Kierkegaard e o Tédio
Kierkegaard e o Tédio
Kierkegaard e o Tédio
64 • 2008
Kierkegaard e o Tédio
Nuno Ferro *
Resumo: Segundo o autor do artigo, o estudo do tédio na obra de Kierkegaard tem sido
objecto de relativamente pouco interesse, sobretudo quando comparado com a angús-
tia, a melancolia, a ironia ou o desespero. A verdade, porém, é que o tédio constitui
uma disposição fundamental, um limite extremo de uma forma da existência. Neste
sentido, o artigo pretende fazer uma análise das principais formas que a disposição
do tédio assume, e da sua particular relevância no interior do que, na obra de Kierke-
gaard, se chama “estádio estético”. Em ordem a esse fim, o autor analisa a relação que
o tédio mantém com as possibilidades que a vida disponibiliza e, sobretudo, a sua
peculiar relação com o nada. Mostra-se sobretudo que tipo de lucidez se pode consi-
derar como efeito do tédio, qual o aspecto da vida que nele se torna patente e de que
forma, por ele, o sujeito acaba por reconhecer estar constituído numa superioridade
relativamente a tudo o que é finito. Assim, no centro deste estudo estão as determi-
nações fundamentais de disposição e de finito, bem como, num segundo momento,
o esboço de uma “anatomia comparada” das disposições fundamentais do sujeito
humano, a saber, do tédio, da melancolia e da angústia.
Palavras-Chave: Angústia; Cómico; Demoníaco; Disposições afectivas; Diversão;
Estádio Estético; Estético; Felicidade; Horror; Interesse; Ironia; Kierkegaard,
Søren (1813-1855); Liberdade; Melancolia; Nada; Nada; Pecado; Possibilidade;
Tédio.
Abstract: ����������
The study ����������������������������
of boredom in Kierkegaard’s ������������������������������
work has attracted relatively �������������
little inter-
est compared to the more visited themes of anxiety, melancholy, irony and despair.
For Kierkegaard, boredom is a fundamental mood. And only when we are in this mood
can we experience one of the extreme states of existence. For Kierkegaard, boredom
manifests itself in what he terms the “aesthetic stage”. With this premise in mind, the
article explains the relationship boredom has with the possibilities life puts before us,
but more importantly its peculiar relationship with nothingness. The article explores
in particular the effect boredom has on lucidity and, more specifically, attempts to
answer the question about the aspect of life that is better perceived when the subject
is in a state of boredom. A crucial question, for example, is this: how does being in
a state of boredom reveal to the human subject the fact that he/she is superior to
everything that is finite? At the centre of the article are the notions of mood and finite-
ness, in accordance to which the author delivers what might be called a “comparative
anatomy” of fundamental states of human existence such as boredom, melancholy
and anxiety.
Key Words: Aesthetic Stage; Aesthetic; Anxiety; Boredom; Comic; Demonic; Diver-
sion; Freedom; Happiness; Horror; Interest; Irony; Kierkegaard, Søren (1813-
‑1855); Melancholy; Moods; Nothingness; Possibility; Sin.
A
análise da disposição do tédio na obra de Kierkegaard é relativamente
escassa. É provável que a própria organização dos textos de Kierkegaard
tenha contribuído para essa escassez, na medida em que, por exemplo,
são muitos mais e muito mais desenvolvidos os textos sobre a melancolia
e, naturalmente, sobre a angústia . Assim, consideradas as coisas de modo
quantitativo, pelo número e extensão dos textos, o tédio parece ser, de facto,
um fenómeno secundário ou marginal na análise das disposições , ou, como
Kierkegaard diz, na exposição dos “determinantes decisivos da esfera existen-
cial” . E, todavia, se se atender aos próprios textos, ao que neles se discute
e descreve, à sua localização e às disposições e determinações com que se
relaciona, o assunto muda um pouco de aspecto. Assim, o tédio surge sempre
relacionado com certas disposições de que não há dúvidas sobre o papel que
desempenham na análise da existência humana levada a cabo na obra de
Kierkegaard: em O Conceito de Ironia, o tédio é resultado de uma certa forma
de ironia – a do romantismo, que Kierkegaard identifica sempre como uma
forma extrema de uma possibilidade existencial; em Ou… Ou, o tédio é dispo-
sição irmã da melancolia, como é evidente lendo os Diapsalmata; em O Con-
ceito de Angústia, o tédio é uma variação fundamental da angústia. Ou seja, o
Por comodidade, por vezes referir-se-á por “Kierkegaard” o que em rigor deveria ser “obra
de Kierkegaard”. As edições utilizadas nas citações são: Drachmann, A. B; Heiberg, J. L.; Lange,
H. O. (eds.) – Søren Kierkegaard, Samlede Værker, 2. ed. i-xiv. København: Gyldendal, 1920-1936.
Citar-se-á o volume e a página. Para os Papirer (em que se seguirá o modo comum de citar:
volume, série e número), a edição é a de Heiberg, P. A.; Kuhr, V.; Torsting, E., (eds.). – Søren
Kierkegaards Papirer. København: Gyldendal, 1968-1978.
De facto, o fenómeno do tédio surge na obra de Kierkegaard circunscrito a poucos textos,
pelo menos, no que se refere a um tratamento expresso: uma página em O Conceito de Ironia
(xiii, 386), poucas em O Conceito de Angústia (iv, 442 e ss) e só em Ou/Ou há um estudo mais
desenvolvido, ainda que em forma sobretudo literária, pouco técnica: alguns dos Diapsal-
mata têm o tédio como objecto de descrição e, como se sabe, um dos ensaios da Parte i de
Ou/Ou é-lhe expressamente dedicado – A Cultura Alternada: Ensaio de uma sábia doutrina social
(i, 297 e ss). São, à primeira vista, os textos que se dedicam explicitamente ao tédio. Há, eviden-
temente, muitas mais observações dispersas na obra publicada, mas não acrescentam nada de
significativo relativamente aos textos referidos. Nos Papirer não se encontram igualmente muitos
desenvolvimentos analíticos sobre o tédio, pelo menos de modo expresso, ainda que sejam mais
frequentes certas descrições que parecem referir-se a este fenómeno ou, pelo menos, oscilar entre
o tédio e a angústia (veja-se, por exemplo, Pap. iii a 68, em que a descrição da charneca cede o
lugar a uma consideração sobre um fenómeno que tanto pode ser angústia como tédio).
De facto, a obra clássica sobre as disposições em Kierkegaard – McCarthy, Vincent A. –
The Phenomenology of Moods in Kierkegaard. The Hague; Boston: Martinus Nijhoff, 1978 – passa
tranquilamente por cima do tédio.
Pap. iv a 162.
tédio faz parte de um grupo formado pela ironia romântica, pela melancolia e
pela angústia. Nunca aparece como simples e usual aborrecimento, mas sim
como uma disposição que afecta profundamente a execução e o aspecto geral
da existência. E, sobretudo, nunca é inofensivo. De tal forma assim é que se
encontram nos textos de Kierkegaard certas descrições que, não estando, na
verdade, sob o título de ‘tédio’, poder-se-lhe-iam perfeitamente aplicar, pois a
semelhança entre os fenómenos é patente. Por exemplo, numa das cartas do
jovem, em A Repetição: “A minha vida foi levada ao extremo; eu sinto náusea
pela existência, ela não tem sabor, sem sal nem sentido (...). Enterra-se um
dedo no solo para cheirar em que terra se está; eu enterro o dedo na existência
– ela não cheira a coisa nenhuma. Onde é que eu estou? Que significa dizer:
mundo?” . Independentemente das eventuais diferenças entre este fenómeno,
seja ele qual for, e o tédio, o que parece claro é que há algo de semelhante a
isto no tédio: também neste caso a vida não tem nem sal, nem sentido, nem
aroma; e também no tédio, a existência é levada ao extremo. E é este extremo
que importa, muito sucintamente, localizar .
