezes é superior às hortaliças a que estamos acos-
tumados a consumir.
Ainda sobre o potencial dessas plantas ruderais, também conhecidas
como daninhas, Rapoport et al. (2009) lembra que a aveia era original-
mente uma erva daninha de campos de trigo. Tornou-se tão abundante
que, finalmente, o homem percebeu que, em vez de excluí-la, era melhor
cultivá-la. Muitas espécies cultivadas, em algum momento e lugar, eram
ervas daninhas. Exemplos incluem o centeio, chicória, rabanete, nabo, es-
pinafre, beterraba, alho-poró, alface e outros vegetais. Molina-Martínez
(2000) conclui que a presença dessas ervas daninhas úteis em uma cultura
pode ser uma vantagem para o agricultor, porque o seu uso não requer in-
vestimento financeiro e pode, em vez disso, um gerar renda em dinheiro.
Vandana Shiva, famosa ativista ambiental indiana, gosta de afirmar
que a primeira violência contra um saber local é não o considerar um
saber e a invisibilidade é a primeira razão para qual os sistemas de saber
local entram em colapso. Ou seja, muitos saberes tradicionais relaciona-
dos ao uso alimentício da vegetação nativa e exótica introduzida no pas-
sado também vêm se perdendo. Muito se deve ao preconceito com esses
alimentos considerados inferiores e também à resistência à incorporação
de novos pratos. Devemos experimentar novos sabores e novas receitas
além do feijão com arroz e pão com manteiga.
O empobrecimento da variedade de alimentos foi agravado pela im-
posição dos mercados e vem gerando uma homogeneização das dietas
mundiais. A situação é alarmante se pararmos para pensar na quantidade
de comida industrializada a que estamos expostos e que consumimos.
Os grãos refinados e os alimentos com eles processados estão nos limites
da ciência reducionista quando aplicados a algo tão complexo como os
alimentos (Pollan, 2008). É muito comum lermos nas embalagens dos
produtos nas prateleiras dos mercados os seguintes constituintes “enri-
quecido com vitamina X, Y, Z.”, “enriquecido com ferro e ácido fólico”,
“rico em fibras”. Alguns experimentos lúdicos realizados com crianças
mostraram que elas não conhecem uma berinjela, uma mandioca, uma
couve-flor e, por mais incrível e triste que pareça, muitas só reconhe-
ceram uma batata quando apresentada em um pacote azul plástico de
batatas fritas, ainda fechado.

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62 SABERES TRADICIONAIS E LOCAIS: REFLEXÕES ETNOBIOLÓGICAS

Porém, há esperança. Pesquisas mostram que os brasileiros estão pro-


curando se alimentar melhor, e isto significa maior consumo de produtos
frescos e orgânicos. Há uma preocupação crescente com o consumo de
frutas e verduras e, desde 2008, o crescimento do mercado foi de 10%,
segundo um relatório de maio da consultoria Euromonitor (2014).
Os alimentos naturais e frescos são mais benéficos a saúde, são mais
baratos, mais equilibrados, com menos gordura e açúcar. Há anos que os
nutricionistas sabem que uma dieta rica em grãos integrais reduz o risco
de diabetes, doenças do coração e câncer. A fibra, o ácido fólico e outras
vitaminas não agem sozinhas, e sim em uma sinergia (Pollan, 2008). O
envelhecimento de nossa população, as altas taxas de diabetes, doenças
cardíacas e obesidade – mais de 50% estão acima do peso, segundo o
“estudo do Impacto Global de doenças” publicado em maio (Gloyd, 2014)
– têm levado nossa população a buscar opções mais saudáveis.
Plantas cultivadas organicamente contêm mais compostos secundá-
rios – produzidos para se defenderem de pragas e doenças –, muitos deles
com importantes efeitos antioxidantes e anti-inflamatórios. Pesquisado-
res descobriram que cruzamentos feitos para melhorar as variedades de
trigo nos últimos 130 anos reduziram os níveis de ferro em 18% e os de
zinco e selênio, praticamente em um terço. O avanço da agricultura in-
dustrial teve um preço: produzir alimentos com muito mais calorias por
hectare e menos valor nutritivo que antes; é a quantidade em detrimento
da qualidade (Pollan, 2008).
Ainda sobre os alimentos orgânicos, houve um avanço de 20%, em
2013, na produção destes em comparação com o ano anterior. São 7.000
produtores e mais de 10 mil unidades de produção orgânica em funciona-
mento no país, segundo o Ministério da Agricultura. O Brasil ainda com-
pra orgânicos de 2.000 unidades de países da América do Sul, do Norte,
Europa, Ásia e Oceania (MAPA, 2014). Mesmo com um maior incentivo
de políticas públicas do governo na produção orgânica e agroecológica,
muitas vezes o produtor não tem condições de escoar sua safra.
É clara a debilidade do apoio governamental ao cultivo das hortaliças e
em relação a culturas de soja, milho, cana-de-açúcar, dentre outras. Com-
bater altos preços das hortaliças, aumentar decisivamente seu consumo,
usá-las amplamente na luta contra desnutrição dos brasileiros são desafios
que os sucessivos governos não enfrentaram para valer. Os produtores

