F D U P: A Transformação de Sociedades Comerciais e A Cessação Da Relação de Administração
F D U P: A Transformação de Sociedades Comerciais e A Cessação Da Relação de Administração
F D U P: A Transformação de Sociedades Comerciais e A Cessação Da Relação de Administração
A. Autor
AAFDL Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa
AAVV Autores Vários
AEIE Agrupamento Europeu de Interesse Económico
AktG Aktiengesetz – Lei alemã sobre sociedades anónimas e em comandita por
ações, de 6 de setembro de 1965
BFDUC Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
CC Código civil português, de 25 de novembro de 1966
CCom Código comercial português, de 28 de junho de 1888
CDP Cadernos de Direito Privado
CES-FEUC Centro de Estudos Sociais-Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra
CIRC Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Colectivas
CIRS Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares
CJ Coletânea de Jurisprudência
CJ-STJ Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
CRCom Código do Registo Comercial
CSC Código das Sociedades Comerciais
CIRC Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Colectivas
CIRS Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares
DSR Direito das Sociedades em Revista
GDDC Gabinete de Documentação e Direito Comparado
GJ Gazeta Judiciária
GmbHG Gesetz betreffend die gesellshafyen mit beschrankter haftung – Lei alemã
sobre as sociedades de responsabilidade limitada, de 20 de abril de 1892
LMESM Ley 3/2009, de 3 de abril, sobre modificaciones estructurales de las
sociedades mercantiles.
LSQ Lei da sociedade por quotas, de 11 de abril de 1901
MBCA Model business corporation act
OD O Direito
QF Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno
RDE Revista de Direito e Economia
RFDUL Revista Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
RS Rivista della Società
RDE Revista de Direito e Economia
RFDUL Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
RFDUP Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
RLJ Revista de Legislação e Jurisprudência
ROA Revista da Ordem dos Advogados
SC Sociedade em Comandita
SENC Sociedade em nome Coletivo
SA Sociedade Anónima
SCE Sociedade cooperativa europeia
SQ Sociedade por Quotas
SI Scientia Iuridica
STJ Supremo Tribunal de Justiça
TRC Tribunal da Relação de Coimbra
UCP Universidade Católica Portuguesa
UwmG Umwandlungsgesetz
ÍNDICE*
* O texto apresentado como Relatório Final de Mestrado segue o Novo Acordo Ortográfico.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 1
1 O princípio da identidade permite que a operação de transformação ocorra com a manutenção da personalidade
jurídica da sociedade transformada: a sociedade adota um novo regime jurídico, por referência a diverso subtipo
jurídico-estrutural, sem dissolução do seu referencial identitário, o elemento-indício da personalidade coletiva.
Contudo, atenta a possibilidade (ainda presente na legislação portuguesa, mas já rarefeita noutros ordenamentos
jurídicos) de os sócios optarem entre modalidade formal e extintiva-novatória de transformação, deve ler-se de
forma articulada aquele princípio identitário com um outro – seu irmão funcional –, o da continuidade, sob pena
de teórica inutilidade do mecanismo de sucessão global e automática, legalmente consignado no art. 130.º, 2 e 6,
CSC. Vide FRANCISCO MENDES CORREIA, Transformação de sociedades comerciais – Delimitação do âmbito de
aplicação no direito privado português, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 138-149.
2 Cfr. o Capítulo XI da Parte Geral do CSC. Em diante, todos os preceitos mencionados em texto sem alusão à
respetiva sede normativo-legal presumem-se pertencentes ao Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 76.º-A/2006, de 29 de março, que
republicou o CSC, recentemente alterado pelos Decretos-Leis n.os 8/2007, de 17 de janeiro, 357-A/2007, de 31 de
outubro, 247-B/2008, de 30 de dezembro, pela Lei n.º 19/2009, de 12 de maio, pelos Decretos-Leis n.os 122/2009,
de 21 de maio, n.º 185/2009, de 12 de agosto, n.º 49/2010, de 19 de maio e n.º 33/2011, de 7 de março.
3 V. PINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades (colab. Nelson Rocha), 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2004,
pp. 533-536. A denominação utilizada pelo Autor é, como veremos infra em texto, sugestiva da decomposição da
deliberação de transformação tout court em três elementos ou conteúdos deliberativos que, sendo argamassa de
deliberações autónomas, não deixam de concorrer para um todo caucionado de unidade, formado, nos termos do
art. 134.º, pela aprovação do balanço ou situação patrimonial, da operação de transformação per se e do novo
contrato social, a vigorar em cenário pós-transformação. Vide, igualmente, FRANCISCO MENDES CORREIA, «Anotação
ao art. 134.º», em MENEZES CORDEIRO (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina,
Coimbra, 2011, pp. 513-514.
4 Interessa-nos, sobretudo, a designação de novos membros para o órgão administrativo-representativo da
sociedade, a «gerência», nas SQ, e o «conselho de administração» ou «conselho de administração executivo», no
tipo anónimo (SA), consoante o modelo orgânico adotado do leque de três sistemas elegíveis (art. 278.º, 1).
Sobre as oscilações terminológicas na categorização dogmática dos vários sistemas orgânicos de governação
societária, vide J. M. COUTINHO DE ABREU, Governação das sociedades comerciais, Almedina, Coimbra, 2006, p.
35 e ss., questionando a nomenclatura utilizada por outros AA., e.g., A. MENEZES CORDEIRO, «Artigos 390.º a
2 Entre Caducidade e Destituição
Aliás, nada impede que, em simultâneo com a tríplice deliberação, sejam deliberados
outros assuntos sociais, como a eleição dos novos titulares dos órgãos sociais, em alternativa
à sua designação no projeto de contrato a deliberar5. Neste ponto, o parâmetro interpretativo
da interconexão sistemática, apanágio heráldico de todo o pensar jurídico 6, sugere-nos de
imediato que chamemos à colação outro dado placidamente cimentado na doutrina: o de que a
transformação da sociedade, a sua transmutação hoc sensu para tipo social diverso do
originário, é facto extintivo da relação complexa de administração, revestindo a fisionomia
jurídico-dogmática de sua causa de caducidade7.
Importará, destarte, avaliar as nuances morfológicas da posição jurídica do gerente ou
administrador no particular ambiente normativo originado pela vicissitude da transformação,
tendo em mente um binómio de transformação recorrente, como o SQ-SA (mas também o
simétrico, dito regressivo, SA-SQ). Se este for novamente designado, em cenário pós-
transformação (através do novo contrato social ou na própria assembleia extraordinária que
delibera aquela operação), para ocupar o seu antigo lugar de administrador lato sensu e,
enquanto designado, aceitar tal nomeação, a solução de continuidade imputável à relação de
administração será meramente formal, compaginando-se com a natureza da operação
matricial de transformação, orientada pelo vetor principiológico da identidade da sociedade-
446.º-F/Introdução», em MENEZES CORDEIRO, (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed.,
Almedina, Coimbra, 2011, pp. 1040-1045, ou PAULO CÂMARA, “O Governo das sociedades e a reforma do Código
das Sociedades Comerciais”, em Código das Sociedades Comerciais e Governo das Sociedades, Almedina,
Coimbra, 2008, pp. 103 e ss.
5 Segundo J. F. CUNHA GUIMARÃES, «A transformação de sociedades», em Revista Fiscal, n.º 5, 2008, p. 3, a
assembleia geral extraordinária, convocada para efeitos do art. 134.º, pode ainda deliberar sobre a «aprovação
dos novos corpos sociais como disposição transitória ou a aprovar em ulterior assembleia geral de nomeação,
definindo o respectivo mandato» (nosso itálico).
6 Afinal todo o pensamento jurídico é pensamento analógico e tipológico. A suma síntese metodológica é de
ARTHUR KAUFMANN, Analogie und “Natur der Sache”, Karlsruhe, 1965, p. 43. É esse o sentido que J. BAPTISTA
MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 2002, p. 330, imprime às suas
palavras, traduzindo-o deste modo: «todo o conhecimento jurídico, toda a descoberta do direito (heurística
jurídica) e até toda a chamada 'subsunção' mostra a estrutura da analogia».
7 Neste sentido é inequívoca a construção de J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, 4.ª Ed., vol. II
– Das sociedades, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 622, vide o elenco sistemático de factos extintivos da relação
administrativa, expressamente previstos no CSC, nos quais a transformação societária é inserida. Em cenário
pós-transformação, ou seja, na sociedade transformada, haverá, por princípio, um novo órgão de administração.
Deduz-se, pois, a extinção da anterior relação orgânica administrativa (sem prejuízo da designação dos mesmos
administradores/gerentes, sócios ou não, para os corpos sociais da sociedade transformada).
Entendemos tal extinção como correlato do trânsito entre tipos sociais, conatural ao instituto da transformação.
Veja-se o caso do binómio de transformação com os seguintes termos: SQ-SA. Não se vislumbram argumentos
procedentes em favor de uma eventual «sobrevigência» da gerência (enquanto órgão de administração e
representação da SQ, arts. 252.º e ss.) na SA. Aliás, tal só contribuiria para distorcer a facie normativa do tipo
anónimo, induzindo, então, uma permissão para miscigenação tipológica que, autorizada ad absurdum,
esvaziaria de sentido as vantagens fundantes do estabelecimento de uma fisionomia legal individualizadora e
identitária para cada tipo, contrariando a própria matriz teleológica da transformação enquanto instituto.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 3
pessoa coletiva. Em suma, embora com roupagem tipológica diversa, a mesma sociedade terá
os mesmos administradores8.
Ao invés, podem os sócios designar pessoa diversa. Podem optar pela não «recondução 9
do ex-administrador em cargo diretivo na sociedade transformada. Tal faculdade parece
indubitável. Por mais que se faça a apologia da transformação como mecanismo formal de
adaptação da sociedade-pessoa, sob o manto de um continuum jurídico-identitário, matizado
pela unidade dos elementos pessoal, patrimonial e funcional, por regra preservados no trânsito
entre tipos sociais, não deixa de existir, no regime da transformação, uma reconstituição
mímica do momento genético da sociedade (v.g., a aprovação do novo contrato pelo qual a
sociedade se passará a reger). E ninguém negará a liberdade dos sócios na eleição dos
administradores aquando da constituição da sociedade. Aliás, dentre os vários modos de
designação de administradores ou titulares dos órgãos de administração e representação da
sociedade (gerência, conselho de administração, conselho de administração executivo), será
paradigmática a eleição por deliberação dos sócios – arts. 191.º, 2, 252.º, 2, 391.º, 1 e ss.,
425.º, 1, b) –, bem como a designação através do contrato social ou ato constituinte unilateral
– arts. 252.º, 2, 391.º, 1, 425.º, 1 e 270.º-G.
Atenta a base eminentemente contratual10 da sociedade comercial (estando ou não em
transformação), não podemos deixar de considerar que aquela amplitude autonómica dos
sócios na designação de administradores «renasce» no momento da transformação. A própria
regra da livra destituição (uma das modalidade de cessação da relação de administração, para
além da caducidade – arts. 257.º, 1 e 403.º, 1), por sua vez fundada na necessidade de garantir
a densidade do liame fiduciário ínsito na relação de confiança entre sócios e administradores,
é tributária dessa matriz teleológica de liberdade na designação, ora na sua polaridade
8 Objeção cogitável contra a procedência de tal asserção poderia retirar-se da existência no direito positivo de
uma modalidade de transformação extintiva-novatória (implicando a dissolução da sociedade a transformar),
colocada pelo legislador na disponibilidade dos sócios – art. 130.º, 3, in fine e 5. Sobre as razões aventadas para
justificar a manutenção de tal modalidade de transformação no direito societário português, fazendo-se uma
referência à sua inocuidade para o problema em apreço vide, desenvolvidamente, ponto 2.2, cap. II.
9 Utilizamos o termo despido de qualquer especificidade técnico-jurídica, significando apenas que à caducidade
da relação administrativa se segue o normal vácuo da relação jurídica extinta, não ocorrendo, ao invés da
primeira situação hipotética, a re-designação do ex-administrador.
10 O que traduz implícita adesão teórica às teorias contratualistas. Não curando agora, dado o escopo e economia
da exposição, deambular por entre as diferentes configurações teoréticas do paradigma contratualista,
assinalamos, todavia, a refutação das teses institucionalistas pela sua marca ficcional de irrealismo. As teses
contratualistas, para além de reconduzirem a titularidade do interesse social aos sócios, demonstram a vantagem
de serem aplicáveis a todos os tipos societários, ao invés das teorias institucionalistas, amiúde funcionalizadas à
descrição-integração do tipo anónimo ou da grande sociedade por ações. Desenvolvidamente, vide J. M.
COUTINHO DE ABREU, Do abuso de direito, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 108-121.
4 Entre Caducidade e Destituição
sociedade os seus efeitos14 dentro desse hiato temporal, igualmente não se verificando
qualquer justa causa de destituição do mesmo (art. 64.º)15.
Importa agora determinar quais os mecanismos de tutela concedidos ao antigo
administrador não designado na sociedade transformada, perante tal situação. Imediatamente
se apontará a tutela desenhada pela fattispecies do art. 58.º, 1, b), prevendo a figura das
deliberações sociais abusivas, para a qual se comina a sanção da anulabilidade. A hipótese em
apreço reconduzir-se-ia, prima facie, ao sub-tipo da deliberação emulativa16, apropriada para
satisfazer o propósito do(s) sócio(s) de, tão-só, prejudicar a sociedade e/ou o(s) sócio(s)
minoritário(s), in casu, o sócio-administrador não reconduzido para o exercício de funções de
administração na sociedade transformada.
Desde logo, a prática forense atesta pródigas dificuldades de prova, amiúde retratadas
no labor jurisprudencial17, inerentes a tal meio de tutela. Onera o lesado uma prova complexa
no sentido do preenchimento operativo dos requisitos subjetivos (o «propósito» de prejudicar)
e também objetivos (a aptidão para a satisfação do propósito emulativo, sem esquecer o crivo
polémico da «prova de resistência»18) que o preceito consigna, demonstrando em juízo que a
deliberação de transformação traria inerente o desígnio «subterrâneo» da não recondução
abusivamente fundada. Sem embargo destas dificuldades, a exegese da disciplina em apreço
relega o intérprete para o confronto de um candente óbice de cariz normativo-estrutural: o
regime posto ou positivo do abuso societário seria eficaz para o administrador-sócio, mas
desabrigaria o gestor não-sócio. No limite, seria incongruente admitir a existência de
deliberações abusivas consoante o lesado fosse, para efeitos desta elaboração teórica, sócio ou
não.
A problemática adensa-se, com efeito, observando o caso do administrador não-sócio.
O portal da legitimidade para a arguição de tal deliberação abusiva, assente no art. 59.º, 1,
estar-lhe-á sempre vedado, ainda que, apegados à ideia de uma construção holística da figura
do abuso de direito em sede societária, fizéssemos reconduzir outras hipóteses típicas ou
figuras sintomáticas de abuso, filiadas no art. 334.º, CC, ao art. 58.º, 1, a)19. O gestor não-
sócio teria então legitimação substantiva mas não legitimidade formal para a impugnação de
deliberação inquinada pelo abuso, a não ser que se propugnasse, com resistência pétrea à
dimanação significante do elemento literal negativo do art. 59.º, uma interpretação praeter
legem (ou já contra legem?) no sentido da manutenção de legitimidade para a impugnação da
deliberação abusiva pelo administrador não-sócio, apesar do silêncio do preceito20.
Também o recurso liminar a famigerada «válvula de escape» sistemática 21 do art. 334.º,
CC, pode revelar-se controvertido. Sabemos que a doutrina do abuso de direito, perspetivando
a figura tanto na sua veste civil de cláusula geral22, como de mecanismo societário de
controlo deliberativo23, no art. 58.º, 1, b), é campo de movediças certezas dogmáticas,
mormente no que concerne à articulação entre os dois universos típico-legais que dimanam de
ambos os preceitos citados; questão que, reduzida ao seu esqueleto lógico, se convola na
interrogação acerca da potencialidade normativo-reguladora da disciplina societária das
deliberações inválidas e da abrangência típica do seu regime legal.
De uma das margens do dissenso ecoa inequívoca a crítica à persistência de alguns
sectores jurisprudenciais e doutrinais na ligação das deliberações abusivas ao art. 334.º, CC,
considerando-se tal preceito «sincrético e largamente indefinido quanto às suas consequências
32 J. M. COUTINHO DE ABREU, “Diálogos com a jurisprudência, III – Destituição de administradores”, em DSR, vol.
V, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 16-17.
33 Infra, ponto 1, cap. IV, discutiremos a extensão operativa da solução encontrada, aferindo da medida em que
ela pode igualmente aproveitar ao administrador-sócio, para além da tutela que a lei, prima facie, lhe confere.