Também se poderia traduzir por “asco”, “repugnância”. É significativo que o asco, a
náusea, decorra da falta de sabor e não de haver um determinado e concreto sabor desagradável.
Repetição, iii, p. 261. Não se encontrou melhor solução que traduzir à letra a expressão
“enterra-se (ou: espeta-se) um dedo no solo para cheirar em que terra se está”, apesar de não ser
nada claro o seu sentido. Na verdade, em dinamarquês a expressão “stikke fingeren i Jorden og
lugte hvor man er” (espetar o dedo na terra e cheirar onde se está) é uma frase feita e significa
qualquer coisa como “adoptar a disposição correcta”, “pôr-se de acordo com”; em geral, “saber
onde se está e conformar-se com isso”, tal como em português se pergunta a alguém se “sabe com
quem fala” ou se “sabe onde é que está”. O texto fica, então, mais claro.
Deve ter-se em conta que na obra de Kierkegaard o tédio não é sempre a “mesma coisa”,
mas pode revestir formas diversas. Esta “dificuldade” não é específica do tédio, pois aplica-se, de
facto, a todos os fenómenos e/ou categorias, ainda que isso possa não ser sempre muito visível.
“Kierkegaard” é claro quanto ao facto de os fenómenos e estruturas existenciais serem passíveis
de diversas categorizações e de tal modo que a variação de categorias afecta profundamente a
compreensão do fenómeno em causa. E isto significa que “o mesmo fenómeno” pode receber
tratamentos muito diferentes, às vezes contraditórios, às vezes simplesmente desencontrados.
Este problema parece, aliás, particularmente relevante no que diz respeito à presente dispo-
sição, porque é muito usual que apareçam atribuídas a Kierkegaard (assim, sem mais) certas
proposições sobre o tédio (que alcançam, desta forma, grande popularidade) que são retiradas
de A Cultura Alternada, sem que se especifique ou faça sequer referência ao ponto de vista
– extremamente marcado, aliás – próprio dessas afirmações, o que é totalmente descabido e, pior
ainda, torna a proposição ininteligível. A variação categorial aplicada a um “mesmo fenómeno”
não significa, no entanto, absoluta incomunicabilidade ou total equivocidade de sentidos, como
algum comentário tem vindo a pretender (p. ex., Poole, R. – ‘My wish, my prayer’: Keeping the
Pseudonymous Apart”. In: ���� Cappelørn, Niels Jørgen; Stewart, Jon (eds.) – Kierkegaard Revisited:
Proceedings From the Conference Kierkegaard and the Meaning of Meaning It: Copenhagen, May
5-9, 1996. Berlin; New York: Walter de Gruyter, 1997, pp. 156-176). É ����������������������������
certo que não há passagem
directa de um fenómeno categorizado de uma maneira para o “mesmo” categorizado de outra,
mas isso não implica, parece, que se trate de dois fenómenos sem relação alguma mais do que
nominal. Há, na verdade, uma estrutura formal idêntica, estrutura formal que corresponde a um
certo tipo de descrições, ainda que tais descrições tenham de ser desformalizadas, o que será
sempre feito, porque o leitor do texto (ou o autor, é indiferente) também lê (ou escreve) sob
determinadas categorias. O assunto é complexo e não pode ser discutido aqui, mas, em qualquer
dos casos, parece uma simplificação do problema afirmar que a negação de uma relação directa
ou unívoca de sentidos de um “mesmo conceito” corresponda, imediatamente, à afirmação da
total equivocidade.
Uma pequena nota parece necessária para dizer que, pelas limitações próprias de um
artigo, não é possível fazer um estudo do tédio na obra de Kierkegaard tendo-o em comparação
com a tradição literária e filosófica. Seria necessário proceder a tal comparação, porque ilumi-
naria, em grande parte, alguns dos fenómenos que Kierkegaard estuda. Não é possível, e é uma
pena que tenham de ficar em silêncio algumas referências, por outro lado óbvias, a Leopardi,
Madame du Deffand, Chateaubriand, Sénancour, Bernardo Soares no Livro do Desassossego,
etc., sem referir, evidentemente, o campo filosófico. Não deixará de ser proveitoso, apesar de já
antigo, consultar a obra clássica Kuhn, Reinhard C. – The Demon of Noontide: Ennui in Western
Literature. Princeton, n.j.: Princeton University Press, 1976.
Não pode também proceder-se a um estudo das formas de tédio identificadas por
Heidegger, nem à sua eventual presença já na obra de Kierkergaard. Ficam dadas por pressu-
postas. Cf.
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sobretudo, Heidegger, Martin – Die Grundbegriffe der Metaphysik: Welt-Endlichkeit-
Einsamkeit. Frankfurt
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am Main: Klostermann, 1983.
apetece. Summa summarum: não me apetece fazer nada”10. De facto, esta falta
de vontade para fazer qualquer coisa pertence ao fenómeno do tédio comum.
Como se sabe, esta forma de tédio (se se considerar que o texto remete para
o estado habitual, como se verá) é, não só inofensiva, como quase insignifi-
cante; e é quase insignificante porque o sujeito que o sofre submete-o a um
grande número de reservas e de restrições que o tornam superficial. Assim,
por exemplo, nesta forma de aborrecimento o sujeito sabe perfeitamente que
a sua situação não é grave – amanhã já não estará certamente assim – e sabe
sobretudo que ele não está profundamente aborrecido: pode não sentir, nessa
altura, vontade de nada, mas “sabe” também, e com enorme clareza, que essa
vontade irromperia de repente e com violência se, por exemplo, a sua casa
começasse a arder, fosse despedido do seu emprego ou a pessoa sua amada
adoecesse gravemente. Esta é, parece, a razão pela qual o sujeito “não liga”,
não dá relevância ao seu tédio; em última análise, na raiz da sua própria vida,
ele não está aborrecido. Ou melhor, o seu aborrecimento é uma ligeira nódoa
num tecido de resto limpo e válido, de tal forma que, sendo real – o sujeito não
está propriamente entusiasmado –, o seu tédio é um incómodo leve, porque é
circunscrito, passageiro e, assim, sem grande significado existencial. O sujeito
está e não está aborrecido, e parece haver aqui uma disposição mais profunda
e, sobre ela, contrária a ela e validada por ela, outra disposição superficial 11.
Dito de outro modo, nesta disposição o sujeito não foi radicalmente captu-
rado pelo tédio, o que não significa, insiste-se, que ele não esteja aborrecido,
mas sim que não foi afectado profundamente por ele. Em resumo, normalmente
o “não me apetece fazer nada” tem valor condicional e restrito.
Assim, seria imediatamente evidente se, pelo contrário, a proposição assu-
misse disposicionalmente valor absoluto e realmente universal. O aspecto da
realidade que então surgiria é dificilmente imaginável por quem não passou
por isso e, também, não parece muito comum. Por isso, talvez o melhor modo
de abordar o tédio incondicional seja o de tomar o fenómeno no seu modo
superficial e comum, isolá-lo, removê-lo do contexto que o torna insignifi-
cante, e examinar então o que se passa, que forma têm as coisas que estão sob
10
Ou/Ou, i, 4. O texto é um resumo de um outro dos Papirer (ii a 637), bem mais agressivo e
muito menos humorístico, em que se diz que “em vão procuro eu algo que possa estimular-me.
Nem mesmo a enérgica linguagem medieval está em condições de anular o vazio que reina em mim
(...) – em resumo; não me apetece escrever isto que escrevi e não me apetece também apagá-lo”.
