Teoria Do Discurso Poetico

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LUCIA THEREZINHA RIBEIRO DE ARAUJO

Teoria do discurso poético

1ª Edição

Brasília/DF - 2018
Autores
Lucia Therezinha Ribeiro de Araujo

Produção
Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e
Editoração
Sumário
Organização do Livro Didático........................................................................................................................................4

Introdução...............................................................................................................................................................................6

Capítulo 1
O que é a poesia?...........................................................................................................................................................7

Capítulo 2
A importância da lírica na definição do poético............................................................................................... 17

Capítulo 3
A poesia lírica clássica – tipos de poemas......................................................................................................... 27

Capítulo 4
O pensamento crítico da modernidade............................................................................................................... 39

Capítulo 5
A poética moderna: características temáticas e formais............................................................................... 48

Capítulo 6
As vanguardas poéticas e análise de poemas................................................................................................... 61

Referências........................................................................................................................................................................... 75
Organização do Livro Didático
Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em capítulos, de forma didática, objetiva e
coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros
recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também,
fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares.

A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização do Livro Didático.

Atenção

Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a


síntese/conclusão do assunto abordado.

Cuidado

Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.

Importante

Indicado para ressaltar trechos importantes do texto.

Observe a Lei

Conjunto de normas que dispõem sobre determinada matéria, ou seja, ela é origem,
a fonte primária sobre um determinado assunto.

Para refletir

Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa
e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio.
É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus
sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas
conclusões.

4
Organização do Livro Didático

Provocação

Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes
mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor
conteudista.

Saiba mais

Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões


sobre o assunto abordado.

Sintetizando

Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o


entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos.

Sugestão de estudo complementar

Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo,


discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso.

Posicionamento do autor

Importante para diferenciar ideias e/ou conceitos, assim como ressaltar para o
aluno noções que usualmente são objeto de dúvida ou entendimento equivocado.

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Introdução
Neste curso que você tem em mãos, vamos discutir a natureza e a função da linguagem poética,
levando em consideração as diversas concepções de poesia que foram desenvolvidas ao longo
da história.

Desse modo, será necessário que coloquemos em paralelo a linguagem comum, que utilizamos
todos os dias, e a linguagem poética, que faz parte também de nossa vida mais do que podemos
imaginar. É nosso objetivo aqui analisar o discurso poético de forma mais aberta do que as
concepções tradicionais, de certa forma enraizadas no senso comum. A poesia é a maneira
encontrada pela linguagem de dar vazão à expressão de sentimentos e sensações que, muitas
vezes, a objetividade da nossa fala cotidiana não pode realizar.

Objetivos gerais

» Compreender as diferenças fundamentais entre a linguagem poética e a linguagem


comum, em que esta possui sentido mais comunicativo, enquanto aquela, expressivo.

» Entender de que modo o discurso poético se identifica à metáfora e à emoção individual,


fazendo parte de nossas vidas de variadas maneiras.

» Compreender a relação que se espera dentro da interação autor/eu lírico/leitor própria


do discurso expressivo da poesia.

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CAPÍTULO
O QUE É A POESIA? 1
Apresentação

Neste primeiro capítulo de nosso curso vamos conhecer o objeto de estudo da teoria do discurso
poético: a poesia. Sem essa discussão inicial nos pareceria menos produtivo e apropriado adentrar
aos conceitos variados que compõem esta área de estudos.

Vamos apresentar e analisar os aspectos da linguagem que formam o discurso poético e suas
relações com o público. Além de delinear conceitos basilares a respeito do discurso da poesia,
assim como suas transformações sofridas no tempo.

Objetivos

» Compreender as diferenças da linguagem poética em relação à linguagem cotidiana,


sobretudo o domínio do traço expressivo em oposição à comunicação, característica
primordial na linguagem do cotidiano.

» Compreender a necessidade exigida pela linguagem poética de se aproximar mais da


voz do discurso (o eu lírico) do que de seu referente (o tema) para a justa percepção da
poesia.

» Compreender as relações aproximadas entre poesia e religião primitiva na história da


humanidade.

Introdução

O que é a poesia? Você já se perguntou isso? A princípio se pode pensar que poesia são os versos
de saudade de Gonçalves Dias, que aprendemos no colégio como o início da poesia no Brasil,
ou ainda a pedra no meio do caminho de Carlos Drummond de Andrade – ainda que quando
muito jovens talvez nos surpreendamos com tamanha simplicidade de palavras poderem ser
chamadas de poesia. Pois poesia é tudo isso e muito mais. Neste curso vamos discutir os sentidos,
as formas e a natureza do discurso poético dentro do universo linguístico que nos cerca e nos

7
CAPÍTULO 1 • O QUE É A POESIA?

constitui, e, para isso, precisamos ampliar nossa percepção de poesia para além dos versos de
nossos poetas apresentados na escola (sem jamais abandoná-los, contudo), trazendo para esse
estudo a natureza poética da música popular, do cinema, da religião, das artes plásticas e onde
mais houver poesia.

O termo poesia vem do grego poiesis, que pode ser traduzido como criação. Por consequência,
o poeta é um criador. E ele cria pela palavra. A ideia da criação verbal, na cultura judaico-cristã,
está na explicação do surgimento do mundo. Basta lermos o Antigo Testamento, justamente
no livro do Gênesis, para constatarmos que o poder divino de criação do mundo, do homem e
das coisas se deu pelo uso da palavra. No princípio era o Verbo. E Deus falou/criou o mundo.
O universo é a Sua poesia. A escritora e semióloga búlgara, Julia Kristeva, em seu História da
linguagem (1969), discorre acerca dessa característica da linguagem hebraica:

A Criação, tal como a Bíblia a apresenta, é acompanhada por um ato verbal, se


é que não se identifica com ele: “Ora Deus querendo tirar essa matéria informe
das trevas em que estava mergulhada, disse: Haja luz. E houve luz... Deu à luz o
nome de dia, e às trevas o nome de noite...” (Gênesis, I, 3-5) Nomear é um ato
divino, arbitrário mas necessário (“verdadeiro”) (KRISTEVA, 1974, p. 141)

O mundo é uma criação verbal, uma invenção da linguagem humana sobre a perfeição silenciosa
do universo. E cabe ao poeta a vocação adâmica de criar em cima da criação, de recriar o significado
do mundo inventado pela língua. Por conta disso, mais do que invenção da linguagem, a poesia é
invenção pela linguagem, é a forma expressiva que dá sentido à existência, que permite a criação
de um significado sobre aquilo que nem mesmo nome carrega.

Para pensarmos corretamente a respeito da poesia, devemos, então, reconhecer sua natureza,
aquilo do que ela é feita. A poesia é, pois, linguagem, antes de qualquer outra definição. Mas que
tipo de linguagem? Sabemos que existem muitas a constituir nossas relações de comunicação,
pensamento e expressão, e a linguagem utilizada na produção de avisos públicos (placas de
trânsito, outdoors, letreiros...) não é exatamente a mesma daquela presente nos poemas e versos
de nossos poetas.

Mas qual seria a diferença? Por que sabemos dizer, ao ler, o que se propôs a ser poesia (linguagem
artística) e aquilo que não se propôs (linguagem prática)? Será apenas o espaço em que cada
texto é encontrado, a rua ou o livro, que separariam a linguagem poética da não poética? É claro
que não. Quando se lê, no centro de Niterói, numa praça pública, os versos de Ferreira Gullar:
“como dois e dois são quatro / sei que a vida vale a pena / mesmo que o pão seja caro / e a
liberdade pequena” (GULLAR, 1995, p. 133), não se pensa se tratar de um aviso prático, como
uma indicação de lugar ou uma proibição de qualquer prática no espaço público, mas se reconhece
como uma mensagem poética capaz de fazer seu receptor refletir a respeito da existência e da
sociedade. Isso é efeito da poesia. A rima, tão comumente identificada à poesia, na verdade a
transcende, habitando há muito os ditos populares e há menos tempo a publicidade, por exemplo.

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O QUE É A POESIA? • CAPÍTULO 1

Por isso, não posso dizer que os versos de Ferreira Gullar são poesia porque produzem o efeito
sonoro da rima, pois se nos lembrarmos de outros versos famosos da poesia brasileira: “Quando
nasci / um anjo torto / desses que vivem na sombra / disse: / – Vai, Carlos / ser gauche na vida”
(ANDRADE, 1998, p. 12), a primeira estrofe de Poema de sete faces, de Carlos Drummond de
Andrade, reconhecemos rapidamente que a poesia de fato não exige rimas, ainda que se valha
delas tantas vezes e tão bem.

A primeira distinção que devemos fazer então entre poesia


Para refletir
e linguagem comum é a de que enquanto esta deve ser
objetiva, imediata e clara, como o aviso “Não pise a grama” Neste curso utilizaremos os nomes
poesia e poema de variadas formas, às
ou o “bom dia” que damos ao vizinho pela manhã, aquela
vezes de maneira sinônima. Contudo,
se pretende mais profunda, reflexiva e por vezes ambígua, a diferença fundamental é que por
como a constatação a respeito da vida presente no poema poesia se entende, além de um texto
de Ferreira Gullar. poético específico, semelhante
a poema, também o de exercício

Diferenciamos essas duas naturezas como comunicativa e universal de produção poética, ou


seja, o conceito geral que reúne a
expressiva respetivamente, pois enquanto a linguagem que
prática de se fazer poesia. E o termo
utilizamos no cotidiano é predominantemente comunicativa, poética se vale, por sua vez, de outra
já que pretende estabelecer relações pragmáticas e ambiguidade, tanto significa o adjetivo
que se coloca sobre algo de valor
efetivas com o mundo, a linguagem da poesia é carregada
poético (voz poética, por exemplo),
prioritariamente à expressividade de quem a diz, o poeta. como também o substantivo que
Isso não significa que um poema não deva ser comunicativo designa a concepção de poesia de um

(muitos o são), nem que seja proibido que utilizemos autor (a poética de Baudelaire ou de
Mário Quintana, por exemplo).
nuances poéticas em nossas relações comunicativas –
apenas identifica melhor a natureza linguística da arte
poética em geral.

Você certamente já leu a respeito das funções da linguagem, desenvolvidas inicialmente pelo
linguista Roman Jakobson. Elas podem ser referencial, emotiva, conativa, fática e poética. O
discurso poético, pois, seria aquele que englobaria fundamentalmente princípios da função
poética com objetivos da função emotiva, podemos dizer. Por quê? Primeiramente por se tratar
de criação artística, portanto dotada de valores estéticos e preocupação com sua forma discursiva,
mas, também, por transmitir (expressar) uma dada emoção a ser também sentida pelo receptor
(no nosso caso, o leitor).