10 Entre Caducidade e Destituição
34 A particular posição do administrador não reconduzido na vertigem do trânsito entre tipos sociais tem aqui a
facie do problema singular que o pensamento tópico paradigmaticamente foca em detrimento do abstracionismo
uniformizador, não se negando, todavia, o vetor reitor, com cariz principiológico, da Justiça.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 11
ordenadora de Justiça.35
Perante a multiplicidade problemática-ideal a tópica configura instrumento eficaz de
ordenação e disciplina do quadro de soluções que a tarefa propedêutica do brainstorming
permite alvitrar. Contudo, revela-se providencial o recurso à construção dogmática científica
ou teórico-sistemática na proposição de uma solução harmonizadora e coerente para a
situação-tipo, objeto de análise36. Almeja-se a correlação metodológica na tentativa de
elaborar, utilizando a terminologia de Canaris 37, uma «pequena» teoria jurídica. O conjunto
articulado e congruente de «pequenas teorias», sistematicamente inseridas numa ordem de
coisas mais geral, consubstancia lastro de indubitável potencial heurístico. Afinal a «grande
teoria» é esse mosaico teorético também dimanado da consideração do problema singular38.
Para tal, deverá a teoria jurídica gizada seguir a estrutura tripartida sugerida por aquele
mesmo Autor, focando-se na concatenação de valores ou princípios jurídicos e na manufatura
de regras ou enunciados que, finalmente, se desmultipliquem em soluções paradigmáticas de
problemas.39 É, por conseguinte, manifesto o nosso propósito de desenhar essa «pequena»
teoria jurídica, esperando – acaso a razão alumie o nosso iter analítico-construtivo – que ela
se integre de modo escorreito no superior conjunto articulado de teorias jurídicas que se
vertem na explicação e sustentação do Direito societário e do Direito privado português que o
alberga.
1. O iter analítico.
anónima para que esta se transformasse em sociedade por quotas, no seu art. 52.º. Em face do
direito posto questionava-se a doutrina acerca da admissibilidade genérica da transformação
de sociedades, tal como procurava assentar base assertiva quanto ao real efeito jurídico da
operação. A resposta aventada, granjeando solidez maioritária, era moldada pelo apego
dogmático ao instituto da modificação do ato constitutivo, fazendo o enquadramento
normativo da transformação através do recurso à leitura articulada dos arts. 49.º, 5 e 116.º
Cód. Comercial de 1888 (de Veiga Beirão). Com efeito, o primeiro sujeitava a registo
comercial «os instrumentos de constituição e prorrogação da sociedade, mudança de firma,
objecto, sede, ou domicílio social, modificação dos estatutos, reforma, redução ou integração
de capital, dissolução, fusão, cedência de parte de um sócio em nome colectivo noutrem, e,
em geral, tôda e qualquer alteração ao pacto social». Já o segundo levava um escopo
homogeneizador de forma, sujeitando as vicissitudes previstas no art. 49.º, 5 à mesma forma
prescrita para a constituição da respetiva sociedade. Na transcrição do art. 49.º, 5,
sublinhámos, in fine, o trecho ou locução onde a doutrina maioritária da época fazia abranger
a transformação de sociedades, fundando assim a admissibilidade genérica da transformação
de sociedades.
Por outro lado, só aparentemente a LSQ, art. 52.º, se limitava à transformação de
sociedades ao tipo anónimo. Isto porque, perante a norma permissiva do § 3.º do seu art. 3.º -
«transformando-se qualquer sociedade ou firma em nome individual em sociedade por quotas,
de responsabilidade limitada, pode esta continuar a antiga firma ou denominação social», era
mister entender-se que os restantes tipos de sociedades – sociedades em nome coletivo e
sociedades em comandita – podiam igualmente transmutar para o tipo da sociedade por
quotas, desde que a deliberação dos sócios nesse sentido fosse caucionada de unanimidade,
com a aplicação do art. 151.º, § 2.º do Código Comercial de 1888.
Dar conta do state of art da doutrina mercantil sobre o tema antes da aprovação do CSC
passa por referenciar o debate mais candente que, em face dos dois textos legais citados – o
Código Comercial e a LSQ41 –, se travou pela determinação do efeito da transformação na
sociedade transformada. Curava-se então de saber se a sociedade mantinha ou não, em
cenário pós-transformação, a sua personalidade jurídica, digladiando-se, respetivamente, a
41 Entretanto, no período que medeia entre a aprovação da LSQ e entrada em vigor do CSC, em 1986, verificou-
se a episódica manifestação do legislador sobre o instituto da transformação de sociedades nalguma legislação
extravagante. Será o caso do Decreto-Lei n.º 36.367, de 23 de junho de 1947 (relativo à operação de
transformação em sociedades concessionárias de exploração mineira) e do Decreto-Lei n.º 10.634, de 20 de
março de 1925 (respeitante à transformação de sociedades cujo objeto fosse a prática do comércio bancário).
14 Entre Caducidade e Destituição
42 Como aponta FRANCISCO MENDES CORREIA, Transformação de sociedades comerciais..., p. 62, nota 125, a
intensidade do debate que gravitava em torno da configuração da transformação pelo prisma da novação ou da
continuação alcançou tal patamar de dúvida, manifestado tanto na doutrina como na jurisprudência, que o
legislador sentiu necessidade de intervir, dispondo, no art. 1.º do Dec.-Lei n.º 31.249, de 5 de maio de 1941 que,
para efeitos fiscais, toda a transformação de sociedades implicava a alteração da respetiva personalidade, sendo
exigível o imposto referente ao trespasse conexo. Também o Dec.-Lei n.º 32.854, de 17 de junho de 1943,
sujeitou a SISA todas as transformações, desde que bens imóveis integrassem o ativo da sociedade.
43 Em sentido favorável a esta sub-tese coligem-se as vozes de FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial,
vol. II, Coimbra, 1968, pp. 92-96, e GALVÃO TELLES, Anotação ao Acordão da Relação de Luanda de 19 de
Outubro de 1957, OD, ano 90.º (1958), n.º 2, pp. 142-161.
44 Serão exemplo eloquente PINTO COELHO, Lições de Direito Comercial, vol. I, 3.ª ed. Revista, Lisboa, Cento
tipográfico Colonial, 1957, pp. 289-295 e PALMA CARLOS, «Transformação de Sociedades», Separata da RFDUL,
vol. XIV, 1962, pp. 6-8.
45 Neste ponto importa recordar que o art. 52.º, LSQ, estabelecia que em «caso de dissolução de uma sociedade
anonyma para se transformar em sociedade por quotas, de responsabilidade limitada, poderá dispensar-se a
liquidação, se o capital da nova sociedade não for inferior ao da sociedade dissolvida, e se os sócios que
tomarem parte naquella representarem, pelo menos tres quartas partes do capital d'esta.». A corroborar o
imperativo da dissolução parecia depor o art. 53.º do mesmo diploma, quanto à «hypothese do artigo anterior, o
activo e passivo da sociedade dissolvida passam para a nova sociedade».
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 15
características essenciais e definidoras de cada tipo social. Se cada uma das espécies que a lei
societária prevê está ligada a um acervo de características individualizadoras e, a fortiori,
diferenciadoras de cada tipo social, a transição entre tipos implicaria sempre (no entender
destes Autores46), sob pena de simbiótica mescla de tipos, a extinção de uma sociedade e a
criação genética de outra.
A absorção e o sopeso crítico dos argumentos aduzidos em favor de cada uma das teses
constituíram a matriz sintética do Anteprojecto da Parte geral do novo CSC 47, de Raúl Ventura
e Brito Correia, no que concerne à transformação de sociedades, em 1973. Entenderam os
autores não concorrerem, em face do direito posto – de iure condito –, razões de índole
dogmática ou legal-normativa suficientes para justificar a decisiva opção por qualquer uma
das teses em confronto. Mais, revelou-se inequívoco o Anteprojecto de 1973 quando propôs,
de lege ferenda, um sistema de face dual para a futura configuração legal do instituto da
transformação, na exata medida em que a plausibilidade teórica de cada uma das correntes (da
continuação e novação) se afirmava inelutável (em resultado da indagação dogmática e legal
expendida pelos Autores).
Com efeito, lê-se no Anteprojecto que «(...) a transformação pode ser criada como
constituição duma nova sociedade ou como continuação da mesma sociedade»48. Ao
legislador-arquiteto caberia determinar a concreta configuração do instituto, enquadrado,
todavia, pelo critério orientador da vontade dos interessados. Embora se reconheça que,
estando disponível para os interessados uma modalidade de transformação-continuação, a
opção pela modalidade extintiva-novatória se poderia quedar rarefeita de utilidade prática,
como mera hipótese académica, o Anteprojecto prescreve ao legislador a adoção de uma
estrutura alternativa, temperada, todavia, por um patamar supletivo, com preferência para a
tese da continuação que, deste modo, operaria através de uma «presunção de vontade», no
silêncio dos interessados. Por outro lado, ficou assente que a modalidade extintiva da
transformação, implicando a dissolução da sociedade a transformar, deveria ser coadjuvada
por um mecanismo de sucessão automática e global da nova sociedade nas relações jurídicas
46 Neste sentido lê-se PAIVA JÁCOME, Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Outubro de
1929, GJ, ano 1.º (1929), n.º 6, pp. 104-106, ou CUNHA GONÇALVES, Comentário ao Código Comercial Português,
vol. I, Lisboa, Empresa Editora J.B., 1914, p. 257. Pese embora a adesão deste último Autor à tese da novação,
destila-se da sua doutrina uma interessante compartimentação dogmática entre o que apelidava de conversão (ou
transformação radical), equiparada a supressão, e transformação de sociedades, conceito necessariamente
edificado pela manutenção de personalidade jurídica.
47 RAÚL VENTURA/BRITO CORREIA, Transformação de sociedades - Anteprojecto e notas justificativas, BMJ n.ºs
218, 219 e 220, Lisboa, 1973, pp. 5-119, 11-69 e 13-82.
48 Ibidem, BMJ, n.º 218, p. 118.
16 Entre Caducidade e Destituição
da antiga, assim deflectindo a liquidação que a dissolução sempre importaria. Ora, tal dado
contribuiu decisivamente para cimentar a ideia de que a presunção de vontade estabelecida
deveria munir-se de um favor à tese da continuação, alicerçando a «continuação das relações
jurídicas na continuação da pessoa-sujeito»49.
Foi este o trilho legiferante ulteriormente seguido pelo codificador de 1986, na senda da
proposta dos Autores do Anteprojecto, prevendo o CSC uma dúplice configuração ou facie
dual para o instituto da transformação. Na disponibilidade dos interessados ficaria depositada
a opção por uma transformação com manutenção da personalidade jurídica do ente societário
ou por uma transformação concatenada com dissolução. Sobre esta solução abre fogo crítico a
doutrina atual, como veremos de seguida. De todo o modo, é o CSC de 1986 o primeiro
diploma a mapear sistematicamente o instituto da transformação de sociedades comerciais,
através da disciplina legal compreendida nos arts 130.º a 140.º-A. A mais recente alteração
assinalável a este corpo normativo (entretanto polvilhado por alguma legislação extravagante
50
) é introduzida pelo Dec.-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, com a elipse revogatória do
art. 135.º e a adição do art. 140.º-A.
Pode sublinhar-se como primeira e unânime crítica apontada pela doutrina atual ao
regime instituído, a da obsolescência resultante da permanência normativa, a par da
transformação formal ou com manutenção da personalidade jurídica, de uma modalidade de
transformação chamada extintiva-novatória51, implicando a dissolução do ente a transformar.
Tal sucederia por força do afirmado princípio da identidade 52 que tornaria, pelo menos, pouco
apelativo o recurso àquela última modalidade, em virtude do seu potencial operativo-
simplificador, tornado evidente quando, sub-rogado na construção teorética do instituto, evita
o recurso a esquemas compósitos de liquidação-constituição de sociedades.
À modalidade extintiva é assacada «pouca ou nenhuma utilidade prática» 53, bem como
não se lhe desvenda, enquanto modalidade conservada em regime optativo ao lado
pórtico normativo do Capítulo XI da Parte Geral do CSC. A arrumação sistemática dita que
este Capítulo contenha uma regulação tendencialmente autónoma 62 (embora não esgotante63),
desta vicissitude própria do universo dinâmico-evolutivo do ente societário. Fazendo jus à sua
epígrafe e, para já, retidos no sopé literal dos seus n. os 1 e 2, é possível decantar uma noção
de transformação que encontra plácido assentimento na doutrina dominante64: a de que a
transformação se traduziria na vicissitude através da qual uma sociedade “adopta um tipo
diferente daquele que tem no momento da sua transformação”65. Consequentemente, a
sociedade que se propõe à transformação terá adotado ab initio um dos tipos societários
previstos no art. 1.º, 2, ou a forma societária civil pura, prefigurada pela fattispecie do art.
62 Para um conspeto do Direito Comparado neste âmbito, colocando a tónica na maior abrangência dos
ordenamentos estrangeiros relativamente ao fenómeno da transformação na sua faceta heterogénea (que
comporta uma transmutação tipológica extra societária da personalidade coletiva), vide ELDA MARQUES,
«Comentário ao art. 130.º»..., p. 477, nota 2. No direito alemão rege a UwmG de 1994, relativa à Formwechsel,
disciplinando, no seu livro V, a transformação entre sociedades e outros tipos de pessoas coletivas. A abrangência
heterogénea dos binómios de transformação resulta evidente da previsão normativa de transformação recíproca
entre sociedades e outros entes, como cooperativas, mútuas, e associações sem personalidade jurídica. O Codice
Civile, arts. 2505-ter. e ss., disciplina a transformação societária bem como a transformação entre sociedades e
outras «organizações coletivas»: consórcios, associações, cooperativas e fundações. Por sua vez, o direito
espanhol, nos arts. 4 e 7 da LMESM, prevê, afora a transformação entre sociedades mercantis, a transformação
de uma sociedade mercantil ou de um AEIE em AIE (agrupamento de interesse económico) e o inverso
(transformação de AIE em AEIE ou sociedade mercantil). É ainda autorizada a transformação ambivalente ou
recíproca entre sociedade mercantil e cooperativa; SA e SE; e entre sociedade cooperativa e SCE (sociedade
cooperativa europeia), encontrando-se, todavia, a sua disciplina em específica legislação nacional. Sobre a figura
da sociedade cooperativa europeia, vide RUI NAMORADO, «A sociedade cooperativa europeia – problemas e
perspectivas», n.º 189, CES-FEUC, 2003.
63 Não esgotante porque, e.g., a transformação de uma Societas Europaea em SA ocorre sobre égide de uma
disciplina legal de sede externa ao CSC, os arts. 23.º e 24.º do Decreto-Lei n.º 2/2005, de 4 de janeiro, alterado
pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 26 de março.
64 Gravita em torno da noção basilar de transformação avançada o assentimento da doutrina dominante. De tal
facto encontra-se menção em FRANCISCO MENDES CORREIA, «Anotação ao art. 130.º», em MENEZES CORDEIRO,
(coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 502. A sintonia
jurisprudencial com a cristalização doutrinal dominante e definidora do instituto fica bem patente no Ac. do
TRL, de 15/02/1990, CJ, 1990, t. I, p. 169, ao referir-se à transformação como a «adopção, por uma sociedade
constituída segundo um dos tipos enumerados no art. 1.º, n.º 2 do Cód. Soc. Comerciais, de um outro desses
tipos». Questão diversa é a de saber se o universo dos tipos de destino, ou seja, o segundo elemento do binómio
de transformação, se circunscreve ao universo legalmente delimitado de tipos consignados no art. 1.º, 2, como a
doutrina tradicional sobre o instituto asseverava. A lição do direito comparado, mormente do direito alemão, com
a introdução da UwmG de 1994 (vide LUTTER (org.), Unwandlungsgesetz – Kommentar, vol. I (§ 1-137), 3.ª
edição revista e aumentada, Koln, Otto Schimdt, 2004, pp. 88 e ss.), é a da tendência para o alargamento dos
casos legalmente previstos de transformação heterogénea, ou seja, a transformação recíproca entre sociedades e
pessoas coletivas de outro tipo. Na doutrina portuguesa a mancha de influência teutónica, inspirada pela
abrangente configuração legal do instituto da transformação no âmbito do direito privado, é eloquente na
investigação de FRANCISCO MENDES CORREIA, Transformação...ob cit., pp. 245 e ss., que, em rutura com as teses de
homogeneidade causal, liberta o instituto do confinamento a que estava votado no universo societário, sendo
instrumental, para a consecução de tal propósito, a (re)filiação da transformação societária na figura matricial da
transformação de pessoas coletivas (granjeando assim caminho para a admissão da heterogeneidade causal no
processo justificativo da transformação); bem como a afirmação da autonomia dogmática da figura da
transformação em relação ao instituto da alteração contratual (vide infra ponto 3, cap. II).
65 RAÚL VENTURA, Fusão..., pp. 416 e ss.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 21
980.º, CC. Segundo a doutrina tradicional, o leque de opções para o output do processo de
transformação circunscrever-se-ia aos tipos previstos no art. 1.º, 2.
Aprimorando o recorte conceptual do quid em análise (a transformação), dir-se-á que
uma sociedade comercial já constituída, ou até previamente transformada, poderá adotar um
tipo societário comercial diferente, salvo proibição legal ou estatutária. Como tal, a
vicissitude da transformação opera apenas uma “alteração da forma jurídica da estrutura
societária, mantendo-se os seus elementos pessoal e patrimonial”66. Pese embora o art. 130.º
disponha sobre a primeira transformação de uma sociedade, nada obsta a que uma sociedade
anteriormente transformada possa adotar novamente um outro tipo social 67. Não se infere,
todavia, da interpretação extraída no sentido da faculdade de repetição da operação, que a
praxis resultante seja a de uma dança cíclica de transformações múltiplas. Não curando agora
da miríade de motivos que a podem justificar, a transformação-instituto é tributária de uma
ideia de adaptabilidade à mutação das circunstâncias, de (re)localização da sociedade num
certo hic et nunc, o que se revela, a um só compasso, fator de evolução e estabilidade68.