11
Naturalmente, quando se diz que o sujeito “sabe” que o seu tédio é pouco significativo isso
não significa que se trate de uma consideração explícita; não significa também que ele não se
sinta “profundamente” aborrecido, inerte e vagueando com o olhar em busca de qualquer coisa
que o ocupe e distraia. Esse “saber” significa que o sujeito se relaciona com o seu tédio (e consigo
mesmo nele) de tal forma que se exclui a possibilidade de estar a acontecer alguma coisa de deci-
sivo. Quer dizer, o “saber” da irrelevância do tédio corresponde à atitude existencial que o sujeito
estabelece consigo mesmo e com a sua situação; possui, portanto, natureza disposicional e não
especulativa e revela, em última análise, a presença de disposições mais básicas que atenuam e
enfraquecem o tédio.
o tédio, precisamente enquanto que estão sob ele, sem entrar em consideração,
tanto quanto possível, com todos os aspectos que habitualmente o relativizam.
“Não me apetece fazer nada”. Em condições normais, o fenómeno é inter-
pretado como “não tendo vontade de”, como qualquer coisa que afecta a
vontade do sujeito. E que a afecta ao ponto de a anular como movimento
de tensão em ordem a qualquer coisa. Ora não é claro que isso seja absolu-
tamente assim. No tédio não parece haver uma suspensão total e completa
da “vontade” (entendida aqui, de modo muito vago, como “apetite”, no sen-
tido antigo, desejo, tensão para qualquer coisa). Há certamente uma modi-
ficação do acontecimento habitual da “vontade” e uma modificação muito
significativa. Mas mantém-se uma relação para “fora”, por assim dizer, para
as possibilidades que estão ao dispor, que passam a ser vistas como inade-
quadas. Há assim, curiosamente, um movimento em direcção ao horizonte de
possibilidades disponível, movimento que constitui esse horizonte disponível
como indisponível, cancelado. É paradoxal, mas parece ser isso que se passa.
O sujeito está possuído por uma “vontade de qualquer coisa” e está porque
percorre as possibilidades ao dispor (as estantes dos livros, etc.), mas tudo
parece aborrecido, incapaz, de tal forma que essa vontade de qualquer coisa é
“vontade de coisa nenhuma”. Assim, dizer que tudo é aborrecido, ou que não
apetece fazer nada, parece apontar para uma vontade vazia e esvaziadora,
uma “certa” tensão para o preenchimento de si e da sua situação, mas uma
tensão sem conteúdo e que torna inane e vazio isso para que tende, de tal
forma que nada parece corresponder a tal tensão. Só por isso há tédio, pois a
pura falta de vontade/apetite para fazer qualquer coisa, por si só, poderia não
produzir tédio. O sujeito poderia, por exemplo, resolver o problema ficando
tranquila e pacificamente sem fazer nada, sem sentir, portanto, mal estar ou
lassidão por isso, quer dizer, sem sentir necessidade de anular esse nada.
A “ausência de vontade” do tédio deve, no entanto, ser considerada com um
pouco mais de cuidado, para a distinguir bem de outras formas de ausência
de vontade. O que deve ser esclarecido é em que sentido não há vontade e
em que sentido não há objecto para ela. Poderá ser útil evocar brevemente
uma figura da literatura portuguesa que personifica, em alguns aspectos, o
tédio de viver – Jacinto, em A Cidade e as Serras de Eça de Queiroz. A des-
crição do incrivelmente enfadonho dia de aniversário termina, como se sabe,
com a decisão de encontrar um livro para ler, antes de se deitar: “a ânsia
de encontrar um Livro”12. Todo o fenómeno do tédio é posto em andamento
por esta peculiar “ânsia”; sem ela, o tédio era impossível e Jacinto recolheria
tranquilamente ao seu quarto de mãos vazias e de alma satisfeita. Por outro
lado, para tal ânsia não há objecto, não há livro. Ora a descrição da biblioteca
de Jacinto não deixa dúvidas sobre a abundância de livros, de tal forma que,
do ponto de vista conceptual, tudo se passa como se a biblioteca tivesse todos
12
Queiroz, Eça de – A Cidade e as Serras. Lisboa: Livros do Brasil, s/d, p. 112.
os livros; o problema não é, portanto, a falta de livros; ou, se eles faltam, não
estão também em parte nenhuma. Quer dizer, o que está em causa no não
haver objecto para a referida ânsia é que se exclui a possibilidade de o haver.
De outra forma não haveria tédio. A inexistência de um livro não produz, de
modo nenhum, tédio; poderia, por exemplo, desencadear uma fúria de pro-
cura do livro. Ou, então, poderia produzir tristeza, que é a disposição própria
da frustração dos desejos. Ora no tédio não é isso que se passa. É, aliás, perfei-
tamente possível que nele os objectos não estejam negados, porque, como se
sabe, não há nenhuma incompatibilidade – bem pelo contrário – entre tédio
e abundância; e, no entanto, não há objecto, não há possibilidade de o encon-
trar. Há, portanto, uma ânsia do Livro, com maiúscula, e sabe-se também que
nenhum livro é o Livro. O problema não deve estar, portanto, nos livros, mas
na ânsia. E se o sujeito diz que não tem vontade, isso significa que a própria
ânsia, ao produzir a impossibilidade de se saciar (a inexistência de objectos
possíveis para ela), decai e fenece. Mas, todavia, mantém-se, porque é pela
sustentação de uma ânsia que fenece que se continua a excluir a possibilidade
de haver objecto para ela13. Assim, o tédio é possível por uma tese acerca das
possibilidades – o tédio não pode ser resolvido: nada tem interesse. Obvia-
mente, a tese não tem forma de “tese”, de proposição, mas corresponde à
próprio situação existencial na qual o sujeito se encontrou: ele, por mais que
espraie o olhar pelas redondezas, “sabe” (se estiver mesmo no tédio) que não
vai encontrar nada. Assim, “não há objecto” significa, quando se está no tédio,
“não pode haver”, “não vai haver”. De outra forma, como se disse, não haveria
tédio, nem cansaço antecipado. Há muitas formas de não haver objecto para
um desejo e nem todas produzem tédio. Há tédio quando há cansaço de não
ter encontrado antes de procurar e no acto de procurar (e, se calhar, na arras-
tada e incompreensível “necessidade” de continuar a procurar). O sujeito
“sabe”, pois, d’avance que a sua tensão é inútil, que o vazio vai permanecer.
É, portanto, necessário distinguir vários momentos na peculiar ânsia/vazio
do tédio que tem por natureza tornar impossível a sua satisfação: a ânsia, as
possibilidades e a natureza antecipadora do tédio.