Vejamos o seguinte caso: se eu digo a um amigo que encontro na rua: “vou-me embora pra
Minas Gerais”, apenas comunico minha decisão de me mudar de estado, concretamente. Mas
se digo: “vou-me embora pra Pasárgada”, meu amigo entenderá (assim espero) se tratar de
citação poética, no caso dos versos de Manuel Bandeira, metaforizando o desejo de ir a um lugar
perfeito e acolhedor, que não existe. Minha mudança de estado, pois, torna-se poética, é apenas
expressão de um sentimento.

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CAPÍTULO 1 • O QUE É A POESIA?

Contudo, ainda podemos imaginar a seguinte situação. Novamente eu e esse amigo nos
encontramos e decidimos tomar um café e comer um pão de queijo. Ao saborear o pão crocante e
quentinho, misturado ao aroma do café recém-coado, posso permitir à imaginação e à lembrança
me transportar a Minas e espontaneamente declarar: “vou-me embora pra Minas Gerais”. O
que antes era um comunicado de mudança de CEP torna-se linguagem poética de expressão de
saudade e afeto com um lugar. Eis a poesia nossa de cada dia, como já falou certa vez o poeta
Oswald de Andrade.

O poeta é um criador mentiroso

Um dos mais famosos poemas da língua portuguesa diz o seguinte:

Autopsicografia Para refletir

O poeta é um fingidor. Fernando Pessoa é um dos maiores


poetas da história. E um dos mais
Finge tão completamente originais também. Criou mais de
cem heterônimos, personalidades de
Que chega a fingir que é dor poetas diferentes entre si e capazes
de produzirem obras completamente
A dor que deveras sente. diversas. Dentre eles, os mais famosos
são Alberto Caeiro, Álvaro de Campos e
E os que leem o que escreve, Ricardo Reis. Pessoa ainda compunha
biografias e mapas astrais para seus
Na dor lida sentem bem,
heterônimos e afirmava, por exemplo,
que Caeiro era o mestre de todos os
Não as duas que ele teve,
poetas que de sua caneta surgiram
– inclusive dele mesmo, Fernando
Mas só a que eles não têm.
Pessoa. Sua obra é vasta e rica como
somente uma genialidade desse porte
E assim nas calhas de roda
seria capaz de conceber.

Gira, a entreter a razão,

Esse comboio de corda

Que se chama coração.


(PESSOA, 1999, p. 221)

Esse é um poema metalinguístico, já que trata da natureza dos poetas e de seu ofício, a poesia;
portanto, nos parece proveitoso observá-lo melhor a título de esclarecimento sobre essa arte tão
antiga quanto a humanidade.

Comecemos então por “O poeta é um fingidor.” Estando no primeiro verso e sob a forma de
uma afirmação, a frase inicial é carregada de um sentido de verdade, ou seja, de um fato a ser
explicado ou descrito nos versos seguintes, além de transmitir o sentido fundamental da visão

10
O QUE É A POESIA? • CAPÍTULO 1

do poeta para Fernando Pessoa: aquele que finge, simula, atua, em outras palavras, aquele que
cria o que antes não havia. Pois bem. Isso está claro, correto? Mas ao continuarmos a leitura da
primeira estrofe, deparamo-nos com um paradoxo: “finge tão completamente / que chega a fingir
que é dor / a dor que deveras sente.” Eis o problema a ser interpretado. O adjunto adverbial de
intensidade (tão completamente) já nos indica que esse fingidor é diferente dos outros, é especial,
pois, simplificando os dois versos finais de Pessoa, o poeta torna fingimento até mesmo o que é
real... Ora, se ele deveras sente a dor, por que então fingiria esta sensação, que para ele é bastante
real? Para respondermos a esta pergunta, voltemos a Pasárgada de Manuel Bandeira.

Quando o poeta brasileiro, em sua mais famosa poesia, declama que “vou-me embora pra
Pasárgada”, entendemos se tratar de um desejo de fuga e liberdade transformado em metáfora. E
quando estudamos um pouco mais a obra desse poeta verificamos que tal sentimento é bastante
comum em seus poemas. O crítico Antônio Cândido, por exemplo, afirma que a peculiaridade da
poesia de Bandeira está em reunir assuntos cotidianos com o mais forte desejo de transcender
para uma realidade além e intangível.

Indo além, se por acaso procurarmos entender um pouco mais a respeito da vida desse autor,
descobriremos que sua tuberculose, diagnosticada quando Bandeira ainda era adolescente e que
o fez acreditar ter sempre apenas um fio de vida (embora tenha o poeta vivido até os oitenta
anos), representou uma vida cheia de dores e privações com que ele procurava lidar por meio da
poesia. Conscientes disso, vejamos como esses versos se transformam: “E como farei ginástica /
Andarei de bicicleta / Montarei em burro brabo / Subirei no pau-de-sebo / Tomarei banhos de
mar!” Todas essas ações, comuns aos meninos de seu tempo, foram proibidas a Bandeira tão logo
a sua doença foi diagnosticada, ainda muito novo. Em sua Pasárgada, pois, ele poderia realizá-las
finalmente. E por que, então, essa dor deveras sentida torna-se fingimento, nos versos de
“Vou-me embora pra Pasárgada”? Porque não se necessita saber da biografia de Manuel Bandeira
para sentir a dor presente em seu poema, pois essa dor é humana, e, de maneira geral, todos nós
a sentimos, ainda que em graus e circunstâncias distintos.

Na segunda estrofe, Pessoa se dirige a nós, os leitores. E o paradoxo da linguagem poética se


desdobra. A dor sentida pelo leitor, na leitura do poema, não é mais nem aquela original, nem a
fingida pela palavra, é outra, universal, aquela que os leitores “não têm”. Uma das características
fundamentais da linguagem poética é a da universalidade. O sentimento construído na poesia,
originado num coração de um poeta e transformado em metáfora poética, não é de posse
individual, mas é a própria universalidade do sentimento, seu conceito abstrato e atemporal
que cativa leitores ao longo do tempo.

Chegamos ao final do poema, quando o poeta conclui sua reflexão sobre a poesia. Voltemos à
estrofe. Nela, a paixão, entendida como o reino do sentimento, governa o pensamento racional
por meio da poesia. O comboio de corda (um trenzinho infantil) chamado coração é o que gira,
move a razão entretida pela poesia.

11
CAPÍTULO 1 • O QUE É A POESIA?

Em resumo, a poesia é ligada essencialmente ao sentimento, à emoção, e ao uso criativo da


linguagem por meio do engenho do poeta. E se nos lembrarmos das palavras que dão nomes
aos sentimentos, chegaremos ao conceito de substantivo abstrato: as coisas que só existem em
dependência de alguém. O substantivo comum, pedra, por exemplo, refere-se a um objeto que
existe independentemente de nossa existência. No entanto, amor ou saudade, por sua vez,
só existe se alguém senti-lo ou experienciá-lo. Esse é o reino da poesia, dos sentimentos e das
emoções, um mundo, pois, abstrato.

E não poderia ser diferente. Como vimos, a poesia é criação desde a Grécia Antiga. Sendo assim,
ela precisa manter essa motivação criativa dentro do seio da linguagem. Deve ser dela o dever de
dar nome ao que não se vê concretamente, mas se sente, se imagina, se deseja. Essa é a função
pública do poeta, nomear o que ainda não se percebe. Em uma sociedade que crê saber tudo,
não haverá espaço para esse ofício. E este é o desafio atual da poesia, buscar espaço e relevância
no meio de uma sociedade tecnicista, inebriada por suas próprias descobertas e avanços
tecnológicos. Mas estamos agora avançando demasiadamente. Ainda falaremos da situação do
poético em nossos dias.

Mas de onde surge o sentimento, a origem do transbordar poético? A tal dor real e fingida de
que fala Fernando Pessoa? Toda criação artística pode ser fruto do que chamamos comumente
de inspiração. Como o sambista João Nogueira canta em “Poder da criação”, “não / ninguém faz
samba só porque prefere / força nenhuma no mundo interfere / no poder da criação” (NOGUEIRA,
1992), a criação poética, em sua origem, é vista como um mistério traduzido no mito da inspiração,
que percorre toda a história das artes.

Na Antiguidade Clássica, a inspiração é personificada nas figuras mitológicas denominadas


musas, a quem os poetas pedem que lhes dê o canto necessário para a poesia. É a chamada
invocação às musas. Em a Ilíada, de Homero, é desse modo que se começa o relato, no pedido
às musas. Assim também o faz o poeta português Luís de Camões, em sua epopeia Os Lusíadas
(1572), poema de inspiração clássica:

E vós, Tágides minhas, pois criado

Tendes em mim um novo engenho ardente,

Se sempre em verso humilde celebrado

Foi de mim vosso rio alegremente,

Dai-me agora um som alto e sublimado,

Um estilo grandíloquo e corrente,

Porque de vossas águas, Febo ordene

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O QUE É A POESIA? • CAPÍTULO 1

Que não tenham inveja às de Hipoerene.

Dai-me uma fúria grande e sonorosa,

E não de agreste avena ou frauta ruda,

Mas de tuba canora e belicosa,

Que o peito acende e a cor ao gesto muda;

Dai-me igual canto aos feitos da famosa

Gente vossa, que a Marte tanto ajuda;

Que se espalhe e se cante no universo,

Se tão sublime preço cabe em verso.


(CAMÕES, 1965, p. 9)

A presença constante do imperativo (dai-me, ordene) e do vocativo (Tágides são as ninfas do


rio Tejo, de Portugal), demonstra que o poeta acredita estar fora de seu alcance, seja no tempo,
seja no espaço, a origem da poesia. Essa noção, evidentemente, seria transformada ao longo
do tempo, mas nunca superada, como vimos na canção de João Nogueira. Durante o período
romântico, muitos séculos depois da poesia grega de Homero, a musa cede espaço a um novo
conceito, definido por espírito criador ou gênio criativo. Assim define o poeta inglês Percy Bysshe
Shelley, em 1821, a respeito da impossibilidade de se querer objetivamente criar a poesia:

A poesia não é, como o raciocínio, uma faculdade que se possa exercer pelo
exercício da vontade. Ninguém pode dizer “vou compor poesia”. Mesmo o maior
poeta não pode dizê-lo, pois o espírito criador é semelhante a uma brasa dormida
que uma força invisível, como um vento inconstante, anima de um brilho efêmero:
esse poder emana do interior […] e as zonas conscientes de nossa natureza não
podem anunciar sua chegada, nem sua partida.