São de dúplice natureza, legal ou estatutária, os limites que se poderão colocar à
transformação da sociedade. Podemos, desde logo, apontar a existência de preceitos legais
que estatuem, para sociedades com determinado objeto, a necessidade de adotarem certo tipo
social e que, não obstante visarem, como primordial escopo, o momento genético ou de
constituição da sociedade, indiretamente acabam por consubstanciar uma proibição de
transformação da sociedade. Esta última, já constituída nos moldes exigidos, não poderá
adotar tipo proscrito, ou inadmissível ex vi legis, em razão do objeto especialmente
regulado69. Pelo mesmo efeito de osmose normativa com as proibições vigentes no momento
da génese constitutiva da sociedade, o desrespeito pelos requisitos legais imperativos para a
66 ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 130.º»..., p. 478. Em sintonia, enfatizando o valor da transição entre tipos
sociais e a modificação do regime jurídico-positivo aplicável enquanto referencial normativo-regulador do
fenómeno societário, pode ler-se P. OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2010,
p. 756: «De entre as maiores movimentações que as sociedades podem sofrer em termos da respectiva estrutura
contam-se seguramente as alterações de tipo societário – em que a sociedade mantém o seu objecto (a sua
actividade) e adopta um tipo diferente mais conveniente à prossecução dos seus fins (…)».
67 Convergem, neste sentido, A. M. TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção legal e estatutária dos sócios minoritários
na transformação das sociedades por quotas e sociedades anónimas», em AAVV., Nos 20 anos do Código das
Sociedades Comerciais, Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo
Xavier, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 275, e RAÚL VENTURA, Fusão..., p. 416.
68 A. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, vol. I, Das Sociedades em Geral, 2.ª Ed., Almedina,
Coimbra, 2007, p. 795. Para o A., o perfil evolutivo tradicional será o de uma pequena empresa familiar que
passa a SENC e posteriormente, na medida da acumulação de capital e sucesso empresarial, a SQ e a SA,
naquilo que se pode designar um protótipo de transformação evolutiva.
69 RAÚL VENTURA, Fusão..., pp. 438-439. A título de exemplo, as sociedades de factoring, de investimento e de
locação financeira, adstritas ao tipo anónimo (SA).
22 Entre Caducidade e Destituição
teoria da desconsideração? Atento o boom jurisprudencial da figura, talvez não seja necessário carrear ulterior
argumentação apologética da figura. O foco da questão parece ser hoje o da reafirmação do carácter excecional
de tal expediente decisório (será novo mote desconsiderar a desconsideração?). Vide MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO, A
Tutela dos Credores da Sociedade por Quotas e a "Desconsideração da Personalidade Jurídica", Almedina,
Coimbra, 2009., pp. 639 e ss.
74 Neste sentido, especificamente sobre as als. a) e b), TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção legal...», pp. 288-289.
Em consonância, RAÚL VENTURA, Fusão..., p. 482 e F. MENDES CORREIA, «Anotação ao art. 131.º», em MENEZES
CORDEIRO (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 509.
75 ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 131.º», em COUTINHO DE ABREU (coord.), Código das Sociedades
Comerciais em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 493.
24 Entre Caducidade e Destituição
sua eficácia. Havendo oposição, deve o processo de transformação sustar-se. Assim depõe o
art. 140.º-A, 1, obrigando o membro da administração que requeira o registo da
transformação a declarar por escrito, sob sua responsabilidade, que não houve oposição à
transformação, nos termos do art. 131.º, 2 e 3; sendo a inobservância deste dever passível de
gerar a ineficácia absoluta da deliberação de transformação.
A al. a), do art. 140.º-A, 2, a que supra nos referimos como completando o elenco dos
impedimentos legais à transformação societária, alberga na sua ratio preocupações atinentes à
intangibilidade do capital social76. Visa garantir que o património social não se torne inferior
ao capital social e reservas indisponíveis, em momento posterior ao da deliberação de
transformação: o do correspondente registo. Em conformidade, o membro do conselho de
administração que promove o registo deve declarar que os direitos dos sócios exonerados
podem ser satisfeitos sem afetação do capital, nos termos do art. 32.º, sendo que a
inobservância deste dever obsta ao registo da transformação (ainda que validamente
deliberada), o que acarreta a sua ineficácia entre sócios (interna) e perante terceiros (externa).
A justificação volitiva-deliberativa da transformação tem na doutrina matizes e nuances
diversos. Os motivos que subjazem à operação – abrigados no manto conceptual do interesse
social77 – são tão variegados quanto diversos são os diferentes tipos sociais. Cada tipo
societário tem a sua facie. Uma fisionomia legal individualizadora que configura uma
identidade própria78, dimanada de um regime de responsabilidade dos sócios ante a sociedade
e os credores sociais e de uma estrutura orgânica e organizatória interna, para além dos
demais traços peculiares de cada tipo, como a natureza, rectior, a espécie de participação
social e respetivo regime de transmissão, o número mínimo de sócios e, quando seja o caso,
um valor mínimo de capital social. Logo, os motivos fundantes para uma operação de
transformação, ou as suas causas justificativas, apresentarão índole diversa e não se podem
reconduzir unicamente à modificação do regime de responsabilidade dos sócios e à tarefa de
adequação do modelo organizativo da sociedade à dimensão da empresa e ao grau de
dispersão do seu capital, como sói elencar-se liminarmente.
Podem justificar a operação de transformação, entre outras, razões de índole fiscal
(referimo-nos, e.g., ao regime mais favorável de tributação de transmissão de ações em
relação à alienação de partes sociais ou quotas nos termos do art. 2.º, 2, d), do CIMT79); uma
escolha tendencial ou recorrente da praxis empresarial para a adoção de certo tipo 80, ou uma
imposição legal, exigindo a correspondência entre certo objeto/atividade e determinado tipo
societário, sendo neste caso a transformação uma via de acesso ao exercício dessa atividade,
ao lado da constituição ab origine de uma sociedade com esse específico objeto sob a forma
do tipo legal correspondentemente exigido.
Sobre a natureza intrínseca do instituto da transformação digladiam-se duas teses. Se,
por um lado é reconhecido caráter autónomo à operação81, por outro, nega-se a emancipação
dogmática do instituto, arrumando a transformação como uma espécie do género modificação
do pacto social. Revisitemos en passant a posição minoritária de Pinto Furtado82.
Reage o Autor criticamente83 à tentativa de autonomização da transformação enquanto
instituto genérico apartado da noção de modificação contratual. Observa que os defensores de
tal tese, erigindo-a como procedente, são imediatamente obrigados a realizar concessões em
favor da tese oponente, como sejam a do reconhecimento da «parificação» do instituto da
79 Na vigência do pregresso art. 10.º, 2 do CIRS (redação do DL n.º 361/2007, de 2 de novembro), cobrava
sentido observar que a transformação poderia ser motivada pelo intuito de aceder à isenção de tributação de
mais-valias provenientes da alienação onerosa de ações. Assim, a transformação sob a forma de um binómio SQ-
SA, acarretando a substituição da espécie de participação social (quotas/ações), poderia servir o propósito dos
titulares de ações na sociedade transformada de, em momento ulterior, alienar onerosamente as suas novas partes
sociais, beneficiando de isenção na tributação da mais-valia realizada, desde que as ações fossem detidas pelo
seu titular durante mais de 12 meses. Todavia, a revogação daquele preceito deu-se por força do art. 1.º da Lei n.º
15/2010, de 26 de julho, quedando-se inelencável como motivação da transformação a particular vantagem fiscal
apresentada. Vide J. F. CUNHA GUIMARÃES, «A transformação de sociedades»..., p. 10.
80 Com a sinonímia impressiva de «questão de moda», refere-se, quanto à tendencial e recorrente opção por
determinado tipo, ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 130.º»..., p. 478, na senda de RAÚL VENTURA, Fusão..., p.
417, que alertava para o perigo de «transformações levianas, decorrentes apenas de exemplos conhecidos dos
interessados e mal assimilados por estes.».
81 Vide RAÚL VENTURA, Fusão..., p. p. 450; F. MENDES CORREIA, Transformação..., p. 334, e TAVEIRA DA FONSECA «A
protecção legal...», pp. 285-287.
82 PINTO FURTADO, Curso..., pp. 534-535.
83 Crítica dirigida a RAÚL VENTURA, Fusão..., p. 415 e ss.
26 Entre Caducidade e Destituição
transformação (não obstante a sua extensa regulação no CSC) com a modificação contratual
em diversos preceitos, v.g., arts. 194.º, 265.º, 3, 383.º, 2 e 386.º, 3. [Não será a pretensa
«parificação» (que, diga-se, também não significa assimilação hipotética ou simbiose de
fattispecies) uma mera vizinhança sistemática que corrobora a ideia de autonomização dos
institutos e corrói o fundamento à tentativa do seu encadeamento em subordinação
lógica?...Afinal, leitura diametralmente oposta, no sentido da equidistância horizontal das
figuras, retiram, dos mesmos preceitos, os cultores da tese contrária84].
Em acréscimo, o recurso analógico às disposições relativas à modificação contratual
para o preenchimento de eventuais lacunas no mapa regulativo da transformação seria, para a
tese em apreço, indício evidente da subordinação conceptual ao género da modificação
contratual. Tal recurso estaria, não obstante, excluído, quando se revelasse incompatível com
as particularidades do regime da transformação. [Mas não poderá a similitude analógica
resultar igualmente da seriação horizontal dos vários tipos, apanágio do pensamento
tipológico? Este, operando através da determinação, no objeto analítico, de certas
propriedades gerais, relações ou proporções, gera um padrão hipotético de inesgotável valia
heurística na avaliação (e enquadramento) dos diferentes fenómenos jurídicos85. Admitir, sem
mais, que a similitude entre figuras é prova da sua ordenação vertical, implicando a
arrumação piramidal (em subordinação) das mesmas, sugere, como subterrânea premissa,
uma intuição ou tique metodológico de índole conceptual-abstrata].
Finalmente, é apontada como descartável lucubração a indagação acerca da relação
lógica entre transformação e modificação contratual, sabendo que no art. 134.º, al. c) se exige,
para a aprovação holística da operação, a aprovação do novo contrato de sociedade pelo qual
a sociedade passa a reger-se. Seria despiciendo determinar se a transformação causa a
modificação contratual ou, ao invés, se a transformação é efeito da modificação, porquanto
«toda a nova organização acaba por se reconduzir a uma específica modificação contratual» 86.
[Salvo a devida vénia, a constatação é feita a montante daquele que é, em nossa opinião, o
epicentro da discussão: o da configuração extravasante (ou não...) da transformação, enquanto
instituto genérico e autónomo em relação à modificação contratual].
Vejamos alguns dos argumentos usualmente esgrimidos a partir do bastião contrário.
84 Diríamos, cum granu salis, que a metáfora de Jano serve aqui de inusitado (mas curial...) parâmetro
hermenêutico.
85 Vide, supra, nota 57, com outro vagar, o cotejo entre pensamento tipológico e conceptual-abstrato.
86 PINTO FURTADO, Curso..., p. 535.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 27
deste documento não está legalmente prefigurado. Contudo, atenta a sua natureza justificativa
ou legitimadora da operação, não poderá deixar de se referir a aspetos económicos
determinantes, e.g., razões comerciais, organização societária, redimensionamento,
internacionalização, bem como aos aspetos jurídicos inerentes à mudança de tipo, indicando a
nova forma jurídica, repercussões da mesma para os sócios, alterações de estrutura
organizatória e, quando tal for o caso, as consequências da mudança na responsabilidade da
sociedade perante terceiros (art. 139.º)92. Entende a doutrina que a refração patológica do
incumprimento desta disposição se congrega na anulabilidade da deliberação de
transformação tout court, resultante da violação do art. 58.º, 1, c), e 4, b), pela não
disponibilização aos sócios do relatório justificativo93.
Perante o regime exposto pode antever-se que o exercício da potestas de transformação
direito de consulta a credores e aos representantes dos trabalhadores (ou na sua ausência, aos próprios
trabalhadores) não se encerra ad nutum sem mácula de controvérsia. É mister da doutrina, vide RAÚL VENTURA,
Fusão..., p. 492, recorrer ao elemento literal na interpretação do art. 132.º, 3 e 4, e à substancial desnecessidade
de proteção de credores e trabalhadores (cujos interesses permanecem intocados pela transformação), para gizar
argumento desfavorável à possibilidade de consulta. Vejamos uma proposta ulterior de fundamentação. A nosso
ver, é legítimo fundar a desnecessidade de proteção de credores e trabalhadores na “imunidade” dos seus
interesses à transformação. A dinâmica-típica da transformação diverge materialmente daquela ínsita nas
operações de fusão e cisão (cfr. art. 101.º, 1), nas quais se modifica o substrato patrimonial e/ou a organização
dos recursos humanos. A favor da imunidade dos interesses dos credores, dir-se-á que ela resulta do regime legal
que enquadra a transformação, porquanto se mantém o património social responsável pela satisfação dos seus
direitos e o regime de responsabilidade pelas dívidas contraídas até ao registo da transformação, nos termos do
art. 139.º, 1. Acresce ainda o fator de estabilidade ou manutenção da cifra do capital social. Mesmo que esta seja
reduzida, tal ocorrerá em operação autónoma da de transformação (ainda que simultaneamente deliberada), na
qual deverão os credores fazer valer os seus interesses, de acordo com o regime próprio da redução do capital
social. Da mesma forma, a tutela dos credores obrigacionistas estará assegurada pelo regime constante do art.
138.º, sendo que as obrigações convertíveis em ações terão de ser, previamente à transformação, totalmente
reembolsadas ou convertidas, art. 131.º, 1, d). Diga-se, finalmente, que a não atribuição de direito de oposição
aos credores, ao contrário de outros ordenamentos jurídicos (vide nota seguinte), terá tido por base a inexistência,
em sede de transformação, de uma modificação do substrato patrimonial da sociedade.
92 O recurso ao direito comparado (rectius, à comparação de Direitos) permite coligir alguns dados importantes
em relação à extensão (subjetiva) do direito de oposição na transformação. No direito italiano (cfr. 2500-nonies.
Codice Civile), é previsto direito de oposição dos credores à transformação heterogénea (v.g., a transformação de
sociedades de pessoas, consórcios, cooperativas, associações ou fundações em sociedades de capitais, bem como
o binómio inverso). Já a solução do direito teutónico (cfr. § 204 UmwG) cifra-se na remissão para o regime
previsto em sede de fusão, para a proteção dos credores e dos titulares de direitos especiais que não sejam sócios,
(cfr., respetivamente, os §§ 23 e 24 da UmwG), que faculta aos credores a possibilidade de exigir a constituição
de garantias pela sociedade, quando demonstrem que a transformação faz perigar a satisfação dos seus créditos
ou impede a manutenção de direitos equivalentes a direitos especiais em cenário pós-transformação (repare-se na
similitude com o direito à manutenção de direitos equivalentes que o nosso art. 101.º-D prevê).
Finalmente, no direito espanhol, não obstante a possibilidade de oposição por parte de titulares não-sócios de
direitos especiais não mantidos depois da transformação (cfr. art. 16.º, 1 LMESM), deve entender-se que, aos
credores, não foi atribuído direito de oposição à operação (neste sentido, vide ELDA MARQUES, «Comentário ao art.
132.º», em COUTINHO DE ABREU (coord.), CSC em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 508.
93 Vide TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção legal...», p. 292, nota 38. Igualmente, ELDA MARQUES, «Comentário ao
art. 132.º»..., p. 504. Posições sufragadas ao arrepio de opinião expressa na jurisprudência [cfr. Ac. STJ de
24.4.1995, BMJ, n.º 446 (1995), p. 303 e ss., em defesa da anulabilidade da deliberação de transformação
tomada sem precedência de um relatório justificativo, com base no art. 58.º, 1, a)].
30 Entre Caducidade e Destituição
pelos sócios, acarretando uma rutura ou descontinuidade jurídica (já não de cariz económico
nem identitário ou pessoal-coletivo), reclamará do legislador a correspetiva previsão de
«freios e contra-pesos» na arte arquiteta da produção legiferante, no sentido da tutela da
posição de sócios, credores e terceiros. Indícios evidentes dessa orientação estrutural não
tardam a despontar, para o intérprete, do molde teleológico de alguns preceitos. Deixámos
aqui um esboço hermenêutico-impressivo.