No tédio não há possibilidades. É certo que, em rigor, a frase não é abso-
lutamente exacta: mesmo no tédio, o sujeito pode fazer um sem número de
coisas. Mas esta consideração passa totalmente ao lado do que constitui uma
possibilidade enquanto tal. A possibilidade pode ser considerada de vários
modos; para aqui importam dois. Num primeiro sentido, é possível o que não
é, em si mesmo, logicamente contraditório. Corresponde ao sentido lógico
13
É certo que normalmente e de um modo distraído, o sujeito aborrecido tem uma versão
“objectivista” do seu tédio, quer dizer, ele acusa os entes de serem, eles próprios aborrecidos
(pelo menos, nesse instante). Mas, por outro lado, ele “sente” que o problema não está “todo” nas
coisas, porque é ele que “não tem vontade” e porque é por essa falta de vontade que a possibili-
dade de encontrar satisfação está anulada.
da possibilidade e, deste ponto de vista, não se pode dizer que não há possi-
bilidade. Mas este modo de ter em conta as possibilidades é desumano, na
medida em que prescinde totalmente de qualquer relação que eventualmente
se possa estabelecer com elas. Assim, se se considerar a possibilidade no seu
sentido existencial, quer dizer, na medida em que um sujeito se relaciona
com ela, o sentido da noção varia sensivelmente. A possibilidade deixa de ser
tomada como o puro não contraditório – como uma determinação abstracta
“localizada” num espaço vazio, sem contexto ou significado vital. Do ponto
de vista existencial, pelo contrário, é possível aquilo que é visto como um
eventual desempenho “de mim”, uma modalidade em que “eu” me posso
instalar, que “posso” ocupar, um ser possível de “mim”, que, por isso, dá
“saída” e encaminhamento para a “minha” vida. As possibilidades são, por-
tanto, “vias abertas”, estradas disponíveis para a existência e é neste sentido
que Anti-Climacus, na Doença para a Morte diz que sem a possibilidade não é
possível respirar14. É neste sentido que se afirma que no tédio não há possibi-
lidades15. As possibilidades que se dispõem perante o sujeito estão “mortas”,
não têm nenhum significado, de tal modo que o sujeito não se revê nelas,
estão relativamente a ele “de portas fechadas” ou “de costas voltadas”. Para
talvez, de alguma maneira, tentar dispensar a metáfora, poderá ser útil ter em
conta o seguinte: uma disposição é uma forma de contacto com as coisas, de
14
Doença para a Morte, xi, p. 171.
15
Todavia, este aspecto mereceria ainda um pouco mais de atenção. É possível pensar o
cancelamento de possibilidades existenciais de várias formas e devido a várias razões. A forma
eventualmente mais forte será a ética. Quando alguém afirma que “não pode fazer x”, isso não
significa que x não seja uma possibilidade existencial. Significa que é e que o sujeito a expulsou
precisamente enquanto tal, enquanto possibilidade existencial. O sujeito tomou uma decisão e
só o fez porque havia um caminho por onde ele podia seguir, um caminho que estava realmente
ao dispor, e que ele decidiu livremente eliminar. Isso mesmo pode acontecer também por outras
razões, por exemplo, repugnância física ou estética, incompatibilidade temperamental, etc.
Em todos estes casos de cancelamento ético ou imediato de possibilidades, elas estão a ser consi-
deradas como tais, como possibilidades. É, aliás, precisamente por isso, porque são tidas como
possibilidades existencialmente válidas – em si mesmas válidas – que o sujeito as exclui. De
outro modo nem valeria a pena o esforço de as afastar. Isso é, por exemplo, extraordinariamente
evidente no caso da tentação. Se um sujeito resiste a uma tentação, tal ocorre porque a tenta-
ção não estava cancelada para ele como possibilidade, mas precisamente o contrário; de outra
forma não haveria nada para resistir. E o mesmo ocorre na repugnância. A repugnância vive da
relevância existencial das possibilidades que, por isso, produzem repugnância. Em todos estes
casos, as possibilidades possuem valor existencial, não são acontecimentos neutros vitalmente,
o que significa que as possibilidades têm estrutura para poderem ser habitadas “por mim”. Dito
de um modo talvez mais directo, em todos estes casos as possibilidades estão constituídas numa
determinada relação comigo (ética, estética, etc.), pertencem a um espaço vital, ocupam regiões
animadas da existência, isto é, vistas e vividas como passíveis de serem percorridas. De tal modo
que, nestes casos, o cancelamento das possibilidades não altera, de modo nenhum, a sua natu-
reza de possibilidades. O cancelamento sobrepõe-se a elas e pode mesmo sobrepor-se profunda e
radicalmente, como no caso das verdadeiras decisões éticas (passe a redundância), mas elas não
emigram, por isso, do espaço existencial que ocupam.
tal modo que as coisas adquirem a tonalidade da forma desse contacto. Não
se trata apenas, portanto, de que pelas disposições o sujeito se relaciona com
o mundo; trata-se de que, por isso mesmo, o mundo adquire, em cada caso, a
“cor”, o sentido dessa relação. De um modo geral, isso significa que o mundo
não se apresenta habitualmente como um “mundo aí”, inerte e mudo, mas sim
dado de uma determinada forma, com um rosto, por assim dizer. Ou, o que é
de facto a mesma coisa, o mundo surge “para mim” como âmbito ou espaço
de execução da “minha vida”. E as coisas do mundo são as possibilidades
que a vida tem por bem dispensar-me para que “eu” me possa desempenhar
de alguma maneira. Como resultado deste estado de coisas, as possibilidades
que o mundo me dispensa estão como que animadas pela “minha” própria
vida, pela relação que estabelecem “comigo”, e estão animadas porque, de
modo muito geral, são como que “antecipações possíveis de mim”. A natu-
reza viva ou animada das possibilidades, apesar da metáfora, significa algo
que se percebe com facilidade: de modo mais ou menos explícito, o sujeito
reconhece nelas, não a sua pura estrutura formal, mas a afecção que produ-
zem nele: o tom das possibilidades é a ressonância objectiva do que se passa
no sujeito. Esta situação ocorre igualmente também naquelas possibilidades
– que habitualmente são a esmagadora maioria – que o sujeito considera
“indiferentes” ou que nem reconhece normalmente como possibilidades. Tais
possibilidades, ainda que se passe por elas como se fossem nada, sem reparar,
recebem ainda o seu sentido do espaço/âmbito no qual estão localizadas, e
que não negam: o seu carácter indiferente e aparentemente neutro não corres-
ponde, de maneira nenhuma, à suspensão ou anulação do carácter existencial
do mundo. As possibilidades podem ser “indiferentes”, mas são congruentes
com um horizonte de não indiferença e podem, sem esforço nem violência,
sem alteração de forma de acontecimento, tornar-se não indiferentes de um
momento para outro. Ou seja, as possibilidades que dizemos serem neutras
ou “nada” não são momentos absolutamente inertes, mas estão suportadas
por uma região animada; são zonas quase sem relevo num mapa todo ele
significativo, o que é totalmente diferente.
Ora o tédio corresponde ao cancelamento disto. O que morre no tédio
é o próprio âmbito do possível. O que significa que as possibilidades estão
desvitalizadas e é precisamente neste sentido que o sujeito não reconhece
nelas possibilidade de desempenho de si. O sujeito relaciona-se com essas
“possibilidades” de tal forma que elas não são possíveis para ele. A diferença
relativamente às possibilidades habitualmente irrelevantes é radical. Consi-
dere-se uma qualquer possibilidade habitualmente indiferente para a maioria
das pessoas, por exemplo, a de ser astronauta. Na maioria dos casos, presume-
‑se, a possibilidade não é sequer objecto de consideração; é possível que haja
pessoas para quem durante toda a sua vida essa possibilidade foi “nada”, não
surgiu nem sequer num momento de humor ou de conversa – está, dir-se-á,
totalmente fora do horizonte vital. Mas se, alguma vez, o sujeito for confron-
tado com ela, ele dirá, talvez, que essa possibilidade não tem interesse, que
não gostaria disso, que não “lhe diz nada”– não é possibilidade para ele. Mas
essa “não possibilidade” não nega a natureza interna daquilo que está a ser
considerado. A possibilidade não tem, é certo, relevo, é longínqua, abstracta,
etc., isto é, inoperante, mas reconhece-se como uma possibilidade, como
passível de constituir um desempenho, apesar de a relação a ela ser indefinida
e vaga. Quer dizer, o sujeito reconhece a legitimidade dessa possibilidade, isto
é, reconhece que “isso” faz parte do horizonte das coisas que se podem fazer.
E é capaz de se relacionar, nem que seja imaginariamente, com isso (gostaria/
não gostaria/nem por isso). Ora no tédio isto não acontece. Há possibilidades,
logicamente consideradas, mas há também um desgosto delas enquanto meras
possibilidades de desempenho de mim, ou seja, estão canceladas não porque
sejam estas ou aquelas, mas porque o âmbito de que fazem parte está morto.
