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Ao Gás

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Sequência 6.

Cesário Verde Teste 6

Grupo I

Lê atentamente a terceira parte do poema “O sentimento dum ocidental” de Cesário Verde.

III
Ao Gás
E saio. A noite pesa, esmaga. Nos
Passeios de lajedo1 arrastam-se as impuras.
Ó moles hospitais! Sai das embocaduras2
Um sopro que arrepia os ombros quase nus.
5
Cercam-me as lojas, tépidas. Eu penso
Ver círios3 laterais, ver filas de capelas,
Com santos e fiéis, andores, ramos, velas,
Em uma catedral de um comprimento imenso.
As burguezinhas do Catolicismo
10 Resvalam pelo chão minado pelos canos;
E lembram-me, ao chorar doente dos pianos,
As freiras que os jejuns matavam de histerismo.
Num cutileiro4, de avental, ao torno,
Um forjador maneja um malho5, rubramente6;
15 E de uma padaria exala-se, inda quente,
Um cheiro salutar e honesto a pão no forno.
E eu que medito um livro que exacerbe7,
Quisera que o real e a análise mo dessem;
Casas de confeções e modas resplandecem;
20 Pelas vitrines olha um ratoneiro8 imberbe9. 1. pavimento coberto de lajes;
2. entradas de ruas;
3. velas grandes de cera;
Longas descidas! Não poder pintar 4. fabricante de cutelos e outros
Com versos magistrais, salubres10 e sinceros, objetos cortantes;
5. maço, martelo;
A esguia difusão dos vossos reverberos11, 6. impetuosamente;
E a vossa palidez romântica e lunar! 7. irrite, incomode;
8. larápio, gatuno;
25 Que grande cobra, a lúbrica12 pessoa, 9. sem barba;
10. saudáveis;
Que espartilhada escolhe uns xales com debuxo13! 11. brilhos;
Sua excelência atrai, magnética, entre o luxo, 12. sensual, lasciva;
13. estampado.
Que ao longo dos balcões de mogno se amontoa.
Sequência 6. Cesário Verde Teste 6

E aquela velha, de bandós14! Por vezes,


30 A sua traîne15 imita um leque antigo, aberto,
Nas barras verticais, a duas tintas. Perto,
Escarvam16, à vitória, os seus mecklemburgueses17.
Desdobram-se tecidos estrangeiros;
Plantas ornamentais secam nos mostradores;
35 Flocos de pós de arroz pairam sufocadores,
E em nuvens de cetins requebram-se os caixeiros.
Mas tudo cansa! Apagam-se nas frentes
Os candelabros, como estrelas, pouco a pouco;
Da solidão regouga18 um cauteleiro19 rouco;
40 Tornam-se mausoléus as armações fulgentes.
“Dó da miséria!… Compaixão de mim!…”
E nas esquinas, calvo, eterno, sem repouso,
Pede-me sempre esmola um homenzinho idoso,
Meu velho professor nas aulas de latim!
VERDE, Cesário, 2015. “O sentimento dum ocidental”.
In O Livro de Cesário Verde. Porto: Porto Editora (pp. 53-57)

14. penteado em que se divide o cabelo em duas partes através de uma risca da testa à nuca; 15. cauda do vestido; 16. escavam
superficialmente; 17. cavalos importados da região de Mecklemburg, na Alemanha; 18. fala com voz áspera, resmunga; 19. vendedor
de cautelas
da lotaria.

Apresenta, de forma estruturada, as tuas respostas às questões.

1. Apresenta uma explicação para o subtítulo desta secção de “O sentimento dum ocidental”,
mobilizando os teus conhecimento sobre a globalidade do poema.

2. Caracteriza o estado de espírito do sujeito poético e relaciona-o com os efeitos que a cidade
nele provoca.

3. Destaca a importância de que se reveste a quarta estrofe, atendendo às diferenças temáticas


que estabelece com as restantes quadras.

4. Refere dois recursos expressivos utilizados na descrição do espaço citadino e explicita o seu
valor.

5. Identifica duas características temáticas da poesia de Cesário Verde, fundamentando a tua


resposta com elementos textuais pertinentes.

