F D U P: A Transformação de Sociedades Comerciais e A Cessação Da Relação de Administração

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FACULDADE DE DIREITO DA UNIVERSIDADE DO PORTO

2.º CICLO DE ESTUDOS - CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

Rui Paulo Rodrigues Santos

Aluno n.º 101408089

A Transformação de Sociedades Comerciais


e a Cessação da Relação de Administração
Entre caducidade e destituição

Relatório Final do Mestrado em Ciências Jurídico-Privatísticas


Sob Orientação do Exmo. Prof. Doutor Paulo de Tarso Domingues

Ano Letivo 2011/2012


Faculdade de Direito da Universidade do Porto

2.º CICLO DE ESTUDOS - CURSO DE MESTRADO EM DIREITO

A Transformação de Sociedades Comerciais


e a Cessação da Relação de Administração
Entre caducidade e destituição

Relatório Final do Mestrado em Ciências Jurídico-Privatísticas


Sob Orientação do Exmo. Prof. Doutor Paulo de Tarso Domingues

Ano Letivo 2011/2012


AGRADECIMENTOS

Servem estas humildes linhas introdutórias para caucionar um penhorado e sincero


agradecimento a todos aqueles que, pela sua ajuda e apoio, foram amparo e luz orientadora na
elaboração deste relatório final de mestrado.
Ao Exmo. Senhor Professor Doutor Paulo de Tarso Domingues, que amavelmente
aceitou orientar este trabalho de investigação e que, de forma disponível e interessada, me
auxiliou a deflectir as dúvidas e perplexidades geradas durante a preparação do tema (ou
novelo de temas) abordado, devo as primeiras palavras de gratidão.
Ao Exmo. Senhor Professor Doutor Manuel Carneiro da Frada, pelo interesse que
desde cedo demonstrou no meu percurso académico, deposito aqui um sincero obrigado pelas
suas sempre amáveis palavras de incentivo.
À Inês Rios, pela preciosa ajuda na tradução da legislação alemã sobre o tema da
transformação de sociedades e de inúmeros artigos de doutrina teutónica relacionados, devo
um inesgotável obrigado pela sua incansável disponibilidade.
Ao Pedro Gonçalves, amigo e co-fundador d'«A Firma», reconheço a generosidade
que colocou na discussão e análise da constelação de questões que gravitavam sobre tema
escolhido, temperando, com o exercício exterior da dialética, o monólogo do autor-ator, e da
mesma forma agradeço as suas atentas observações que muito auxiliaram no trabalho de
revisão final do texto apresentado.
Aos meus Pais e Irmão, dedico este relatório final. Eles são seus co-autores, cada um
na exata medida do apoio e entusiasmo com que abraçaram a minha tarefa. Os méritos que
esta pesquisa possa granjear são-lhes inteiramente devidos.
Um último aceno de gratidão aos meus Mestres, a Mélinha e o Professor Sá, que aqui
recordo num raiar de admiração e respeito.

Póvoa de Varzim, 18 de Junho de 2012


LISTA DE ABREVIATURAS

A. Autor
AAFDL Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa
AAVV Autores Vários
AEIE Agrupamento Europeu de Interesse Económico
AktG Aktiengesetz – Lei alemã sobre sociedades anónimas e em comandita por
ações, de 6 de setembro de 1965
BFDUC Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra
CC Código civil português, de 25 de novembro de 1966
CCom Código comercial português, de 28 de junho de 1888
CDP Cadernos de Direito Privado
CES-FEUC Centro de Estudos Sociais-Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra
CIRC Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Colectivas
CIRS Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares
CJ Coletânea de Jurisprudência
CJ-STJ Coletânea de Jurisprudência – Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
CRCom Código do Registo Comercial
CSC Código das Sociedades Comerciais
CIRC Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Colectivas
CIRS Código do Imposto sobre os Rendimentos de Pessoas Singulares
DSR Direito das Sociedades em Revista
GDDC Gabinete de Documentação e Direito Comparado
GJ Gazeta Judiciária
GmbHG Gesetz betreffend die gesellshafyen mit beschrankter haftung – Lei alemã
sobre as sociedades de responsabilidade limitada, de 20 de abril de 1892
LMESM Ley 3/2009, de 3 de abril, sobre modificaciones estructurales de las
sociedades mercantiles.
LSQ Lei da sociedade por quotas, de 11 de abril de 1901
MBCA Model business corporation act
OD O Direito
QF Quaderni Fiorentini per la Storia del Pensiero Giuridico Moderno
RDE Revista de Direito e Economia
RFDUL Revista Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
RS Rivista della Società
RDE Revista de Direito e Economia
RFDUL Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa
RFDUP Revista da Faculdade de Direito da Universidade do Porto
RLJ Revista de Legislação e Jurisprudência
ROA Revista da Ordem dos Advogados
SC Sociedade em Comandita
SENC Sociedade em nome Coletivo
SA Sociedade Anónima
SCE Sociedade cooperativa europeia
SQ Sociedade por Quotas
SI Scientia Iuridica
STJ Supremo Tribunal de Justiça
TRC Tribunal da Relação de Coimbra
UCP Universidade Católica Portuguesa
UwmG Umwandlungsgesetz
ÍNDICE*

I. Considerações introdutórias. Novelo problemático...........................................................1


II. A transformação de sociedades.........................................................................................11
1. O iter analítico..................................................................................................................11
2. O instituto da transformação de sociedades.....................................................................12
2.1. A transformação de sociedades nas vésperas do CSC..............................................12
2.2. Apreciação liminar da solução consagrada. A crítica da doutrina............................16
2.3. Regime Legal Vigente. Aspetos relevantes..............................................................20
3. Síntese Conclusiva...........................................................................................................39
III. A relação de administração no ambiente normativo específico da transformação de
sociedades.................................................................................................................................42
1. Vertigem da transição e caducidade.................................................................................42
2. O abuso de direito como vetor de tutela – rejeição..........................................................46
3. Destituição ad nutum e licitude........................................................................................52
4. Lacuna jurídica. ...............................................................................................................58
5. Expetativa de nova designação ou recondução................................................................62
IV. Conclusão...........................................................................................................................67
1. Balanço e paz sistemática.................................................................................................67
2. Aplicação da regra enunciada e cálculo da indemnização...............................................76
Resumo/Abstract.....................................................................................................................79
Bibliografia..............................................................................................................................80

* O texto apresentado como Relatório Final de Mestrado segue o Novo Acordo Ortográfico.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 1

I. CONSIDERAÇÕES INTRODUTÓRIAS. NOVELO PROBLEMÁTICO.

A textura temática deste relatório final, bordada de todas as suas ramificações e


cruzamentos teóricos, dimana de uma interrogação intuitivamente revelada ao intérprete
imerso na descodificação exegética da lei societária. Reconhece o legislador à sociedade,
através do instituto da transformação, a faculdade de adotar um tipo social diferente daquele
de que se revestiu ab origine, desde o momento da sua constituição. Por regra, a vicissitude
da transformação operará apenas uma alteração formal-jurídica da sociedade, preservando-se
intocados os seus elementos pessoal e patrimonial. Em boa verdade, tal asserção é corolário
normativo decalcado do princípio reitor do instituto, o da identidade1.
Da disciplina legal do instituto, cristalizada nos artigos 130.º e ss. do CSC 2, decanta-se
um particular dado normativo com possíveis ressonâncias relevantes na configuração da
praxis societária: os sócios podem aproveitar o ensejo da aprovação da tríplice deliberação3
de transformação – maxime no tocante à aprovação do contrato pelo qual a sociedade passará
a reger-se, nos termos do art. 134.º, c) – para designar os novos membros dos corpos sociais4.

1 O princípio da identidade permite que a operação de transformação ocorra com a manutenção da personalidade
jurídica da sociedade transformada: a sociedade adota um novo regime jurídico, por referência a diverso subtipo
jurídico-estrutural, sem dissolução do seu referencial identitário, o elemento-indício da personalidade coletiva.
Contudo, atenta a possibilidade (ainda presente na legislação portuguesa, mas já rarefeita noutros ordenamentos
jurídicos) de os sócios optarem entre modalidade formal e extintiva-novatória de transformação, deve ler-se de
forma articulada aquele princípio identitário com um outro – seu irmão funcional –, o da continuidade, sob pena
de teórica inutilidade do mecanismo de sucessão global e automática, legalmente consignado no art. 130.º, 2 e 6,
CSC. Vide FRANCISCO MENDES CORREIA, Transformação de sociedades comerciais – Delimitação do âmbito de
aplicação no direito privado português, Almedina, Coimbra, 2009, pp. 138-149.
2 Cfr. o Capítulo XI da Parte Geral do CSC. Em diante, todos os preceitos mencionados em texto sem alusão à
respetiva sede normativo-legal presumem-se pertencentes ao Código das Sociedades Comerciais, aprovado pelo
Decreto-Lei n.º 262/86, de 2 de Setembro, alterado pelo Decreto-Lei n.º 76.º-A/2006, de 29 de março, que
republicou o CSC, recentemente alterado pelos Decretos-Leis n.os 8/2007, de 17 de janeiro, 357-A/2007, de 31 de
outubro, 247-B/2008, de 30 de dezembro, pela Lei n.º 19/2009, de 12 de maio, pelos Decretos-Leis n.os 122/2009,
de 21 de maio, n.º 185/2009, de 12 de agosto, n.º 49/2010, de 19 de maio e n.º 33/2011, de 7 de março.
3 V. PINTO FURTADO, Curso de Direito das Sociedades (colab. Nelson Rocha), 5.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2004,
pp. 533-536. A denominação utilizada pelo Autor é, como veremos infra em texto, sugestiva da decomposição da
deliberação de transformação tout court em três elementos ou conteúdos deliberativos que, sendo argamassa de
deliberações autónomas, não deixam de concorrer para um todo caucionado de unidade, formado, nos termos do
art. 134.º, pela aprovação do balanço ou situação patrimonial, da operação de transformação per se e do novo
contrato social, a vigorar em cenário pós-transformação. Vide, igualmente, FRANCISCO MENDES CORREIA, «Anotação
ao art. 134.º», em MENEZES CORDEIRO (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina,
Coimbra, 2011, pp. 513-514.
4 Interessa-nos, sobretudo, a designação de novos membros para o órgão administrativo-representativo da
sociedade, a «gerência», nas SQ, e o «conselho de administração» ou «conselho de administração executivo», no
tipo anónimo (SA), consoante o modelo orgânico adotado do leque de três sistemas elegíveis (art. 278.º, 1).
Sobre as oscilações terminológicas na categorização dogmática dos vários sistemas orgânicos de governação
societária, vide J. M. COUTINHO DE ABREU, Governação das sociedades comerciais, Almedina, Coimbra, 2006, p.
35 e ss., questionando a nomenclatura utilizada por outros AA., e.g., A. MENEZES CORDEIRO, «Artigos 390.º a
2 Entre Caducidade e Destituição

Aliás, nada impede que, em simultâneo com a tríplice deliberação, sejam deliberados
outros assuntos sociais, como a eleição dos novos titulares dos órgãos sociais, em alternativa
à sua designação no projeto de contrato a deliberar5. Neste ponto, o parâmetro interpretativo
da interconexão sistemática, apanágio heráldico de todo o pensar jurídico 6, sugere-nos de
imediato que chamemos à colação outro dado placidamente cimentado na doutrina: o de que a
transformação da sociedade, a sua transmutação hoc sensu para tipo social diverso do
originário, é facto extintivo da relação complexa de administração, revestindo a fisionomia
jurídico-dogmática de sua causa de caducidade7.
Importará, destarte, avaliar as nuances morfológicas da posição jurídica do gerente ou
administrador no particular ambiente normativo originado pela vicissitude da transformação,
tendo em mente um binómio de transformação recorrente, como o SQ-SA (mas também o
simétrico, dito regressivo, SA-SQ). Se este for novamente designado, em cenário pós-
transformação (através do novo contrato social ou na própria assembleia extraordinária que
delibera aquela operação), para ocupar o seu antigo lugar de administrador lato sensu e,
enquanto designado, aceitar tal nomeação, a solução de continuidade imputável à relação de
administração será meramente formal, compaginando-se com a natureza da operação
matricial de transformação, orientada pelo vetor principiológico da identidade da sociedade-

446.º-F/Introdução», em MENEZES CORDEIRO, (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed.,
Almedina, Coimbra, 2011, pp. 1040-1045, ou PAULO CÂMARA, “O Governo das sociedades e a reforma do Código
das Sociedades Comerciais”, em Código das Sociedades Comerciais e Governo das Sociedades, Almedina,
Coimbra, 2008, pp. 103 e ss.
5 Segundo J. F. CUNHA GUIMARÃES, «A transformação de sociedades», em Revista Fiscal, n.º 5, 2008, p. 3, a
assembleia geral extraordinária, convocada para efeitos do art. 134.º, pode ainda deliberar sobre a «aprovação
dos novos corpos sociais como disposição transitória ou a aprovar em ulterior assembleia geral de nomeação,
definindo o respectivo mandato» (nosso itálico).
6 Afinal todo o pensamento jurídico é pensamento analógico e tipológico. A suma síntese metodológica é de
ARTHUR KAUFMANN, Analogie und “Natur der Sache”, Karlsruhe, 1965, p. 43. É esse o sentido que J. BAPTISTA
MACHADO, Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, Coimbra, 2002, p. 330, imprime às suas
palavras, traduzindo-o deste modo: «todo o conhecimento jurídico, toda a descoberta do direito (heurística
jurídica) e até toda a chamada 'subsunção' mostra a estrutura da analogia».
7 Neste sentido é inequívoca a construção de J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso de direito comercial, 4.ª Ed., vol. II
– Das sociedades, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 622, vide o elenco sistemático de factos extintivos da relação
administrativa, expressamente previstos no CSC, nos quais a transformação societária é inserida. Em cenário
pós-transformação, ou seja, na sociedade transformada, haverá, por princípio, um novo órgão de administração.
Deduz-se, pois, a extinção da anterior relação orgânica administrativa (sem prejuízo da designação dos mesmos
administradores/gerentes, sócios ou não, para os corpos sociais da sociedade transformada).
Entendemos tal extinção como correlato do trânsito entre tipos sociais, conatural ao instituto da transformação.
Veja-se o caso do binómio de transformação com os seguintes termos: SQ-SA. Não se vislumbram argumentos
procedentes em favor de uma eventual «sobrevigência» da gerência (enquanto órgão de administração e
representação da SQ, arts. 252.º e ss.) na SA. Aliás, tal só contribuiria para distorcer a facie normativa do tipo
anónimo, induzindo, então, uma permissão para miscigenação tipológica que, autorizada ad absurdum,
esvaziaria de sentido as vantagens fundantes do estabelecimento de uma fisionomia legal individualizadora e
identitária para cada tipo, contrariando a própria matriz teleológica da transformação enquanto instituto.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 3

pessoa coletiva. Em suma, embora com roupagem tipológica diversa, a mesma sociedade terá
os mesmos administradores8.
Ao invés, podem os sócios designar pessoa diversa. Podem optar pela não «recondução 9
do ex-administrador em cargo diretivo na sociedade transformada. Tal faculdade parece
indubitável. Por mais que se faça a apologia da transformação como mecanismo formal de
adaptação da sociedade-pessoa, sob o manto de um continuum jurídico-identitário, matizado
pela unidade dos elementos pessoal, patrimonial e funcional, por regra preservados no trânsito
entre tipos sociais, não deixa de existir, no regime da transformação, uma reconstituição
mímica do momento genético da sociedade (v.g., a aprovação do novo contrato pelo qual a
sociedade se passará a reger). E ninguém negará a liberdade dos sócios na eleição dos
administradores aquando da constituição da sociedade. Aliás, dentre os vários modos de
designação de administradores ou titulares dos órgãos de administração e representação da
sociedade (gerência, conselho de administração, conselho de administração executivo), será
paradigmática a eleição por deliberação dos sócios – arts. 191.º, 2, 252.º, 2, 391.º, 1 e ss.,
425.º, 1, b) –, bem como a designação através do contrato social ou ato constituinte unilateral
– arts. 252.º, 2, 391.º, 1, 425.º, 1 e 270.º-G.
Atenta a base eminentemente contratual10 da sociedade comercial (estando ou não em
transformação), não podemos deixar de considerar que aquela amplitude autonómica dos
sócios na designação de administradores «renasce» no momento da transformação. A própria
regra da livra destituição (uma das modalidade de cessação da relação de administração, para
além da caducidade – arts. 257.º, 1 e 403.º, 1), por sua vez fundada na necessidade de garantir
a densidade do liame fiduciário ínsito na relação de confiança entre sócios e administradores,
é tributária dessa matriz teleológica de liberdade na designação, ora na sua polaridade

8 Objeção cogitável contra a procedência de tal asserção poderia retirar-se da existência no direito positivo de
uma modalidade de transformação extintiva-novatória (implicando a dissolução da sociedade a transformar),
colocada pelo legislador na disponibilidade dos sócios – art. 130.º, 3, in fine e 5. Sobre as razões aventadas para
justificar a manutenção de tal modalidade de transformação no direito societário português, fazendo-se uma
referência à sua inocuidade para o problema em apreço vide, desenvolvidamente, ponto 2.2, cap. II.
9 Utilizamos o termo despido de qualquer especificidade técnico-jurídica, significando apenas que à caducidade
da relação administrativa se segue o normal vácuo da relação jurídica extinta, não ocorrendo, ao invés da
primeira situação hipotética, a re-designação do ex-administrador.
10 O que traduz implícita adesão teórica às teorias contratualistas. Não curando agora, dado o escopo e economia
da exposição, deambular por entre as diferentes configurações teoréticas do paradigma contratualista,
assinalamos, todavia, a refutação das teses institucionalistas pela sua marca ficcional de irrealismo. As teses
contratualistas, para além de reconduzirem a titularidade do interesse social aos sócios, demonstram a vantagem
de serem aplicáveis a todos os tipos societários, ao invés das teorias institucionalistas, amiúde funcionalizadas à
descrição-integração do tipo anónimo ou da grande sociedade por ações. Desenvolvidamente, vide J. M.
COUTINHO DE ABREU, Do abuso de direito, Almedina, Coimbra, 1983, pp. 108-121.
4 Entre Caducidade e Destituição

negativa ou inversa – a liberdade de fazer cessar a relação que dimana da designação,


destituindo.
Do exposto pode já inferir-se a possibilidade de os sócios aprovarem a transformação da
sociedade, proposta pela administração (art. 132.º), com o intuito sub-reptício (porventura
emulativo) de conseguirem fazer cessar livre e gratuitamente a relação de administração
estabelecida com aquele(s) administrador(es), na ausência de justa causa. O esquema
operativo revela-se linear. A transformação faz caducar a relação jurídica 11 estabelecida com o
administrador, que vigoraria, em princípio, durante o período para o qual este foi designado.
Na sociedade transformada o (agora ex-)administrador não é designado, sendo pessoa diversa
investida na titularidade dos novos órgãos sociais – porque os anteriores se extinguiram com a
queda do tipo social originalmente adotado – da sociedade em cenário pós-transformação.
Poderão os sócios proceder de tal forma? Gizando tal hipótese, a aprovação da
deliberação de transformação da sociedade estaria inquinada desse animus implícito de
destituição gratuita na ausência de justa causa. Intuitivamente, a situação em apreço convida
o intérprete a abandonar a configuração jurídico-dogmática da transformação-causa-de-
caducidade, para descortinar na situação-tipo uma transformação-instrumento-de-destituição,
todavia encapotada e formalmente apartada do regime da destituição sem justa causa, logo
subtraída ao regime de tutela indemnizatória que a inexistência de justa causa convoca. E a
transformação é causa de caducidade, não de destituição, não olvidemos12.
Por facilidade de exposição assentaremos campanha científica nos arrabaldes da
situação-tipo correspondente à do gerente/administrador validamente designado para o
período legal supletivamente previsto (arts. 391.º, 3 e 256.º13), produzindo a transformação da
11 Como veremos infra, Cap. IV, ponto 1, (in fine), tanto a natureza como a morfologia jurídico-dogmática da
relação complexa de administração formada no seio do ente societário podem revelar-se controvertidas.
12 O fenómeno configurado nestes moldes parece desenhar afinidades contundentes com uma das figuras afins
da matricial hipótese do abuso de direito do art. 334.º, CC, a fraude à lei. O exercício aparentemente legítimo da
potestas deliberativa da transformação, pelos sócios, seria forma oblíqua de circunvir a regra do ressarcimento
indemnizatório devido em caso de destituição sem justa causa. Vide J. M COUTINHO DE ABREU, Do Abuso..., p. 85.
Parece-nos que esta precisão conceptual pode ser lida cum granu salis, atendendo a que a génese volitiva da
operação pertence, como veremos, à administração e que, quando muito, os sócios «aproveitam» o ensejo ou a
ocasião para nomear novos administradores, podendo até inexistir dolo ou escopo fraudatório. Porventura, se a
figura se desenhar com um pendor mais objetivo, bastando que o resultado do ato deliberativo se revele, em si
mesmo, fraudatório, a qualificação proceda. Ainda assim, será curial chamar à colação a regra da livre
destituição, independente de justa causa, e sua afirmada licitude. Vide infra nota 140, ponto 2, Cap. III.
13 O art. 256.º, prevendo de forma supletiva a gerência temporalmente ilimitada, consigna apenas como causas
de cessação da relação de administração, a renúncia e a destituição. Deverá recorrer-se à interpretação extensiva
da sua hipótese, nela incluindo a caducidade proveniente duma transformação de binómio SQ-SA, em que o
contrato da sociedade a transformar nada estipulava quanto à duração da gerência? Talvez seja uma pista do
direito posto, no seu desafio perene à construção dogmática. Porventura a intuição original de que na situação-
tipo objeto deste relatório se joga uma forma implícita de destituição prove a sua valia orientadora.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 5

sociedade os seus efeitos14 dentro desse hiato temporal, igualmente não se verificando
qualquer justa causa de destituição do mesmo (art. 64.º)15.
Importa agora determinar quais os mecanismos de tutela concedidos ao antigo
administrador não designado na sociedade transformada, perante tal situação. Imediatamente
se apontará a tutela desenhada pela fattispecies do art. 58.º, 1, b), prevendo a figura das
deliberações sociais abusivas, para a qual se comina a sanção da anulabilidade. A hipótese em
apreço reconduzir-se-ia, prima facie, ao sub-tipo da deliberação emulativa16, apropriada para
satisfazer o propósito do(s) sócio(s) de, tão-só, prejudicar a sociedade e/ou o(s) sócio(s)
minoritário(s), in casu, o sócio-administrador não reconduzido para o exercício de funções de
administração na sociedade transformada.
Desde logo, a prática forense atesta pródigas dificuldades de prova, amiúde retratadas
no labor jurisprudencial17, inerentes a tal meio de tutela. Onera o lesado uma prova complexa
no sentido do preenchimento operativo dos requisitos subjetivos (o «propósito» de prejudicar)
e também objetivos (a aptidão para a satisfação do propósito emulativo, sem esquecer o crivo
polémico da «prova de resistência»18) que o preceito consigna, demonstrando em juízo que a
deliberação de transformação traria inerente o desígnio «subterrâneo» da não recondução
abusivamente fundada. Sem embargo destas dificuldades, a exegese da disciplina em apreço
relega o intérprete para o confronto de um candente óbice de cariz normativo-estrutural: o
regime posto ou positivo do abuso societário seria eficaz para o administrador-sócio, mas
desabrigaria o gestor não-sócio. No limite, seria incongruente admitir a existência de
deliberações abusivas consoante o lesado fosse, para efeitos desta elaboração teórica, sócio ou
não.
A problemática adensa-se, com efeito, observando o caso do administrador não-sócio.

14 Parece controvertida a definição do momento em que se produzem os efeitos internos da transformação,


depois da reforma de 2006, com a elipse do art. 135.º. Desenvolvidamente, vide nota 118, ponto 2.3, cap. II.
15 Não será anátema jurídico o comodato de certos «tiques metodológicos» doutras ciências, como a económica,
mormente quando estes fornecem importante filtro de redução de complexidade, como a condição coeteris
paribus, isolando melhor as facetas do quid que se pretendem analisar, através da constância de certas variáveis
sistemático-normativas. Ainda, sobre a regra de livre destituição, vide infra ponto 2, cap. III.
16 Mas não só. Pode a omissão de re-designação na sociedade transformada, a não «recondução» – como, por
simplicidade, convencionámos denominar a situação abordada – ser movida pela satisfação de um pedido de
terceiro (ou cobrança de um favor, quem sabe...) que pretenda aceder à administração da sociedade, facto
perfeitamente estranho ao interesse social e que a montante (ou a jusante) traz uma especial vantagem pessoal
para o(s) sócio(s) que votaram abusivamente na transformação.
17 Retratando a entorse lógico-subsuntiva resultante dessas dificuldades vide J. M. COUTINHO DE ABREU,
«Comentário ao art. 58.º», em COUTINHO DE ABREU (Coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário,
Almedina, Coimbra, 2010, p. 682. Vide, Ac. TRL, de 15/3/2007, em www.dgsi.pt; Ac. TRC, 25/09/2001, CJ,
2001, t. IV, p. 12; Ac. STJ, de 27/06/2002, CJ-STJ, 2002, t. II, p.138.
18 COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II., p. 562 e ss.
6 Entre Caducidade e Destituição

O portal da legitimidade para a arguição de tal deliberação abusiva, assente no art. 59.º, 1,
estar-lhe-á sempre vedado, ainda que, apegados à ideia de uma construção holística da figura
do abuso de direito em sede societária, fizéssemos reconduzir outras hipóteses típicas ou
figuras sintomáticas de abuso, filiadas no art. 334.º, CC, ao art. 58.º, 1, a)19. O gestor não-
sócio teria então legitimação substantiva mas não legitimidade formal para a impugnação de
deliberação inquinada pelo abuso, a não ser que se propugnasse, com resistência pétrea à
dimanação significante do elemento literal negativo do art. 59.º, uma interpretação praeter
legem (ou já contra legem?) no sentido da manutenção de legitimidade para a impugnação da
deliberação abusiva pelo administrador não-sócio, apesar do silêncio do preceito20.
Também o recurso liminar a famigerada «válvula de escape» sistemática 21 do art. 334.º,
CC, pode revelar-se controvertido. Sabemos que a doutrina do abuso de direito, perspetivando
a figura tanto na sua veste civil de cláusula geral22, como de mecanismo societário de
controlo deliberativo23, no art. 58.º, 1, b), é campo de movediças certezas dogmáticas,
mormente no que concerne à articulação entre os dois universos típico-legais que dimanam de
ambos os preceitos citados; questão que, reduzida ao seu esqueleto lógico, se convola na
interrogação acerca da potencialidade normativo-reguladora da disciplina societária das
deliberações inválidas e da abrangência típica do seu regime legal.
De uma das margens do dissenso ecoa inequívoca a crítica à persistência de alguns
sectores jurisprudenciais e doutrinais na ligação das deliberações abusivas ao art. 334.º, CC,
considerando-se tal preceito «sincrético e largamente indefinido quanto às suas consequências

19 Vide J. M. COUTINHO DE ABREU, Governação..., p. 169, nota 418.


20 Neste sentido, JOÃO LABAREDA, Direito societário português – Algumas questões, Quid iuris?, Lisboa, 1998,
pp. 105-105.
21 J. M. COUTINHO DE ABREU, Do abuso..., pp. 55-68.
22 A cláusula geral caracteriza-se pela generalidade abrangente da formulação da sua hipótese legal. Por
contraposição à elaboração casuisticamente localizada de cada hipótese legal, a cláusula geral abrange e submete
a tratamento jurídico unitário todo um extenso domínio de casos. Vide KARL ENGISH, Introdução ao pensamento
jurídico, 3.ª ed. (trad. port.), Lisboa, 1972, pp. 188-189. Se a cláusula geral do abuso de direito, como
«contrapeso» da autonomia privada, é refratária da ilicitude principiológica que subjaz à sua proibição, não será
de admirar que muitas das críticas apontadas à formulação legalmente consagrada do abuso de direito, ou da sua
inexistência (é já reconhecida logomaquia imanente à expressão, vide J. M. COUTINHO DE ABREU, Do abuso..., pp.
45-49), principiem pelo seu inerente sincretismo, Idem, «Comentário ao art. 58.º»...cit., p. 681.
23 Sendo a deliberação social classicamente entendida como negócio jurídico da sociedade, formado pela
declaração de vontade dos sócios, expressa através do voto, vide PEDRO MAIA, «Deliberações dos Sócios», em
COUTINHO DE ABREU (Coord.), Estudos de Direito das Sociedades, 10.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2010, pp. 263-
264, não repugna ver na construção legal da deliberação abusiva uma manifestação possível do mecanismo de
SCHMIDT-RIPLER apud CLAUS-WILHELM CANARIS, «A Liberdade e a justiça contratual na sociedade de direito
privado», em AAVV., Contratos: Actualidade e Evolução, Porto, UCP, 1997, pp. 55-58, presente no direito
privado portugês, na sua vertente negativa. Tal mecanismo, assente na ideia de uma justeza imanente ao negócio
jurídico e seus efeitos, a denominada Richtigkeit, justifica a proscrição de resultados manifestamente injustos ou
desproporcionados, em homenagem a um equilíbrio lógico e auto-preservante da própria liberdade contratual.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 7

jurídicas»24. Perante a atual disciplina legal pormenorizada das deliberações inválidas,


incluindo as ofensivas aos bons costumes e as abusivas, a crítica galopa flamejante apontando
o «anacronismo» ínsito na afirmação de que as deliberações abusivas seriam nulas, nos
termos do art. 56.º, 1, al. d), por violação de preceito injuntivo, o art. 334.º, CC.
Em sentido oposto advoga-se a sobreposição, rectius, a complementaridade sistemática
entre a disciplina geral (art. 334.º, CC) e especial-societária [art. 58.º, 1, b)] da figura do
abuso de direito. Para tanto recorre-se à (re)localização categorial-abstrata do exercício do
direito de voto que, tal como qualquer situação jurídica, está sujeita à eventualidade do
exercício abusivo e, por conseguinte, adstrita ao regime preconizado pela cláusula geral de
sede normativa civil, desde que tal exercício contenda com o «núcleo axiológico fundamental
do sistema, expresso pela locução boa fé» e concretizado através dos princípios mediantes da
«tutela da confiança legítima» e da «primazia da materialidade subjacente»25.
Com efeito a sedimentação jurisprudencial das «figuras sintomáticas» do abuso de
direito ajuda a corporizar um mapa típico de situações abusivas: venire contra factum
proprium, inalegabilidades formais, supressio, tu quoque e desequilíbrio no exercício26. A
deliberação social poderia incorrer em abuso, violando o art. 334.º, CC, pela assunção de uma
das configurações de morfologia variável não taxativa 27 aludidas, o que catalisaria a sua
nulidade por violação de princípio injuntivo, nos termos do art. 56.º, 1, d). Isto não
significaria a absorção sistemática do abuso de sede societária – art. 58.º, 1, b). Este preceito
abrangeria o exercício danoso do voto com propósitos extra-societários e os atos emulativos,
estatuindo para tal a sanção da anulabilidade (atendendo à matricial disponibilidade do direito
de voto e à verificação dos requisitos objetivos e subjetivos exigidos). Ao seu lado,
24 Vide, por todos, J. M. COUTINHO DE ABREU, «Comentário ao art. 58.º»..., p. 681.
25 A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil, vol I. t. 1, 3.ª ed. 2007 (reimp.), p. 399 e ss.
26 Idem, Manual de Direito das Sociedades, vol. I, Das Sociedades em Geral, 2.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2007,
p. 744. Das suas palavras decanta-se evidente a entronização da boa-fé como pedra de toque axiológico-
-normativa fundamental: «o abuso do direito ou o exercício inadmissível de posições jurídicas equivale,
simplesmente, a um exercício contrário à boa fé». Admite, em consonância, que «os votos abusivos, na vertente
de 'vantagens especiais', traduzem uma actuação fora da permissão jurídica em jogo», pelo que não se poderia
falar de abuso de direito, mas da sua ausência. Ao invés, os votos emulativos seriam propriamente abusivos, na
versão típica de desequilíbrio no exercício. Contra tal compartimentação dogmática insurge-se J. M. COUTINHO DE
ABREU, Curso...cit., p. 561, nota 214, em mais um eco doutrinal da dissonância conceptual-teorética que gravita
em torno da figura, como em texto alertámos. Para o Autor, o voto ordenado pela consecução de vantagem
especial é propriamente abusivo. Tal decorre, primordialmente, da configuração estrutural que faz da figura do
abuso, separando-a estruturalmente do princípio da boa-fé (sem prejuízo de certos momentos de contacto), e
entronca igualmente na constatação de que tanto os votos como as deliberações em si podem ser consideradas
abusivos. Assim, «abuso de direito e princípio da boa-fé não se confundem, o abuso de direito não é (ou não é
só) exercício contrário à boa-fé» (nosso itálico). Vide, igualmente, COUTINHO DE ABREU, Do abuso..., pp. 55 e ss.
27 A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 58.º», em MENEZES CORDEIRO (Coord.), Código das Sociedades
Comerciais Anotado, 2.º Ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 236.
8 Entre Caducidade e Destituição

complementando-o28 na tarefa de «salvaguarda e reprodução do sistema» 29 estaria o abuso de


direito, com base no art. 334.º, CC, induzindo a nulidade da deliberação abusiva.
Ao sopeso de todas as considerações precedentes podem acrescentar-se outras.
Esboçámos impressivamente a dificuldade (ao menos dogmática) na eleição do recurso direto
ao art. 334.º, CC, como meio de enquadramento normativo da situação do administrador sobre
o qual não recai nova designação eletiva na sociedade transformada. Mas o que dizer quanto
às intermitências entre anulabilidade e nulidade que a aplicação das teses divergentes
sumariamente expostas sugere30? Ou do recurso direto à disciplina abstrata do abuso plasmada
no art. 334.º? Será esse um recurso per saltum no seio da cascata normativa subsidiária de
fontes que o art. 2.º parece inculcar? Neste ponto importará sobretudo indagar acerca da
necessidade de encontrar uma regulação societária «endógena», interior ao universo do direito
societário, atenta a eventual mais-valia sistemático-axiológica dessa solução31.
Sabemos que o acervo de interrogações e pistas de reflexão suscitadas constituem já
abundante matéria-prima para dissertação. Contudo, entrelaça-se em todo quanto foi exposto
uma subliminar linha de induções que clama por tratamento. Até este ponto, o vetor
orientador sugerido para descoberta de um mapa normativo de tutela (harmónica) do
administrador não-sócio afastado, sem mais, pela transformação de sociedades, verteu-se
primordialmente na procura de um vício atacável da deliberação de transformação tout court
que o não reconduz em funções administrativas na sociedade transformada, através da figura
do abuso. Mas, aparte as oscilações doutrinais na escolha entre anulabilidade e nulidade como
sanção do abuso, outra sugestão interpretativa assoma com pungente cariz interrogador: não
serão, tanto a declaração de nulidade como a ação de anulação, meios de reação
28 A noção de complementaridade desenha-se apolínea em M. CARNEIRO DA FRADA, “Deliberações Sociais
Inválidas no Novo Código das Sociedades”, em AAVV., Novas Perspectivas de Direito Comercial, Almedina,
Coimbra, 1988, p. 323. O recurso imediato ao art. 334.º permitiria contrariar situações que ficariam impunes por
não ter sido feita prova cabal do requisito subjetivo imposto pelo art. 58.º, 1, b). Vide, todavia, J. M. COUTINHO DE
ABREU, «Comentário ao art. 58.º»..., p. 682, afirmando a suficiência do dolo eventual na prova de algum dos
«propósitos» referidos no art. 58.º, 1, b) e a necessidade de, quando tal prova não se faça, recorrer à aplicação do
princípio da igualdade e/ou lealdade, sob égide do art. 58.º, 1, a).
29 A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 58.º»..., p. 237.
30 J. M. COUTINHO DE ABREU, Do abuso..., p. 77, em especial sobre deliberações sociais abusivas, pp. 164-166.
31 De tal afirmação não se retire um manifesto metodológico ou apelo corporizador do «mito» da codificação na
sua plenitude lógica a que poderia subjazer uma predileção positivista. Trata-se somente de privilegiar, atento o
complexo sistema de ordenação de fontes do direito societário, mapeado pelo art. 2.º, um percurso
subsidiariamente ordenado pelos seus imperativos degraus iniciais: 1.º, regras do tipo social em apreço; 2.º,
regras da parte geral e 3.º, regras do CSC aplicáveis aos casos análogos. O resto do sistema de fontes é
escalpelizado por A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 2.º», em MENEZES CORDEIRO (Coord.), Código das
Sociedades Comerciais Anotado, 2.º Ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 65. Sobre a articulação entre o art. 3.º,
CCom e art. 2.º do CSC, no sentido da complexificação do sistema de fontes e da relação de especialidade,
discutindo-se, in casu, a imperativa observância do trato de subsidiaridade entre fontes, vide ponto 4, cap. IV.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 9

potencialmente caucionados de uma iconoclastia desproporcionada? A operação de


transformação poderia ser efetivamente necessária e salutar para a sociedade. Será
impreterível destruir tal operação para proteger o ex-administrador, recolocando-o na posição
jurídica que ocupava, mas trazendo, como produto derivado, o retorno da sociedade ao status
quo ante?
Encontraremos o momento catártico deste deambular em dissertação na proposta de
uma solução harmónica de tutela do administrador na situação descrita, simultaneamente
ordenada pela correção e elegância sistemática. Em bom rigor, tal passa por determinar se é
caucionada de alguma congruência a co-habitação normativo-sistemática entre uma regra de
livre destituição, em que a eventual tutela indemnizatória do destituído, é filtrada pelo crivo
da justa causa, e a possibilidade de tal mecanismo de cessação da relação de administração ser
suspenso durante o período para o qual o administrador foi designado, por intermédio da
operação de transformação. A perceção aparente de que a lei autoriza a vizinhança típica da
situação em que um administrador, licitamente32 destituído sem justa causa, é indemnizado e
da situação em que o mesmo administrador, não formalmente destituído, é quitado, sem
indemnização, da relação de administração existente, por obra da caducidade derivada da
transformação (que ele propôs, diga-se, nos termos do art. 132.º,1), gera uma intuição
primária de injustiça ou de distorção lógica da proporção imanente ao sistema legal.
A prossecução da tarefa interpretativa e de complementação que nos propomos encetar
implicará a reconsideração ou releitura da transformação societária enquanto motivo de
caducidade da relação administrativa, à luz de uma análise jurídico-estrutural, não estática ou
cristalizada, mas dinâmica e teleologicamente orientada, da situação daquele que se torna ex-
administrador (mormente se não é sócio33) por força da transformação.
Por outro lado, o universo problemático deste relatório final, como se antevê, concita a
intersecção temática (e dogmática) entre duas áreas de candente interesse académico no
domínio do Direito societário. Falamos, mais precisamente, da corporate governance e da
transformação de sociedades. A primeira, catalisador de intenso debate internacional – de
matriz historicamente filiada nos EUA – abrange um conjunto multiforme de problemas
relativos, e.g., à distribuição de competências entre órgão deliberativo-interno e órgão

