Personagens Folclóricos, Deuses, Fantasmas e o Sobrenatural Na Cultura Japonesa
Personagens Folclóricos, Deuses, Fantasmas e o Sobrenatural Na Cultura Japonesa
Personagens Folclóricos, Deuses, Fantasmas e o Sobrenatural Na Cultura Japonesa
v. 1
São Paulo
2014
FERREIRA, Cláudio Augusto. Personagens folclóricos, deuses, fantasmas e
História Extraordinária de Yotsuya em Tôkaidô: o sobrenatural na cultura
japonesa. Dissertação apresentada ao Departamento de Letras Orientais da
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo
para obtenção do título de Mestre em Cultura Japonesa.
Aprovado em:
Banca Examinadora
― A Deus;
― A meu núcleo familar;
― A Grace Nakata, amiga e bibliotecária da Fundação Japão, cuja inestimável ajuda
acompanha este trabalho desde seus momentos incipientes, antes mesmo que se tornasse um
projeto de pesquisa;
― À professora Lica Hashimoto, que não só me apresentou em suas aulas às
narrativas hyakumonogatari, mas também pavimentou o caminho para que este trabalho fosse
produzido;
― Aos professores Wataru Kikuchi e Madalena Cordaro, que amavelmente
prepararam as cartas de recomendação que me permitiram ser selecionado para o Programa do
Instituto de Língua Japonesa da Fundação Japão em Kansai;
― À Fundação Japão e seus funcionários, em especial àqueles que me entrevistaram
durante a candidatura ao Programa de Língua Japonesa para Especialistas nas Áreas Cultural
e Acadêmica;
― Aos professores do Instituto de Língua Japonesa da Fundação Japão em Kansai,
especialmente a Abe Hideo, Abe Yûko, Hayashi Toshio, Itô Atsumi, Makino Akiko,
Miyamoto Yôko, Nohata Rika e Toda Toshiko. Agradeço em especial a Nakagome Tatsuya,
meu professor-guia, por ter autorizado e incentivado minhas viagens de pesquisa.
― Aos funcionários dos Institutos de Língua Japonesa da Fundação Japão de Kansai e
de Kita-Urawa por sua gentileza, polidez, bom-humor e dedicação. Agradeço especialmente a
Fujimura Syuji e Taniguchi Naoko, encarregados a cuidar de nosso grupo (CA-6);
― A Egusa Masanobu por ser o primeiro a me apresentar à obra de Mizuki Shigeru;
― Às bibliotecárias da Kansai Kokusai Centâ Toshokan, Hamaguchi Miyuki e
Hatakenaka Tomoko. Este trabalho tem um débito incomensurável com a dedicação de ambas,
que sempre me recebiam com uma nova sugestão de livros sobre youkais ou fantasmas toda
vez que eu entrava na biblioteca. Sonho um dia voltar a pesquisar com o suporte delas.
― Aos amigos japoneses e aos das mais diversas nacionalidades que comigo
conviveram durante os seis meses em que morei no Japão. Vocês me deram a oportunidade de
compreender melhor o mundo e fizeram me sentir em família mesmo estando longe de casa.
― À Comissão Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Língua, Literatura e
Cultura Japonesa do Departamento de Letras Orientais que me agraciou com uma bolsa de
estudos (CAPES-Demanda Social) sem a qual eu dificilmente teria condições de dar
continuidade ao mestrado.
“Nem todas as histórias de fantasmas japonesas são por natureza assustadoras ou
mesmo violentas. A maioria delas trata as manifestações fantasmagóricas como uma parte da
ordem natural das coisas”.
― WEINBERG, 2009, p. xii, tradução nossa
“Assim como existe o arquétipo da mulher como objeto do eterno amor do homem,
deve haver um arquétipo daquela como objeto do eterno medo deste, representando, talvez, a
sombra de suas próprias más ações (dele)”.
― FUMIKO, 1983, p. 57, tradução nossa
RESUMO
sobrenatural no Japão, que não se encontra somente nos deuses xintoístas (kami), nas
divindades budistas (bosatsu), nos fantasmas (yûrei), nas criaturas folclóricas (yôkai) e nos
fenômenos sobrenaturais produzidos por estes, mas também nos monges, xamãs, adivinhos e
nas tentativas de controlar magicamente o rumo das coisas – amuletos, oráculos, festivais,
rituais e oferendas.
escrita por Tsuruya Nanboku IV, a obra fantástica mais adaptada do Japão. Através dela,
discutir as mudanças nos papéis desempenhados pelos gêneros e as imbricadas relações entre
fato, ficção, religião e folclore. Além disso, apresentamos em detalhes o icônico personagem
de Oiwa e também exemplos de como são executados efeitos especiais teatrais conhecidos em
From the collation and analysis of various pictorial works ( paintings, prints and
illustrations from Japan ) and narratives ( Japanese books, short stories, plays, films,
animations and comics ) , this study aims to present the variety and the syncretism of the
supernatural in Japan, which is not only in the Shinto gods ( kami ), in the Buddhist deities
produced by them, but also in the monks, shamans, diviners and in attempts to magically
control the direction of things – amulets, oracles, festivals, rituals and offerings.
The first chapter presents a brief history of research on yokai and also seeks to define
them and present their own characteristics. The study goes on also defining and featuring the
Japanese ghosts.
In the second chapter, we treat of Tôkaido Yotsuya Kaidan (1825), written by Tsuruya
Nanboku IV, the most adapted fantastique work of Japan. Through it, we see the supernatural
horror created from a realistic-naturalistic base and we try to discuss the changes in roles
played by genders and the intertwined relations between fact, fiction, religion and folklore.
Furthermore, we present in detail the iconic character of Oiwa and also examples of how
study of a foreign culture and with the presentation of issues raised by the course of the
research.
INTRODUÇÃO ....................................................................................................................... 10
INTRODUÇÃO
Já nos tempos de criança existia em mim um grande fascínio pelo Japão e pela cultura
japonesa. O interesse surgiu naturalmente, assistindo às séries que à época eram transmitidas
pela televisão, como Ultraseven, Robô Gigante, Speed Racer ou A Princesa e o Cavaleiro.
Meu contato com o cinema japonês foi tardio. Só veio a acontecer no início dos anos
1990, depois da popularização dos preços dos videocassetes e, mesmo assim, foi bastante
restrito, pois raros eram os filmes japoneses distribuídos em VHS. Assim, minha ligação com
a cultura japonesa dependeu por muitos anos da programação televisiva brasileira, em que a
períodos nos quais se exibia um grande número de séries japonesas se seguiam momentos em
que nenhuma obra inédita do Japão era apresentada.
Mesmo que na infância e na adolescência eu ainda não dispusesse dos recursos
teóricos de análise narrativa aprendidos durante minha graduação no Bacharelado em Cinema
e Vídeo da Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (USP),
havia uma percepção intuitiva de que as produções japonesas a que eu assistia eram
essencialmente diferentes das que provinham dos Estados Unidos ou da Europa.
Foi tentando entender esta diferença que, no ano 2000, me matriculei em uma matéria
optativa do curso de Cinema chamada “Pesquisa em Cinema e Vídeo”, na qual comecei a me
dedicar à análise de animações, séries e filmes japoneses. Nesta época, já era possível
encontrar uma quantidade maior de obras audiovisuais nipônicas, legendadas ou não, em
locadoras especializadas ou na biblioteca da Fundação Japão. Além disso, há muito que eu
passara a gravar os animes exibidos nos canais por assinatura e a frequentar as mostras de
cinema que continham obras japonesas na programação.
Logo no início daquele primeiro empreendimento na área da pesquisa, encontrei e li
dois livros decisivamente importantes para a concepção do projeto de mestrado: Archetypes in
Japanese Film - The Sociopolitical and Religious Significance of the Principal Heroes and
Heroines (1989), de Gregory Barrett, e Pour un Observateur Lointain - Forme et Signification
dans le Cinéma Japonais (1982), de Noël Burch.
No primeiro, o autor elenca alguns tipos de heróis e heroínas que encontramos de
forma recorrente no cinema japonês (BARRETT, 1989, p. 13). Como parte desta lista, Barrett
cita o vengeful spirit (espírito vingador, ou seja, motivado pelo desejo de vingança), a all-
suffering female (mulher cheia de sofrimentos, que é capaz de suportar a tudo sem esmorecer)
e o weak passive man (homem fraco e passivo, que se deixa esmagar pelos ditames da
11
Já que, em grande parte das obras canônicas do Japão, fantasmas, deuses e monstros
convivem com a humanidade, surgiu a vontade de pesquisar nas narrativas japonesas a
presença e o uso de personagens e situações sobrenaturais, bem como a representação e o
desenvolvimento destes através da História. E como narrativas podem ser (e frequentemente
são) transpostas de uma forma de arte para outra5, os objetos deste estudo poderiam
compreender desde obras literárias e peças de teatro até pinturas, esculturas, filmes e desenhos
animados.
A importância de um projeto de pesquisa amplo e exaustivo que analise narrativas6
japonesas de cunho sobrenatural reside também no fato de que a produção acadêmica sobre
literatura7 fantástica geralmente restringe seus objetos às literaturas de origem europeia, norte-
americana e latino-americana.
É verdade que desde a publicação do Introduction à la Littérature Fantastique (1970),
de Tzvetan Todorov, aos poucos a pesquisa sobre literatura ou cinema fantásticos vem
ganhando interesse e espaço nos meios acadêmicos. Ainda assim, talvez pelo obstáculo
linguístico, são poucas as análises do insólito nas narrativas que levam em consideração as
literaturas orientais; quando muito, fala-se de As Mil e uma Noites, e assim as inúmeras
narrativas asiáticas são esquecidas.
Esta lacuna não é descontinuada mesmo por literatos importantes como Italo Calvino.
Em sua coletânea Racconti Fantastici dell’Ottocento (1983), o famoso escritor italiano não
apresenta nenhum conto asiático. O mesmo se dá com a coletânea do argentino Alberto
Manguel intitulada Contos de Horror do Século XIX (2005), onde apenas contos europeus e
estadunidenses estão incluídos.
_____________________
5
“Há em inglês uns poucos livros sobre o tema da narrativa em geral, embora nas bibliotecas transbordem
estudos de gêneros específicos – romances, épico, contos, lendas, fábulas, e assim por diante. Muito além da
análise das diferenças genéricas reside a determinação do que a narrativa é em si mesma. Os críticos literários
tendem a pensar exclusivamente no meio verbal, ainda que eles consumam histórias cotidianamente através de
filmes, quadrinhos, pinturas, esculturas, movimentos de dança e música. Comum a estes artifícios deve haver
algum substrato; de outra forma não poderíamos explicar a transformação de ‘A Bela Adormecida’ em filme,
balé ou num show de mímicas” (CHATMAN, 1978, p. 9, tradução nossa, grifo do autor). “Assim, toda espécie
de mensagem narrativa, qualquer que seja o procedimento de expressão que empregue, se manifesta da mesma
maneira neste mesmo nível. Ela deve contar e é suficiente que conte uma história. A estrutura desta é
independente das técnicas que toma a cargo. Ela se deixa transpor de uma a outra sem perder nada de suas
propriedades essenciais: o assunto de um conto pode servir de argumento para um balé, o de um romance pode
ser transposto ao palco ou à tela, pode-se contar um filme àqueles que não o viram. São as palavras que nós
lemos, as imagens que vemos, os gestos que deciframos, mas através deles, é a história que seguimos; e esta
pode ser a mesma história” (BREMOND, 1964, p. 4, tradução nossa, grifo nosso).
6
O termo narrativa é empregado neste trabalho em seu sentido mais amplo, incluindo narrativas orais, textuais,
visuais, performáticas, musicais etc.
7
Neste trabalho, o termo literatura é também empregado num sentido amplo, designando não só o cânone
literário, mas também a tradição oral e os textos teatrais.
13
São escassas as obras em português que se preocupam com o fantástico nas artes ou na
cultura japonesas. No Brasil, à exceção da tese de doutorado8 e dos artigos em revistas
especializadas escritos pela professora Luiza Nana Yoshida, foi por bastante tempo incomum
encontrar qualquer material a esse respeito9.
Dessa forma, com o objetivo de produzir em português uma obra extensa e cuidadosa
sobre o sobrenatural na cultura japonesa, coletando e sintetizando os dados encontrados em
várias fontes, adentrei o curso de pós-graduação do Departamento de Letras Orientais da
Universidade de São Paulo em julho de 2010, para dar os primeiros passos na confecção deste
projeto-para-a-vida-toda que certamente se estenderá para o Doutorado e o Pós-Doutorado.
Assim, a presente dissertação de mestrado procura investigar o sobrenatural10 e sua
representação nas artes japonesas, sejam estas narrativas ou visuais. Este trabalho de análise e
pesquisa correu em quatro frentes abaixo descritas.
Num primeiro momento, procurou-se estudar como o sobrenatural é entendido e
vivenciado tradicional e historicamente pela sociedade japonesa. Para isso, analisamos a
relação sincrética entre as crenças folclóricas e as religiões dominantes do Japão. Esta análise
deu origem ao primeiro capítulo desta dissertação.
Num segundo momento, elaborou-se uma lista de obras representativas do
sobrenatural nas narrativas. Esta lista foi produzida com a ajuda de revistas e livros
_____________________
8
Narrativas Setsuwa de Konjaku Monogatarishû – A Ruptura com o Refinamento Estético das Narrativas
Clássicas da Época Heian (1994).
9
Recentemente, no entanto, o assunto parece ter interessado a alguns jovens pesquisadores, o que pode ser muito
promissor para as pesquisas nas áreas de literatura e cultura japonesas.
14
Logo a seguir, no primeiro capítulo, vamos nos dedicar a detalhar este sincrético e
amplo universo sobrenatural da forma em que é tradicionalmente compreendido pelos
japoneses.
É importante ressaltar que, neste trabalho, os termos japoneses romanizados são
escritos em itálico e sua romanização é feita respeitando-se o sistema Hepburn revisado. Por
questões de praticidade, substituiu-se o uso do mácron (diacrítico que designa as vogais
longas) pelo do acento circunflexo. Termos e nomes chineses são adaptados com o uso de
pīnyīn12 e os coreanos com o do sistema de romanização revisado pelo Ministério da Cultura
coreano.
Nomes de pessoas, lugares e personagens são romanizados e escritos com iniciais
maiúsculas e sem uso do itálico. Nomes de japoneses, coreanos e chineses são escritos à
maneira destes países, com o sobrenome antes do prenome.
_____________________
12
Pīnyīn 拼音 (literalmente, “som soletrado”): método de romanização desenvolvido e adotado pela República
Popular da China desde 1958 para ensino do mandarim padrão. É também utilizado internacionalmente para o
ensino do mandarim como segundo idioma.
16
1. O SOBRENATURAL NO JAPÃO
diz não existir ou que, se existir, (ainda) não pode ser explicado pelas leis da ciência. Se há
verdade por trás dos fenômenos sobrenaturais é irrelevante para este trabalho de pesquisa,
pois nosso objeto de estudo se prende à interpretação culturalmente estabelecida que se faz
destes fenômenos e à representação de seres ou situações sobrenaturais nas artes visuais e nas
artes narrativas japonesas.
Segundo Lucien Lévy-Bruhl (1931), os povos arcaicos não possuíam noção de
sobrenatural: não faziam diferença entre a natureza de uma comunicação entre os homens e
uma comunicação com os espíritos, por exemplo. Se isto é verdade, o sobrenatural visto como
“fora das leis naturais” seria então, de certa maneira, uma criação da modernidade, a partir do
vasto desenvolvimento da ciência durante a Renascença19 (séc. XIV-XVI).
No entanto, uma influência decisiva do racionalismo científico ocidental somente virá
a atingir o Japão durante o período Meiji20. Hoje em dia, o sobrenatural pode vir a ser
entendido como imaginário, fantasioso, mas no Japão do período Edo21, natural e sobrenatural
ainda eram uma coisa só – natural e real (BARROW, 1973). Nas zonas rurais, essa unidade
entre natural e sobrenatural provavelmente sobreviveu até a derrota do Japão na Segunda
Guerra Mundial, com a imposição americana de uma reforma educacional nos moldes da
democracia cientificista ocidental.
Isto não quer dizer que não existissem, antes do período Meiji, tentativas racionais de
explicar os eventos extraordinários, mas que estas explicações eram predominantemente
filosóficas e não necessariamente científicas. Citamos como exemplo o intelectual e ensaísta
Yamaoka Genrin 山岡元隣 (1631-1672), que na obra intitulada Kokin Hyakumonogatari
Hyôban22 (1686), tenta explicar os fenômenos hoje ditos sobrenaturais através da lógica
_____________________
19
Desse modo, não causa espanto o fato de o termo sobrenatural ter se originado no século XV (HOUAISS,
2001), a partir do latim medieval supernātūrālis. O Online Etimology Dictionary diz que o termo se originou
como adjetivo e com um sentido mais religioso, o de “dado por Deus, divino”. O uso como substantivo só se
deu em 1580 e a associação com fantasmas predomina desde 1799 (HARPER, 2013).
20
Meiji-jidai 明治時代: nome dado ao período que vai de 1868 a 1912 e coincide com o reinado do imperador
vigente, Meiji-tennô 明治天皇 (imperador Meiji). Caracterizado por grandes transformações na estrutura
social do Japão, que depois de um período de quase completo isolamento (1633-1853), se abriu amplamente
para o Ocidente.
21
Edo-jidai 江戸時代: é um período histórico japonês que vai de 1603 a 1868. O nome vem do fato de a sede do
governo xogunal ter se instalado em Edo 江戸(a atual Tóquio 東京), afastando-se da capital imperial, Heian
平安 (a atual Quioto 京都). Caracterizado como um período de paz e estabilidade sob o governo unificado
pelo clã Tokugawa, é também conhecido pelo nome de Tokugawa-jidai 徳川時代.
22
O Kokin Hyakumonogatari Hyôban 古今百物語評判 (Cem Narrativas Notáveis do Passado e do Presente)
foi compilado e impresso quatorze anos após a morte do autor. O termo hyakumonogatari百物語 (literalmente,
“cem narrativas”) se refere a conjuntos de narrativas de teor sobrenatural ou simplesmente extraordinário e
será detalhado mais adiante (pp. 64-5).
18
taoísta do yīn-yáng23. Genrin diz que tudo o que é perceptível é constituído a partir destas
duas forças e sincretiza conceitos do xintoísmo e do budismo com a filosofia do taoísmo
quando afirma que o kami24 é manifestação do yáng e o oni25 é manifestação do yīn. Para
Genrin, oni são as almas das pessoas más: ninguém as cultua e elas não têm para onde ir, por
isso, permanecem no ar e causam vários problemas aos humanos (REIDER, 2002).