(Questões 2 e 5 adaptadas da Prova Escrita de Português, 12.º ano, 2014, Época especial, IAVE)

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Sequência 6. Cesário Verde Teste 6

1. A terceira parte do poema “O sentimento dum ocidental” intitula-se “Ao Gás” por
corresponder ao momento em que o eu-narrador, que iniciou o seu percurso pelas ruas da
cidade ao entardecer, à hora das Ave Marias, prolonga a sua deambulação pela “Noite
Fechada” (segunda parte) e a continua quando a “noite pesa” (v. 1) e é necessário acender
os candeeiros a gás. Deste modo, a observação e a análise do sujeito poético decorrem
“Ao Gás”, ou seja, sob a luz que ele possibilita.

2. A noite que “pesa, esmaga” (v. 1) e as figuras que nela se movem (“as impuras”, v. 2)
provocam arrepios ao sujeito poético (v. 4). A luz que começa a surgir chama a sua
atenção para os espaços que destaca (vv. 5, 19, 23 e 24) e desperta a sua imaginação (vv.
5-8 e 9). Contudo, as figuras humanas e os excessos que lhe estão associados tornam-se,
como os “flocos de pós de arroz” (v. 35), “sufocadores” (v. 35) e, aos poucos, o “eu” sente
que “tudo cansa” (v. 37).

3. A quarta estrofe do poema transmite, ao contrário das restantes, uma imagem de


vitalidade, força e saúde, associada à figura do “forjador” (v. 14) e à sensação despertada
pelo cheiro do “pão” (v. 16), elemento simbólico de vida. Por contraste com todos os
elementos urbanos físicos e humanos referidos pelo narrador e que concorrem para a
ambiência opressiva e doentia da cidade (“as impuras”, v. 2, os “moles hospitais”, v. 3, o
“sopro que arrepia”, v. 4, o “chorar doente dos pianos”, v. 11, “o ratoneiro imberbe”, v. 20, a
“palidez romântica e lunar”, v. 24, “a lúbrica pessoa”, v. 25, a “velha, de bandós”, v. 29, “um
cauteleiro rouco”, v. 39, e “um homenzinho idoso”, v. 43), surgem duas referências de
conotação positiva. A quadra fixa as impressões visuais (“Um forjador maneja um malho”,
v. 14), auditivas (“maneja um malho rubramente”, v. 14), tácteis (“quente”, v. 15) e olfativas
(“exala-se, inda quente, / Um cheiro”, v. 16) despertadas pelo contacto com o forjador e
com o pão e, através da hipálage “cheiro salutar e honesto” (v. 16), estendem-se as
qualidades deste último àqueles que por ele são responsáveis: os padeiros. Deste modo, a
estrofe constitui uma apologia discreta das classes trabalhadoras do povo, que se
distinguem da restante sociedade pela sua energia saudável e pelas suas boas qualidades
morais.

4. Recursos expressivos utilizados na descrição do espaço citadino:


– enumeração (vv. 6-7) de elementos que sugerem ao “eu” um ambiente de “catedral” (v.
8);
– comparação (vv. 11-12 e 37-38), salientando as semelhanças do espaço citadino com o
ambiente de “catedral” (v. 8) e dos candeeiros com estrelas, na escuridão.
– uso expressivo do advérbio (v. 14), sobrepondo a impressão que suscita à realidade
objetiva;
– hipálage (v. 16), colocando em destaque as qualidades de quem lida com o pão;
– uso expressivo do adjetivo (vv. 22, 24, 33-36, 42, 43-44), particularizando ou
intensificando as características da entidade a que se refere;
– uso do diminutivo (vv. 9 e 43), com valor depreciativo, num caso, e solidário/afetuoso, no
outro;
– metáfora (v. 40), salientando, pela aproximação dos edifícios a monumentos funerários, a
escuridão e estagnação da cidade, desprovida de luz e de vida.

5. São características temáticas da poesia de Cesário Verde exploradas no poema:

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– a representação da cidade e dos tipos sociais (vv. 1-10, 19-20, 25-28, 29-31)
– a deambulação do sujeito poético/narrador (v. 1);
– a perceção sensorial da realidade (vv. 13-16, 34-36, 37-30);
– a transfiguração poética do real (vv. 5-8, 37-40);
– a subversão do imaginário épico, ao qual são apresentados como contraponto os grupos
humanos decadentes (vv. 25-28, 41-44).

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