Orientado para a proteção dos sócios, não se pode deixar de mencionar o art. 137.º,
regulando o modo de exercício do direito de exoneração do sócio discordante da operação de
transformação, logo, pretendendo quitar-se do grémio societário que se submeterá ao trânsito
normativo entre roupagens jurídico-formais, ou seja, a mudança de tipo. Com a alteração
legislativa do DL n.º 76-A/2006, de 29 de março, o art 137.º deixou de ser mais um caso de
atribuição legal do direito de exoneração94 aos sócios que não tivessem votado
favoravelmente a deliberação de transformação 95. Na sua redação atual, o preceito postula
como conditio do gozo de direito de exoneração, por ocasião da transformação, a existência
de uma atribuição legal ou contratual habilitante nesse sentido. Destila-se notório o desígnio
da harmonização com o regime do art. 105.º, relativo à fusão, também aplicável à cisão, e que
requer uma norma legal ou estatutária permissiva da exoneração 96. Percorrendo o CSC, não se
vislumbra específica atribuição legal de um direito de exoneração ao sócio discordante em
sede de transformação. Eliminada uma das fontes possíveis (salvo legislação extravagante que
possa vir a consignar tal atribuição), resta concluir que o direito de exoneração deverá ser
94 Num elenco que incluía os arts. 3.º, 5.º, 2.ª parte, 45.º, 1, 161.º, 5, 185.º, 240.º e o recente 116.º, 4.
95 Considera-se terem votado desfavoravelmente à transformação, para além dos votantes contra a deliberação,
tanto os sócios ausentes como os que se abstiveram. Neste sentido, ELDA MARQUES/DUARTE FONSECA, «Comentário
ao art. 137.º», em COUTINHO DE ABREU (coord.), CSC em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 532 e
TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção legal...», p. 301, nota 60. Parece-nos que a posição sufragada pelos Autores se
abriga sobretudo na extensão interpretativa que a anterior redação do preceito, com a locução «os sócios que não
tenham votado favoravelmente» permitia. Com a alteração introduzida, referindo-se o atual art. 137.º aos «sócios
que tenham votado contra a deliberação de transformação», entendemos ser de excluir do âmbito de aplicação do
preceitos os sócios que se abstiveram ou estiveram ausentes, porquanto o vínculo interpretativo da
correspondência literal mínima que permitia a extensão lógica quebrou-se com a nova redação (art. 9.º, 2 CC).
Por outro lado, o alargamento interpretativo da hipótese normativa, atribuindo ao sócio ausente ou abstencionista
a faculdade de exoneração, é contrária ao princípio hermenêutico de favor à transformação (que infra, em texto,
afirmaremos decantar-se do regime vigente). A antítese entre ambos quantifica-se pela direta proporcionalidade
entre o número de sócios com a faculdade de exoneração e os virtuais custos ou ónus da transformação, pois a
sociedade deve adquirir ou fazer adquirir a participação do sócio exonerando, também podendo, segundo
alguma doutrina, amortizá-la, se tal faculdade tiver aval legal ou contratual que assegure o seu exercício à
sociedade. ELDA MARQUES/DUARTE FONSECA, últ. ob. cit., p. 535.
96 Neste sentido, COUTINHO DE ABREU, Curso... (2009), pp. 418-419. Todavia, posição de configuração antagónica
constrói ARMANDO M. TRIUNFANTE, Código das Sociedades Comerciais - Anotado, Coimbra Editora, Coimbra,
2007, pp. 139-140; defendendo que, independentemente de uma atribuição estatutária, o art. 137.º faculta ao
sócio o exercício da exoneração.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 31
97 Como nota FRANCISCO MENDES CORREIA, «Anotação ao art. 137.º», em MENEZES CORDEIRO, (coord.), Código das
Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 518.
98 DIOGO COSTA GONÇALVES, «Direitos especiais e o Direito de Exoneração em sede de fusão, cisão e
transformação de sociedades comerciais», em OD, n.º 138.º, II, 2006, pp. 333-334.
99 A dedução de oposição à transformação é causa de ineficácia da respetiva deliberação. Nos termos dos n. os 2 e
3, art. 131.º, a oposição é deduzida por escrito no prazo de um ou dois meses a contar da tríplice deliberação de
transformação, consoante se trate de oposição individual ou colegial-maioritária pelos acionistas com ações
32 Entre Caducidade e Destituição
privilegiadas. O sócio que deduza a oposição, nos termos anteriores, pode fazê-lo na própria ata da assembleia de
sócios que aprove a transformação ou durante um mês. Se aquele votar favoravelmente, pelo menos a
deliberação das als. b) e c) do art. 134.º, a oposição não terá efeito porque, ainda que não se considerasse o
consentimento ínsito ao voto favorável, a conduta padeceria de abuso de direito, na «figura sintomática» do
venire. Neste sentido, ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 131.º»..., p. 502 e TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção
legal...», p. 290. Em diametral oposição manifesta-se DIOGO COSTA GONÇALVES, ob. cit., p. 335, considerando que a
tese apresentada está impregnada de uma conceção démodé da proibição de venire contra factum proprium,
porque fundada na inobservância de uma atuação intrinsecamente pautada pela veracidade e coerência. A matriz
dogmática do venire deve ser a da tutela da confiança, só operando a proibição quando se verifique existir uma
situação de confiança justificada e digna de tutela. Embora seja real a contradição de comportamento, a ausência
de uma confiança tutelável, permite ao Autor, na situação em apreço, recusar a aplicação da figura. Vide, em
sentido dogmático consonante, embora noutras paragens normativas, A. MENEZES CORDEIRO./M. CARNEIRO DA
FRADA, «Da inadmissibilidade da recusa de ratificação por venire contra factum proprium» - Anotação ao
Acórdão da Relação do Porto de 18 de Novembro de 1993, em O Direito, Ano 126.º, III-IV, 1994, pp. 677-715.
100 DIOGO COSTA GONÇALVES, ob. cit., pp. 321-324 e 334.
101 Posição sufragada por ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 131.º».., pp. 500-501.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 33
mantido na sociedade transformada para que bloquear a operação, por força do impedimentO
102
plasmado].
Trata-se, tão-somente, de identificar uma matriz hermenêutica derivada do molde
teleológico que forjou o instituto e aplicá-la, de forma holística (assim agradece a unidade
sistemático-valorativa) na tarefa de interpretação-complementação de cada preceito edificante
do regime da transformação. Tudo isto sem prejuízo da coabitação normativa daquele
princípio de favor à operação com a necessidade (em certas situações, impreterível) de tutela
das posições jurídicas dos sócios. A comprová-lo, além dos enunciados arts. 137.º e 131.º, 1,
c), dispõem igualmente o art. 136.º, salvaguardando a manutenção das participações sociais, e
o art. 139.º, 2, prevendo a necessidade de consentimento para a assunção de responsabilidade
ilimitada e, nesse caso, a sua delimitação às dívidas contraídas pela sociedade após a
transformação.
O art. 136.º, albergando um princípio de tutela da posição relativa 103 do sócio, obsta a
que, por efeito da atribuição de participações de nova espécie, se altere o montante nominal
global da participação104 de cada sócio no capital social e a proporção de cada participação
relativamente ao capital, salvo acordo dos sócios. Tal necessidade de tutela emerge do
processo de transformação, na medida em que este coenvolve a substituição 105 da espécie de
102 Porventura se existisse autorização contratual, nos termos do art. 137.º, atribuindo direito de exoneração ao
sócio titular de direito especial, fosse possível proceder à exoneração, reflexamente removendo o impedimento.
Ainda assim, para além da situação-tipo desenhada focar-se na peculiaridade, o sócio a que foi contratualmente
atribuída a prerrogativa da exoneração poderia sempre exigir a manutenção do seu direito especial, descartando o
exercício do seu direito de exoneração, não se quitando do grémio societário. Bastava que no prazo previsto no
art. 137.º, 1, ex vi art 131.º, 2, o sócio discordante (que votara contra a deliberação de transformação) exercesse o
direito de oposição, ao invés de exigir a sua exoneração. Com efeito, tal obstaculizaria definitivamente a
transformação pela consolidação do impedimento previsto no art. 131.º, 1, c). Questão diversa, mas igualmente
interessante, é a da possibilidade do exercício abusivo deste direito de oposição por parte do titular de direito
especial, mormente quando se propugne procedente o (maleável) critério da equivalência material e quando a
transformação se revele absolutamente necessária para que a sociedade floresça comercialmente ou se mantenha
in bonis. Os traços típicos do abuso de minoria assomam. Problemática é a determinação da sanção para esse
tipo de abuso. Em alternativa à tutela indemnizatória como correlato de responsabilização civil, outras formas de
reação mais enérgicas como a exclusão dos sócios minoritários, com base no art. 1003.º, a), CC, ex vi art. 3.º,
CCom., seriam equacionáveis. Atenta a economia deste relatório, fica apenas aflorado o bloco problemático.
Vide J. M. COUTINHO DE ABREU, Do abuso..., pp. 184-185, com outras pistas de reflexão.
103 Visa-se permitir ao sócio a manutenção do seu status socii, evitando que a transformação, salvo
consentimento dos interessados, perturbe o equilíbrio interior do grémio societário desenhado pelo mapa das
diferentes «quotas de participação» (Beteiligungsquote), que cada sócio detém. Vide TARSO DOMINGUES,
Variações..., pp. 462-463, abordando o conceito acerca do desenho teleológico do direito legal de preferência dos
sócios em sede de aumento de capital por novas entradas em dinheiro.
104 Cfr. o DL n.º 49/2010, de 19 de maio. Ressalva-se a consagração legal das ações sem valor nominal,
devendo atender-se, neste caso, ao valor de emissão. Vide P. TARSO DOMINGUES, “As acções sem valor nominal”,
DSR, ano II, vol. IV, 2010, pp. 181-213.
105 Mas não necessariamente. No binómio SENC-SC, mantendo-se a participação na espécie de parte social, ex
vi arts. 176.º, 2, 465.º, 3 e 474.º, ou na transformação de uma SCA-SA, quanto aos sócios comanditários, ex vi
arts. 271.º e 465.º, 3.
34 Entre Caducidade e Destituição
106 Segundo o art. 219.º, 3, €1 para a quota, e art. 276.º/2, € 0.01 para a ação.
107 Por efeito lógico, a substituição da espécie de participação social com a conservação do respetivo montante
nominal total/global garante a preservação da “quota de participação” de cada sócio, isto é, a proporção de
participação de cada sócio relativamente ao capital. Lembramos que o capital social nominalmente cifrado não é
beliscado pela aprovação da transformação, o que, aliás, se deduz da manutenção do valor global da participação
de cada sócio, por regra. Se os sócios concordarem na sua alteração, a asserção mantém-se, porquanto o aumento
de uma participação nominal global de um sócio implica a diminuição das restantes, em jogo de ajuste intra
societário de pesos e contrapesos que não bule com a cifra nominalmente plasmada do capital social.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 35
108 Segundo o qual o sócio assume responsabilidade pessoal, mas não ilimitada, pelas dívidas sociais.
109 Será uma objeção liminarmente improcedente dizer-se que diretamente responsável perante os credores é
apenas a sociedade, pretendendo provar a desnecessidade do regime de ultra-atividade. Os sócios que tenham,
nos termos do preceituado, «responsabilidade pessoal e ilimitada» são subsidiária e solidariamente responsáveis
perante os credores sociais, pelo que o regime de créditos, supra referido em texto, abrange unitariamente a
responsabilidade da sociedade e dos sócios. A sociedade é a mesma pessoa jurídica, no pós-transformação, e a
sua responsabilidade conserva-se, respondendo pelas dívidas sociais com o seu património. Difere, isso sim, o
regime global das dívidas sociais, pois, para além da sociedade, serão outras pessoas (os visados pelo art 139.º,
1) subsidiariamente responsáveis.
110 H. DUARTE FONSECA/ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 139.º»..., p. 544. V., infra, nota 113.
36 Entre Caducidade e Destituição
111 A configuração tipológica da SENC autoriza a inexistência de cifra de capital social, ex vi art. 9.º, 1 f), in
fine, quando todos os sócios contribuam em indústria. A este propósito relembramos que as múltiplas
combinações de tipos que os binómios de transformação constroem podem revelar casos inusitados. Vejamos um
exemplo. Defendem ELDA MARQUES/DUARTE FONSECA, «Comentário ao art. 136.º», em COUTINHO DE ABREU (coord.),
Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 528, nota 52, que na
transformação da sociedade não ocorrem “entradas”, mas tão-somente a substituição ou conversão de
participações sociais correspondentes ao novo tipo social adotado. Imagine-se, todavia, uma transformação em
que o tipo de origem é uma SENC constituída apenas por sócios de indústria, qua tale desprovida de capital
social – cfr. arts. 9.º, 1, f), 178.º, 1 – e o tipo de destino será uma SQ ou SA. In casu, a conversão/substituição
das participações sociais não pode deixar de ter por efeito a exigência (para todos os sócios) de
contribuições/entradas em dinheiro ou espécie [que constarão do projeto de contrato a aprovar nos termos do art.
134.º, c)], atendendo à fisionomia típica do tipo de destino, que não comporta entradas em indústria. Logo, neste
caso excecional, por força da transformação visada, os sócios de indústria deixarão de o ser.
112 Cfr. arts. 348.º a 372.º-B e o DL n.º 160/87, de 3 de abril, no seu art. único, norma permissiva da emissão de
obrigações nas SQ, remetendo, em todo quanto aplicável, para o regime dos arts 348.º e ss., relativos à SA.
113 Neste sentido, H. DUARTE FONSECA/ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 139.º», em COUTINHO DE ABREU,
(coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 545.
114 PEDRO MAIA, «Tipos de sociedades comerciais», em COUTINHO DE ABREU (coord.), Estudos de Direito das
Sociedades, 10.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2010, p. 15 e ss.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 37
que a miscigenação de características tipológicas seja normal (ou dado normativo adquirido).
Assim, há, com efeito, distorção do paradigma tipológico (mormente no que concerne à
ultra-atividade do regime de responsabilidade ilimitada no tipo anónimo) e, note-se, não
porque essa fosse uma consequência natural ou necessária da operação, mas porque o
legislador-arquiteto elegeu blindar o regime de determinados créditos na transição de tipos.
Mais um indício do lastro holográfico normativo de que falávamos. «Paira» sobre o
novo tipo, o output do processo de transformação, uma umbilical conexão ao tipo anterior que
não se basta com certa afirmação da historicidade identitária da sociedade-pessoa-coletiva ou
com a sua substancial continuidade patrimonial económica no pré e pós-transformação. A
infusão teleológica do tipo de origem densifica-se evidentemente operante em casos como o
identificado quanto ao art. 139.º. A proteção do acervo de relações, situações e expetativas
jurídicas ou não jurídicas que eclodiram e se cimentaram ao abrigo do manto normativo do
tipo de origem é de tal forma vincada que, em casos como o abordado, transitam intocadas ou
inalteradas, para o tipo de destino, constelações de relações jurídicas previamente
estabelecidas, que, no limite, obrigam a uma acomodação normativa da fisionomia legal do
tipo eleito, quando este se verte na concreta configuração da esfera jurídico-estrutural de certa
sociedade transformada.
Relembremos o que dissemos supra sobre a perspetiva estrutural-dinâmica de análise
que adotaríamos como instrumento analítico. Com um impressivo traço geral, pode dizer-se
que a literatura jurídica portuguesa sobre transformação societária é perpassada, sem prejuízo
da afirmação do princípio da identidade ou da continuidade, pela heurística metódica da
justaposição estática entre o antes e o depois da transformação, que obriga a trilhar caminhos
mais ou menos complexos de ligação entre momentos. Nem podia ser de outro modo, porque
essa é a perspetiva conatural de pré-compreensão significante do instituto e, por conseguinte,
a sua exclamativa cor dogmática. Todavia, quando o objeto analítico, ao invés de se centrar na
transformação a se, foca certas relações jurídicas que gravitam em torno da sociedade a
transformar, como seja relação complexa de administração estabelecida, revelar-se-á mais-
valia complementar o recurso a uma leitura dinâmica que entroniza o intermezzo jurídico-
estrutural dessa teia de relações em transição, denunciando os efeitos que a operação matricial
nelas incita, ao invés de descrever a sua configuração tanto à partida como à chegada da
viagem de mutação jurídico-formal da sociedade.115
115 Vide nota 195, ponto 1, cap. IV, sobre a afirmação de um status via como régua dogmática que absorve a
mutabilidade própria das situações jurídicas, ínsitas no status socii, e induzida pela vicissitude da transformação.
38 Entre Caducidade e Destituição
3. Síntese Conclusiva
normativa proposta, cabe agora enunciar os píncaros lógicos do que fica exposto, ilustrando o
arrimo teórico da nossa ulterior indagação. Assim, damos por assente que:
I. O princípio da identidade consubstancia o veio normativo que perpassa todo o
instituto da transformação de sociedades comerciais ao permitir a impermeabilização da
identidade jurídica da sociedade transformada ao próprio processo de transformação.
II. Na sua face operativa, o princípio configura-se como instrumento técnico-jurídico
simplificador que descarta a necessidade de justaposição diacrónica de mecanismos de
liquidação e nova constituição de sociedades, deflectindo a defesa de formas de estruturação
bifásica do instituto (de que a modalidade extintiva-novatória de transformação é já resquício
anacrónico e espúrio à configuração do instituto120).