[…] Os poetas são os hierofantes de uma inspiração que não se pode explicar; são
os espelhos onde se refletem as sombras gigantescas que o futuro projeta sobre
o presente; são as palavras que exprimem aquilo que eles não compreendem;
são as trombetas que chamam ao combate e não sentem o que inspiram; são
a influência que não é passível de ação, mas que age... (SHELLEY, 1991, p.75)

Pode-se pensar, então, que adentrando tempos mais modernos, como o final do século XIX e o
século XX, com o desenvolvimento cada vez maior das ciências e da consciência humana sobre
si mesmo, tenha-se chegado a uma definição menos aberta e mais objetiva sobre a origem da
poesia. Curiosamente, o resultado foi oposto. O desenvolvimento da psicanálise, por exemplo,
trouxe o conceito de inconsciente para o pensamento humano: um espaço mental que não
apenas não podemos controlar, como, muitas vezes, nos controla. A valorização do sonho, da

13
CAPÍTULO 1 • O QUE É A POESIA?

hipnose, de um discurso diferente e original fez com que o mistério da poesia se recriasse. O poeta
francês Charles Baudelaire, para muitos o primeiro poeta moderno, assim define esse estado de
criação poética, que muitas vezes pode surgir também de um estado de embriaguez alcoólica ou
entorpecimento por meio do ópio. De algum lugar afastado e inacessível à razão surge a poesia,
ainda que depois caiba ao poeta dar forma e sentido finais ao poema. Assim afirma outro poeta
francês, Jules Supervielle:

A poesia surge, em mim, de um sonho sempre latente. Esse sonho, gosto de


dirigi-lo, exceto nos dias de inspiração quando tenho a impressão de que ele se
dirige sozinho.

Não gosto do sonho que vai à deriva. Procuro fazer dele um sonho consistente,
uma espécie de figura de proa que depois de ter atravessado os espaços e o tempo
interiores, afronta os espaços e o tempo do exterior – e para ele, o exterior é a
página em branco. Sonha é esquecer a materialidade de seu corpo, confundir de
algum modo o mundo exterior e interior. A onipresença do poeta cósmico talvez
não tenha outra origem. (SUPERVIELLE, 1975, p. 57)

Neste ponto de nosso capítulo, seria proveitoso se enumerássemos os princípios que regem a
poesia:

» Linguagem própria: a linguagem poética é formada pelo uso criativo da língua, da


metáfora que amplia o referente da comunicação em elemento poético. A ela se opõe a
linguagem comum, que mira a comunicação pragmática entre os indivíduos.

» Expressividade: a poesia sempre se vê ligada às expressões vindas das emoções humanas,


mais do que à comunicação, propriamente dita. O poeta, ainda que estabeleça uma
comunicação com seu público, procura, na verdade, expressar seus sentimentos por
meio de uma linguagem criativa que dê vazão à sua abstração e imaginação.

» Universalidade: a poesia supera o tempo e as diferenças individuais de seu público


mais do que qualquer outro tipo de discurso, pois ela se funda em nossa humanidade,
isto é, nos sentimentos e emoções que nos fazem humanos e nos identificam. Sonetos
de Camões e de Shakespeare, mesmo compostos há, pelo menos, quatro séculos,
permanecem com a mesma força sugestiva de outrora para os leitores de hoje.

» Origem inconsciente: por estar ligada às emoções, a poesia não se resume a um objetivo
prático, nem se origina de uma escolha racional, embora também o faça, é claro.
Mas a poesia nasce de uma sensibilidade aguçada, antes de se converter em trabalho
linguístico. Carlos Drummond de Andrade falava que vários poemas lhe viam em horas
inconvenientes, como em uma viagem de ônibus, por exemplo, e se perdiam.

14
O QUE É A POESIA? • CAPÍTULO 1

O poeta é um profeta

O poeta é um sujeito que vê além do que os outros veem. O poeta é o sujeito que nomeia o invisível.
O poeta traduz sentimentos universais e aproxima espíritos além do tempo. Se observarmos
todos esses procedimentos, podemos perceber a similaridade entre a linguagem poética e a
linguagem religiosa.

A religião é a poesia original. Não as instituições humanas que dela derivam, que fique claro, mas
o discurso linguístico milenar que orienta o sentido do mundo presente nela. E isso acontece
porque toda religião se funda no mito, a primeira expressão poética da humanidade. Mitos são
sempre narrativas primordiais, isto é, que antecedem e explicam a origem da humanidade. Mais
do que isso, a linguagem mítica busca dar sentido transcendental à nossa existência, tornando a
palavra o meio de reunião (religamento, daí o nome religião) entre o homem e a origem divina.

Como já afirmamos neste capítulo, a cultura hebraica transmite à língua o poder máximo de
criação. Noé e Moisés, por exemplo, são escolhidos por Deus para receber sua voz e falar aos
homens a verdade. O mesmo acontece com Jesus Cristo e Maomé, homens que receberam o
destino de transmitir a palavra divina. Visitando o livro A poética (1984), do francês Henry Suhamy,
encontramos reunidas em uma mesma passagem a presença da inspiração para o poeta e sua
condição de criador profético:

atribui a criação poética a uma intervenção extraterrestre, a da Musa, ou do


afflatus divino – em outras palavras, a inspiração, literalmente um sopro de
vida e de pensamento (o parentesco entre espírito e inspiração é bastante claro)
– que toma o lugar das faculdades mentais do poeta e fala através dele. Daí a
equivalência entre o poeta e o profeta. (SUHAMY, 1992, p. 8)

A semelhança entre o profeta e o poeta não é, pois, por acaso. Ambos transmitem uma ideia
verdadeira, profunda, presente no espírito humano, mas incompreensível aos homens comuns.
O poeta/profeta deve, assim, por meio de sua “diferença” em relação aos outros, reproduzir a
palavra perfeita do espírito divino. O poeta Paulo Leminski, autor de uma biografia de Jesus Cristo,
propõe que entendamos o profeta do cristianismo como um poeta. O crítico Luiz Fernando
Valente explica essa relação:

Pois o Jesus biografado por Leminski corporifica o ideal leminskiano do poeta,


que revela, ocultando. Apesar de ser “um subversor da ordem vigente, negador
do elenco dos valores de sua época e proponente de uma utopia”, Jesus não é
um “poeta participante”, mas um “poeta crítico”, que prefere expressar-se por
meio da parábola, onde suas mensagens são transmitidas não “por cadeias de
raciocínios, mas através de ‘estórias paralelas’... unidades poéticas e ficcionais,
capazes de irradiar significados espirituais e práticos, abertas à exegese, à
explicação, à liberdade. Jesus, Joshua Bar-Yosef, pensa concreto”. Educado dentro
da tradição cabalística de interpretação de textos, Jesus é, como Leminski, um

15
CAPÍTULO 1 • O QUE É A POESIA?

“poeta” movido por “anseios crípticos”, para o qual uma multiplicidade de


sub-sentidos e significados ocultos estão presentes em cada texto. […] Com
Jesus, “o dentro e o fora começam a desaparecer: exterior e interior tendem a se
encontrar num ponto infinito. Jesus está inventando a alma: o super-signo que
todos somos ‘dentro’. Essa, talvez, foi a sua revolução, a mais imperceptível de
todas”. Assim mais uma vez Jesus se revela como um poeta, na medida em que,
para ele, o real sempre passa pelo que existe “dentro” dos seres humanos, isto é,
a espiritualidade. (VALENTE, 1993)

Desse modo, podemos afirmar que a poesia é essencial à cultura humana, nos constitui como
seres que, ao se reconhecerem finitos e incompletos, buscam em uma sensibilidade além
(espiritualidade, inspiração...) a captação do sentido da existência ou, ao menos, a expressão
de nossas dúvidas, medos, anseios e amores. Mesmo fora da religião, o poeta carrega em seu
trabalho com a língua a missão milenar de profetizar nosso estar no mundo.

16
CAPÍTULO
A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA
DEFINIÇÃO DO POÉTICO 2
Apresentação

Conheceremos, neste capítulo, a Poética Clássica, de origem grega, e sua presença na construção
do discurso lírico. Ainda que distante no tempo, tal concepção lírica é a base da linguagem poética
que seria reformada ou revolucionada a partir da modernidade.

Objetivos

» Conhecer o lirismo como o gênero literário tradicional a que cabe o discurso da poesia.

» Conhecer os conceitos clássicos a respeito da linguagem poética.

» Identificar as formas tradicionais de poesia: as regras de metrificação, ritmo, rima etc.

» Compreender o sentido de clássico para a literatura, em especial no que se refere ao


gênero lírico.

Iniciaremos este capítulo buscando perceber a supremacia da lírica na definição do poético.

Trata-se de um ponto importante na definição do discurso poético: a relação entre a poesia e a


literatura. Como já mencionado, as formas narrativas e as peças teatrais, como também os filmes e
as séries de TV, podem se valer de uma expressividade poética. Muitas vezes assistimos a um filme
que nos emociona por meio de sua fotografia, das falas de um personagem ou da performance de
um ator e ali reconhecemos um traço de poesia. Contudo, filmes, romances, peças, contos não
são poesia. Ao menos não são identificados dessa maneira nos estudos referentes aos gêneros
literários. À poesia cabe o espaço do poema.

Os gêneros clássicos, estabelecidos na tradição ocidental por meio de Aristóteles, em sua Poética,
e desenvolvidos depois por tantos outros pensadores, separam a literatura em três gêneros
distintos: a épica (reconhecidamente o gênero narrativo), o drama (que hoje chamamos de
teatro) e o lírico (os poemas, propriamente ditos). Portanto, é necessário um conhecimento
específico do lirismo – e suas diferenças em relação aos outros gêneros – para compreendermos
o desenvolvimento do discurso poético dentro da tradição ocidental.

17
CAPÍTULO 2 • A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA DEFINIÇÃO DO POÉTICO

A lira e a poesia oral

Qual o sentido do termo lírico ou lirismo? Qual a sua origem? Lira (originalmente do grego)
é um instrumento de cordas oriundo da Antiguidade que acompanhava o cantor de versos
sentimentais. Assim, a poesia, como a conhecemos, é carregada de musicalidade e expressão
emotiva, combinação que recebe o nome de lirismo.

Antes de se transformar em poema escrito e ocupar as páginas dos livros, a poesia existia apenas
nas vozes de poetas populares, que habitavam o espaço público da antiguidade. Não é acidental,
portanto, a semelhança entre os poetas e os compositores populares, mesmo porque muitos
deles se confundem, como Vinicius de Moraes. Dentre a tríade de gêneros aristotélica a lírica
seria a de menor importância, a que recebeu menos olhares críticos e analíticos na antiguidade.
A própria Poética, por exemplo, apenas a menciona, dedicando-se apenas à epopeia e ao drama,
neste, em especial à tragédia.

Na Idade Média, contudo, a lírica passará a ocupar outros espaços, menos populares, como a
corte e os salões da nobreza. Talvez você já deva ter estudado a respeito do trovadorismo, um tipo
especial de poesia existente principalmente entre os séculos XII e XV em Portugal. A trova e o
trovador, termos oriundos do latim tropare, algo como compor ou inventar, reforçam o espírito
do lirismo antigo, ainda popular. O trovadorismo era composto por cantigas de amor, de amigo ou
de escárnio. Todas essas formas se desdobrariam em outras no decurso da literatura ocidental. As
cantigas de amor, por exemplo, como a de autor desconhecido que reproduzimos a seguir, teriam
sua temática (a da vassalagem amorosa) constantemente repetida no período romântico, já só
século XIX. Marcada por um eu lírico masculino que dedica sua vida a uma mulher idealizada,
o gênero institucionalizaria em língua portuguesa a retórica apaixonada identificada à poesia:

Cantiga de amor
Conheço certo homem, ai formosa,

Que por vossa causa vê chegada a sua morte;

Vede quem é e lembrai-vos disso;

Eu, minha senhora.