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queixam-se de que o governo ainda não se deu conta de que as hortaliças


produzem bem em áreas pequenas e em curto espaço de tempo.
Maior produtividade não significa, necessariamente, desmatar novas
áreas, mas sim cuidar melhor da terra e controlar os desperdícios, já que
muito do que é produzido é desperdiçado ou acaba sendo usado como ali-
mento para animais. Precisamos de qualidade, e não de quantidade. Não
adianta batermos recordes na produção se ela está carregada de agrotóxicos.
Precisamos nos atentar para outra questão. A falta de estudos da
nossa biodiversidade no que tange às plantas alimentícias gera um
ciclo vicioso. Se as plantas são pouco conhecidas, serão pouco utiliza-
das; se são pouco utilizadas, serão pouco produzidas; e, dessa forma,
não gera renda, não diversifica os cardápios, nem amplia a diversidade
de alimentos. É necessário quebrar este ciclo em que a falta de produ-
ção impede a criação da demanda.
Mais do que um simples acervo de sementes locais, bancos de germo-
plasma podem representar a construção da soberania alimentar da comu-
nidade, com vistas também à comercialização dessas espécies, que, por
meio da identificação, seleção e multiplicação de variedades tradicionais,
amplia as possibilidades e resguarda o etnoconhecimento e a biota local.6
Semente local é também denominada semente crioula, na lógica da adap-
tação a ambientes específicos, práticas de manejo e costumes. Essa lógica
se choca frontalmente com as políticas de distribuição de sementes base-
adas na disseminação de uma ou poucas variedades comerciais. O tema é
de tamanha relevância que a Comissão de Agricultura, Pecuária, Abaste-
cimento e Desenvolvimento Rural aprovou projeto de lei que cria a Políti-
ca Nacional de Incentivo à Formação de Bancos Comunitários de Semen-
tes e Mudas de Variedades e Cultivares Locais, Tradicionais ou Crioulos

6
O quilombo André Lopes, no Vale do Ribeira (SP), está chamando a atenção de diversos
pesquisadores para as suas roças. São mais de 350 anos de cultivo e, há dois anos, a Fun-
dação Instituto de Terras (Itesp), entidade vinculada à Secretaria da Justiça e Defesa da
Cidadania do Estado de São Paulo, percebeu a riqueza das plantações de feijão, arroz e
milho da comunidade. As roças, que são utilizadas para a subsistência das famílias, pos-
suem alguns tipos de sementes que surgiram lá e não são conhecidas em outros lugares.

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(PL 6176/13),7 que visa beneficiar aqueles que multiplicam sementes ou


mudas para consumo próprio, distribuição, troca e comercialização.8

Segurança alimentar

A alimentação adequada é um direito de todos e a segurança alimentar


está relacionada ao acesso seguro, suficiente e constante de alimentos para
a dieta humana (Maxwell e Smith, 1992). Esta segurança não pode com-
prometer o acesso a outras necessidades essenciais, e deve ser baseada em
práticas alimentares que favoreçam a saúde, respeitem a diversidade cultu-
ral, ambiental, econômica e sejam socialmente sustentáveis (Brasil, 2006).
Após décadas achando que a Revolução Verde e a industrialização dos
alimentos (plantas e animais) iriam resolver os problemas enumerados,
no ensaio sobre o princípio da população malthusiano, e que o sistema
alimentar, calcado em imensas redes de produção e distribuição que mo-
vimentam milhões de toneladas de alimentos para milhões de consumi-
dores, seria definidamente a solução, foi admitida a lacuna crescente en-
tre o sistema alimentar atual e os bilhões de pessoas para os quais ela foi
aparentemente criada para servir.
Até o fim do século XX, o sistema alimentar moderno era celebrado
como um trunfo da humanidade. Produzíamos mais carne, mais frutas,
mais grãos, mais hortaliças do que antes, e mais baratos do que nunca.
Mesmo com reclamações do uso indiscriminado de insumos químicos,
ou da exploração de imigrantes, ou da falta de sabor desses alimentos,
a maioria agradeceu os baixos preços e a abundância que os libertou da
fome e tornou o dia a dia mais prático.
No entanto, as mesmas cadeias de abastecimento que disponibilizam
hortifrútis e carnes baratas também criaram oportunidades perfeitas
para surtos de Escherichia coli e Salmonella e variedades de gripe aviá-
ria que podem gerar uma nova pandemia global. E, apesar de toda essa