III. A matriz operativa da transformação espelha-se na adoção de um novo regime
jurídico, estruturalmente dimanado do tipo social eleito, existindo uma linha de continuum
identitário-essencial no trânsito entre tipos ou sub-tipos, por referência ao pólo normativo
sinalizador da personalidade coletiva existente. Comutam-se as normas que disciplinavam a
sociedade enquanto organização de atuação e enquanto centro de responsabilidade,
preservando-se, todavia, incólume o seu referencial identitário de aplicação e produção
jurídico-normativo.121
IV. A génese volitiva da operação está exclusivamente atribuída ao órgão de
administração, por força do art. 132.º. No conspecto da tramitação inicial do procedimento de
transformação jaz, como catalisador primordial, a organização e apresentação, pelo órgão de
administração e representação da sociedade, de um relatório justificativo da operação que se
intenta empreender, acompanhado de um balanço que retrate, de forma precisa, a situação
patrimonial da sociedade.
V. A análise tutelar bipartida do regime da transformação, pelas lunetas dos sócios e dos
terceiros (com destaque para os credores sociais), permitiu-nos afiançar a existência de um
lastro holográfico do tipo inicial no tipo de destino em resultado do processo de
transformação.
VI. O conceito operativo gizado reporta-se a um conjunto de relações, situações e
expetativas jurídicas ou de facto que «pairam» sobre o tipo adotado, não obstante terem sido
120 Desenvolvidamente, sobre as razões que presidem à afirmação da obsolescência prática da previsão
normativa de uma modalidade extintiva-novatória de transformação, vide supra ponto 2.2, II.
121 A trilogia de indícios sugestivos do fenómeno da personalidade coletiva (uma organização de atuação
Handlungsorganisation, um centro de responsabilidade Haftungsverband e um ponto identitário de referência
Identitätausstattung), é a utilizada por UWE JOHN, Einheit ..., pp. 965-971.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 41
moldadas pela difusão normativo-legal do tipo social de origem. O dado normativo que
ressaltamos fundamental é o da subsistência ou permanência (crismada pela técnica jurídica
de «ultra-atividade» ou «sobrevigência») de certas situações jurídicas à vertigem da rutura e
mudança que é conatural ao instituto.
VII. A existência desse lastro normativo122 (que não se confunde com uma mera alusão
à historicidade lógica do pré-transformação) é tanto mais evidente quando se percebe que foi
tarefa do legislador escolher ou filtrar123 quais as situações que imunizava em relação ao
processo, dotando-as da referida ultra vires.
VIII. Os direitos subjetivos dos credores que se consolidaram antes da transformação
estão imunizados pela sobrevigência de regimes especiais de proteção (arts. 138.º e 139.º, 1),
ainda que o novo tipo social não os comportasse per natura, garantindo-se a manutenção do
status quo ante.
IX. A tutela dos sócios na torrente normativa do trânsito entre tipos faz-se pela
manutenção das posições relativas (art. 136.º), a salvaguarda dos direitos especiais [art 131.º,
1, c)], a proteção contra a sua responsabilização ilimitada (art. 139.º, 2) e pelo exercício da
exoneração (art 137.º).
X. Despontámos, em cada um dos núcleos de tutela, (bem como nas alterações
introduzidas ao regime da transformação, cfr art. 137.º), críveis afloramentos de um princípio
hermenêutico de favor à transformação, manifestado tanto pela autorização da transformação
regressiva (eventualmente trazendo regras – v.g., de fiscalização – menos favor favoráveis
para os credores), como pela suficiência do critério de equivalência material na manutenção
de direitos especiais, cfr. art. 131.º, 1, c), ou ainda pela disponível regra da inalterabilidade da
«quota de participação» de cada sócio, art. 136.º.
XI. Finalmente, refutada a tese sobre a natureza intrínseca do instituto da
transformação que propugna a sua recondução a uma mera espécie do género modificação do
pacto social, concluímos pela autonomização do instituto, animado por um particular vetor
normativo, o princípio da identidade, o que, por sua vez, não invalida a recondução da
122 Como diria Parmênides de Eleia, em toda a mudança há uma constante. A «sombra» do tipo de origem
permanece incidindo sobre o tipo de que a sociedade transformada se reveste, como se do seu alter ego
tipológico se tratasse. Basta levar em consideração as distorções tipológicas que supra provámos existirem
nalguns dos binóminos de transformação, configuráveis por força dos núcleos de tutela de sócios e credores, para
conhecer casos em que aquela «sombra» se convolou em norma vigente, por meio da ultra-atividade induzida
pelo legislador.
123 Sobre as conclusões que a eleição ou preterição de certas situações jurídicas permite retirar, v. ponto 1, IV.
42 Entre Caducidade e Destituição
nos estatutos, que não pode exceder quatro anos civis, computando-se como ano completo o
ano da designação e, supletivamente (na falta de previsão estatutária da linha temporal da
relação de administração), é comando legal presuntivo considerar que a designação é
realizada para igual período de quatro anos127, (cfr. arts. 391.º, 3 e 425., 2). Nas SQ, a duração
das funções de gerência é indeterminada, salvo previsão estatutária (ou no próprio ato de
designação) de cláusula temporalmente delimitativa da relação de administração128.
A explicação da clivagem entre disciplinas legais supletivas recolhe-se, mais uma vez,
no ânimo legitimador da contraposição entre sociedades de pessoas e de capitais. Em síntese,
a dispersão capitalística aliada à variabilidade da composição do grémio societário no tipo
anónimo (em simbiose concorrendo para o paradoxo do absentismo minoritário ou da «apatia
racional» ínsito na wall street rule129) seriam consentâneas com a restrição temporal das
funções dos administradores. Os prazos pré-determinados evitariam que a inércia referida
permitisse a manutenção de administradores «insatisfatórios», catalisando a sua não reeleição,
ao passo que a maior estabilidade do elemento subjetivo nas SQ se refletiria na tendencial
estabilidade da gerência130. [Para além da tendencial aridez teórica da contraposição entre
sociedades de pessoas e de capitais – atenta a variabilidade semeada em cada modelo
tipológico –, cabe perguntar, maxime em relação ao tipo anónimo, se a regra de livre
destituição ou da destituição ad nutum, independente de justa causa, não seria já garante
suficiente da manutenção do liame fiduciário exigido pela relação de administração e do
127 Excepcionam-se os administradores designados judicialmente. Cfr. o art 394.º, 1, in fine e o art. 426.º. Vide
A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 391.º», em MENEZES CORDEIRO (coord.), Código das Sociedades
Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2011, pp. 1049-1050. Diga-se, em tom de inventário causal,
que a designação pode revestir diversas formas, podendo ser estatuária ou pactícia, ou ter lugar em assembleia
geral, sem esquecer a designação como instrumento de defesa ou bastião minoritário, nos termos do art 392.º, 1 a
5 e do art. 392.º, 6 a 8, com a eleição por minorias vencidas. Teremos ainda a chamada de suplentes, art 393.º, 3,
a); a cooptação, art. 393.º, 3, b); a designação pelo conselho fiscal ou pela comissão de auditoria, art 393.º, 3, c);
a nomeação judicial, art 394.º e, finalmente, a nomeação pelo Estado, quando legalmente prevista, art 392.º, 11.
Com real interesse para dilucidar o nosso quid problemático, elegemos as primeiras, as formas comuns de
designação. Com efeito, a designação de pessoa diversa para cargo diretivo ou de que gestão que origina a não
recondução daquele que se torna ex-administrador por força da transformação pode ocorrer, desde logo, na
aprovação da tríplice deliberação, nos termos do art. 134.º, mormente no que diz respeito a aprovação do novo
contrato de sociedade. Por outro lado, nada impede que em simultâneo com a tríplice deliberação, sejam
deliberados outros assuntos sociais, como a eleição dos novos titulares dos órgãos sociais, em alternativa à sua
designação no projeto de contrato a deliberar. Ainda, para um tertium genus na concretização do momento
eletivo dos novos administradores através de uma designação transitória no novo contrato a aprovar em ulterior
assembleia de nomeação, vide supra nota 5, cap. I.
128 Coíbimo-nos aqui de matizar a relação de administração com referências à sua natureza intrínseca,
contratual ou não, pois, infra ponto 1, cap. IV, retomaremos o esboço controvertida da sua definição.
129 A chamada opção «exit» ou «to vote with their feet». Vide J. M. COUTINHO DE ABREU, Governação..., p. 15.
130 Vide Coutinho de Abreu, Curso..., vol II., pp. 618-619, nota 385, comodatando as palavras de RAÚL VENTURA,
Sociedades por quotas – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. I, 2.ª Ed. (reimpressão),
Almedina, Coimbra, 1993, p 80.
44 Entre Caducidade e Destituição
131 Contudo, estas serão considerações levadas de iure condendo ao sopeso normativo próprio do legislador-
arquiteto no âmbito da tarefa legiferante. Por isso, e porque entendemos que a solução de tutela ideal ou
harmónica para o administrador gratuitamente afastado por ocasião, ou a pretexto, da transformação pode ser
encontrada no plano da conformação do direito posto ou de iure condito, bastamo-nos com a pista reflexiva.
132 O critério que, em oposição ao critério da reprodução integral do direito especial existente na sociedade
transformada, mais se compagina com o princípio hermenêutico de favor à transformação. Princípio que povoou
a mens legislatoris aquando das alterações introduzidas ao regime do art. 137.º e que desponta em vários lugares
sistemáticos da disciplina legal da transformação. Vide, desenvolvidamente, ponto 2.3 e 3, II.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 45
133 Atenta a necessária interseção entre o status socii e a titularidade de um direito especial (art. 24.º), não se
vislumbra válida a faculdade de recurso, do administrador não-sócio, ao mecanismo de oposição gizado no art.
131.º, 1, c). Aliás, qualquer argumento no sentido da constituição analógica de um direito de oposição para o
administrador não-sócio seria perfeitamente descabido, porquanto a inexistência de um direito especial a
preservar em ambiente de transformação desautoriza, porque inverosímil, o juízo de similitude entre situações
enquanto apriorístico patamar metodológico da integração analógica. Se, do ponto de vista normativo a proposta
se queda insustentável, pelo filtro da praxis societária poderia até revelar-se nociva ou excessivamente pro-
management, pois permitiria a criação de bolsas de resistência ou bloqueio à operação dentro do próprio órgão
administrativo-representativo.
134 Excecionam-se logicamente desta regra de permanência em funções a nomeação judicial, a destituição e a
renúncia, arts 394.º, 403.º e 404.º, respetivamente. Repare-se que, por esta via, pode mesmo ultrapassar-se o
período de duração legal ou estatutariamente fixado para a relação administrativa. Assim, A. MENEZES CORDEIRO,
«Anotação ao art. 391.º»..., p. 1050. Neste hiato temporal que medeia entre o termo do prazo pré-fixado e a
produção de efeitos da nova designação (tendo o designado que a aceitar expressa ou tacitamente), não nos
parece que se possa aventar que os antigos administradores são meros «administradores de facto». A prorrogação
a termo incerto do seu mandato ocorre ex vi legis, sendo certo que ele não permanece indevidamente em funções,
como sucedia, ao abrigo da redação originária do art 401.º, in fine, no caso do administrador afetado por
incompatibilidade e ou incapacidade superveniente que se mantinha em funções, tendo a caducidade do seu
mandato operado automaticamente. Vide COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 620.
135 Como a falta de caução, cfr. arts. 396.º, 1 a 4, 433.º, 2; a ausência de ratificação em assembleia geral da
designação, quando necessária, cfr. arts. 393.º, 3, b), c), e 6; a previsão directa ou indirecta no estatuto de causas
de caducidade e, naturalmente, a morte do administrador.
136 Cfr., contudo, o disposto no art. 112.º, a), in fine.
46 Entre Caducidade e Destituição
aplicação. O primeiro grande óbice resultará da assimetria tutelar ínsita à disciplina do abuso
societário. Referimo-nos à bipolar legitimidade ativa para a ação de anulação que a leitura
articulada dos arts. 58.º,1, b) e art. 59.º, 1, concita. Mesmo defendendo-se que o Tribunal
poderia anular a deliberação de transformação que traz consigo, para além do resultado típico
da destituição, o propósito e a aptidão lesiva do ex-administrador/gerente, possibilitando-lhe
retorno às funções administrativas, apenas teria legitimidade para a impugnação judicial o
(ex-)administrador sócio. Ao ex-administrador não sócio estaria vedado o recurso à ação de
anulação. Denota-se, desde logo, uma justaposição sistemática «desconfortável».
Para que a deliberação se pudesse considerar abusiva-anulável, nos termos do art. 58.º,
1, b), era necessário que o administrador lesado fosse sócio. Neste ponto, as soluções
propostas para ultrapassar este escolho levam já o travo da divergência doutrinal quanto à
articulação entre os universos típico-legais da deliberação social abusiva e da figura do abuso
nas suas vestes civis de cláusula geral. Poderíamos, anuindo reverência à ideia de uma
construção holística da figura do abuso142 de direito em sede societária, reconduzir outras
hipóteses típicas ou figuras sintomáticas de abuso, filiadas no art. 334.º, CC, à hipótese do art.
58.º, 1, a), para assim fundar, do ponto de vista substantivo, o carácter abusivo daquela
deliberação de transformação, tornado-a anulável. Todavia, a solução ficaria sempre a meio-
caminho. O administrador não-sócio teria então legitimação substantiva para reagir contra a
lesão de uma deliberação de transformação reflexamente143 abusiva, mas careceria sempre de
legitimidade para a impugnação de deliberação inquinada, ex vi art. 59.º, 1.
Dir-nos-ão que o silêncio do preceito não obsta à sua extensão teleológica, abrangendo
também o administrador não-sócio144. Parece-nos, ao invés, uma entorse exegética contra
legem da dimanação significante do preceito. A teoria da anulabilidade assenta na previsão, na
esfera jurídica do interessado, um direito potestativo à impugnação que este exercerá de
acordo com o seu arbítrio de conveniência. Atendendo à via reflexa de legitimação
substantiva operada através da infusão hipotética do art. 58.º, 1, a), com recurso ao art. 334.º,
é, pelo menos, duvidoso que se cumpra a reserva de legitimidade do art. 287.º, 1, no sentido
142 J. M. COUTINHO DE ABREU, «Comentário ao art. 58.º»...cit., p. 680 e ss., com o sintético resumo doutrinal das
razões pelas quais o recurso liminar à geral válvula de escape sistemática do art. 334.º deve ser, no que concerne
às deliberações sociais abusivas, afastado. No bastião opoente, pugnando pela complementaridade vide A.
MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil, vol I. t. 1, 3.ª ed. 2007 (reimp.), p. 399 e ss., e «Anotação ao art.
58.º»...cit., pp. 236-237. Cfr., ainda, M. CARNEIRO DA FRADA, «Deliberações sociais inválidas...»...cit., p. 323.
143 Isto porque a premissa é a da suficiência da disciplina societária da invalidade das deliberações abusivas.
Não é por mero capricho logicista que se faz intervir o crivo subsuntivo do art. 58.º, 1, a), evitando o recurso
imediato ao art. 334.º.
144 Neste sentido, JOÃO LABAREDA, Direito societário português …cit., pp. 105-105.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 49
de que apenas estarão legitimados a arguir a anulabilidade «as pessoas em cujo interesse a lei
a estabelece». De iure condito, o silêncio do art. 59.º quanto ao administrador/gerente não-
sócio ecoa eloquente145. A tentativa labiríntica de evocar um sopro de legitimidade para o
gestor não-sócio ilustra cabalmente mais uma das razões pelas quais a mera sanção
indemnizatória, preservando-se a aplicação integral e ininterrupta do regime da destituição
sem justa causa146, mesmo em ambiente de transformação, se revela a forma mais justa,
equitativa e harmónica de tutela ou reação à situação-tipo objeto de análise.
Sempre se dirá que o óbice de bloqueio da legitimidade ativa de impugnação para o
administrador não-sócio é produto derivado da visão holística (e excludente) do instrumento
de controlo da deliberação abusiva, descartando-se a complementaridade sistemática com o
art. 334.º, CC, porquanto o direito de voto dos sócios na tríplice deliberação, tal como
qualquer situação jurídica, está sujeito à eventualidade do exercício abusivo e, por
conseguinte, adstrita ao regime preconizado pela cláusula geral de sede normativa civil. Tal
sucederá desde que o exercício do direito de voto contenda com o «núcleo axiológico
fundamental do sistema, expresso pela locução boa fé» e concretizado através dos princípios
mediantes da «tutela da confiança legítima»147. Deste modo, e porque da leitura articulada dos
arts. 58.º, 1, b) e 59.º, 1 parece não se poder deduzir a legitimidade ativa do gestor não-sócio,
seria cogitável considerar a deliberação em apreço abusiva pela sua subsunção à cláusula
geral do art 334.º, CC, maculando-a, agora sim, de nulidade, por violação de um princípio
injuntivo, ex vi art. 56.º, 1, d).