É, por isso, parece, que o sujeito fica inerte e sem forças, cansado, porque ele
não é solicitado de maneira nenhuma pelas possibilidades (e, pior, só o pensa-
mento de ter de as executar o esgota). De facto, as possibilidades solicitam o
sujeito porque, parece, elas são antecipações dele. Ora no tédio isso está posto
de parte e de aí a inércia. O que se torna patente, como se disse, no esforço
que é necessário fazer para executar alguma coisa: toda a tensão tem de partir
do zero, quer dizer, o sujeito não é puxado por nada, de tal forma que é neces-
sário empurrar a vida em vez de a perseguir, como gostamos de fazer, em vez
de se ser atraído e seduzido por ela para onde ela quer e com a força que ela
quer. A vida perdeu força, deixa de ser um espaço sulcado por tensões.
É neste sentido que no tédio não há possibilidades (há, ainda, mais do que
mera ausência delas, como se dirá mais adiante). As possibilidades são-no
apenas abstractamente, isto é, momentos zero, sem relação significativa com
o sujeito. O espaço vital está deserto e o sujeito considera-se ausente dele
(é a mesma coisa). Quer dizer, o tédio não é a destituição de significado das
possibilidades “à vez”, mas a desertificação do horizonte vital. Neste sentido, o
sujeito não perdeu propriamente as possibilidades, mas a possibilidade, como
se diz nos Diapsalmata: “A minha alma perdeu a possibilidade. Se eu desejasse
para mim alguma coisa, eu não desejaria riqueza ou poder, mas a paixão da
possibilidade, o olho que em toda a parte, eternamente jovem, eternamente
ardente, vê a possibilidade. O prazer decepciona, a possibilidade não”16.
A inexistência da possibilidade tem como efeito óbvio e imediato a cons-
tituição de todas as possibilidades como indiferentes. De facto, do ponto de
vista existencial, as possibilidades diferenciam-se consoante a qualidade ou
a intensidade da relação que o sujeito mantém com elas, consoante, portanto, a
maior ou menor conformidade com ele. Ora no tédio todas as possibilidades
são “incapazes”. Nessa medida todas valem precisamente o mesmo – nada.
A contrariedade entre possibilidades só se mantém de modo abstracto e
16
Ou/Ou, i, p. 29
17
Seria interessante relacionar, por isso, o tédio com o princípio de contradição, porque
no tédio a contradição parece estar abolida. Isso é expressamente dito em O Conceito de Ironia,
xiii, p. 386.
18
En Stemning, no original; poder-se-ia traduzir, portanto, também como “disposição”,
“tonalidade”, “sentimento”.
19
Ou/Ou, i, p. 14.
20
Idem, i, p. 11. O texto acrescenta algumas indicações mais, que serão analisadas adiante.
21
Cf. Ou/Ou, i, p. 301.
22
Ou/Ou, i, p. 10.
de si (e farto), mas do vazio de si, porque não há nada que o preencha e mova.
Assim, tal como há uma avassaladora presença do tempo, há igualmente uma
inoportuna ocupação consigo mesmo, sem conteúdo. O que significa que a
ânsia ou tensão que é própria do tédio se constitui num movimento de retorno
a si: “todos os planos que eu projecto, retornam para mim mesmo; quando eu
quero cuspir, cuspo em mim mesmo no rosto” 23. Ou seja, no tédio não só
não se está capturado por nada como se está num perpétuo reenvio para um
informe si mesmo (a isso corresponde o movimento aristocrático) e por isso
o sujeito é como que um “pronome reflexivo” 24. Há, portanto, uma espécie de
obsessão reflexiva vazia, que mantém o sujeito à distância da vida ou que é
efeito dela. Isso significa que o sentimento de si, a única notícia que há de si
é a do próprio tédio. Ficará,
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nas palavras de François-René Chateaubriand,
mais claro assim: “mon coeur ne fournit plus d’aliment à ma pensée, et je
ne m’apercevais de mon existence que par un profond sentiment d’ennui” 25.
Do ponto de vista objectivo, a expatriação corresponde, antes de mais,
a uma consideração da vida enquanto tal. O tédio completo é um poder
anulador da totalidade da vida, a redução de tudo a uma só cor, como se
citou, que é cor de nada, pois tudo é absolutamente indiferente, tanto no
sentido objectivo (o da indistinção de todas as coisas) como no subjectivo
(nada “me” interessar). O sujeito não está preso a nada e isso significa que
tudo é nada. É a este aspecto, parece, que se aplica a identificação do tédio
como “panteísmo demoníaco”26. É panteísmo porque o tédio é a resolução de
todas as coisas numa só. A substância das coisas é a mesma e as diferenças
são menos que acidentes. Mas essa coisa não é a plenitude do ser, como
costuma estar em causa no termo “panteísmo”. O caso presente é o de um
panteísmo negativo, que é o que parece estar significado pelo “demoníaco”.
O termo “demoníaco” recebe na obra de Kierkegaard vários significados,
que terão de ser ainda examinados. Aqui o seu sentido parece ser o de uma
pura negatividade oposta ao ser, a ausência de uma relação ao que possui
significado absoluto em si mesmo. A noção de “panteísmo demoníaco” evoca
portanto uma totalidade que se consome a si mesma no vácuo de si, em decla-
rada oposição ao ser; a pertença e a produção de um “nada que o demónio
em vão rumina” 27. A disposição do tédio é, assim, corrosiva, envenena todas
23
Idem, i, p. 11.
24
Cf. Idem, i, p. 7.
25
Sobre as relações entre Kierkegaard e Chateaubriand, cf. Grimsley, Ronald – Søren Kierke-
gaard and French Literature: Eight Comparative Studies. Cardiff:
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Wales University Press, 1966,
pp. 45-63.
26
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Cf. Ou/Ou, i, p. 302. Expressão
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semelhante encontra-se igualmente em Bernardo Soares no
Livro do Desassossego: “O tédio ... (...) É como a possessão por um demónio negativo, um embru-
xamento por coisa nenhuma”. Cf. Pessoa, F. – Livro do Desassossego. Lisboa: Assírio & Alvim,
2006, p. 235. A análise do tédio no Livro do Desassossego mereceria um longo estudo.
27
Pap. iii b 122, 5.
28
Ou/Ou, i, p. 303.
29
Cf. O Conceito de Angústia, iv, p. 442 que desenvolve um textos dos Papirer (iv a 94). Assim,
a forma estética do tédio é o cómico e não o aborrecido, contrariamente ao que escreve Bigelow,
Pat – Kierkegaard and the Problem of Writing. ����������������������������������������������������
Tallahassee: University Presses of Florida; Florida
State University Press, 1987, p. 130: “A commentary on boredom needs to be an exercise in
boredom”. A �����������������������������������������������������������������������������
tese de Vigilius Haufniensis é precisamente a oposta. Tenha-se em conta que
A Cultura Alternada é um ensaio que destaca pela sua natureza humorística.
30
Cf. Ou/Ou, i, p. 298.
preciso do termo, do seu ser vão, oco, inane. O tédio vem, assim, do nada e
traz consigo o poder do nada, “nadificando” todas as coisas.