Uma investigação mais metódica do sobrenatural se inicia durante o período Meiji
com o filósofo budista e educador Inoue Enryô 井上円了(1858-1919). Em 1886, ele institui o
Fushigi Kenkyûkai 不思議研究会 (Grupo de Estudo dos Mistérios) e se dedica a recensear os
fenômenos irracionais do Japão com o intuito derrogatório de explicá-los cientificamente
como crendices ou simples superstições.
Um ano depois, Inoue funda a Tetsugakukan 哲学館 (Academia de Filosofia), que
mais tarde se tornará a Tôyô Daigaku 東洋大学 (Universidade de Tôyô). Uma das cadeiras
estabelecidas por ele foi uma disciplina para estudo do misterioso, extraordinário ou
sobrenatural que ele batizou de Yôkaigaku 妖怪学 (literalmente, “Youkailogia”, ou seja,
Estudo dos Youkais). Inoue se utiliza do termo yôkai26 para designar todos os fenômenos
sobrenaturais registrados no Japão (FOSTER, 2009). Para ele, o termo engloba não só os
entes sobrenaturais folclóricos, mas também os yûrei27, as ilusões, os sonhos, os eventos
paranormais e certos fenômenos naturais.
Mas Inoue não é o único a incluir os fantasmas entre os youkais. Observemos a
_____________________
23
Yīn-yáng 陰陽 (yin-yang): termo que caracteriza a dualidade de tudo que existe, constituído a partir da junção
de dois conceitos opostos e complementares do taoísmo: as forças yīn e yáng. Em japonês, o termo admite as
pronúncias in’yô e onmyô.
24
Kami 神 (deus): são as divindades reverenciadas pela religião xintoísta, que incluem os deuses mitológicos,
elementos e fenômenos da natureza e os espíritos de grandes líderes ou de antepassados.
25
Oni 鬼 (ogro; demônio): são entes folclóricos de forma humanoide e semelhante à do ogro europeu.
Geralmente são representados com dois chifres na cabeça, pele de cor vermelha ou azul, vestindo pele de tigre
e portando um tipo de clava chamado kanabô 金棒 (literalmente, “haste de ouro”). O termo é usado também
para se referir aos demônios do jigoku 地獄 (literalmente, “prisão subterrânea”), o inferno budista. Yamaoka
Genrin se utiliza do termo de forma diferente, como sinônimo de “maus espíritos”.
26
Yôkai 妖怪 (ente folclórico): literalmente, “monstro estranho” – se entendermos monstro como “qualquer ser
ou coisa contrária à natureza” (HOUAISS, 2001) e estranho como “misterioso, enigmático ou que levanta
suspeitas” (HOUAISS, 2001). Os yôkai são os entes sobrenaturais da tradição folclórica japonesa, ou seja, os
personagens folclóricos do Japão. No mangá Inu-Yasha 犬夜叉 (cão-demônio), de Takahashi Rumiko 高橋
留美子, traduzido pela Editora JBC a partir de 2002, o termo é aportuguesado para youkai. Visto que há um
antecedente, decidimos seguir o exemplo do tradutor Arnaldo Massato Oka e utilizá-lo, já que, mesmo não-
dicionarizado, é palavra conhecida entre os aficionados do anime e do mangá.
27
Yûrei 幽霊 (fantasma): termo japonês utilizado para caracterizar fantasmas, espectros ou aparições. Neste
trabalho é utilizado para designar os fantasmas japoneses, em especial quando estes têm características que os
diferem dos demais.
19
Uma possível tradução para o texto que aparece na figura 1 se encontra abaixo:
Youkai:
①Yûrei ⇒ Aparições (hitodama, bôrei, shiryô, onryô de pessoas)29 que se manifestam
neste mundo.
②Kaijû ⇒ Youkai de animais, insetos etc. que possuem misteriosos poderes mágicos.
③Henge ⇒ Seres que podem se transformar em outras coisas, diferentes.
④ Chôshizen ⇒ Fenômenos misteriosos e inescrutáveis (MIZUKI, 2004, tradução
nossa).
_____________________
28
Mizuki Shigeru 水木しげる (1922-): famoso manga-ka 漫画家 (escritor e ilustrador de mangás) e estudioso
dos youkais. Autor da série de mangá GeGeGe no Kitarô ゲゲゲの鬼太郎 (1959-1969) e de inúmeros livros
(ilustrados) que tratam dos entes sobrenaturais folclóricos do Japão e de outras partes do mundo.
29
Estes termos serão explicados em detalhe mais adiante, quando tratarmos especificamente dos yûrei.
20
_____________________
30
Kaijû 怪獣 (monstro): o termo, sinônimo de bakemono e de kaibutsu, designa seres ameaçadores, apavorantes,
disformes ou fantásticos e, da maneira em que é entendido por Mizuki, incorpora em seu conceito a grande
maioria dos youkais. Não confundir, no entanto, com os monstros gigantes japoneses como Gojira ゴジラ
(Godzilla) e Mosura モスラ (Mothra), também designados pelo termo kaijû: eles são personagens de filmes de
ficção científica, sem origem folclórica e, portanto, não são youkais.
31
Henge 変化 (transformo) é o nome que se dá à categoria dos youkais capazes de mudar de forma. Os mais
conhecidos do folclore japonês são a kitsune 狐 (raposa) e o tanuki 狸, que podem, inclusive, assumir a forma
humana, o que frequentemente fazem.
32
Chôshizen 超自然 (sobrenatural) significa, literalmente, “além da, acima da natureza”.
33
Estas diferenças serão discutidas mais tarde ainda neste mesmo capítulo.
34
Meiji Ishin 明治維新 (Restauração Meiji): caracterizou-se por uma série de eventos que fez com que o
governo, antes efetivamente nas mãos do xogum, voltasse à família imperial. Com a Restauração, tem início o
período Meiji, no qual o Japão emergiu como nação modernizada e potência militar.
35
Nôshômushô 農商務省 (Ministério da Agricultura e Comércio).
21
Yanagita escreve na introdução a Kôtei Kinsei Kidan Zenshû36 (1903), uma antologia de
contos fantásticos:
Eu ouço que mesmo hoje no século XX, dominado pelo pensamento ocidental e pelo
misticismo da modernidade, há aqueles que se recusam a ouvir a “voz muda”, a
“música sem melodia”. Eu talvez seja apenas um lobo solitário do Oriente longínquo,
criado numa terra desolada, inspirado pela sublimidade dos espíritos e pelo sentido da
profundidade do destino. Minha esperança é ser guiado por eles e transformar meu
coração numa lagoa que reflete sua luz como um espelho. Coleção Completa de
Narrativas Estranhas dos Tempos Modernos Volume Um é a encarnação desta
esperança. Nem todas as histórias dão acesso às profundezas misteriosas, mas eu
realmente acredito que elas capturam de maneira exaustiva o pensamento de nossa
terra sobre outros mundos no início da modernidade (TAYAMA; YANAGITA37
apud HIGASHI, 2011, pp. 10-1, tradução nossa).
A yukionna de Sûshi (figura 2) tem os cabelos bem compridos, chegando à altura dos
joelhos. O rosto é sereno e o corpo está todo coberto pelo quimono branco, deixando entrever
Figura 2 – Yukionna ゆき女 (mulher da neve). Detalhe do Hyakkai Zukan 百怪図巻 (Rolo Ilustrado
dos Cem Monstros), pintado pelo artista Sawaki Sûshi 佐脇嵩之 (1707-1772), ca. 1737 (TADA;
KYÔGOKU, 2006).
23
apenas a delicada mão direita. Nas outras duas estampas (figuras 3 e 4) também: à exceção da
face, a única parte do corpo que aparece é a mão direita. A yukionna de Sekien é representada
ao lado de um campo de bambus cobertos de neve e com os cabelos esvoaçando ao vento. A
yukionna da figura 4 é disposta de forma muito semelhante à da figura 2, com a singela
diferença de que seus lábios são vermelhos.
Os pés das yukionna não aparecem em nenhuma das três estampas, o que as aproxima às
representações de fantasmas (que estudaremos na segunda parte deste mesmo capítulo). Na
figura 2, a parte inferior do quimono se desvanece na neve. Na figura 4, a mulher da neve está
nitidamente imersa na neve. Já na figura 3, a yukionna parece surgir do meio de um bambuzal
(de forma semelhante à do yûrei que deixa a lanterna na fig. 158 p. 197).
Nas representações do cinema (figuras 5 e 6) os pés nunca aparecem; e as mãos, só
raramente. Ambas têm cabelos compridos e vestem quimonos brancos de mangas longas. Mas a
mulher da neve de Kaidan Yukijorô (1968), com seu rosto branco pesadamente maquiado
24
Figura 5 – Cenas com a yukionna de Kwaidan 怪談 (Narrativas Extraordinárias), filme de 1964 dirigido por
Kobayashi Masaki 小林正樹 (1916-1996).
25
Figura 6 – Cenas com a yukionna de Kaidan Yukijorô 怪談雪女郎 (História Extraordinária da Cortesã da
Neve), filme de 1968 dirigido por Tanaka Tokuzô 田中徳三 (1920-2007).
Figura 7 – Cena com a yukionna de Yume 夢 (Sonhos), filme de 1990 dirigido por Kurosawa Akira 黒澤明
(1910-1998).
26
delineado sob luz forte, os lábios azulados, flocos de neve nos cabelos e olhos de cor inumana,
tem uma aparência mais assustadora que a de Kwaidan42 (1964). Neste, o caráter aterrador da
personagem se manifesta menos pela caracterização física da personagem do que pela
iluminação azulada com foco de luz branca ao centro.
A narrativa da yukionna de Kwaidan, com pouco mais de 35 minutos, segue
bastante à risca o conto de Lafcadio Hearn43 publicado em livro homônimo44 (1904) e
intitulado Yuki-Onna (HEARN, 1907, p. 125-32). Já a de Kaidan Yukijorô, com 79 minutos,
valeu-se da imaginação do roteirista Yahiro Fuji 八尋不二 (1904-1986) para ampliar a
história, à qual acrescentou elementos budistas e xintoístas.
A yukionna de Kurosawa (figura 7) é uma visão pessoal do autor: embora possua
características que remetem à mulher da neve folclórica (cabelos compridos, quimono branco),
ela tem a aparência de uma mulher comum. No entanto, ela insiste para que o único
sobrevivente de um grupo de quatro montanhistas se renda à neve, à tempestade – ou seja, que
se deixe levar pelo sono à morte.
Outro youkai que aparece em Tôno Monogatari é o kappa45 (figuras 8 e 9), uma
criatura anfíbia da altura de uma criança que guarda semelhança com os sapos e possui um
casco parecido com o das tartarugas. De cor verde, suas mãos e pés têm membranas e seu
rosto é semelhante ao de um macaco, embora tenha um bico no lugar da boca. O alto de sua
cabeça não tem cabelo: é achatado na forma de um pires e deve conter água para que o kappa
possa se utilizar de seus poderes e sua força sobrenaturais. Seu alimento preferido é o pepino,
razão pela qual os kappamaki46 possuem esse nome.
__________________
42
O filme Kwaidan é uma adaptação de quatro contos de Lafcadio Hearn. A primeira narrativa, Kurokami
黒髪 (Cabelos Negros), foi adaptada de The Reconciliation (A Reconciliação), conto publicado no livro
Shadowings (Sombreamentos), de 1900; a segunda, Yukionna 雪女 (Mulher da Neve), foi adaptada de Yuki-
Onna (Mulher da Neve), conto publicado no livro Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things (Narrativas
Extraordinárias: Histórias e Estudos de Coisas Estranhas), de 1904; a terceira, Miminashi Hôichi no Hanashi
耳無芳一の話 (A História de Hôichi, o Sem-Orelhas), foi adaptada de The Story of Mimi-Nashi-Hōïchi (A
História de Hôichi, o Sem-Orelhas), também retirada do livro Kwaidan; por fim, a última narrativa, Chawan
no Naka 茶碗の中 (Dentro de uma Tigela de Chá), foi adaptada de A Cup of Tea (Uma Xícara de Chá), conto
retirado de Kottō: Being Japanese Curios, With Sundry Cobwebs (Raridades: Curiosidades de Ser Japonês,
Com Vários Argumentos), livro publicado em 1903.
43
Lafcadio Hearn (1850-1904) foi um escritor de origem greco-irlandesa que se naturalizou japonês sob o nome de
Koizumi Yakumo 小泉八雲. Lafcadio sentia que, com a rápida modernização japonesa do período Meiji, era
necessário preservar as antigas histórias. Os contos que escreveu em inglês baseando-se nessas narrativas fez
não só com que estas viessem a ser conhecidas no Ocidente, mas também que, traduzidas para o japonês, se
popularizassem no próprio Japão.
44
Kwaidan: Stories and Studies of Strange Things (Narrativas Extraordinárias: Histórias e Estudos de Coisas
Estranhas), livro de Lafcadio Hearn a.k.a. Koizumi Yakumo publicado pela primeira vez em 1904.
45
Kappa 河童: literalmente, “criança do rio”.
46
Kappamaki かっぱ巻き (rolinho de kappa): sushis de forma cilíndrica enrolados com alga – nori 海苔
(literalmente, “musgo do mar”) – e recheados com pepino.
27
Figura 8 – Kawatarô 川太郎. Ilustração Figura 9 – Kappa 河童. Detalhe de uma estampa
pertencente ao Wakan Sansai Zue 和漢三才 pertencente ao 1º volume de Gazu Hyakki Yagyô
図会 (Enciclopédia Sino-Japonesa Ilustrada 画図百鬼夜行 (Parada Noturna dos Cem Demônios
das Três Forças47), enciclopédia em 105 Ilustrada), obra em 4 volumes do artista Toriyama
volumes compilada por Terajima Ryôan 寺島 Sekien 鳥 山 石 燕 (1712-1788), 1776 (FOSTER,
良安 (?-?), ca. 1713 (FOSTER, 2009). 2009).
São também conhecidas por outros nomes como kawako 川子 (criança do rio) ou
kawatarô 川太郎 (primogênito do rio). Estas criaturas habitam rios ou lagoas, mas saem à
terra frequentemente. São famosas por pregar peças inocentes, bem como por perpetrarem
ataques brutais e malevolentes – por violentar mulheres (figura 10) ou afogar pessoas e
animais (figura 11). Conta-se também que às vezes atacam com o propósito de beber o sangue
da vítima, comer o seu fígado ou arrancar sua shirikodama48 (figuras 12 e 13).
O capítulo 55 de Tôno Monogatari apresenta relatos de mulheres atacadas
sexualmente pelos kappas. A seguir, reproduzimos um trecho do mesmo:
_____________________
47
Sansai 三才 (Três Forças) refere-se aos três mundos (ou reinos): o Céu, a Terra e o Homem.
48
Shirikodama 尻子玉 ou 尻小玉 (pequena esfera das nádegas): uma esfera mística que se acredita existir dentro do
intestino. Uma hipótese para a origem da shirikodama é a de que o ânus das vítimas de afogamento se dilata
permitindo a interpretação de que algo fora retirado.
28
possuem membranas e a cabeça possui a depressão em forma de pires onde não há cabelos.
Em suas costas, parcialmente sob a vegetação, é possível discernir algo semelhante a um
casco.
No shunga50 de Kitagawa Utamaro (figura 10), uma pescadora de abalone51, seminua,
observa ao mesmo tempo horrorizada e fascinada a companheira sendo violentada em baixo
d’água por dois kappa. O da esquerda imobiliza a vítima lambendo o rosto da jovem e
aproximando-o de seu pênis ereto. O da direita, também com o pênis ereto, abre-lhe as pernas.
A garota resiste, empurrando com a mão esquerda e a perna direita a criatura que tenta
penetrar seu sexo, indicando que o ato é violento e não-consentido.
A estampa da figura 10 é a primeira das doze ilustrações eróticas contidas no livro
ilustrado Utamakura 歌まくら (Travesseiro de Poema), publicado por Tsutaya Jûzaburô 蔦谷
重三郎 (1750-1797) em 1788. A obra, formada a partir de estampas dobradas ao meio e
costuradas, apresenta, além das imagens, um prefácio e dois contos eróticos. O olhar dirigido
da ama sobre a rocha abre o volume espelhando nosso próprio olhar, estabelecendo “uma
disposição para a fantasia sexual, tornando cúmplice nosso próprio voyeurismo” (THE
BRITISH MUSEUM, 2014, tradução nossa).
Os kappa da figura 10 não têm bicos, mas possuem a depressão de forma circular
sobre suas cabeças e apresentam sobre as costas uma região endurecida (talvez uma carapaça).
O kappa da figura 11, uma representação feita quase um século mais tarde, já apresenta nas
costas um casco semelhante ao das tartarugas. A estampa de Utagawa Hiroshige III representa
pessoas que, ao observarem as cerejeiras em flor do lado do rio Sumida 隅田, vêm um de seus
amigos ser agarrado pelo pé por um kappa e tentam salvá-lo de ser afogado.
As figuras 12 e 13 têm relação com a shirikodama, uma esfera mítica que não se sabe
ao certo nem o que é nem para quê serve. O fato é que esta jóia esférica, encontrada no ânus,
está indissoluvelmente ligada ao mito do kappa.
O kappa da figura 12 guarda certa semelhança com o kawatarô da figura 8. Já o kappa
de Mizuki (figura 13), não apresenta casco, mas possui um bico semelhante ao de um pássaro.
A figura, que mostra o youkai em meio ao ato de extrair a shirikodama, deixa entrever a
violência do ato – a vítima com a cabeça em baixo d’água tendo o seu ânus remexido.
___________________
50
Shunga 春画: literalmente, “imagem da primavera”, designa uma forma japonesa de arte pictórica de conteúdo
explicitamente erótico.
51
Ama 海女: literalmente, “mulher do mar”. No Japão, a pesca de awabi 鮑 (abalone, um tipo de molusco) é uma
atividade tradicionalmente feminina. Não é de se espantar, portanto, que as pescadoras de abalone sejam tema de
shunga, pois realizam esta atividade com o corpo seminu.
Figura 10 – Estampa do artista Kitagawa Utamaro 喜多川歌麿 (ca. 1753-1806) pertencente a Utamakura 歌まくら (Travesseiro de Poema), livro ilustrado
publicado por Tsutaya Jûzaburô 蔦谷重三郎 (1750-1797). A imagem exibe dois kappa atacando sexualmente uma pescadora de abalone sob o olhar perplexo
de outra ama 海女 (mulher do mar). 25,4 x 36,8 cm, 1788. Fonte: The British Museum (Museu Britânico).