7
Projeto de Lei que institui a Política Nacional de Incentivo à Formação de Bancos Comuni-
tários de Sementes e Mudas de Variedades e Cultivares Locais, Tradicionais ou Crioulos.
8
A proposta, que cria a Política Nacional de Incentivo à Formação de Bancos Comunitários
de Sementes e Mudas de Variedades e Cultivares Locais, Tradicionais ou Crioulos, agora
será analisada pelas comissões de Meio Ambiente; e de Constituição e Justiça.

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produtividade milagrosa, quase um bilhão de pessoas continuam com


insegurança alimentar, ou seja, falta de disponibilidade e de acesso aos
alimentos (Roberts, 2009). Além disso, a degradação do meio ambiente
a esse tipo de produção não deixa claro como conseguiremos alimentar
as 10 bilhões de pessoas esperadas para meados deste século e como os
níveis atuais de produção poderão ser mantidos.
A questão da segurança alimentar tem sido uma discussão recorren-
te em diversas nações. Em 2000, foram estabelecidos oito Objetivos de
Desenvolvimento do Milênio (ODM) a serem alcançados até 2015 pelos
países signatários durante a Declaração do Milênio das Nações Unidas.
O primeiro desses objetivos foi acabar com a pobreza extrema e a fome
(MDG, 2010). O governo federal brasileiro criou, em 2003, o Programa
Fome Zero, que visa ampliar o acesso à alimentação adequada para popu-
lações de baixa renda e fortalecer a agricultura familiar (CONSEA, 2009).
E em 15 de setembro de 2006, nosso governo cria o Sistema Nacional de
Segurança Alimentar e Nutricional, Lei 11.346, a fim de assegurar o direi-
to humano à alimentação (Brasil, 2006).
O ato de comer, que é um dos alicerces de nossas tradições sociais,
familiares e rituais, regrediu a um ato de irritação, pressa e culpa. O pró-
prio significado do alimento e alimentação está sendo transformado. An-
tes era um elemento central para a manutenção da estrutura social e da
tradição, e hoje está sendo extorquido pela cultura alimentar globalizada,
na qual o custo e a conveniência são dominantes e a refeição social tor-
nou-se obsoleta.
Boa parte do mundo em desenvolvimento ainda está se deparando
com grandes desafios em termos de segurança alimentar. Em muitos ca-
sos não há estradas e ferrovias, depósitos e infra-estrutura para distribuir
alimentos a todos consumidores que deles precisam.
Hoje é mais barato e fácil obter alimentos do que em qualquer época
da história da humanidade. Porém, um sétimo da população (900 mi-
lhões de pessoas) está desnutrida; mais de um bilhão sofre de deficiências
crônicas de micronutrientes; e quase metade da população mundial está
obesa. Essa estatística é a prova de que a economia alimentar moderna é,
na verdade, um fracasso. A insegurança alimentar só será rompida quan-
do tiverem solucionados os problemas políticos e econômicos dos países
(Roberts, 2009).

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Até hoje, somente Cuba fez em esforço sério para remodelar sua eco-
nomia alimentar de acordo com um modelo sustentável. No início da dé-
cada de 1990, o petróleo e insumos agrícolas que Moscou fornecia em tro-
ca de açúcar e frutas chegaram ao fim. Cuba viu-se tentando alimentar
10 milhões de habitantes, tratores ficaram ociosos, os campos repletos de
ervas daninhas, e o gado, que se alimentava de grãos importados, voltou
ao pasto. O desespero levou a desindustrializar seu modelo alimentar,
tornando-o menos mecanizado, menos dependente de insumos químicos
e centrado em alimentos voltados ao consumo local. As fazendas esta-
tais foram divididas em cooperativas e trabalhadores foram realocados
de empregos urbanos para trabalhar na agricultura. Nesse ínterim, as
universidades e centros de pesquisa descobriam meios de substituir os
insumos agrícolas industriais e adaptaram inúmeros métodos de agricul-
tura agroecológica. E, embora ainda careçam de carne e laticínios, o país
lidera em desenvolvimento nas categorias relacionadas a nutrição e segu-
rança alimentar (Roberts, 2009).