Este aspecto parece significativo, porque, como se disse, as disposições
são formas mediante as quais o mundo aparece de uma certa maneira. Ora
no tédio, paradoxalmente, parece estar-se perante uma disposição que tem
o efeito contrário a todas as disposições. As disposições são modos do sen-
tido da realidade e são, por isso, modulações do interesse, que admite muitas
variações, chegando quase até à irrelevância. Ora no tédio o que cai é o
próprio interesse, não este ou aquele. Isto significa, portanto, que as coisas
perdem aspecto, afogam-se no Mar Vermelho do nada. Poder-se-ia, assim,
pensar que no tédio (e só nele) o sujeito estaria perante as coisas indepen-
dentemente do seu interesse por elas. Ou, o que é a mesma coisa, que ele
estaria constituído numa relação neutra e livre, pura, com o mundo. Ora não
é isso que parece passar-se. Curiosamente, o que acontece quando as coisas
surgem independentemente do interesse é que se produz qualquer coisa de
“positivo” – tédio! Ou seja, há uma disposição que corresponde à queda da
inscrição disposicionalmente determinada na existência, o que parece querer
dizer que o limite da não disposição é ainda uma disposição. Em si mesmo,
o tédio pode ser a anulação de todo o interesse, mas é, por outro lado, uma
disposição muito interessante, porque revela que, quando cai o interesse, se
permanece de alguma forma, ainda que vazia, disposicionalmente constituído
na vida. Assim, o limite nulo ou negativo de relação com a vida é o enjoo. E o
tédio é, por assim dizer, a disposição da não disposição: há uma disposição
que corresponde à “total” des-situação na vida, mas é ainda uma disposição,
apesar de oca e informe.
Mais ainda: seria possível supor que, caindo a afecção pela existência, a
disposição em que daí resultaria seria relativamente benigna, uma tranquila
ataraxia. Mas é precisamente o contrário que acontece. O tédio é horrível.
A natureza pavorosa do tédio terá de ser examinada com cuidado, mas inte-
ressa, desde já, chamar a atenção para ela: “Como é horrível 31 o tédio, horren-
damente entediante. Não conheço nenhuma expressão mais forte, nenhuma
mais verdadeira, pois apenas o semelhante é reconhecido pelo semelhante.
Se houvesse uma expressão mais elevada, uma mais forte, então haveria pelo
menos um movimento. Eu jazo prostrado, inactivo. A única coisa que eu vejo
é vazio; a única coisa de que eu vivo é vazio; a única coisa na qual eu me movo
é vazio (...). Eu morro de morte (...). A minha alma é como o Mar Morto, sobre
o qual nenhum pássaro pode voar, pois, quando chega a meio caminho, ele
cai exausto na morte e na ruína” 32. A primeira reacção ao texto parece óbvia:
o nada faz-nos mal, “estamos feitos” para “o que é”, para nos interessarmos
e comprometermos. E a ausência radical disso é insuportável, cruel, precisa-
31
Ou: “terrível”, “abominável”, “execrável”.
32
Ou/Ou, i, pp. 24-25.
33
Ou: o “seu poder de apaziguar”, que seria menos literal, mas talvez mais claro em portu-
guês. Optou-se pela tradução mais pacífica. O termo original é Vederqvægelse, que significa, de
facto, o que repousa e apazigua, como, por exemplo, quando se diz que uma pessoa encontra
repouso na leitura ou na música. Mas aplica-se, também, à brisa, ao alimento ou ao sono, no
sentido de restabelecimento ou retemperamento, como quando se refere àquilo que recompõe
um sujeito, que o devolve a si. O termo deve, portanto, ser tomado nos dois sentidos, pois a dor
é aquilo que permitiria ainda ao entediado ser devolvido a si, tornar-se presente.
34
Ou/Ou, i, p. 24.
relaciona com a vida, enquanto tal, e isso na lucidez dessa relação. Ora é
sabido que Kierkegaard identificou (pelo menos) três disposições fundamen-
tais: melancolia, tédio e angústia35. O problema que se levanta é, agora, então
o seguinte: se uma disposição fundamental é uma relação à vida enquanto
tal, como é possível haver três formas diferentes desse acontecimento? Como
pode a vida, enquanto tal, ter três rostos, três aspectos ou formas?
Para poder responder a esta questão é necessário ter em conta o seguinte:
para além das diferenças descritivas entre as disposições, é possível detectar
também diferentes categorizações dessas disposições, de tal forma que, por
exemplo, o mesmo fenómeno pode estar caracterizado, categorizado, de
modos diferentes. Isso é comum na obra de Kierkegaard. Trata-se de um
problema complexo que não pode ser examinado com pormenor, mas que deve
estar presente. E mesmo dentro das mesmas categorias, pode haver desempe-
nhos categoriais diferentes, isto é, variações dentro do mesmo regime geral.
É preciso, então, ter em conta o fenómeno, as categorias de que depende
ou é interpretado e o desempenho categorial concreto presente em cada
fenómeno.
O primeiro ponto a examinar é, então, que categorias são próprias do tédio
para aquele que o sofre e se afunda nele, quer dizer, de que categorias depende
e vive o próprio tédio? A tese geral, neste caso, é a seguinte: “o tédio é a raiz do
mal, é aquilo que deve ser afastado” 36. O tédio é, portanto, o principal inimigo
da existência. Como é evidente, a categoria do mal que aqui está presente não
tem natureza ética, quer dizer, é de natureza disposicional e afectiva, inde-
pendente de qualquer decisão ou acto. Obviamente, tendo em conta a origem
do texto, o tédio não é o “mal” por ser, por exemplo, “pecado”. Essa categori-
zação está, aqui, fora de consideração. É óbvio, por exemplo, que o sujeito
que está no tédio não tem nenhuma noção de “ter feito mal”, de “ser culpado”
por isso. Que categorias são, então, as do tédio como “mal”? Que é “bem” e
“mal” para o sujeito para quem o tédio é a origem de todo o mal? Que inter-
pretação se tem da vida? “Ai, a porta da felicidade não se abre para dentro, de
modo que podia ser forçada por uma investida contra ela; mas ela abre para
fora e não há, por isso, nada a fazer” 37. Por felicidade parece legítimo enten-
der-se, em geral, aquilo que constitui a vida num sentido, que a justifica, que a
torna desejável. E o que o texto diz, de modo muito claro, é que o sujeito não
35
É usual acrescentar ainda o desespero e a ironia. Parece mais correcto excluir o desespero,
porque se trata de uma estrutura formal muito abrangente (segundo Anti-Climacus, extraordina-
riamente abrangente) e por ser mais do que uma disposição – tem um sentido activo. O caso da
ironia é mais complexo, porque inclui certamente elementos disposicionais, mas é possível que
inclua igualmente momentos expressamente reconhecidos como livres. O assunto mereceria ser
discutido. Em geral, parece, todavia, que as disposições que correspondem à ironia são, como se
verá, tédio (e também melancolia).
36
Ou/Ou, i, p. 302.
37
Ou/Ou, i, p. 8
tem nada a fazer relativamente a isso, que está totalmente à mercê do arbítrio
das circunstâncias: a sua situação na vida é de total passividade quanto à
“felicidade”38. Ora o que de facto isto significa é que o sujeito se compreende a
si mesmo essencialmente como disposição, pois isso é o que significa ser pas-
sivo relativamente à felicidade. Na verdade, o que está em causa é um pouco
mais do que isso. Depender da disposição é, em última análise, considerar o
sentido da sua vida sob o arco constituído pela oposição prazer/dor, que é
o regime de sentido que, na obra de Kierkegaard, se dá o nome de estético 39.
Este é o primeiro momento categorial imanente ao tédio. O segundo tem
que ver com o que em A Cultura Alternada se chama “o poder de pôr em movi-
mento” 40. A tese presente é a de que, na medida em que, no tédio, todas as
coisas se revelam como nada e que isso é, como se disse, horrível, todo o movi-
mento na existência, e tudo o que nela se faz, tem por intuito fugir ao tédio.