Conheço certo homem que perto sente

De si a morte chegada certamente;

Vede quem é e tende-o em mente;

Eu, minha senhora.

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A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA DEFINIÇÃO DO POÉTICO • CAPÍTULO 2

Conheço certo homem, escutai isto:

Que por vós morre e vós desejais que ele parta;

Vede quem é e não vos esqueçais dele;

Eu, minha senhora.

Lirismo x poesia épica

O reino do mito, que, como vimos, é a base de uma linguagem poética, desenvolverá os três
gêneros principais da literatura. Tragédias, como a de Édipo ou a de Prometeu, baseiam-se em
mitos da cultura grega, e procuram aproximar suas verdades ao conhecimento da população. O
mesmo se dará com a epopeia, que serve à representação dos mitos fundadores que formaram
determinada cultura muito tempo atrás. São as histórias que identificam um povo a um herói, por
exemplo. Em ambos os casos, no drama e na épica, o referente é bastante forte na construção do
sentido, e o autor é o sujeito que soube construir a história desse referente (um país, um herói,
uma guerra) de forma atrativa para o público.

A poesia lírica, todavia, exige um movimento diferente, essencialmente interior. No lugar da


representação sobressai-se a expressão (como já havíamos visto que no lugar da comunicatividade
da linguagem comum ergue-se a expressividade da linguagem poética). O referente para a poesia
lírica não está fora do sujeito, mas dentro dele – seja para quem a escreve como para quem a lê.

O crítico francês Yves Stalloni, em Os gêneros literários, descreve essa transformação no seio
da arte mimética:

Diante do universo da representação vai se constituir progressivamente um


universo da expansão. À restituição objetiva do mundo em sua forma narrada
(o relato, a narrativa), ou dialogada (o teatro), responderá uma relação pessoal
das impressões suscitadas pelo mundo, uma exploração íntima dos sentimentos,
expressa através de uma voz julgada espontânea, que é o canto. Tomando-se ele
próprio como assunto, o poeta abandona o domínio da imitação da realidade
em troca daquele da introspecção individual. Essa tendência literária que
negligencia a atitude de tomar o mundo como modelo, que ignora as expectativas
do auditório, que parece traduzir, de maneira incontrolada, a interioridade do
criador e reproduzir uma fala que ele se dirige a si mesmo, corresponde àquilo
que será chamado de lirismo. (STALLONI, 2007, p. 135)

“Exploração íntima dos sentimentos”, “introspecção individual”, “interioridade do criador”... são


muitas as formas de definição do espírito da poesia lírica, mas todas esbarram em uma concepção
íntima e sentimental, que receberá o nome integrador de subjetividade.

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CAPÍTULO 2 • A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA DEFINIÇÃO DO POÉTICO

Vejamos, então, mais um poema para compreendermos melhor o que aprendemos:

Soneto de separação
De repente do riso fez-se o pranto

Silencioso e branco como a bruma

E das bocas unidas fez-se a espuma

E das mãos espalmadas fez-se o espanto.

De repente da calma fez-se o vento

Que dos olhos desfez a última chama

E da paixão fez-se o pressentimento

E do momento imóvel fez-se o drama.

De repente, não mais que de repente

Fez-se de triste o que se fez amante

E de sozinho o que se fez contente.

Fez-se do amigo próximo o distante

Fez-se da vida uma aventura errante

De repente, não mais que de repente.


(MORAES, 1992, p. 82)

Vinicius de Moraes é o maior sonetista do modernismo Para refletir

brasileiro. O soneto é uma forma clássica de poesia, como O eu lírico, como sabemos, é a voz
sabemos (vem do italiano e significa pequeno som, por da poesia, assim como narrador é
se tratar de poema pouco extenso), e poucos no século a voz da narrativa. Mesmo assim,
não devemos nos prender a um
XX saberiam cultivá-lo e preservá-lo tão bem. Soneto de
radicalismo tal que nos impeça em
separação é um exemplo desse zelo e talento do criador algum momento de denominar poeta
de Garota de Ipanema. Nele encontram-se preservados àquele que fala no texto, especialmente
quando se quer chamar a atenção para
os principais traços poéticos apresentados neste capítulo.
algo de importante para a concepção
de poesia do autor, como fizemos
Ao tratar do fim de uma relação, tema clássico para a
quando tratávamos, no capítulo 1, do
poesia, o eu lírico de Vinicius de Moraes se concentra no poema Autopsicografia, de Fernando
momento presente, no instante em que um casal se separa, Pessoa. Outro dado importante é que
a partir do modernismo também se
naquela abstração buscada constantemente pela poesia.
convencionou chamar o eu lírico de
Percebemos isso pela repetição da locução adverbial de
eu poético, mas ambos traduzem o
repente, demonstrando que, em um segundo apenas, o mesmo: a voz da poesia.

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A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA DEFINIÇÃO DO POÉTICO • CAPÍTULO 2

que estava de pé, desaba. Essa estrutura repetitiva, ainda, realça o tom dramático do assunto
poético e o sofrimento (a dor que deveras sente) experienciado pelo eu lírico, que ele tenta agora
transformar em metáforas e versos poéticos. Aqui o poeta não fala apenas das oito separações que
viveu em sua vida (e tantas mais que as biografias não conseguem contar), mas da separação em
si, do fim do amor que tanto abala homens e mulheres em qualquer época, em qualquer cultura.

Mas e o lirismo original, ou seja, aquele acompanhado por música? Como já falamos, nenhuma
poesia é obrigada a ser musicada, muito menos rimada, mas muitas não abrem mão desse traço
originário capaz de conferir ainda mais beleza ao poema. Além das rimas no final dos versos (pranto
/ branco; vento / pressentimento; amante / errante), Vinicius também se vale das aliterações
(repetições de sons consonantais), como em unidas fez-se ou em espalmadas fez-se, e também
no jogo fez-se / desfez. Esse e outros tipos de recursos sonoros e rítmicos serão fundamentais
para a consolidação da poesia lírica como o gênero mais prestigiado da literatura ocidental a
partir da Idade Média. Mas isso já será o assunto para tratarmos mais tarde.

A poética clássica

Por clássico entendemos o quê? Clássico é o jogo de futebol entre duas grandes equipes,
especialmente quando se tratam de rivais, no vocabulário do futebol; também é denominada
clássica a música erudita de séculos passados, como a de Beethoven e de Mozart; por clássicos
também são chamados grandes pratos de uma cultura culinária, como o frango com quiabo,
para a mineira, ou o beouf bourguignon, para a francesa; e clássicas são as peças de Shakespeare
ou a Divina comédia, de Dante.

A palavra vem do latim: classicus, que por sua vez deriva de classis, a significar classe ou divisão.
Classicus seria, pois, a divisão mais alta da sociedade romana, por isso, superior. Após alguns
séculos de transformação, o adjetivo, para nós, mantém a mesma ideia viva: algo superior,
especial, único. Uma animada partida de futebol entre uma equipe grande e outra do interior;
as inesquecíveis músicas dos Beatles ou o artista novo mais interessante que ouvimos por acaso
e já gostamos; e mesmo uma deliciosa picanha bovina servida em alguma churrascaria mineira
ou uma pizza perfeita devorada em algum bistrô francês, por melhores que sejam, não são
chamados clássicos do futebol, da música ou da culinária local.

A poesia de João Cabral de Melo Neto, por mais extraordinária que seja (e é), da mesma forma não
deve receber a adjetivação de clássica, ao menos em seu sentido original, que buscamos aqui. Por
quê? Faltaria qualidade à poesia cabralina? Seria ela “menos superior” (como se superioridade
pudesse ser diminuída)? Claro que não. O que acontece é que a palavra determina uma linhagem,
uma tradição elevada que deve ser preservada em sua forma e em seu efeito. Enfim, clássico
é o que se impregna no tempo de tal forma que não apenas sobrevive à passagem dele, mas
que cria lastro em produções futuras, age no tempo na forma de modelo.

21
CAPÍTULO 2 • A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA DEFINIÇÃO DO POÉTICO

Assim é, obviamente, o pensamento clássico. Entende-se por ele a manutenção de uma visão de
mundo antiga (de inspiração justamente da Antiguidade Clássica), e no nosso caso específico
importa a visão que estabelece sobre a arte literária, mais particularmente ainda à escrita da
poesia lírica. Desse modo, o que se denomina gosto clássico é oriundo de preceitos vindos da
Grécia e Roma antigas – sobretudo aos trabalhos dos já mencionados, Aristóteles, em sua Poética
do século IV a.C., como também, Horácio, com sua Arte poética, já do primeiro século da Era
Cristã. Classicismo, ainda, será denominado todo o pensamento ocidental posterior que recupera
valores e espíritos originários do período clássico, como ocorreu no Renascimento, durante os
séculos XV, XVI e XVII, e também em alguns momentos da cultura ocidental dos séculos seguintes,
seja atendendo pelo nome de Arcadismo, seja Parnasianismo, este já na virada para o século XX.

E como o pensamento clássico influirá na construção e consolidação do lirismo na poesia ocidental?


É por conta dessa concepção clássica, pois, que o gênero lírico (muito mais do que o narrativo
e o dramático) desenvolver-se-á dentro de um esquema rígido de regras e normas formais, que
poeta nenhum poderia abrir mão. Em outras palavras, a concepção clássica determina que o
fazer poético sempre siga um modelo prévio, aquilo que conhecemos por cânone ou tradição.

Até o surgimento da Era Moderna, e sua parcela artística e cultural, o romantismo, não existia
o conceito literário de originalidade. Curioso, não? Se para nós, hoje, a originalidade de um
artista é aquilo que mais valorizamos em sua obra, deve-se tal ideia às transformações surgidas
na cultura ocidental a partir dos avanços da modernidade e da valorização de conceitos como
indivíduo, direitos individuais e, por consequência, direitos autorais. Nada disso existia antes do
século XIX e das transformações exercidas pelas revoluções burguesas no ocidente.

A tragédia shakespeariana mais conhecida, Romeu e Julieta, hoje renderia problemas jurídicos
ao bardo inglês. A peça é adaptação de uma história da Antiguidade que, Shakespeare, melhor
do que os outros recriadores dessa história original, reescreveu no final do século XVI para se
tornar um dos mais conhecidos clássicos literários e a mais famosa história de amor proibido.

Sendo assim, para as artes literárias pré-modernas, não interessa a um escritor a inventividade
extrema, mas o conhecimento profundo dos modelos literários consagrados, para que, assim,
ele possa reescrevê-los a seu modo. O poeta é, antes de tudo, um leitor especial, pois não apenas
conhece os mais variados textos e autores clássicos, mas se inspira neles para poder, também
ele, ser poeta. Para isso, devemos, então, conhecer as variadas formas que foram consagradas à
arte lírica e se tornaram regras intransponíveis para os poetas durante muitos e muitos séculos.