32 J. M. COUTINHO DE ABREU, “Diálogos com a jurisprudência, III – Destituição de administradores”, em DSR, vol.
V, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 16-17.
33 Infra, ponto 1, cap. IV, discutiremos a extensão operativa da solução encontrada, aferindo da medida em que
ela pode igualmente aproveitar ao administrador-sócio, para além da tutela que a lei, prima facie, lhe confere.
10 Entre Caducidade e Destituição

administrativo; à estruturação, composição e funcionamento do órgão administrativo-


representativo; às estruturas de controlo interno e externo das sociedades, aos modos de
designação e de destituição dos administradores, sua remuneração, deveres e
responsabilidades. Dir-se-á, diante de tal elenco temático, que o «mito» moderno da
corporate governance é, a um só compasso, o revisitar de temas clássicos à luz de um hic et
nunc pródigo em estímulos para uma discussão teórica tendente a estabilizar um eventual
modelo ideal de boa governação societária (este terá mais matizes oníricos que reais: a
diversidade do mosaico cultural/civilizacional patrocina bem a ideia da inexistência de um
modelo único).
Porque a leitura holística do seu mapa de questões foge claramente ao escopo e
economia deste relatório, deter-nos-emos pela epidérmica consideração da governação das
sociedades como o conjunto formado pelo complexo de regras (legais, estatutárias,
jurisprudenciais, deontológicas), instrumentos e questões relativas à administração e
fiscalização de sociedades. Dentre os temas supra referidos, abrangidos pelo chapéu-de-chuva
teórico deste Oberbegriff societário, a corporate governance, interessar-nos-ão, sobretudo, os
respeitantes aos modos de designação e destituição de administradores, mormente quando
pretendemos dissecar aspetos particulares da relação complexa de administração (como o da
sua caducidade, ou o do direito potestativo de destituição de administradores) em ambiente
normativo específico – o da transformação societária.
Eis o novelo problemático que nos propomos desfiar. Porventura o tempero marcante da
interrogação retórica neste introito, em que impressivamente se esboçam temas e se
antecipam possíveis iter analíticos e de construção, poderia sugerir uma adesão metodológica
de princípio ao pensamento tópico-problemático, matizado pela sua agilidade dialética e
pulsar dubitativo. Não negámos as virtualidades que carreia através do contraditório e da
síntese. Aliás, o trilho metodológico da tópica está indelevelmente ligado ao interesse pelo
problema singular34. Nem tão-pouco esta atenção pelo caso concreto se incompatibiliza com a
preocupação de unidade do sistema e, em geral, da adequação da ordem jurídica. Pelo
contrário, a adequação do ordenamento cresce exponencialmente em função do número de
casos concretos em que esta se revela justa, bem como se tornará tanto mais una consoante o
somatório das justiças particulares, traduzindo a omnipresença casuísta de uma geral ideia

34 A particular posição do administrador não reconduzido na vertigem do trânsito entre tipos sociais tem aqui a
facie do problema singular que o pensamento tópico paradigmaticamente foca em detrimento do abstracionismo
uniformizador, não se negando, todavia, o vetor reitor, com cariz principiológico, da Justiça.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 11

ordenadora de Justiça.35
Perante a multiplicidade problemática-ideal a tópica configura instrumento eficaz de
ordenação e disciplina do quadro de soluções que a tarefa propedêutica do brainstorming
permite alvitrar. Contudo, revela-se providencial o recurso à construção dogmática científica
ou teórico-sistemática na proposição de uma solução harmonizadora e coerente para a
situação-tipo, objeto de análise36. Almeja-se a correlação metodológica na tentativa de
elaborar, utilizando a terminologia de Canaris 37, uma «pequena» teoria jurídica. O conjunto
articulado e congruente de «pequenas teorias», sistematicamente inseridas numa ordem de
coisas mais geral, consubstancia lastro de indubitável potencial heurístico. Afinal a «grande
teoria» é esse mosaico teorético também dimanado da consideração do problema singular38.
Para tal, deverá a teoria jurídica gizada seguir a estrutura tripartida sugerida por aquele
mesmo Autor, focando-se na concatenação de valores ou princípios jurídicos e na manufatura
de regras ou enunciados que, finalmente, se desmultipliquem em soluções paradigmáticas de
problemas.39 É, por conseguinte, manifesto o nosso propósito de desenhar essa «pequena»
teoria jurídica, esperando – acaso a razão alumie o nosso iter analítico-construtivo – que ela
se integre de modo escorreito no superior conjunto articulado de teorias jurídicas que se
vertem na explicação e sustentação do Direito societário e do Direito privado português que o
alberga.

II. A TRANSFORMAÇÃO DE SOCIEDADES

1. O iter analítico.

Resulta evidente do enquadramento teórico-temático deste relatório a necessidade de

35 P. FERREIRA DA CUNHA, Filosofia do Direito, Almedina, Coimbra, 2006, pp. 329-331.


36 O cogitar tópico-problemático permanecerá presente no momento de construção jurídico-teorética, atenta a
sua virtualidade dubitativa, fazendo a «prova de resistência» das concretas propostas alvitradas (pto. 1, cap. IV).
37 CLAUS-WILHELM CANARIS, Función, Estructura y Falsación de las Teorías Jurídicas, Madrid, Civitas, 1995, pp.
28-29.
38 Com efeito, espera-se que da indagação teórica que sustenta esta dissertação se extraia a solução de problema
prático concretamente determinado. O postulado da atenção ao concreto, não obstante o manuseamento de
princípios gerais-abstratos, é tributário da preocupação expressa por A. MENEZES CORDEIRO, Introdução à versão
portuguesa de CLAUS-WILHELM CANARIS, Pensamento sistemático e conceito de sistema na ciência do direito, 3.ª
edição, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 640, quanto à criação de um metadiscurso jurídico, cujo
objeto é já o próprio discurso sobre o Direito, abstratamente orientado e não vertido na resolução do caso
concreto. Furta-se a qualquer dissonância a preocupação igualmente manifestada por LARENZ, Metodologia da
Ciência do Direito, 4.ª Edição (tradução da 6.ª edição reformulada, de 1991, do original alemão: Methodenlehre
der Rechtswissenschaft), Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 2005, p. 640, quanto à necessidade de a teoria
jurídica almejar, além da correção dos seus enunciados, um patamar mínimo de «validade normativa».
39 CLAUS-WILHELM CANARIS, Función..., p. 70.
12 Entre Caducidade e Destituição

abordar o instituto da transformação de sociedades como tarefa de patamar apriorístico que


muna o intérprete do balanço exegético necessário para a dilucidação do problema singular
concretamente gizado no libelo propedêutico desta dissertação– o da tutela harmónica (ou
ideal) do ex-administrador não-sócio cujo vínculo cessa, na ausência de justa causa de
destituição, sob pretexto da vicissitude de transformação societária.
O influxo da disciplina legal da transformação na determinação da morfologia jurídico-
estrutural da situação do administrador ou ex-administrador, na já aludida perspetiva dinâmica
e teleologicamente orientada, revelar-se-á determinante na aferição de eventuais soluções para
a caso-problema ou situação-tipo em apreço. Cabe, em conformidade, encetar um percurso
analítico pelo regime jurídico português da transformação societária orientado
primordialmente por um feixe indagativo: o da determinação dos caracteres essenciais da
transformação e da medida em que estes se repercutem na relação de administração
previamente estabelecida entre gerente/administrador e sociedade.
Necessariamente dentro dos limites e economias próprias da estrutura-forma do
relatório final, o iter interpretativo ocupar-se-á dos aspetos mais candentes ou relevantes em
homenagem ao propósito manifestado. Desta pesquisa decantaremos alguns tópicos que,
vertidos em síntese conclusiva no final deste capítulo, servirão de base operativa conceptual e
enunciativa à ulterior moldagem de uma solução normativa para o objeto analítico adotado.

2. O instituto da transformação de sociedades

2.1. A transformação de sociedades nas vésperas do CSC

No domínio do direito pregresso 40 era omisso o Código Comercial de Veiga Beirão em


relação à transformação de sociedades, não prevendo qualquer regulação ou disciplina legal
para o instituto. Por sua vez, a Lei de 11 de Abril de 1901 – Lei das Sociedades por Quotas
(LSQ) – consignava apenas episodicamente a hipótese de dissolução de uma sociedade
40 Vide PINTO FURTADO, Curso..., pp. 531-532. A breve indagação histórica cinge-se ao direito imediatamente
anterior à aprovação do CSC e 1986. Todavia, não se deixa de anotar a omissão de qualquer referência à
transformação de sociedades comerciais no Código Comercial de 1833 (Ferreira Borges). Tal facto não
surpreende, atendendo à introdução solitária que o diploma fez da companhia de comércio como a única figura
de cariz verdadeiramente societário (ainda que bastante tributária do legado publicista das companhias coloniais
e das companhias pombalinas). Nem tão-pouco a Lei de 22 de Junho de 1867, a Lei das sociedades Anonymas
referenciava a transformação de sociedades. Seria preciso esperar pelo seu período de vigência articulada e
conjugada com a Lei das Sociedades por Quotas, de 11 de Abril de 1901, para lhe apontar algum efeito regulador
na disciplina do instituto. Talvez em virtude do carácter privatístico do instituto da transformação e do legado
publicista da companhia de comércio, a pioneira transformação (historicamente assinalada qua tale) dimane,
curiosamente, de uma parceria marítima (de vincado cariz privado) e não já de uma companhia de commercio.
Neste sentido, vide FRANCISCO MENDES CORREIA, Transformação..., p. 58.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 13

anónima para que esta se transformasse em sociedade por quotas, no seu art. 52.º. Em face do
direito posto questionava-se a doutrina acerca da admissibilidade genérica da transformação
de sociedades, tal como procurava assentar base assertiva quanto ao real efeito jurídico da
operação. A resposta aventada, granjeando solidez maioritária, era moldada pelo apego
dogmático ao instituto da modificação do ato constitutivo, fazendo o enquadramento
normativo da transformação através do recurso à leitura articulada dos arts. 49.º, 5 e 116.º
Cód. Comercial de 1888 (de Veiga Beirão). Com efeito, o primeiro sujeitava a registo
comercial «os instrumentos de constituição e prorrogação da sociedade, mudança de firma,
objecto, sede, ou domicílio social, modificação dos estatutos, reforma, redução ou integração
de capital, dissolução, fusão, cedência de parte de um sócio em nome colectivo noutrem, e,
em geral, tôda e qualquer alteração ao pacto social». Já o segundo levava um escopo
homogeneizador de forma, sujeitando as vicissitudes previstas no art. 49.º, 5 à mesma forma
prescrita para a constituição da respetiva sociedade. Na transcrição do art. 49.º, 5,
sublinhámos, in fine, o trecho ou locução onde a doutrina maioritária da época fazia abranger
a transformação de sociedades, fundando assim a admissibilidade genérica da transformação
de sociedades.
Por outro lado, só aparentemente a LSQ, art. 52.º, se limitava à transformação de
sociedades ao tipo anónimo. Isto porque, perante a norma permissiva do § 3.º do seu art. 3.º -
«transformando-se qualquer sociedade ou firma em nome individual em sociedade por quotas,
de responsabilidade limitada, pode esta continuar a antiga firma ou denominação social», era
mister entender-se que os restantes tipos de sociedades – sociedades em nome coletivo e
sociedades em comandita – podiam igualmente transmutar para o tipo da sociedade por
quotas, desde que a deliberação dos sócios nesse sentido fosse caucionada de unanimidade,
com a aplicação do art. 151.º, § 2.º do Código Comercial de 1888.
Dar conta do state of art da doutrina mercantil sobre o tema antes da aprovação do CSC
passa por referenciar o debate mais candente que, em face dos dois textos legais citados – o
Código Comercial e a LSQ41 –, se travou pela determinação do efeito da transformação na
sociedade transformada. Curava-se então de saber se a sociedade mantinha ou não, em
cenário pós-transformação, a sua personalidade jurídica, digladiando-se, respetivamente, a

41 Entretanto, no período que medeia entre a aprovação da LSQ e entrada em vigor do CSC, em 1986, verificou-
se a episódica manifestação do legislador sobre o instituto da transformação de sociedades nalguma legislação
extravagante. Será o caso do Decreto-Lei n.º 36.367, de 23 de junho de 1947 (relativo à operação de
transformação em sociedades concessionárias de exploração mineira) e do Decreto-Lei n.º 10.634, de 20 de
março de 1925 (respeitante à transformação de sociedades cujo objeto fosse a prática do comércio bancário).
14 Entre Caducidade e Destituição

tese da continuação e da novação. A discussão não estiolava árida em diletantes formalismos


conceptuais, porquanto a opção por uma das teses em confronto traria, a nível prático,
importantes consequências fiscais42. Talvez por isso o debate tenha vastos ecos doutrinais e
jurisprudenciais.
A tese da continuação era favorável à manutenção da personalidade jurídica na
sociedade transformada e revelava o matiz da adesão maioritária, dividindo-se em duas sub-
teses. A talhe de foice, dir-se-á que enquanto alguns Autores 43 sustentavam a conservação da
personalidade jurídica como princípio geral, permanecendo silentes quanto a eventuais
derrogações ou casos excecionais, outros44 acomodavam a formulação de uma regra geral de
manutenção da personalidade com a previsão de casos excecionais de novação na
transformação. O gizar temperado desta sub-tese teria o potencial heurístico de explicar e
concordar com o direito posto, mormente no que concerne aos arts. 52.º 45 e ss. da LSQ,
prevendo a transformação de sociedades anónimas em sociedades por quotas e a
transformação de sociedades comerciais em sociedades por quotas por acordo de credores
para deflectir a falência.
Não obstante a tese da continuação congregar em si mesma assentimento doutrinário e
jurisprudencial generalizado ou maioritário, vozes levantavam-se no sentido da absoluta
necessidade de dissolução da sociedade a transformar e, por conseguinte, da utilidade da tese
novatória na explicação do fenómeno societário da transformação. Para tal corrente, a
conservação ou permanência identitária da personalidade coletiva na sociedade transformada
era de recusar, atendendo à umbilical individualidade jurídico-tipológica vertida nas

42 Como aponta FRANCISCO MENDES CORREIA, Transformação de sociedades comerciais..., p. 62, nota 125, a
intensidade do debate que gravitava em torno da configuração da transformação pelo prisma da novação ou da
continuação alcançou tal patamar de dúvida, manifestado tanto na doutrina como na jurisprudência, que o
legislador sentiu necessidade de intervir, dispondo, no art. 1.º do Dec.-Lei n.º 31.249, de 5 de maio de 1941 que,
para efeitos fiscais, toda a transformação de sociedades implicava a alteração da respetiva personalidade, sendo
exigível o imposto referente ao trespasse conexo. Também o Dec.-Lei n.º 32.854, de 17 de junho de 1943,
sujeitou a SISA todas as transformações, desde que bens imóveis integrassem o ativo da sociedade.
43 Em sentido favorável a esta sub-tese coligem-se as vozes de FERRER CORREIA, Lições de Direito Comercial,
vol. II, Coimbra, 1968, pp. 92-96, e GALVÃO TELLES, Anotação ao Acordão da Relação de Luanda de 19 de
Outubro de 1957, OD, ano 90.º (1958), n.º 2, pp. 142-161.
44 Serão exemplo eloquente PINTO COELHO, Lições de Direito Comercial, vol. I, 3.ª ed. Revista, Lisboa, Cento
tipográfico Colonial, 1957, pp. 289-295 e PALMA CARLOS, «Transformação de Sociedades», Separata da RFDUL,
vol. XIV, 1962, pp. 6-8.
45 Neste ponto importa recordar que o art. 52.º, LSQ, estabelecia que em «caso de dissolução de uma sociedade
anonyma para se transformar em sociedade por quotas, de responsabilidade limitada, poderá dispensar-se a
liquidação, se o capital da nova sociedade não for inferior ao da sociedade dissolvida, e se os sócios que
tomarem parte naquella representarem, pelo menos tres quartas partes do capital d'esta.». A corroborar o
imperativo da dissolução parecia depor o art. 53.º do mesmo diploma, quanto à «hypothese do artigo anterior, o
activo e passivo da sociedade dissolvida passam para a nova sociedade».
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 15

características essenciais e definidoras de cada tipo social. Se cada uma das espécies que a lei
societária prevê está ligada a um acervo de características individualizadoras e, a fortiori,
diferenciadoras de cada tipo social, a transição entre tipos implicaria sempre (no entender
destes Autores46), sob pena de simbiótica mescla de tipos, a extinção de uma sociedade e a
criação genética de outra.
A absorção e o sopeso crítico dos argumentos aduzidos em favor de cada uma das teses
constituíram a matriz sintética do Anteprojecto da Parte geral do novo CSC 47, de Raúl Ventura
e Brito Correia, no que concerne à transformação de sociedades, em 1973. Entenderam os
autores não concorrerem, em face do direito posto – de iure condito –, razões de índole
dogmática ou legal-normativa suficientes para justificar a decisiva opção por qualquer uma
das teses em confronto. Mais, revelou-se inequívoco o Anteprojecto de 1973 quando propôs,
de lege ferenda, um sistema de face dual para a futura configuração legal do instituto da
transformação, na exata medida em que a plausibilidade teórica de cada uma das correntes (da
continuação e novação) se afirmava inelutável (em resultado da indagação dogmática e legal
expendida pelos Autores).
Com efeito, lê-se no Anteprojecto que «(...) a transformação pode ser criada como
constituição duma nova sociedade ou como continuação da mesma sociedade»48. Ao
legislador-arquiteto caberia determinar a concreta configuração do instituto, enquadrado,
todavia, pelo critério orientador da vontade dos interessados. Embora se reconheça que,
estando disponível para os interessados uma modalidade de transformação-continuação, a
opção pela modalidade extintiva-novatória se poderia quedar rarefeita de utilidade prática,
como mera hipótese académica, o Anteprojecto prescreve ao legislador a adoção de uma
estrutura alternativa, temperada, todavia, por um patamar supletivo, com preferência para a
tese da continuação que, deste modo, operaria através de uma «presunção de vontade», no
silêncio dos interessados. Por outro lado, ficou assente que a modalidade extintiva da
transformação, implicando a dissolução da sociedade a transformar, deveria ser coadjuvada
por um mecanismo de sucessão automática e global da nova sociedade nas relações jurídicas
46 Neste sentido lê-se PAIVA JÁCOME, Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 4 de Outubro de
1929, GJ, ano 1.º (1929), n.º 6, pp. 104-106, ou CUNHA GONÇALVES, Comentário ao Código Comercial Português,
vol. I, Lisboa, Empresa Editora J.B., 1914, p. 257. Pese embora a adesão deste último Autor à tese da novação,
destila-se da sua doutrina uma interessante compartimentação dogmática entre o que apelidava de conversão (ou
transformação radical), equiparada a supressão, e transformação de sociedades, conceito necessariamente
edificado pela manutenção de personalidade jurídica.
47 RAÚL VENTURA/BRITO CORREIA, Transformação de sociedades - Anteprojecto e notas justificativas, BMJ n.ºs
218, 219 e 220, Lisboa, 1973, pp. 5-119, 11-69 e 13-82.
48 Ibidem, BMJ, n.º 218, p. 118.
16 Entre Caducidade e Destituição

da antiga, assim deflectindo a liquidação que a dissolução sempre importaria. Ora, tal dado
contribuiu decisivamente para cimentar a ideia de que a presunção de vontade estabelecida
deveria munir-se de um favor à tese da continuação, alicerçando a «continuação das relações
jurídicas na continuação da pessoa-sujeito»49.
Foi este o trilho legiferante ulteriormente seguido pelo codificador de 1986, na senda da
proposta dos Autores do Anteprojecto, prevendo o CSC uma dúplice configuração ou facie
dual para o instituto da transformação. Na disponibilidade dos interessados ficaria depositada
a opção por uma transformação com manutenção da personalidade jurídica do ente societário
ou por uma transformação concatenada com dissolução. Sobre esta solução abre fogo crítico a
doutrina atual, como veremos de seguida. De todo o modo, é o CSC de 1986 o primeiro
diploma a mapear sistematicamente o instituto da transformação de sociedades comerciais,
através da disciplina legal compreendida nos arts 130.º a 140.º-A. A mais recente alteração
assinalável a este corpo normativo (entretanto polvilhado por alguma legislação extravagante
50
) é introduzida pelo Dec.-Lei n.º 76-A/2006, de 29 de Março, com a elipse revogatória do
art. 135.º e a adição do art. 140.º-A.

2.2. Apreciação liminar da solução consagrada. A crítica da doutrina

Pode sublinhar-se como primeira e unânime crítica apontada pela doutrina atual ao
regime instituído, a da obsolescência resultante da permanência normativa, a par da
transformação formal ou com manutenção da personalidade jurídica, de uma modalidade de
transformação chamada extintiva-novatória51, implicando a dissolução do ente a transformar.
Tal sucederia por força do afirmado princípio da identidade 52 que tornaria, pelo menos, pouco
apelativo o recurso àquela última modalidade, em virtude do seu potencial operativo-
simplificador, tornado evidente quando, sub-rogado na construção teorética do instituto, evita
o recurso a esquemas compósitos de liquidação-constituição de sociedades.
À modalidade extintiva é assacada «pouca ou nenhuma utilidade prática» 53, bem como
não se lhe desvenda, enquanto modalidade conservada em regime optativo ao lado

49 Ibidem, pp. 118-119.


50 Dec.-Lei n.º 2/2005, de 4 de janeiro, relativo à «societas europaea» ou sociedade anónima europeia.
51 RAÚL VENTURA/BRITO CORREIA, Transformação de sociedades - Anteprojecto e notas justificativas, BMJ n.º 218,
Lisboa, 1973, pp. 5-119.
52 A afirmação do princípio da identidade como matriz lógica do instituto, encontrará afloramentos legais
evidentes no regime da transformação de sociedades previsto no CSC, vide infra, ponto 2.3, cap. II.
53 ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 130.º», em COUTINHO DE ABREU, (coord.), Código das Sociedades
Comerciais em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 481-482.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 17

transformação formal, a eventual defesa de «qualquer interesse dos credores da sociedade


transformada, ou sequer de ordem pública»54. Quanto à ausência da necessidade de tutela de
qualquer interesse de terceiros credores, a procedência da crítica dirigida à modalidade
extintiva desenha-se apolínea pela constatação da igual ausência de liquidação do património
da sociedade dissolvida. Verifica-se, por força do regime gizado, que os credores não podem
atingir o património social, aquando da operação de transformação com dissolução, por força
do mecanismo de sucessão automática e global previsto. A extinção da sociedade comercial e
a constituição da nova sociedade (com efeito atributivo de personalidade jurídica) bem como
a sucessão automática e global, pela nova sociedade, na titularidade do património social
ocorrerão por força do registo da transformação, nos termos do art. 140.º-A. Assim, em
cenário pós-transformação, a nova sociedade – porque o referencial identitário anterior da
antiga personalidade jurídico-coletiva quedou-se para permitir a transformação – sucede na
titularidade dos direitos e obrigações da sociedade extinta55, em consequência da «transmissão
do património a título universal»56.
Por isso se indagam quais as razões (a existirem...) do recurso a uma via labiríntica ou
transversa de transformação para a exata produção dos mesmos efeitos, alcançados através do
mecanismo simplificador ínsito na transformação formal, como vimos, regido pelo constância
identitária da personalidade coletiva (aqui entendida como modo coletivo de produção e
aplicação de normas jurídicas57). Tal não vedava – no âmbito do pregresso direito fiscal – a

54 FRANCISCO MENDES CORREIA, Transformação de sociedades comerciais..., p. 66.


55 Vide RAÚL VENTURA, Fusão, cisão, transformação de sociedades: comentário ao Código das Sociedades
Comerciais, Almedina, Coimbra, 1990, (3.ª reimpr. 2006), pp. 448-449.
56 Ibidem, p. 481.
57 Não curando, neste conspecto, perscrutar em toda a profundidade o fenómeno da personalidade jurídica, mais
precisamente, o conceito de pessoa coletiva, abrigamo-nos na síntese analítica de UWE JOHN, Einheit und
Spauldung im Begriff der Rechtsperson, QF, n.º 11/12 (1982/83), pp. 965-971, que traça, a partir de três
elementos ou indícios centrais, uma engrenagem dogmática providencial na aferição da existência e concreta
modelação do fenómeno da personalidade coletiva. São elementos estruturais definidores do conceito: uma
organização de atuação (Handlungsorganisation), um centro de responsabilidade (Haftungsverband) e um ponto
identitário de referência (Identitätausstattung). Esta é a conquista doutrinal espelhada no diploma teutónico da
transformação lato sensu, a nova lei das transformações de 1994, a Unwandlungsgesetz. Se, em determinado
fenómeno jurídico, se verificarem os elementos elencados, aquele representará um sujeito de direitos dotado de
uma autónoma e destacável realidade jurídica em face dos respetivos membros. Ainda que de existência ténue, a
constatação daqueles três elementos permitirá afirmar a existência de uma pessoa coletiva (ao menos parcelar).
Corre subliminar nos estribos deste mecanismo conceptual a linha metodológica do pensamento tipológico,
propugnando-se a utilização do conceito de pessoa coletiva, não de forma piramidal ou lógico-abstrata (apanágio
do pensamento conceptual-abstrato), em que a recondução de determinado fenómeno ao conceito de
personalidade coletiva se faz por uma cadeia de raciocínio lógico mutuamente excludente; mas sim a utilização
de uma ordenação ou seriação tipológica «horizontal», que opera através da determinação no objeto analítico de
«certas propriedades gerais, relações ou proporções, designando-as por um nome». Por meio do método adotado
na leitura do fenómeno da personalidade coletiva é possível «conservar, também no plano da apreensão
intelectual, a totalidade da imagem dada na intuição» (LARENZ, Metodologia..., p. 658). Igualmente se depura da
18 Entre Caducidade e Destituição

descoberta de verdadeiras e efetivas desvantagens ou escolhos à opção por uma modalidade


extintiva de transformação, como sejam as refrações tributárias da operação assim
configurada, ou seja, com recurso à dissolução sem liquidação da sociedade a transformar e
transmissão universal e automática do património para a sociedade transformada.58
Se para a tributação em sede de IRC era, e permanece, inócua a opção por uma das
modalidades em jogo, porque a transformação de sociedades, mesmo implicando a dissolução
da anterior sociedade, não implica a alteração do regime fiscal aplicável nem precipita, per se,
qualquer consequência fiscal em matéria de IRC (art. 72.º, 1 CIRC59), o mesmo já não era
afiançável acerca da tributação em sede de imposto do selo. A constituição de uma nova
sociedade, derivada da transformação extintiva, estava sujeita à correspondente tributação em
matéria de imposto de selo, nos termos da (hoje revogada) verba 26 da Tabela Geral do
imposto do selo anexa ao CIS.
Com a entrada em vigor do art. 99.º, 2 da Lei n.º 3-B/2010, de 28 de abril, de teor
revogatório das verbas que na tabela geral de imposto do selo oneravam fiscalmente a
constituição de sociedade de capitais, derivada (ou não) de transformação (antiga verba 26.1)
ou, mais especificamente, tributavam uma forma heterogénea de transformação – a
transformação em sociedade de capitais de uma sociedade, associação ou pessoa coletiva que
não fosse sociedade de capitais (verba 26.2.), a crítica dirigida à inutilidade ou potencial
«danosidade fiscal» da modalidade extintiva de transformação tem hoje de quedar-se
famélica. Parece já não caucionar validade a observação prática de que a modalidade
extintiva traria ínsita uma potencial menos-valia fiscal.
definição dada em texto o pendor preponderante da normatividade do conceito de personalidade coletiva, ao
enuncia-la como a aplicação de um regime jurídico-positivo, em modo coletivo. Tal asserção pode ler-se
tributária de certo legado negativista. Embora rejeitando as conclusões mais radicais das correntes negativistas –
porque a pessoa coletiva existe como realidade jurídica autónoma e estruturada – aproveita-se a tónica
normativa com que as teses em apreço acentuaram o conceito. Fazendo funcionar tal mecanismo analítico
diremos que por via da transformação a sociedade escolhe um novo regime jurídico positivo, inerente a um outro
subtipo jurídico-estrutural, alterando-se as normas que determinam aquela sociedade como centro de
responsabilidade e organização de atuação, sem, contudo, se bulir com o seu Identitätausstattung, o seu
referencial identitário no tráfego jurídico.
58 O eco doutrinal das eventuais desvantagens fiscais inerentes à transformação extintiva, no âmbito do direito
pregresso, encontrava-se patente no balanço que AA., como ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 130.º»..., p. 481,
nota 26, faziam daquela modalidade de transformação.
59 Não obstante a inocuidade enunciada deve levar-se em consideração o caso excecional da transformação de
sociedades civis não constituídas sob a forma comercial (sociedades civis simples) em sociedades comerciais.
Após a transformação destas, nos termos do art. 72.º, 2 CIRC, o seu regime fiscal deixa de ser o regime da
transparência fiscal. Todavia, ao lucro tributável correspondente ao período de tributação decorrido até à
transformação será aplicável o regime da transparência fiscal, art. 6.º, 1 CIRC. Segundo JOSÉ AMORIM/MIGUEL
VIEIRA, «Anotação ao art. 72.º», CIRS anotado, disponível em <www.lexit.pt>, este caso de transformação não
implicará a concretização de uma cessação/início de atividade, «mas somente a determinação, em separado, do
lucro tributável relativamente ao período anterior e posterior» à transformação.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 19

Mas tal atualização parece não beliscar os argumentos de índole dogmática


desfavoráveis à consagração legislativa da dúplice configuração do instituto. Neste sentido,
assevera F. Mendes Correia que a ratio de tal consagração estaria vincadamente marcada por
uma «homenagem à vontade das partes»60, que poderiam direcionar-se para a transformação
extintiva em alternativa à transformação com manutenção de personalidade jurídica, sendo,
todavia, os Autores do referido Anteprojecto os primeiros a reconhecer que dificilmente a
vontade dos interessados se configuraria favorável à opção pela via extintiva. Neste ponto
deteta a doutrina o peccatum originale da solução consagrada. Esta nasce inquinada, no
âmbito normativo, pela construção de uma fattispecie que, consagrando um mecanismo já
dogmaticamente obsoleto em 1986, traiu o desígnio legiferante do contínuo aperfeiçoamento
técnico-jurídico. Para mais, a mácula da solução extintiva-novatória (e da sua improvável
coabitação com o mecanismo formal de transformação) é também funcional e sistemática.
Funcional, porque é oca na tutela de interesses ou necessidades económicas dos interessados.
Sistemática, porque o intérprete terá de torcer o mapa interpretativo do instituto para que, à
luz do entronizado princípio reitor – o da identidade – se consiga a compatibilização com o
vetor da continuação, explicativo do desdobramento esquemático que a modalidade extintiva
consigna, precisamente traduzido na dispensa de liquidação e no mecanismo patrimonial de
sucessão universal e automática.61
Por mais interessante que a discussão sobre o mérito da dúplice configuração do
instituto se afigure, somos obrigados a recorrer a um corte epistemológico, funcionalmente
ordenado pelo escopo deste relatório. Tanto a transformação meramente formal como a
extintiva-novatória são indutoras da caducidade da relação de administração estabelecida com
os gerentes/administradores da sociedade a transformar. De uma forma ou de outra,
dissolvem-se os órgãos sociais, caducando a relação complexa de administração previamente
estabelecida, seja pelo inerente efeito da dissolução própria da transformação extintiva, seja
pela impossibilidade da «sobrevigência» do órgão social no novo tipo adotado por força da
transformação formal, sob pena da desfiguração fisionómica do subtipo eleito.