Sendo tudo nada, tudo é fuga ao nada. A tese não é original, porque como se
sabe, encontra formulações muito felizes em Pascal 41, motivo pelo qual não
se insistirá nela. A existência humana é uma enorme forma de diversão, uma
espécie de baile, um jogo de cartas. No fundo de todas as coisas age, portanto,
o nada, com uma extraordinária força repulsiva, totalmente negativa; ele não
atrai, repele, e, assim, move. Isso é especialmente manifesto na análise que
A Cultura Alternada faz das duas formas de tédio: “O tédio é em parte uma
genialidade imediata, em parte uma imediatidade adquirida” 42. A primeira
forma corresponde ao acontecimento do tédio como “talento natural”, que
é o que significa genialidade imediata: o sujeito possui o “talento” natural
de se aborrecer, acontece nele sem a sua colaboração, como aos génios.
É, portanto, uma determinação imediata. A segunda forma de tédio é “imedia-
tidade adquirida”. Não importa agora determinar até que ponto a expressão é
humorística, pois ela costuma ser aplicada à liberdade, que é precisamente o
contrário do que aqui se passa. A ideia do autor do texto é a seguinte: o tédio
38
“Felicidade” traduz “Lykke”, que é precisamente a forma da felicidade que vem ter con-
nosco, tal como quando se diz que se foi feliz. Pode significar também, por isso, sorte, ventura.
39
Uma breve indicação apenas sobre este assunto. Por vezes pode dar-se a entender que
viver sob a oposição prazer/dor é próprio apenas de pessoas excepcionais, epicuristas absolutos
ou sujeitos repugnantes, como alguns bem conhecidos da obra de Kierkegaard. Ora não é assim.
Em última análise vive sob o poder da oposição prazer/dor todo o sujeito para quem o sentido da
existência está constituído disposicional ou sentimentalmente. E isso é, de facto, o mais comum.
Basta pensar, por exemplo, que a identificação mais comum do que se chama “amor” corres-
ponde a uma afecção, a um estado passivo e sentimental, uma disposição que, ainda por cima,
tem o condão curioso de poder ser extraordinariamente passageira e volúvel. Não é possível
também examinar que forma tem o que se chama ética (porque alguma tem) neste regime de
sentido. Não é necessário ser um criminoso para viver sob o poder do prazer/dor. Pode-se ser
“boa pessoa”. Mas isso está muito longe do que poderiam ser categorias propriamente éticas.
40
Ou/Ou, i, p. 297.
41
Cf., por exemplo, o célebre fragmento sobre o “Divertissement” em Pensées, 136 (Lafuma).
42
Ou/Ou, i, p. 303.
43
Sobre todo este assunto, cf. a mesma página 303.
44
Este assunto deveria ser estudado com pormenor, pois o que está em causa nele é a possi-
bilidade de existirem em nós disposições inconscientes, mas activas, e cuja actividade explica e
dá sentido às conscientes. O assunto é recorrente na obra de Kierkegaard: aplica-se expressa-
mente à angústia e ao desespero; e, como se vê, ao tédio. É fundamental para poder perceber a
“lógica existencial das disposições”, mas aqui pode somente ficar indicado como problema.
45
Ou/Ou, i, p. 312.
46
Não é possível, como é evidente, fazer aqui um estudo mínimo sequer da ironia, nem
proceder à crítica da noção de ironia em Kierkegaard. Optou-se, por isso, por seguir apenas o
texto.
47
O Conceito de Ironia, xiii, p. 380.
para o homem vale o que não vale para Deus, que, do nada, nada se faz”48.
Constituído em nada, o ironista não consegue sair dele e o resultado da tenta-
tiva de criação poética é uma mera sucessão de disposições sem significado,
porque não correspondem a nada. Ou seja, o ironista não se fixa a nada – cria
e volta a criar, como se fosse um deus –, mas, no seu caso o efeito é precisa-
mente o contrário ao pretendido: ele torna-se sujeito passivo de uma sucessão
desencontrada de simples sentimentos sem nexo nem propósito. A liberdade
do ironista é, do ponto de vista real, nada, e do ponto de vista existencial, um
caleidoscópio de disposições. Não há, por isso, nenhuma continuidade na sua
vida; o “mesmo de si”, aquilo que faz do eu um eu, não existe, e resta, por isso,
o tédio: “O tédio é a única continuidade que o ironista tem. O tédio, essa eter-
nidade sem conteúdo, essa beatitude sem prazer, essa profundidade superfi-
cial, essa esfomeada saciedade”49. O resultado das análises de Kierkegaard
sobre a ironia romântica no que diz respeito ao tédio coincide, portanto, com
o que se revela nas descrições de Ou/Ou: a presidência das disposições e do
finito.
E, no entanto, há algo mais em O Conceito de Ironia. Neste caso, o tédio
não é só, como em Ou/Ou, uma disposição que ocupa o sujeito sem razão.
Há, para além disso, uma espécie de tentativa de indicação do tédio como
resultado de um projecto existencial determinado, que, por isso, admite alter-
nativas e, mais do que isso, que está a ser julgado de certa maneira, como uma
versão perversa da ironia. Isto parece querer dizer que o autor de O Conceito
de Ironia sabe mais sobre o tédio do que aquele que o sofre. E parece também
saber que, de alguma maneira, o entediado tem alguma responsabilidade no
seu tédio, no abandono a ele, na medida em que há possibilidades existenciais
alternativas. Ou seja, em O Conceito de Ironia vislumbra-se a possibilidade de
o tédio poder ser categorizado de outro modo. Há, pois, uma oposição não
resolvida: quem sofre o tédio, limita-se a sofrê-lo, e não se sente, de modo
nenhum, responsável por ele; em O Conceito de Ironia, pelo contrário, o tédio
é resultado de um peculiar desempenho da existência. Poder-se-ia, todavia,
pensar que esta oposição não é estrutural, isto é, que poderia acontecer que a
ironia romântica produzisse tédio, mas que nem todo o tédio seria resultado
de um projecto existencial semelhante. Haveria, então, uma espécie de tédio
“inocente”, que viria mesmo do nada e sem qualquer possibilidade de justifi-
cação. Mais ainda, poder-se-ia até pensar que o tédio não só não se reduziria
à ironia romântica como, pelo contrário, seria o destino fatal e “necessário”
das coisas, porque, “de facto” (diz o entediado), todas as coisas são nada. O
tédio romântico seria apenas um caminho para esta conclusão. Mas a “culpa”
do tédio seria da existência – essa é, aliás, a tese da Parte i de Ou/Ou. E é nesta
48
Idem, xiii, p. 382.
49
Idem, xiii, p. 386.
50
O Conceito de Angústia, iv, p. 442.
51
O Conceito de Angústia, iv, p. 432. A noção de demoníaco não é sempre indício de um mal
radical. Há, por exemplo, um demoníaco orientado para o religioso, como é o caso do Quidam
dos Estádios no Caminho da Vida (cf. vi, 419). Também neste caso há demoníaco porque há
fechamento em si mesmo, reflexividade rarefeita e doentia, mas essa reflexividade está em tensão
para a sua superação; e todavia, é demoníaca. Talvez isso ajude a entender porque é que Quidam
diz que os seus sofrimentos são entediantes (cf., por exemplo, vi, 366).
52
“Uddøetheden”; também se poderia traduzir por “desaparecimento”.
53
O Conceito de Angústia, iv, p. 442.
54
Idem, iv, p. 431.
55
É, por isso, significativo que na obra de Kierkegaard haja diversos estudos sobre a possi-
bilidade de se ser ou não culpado relativamente a um determinado acontecimento. Isso ocorre,
obviamente, no longo desenvolvimento dos Estados do Caminho da Vida, mas ocorre igualmente,
por exemplo, em A Repetição., em que a questão se coloca praticamernte nos mesmos termos.