Com efeito, o problema da legitimidade seria ultrapassado. No mapa normativo da
nulidade no direito privado português, o art. 57.º não figura como regra excecional ao regime
geral previsto no CC. O art. 57.º faz acrescer aquele regime algumas especialidades, de modo
algum sendo a sua derrogação restritiva. Por isso, à nulidade das deliberações aplica-se o
disposto quanto aos negócios jurídicos nulos, vide art. 286.º, CC, sobre a invocabilidade do
vício «a todo o tempo», por «qualquer interessado» e a sua declaração ex officio pelo
Tribunal. Entre os interessados (art. 26.º, 1 e 2, CPC), para além dos especificamente
mencionados no art. 57.º, devem considerar-se incluídos os administradores das sociedades
por ações, qualquer um dos sócios e ainda alguns terceiros148. Parece-nos inequívoco que
145 Em sentido consonante parece pronunciar-se J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 169, nota 418.
146 Não se vislumbra como a transformação possa fundar justa causa...Infra, ponto 3.
147 A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil, vol I. t. 1, 3.ª ed. 2007 (reimp.), p. 399 e ss.
148 Esta é a lição, em instância interpretativa do art. 57.º, de J. M. COUTINHO DE ABREU, «Comentário ao art. 57.º»,
em COUTINHO DE ABREU (Coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, Coimbra, 2010,
50 Entre Caducidade e Destituição
entre os estes terceiros com legitimidade ativa para a impugnação judicial da deliberação
estariam igualmente os administradores não-sócios abusivamente destituídos a pretexto da
mudança de tipo ínsita na transformação de sociedade.
Tal expediente interpretativo não significaria a absorção sistemática do abuso de sede
societária do art. 58.º, 1, b). Este preceito abrangeria o exercício danoso do voto com
propósitos extra-societários e os atos emulativos, inquinando a deliberação abusiva de
anulabilidade. Ao seu lado, complementando-o na tarefa de «salvaguarda e reprodução do
sistema»149, estaria o abuso de direito nas suas vestes civis gerais (art. 334.º), maculando o ato
deliberativo viciado de nulidade. Aliás este teorema traduz exatamente o procedimento
interpretativo percorrido a propósito do vácuo legitimação (e de legitimidade processual) do
administrador não-sócio lesado pela deliberação abusiva, que o art. 58.º, 1, b), prima facie,
inculca. A tese da complementaridade entre os dois universos normativos do abuso parece, in
casu, caminhar de mãos dadas com o apanágio racional da procedência. Mas só
aparentemente...
Em bom rigor, ultrapassado o óbice demonstrado, cria-se um novo «desconforto
sistemático»: o da intermitência entre anulabilidade e nulidade como vício da deliberação
considerada abusiva através de cada uma das vias, tanto societária como civil. Uma mesma
deliberação poderia então ser nula para o administrador lesado que não fosse sócio e
meramente anulável para o administrador igualmente sócio. A complementaridade dos dois
caminhos, de um lado, os arts. 58.º, 1, b) e 59.º, 1 e doutro, os arts. 334.º, CC e 57.º, 1 e 4,
termina num cruzamento antinómico pela introdução de uma distorção na linha transversal da
relação de administração: a diferenciação iníqua entre administrador sócio e não-sócio.
Colige-se aqui mais uma boa razão para depositar cum granu salis certezas de correção e
validade no recurso à figura da deliberação abusiva, com base no art. 334.º, como solução de
tutela equilibrada.
Acresce ainda o facto (com repercussões ao nível da estabilização dogmática do tema)
de gravitar em torno da tese de complementaridade entre sistemas de abuso de direito um
ambiente de controvérsia e crítica, mormente quanto à persistência de alguns sectores
pp. 667-668. Será o caso dos credores e os trabalhadores quando se trate de uma deliberação de distribuição de
lucros fictícios, ou de um membro do conselho fiscal não-sócio destituído sem justa causa. Infra, ponto 3,
veremos que uma das exceções à regra da livre destituição (cfr. art. 403.º, 1), é a relativa aos membros
(administradores) da comissão de auditoria (art. 423.º-E, 1), quando este órgão exista no modelo de governação
adotado, só podendo aqueles ser destituídos com justa causa. Cfr., igualmente, o caso dos gerentes com direito
especial à gerência, art. 257.º, 3 e 4 e o disposto no art. 392.º, quanto ao «administrador das minorias».
149 A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 58.º»..., p. 237.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 51
152 Vide infra, nota 179, referência ao enquadramento lógico de eventual argumento que propugnasse a nulidade
ou anulação parcial da deliberação de transformação (art. 134.º e art. 292.º, CC), reduzindo-a pelo
desentranhamento da designação eletiva abusiva ou fraudatória como forma de ultrapassar o óbice apresentado.
153 O argumento da iconoclastia imanente à aplicação tutelar do abuso, ao menos de sede civil, poderia ser
temperado com recurso ao disposto no art. 566.º, 1, in fine, CC, derrogando a prioridade da reconstituição in
natura, porque excessivamente onerosa para o devedor (a sociedade), para apenas ativar, como meio de reação
do ordenamento contra a ilicitude do ato deliberativo, o ressarcimento indemnizatório do lesado. A existência de
conduta ilícita quando o dano é causado com abuso de direito é defendida, entre outros, por SINDE MONTEIRO,
«Rudimentos da responsabilidade civil», em RFDUP, ano 2.º, 2005, pp. 366-369, que, seguindo o trilho do
sistema de responsabilidade civil alemão, giza um conteúdo delitual mínimo do abuso do direito (art. 334.º, CC),
através do extravasar manifesto ou excessivo dos limites impostos pelos bons costumes. Analisando as restantes
vertentes, dir-se-á que a boa-fé, pressupondo a existência de uma relação especial, como é aceite, apartar-se-ia
do campo puramente delitual, sendo, por sua vez, pouco relevante o parâmetro do «fim económico ou social» de
um direito numa sociedade em que a atribuição dos direitos não está funcionalizada.
Apesar da hipotética aplicação da tese em apreço poder minorar os efeitos iconoclastas denunciados,
algumas reservas pétreas podem apontar-se: está em causa o exercício de um direito especial da sociedade que
destituiu (pela não reeleição) certo gestor, i. é, um direito postestativo de destituição, e não, simplesmente, o
exercício da liberdade geral de agir da sociedade agente-lesante. Com efeito, no que respeita à contrariedade aos
bons costumes, como diz SINDE MONTEIRO, últ. ob. cit., p. 367, «existindo um direito especial, a regra é a de que o
seu titular o pode exercer mesmo com prejuízo de outrem». E essa potestas de destituição ad nutum não é, como
veremos, suspensa ou limitada pelo processo de transformação da sociedade, revestindo-se de licitude o ato que
a consuma, ainda que por força do ambiente normativo específico de transição entre tipos legais em que o ato se
insere, este surja sob a forma da designação de pessoa diversa do gestor em causa para os novos corpos sociais
na sociedade transformada. Em bom rigor, o novelo factual analisado convocará já um problema de
responsabilidade civil por factos lícitos, e não uma questão de responsabilidade por culpa. Por outro lado, o
recurso a uma solução de tutela fundada no direito societário revela a vantagem particular da aplicabilidade da
ratio de limitação do montante indemnizatório dos arts 403.º, 5 e 257.º, 7, pois, pese embora a indemnização
esteja, por princípio, limitada ao dano, vide arts. 483.º e 494.º, CC, a cominação societária específica de um
plafond indemnizatório ajusta-se com ganhos equitativos à situação-tipo em apreço. Vide, infra, p. 2, cap. IV.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 53
154 O assentimento maioritário da doutrina vai no sentido da licitude da destituição sem justa causa, vide RAÚL
VENTURA, Sociedades por quotas, cit., vol. III, p. 104, e RICARDO RIBEIRO, «Do direito a indemnização dos
administradores de sociedades anónimas destituídos sem justa causa», BFDUC, Vol. LXXXIII, 2007, pp. 813-
814. No mesmo tom discursivo, ecos jurisprudenciais da tese encontram-se nos Acs. STJ, de 7/2/06 e de 11/7/06,
CJ-STJ, 2006, t. I, pp. 61-62. Em sentido contrário, leia-se, todavia, o Ac. do TRC, de 30/11/2010, consultado
em «www.dgsi.pt» e a posição de A. MENEZES CORDEIRO, Manual...cit., vol. I, p. 903.
155 L. BRITO CORREIA, Os administradores de sociedades anónimas, Almedina, Coimbra, 1993, pp. 664 e ss.
156 Vide ANTÓNIO CAEIRO, Temas de direito das sociedades, Almedina, Coimbra, 1984, pp. 43 e ss. A mancha de
influência desta regra tem o matiz da tradição no espaço continental-europeu, regendo na maioria dos países.
Tanto nos EUA como no RU, a transição fez-se de sistemas tendencialmente protetores do administrador para a
admissão de uma regra de livre destituição, a todo tempo, seja ela de natureza imperativa ou devendo estar
prevista nos estatutos. Vide V. GOWER/DAVIES, Principles of modern company law, 7th ed. by Paul L. Davies, Sweet
and Maxwell, London, 2003, pp. 309-310. Por sua vez, o direito teutónico seguiu caminho exatamente simétrico
para as sociedades anónimas: da livre destituição transitou-se para a destituição apenas por justa causa. Assim
depõe o § 84 (3) da AktG. O mesmo não se verificou, todavia, para as sociedades por quotas. O § 38 da GmbHG
(de 1892), possibilita a «livre» destituição ao mesmo tempo que autoriza os estatutos a cercear a amplitude
casuística dessa potestas, limitando-a à verificação de «fundamentos importantes». Documentando tal
movimento aparentemente contra-cíclico em relação à AG, vide M. LUTTER , Il sistema del Consiglio di
sorveglianza nel diritto societario tedesco, RS, 1988, p. 97.
157 A. FERRER CORREIA/ V. LOBO XAVIER/M. ÂNGELA COELHO/ANTÓNIO A. CAEIRO, Sociedades por quotas de
responsabilidade limitada (anteprojecto de lei – 2.ª redacção e exposição de motivos), RDE, 1977, p. 381
158 Neste sentido, vide L. BRITO CORREIA, Os administradores..., pp. 699 e ss.
54 Entre Caducidade e Destituição
Mas a bondade destes argumentos é discutível. Para garantir que a maioria acionista
conserva a confiança no corpo administrativo a mediação da justa causa permitira filtrar as
razões invocadas para a queda de confiança, evitando, em teoria, abusos da maioria de
controlo acionista no sentido de tornar o órgão de administração seu títere ou longa manus
instrumental. Aliás, quando se fala da «reconstrução» da confiança depositada nos
administradores pelos «novos» acionistas, parece assentar-se na premissa de que os
administradores são somente «servidores da maioria», não podendo acautelar o interesse
comum de todos os sócios. Também por isso deve ser lida cum granu salis a ideia de que a
regra da destituição ad nutum159 contribui para a «afirmação do princípio maioritário na
determinação do interesse da sociedade»160. Sobre a adaptabilidade que a regra induz no corpo
administrativo cabe apenas perguntar se a incapacidade ou inaptidão revelada pelo
administrador para acompanhar novas e mutáveis exigências empresariais não configura já
uma justa causa de destituição.
É óbvio o plus que a regra acrescenta à fáctica possibilidade de domínio societário pelos
sócios (ditos de controlo), atuais e futuros, na medida em que a potestas destitutiva ad nutum
ensombra de risco a atuação dos administradores (pode até dizer-se que a perspetiva de poder
destituir a um aceno, ou sinal, facilita as tomadas de controlo, pois a renovação de um corpo
administrativo «não alinhado» faz-se imediatamente). Este risco estimula, de facto, uma
atuação em prol dos sócios. Contudo, parece que estímulo suficiente resultaria da
possibilidade de destituição apenas com justa causa e dos prazos (por vezes bastante curtos)
de duração do mandato acoplados a outras causas de não reeleição (art. 391.º, 3).
Com efeito, a regra também peca pela desproporcionalidade ou excesso ao produzir um
«dilema da anuência» do administrador161. Não obstante o disposto no art. 83.º, 4, e a (teórica)
boa prática da não instrumentalização do órgão administrativo pelo grupo de sócios
dominantes, a verdade é que instruções, ordens, diretivas ou recomendações são veiculadas. O
desrespeito por estas instruções, embora legal e conforme ao seu dever de diligência (art.
64.º), deixa o administrador, contudo, à mercê daquela potestas destitutiva, o que pode
infirmar a afirmação principiológica da autonomia dos administradores que surge plasmada a
159 COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 629, nota 410, alerta para a dissonância significante do termo ad
nutum acoplado à destituição. Enquanto na doutrina portuguesa destituição ad nutum significa destituição
independente de justa causa, com ou sem o dever de indemnização do destituído, noutros ordenamentos, a
expressão «ad nutum» reporta-se, de forma mais restrita, à destituição livre e sem indemnização, mesmo na
ausência de justa causa (modalidade que o nosso direito proscreve).
160 RAÚL VENTURA, Sociedades por quotas...cit., vol. III, cit., p. 104.
161 Em sentido concordante, vide COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, pp. 583-585.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 55
causam a destituição.
166 V.g., a prática de um ilícito-típico criminal fora do âmbito da sociedade ou a situação de insolvência
particular do administrador que traz repercussões negativas do ponto de vista comercial para a sociedade.
167 COUTINHO DE ABREU, Curso...., p. 636, nota 432.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 57
direito, porquê a previsão de uma tutela indemnizatória para o administrador destituído nesses
termos? Com efeito, a textura lógica da concatenação normativa entre licitude e necessidade
de tutela poderia quebrar-se em paradoxo. Prima facie, a coabitação entre a licitude de
determinado ato, resultante da sua não contrariedade ou conformidade com o ordenamento
jurídico, com a necessidade simultânea de tutela da lesão ou danos por ele provocados pode
parecer difícil de compaginar168. Pode até dizer-se, em estrito silogismo lógico, que da licitude
da destituição sem justa causa, deveria resultar o vácuo de qualquer dever de indemnização.
Mas não é assim. Mais uma vez o direito positivo societário desafia a construção lógico-
dogmática é prevê, precisamente, tal dever de indemnizar. Nem se diga que um dever de
indemnização consequência de ato lícito é fotograma normativo de uma situação aberrante ou
inédita: basta pensar noutras situações de responsabilidade civil por factos lícitos, vide arts.
1172.º e 1229.º, CC, bem como, o art. 245.º, CCom. É claro que o dever de indemnização foi,
desde logo, em claro jogo de freios e contrapesos, na acomodação ótima do xadrez de
interesses subjacente, limitado169, para não obstaculizar impreterivelmente a destituição. Então
porque consignou o legislador um dever de indemnização como correlato da destituição sem
justa causa? Entendemos que a resposta só pode ser encontrada na análise da estrutural da
esfera jurídica do administrador designado.
É certo que, desde o momento em que aceita (manifesta ou tacitamente) a designação, o
administrador ou gerente não pode ignorar o risco da cessação unilateral do seu vínculo sem
justa causa, visto que as sociedades são titulares do poder de destituição. Contudo, parece-nos
inequívoco que, embora represente essa vertigem de risco destitutivo, cimenta igualmente, de
forma legítima, uma expetativa (não jurídica ou de facto 170) de que só será destituído (durante
o período para o qual foi validamente designado) se se revelar incapaz da tarefa de gestão
acometida ou se violar gravemente os deveres que sobre si impendem.
De outra forma, no limite «cínico» da arbitrariedade destitutiva, poder-se-ia trair a
própria natureza fiduciária hoc sensu da relação de administração. Para cumprir o mapa causal
da relação estabelecida, donde consta a gestão criteriosa e ordenada do ente e da empresa
168 Pergunta-se se poderá um acto ser, simultaneamente, conforme e contrário ao Direito (porque lesivo dos
direitos subjetivos de outrem)? A linha de argumentação exposta parece aproximar-se, ao menos no seu esqueleto
lógico, das razões que levam A. MENEZES CORDEIRO, Manual..., vol. I, p. 903 a defender, em reduto doutrinal
minoritário, a ilicitude do ato de destituição sem justa causa. Vide, COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 638,
nota 438, dando conta da permanência nalguma doutrina estrangeira da ideia de que não existe correlação lógica
entre destituição sem justa causa (lícita) e dever de indemnizar.
169 Limites, por vezes bastante amplos – art. 257.º, igualmente válidos para as convenções de indemnização.
170 Vide, infra, desenvolvidamente, ponto 4.
58 Entre Caducidade e Destituição
societária, a administração não se poderia reduzir à longa manus dos sócios de controlo,
enquanto joguete instrumentalizado, mormente quando se afirmam refrações legais múltiplas
do princípio da famigerada autonomia dos administradores171 (para já não falar dos ditos
administradores «independentes»). Como poderia o administrador edificar uma atuação
minimamente autónoma, sob o aceno fatalista cessação, sem mais, da relação orgânico-
administrativa, pela maioria de controlo?
Entendemos que o legislador, até pelo desígnio coerência sistemático-valorativa com
aquele princípio, não deixou de ser sensível a esta situação, temperando a crua lógica niilista
do fim ou da cessação, e das suas consequências estruturais no trato relacional intra-societário,
com a previsão de um dever de indemnizar. Este não bule com a licitude matricial da regra da
destituição ad nutum (que, de iure condendo, é bastante discutível), apenas a equilibra,
precavendo as suas consequências (vide arts. 1172.º e 1229.º, CC). E, do ponto de vista
técnico jurídico, este dever de indemnizar só pode resultar da ponderação ou consideração da
expetativa172 referida, eleita pelo legislador para induzir equilíbrio na equação de interesses e
permitir salutar constituição e desenvolvimento da relação administrativa.