2.3. Regime Legal Vigente. Aspetos relevantes

O art. 130.º traça um esboço geral do instituto da transformação societária, enquanto


60 FRANCISCO MENDES CORREIA, Transformação de sociedades comerciais..., p. 66.
61 Por isso nos referimos supra (nota 1) à irmandade funcional entre principio da identidade e da continuação,
ligando no plano interpretativo-dogmático duas hipóteses normativas que, em bom rigor, estão dotadas de graus
de abstracção e simplificação funcional bem diversos.
20 Entre Caducidade e Destituição

pórtico normativo do Capítulo XI da Parte Geral do CSC. A arrumação sistemática dita que
este Capítulo contenha uma regulação tendencialmente autónoma 62 (embora não esgotante63),
desta vicissitude própria do universo dinâmico-evolutivo do ente societário. Fazendo jus à sua

epígrafe e, para já, retidos no sopé literal dos seus n. os 1 e 2, é possível decantar uma noção
de transformação que encontra plácido assentimento na doutrina dominante64: a de que a
transformação se traduziria na vicissitude através da qual uma sociedade “adopta um tipo
diferente daquele que tem no momento da sua transformação”65. Consequentemente, a
sociedade que se propõe à transformação terá adotado ab initio um dos tipos societários
previstos no art. 1.º, 2, ou a forma societária civil pura, prefigurada pela fattispecie do art.

62 Para um conspeto do Direito Comparado neste âmbito, colocando a tónica na maior abrangência dos
ordenamentos estrangeiros relativamente ao fenómeno da transformação na sua faceta heterogénea (que
comporta uma transmutação tipológica extra societária da personalidade coletiva), vide ELDA MARQUES,
«Comentário ao art. 130.º»..., p. 477, nota 2. No direito alemão rege a UwmG de 1994, relativa à Formwechsel,
disciplinando, no seu livro V, a transformação entre sociedades e outros tipos de pessoas coletivas. A abrangência
heterogénea dos binómios de transformação resulta evidente da previsão normativa de transformação recíproca
entre sociedades e outros entes, como cooperativas, mútuas, e associações sem personalidade jurídica. O Codice
Civile, arts. 2505-ter. e ss., disciplina a transformação societária bem como a transformação entre sociedades e
outras «organizações coletivas»: consórcios, associações, cooperativas e fundações. Por sua vez, o direito
espanhol, nos arts. 4 e 7 da LMESM, prevê, afora a transformação entre sociedades mercantis, a transformação
de uma sociedade mercantil ou de um AEIE em AIE (agrupamento de interesse económico) e o inverso
(transformação de AIE em AEIE ou sociedade mercantil). É ainda autorizada a transformação ambivalente ou
recíproca entre sociedade mercantil e cooperativa; SA e SE; e entre sociedade cooperativa e SCE (sociedade
cooperativa europeia), encontrando-se, todavia, a sua disciplina em específica legislação nacional. Sobre a figura
da sociedade cooperativa europeia, vide RUI NAMORADO, «A sociedade cooperativa europeia – problemas e
perspectivas», n.º 189, CES-FEUC, 2003.
63 Não esgotante porque, e.g., a transformação de uma Societas Europaea em SA ocorre sobre égide de uma
disciplina legal de sede externa ao CSC, os arts. 23.º e 24.º do Decreto-Lei n.º 2/2005, de 4 de janeiro, alterado
pelo Decreto-Lei n.º 76-A/2006, de 26 de março.
64 Gravita em torno da noção basilar de transformação avançada o assentimento da doutrina dominante. De tal
facto encontra-se menção em FRANCISCO MENDES CORREIA, «Anotação ao art. 130.º», em MENEZES CORDEIRO,
(coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 502. A sintonia
jurisprudencial com a cristalização doutrinal dominante e definidora do instituto fica bem patente no Ac. do
TRL, de 15/02/1990, CJ, 1990, t. I, p. 169, ao referir-se à transformação como a «adopção, por uma sociedade
constituída segundo um dos tipos enumerados no art. 1.º, n.º 2 do Cód. Soc. Comerciais, de um outro desses
tipos». Questão diversa é a de saber se o universo dos tipos de destino, ou seja, o segundo elemento do binómio
de transformação, se circunscreve ao universo legalmente delimitado de tipos consignados no art. 1.º, 2, como a
doutrina tradicional sobre o instituto asseverava. A lição do direito comparado, mormente do direito alemão, com
a introdução da UwmG de 1994 (vide LUTTER (org.), Unwandlungsgesetz – Kommentar, vol. I (§ 1-137), 3.ª
edição revista e aumentada, Koln, Otto Schimdt, 2004, pp. 88 e ss.), é a da tendência para o alargamento dos
casos legalmente previstos de transformação heterogénea, ou seja, a transformação recíproca entre sociedades e
pessoas coletivas de outro tipo. Na doutrina portuguesa a mancha de influência teutónica, inspirada pela
abrangente configuração legal do instituto da transformação no âmbito do direito privado, é eloquente na
investigação de FRANCISCO MENDES CORREIA, Transformação...ob cit., pp. 245 e ss., que, em rutura com as teses de
homogeneidade causal, liberta o instituto do confinamento a que estava votado no universo societário, sendo
instrumental, para a consecução de tal propósito, a (re)filiação da transformação societária na figura matricial da
transformação de pessoas coletivas (granjeando assim caminho para a admissão da heterogeneidade causal no
processo justificativo da transformação); bem como a afirmação da autonomia dogmática da figura da
transformação em relação ao instituto da alteração contratual (vide infra ponto 3, cap. II).
65 RAÚL VENTURA, Fusão..., pp. 416 e ss.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 21

980.º, CC. Segundo a doutrina tradicional, o leque de opções para o output do processo de
transformação circunscrever-se-ia aos tipos previstos no art. 1.º, 2.
Aprimorando o recorte conceptual do quid em análise (a transformação), dir-se-á que
uma sociedade comercial já constituída, ou até previamente transformada, poderá adotar um
tipo societário comercial diferente, salvo proibição legal ou estatutária. Como tal, a
vicissitude da transformação opera apenas uma “alteração da forma jurídica da estrutura
societária, mantendo-se os seus elementos pessoal e patrimonial”66. Pese embora o art. 130.º
disponha sobre a primeira transformação de uma sociedade, nada obsta a que uma sociedade
anteriormente transformada possa adotar novamente um outro tipo social 67. Não se infere,
todavia, da interpretação extraída no sentido da faculdade de repetição da operação, que a
praxis resultante seja a de uma dança cíclica de transformações múltiplas. Não curando agora
da miríade de motivos que a podem justificar, a transformação-instituto é tributária de uma
ideia de adaptabilidade à mutação das circunstâncias, de (re)localização da sociedade num
certo hic et nunc, o que se revela, a um só compasso, fator de evolução e estabilidade68.
São de dúplice natureza, legal ou estatutária, os limites que se poderão colocar à
transformação da sociedade. Podemos, desde logo, apontar a existência de preceitos legais
que estatuem, para sociedades com determinado objeto, a necessidade de adotarem certo tipo
social e que, não obstante visarem, como primordial escopo, o momento genético ou de
constituição da sociedade, indiretamente acabam por consubstanciar uma proibição de
transformação da sociedade. Esta última, já constituída nos moldes exigidos, não poderá
adotar tipo proscrito, ou inadmissível ex vi legis, em razão do objeto especialmente
regulado69. Pelo mesmo efeito de osmose normativa com as proibições vigentes no momento
da génese constitutiva da sociedade, o desrespeito pelos requisitos legais imperativos para a

66 ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 130.º»..., p. 478. Em sintonia, enfatizando o valor da transição entre tipos
sociais e a modificação do regime jurídico-positivo aplicável enquanto referencial normativo-regulador do
fenómeno societário, pode ler-se P. OLAVO CUNHA, Direito das Sociedades Comerciais, Almedina, Coimbra, 2010,
p. 756: «De entre as maiores movimentações que as sociedades podem sofrer em termos da respectiva estrutura
contam-se seguramente as alterações de tipo societário – em que a sociedade mantém o seu objecto (a sua
actividade) e adopta um tipo diferente mais conveniente à prossecução dos seus fins (…)».
67 Convergem, neste sentido, A. M. TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção legal e estatutária dos sócios minoritários
na transformação das sociedades por quotas e sociedades anónimas», em AAVV., Nos 20 anos do Código das
Sociedades Comerciais, Homenagem aos Profs. Doutores A. Ferrer Correia, Orlando de Carvalho e Vasco Lobo
Xavier, vol. II, Coimbra Editora, Coimbra, 2007, p. 275, e RAÚL VENTURA, Fusão..., p. 416.
68 A. MENEZES CORDEIRO, Manual de Direito das Sociedades, vol. I, Das Sociedades em Geral, 2.ª Ed., Almedina,
Coimbra, 2007, p. 795. Para o A., o perfil evolutivo tradicional será o de uma pequena empresa familiar que
passa a SENC e posteriormente, na medida da acumulação de capital e sucesso empresarial, a SQ e a SA,
naquilo que se pode designar um protótipo de transformação evolutiva.
69 RAÚL VENTURA, Fusão..., pp. 438-439. A título de exemplo, as sociedades de factoring, de investimento e de
locação financeira, adstritas ao tipo anónimo (SA).
22 Entre Caducidade e Destituição

constituição da sociedade, impedirá, ulteriormente, a transformação. Isto sem embargo dos


impedimentos expressamente previstos no art. 131.º70 e da proibição vertida no art. 140.º-A, 2,
al. b).
É, por sua vez, cogitável uma cláusula do contrato de sociedade que expressamente
proíba a transformação tout court da sociedade, ou que apenas a vede quando o seu escopo
seja a adoção de determinado tipo societário. Fácil seria descartar a importância de tal
cláusula com o argumento de que, estando os sócios animados pela transformação da
sociedade, bastaria suprimi-la71, para remover esse óbice contratual, destarte, facilmente
ultrapassável (pode, todavia, a supressão de tal cláusula estar regulamentada contratualmente
de modo mais exigente em relação ao legalmente previsto – e.g., o caso em que, para a sua
remoção, estipula-se a necessidade de uma maioria qualificada). Negando igualmente a
utilidade/validade da cláusula que proscreve a transformação da sociedade, aduz-se o
recorrente argumento de que ela constituiria obstáculo inaceitável à dinâmica evolutiva da
sociedade, no sentido da adaptação do tipo societário às novas necessidades e conveniências,
o que bastaria como prova de que nessa cláusula se depositaria um interesse estranho à
sociedade. Resolveu, o legislador, o dissenso quanto à validade de tal cláusula, ao consigná-la
expressamente no art. 130.º, o que só pode resultar da asserção de um interesse relevante e
legítimo subjacente: o interesse dos sócios de não quererem associar-se em tipo diferente
daquele que adotaram na constituição da sociedade.72
O espaço normativo vigente de uma eventual cláusula contratual impeditiva da
transformação não contende com o dos impedimentos legais, ínsitos nos arts. 131.º e 140.º-A,
2, b). Pode até suceder que a cláusula reproduza algum desses impedimentos. Como
consequência, o momento patológico inerente à violação desse impedimento terá como
referencial de licitude o próprio preceito legal reproduzido e já não a cláusula contratual em
si, ex vi art. 58.º, 2, igualmente aplicável, atenta a remissão in fine plasmada, ao art. 56.º73.

70 PINTO FURTADO, Curso..., p. 532.


71 Tal parece ser a via argumentativa escolhida por ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 130.º»..., p. 478, nota 5.
72 Aliás, como nota RAÚL VENTURA, Fusão..., p. 439.
73 Em princípio, a violação de uma norma legal dispositiva ou de uma estipulação estatutária acarretaria a
anulabilidade da deliberação inquinada. Por essa razão, é curial a ressalva do art. 58.º, 2, ao levantar o véu da
cristalização estatutária, reconduzindo a violação em apreço à violação direta da lei. Se a lei (reproduzida em
estipulação) for imperativa e tratando-se de um vício de conteúdo, a deliberação será nula. Vide PEDRO MAIA,
«Deliberações dos Sócios»..., p. 282. Curioso vislumbrar neste processo de recondução ao imperativo legal um
paralelismo mecânico com o funcionamento da teoria do piercing of the veil, crismada entre nós de
«desconsideração ou superação da personalidade jurídica das sociedades comerciais». Vide, com abundantes,
referências bibliográficas, PAULO DE TARSO DOMINGUES, Variações ..., pp. 167-171 e J. M. COUTINHO DE ABREU,
Curso.., vol. II, pp. 176 e ss. Será este indício da existência de um eventual princípio hermenêutico favorável à
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 23

O art. 131.º, ao vedar a transformação em determinadas situações, precipita legalmente


o vetor-regra de que a operação não está puramente adstrita ao domínio de discricionariedade
deliberativa dos sócios, encimada teleologicamente pelo parâmetro do interesse social. Ela
está condicionada por determinados requisitos protetores dos interesses de sócios e credores
eventualmente afetados pela mudança de forma jurídica. Cumpre notar a diferente natureza
destes impedimentos, o que, por sua vez, gerará refrações ao nível do efeito/cominação
jurídica catalisado pela sua verificação.
Desde logo, as als. a), b) e d) do n.º 1 consignam pressupostos de validade da
deliberação de transformação, pelo que a sua inobservância fere tal deliberação do vício de
nulidade, cominado pelo art. 56.º, 1, d)74. Por sua vez, a al. c) – cristalizando um impedimento
relativo, por oposição aos das restantes alíneas, considerados absolutos – contende com a
falta de consentimento do sócio titular de direito especial não mantido após a operação e
determina a ineficácia da deliberação de transformação, já não a sua nulidade.
Tem a falta de consentimento de ser expressamente manifestada através de um
comportamento ativo de oposição individual do sócio titular do direito especial suprimido
pela transformação, nos termos do art. 24.º, 5, ou de oposição colegial-maioritária dos
acionistas titulares de ações privilegiadas (arts. 24.º, 6 e 389.º). Isto porque, em regra, quanto
uma deliberação carece do consentimento dos sócios, é exigido um comportamento positivo
de assentimento, conduzindo a omissão ou a permanência silente à ineficácia deliberativa75.
Joga-se aqui exatamente a falta de anuência do sócio à supressão de direitos especiais,
sendo aplicável a sanção do art. 55.º. Deste modo, ainda que validamente tomadas, as
deliberações de transformação serão absoluta e totalmente ineficazes, quando é validamente
deduzida oposição, ou seja, por escrito, no prazo estipulado no art. 131.º, 2 e 3. Neste sentido,
depõe o prazo de um ou dois meses, a contar da deliberação de transformação para a dedução
de oposição por escrito (vide arts. 131.º, 3 e 137.º, 1). Se a oposição pode ser deduzida após a
aprovação da deliberação, é de admitir a não afetação da sua validade, ferindo-se, ao invés, a

teoria da desconsideração? Atento o boom jurisprudencial da figura, talvez não seja necessário carrear ulterior
argumentação apologética da figura. O foco da questão parece ser hoje o da reafirmação do carácter excecional
de tal expediente decisório (será novo mote desconsiderar a desconsideração?). Vide MARIA DE FÁTIMA RIBEIRO, A
Tutela dos Credores da Sociedade por Quotas e a "Desconsideração da Personalidade Jurídica", Almedina,
Coimbra, 2009., pp. 639 e ss.
74 Neste sentido, especificamente sobre as als. a) e b), TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção legal...», pp. 288-289.
Em consonância, RAÚL VENTURA, Fusão..., p. 482 e F. MENDES CORREIA, «Anotação ao art. 131.º», em MENEZES
CORDEIRO (coord.), Código das Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 509.
75 ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 131.º», em COUTINHO DE ABREU (coord.), Código das Sociedades
Comerciais em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 493.
24 Entre Caducidade e Destituição

sua eficácia. Havendo oposição, deve o processo de transformação sustar-se. Assim depõe o
art. 140.º-A, 1, obrigando o membro da administração que requeira o registo da
transformação a declarar por escrito, sob sua responsabilidade, que não houve oposição à
transformação, nos termos do art. 131.º, 2 e 3; sendo a inobservância deste dever passível de
gerar a ineficácia absoluta da deliberação de transformação.
A al. a), do art. 140.º-A, 2, a que supra nos referimos como completando o elenco dos
impedimentos legais à transformação societária, alberga na sua ratio preocupações atinentes à
intangibilidade do capital social76. Visa garantir que o património social não se torne inferior
ao capital social e reservas indisponíveis, em momento posterior ao da deliberação de
transformação: o do correspondente registo. Em conformidade, o membro do conselho de
administração que promove o registo deve declarar que os direitos dos sócios exonerados
podem ser satisfeitos sem afetação do capital, nos termos do art. 32.º, sendo que a
inobservância deste dever obsta ao registo da transformação (ainda que validamente
deliberada), o que acarreta a sua ineficácia entre sócios (interna) e perante terceiros (externa).
A justificação volitiva-deliberativa da transformação tem na doutrina matizes e nuances
diversos. Os motivos que subjazem à operação – abrigados no manto conceptual do interesse
social77 – são tão variegados quanto diversos são os diferentes tipos sociais. Cada tipo
societário tem a sua facie. Uma fisionomia legal individualizadora que configura uma
identidade própria78, dimanada de um regime de responsabilidade dos sócios ante a sociedade
e os credores sociais e de uma estrutura orgânica e organizatória interna, para além dos
demais traços peculiares de cada tipo, como a natureza, rectior, a espécie de participação

76 Desenvolvidamente, PAULO DE TARSO DOMINGUES, Variações..., pp. 250 e ss.


77 Na senda de J. M. COUTINHO DE ABREU, Do abuso..., pp. 120-121, colorimos o interesse social com uma
definição que radica no seu étimo. O interesse (literalmente: inter esse, «estar entre»), neste caso, referido ao
grémio societário, traduz um liame relacional entre uma necessidade e um bem, em contexto societário. A
necessidade, imutável e conatural ao contrato de sociedade é a da consecução do maior lucro possível para todos
os sócios. Por sua vez, o bem eleito para colmatar tal necessidade não existe alheio à concretização conjuntural:
será determinado em cada deliberação. No binómio descrito, a mutabilidade conjuntural cabe ao bem elegível. É
portanto possível que numa assembleia social se confrontem vários interesses sociais, cabendo à maioria filtrar
ou operar a redução complexidade (se preferirmos a alusão à teorias sistémico-sociológicas), determinando
naquele hic et nunc qual o bem ou o meio mais apto a alcançar o máximo lucro. Contudo, se naquele conspecto a
maioria densifica o concreto interesse social (porque escolhe certo bem, preterindo outro), tal não equivale a
admitir que lhe caiba a titularidade do interesse social a se. A maioria ou grupo de controlo não pode realizar
uma escolha arbitrária. Goza, isso sim, de um campo de discricionariedade balizado pelo interesse da sociedade,
figurando enquanto escopo lucrativo comum, fora do qual, a deliberação, porque ilegítima (v.g., abusiva), será
impugnável. É neste sentido que uma deliberação (como a de transformação, quando leva encapotado um
animus fraudatório de afastamento gratuito do administrador) se entrega – ainda que não integralmente, pois a
transformação pode efetivamente servir o interesse social – a propósitos extra-sociais. Extra, porque, à sombra
de uma aparência de legalidade, se ultrapassa a relação binomial que, como vimos, define o interesse social.
78 J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso.., vol. II, pp. 53-66.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 25

social e respetivo regime de transmissão, o número mínimo de sócios e, quando seja o caso,
um valor mínimo de capital social. Logo, os motivos fundantes para uma operação de
transformação, ou as suas causas justificativas, apresentarão índole diversa e não se podem
reconduzir unicamente à modificação do regime de responsabilidade dos sócios e à tarefa de
adequação do modelo organizativo da sociedade à dimensão da empresa e ao grau de
dispersão do seu capital, como sói elencar-se liminarmente.
Podem justificar a operação de transformação, entre outras, razões de índole fiscal
(referimo-nos, e.g., ao regime mais favorável de tributação de transmissão de ações em
relação à alienação de partes sociais ou quotas nos termos do art. 2.º, 2, d), do CIMT79); uma
escolha tendencial ou recorrente da praxis empresarial para a adoção de certo tipo 80, ou uma
imposição legal, exigindo a correspondência entre certo objeto/atividade e determinado tipo
societário, sendo neste caso a transformação uma via de acesso ao exercício dessa atividade,
ao lado da constituição ab origine de uma sociedade com esse específico objeto sob a forma
do tipo legal correspondentemente exigido.
Sobre a natureza intrínseca do instituto da transformação digladiam-se duas teses. Se,
por um lado é reconhecido caráter autónomo à operação81, por outro, nega-se a emancipação
dogmática do instituto, arrumando a transformação como uma espécie do género modificação
do pacto social. Revisitemos en passant a posição minoritária de Pinto Furtado82.
Reage o Autor criticamente83 à tentativa de autonomização da transformação enquanto
instituto genérico apartado da noção de modificação contratual. Observa que os defensores de
tal tese, erigindo-a como procedente, são imediatamente obrigados a realizar concessões em
favor da tese oponente, como sejam a do reconhecimento da «parificação» do instituto da

79 Na vigência do pregresso art. 10.º, 2 do CIRS (redação do DL n.º 361/2007, de 2 de novembro), cobrava
sentido observar que a transformação poderia ser motivada pelo intuito de aceder à isenção de tributação de
mais-valias provenientes da alienação onerosa de ações. Assim, a transformação sob a forma de um binómio SQ-
SA, acarretando a substituição da espécie de participação social (quotas/ações), poderia servir o propósito dos
titulares de ações na sociedade transformada de, em momento ulterior, alienar onerosamente as suas novas partes
sociais, beneficiando de isenção na tributação da mais-valia realizada, desde que as ações fossem detidas pelo
seu titular durante mais de 12 meses. Todavia, a revogação daquele preceito deu-se por força do art. 1.º da Lei n.º
15/2010, de 26 de julho, quedando-se inelencável como motivação da transformação a particular vantagem fiscal
apresentada. Vide J. F. CUNHA GUIMARÃES, «A transformação de sociedades»..., p. 10.
80 Com a sinonímia impressiva de «questão de moda», refere-se, quanto à tendencial e recorrente opção por
determinado tipo, ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 130.º»..., p. 478, na senda de RAÚL VENTURA, Fusão..., p.
417, que alertava para o perigo de «transformações levianas, decorrentes apenas de exemplos conhecidos dos
interessados e mal assimilados por estes.».
81 Vide RAÚL VENTURA, Fusão..., p. p. 450; F. MENDES CORREIA, Transformação..., p. 334, e TAVEIRA DA FONSECA «A
protecção legal...», pp. 285-287.
82 PINTO FURTADO, Curso..., pp. 534-535.
83 Crítica dirigida a RAÚL VENTURA, Fusão..., p. 415 e ss.
26 Entre Caducidade e Destituição

transformação (não obstante a sua extensa regulação no CSC) com a modificação contratual
em diversos preceitos, v.g., arts. 194.º, 265.º, 3, 383.º, 2 e 386.º, 3. [Não será a pretensa
«parificação» (que, diga-se, também não significa assimilação hipotética ou simbiose de
fattispecies) uma mera vizinhança sistemática que corrobora a ideia de autonomização dos
institutos e corrói o fundamento à tentativa do seu encadeamento em subordinação
lógica?...Afinal, leitura diametralmente oposta, no sentido da equidistância horizontal das
figuras, retiram, dos mesmos preceitos, os cultores da tese contrária84].
Em acréscimo, o recurso analógico às disposições relativas à modificação contratual
para o preenchimento de eventuais lacunas no mapa regulativo da transformação seria, para a
tese em apreço, indício evidente da subordinação conceptual ao género da modificação
contratual. Tal recurso estaria, não obstante, excluído, quando se revelasse incompatível com
as particularidades do regime da transformação. [Mas não poderá a similitude analógica
resultar igualmente da seriação horizontal dos vários tipos, apanágio do pensamento
tipológico? Este, operando através da determinação, no objeto analítico, de certas
propriedades gerais, relações ou proporções, gera um padrão hipotético de inesgotável valia
heurística na avaliação (e enquadramento) dos diferentes fenómenos jurídicos85. Admitir, sem
mais, que a similitude entre figuras é prova da sua ordenação vertical, implicando a
arrumação piramidal (em subordinação) das mesmas, sugere, como subterrânea premissa,
uma intuição ou tique metodológico de índole conceptual-abstrata].
Finalmente, é apontada como descartável lucubração a indagação acerca da relação
lógica entre transformação e modificação contratual, sabendo que no art. 134.º, al. c) se exige,
para a aprovação holística da operação, a aprovação do novo contrato de sociedade pelo qual
a sociedade passa a reger-se. Seria despiciendo determinar se a transformação causa a
modificação contratual ou, ao invés, se a transformação é efeito da modificação, porquanto
«toda a nova organização acaba por se reconduzir a uma específica modificação contratual» 86.
[Salvo a devida vénia, a constatação é feita a montante daquele que é, em nossa opinião, o
epicentro da discussão: o da configuração extravasante (ou não...) da transformação, enquanto
instituto genérico e autónomo em relação à modificação contratual].
Vejamos alguns dos argumentos usualmente esgrimidos a partir do bastião contrário.

84 Diríamos, cum granu salis, que a metáfora de Jano serve aqui de inusitado (mas curial...) parâmetro
hermenêutico.
85 Vide, supra, nota 57, com outro vagar, o cotejo entre pensamento tipológico e conceptual-abstrato.
86 PINTO FURTADO, Curso..., p. 535.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 27

Em favor da tese que propugna a autonomia do instituto, com vencimento maioritário no


xadrez doutrinal, aventa-se, desembainhando argumento lógico-sistemático, que a regulação
específica do instituto da transformação faz-se em capítulo autónomo daquele que disciplina a
alteração contratual; bem como, no plano material, que foi apanágio do recorte conceptual do
legislador a distinção entre transformação e alteração do contrato (vide os arts. 194.º, 1, 265.º,
3, 383.º, 2). Por outro lado, a transformação aparta-se substancialmente da fusão e cisão de
sociedades, já que por meio destas se opera uma alteração do substrato pessoal e/ou
patrimonial das sociedades em questão, enquanto na transformação apenas participa uma
sociedade, que convola a sua forma de organização jurídica, permanecendo inalterada, com os
mesmos sócios e com o mesmo património. Logo, a mera modificação da «forma ou
roupagem jurídica»87 (Rechtskleid) é correlato de um princípio reitor do instituto, o da
identidade. Tudo parece depor, destarte, no sentido da autonomização do instituto, animado
por este particular vetor normativo.
Este cunho identitário da transformação é assaz impressivo na substancial continuidade
económica da entidade, sendo que o “antes e depois” não belisca a empresa societária, não
havendo transmissão de património por via da sucessão universal, nem tão-pouco haverá, em
regra, movimento correlativo de extinção-constituição de uma entidade jurídica ex novo. Para
mais, mantém-se o conjunto de titulares de participações na entidade (o que não obsta à
previsão do direito de exoneração e transmissão da participação social, mesmo no hiato
temporal entre a aprovação da operação de transformação e respetivo registo).
O princípio da identidade matiza o processo de transformação pela não solução de
continuidade nos moldes descritos, o que, todavia, não implica a petrificação do universo
legal regulador, ou seja, do regime jurídico aplicável à nova tipologia societária escolhida. O
que nem se compreenderia, atentos os desígnios teleológicos que podem animar a
transformação. Deste modo, a continuidade ou identidade da sociedade transformada coexiste
com a descontinuidade do regime jurídico aplicável à nova forma adotada, existindo entre os
dois vetores um nexo de correlação conatural ao próprio instituto da transformação 88. Noutras
87 ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 130.º»..., p. 479.
88 Uma nota sobre o curso jurisprudencial desta matéria. Pese embora o tema não seja recorrente na
jurisprudência nacional, a maioria das poucas decisões que sobre ele versam tendem a centrar-se, quase
exclusivamente, na questão da manutenção da personalidade jurídica da sociedade transformada e,
consequentemente, na subsistência à operação das relações jurídicas na esfera de titularidade da sociedade em
causa. Neste sentido pode ler-se o Ac. TRL, de 9.7.2003: «A transformação de uma sociedade anónima numa
sociedade por quotas não interfere na personalidade jurídica, mantendo-se a mesma sociedade, embora com
outro estatuto jurídico (...)»; ainda o Ac. TRP, de 15.05.1997: «(...)Tendo a executada (sociedade comercial por
quotas) sido transformada em sociedade anónima, a sociedade transformada continua a manter a sua
28 Entre Caducidade e Destituição

palavras, as relações jurídicas da sociedade transformada com os seus sócios e terceiros


pautam-se por novas regras, que poderão ser divergentes das que ab initio as regulavam. 89
Outro aspeto que merece nosso destaque é o da génese volitiva da operação de
transformação. A competência deliberativa para tal vicissitude é inequívoco feudo de
disponibilidade no domínio da coletividade dos sócios. Tal afirmação é, de forma cristalina,
corroborada pelo teor literal do art. 133.º, conjugado com o disposto no art. 134.º. Todavia,
note-se que o impulso genético, o «motor de arranque» da tramitação inicial da operação
(bem como a condução de todo o processo inerente) cabe à administração que, nos termos do
art 132.º, deverá apresentar relatório justificativo da mesma. Este dado normativo não será
despiciendo, como veremos, na confeção de uma solução equilibrada de tutela do
(ex-)administrador não-sócio quitado das suas funções pelo trânsito de tipo social.
O art. 132.º tem por primordial escopo garantir que a deliberação de transformação seja
tomada de forma informada e esclarecida. Para tanto, o órgão de administração e
representação da sociedade deverá organizar um relatório justificativo da transformação,
acompanhado de balanço que retrate, de forma precisa, a situação patrimonial da sociedade90.
Ao contrário do previsto para a operação de fusão/cisão (arts. 98.º e 119.º)91, o conteúdo
personalidade jurídica, pelo que a sociedade anónima em que a primeira se transformou não tem a qualidade de
terceiro para deduzir embargos relativamente à penhora de bens efectuada.». Vide igualmente o Ac. TRP, de
23.2.1995 e Ac. TRL, de 4.7.1991.
89 Cabe ainda notar, a título histórico-dogmático, que a afirmação do princípio da identidade (com o seu
potencial efeito de simplificação da transformação) deve bastante, no direito alemão, à entrada em vigor da
UmwG de 1994 e consequente cristalização formal-legal da identitatswahrend Umwandlung, Este passo do
legislador alemão fez com que a proposta dogmática da sucessão universal – o mecanismo dogmático que
traduzia a transformação no panorâma jurídico-positivo anterior, fosse definitivamente ultrapassada. Vide LUTTER
(org.), Unwandlungsgesetz..., p. 112. Com efeito, a mudança de forma de sociedades comerciais no direito
alemão, a Formweschel, passou a ter em lugar heráldico o princípio da identidade, relevando essencialmente a
sua faceta simplificadora da operação. Em consequência, a Gesamtrechtsnachfolge (o mecanismo de sucessão
universal) tornou-se dispensável, salvo nos casos em que a reestruturação da sociedade implique a pluralidade de
sujeitos, como na fusão e cisão. Vide K. SCHMIDT, Gesellshafttsrecht, 4.ª Ed.(rev. e aum.), Carl Heymanns Verlag,
Köln, 2002, pp. 338-339. Para uma referência diacrónica ao período que antecede a UmwG de 1994, perpassado
pela hegemonia do recurso à via da sucessão patrimonial, com menção das alterações relevantes ao §§ 80 e ss.,
da GmbHG, e à sua revogação pela AktG de 1937, vide F. MENDES CORREIA, Transformação..., pp. 105-109.
90 O desígnio informador ou esclarecedor verte-se evidente na possibilidade de análise simultânea pelos sócios
(e órgão de fiscalização, caso exista) destes dois documentos – relatório e balanço –, melhor aferindo da
procedência das motivações económicas da operação invocadas e da eventual existência de impedimentos de
cariz patrimonial, como os consignados no art. 131.º, 1, a) e b). Tudo isto sem embargo da obrigação (132.º, 2)
de declaração pela administração, no relatório justificativo, da imutabilidade essencial da situação económico-
financeira nele descrita, ou da enumeração das alterações relevantes ocorridas, para desviar os perigos da
cristalização temporal (e formal) da imagem patrimonial da sociedade naquele instrumento de análise, o relatório
justificativo. E porque a transição entre tipos sociais é o principal efeito da operação a encetar, completa o acervo
informativo em apreço o projeto de contrato de sociedade pelo qual a sociedade transformada se regerá,
constituindo objeto individualizado de deliberação, nos termos do art. 134.º, c).
91 O relatório de transformação é instrumento de informação dos sócios. Já não o é para os credores. Repare-se
neste ponto, a dicotomia com o regime diverso do art. 101.º, 1, estatuindo que o projeto de cisão/fusão deve ser
igualmente disponibilizado para consulta dos credores e trabalhadores. Todavia, a questão da extensibilidade do
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 29