Princípios básicos do lirismo de concepção clássica

Mas antes de falarmos de tipos de poemas, de sons, de versos, de ritmos, precisamos, primeiramente,
pensar melhor uma questão: o que seria a poesia lírica segundo os preceitos clássicos? A poesia,

22
A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA DEFINIÇÃO DO POÉTICO • CAPÍTULO 2

como qualquer atividade clássica, deveria cumprir com algum objetivo exterior a ela. Se à poesia
moderna podemos conferir um sentido múltiplo e de finalidades variadas, tal heterodoxia não
cabe à sua concepção clássica.

O poeta romano Horácio afirmará serem dois os deveres da arte poética: agradar e educar. Ou seja,
deve ela ser prazerosa, capaz de encantar seu público, mas deve, também, cumprir com desígnios
pedagógicos: transmitir conhecimentos e reflexões que engrandeçam o espírito daqueles que a
recebem. Para a poética horaciana (que já significava uma continuidade da poética aristotélica) é
imperioso que haja um rigoroso limite entre os diferentes gêneros literários: “que em cada coisa
guarde o lugar que lhe convém e que lhe coube em partilha”. (HORÁCIO, 1992, p. 29)

Para ele, assim, ao lírico: “não basta que os poemas sejam belos, é preciso que sejam doces e
transportem o espírito do ouvinte para onde quiserem.” (HORÁCIO, 1992, p. 29, grifos nossos)
Analisemos melhor essa dupla assertiva acerca da doçura do discurso lírico e sua capacidade
de transportar leitores e ouvintes a outro lugar. Ambas as condições, ser doce e transportar o
espírito, levam a linguagem lírica ao encontro do gênero artístico, não literário, que faz parte de
sua natureza: a música.

Por doce, podemos entender que os poemas tenham um aspecto harmônico, delicado, agradável:
como as notas emitidas pelos poetas líricos da tradição oral, seja pela lira, seja pela tonalidade
da pronúncia de sílabas e de palavras que formavam seu poema. E quanto à capacidade de
transportar o espírito a outro lugar, embora seja uma característica ampla e comum a vários
outros gêneros de arte, associa-se imediatamente à música, se refletirmos um instante a respeito
da ebulição de sentimentos, lembranças e emoções que uma música pode provocar no espírito
de quem a ouve. O maestro argentino Daniel Barenboim afirma o seguinte sobre essa condição
da música, tomando Beethoven como exemplo:

Há a afirmação da tonalidade – dá vontade de chamá-la de afirmação do eu,


de conforto do território conhecido – que permite ir a um lugar totalmente
desconhecido e ter a coragem de se perder e depois reencontrar, de modo
inesperado, essa forma dominante, que nos leva de volta à base. Não é uma
espécie de paralelo do processo pelo qual todo ser humano tem de passar na sua
vida interior para primeiro chegar à afirmação do que é e depois ter a coragem
de soltar essa identidade para encontrar o caminho de volta? Acho que música
é isso. Eu não diria que é sempre uma crítica da sociedade ou do ser humano,
mas é um paralelo do processo interior dos pensamentos e sentimentos mais
íntimos de um ser humano. Acho que Beethoven é isso. (BARENBOIM; SAID,
2003, pp. 60-61)

E justamente a linguagem lírica, por ser carregada de musicalidade, deve ser formada pela
combinação de ritmo e som, que não são a mesma coisa. Por ritmo entende-se o que cabe
à versificação, à divisão em versos do texto lírico, e à metrificação (o tamanho dos versos e a

23
CAPÍTULO 2 • A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA DEFINIÇÃO DO POÉTICO

posição das sílabas tônicas) que podem ter variadas formas a gerar variados ritmos. E por som,
entende-se as combinações e efeitos fônicos variados de que se vale o poeta na construção do
discurso de sua poesia. Ambos, ritmo e som, compõem o que Barenboim chama de afirmação
da tonalidade se fizermos uma correlação entre música e poesia lírica.

Falaremos, portanto, desses tipos de versos e sons e, posteriormente, vamos conhecer os tipos
diferentes de poesia lírica que a tradição reservou como os mais utilizados e replicados ao longo
da história do lirismo.

Para refletir

Com o passar do tempo, o adjetivo lírico(a) teve sua utilização ampliada. Não apenas a respeito de compositores
musicais, o que seria natural, mas, também, a respeito de diretores de cinema e artistas plásticos, por exemplo.
Nesse caso, dizer que um cineasta ou um escultor tem um estilo lírico significa dizer que em suas obras se identifica
o recurso da doçura e da transportação do espírito de quem a recebe, ainda que tenha que se realizar mediante a
linguagem que é própria das artes cinematográficas e plásticas.

Aspectos formais do discurso lírico

Como profissional de Letras, você precisa ter conhecimentos a respeito da escrita de poesia,
especificamente sobre versos (metrificação), sons (sonoridade) e ritmo (prosódia). Alguns dos
termos são conhecidos no ensino de literatura no Ensino Médio, outros já nem tanto, mas são
importantes para que se compreenda os pormenores a respeito da construção dos mais diversos
poemas na tradição lírica ocidental para sua devida apreciação e análise. Comecemos pelos versos:

Versos: sempre que se fala em poesia se pensa em versos. Contudo, nem sempre se sabe a respeito
do modo de constituição deles nas estrofes, tampouco o nome que se dá a tais estrofes. Vamos
a eles:

Número de versos Nome da estrofe


Dois Dístico
Três Terceto
Quatro Quadra ou Quarteto
Cinco Quinteto ou Quintilha
Seis Sexteto ou Sextilha
Sete Sétima ou Septilha
Oito Oitava
Nove Novena ou Nona
Dez Décima

Ao ler e analisar poemas, você vai notar que a estrofe – ou um grupo delas – estabelece uma
unidade, no interior do texto. O verso seria a primeira unidade: a estrofe, a segunda. Ela só pode

24
A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA DEFINIÇÃO DO POÉTICO • CAPÍTULO 2

ser interpretada em função do poema todo, e vice-versa. Mas é a partir dela que você pode
começar e analisar um texto poético.

Sons: além dos versos, as rimas também são frequentemente relacionadas à poesia para o senso
comum. E com razão, pois há diversos modos de dispô-las no poema e, evidentemente, de
classificá-las. Sabendo que a rima é o parentesco sonoro entre palavras do poema, vejamos os
tipos de classificação existentes:

Classificação quanto a Tipos de rima


interna (palavras que não necessariamente ocupam
Posição no verso a última posição no verso) ou externa (mais comuns,
somente entre as palavras finais dos versos)
consoante: rimam consoantes e vogais (vida e descida)
Semelhança de letras
toante: rima apenas a vogal tônica (pão e chão)
cruzadas – ABABAB
emparelhadas – AA BB CC
Distribuição ao longo do poema
interpoladas – A … A
misturadas
pobres (mesma categoria gramatical)
Categoria gramatical
ricas (categoria gramatical diferente)

No entanto, a rima não é obrigatória na poética clássica. O Uraguai, poema épico de Basílio
da Gama do século XVIII, é composto sem o recurso da rima e, por isso, seus versos recebem o
nome de brancos.

Além da rima, os poemas exploram outros recursos sonoros da língua, tais como:

» Aliteração: repetição de sons consonantais.

» Assonância: repetição de sons vocálicos.

» Anáfora: repetição de palavras na mesma posição dos versos, seja início, seja fim.

» Onomatopeia: reprodução de sons de objetos e animais (comum somente na poesia


moderna).

Ritmos: formados pela sucessão, no verso, de unidades rítmicas resultantes da alternância entre
sílabas acentuadas (fortes) e não acentuadas (fracas), o ritmo é fundamental à percepção da
linguagem poética. Isso se dá por conta da natureza oral e musical da poesia, como já falamos.
Ele também não nasce por acaso, mas a partir das escolhas do poeta na formação de seus versos
no poema.

Na tradição clássica, distinguem-se os versos que respeitam certa sequência de sílabas longas
(tônicas, fortes) e breves (átonas, fracas) pelo nome de pés da seguinte forma:

» pé jâmbico: uma longa e uma breve / - U /

» pé trocaico ou troqueu: uma breve e uma longa / U - /

25
CAPÍTULO 2 • A IMPORTÂNCIA DA LÍRICA NA DEFINIÇÃO DO POÉTICO

» pé espondeu: duas longas / - - /

» pé dátilo: uma longa e duas breves / - U U /

» pé anapesto ou anapéstico: duas breves e uma longa / U U - /

Observemos que esse aspecto poético diz respeito à prosódia, que se trata da pronúncia adequada
dos sons formadores das palavras, sobretudo das sílabas tônicas, fundamentais à musicalidade.
É importante ressaltarmos que, sendo a poesia a refundação do mundo pela linguagem, como
já tratamos desde o capítulo passado, a linguagem e o mundo do poeta produzem diferenças
significativas em sua prosódia. Expliquemos: a prosódia lusitana não é a mesma que a brasileira,
dadas as diferenças sintáticas e sonoras das duas formas de expressão da língua portuguesa,
levando um poeta português como Cesário Verde a adotar sons diferentes do baiano Castro Alves,
por exemplo. Assim como, dentro do Brasil, compositores de partes diferentes do País trabalham
a sonoridade das palavras de acordo com seu sotaque.

26
CAPÍTULO
A POESIA LÍRICA CLÁSSICA –
TIPOS DE POEMAS 3
Introdução

Neste capítulo vamos dar continuidade ao estudo das regras e princípios formais da construção
poética na tradição, assim como conheceremos os variados tipos de poemas – alguns deles
modernos – classificados pelo pensamento clássico.

Objetivos

» Identificar o esquema rítmico de um poema.

» Conhecer os tipos de poemas que formam o ritual antigo da expressão lírica.

» Conhecer a poesia clássica com vistas à compreensão da poética moderna e contemporânea.

O esquema rítmico clássico

A partir do modernismo uma verdadeira revolução rítmica acontece na poesia: são os versos
livres. Trata-se de construir versos sem limites específicos de número de sílabas, nem de regras
de colocação da sílaba forte – duas obrigações da poética clássica. Como deixaremos para os
próximos capítulos a análise das poéticas modernistas, fixemos agora no estudo dos tipos de
versos clássicos, chamados versos regulares. Recebem esse nome por exigir da metrificação
um limite claro, uma ordem, um tamanho regular. Além disso, a composição clássica define de
antemão as sílabas mais indicadas para receber a acentuação sonora de acordo com o metro de
cada verso. Ou seja, se um poeta definia que seus versos teriam cinco sílabas métricas, a regra
exigia que ele colocasse as sílabas tônicas na segunda e na quinta sílabas; ou na terceira e na
quinta, ou, ainda, na primeira, terceira e quinta.