Considerações finais

Nos últimos trinta anos, a busca por um novo modelo de desenvolvimen-


to tomou a forma de um intenso debate sobre o potencial de integração
dos objetivos de desenvolvimento social, econômico e ecológico, dentro
de um contexto geral de planejamento. A abordagem do desenvolvimen-
to local ganhou destaque, nas últimas décadas, frente aos desafios im-
postos pela nova dinâmica econômica. Ou seja, reestruturação produ-
tiva, em que propostas administradas pelos governos locais e regionais
procuram assegurar o desenvolvimento econômico de cidades e regiões.
Assim, atualmente é quase unânime entender que tal reducionismo não
pode ser aplicado sem que haja reflexão, sem se considerar a melhoria da
qualidade de vida das pessoas, a segurança alimentar e a conservação do
meio ambiente.
Os recursos genéticos passaram a ser vistos como matéria-prima para
o melhoramento genético realizado por instituições de pesquisa. O valor
econômico e utilitário desses recursos subestimou o valor cultural e iden-
titário que tem para os agricultores e as comunidades locais. Precisamos
reconhecer que o que aconteceu com nosso sistema alimentar e conosco

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Saberes tradicionais e a segurança alimentar 67

não foi um processo aleatório e inevitável. As transformações deste siste-


ma foram intencionais, impulsionadas e moldadas pela a poderosa força de
mercado, produto de bilhões de decisões humanas. E, se muitas dessas deci-
sões são tomadas em contextos além de nosso controle, muitas são tomadas
bem perto, em nossa região, nossa comunidade, e até em nossa cozinha.
Diante do exposto no texto, é possível reconhecer que as transforma-
ções nos modos de vida e nos hábitos alimentares em escala individual e
coletiva têm potencial de promover melhorias para o estado nutricional e
de saúde, bem como de influenciar a relação econômica entre pequenos
produtores e o consumidor final. Com base nesse reconhecimento, fo-
mentar novas formas de favorecimento da aproximação desses dois seg-
mentos sociais tem se mostrado de significativo interesse governamental.
Dentre os instrumentos que se apresentam como possíveis alternati-
vas de ação, a etnobotânica mostra-se capaz de exercer papel fundamen-
tal na definição de perfis seletivos de alimentos locais e regionais que
fazem parte do sistema de conhecimento tradicional regional. Esses per-
fis podem promover a visibilidade do etnoconhecimento sobre o acervo
vegetal local, permitindo a emergência de novas perspectivas socioam-
bientais aos produtores, em uma reconfiguração do processo produtivo
baseado na ampliação do reconhecimento desse etnoconhecimento.
A premissa metodológica da etnobotânica é registrar quais as espécies
são consumidas por cada grupo, em um determinado contexto cultural e
geográfico, como conservam as plantas em seu próprio local e como ave-
riguam seus sistemas de manejo específico. Estes dados podem auxiliar
em programas de conservação de recursos e seu consequente uso susten-
tável. Também aumentam a diversidade de alimentos que consumimos,
lembrando que a base alimentar do mundo usa poucas espécies e há um
risco iminente, caso ocorra alguma doença ou catástrofe que pode com-
prometer a sobrevivência humana.
Com base nesse saber reconhecido, ações para o incentivo e favore-
cimento de maior diversificação do uso de plantas alimentícias não só
despontam como uma alternativa econômica para o produtor rural, mas
também ampliam os conhecimentos específicos sobre tais vegetais, sur-
gindo como novos pratos e sabores a serem apresentados e oferecidos em
restaurantes e hotéis, dando ainda mais reconhecimento e valorização
aos produtos locais.

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68 SABERES TRADICIONAIS E LOCAIS: REFLEXÕES ETNOBIOLÓGICAS

A relevância sobre estudos de etnobotânica é visível, pois além de


possibilitar a valorização do conhecimento local, busca encontrar estra-
tégias que permitam colocar em diálogo os saberes científicos disciplina-
res com os saberes locais culturalmente mantidos. A visibilidade de todo
esse acervo tem muito a contribuir para o desenvolvimento de alternati-
vas sustentáveis de uso e gerenciamento de recursos naturais. Contudo,
para a concretização de tais medidas é preciso estabelecer uma relação de
confiança, reciprocidade e respeito mútuo no processo de pesquisa. Há
que se valorizar a aproximação, a abordagem ética e a participação como
parte fundamental para o surgimento de uma parceria que pode render
muitos frutos, tanto para a ciência como para as populações produtoras
envolvidas.
A diversidade de plantas, dentre elas as utilizadas para a alimentação,
deveria ser protegida para garantir segurança alimentar da humanidade.
Dessa forma, a investigação dos modos de vida e os padrões alimentares
podem nos ajudar a elucidar riscos, benefícios e tendências para o futuro
da segurança alimentar.

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