deste documento não está legalmente prefigurado. Contudo, atenta a sua natureza justificativa
ou legitimadora da operação, não poderá deixar de se referir a aspetos económicos
determinantes, e.g., razões comerciais, organização societária, redimensionamento,
internacionalização, bem como aos aspetos jurídicos inerentes à mudança de tipo, indicando a
nova forma jurídica, repercussões da mesma para os sócios, alterações de estrutura
organizatória e, quando tal for o caso, as consequências da mudança na responsabilidade da
sociedade perante terceiros (art. 139.º)92. Entende a doutrina que a refração patológica do
incumprimento desta disposição se congrega na anulabilidade da deliberação de
transformação tout court, resultante da violação do art. 58.º, 1, c), e 4, b), pela não
disponibilização aos sócios do relatório justificativo93.
Perante o regime exposto pode antever-se que o exercício da potestas de transformação

direito de consulta a credores e aos representantes dos trabalhadores (ou na sua ausência, aos próprios
trabalhadores) não se encerra ad nutum sem mácula de controvérsia. É mister da doutrina, vide RAÚL VENTURA,
Fusão..., p. 492, recorrer ao elemento literal na interpretação do art. 132.º, 3 e 4, e à substancial desnecessidade
de proteção de credores e trabalhadores (cujos interesses permanecem intocados pela transformação), para gizar
argumento desfavorável à possibilidade de consulta. Vejamos uma proposta ulterior de fundamentação. A nosso
ver, é legítimo fundar a desnecessidade de proteção de credores e trabalhadores na “imunidade” dos seus
interesses à transformação. A dinâmica-típica da transformação diverge materialmente daquela ínsita nas
operações de fusão e cisão (cfr. art. 101.º, 1), nas quais se modifica o substrato patrimonial e/ou a organização
dos recursos humanos. A favor da imunidade dos interesses dos credores, dir-se-á que ela resulta do regime legal
que enquadra a transformação, porquanto se mantém o património social responsável pela satisfação dos seus
direitos e o regime de responsabilidade pelas dívidas contraídas até ao registo da transformação, nos termos do
art. 139.º, 1. Acresce ainda o fator de estabilidade ou manutenção da cifra do capital social. Mesmo que esta seja
reduzida, tal ocorrerá em operação autónoma da de transformação (ainda que simultaneamente deliberada), na
qual deverão os credores fazer valer os seus interesses, de acordo com o regime próprio da redução do capital
social. Da mesma forma, a tutela dos credores obrigacionistas estará assegurada pelo regime constante do art.
138.º, sendo que as obrigações convertíveis em ações terão de ser, previamente à transformação, totalmente
reembolsadas ou convertidas, art. 131.º, 1, d). Diga-se, finalmente, que a não atribuição de direito de oposição
aos credores, ao contrário de outros ordenamentos jurídicos (vide nota seguinte), terá tido por base a inexistência,
em sede de transformação, de uma modificação do substrato patrimonial da sociedade.
92 O recurso ao direito comparado (rectius, à comparação de Direitos) permite coligir alguns dados importantes
em relação à extensão (subjetiva) do direito de oposição na transformação. No direito italiano (cfr. 2500-nonies.
Codice Civile), é previsto direito de oposição dos credores à transformação heterogénea (v.g., a transformação de
sociedades de pessoas, consórcios, cooperativas, associações ou fundações em sociedades de capitais, bem como
o binómio inverso). Já a solução do direito teutónico (cfr. § 204 UmwG) cifra-se na remissão para o regime
previsto em sede de fusão, para a proteção dos credores e dos titulares de direitos especiais que não sejam sócios,
(cfr., respetivamente, os §§ 23 e 24 da UmwG), que faculta aos credores a possibilidade de exigir a constituição
de garantias pela sociedade, quando demonstrem que a transformação faz perigar a satisfação dos seus créditos
ou impede a manutenção de direitos equivalentes a direitos especiais em cenário pós-transformação (repare-se na
similitude com o direito à manutenção de direitos equivalentes que o nosso art. 101.º-D prevê).
Finalmente, no direito espanhol, não obstante a possibilidade de oposição por parte de titulares não-sócios de
direitos especiais não mantidos depois da transformação (cfr. art. 16.º, 1 LMESM), deve entender-se que, aos
credores, não foi atribuído direito de oposição à operação (neste sentido, vide ELDA MARQUES, «Comentário ao art.
132.º», em COUTINHO DE ABREU (coord.), CSC em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 508.
93 Vide TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção legal...», p. 292, nota 38. Igualmente, ELDA MARQUES, «Comentário ao
art. 132.º»..., p. 504. Posições sufragadas ao arrepio de opinião expressa na jurisprudência [cfr. Ac. STJ de
24.4.1995, BMJ, n.º 446 (1995), p. 303 e ss., em defesa da anulabilidade da deliberação de transformação
tomada sem precedência de um relatório justificativo, com base no art. 58.º, 1, a)].
30 Entre Caducidade e Destituição

pelos sócios, acarretando uma rutura ou descontinuidade jurídica (já não de cariz económico
nem identitário ou pessoal-coletivo), reclamará do legislador a correspetiva previsão de
«freios e contra-pesos» na arte arquiteta da produção legiferante, no sentido da tutela da
posição de sócios, credores e terceiros. Indícios evidentes dessa orientação estrutural não
tardam a despontar, para o intérprete, do molde teleológico de alguns preceitos. Deixámos
aqui um esboço hermenêutico-impressivo.
Orientado para a proteção dos sócios, não se pode deixar de mencionar o art. 137.º,
regulando o modo de exercício do direito de exoneração do sócio discordante da operação de
transformação, logo, pretendendo quitar-se do grémio societário que se submeterá ao trânsito
normativo entre roupagens jurídico-formais, ou seja, a mudança de tipo. Com a alteração
legislativa do DL n.º 76-A/2006, de 29 de março, o art 137.º deixou de ser mais um caso de
atribuição legal do direito de exoneração94 aos sócios que não tivessem votado
favoravelmente a deliberação de transformação 95. Na sua redação atual, o preceito postula
como conditio do gozo de direito de exoneração, por ocasião da transformação, a existência
de uma atribuição legal ou contratual habilitante nesse sentido. Destila-se notório o desígnio
da harmonização com o regime do art. 105.º, relativo à fusão, também aplicável à cisão, e que
requer uma norma legal ou estatutária permissiva da exoneração 96. Percorrendo o CSC, não se
vislumbra específica atribuição legal de um direito de exoneração ao sócio discordante em
sede de transformação. Eliminada uma das fontes possíveis (salvo legislação extravagante que
possa vir a consignar tal atribuição), resta concluir que o direito de exoneração deverá ser

94 Num elenco que incluía os arts. 3.º, 5.º, 2.ª parte, 45.º, 1, 161.º, 5, 185.º, 240.º e o recente 116.º, 4.
95 Considera-se terem votado desfavoravelmente à transformação, para além dos votantes contra a deliberação,
tanto os sócios ausentes como os que se abstiveram. Neste sentido, ELDA MARQUES/DUARTE FONSECA, «Comentário
ao art. 137.º», em COUTINHO DE ABREU (coord.), CSC em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 532 e
TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção legal...», p. 301, nota 60. Parece-nos que a posição sufragada pelos Autores se
abriga sobretudo na extensão interpretativa que a anterior redação do preceito, com a locução «os sócios que não
tenham votado favoravelmente» permitia. Com a alteração introduzida, referindo-se o atual art. 137.º aos «sócios
que tenham votado contra a deliberação de transformação», entendemos ser de excluir do âmbito de aplicação do
preceitos os sócios que se abstiveram ou estiveram ausentes, porquanto o vínculo interpretativo da
correspondência literal mínima que permitia a extensão lógica quebrou-se com a nova redação (art. 9.º, 2 CC).
Por outro lado, o alargamento interpretativo da hipótese normativa, atribuindo ao sócio ausente ou abstencionista
a faculdade de exoneração, é contrária ao princípio hermenêutico de favor à transformação (que infra, em texto,
afirmaremos decantar-se do regime vigente). A antítese entre ambos quantifica-se pela direta proporcionalidade
entre o número de sócios com a faculdade de exoneração e os virtuais custos ou ónus da transformação, pois a
sociedade deve adquirir ou fazer adquirir a participação do sócio exonerando, também podendo, segundo
alguma doutrina, amortizá-la, se tal faculdade tiver aval legal ou contratual que assegure o seu exercício à
sociedade. ELDA MARQUES/DUARTE FONSECA, últ. ob. cit., p. 535.
96 Neste sentido, COUTINHO DE ABREU, Curso... (2009), pp. 418-419. Todavia, posição de configuração antagónica
constrói ARMANDO M. TRIUNFANTE, Código das Sociedades Comerciais - Anotado, Coimbra Editora, Coimbra,
2007, pp. 139-140; defendendo que, independentemente de uma atribuição estatutária, o art. 137.º faculta ao
sócio o exercício da exoneração.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 31

concedido por estipulação estatutária, ou seja, previsto em cláusula do contrato de sociedade.


É clara, neste ponto, a discrepância com o anterior regime que, em termos bastante
amplos, concedia o direito de exoneração em sede de transformação, como regime legal
supletivo97. O cotejo evolutivo das redações adotadas planta no intérprete a certeza de que
povoaram a mens legislatoris refrações de um princípio de favor à transformação, porquanto o
legislador-reformador preferiu frustrar as eventuais expetativas dos credores na permanência
do regime jurídico desenhado pelo tipo social originariamente adotado pela sociedade (e na
sua ulterior aplicação às situações jurídicas de que fossem titulares), ao invés de obstaculizar
a operação, tornando-a potencialmente mais custosa ou onerosa por força de supletiva (e
ampla) atribuição legal da faculdade de exoneração (cfr. supra nota 95).
No mesmo trilho principiológico de tutela dos sócios em ambiente normativo de
transformação, o art. 131.º, 1, c), prevê direito de oposição dos sócios titulares de direitos
especiais não mantidos após a transformação. Aprovada a deliberação de transformação, na
ausência de qualquer impedimento, e cumpridos os requisitos dos arts. 132.º, 133.º, 1 e 134.º,
os sócios titulares de direitos especiais que não subsistam à transformação poderão deduzir
oposição, nos termos dos n.os 2 e 3 do art. 131.º. Uma nuance interessante: não se exige aqui,
ao contrário da fusão e cisão – art. 103.º, 2, b) –, o consentimento do sócio à supressão do seu
direito especial, aliás como decorreria do princípio geral da intangibilidade dos direitos
especiais contra a vontade do respetivo titular (art. 24.º, 5 e 6), mas tão-somente que este não
se oponha à operação98.
Os direitos especiais existentes na sociedade a transformar devem ser mantidos, e.g., o
direito especial a quinhoar nos lucros ou no saldo de liquidação em razão superior à da
proporcionalidade (cfr. arts. 22.º e 156.º e, em especial, para os titulares de certas categorias
de ações, art. 302.º, 1). Contudo, alguns tipos de direitos especiais sucumbem
necessariamente à transformação, em função da sua incompatibilidade com o tipo adotado.
Será o exemplo evidente dos direitos vertidos nos arts. 83.º, 1, 257.º, 3 e 250.º, 2, quando
existentes numa SQ e o tipo social de destino seja a SA. Verificando-se a impossibilidade de
manutenção, os titulares do direito especial poderão deduzir oposição99.

97 Como nota FRANCISCO MENDES CORREIA, «Anotação ao art. 137.º», em MENEZES CORDEIRO, (coord.), Código das
Sociedades Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2011, p. 518.
98 DIOGO COSTA GONÇALVES, «Direitos especiais e o Direito de Exoneração em sede de fusão, cisão e
transformação de sociedades comerciais», em OD, n.º 138.º, II, 2006, pp. 333-334.
99 A dedução de oposição à transformação é causa de ineficácia da respetiva deliberação. Nos termos dos n. os 2 e
3, art. 131.º, a oposição é deduzida por escrito no prazo de um ou dois meses a contar da tríplice deliberação de
transformação, consoante se trate de oposição individual ou colegial-maioritária pelos acionistas com ações
32 Entre Caducidade e Destituição

Clama a tarefa de densificação material do preceito pelo apuramento de um critério


aferidor da manutenção (ou não) do direito especial no cenário societário pós-transformação.
Bifurca a doutrina trilhando caminhos diversos através de dois critérios. Um deles
basear-se-á na «equivalência material»100, segundo a qual o direito pode não manter a sua
estrutura jurídico-formal, mas ainda assim assegurar eficazmente, ou com o mesmo grau de
intensidade, determinado interesse objetivamente considerado do sócio-titular. Na margem
oposta101, propugna-se que o direito de oposição caiba aos sócios titulares de direitos especiais
que não possam ser reproduzidos na sociedade transformada e não apenas quando não lhe
sejam atribuídos direitos equivalentes (até pela dificuldade de definir o que seja um direito
equivalente na excessiva amplitude do critério anterior). Como consequência do acolhimento
deste critério tem-se o óbvio aumento do número de casos em que o direito de oposição será
operante. Admitindo o critério da «reprodução», mesmo perante vantagens sucedâneas ou
medidas substitutivas (porventura suficientes para afirmar a equivalência) os titulares
poderiam opor-se à transformação com fundamento na não subsistência dos seus direitos
especiais.
Chamamos à colação esta clivagem doutrinal para mostrar, novamente, a mais-valia da
afirmação de um princípio hermenêutico de favor à transformação. Pagando tributo exegético
a tal princípio, encontraríamos, no critério da equivalência material ou funcional, o suficiente
grau de tutela do núcleo essencial dos direitos especiais na transformação, repelindo-se, por
conseguinte, a excessiva amplitude de «brechas» de oposição à transformação que o critério
mais exigente, da reprodução integral dos direitos especiais na sociedade transformada,
inculca [não se obnubile que basta singular oposição de sócio titular de direito especial não

privilegiadas. O sócio que deduza a oposição, nos termos anteriores, pode fazê-lo na própria ata da assembleia de
sócios que aprove a transformação ou durante um mês. Se aquele votar favoravelmente, pelo menos a
deliberação das als. b) e c) do art. 134.º, a oposição não terá efeito porque, ainda que não se considerasse o
consentimento ínsito ao voto favorável, a conduta padeceria de abuso de direito, na «figura sintomática» do
venire. Neste sentido, ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 131.º»..., p. 502 e TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção
legal...», p. 290. Em diametral oposição manifesta-se DIOGO COSTA GONÇALVES, ob. cit., p. 335, considerando que a
tese apresentada está impregnada de uma conceção démodé da proibição de venire contra factum proprium,
porque fundada na inobservância de uma atuação intrinsecamente pautada pela veracidade e coerência. A matriz
dogmática do venire deve ser a da tutela da confiança, só operando a proibição quando se verifique existir uma
situação de confiança justificada e digna de tutela. Embora seja real a contradição de comportamento, a ausência
de uma confiança tutelável, permite ao Autor, na situação em apreço, recusar a aplicação da figura. Vide, em
sentido dogmático consonante, embora noutras paragens normativas, A. MENEZES CORDEIRO./M. CARNEIRO DA
FRADA, «Da inadmissibilidade da recusa de ratificação por venire contra factum proprium» - Anotação ao
Acórdão da Relação do Porto de 18 de Novembro de 1993, em O Direito, Ano 126.º, III-IV, 1994, pp. 677-715.
100 DIOGO COSTA GONÇALVES, ob. cit., pp. 321-324 e 334.
101 Posição sufragada por ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 131.º».., pp. 500-501.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 33

mantido na sociedade transformada para que bloquear a operação, por força do impedimentO
102
plasmado].
Trata-se, tão-somente, de identificar uma matriz hermenêutica derivada do molde
teleológico que forjou o instituto e aplicá-la, de forma holística (assim agradece a unidade
sistemático-valorativa) na tarefa de interpretação-complementação de cada preceito edificante
do regime da transformação. Tudo isto sem prejuízo da coabitação normativa daquele
princípio de favor à operação com a necessidade (em certas situações, impreterível) de tutela
das posições jurídicas dos sócios. A comprová-lo, além dos enunciados arts. 137.º e 131.º, 1,
c), dispõem igualmente o art. 136.º, salvaguardando a manutenção das participações sociais, e
o art. 139.º, 2, prevendo a necessidade de consentimento para a assunção de responsabilidade
ilimitada e, nesse caso, a sua delimitação às dívidas contraídas pela sociedade após a
transformação.
O art. 136.º, albergando um princípio de tutela da posição relativa 103 do sócio, obsta a
que, por efeito da atribuição de participações de nova espécie, se altere o montante nominal
global da participação104 de cada sócio no capital social e a proporção de cada participação
relativamente ao capital, salvo acordo dos sócios. Tal necessidade de tutela emerge do
processo de transformação, na medida em que este coenvolve a substituição 105 da espécie de
102 Porventura se existisse autorização contratual, nos termos do art. 137.º, atribuindo direito de exoneração ao
sócio titular de direito especial, fosse possível proceder à exoneração, reflexamente removendo o impedimento.
Ainda assim, para além da situação-tipo desenhada focar-se na peculiaridade, o sócio a que foi contratualmente
atribuída a prerrogativa da exoneração poderia sempre exigir a manutenção do seu direito especial, descartando o
exercício do seu direito de exoneração, não se quitando do grémio societário. Bastava que no prazo previsto no
art. 137.º, 1, ex vi art 131.º, 2, o sócio discordante (que votara contra a deliberação de transformação) exercesse o
direito de oposição, ao invés de exigir a sua exoneração. Com efeito, tal obstaculizaria definitivamente a
transformação pela consolidação do impedimento previsto no art. 131.º, 1, c). Questão diversa, mas igualmente
interessante, é a da possibilidade do exercício abusivo deste direito de oposição por parte do titular de direito
especial, mormente quando se propugne procedente o (maleável) critério da equivalência material e quando a
transformação se revele absolutamente necessária para que a sociedade floresça comercialmente ou se mantenha
in bonis. Os traços típicos do abuso de minoria assomam. Problemática é a determinação da sanção para esse
tipo de abuso. Em alternativa à tutela indemnizatória como correlato de responsabilização civil, outras formas de
reação mais enérgicas como a exclusão dos sócios minoritários, com base no art. 1003.º, a), CC, ex vi art. 3.º,
CCom., seriam equacionáveis. Atenta a economia deste relatório, fica apenas aflorado o bloco problemático.
Vide J. M. COUTINHO DE ABREU, Do abuso..., pp. 184-185, com outras pistas de reflexão.
103 Visa-se permitir ao sócio a manutenção do seu status socii, evitando que a transformação, salvo
consentimento dos interessados, perturbe o equilíbrio interior do grémio societário desenhado pelo mapa das
diferentes «quotas de participação» (Beteiligungsquote), que cada sócio detém. Vide TARSO DOMINGUES,
Variações..., pp. 462-463, abordando o conceito acerca do desenho teleológico do direito legal de preferência dos
sócios em sede de aumento de capital por novas entradas em dinheiro.
104 Cfr. o DL n.º 49/2010, de 19 de maio. Ressalva-se a consagração legal das ações sem valor nominal,
devendo atender-se, neste caso, ao valor de emissão. Vide P. TARSO DOMINGUES, “As acções sem valor nominal”,
DSR, ano II, vol. IV, 2010, pp. 181-213.
105 Mas não necessariamente. No binómio SENC-SC, mantendo-se a participação na espécie de parte social, ex
vi arts. 176.º, 2, 465.º, 3 e 474.º, ou na transformação de uma SCA-SA, quanto aos sócios comanditários, ex vi
arts. 271.º e 465.º, 3.
34 Entre Caducidade e Destituição

participações sociais. As antigas participações são extintas, sendo as novas participações,


correspondentes ao tipo de destino, atribuídas como sucedâneas. Quando se prescreve a
conservação do valor nominal da participação originária, visa-se proteger o valor nominal
global da participação social de cada sócio, já não cristalizar o valor nominal singular de cada
participação, imunizando-o à transformação. Aliás, o mesmo corrobora o n.º 3, permitindo
que, desde que respeitados os mínimos legais106, os sócios alterem o valor nominal da unidade
de participação na sociedade transformada. O que não pode ser modificado, salvo
consentimento, é o valor nominal integral/total de participação do sócio107.
Também aqui desponta um afloramento daquele princípio de favor enunciado: para
além do interesse da intangibilidade da participação social estar sob a alçada da
disponibilidade dos sócios, bastou-se o legislador com uma transição entre tipos que
salvaguardasse uma equivalência material ou funcional de participações sociais, porquanto
exige apenas que permaneça a Beteiligungsquote ou «quota de participação» que cada sócio
detém no capital social e já não a manutenção de um qualquer valor nominalmente cifrado de
participação.
Abordemos outro aspetos normativo decantado do regime posto que emerge revestido
de curial importância para a nossa investigação. Foi já apontado o cunho identitário da
operação, cristalizado de forma heráldica no princípio da identidade (traduzido na imunização
do referencial de identidade da sociedade-pessoa-coletiva no processo), bem como se fez
alusão à substancial continuidade patrimonial e económica da sociedade, seja pela
imutabilidade da personalidade coletiva ou pela sucessão automática e global das relações
jurídicas (acaso se considere válida e atuante a modalidade de transformação extintiva-
novatória). Urge identificar um outro vetor normativo, que convencionamos denominar de
lastro holográfico do tipo inicial no tipo de destino.
Em nosso entender há um indubitável acervo de relações, situações e expetativas
jurídicas ou de facto que se erigiram moldadas pela difusão normativo-legal do tipo social
inicialmente escolhido pela sociedade, aquando da sua constituição, que a transformação,

106 Segundo o art. 219.º, 3, €1 para a quota, e art. 276.º/2, € 0.01 para a ação.
107 Por efeito lógico, a substituição da espécie de participação social com a conservação do respetivo montante
nominal total/global garante a preservação da “quota de participação” de cada sócio, isto é, a proporção de
participação de cada sócio relativamente ao capital. Lembramos que o capital social nominalmente cifrado não é
beliscado pela aprovação da transformação, o que, aliás, se deduz da manutenção do valor global da participação
de cada sócio, por regra. Se os sócios concordarem na sua alteração, a asserção mantém-se, porquanto o aumento
de uma participação nominal global de um sócio implica a diminuição das restantes, em jogo de ajuste intra
societário de pesos e contrapesos que não bule com a cifra nominalmente plasmada do capital social.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 35

enquanto processo de transição entre tipos ou mudança formal da roupagem jurídica da


sociedade, não afeta, ao menos, com a vis liminar da extinção. Pelo contrário, o regime da
operação cria bolsas de permanência ou imunização de certas relações jurídicas ao processo
de transformação que, no limite, autorizam a desfiguração normativa do tipo de destino ou do
tipo adotado por força do processo. Deixemos a infusão exemplificativa colorir a nossa
asserção.
Animado pelo norte teleológico da tutela dos credores, o art. 139.º, 1, prevê a eficácia
ultra vires, ou a sobrevigência, do regime de responsabilidade ilimitada dos sócios que a
deixem de ter, em relação às dívidas contraídas pela sociedade antes da transformação. Da
mesma forma, o art. 138.º consigna a sobrevigência do regime aplicável aos credores
obrigacionistas quando o novo tipo não comporte legalmente a sua existência. O âmbito de
aplicação do art. 139.º espraia-se pela responsabilidade pessoal e ilimitada dos sócios na
transformação de uma SENC, SC e SCA (em relação aos sócios comanditados) e de SQ (em
que um ou mais sócios respondam direta ou subsidiariamente perante os credores sociais, nos
termos do art. 198.º108), em SA e/ou SQ. Está em causa no seu esquema normativo subjacente
evitar que os sócios, por via da transformação, restrinjam a responsabilidade ilimitada
anteriormente vigente, aplicável às relações jurídicas já constituídas, o que equivaleria a
admitir a alteração unilateral o regime de responsabilidade109 aplicável aos negócios pela
sociedade celebrados. Foi tarefa do legislador o sopeso dos interesses dos sócios na
reorganização societária, promovida pela transformação, com a expetativa legítima dos
credores em não verem diminuídas as garantias que envolviam o crédito concedido à
sociedade. Consequentemente, estabeleceu uma regra de ultra-atividade da responsabilidade
ilimitada dos sócios, que se manterá aplicável às relações jurídicas previamente constituídas
em relação à transformação. Aliás, acrescenta a doutrina 110 que o art. 139.º será afloramento
(não o único, cfr., igualmente, os arts. 138.º e 140.º) de um princípio de intangibilidade de
direitos adquiridos por terceiros no processo de transformação.

108 Segundo o qual o sócio assume responsabilidade pessoal, mas não ilimitada, pelas dívidas sociais.
109 Será uma objeção liminarmente improcedente dizer-se que diretamente responsável perante os credores é
apenas a sociedade, pretendendo provar a desnecessidade do regime de ultra-atividade. Os sócios que tenham,
nos termos do preceituado, «responsabilidade pessoal e ilimitada» são subsidiária e solidariamente responsáveis
perante os credores sociais, pelo que o regime de créditos, supra referido em texto, abrange unitariamente a
responsabilidade da sociedade e dos sócios. A sociedade é a mesma pessoa jurídica, no pós-transformação, e a
sua responsabilidade conserva-se, respondendo pelas dívidas sociais com o seu património. Difere, isso sim, o
regime global das dívidas sociais, pois, para além da sociedade, serão outras pessoas (os visados pelo art 139.º,
1) subsidiariamente responsáveis.
110 H. DUARTE FONSECA/ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 139.º»..., p. 544. V., infra, nota 113.
36 Entre Caducidade e Destituição

Veja-se como a linha transversal do status socii pode, em cenário pós-transformação,


quando adotada a forma jurídica da SA (cogite-se um binómio de transformação SENC-SA),
ser distorcida pela vizinhança entre acionistas de responsabilidade limitada ao valor da sua
entrada (uma das notas distintivas do tipo anónimo) e acionistas de responsabilidade
ilimitada. Ou, ainda, pela existência, em aparente oxímoro legal-normativo111, de credores
obrigacionistas numa SENC112, introduzindo uma nota de cariz capitalístico, prima facie,
espúria ao tipo paradigmático da sociedade de pessoas, mas aqui autorizada pelo mapa
normativo que preside ao regime protetor da transformação e dos correspetivos interesses de
terceiros credores. Poder-se-ia dizer que tal ultra-atividade não distorce, pela incoerência e
quebra de unidade, a fisionomia do tipo social de destino, porquanto nem seria inédita a
coexistência de diversas modalidades de responsabilidade numa mesma sociedade, vide o
caso das SCS, onde coabitam sócios comanditados e comanditários, e da SQ em que um ou
mais sócios assumiram responsabilidade direta e subsidiária, nos termos do art. 198.º113.
Parece-nos insofismável que, como produto da transformação, se pode gerar uma
distorção na linha transversal do status socii que caracteriza o grémio societário. O argumento
esgrimido tende a justificar a inexistência de uma distorção pelo mero acaso da sua casuística
previsão noutras situações-tipo absorvidas pela hipótese normativa de certos preceitos, por
sua vez, marcados pelo matiz da especialidade ou excecionalidade. Tal redundaria no non-
sense discursivo da negação de um atributo do objeto pela sua simples afirmação noutros
objetos. Não é pela previsão de um tipo misto ou híbrido114 no que concerne à SCS, ou de um
modelo disponível e especial de responsabilidade adjacente do sócio para a SQ (art. 198.º),

111 A configuração tipológica da SENC autoriza a inexistência de cifra de capital social, ex vi art. 9.º, 1 f), in
fine, quando todos os sócios contribuam em indústria. A este propósito relembramos que as múltiplas
combinações de tipos que os binómios de transformação constroem podem revelar casos inusitados. Vejamos um
exemplo. Defendem ELDA MARQUES/DUARTE FONSECA, «Comentário ao art. 136.º», em COUTINHO DE ABREU (coord.),
Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 528, nota 52, que na
transformação da sociedade não ocorrem “entradas”, mas tão-somente a substituição ou conversão de
participações sociais correspondentes ao novo tipo social adotado. Imagine-se, todavia, uma transformação em
que o tipo de origem é uma SENC constituída apenas por sócios de indústria, qua tale desprovida de capital
social – cfr. arts. 9.º, 1, f), 178.º, 1 – e o tipo de destino será uma SQ ou SA. In casu, a conversão/substituição
das participações sociais não pode deixar de ter por efeito a exigência (para todos os sócios) de
contribuições/entradas em dinheiro ou espécie [que constarão do projeto de contrato a aprovar nos termos do art.
134.º, c)], atendendo à fisionomia típica do tipo de destino, que não comporta entradas em indústria. Logo, neste
caso excecional, por força da transformação visada, os sócios de indústria deixarão de o ser.
112 Cfr. arts. 348.º a 372.º-B e o DL n.º 160/87, de 3 de abril, no seu art. único, norma permissiva da emissão de
obrigações nas SQ, remetendo, em todo quanto aplicável, para o regime dos arts 348.º e ss., relativos à SA.
113 Neste sentido, H. DUARTE FONSECA/ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 139.º», em COUTINHO DE ABREU,
(coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011, p. 545.
114 PEDRO MAIA, «Tipos de sociedades comerciais», em COUTINHO DE ABREU (coord.), Estudos de Direito das
Sociedades, 10.ª Ed., Almedina, Coimbra, 2010, p. 15 e ss.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 37

que a miscigenação de características tipológicas seja normal (ou dado normativo adquirido).
Assim, há, com efeito, distorção do paradigma tipológico (mormente no que concerne à
ultra-atividade do regime de responsabilidade ilimitada no tipo anónimo) e, note-se, não
porque essa fosse uma consequência natural ou necessária da operação, mas porque o
legislador-arquiteto elegeu blindar o regime de determinados créditos na transição de tipos.
Mais um indício do lastro holográfico normativo de que falávamos. «Paira» sobre o
novo tipo, o output do processo de transformação, uma umbilical conexão ao tipo anterior que
não se basta com certa afirmação da historicidade identitária da sociedade-pessoa-coletiva ou
com a sua substancial continuidade patrimonial económica no pré e pós-transformação. A
infusão teleológica do tipo de origem densifica-se evidentemente operante em casos como o
identificado quanto ao art. 139.º. A proteção do acervo de relações, situações e expetativas
jurídicas ou não jurídicas que eclodiram e se cimentaram ao abrigo do manto normativo do
tipo de origem é de tal forma vincada que, em casos como o abordado, transitam intocadas ou
inalteradas, para o tipo de destino, constelações de relações jurídicas previamente
estabelecidas, que, no limite, obrigam a uma acomodação normativa da fisionomia legal do
tipo eleito, quando este se verte na concreta configuração da esfera jurídico-estrutural de certa
sociedade transformada.
Relembremos o que dissemos supra sobre a perspetiva estrutural-dinâmica de análise
que adotaríamos como instrumento analítico. Com um impressivo traço geral, pode dizer-se
que a literatura jurídica portuguesa sobre transformação societária é perpassada, sem prejuízo
da afirmação do princípio da identidade ou da continuidade, pela heurística metódica da
justaposição estática entre o antes e o depois da transformação, que obriga a trilhar caminhos
mais ou menos complexos de ligação entre momentos. Nem podia ser de outro modo, porque
essa é a perspetiva conatural de pré-compreensão significante do instituto e, por conseguinte,
a sua exclamativa cor dogmática. Todavia, quando o objeto analítico, ao invés de se centrar na
transformação a se, foca certas relações jurídicas que gravitam em torno da sociedade a
transformar, como seja relação complexa de administração estabelecida, revelar-se-á mais-
valia complementar o recurso a uma leitura dinâmica que entroniza o intermezzo jurídico-
estrutural dessa teia de relações em transição, denunciando os efeitos que a operação matricial
nelas incita, ao invés de descrever a sua configuração tanto à partida como à chegada da
viagem de mutação jurídico-formal da sociedade.115
115 Vide nota 195, ponto 1, cap. IV, sobre a afirmação de um status via como régua dogmática que absorve a
mutabilidade própria das situações jurídicas, ínsitas no status socii, e induzida pela vicissitude da transformação.
38 Entre Caducidade e Destituição

No que concerne ao art 138.º, o xadrez de interesses reproduz-se paralelamente ao já


exposto, apenas divergindo na tutela específica de um certo regime de créditos, o dos credores
obrigacionistas. Dita a regulação imanente ao normativo a manutenção dos direitos dos
credores obrigacionistas em cenário pós-transformação da sociedade emitente, ainda que o
tipo de destino não suporte a possibilidade de emissão de obrigações. Há uma especial ratio
de proteção destes credores, ressaltada no cotejo com os credores comuns, que contenderá
com a atração do público investidor ou aforrador, que a emissão de obrigações sociedade
suscita, repetindo-se a já aludida ultra-atividade ou «sobrevigência» de um regime
anteriormente aplicável. Sublinhamos a discrepância: enquanto os credores comuns terão de
se adaptar à mutação do regime jurídico societário (embora com a tutela dispensada pelo art.
139.º), os credores obrigacionistas conservam o seu status quo jurídico, gozando da tutela de
normas transportadas para o tipo de destino por força do lastro holográfico normativo que
acompanha a sociedade transformada no pós-operação.
Ilustra igualmente a ideia de uma linha de continuum jurídico-estrutural das relações
jurídicas constituídas previamente à transformação, o disposto no art. 140.º, para a tutela de
(outros) terceiros, no sentido da subsistência dos direitos reais de gozo ou garantia que
incidiam sobre as participações em momento anterior à sua transformação em novas espécies
de participações. A transformação coenvolve, em princípio, a substituição da espécie de
participação social, nos termos do art. 136.º, sendo um dos seus efeitos a redistribuição pelos
sócios de novas participações sociais, de diferente espécie. Sem a intervenção do legislador,
reafirmando, também neste caso, uma densificação do lastro normativo anterior à
transformação, dar-se-ia a extinção dos direitos reais de gozo ou de garantia existentes à data
da operação, pois estes quedar-se-iam impossíveis sem o seu objeto (a anterior participação
social, própria do tipo de origem). Pelo contrário, obviou-se a tal situação pela previsão de um
sistema que se assemelha ao da sub-rogação real116, tendo por ressonância teorética a
alteração formal do objeto117 sobre o qual incidiam os direitos reais de gozo ou garantia de
que terceiros fossem titulares em data anterior à da transformação118. Aliás, este fenómeno
116 MENEZES CORDEIRO, Manual...,vol. I, p. 973, a propósito, referindo-se a «um esquema de sub-rogação real».
117 RAÚL VENTURA, Fusão..., p. 546.
118 A data da transformação referida em texto como baliza temporal para a determinação dos seus efeitos
externos não se pode reconduzir, sem mais, ao momento do registo da operação. Há quem avente que os direitos
reais de gozo e garantia ficam blindados desde a data de deliberação de transformação, não relevando o
momento do seu registo. Subjaz a este tese a invocação do carácter não constitutivo do registo de transformação,
em razão da mera alteração formal-jurídica, acompanhada da manutenção da identidade coletiva da sociedade
(salvo o caso da transformação extintiva da sociedade civil pura, em que o registo é necessariamente atributivo
de personalidade jurídica), vide TAVEIRA DA FONSECA, «A protecção...», pp. 296-297. Consideramos bem mais
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 39

legal de incidência imutável ou incólume da posição jurídico-real119 com a alteração formal do


seu objeto, em paralelismo normativo com o mecanismo da sub-rogação real, comunga da
mesma ratio da proteção legal supra aflorada, a propósito dos art. 138.º e 139.º, valendo
também aqui as considerações expendidas acerca do lastro normativo pré-transformação que
o legislador enxerta na sociedade formalmente reconfigurada pela operação.