Em conclusão, embora o administrador não possa descurar a possibilidade da sua
destituição ad nutum, também a sociedade não pode ignorar que, se o destituir sem justa
causa, o terá de indemnizar, reparando os danos sofridos, na exata medida em que aquele
esperava o cumprimento do seu mandato até ao termo previsto, como explicado.
4. Lacuna jurídica.
encontrar a resposta à questão jurídica ou problema singular colocado. Isto porque da colisão
entre dois blocos normativos surgiu um vácuo de regulamentação, desnudando-se o véu
aparente da dupla normação, que na verdade, recobria uma «lacuna de colisão», de imanente
contradição normativa-teleológica. Expliquemos a tríade de complexos normativos em jogo.
Assim, o enquadramento tutelar fornecido pela figura da deliberação abusiva, em
articulação (ou não) com a cláusula geral de abuso de direito (art. 334.º) provou-se antagónico
em relação à ratio legis ou teleologia ínsita no complexo normativo do instituto da
transformação, pela sua latente e desproporcionada iconoclastia como meio de reação. Com
efeito, ao vaguear pelo mapa teleológico do instituto da transformação encontrámos dois
grandes vetores hermenêuticos: o de um princípio de favor à operação, do qual despontam
diversos afloramentos legais-normativos, coadjuvante do segundo, a matriz pessoal-identitária
da transformação enquanto simples alteração formal-jurídica de tipo. Foi mister do legislador-
arquiteto edificar a transformação como uma vicissitude normal de devir societário,
concretização de um princípio geral de alterabilidade societária 177, por seu turno filiado na
afirmação dogmática, em sentido amplo, da transformabilidade das pessoas coletivas de
direito privado178.
Como sugerido, a «bipolar» sanção da anulabilidade/nulidade traria, em regra, para a
restituição do administrador lesado ao status quo ante, a destruição retroativa dos efeitos da
deliberação de transformação, desprotegendo a operação-mãe (ao arrepio daquele favor
teleológico que do complexo normativo da transformação se decanta). Para além disso, não se
descortinaram razões para que a licitude da regra de livre destituição seja, por mero pretexto
da transformação operada, suspensa ou faleça a tal regra aplicação.
Ainda que se provasse o carácter abusivo da deliberação, não cobra qualquer sentido
(pelo contrário, parece-nos distorcer a lógica do sistema de cessação da relação de
normativo tutelar do abuso direito (tanto de sede civil como deliberativa-societária) pela sua contradição
teleológica com aquele instituto, não nos repugna coligir, como vetor hermenêutico de integração, uma
presunção metodológica de preferência por regra aplicável a um caso análogo do CSC, granjeando a harmonia e
paz sistemática que a primeira solução civilística não logrou alcançar.
177 RAÚL VENTURA, Alterações do Contrato de Sociedade – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais,
Almedina, Coimbra, 1986, pp. 10-68.
178 Vide conclusão XI, do ponto 3, II. O princípio é afirmado na doutrina nacional, vide F. MENDES CORREIA,
Transformação...cit., p. 31-56, 175, e 202 e explica-se, em larga medida, pela queda da exigência da tese
homogeneidade causal, que tornou, em tese, mais diversificado o leque de combinações possíveis de binómios
de transformação, mormente heterogénea (entre sociedades e outras pessoas coletivas de direito privado e vice-
versa). A tal tendência doutrinal não será certamente estranha a linha normativa-teleológica da lei alemã, sendo
ponto de charneira a aprovação da UmwG de 1994 que, através da basal incidência do Identitätausstattung,
como pólo de referência identitária e sustentáculo de transformabilidade, contribuiu para o decaimento doutrinal
da necessidade de homogeneidade causal entre entes no processo de transformação.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 61
administração) restituir o administrador lesado ao cargo ocupado, eliminando 179 uma operação
potencialmente benéfica para a sociedade, quando aquele sempre poderia ter sido destituído,
de forma lícita, a qualquer momento e independentemente da existência de justa causa (sem
prejuízo da indemnização devida acaso não se verificasse existir justa causa).
Há, por conseguinte, uma contradições teleológica entre o sistema tutelar que se funda
no abuso (civil e/ou societário) e o complexo normativo resultante da regime da
transformação. Desta contradição normativa de cariz teleológico nasce uma lacuna de colisão,
uma «lacuna de lei», situada algures no meio caminho dogmático-categórico entre as lacunas
ao nível das normas e as lacunas teleológicas (de segundo nível)180. Ante a situação-tipo
apresentada, teríamos (no plano apriorístico da interpretação e subsunção lógica), de um lado,
o regime da transformação que, pugnando pela sua auto-preservação como vicissitude normal
dotada de um favor teleológico pelo legislador, induziria em plácida caducidade a relação de
administração, sem (aparentemente) permitir a imediata tutela do administrador lesado. Do
outro, o regime de tutela do cariz abusivo da deliberação de transformação lesiva para o
administrador em causa, revelou-se potencialmente hiper-reativa e desproporcionada,
desafiando a teleologia imanente do instituto.
Em sede interpretativa, a escolha entre uma das normas (ou bloco de normas) seria
puramente arbitrária, e a sua aplicação simultânea gera uma inelutável fricção sistemático-
normativa, de tal maneira, que a oscilação entre soluções normativas sugere um absurdo
contraditório entre total proteção e blindagem da posição do administrador e um vácuo
absoluto de tutela gerado pela mera caducidade, sem mais, do mandato administrativo. Daí o
vazio lacónico, propugnando preenchimento por norma que fizesse a acomodação harmónica
dos interesses contraditórios em jogo. As lacunas de primeiro nível, assim como, as lacunas
de colisão teleológicas «são lacunas patentes que se nos oferecem mediante critérios de pura
lógica»181, cujo preenchimento é mediado pelo recurso, sempre que possível, à analogia com
norma existente no sistema, ex vi art. 10.º, 1 e 2182.
179 Ainda que se defendesse a nulidade ou anulação parcial da deliberação de transformação (art. 134.º e 292.º,
CC), reduzindo-a pelo desentranhamento da designação eletiva abusiva ou fraudatória que lesa o ex-
administrador, como forma de ultrapassar o óbice da iconoclastia em relação à operação-mãe, o paradoxo tutelar-
sistemático perpetuar-se-ia, porquanto os sócios poderiam sempre, sem dependência de justa causa, fazer cessar
o vínculo estabelecido com aquele administrador que ora demanda a declaração de nulidade ou a anulação da
deliberação em causa. Deve sublinhar-se que a destituição ad nutum é facto lícito. Vide, igualmente, nota 153.
180 Categorização utilizada por J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito..., p. 196.
181 J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito..., p. 200.
182 Na analogia utiliza-se a uma regra dada expressamente pelo legislador para determinado caso na resolução
de um outro, não regulado pela lei, mas que pelas semelhanças apresentadas merece uma igual valoração jurídica
e, por isso, igual solução. O recurso prioritário à analogia é ditado por razões de coerência normativa ou justiça
62 Entre Caducidade e Destituição
186 Vide art. 140.º-A e nota 118, ponto 2.3, Cap. II.
187 Supra, nota 5, cap. I.
188 Quando os sócios consideram que determinado gerente/administrador não está apto para acompanhar a
transformação da sociedade, v.g., porque não possui os conhecimentos técnicos ou a diligência profissional que o
grémio societário propugna necessária para a gestão da sociedade em cenário pós-transformação, existirá já justa
causa de destituição, pelo que a situação descrita se afastará do nosso cosmos analítico. Com efeito, in casu,
revelar-se-ia inexigível a manutenção da relação orgânica estabelecida, cfr. arts. 257.º, 6, in fine e 403.º, 4.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 65
art. 134.º, c) ou pela designação dos novos titulares dos órgãos sociais na assembleia que
aprova a transformação, em outros assuntos sociais).
Por isso, depois de proposta a operação societária, o administrador que até então
esperava legitimamente, como vimos, não ser destituído sem justa causa, espera, a fortiori,
que uma não-causa, a transformação, não seja pretexto para o seu afastamento, ou destituição
hoc sensu. Tal equivalerá à expetativa de ser novamente designado para cargo administrativo
anteriormente ocupado na sociedade em cenário pós-transformação. E essa equivalência traz
já consigo um suave travo analógico. Assim, se a não recondução equivale à destituição sem
justa causa é porque a similitude e a substancial afinidade entre as expetativas em jogo é
procedente.
Nesse sentido podemos asseverar-se traços genéticos e identitários essenciais. Ambas se
afirmam como expetativas de facto que vivem na sombra legal híbrida de uma previsão de
licitude, em laço de irmandade lógica. O paralelismo isomórfico supra aludido começa a
desenhar-se mais claramente. Com efeito, a licitude da designação de pessoa diversa (que
pode até ler-se como complemento necessário da caducidade dos mandatos administrativos
induzidos pela operação), compagina-se com a expetativa de recondução da mesma forma
que a expetativa da não destituição sem justa causa, durante o seu mandato, existe, apesar da
licitude ínsita na regra da destituição ad nutum189.
Em suma, se a sociedade que licitamente destitui sem justa causa deve indemnizar o
administrador quitado, ditam a coerência normativa e a justiça relativa que o administrador
não reconduzido pela lícita designação de pessoa diversa, aquando da transformação
societária por ele proposta, seja indemnizado nos mesmos termos.
Aliás, a aludida paridade analógica entre as duas expetativas estudadas pode, no limite
da tese do continuum identitário do instituto da transformação, resultar em simbiótica fusão,
189 Não serve como objeção resistente a invocação do eventual carácter excecional do aludido dever de
indemnizar em relação à regra da livre destituição prevista nos arts. 403.º, 430.º e 257.º, bloqueando, desse
modo, o recurso metodológico à analogia, ex vi da proibição ínsita no art. 11.º, CC. Deve notar-se o peculiar
lugar sistemático desta forma de tutela indemnizatória em consequência da destituição sem justa causa. Em bom
rigor, tal dever introduz apenas uma nuance normativa ou especialidade no regime da destituição, resultante, em
nosso entender, do sopeso sensível do legislador em relação ao valor económico que reveste a expetativa de não
destituição sem justa causa, retratada e justificada em texto, no confronto com as consequências práticas da regra
da destituição ad nutum. Por outro lado, a correção técnico-jurídica de tal objeção seria igualmente dubitável, na
medida em que verdadeira tensão normativa que justifique a qualificação de certo preceito à regra destituição ad
nutum como excecional está presente, e.g., no art. 423.º-E, 1, no que concerne aos membros da comissão de
auditoria, dispondo no sentido de que estes são apenas destítuíveis com justa causa. Outras exceções em sentido
próprio a tal regra encontram-se no caso dos gerentes com direito especial à gerência, art. 257.º, 3 e 4 e no
disposto pelo art. 392.º, quanto ao chamado «administrador das minorias».
66 Entre Caducidade e Destituição
atentos os seus pergaminhos teoréticos elencados. Não teríamos duas expetativas similares ou
idênticas mas apenas uma só expetativa que se adapta a um ambiente normativo específico o
da transformação. A expetativa existente da não destituição ad nutum convolar-se-ia em
expetativa de recondução, mantendo a exata natureza que detinha: o novo ambiente
normativo da transformação apenas lhe atribui forma diferente. O quid proto-jurídico ou
fáctico seria o mesmo, mudando apenas as circunstâncias que envolvem essa situação,
legando-lhe, hoc sensu, um ónus de adaptabilidade no sentido da sobrevivência.
Em certa medida, esta sub-tese (da estrita identidade entre expetativas de facto)
mimetiza o paradigma, já aludido, do intermezzo lógico inerente à transformação. A
sociedade, sem dissolução de identidade, passaria por uma via ou interlúdio jurídico-formal
de alteração. O fotograma dogmático que propugnamos válido para o instituto capta essa
exata dualidade subliminar da permanência na mudança 190. Aplicando este teorema às
expetativas (ou expetativa) em jogo pode dizer-se que a transformação operaria algo de
semelhante ao que a lição da onto-fenomenologia dita acerca da mera incidência da luz sobre
o objeto, influindo nas suas propriedades. Mutatis mutandis, trazendo a ideia para solo
jurídico, a sub-tese da identidade ditaria a constância essencial do quid – a expetativa –,
ocorrendo por efeito da transformação (rectius, da proposta de transformação) a mera
comutação das sua propriedades e a forma como o sujeito-intérprete a adquire ou perceciona.
Não obstante a sua apelativa harmonia paradigmática com o arcaboiço teleológico da
transformação, a sub-tese identitária não procederá. Defender a existência de uma unidade
essencial na expetativa de não destituição sem justa causa (porventura adaptável ou mutável
às devir societário e suas vicissitudes) remeter-nos-ia para o domínio da interpretação
extensiva ou teleológica dos preceitos referente à destituição ad nutum, tentando a
acomodação hermenêutica da não recondução no seu «espírito»191. Tal solução merece ser
afastada porquanto ficou demonstrado que a transformação é causa de caducidade (não de
190 Lembremos o poderoso efeito simplificador do princípio da identidade no trânsito entre tipos e a sua
importância na emancipação da dogmática da transformação das pessoas coletivas de direito privado do arrimo
estrito da homogeneidade causal, patente na UmwG de 1994. A espúria e arcaica previsão da transformação
extintiva não enferma nenhuma das conclusões: o seu lugar sistemático é o da arrumação museológica, sem valia
dogmática atuante e definidora da facie do instituto. O vagar expositivo que colocámos na sua refutação, vide
supra pontos 2.3 e 3, II, atesta, não obstante, a importância edificante de tal premissa no caminho lógico para a
solução apresentada.
191 Quedar-se-ia a correspondência literal mínima, art. 9.º, 2 CC. A nova designação resultante da caducidade do
mandato administrativo por força da transformação é estruturalmente diversa da destituição, enquanto causa de
cessação unilateral e voluntária do mesmo vínculo. Não obstante, se a primeira desagua num resultado idêntico
ao da segunda e é semelhante o conflito de interesses que subjaz a ambas as situações, encetamos já um juízo
próprio do domínio metodológico da analogia, coligindo mais uma razão para abandonar a sub-tese construída.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 67
IV. CONCLUSÃO
Comecemos por enunciar a regra adquirida no final deste iter de construção jurídica:
Aquando da aprovação da transformação de sociedades comerciais (art. 134.º), ou em
sua consequência, é lícito aos sócios designar pessoa diversa do ex-administrador/gerente cujo
mandato caducou, para ocupar cargo diretivo no órgão de administração da sociedade em
cenário pós-transformação. Se o fizerem, deverá o ex-administrador/gerente ser indemnizado,
como se de uma destituição sem justa causa se tratasse, por aplicação analógica do disposto
68 Entre Caducidade e Destituição
192 Cfr. igualmente, o art. 430.º, 2 com remissão expressa para o art. 403.º.
193 Os efeitos da transformação relativamente ao administrador não reconduzido produzir-se-ão apenas no
momento do registo da operação de acordo com a tese defendida sobre a localização no tempo dos efeitos
próprios da transformação (vide nota 118, ponto 2.3, II). Só no momento do registo o seu mandato caducará, sem
prejuízo do tempo necessário para a nova designação se tornar eficaz, hiato durante o qual permanecerá nas
funções administrativas. Todavia, para quem defenda a tese contrária tais efeitos produzem-se imediatamente
com a aprovação deliberativa da mesma, sem necessidade de registo. Aliás, não teria cabimento excluir o
administrador dos efeitos ditos internos da operação. Repare-se que os administradores, mesmo quando não
sejam sócios, devem estar presentes nas assembleias gerais, vide art. 379.º, 4, pelo que aprovação da
transformação influiria, em princípio, de forma imediata sobre a relação de administração.
194 Desenvolvidamente, sobre a figura, sua fundamentação e valia analítica, vide pontos 2.3 e 3, II, descrevendo
como a sua afirmação pode revelar-se crucial na compreensão de algumas bolsas de ultra-atividade de regimes
anteriores à transformação, e teoricamente contrários ao tipo de destino ou adotado.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 69
195 O transporte do acervo situacional jurídico e fáctico que a figura do lastro holográfico permite, pela ligação
dinâmica entre cenário pré e pós-transformação, apresenta algumas afinidades com o instrumento dogmático do
status via. Vide DIOGO COSTA GONÇALVES, “Direitos especiais e o Direito de Exoneração em sede de fusão, cisão e
transformação de sociedades comerciais”, em OD II (2006), pp. 351-362 descrevendo a figura do status via
como um «conjunto unitário e harmónico de situações jurídicas atinentes aos sócios, não, simplesmente,
enquanto sócios de uma sociedade comercial, mas enquanto sócios de uma sociedade comercial em
modificação» (itálico do autor). Trata-se, com efeito, do status socii sob visão dinâmica, ou seja, in via. A figura
do lastro holográfico situacional, especificamente gizada para o instituto da transformação, tem uma abrangência
material e subjetiva maior, porquanto não se cinge à consideração de situações estritamente jurídicas (albergando
a spes vana, como vimos) e permite, porque não deriva do status socii, albergar as expetativas malogradas do
administrador não-sócio.
196 Como vimos, ponto 3, Cap. II, a respeito da tutela de credores, a transformação não os isentou da adaptação
às regras do novo tipo, que podem ser menos favoráveis (vide a transformação regressiva e o downgrade das
regras de fiscalização da sociedade), pelo que a expetativa que pudessem acalentar quanto à manutenção de
regimes direta ou indiretamente protectivos saiu malograda.