27
CAPÍTULO 3 • A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS

Denominamos esta regra de esquema rítmico e apresentamos a seguir um quadro resumido:

Número de sílabas poéticas Sílabas acentuadas


Monossílabo 1
Dissílabo 2
3
Trissílabo ou
1e3
1e4
Tetrassílabo ou
2e4
2e5
ou
Pentassílabo ou redondilha menor 3e5
ou
1, 3 e 5
3e6
ou
2e6
Hexassílabo ou
2, 4 e 6
ou
1, 4 e 6
Heptassílabo ou redondilha maior Qualquer sílaba e a última
4e8
ou
2, 6 e 8 ou
Octossílabo
3, 5 e 8
ou
2, 5 e 8
4e9
Eneassílabo ou
3, 6 e 9
6 e 10
Decassílabo ou
4, 8 e 10
5 e 11
ou
Endecassílabo 2, 5, 8 e 11
ou
2, 4, 6 e 11
6 e 12
ou
Dodecassílabo ou Alexandrino 4, 8 e 12
ou
4, 6, 8 e 12

Tudo isso se refere aos versos regulares e sua classificação comum. É evidente que alguns poetas,
mesmo de orientação clássica, escapavam em alguns raros momentos à rigidez da escrita poética.

Devemos ter em mente que contar sílabas métricas não é o mesmo que contar sílabas gramaticais.
Deve-se, pois, escandir o verso, que significa separar suas sílabas poéticas. Para tal, é necessário

28
A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS • CAPÍTULO 3

se lembrar de duas premissas: a primeira é a de que se deve interromper a contagem na última


sílaba métrica, caso haja outra(s) depois dela, deve(m) ser ignorada(s); e a outra é a de que temos
que respeitar a prosódia, isto é, a sonoridade das sílabas para agrupar os sons corretamente
– especialmente quando se trata de hiatos, caso em que o encontro de duas vogais, mesmo que
em palavras diferentes, forma uma só sílaba métrica. Observe a escansão do verso a seguir, de
seis sílabas, de Cecília Meireles:

Há noite? Há vida? Há vozes?

Há – noi – tehá – vi – dahá – vo - (zes)

1 2 3 4 5 6 7

Cabe ainda uma observação a respeito da constituição dos


Para refletir
versos. Em alguns poemas, um verso engendra um período
que só será terminado no(s) verso(s) seguinte(s), ou seja, Observe que por se tratar de uma
ele ainda está incompleto quanto ao sentido e quanto poetisa moderna, Cecília Meireles
não respeitou a regra de colocação
à sintaxe, mas será concluído mais à frente. Trata-se do
de sílabas acentuadas para o verso
encadeamento ou enjambement, que em francês significa hexassílabo.
cavalgamento. Tal recurso, contudo, não altera em nada o
método de escandir versos que acabamos de ver.

Tipos de poemas líricos

Por que a poesia lírica clássica se valia de formas prontas para os poemas? E qual o efeito de
tal utilização? Além da valorização do passado em forma de tradição poética, procedimento
comum às diversas culturas e línguas ocidentais, seria esse conjunto de formas e regras uma
realização própria da linguagem poética, e não do poeta. A linguagem lírica não é a linguagem
que utilizamos a todo instante; desse modo, o fato de carregar ela mesma um formato prévio
torna-a diferente e, por isso mesmo, especial. O crítico e professor francês Henry Suhamy afirma
o que se segue:

a formulação ritualiza e teatraliza a eloquência poética. Portanto, torna-a possível,


contrariamente à vida cotidiana, que quase não permite as grandes efusões. Fora
de uma ambiência adequada, toda veemência cai no ridículo. Tal como o advogado,
autorizado pelo cenário judiciário a elevar o tom, parece colocar sua ênfase a
serviço da Justiça e da arte oratória para melhor defender sua causa, a mensagem
do poeta, que se torna a do leitor por comunhão, é tanto melhor recebida quanto
os artifícios vocais e estilísticos do texto soam como uma homenagem à poesia
e à beleza em si. Graças a esse formalismo ostentatório, é a Poesia que fala, não
exclusivamente o poeta. (SUHAMY, 1988, p. 82)

29
CAPÍTULO 3 • A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS

Vejamos, então, quais seriam os tipos de poemas que formam o ritual antigo da expressão lírica:

» Soneto: originário da Idade Média, provavelmente da Itália, o sonetto, do provençal


sonet, de som, melodia, canção, é o mais consagrado poema de forma fixa, até mesmo já
na modernidade. Trata-se de poema de quatorze versos, cuja disposição alterna-se em
duas formas principais. O soneto petrarqueano é o mais conhecido por nós, brasileiros.
Recebe esse nome por conta de ser a forma consagrada pelo poeta italiano Petrarca,
do século XIV, cuja estrofação se dá com dois quartetos e dois tercetos, seguindo o
esquema de rimas: ABAB ABAB CCD CCD ou ABAB ABAB CDC DCD. Já o soneto inglês
ou shakespeariano, forma escolhida inclusive por Fernando Pessoa (muito por conta de
este ter principiado os estudos em escola anglófona, quando criança e adolescente na
África do Sul), conta com três quartetos e um dístico, seguindo o esquema de rimas ABAB
CDCD EFEF GG. O metro do soneto, originalmente, era o decassílabo, tendo passado
posteriormente ao verso alexandrino. Obviamente, com o decurso da modernidade,
várias formas diferentes de se reescrever o soneto surgiram. Na literatura brasileira,
Gregório de Matos, Cláudio Manoel da Costa, Álvares de Azevedo, Olavo Bilac, Cruz e
Souza, Vinicius de Moraes e tantos outros poetas cultivaram e recriaram essa forma fixa
de acordo com suas linguagens e temas poéticos. Luís de Camões, o patriarca da poesia
de língua portuguesa, foi grande sonetista e é a base mestra dos primeiros sonetistas
brasileiros, como os três primeiros que acabamos de citar. O exemplo a seguir é um de
seus sonetos mais famosos, que narra o amor de Jacob por Raquel retirado do Gênesis:

Sete anos de pastor Jacob servia

Labão, pai de Raquel, serrana bela;

Mas não servia ao pai, servia a ela,

E a ela só por prémio pretendia.

Os dias, na esperança de um só dia,

Passava, contentando-se com vê-la;

Porém o pai, usando de cautela,

Em lugar de Raquel lhe dava Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos

Lhe fora assi negada a sua pastora,

Como se a não tivera merecida;

Começa de servir outros sete anos,

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A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS • CAPÍTULO 3

Dizendo: – Mais servira, se não fora

Para tão longo amor tão curta a vida!


(CAMÕES, 1997, p. 93)

» Balada: vem do latim, ballare (dançar), transformando-se no provençal balada e no


francês ballade. No vocabulário musical moderno, balada é aquele tipo de canção
lírica, de ritmo mais lento e, geralmente, centrado na descrição sentimental de seu
compositor. Assim, para que fique mais claro, Yesterday, dos Beatles, é uma balada, mas
Twist and shout, interpretada pela mesma banda, não. No universo literário medieval,
quando a balada tem origem, esse espírito já estava presente. É um poema de forma
fixa: geralmente, de quatro estrofes, três oitavas e uma quadra, ou, ainda, três décimas
e uma quintilha. No modernismo, contudo, os poetas flexibilizaram a rigidez formal do
poema, como no caso da “Balada do rei das sereias”, de Manuel Bandeira:

O rei atirou

Seu anel ao mar

E disse às sereias:

- Ide-o lá buscar,

Que se o não trouxerdes

Virareis espuma

Das ondas do mar!

Foram as sereias,

Não tardou, voltaram

Com o perdido anel

Maldito o capricho

De rei tão cruel!

O rei atirou

Grãos de arroz ao mar

E disse às sereias:

- Ide-os lá buscar,

Que se os não trouxerdes

31
CAPÍTULO 3 • A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS

Virareis espuma

Das ondas do mar!

Foram as sereias

Não tardou, voltaram,

Não faltava um grão.

Maldito capricho

De mau coração!

O rei atirou

Sua filha ao mar

E disse às sereias:

- Ide-a lá buscar,

Que se a não trouxerdes

Virareis espuma

Das ondas do mar!

Foram as sereias...

Quem as viu voltar?...

Não voltaram nunca!

Viraram espuma

Das ondas do mar.


(BANDEIRA, 2001, p. 75)

» Canção: não se trata de gênero de forma fixa, como os dois anteriores, mas de texto
geralmente destinado ao canto – ainda que a poesia moderna tenha abolido tal exigência.
As cantigas de amor e de amigo, citadas anteriormente, são exemplos desse gênero, assim
como o poema de Cecília Meireles que nos serviu como análise. Na literatura brasileira,
contudo, não há canção mais famosa que esta de Gonçalves Dias, que reproduzimos
agora:

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá;

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A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS • CAPÍTULO 3

As aves, que aqui gorjeiam,

Não gorjeiam como lá.

Nosso céu tem mais estrelas,

Nossas várzeas têm mais flores,

Nossos bosques têm mais vida,

Nossa vida mais amores.

Em cismar, sozinho, à noite,

Mais prazer eu encontro lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Minha terra tem primores,

Que tais não encontro eu cá;

Em cismar sozinho, à noite

Mais prazer eu encontro lá;

Minha terra tem palmeiras,

Onde canta o Sabiá.

Não permita Deus que eu morra,

Sem que eu volte para lá;

Sem que disfrute os primores

Que não encontro por cá;

Sem qu’inda aviste as palmeiras,

Onde canta o Sabiá.


(DIAS, 1997, p. 13)

E por que Canção do exílio é uma canção? Observe a musicalidade do poema: as rimas com o
fonema /a/ (lá, cá, sabiá) são alternadas no poema produzindo uma marca sonora clara, além
da estrutura de repetições, sobretudo da primeira estrofe, funcionando como o refrão do poema.

» Ode: forma oriunda da Antiguidade Clássica, originalmente era destinada ao canto e


acompanhada por flauta ou cítara; o nome vem do grego, oidê, o que significa canto.

33
CAPÍTULO 3 • A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS

Sua temática era já ampla, podendo contar grandes feitos heroicos, a personalidade
vitoriosa de um homem público, valores morais fundamentais etc. O que não se altera
é o aspecto positivo e celebrativo da ode, uma espécie de homenagem ou exaltação a
algo ou alguém, geralmente de forma solene e grave, ainda que não possua forma rígida,
seja de estrofação, metro ou rima. O poeta romano Horácio compôs várias odes, por
exemplo, sempre em louvor ao seu tema. Na modernidade, por sua vez, os poetas muitas
vezes compunham odes irônicas, que, no lugar da exaltação, colocavam a crítica no
discurso da poesia. Ode ao burguês, de Mário de Andrade, é um ótimo exemplo desse
recurso, cujo título já forma sonoramente a verdadeira intenção do poema, se lermos
ódio ao burguês, devido à similaridade sonora entre “ode ao” e “ódio ao” produzida
pelos encontros vocálicos. Outros bons exemplos são as odes de Álvaro de Campos, o
mais inflamado e incendiário heterônimo de Fernando Pessoa, como Ode marcial e
Ode triunfal, esta que reproduzimos alguns versos a seguir:

À dolorosa luz das grandes lâmpadas eléctricas da fábrica

Tenho febre e escrevo.