30
31
Figura 11 – Estampa da série Tôkyô Kokkei Meisho 東京滑稽名所 (Lugares Famosos e Cômicos de Tóquio)
do artista Utagawa Hiroshige III 歌川広重三代目 (ca. 1842-1894) representando pessoas tentando salvar um
amigo de ser arrastado para o rio por um kappa. 23,5 x 35,5 cm, 1883. Fonte: Artelino.
32
Figura 12 – Kappa segurando a shirikodama Figura 13 – Kappa retirando a shirikodama do ânus de uma
de uma vítima, que jaz morta no chão. vítima. Detalhe de uma ilustração de Mizuki Shigeru 水木
Ilustração retirada do livro ilustrado de し げ る pertencente à coleção em 8 volumes intitulada
Jippensha Ikku 十 返 舎 一 九 (1765-1831) Mujara 妖 鬼 化 (Youkais, Oni e Obake). A coleção
intitulado Nihon Koten Seki Sôgô Mokuroku apresenta youkais (entes folclóricos sobrenaturais), oni
日本古典籍総合目録 (Catálogo Geral da (demônios ou ogros) e obake (fantasmas, monstros ou
Literatura Clássica Japonesa), 1797. Fonte: transmorfos) das várias regiões do Japão, da China e
Kokubungaku Kenkyû Shiryôkan Denshi também do resto do mundo (MIZUKI, 2003).
Shiryôkan 国文学研究資料館電子資料館
(Banco de Dados Digitalizados do Instituto
Nacional de Literatura Japonesa).
O kappa da figura 13 não possui carapaça, mas o de Yôkai Daisensô52 (1968), sim – o
que é curioso, já que o mesmo Mizuki Shigeru da mencionada ilustração foi consultor do
filme. Talvez isso se deva ao fato de que tratados ilustrados como o Suiko Kôryaku53 (1820) e
o Suiko Jûni-hin no Zu54 (meados do séc. XIX) apresentem diferentes tipos de kappa, com
formas as mais variadas (figura 14). Ambas as obras pretendem dar um olhar “científico” às
várias “espécies” de kappa. Mas ainda que elas aumentem o leque de possibilidades na
___________________
52
Yôkai Daisensô 妖怪大戦争 (A Grande Batalha Youkai), longa-metragem infanto-juvenil dirigido por Kuroda
Yoshiyuki 黒田義之 (1928-).
53
Suiko Kôryaku 水虎考畧 (Pensando Sobre os Kappa). Obra atribuída a Koga Tôan 古賀侗庵 (1788-1847) e
ilustrada por Kurimoto Tanshu 栗本丹洲 (1756-1834). Suiko 水虎 (tigre da água) é um outro termo para
kappa.
54
Suiko Jûni-hin no Zu 水虎十二品之図 (Guia Ilustrado dos Doze Tipos de Kappa). Folheto escrito e ilustrado
pelo médico Sakamoto Kôsetsu 坂本浩雪 (1800-1853).
33
Figura 14 – Suiko Jûni-hin no Zu 水虎十二品之図 (Guia Ilustrado dos Doze Tipos de Kappa). Folheto ilustrado
de Sakamoto Kôsetsu 坂本浩雪 (1800-1853). 35 x 51 cm, meados do séc. XIX. Fonte: Kokuritsu Kokkai
Toshokan 国立国会図書館 (Biblioteca da Assembleia Legislativa Nacional).
representação pictórica de um kappa, a verdade é que as figuras 15 a 19, que contêm cenas de
longas-metragens e animações para a TV e cinema, apresentam este youkai com todas as
características citadas anteriormente: um círculo no topo da cabeça delimitado pelo cabelo,
pele verde, bico em lugar da boca, membranas entre os dedos e casco de tartaruga.
Os kappa dos longa-metragens (figuras 15 e 16) são representados por atores
masculinos adultos, mas os das animações (figuras 17 a 19) têm todos a altura de um animal
de estimação de médio porte.
O kappa da primeira versão de Yôkai Daisensô (figura 15) é caracterizado por meio de
uma máscara que é vestida pelo ator e por acessórios como luvas e botas com garras. O
roteiro do filme é singular, promovendo o encontro de um “youkai” da Babilônia (Daimon
ダイモン, o vilão) com os entes folclóricos japoneses. Mas a produção é um pouco descuidada:
na caracterização do kappa, o peito e os braços do ator ficam à mostra e, pelo menos na
primeira parte, não estão pintados de verde (!) – um erro de continuidade em relação ao resto
do filme.
A refilmagem de Yôkai Daisensô, assim como o original, também teve a consultoria
34
Figura 15 – Cena com o kappa de Yôkai Daisensô 妖怪大戦争 (A Grande Batalha Youkai), filme de 1968
dirigido por Kuroda Yoshiyuki 黒田義之 (1928-).
Figura 16 – Cena com o kappa de Yôkai Daisensô 妖怪大戦争 (A Grande Batalha Yokai), filme de 2005
dirigido por Miike Takashi 三池崇史 (1960-).
de Mizuki Shigeru. Assim, o kappa do remake (figura 16) possui as mesmas características
daquele do filme original, embora se utilize de outras técnicas. O ator não usa mais máscara, o
bico é criado por meio de maquiagem e a caracterização do corpo combina cosméticos com
vestimenta.
Tanto o kappa do filme original quanto o do remake são personagens cômicos e
bondosos e, ainda que tenham medo, são heróicos, enfrentam os perigos provocados pelos
vilões.
35
Kaatan かぁたん, o kappa de Kappa no Kaikata55 (figura 17), série de animação para a
TV baseada no mangá homônimo56, é uma criaturinha dócil que age praticamente como um
animalzinho de estimação. O de Inukami! 57 (figura 18), série de animação para a TV baseada
na série de light novels homônima58, aparece somente em um dos episódios, mas possui um
comportamento mais independente do que o de um animal de estimação. Já Kuu クゥ, o
youkai de Kappa no Kuu to Natsu Yasumi59 (figura 19), comporta-se como uma forma
intermediária entre animal e humano – ele às vezes age como um animal que desconhece os
costumes humanos, mas é tão inteligente quanto uma criança.
Apesar dos designs distintos, os kappa de animação que aqui apresentamos (figuras 17
a 19) são verdes e possuem bico, casco e uma região circular sem cabelo no topo da cabeça, o
que identifica que são representações ligeiramente diferentes feitas a partir de um conceito já
estabelecido.
É importante informar que os kappa também são cultuados religiosamente. Na figura
20, temos a foto de estátuas de um casal pertencentes ao templo Sôgen-ji 曹源寺 ou Kappa-
dera かっぱ寺 (templo do kappa), que fica próximo a Kappabashi60 (figura 22). Nele há um
altar onde se ofertam pepinos (figura 21), considerada sua comida favorita. Obviamente, nem
todas as estátuas de kappa são de ordem religiosa. Na figura 23 temos representações em
bronze dos kappa que Mizuki Shigeru desenhava em seu mangá Gegege no Kitarô ゲゲゲの
鬼太郎.
Até o momento tratamos de dois youkais encontrados nas páginas de Tôno
Monogatari, a yukionna e o kappa. A seguir, estudaremos mais um, a kitsune 狐 (raposa).
___________________
55
Kappa no Kaikata カッパの飼い方 (Como Criar um Kappa), série de animação para a TV em 26 episódios
dirigida por Miyazaki Nagisa 宮﨑なぎさ e exibida pela primeira vez entre 4 out. 2005 e 25 mar. 2006.
56
Kappa no Kaikata カッパの飼い方 (Como Criar um Kappa), mangá de Ishikawa Yûgo 石川優吾 (1960-)
publicado entre 2003-2010, totalizando 14 volumes.
57
Inukami! いぬかみっ! (Deuses-Cães!), série de animação para a TV em 26 episódios dirigida por Kusakawa
Keizô 草川啓造 e exibida pela primeira vez ede 6 abr 2006 a 28 set. 2006.
58
Inukami! いぬかみっ! (Deuses-Cães!), série de light novels escrita por Arisawa Mamizu 有沢まみず (1976-),
publicada entre 2003-2008, totalizando 17 volumes. Light novel – em japonês raito noberu ライトノベル
(romance leve) – é um estilo de romance japonês destinado aos adolescentes e jovens adultos, frequentemente
ilustrado e serializado em antologias antes de aparecer como livro.
59
Kappa no Kuu to Natsu Yasumi 河童のクゥと夏休み (As Férias de Verão com Kuu, o Kappa), longa-metragem
de animação de 2007 dirigido por Hara Keiichi 原恵一 (1959-).
60
Kappabashi 合羽橋: literalmente, “ponte da capa-de-chuva”, é uma avenida de Tóquio que fica entre Ueno
上野 e Asakusa 浅草. Uma das histórias (folclóricas) por trás da origem de seu nome diz que os moradores
da vizinhança costumavam deixar suas capas-de-chuva secando na antiga ponte. Como a palavra kappa 合羽
(capa-de-chuva), de etimologia portuguesa (capa), é homófona de kappa 河童, o youkai acabou tornando-se o
símbolo da avenida, que é decorada com versões do mesmo. Kappabashi é quase que totalmente ocupada por
lojas que vendem utensílios de cozinha e fornecem produtos especializados para o mercado de restaurantes.
36
Figura 17 – Cena com o kappa de Kappa no Figura 18 – Cena com o kappa de Inukami!
Kaikata カ ッ パ の 飼 い 方 (Como Criar um いぬかみっ! (Deuses-Cães!), série de animação
Kappa), série de animação para a TV dirigida por para a TV dirigida por Kusakawa Keizo 草川
Miyazaki Nagisa 宮 﨑 な ぎ さ (?-). Primeira 啓造 (?-). Primeira exibição: 6 abr. a 28 set. 2006.
exibição: 4 out. 2005 a 25 mar. 2006.
Figura 19 – Cena com o kappa de Kappa no Kuu to Natsu Yasumi 河童のクゥと夏休み (As Férias de Verão com
Kuu, o Kappa), longa-metragem de animação de 2007 dirigido por Hara Keiichi 原恵一 (1959-).
37
Figura 22 – Foto da entrada de Kappabashi かっぱ橋 e detalhes da decoração da avenida, com kappa femininos. O
termo kappa é propositalmente escrito em silabário – かっぱ – para evitar a distinção entre os homófonos kappa
合羽 (capa de chuva) e kappa 河童 (kappa, o youkai). Fotos do autor. 3 mar. 2012.
38
Figura 23 – Foto de uma estátua de bronze representando dois kappa encontradas na cidade-natal do desenhista de
mangá e pesquisador dos entes folclóricos Mizuki Shigeru 水木しげる (1922-), Sakaiminato 境港, onde são
exibidas mais de cem estátuas de bronze de youkais a céu aberto em espaço público. Foto do autor. 28 jan. 2012.
Tôshichi disse: “Eu lutei com você? De jeito nenhum! Eu estava no litoral
naquele dia.” Finalmente ficou claro que Kikuzô lutara mesmo com uma
raposa. Ele manteve isto em segredo, mas no ano passado durante o feriado
de Ano Novo, quando todos estavam bebendo, o tópico das raposas surgiu.
Ele contou o que acontecera e todos riram muito (YANAGITA; MORSE,
2008, pp. 57-8; YANAGITA, 2012, pp. 65-6, tradução nossa).
dos fantasmas das mulheres que morreram virgens ou não-casadas64. Narrativas fantásticas
chinesas costumam apresentar muitos fantasmas femininos, provavelmente porque a
sociedade tradicionalmente confucionista estabelecia que uma mulher que morresse solteira
não pertencia a nenhuma família e, portanto, não possuía quem lhe dedicasse oferendas e
orações que a impedissem de se tornar um espírito errante65.
Frequentemente, as raposas chinesas agem como estes fantasmas femininos,
procurando um companheiro entre os homens e causando-lhe o declínio ou a morte, tendo ou
________________________
64
Os desejos sexuais não-satisfeitos se convertem em insaciabilidade sexual depois que elas morrem e estas
donzelas assombram os homens de forma a obter deles a essência da vida e retornar a este mundo.
65
Para evitar que isto acontecesse, muitas famílias costumavam realizar casamentos póstumos.
41
não tal intenção. No entanto, também existem narrativas contendo raposas femininas benignas.
Na narrativa XXIII do Liáozhāi Zhì Yì66, por exemplo, a raposa Lián Xiāng 莲香 repreende o
fantasma da virgem Li 李 por sugar a energia vital do personagem masculino principal, o
senhor Sāng 桑.
Na maioria das vezes, uma raposa é identificada pela(s) sua(s) cauda(s). Raposas
inexperientes ou bêbadas não conseguem manter uma transformação perfeita e por isso
escondem suas caudas dentro da roupa.
Raposas chinesas não temem fantasmas, com os quais têm uma certa rivalidade. Mas
temem os cães67. Às vezes, a simples presença de um cão é capaz de fazê-la voltar à sua
forma normal.
Na Coreia, as raposas de nove caudas são chamadas kumiho 구미호 (figura 25) – onde
ku 구 significa nove, mi 미 significa cauda e ho 호 significa raposa. Da mesma forma que suas
contrapartes chinesa e japonesa, uma raposa que vive muitos anos se transforma numa kumiho
e possui dentre outras a capacidade de se transformar numa bela mulher e seduzir os homens.
Mas ainda que sejam capazes de mudar sua aparência68, sua natureza psicológica
continua a de uma raposa. Ainda que se apresentem como donzelas, criadas, esposas, irmãs ou
súcubos69, não há nada de humano nelas, só existe a necessidade de se alimentar. Dessa
maneira, a kumiho é às vezes sensual, mas nunca sexual. Dissimuladamente, ela caça – e suas
presas são os seres humanos.
As kumiho se enquadram na categoria dos yogwe70 요괴. Dessa maneira, não estão
incluídas na categoria dos kwishin 귀신 (fantasmas) ou shin 신(espíritos).
Tradicionalmente, as kumiho são quase que exclusivamente femininas e malignas
(FENKL, 1999). Elas seduzem estudiosos despreparados e viajantes com ilusões de beleza e
riqueza, exaurindo-os de seu yáng.
Embora a cultura religiosa coreana se baseie em uma interação entre animismo,
xamanismo, budismo e taoísmo, a moralidade e ética confucianas predominam nas narrativas
contendo raposas (FENKL, 2006).
________________________
66
Liáozhāi Zhì Yì 聊斋志异 (Contos Estranhos de um Estúdio Chinês). Livro contendo narrativas escritas ou
recontadas por Pú Sōnglíng 蒲松龄. Escrito no século XVII, circulou por vários anos como manuscrito até ser
publicado postumamente em 1740 por seu neto. O livro contém 491 narrativas sobrenaturais.
67
Esta característica é importada para as kitsune japonesas.
68
Acredita-se que, para assumir a forma de alguém, ela precisa matá-lo e comê-lo primeiro.
69
Entidades femininas que sugam a energia masculina.
70
Yogwe 요괴: termo que indica as criaturas sobrenaturais pertencentes ao folclore coreano, semanticamente
semelhante ao japonês yôkai 妖怪.
42
Figura 25 – Kumiho devorando sua presa humana. Ilustração da artista plástica e quadrinista americana de
ascendência asiática, Hellen Jo (2009). Disponível em: <http://helllllen.org/blllllog/?p=231>. Acesso em: 1º
maio 2010.
Em Yeou Nui71, por exemplo, um homem que só teve filhos deseja ardentemente uma
filha. Desesperadamente, reza aos deuses: “Por favor, me dêem uma filha, mesmo que seja
uma raposa!”. Algum tempo depois, sua esposa dá luz a uma garotinha, que mais tarde se
revelará ser uma kumiho. Ela destrói literalmente a quase totalidade de uma família e, ao
irmão deserdado, cabe restaurar a ordem patriarcal, matando-a (FENKL, 1999).
Contemporaneamente, no entanto, as kumiho têm aparecido em novelas e séries de TV
coreana ocupando não mais o papel tradicional de vilãs, mas sim o de heroínas (figuras 26 e
27). Como se percebe pelas ilustrações, a caracterização da raposa de Kumiho: Yeounuidyeon
(figura 26), através da maquiagem, aproxima-a da aparência do animal. Já a caracterização da
kumiho de Nae Yeojachinguneun Kumiho (figura 27) é feita da mesma maneira que na
ilustração de Hellen Jo (figura 25), acrescentando nove caudas a um corpo humano feminino.
________________________
71
Yeou Nui 여우누이 (A Irmã Raposa).
43
Figura 28 – Escultura em madeira do deus xintoísta Inari, Figura 29 – Dakiniten montada em uma
frequentemente representado como um velho de barba na raposa. Na mão direita, uma espada; na
companhia de duas raposas. Na mão direita ele carrega um esquerda, a cintāmaṇi. Detalhe de uma
feixe de arroz; e na esquerda, a jóia conhecida no budismo página do Butsuzô Zui 仏 像 図 彙
pelo nome de cintāmaṇi..73 िचन्तामिण (jóia realizadora de (Dicionário Visual das Estátuas do
desejos), Período Edo (1603-1868). Fonte: Museu Guimet, Budismo), livro ilustrado por Tosa
Paris. Hidenobu 土佐秀信 (?-?), 1783. Fonte:
Suzuka Bunko 鈴鹿文庫.
ao tornar-se parte do xintoísmo por meio de sua conexão com o deus Inari74 (figura 28),
majoritariamente representado com raposas ao seu lado.
A associação da kitsune com Inari se dá já no início da veneração ao deus da
agricultura e do arroz, durante o séc. VIII. A pesquisadora Karen Smyers (1999) aponta
algumas teorias de como se deu essa relação. As raposas estavam sempre presentes nos
arrozais, em busca de alimento. Ao comer os roedores acabavam por proteger a colheita e
começaram a ser vistas como guardiãs dos campos. Existe também uma lenda do séc. XIV
____________________
73
Cintāmaṇi िचन्तामिण (jóia realizadora de desejos). Uma jóia mágica que manifesta desejos, tesouros, roupas
e comida; acaba com doenças, dores e sofrimentos; purifica a água etc.
74
Inari Daimyôjin 稲荷大明神: deus xintoísta do arroz, da fertilidade (agricultura) e do sucesso econômico
(comércio e indústria). Os templos dedicados a Inari estão sempre repletos de estátuas de raposas.
45
que diz que uma família de raposas viajou até o monte Inari para oferecer seus serviços ao
deus. Inari ficou agradecido e as encarregou de cuidar e de guardar o templo (SMYERS,
1999).
Esta conexão das kitsune com o divino não se dá somente no xintoísmo, mas também
no budismo, onde a deusa Dakiniten75 (figura 29) é representada como um bodhisattva76
feminino montado numa raposa branca voadora. A frequente associação desta divindade
budista ao deus Inari pode ter levado ao vínculo deste com as raposas.