3. Síntese Conclusiva

Impõe-se uma breve recapitulação das informações trabalhadas sobre o regime da


transformação de sociedades, sob a luz orientadora do problema singular
pormenorizadamente traçado em considerações introdutórias. Além dos aspetos
marcadamente gerais ou descritivos do instituto e da sua disciplina legal, que neste relatório
paulatinamente se foram depositando como o húmus propedêutico da elaboração científico-
equilibrada a tese que centraliza tanto os efeitos internos como externos da transformação no momento do
registo da operação, pois para além de evitar assimetrias temporais na produção de efeitos da operação, vide
RAÚL VENTURA, Fusão..., pp. 509-510, permite ainda acautelar a possibilidade de, depois de aprovada a
transformação, ser deduzida oposição pelos titulares de direitos especiais, cfr. art. 131.º, 1, c), 2 e 3. O que torna
a tríplice deliberação total e absolutamente ineficaz, impedindo igualmente o seu registo. Por outro lado, a
satisfação dos direitos de sócios exonerados que afete o capital gera um impedimento ao registo de
transformação. Assim, havendo um controlo de legalidade da transformação, relocalizado pela reforma de 2006,
na alçada do conservador, não se deve entender plausível que os seus efeitos internos principiem logo após a sua
aprovação em deliberação.
119 O emprego do termo posições jurídico-reais leva implícita uma construção interpretativa extensiva da
hipótese normativa do art 140.º. Essa expansão interpretativa merece-nos alguns reparos. Vejamos. O art. 140.º
determina claramente quais os direitos que incidirão sobre as novas participações em ambiente pós-
transformação societária. Serão direitos reais de gozo e de garantia. Discute-se a maleabilidade da previsão
normativa no sentido da de outros direitos reais de gozo ou de garantia incidentes sobre participações sociais,
além do penhor e usufruto, arrolando, a este propósito o penhor financeiro e a alienação fiduciária em garantia
(vide H. DUARTE FONSECA/ELDA MARQUES, «Comentário ao art. 140.º», em COUTINHO DE ABREU (coord.), CSC em
Comentário, vol. II, Almedina, Coimbra, 2011»..., p. 551, nota 17). Se em relação à proposta de interpretação
extensiva do preceito, abrangendo o penhor financeiro (regulado pelo DL n.º 105/2004, de 8 de maio), não se
vislumbram escolhos impeditivos, porquanto o penhor financeiro é estruturalmente uma direito real de garantia,
quanto à alienação fiduciária em garantia, é necessário ulterior recorte conceptual da figura.
Melhor se andaria apartando a alienação fiduciária em garantia de uma definição excessivamente lata de
direito real de garantia, para, ao invés, aproximá-la da figura do recurso à titularidade de um direito com função
de garantia (vide L. M. PESTANA DE VASCONCELOS, Direito das Garantias, Almedina, Coimbra, 2010, pp. 505-535).
Pela alienação fiduciária em garantia não se cria um direito real de garantia por compressão matricial do direito
de propriedade. Verifica-se, ao invés, a transmissão pelo devedor/fiduciante/garante do direito de propriedade
(mas não só, v.g., a cessão de créditos em garantia) em favor do fiduciário/garantido/credor, com a função de
assegurar/garantir uma obrigação, estando tal sujeito adstrito à retransmissão do objeto da garantia, após o
cumprimento da mesma. São figuras irmãs no plano funcional, mas estruturalmente bem diversas. Em
consequência, em vista de tal contraposição estrutural, preclude-se o recurso à interpretação extensiva como
meio para albergar na ratio do preceito analisado a alienação fiduciária em garantia, na medida em que esta não
configura um verdadeiro direito real de garantia (desvanecendo a correspondência literal mínima, art. 9.º, 2 CC).
Assemelha-se-nos aceitável, ante a lacuna descoberta, centrar a discussão na eventual similitude analógica entre
a alienação fiduciária em garantia e os direitos reais de garantia, mormente em atenção da sua polaridade
funcional perfeitamente coincidente. Afirmando-se positivamente tal comunhão teleológico-funcional, é de
admitir a aplicação analógica do preceituado à alienação fiduciária em garantia (art. 10.º, 1 e 2 do CC), em
homenagem à coerência sistemático-valorativa que a integração, tal como a interpretação, deve observar.
40 Entre Caducidade e Destituição

normativa proposta, cabe agora enunciar os píncaros lógicos do que fica exposto, ilustrando o
arrimo teórico da nossa ulterior indagação. Assim, damos por assente que:
I. O princípio da identidade consubstancia o veio normativo que perpassa todo o
instituto da transformação de sociedades comerciais ao permitir a impermeabilização da
identidade jurídica da sociedade transformada ao próprio processo de transformação.
II. Na sua face operativa, o princípio configura-se como instrumento técnico-jurídico
simplificador que descarta a necessidade de justaposição diacrónica de mecanismos de
liquidação e nova constituição de sociedades, deflectindo a defesa de formas de estruturação
bifásica do instituto (de que a modalidade extintiva-novatória de transformação é já resquício
anacrónico e espúrio à configuração do instituto120).
III. A matriz operativa da transformação espelha-se na adoção de um novo regime
jurídico, estruturalmente dimanado do tipo social eleito, existindo uma linha de continuum
identitário-essencial no trânsito entre tipos ou sub-tipos, por referência ao pólo normativo
sinalizador da personalidade coletiva existente. Comutam-se as normas que disciplinavam a
sociedade enquanto organização de atuação e enquanto centro de responsabilidade,
preservando-se, todavia, incólume o seu referencial identitário de aplicação e produção
jurídico-normativo.121
IV. A génese volitiva da operação está exclusivamente atribuída ao órgão de
administração, por força do art. 132.º. No conspecto da tramitação inicial do procedimento de
transformação jaz, como catalisador primordial, a organização e apresentação, pelo órgão de
administração e representação da sociedade, de um relatório justificativo da operação que se
intenta empreender, acompanhado de um balanço que retrate, de forma precisa, a situação
patrimonial da sociedade.
V. A análise tutelar bipartida do regime da transformação, pelas lunetas dos sócios e dos
terceiros (com destaque para os credores sociais), permitiu-nos afiançar a existência de um
lastro holográfico do tipo inicial no tipo de destino em resultado do processo de
transformação.
VI. O conceito operativo gizado reporta-se a um conjunto de relações, situações e
expetativas jurídicas ou de facto que «pairam» sobre o tipo adotado, não obstante terem sido

120 Desenvolvidamente, sobre as razões que presidem à afirmação da obsolescência prática da previsão
normativa de uma modalidade extintiva-novatória de transformação, vide supra ponto 2.2, II.
121 A trilogia de indícios sugestivos do fenómeno da personalidade coletiva (uma organização de atuação
Handlungsorganisation, um centro de responsabilidade Haftungsverband e um ponto identitário de referência
Identitätausstattung), é a utilizada por UWE JOHN, Einheit ..., pp. 965-971.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 41

moldadas pela difusão normativo-legal do tipo social de origem. O dado normativo que
ressaltamos fundamental é o da subsistência ou permanência (crismada pela técnica jurídica
de «ultra-atividade» ou «sobrevigência») de certas situações jurídicas à vertigem da rutura e
mudança que é conatural ao instituto.
VII. A existência desse lastro normativo122 (que não se confunde com uma mera alusão
à historicidade lógica do pré-transformação) é tanto mais evidente quando se percebe que foi
tarefa do legislador escolher ou filtrar123 quais as situações que imunizava em relação ao
processo, dotando-as da referida ultra vires.
VIII. Os direitos subjetivos dos credores que se consolidaram antes da transformação
estão imunizados pela sobrevigência de regimes especiais de proteção (arts. 138.º e 139.º, 1),
ainda que o novo tipo social não os comportasse per natura, garantindo-se a manutenção do
status quo ante.
IX. A tutela dos sócios na torrente normativa do trânsito entre tipos faz-se pela
manutenção das posições relativas (art. 136.º), a salvaguarda dos direitos especiais [art 131.º,
1, c)], a proteção contra a sua responsabilização ilimitada (art. 139.º, 2) e pelo exercício da
exoneração (art 137.º).
X. Despontámos, em cada um dos núcleos de tutela, (bem como nas alterações
introduzidas ao regime da transformação, cfr art. 137.º), críveis afloramentos de um princípio
hermenêutico de favor à transformação, manifestado tanto pela autorização da transformação
regressiva (eventualmente trazendo regras – v.g., de fiscalização – menos favor favoráveis
para os credores), como pela suficiência do critério de equivalência material na manutenção
de direitos especiais, cfr. art. 131.º, 1, c), ou ainda pela disponível regra da inalterabilidade da
«quota de participação» de cada sócio, art. 136.º.
XI. Finalmente, refutada a tese sobre a natureza intrínseca do instituto da
transformação que propugna a sua recondução a uma mera espécie do género modificação do
pacto social, concluímos pela autonomização do instituto, animado por um particular vetor
normativo, o princípio da identidade, o que, por sua vez, não invalida a recondução da

122 Como diria Parmênides de Eleia, em toda a mudança há uma constante. A «sombra» do tipo de origem
permanece incidindo sobre o tipo de que a sociedade transformada se reveste, como se do seu alter ego
tipológico se tratasse. Basta levar em consideração as distorções tipológicas que supra provámos existirem
nalguns dos binóminos de transformação, configuráveis por força dos núcleos de tutela de sócios e credores, para
conhecer casos em que aquela «sombra» se convolou em norma vigente, por meio da ultra-atividade induzida
pelo legislador.
123 Sobre as conclusões que a eleição ou preterição de certas situações jurídicas permite retirar, v. ponto 1, IV.
42 Entre Caducidade e Destituição

transformação ao conjunto de vicissitudes normais do contrato de sociedade124.

III. A RELAÇÃO DE ADMINISTRAÇÃO NO AMBIENTE NORMATIVO ESPECÍFICO DA


TRANSFORMAÇÃO DE SOCIEDADES

1. Vertigem da transição e caducidade.

Munidos da carga conceptual e teorética que do regime da transformação de sociedade


dimana, esboçámos o cluster ou ambiente normativo que «abraça» a relação de administração
no seu momento-chave, o do seu intermezzo lógico na vertigem societária da transição entre
tipos sociais. Talvez essa seja a liminar e primordial interrogação: saber se a transformação,
causa-de-caducidade da complexa relação administrativa consolidada, lhe lega um absoluto e
vácuo final. Cuidaremos de encontrar vestígios ou ossadas dessa relação no lastro holográfico
de relações, situações e expetativas (jurídicas ou de facto), erigidos sob o manto normativo do
tipo de origem, que, como vimos, sombreia a sociedade saída da transformação. A provarem-
se verdadeiros, esses vestígios serão reconduzidos à ponte dogmática que o lastro
holográfico125 situacional-jurídico dimanado do tipo original configura, para se tornarem peça
operante da solução normativa de tutela harmónica ou ideal do gerente/administrador
gratuitamente «descartado» pelos sócios através da operação que aquele propôs ou iniciou,
nos termos pormenorizadamente enunciados aquando da apresentação do problema singular
em escrutínio científico.
Iniciamos o iter de enquadramento e conformação normativa da situação-tipo exposta
revisitando a doutrina das causas extintivas da relação de administração, com especial atenção
à intermitência ou intersecção entre caducidade e destituição126 que o objeto analisado
concita. Interessa notar que os administradores (nas SA) são designados por período fixado
124 A alteração do contrato é uma consequência da transformação e esta não se cinge ou limita àquela. Este será
o axioma básico da tese que defendemos, preservando a autonomia da transformação no confronto de institutos.
Contudo, desta premissa nada se pode inferir sobre a excecionalidade ou gravidade da transformação, quando
seriada com as restantes alterações contratuais ditas normais. Vide F. MENDES CORREIA, Transformação..., p. 176-
178. Tanto a deliberação de transformação como a de alteração do contrato são tomadas obedecendo ao disposto
para cada sociedade (arts. 85.º, 2 e 133.º, 2). As exceções ao princípio da maioria no ambiente específico da
transformação mais não são do que refrações de princípios gerais que também se verificam para o instituto de
alteração do contrato, justificando ainda a parificação dos institutos e não a sua assimilação ou hierarquização
piramidal. Vejam-se os art. 86.º, 2 e art. 24.º, 5 (aqui aplicado às alterações contratuais) a par dos arts. 133.º, 2 e
131.º, 1, c), respetivamente, destacando-se a sua afinidade funcional.
125 Aqui justifica-se inteiramente o manifestado postulado metodológico da análise dinâmica da relação de
administração, maxime enquadrando os inputs normativos da operação-mãe (a transformação) à luz dessa leitura
ligada ou dinâmica que não se queda pelo estaticismo do pré- e pós-transformação. Sobre a figura do status via e
a sua limitação heurística no que concerne ao administrador não-sócio, vide nota 195, ponto 1, IV.
126 Entre as restantes causas apontam-se o acordo revogatório e a renúnica.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 43

nos estatutos, que não pode exceder quatro anos civis, computando-se como ano completo o
ano da designação e, supletivamente (na falta de previsão estatutária da linha temporal da
relação de administração), é comando legal presuntivo considerar que a designação é
realizada para igual período de quatro anos127, (cfr. arts. 391.º, 3 e 425., 2). Nas SQ, a duração
das funções de gerência é indeterminada, salvo previsão estatutária (ou no próprio ato de
designação) de cláusula temporalmente delimitativa da relação de administração128.
A explicação da clivagem entre disciplinas legais supletivas recolhe-se, mais uma vez,
no ânimo legitimador da contraposição entre sociedades de pessoas e de capitais. Em síntese,
a dispersão capitalística aliada à variabilidade da composição do grémio societário no tipo
anónimo (em simbiose concorrendo para o paradoxo do absentismo minoritário ou da «apatia
racional» ínsito na wall street rule129) seriam consentâneas com a restrição temporal das
funções dos administradores. Os prazos pré-determinados evitariam que a inércia referida
permitisse a manutenção de administradores «insatisfatórios», catalisando a sua não reeleição,
ao passo que a maior estabilidade do elemento subjetivo nas SQ se refletiria na tendencial
estabilidade da gerência130. [Para além da tendencial aridez teórica da contraposição entre
sociedades de pessoas e de capitais – atenta a variabilidade semeada em cada modelo
tipológico –, cabe perguntar, maxime em relação ao tipo anónimo, se a regra de livre
destituição ou da destituição ad nutum, independente de justa causa, não seria já garante
suficiente da manutenção do liame fiduciário exigido pela relação de administração e do

127 Excepcionam-se os administradores designados judicialmente. Cfr. o art 394.º, 1, in fine e o art. 426.º. Vide
A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 391.º», em MENEZES CORDEIRO (coord.), Código das Sociedades
Comerciais Anotado, 2ª Ed., Almedina, Coimbra, 2011, pp. 1049-1050. Diga-se, em tom de inventário causal,
que a designação pode revestir diversas formas, podendo ser estatuária ou pactícia, ou ter lugar em assembleia
geral, sem esquecer a designação como instrumento de defesa ou bastião minoritário, nos termos do art 392.º, 1 a
5 e do art. 392.º, 6 a 8, com a eleição por minorias vencidas. Teremos ainda a chamada de suplentes, art 393.º, 3,
a); a cooptação, art. 393.º, 3, b); a designação pelo conselho fiscal ou pela comissão de auditoria, art 393.º, 3, c);
a nomeação judicial, art 394.º e, finalmente, a nomeação pelo Estado, quando legalmente prevista, art 392.º, 11.
Com real interesse para dilucidar o nosso quid problemático, elegemos as primeiras, as formas comuns de
designação. Com efeito, a designação de pessoa diversa para cargo diretivo ou de que gestão que origina a não
recondução daquele que se torna ex-administrador por força da transformação pode ocorrer, desde logo, na
aprovação da tríplice deliberação, nos termos do art. 134.º, mormente no que diz respeito a aprovação do novo
contrato de sociedade. Por outro lado, nada impede que em simultâneo com a tríplice deliberação, sejam
deliberados outros assuntos sociais, como a eleição dos novos titulares dos órgãos sociais, em alternativa à sua
designação no projeto de contrato a deliberar. Ainda, para um tertium genus na concretização do momento
eletivo dos novos administradores através de uma designação transitória no novo contrato a aprovar em ulterior
assembleia de nomeação, vide supra nota 5, cap. I.
128 Coíbimo-nos aqui de matizar a relação de administração com referências à sua natureza intrínseca,
contratual ou não, pois, infra ponto 1, cap. IV, retomaremos o esboço controvertida da sua definição.
129 A chamada opção «exit» ou «to vote with their feet». Vide J. M. COUTINHO DE ABREU, Governação..., p. 15.
130 Vide Coutinho de Abreu, Curso..., vol II., pp. 618-619, nota 385, comodatando as palavras de RAÚL VENTURA,
Sociedades por quotas – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais, vol. I, 2.ª Ed. (reimpressão),
Almedina, Coimbra, 1993, p 80.
44 Entre Caducidade e Destituição

afastamento (mais que) oportuno dos administradores ineficientes ou «insatisfatórios»131].


No que respeita à SENC, o modo de designação está impregnado do genético matiz da
inerência, porquanto todos os sócios são gerentes, salvo estipulação antinómica. O travo
paradigmático ou categórico do elemento pessoal dimana da necessidade de caucionar de
unanimidade deliberativa a designação de estranhos para a gerência (art. 191.º, 1 e 2).
Nas SQ pode suceder que a gerência seja atribuída a todos os sócios, mas essa não é
cominação do mapa supletivo do tipo (salvo o caso em que definitivamente faltem todos os
gerentes designados, assumindo temporariamente, todos os sócios, os poderes de gerência até
à designação de novos administradores, cfr. art. 253.º, 1). Pode até dizer-se que a regra é de
sentido inverso, ou seja, da não atribuição da gerência a todos os sócios, sendo seu eloquente
afloramento o disposto no art 252.º, 2 sobre a incomunicabilidade da gerência atribuída a
todos os sócios pelo contrato de sociedade àqueles que adquirem a qualidade de sócios em
momento ulterior ou de forma superveniente. Diga-se, igualmente, que a designação de um
gerente não-sócio ou estranho hoc sensu não demanda o aval da unanimidade como nas
SENC; o mesmo se passando nas SA (art. 390.º, 3), exigindo-se simplesmente que os
administradores sejam pessoas singulares com capacidade jurídica plena.
A discrepância entre SQ e SA, neste ponto, cristaliza-se na proibição de atribuição a
uma determinada categoria de ações o direito de designar administradores (art. 391.º, 2, in
fine), ao contrário do que o art. 257.º, 3 dispõe para o tipo quotista no sentido da
admissibilidade de um direito especial à gerência. Em qualquer binómio de transformação, o
sócio-gerente ou sócio administrador afastado, mas titular de um direito especial à gerência,
ou qualquer outro direito especial, que à luz de um critério de equivalência 132 seja obliterado
pela transformação, poderia sempre recorrer ao mecanismo de oposição gizado pelo art. 131.º,
1, c), ou eventualmente, ao exercício do direito de exoneração (art. 137.º), acaso existisse
estipulação contratual nesse sentido. Todavia, deve notar-se que a asserção apenas cobra pleno
sentido lógico nas múltiplas situações em que o administrador/gerente é também sócio, mas já
nada adianta quanto à situação do estranho designado para funções de administração, o

131 Contudo, estas serão considerações levadas de iure condendo ao sopeso normativo próprio do legislador-
arquiteto no âmbito da tarefa legiferante. Por isso, e porque entendemos que a solução de tutela ideal ou
harmónica para o administrador gratuitamente afastado por ocasião, ou a pretexto, da transformação pode ser
encontrada no plano da conformação do direito posto ou de iure condito, bastamo-nos com a pista reflexiva.
132 O critério que, em oposição ao critério da reprodução integral do direito especial existente na sociedade
transformada, mais se compagina com o princípio hermenêutico de favor à transformação. Princípio que povoou
a mens legislatoris aquando das alterações introduzidas ao regime do art. 137.º e que desponta em vários lugares
sistemáticos da disciplina legal da transformação. Vide, desenvolvidamente, ponto 2.3 e 3, II.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 45

administrador (lato sensu) não-sócio133.


Para evitar o vazio de funções administrativas, com inerentes danos para a SA, o termo
do prazo fixado não catalisa, per se, a caducidade da relação de administração vigente, pois,
em regra134, os administradores permanecem em funções até a nova designação (sobre a
mesma ou diversa pessoa) se tornar eficaz (arts. 391.º, 4 e 425.º, 3). A regra da permanência
em funções aplicar-se-á analogicamente aos gerentes. Cabe igualmente referir que o termo do
mandato (eventualmente acrescido do período necessário para a substituição) não é o único
facto de que pode advir a caducidade da relação administrativa. Elencam-se ainda: a
incapacidade ou incompatibilidade superveniente (art. 401.º), a falta definitiva (393.º, 1), a
nomeação de um administrador judicial (401.º), a reforma (402.º, 1), entre outros135.
Interessa-nos sobretudo o arrolamento da transformação, a par da fusão/cisão e da
dissolução, como causa extintiva da relação administrativa. É denominador comum lógico
desta inclusão no rol de causas de caducidade, o efeito extintivo do órgão administrativo.
Enquanto na fusão/cisão, a extinção do órgão administrativo é correlato da extinção da
própria sociedade136, tanto na transformação como na dissolução ocorre uma mudança de tipo
(art. 130.º) ou de estatuto (art. 160.º, 2, ainda que reportada ao momento do registo do
encerramento da liquidação); o que hipoteca a subsistência do antigo órgão de administração,
ora sub-rogado pelo órgão de administração do novo tipo adotado ou pelo órgão de
liquidação, respetivamente.

133 Atenta a necessária interseção entre o status socii e a titularidade de um direito especial (art. 24.º), não se
vislumbra válida a faculdade de recurso, do administrador não-sócio, ao mecanismo de oposição gizado no art.
131.º, 1, c). Aliás, qualquer argumento no sentido da constituição analógica de um direito de oposição para o
administrador não-sócio seria perfeitamente descabido, porquanto a inexistência de um direito especial a
preservar em ambiente de transformação desautoriza, porque inverosímil, o juízo de similitude entre situações
enquanto apriorístico patamar metodológico da integração analógica. Se, do ponto de vista normativo a proposta
se queda insustentável, pelo filtro da praxis societária poderia até revelar-se nociva ou excessivamente pro-
management, pois permitiria a criação de bolsas de resistência ou bloqueio à operação dentro do próprio órgão
administrativo-representativo.
134 Excecionam-se logicamente desta regra de permanência em funções a nomeação judicial, a destituição e a
renúncia, arts 394.º, 403.º e 404.º, respetivamente. Repare-se que, por esta via, pode mesmo ultrapassar-se o
período de duração legal ou estatutariamente fixado para a relação administrativa. Assim, A. MENEZES CORDEIRO,
«Anotação ao art. 391.º»..., p. 1050. Neste hiato temporal que medeia entre o termo do prazo pré-fixado e a
produção de efeitos da nova designação (tendo o designado que a aceitar expressa ou tacitamente), não nos
parece que se possa aventar que os antigos administradores são meros «administradores de facto». A prorrogação
a termo incerto do seu mandato ocorre ex vi legis, sendo certo que ele não permanece indevidamente em funções,
como sucedia, ao abrigo da redação originária do art 401.º, in fine, no caso do administrador afetado por
incompatibilidade e ou incapacidade superveniente que se mantinha em funções, tendo a caducidade do seu
mandato operado automaticamente. Vide COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 620.
135 Como a falta de caução, cfr. arts. 396.º, 1 a 4, 433.º, 2; a ausência de ratificação em assembleia geral da
designação, quando necessária, cfr. arts. 393.º, 3, b), c), e 6; a previsão directa ou indirecta no estatuto de causas
de caducidade e, naturalmente, a morte do administrador.
136 Cfr., contudo, o disposto no art. 112.º, a), in fine.
46 Entre Caducidade e Destituição

Eis a essencial figuração doutrinal da transformação como facto extintivo da relação de


administração. Esse primeiro degrau de categorização dogmática é dado normativo de basilar
importância no enquadramento do problema singular de que curamos, mas apenas o pórtico
da missão de interpretação-conformação que este relatório encerra. Parece-nos inegável, ao
menos em princípio, a existência de um efeito extintivo da transformação sobre o órgão de
administração originário com a consequente afetação da relação administrativa estabelecida,
sob pena de, como supra alertamos137, a hipotética sobrevigência do órgão administrativo
primitivo no tipo de destino poder concorrer para a sua desfiguração fisionómico-normativa.
Todavia, uma faísca dubitativa eclode da constatação de que os sócios podem aprovar a
transformação da sociedade, que o órgão de administração desencadeou, com o intuito sub-
reptício da cessação voluntária unilateral e gratuita da relação de administração na ausência
de justa causa de destituição (a potestativa causa de extinção da mesma), sob o manto da
caducidade resultante da transformação societária.
Ante a hipótese gizada assoma, prima facie, como via tutelar possível o recurso à figura
da deliberação abusiva do art. 58.º, 1, b). Todavia, depois de dissecados os desígnios
teleológicos do regime da transformação estamos agora preparados para, com base nas
conclusões gizadas, infirmar o recurso à tutela do abuso societário (ou, de forma
complementar, à figura matriz civilística do abuso de direito do art. 334.º) como meio de
tutela do ex-administrador lesado. Vejamos.

2. O abuso de direito como vetor de tutela – rejeição.

A liminar exceção dedutível é a da potencial oposição entre o enquadramento tutelar do


ex-administrador lesado com recurso à figura da deliberação abusiva ou do abuso de direito
lato sensu e o demonstrado princípio hermenêutico de favor à transformação138. Com efeito,
perpassa a solução tutelar abusiva uma imanente iconoclastia, no sentido de que a restituição
ao status quo ante, enquanto correlato do mecanismo de reação (relembremos aqui as
intermitências sincréticas entre as sanções da anulabilidade e nulidade na correlação
controvertida entre abuso societário e civil139) prova-se excessiva. Ainda que porventura
137 Vide COUTINHO DE ABREU, Curso..., p. 572 e ss., fazendo referência ao elenco de causas extintivas da relação
administrativa, onde se inclui a transformação. Por sua vez, A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 391.º»...cit.,
p. 1050, não arrola a transformação no leque de factos de que a caducidade pode sobrevir.
138 Supra pontos 2.3 e 3, II.
139 A contraposição será meramente tendencial, pois, em bom rigor, pode aventar-se que as figuras se
sobrepõem ou complementam. Serve apenas o propósito discursivo da alusão a dois sistemas diversos de tutela
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 47

estejam verificados os elementos objetivos e subjetivos que a fattispecies do art. 58.º, 1, b)


alberga, a sanção cominada (anulabilidade), autoriza a destruição retroativa dos efeitos
benéficos da transformação. Deste modo, uma operação proposta pela administração com o
escopo da adaptabilidade do ente societário ao devir mercantil, eventualmente fulcral ou
estratégica para a expansão da sociedade ou para que esta se mantivesse in bonis, poderia ser
posta em causa para precaver a restituição do ex-administrador ao cargo diretivo
desempenhado e do qual foi abusivamente afastado, como (eventual e dificilmente...) se terá
provado.
Neste ponto, o paradoxo ressalta evidente: fará sentido aplicar tal instrumento tutelar
quando, em simultânea vizinhança sistemático-normativa, vigora uma regra de livre
destituição (maxime quando se afirma a sua licitude, cfr. arts. 403.º, 1, 257.º, 1), acoplada de
um meio de ressarcimento indemnizatório para o afastamento voluntário e unilateral do
administrador pela sociedade, na ausência de justa causa? O filtro tutelar proveniente do juízo
de justa causa de destituição não pode (nem deve ser) suspenso porque na linha existencial do
ente societário se deu o «abalo sísmico» da transformação. O específico ambiente normativo
da transformação societária não só não suspende tal juízo, como, pela infusão do princípio de
favor à operação, propugna o abandono do recurso pelo administrador lesado à arguição da
anulabilidade (ou nulidade decorrente do art. 334.º, caso não seja sócio) da deliberação de
transformação, sem prejuízo da sua qualificação jurídica como abusiva ou ato fraudatório140.
Em suma, no quadro do direito positivo, a regra da livre destituição não deve ser
excecionada em caso de transformação, prevalecendo a permissão específica ante a cláusula
geral de proibição do abuso141. Assim depõe, como veremos, a coerência sistemática do
micro-cosmos de direito privado que constitui o Direito Societário e a harmonização
teleológica com o regime da transformação.
Não obstante, admitindo, ainda assim, um precário e passageiro beneplácito discursivo à
tutela fundada na figura do abuso, colijamos os escolhos que poderiam, em tese, burilar a sua
do abuso, com diversos graus de abstração lógico-sistemática.
140 Vide supra nota 12, cap. I. A noção de ato fraudatório ganha solidez se entendermos que os sócios, mesmo
não munidos de dolo ou, impressivamente, «intuito sub-reptício de destituição sem justa causa gratuita»,
conformaram-se com o resultado fraudatório produzido pela transformação-causa-de-caducidade no sentido de
contornar o dever de indemnizar o administrador destituído sem justa causa. Sobre a objetividade do resultado
fraudatório na qualificação de um ato como tal, vide J. M COUTINHO DE ABREU, Do Abuso..., pp. 85-86, nota 182.
141 Em sugestiva sintonia, vide COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 648. Contudo, o A. refere-se à própria
deliberação de destituição. Com efeito, na situação-tipo que curamos está implícita uma destituição (lembremos
a intuição originária que animou este relatório), só aparentemente coberta pelo manto plácido da caducidade da
relação administrativa induzida pela aprovação da relação de transformação. Infra, pontos 4 e 5, trataremos de
legitimar esta sugestão, dissecando estruturalmente a posição jurídica do administrador no trânsito entre tipos.
48 Entre Caducidade e Destituição

aplicação. O primeiro grande óbice resultará da assimetria tutelar ínsita à disciplina do abuso
societário. Referimo-nos à bipolar legitimidade ativa para a ação de anulação que a leitura
articulada dos arts. 58.º,1, b) e art. 59.º, 1, concita. Mesmo defendendo-se que o Tribunal
poderia anular a deliberação de transformação que traz consigo, para além do resultado típico
da destituição, o propósito e a aptidão lesiva do ex-administrador/gerente, possibilitando-lhe
retorno às funções administrativas, apenas teria legitimidade para a impugnação judicial o
(ex-)administrador sócio. Ao ex-administrador não sócio estaria vedado o recurso à ação de
anulação. Denota-se, desde logo, uma justaposição sistemática «desconfortável».
Para que a deliberação se pudesse considerar abusiva-anulável, nos termos do art. 58.º,
1, b), era necessário que o administrador lesado fosse sócio. Neste ponto, as soluções
propostas para ultrapassar este escolho levam já o travo da divergência doutrinal quanto à
articulação entre os universos típico-legais da deliberação social abusiva e da figura do abuso
nas suas vestes civis de cláusula geral. Poderíamos, anuindo reverência à ideia de uma
construção holística da figura do abuso142 de direito em sede societária, reconduzir outras
hipóteses típicas ou figuras sintomáticas de abuso, filiadas no art. 334.º, CC, à hipótese do art.
58.º, 1, a), para assim fundar, do ponto de vista substantivo, o carácter abusivo daquela
deliberação de transformação, tornado-a anulável. Todavia, a solução ficaria sempre a meio-
caminho. O administrador não-sócio teria então legitimação substantiva para reagir contra a
lesão de uma deliberação de transformação reflexamente143 abusiva, mas careceria sempre de
legitimidade para a impugnação de deliberação inquinada, ex vi art. 59.º, 1.
Dir-nos-ão que o silêncio do preceito não obsta à sua extensão teleológica, abrangendo
também o administrador não-sócio144. Parece-nos, ao invés, uma entorse exegética contra
legem da dimanação significante do preceito. A teoria da anulabilidade assenta na previsão, na
esfera jurídica do interessado, um direito potestativo à impugnação que este exercerá de
acordo com o seu arbítrio de conveniência. Atendendo à via reflexa de legitimação
substantiva operada através da infusão hipotética do art. 58.º, 1, a), com recurso ao art. 334.º,
é, pelo menos, duvidoso que se cumpra a reserva de legitimidade do art. 287.º, 1, no sentido
142 J. M. COUTINHO DE ABREU, «Comentário ao art. 58.º»...cit., p. 680 e ss., com o sintético resumo doutrinal das
razões pelas quais o recurso liminar à geral válvula de escape sistemática do art. 334.º deve ser, no que concerne
às deliberações sociais abusivas, afastado. No bastião opoente, pugnando pela complementaridade vide A.
MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil, vol I. t. 1, 3.ª ed. 2007 (reimp.), p. 399 e ss., e «Anotação ao art.
58.º»...cit., pp. 236-237. Cfr., ainda, M. CARNEIRO DA FRADA, «Deliberações sociais inválidas...»...cit., p. 323.
143 Isto porque a premissa é a da suficiência da disciplina societária da invalidade das deliberações abusivas.
Não é por mero capricho logicista que se faz intervir o crivo subsuntivo do art. 58.º, 1, a), evitando o recurso
imediato ao art. 334.º.
144 Neste sentido, JOÃO LABAREDA, Direito societário português …cit., pp. 105-105.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 49

de que apenas estarão legitimados a arguir a anulabilidade «as pessoas em cujo interesse a lei
a estabelece». De iure condito, o silêncio do art. 59.º quanto ao administrador/gerente não-
sócio ecoa eloquente145. A tentativa labiríntica de evocar um sopro de legitimidade para o
gestor não-sócio ilustra cabalmente mais uma das razões pelas quais a mera sanção
indemnizatória, preservando-se a aplicação integral e ininterrupta do regime da destituição
sem justa causa146, mesmo em ambiente de transformação, se revela a forma mais justa,
equitativa e harmónica de tutela ou reação à situação-tipo objeto de análise.
Sempre se dirá que o óbice de bloqueio da legitimidade ativa de impugnação para o
administrador não-sócio é produto derivado da visão holística (e excludente) do instrumento
de controlo da deliberação abusiva, descartando-se a complementaridade sistemática com o
art. 334.º, CC, porquanto o direito de voto dos sócios na tríplice deliberação, tal como
qualquer situação jurídica, está sujeito à eventualidade do exercício abusivo e, por
conseguinte, adstrita ao regime preconizado pela cláusula geral de sede normativa civil. Tal
sucederá desde que o exercício do direito de voto contenda com o «núcleo axiológico
fundamental do sistema, expresso pela locução boa fé» e concretizado através dos princípios
mediantes da «tutela da confiança legítima»147. Deste modo, e porque da leitura articulada dos
arts. 58.º, 1, b) e 59.º, 1 parece não se poder deduzir a legitimidade ativa do gestor não-sócio,
seria cogitável considerar a deliberação em apreço abusiva pela sua subsunção à cláusula
geral do art 334.º, CC, maculando-a, agora sim, de nulidade, por violação de um princípio
injuntivo, ex vi art. 56.º, 1, d).
Com efeito, o problema da legitimidade seria ultrapassado. No mapa normativo da
nulidade no direito privado português, o art. 57.º não figura como regra excecional ao regime
geral previsto no CC. O art. 57.º faz acrescer aquele regime algumas especialidades, de modo
algum sendo a sua derrogação restritiva. Por isso, à nulidade das deliberações aplica-se o
disposto quanto aos negócios jurídicos nulos, vide art. 286.º, CC, sobre a invocabilidade do
vício «a todo o tempo», por «qualquer interessado» e a sua declaração ex officio pelo
Tribunal. Entre os interessados (art. 26.º, 1 e 2, CPC), para além dos especificamente
mencionados no art. 57.º, devem considerar-se incluídos os administradores das sociedades
por ações, qualquer um dos sócios e ainda alguns terceiros148. Parece-nos inequívoco que