O que está em causa é, portanto, a determinação das categorias nos quais um acontecimento
está considerado e o aspecto desse acontecimento variará significativamente consoante as
categorias.
56
A estrutura antropológica que torna possível a disparidade categorial não pode ser aqui
estudada.
57
Ou/Ou, i, p. 14.
58
Estádios no Caminho da Vida, vi, p. 280. O autor do texto cita a frase como sendo de
Ossian, mas, pelos vistos, Ossian terá escrito “doce é a alegria da melancolia”. Trata-se de um
lapso, mas o lapso é evidentemente mais correcto fenomenologicamente.
59
Pode encontrar-se um resumo muito denso e claro do que está em causa na poetização
melancólica da existência, e das noções de consagração e recordação, próprias da melancolia, no
texto de Afham, no começo de In Vino Veritas, dos Estádios no Caminho da Vida (vi, pp. 21-31).
60
Pap. viii 1 a 641.
61
Cf. sobre todo este assunto, A Repetição, iii, pp. 198 e ss.
62
Ou/Ou, i, p. 10.
63
Cf. O Conceito de Angústia, iv, p. 366, para a angústia e Ou/Ou, i, p. 314, para o tédio.
No Livro sobre Adler há um longo desenvolvimento sobre a vertigem que é muito útil para a
descrição e compreensão do fenómeno: Cf. Pap., vii 2 b, 235, pp. 160-162.
64
Pessoa, F. – Livro do Desassossego, pp. 187 e 234 respectivamente.
65
O original diz “forklare sig i sig selv”. O verbo folklare significa tanto explicar, expor, dar
conta, como transfigurar, e na obra de Kierkegaard é muito comum fazer uso dessa ambiguidade.
Aqui parece claro que o sujeito se transfigura quando se explica a si mesmo a partir de si mesmo,
de modo que estão presentes os dois sentidos: o sujeito dá conta de si mesmo em si mesmo e
não a partir do mundo, há um movimento de compreensão de si a partir de si e não do exterior.
66
Ou/Ou, ii, p. 204. O fenómeno da histeria corresponde precisamente ao que é descrito no
texto: é a conversão de um conflito que não se consegue resolver; pode ocorrer, portanto, quando
o sujeito não consegue enfrentar um aspecto da realidade e o fracasso derivado dessa incapaci-
dade desencadeia os fenómenos histéricos. Tem, assim, de haver conflito e fracasso.
67
Não é assim nada claro (é, pelo menos, muito ambíguo) o que escreve Malantschuk sobre
a relação entre angústia e melancolia: “(...) vê-se claramente que a melancolia é uma forma mais
elevada para a angústia. A angústia é, assim, a primeira forma de aparição do espírito, a melan-
colia a última (...). O Conceito de Angústia é na sequência dialéctica o primeiro livro da obra de
S. Kierkegaard; na cronológica é Ou/Ou”. Cf. Malantschuck, Gregor – “S. Kierkegaard og Poul
Mantin Møller”. In: Kierkegaardiana, iii, 1959, p. 19.
68
P. M. Møller escreveu, no período em que entrou em contacto com Kierkegaard, uma série
de aforismos (só publicados postumamente) sobre a figura do judeu errante, sobre Ahasverus.
Segundo F. Brandt – Den unge S. Kierkegaard. København: Levin & Munksgaards Forlag, 1929,
p. 395, os textos referiam-se ao jovem Kierkegaard. J. Hohlenberg – S. Kierkegaard. København:
Hagerup, 1940; trad. inglesa New York, Pantheon Books, 1954, p. 68, repete a tese. J. Garff
– Kierkegaard: A Biography. Princeton, nj: Princeton University Press, 2000, é omisso quanto
a esta referência. O que é interessante, todavia, é o que neles se pode ler. Por exemplo: “Os
tontos (dumme) senhores Pastores pensam que há uma diferença absoluta entre o bem e o mal,
mas não reparam que eu estou precisamente no ponto zero do termómetro da vida”; “Ahasve-
rus não quer nada. Ele considera-se infinitamente acima daqueles que querem qualquer coisa”.
Cf. Møller, P. M. – Filosofiske Essays og Strøtanker. Ed. B. Madsen. København: Gyldendal,
1965, pp. 112 e 113 respectivamente. É também muito significativa a relação que o mesmo
P. M. Møller estabelece entre ironia e o que chama sentimentalismo (ou “doentio sentimenta-
lismo”, que é evidentemente outro nome para a melancolia), em Acerca do Conceito de Ironia.
Tendo em conta a dependência que o tédio tem da ironia, o texto do Møller descreve com
Quer dizer, estas disposições são momentos em que se está perante o nada
e perante a possibilidade que ele endereça. Há três possibilidade de reconhecer
esse nada; em duas delas, melancolia e tédio, o sujeito não se liberta do nada
e por isso são a não-liberdade; por isso mesmo, tais disposições são vividas
como prisões e escravidão. É, por isso, compreensível que o autor da Parte ii
de Ou/Ou diga que a melancolia é “o pecado instar omnium” 69. Mas isso revela
também o que já se sabe: o autor desse texto é pouco profundo: o tédio é mais
pecado que a melancolia e razão tem v.h. em categorizá-lo como demoníaco,
angústia pela possibilidade do bem 70.
As disposições fundamentais são, assim, fundamentais, passe a redun-
dância: expõem a vida e abrem a possibilidade de um sentido novo, de um
sentido para além de todo o finito. É certo que, no tédio como na melan-
colia, esse novo sentido tem forma de nada, não se descobre nada de positivo,
nenhuma indicação de trilho possível por onde se possa seguir. Quer dizer,
tédio e melancolia são o fracasso da possibilidade. Mas, todavia, a disposição
não deixa de cumprir o seu papel, pois revelam ao sujeito que a sofre o seu
carácter radicalmente indevido: tanto um caso como o outro se está em situa-
ções indevidas. O protesto pode não ser compreendido e o entediado pode
ficar sem perceber onde está e que apelo lhe é dirigido, sabendo apenas que
algo está mal. Mas algo lhe é dito no tédio: a sua superioridade relativamente
a todo o finito (isto é, a transcendência relativamente a tudo o que é mundo)
e o mal-estar da pura afirmação disso. Tudo dependerá, como se disse, das
categorias de que se dispõe. Há um desejo de outro que tudo isto, como se
disse, que possui aparência de nada; e o sujeito reconhece ainda que odeia
o nada. O nada tem, portanto e curiosamente, forma de encruzilhada: tanto
pode embruxar o sujeito como constituir a possibilidade da liberdade. Tudo
depende precisamente da liberdade.
precisão a relação entre tédio e melancolia: “o ironista considera a sua subjectividade como o
mais elevado, o sentimental toma o absoluto como algo fora da sua pessoa, como exterior a todo
o mundo visível. Todavia, a diferença pode ser de algum modo nivelada, porque a consciência
do sentimental é a sede do reconhecimento da nulidade do finito, da realidade indeterminada do
mais alto” (Acerca do Conceito de Ironia, cit., p. 110).
69
Ou/Ou, ii, p. 205.
70
Na categorização da obra de Kierkegaard, o tédio não é o limite do “pecado”, ainda que
tal limite pareça uma variação dele. Entre tédio e escárnio, desdém ou desprezo pela vida, o
passo é mínimo. E daqui à revolta contra a existência, ao que se categoriza, em A Doença para
a Morte, como Trods, desafio, o passo não é também muito alargado. E este, parece, é sim o
limite do pecado. No fundo, de facto, o tédio é o estado geral, porque “desafio” é a forma extrema
do desespero de “querer ser si mesmo”, e isso é a origem do tédio, mais ou menos disfarçada.
Cf. Doença para a Morte, xi, p. 201 e ss.