Em geral a kitsune (figuras 30 a 33) é uma personagem misteriosa, fascinante ou
travessa, com poderes sobrenaturais, como a habilidade de mudar de forma. Pode assumir a
aparência humana, confundir suas vítimas com ilusões ou visões e mesmo possuir
espiritualmente os seres humanos.
As kitsune benignas, como as raposas de Inari, são chamadas de zenko 善狐 (raposas
benevolentes). Já as que gostam de pregar peças nos humanos – sejam elas raposas maliciosas
ou apenas traquinas – são denominadas yako ou nogitsune 野狐 (raposas dos campos).
As raposas de Inari são geralmente brancas. Possuem o poder de espantar o mal e o
kimon77 negativo que vem do nordeste. São espíritos guardiões que protegem a população
local, inclusive das nogitsune (YOSHINO, 1980).
Como oferendas, dizem que as raposas gostam especialmente de um tofu frito e
fatiado chamado de aburage 油揚げ, base dos pratos conhecidos como kitsune udon 狐饂飩 e
kitsune soba 狐蕎麦. Como se vê, da mesma forma que com o kappa, o folclore se estende à
culinária. O inarizushi 稲荷寿司, por exemplo, é um tipo de sushi envolto em tofu frito.
As nogitsune frequentemente pregam peças que humilham samurais arrogantes,
citadinos orgulhosos e mercadores gananciosos. Mas há também narrativas onde elas se
aproveitam da boa-fé de comerciantes, agricultores e monges budistas.
Por vezes, como sua contraparte chinesa, a yako é uma sensual encantadora de homens,
seduzindo os incautos. Por outro lado, assim como se vinga daqueles que a desprezam, a
nogitsune costuma também mostrar gratidão pela gentileza que lhe é oferecida, embora sua
moral seja a de uma raposa – o que significa que ela possa vir a presentear um humano com
_________________
75
Dakiniten 荼枳尼天: versão budista japonesa de um tipo de demônio indiano conhecido como ḍākinī डािकनी.
Padroeira dos feitiços mágicos, em especial aqueles que promovem o sucesso (ASHKENAZI, 2003).
76
O termo bodhisattva बोिधसत्त्व (ser iluminado) – em japonês, bosatsu 菩薩 (bodhisattva) – é usado como
sinônimo de “divindade” budista.
77
Kimon 鬼門: literalmente, “portão do demônio”. É um termo importado da geomancia chinesa – fēng shuǐ
风水 (feng shui) – e indica a direção de mau-agouro, o nordeste, por onde os demônios entram.
46
Figura 30 –Detalhe de uma página do Kinmô Zui 訓蒙図彙 Figura 31 – Yako 野狐 (raposa do
(Dicionário Visual do Conhecimento Obscuro), enciclopédia campo). Detalhe do Hyakkai Zukan
ilustrada em 14 volumes editada por Nakamura Tekisai 百 怪 図 巻 (Rolo Ilustrado dos Cem
中村惕斎 (1629-1702), 1666. Fonte: Kyûshû Daigaku Sôgô Monstros), pintado pelo artista Sawaki
Kenkyû Hakubutsukan 九州大学総合研究博物館 (Museu Sûshi 佐脇嵩之 (1707-1772), ca. 1737
de Pesquisa Geral da Universidade de Kyûshû). (TADA; KYÔGOKU, 2006).
_________________
78
Essa crença é responsável pelo comportamento ostracista dos antigos japoneses em relação às famílias de que
se pensava que tivessem raposas sob sua guarda (LOWRY, 2007).
79
Kitsunetsuki 狐憑き ou 狐付き (possessão vulpina).
80
Glimpses of Unfamiliar Japan (Vislumbres de um Japão Pouco Conhecido).
81
Toyotomi Hideyoshi 豊臣秀吉 (ca. 1536-1598): poderoso líder militar e político do Japão.
82
Tôdai-ji 東大寺 (Grande Templo do Leste): famoso templo budista da cidade de Nara fundado no séc. VIII.
48
Esta carta testemunha que, no séc. XVI, os poderes mágicos das kitsune estão
presentes no imaginário japonês como realidade concreta. O grande líder do país endereça
uma carta a Inari, reconhecendo-se servo do mesmo, mas ao mesmo tempo fazendo-lhe
ameaças, colocando-se em pé de igualdade com o deus, já que ambos são líderes de seus
súditos. Toyotomi reconhece, como vimos, as raposas como servas de Inari, sem se valer das
diferenças entre zenko e yako.
Os sintomas de possessão eram os mais variados, abrangendo todo o leque de doenças
debilitantes de causa desconhecida bem como os distúrbios somáticos e psicológicos. Nozaki
(1961) diz que pessoas possuídas por uma raposa podem inclusive vir a falar e escrever em
línguas que eles desconheciam completamente antes da possessão e que mesmo os
analfabetos podem ganhar temporariamente a capacidade de ler e escrever quando estão
possuídos. Para expulsar o espírito da raposa frequentemente uma miko83 realizava um
exorcismo num templo de Inari.
As kitsune raramente aparecem no cinema japonês. Uma rara exceção é a animação
Okonjôruri84 (1982), em que uma raposa de nome Okon agradece a generosidade de uma
velha miko ajudando-a a curar outras pessoas (figura 34).
Figura 34 – Duas cenas de Okonjôruri おこんじょうるり (O Jôruri85 de Okon), animação em 16mm de 1982
dirigida por Okamoto Tadanari 岡本忠成 (1932-1990). Na primeira, vemos a miko e a kitsune conversando. Na
segunda, temos a raposa Okon disfarçada de miko. Disponíveis em: <http://yamamuraanimation.blog13.fc2.com/
blog-entry-82.html> e <http://www.jpf.go.jp/e/about/new/1201/01-01.html>. Acesso em: 18 fev. 2012.
_________________
83
Miko 巫女 é um termo japonês que antigamente se referia a um xamã feminino ou médium espiritual que
possuía a habilidade de receber takusen 託宣, ou seja, mensagens ou oráculos transmitidos pelos kami num
estado de possessão espiritual – kamigakari 神懸かり. Hoje em dia o termo miko se refere às jovens mulheres
que servem à divindade em templos xintoístas auxiliando seus sacerdotes ou sacerdotisas.
84
Okonjôruri おこんじょうるり (O Jôruri85 de Okon), média-metragem de animação em stop-motion de 1982
dirigido por Okamoto Tadanari 岡本忠成 (1932-1990).
85
Jôruri 浄瑠璃 é uma forma de narrativa musical onde o canto narra a história com o acompanhamento
instrumental de um shamisen.
49
No entanto, as kitsune aparecem com frequência nos mangás (e, consequentemente, nos
animes). A história de Gingitsune86 (figura 35), por exemplo, se passa majoritariamente dentro
de um santuário. Gintarô 銀 太 郎 é uma grande zenko branca trajada com vestimentas
sacerdotais xintoístas. Embora sejam frequentes os mangás onde as raposas são representadas
sob forma humana ou quase-humana87, Gintarô é representado da mesma forma que Okon
(figura 34) e a yako da figura 31, ou seja, mantendo a forma canídea embora esteja vestido com
roupas humanas. Esta é uma forma de representação da kitsune muito comum, encontrada na
maioria das estampas ukiyo-e que a apresentam como tema.
Figura 35 – Folheto de divulgação do mangá Gingitsune ぎんぎつね (Raposa Prateada) de Ochiai Sayori 落合
さより (?-), 2009. Na parte superior do folder é possível ler: “Bem-vindos ao santuário dos deuses”.
Em Mononoke88 temos uma versão para a origem destes youkais como espíritos de
não-nascidos. Neste anime os zashikiwarashi são as almas dos inúmeros abortados de uma
casa de prostituição. Na figura 36 apresentamos uma cena com os zashikiwarashi de
Mononoke. O diretor, juntamente com as equipes de criação de personagem e de direção de
arte, decidiu representá-los com a forma de crianças estilizadas indistintamente, a não ser
pelas cores.
__________________________
88
Mononoke モノノ怪 (“Estranheza das Coisas”): série de animação para TV em 12 episódios dirigida por
Nakamura Kenji 中村健治 (1970-), exibida originalmente de 12 jul. a 27 set. 2007. É um spin-off do anime
怪 ~ayakashi~ (2006). O termo mononoke é sinônimo de youkai e será discutido mais adiante (pp. 61-4).
51
Figura 36 – Cena com os zashikiwarashi de Mononoke モノノ怪 (“Estranheza das Coisas”), série de animação
para TV dirigida por Nakamura Kenji 中村健治 (1970-). Primeira exibição: 12 jul. a 27 set. 2007.
pessoas de Tôno, mesmo agora, quando venta forte, dizem que é um dia em que
a velha mulher de Samuto poderia retornar (YANAGITA; MORSE, 2008, p.
15; YANAGITA, 2012, p. 21, tradução nossa).
Após este olhar mais aprofundado em cinco dos 109 capítulos de Tôno Mongatari, é
possível perceber que, apesar de ser um livro relativamente curto, é uma obra bastante rica. Seu
propósito contrasta com objetivo derrogatório da yôkaigaku racionalista de Inoue Enryô. O
prefácio de Tôno Monogatari é como um manifesto pela revalorização e renascimento das
narrativas fantásticas no Japão, depreciadas com o cientificismo do início do período Meiji:
Como dissemos anteriormente, Yanagita Kunio deu início aos estudos folclóricos91 no
Japão, o que não quer dizer que não houvesse estudos que tocassem em assuntos correlatos
antes dele. As obras de Lafcadio Hearn e a yôkaigaku de Inoue Enryô são exemplos disso.
Mas a partir de Tôno Monogatari, muitos pesquisadores darão continuidade a estas
pesquisas, com um olhar positivo sobre as velhas crenças e as antigas histórias. Mesmo a
yôkaigaku, cujo propósito inicial era derrogatório, não terá para sempre a finalidade de
extirpar a ignorância dos velhos mitos.
O atual diretor-geral do Nichibunken92, o antropólogo cultural Komatsu Kazuhiko
小松和彦 (1947-), talvez a maior autoridade acadêmica viva sobre os youkais, deu
continuidade à yôkaigaku, mas sob uma nova perspectiva – a do estudo antropológico do
folclore. A maioria dos pesquisadores japoneses e estrangeiros com interesse no estudo dos
____________________
91
Minzokugaku 民俗学 (estudo dos costumes populares).
92
Nichibunken, nome reduzido do Kokusai Nihon Bunka Kenkyû Sentâ 国際日本文化研究センター (Centro
Internacional de Pesquisa da Cultura Japonesa). É um instituto de pesquisas localizado na província de Quioto.
Em inglês, recebeu o nome de International Research Center for Japanese Studies (Centro Internacional de
Pesquisa para Estudos Japoneses).
53
Figura 39 – Azukiarai 小豆洗い (lavador de feijões). Figura 40 – Ryû Shôten 龍昇天 (Ascenção do
Estampa pertencente à obra Ehon Hyakku Monogatari Dragão aos Céus). Estampa de Ogata Gekkô
絵本百物語 (Livro Ilustrado das Cem Histórias) do 尾形月耕 (1859-1920) publicada por Matsuki
artista Takehara Shunsen 竹 原 春 泉 (?-?), 1841 Heikichi 松 木 平 吉 . 37,5 x 24,7 cm, 1897.
(TAKEHARA, 2006). Fonte: Library of Congress (Livraria do
Congresso dos EUA).
significa que eles já tenham sido humanos em algum momento. Outros, como o dragão94
(figura 40) e a raposa, têm forma animal. Outros ainda, como o kappa, têm aparência
humanoide, combinando características animais com traços humanos.
Fora isso, temos também youkais na forma de plantas (figura 41). O bashô no sei
芭蕉精 (espírito da bananeira), por exemplo, é capaz de deixar a árvore e assumir a forma
humana. No Chûryô Manroku95 há várias narrativas com este youkai. Numa delas, um monge
está lendo um livro quando uma jovem muito bonita aparece no templo e tenta seduzi-lo. O
monge, assustado, reage puxando uma adaga e investindo-a contra a mulher. Ferida, ela foge
____________________
94
Ryû 竜 ou 龍 (dragão). O dragão japonês se originou a partir do dragão chinês. É uma criatura de forma
reptílica de grandes proporções. Seu corpo é alongado como o das cobras, mas, diferente destas, apresenta
patas com garras. No Japão, os dragões são vistos como divindades da água e aparecem com frequência
representados em fontes. Assim como os dragões europeus, são capazes de voar, mas não apresentam asas. O
dragão da figura 40 sai de dentro da névoa e sobe em direção aos céus. Ao fundo, vemos o Monte Fuji 富士山,
a montanha mais alta do Japão.
95
Chûryô Manroku 中陵漫録 (Registro Amplo das Colinas Centrais), obra escrita no final do período Edo pelo
herborista Satô Seiyû 佐藤成裕 (1762-1848).
56
Figura 41 – Bashô no sei 芭蕉精 (espírito da Figura 42 – Cinco kodama 木魂 (espíritos das árvores)
bananeira). Estampa pertencente ao Konjaku no tronco de uma grande árvore. Detalhe retirado de
Hyakki Shûi 今昔百鬼拾遺 (Suplementos ao uma cena de Mononoke Hime もののけ姫 (Princesa
Cem Demônios do Presente e do Passado), Mononoke), longa-metragem de animação de 1997
obra em 3 volumes do artista Toriyama dirigido por Miyazaki Hayao 宮崎駿 (1941-).
Sekien 鳥 山 石 燕 (1712-1788), 1780
(INADA; TANAKA, 1992).
____________________
96
Kodama 木霊 ou 木魂 (eco). Literalmente, “espírito da árvore”.
57
resposta é um educado sim, ao que ela retira a máscara deixando ver o rosto mutilado e
interpela: “Mesmo desse jeito?”. Independente da resposta, geralmente a criança acaba
morrendo, atacada por armas que variam de uma tesoura a um machado.
Até aí, temos uma história comum de serial killer. O sobrenatural da história vem do
fato de que, não importa o quanto corra a vítima, a kuchisakeonna sempre aparece à sua frente
para repetir-lhe a pergunta e continua a persegui-la até que ouça uma resposta.
A kuchisakeonna é um exemplo do processo vivo em que se encontram as narrativas
ainda hoje. Os boatos surgidos nas escolas em janeiro de 1979100 se espalharam a ponto de
causar uma onda de pânico na população. Com o passar do tempo, ela se popularizou a ponto
____________________
100
Relatos sobre a kuchisakeonna aparecem pela primeira vez na imprensa no Gifu Nichinichi Shinbun 岐阜
日日新聞 (Jornal Diário de Gifu) em 26 jan 1979.
59
Figura 45 – Cena em primeiro-plano da kuchisakeonna 口裂け女 (mulher da boca rasgada) do filme homônimo
(2007) dirigido por Shiraishi Kôji 白石晃士 (1973-).
de ser considerada um ente folclórico, aparecendo em vários livros sobre youkais. Existe
inclusive uma estátua da kuchisakeonna em meio às esculturas de Sakaiminato, a “cidade dos
youkais” (figura 46).
No filme de Shiraiji Kôji (figura 45) a kuchisakeonna é representada com olhos claros,
o que não só a diferencia de uma japonesa típica, mas também a caracteriza como um ente
sobrenatural. Baseando-se nas descrições dos relatos, apresenta uma mulher alta, de cabelos
longos, vestindo um sobretudo e usando uma máscara cirúrgica. No filme, ela é um fantasma,
mas a lenda urbana não especifica claramente sua origem, se a kuchisakeonna se tornou um
youkai em algum momento de sua vida ou depois de sua morte.
Muitos entes sobrenaturais foram originalmente seres humanos e se transformaram em
algo terrível ou grotesco por causa de um extremo emocional ou de uma maldade cometida. A
futakuchionna 二口女 (mulher com duas bocas), por exemplo, é uma mulher que, em vida, se
transformou num youkai (figura 47). Isso aconteceu porque deixou o bebê da primeira esposa
de seu marido morrer de fome. Ninguém ficou sabendo de seu crime, mas certo dia, seu
marido estava a cortar lenha e ela, passando por trás dele, recebeu um golpe não-premeditado
de machado atrás da cabeça. Ela não morreu, mas o orifício atrás de sua cabeça nunca
cicatrizou, crescendo nele lábios, dentes e até mesmo uma língua. Com o tempo, a ferida
começou a falar, gritando em voz alta o delito cometido pela mulher e dando-lhe ordens. A
segunda boca tinha fome e os cabelos começaram a se mover como serpentes de forma a
alimentá-la mais facilmente.
Mulheres com um ciúme intenso podem se transformar em oni ou serpente101. No
teatro nô, estas mulheres são representado pelas máscaras hannya 般若 (termo que vem do
Até aqui, vimos que os youkais são entes sobrenaturais de origem anônima ou
ficcional que se tornaram parte do folclore japonês. Vimos também que em geral eles têm
poderes sobrenaturais e possuem caráter e motivações os mais variados. Tratamos das
diversas formas que eles podem assumir – humana, humanoide, de animais, vegetais e objetos
– bem como das categorias dos youkais capazes de mudar de forma e daqueles que não têm
corpo definido. Por fim, observamos que, além de criaturas como a raposa e o kappa, que já
são youkais por natureza, temos entes sobrenaturais de origem humana.
____________________
101
Cito como exemplos os contos Kibitsu no Kama 吉備津の釜 (O Caldeirão de Kibitsu) e Jasei no In 蛇性の
婬 (A Volúpia da Serpente), que se encontram no livro Ugetsu Monogatari 雨月物語 (Contos da Chuva e da
Lua) de Ueda Akinari 上田秋成 (UEDA, 1996).
61
A seguir, a partir das teorias de Komatsu Kazuhiko (KOMATSU, 2003, 2009, 2010;
PAPP, 2010, 2011), tentaremos apresentar uma definição semântico-filosófica dos youkais.
Como sinônimo de obake お 化 け (aparição), bakemono 化 け 物 (coisa que se
transforma) e mononoke 物 の 怪 (estranheza das coisas), o termo yôkai 妖 怪 (monstro
estranho) veio a se popularizar no Japão em especial a partir da década de 60, com os mangás
de Mizuki Shigeru. Mesmo no Brasil, o termo é relativamente popular entre os aficionados do
anime e do mangá desde o início da publicação de Inu-Yasha102 pela editora JBC (2002) e da
consequente exibição de sua versão para a TV. Tanto que o filme Yôkai Daisensô103 (2005)
foi batizado no Brasil como A Grande Batalha Yokai.