145 Em sentido consonante parece pronunciar-se J. M. COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 169, nota 418.
146 Não se vislumbra como a transformação possa fundar justa causa...Infra, ponto 3.
147 A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de Direito civil, vol I. t. 1, 3.ª ed. 2007 (reimp.), p. 399 e ss.
148 Esta é a lição, em instância interpretativa do art. 57.º, de J. M. COUTINHO DE ABREU, «Comentário ao art. 57.º»,
em COUTINHO DE ABREU (Coord.), Código das Sociedades Comerciais em Comentário, Almedina, Coimbra, 2010,
50 Entre Caducidade e Destituição

entre os estes terceiros com legitimidade ativa para a impugnação judicial da deliberação
estariam igualmente os administradores não-sócios abusivamente destituídos a pretexto da
mudança de tipo ínsita na transformação de sociedade.
Tal expediente interpretativo não significaria a absorção sistemática do abuso de sede
societária do art. 58.º, 1, b). Este preceito abrangeria o exercício danoso do voto com
propósitos extra-societários e os atos emulativos, inquinando a deliberação abusiva de
anulabilidade. Ao seu lado, complementando-o na tarefa de «salvaguarda e reprodução do
sistema»149, estaria o abuso de direito nas suas vestes civis gerais (art. 334.º), maculando o ato
deliberativo viciado de nulidade. Aliás este teorema traduz exatamente o procedimento
interpretativo percorrido a propósito do vácuo legitimação (e de legitimidade processual) do
administrador não-sócio lesado pela deliberação abusiva, que o art. 58.º, 1, b), prima facie,
inculca. A tese da complementaridade entre os dois universos normativos do abuso parece, in
casu, caminhar de mãos dadas com o apanágio racional da procedência. Mas só
aparentemente...
Em bom rigor, ultrapassado o óbice demonstrado, cria-se um novo «desconforto
sistemático»: o da intermitência entre anulabilidade e nulidade como vício da deliberação
considerada abusiva através de cada uma das vias, tanto societária como civil. Uma mesma
deliberação poderia então ser nula para o administrador lesado que não fosse sócio e
meramente anulável para o administrador igualmente sócio. A complementaridade dos dois
caminhos, de um lado, os arts. 58.º, 1, b) e 59.º, 1 e doutro, os arts. 334.º, CC e 57.º, 1 e 4,
termina num cruzamento antinómico pela introdução de uma distorção na linha transversal da
relação de administração: a diferenciação iníqua entre administrador sócio e não-sócio.
Colige-se aqui mais uma boa razão para depositar cum granu salis certezas de correção e
validade no recurso à figura da deliberação abusiva, com base no art. 334.º, como solução de
tutela equilibrada.
Acresce ainda o facto (com repercussões ao nível da estabilização dogmática do tema)
de gravitar em torno da tese de complementaridade entre sistemas de abuso de direito um
ambiente de controvérsia e crítica, mormente quanto à persistência de alguns sectores

pp. 667-668. Será o caso dos credores e os trabalhadores quando se trate de uma deliberação de distribuição de
lucros fictícios, ou de um membro do conselho fiscal não-sócio destituído sem justa causa. Infra, ponto 3,
veremos que uma das exceções à regra da livre destituição (cfr. art. 403.º, 1), é a relativa aos membros
(administradores) da comissão de auditoria (art. 423.º-E, 1), quando este órgão exista no modelo de governação
adotado, só podendo aqueles ser destituídos com justa causa. Cfr., igualmente, o caso dos gerentes com direito
especial à gerência, art. 257.º, 3 e 4 e o disposto no art. 392.º, quanto ao «administrador das minorias».
149 A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 58.º»..., p. 237.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 51

jurisprudenciais e doutrinais – ante a atual e pormenorizada disciplina legal das deliberações


inválidas plasmada no CSC (incluindo as ofensivas aos bons costume pelo seu conteúdo e as
abusivas) – na recondução das deliberações abusivas ao art. 334.º, CC, quando tal preceito é
visto como «sincrético e largamente indefinido quanto às suas consequências jurídicas»150.
Crítica a que não é alheia a repercussão patológica de tal expediente de ligação (a
nulidade), permitindo crismar de anacrónica151 a afirmação de que as deliberações abusivas
seriam nulas, nos termos do art. 56.º, 1 d), por violação de preceito injuntivo, o art. 334.º.
Mais importante do que gizar uma adesão normativa de princípio a uma das
configurações ideais de articulação entre disciplinas de abuso, no que concerne à deliberação
de transformação, impregnada de um animus emulativo ou fraudatório de destituição sem
justa causa gratuita de certo administrador, é, feito o sopeso dos prós e contras de cada uma,
perceber que entre elas medeia apenas uma graduação da distorção sistemática. Se na
concatenação societária do abuso a iniquidade surge a montante, pela ilegitimidade do
administrador não-sócio, na segunda construção, com base no art. 334.º, apenas se transporta
tal distorção para o momento da consequência patalógica ou da sanção do abuso deliberativo,
ou seja, já a jusante, com a discrepância entre nulidade e anulabilidade.
Assim sendo, ao invés de eleger um dos sistemas com base numa intuição originária de
correção e procedência dogmática, melhor andará o intérprete ao entender as dificuldades da
alternância labiríntica entre vias de tutela como forte indício de que urge procurar uma
solução pautada pela harmonia e coerência valorativa-sistemática.
Em conclusão, e de forma impressiva, pode dizer-se que o remédio proposto apresenta,
além de uma terapêutica que se pode revelar teórica e dogmaticamente tortuosa,
consequências secundárias excessivamente corrosivas, fundamentalmente cifradas na
potencial destruição dos efeitos inerentes à transmutação tipológica presumivelmente benéfica
e necessária para a sociedade, indício evidente de antinomia direta com o princípio

150 J. M. COUTINHO DE ABREU, «Comentário ao art. 58.º»..., pp. 681-682.


151 Ibidem. Para o Autor a sanção da nulidade, no âmbito das deliberações sociais, tem uma mancha de atuação
bastante restrita (art. 56.º), pois, mesmo diante da violação de normas legais imperativas, em muitos casos a
sanção não é a da nulidade, ao contrário da regra geral dos negócios jurídicos nulos do art. 294.º, CC. O
diagnóstico gizado para este apego à cláusula geral do art. 334.º, no que concerne às deliberações abusivas,
prende-se com a inexigência de dolo para a declaração de nulidade de deliberação por violação do art. 334.º ou,
ainda, por ofensa dos bons costumes, tendência a que subjaz a dificuldade de prova de algum dos «propósitos» a
que o art. 58.º, 1, b) alude. Tal entorse seria corrigível pela constatação de que a lei societária não exige mais do
que o dolo eventual (cfr., em paralelismo lógico, o que dissemos supra, nota 140, sobre a conformação dos
sócios com o eventual resultado fraudatório da deliberação de transformação-destituição), bem como, pela
aplicação subsidiária do art. 58.º, 1, a), por violação do princípio da lealdade e/ou da igualdade entre sócios,
quando a prova daqueles requisitos seja famélica ou duvidosa.
52 Entre Caducidade e Destituição

hermenêutico de favor à transformação que, a par do princípio da identidade, anima


teleologicamente todo o seu regime152. Para mais, a desproporcionalidade da solução tutelar
baseada no abuso153 torna-se ainda mais gritante quando se constata que preservação da
sociedade transformada não exclui ou preclude outras formas de tutela (menos iconoclastas
para a transformação) do administrador lesado, como sejam a da não suspensão da regra da
livre destituição em ambiente normativo específico de transição, a que chamámos o
intermezzo lógico típico da transformação. Dissequemos, então, este quid normativo: a regra
da livre destituição.

3. Destituição ad nutum e licitude.

A regra decantável do atual direito positivo assoma inequívoca: os administradores ou


gerentes podem ser destituídos, a todo o tempo e independentemente de justa causa, vide arts.
257.º, 1, 403.º, 1, 430.º, 1. Excecionam-se os gerentes com direito especial à gerência (art.
257.º, 3) e os administradores membros da comissão de auditoria (no modelo de governação
anglo-saxónico ou monístico – vide art. 423.º-E, 1), para os quais se demanda que uma

152 Vide infra, nota 179, referência ao enquadramento lógico de eventual argumento que propugnasse a nulidade
ou anulação parcial da deliberação de transformação (art. 134.º e art. 292.º, CC), reduzindo-a pelo
desentranhamento da designação eletiva abusiva ou fraudatória como forma de ultrapassar o óbice apresentado.
153 O argumento da iconoclastia imanente à aplicação tutelar do abuso, ao menos de sede civil, poderia ser
temperado com recurso ao disposto no art. 566.º, 1, in fine, CC, derrogando a prioridade da reconstituição in
natura, porque excessivamente onerosa para o devedor (a sociedade), para apenas ativar, como meio de reação
do ordenamento contra a ilicitude do ato deliberativo, o ressarcimento indemnizatório do lesado. A existência de
conduta ilícita quando o dano é causado com abuso de direito é defendida, entre outros, por SINDE MONTEIRO,
«Rudimentos da responsabilidade civil», em RFDUP, ano 2.º, 2005, pp. 366-369, que, seguindo o trilho do
sistema de responsabilidade civil alemão, giza um conteúdo delitual mínimo do abuso do direito (art. 334.º, CC),
através do extravasar manifesto ou excessivo dos limites impostos pelos bons costumes. Analisando as restantes
vertentes, dir-se-á que a boa-fé, pressupondo a existência de uma relação especial, como é aceite, apartar-se-ia
do campo puramente delitual, sendo, por sua vez, pouco relevante o parâmetro do «fim económico ou social» de
um direito numa sociedade em que a atribuição dos direitos não está funcionalizada.
Apesar da hipotética aplicação da tese em apreço poder minorar os efeitos iconoclastas denunciados,
algumas reservas pétreas podem apontar-se: está em causa o exercício de um direito especial da sociedade que
destituiu (pela não reeleição) certo gestor, i. é, um direito postestativo de destituição, e não, simplesmente, o
exercício da liberdade geral de agir da sociedade agente-lesante. Com efeito, no que respeita à contrariedade aos
bons costumes, como diz SINDE MONTEIRO, últ. ob. cit., p. 367, «existindo um direito especial, a regra é a de que o
seu titular o pode exercer mesmo com prejuízo de outrem». E essa potestas de destituição ad nutum não é, como
veremos, suspensa ou limitada pelo processo de transformação da sociedade, revestindo-se de licitude o ato que
a consuma, ainda que por força do ambiente normativo específico de transição entre tipos legais em que o ato se
insere, este surja sob a forma da designação de pessoa diversa do gestor em causa para os novos corpos sociais
na sociedade transformada. Em bom rigor, o novelo factual analisado convocará já um problema de
responsabilidade civil por factos lícitos, e não uma questão de responsabilidade por culpa. Por outro lado, o
recurso a uma solução de tutela fundada no direito societário revela a vantagem particular da aplicabilidade da
ratio de limitação do montante indemnizatório dos arts 403.º, 5 e 257.º, 7, pois, pese embora a indemnização
esteja, por princípio, limitada ao dano, vide arts. 483.º e 494.º, CC, a cominação societária específica de um
plafond indemnizatório ajusta-se com ganhos equitativos à situação-tipo em apreço. Vide, infra, p. 2, cap. IV.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 53

eventual destituição seja fundada na inexigibilidade da manutenção do vínculo orgânico-


administrativo, derivada da verificação de justa causa. Comecemos por afirmá-lo
categoricamente, sem prejuízo de analisarmos as dissonâncias circundantes 154: a lei societária
não só não proíbe como atribui às sociedades o direito potestativo da destituição, com ou sem
justa causa, dos seus administradores. O lastro genético desta regra perpassa todo o direito
pregresso155. Lembremos, quando às SA, o CCom. de 1833, art. 538; a Lei das Sociedades
Anónimas de 1867, art. 13.º; o CCom de 1888, arts. 171.º, § único, e 172.º; ou o art. 28.º da
LSQ de 1901156.
A sedimentação legal e doutrinal da regra é profunda, figurando nalguma doutrina como
«indiscutível»157, ou dado adquirido. Aduz-se, em sentido positivo quanto à indispensabilidade
de tal regra, argumento sobre a sua natureza de correlato lógico do denso liame fiduciário que
deve mediar a relação de administração, permitindo ainda a adaptabilidade do corpus
administrativo ao devir dos mercados, através da designação de novos elementos mais
adequados ou capacitados. Por outro lado, no que concerne às SA, a típica dispersão
capitalística aliada à rápida transmissibilidade de ações induz a mutabilidade acrescida do
grémio societário, sendo necessário assegurar aos «novos» ou futuros acionistas a
«reconstrução» do liame de confiança referido. A regra serviria ainda de faísca motivacional
pelo risco, temporalmente transversal ao mandato, da sua cessação, com a perda dos
benefícios inerentes158.

154 O assentimento maioritário da doutrina vai no sentido da licitude da destituição sem justa causa, vide RAÚL
VENTURA, Sociedades por quotas, cit., vol. III, p. 104, e RICARDO RIBEIRO, «Do direito a indemnização dos
administradores de sociedades anónimas destituídos sem justa causa», BFDUC, Vol. LXXXIII, 2007, pp. 813-
814. No mesmo tom discursivo, ecos jurisprudenciais da tese encontram-se nos Acs. STJ, de 7/2/06 e de 11/7/06,
CJ-STJ, 2006, t. I, pp. 61-62. Em sentido contrário, leia-se, todavia, o Ac. do TRC, de 30/11/2010, consultado
em «www.dgsi.pt» e a posição de A. MENEZES CORDEIRO, Manual...cit., vol. I, p. 903.
155 L. BRITO CORREIA, Os administradores de sociedades anónimas, Almedina, Coimbra, 1993, pp. 664 e ss.
156 Vide ANTÓNIO CAEIRO, Temas de direito das sociedades, Almedina, Coimbra, 1984, pp. 43 e ss. A mancha de
influência desta regra tem o matiz da tradição no espaço continental-europeu, regendo na maioria dos países.
Tanto nos EUA como no RU, a transição fez-se de sistemas tendencialmente protetores do administrador para a
admissão de uma regra de livre destituição, a todo tempo, seja ela de natureza imperativa ou devendo estar
prevista nos estatutos. Vide V. GOWER/DAVIES, Principles of modern company law, 7th ed. by Paul L. Davies, Sweet
and Maxwell, London, 2003, pp. 309-310. Por sua vez, o direito teutónico seguiu caminho exatamente simétrico
para as sociedades anónimas: da livre destituição transitou-se para a destituição apenas por justa causa. Assim
depõe o § 84 (3) da AktG. O mesmo não se verificou, todavia, para as sociedades por quotas. O § 38 da GmbHG
(de 1892), possibilita a «livre» destituição ao mesmo tempo que autoriza os estatutos a cercear a amplitude
casuística dessa potestas, limitando-a à verificação de «fundamentos importantes». Documentando tal
movimento aparentemente contra-cíclico em relação à AG, vide M. LUTTER , Il sistema del Consiglio di
sorveglianza nel diritto societario tedesco, RS, 1988, p. 97.
157 A. FERRER CORREIA/ V. LOBO XAVIER/M. ÂNGELA COELHO/ANTÓNIO A. CAEIRO, Sociedades por quotas de
responsabilidade limitada (anteprojecto de lei – 2.ª redacção e exposição de motivos), RDE, 1977, p. 381
158 Neste sentido, vide L. BRITO CORREIA, Os administradores..., pp. 699 e ss.
54 Entre Caducidade e Destituição

Mas a bondade destes argumentos é discutível. Para garantir que a maioria acionista
conserva a confiança no corpo administrativo a mediação da justa causa permitira filtrar as
razões invocadas para a queda de confiança, evitando, em teoria, abusos da maioria de
controlo acionista no sentido de tornar o órgão de administração seu títere ou longa manus
instrumental. Aliás, quando se fala da «reconstrução» da confiança depositada nos
administradores pelos «novos» acionistas, parece assentar-se na premissa de que os
administradores são somente «servidores da maioria», não podendo acautelar o interesse
comum de todos os sócios. Também por isso deve ser lida cum granu salis a ideia de que a
regra da destituição ad nutum159 contribui para a «afirmação do princípio maioritário na
determinação do interesse da sociedade»160. Sobre a adaptabilidade que a regra induz no corpo
administrativo cabe apenas perguntar se a incapacidade ou inaptidão revelada pelo
administrador para acompanhar novas e mutáveis exigências empresariais não configura já
uma justa causa de destituição.
É óbvio o plus que a regra acrescenta à fáctica possibilidade de domínio societário pelos
sócios (ditos de controlo), atuais e futuros, na medida em que a potestas destitutiva ad nutum
ensombra de risco a atuação dos administradores (pode até dizer-se que a perspetiva de poder
destituir a um aceno, ou sinal, facilita as tomadas de controlo, pois a renovação de um corpo
administrativo «não alinhado» faz-se imediatamente). Este risco estimula, de facto, uma
atuação em prol dos sócios. Contudo, parece que estímulo suficiente resultaria da
possibilidade de destituição apenas com justa causa e dos prazos (por vezes bastante curtos)
de duração do mandato acoplados a outras causas de não reeleição (art. 391.º, 3).
Com efeito, a regra também peca pela desproporcionalidade ou excesso ao produzir um
«dilema da anuência» do administrador161. Não obstante o disposto no art. 83.º, 4, e a (teórica)
boa prática da não instrumentalização do órgão administrativo pelo grupo de sócios
dominantes, a verdade é que instruções, ordens, diretivas ou recomendações são veiculadas. O
desrespeito por estas instruções, embora legal e conforme ao seu dever de diligência (art.
64.º), deixa o administrador, contudo, à mercê daquela potestas destitutiva, o que pode
infirmar a afirmação principiológica da autonomia dos administradores que surge plasmada a

159 COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 629, nota 410, alerta para a dissonância significante do termo ad
nutum acoplado à destituição. Enquanto na doutrina portuguesa destituição ad nutum significa destituição
independente de justa causa, com ou sem o dever de indemnização do destituído, noutros ordenamentos, a
expressão «ad nutum» reporta-se, de forma mais restrita, à destituição livre e sem indemnização, mesmo na
ausência de justa causa (modalidade que o nosso direito proscreve).
160 RAÚL VENTURA, Sociedades por quotas...cit., vol. III, cit., p. 104.
161 Em sentido concordante, vide COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, pp. 583-585.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 55

propósito do cumprimento de deveres de lealdade no interesse da sociedade, «atendendo aos


interesses de longo prazo dos sócios e ponderando os interesses de outros sujeitos relevantes
para a sustentabilidade da sociedade»162.
Neste ponto devemos operar uma cisão epistémica. Embora nos pareça que as
considerações precedentes são válidas e bafejadas pela fortuna da razão e da procedência
lógica, o seu campo de aplicação é o do input legiferante, constituindo uma tese de iure
condendo sobre o abandono da regra da destituição ad nutum163, preterindo-a em favor da
possibilidade de destituição apenas com justa causa. É mister do nosso iter indagativo retornar
ao plano do direito positivo, para aí encontrar, de iure condito, a harmónica solução de tutela
do ex-administrador a que a transformação impôs a caducidade do vínculo orgânico-
administrativo. Aqui, a torrente normativa do direito posto é intransponível, constituindo a
aparelhagem institucional com que nos debruçamos sobre o problema singular visado. A regra
é a da destituição ad nutum e (salvo as exceções elencadas), revestindo-se de licitude a
cessação unilateral e voluntária da relação de administração, fundada, ou não, em justa causa.
O filtro da justa causa determina o acesso do administrador lesado ao ressarcimento
indemnizatório, resultando dos arts. 403.º, 5, 430.º, 2, e 257.º, 7, que a determinação do valor
da indemnização164, na ausência de prévia fixação contratual, ou de acordo anterior ou
posterior à destituição, far-se-á nos termos gerais, atentos os limites prescritos.
Em síntese lapidar diríamos que no direito societário a justa causa não condiciona a
destituição, mas apenas a indemnização. Por meio de traços impressivos e abstratos, pode
dizer-se que a justa causa165 se desenha na situação em que, à luz dos interesses da sociedade
162 Cfr. art. 64.º, 1, b) (nosso itálico).
163 COUTINHO DE ABREU, Governação..., pp. 154 e ss.
164 Vide infra, ponto 2, cap. IV, o sopeso normativo da aplicação destas regras.
165 O paralelismo fonético poderia sugerir a aproximação da justa causa de destituição do administrador, por
equivalência ou analogia, à justa causa laboral de despedimento. Teses opostas povoam a jurisprudência e a
doutrina. De um lado, em favor de uma noção «laboral», inflexível na exigência da violação grave de deveres
(culpa e ilicitude), podem ler-se os Acs. STJ, de 3/11/94, BMJ, n.º 441 (1994), p. 360 e A. MENEZES CORDEIRO, Da
responsabilidade civil dos administradores das sociedades comerciais, Lex, Lisboa, 1997, p. 380, defendendo
um perfil de total imputabilidade ao administrador. Doutro, vide JOÃO LABAREDA, Direito societário português...,
p. 79, COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 636 e Ac. TRL, de 17/11/2005, CJ, t. V, p. 100. A noção aqui
propugnada de justa causa é mais abrangente (veja-se o que ficou dito em texto), por alargamento de critério: é
igualmente adotado o vetor da inexigibilidade (na manutenção do vínculo) derivado de incapacidade (falta de
conhecimentos necessários para uma gestão ordenada ou impossibilidade física), que ao contrário da estrita
exigência de comportamento culposo (cfr. art. 351.º, CT), abarca leque mais amplo de situações típicas.
A destituição com base em grave violação de deveres dos administradores tem grandes afinidades com a justa
causa laboral. Todavia, esta segunda, em círculo dogmático concêntrico, mas mais restrito, não permitira
integrar, como causas justas de destituição, todas aquelas situações que advêm da incapacidade para o normal
exercício de funções de administração. Mesmo a justa causa «objetiva» que preside à ratio dos despedimentos
colectivo (art. 359.º e ss., CT), por extinção do posto de trabalho (art. 367.º e ss. CT), ou por inadaptação
superveniente (arts. 373.º e ss., CT), distancia-se das situações não imputáveis ao administrador que justamente
56 Entre Caducidade e Destituição

e do administrador, torna inexigível àquela a manutenção do vínculo orgânico-administrativo,


seja porque o administrador violou gravemente os seus deveres, ou revelou incapacidade
(originária ou superveniente) para o normal exercício das suas funções. Os dois maiores róis
exemplificativos de causas justas de destituição contenderão com estes dois grandes núcleos:
a violação de deveres e a demonstrada incapacidade do administrador (sem embargo de
outras situações particulares166 marcadas pela inexigibilidade que justifica a destituição).
Não cabendo neste conspecto a análise desse elenco de justas causas, é suficiente a
liminar afirmação de que a transformação não será justa causa de destituição. Aliás, segundo a
depuração doutrinal corrente do instituto, nem causa de destituição seria, mas somente causa
de caducidade da relação de administração, pelas razões expostas. Quando os administradores
propõem a transformação, nos termos do art. 132.º, fazem-no, em princípio, no interesse da
sociedade e no cumprimento dos deveres de cuidado que um gestor criterioso e ordenado deve
observar estritamente (art. 64.º). A omissão da proposta deliberativa de transformação
(quando necessária e adequada) é que poderia, isso sim, constituir justa causa de destituição
por grave violação dos deveres que sobre os administradores impendem (sem prejuízo,
igualmente, da sua responsabilização civil pelos danos causados por tal omissão, vide art.
Por isso, argumentar no sentido de que, por ocasião da transformação e da designação
de membros para os corpos sociais da sociedade transformada, deve prevalecer o interesse de
uma eventual nova maioria formada desde o termo inicial da relação administrativa,
considerando-se justa causa a própria transformação revelar-se-ia perfeitamente descabido.
Ainda que se considerasse a mudança de controlo societário uma justa causa de destituição
(tese consensualmente refutada pela doutrina167), não seria a transformação em si, justa causa,
mas tão-somente o desígnio da nova maioria (entretanto formada) na renovação subjetiva do
órgão administrativo. Embora aprovada pela nova maioria, a transformação não passaria da
alteração formal-jurídica do ente societário, pelo trânsito entre tipos, nada dispondo sobre a
justeza da cessação do vínculo administrativo.
Assente como improcedente a qualificação da transformação como justa causa (ou
apenas causa) de destituição, devemos abordar um segundo aspeto de candente importância
para a nossa investigação. Se a destituição sem justa causa é um facto lícito, conforme ao

causam a destituição.
166 V.g., a prática de um ilícito-típico criminal fora do âmbito da sociedade ou a situação de insolvência
particular do administrador que traz repercussões negativas do ponto de vista comercial para a sociedade.
167 COUTINHO DE ABREU, Curso...., p. 636, nota 432.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 57

direito, porquê a previsão de uma tutela indemnizatória para o administrador destituído nesses
termos? Com efeito, a textura lógica da concatenação normativa entre licitude e necessidade
de tutela poderia quebrar-se em paradoxo. Prima facie, a coabitação entre a licitude de
determinado ato, resultante da sua não contrariedade ou conformidade com o ordenamento
jurídico, com a necessidade simultânea de tutela da lesão ou danos por ele provocados pode
parecer difícil de compaginar168. Pode até dizer-se, em estrito silogismo lógico, que da licitude
da destituição sem justa causa, deveria resultar o vácuo de qualquer dever de indemnização.
Mas não é assim. Mais uma vez o direito positivo societário desafia a construção lógico-
dogmática é prevê, precisamente, tal dever de indemnizar. Nem se diga que um dever de
indemnização consequência de ato lícito é fotograma normativo de uma situação aberrante ou
inédita: basta pensar noutras situações de responsabilidade civil por factos lícitos, vide arts.
1172.º e 1229.º, CC, bem como, o art. 245.º, CCom. É claro que o dever de indemnização foi,
desde logo, em claro jogo de freios e contrapesos, na acomodação ótima do xadrez de
interesses subjacente, limitado169, para não obstaculizar impreterivelmente a destituição. Então
porque consignou o legislador um dever de indemnização como correlato da destituição sem
justa causa? Entendemos que a resposta só pode ser encontrada na análise da estrutural da
esfera jurídica do administrador designado.
É certo que, desde o momento em que aceita (manifesta ou tacitamente) a designação, o
administrador ou gerente não pode ignorar o risco da cessação unilateral do seu vínculo sem
justa causa, visto que as sociedades são titulares do poder de destituição. Contudo, parece-nos
inequívoco que, embora represente essa vertigem de risco destitutivo, cimenta igualmente, de
forma legítima, uma expetativa (não jurídica ou de facto 170) de que só será destituído (durante
o período para o qual foi validamente designado) se se revelar incapaz da tarefa de gestão
acometida ou se violar gravemente os deveres que sobre si impendem.
De outra forma, no limite «cínico» da arbitrariedade destitutiva, poder-se-ia trair a
própria natureza fiduciária hoc sensu da relação de administração. Para cumprir o mapa causal
da relação estabelecida, donde consta a gestão criteriosa e ordenada do ente e da empresa

168 Pergunta-se se poderá um acto ser, simultaneamente, conforme e contrário ao Direito (porque lesivo dos
direitos subjetivos de outrem)? A linha de argumentação exposta parece aproximar-se, ao menos no seu esqueleto
lógico, das razões que levam A. MENEZES CORDEIRO, Manual..., vol. I, p. 903 a defender, em reduto doutrinal
minoritário, a ilicitude do ato de destituição sem justa causa. Vide, COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 638,
nota 438, dando conta da permanência nalguma doutrina estrangeira da ideia de que não existe correlação lógica
entre destituição sem justa causa (lícita) e dever de indemnizar.
169 Limites, por vezes bastante amplos – art. 257.º, igualmente válidos para as convenções de indemnização.
170 Vide, infra, desenvolvidamente, ponto 4.
58 Entre Caducidade e Destituição

societária, a administração não se poderia reduzir à longa manus dos sócios de controlo,
enquanto joguete instrumentalizado, mormente quando se afirmam refrações legais múltiplas
do princípio da famigerada autonomia dos administradores171 (para já não falar dos ditos
administradores «independentes»). Como poderia o administrador edificar uma atuação
minimamente autónoma, sob o aceno fatalista cessação, sem mais, da relação orgânico-
administrativa, pela maioria de controlo?
Entendemos que o legislador, até pelo desígnio coerência sistemático-valorativa com
aquele princípio, não deixou de ser sensível a esta situação, temperando a crua lógica niilista
do fim ou da cessação, e das suas consequências estruturais no trato relacional intra-societário,
com a previsão de um dever de indemnizar. Este não bule com a licitude matricial da regra da
destituição ad nutum (que, de iure condendo, é bastante discutível), apenas a equilibra,
precavendo as suas consequências (vide arts. 1172.º e 1229.º, CC). E, do ponto de vista
técnico jurídico, este dever de indemnizar só pode resultar da ponderação ou consideração da
expetativa172 referida, eleita pelo legislador para induzir equilíbrio na equação de interesses e
permitir salutar constituição e desenvolvimento da relação administrativa.
Em conclusão, embora o administrador não possa descurar a possibilidade da sua
destituição ad nutum, também a sociedade não pode ignorar que, se o destituir sem justa
causa, o terá de indemnizar, reparando os danos sofridos, na exata medida em que aquele
esperava o cumprimento do seu mandato até ao termo previsto, como explicado.