70 Entre Caducidade e Destituição
197 A transformação é assunto que concerne à administração da própria sociedade, mas reflexamente
relevantíssimo no que diz respeito administração empresarial. Talvez por isso se sublinhe que a decisão de
transformação de uma pessoa coletiva é já a decisão do ente jurídico e não dos seus sócios ou associados, se bem
que (ressalvando visões extremadas de institucionalismo) a vontade da pessoa coletiva se obtenha pela
intervenção destes. Neste sentido, J. M. COUTINHO DE ABREU, Governação...cit., p. 126.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 71
devida (legalmente limitada), fazendo com que, no final de contas, a solução normativa de
integração analógica se compatibilize efetiva e sistematicamente com o vetor de favor à
transformação198.
Salutar repercussão normativa da tese construída, pelo recurso à tutela indemnizatória, é
a uniformização do estatuto do administrador, seja ele sócio ou não sócio. Uma das críticas
mais severamente dirigidas à reação tutelar baseada no carácter abusivo ou fraudatório da
deliberação de transformação vertia-se, como vimos, na carência de legitimidade do
administrador não-sócio para a impugnação de tal deliberação. Ainda que se tentasse
ultrapassar tal óbice com o recurso imediato à válvula de escape sistemática do art 334.º CC, a
distorção originalmente sugerida apenas se deslocava para o jusante patológico do ato
abusivo, traduzida na afirmada intermitência entre anulabilidade e nulidade.
Coligimos aqui uma nítida vantagem uniformizadora da tese proposta. Contudo, seria
arguição possível notar que o recurso uniforme à tutela indemnizatória poderia «desagravar» a
ilicitude ínsita na deliberação que se provasse efetivamente abusiva. Essa mácula de
contrariedade à lei pareceria então passar a segundo plano, já que a impugnabilidade direta do
ato provado abusivo daria então lugar à uniforme e isolada aplicação da tutela indemnizatória,
em homenagem aos princípios reitores da transformação. Apenas uma epidérmica leitura da
solução gizada faria desvanecer ou diluir o vício da deliberação, porquanto, pese embora a
indemnização seja paga pela sociedade, esta terá direito a ser indemnizada desse prejuízo
pelos sócios que votaram abusivamente, vide art. 58.º, 3. A solução tem a elegância mecânica
de blindar a transformação da impugnabilidade do ato respetivo pelo ex-administrador lesado,
relocalizando a perseguição ou depuração do vício que inquina o ato deliberativo, vide art.
198 Ainda no âmbito da implantação sistemática da solução construída, cabe indagar qual a acomodação lógica
dos casos excecionais à regra da livre destituição. Foi nossa premissa científica aludir apenas aos casos em que,
não obstante a ausência de justa causa de destituição, o administrador/gerente podia ser livremente destituído
pelos sócios. Cabe notar que para certos administradores, v.g., os membros da comissão de auditoria está vedada
a destituição sem justa causa. A regra é claramente excecional, pelo que não comportaria aplicação analógica no
caso da caducidade de um mandato do membro da comissão da auditoria, por transformação da SA em SQ, (art.
11.º, CC). Assim, não poderíamos fundar nessa exceção de ilicitude (a destituição é, em regra, facto lícito) uma
eventual impugnação da transformação por parte do administrador lesado, exigindo a restituição do status quo
ante. Todavia, procedendo a validade da solução de integração normativa propugnada, i. é, aceitando-se que o
administrador destituível, mesmo sem justa causa, seja indemnizado porque não foi re-designado na sociedade
transformada; por maioria de razão, também o administrador não destituível sem justa causa o deverá ser,
quando uma vicissitude como a transformação faça caducar o seu mandato no hiato para o qual vai validamente
designado. Até porque o hiato temporal do exercício do mandato pode ser bastante curto, art. 391.º, 3, não se
justifica que a transformação sirva de pretexto fraudatório para uma cessação unilateral gratuita. Depõe no
mesmo sentido o suposto estatuto de autonomia ou independência destes administradores (art. 423.º-B e ss.).
Basta relembrar que outra exceção à licitude da destituição ad nutum repousa na hipótese do art. 392.º, no que
concerne ao «administrador das minorias».
72 Entre Caducidade e Destituição
58.º, 1, b), no seio das relações internas, cabendo à sociedade responsabilizar os votantes
abusivos199. Daí que a eventual objeção referente à diluição da ilicitude do voto efectivamente
abusivo pela solução proposta não possa proceder.
Aliás, a aplicação analógica da tutela indemnizatória ao caso do ex-administrador não
reconduzido pela vicissitude da transformação parece encontrar seguros alicerces de
procedência e ecos de confirmação em diferentes preceitos ou previsões normativas dispersas
no ordenamento e exteriores ao CSC.
Eloquente, nesta matéria, é o Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, alterado e
republicado pelo Decreto-Lei n.º 8/2012, de 18 de janeiro, consignando o Estatuto do Gestor
Público. Segundo o seu artigo primeiro será gestor público a pessoa designada para órgãos de
administração de empresas públicas, societárias ou EPE (entidade pública empresarial)200.
Poderoso argumento repousa na disjunção alternativa que a fattispecies do seu art. 26.º
alberga. No art. 25.º está prevista, grosso modo, a figura da destituição fundada em justa
causa, patente no elencar de «situações individualmente imputáveis» ao gestor que catalisam
a cessação do mandato (n.º 3) e precludem a perceção de qualquer subvenção ou
compensação pela término de funções. Por sua vez, o art. 26.º consigna, na sua hipótese
normativa, o exercício da destituição sem justa causa, livre ou ad nutum201, introduzindo-lhe,
contudo, uma nota distintiva. A destituição sem justa causa do gestor público ocorre (vide a
epígrafe do preceito), em virtude de «dissolução» do órgão de gestão ou de «demissão» do
gestor «por mera conveniência», sendo o gestor titular de direito a indemnização, calculada
nos termos do recentemente alterado n.º 3, em ambas as situações. A diferenciação de
199 Partimos do princípio de que tanto a deliberação em si como os votos constituintes poderão ser considerados
abusivos. Neste sentido, vide LUÍS BRITO CORREIA, Direito Comercial - Deliberações dos Sócios, Vol. III,
A.A.F.D.L, 1995, pp. 341-342, nota 56, e M. CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil,
Almedina, Coimbra, 2004, pp. 850 e ss.; contra, defendendo que o voto não é propriamente abusivo, apenas
havendo deliberações abusivas, vide PINTO FURTADO, Deliberações de Sociedades Comerciais, Almedina,
Coimbra, 2005, pp. 679 e ss. O art. 58.º, 3 não prescreve a responsabilidade de todos os sócios cujos votos
formaram a maioria em deliberação abusiva, homogeneizando todos os votos como patológicos ou abusivos. É
mister considerar que apenas o votante abusivo deve ser responsabilizado, pois o emitente de voto não abusivo
não pratica qualquer facto ilícito. Cabe ainda notar que a não anulação da deliberação abusiva – v.g., porque esta
venceu a «prova de resistência» - não impede a responsabilização. Vide V. LOBO XAVIER, Anulação de deliberação
social e deliberações conexas, Atlântida Editora, Coimbra, 1976, pp. 321-322, nota 72. Esta relativa autonomia
do mecanismo de responsabilização do votante abusivo compagina-se perfeitamente com a tese apresentada. O
afastamento justificado das reações tutelares baseadas no abuso, não precludem, em homenagem a essa
autonomia, a responsabilização do votante abusivo, garantindo que a ilicitude do ato abusivo não se dilua pelo
mero e isolado recurso à tutela indemnizatória.
200 Vide Dec.-Lei n.º 558/99, de 17 de dezembro, relativo ao Sector Empresarial do Estado.
201 Indício heráldico disso mesmo é o reiterar do advérbio de modo «livremente» a propósito do exercício da
destituição sob a forma de dissolução ou de demissão, a que se junta a expressamente referida independência em
relação a qualquer um dos fundamentos descritos nos artigos anteriores, nomeadamente o art. 25.º.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 73
situações-tipo não pode contender apenas com a dicotomia entre uma destituição individual
ou singularmente determinada e a destituição em bloco, in totum, de todos os membros de
determinado órgão de administração.
A contraposição entre dissolução e demissão por mera conveniência, mormente pela
amplitude teleológica depositada na primeira, afiança a certeza de que o legislador quis ligar o
direito à indemnização do gestor a causas «objetivas» 202 de cessação de funções. Com efeito,
parece-nos que uma vicissitude, como a transformação ou a fusão de uma EPE ou empresa
pública societária, acarretando a dissolução extintiva (em bloco) de determinado órgão de
administração terá como consequência a eclosão de um dever de indemnização do gestor
cujas funções cessam durante o período para o qual foi validamente designado. Assim dita a
subsunção cristalina desta eventual situação-típica à hipótese normativa do art. 26.º, 1. Esta
aproximação patrocinada pelo legislador público-administrativo, da tutela indemnizatória do
gestor a uma causa objetiva de cessação do vínculo administrativo, como a transformação
(pois esta implica a «dissolução» de certo órgão de administração), fornece um profundo
paralelismo sistemático e valorativo com transformação enquanto causa de caducidade do
mandato de administração estabelecido, no seio do direito privado-societário.
Despontamos, neste conspecto, mais um inelutável indício da concatenação harmónica
dos interesses em causa produzida pela aplicação analógica da tutela indemnizatória a
hipótese estudada. Salvas as fundamentais diferenças estatutárias existentes entre gestor
público e privado, não nos parece abusivo sublinhar o essencial isomorfismo entre situações.
No âmbito do direito privado-societário, a solução tutelar analógica proposta, resolve o
conflito de interesses subjacente, exatamente da mesma forma que o legislador público-
administrativos o fez, noutra paragem do sistema, ao prever específica e expressamente a
tutela indemnizatória (igualmente limitada – vide art. 26.º, 3 do diploma em apreço), como
consequência da transformação-dissolução do órgão de administração. E essa convergência
sistemática é chamativo catalisador de coerência normativa203.
Por outro lado, não cabendo aqui tratar da controvérsia que paira em torno da definição
202 Objetivas, porque se afastam da matriz voluntária de cessação unilateral pura que as figuras da destituição
sem justa causa ou da demissão «por mera conveniência» (comodatando a expressão do legislador), convocam
enquanto causas extintivas do vínculo de mandato de administração estabelecido.
203 Para temperar a transposição da summa diviso no argumento de paralelismo expendido podemos relembrar
que a própria designação, momento fundante da relação administrativa, é figura própria do direito das
sociedades (que não se reconduz a mera proposta contratual) e surge «decalcada das nomeações públicas». Vide
A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 391.º»...cit., p. 1049. Talvez por isso não se revele elemento puramente
inaudito o dogmático parentesco público-privado entre institutos e preceitos.
74 Entre Caducidade e Destituição
206 Alguns dos dados coligidos no direito comparado são assaz interessantes. Salvas as naturais diferenças
jurídico-estruturais, surpreendem-se manifestações diversas da ideia de que a cessação do vínculo próprio da
relação de admnistração a pretexto da transformação societária merece forma de tutela, ao menos quando a
deliberação esteja impregnada de cariz abusivo-emulativo ou intuito fraudatório.
Perfeitamente eloquente, neste sentido, é a Lei n.º 6.404, de 15 de Dezembro de 1976, Lei das Sociedade
Anônimas brasileiras, dispondo sobre «sociedades por ações» (versão compilada consultada em
«http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6404compilada.htm»). Dispõe o seu art. 117.º: «O acionista
controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder. § 1º São modalidades de
exercício abusivo de poder: (...) b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação,
incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem indevida, em
prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários
emitidos pela companhia (...)» (nosso itálico). Cfr. igualmente o art. 158.º, I e II do mesmo diploma articulando
um princípio geral de responsabilidade do administrador. Salienta-se, com efeito, a sensibilidade do legislador
brasileiro para a situação-tipo que desencadeou a nossa investigação, i.é, a possibilidade da deliberação de
transformação se revelar, nas palavras da lei brasileira, «modalidade de exercício abusivo de poder». Cabe
igualmente notar como o leque dos eventuais lesados é pormenorizado e vasto, incluindo não só outros
acionistas, mas também o público-investidor ou aforrador e os próprios trabalhadores que podem, pelo meio
tutelar previsto, responsabilizar diretamente o «acionista controlador». Pode-se, também no conspecto do direito
brasileiro, colocar a questão da legitimidade do administrador não-acionista para atuar processualmente na
responsabilização do acionista controlador pela prática de abuso de poder. Com efeito, nos termos do art. 146.º,
qualquer pessoa natural para a qual não se verifique impedimento (147.º, § 1), pode ser designada administrador
(devendo apenas os diretores ser residentes). Por sua vez, art. 159.º, § 3.º, consigna um prazo de três meses para
impugnação subsidiária à promovida pela própria «companhia» de que qualquer «acionista» pode lançar mão
para atacar a deliberação de transformação abusiva. Salvo melhor opinião, atento o elenco vastíssimo de
interessados na impugnação que o art.º 117.º, 1.º, b) não repugnará estender teleologicamente o preceito,
abrangendo o administrador que não seja acionista (aplicável, ex vi art. 145.º, aos diretores e conselheiros)
No direito francês, os membros do conselho de administração são, em geral, destituíveis ad nutum, sem
direito a indemnização. Mas o administrador não fica desabrigado de tutela ante situações abusivas, porquanto o
direito a ser indemnizado é reconhecido – e note-se, não a anulabilidade da deliberação – quando a deliberação
tenha cariz abusivo. Vide COZIAN/VIANDIER/DEBOISSY, Droit des sociétés, 17e éd., Litec, Paris, 2004, pp. 236-238.
No domínio do direito alemão, rege a UmwG de 1994, ponto de charneira da lei e doutrina teutónica no
domínio da transformabilidade de pessoas coletivas de direito privado (e público, nos casos legalmente
previstos, vide § 301 (2) e ss.), permitindo a ampla diversificação dos binómios de transformação, maxime
heterogénea. Sobre a Formwechsel ou alteração de forma, nas disposições gerais do seu Livro V, prevê o § 203.º,
da mesma forma que o ente se modifica, uma modificação transitiva-formal do conselho geral e de supervisão
para o novo ente transformado, permanecendo com os mesmos membros. Contudo, ressalva, imediatamente in
fine, a possibilidade do grémio societário alterar a composição do conselho geral e de supervisão transitado para
o ente transformado (influenciando, por conseguinte a composição do Vorstand). Acaso esta deliberação inquine
de cariz abusivo será mister atender ao critério consignado no § 243, (2), AkGt, mormente no que diz respeito ao
bloqueio da anulabilidade do ato, quando verifica uma compensação que reponha o equilíbrio económico.
76 Entre Caducidade e Destituição
207 E importa perceber a que título, distinguindo entre convenção de indemnização por destituição e
remuneração extraordinária para casos de cessação da relação orgânica diferentes de destituição. Esta segunda
corresponde a uma importância em dinheiro (v.g., correspondente à remuneração de um ano) que se delibera
atribuir a um administrador quando este cesse o exercício de funções (normalmente fixada no momento em que
se determina a sua remuneração «normal». COUTINHO DE ABREU, Governação...cit., p. 90, considera válida tal
estipulação, admitindo que estaremos perante uma remuneração diferida ou complementar, tout court
extraordinária se da deliberação que a fixa resultar que apenas se aplicará nos casos de caducidade do mandato
por verificação do termo supletivo de quatro anos de duração, por acordo revogatório entre sociedade e
administrador ou por renúncia deste (gerada pela mudança de controlo societário). No caso vertente, a
caducidade proveniente da transformação figuraria como causa válida para esta remuneração diferida ou
extraordinária. Mais controvertido, porque imersa no plano da interpretação do contrato de sociedade (tudo
dependerá da forma como se clausula tal direito), é saber se uma convenção de indemnização por destituição
poderia ser aproveitada pelo administrador não reconduzido, para mais quando se considere a similitude entre
não recondução e destituição (muda apenas o ambiente normativo específico em que a cessação ocorre).
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 77
normal diligência213.
RESUMO
Abstract
The presented master's degree final report, with a theoretical affiliation in the field of
commercial law, particularly in corporate law, addresses a separate subject of corporate
governance: the dismissal or removal of company directors, in light of a specific regulatory
environment, that of the changing corporate form (or corporate transformation).
Our purpose was to determine, in a dynamic, status in via perspective, what were the
main morphological implications observed in legal position of the director (whether partner or
non-partner), on whom there was not any impending cause of removal, when, during the
period of office administration for which he was validly appointed, the company decides to
change its legal form and, therefore, elect a different person to form the new governing
bodies, provoking, without more, the expiry or decrepitude of the existing relationship of
management.
Finally, after confronting the different forms of protection available, we purposed an
harmonious and systematically elegant solution translated by the analogy with the rules of
removal without cause from the articles 403.º, 5 and 257.º, 7, CSC («Código das Sociedades
Comerciais») to frame the situation under analysis, thus ensuring the logical balance between
the proved legitimate expectation of renewal fostered by the director, despite the transit
between legal types of corporate form, and the legal rule of ad nutum removal of the directors,
still present on the formal intermezzo that transformation represents to the corporate body.
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