O termo obake agrega os significados não somente de youkai, mas também de yûrei
幽霊 (fantasma). O termo bakemono é usado correntemente de forma bastante similar à da
palavra “monstro” do português. Ambos os termos contêm o kanji 化 (mudança). Por isso, há
autores que defendem o uso destes termos somente para os youkais capazes de se transformar.
Mas embora a etimologia seja capaz de indicar as origens de um termo, não necessariamente
contempla seu uso corrente. Dessa forma, parece-nos mais adequado entender obake e
bakemono como sinônimos de youkai, yûrei e, às vezes, de kaibutsu 怪物 (monstro).
Mononoke é um termo antigo, usado na literatura do período Heian, e também mais
complexo que obake ou bakemono. O antropólogo cultural Komatsu Kazuhiko sugere uma
compreensão mais profunda dos termos yôkai e mononoke a partir da cosmologia esotérica do
onmyôdô 陰 陽 道 (caminho do yin-yang), que deriva de conceitos filosófico-religiosos
trazidos da China e logo incorporados pela corte japonesa.
O onmyôdô surge no século VI e ganha ministério na burocracia da corte como
método de adivinhação, leitura da sorte, astrologia e confecção de calendários. Aos poucos,
por meio do sincretismo com aspectos das religiões taoísta, budista e xintoísta, torna-se um
método utilizado pelos nobres da corte de Heian para tomar decisões estratégicas, para
determinar momentos auspiciosos e também para aplacar as almas dos nobres de forma que
não viessem a se tornar onryô104.
O princípio básico do onmyôdô é o de que em cada aspecto do Universo – a forma
____________________
102
Inu-Yasha 犬夜叉 (Cão-Demônio), de Takahashi Rumiko 高橋留美子 (1957-), foi publicado no Japão pela
editora Shôgakukan 小学館 de 1996 a 2008.
103
Como se viu, Yôkai Daisensô 妖怪大戦争 (A Grande Batalha Yokai), filme de 2005 dirigido por Miike
Takashi 三 池 崇 史 (1960-). A palavra youkai aparece sem a letra “u” no título brasileiro porque foi
aportuguesada a partir do inglês The Great Yokai War.
104
Onryô 怨霊 (espírito vingador): espírito injustiçado em vida que volta dos mortos para se vingar.
62
logicamente a caracterização visual desses seres e o registro dos mesmos na forma de figuras,
estampas, entalhes e esculturas. Esse tipo de obra marca o início dos yôkai-ga 妖 怪 画
(pinturas de youkais), as obras contendo representações visuais de youkais, que se estenderão
pelos ukiyo-e do período Edo e, nos séculos seguintes, pelos kamishibai109, pelo cinema e
também pelos mangás, animes e games.
À medida que cada youkai engendrava sua própria “mitologia” e era representado
visualmente por vários artistas, sua forma foi se tornando cada vez mais fixa. Isso acontece
com personagens folclóricos das mais diferentes culturas. O saci e a cuca, por exemplo, nem
sempre tiveram a forma que reconhecemos hoje, popularizada pelos livros infantis e pelas
várias temporadas televisivas do Sítio do Pica-Pau Amarelo. Das diversas variantes de saci e
da cuca que existiam, apenas a celebrizada por Monteiro Lobato é hoje amplamente
conhecida pelos brasileiros (a popularização acaba por diminuir a diversidade).
A partir de tudo que tratamos antes, é possível concluir que um mononoke não tem
forma definida, pois é o fluxo de energia que se acumula num ente poderoso e misterioso. Já
os youkais são as formações distintas de mononoke que se identificam com os conceitos
de transformação e de entre-mundos, possuindo poderes e características do outro mundo,
mas vivendo neste – em especial nos lugares tidos como ponto de contato entre o mundo dos
homens e o dos deuses (pontes, encruzilhadas, mares, rios, lagos e florestas).
O período Edo é prolífico para os youkais: eventos conhecidos como
hyakumonogatari kaidankai110 se tornaram muito populares durante o mesmo. A grande
demanda por histórias fantásticas motivou a busca de narrativas em livros antigos e a coleta
de relatos sobrenaturais por todo o Japão. Livros que apresentavam narrativas ou ilustrações
de youkais eram um sucesso de vendas.
Neste trabalho nos servimos das ilustrações de alguns destes “bestiários”: o Kinmô
Zui 訓蒙図彙 (Dicionário Visual do Conhecimento Obscuro), uma enciclopédia ilustrada em
____________________
109
Kamishibai 紙芝居: literalmente, “teatro de papel”. É uma forma de contar histórias originário dos templos
budistas do Japão do século XII. Os monges se utilizavam de rolos de papel onde imagens se combinavam
com textos – emaki-mono 絵巻物 (volume ilustrado) – para transmitir ensinamentos morais ao público
majoritariamente analfabeto. Esse método de contar histórias se manteve por muitos séculos, mas é mais
conhecido por seu renascimento após a Primeira Guerra, onde o kamishibaya 紙 芝 居 屋 (narrador de
kamishibai) contava várias histórias utilizando-se de um pequeno cenário de madeira em que se insertavam e
removiam ilustrações à medida que se desenrolava a narrativa. Esta tradição foi quase abandonada com a
chegada da televisão, mas encontra-se ainda viva, especialmente nas bibliotecas e escolas elementares
japonesas.
110
Hyakumonogatari kaidankai 百物語怪談会 (encontro de cem narrativas de cunho extraordinário): nome que
se dá ao evento em que, geralmente em noites de verão, pessoas se reuniam para contar e ouvir histórias de
fantasmas, de monstros ou de acontecimentos inexplicáveis. Acendiam-se cem velas e, a cada história narrada,
uma delas era apagada. Após a centésima história, o ambiente ficava na mais completa escuridão.
65
14 volumes editada em 1666 por Nakamura Tekisai 中村惕斎 (1629-1702); o Wakan Sansai
Zue 和漢三才図会 (Enciclopédia Sino-Japonesa Ilustrada das Três Forças), enciclopédia em
105 volumes compilada por Terajima Ryôan 寺島良安 (?-?) e publicada por volta de 1713; o
Hyakkai Zukan 百怪図巻 (Rolo Ilustrado dos Cem Monstros) pintado pelo artista Sawaki
Sûshi 佐脇嵩之 (1707-1772) cerca de 1737; o Gazu Hyakki Yagyô 画図百鬼夜行 (Parada
Noturna dos Cem Demônios Ilustrada), obra em 4 volumes do artista Toriyama Sekien 鳥山
石燕 (1712-1788) publicada em 1776; o Konjaku Hyakki Shûi 今昔百鬼拾遺 (Suplementos
aos Cem Demônios do Presente e do Passado), obra em 3 volumes também de Sekien
publicada em 1780; o Gazu Hyakki Tsurezure Bukuro 画図百器徒然袋 (Sacola para as
Horas de Lazer contendo Cem Objetos Ilustrados), outra obra de Sekien, publicada em 1784;
o Ehon Hyakku Monogatari 絵本百物語 (Livro Ilustrado das Cem Histórias), obra em 5
volumes do artista Takehara Shunsen 竹原春泉 publicada em 1841; e, por fim, os Bakemono
Emaki 化物絵巻 (Rolo de Pintura de Monstros) e o Bakemono Tsukushi 化け物
つくし (Coleção Completa de Monstros), rolos de pintura de autoria e data desconhecidas.
A curiosidade mórbida e o gosto pelo grotesco desenvolvidos nesta época se refletem
não só nos inúmeros livros com ilustrações de monstros folclóricos publicados no período
Edo, mas também na popularidade (durante o fim do período Edo e início do período Meiji)
de obras como os Eimei Nijûhasshûku111 (figura 49) ou os Kusô-zu112 (figura 50), bem como
dos shows de curiosidades chamados de misemono113 (figura 51), nos quais, em meio a
atrações como belos atores de kabuki, modernos dispositivos mecânicos, rinhas de galo e
ilusionismo, frequentemente eram também exibidas monstruosidades fabricadas (figuras 52 e
53) e pessoas deformadas. A falta de assistência médica da época permitia que não fossem
raras essas deformidades, como atestam as fotos do Dr. Ochi Ikkaku114 tiradas por volta de
1900 (figuras 54 e 55).
______________________________
111
Eimei Nijûhasshûku 英名二十八衆句 (Vinte e Oito Nomes Lendários em Esplêndidos Versos) é uma série de
28 estampas de Tsukioka Yoshitoshi 月岡芳年 (1839-1892) e Ikkeisai Yoshiiku 一恵斎芳幾 (1833-1904) no
qual são retratados assassinatos célebres, tenham sido reais, imaginados ou ficcionais.
112
Kusô-zu 九想図 (desenhos imaginados dos nove estágios): são séries de desenhos de origem budista que
representam nove estágios de decomposição do corpo. Os primeiros kusô-zu datam do período Kamakura
(1185-1333).
113
Misemono 見せ物 (coisas para mostrar): espetáculos ou exibições que apresentam atrações e curiosidades.
114
Durante a última década do século XIX, o Dr. Ochi Ikkaku (?-?) fotografou seus pacientes com
deformações congênitas e patológicas. As 365 fotografias ficaram esquecidas numa caixa até que foram
encontradas pelo marchand e colecionador de artes Naruyama Akimitsu (?-) e publicadas no livro Dr. Ikkaku
Ochi Collection – Medical Photographs from Japan Around 1900, da editora suíça Scalo (NARUYAMA,
2003). Algumas imagens apresentam doenças em estágios que seriam inconcebíveis hoje em dia com os
cuidados médicos disponíveis (medicamentos e vacinação).
66
Figura 49 – Inada Kyuzô Shinsuke 稲田九蔵新助, estampa de Tsukioka Yoshitoshi 月岡芳年 (1839-1892)
pertencente à série Eimei Nijûhasshûku 英名二十八衆句 (Vinte e Oito Nomes Lendários em Esplêndidos
Versos), publicada por Kinseidô 錦盛堂. 24,5 x 35,8 cm, 1866 (MARUO et al., 1988, p. 91).
67
Figura 50 – Kusô-zu 九想図 (Nove Desenhos Imaginados). Nove estágios de decomposição do corpo de uma
cortesã. O mosaico apresenta detalhes de um rolo de seda com pinturas de Kobayashi Eitaku 小林永濯 (1843-
1890). 25,5 x 501,5 cm, ca. 1870. Fonte: The British Museum (Museu Britânico).
68
Não é improvável que, durante o período Edo, um bom ilusionista tenha conseguido
convencer uma audiência de que uma jovem vestindo um rabo de peixe sobre as pernas fosse
capaz de respirar dentro de um aquário de vidro (figura 51). Mas, na verdade, as sereias
exibidas correntemente em um misemono eram corpos mumificados fabricados a partir de
partes de animais unidas com linha e papel (figuras 52 e 53).
Figura 51 – Mariko 毬子 (1936). Ilustração de Sudô Shige 須藤重 (1898-1946) para uma narrativa da escritora
Yoshiya Nobuko 吉屋信子 (1896-1973) na qual uma jovem é exibida como sereia ao público de um misemono.
Publicada como livro em mar. 1937, a obra foi primeiramente serializada na revista feminina Shôjo Kurabu
少女倶楽部 (Clube das Garotas) entre jan. 1936 e fev. 1937.
Nos séculos XVIII e XIX, múmias eram atrações populares nestes shows de
curiosidades e, com o tempo, as técnicas de taxidermia se desenvolveram até se tornarem
quase uma forma de arte. Assim como as sereias, os kappa eram um tema recorrente,
construídos a partir de corpos de animais como macacos, corujas e arraias.
A imagem apresentada na figura 49 é talvez a mais famosa das 28 que constituem a
série de estampas de Tsukioka Yoshitoshi e Ikkeisai Yoshiiku batizada como Eimei
Nijûhasshûku. Uma jovem mulher é sadisticamente amarrada de cabeça para baixo, com mãos
e pernas atadas e seios à mostra. De um corte feito com a espada em suas nádegas o sangue
69
Figura 54 – Fotografias do Dr. Ochi Ikkaku. À esquerda, uma jovem com deformação congênita. À direita, uma
mulher exibe o que parecem ser grandes tumores nas costas (NARUYAMA, 2003).
70
Figura 55 – Fotografias do Dr. Ochi Ikkaku. À esquerda, uma senhora sem boca e com um orifício no lugar do
nariz. À direita, uma jovem mulher apresenta uma grande deformidade facial (NARUYAMA, 2003).
escorre por todo o seu corpo e cai no chão formando poças. Seu rosto se contorce, não se sabe
se por dor e desespero ou se por um êxtase masoquista.
As informações contidas na estampa fazem supor que Shinsuke se vinga da mulher
porque esta manchou a reputação de um mestre de cozinha. O poema diz: “Ao cortar uma rã-
do-mar é como se estivéssemos numa cozinha”. O texto, traduzimos abaixo:
Antes uma flor tão orgulhosa da alta primavera, agora tão cheia de mágoa no
outono, a lua em Ôi 大井, o som de um bastão de ferro quebra o sonho de
uma longa noite; o vento sopra forte a grama neste dia agourento. Um prato
de salmão cortado em reverso é carmesim, uma faca de cozinha retalha um
melão em zombaria, um funeral para a tábua de carnes pelo ódio do fiel
servidor. Aconteceu numa casa do interior em Oyajuku 親宿 (VAN DEN
ING; SCHAAP, 1992, tradução nossa).
repulsiva e fascinante. O mesmo se pode afirmar das estampas contidas no rolo de seda
ilustrado por Kobayashi Eitaku que aparece na figura 50. O artista se baseia nas séries
temáticas budistas, conhecidas pelo nome de kusô-zu, que tinham o intuito de lembrar aos
devotos a impermanência das coisas e dos valores deste mundo, mas apresenta uma versão
laica a partir de um modelo inusitado (uma yûjo115), mostrando os nove estágios de
decomposição do corpo de uma bela cortesã, atualizando desta forma o modelo pictórico-
religioso.
Se por um lado é aversiva a ideia de acompanhar o processo de decomposição de um
corpo, o expediente de usar como modelo uma mulher cuja vida era voltada para o sexo e a
propiciação de prazer coloca lado a lado, em simultânea interferência, o erótico e o grotesco,
o atraente e o repugnante. A primeira estampa, apresenta a cortesã em vida, belamente vestida
numa pose sensual; a segunda apresenta o corpo nu da mesma, recém-morta, necrofilicamente
erótica; as demais constroem a decomposição corporal, do abjeto ao nada.
Se prestarmos agora atenção às fotografias do Dr. Ochi Ikkaku contidas no livro
editado por Maruyama Akimitsu, é possível perceber que o médico era também um habilidoso
fotógrafo. Ochi registrava seus pacientes de forma respeitosa em fotografias científica, técnica
e até mesmo esteticamente competentes.
As fotografias apresentadas na figura 54, por exemplo, apesar das deformidades
corporais, são bastante eróticas e plasticamente equilibradas. Nós temos duas jovens, a
primeira delas provavelmente adolescente, com os cabelos arrumados ao estilo shimada,
exibindo seus corpos seminus. A primeira delas olha direto para a câmeras, reconhecendo o
espectador ao exibir simultaneamente seu seio (do lado direito de seu corpo) e sua
deformidade (do lado esquerdo). A segunda, involuntariamente sensual, exibe o pescoço e as
costas, com o cabelo preso em um coque; seus tumores são como um adorno insólito.
Esta relação entre carnal e grotesco parece existir também no cerne da etimologia do
youkai. O caractere 妖 não é usado somente com a acepção de monstro, mas agrega também
outros significados. O termo namameku 妖く, por exemplo, pode ser entendido como “ter uma
aparência sedutora, encantadora”. Já ayashii 妖 し い qualifica algo como “misterioso,
fascinante”. O próprio termo monstro, usado para traduzir bakemono 妖, é empregado não
apenas para denotar um ser pavoroso ou ameaçador, mas também para identificar uma
criatura que impressiona, seja pela abjeção (como a kuchisakeonna), seja pela sedução (como
a raposa).
____________________
115
Yûjo 遊女 (“mulher de brincar”): inclui várias categorias de cortesãs, inclusive a das prostitutas comuns.
72
declínio do interesse pelo sobrenatural e pelo fantástico, abafado pelo desejo de modernização
e europeização do Japão.
É somente na segunda metade do século XX que os youkais voltam a ganhar uma
popularidade similar à que detinham no período Edo. Isso se deve em grande parte à
publicação do mangá Hakaba no Kitarô 墓場の鬼太郎 (Kitarô do Cemitério), de Mizuki
Shigeru, no final da década de 1950. Outro importante veículo de popularização dos youkais
no séc. XX foi a trilogia de filmes118 infanto-juvenis do final da década de 1960 iniciada com
Yôkai Daisensô (1968), onde pelo menos quarenta tipos de youkais são personagens. Essa
tradição de congregar inúmeros youkais numa única obra é herdeira das hyakki yagyô e se
perpetuou em filmes como, por exemplo, Sakuya Yôkaiden119 (2000) e o remake de Yôkai
Daisensô (2005).
Mas nem sempre os youkais aparecem em conjunto. Em Kaidan Honjô Nanafushigi120
(1957), por exemplo, um tanuki121 aparece individualmente. O mesmo acontece nas populares
séries de filmes contendo bakeneko122 e hebionna123.
É verdade que a popularidade dos youkais regride em alguns períodos, mas logo
aparece um novo boom, instigado por algum mangá, livro, filme ou mesmo novela. Em 2010,
________________________
118
A trilogia é formada pelos longa-metragens Yôkai Daisensô 妖怪大戦争 (A Grande Batalha Youkai), de 1968,
dirigido por Kuroda Yoshiyuki 黒田義之 (1928-); Yôkai Hyakumonogatari 妖怪百物語 (Cem Narrativas
com Youkais), também de 1968, dirigido por Yasuda Kimiyoshi 安田公義 (1911-1983); e Tôkaidô Obake
Dôchû 東 海 道 お 化 け 道 中 (Peregrinação de Monstros em Tôkaidô), de 1969, dirigido por Yasuda
Kimiyoshi e Kuroda Yoshiyuki.
119
Sakuya Yôkaiden さくや妖怪伝 (Sakuya, a Lenda dos Youkais): filme de 2000 contendo inúmeros youkais
dirigido por Haraguchi Tomô 原口智生 (1960-).
120
Kaidan Honjô Nanafushigi 怪談本所七不思議 (História Extraordinária das Sete Maravilhas de Honjô):
filme dirigido por Kadono Gorô 加戸野五郎 (?-?) que conta a história de um tanuki que, agradecido ao ter a
sua vida poupada, protege secretamente a família de seu benfeitor.