4. Lacuna jurídica.

Aqui chegados interessa coligir as aquisições científicas deste deambular em


dissertação. Estabelecemos a transformação como causa de caducidade da relação
administrativa e não como justa causa, ou sequer causa, de destituição; afirmámos, doutra
banda, a licitude da destituição ad nutum e do seu tempero sistemático-valorativo pelo dever
de indemnizar o administrador destituído, animado pela sua expetativa legítima de
manutenção do vínculo administrativo até ao seu termo.
Porventura, a subliminar deriva intuitiva para perspetivar o problema singular abordado
como uma situação implícita de destituição enraizada no processo de transformação encontre
agora uma cabal tradução jurídica. Ao rejeitar a tutela do abuso de direito (de sede societária

171 Cfr. art. 64.º, 1, b).


172 Sobre a sua natureza, vide infra, ponto 4.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 59

ou civil), intuindo, em consequência, a necessidade de não suspender a regra da livre


destituição no ambiente normativo específico da transformação, raciocinávamos já de forma
analógica.
Com efeito, a desconstrução mecânica da cascata de argumentos expostos e do acervo
de teses ou «pequenas teorias jurídicas»173 gizadas, alumia o veio hermenêutico e
metodológico utilizado – o da integração. Sabemos que numa perspetiva dinâmica de
aplicação do direito as fronteiras entre interpretação e integração desvanecem ténues, ao
menos no plano metodológico, pois ambos os processos convocam, ante o problema singular,
teias mais ou menos complexas de inferências analógicas e princípios axiológico-sistemáticos
ou valores jurídicos gerais. Sem prejuízo de tal miscigenação metodológica, entendemos que
a matriz lógica da nossa exposição se espraia profícua no domínio da indagação e aplicação
do Direito praeter legem, teoricamente o domínio das lacunas jurídicas.174
A lacuna, a «imcompleição que contraria o plano»175 do sistema jurídico existirá quando
a lei, dentro dos limites de uma interpretação ainda possível, não verte uma regulamentação
postulada pela ordem jurídica na globalidade. Foi esse vazio de regulamentação que fundou o
nosso exercício de dissertação: no seio da lei comercial-societária, em harmonização ou
sobreposição complementar com o direito civil (vide art. 3.º do CCom176), não se logrou
173 No dizer de CLAUS-WILHELM CANARIS, Función, Estructura...cit., pp. 28-29.
174 Vide, por todos, J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito..., cit., p. 192 e ss.
175 OLIVEIRA ASCENSÃO, «Interpretação das leis. Integração das lacunas. Aplicação do princípio da analogia», em
ROA, ano 57.º (1997), p. 919.
176 O art. 3.º CCom contém, ironicamente, um problema interpretativo sobre integração, pois poderia inculcar,
prima facie, a ideia de que as normas do direito civil nunca se aplicariam diretamente à relação jurídico-
mercantil, servindo apenas de expediente de integração quando, no seio da lei comercial se verificasse lacuna
não integrável por normas mercantis reguladoras do caso análogo. Poderia induzir-se um escalonamento
subsidiário ou um diferenciação prioritária entre fontes. A doutrina refuta tal interpretação por alusão ao cariz
especial e fragmentário do direito comercial, sendo direto o recurso ao direito comum. Vide COUTINHO DE ABREU,
Curso..., cit., vol. I, p. 29 e P. DE TARSO DOMINGUES, no seu ensino oral. Assim, desde que uma norma de direito
civil preveja especificamente determinado aspetos, não se pode afirmar uma lacuna comercial. A norma jurídica
que corretamente regule certa situação-tipo será aplicada independentemente da sua natureza. Também a jusante,
encontrado o espaço normativo lacónico, não se extrai do art. 3.º, CCom. que o seu preenchimento ou integração
se faça preferencialmente com recurso à lei mercantil, devendo eleger-se a previsão normativa civil ou comercial
que maior afinidade substancial apresente com o caso análogo. Na caso vertente, entendemos que a tarefa de
integração da lacuna de colisão descoberta deve atender à especialidade do sistema de fontes consignado no art.
2.º CSC, para o direito societário no seio do direito comercial ou mercantil. Até à sua autonomização, as
sociedades comerciais, inseridas no Código de Veiga Beirão, estavam sob a alçada normativa do art. 3.º CCom.
Contudo, a sua «emancipação» legal, com a aprovação do CSC, desmultiplicou a regra geral mercantil do
sistema de fontes pela previsão de um regra especial (e mais complexa), no que às sociedades comerciais diz
respeito: o art. 2.º. Como nota A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 2.º»...cit., pp. 64-65, a especial densidade
regulativa que o CSC demonstra relativamente a questões societárias faz com que sejam detetadas poucas
lacunas que exijam o recurso ao CC, vide Ac. STJ, de 19/03/1987, BMJ, n.º 365 (1987), pp. 608-609, (o que já
não acontece fora do âmbito estrito das questões societárias – vide, quanto aos acordos parassociais, o recurso
genérico ao CC, Ac. TRC, de 26/01/2010, consultado em www.dgsi.pt). Atendendo a que a nossa hipótese de
trabalho dimana de uma vicissitude puramente societária, a transformação, e que se operou a rejeição do bloco
60 Entre Caducidade e Destituição

encontrar a resposta à questão jurídica ou problema singular colocado. Isto porque da colisão
entre dois blocos normativos surgiu um vácuo de regulamentação, desnudando-se o véu
aparente da dupla normação, que na verdade, recobria uma «lacuna de colisão», de imanente
contradição normativa-teleológica. Expliquemos a tríade de complexos normativos em jogo.
Assim, o enquadramento tutelar fornecido pela figura da deliberação abusiva, em
articulação (ou não) com a cláusula geral de abuso de direito (art. 334.º) provou-se antagónico
em relação à ratio legis ou teleologia ínsita no complexo normativo do instituto da
transformação, pela sua latente e desproporcionada iconoclastia como meio de reação. Com
efeito, ao vaguear pelo mapa teleológico do instituto da transformação encontrámos dois
grandes vetores hermenêuticos: o de um princípio de favor à operação, do qual despontam
diversos afloramentos legais-normativos, coadjuvante do segundo, a matriz pessoal-identitária
da transformação enquanto simples alteração formal-jurídica de tipo. Foi mister do legislador-
arquiteto edificar a transformação como uma vicissitude normal de devir societário,
concretização de um princípio geral de alterabilidade societária 177, por seu turno filiado na
afirmação dogmática, em sentido amplo, da transformabilidade das pessoas coletivas de
direito privado178.
Como sugerido, a «bipolar» sanção da anulabilidade/nulidade traria, em regra, para a
restituição do administrador lesado ao status quo ante, a destruição retroativa dos efeitos da
deliberação de transformação, desprotegendo a operação-mãe (ao arrepio daquele favor
teleológico que do complexo normativo da transformação se decanta). Para além disso, não se
descortinaram razões para que a licitude da regra de livre destituição seja, por mero pretexto
da transformação operada, suspensa ou faleça a tal regra aplicação.
Ainda que se provasse o carácter abusivo da deliberação, não cobra qualquer sentido
(pelo contrário, parece-nos distorcer a lógica do sistema de cessação da relação de

normativo tutelar do abuso direito (tanto de sede civil como deliberativa-societária) pela sua contradição
teleológica com aquele instituto, não nos repugna coligir, como vetor hermenêutico de integração, uma
presunção metodológica de preferência por regra aplicável a um caso análogo do CSC, granjeando a harmonia e
paz sistemática que a primeira solução civilística não logrou alcançar.
177 RAÚL VENTURA, Alterações do Contrato de Sociedade – Comentário ao Código das Sociedades Comerciais,
Almedina, Coimbra, 1986, pp. 10-68.
178 Vide conclusão XI, do ponto 3, II. O princípio é afirmado na doutrina nacional, vide F. MENDES CORREIA,
Transformação...cit., p. 31-56, 175, e 202 e explica-se, em larga medida, pela queda da exigência da tese
homogeneidade causal, que tornou, em tese, mais diversificado o leque de combinações possíveis de binómios
de transformação, mormente heterogénea (entre sociedades e outras pessoas coletivas de direito privado e vice-
versa). A tal tendência doutrinal não será certamente estranha a linha normativa-teleológica da lei alemã, sendo
ponto de charneira a aprovação da UmwG de 1994 que, através da basal incidência do Identitätausstattung,
como pólo de referência identitária e sustentáculo de transformabilidade, contribuiu para o decaimento doutrinal
da necessidade de homogeneidade causal entre entes no processo de transformação.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 61

administração) restituir o administrador lesado ao cargo ocupado, eliminando 179 uma operação
potencialmente benéfica para a sociedade, quando aquele sempre poderia ter sido destituído,
de forma lícita, a qualquer momento e independentemente da existência de justa causa (sem
prejuízo da indemnização devida acaso não se verificasse existir justa causa).
Há, por conseguinte, uma contradições teleológica entre o sistema tutelar que se funda
no abuso (civil e/ou societário) e o complexo normativo resultante da regime da
transformação. Desta contradição normativa de cariz teleológico nasce uma lacuna de colisão,
uma «lacuna de lei», situada algures no meio caminho dogmático-categórico entre as lacunas
ao nível das normas e as lacunas teleológicas (de segundo nível)180. Ante a situação-tipo
apresentada, teríamos (no plano apriorístico da interpretação e subsunção lógica), de um lado,
o regime da transformação que, pugnando pela sua auto-preservação como vicissitude normal
dotada de um favor teleológico pelo legislador, induziria em plácida caducidade a relação de
administração, sem (aparentemente) permitir a imediata tutela do administrador lesado. Do
outro, o regime de tutela do cariz abusivo da deliberação de transformação lesiva para o
administrador em causa, revelou-se potencialmente hiper-reativa e desproporcionada,
desafiando a teleologia imanente do instituto.
Em sede interpretativa, a escolha entre uma das normas (ou bloco de normas) seria
puramente arbitrária, e a sua aplicação simultânea gera uma inelutável fricção sistemático-
normativa, de tal maneira, que a oscilação entre soluções normativas sugere um absurdo
contraditório entre total proteção e blindagem da posição do administrador e um vácuo
absoluto de tutela gerado pela mera caducidade, sem mais, do mandato administrativo. Daí o
vazio lacónico, propugnando preenchimento por norma que fizesse a acomodação harmónica
dos interesses contraditórios em jogo. As lacunas de primeiro nível, assim como, as lacunas
de colisão teleológicas «são lacunas patentes que se nos oferecem mediante critérios de pura
lógica»181, cujo preenchimento é mediado pelo recurso, sempre que possível, à analogia com
norma existente no sistema, ex vi art. 10.º, 1 e 2182.
179 Ainda que se defendesse a nulidade ou anulação parcial da deliberação de transformação (art. 134.º e 292.º,
CC), reduzindo-a pelo desentranhamento da designação eletiva abusiva ou fraudatória que lesa o ex-
administrador, como forma de ultrapassar o óbice da iconoclastia em relação à operação-mãe, o paradoxo tutelar-
sistemático perpetuar-se-ia, porquanto os sócios poderiam sempre, sem dependência de justa causa, fazer cessar
o vínculo estabelecido com aquele administrador que ora demanda a declaração de nulidade ou a anulação da
deliberação em causa. Deve sublinhar-se que a destituição ad nutum é facto lícito. Vide, igualmente, nota 153.
180 Categorização utilizada por J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito..., p. 196.
181 J. BAPTISTA MACHADO, Introdução ao Direito..., p. 200.
182 Na analogia utiliza-se a uma regra dada expressamente pelo legislador para determinado caso na resolução
de um outro, não regulado pela lei, mas que pelas semelhanças apresentadas merece uma igual valoração jurídica
e, por isso, igual solução. O recurso prioritário à analogia é ditado por razões de coerência normativa ou justiça
62 Entre Caducidade e Destituição

Intuímos, desde o início da nossa investigação, um entrevisto isomorfismo entre a


situação-tipo gizada enquanto problema singular e a destituição sem justa causa do
administrador designado. Essa similitude ou semelhança assentou no paralelismo do conflito
de interesses subjacente às duas situações, não sendo o intermezzo lógico da transformação,
disruptor do juízo de justa causa na cessação voluntária e unilateral do mandato de
administração resultante da não recondução de certo administrador em cargos diretivos na
sociedade transformada. A similitude analógica entre situações propugna que o critério
valorativo eleito pelo legislador para a composição do conflito de interesses no caso da
destituição ad nutum seja, a pari, ou a fortiori, aplicável ao caso vertente. O mecanismo da
analogia legis depreende-se da textura expositiva deste relatório, tendo figurando até então
sob a máscara discursiva da «não suspensão» da tutela indemnizatória, em resultado da
aplicação das regras da destituição sem justa causa (arts. 403.º, 5 e 257.º, 7), em ambiente
normativo específico de transformação. Resta pois, aprofundar a caracterização dessa
similitude analógica, aduzindo argumentos em favor da sua validade e procedência.

5. Expetativa de nova designação ou recondução.

A umbilical conexão isomórfica que autoriza o juízo de similitude analógica expendido


repousa sobre uma determinada posição jurídica (ou proto-jurídica) abrigada na esfera
jurídica do administrador afetado pelo processo de transformação. Trata-se da expetativa de
nova designação ou de recondução em mandato de administração. É a irmandade funcional e
lógica desta expetativa com a posição expectante do administrador designado no que concerne
à sua não destituição sem justa causa, durante o período para o qual foi designado, que
autoriza a ligação de substancial afinidade entre casos que preside à integração analógica do
vácuo jurídico apresentado.
Será o legatto lógico entre estas posições que permitirá ultrapassar o mero vazio da
caducidade trazido pela transformação como correlato da extinção do antigo órgão de
administração, ao próprio vínculo da relação de administração estabelecida. Isto porque a
expetativa de não destituição sem justa causa (o Leitmotiv legiferante da tutela indemnizatória
prevista, sem prejuízo da afirmada licitude do ato de destituição ad nutum) sobreviverá, à
rutura formal tipológica, pela articulação com a expetativa de recondução ou de nova
relativa, enquanto dimanação do princípio da igualdade. Sem prejuízo da aplicação da aparelhagem teórica
«clássica» do procedimento analógico, ressalvamos apenas o complemento introduzido, in casu, pela preferência
por uma solução de cariz societário-endógeno, pelas razões ponderosas já expostas (supra nota 176).
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 63

designação eletiva. Vejamos.


Acima demonstrámos como a expetativa não jurídica ou de facto 183 da não destituição
a um aceno do administrador, durante o período para o qual foi designado, fundava (pese
embora não lógica ou necessariamente) o dever de indemnizar o administrador destituído. A
licitude do ato de destituição ad nutum não precludiu a previsão pelo legislador de uma forma
de tutela indemnizatória (aliás, a propósito da concatenação entre licitude e dever de
indemnizar mostrou-se não ser tal tutela um dado inédito; basta lembrar a responsabilidade
por factos lícitos, nos termos dos arts. 1172.º, 1229.º, CC e art. 245.º, CCom.). Depuradas
estas afirmações por um prisma estritamente lógico, poderíamos surpreender uma subliminar
antinomia. Se a lei prevê uma forma de tutelar o administrador destituído, como pode a
afirmada expetativa de não destituição sem justa causa ser mera spes vana184, ou «simples
estado de espírito» que, quando muito, terá um «valor económico»185, se realizável?
A contradição desvanece albina de razão ao perceber-se que o dever de indemnizar não
é positivado por causa da regra de destituição ad nutum, mas apesar dela... A sensibilidade da
lei à necessidade do tempero e contra-balanço da regra da livre destituição faz-se sentir aqui,
de forma incidental ou reflexa (já não direta ou necessária), pela estatuição do dever de
indemnização (arts. 403.º, 5 e 257.º, 7). Todavia, de iure condito, é essa a regra vigente e

183 É inequívoca a classificação de COUTINHO DE ABREU, Curso..., vol. II, p. 638.


184 A definição nítida do que seja uma verdadeira expetativa jurídica, por contraposição às meras expetativas de
facto, ou spes vana, é matéria espinhosa. Na doutrina nacional, a maioria dos Autores entende a expetativa
jurídica de um sujeito, com recurso a dois elementos, a saber: a produção de alguns dos elementos do facto
jurídico complexo de formação sucessiva que conduzirá à potencial aquisição futura de um direito subjetivo; e a
existência de alguma tutela jurídica do titular dessa posição. Vide, I. GALVÃO TELLES, “Expectativa jurídica
(algumas notas)”, em OD, 1958, pp. 2 e ss, RABINDRANATH CAPELO DE SOUSA, Teoria geral do direito civil, vol I,
Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 238-239, HEINRICH E. HÖRSTER, A parte geral do código civil português.
Teoria geral do direito civil, Almedina, Coimbra, 1992, pp. 224-225. A. MENEZES CORDEIRO, Tratado de direito
civil português, I, Parte geral, t. I, p. 181, Almedina, Coimbra, 2000, entende que quando a proteção jurídica
referida é concedida a uma expetativa já estaremos face a «verdadeiro direito subjectivo, ainda que prévio ou
intercalar».
Já a expetativa de facto, ou spes vana, segundo I. GALVÃO TELLES, últ. ob. cit., «...não goza de menor proteção
jurídica; não é legalmente tutelada sob nenhuma forma. Representa um estado de espírito e possuí quando muito
valor económico (que não jurídico) se há possibilidades de vir a tornar-se realidade». Em sentido diverso do
tradicional, e, de certa forma, mais compaginável com a afirmação da juridicidade da expetativa de não
destituição que em texto curamos, pode ler-se MARIA RAQUEL REI, «Da expetativa jurídica», ROA, 1994, pp. 149 e
ss., definindo a expetativa jurídica como «...a situação jurídica que corresponde à posição daquele a favor de
quem foi restringida a liberdade do titular actual do direito». Esta formulação mais ampla, afirmando de forma
lata o dever de indemnizar como compressão ou contra-peso de um direito de livremente destituir poderia
albergar a posição do administrador expectante da não destituição sem justa causa, «jurisdificando-a», em face
das doutrinas tradicionais que lhe negam cariz jurídico. Vide, contudo, em texto, a necessidade de corrigir uma
formulação tão ampla de expetativa jurídica, fazendo alusão, usando os termos da definição, à natureza e função
sistemático-normativa da compressão que o dever de indemnizar o administrador destituído produz na potestas
de destituição ad nutum.
185 I. GALVÃO TELLES, «Expectativa jurídica (algumas notas)», em OD, 1958, pp. 2 e ss.
64 Entre Caducidade e Destituição

parece-nos – até porque o limite de indemnização supletivo estabelecido é o da duração (legal


ou contratualmente) fixada para a vigência da relação de administração – que o legislador
terá, precisamente, levado em conta o valor económico realizável da referida expetativa de
facto. Em bom rigor, para além das razões atinentes à conservação principiológica da
autonomia dos administradores ante a lícita potestas destitutiva, o legislador, ao consagrar o
dever de indemnizar, legitima (ainda que reflexamente, já que a licitude da destituição ad
nutum é a regra) a posição expectante do administrador designado. Este, se não pode ignorar a
possibilidade de ser destituído sem justa causa, também sabe que se o for, será indemnizado.
Idêntico iter analítico pode ser percorrido em relação à expetativa de recondução ou de
nova designação eletiva. O administrador validamente designado, para o qual não concorrem
justas causas de destituição ou renúncia, nem sequer está previsto qualquer acordo
revogatório, espera, quando propõe a transformação (art. 132.º) societária, a ter efeitos dentro
do período de duração do seu mandato 186, a sua recondução nos cargos diretivos da sociedade
transformada, ou seja, tem a expetativa (não «jurídica») de que os sócios, aquando da
aprovação da transformação (ou em sua consequência187), não designem pessoa diversa para
os novos órgãos sociais da sociedade transformada, recaindo a designação eletiva sobre o
proponente originário.
A expetativa da recondução pode esboçar-se como um derivado fáctico daquela
primogénita expetativa da não destituição sem justa causa. A correlação lógica entre as duas
verte-se na ideia de permanência (aliás, o cenário teórico da vicissitude da transformação é
composto, como se viu, por um vetor de constância identitária na mudança de tipos). Cobrará
pleno sentido que os administradores proponentes, autores e conhecedores do projeto de
transformação, na ausência de qualquer causa188 ou acordo disruptor do liame de confiança
gerado pela designação originária, sejam os condutores da sociedade na transmutação
tipológica, acompanhando a sociedade no seu intermezzo mutante.
Pode até dizer-se que tal expetativa eclode com a proposição da transformação pela
apresentação do relatório justificativo e dos documentos previsto no art. 132.º, e se frusta (ou
confirma) aquando da nova designação eletiva (seja esta feita no novo contrato de sociedade,

186 Vide art. 140.º-A e nota 118, ponto 2.3, Cap. II.
187 Supra, nota 5, cap. I.
188 Quando os sócios consideram que determinado gerente/administrador não está apto para acompanhar a
transformação da sociedade, v.g., porque não possui os conhecimentos técnicos ou a diligência profissional que o
grémio societário propugna necessária para a gestão da sociedade em cenário pós-transformação, existirá já justa
causa de destituição, pelo que a situação descrita se afastará do nosso cosmos analítico. Com efeito, in casu,
revelar-se-ia inexigível a manutenção da relação orgânica estabelecida, cfr. arts. 257.º, 6, in fine e 403.º, 4.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 65

art. 134.º, c) ou pela designação dos novos titulares dos órgãos sociais na assembleia que
aprova a transformação, em outros assuntos sociais).
Por isso, depois de proposta a operação societária, o administrador que até então
esperava legitimamente, como vimos, não ser destituído sem justa causa, espera, a fortiori,
que uma não-causa, a transformação, não seja pretexto para o seu afastamento, ou destituição
hoc sensu. Tal equivalerá à expetativa de ser novamente designado para cargo administrativo
anteriormente ocupado na sociedade em cenário pós-transformação. E essa equivalência traz
já consigo um suave travo analógico. Assim, se a não recondução equivale à destituição sem
justa causa é porque a similitude e a substancial afinidade entre as expetativas em jogo é
procedente.
Nesse sentido podemos asseverar-se traços genéticos e identitários essenciais. Ambas se
afirmam como expetativas de facto que vivem na sombra legal híbrida de uma previsão de
licitude, em laço de irmandade lógica. O paralelismo isomórfico supra aludido começa a
desenhar-se mais claramente. Com efeito, a licitude da designação de pessoa diversa (que
pode até ler-se como complemento necessário da caducidade dos mandatos administrativos
induzidos pela operação), compagina-se com a expetativa de recondução da mesma forma
que a expetativa da não destituição sem justa causa, durante o seu mandato, existe, apesar da
licitude ínsita na regra da destituição ad nutum189.
Em suma, se a sociedade que licitamente destitui sem justa causa deve indemnizar o
administrador quitado, ditam a coerência normativa e a justiça relativa que o administrador
não reconduzido pela lícita designação de pessoa diversa, aquando da transformação
societária por ele proposta, seja indemnizado nos mesmos termos.
Aliás, a aludida paridade analógica entre as duas expetativas estudadas pode, no limite
da tese do continuum identitário do instituto da transformação, resultar em simbiótica fusão,

189 Não serve como objeção resistente a invocação do eventual carácter excecional do aludido dever de
indemnizar em relação à regra da livre destituição prevista nos arts. 403.º, 430.º e 257.º, bloqueando, desse
modo, o recurso metodológico à analogia, ex vi da proibição ínsita no art. 11.º, CC. Deve notar-se o peculiar
lugar sistemático desta forma de tutela indemnizatória em consequência da destituição sem justa causa. Em bom
rigor, tal dever introduz apenas uma nuance normativa ou especialidade no regime da destituição, resultante, em
nosso entender, do sopeso sensível do legislador em relação ao valor económico que reveste a expetativa de não
destituição sem justa causa, retratada e justificada em texto, no confronto com as consequências práticas da regra
da destituição ad nutum. Por outro lado, a correção técnico-jurídica de tal objeção seria igualmente dubitável, na
medida em que verdadeira tensão normativa que justifique a qualificação de certo preceito à regra destituição ad
nutum como excecional está presente, e.g., no art. 423.º-E, 1, no que concerne aos membros da comissão de
auditoria, dispondo no sentido de que estes são apenas destítuíveis com justa causa. Outras exceções em sentido
próprio a tal regra encontram-se no caso dos gerentes com direito especial à gerência, art. 257.º, 3 e 4 e no
disposto pelo art. 392.º, quanto ao chamado «administrador das minorias».
66 Entre Caducidade e Destituição

atentos os seus pergaminhos teoréticos elencados. Não teríamos duas expetativas similares ou
idênticas mas apenas uma só expetativa que se adapta a um ambiente normativo específico o
da transformação. A expetativa existente da não destituição ad nutum convolar-se-ia em
expetativa de recondução, mantendo a exata natureza que detinha: o novo ambiente
normativo da transformação apenas lhe atribui forma diferente. O quid proto-jurídico ou
fáctico seria o mesmo, mudando apenas as circunstâncias que envolvem essa situação,
legando-lhe, hoc sensu, um ónus de adaptabilidade no sentido da sobrevivência.
Em certa medida, esta sub-tese (da estrita identidade entre expetativas de facto)
mimetiza o paradigma, já aludido, do intermezzo lógico inerente à transformação. A
sociedade, sem dissolução de identidade, passaria por uma via ou interlúdio jurídico-formal
de alteração. O fotograma dogmático que propugnamos válido para o instituto capta essa
exata dualidade subliminar da permanência na mudança 190. Aplicando este teorema às
expetativas (ou expetativa) em jogo pode dizer-se que a transformação operaria algo de
semelhante ao que a lição da onto-fenomenologia dita acerca da mera incidência da luz sobre
o objeto, influindo nas suas propriedades. Mutatis mutandis, trazendo a ideia para solo
jurídico, a sub-tese da identidade ditaria a constância essencial do quid – a expetativa –,
ocorrendo por efeito da transformação (rectius, da proposta de transformação) a mera
comutação das sua propriedades e a forma como o sujeito-intérprete a adquire ou perceciona.
Não obstante a sua apelativa harmonia paradigmática com o arcaboiço teleológico da
transformação, a sub-tese identitária não procederá. Defender a existência de uma unidade
essencial na expetativa de não destituição sem justa causa (porventura adaptável ou mutável
às devir societário e suas vicissitudes) remeter-nos-ia para o domínio da interpretação
extensiva ou teleológica dos preceitos referente à destituição ad nutum, tentando a
acomodação hermenêutica da não recondução no seu «espírito»191. Tal solução merece ser
afastada porquanto ficou demonstrado que a transformação é causa de caducidade (não de

190 Lembremos o poderoso efeito simplificador do princípio da identidade no trânsito entre tipos e a sua
importância na emancipação da dogmática da transformação das pessoas coletivas de direito privado do arrimo
estrito da homogeneidade causal, patente na UmwG de 1994. A espúria e arcaica previsão da transformação
extintiva não enferma nenhuma das conclusões: o seu lugar sistemático é o da arrumação museológica, sem valia
dogmática atuante e definidora da facie do instituto. O vagar expositivo que colocámos na sua refutação, vide
supra pontos 2.3 e 3, II, atesta, não obstante, a importância edificante de tal premissa no caminho lógico para a
solução apresentada.
191 Quedar-se-ia a correspondência literal mínima, art. 9.º, 2 CC. A nova designação resultante da caducidade do
mandato administrativo por força da transformação é estruturalmente diversa da destituição, enquanto causa de
cessação unilateral e voluntária do mesmo vínculo. Não obstante, se a primeira desagua num resultado idêntico
ao da segunda e é semelhante o conflito de interesses que subjaz a ambas as situações, encetamos já um juízo
próprio do domínio metodológico da analogia, coligindo mais uma razão para abandonar a sub-tese construída.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 67

destituição) e o real problema exegético repousa já no domínio da integração da lacuna de


colisão descoberta, mormente quando o vácuo normativo resultante da contradição teleológica
enunciada propugna, para o seu preenchimento, um juízo de similitude analógica.
Sem prejuízo, o enfoque teórico necessário não será tanto o da natureza das expetativas
estudadas (como vimos, serão mera spes vana), nem o da sua descrição estrutural estática,
indagando se as expetativas afirmadas são paralelas ou se fundem em simbiose mutável.
Determinante, isso sim, é a sua asseverada existência e a substancial afinidade que autoriza (e
demanda!) o juízo analógico de preenchimento da lacuna descoberta.
Com efeito, a quebra estrutural na aplicação do princípio da igualdade (feito operante
pelo mecanismo de aplicação analógica que encetámos) explicava a intuição originária
exposta de injustiça que provinha da transformação, perspetivada enquanto mera causa de
caducidade da relação administrativa, autorizando a sua cessação sem mais, unilateral e
gratuita, bem como da sua vizinhança com o dever de indemnização previsto para a
destituição sem justa causa. A aplicação deste último bloco normativo à situação-tipo gizada
como problema singular alcança o desígnio da integração analógica, com o plus da tutela
permitida se revelar a mais harmónica e equilibrada no âmbito das alternativas gizadas para a
composição do xadrez de interesses em jogo (talvez não seja tanto um plus, como uma prova
cabal da sua correção sistemática e da coerência normativa...).
Colijamos, agora, outros argumentos em favor da solução harmónica de tutela proposta
e façamos-la passar a prova de resistência das objeções cogitáveis, para emitir um juízo final e
conclusivo acerca da sua validade e procedência.

IV. CONCLUSÃO

1. Balanço e paz sistemática

Comecemos por enunciar a regra adquirida no final deste iter de construção jurídica:
Aquando da aprovação da transformação de sociedades comerciais (art. 134.º), ou em
sua consequência, é lícito aos sócios designar pessoa diversa do ex-administrador/gerente cujo
mandato caducou, para ocupar cargo diretivo no órgão de administração da sociedade em
cenário pós-transformação. Se o fizerem, deverá o ex-administrador/gerente ser indemnizado,
como se de uma destituição sem justa causa se tratasse, por aplicação analógica do disposto
68 Entre Caducidade e Destituição

nos arts. 403.º, 5192 e 257.º, 7.