Escrevo rangendo os dentes, fera para a beleza disto,

Para a beleza disto totalmente desconhecida dos antigos.

Ó rodas, ó engrenagens, r-r-r-r-r-r-r eterno!

Forte espasmo retido dos maquinismos em fúria!

Em fúria fora e dentro de mim,

Por todos os meus nervos dissecados fora,

Por todas as papilas fora de tudo com que eu sinto!

Tenho os lábios secos, ó grandes ruídos modernos,

De vos ouvir demasiadamente de perto,

E arde-me a cabeça de vos querer cantar com um excesso

De expressão de todas as minhas sensações,

Com um excesso contemporâneo de vós, ó máquinas!

[...]

Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!

Ser completo como uma máquina!

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A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS • CAPÍTULO 3

Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!

Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,

Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento

A todos os perfumes de óleos e calores e carvões. (PESSOA, 2000, p.154)

Nessa famosa ode, o poeta não apenas encarna o discurso futurista do progresso, mas antecipa
certa concepção negativa do avanço tecnológico, especialmente naquilo que ele carrega de
desumano, venenoso, sem vida.

» Elegia: composição também originária do período clássico, recebe esse nome por
tradicionalmente acompanhar temas tristes e melancólicos, o que o termo grego élégos
traduz: canto de luto. Na Antiguidade, contudo, o gênero se limita mais a uma questão
formal do que a essa temática. Ainda que o poema tratasse de assunto não essencialmente
melancólico, seria ele uma elegia se mantivesse a sua métrica original, o dístico elegíaco,
composto por um hexâmetro e um pentâmetro. Na modernidade, porém, a situação
se inverte, o traço formal torna-se menos importante do que a temática fúnebre. As
elegias na poesia moderna, pois, são poemas em torno de uma situação de tristeza, de
morte, de luto. Como exemplo, escolhemos um famoso poema de Carlos Drummond
de Andrade: Elegia 1938. O título faz menção ao momento em que o poeta escreve, às
vésperas da Segunda Guerra Mundial, em que o mundo se encontra em crise profunda,
como descreve o eu poético de Drummond, por conta, principalmente, das injustiças
da sociedade capitalista, simbolizada pela Ilha de Manhattan.

Trabalhas sem alegria para um mundo caduco,

onde as formas e as ações não encerram nenhum exemplo.

Praticas laboriosamente os gestos universais,

sentes calor e frio, falta de dinheiro, fome e desejo sexual.

Heróis enchem os parques da cidade em que te arrastas,

e preconizam a virtude, a renúncia, o sangue-frio, a concepção.

À noite, se neblina, abrem guarda-chuvas de bronze

ou se recolhem aos volumes de sinistras bibliotecas.

Amas a noite pelo poder de aniquilamento que encerra

e sabes que, dormindo, os problemas te dispensam de morrer.

Mas o terrível despertar prova a existência da Grande Máquina

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CAPÍTULO 3 • A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS

e te repõe, pequenino, em face de indecifráveis palmeiras.

Caminhas entre mortos e com eles conversas

sobre coisas do tempo futuro e negócios do espírito.

A literatura estragou tuas melhores horas de amor.

Ao telefone perdeste muito, muitíssimo tempo de semear.

Coração orgulhoso, tens pressa de confessar tua derrota

e adiar para outro século a felicidade coletiva.

Aceitas a chuva, a guerra, o desemprego e a injusta distribuição

porque não podes, sozinho, dinamitar a ilha de Manhattan. (ANDRADE, 1997, p.45)

» Haicai: muito distante do universo greco-romano, esse gênero lírico surge no


Japão. Vem de haiku, que significa cômico, sendo haikai poema cômico. Devemos
entender que o cômico, como utilizamos aqui, não significa engraçado, como se
há de supor, mas antes leve, capaz de entreter. Essa poesia está intimamente ligada
à filosofia zen-budista, tendo sido o mestre japonês Matsuo Bashô, no século XVII,
seu grande nome e cultivador. O poeta curitibano Paulo Leminski, inclusive, é autor
de uma interessante biografia do poeta nipônico, assim como dos princípios do
zen-budismo e do próprio haicai. Leminski é, ainda, um dos poetas modernos que
produziram haicais em português, assim como antes dele fizeram Guilherme de
Almeida e Manuel Bandeira.

O haicai deve, originalmente, ser um terceto iniciado e finalizado por um verso de cinco sílabas
(na tradição portuguesa conhecido como redondilha menor), intercalado por um único verso
de sete sílabas (por sua vez, a redondilha maior). Na poesia japonesa não há rimas. Sua forma
curta serve ao propósito de condensar uma sensação, um sentimento, ou uma reflexão filosófica
– assemelhando-se bastante ao dito popular em nossa cultura. Guilherme de Almeida, nos dois
primeiros poemas a seguir, reproduz fielmente a forma original do haicai; já Paulo Leminski,
cujos poemas seguem posteriormente, não se prende à forma fixa da poesia japonesa:

Uma folha morta.

Um galho no céu grisalho.

Fecho a minha porta.

INFÂNCIA

Um gosto de amora

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A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS • CAPÍTULO 3

comida com sol. A vida

chamava-se “Agora”. (ALMEIDA, 1995, p. 25, 84)

o mar o azul o sábado

liguei pro céu

mas dava sempre ocupado

casa com cachorro brabo

meu anjo da guarda

abana o rabo

essa vida é uma viagem

pena eu estar

só de passagem

saber é pouco

como é que a água do mar

entra dentro do coco?

-- que tudo se foda,

disse ela,

e se fodeu toda

MALLARMÉ BASHÔ

um salto de sapo

jamais abolirá

o velho poço
(LEMINSKI, 2001, pp. 60-88)

Cabe um comentário a respeito do último haicai: Leminski realiza um trocadilho misturando o


nome do poeta francês Stéphane Mallarmé com o do mestre japonês Matsuo Bashô. Isso porque
Mallarmé é famoso por um poema em que afirma que “um lance de dados jamais abolirá o
acaso”. Leminski, então, por meio da sonoridade da língua portuguesa, afirma que Mallarmé
“baixou”, como se diz recorrentemente quanto à incorporação de entidades nas religiões de
matriz africana e que, na linguagem cotidiana brasileira, transformou-se em sinal de mudança
ou de similaridade de comportamento que alguém possa demonstrar. Sendo assim, Mallarmé

37
CAPÍTULO 3 • A POESIA LÍRICA CLÁSSICA – TIPOS DE POEMAS

“baixou” no poeta japonês, compondo um terceto novo, que recupera a tematização típica do
haicai original: o ambiente rupestre.

A importância de conhecermos os modelos clássicos dá-se justamente quando nos depararmos


com a poesia moderna, que será seu contraponto. E é desse ponto que iniciaremos nosso próximo
capítulo.

38
CAPÍTULO
O PENSAMENTO CRÍTICO DA
MODERNIDADE 4
Apresentação

Neste capítulo confrontaremos a poesia clássica e tradicional, que discutimos nos capítulos
passados, com o advento da poesia moderna – cujas bases e princípios perduram, de certa
maneira, até o presente.

O mundo moderno, surgido na Europa entre os séculos XVIII e XIX, representou mais do que um
avanço no domínio da técnica, mas uma nova concepção de mundo e de sujeito que implica várias
mudanças na arte em geral e, mais especificamente, na poesia. A partir dessa nova concepção,
deveremos pensar os modos de expressão e representação que determinam agora a formação
de um novo discurso poético: o do homem moderno.

Objetivos
» Compreender o surgimento do pensamento moderno em oposição à ordem clássica,
baseando-se nas concepções de Michel Foucault, e a mudança do homem da atualidade
(clássico) para o homem da potencialidade (moderno).

» Entender o desenvolvimento de conceitos como autor, História, progresso e originalidade


na formação do discurso da poesia moderna.

» Observar os modos distintos de apreciação de temas caros à poesia desde a Antiguidade


de acordo com o discurso moderno em poesia.

Introdução

O discurso lírico, conforme vimos até agora, é constituído por duas premissas básicas, que se
desdobram evidentemente em outras mais, a da natureza especial da linguagem poética e da
adequação ao conjunto de regras formais dessa mesma linguagem, premissas que observamos
nos nossos capítulos anteriores. Podemos definir essas duas características, possuir uma natureza
específica e uma adequação a regras bem definidas, como a função autotélica da linguagem
poética.

39
CAPÍTULO 4 • O PENSAMENTO CRÍTICO DA MODERNIDADE

Autotélico é tudo aquilo que discorre sobre si mesmo, dentro de um círculo fechado, em
que a justificativa de sua existência e sua identidade já está exposta em sua forma. As regras
fechadas do lirismo, tanto formais, reunidas em diversas metrificações, estrofações e sons,
quanto temáticas, balizadas no sentido nobre e elevado exigido pela tradição clássica, sofreriam
abalos profundos a partir do fim do século XVIII, na virada para o século XIX, esta, a centúria
da modernidade. Para compreendermos os novos princípios da poética moderna, portanto,
devemos primeiramente entender melhor os desdobramentos históricos ocasionados a partir
da consolidação da modernidade e das revoluções burguesas que transformaram o mundo há
cerca de dois séculos e meio.

O pensador francês Michel Foucault, em As palavras e as coisas (1966), desenvolve um resumo


crítico das mudanças radicais da episteme ocidental nesse período. Foucault define o homem
clássico, cuja concepção poética elucidamos nos capítulos anteriores, como o homem da
atualidade, isto é, aquele sujeito capaz de possuir a consciência plena de seu saber e do mundo
que ele mesmo constrói. O amplo valor das cosmogonias religiosas (as mitologias pagãs, na Grécia
e em Roma, o Cristianismo, sobretudo na Idade Média, mas além dela) para esse homem de
orientação clássica, que não se restringe ao homem clássico, mas a toda a civilização teocêntrica
que perdurou até o Iluminismo e a formação do Estado Moderno, é resultado dessa atualidade
do sujeito clássico.

O pensamento moderno de Descartes, de valorização racionalista, o empirismo de pensadores


franceses como Berkeley e Hume, e, principalmente, a revolução da filosofia de Immanuel Kant,
acontecidos nos séculos XVI e XVII, deram início às transformações profundas que culminariam
mais tarde no Iluminismo, nos Direitos Individuais, no Estado Moderno, na separação do Estado
e da Igreja, e no aprofundamento do capitalismo – princípios básicos que formariam a maioria
das democracias imperfeitas dos séculos XIX e XX. A essas transformações damos o nome de
revoluções burguesas. Ainda ausente de um significado pejorativo, burguês aqui se entende pelo
homem que não se encaixa mais na aristocracia, na nobreza e na tradição – na continuidade do
homem clássico –, mas que detém agora as rédeas da sociedade e se pretende um homem novo.
A modernidade é, pois, uma descontinuidade.