121
O tanuki 狸 (cão-guaxinim) é um canídeo, frequentemente confundido com o guaxinim (um procionídeo,
como os quatis e juparás) ou o texugo (um mustelídeo, como as doninhas e furões). No folclore japonês, ele é
um transmorfo como a raposa. É capaz de assumir a forma humana e também a de objetos ou de outros
animais. Dócil, gosta de pregar peças inofensivas.
122
Bakeneko 化け猫 (gato transmorfo): ente sobrenatural que surge a partir de um gato. Da mesma forma que as
raposas e o tanukis, é um transmorfo capaz de assumir a forma humana. Popular no cinema, de 1912 a 1975
foram feitos nada menos do que 66 filmes sobre o youkai. Em geral, o gato se torna um youkai após a morte
violenta e injusta de sua dona, assumindo para si o papel de vingador sobrenatural. Isto acontece, por
exemplo, nos filmes Bôrei Kaibyô Yashiki 亡霊怪猫屋敷 (A Casa do Gato-Monstro Fantasma), de 1958,
dirigido por Nakagawa Nobuo 中川信夫 (1905-1984) e Kaibyô Otama ga Ike 怪猫お玉が池 (O Gato-
Monstro do Lago Otama), de 1960, dirigido por Ishikawa Yoshihiro 石川義寛, bem como nos arcos
narrativos de nome Bakeneko das séries de animação para TV 怪 ~ayakashi~ (2006) e Mononoke モノノ怪
(2007), dirigidos por Nakamura Kenji 中村健治 (1970-).
123
Hebionna 蛇女 (mulher-serpente): inspirada provavelmente na lenda chinesa Báishé Chuán 白蛇传
(Narrativa da Serpente Branca), na qual duas serpentes, uma branca e uma verde, se disfarçam como duas
belas jovens. No filme Kaidan Hebionna 怪談蛇女 (Narrativa Extraordinária da Mulher-Serpente), de 1968,
dirigido por Nakagawa Nobuo 中 川 信 夫 (1905-1984), as serpentes vingam a morte de uma família
injustiçada por um senhor de terras.
74
Figura 56 – Fotos de divulgação encontradas no site do Nihon no Oni no Kôryû Hakubutsukan. Disponível em:
<http:// www.city.fukuchiyama.kyoto.jp/onihaku/tenji/index.html>. Acesso em: 30 out. 2013.
conhecida originalmente como Hakaba no Kitarô, renomeada para Gegege no Kitarô após ser
adaptada para a televisão em 1968. Diferente de Komatsu Kazuhiko, por exemplo, Mizuki foi
sempre um pesquisador autodidata, não-acadêmico (MIZUKI PURODAKUSHON, 2003).
Ainda assim, é conhecido por ter publicado um sem-número de livros sobre personagens
folclóricos do Japão e do mundo.
As demais sessões do museu se preocupam em exibir os youkais do Japão (figuras 57
e 58) e do mundo. Seu interior não pode ser filmado nem fotografado, mas estão disponíveis
para compra catálogos e livros sobre o museu, sobre os youkais, sobre Mizuki Shigeru e
também sobre Gegege no Kitarô. A visita se conclui com uma exposição de quadros
desenhados por Mizuki com versões das Tôkaidô Gojusan Tsugi 東海道五十三次 (Cinquenta
e Três Estações de Tôkaidô), desenhadas originalmente por Utagawa Hiroshige 歌川広重
(1797-1858). Nas versões revisitadas de Mizuki, os youkais participam de todas as pinturas
(MIZUKI, 2008).
Figura 57 – Foto da sessão Yôkai no Apâto 妖怪の Figura 58 – Estátua de cera de um azukihakari126
アパート (Apartamento dos Youkais) no interior do exibida no interior do Mizuki Shigeru Kikaikan.
Mizuki Shigeru Kikaikan. Nela aparecem vários Disponível em: <https://bs.benefit-one.co.jp/bs/sc
personagens de GeGeGe no Kitarô. Disponível em: sbb/pages/bs/srch/menuPrticSrchRslt.faces?menu
<https://bblife.jp/bs/scsbb/pages/bs/srch/menuPrticSr No=672604>. Acesso em: 27 jun. 2012.
chRslt.faces?menuNo=672604&su=r&pageNo=1>.
Acesso em: 27 jun. 2012.
O Mizuki Shigeru Kikaikan fica numa pequena cidade portuária do noroeste do Japão,
Sakaiminato 境港 (província de Tottori 鳥取, ao norte de Hiroshima 広島), conhecida por
____________________
126
Azukihakari 小豆はかり (contador de feijões): é provavelmente uma variação do azukiarai, embora suas
características físicas sejam muito diferentes. Ele usa barba, bigode e tem os cabelos compridos e
desgrenhados como numa juba. É raramente visto, mas sim reconhecido pelos sons que faz ao contar feijões.
Diferente do azukiarai, ele vive em sótãos e jardins, à espera de uma oportunidade para entrar na casa.
76
ser a cidade natal do desenhista. Ela vive do transporte de carga, da pesca e do turismo. Um
navio de cruzeiro une-a a Vladivostok Владивосток, na Rússia, e a Donghae 동해, na Coreia.
Durante o ano, milhares de turistas do Japão e de fora visitam a cidade para ver a Mizuki
Shigeru Rôdo 水木しげるロード (Estrada Mizuki Shigeru), uma avenida repleta de estátuas de
bronze representando youkais inaugurada em 1996 (MIZUKI PURODAKUSHON, 2011a,
2011b).
Figura 59 – Visões externa e interna do trem da JR decorado com a personagem Nekomusume127. Fotos do autor.
28 jan. 2012.
____________________
127
Nekomusume 猫娘 (Menina-Gato): personagem de Gegege no Kitarô que guarda certa semelhança com o
bakeneko 化け猫 (gato transmorfo). Quando enfurecida ou com vontade de comer peixe ela se transforma
numa gata-monstro com garras afiadas.
128
Medama-Oyaji 目玉親父 (Pai Globo Ocular): pai do personagem principal de Gegege no Kitarô, que morreu
de uma doença e renasceu a partir de um dos olhos de seu corpo decomposto. É um grande conhecedor dos
fantasmas e monstros. Adora saquê e tomar banho numa tigela.
77
Muitos destes turistas chegam à cidade utilizando os trens da JR (Japan Railways) que
fazem linha entre Yonago 米子 e Sakaiminato e são ornamentados com personagens de
Mizuki (figura 59). Quase tudo na cidade é decorado com personagens de Gegege no Kitarô
(figuras 60 e 61).
Durante o dia as ruas e as lojas estão repletas de turistas, interessados em ver e
fotografar as estátuas e em comprar produtos relacionados com o tema da cidade. Há até
mesmo lojas que vendem produtos alimentícios em forma de youkai (figuras 62 e 63). Com
tantas estátuas e turistas, estar na cidade é como estar numa peregrinação religiosa aos entes
folclóricos sobrenaturais (figura 64).
Figura 64 – Montagem feita a partir de fotos de estátuas de bronze da Mizuki Shigeru Rôdo 水木しげる
ロード (Estrada Mizuki Shigeru), em Sakaiminato 境港. Fotos do autor. 28 e 29 jan. 2012.
partir dos caracteres 亡 (findo) e 霊 (espírito), que possui sobretons mais literários ou
intelectuais e é frequentemente utilizado em títulos de filmes.
Ikiryô é um termo específico para designar o espírito que deixa o corpo de uma pessoa
ainda viva e age como um ser independente. Surge quando uma pessoa guarda
dentro de si uma emoção forte e negativa contra outra e acaba por liberar seu espírito,
frequentemente sem qualquer consciência deste fato. Em termos psicanalíticos, o ikiryô age
como se fosse a materialização do inconsciente freudiano, atacando por vontade própria a
pessoa por quem se sente ciúme, rancor ou inveja. É extremamente difícil de ser visto – já que
ele age como se fosse uma doença (mononoke), sugando a energia de sua vítima e matando-a
pouco a pouco.
É quase impossível livrar-se dele. Conforme a época, procura-se uma miko, monges
budistas ou um onmyôji para efetuar um exorcismo, mas o ritual é frequentemente frustrado
diante do poder do ikiryô. Na literatura, é comum encontrar narrativas onde o espírito de uma
mulher deixa o corpo motivado pelo ciúme. O caso mais canônico é do personagem Rokujô
no Miyasudokoro 六条御息所 em Genji Monogatari133 (séc. XI).
Viúva, ela teria se tornado imperatriz não fosse a morte prematura de seu marido –
provavelmente, um dos irmãos de Kiritsubo no Mikado 桐壺帝 (Imperador Kiritsubo). Sete
anos mais velha que Genji, tem com ele uma relação romântica que não dura muito tempo.
Deprimida pelo fato de ele parar de procurá-la e, mais tarde, humilhada por um incidente
durante o Kamo Matsuri134 (no qual sua carruagem teve que dar passagem para a da esposa de
Genji), Rokujô começa a ruminar sentimentos de orgulho ferido, baixa-estima, rancor, ciúme
e inveja. No texto, encontram-se pistas que indicam que seu espírito deixou o corpo e foi
responsável pela morte de uma das várias amantes de Genji – Yûgao 夕顔 – e também pela
doença que tirou a vida de sua esposa – Aoi no Ue 葵の上.
Rokujô não tem consciência das atividades prejudiciais de seu espírito, mas começam
a circular rumores de que ela teria sido a responsável pela morte de Aoi. Isso lhe é doloroso,
pois na verdade ela tem pena do bebê recém-nascido do casal – Yûgiri 夕霧 – e sente-se
__________________________
133
Genji Monogatari 源氏物語 (Narrativas de Genji). Obra escrita nos primeiros anos do século XI pela dama
de companhia da corte Murasaki Shikibu 紫式部 (ca.978-ca.1025). O episódio do capítulo IX em que Aoi
morre devido à influência do ikiryô de Rokujô no Miyasudokoro foi adaptado por Zeami Motokiyo 世阿弥
元清 (ca.1363-ca.1443) para uma peça de teatro nô intitulada Aoi no Ue 葵の上 (ZEAMI, 2010).
134
Kamo Matsuri 賀茂祭 (Festival de Kamo). O Kamo no Jinja 賀茂神社 (santuário de Kamo) é um complexo
de santuários xintoístas que fica na atual cidade de Quioto. Foi construído ao nordeste de Heian para evitar a
entrada de demônios na cidade, já que o nordeste é a direção de mau-agouro (kimon) da geomancia chinesa
(fēng shuǐ), como se viu. O santuário dá nome ao mais antigo festival xintoísta da cidade, que acontece todo
ano no dia 15 de maio.
80
No entanto, se os ritos não são realizados (ou são realizados de forma incompleta) ou
se uma pessoa morre de maneira súbita ou violenta, ou ainda se alguém morre sob o efeito de
fortes emoções como a tristeza, o ódio, o desejo de vingança, a paixão, o amor ou o ciúme,
diz-se que o reikon cruza mais uma vez a ponte que o separa do mundo físico retornando
como um fantasma.
O yûrei permanece neste mundo até que encontre o descanso, seja através da
realização dos ritos não cumpridos, da resolução do conflito emocional que o mantém neste
mundo ou da conclusão de sua vingança.
Iwasaka e Toelken (1994) se valem dos conceitos de on 恩, giri 義理 e ninjô 人情 para
explicar o retorno dos espíritos ao mundo dos vivos e sua permanência no mesmo. O conceito
de on é definido pela ligação que surge entre duas pessoas quando uma delas recebe algo da
outra. Aquela que recebe, estando em débito moral com aquela que doa, adquire a obrigação
de devolver o favor recebido, surgindo uma relação pessoal e particular entre os dois
indivíduos. O conceito de giri, que pode ser traduzido por “dever social”, se define pela
necessidade ética de se comportar de acordo com o que é esperado pela sociedade como um
todo (giri é a força que mantém a coesão das instituições sociais). Já o conceito de ninjô, que
se define a partir das inclinações, dos sentimentos e dos desejos pessoais do indivíduo, é
psicológico e pessoal, contrastando com o de giri, que é moral e social (BENEDICT, 1997).
Estas três noções aparecem como pano de fundo de muitas histórias japonesas, seja
como conteúdo narrativo (definindo, por exemplo, o conflito interno de um personagem que
se encontra no dilema de decidir entre o dever para com a sociedade e o desejo pessoal) ou
como delineador/ auxiliar interpretativo (como na afirmação de que o onryô de uma mulher
traída pode ser visto como personalização de seu ninjô).
Em tese, não existiria conflito entre giri e ninjô. É comum que os sentimentos do
indivíduo estejam de acordo com as expectativas da sociedade. O conflito surge quando existe
discrepância muito grande entre os desejos pessoais e a vontade da sociedade. Priorizar os
interesses da sociedade pode vir a significar o detrimento da escolha pessoal enquanto que a
identificação plena com o ninjô resulta em censura social e sanções de vários tipos e níveis
(BEFU, 1993, pp. 25-8).
De acordo com Iwasaka e Toelken (1994), os espíritos retornam do outro mundo e
aqui permanecem como fantasmas porque nenhum destes três deveres (on, giri ou ninjô) cessa
com a morte. O yûrei não descansa até que o débito – com outra pessoa, com a sociedade ou
consigo mesmo – seja satisfeito. A maneira mais fácil de fazer com que o espírito possa seguir
de volta ao mundo dos mortos para buscar renascimento é ajudá-lo a cumprir seu propósito.
83
Quando a ligação emocional que o prende a este mundo é rompida, o reikon pode seguir em
frente. Isso acontece quando, por exemplo, os membros da família se vingam pela morte do
yûrei, quando o fantasma consuma a paixão pelo seu objeto de desejo ou quando seus restos
mortais são descobertos e um funeral apropriado é realizado.
Embora desde o início apareçam fantasmas na literatura japonesa, a representação
visual dos yûrei de forma distinta à da representação de pessoas só se estabeleceu no período
Edo, a partir do século XVIII. Como vimos anteriormente, em Genji Monogatari o espírito de
Rokujô no Miyasudokoro, seja em vida (ikiryô) ou após a sua morte (onryô) é designado pela
palavra mononoke, um termo da época do qual já tratamos (pp. 61-4). O mononoke é tido
como causador de doenças e de morte, mas seja ele um ikiryô, um onryô ou mesmo o espírito
de uma raposa, em Heian ele não é visto, não tem forma, é antes pressentido ou ouvido (pela
boca do médium ou da vítima de possessão). Assim, nesse período o mononoke não é
representado pictoricamente, a não ser indiretamente, por meio da figura do possuído ou da
miko.
No entanto, nos períodos seguintes, surgem novos gêneros de pintura, como os jigoku
zôshi138 (figuras 65 e 66) e os hyakki yagyô (figura 67). Desta forma, é no final do período
Heian ou no início do Kamakura139 que aparecem as primeiras representações pictóricas de
youkais e de yûrei: os demônios (oni) e as almas humanas que, torturadas nos vários infernos
budistas, simplesmente aparecem com a forma que tinham em vida.
No período Muromachi, as pinturas com temática hyakki yagyô 百鬼夜行 (parada
noturna dos cem demônios) retratam vários140 entes sobrenaturais num desfile quase
carnavalesco (figura 67).
Este gênero de pinturas feitas geralmente em rolos de papel se inspirou em lendas que
contam a história de um nobre que se depara com uma parada noturna de demônios. Estas, por
sua vez, se basearam num mito xintoísta que diz que, uma vez por ano, os kami (deuses
xintoístas) se reúnem nas Kumano Sanzan 熊野三山 (As Três Montanhas de Kumano), em
Wakayama 和歌山 (ROBERTS, 2009, p. 54).
Numa hyakki yagyô do período Muromachi (1336-1573), da qual apresentamos um
detalhe na figura 67, vemos vários youkais a desfilar em procissão, embora eles não sejam
_______________________
138
Jigoku zôshi 地獄草紙 (livro do inferno): rolo de pintura nos quais vemos representações dos espíritos das
pessoas sendo torturadas por demônios nos vários infernos budistas.
139
Kamakura-jidai 鎌倉時代 (1185-1333): período histórico japonês caracterizado pelo estabelecimento do
xogunato e pela ascensão da classe guerreira (os samurai).
140
O termo hyakki 百鬼 (cem demônios) indica “uma grande quantidade de oni”, não necessariamente uma
centena.
84
Figura 65 – Detalhe de um jigoku zôshi 地獄草紙 (livro do inferno) onde vemos espíritos mergulhados em lava
ou queimados por ela se contorcendo de dor num dos muitos reinos infernais do budismo japonês. Autor
desconhecido. 26,9 × 249,3 cm, séc. XII ou XIII. Fonte: Tôkyô Kokuritsu Hakubutsukan 東京国立博物館
(Museu Nacional de Tóquio).
identificados por um nome de maneira particularizada (quaisquer que sejam suas formas, são
designados pelo termo oni). Será gradualmente, com o correr do tempo, que os entes
sobrenaturais passarão a ser substantivados conforme o comportamento e a aparência.
Como seria difícil tratar aqui da história da representação de cada um dos youkais e já
que no início deste trabalho encontram-se exemplos de evolução na caracterização de alguns
deles, nós os abandonaremos por enquanto e prosseguiremos investigando como os fantasmas
são estereotipicamente estilizados na cultura japonesa.
No século XVII, quando as hyakumonogatari kaidankai se tornaram populares e
cresceu a demanda por obras com temática fantástica na literatura e no teatro kabuki, os yûrei
começaram a ganhar certos atributos que os distinguissem imageticamente das pessoas vivas,
85
Figura 66 – Detalhe de um volume de jigoku zôshi onde vemos um demônio a observar as almas atormentadas de
um dos infernos budistas japoneses, o kanryôsho 函量所 (lugar com grande quantidade de caixas contendo
fezes). Autor desconhecido. 26,5 × 454,7 cm, séc. XII. Fonte: Nara Kokuritsu Hakubutsukan 奈良国立博物館
(Museu Nacional de Nara).
Figura 67 – Detalhe de um hyakki yagyô emaki 百鬼夜行絵巻 (rolo de pintura com a parada noturna dos cem
demônios) de autor desconhecido do período Muromachi (TANIGAWA, 1987).
fantasma japonês: o cabelo despenteado, o quimono branco e a parte inferior do corpo que se
dissipa gradativamente começam a se definir como características indicadoras de um yûrei.