Uma liminar observação poderia contender com a sobrevigência da expetativa frustrada
de nova designação eletiva à caducidade da relação existente, inelutavelmente induzida pela
transformação. Lembremos que a expetativa da recondução eclode aquando da apresentação
do projeto de transformação, nos termos do art. 132.º, e frustrar-se-á pela designação de
pessoa diversa para cargo eletivo na própria deliberação que aprova a transformação ou em
posterior assembleia de designação. Pergunta-se, nomeadamente, como a expetativa
ultrapassaria a barreira da caducidade da relação de administração que a enquadrava na esfera
jurídica do sujeito expectante.
O primeiro dado relevante advém da necessidade de acautelar o vazio de funções
administrativas. O disposto nos arts. 391.º, 4 e 425.º, 3, deve ser aplicado, a pari, a outras
causas de caducidade, como a transformação. Assim, a aprovação da transformação, quando
não é acompanha de nova designação eletiva imediatamente eficaz, não catalisa, per se, a
caducidade da relação de administração vigente, pois os administradores permanecem em
funções até a nova designação (sobre a mesma ou diversa pessoa) se tornar eficaz 193. Para
além da caducidade do vínculo poder não operar imediatamente há ainda trazer à colação a
figura heurística da transformação gizada sob a denominação de lastro holográfico do tipo
inicial no tipo de destino, consistindo num conjunto de relações, situações e expetativas
jurídicas ou de facto que se erigiram moldadas pela difusão normativo-legal do tipo de origem
que a transformação não afeta, ao menos, com a vis liminar da extinção.
A expetativa de recondução gerada pela própria transição entre tipos está depositada
nesse lastro holográfico194 que acompanha a sociedade transformada, e preserva a expetativa
da sua extinção que, por princípio lógico, se seguiria como correlato ou consequência da
caducidade do mandato no seio do qual ela eclodiu e se cimentou. A legítima expetativa de

192 Cfr. igualmente, o art. 430.º, 2 com remissão expressa para o art. 403.º.
193 Os efeitos da transformação relativamente ao administrador não reconduzido produzir-se-ão apenas no
momento do registo da operação de acordo com a tese defendida sobre a localização no tempo dos efeitos
próprios da transformação (vide nota 118, ponto 2.3, II). Só no momento do registo o seu mandato caducará, sem
prejuízo do tempo necessário para a nova designação se tornar eficaz, hiato durante o qual permanecerá nas
funções administrativas. Todavia, para quem defenda a tese contrária tais efeitos produzem-se imediatamente
com a aprovação deliberativa da mesma, sem necessidade de registo. Aliás, não teria cabimento excluir o
administrador dos efeitos ditos internos da operação. Repare-se que os administradores, mesmo quando não
sejam sócios, devem estar presentes nas assembleias gerais, vide art. 379.º, 4, pelo que aprovação da
transformação influiria, em princípio, de forma imediata sobre a relação de administração.
194 Desenvolvidamente, sobre a figura, sua fundamentação e valia analítica, vide pontos 2.3 e 3, II, descrevendo
como a sua afirmação pode revelar-se crucial na compreensão de algumas bolsas de ultra-atividade de regimes
anteriores à transformação, e teoricamente contrários ao tipo de destino ou adotado.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 69

recondução sobrevive à vertigem da mudança tipológica através da ponte dogmática195 que a


figura do lastro holográfico representa, para que depois figure frustrada na esfera jurídica do
ex-administrador não reconduzido, justificando o recurso à analogia com as regras da
destituição sem justa causa, pela acentuada similitude entre as expetativas malogradas em
ambos os casos. Poder-se-ia objetar, não obstante a afirmação da transposição de situações
jurídicas para a sociedade transformada através da figura do lastro holográfico, com a
inexistência, primo conspectu, de um critério que almeje validade na eleição das situações
(mormente expetativas) que são preservadas no trânsito tipológico196.
Mas, em bom rigor, se o legislador não blindou certas expetativas (como sejam a dos
credores na manutenção de um regime de fiscalização societária mais protetivo dos seus
interesses), também não deixou de preservar outras: a expetativa da não degradação da
qualidade ou alteração unilateral dos créditos pertencentes a credores comuns ou especiais
(arts, 138.º e 139.º, 1), O mesmo se pode dizer, mutatis mutandis, de terceiros titulares de
pretensões jurídico-reais, art. 140.º. E, no silêncio do legislador quanto à situação-tipo tratada,
relativamente à expetativa de recondução, é apenas curial (maxime, tratando-se de lacuna de
colisão), não escolher uma solução interpretativa eletiva (que seria puramente arbitrária), mas
procurar arrimo seguro no caso análogo que, como provado, jaz na hipótese normativa da
destituição sem justa causa.
Por outro lado, retornando à cartilha de princípios informadores da transformação,
poder-se-ia argumentar no sentido de que a solução gizada, com o output da aplicabilidade de
uma tutela indemnizatória é também contrária ao princípio de favor à transformação que, em
contradição teleológica com a tutela proveniente do abuso de direito tout court, permitiu
rejeitar esta última. Tal objeção assentará, sobretudo, na ideia de que a transformação se

195 O transporte do acervo situacional jurídico e fáctico que a figura do lastro holográfico permite, pela ligação
dinâmica entre cenário pré e pós-transformação, apresenta algumas afinidades com o instrumento dogmático do
status via. Vide DIOGO COSTA GONÇALVES, “Direitos especiais e o Direito de Exoneração em sede de fusão, cisão e
transformação de sociedades comerciais”, em OD II (2006), pp. 351-362 descrevendo a figura do status via
como um «conjunto unitário e harmónico de situações jurídicas atinentes aos sócios, não, simplesmente,
enquanto sócios de uma sociedade comercial, mas enquanto sócios de uma sociedade comercial em
modificação» (itálico do autor). Trata-se, com efeito, do status socii sob visão dinâmica, ou seja, in via. A figura
do lastro holográfico situacional, especificamente gizada para o instituto da transformação, tem uma abrangência
material e subjetiva maior, porquanto não se cinge à consideração de situações estritamente jurídicas (albergando
a spes vana, como vimos) e permite, porque não deriva do status socii, albergar as expetativas malogradas do
administrador não-sócio.
196 Como vimos, ponto 3, Cap. II, a respeito da tutela de credores, a transformação não os isentou da adaptação
às regras do novo tipo, que podem ser menos favoráveis (vide a transformação regressiva e o downgrade das
regras de fiscalização da sociedade), pelo que a expetativa que pudessem acalentar quanto à manutenção de
regimes direta ou indiretamente protectivos saiu malograda.
70 Entre Caducidade e Destituição

tornará eventualmente mais dispendiosa ou onerosa pela necessidade de indemnizar o


administrador não reconduzido.
Para além de obnubilar que o dever de indemnizar está limitado (cfr. arts. 257.º, 7 e
403.º, 5, o legislador terá acautelado, desde logo, a refração deste tipo de tutela na oneração
da sociedade) a objeção enferma igualmente de profunda miopia lógica ao desconsiderar um
dos vetores que animou a nossa campanha científica: a busca de uma tutela harmónica ou
equilibrada para o problema singular abordado. Entre a latente hiper-reação resultante do
mecanismo sancionatório que a figura da deliberação abusiva ou do abuso de direito, nos
termos do art. 334.º, convocava, e a absoluta desproteção do ex-administrador lesado que a
aplicação da transformação, enquanto mera causa-de-caducidade, induziria na equação de
interesses (eventualmente mascarando, em resultado fraudatório de cessação unilateral e
gratuita do mandato de administração, na ausência de justa causa), a solução gizada assoma
como catalisador de harmonia e coerência sistemática.
Desenvolve, igualmente, um plus na harmonização do conflito de interesses em jogo,
pois elimina distorções ou ruídos. A iconoclastia da primeira solução poderia, como vimos,
resultar na destruição de uma operação benéfica e necessária para a sociedade 197. A segunda,
que em rigor se reconduz à inexistência de tutela, poderia bloquear igualmente a operação de
mudança de tipo, mas a montante, no seu momento de génese volitiva. Senão vejamos. Ante o
vácuo de tutela, a incerteza quanto à sua recondução, poderia coibir ou constranger os
administradores a propor a operação (lembremos o art. 132.º), fechando-os em cluster de
preocupações individuais, com potenciais efeitos nocivos para a sociedade. E, em boa
verdade, tal incerteza será apenas uma face de um dilema que dilacera a atuação dos
administradores. De um lado, a incerteza da recondução; do outro, a certeza de que, em certas
situações conjunturais, a não apresentação do projeto de transformação, configura grave
violação dos deveres de zelo e diligência e funda, outrossim, justa causa de destituição (vide
art. 64.º).
Em conclusão, através da solução aventada, a transformação só aparentemente fica mais
onerada, pois os ganhos lógicos e harmónicos da eliminação das distorções e bloqueios que a
ausência de tutela congregava, ultrapassam em muito o custo (monetário) da indemnização

197 A transformação é assunto que concerne à administração da própria sociedade, mas reflexamente
relevantíssimo no que diz respeito administração empresarial. Talvez por isso se sublinhe que a decisão de
transformação de uma pessoa coletiva é já a decisão do ente jurídico e não dos seus sócios ou associados, se bem
que (ressalvando visões extremadas de institucionalismo) a vontade da pessoa coletiva se obtenha pela
intervenção destes. Neste sentido, J. M. COUTINHO DE ABREU, Governação...cit., p. 126.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 71

devida (legalmente limitada), fazendo com que, no final de contas, a solução normativa de
integração analógica se compatibilize efetiva e sistematicamente com o vetor de favor à
transformação198.
Salutar repercussão normativa da tese construída, pelo recurso à tutela indemnizatória, é
a uniformização do estatuto do administrador, seja ele sócio ou não sócio. Uma das críticas
mais severamente dirigidas à reação tutelar baseada no carácter abusivo ou fraudatório da
deliberação de transformação vertia-se, como vimos, na carência de legitimidade do
administrador não-sócio para a impugnação de tal deliberação. Ainda que se tentasse
ultrapassar tal óbice com o recurso imediato à válvula de escape sistemática do art 334.º CC, a
distorção originalmente sugerida apenas se deslocava para o jusante patológico do ato
abusivo, traduzida na afirmada intermitência entre anulabilidade e nulidade.
Coligimos aqui uma nítida vantagem uniformizadora da tese proposta. Contudo, seria
arguição possível notar que o recurso uniforme à tutela indemnizatória poderia «desagravar» a
ilicitude ínsita na deliberação que se provasse efetivamente abusiva. Essa mácula de
contrariedade à lei pareceria então passar a segundo plano, já que a impugnabilidade direta do
ato provado abusivo daria então lugar à uniforme e isolada aplicação da tutela indemnizatória,
em homenagem aos princípios reitores da transformação. Apenas uma epidérmica leitura da
solução gizada faria desvanecer ou diluir o vício da deliberação, porquanto, pese embora a
indemnização seja paga pela sociedade, esta terá direito a ser indemnizada desse prejuízo
pelos sócios que votaram abusivamente, vide art. 58.º, 3. A solução tem a elegância mecânica
de blindar a transformação da impugnabilidade do ato respetivo pelo ex-administrador lesado,
relocalizando a perseguição ou depuração do vício que inquina o ato deliberativo, vide art.

198 Ainda no âmbito da implantação sistemática da solução construída, cabe indagar qual a acomodação lógica
dos casos excecionais à regra da livre destituição. Foi nossa premissa científica aludir apenas aos casos em que,
não obstante a ausência de justa causa de destituição, o administrador/gerente podia ser livremente destituído
pelos sócios. Cabe notar que para certos administradores, v.g., os membros da comissão de auditoria está vedada
a destituição sem justa causa. A regra é claramente excecional, pelo que não comportaria aplicação analógica no
caso da caducidade de um mandato do membro da comissão da auditoria, por transformação da SA em SQ, (art.
11.º, CC). Assim, não poderíamos fundar nessa exceção de ilicitude (a destituição é, em regra, facto lícito) uma
eventual impugnação da transformação por parte do administrador lesado, exigindo a restituição do status quo
ante. Todavia, procedendo a validade da solução de integração normativa propugnada, i. é, aceitando-se que o
administrador destituível, mesmo sem justa causa, seja indemnizado porque não foi re-designado na sociedade
transformada; por maioria de razão, também o administrador não destituível sem justa causa o deverá ser,
quando uma vicissitude como a transformação faça caducar o seu mandato no hiato para o qual vai validamente
designado. Até porque o hiato temporal do exercício do mandato pode ser bastante curto, art. 391.º, 3, não se
justifica que a transformação sirva de pretexto fraudatório para uma cessação unilateral gratuita. Depõe no
mesmo sentido o suposto estatuto de autonomia ou independência destes administradores (art. 423.º-B e ss.).
Basta relembrar que outra exceção à licitude da destituição ad nutum repousa na hipótese do art. 392.º, no que
concerne ao «administrador das minorias».
72 Entre Caducidade e Destituição

58.º, 1, b), no seio das relações internas, cabendo à sociedade responsabilizar os votantes
abusivos199. Daí que a eventual objeção referente à diluição da ilicitude do voto efectivamente
abusivo pela solução proposta não possa proceder.
Aliás, a aplicação analógica da tutela indemnizatória ao caso do ex-administrador não
reconduzido pela vicissitude da transformação parece encontrar seguros alicerces de
procedência e ecos de confirmação em diferentes preceitos ou previsões normativas dispersas
no ordenamento e exteriores ao CSC.
Eloquente, nesta matéria, é o Decreto-Lei n.º 71/2007, de 27 de março, alterado e
republicado pelo Decreto-Lei n.º 8/2012, de 18 de janeiro, consignando o Estatuto do Gestor
Público. Segundo o seu artigo primeiro será gestor público a pessoa designada para órgãos de
administração de empresas públicas, societárias ou EPE (entidade pública empresarial)200.
Poderoso argumento repousa na disjunção alternativa que a fattispecies do seu art. 26.º
alberga. No art. 25.º está prevista, grosso modo, a figura da destituição fundada em justa
causa, patente no elencar de «situações individualmente imputáveis» ao gestor que catalisam
a cessação do mandato (n.º 3) e precludem a perceção de qualquer subvenção ou
compensação pela término de funções. Por sua vez, o art. 26.º consigna, na sua hipótese
normativa, o exercício da destituição sem justa causa, livre ou ad nutum201, introduzindo-lhe,
contudo, uma nota distintiva. A destituição sem justa causa do gestor público ocorre (vide a
epígrafe do preceito), em virtude de «dissolução» do órgão de gestão ou de «demissão» do
gestor «por mera conveniência», sendo o gestor titular de direito a indemnização, calculada
nos termos do recentemente alterado n.º 3, em ambas as situações. A diferenciação de

199 Partimos do princípio de que tanto a deliberação em si como os votos constituintes poderão ser considerados
abusivos. Neste sentido, vide LUÍS BRITO CORREIA, Direito Comercial - Deliberações dos Sócios, Vol. III,
A.A.F.D.L, 1995, pp. 341-342, nota 56, e M. CARNEIRO DA FRADA, Teoria da confiança e responsabilidade civil,
Almedina, Coimbra, 2004, pp. 850 e ss.; contra, defendendo que o voto não é propriamente abusivo, apenas
havendo deliberações abusivas, vide PINTO FURTADO, Deliberações de Sociedades Comerciais, Almedina,
Coimbra, 2005, pp. 679 e ss. O art. 58.º, 3 não prescreve a responsabilidade de todos os sócios cujos votos
formaram a maioria em deliberação abusiva, homogeneizando todos os votos como patológicos ou abusivos. É
mister considerar que apenas o votante abusivo deve ser responsabilizado, pois o emitente de voto não abusivo
não pratica qualquer facto ilícito. Cabe ainda notar que a não anulação da deliberação abusiva – v.g., porque esta
venceu a «prova de resistência» - não impede a responsabilização. Vide V. LOBO XAVIER, Anulação de deliberação
social e deliberações conexas, Atlântida Editora, Coimbra, 1976, pp. 321-322, nota 72. Esta relativa autonomia
do mecanismo de responsabilização do votante abusivo compagina-se perfeitamente com a tese apresentada. O
afastamento justificado das reações tutelares baseadas no abuso, não precludem, em homenagem a essa
autonomia, a responsabilização do votante abusivo, garantindo que a ilicitude do ato abusivo não se dilua pelo
mero e isolado recurso à tutela indemnizatória.
200 Vide Dec.-Lei n.º 558/99, de 17 de dezembro, relativo ao Sector Empresarial do Estado.
201 Indício heráldico disso mesmo é o reiterar do advérbio de modo «livremente» a propósito do exercício da
destituição sob a forma de dissolução ou de demissão, a que se junta a expressamente referida independência em
relação a qualquer um dos fundamentos descritos nos artigos anteriores, nomeadamente o art. 25.º.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 73

situações-tipo não pode contender apenas com a dicotomia entre uma destituição individual
ou singularmente determinada e a destituição em bloco, in totum, de todos os membros de
determinado órgão de administração.
A contraposição entre dissolução e demissão por mera conveniência, mormente pela
amplitude teleológica depositada na primeira, afiança a certeza de que o legislador quis ligar o
direito à indemnização do gestor a causas «objetivas» 202 de cessação de funções. Com efeito,
parece-nos que uma vicissitude, como a transformação ou a fusão de uma EPE ou empresa
pública societária, acarretando a dissolução extintiva (em bloco) de determinado órgão de
administração terá como consequência a eclosão de um dever de indemnização do gestor
cujas funções cessam durante o período para o qual foi validamente designado. Assim dita a
subsunção cristalina desta eventual situação-típica à hipótese normativa do art. 26.º, 1. Esta
aproximação patrocinada pelo legislador público-administrativo, da tutela indemnizatória do
gestor a uma causa objetiva de cessação do vínculo administrativo, como a transformação
(pois esta implica a «dissolução» de certo órgão de administração), fornece um profundo
paralelismo sistemático e valorativo com transformação enquanto causa de caducidade do
mandato de administração estabelecido, no seio do direito privado-societário.
Despontamos, neste conspecto, mais um inelutável indício da concatenação harmónica
dos interesses em causa produzida pela aplicação analógica da tutela indemnizatória a
hipótese estudada. Salvas as fundamentais diferenças estatutárias existentes entre gestor
público e privado, não nos parece abusivo sublinhar o essencial isomorfismo entre situações.
No âmbito do direito privado-societário, a solução tutelar analógica proposta, resolve o
conflito de interesses subjacente, exatamente da mesma forma que o legislador público-
administrativos o fez, noutra paragem do sistema, ao prever específica e expressamente a
tutela indemnizatória (igualmente limitada – vide art. 26.º, 3 do diploma em apreço), como
consequência da transformação-dissolução do órgão de administração. E essa convergência
sistemática é chamativo catalisador de coerência normativa203.
Por outro lado, não cabendo aqui tratar da controvérsia que paira em torno da definição

202 Objetivas, porque se afastam da matriz voluntária de cessação unilateral pura que as figuras da destituição
sem justa causa ou da demissão «por mera conveniência» (comodatando a expressão do legislador), convocam
enquanto causas extintivas do vínculo de mandato de administração estabelecido.
203 Para temperar a transposição da summa diviso no argumento de paralelismo expendido podemos relembrar
que a própria designação, momento fundante da relação administrativa, é figura própria do direito das
sociedades (que não se reconduz a mera proposta contratual) e surge «decalcada das nomeações públicas». Vide
A. MENEZES CORDEIRO, «Anotação ao art. 391.º»...cit., p. 1049. Talvez por isso não se revele elemento puramente
inaudito o dogmático parentesco público-privado entre institutos e preceitos.
74 Entre Caducidade e Destituição

do que seja a natureza intrínseca da relação de administração204, pode dizer-se, admitindo-se a


tese contratual, que o contrato de administração seria disciplinado pelas condições
concretamente estipuladas «entre administrador e o órgão ou entidade que o nomeou e,
supletivamente, pelas disposições do C.S.C e do Código Civil sobre o contrato de prestação
de serviço e de mandato (arts. 1156.º e segs.)» 205. Todavia, tratando-se de mandato comercial,
pois teria por escopo a prática de atos de comércio, aplicar-se-iam, ainda, as disposições do
CCom. sobre o mandato, os arts. 231.º e ss. Interessa sobretudo notar a articulação entre os
arts. 245.º e 246.º, CCom, que se resolve numa contraposição análoga à anteriormente
verificada no Estatuto do Gestor Público, entre causa subjetiva ou voluntária de cessação
unilateral do vínculo administrativo (a destituição, «não justificada», dando lugar à
indemnização por perdas e danos, vide art. 245.º), e causas de pendor objetivo ou posto, tendo
por consequência a cessação do mandato (a interdição ou a morte cfr. art. 246.º), atribuindo
uma «compensação proporcional» ao que o mandatário haveria de receber «no caso de
execução completa» do mandato. O princípio de limitação da cessação não derivada de
destituição (com ou sem justa causa) presente no art. 246.º é o mesmo albergado pela ratio do
art. 403.º, 5, in fine e art. 257.º, 7 (embora, no CSC, a limitação se reporte às situações de
204 Por referência ao momento determinante da génese da relação de administração, a designação, polvilham os
Autores de nuances conceptuais as diferentes teses existentes sobre tal temática. A tese que em seguida
utilizaremos para despontar um argumento de favor sistemático à solução propugnada é a contratualista
(assentando na qualificação da relação de administração como contrato de mandato comercial). Contudo, outras
configurações possíveis para a tese contratualista assomam: contrato de prestação de serviços, contrato de
trabalho, contrato de administração. Vide, por todos, L. BRITO CORREIA, Os administradores...cit., pp. 303 e ss., e
A. MENEZES CORDEIRO, Da responsabilidade civil ... cit., pp. 335 e ss. Atendendo somente ao modo de designação
paradigmático dos administradores, a deliberação dos sócios (maxime em assembleia geral), o leque de teses é
variado. Pode entender-se que a eleição articulada com a aceitação do cargo, art. 391.º, 5, forma um contrato de
administração, sendo a primeira proposta contratual e a segunda a aceitação da mesma. Vide RAÚL VENTURA,
Novos Estudos sobre sociedades anónimas e sociedades em nome colectivo – Comentário ao CSC, (reimp. ed.
1994), Almedina, Coimbra, 2003, pp. 32-33. COUTINHO DE ABREU, Curso...cit., vol. II, p. 536, advoga ser
preferível entender a deliberação eletiva como um negócio unilateral da sociedade, relativamente ao qual a
aceitação representa condição de eficácia. Isto porque a deliberação eletiva não propõe a designação daquele
futuro administrador, simplesmente fá-la, aceitando-a ou não o designado. Indício claro parece resultar do art.
3.º, 1, m), CRCom, ao prever-se a deliberação eletiva, independentemente da aceitação, como facto registável e
sujeito a impugnação judicial. Todavia, é apanágio da praxis, não obstante o acto de designação se tornar perfeito
com a mera aceitação, «sobrepor» a tal designação aceite um contrato entre o designado e a sociedade que
disciplina determinados aspetoss da relação. A relação dimanada do acto de designação tem suficiente
densificação na lei, no estatuto e nas deliberações, pelo que o contrato emerge como uma faculdade
complementar de regulação (arts. 253.º, 4, 257.º, 7, 403.º, 5) não uma conditio ou necessidade fundante da
relação administrativa. Esta faculdade notar-se-á, de forma relevante, no que às convenções de indemnização diz
respeito, tendentes a regular o direito à indemnização previsto nos artigos citados para a destituição sem justa
causa. Se relação administrativa assentar em contrato, deve entender-se que este não se qualifica como contrato
de trabalho, justificando-se esta exclusão, no essencial, pela incompatibilidade entre a subordição jurídica
laboral típica deste último e o estatuto próprio dos administradores. A qualificação torna-se mais fluída, contudo,
considerando o exercício de funções laborais em «comissão de serviço», art. 161.º e ss., CT. Vide, com mais
vagar, COUTINHO DE ABREU, Governação...cit., pp. 75-76.
205 Neste sentido, ANTÓNIO PEREIRA DE ALMEIDA, Sociedades comerciais, 4.ed., Coimbra Editora, Coimbra, 2006.
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 75

destituição sem justa causa).


Relevante é mesmo a previsão de uma «compensação» para as situações em que o
mandato objetivamente cessou, indiciando que o silêncio do legislador societário no CSC,
sobre a não recondução do administrador na sociedade transformada pela caducidade natural
do seu vínculo, não pode ser valorado como indiferença à necessidade de tutela do mesmo.
Aliás, tal previsão é dado normativo que se compagina imediatamente com um
acréscimo legitimador da necessidade afirmada de tutela do ex-administrador, premissa
operativa do preenchimento da lacuna demonstrada.206

206 Alguns dos dados coligidos no direito comparado são assaz interessantes. Salvas as naturais diferenças
jurídico-estruturais, surpreendem-se manifestações diversas da ideia de que a cessação do vínculo próprio da
relação de admnistração a pretexto da transformação societária merece forma de tutela, ao menos quando a
deliberação esteja impregnada de cariz abusivo-emulativo ou intuito fraudatório.
Perfeitamente eloquente, neste sentido, é a Lei n.º 6.404, de 15 de Dezembro de 1976, Lei das Sociedade
Anônimas brasileiras, dispondo sobre «sociedades por ações» (versão compilada consultada em
«http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L6404compilada.htm»). Dispõe o seu art. 117.º: «O acionista
controlador responde pelos danos causados por atos praticados com abuso de poder. § 1º São modalidades de
exercício abusivo de poder: (...) b) promover a liquidação de companhia próspera, ou a transformação,
incorporação, fusão ou cisão da companhia, com o fim de obter, para si ou para outrem, vantagem indevida, em
prejuízo dos demais acionistas, dos que trabalham na empresa ou dos investidores em valores mobiliários
emitidos pela companhia (...)» (nosso itálico). Cfr. igualmente o art. 158.º, I e II do mesmo diploma articulando
um princípio geral de responsabilidade do administrador. Salienta-se, com efeito, a sensibilidade do legislador
brasileiro para a situação-tipo que desencadeou a nossa investigação, i.é, a possibilidade da deliberação de
transformação se revelar, nas palavras da lei brasileira, «modalidade de exercício abusivo de poder». Cabe
igualmente notar como o leque dos eventuais lesados é pormenorizado e vasto, incluindo não só outros
acionistas, mas também o público-investidor ou aforrador e os próprios trabalhadores que podem, pelo meio
tutelar previsto, responsabilizar diretamente o «acionista controlador». Pode-se, também no conspecto do direito
brasileiro, colocar a questão da legitimidade do administrador não-acionista para atuar processualmente na
responsabilização do acionista controlador pela prática de abuso de poder. Com efeito, nos termos do art. 146.º,
qualquer pessoa natural para a qual não se verifique impedimento (147.º, § 1), pode ser designada administrador
(devendo apenas os diretores ser residentes). Por sua vez, art. 159.º, § 3.º, consigna um prazo de três meses para
impugnação subsidiária à promovida pela própria «companhia» de que qualquer «acionista» pode lançar mão
para atacar a deliberação de transformação abusiva. Salvo melhor opinião, atento o elenco vastíssimo de
interessados na impugnação que o art.º 117.º, 1.º, b) não repugnará estender teleologicamente o preceito,
abrangendo o administrador que não seja acionista (aplicável, ex vi art. 145.º, aos diretores e conselheiros)
No direito francês, os membros do conselho de administração são, em geral, destituíveis ad nutum, sem
direito a indemnização. Mas o administrador não fica desabrigado de tutela ante situações abusivas, porquanto o
direito a ser indemnizado é reconhecido – e note-se, não a anulabilidade da deliberação – quando a deliberação
tenha cariz abusivo. Vide COZIAN/VIANDIER/DEBOISSY, Droit des sociétés, 17e éd., Litec, Paris, 2004, pp. 236-238.
No domínio do direito alemão, rege a UmwG de 1994, ponto de charneira da lei e doutrina teutónica no
domínio da transformabilidade de pessoas coletivas de direito privado (e público, nos casos legalmente
previstos, vide § 301 (2) e ss.), permitindo a ampla diversificação dos binómios de transformação, maxime
heterogénea. Sobre a Formwechsel ou alteração de forma, nas disposições gerais do seu Livro V, prevê o § 203.º,
da mesma forma que o ente se modifica, uma modificação transitiva-formal do conselho geral e de supervisão
para o novo ente transformado, permanecendo com os mesmos membros. Contudo, ressalva, imediatamente in
fine, a possibilidade do grémio societário alterar a composição do conselho geral e de supervisão transitado para
o ente transformado (influenciando, por conseguinte a composição do Vorstand). Acaso esta deliberação inquine
de cariz abusivo será mister atender ao critério consignado no § 243, (2), AkGt, mormente no que diz respeito ao
bloqueio da anulabilidade do ato, quando verifica uma compensação que reponha o equilíbrio económico.
76 Entre Caducidade e Destituição

2. Aplicação da regra enunciada e cálculo da indemnização.

Desembocou a exposição precedente na formulação de uma regra de aplicação


analógica, densificada pelo recurso à tutela indemnizatória (arts. 403.º, 5 e 257.º, 7) do ex-
administrador cuja expetativa de recondução na sociedade transformada saiu gorada pela
designação eletiva de pessoa diversa para o exercício de funções de administração.
Devemos, para a aplicação dessa regra, e em primeiro lugar, verificar se o cálculo da
indemnização foi pré-determinado em sede contratual207. Sem nenhuma estipulação nesse
sentido, resta recorrer ao cálculo nos termos gerais de direito, arts. 562.º e ss., CC, matizados,
contudo, pelos plafonds ou limites máximos208 previstos no art. 403.º, 5 e 257.º, 7,
correspondentes ao montante de remunerações que o administrador teria auferido até ao termo
do período para o qual foi designado (ou até ao final de um período de quatro anos, se foi
designado por tempo indeterminado). Este é apenas o limite máximo da indemnização, não
havendo uma necessidade lógica de equivalência. Se o princípio é o da reparação dos danos
sofridos, este podem quantificar-se em valor bem inferior ao daquele limite. Basta cogitar o
surgimento imediato de oportunidade para o exercício de outra atividade de idêntico nível
remuneratório, após a não-recondução que se verteu analogicamente em destituição sem justa
causa209.
Por outro lado, o ónus probatório da existência e a extensão valorativa de tais danos (e
também dos lucros cessantes) caberá ao administrador alegadamente lesado pela sua não
recondução na sociedade transformada210.
A leitura epidérmica dos arts. 403.º, 5 e 257.º, 7 poderia inculcar a ideia de que apenas
seriam indemnizáveis os lucros cessantes. Nas hipóteses normativas daqueles preceitos eles
figuram, todavia, como mero marco ou limite máximo, nada dizendo sobre a exclusão dos

207 E importa perceber a que título, distinguindo entre convenção de indemnização por destituição e
remuneração extraordinária para casos de cessação da relação orgânica diferentes de destituição. Esta segunda
corresponde a uma importância em dinheiro (v.g., correspondente à remuneração de um ano) que se delibera
atribuir a um administrador quando este cesse o exercício de funções (normalmente fixada no momento em que
se determina a sua remuneração «normal». COUTINHO DE ABREU, Governação...cit., p. 90, considera válida tal
estipulação, admitindo que estaremos perante uma remuneração diferida ou complementar, tout court
extraordinária se da deliberação que a fixa resultar que apenas se aplicará nos casos de caducidade do mandato
por verificação do termo supletivo de quatro anos de duração, por acordo revogatório entre sociedade e
administrador ou por renúncia deste (gerada pela mudança de controlo societário). No caso vertente, a
caducidade proveniente da transformação figuraria como causa válida para esta remuneração diferida ou
extraordinária. Mais controvertido, porque imersa no plano da interpretação do contrato de sociedade (tudo
dependerá da forma como se clausula tal direito), é saber se uma convenção de indemnização por destituição
poderia ser aproveitada pelo administrador não reconduzido, para mais quando se considere a similitude entre
não recondução e destituição (muda apenas o ambiente normativo específico em que a cessação ocorre).
Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 77

danos emergentes, se verificados. Se os danos emergentes devem ser atendidos na equação de


cálculo indemnizatório, parece-nos que já não serão compensáveis os danos não patrimoniais
advenientes da não-recondução. A angústia ou sofrimento psíquico do ex-administrador não
será aqui invocável, porquanto a regra da livre destituição não se suspende, como vimos, no
intermezzo lógico que a transformação - enquanto trânsito entre tipos - representa, não
podendo o administrador ignorar a possibilidade de que a nova designação eletiva sobre si não
recaia211.
Na aritmética da determinação do valor da indemnização devida ao ex-administrador
podemos trazer à colação, até porque o cálculo se faz nos termos gerais do direito, a figura da
«compensação de vantagens»212, discernível na situação em que o administrador não
reconduzido depois de uma transformação consegue, antes do termo período para o qual foi
originariamente designado, outro cargo de administração (assim cumprindo o ónus de
contribuir para atenuar o dano sofrido - art. 570.º, 1, CC).
As remunerações auferidas por conta das novas funções desempenhadas devem ser
compensadas com os lucros cessantes referentes ao seu mandato primogénito, dando-se a
redução ou eliminação do dano, em sintonia com a «teoria da diferença».
A indemnização poderá ainda ser reduzida, na ausência de qualquer vantagem derivada
de cargo ulterior à não recondução, se esse vácuo apenas se ficou a dever à atuação do
administrador sem normal diligência. Caberá à sociedade (art. 342.º, 2, CC) alegar e provar
tanto a situação em existem vantagens ulteriores à não recondução que permitem reduzir ou
eliminar o dano e, por conseguinte, a indemnização; como a situação em que a inexistência
dessas vantagens se deveu à inércia de uma atuação do ex-administrador não pautada pela
208 Sobre a (alegada) inconstitucinalidade material do art. 403.º, 5, ao estabelecer um limite indemnizatório, por
violação do art. 62.º, 1 da CRP, vide ANTÓNIO MENEZES, Manual ...cit., vol. I, pp. 903. Vide, em sentido favorável à
conformidade do preceito com a lei fundamental, RICARDO RIBEIRO, «Do direito ....» cit., pp. 818-819.
209 Cabe à sociedade provar a existência dessa oportunidade. Vide COUTINHO DE ABREU, “Diálogos com a
jurisprudência, III – Destituição de administradores”, em DSR, vol. V, Almedina, Coimbra, 2011, p. 22.
210 Em consonância com o asseverado sobre a alocação do ónus probatório vide Acs. do STJ de 07/02/2006,
CJ-STJ, 2006, t. I, pp. 61-62, de 11/7/2006, CJ-STJ, 2006, t. I, p. 143 e o Ac. TRL de 18/02/2002, CJ, 2002, t. V,
p. 232. Em dissonância com a regra de distribuição do ónus, vide RAÚL VENTURA, Sociedades por quotas...cit., p.
119, e PINTO FURTADO, Curso.... cit., pp. 369-370.
211 COUTINHO DE ABREU, Curso...cit., Vol. II, p. 641, considera que, a existirem, tais danos psicológicos ou morais
não se revestem da gravidade suficiente para merecer a tutela do direito, art. 496.º, 1, CC. Segundo o Autor,
relativamente à deliberação de destituição propriamente dita, pode a sociedade ter de compensar o ex-
administrador por danos não patrimoniais resultantes do modo como o destituiu. Imagine-se a alegação
infundada da violação de deveres ou ineaptidão do admnistrador, gerando-se fundamento autónomo de
responsabilidade, diferente do previsto nos arts. 403.º, 5 e 257.º, 7 e, como tal, não sujeito aos limites aí
plasmados.
212 Crismada no brocardo «compensatio lucri cum damno». Vide P. MOTA PINTO, Interesse contratual negativo e
interesse contratual positivo, vol. I, Coimbra Editora, Coimbra, 2008, pp. 710 e ss.
78 Entre Caducidade e Destituição

normal diligência213.

O ocaso conclusivo-catártico deste deambular em dissertação deixa-nos, no seu último,


raio, a certeza de que a tese apresentada resistiu à erosão das objeções gizadas, colhendo o
favor da procedência lógica e da validade normativa, pela sua coerência sistemático-
valorativa e resultado tutelar harmónico, no plano do atual direito societário português.

213 Vide Ac. do TRC, de 30/11/2010, consultado em «www.dgsi.pt».


Transformação de sociedades comerciais e cessação da relação de administração 79

RESUMO

O relatório final de mestrado apresentado, com filiação teórica no domínio do direito


comercial, mormente no direito societário, surpreende uma temática própria da corporate
governance, a destituição de gerentes/administradores, à luz de um ambiente normativo
específico, o da transformação societária.
Foi nosso propósito determinar, numa perspetiva dinâmica, de status in via, quais as
ressonâncias morfológicas verificadas na posição jurídica do gerente ou administrador (sócio
ou não-sócio), sobre o qual não pende nenhuma justa causa de destituição, quando, no
decurso do período de exercício de funções de administração para o qual foi validamente
designado, a sociedade delibera a transformação e, em consequência, elege pessoa diversa
para a constituição dos novos órgãos sociais, fazendo caducar a relação de administração
Finalmente, a partir do confronto das diversas formas de tutela equacionáveis, gizamos
uma solução harmónica e sistematicamente elegante traduzida pela aplicação analógica das
regras de destituição sem justa causa dos arts. 403.º, 5 e 257.º, 7, CSC à situação-tipo objeto
de análise, garantindo, deste modo, o equilíbrio lógico entre a demonstrada expetativa
legítima de recondução nutrida pelo gerente/administrador no trânsito entre tipos e a regra de
licitude da destituição ad nutum, que não deixa de figurar intermezzo formal que a
transformação representa para o ente coletivo.

Abstract

The presented master's degree final report, with a theoretical affiliation in the field of
commercial law, particularly in corporate law, addresses a separate subject of corporate
governance: the dismissal or removal of company directors, in light of a specific regulatory
environment, that of the changing corporate form (or corporate transformation).
Our purpose was to determine, in a dynamic, status in via perspective, what were the
main morphological implications observed in legal position of the director (whether partner or
non-partner), on whom there was not any impending cause of removal, when, during the
period of office administration for which he was validly appointed, the company decides to
change its legal form and, therefore, elect a different person to form the new governing
bodies, provoking, without more, the expiry or decrepitude of the existing relationship of
management.
Finally, after confronting the different forms of protection available, we purposed an
harmonious and systematically elegant solution translated by the analogy with the rules of
removal without cause from the articles 403.º, 5 and 257.º, 7, CSC («Código das Sociedades
Comerciais») to frame the situation under analysis, thus ensuring the logical balance between
the proved legitimate expectation of renewal fostered by the director, despite the transit
between legal types of corporate form, and the legal rule of ad nutum removal of the directors,
still present on the formal intermezzo that transformation represents to the corporate body.
80 Entre Caducidade e Destituição

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