Os cabelos compridos, soltos e revoltos, não eram novidade na representação de
fantasmas no Japão. Se observarmos as figuras 65 e 66, vemos que as almas tanto de mulheres
quanto de homens são representadas geralmente com o cabelo dessa maneira. Desde o período
Heian, o cabelo comprido era comum em ambos os gêneros. Assim, nas representações
pictóricas dos infernos, sob o tormento das torturas, os espíritos aparecem nus e também
despidos de qualquer acessório para prender ou enfeitar os cabelos em desalinho. No entanto,
no período Edo não era normal ver japoneses com o cabelo completamente solto – homens e
mulheres mantinham-no cotidianamente preso, indicando sua posição na sociedade por meio
de diversos, às vezes bem complexos, estilos de penteado.
O fato de que os cabelos desmanchados se distanciem do dia-a-dia japonês no período
Edo possibilita que ele seja usado para representar de forma distinta as aparições
fantasmagóricas (SUMPTER, 2006, p. 10).
No budismo, a morte marca o início de um novo ciclo, uma viagem até o mundo dos
mortos, onde o espírito aguardará nova oportunidade para se reencarnar. Assim, num funeral
budista tradicional, os mortos são vestidos como peregrinos realizando sua última viagem –
shidenotabi 死出の旅 (viagem de saída para a morte). Um jogo de diversas peças de roupa
chamado shinishozoku 死に装束 (traje para o momento da morte) é usado para vestir o
cadáver. A peça principal do conjunto de vestes funerárias é um tipo de katabira142 branco
conhecido pelo nome de kyôkatabira143 (figura 69 ).
O branco é a cor da pureza na tradição xintoísta, religião que estimula homens e
mulheres a se manterem puros, afastando-se ou limpando-se das kegare144, sejam estas
voluntárias ou involuntárias. É sob esta ótica que vestimentas brancas vêm a ser usadas
ritualmente apenas por sacerdotes, noivas e cadáveres, bem como por homens cometendo
seppuku145. Quando o budismo chegou ao Japão no séc. VI, não demorou a sincretizar-se com
a religião nativa (o xintoísmo), tornando-se diferente do budismo com origens indianas. Com
___________________________
142
Katabira 帷子: quimono leve feito de cânhamo.
143
Kyôkatabira 経帷子: katabira contendo escrituras budistas – kyô 経 (sutra) – tradicionalmente usadas para
vestir o morto nos funerais budistas.
144
Kegare 穢れ ou 汚れ: basicamente, as impurezas adquiridas por relações carnais ou pelo contato com sangue,
cadáver, etc. No xintoísmo não se encontram códigos morais muito definidos, mas acredita-se que se deva
passar a vida num estado de pureza. As kegare pode ter origem voluntária – tsumi 罪 (ofensa) – ou
involuntária – faltas não-intencionais, calamidades, menstruação e outros. Contra as kegare são feitos rituais
de purificação ou de exorcismo.
145
Seppuku 切腹: suicídio ritual por esventramento, mais conhecido no ocidente pelo termo harakiri 腹切り
(cortar a barriga).
89
o decorrer dos séculos, as duas religiões voltaram a se separar (no período Meiji), cada uma
delas cobrindo preferencialmente um aspecto da humanidade – os kami 神 do xintoísmo
cuidam destacadamente dos aspectos relacionados à vida dos homens e os iluminados
budistas, os bosatsu 菩薩, cuidam de suas almas após a morte. Mas, como vemos por este
exemplo do uso da cor branca nos funerais budistas, esta ruptura não é total.
Tradicionalmente, o lado direito da kyôkatabira deve ser dobrado sobre o esquerdo.
Esse costume originou-se na China, onde a forma como uma vestimenta era dobrada
denunciava a sua posição na hierarquia da mesma forma que suas cores. Os de hierarquia
inferior usavam suas roupas dobrando o lado esquerdo sobre o direito enquanto os nobres
faziam o inverso. Assim, para honrar os mortos e não incorrer em sua ira, dobra-se as
vestimentas dos cadáveres da mesma forma em que são dobrados os trajes das pessoas ilustres,
sem dar atenção à sua sua origem social.
Desta forma, segundo Davisson (2012), o shinishozoku agrega três significados: o de
que o morto foi enobrecido (em relação à hierarquia humana), tornou-se ritualmente puro (de
acordo com os preceitos xintoístas) e agora é um andarilho santificado em sua última jornada
(segundo a tradição budista).
Dentre as várias peças que compõem o shinishozoku (figura 69) é interessante destacar
a zutabukuro 頭陀袋 (sacola de pano), uma pequena bolsinha (figura 69 )que serve para
carregar as seis moedas usadas para pagar a viagem através do Estige japonês, o Sanzu no
Kawa 三途の川 (rio dos Três Caminhos), o rio que leva os mortos ao mundo inferior146.
É importante destacar também a hitaikakushi147 (figura 69 ), uma bandana branca
em forma triangular usada para cobrir a testa do morto no funeral budista tradicional e que se
tornou um indicador simbólico dos yûrei (da mesma maneira que o halo sobre a cabeça é um
símbolo de santidade na iconografia cristã).
O hitaikakushi é identificado também por outros nomes, em geral simplesmente
descritivos, como kamikakushi 髪隠 (o que esconde o cabelo), hitaibôshi 額帽子 (chapéu de
testa) ou zukin 頭巾 (capuz). É possível que seu uso tenha sido inspirado pelas tenkan 天冠
(coroas celestes), diademas colocados sobre a cabeça de Buda e de outros seres celestiais.
Alguns dizem que a ponta do triângulo de pano branco evita que os maus espíritos consigam
___________________
146
O inferno japonês – jigoku 地獄 (prisão subterrânea) – difere do inferno abraâmico pois funciona como o
purgatório e não como um lugar de condenação eterna. Além disso, o jigoku recebe todas as almas dos mortos,
tenham eles sido em vida bons ou maus, e elas nele permanecem somente até que estejam redimidas ou
preparadas para a reencarnação.
147
Hitaikakushi 額隠: literalmente, “o que esconde a testa”.
90
entrar no corpo agora vazio, ressuscitando-o ou dificultando sua transição para o outro mundo;
outros, que o hitaikakushi é usado para caracterizar o novo status em que se encontra o morto
(DAVISSON, 2011).
Os hitaikakushi são associados de forma particular à representação dos youkais do mar
conhecidos por funayûrei148 (figuras 71 e 72). À exceção destes marinheiros, o uso de panos
brancos triangulares nas representações de fantasmas é visto hoje em dia como um recurso
alegórico frente a representações mais “realistas” como a de Maruyama Ôkyo (fig. 68 p. 87).
Hoje parece que os fantasmas não têm pés, mas todo espectro pintado cem
anos atrás tinha pés... O tipo de aparição sem pés surgiu não há muito tempo
e se originou de Maruyama Ôkyo. Desde que ele concebeu esta maneira de
pintar as almas dos mortos, ela se espalhou pelo país como um jato de luz
(KATÔ149 apud KAJIYA, 2001, p. 99).
Esta característica foi rapidamente emprestada pelo teatro kabuki, onde o ashi ga nai
yûrei 足がない幽霊 (fantasma sem pernas) era representado a partir do uso de um quimono
longo. Em algumas montagens, chegava-se mesmo a fazer o ator flutuar pelo ar, por meio de
uma série de traquitanas, cordas e polias.
No entanto, o fato de Ôkyo ter influenciado os artistas que apreciaram a sua concepção
estética de fantasma não significa que antes de Oyuki no Maboroshi não houvessem
representações com características semelhantes.
Suwa Haruo 諏訪春雄, por exemplo, em seu livro Nihon no Yûrei 日本の幽霊
(Fantasmas do Japão), apresenta uma ilustração (figura 73) retirada de um libreto da peça de
jôruri (ver nota 85 p. 48) chamada Kazan no In Kisaki Arasoi150 (1673).
A peça conta a história de duas mulheres que competem pela atenção do imperador.
Fujitsubo 藤壺 trama a morte de sua rival Kokiden 弘徽殿 com ajuda de um guerreiro
pertencente à casa Heike 平家, mas seus planos são arruinados por um outro da casa Genji
源氏. Com isso, Fujitsubo é enviada ao exílio, mas seu espírito, desejando vingança, retorna a
Kokiden e espanca-a violentamente com uma bengala. Fujitsubo deixa o aposento dizendo-se
satisfeita, mas os ferimentos inflingidos a Kokiden são tão profundos que esta acaba
morrendo pouco tempo depois.
Na figura 73 vemos (no alto, à direita) o espírito de Fujitsubo segurando o cajado e
adentrando o quarto de Kokiden. A representação da personagem concorda com as
_________________
149
KATÔ, Jakuan. Ashi Naki Yûrei (Fantasmas sem Pés). In: KATÔ, Jakuan. Saezuri Gusa (Esboço sobre
Gorjeios). JAKUAN, Nagafusa (ed.). Tóquio: Ichido, 1911. pp. 118-19. v. 2 Matsu no Ochiba (Folhas Caídas
do Pinheiro).
150
Kazan no In Kisaki Arasoi 花山院后諍 (Disputa para se Tornar a Esposa do Imperador Kazan). Peça de
jôruri (narrativa acompanhada por instrumento musical) atribuída a Chikamatsu Monzaemon 近松門左衛門
(1653 - 1724).
92
Figura 73 – O espírito de Fujitsubo 藤壺 (no alto, à esquerda) invade o quarto de Kokiden 弘徽殿 (no alto, à
direita) para se vingar. Reprodução da ilustração de uma cena de Kazan no In Kisaki Arasoi 花山院后諍
(Disputa para se Tornar a Esposa do Imperador Kazan) contida num libreto de 1673. O texto do jôruri é
atribuído a Chikamatsu Monzaemon 近松門左衛門 (1653-1724), mas o autor das estampas é desconhecido. O
original tem 19,5 x 14,3 cm e se encontra no Waseda Daigaku Tsubouchi Hakase Kinnen Engeki Hakubutsukan
早稲田大学坪内博士記念演劇博物館 (Museu Memorial do Teatro Doutor Tsubouchi, Universidade de
Waseda) (KAJIYA, 2001, p. 101).
Figura 74 – Ilustração retirada da primeira edição impressa de Genji Monogatari 源氏物語 (Narrativas de
Genji), na qual vemos o corpo de Yûgao 夕顔 ao chão (à esquerda) e Genji 源氏 olhando em direção ao espectro
evanescente de Rokujô no Miyasudokoro 六条御息所 (no alto, à direita). Estampa de Yamamoto Shunshô 山本
春正 (1610-1682). 14,5 cm x 19 cm, 1654. Um exemplar pode ser encontrado na Tôkyô Daigaku Toshokan 東京
大学図書館 (Biblioteca da Universidade de Tóquio) (KAJIYA, 2001, p. 102).
94
Levando isso em conta, a mais antiga representação de um ashi ga nai yûrei (fantasma
sem pernas) que conseguimos localizar é uma ilustração (figura 75) do artista Sawaki Sûshi
佐 脇 嵩 之 (1707-1772) contida no Hyakkai Zukan 百 怪 図 巻 (Rolo Ilustrado dos Cem
Monstros), rolo pintado em cerca de 1737.
Na figura 75 vemos um espectro feminino esquelético, coberto por vestes
transparentes e evanescentes. Com cabelos compridos despenteados, dentes enegrecidos e
olhos semi-cerrados, a aparição caminha com os braços dobrados em “L” e os dedos das mãos
disjuntos e voltados para baixo.
Discussões de primazia à parte, segundo Katô Jakuan (como vimos na p. 91) o ashi ga
nai yûrei começou a se consolidar na cultura japonesa a partir de Oyuki no Maboroshi (fig. 68
p. 87), de Maruyama Ôkyo. A afirmação de que “os fantasmas japoneses não têm pés” é senso
comum entre os japoneses, permitindo observações poéticas como a que encontramos no
filme 'Chô' kowai hanashi A: yami no karasu151 (2004).
Neste filme, um personagem chamado Tejima 手嶋 teve seus pés amputados devido a
um acidente. Sentado em sua cadeira de rodas, ele observa as pessoas que transitam pela rua:
“Todos têm pés. [...] Os fantasmas é que não têm”152. Com uma lágrima escorrendo pelo rosto,
ele dá a entender que se sente afastado do resto da humanidade. Ao fim do filme, seu espectro
aparece à distância para Kagami Ryôko 各務涼子, sua colega de trabalho, próximo ao chão,
mas flutuando no ar (figura 76). Pelo telefone, ele diz, aparentemente feliz: “Este lugar é
maravilhoso! Porque aqui ninguém tem pés”153. Embora não seja apresentado claramente o
que aconteceu com o personagem, é possível deduzir que agora ele está morto (suicidou-se,
provavelmente) e se sente confortável em meio aos espíritos que, como ele, não têm pés.
Apesar disto, existem exceções ao ashi ga nai yûrei. Em Botan Dôrô154 (1666), por
exemplo, o som das geta 下駄 (sandálias de madeira) caminhando pelas rua prenuncia a
___________________
151
'Chô' kowai hanashi A: yami no karasu 「超」怖い話A 闇の鴉 (Histórias ‘Extremamente’ Assustadoras A: O
Corvo da Escuridão), longa-metragem para cinema dirigido por Hoshino Yoshihiro 星野義弘 (?-), baseado
no livro homônimo de Hirayama Yumeaki 平山夢明 (1961-).
152
Hito ga iru yo...takusan. Takusan hito ga aruite’ru yo, Ryôko-chan. Minna... minna chanto ashi ga aru yo.
[...] Ashi ga nai no wa... boku dake da, ashi ga nai no wa. Shitte’ru? Obakette ashi ga nai daze. He, he... Ashi
ga nai n’da yo obake wa... ha, ha, ha, ha. 人がいるよ… たくさん。 たくさん人が歩いてるよ、涼子ちゃん。皆
… 皆ちゃんと足があるよ。[...] 足がないのは… 僕だけだ、足がないのは。知ってる? お化けって足がない
だぜ。へへー…足がないんだよお化けは… ハハハハ。(Há pessoas... muitas. Muitas pessoas andando,
Ryôko-chan. Todos... todos têm pés. [...] Quem não tem pés... é somente eu, quem não tem pés. Você sabia?
Os fantasmas é que não têm pés. He, hee... Quem não tem pés é um fantasma... ha, ha, ha, ha).
153
Kochira suteki da yo. Minna... ashi ga nai n’da. こちらすてきだよ。皆…足がないんだ。(Este lugar é
maravilhoso. Porque aqui ninguém tem pés).
154
Botan Dôrô 牡丹燈籠 (Lanterna com Peônias). Uma das narrativas contidas no Otogi Bôko 御伽婢子
(Bonecos Protetores) de Asai Ryôi 浅井了意 (1612-1691).
95
Figura 76 – Detalhe de uma cena de 'Chô' kowai hanashi A: yami Figura 77 – Detalhe da
no karasu 「 超 」 怖 い 話 A 闇 の 鴉 (Histórias ‘Extremamente’ reprodução em preto e branco de
Assustadoras A: O Corvo da Escuridão), longa-metragem para uma pintura creditada a Satake
cinema dirigido por Hoshino Yoshihiro 星野義弘, baseado no Eiko 佐竹 永湖 (1834-1909) na
livro homônimo (2003) de Hirayama Yumeaki 平山夢明 (1961-). qual, de acordo com Iwasaka e
Kagami Ryôko 各 務 涼 子 vê, à distância, o fantasma de seu Toelken, vemos o fantasma de
uma mulher representado com pés
supervisor, Tejima 手嶋, e conversa com ele através do celular. O
(IWASAKA; TOELKEN, 1994).
efeito de fantasma sem pés é obtido por meio da saturação da forte
luz do sol refletida sobre os calçados (ou meias) brancos do ator.
chegada dos fantasmas de Oyuki お雪 e de sua ama, sendo um elemento bastante importante
da narrativa. No entanto, é possível argumentar que, neste caso, a história é baseada num
conto chinês155 e, portanto, estas aparições não são propriamente japonesas.
Ainda assim, Iwasaka e Toelken (1994) apresentam em seu livro uma representação
pictórica do Japão onde os pés do yûrei aparecem, uma estampa (figura 77) que os autores
creditam a Satake Eiko 佐竹永湖 (1834-1909).
___________________
155
Mǔdān Dēng Jì 牡丹灯记 (Narrativa da Lanterna com Peônias), que se encontra no livro Jiǎn Dēng Xīn
Huà 剪灯新话 (Novas Histórias sob a Lamparina), escrito pelo chinês Qú Yòu 瞿佑 em 1378.
97
Na figura 81 vemos uma aparição feminina – uma velha com os cabelos soltos e
despenteados, de rosto horrendo, com os dentes escurecidos e as mãos magras e ossudas
dobradas para baixo. O fantasma veste um quimono de mangas longas cuja parte inferior se
desvanece.
Uma hipótese para o uso de mãos pendentes como signo de um yûrei é a de que estas
espelham as mangas dos quimonos, que pendem dos braços. Na figura 82 temos um
__________________
158
Ver <http://mgc.blog53.fc2.com/blog-date-200703.html> e também <http://ameblo.jp/funkynakamura/entry-1
0342566962.html>.
99
de fogo163, que representam as almas das duas vítimas. Mas durante a noite de núpcias, em
que Iemon mata sua nova esposa, Ume, pensando ser esta o fantasma de Oiwa, ele enfrenta
com a espada uma única hitodama (figura 87).
__________________
163
Antes dos efeitos gráficos computadorizados, as hitodama era obtidas na pós-produção por meio de um
processo relativamente simples: tochas eram filmadas sobre fundo negro e este negativo era sobreposto ao da
imagem onde as esferas de fogo deveriam aparecer. Outra possibilidade consistia em embeber em material
combustível uma esfera presa a um arame. O uso de tochas representando hitodama não é invenção do
cinema: o teatro já há muito apresentava as chamas fantasmagóricas em suas tramas (ver pp. 188 e 190).
101
Figura 86 – Cena do final de Yôkai Daisensô 妖怪大戦争 (A Grande Batalha Youkai), filme de 1968 dirigido
por Kuroda Yoshiyuki 黒田義之 (1928-). Nela, os youkais comemoram a vitória sobre o demônio babilônico
chamado Daimon ダ イ モ ン fazendo uma grande parada. As duas esferas flamejantes (hitodama) que os
acompanham indicam o caráter sobrenatural dos personagens, que desfilam em procissão comemorativa.
Figura 87 – Cena de Yotsuya Kaidan 四谷怪談 (História Extraordinária de Yotsuya), filme de 1956 dirigido por
Môri Masaki 毛利正樹 (1907-1962). Após matar por engano sua nova esposa Oume (caída no chão), Iemon luta
contra o espírito de sua ex-mulher, Oiwa, aqui representado por uma esfera de fogo (hitodama).
102
Figura 88 – Yamamura Sadako 山村貞子. Detalhe Figura 89 – Saeki Kayako 佐伯伽椰子. Detalhe
de uma cena de Ringu リング (Anel ou Toque de de uma cena de Juon: The Curse 2 呪怨2 The
Telefone), filme de 1998 dirigido por Nakata Hideo Curse (Rancor Amaldiçoado: A Maldição 2),
中 田秀夫 (1961-), baseado em livro homônimo longa-metragem em vídeo dirigido por Shimizu
(1991) de Suzuki Kôji 鈴木光司 (1957-). Takashi 清水崇 (1972-), exibido pela primeira
vez na TV em 25 mar. 2000.
103
Figura 90 – Capa da fita VHS de Izakaya Yûrei Figura 91 – Capa do livro Nihon no Obakebanashi 日本
居 酒 屋 ゆ う れ い (O Fantasma do Bar), のおばけ話 (Histórias de Fantasmas do Japão). A obra,
comédia de 1994 dirigida por Watanabe para alunos do quarto ano primário, apresenta versões
Takayoshi 渡邊孝好 (1955-), na qual Sôtarô infantis para histórias de fantasmas famosas no Japão.
壮太郎, viúvo que trabalha num bar, casa-se Autor da ilustração: Kai Kenji 甲斐謙二 (1952-). 21,5 x
novamente, mas tem ainda que conviver com o 15 cm.
fantasma da ex-esposa. 19,2 x 11,2 cm.
sim de uma comédia ao estilo Dona Flor e Seus Dois Maridos às avessas. A personagem da
esquerda, Shizuko しず子, é reconhecidamente um yûrei feminino: com cabelos longos, veste
uma katabira branca e usa uma hitaikakushi na testa. Deitada, abraça o amado com as mãos
pendendo dos pulsos; os pés não são visíveis.
Shizuko (assim como a garçonete da fig. 80 p. 98) está vestida de modo semelhante ao
do fantasma da estampa de Toriyama Sekien, apresentada na figura 70 (p. 87). Como já
dissemos anteriormente, esta é a forma que se consolidou tradicionalmente como estereótipo
de um fantasma feminino japonês. As aparições possuem cabelos compridos seguindo uma
tradição que começa com os rolos de pintura retratando as regiões infernais (figuras 65 e 66).
Mas, ainda que grande parte dos artistas japoneses tenha (conforme vimos na p. 91) se
baseado nas características apresentadas em Oyuki no Maboroshi ao figurar um yûrei, a
104
verdade é que não são infrequentes estampas em que os fantasmas femininos se apresentam
com penteados típicos do período Edo, como vemos nas figuras 93 a 94.
Na pintura em rolo de seda de Kawanabe Kyôsai 河鍋暁斎 (1831-1889), o espectro
feminino de uma velha magérrima se encontra iluminado por uma lanterna (figura 93). A
parte inferior do quimono branco é evanescente: não é possível ver-lhe os pés. A cabeça bem
como partes do tórax e do braço direito estão descobertas – a mão direita, ossuda, está
dobrada para baixo. Os olhos estão fechados e os cabelos, presos num coque em estilo japonês
comum no séc. XIX.
No rolo de seda pintado por Hirezaki Eimei 鰭崎英朋 (1880-1968) conhecido pelo
nome de Kaya no Mae no Yûrei 蚊 帳 の 前 の 幽 霊 (O Fantasma em Frente da Rede
Mosquiteira), vemos através da tela mosquiteira a imagem de uma bela mulher também
iluminada por uma lanterna (figura 94). Suas vestes são brancas e cobrem todo o corpo, à
exceção da cabeça. Seus olhos encontram-se fechados ou semicerrados. Os cabelos estão
presos num coque à moda dos períodos Edo/Meiji.
As representações contemporâneas dos fantasmas japoneses, apesar de tenderem a
uma caracterização que apresenta o yûrei com forma semelhante à que tinha em vida ou com
ferimentos ou mutilações resultantes de sua morte, ainda mantêm forte ligação com a imagem
tradicional do yûrei. Embora seus pés descalços sejam visíveis e elas não usem usem uma
bandana triangular, as personagens Yamamura Sadako 山村貞子(figura 88) e Saeki Kayako
佐伯伽椰子 (figura 89), antagonistas respectivamente nas franchises midiáticas164 Ringu e
Juon têm muito em comum com as representações tradicionais de fantasmas japoneses.
Kayako aparece nos filmes sob outras formas (ora como uma sombra ou uma fumaça
negra, ora com o vestido e o corpo ensaguentados), mas naquela em que aparece na figura 89
é idêntica à de Sadako na figura 88: o cabelo comprido cobre parcial ou totalmente os rostos
de ambas; em lugar da katabira, elas portam um vestido branco e; ao invés das mãos
_______________
164
As franchises ou franquias midiáticas se constituem a partir de uma série de obras que compartilham o
mesmo universo ficcional (geralmente, os mesmos personagens e situações). Uma franchise midiática
frequentemente se espalha de uma para outras mídias tornando-se uma franchise multimídia. A franquia
Ringu, por exemplo, se originou a partir da série de livros de Suzuki Kôji 鈴木光司 (1957-) e teve adaptações
para cinema, televisão, mangá e videogame, além de três remakes (dois longas-metragens americanos e um
coreano). Já a franchise Juon se iniciou com dois curtas-metragens em vídeo, exibidos como parte do longa-
metragem televisivo de 1998 Gakkô no Kaidan G 学校の怪談G (Narrativas Assombrosas Escolares G),
dirigido por Kurosawa Kiyoshi 黒沢清 (1955-), Maeda Tetsu 前田哲 (?-) e Shimizu Takashi 清水崇 (1972-).
Após dois longas para TV dirigidos por Shimizu Takashi, a fraquia se espalhou por continuações
cinematográficas, um jogo de videogame e adaptações literárias e quadrinísticas. Com o remake para o
cinema americano, intitulado The Grudge (2004) e também dirigido por Shimizu, deu-se origem a uma nova
franchise – The Grudge (O Rancor), traduzido para o Brasil como O Grito.
105
pendendo dos pulsos, os braços de ambas é que pendem dos ombros. Enquanto Kayako desce
as escadas arrastando-se sobre o ventre em movimentos erráticos, Sadako rasteja para fora da
TV com seu corpo se movimentando em reverso. De suas bocas não sai palavra discernível:
em Ringu ouve-se estática no telefone, enquanto que em Juon um ruído gutural é ouvido
continuamente quando Kayako se manifesta.
106
__________________
168
No filme, Shiga veste um quimono de cor violeta e não há sangue pingando da cabeça de Shinkichi.
169
Kaidan Chibusa Enoki 怪談乳房榎 (História Extraordinária da Celtis Amamentadora), obra escrita por
San’yutei Enchô 三遊亭圓朝 (1839-1900) em 1888. A enoki 榎 (celtis japonesa) é uma árvore alta com
folhas decíduas e tronco grosso da família das canabáceas.
170
Jûnisô 十二社 , local onde se situava a cachoeira da narrativa, ficava onde hoje em dia é o distrito de
Shinjuku 新宿, Tóquio.
171
Kaidan Chibusa Enoki 怪談乳房榎 (História Extraordinária da Celtis Amamentadora), filme de 1958
dirigido por Kadono Gorô 加戸野五郎 (?-?).
111
Figura 103 – Cena de Kaidan Chibusa Enoki 怪談乳房榎 (História Extraordinária da Celtis
Amamentadora), filme de 1958 dirigido por Kadono Gorô 加戸野五郎 (?-?). O fantasma do
pintor Hishikawa Shigenobu 菱川重信 segura o filho nos braços.
Figura 104 – Cartaz do filme Ubume no Natsu 姑獲鳥の夏 (O Verão da Ubume), filme de
2005 dirigido por Jissôji Akio 実相寺昭雄 (1937-2006). O design do pôster foi inspirado pela
pintura de Tsukioka Yoshitoshi 月岡芳年 (1839-1892) apresentada na figura 102.
113
Tempos atrás, havia uma pintura deteriorada que continha o retrato de uma
mulher a segurar sua criança. A obra era propriedade do templo Kanjû-ji 勧
修寺 em Quioto, onde ele era mantido longe das vistas num depósito. Um
dia, houve a solicitação de um servo do samurai Honamiden 穂波殿 para
emprestar a pintura. Pensando não ser nada mais que um incômodo que não
merecia ser levado em conta, o templo estava bastante feliz em cumprir o
pedido. Os monges enviaram a tela a Honamiden com a devida rapidez.
Ainda que ela estivesse velha e negligenciada, a pintura era bonita e
Honamiden orgulhosamente pendurou-a e deixou-a à vista em sua casa.
Naquela mesma noite, começaram os relatos a respeito de uma mulher
misteriosa que aparecia nas vizinhanças do solar de Honamiden. Ela era
bonita e dizia-se carregar nos braços uma pequena criança. A mulher
desconhecida aparecia todas as noites e perambulava pelo jardim do solar.
Finalmente, um dos servos de Honamiden seguiu a mulher. Ele observou-a
entrar no solar e ofegou quando ela de repente desapareceu de pé em frente à
antiga pintura.
Ao ouvir isto, assim que possível Honamiden devolveu o rolo de seda
pintado ao Kanjû-ji, nada mencionando a respeito da misteriosa mulher ou
do incidente. Uma pintura bonita era uma coisa, mas ele não tinha
necessidade de atrair espíritos estranhos.
Então, a mesma mulher misteriosa começou a aparecer ao redor do templo
Kanjû-ji. Suspeitando que a pintura era a origem desta aparição, um servo
sábio colocou um pedaço de papel sobre a cabeça da mulher da pintura. Sem
dúvida, aquela noite quando a mulher fantasmagórica apareceu, tinha um
pedaço de papel preso à sua cabeça.
O templo Kanjû-ji reuniu alguns artistas para investigar a pintura e todos
eles concordaram que era uma obra do artista Tosa Mitsuoki 土佐光起 – e,
de fato, uma obra importante. Já que Tosa estava morto, não havia meio de
saber a história por trás da mulher na pintura, mas todos concordaram que
era uma pena permitir que uma pintura tão valiosa se degenerasse em tais
condições. Ouvindo isto, o Kanjû-ji pagou para ter a pintura restaurada à sua
condição prévia e deixou-a em exposição de forma apropriada.
A partir daquele momento a misteriosa mulher nunca mais apareceu.
(DAVISSON, 2013a, tradução nossa).
______________________
172
Ochiguri Monogatari 落栗物語 (Narrativas das Nozes Caídas), publicado em 1820.
173
Ubume 姑獲鳥 (mulher-pássaro que captura) ou 産女 (parturiente). Em algumas histórias ela é uma mulher
que morreu em consequência do parto e que retorna ao mundo dos vivos para tomar conta do filho; em outras
narrativas, é como se ela plasmasse espiritualmente uma cópia do bebê que foi incapaz de ver crescer.
114
Narrativas que contam a história de uma mãe-fantasma que cuida de seu bebê são
antigas. A primeira aparição de uma ubume na literatura japonesa se deu no conto174 número
43 do rolo 27 do Konjaku Monogatarishû175 (séc. XII), traduzido a seguir:
Figura 105 – Urabe Suetake Ubume o Korasu 卜部季武姑獲鳥を懲す(Urabe Suetake Pune a Ubume).
Ilustração de Katsushika Hokusai 葛飾北斎 (1760-1849) retirada do Wakan Ehon Sakigake 和漢絵本魁
(Pioneiro Livro Ilustrado Sino-Japonês), 1836 (KATSUSHIKA, 2000).
Este conto se acha representado num desenho (figura 105) do artista Katsushika
Hokusai 葛飾北斎 (1760-1849) encontrado numa das páginas do Wakan Ehon Sakigake
和漢絵本魁 (Pioneiro Livro Ilustrado Sino-Japonês), livro com narrativas curtas ilustradas
publicado em 1836. Na figura 105, vemos sob o luar o samurai Urabe Suetake 卜部季武
(950?-1022), também conhecido pelo nome de Taira Suetake 平季武, segurando a mão do
youkai após ter atravessado o rio e atirado a flecha que comprovava sua bravura. De forma
semelhante às representações de fantasmas, não vemos os pés da ubume (cobertos pela
vegetação ou afundados na areia), suas vestes são claras e seus cabelos, compridos, passam
dos joelhos. Com a mão direita ela segura o bebê ou, mais propriamente, a ilusão à qual ela dá
vida – “uma massa de folhas molhadas agrupadas na forma aproximada de uma criança”.
A seguir, apresentamos outra narrativa curta com a ubume como tema:
116
Figura 106 – Página do volume 44 da Wakan Sansai Zue 和漢三才図会 (Enciclopédia Sino-Japonesa
Ilustrada das Três Forças), enciclopédia em 105 volumes compilada por Terajima Ryôan 寺島良安
(?-?), contendo o verbete ubumedori 姑獲鳥 (mulher-pássaro que captura). 25,4 x 17,5 cm, ca. 1713.
Fonte: Kyûshû Daigaku Sôgô Kenkyû Hakubutsukan 九州大学総合研究博物館 (Museu de Pesquisa
Geral da Universidade de Kyûshû).
119
Nas figuras 107, 108 e 109 temos três imagens muito semelhantes retiradas de
pinturas de rolos distintos. Nas três figuras vemos uma jovem de cabelos compridos
com a parte superior do corpo desnuda correndo com um bebê nos braços; as vestes
ensanguentadas cobrem apenas a parte inferior do corpo e deixam ver os pés e parte das
pernas. Nas três pinturas a palavra ubume é escrita em silabário japonês (うぶめ) e
nenhuma referência visual ou pictórica é feita ao pássaro ubumedori.
Figura 107 – Ubume うぶめ. Figura 108 – Ubume う ぶ め . Figura 109 – Ubume うぶめ.
Detalhe do Bakemono Emaki Detalhe do Bakemono Tsukushi Detalhe do Hyakkai Zukan
化け物絵巻 (Rolo de Pintura de 化け物つくし (Coleção Completa 百怪図巻 (Rolo Ilustrado dos
Monstros), autor não identificado, de Monstros), rolo de pintura de Cem Monstros) de Sawaki Sûshi
ca. 1700 (PAPP, 2011). autor não identificado, período 佐 脇 嵩 之 (1707-1772), ca.
Edo (PAPP, 2011). 1737 (TADA; KYÔGOKU,
2006).
Figura 110 – Ubume 姑獲鳥. Estampa pertencente ao Figura 111 – Ubume うぶめ. Estampa pertencente
2º volume de Gazu Hyakki Yagyô 画図百鬼夜行 ao Kaibutsu Gahon 怪 物 画 本 (Livro com
(Parada Noturna dos Cem Demônios Ilustrada), obra Pinturas de Monstros), livro com ilustrações de
em 4 volumes do artista Toriyama Sekien 鳥山石燕 Rikan Mitsukata 李冠光賢, 1881. Disponível em:
(1712-1788), 1776 (TORIYAMA, 2005). <http://www.nichibun.ac.jp/ YoukaiGazouCard/U
426_nichibunken_0051_0023_0000.html>.
Acesso em: 30 jan. 2014.
Figura 112 – Ubume うぶめ. Detalhe do Hyakki Yagyô Emaki 百鬼 Figura 113 – Detalhe no qual aparece
夜 行 絵 巻 (Rolo de Pintura com a Parada Noturna dos Cem uma ubume retirado de uma página do
Demônios). Rolo de pintura de autor não identificado, ca. 1780. Hyakki Gadan 百鬼画巻 (Narrativas
Disponível em: <http://www.arc.ritsumei.ac.jp/artwiki/index.php/ Ilustradas dos Cem Demônios), livro
産女の描かれ方>. Acesso em: 30 jan. 2014. com ilustrações de Kawanabe
Kyôsai 河 鍋 暁 斎 (1831-1889)
publicado em 1889 (TADA, 1998).
Figura 114 – Design de Inoue Jun’ya 井上淳哉 para a ubume 姑獲鳥 do filme Yôkai Daisensô 妖怪大戦争 (A
Grande Batalha Yokai), filme de 2005 dirigido por Miike Takashi 三池崇史 (1960-). Cena do longa-metragem
equiparada a uma fotografia de corpo inteiro da atriz caracterizada como a personagem. Ela carrega um bebê nas
mãos que são asas. Imagem à direita disponível em: <http://d.hatena.ne.jp/shidehira/20050715>. Acesso em: 30
jan. 2014.
acordo com Papp (2011), a projetista de personagens de Yôkai Daisensô (2005), Jun’ya
Inoue 井上淳哉, ao recriar a ubume para o filme (figura 114), se inspirou tanto nas asas
da mulher-pássaro de Kyôsai quanto na paleta de cores do Bakemono Emaki, do
Bakemono Tsukushi e do Hyakkai Zukan.
122
Mizuki Shigeru 水木しげる é outro artista que se inspirou na dupla natureza da ubume,
de pássaro e mãe, para a caracterização da personagem no mangá de Gegege no Kitarô
ゲゲゲの鬼太郎. Ela apareceu pela primeira vez na Shûkan Shônen Magajin 週刊少年
マガジン (Revista Juvenil Semanal) de julho de 1958, publicada pela editora Kôdansha
講談社. A personagem folclórica apareceu também nas adaptações para televisão (figura 115):
no episódio 46 da primeira série de animes (exibido pela primeira vez na TV em 17 nov.
1968); no episódio 24 da terceira série (22 mar. 1986); no episódio 81 da quarta série (10 ago.
1997) e no episódio 65 da quinta série (6 jul. 2008).
Gegege no Kitarô série 1 episódio 46: Ubume Gegege no Kitarô série 3 episódio 24: Kodomo ga
うぶめ (Ubume). O personagem Nezumi-Otoko Kieru!? Yôkai Ubume 子供が消える!?妖怪うぶめ
ね ず み 男 (Homem-Rato), segura os bebês que a (Crianças Desaparecem!? O Youkai Ubume). A ubume
ubume deseja levar. 17 nov. 1968. hipnotiza uma criança. 22 mar. 1986.
Gegege no Kitarô série 4 episódio 81: Kosodate Gegege no Kitarô série 5 episódio 65: Noroi no Tori!
Yôkai! Ubume 子育て妖怪! うぶめ (O Youkai com Ubume ga Mau 呪いの鳥!うぶめが舞う (O Pássaro
Cuidados Maternais! Ubume). A ubume segura nas Maldito! A Ubume Dança). A ubume, enfrenta Kitarô
mãos uma menininha e no bico um bebê ao tentar 鬼太郎 e Neko-Musume 猫娘 (Garota-Gato) ao tentar
raptar as duas crianças. 10 ago. 1997. raptar um bebê. 6 jul. 2008.
Figura 115 – Cenas de episódios de Gegege no Kitarô ゲゲゲの鬼太郎 em que a ubume aparece.
123