A formação das leis laicas, a expansão territorial iniciada desde o fim do século XV, o desenvolvimento
de novas ciências, as descobertas da biologia, da química, da física, enfim, a revolução cultural
do homem moderno revelaria que não é ele que justifica a existência do mundo (autotelia), mas
é o mundo que explica a sua existência. Ele não pode ser mais uma atualidade, agora ele é uma
potencialidade. Foucault define assim essa diferença.

No pensamento de ordem clássica, o homem ocupa o lugar imutável da verdade. Somos nós
que justificamos a existência do universo, nada nos supera, nada preexiste a nós. O pensamento
moderno, por sua vez, começa a destruir essa noção. Não é o sol que gira em torno da Terra,
mas o contrário. Essa verdade, hoje tão simples, ocasionou uma transformação radical da

40
O PENSAMENTO CRÍTICO DA MODERNIDADE • CAPÍTULO 4

percepção humana sobre si mesmo e o mundo. Mais do que a causa do universo, o homem é
sua consequência. A teoria da evolução de Darwin, a psicanálise e os estudos das neuroses de
Freud, por exemplo, reforçam essa nova condição humana. Nosso pensamento não pode mais
ser autotélico, pois fora do homem e de suas certezas tradicionais encontram-se o mundo e as
forças que, mais do que gostaríamos de admitir, influenciam em nossas vidas.

A passagem da atualidade para a potencialidade, como afirma Foucault, dá-se quando o


pensamento percebe que o homem não é o elemento central que dá sentido ao universo, já
que esse é muito maior do que ele, mas quando esse homem, por meio de sua razão e das
ciências, investiga a vastidão do universo para descobrir o seu sentido. Essa é sua potência.
Em outras palavras, o homem abandona a certeza da tradição clássica para embarcar na certeza
da razão científica. Assim, o discurso da História, por exemplo, ganha muito mais prestígio do
que os discursos mitológicos. É desse modo que Michel Foucault entende o surgimento do que
chamamos modernidade.

O pensamento crítico da modernidade

A noção de atualidade trazida pelo pensador francês procura resumir a percepção do homem
clássico a respeito de si mesmo. Ao termo também se relaciona o sentido temporal que carrega:
uma atualidade, uma força sempre presente, imune à passagem do tempo.

A essa imunidade aparente, o pensamento moderno, Para refletir


sobretudo no trabalho do filósofo alemão Immanuel Kant,
no século XVIII, apresentou a crítica. A partir do trabalho O vocábulo crítica vem do grego
krimein, que significa separar,
de Kant, denominado no campo da filosofia como uma
escolher, julgar. Devemos aqui
revolução copérnica, tamanha a transformação provocada, afastar o sentido cotidiano de crítica
o pensamento moderno se funda. Não mais como uma como apenas a identificação de um
defeito, mas é o ato de pensar que
explicação do mundo, como acontecia na Ordem Clássica,
problematiza um objeto, procurando
mas uma explicação de como vemos o mundo, ou seja, uma identificar sua natureza, suas funções,
crítica racional ao modo de pensar humano. O pensamento suas características para, assim,

moderno é, assim, uma crítica ao próprio pensamento, racionalmente defini-lo.

uma potencialidade, nas palavras de Foucault, e não mais


uma atualidade.

Desse modo, ao voltar à razão crítica para si mesmo, o homem ocidental mudou completamente
o sentido de tempo em relação à ordem clássica. A ideia de atualidade se identificava totalmente
com a concepção cíclica do tempo presente no pensamento clássico. Para os gregos – e também
para hebreus, cristãos e muçulmanos – o homem não caminha no tempo infinitamente, como
o pensamento moderno acredita. No horizonte dessas culturas, o que se vê é o reencontro com
uma ideia original, um paraíso antes conhecido, mas afastado do homem presente. A Idade do

41
CAPÍTULO 4 • O PENSAMENTO CRÍTICO DA MODERNIDADE

Ouro, na cultura clássica, e o Gênesis, para as três religiões citadas, revelam uma percepção
peculiar do tempo, pois o vê como decadência.

Tratando de assunto semelhante, o poeta mexicano Octávio Paz discorre sobre essa específica
relação com o tempo existente no pensamento clássico.

A relação entre os três tempos – passado, presente e futuro – é diferente em


cada civilização. Para as sociedades primitivas, o arquétipo temporal, o modelo
do presente e do futuro, é o passado. Não o passado recente, mas um passado
imemorial que está além de todos os passados, na origem da origem. Tal como
um manancial, esse passado de passados flui continuamente, desemboca no
presente e, confundido com ele, é a única atualidade que realmente conta. A
vida social não é histórica, mas ritual; não é feita de sucessivas mudanças, mas
consiste na repetição rítmica do passado intemporal. O passado é um arquétipo
e o presente deve se ajustar a esse modelo imutável; além do mais, esse passado
está sempre presente, já que volta no rito e na festa. Assim, tanto pode ser um
modelo continuamente imitado como porque o rito periodicamente o atualiza,
o passado defende a sociedade da mudança. Caráter duplo desse passado: é um
tempo imutável, impermeável a mudanças; não é o que aconteceu uma vez, mas
o que está sempre acontecendo: é um presente. De uma e de outra maneira, o
passado arquetípico foge do acidente e da contingência; embora seja tempo,
também é a negação do tempo: dissolve as contradições entre o que aconteceu
ontem e o que acontece agora, suprime as diferenças e faz triunfar a regularidade
e a identidade. Insensível à mudança, é a norma por excelência: as coisas devem
acontecer tal como aconteceram naquele passado imemorial. (PAZ, 2013, p. 22)

Reconheceu as ideias colocadas em nossos capítulos? A poética clássica é fruto dessa atualidade:
cabe ao poeta repetir, regressar, retomar o fio da tradição, assemelhar-se a esse fio, suprimir as
mudanças do tempo em prol da restituição da poesia ideal. É precisamente esse ideal que cairá
por terra a partir da modernidade.

Desse modo, o pensamento moderno transferirá ao discurso


Para refletir
histórico o espaço da retórica temporal que interessa ao
novo homem, o homem do progresso. As inovações técnicas, É muito interessante percebermos,

sobretudo a Revolução Industrial, e o desenvolvimento ao mesmo tempo, que toda crítica à


modernidade toca profundamente
concomitante de diversas ciências serviram de combustível
neste ponto: na crença ingênua do
também para visão crítica do tempo (agora) histórico. Não futuro perfeito.
estaríamos mais em decadência, mas em evolução. A cada
inovação ou descoberta, o homem se crê mais perto do
ideal, mais distante de seu passado imperfeito.

O homem moderno inventou o futuro.

42
O PENSAMENTO CRÍTICO DA MODERNIDADE • CAPÍTULO 4

Para que não nos percamos, então, nesse emaranhado de conceitos e abstrações, podemos resumir
em duas as principais transformações trazidas pelo pensamento moderno, fundamentado na
razão crítica:

» O fim do absolutismo, iniciado no fim do século XVIII, promoveu o surgimento de um


novo conceito de forte significado social e jurídico: o indivíduo. Recusando a divisão
aristocrática da sociedade, o homem moderno, simbolizado na figura de Robinson
Crusoé, é confiante em sua potência, em sua diferença, em sua individualidade.

» O afastamento do discurso religioso na construção da ordem social e política e o


desenvolvimento tecnológico e científico construiu e fortaleceu o ideal de progresso,
em clara recusa à obediência de valores clássicos, ou seja, ao passado. Não se aceita
mais o reinado absoluto do mito e do passado, mas da História e do futuro.

A poética moderna: fundamentos

E como tudo isso interfere no discurso poético? Como já falamos em nosso primeiro capítulo, o
discurso da poesia é de caráter expressivo. A expressão é, resumidamente, a síntese de um estado
anímico, de um espírito. E se o homem no decurso dos séculos XVIII e XIX promoverá tantas
mudanças, é natural que esse mesmo espírito sofra modificações. Cada vez mais, embora de
forma lenta, o discurso poético vai se desobrigar das regras clássicas, desprender-se da Grécia,
de Roma, da Idade Média, para construir uma expressão de seu tempo, isto é, moderna. Nas
historiografias literárias, geralmente esse momento recebe o nome de Romantismo. Ainda que
não seja nosso interesse aqui descrever minuciosamente as etapas historiográficas da literatura,
é imprescindível que tratemos dos acontecimentos que revolucionaram o discurso poético
europeu, especialmente no oitocentos.

A poética que começara a ser desenvolvida na modernidade


Para refletir
nasce no fim do século XVIII, especialmente na Alemanha
e na Inglaterra – países de fora da cultura latina, em que Não devemos confundir aqui
obviamente perduraram por mais tempo as ideias clássicas os termos modernidade com

e medievais. Essa nova concepção poética acompanha a modernismo. Este se refere às formas
artísticas revolucionárias do século
mudança radical empreendida pelo pensamento moderno,
XX, enquanto aquele trata do período
sendo capaz de criar novos princípios e métodos líricos iniciado pela Revolução Industrial,
que perdurariam por mais de século, até meados do século com o desenvolvimento do capitalismo
e o progresso das ciências.
XX. Essa poética será chamada de romântica, mas outras
correntes estéticas, inclusive o modernismo, seguirão pelas
trilhas desenvolvidas por esses novos poetas. Para compreendermos bem essa mudança,
retomemos os dois pontos salientados por nós há pouco a respeito das transformações do
pensamento moderno. Falávamos de indivíduo e de progresso.

43
CAPÍTULO 4 • O PENSAMENTO CRÍTICO DA MODERNIDADE

O surgimento do indivíduo é fruto do liberalismo burguês, ideologia fundamental às novas


sociedades que se formavam, como as repúblicas francesa e americana, por exemplo. O indivíduo
tem direitos. Essa frase, por mais banal que pareça para nós, custou muito tempo e sangue
até ser reconhecida – e ainda custa, devemos dizer. Nesse caso, atrelada à ideia do indivíduo
está a do novo artista, chamado agora de autor. O poeta romântico (moderno) não é mais um
reescritor de textos clássicos, não está mais obrigado a uma fórmula e a um modelo, pois cabe a
ele criar o seu sentido do mundo pela poesia. Só será verdadeiramente poeta aquele criador que
buscar em seu íntimo, em sua vida e em suas experiências, a matéria e a forma de sua poesia.
A subjetividade agora ocupa também o espaço que na ordem clássica fora reservado apenas
ao talento. Nas palavras de Octávio Paz: “Ao afirmar a primazia da inspiração, da paixão e da
sensibilidade, o romantismo [a modernidade] apagou as fronteiras entre a arte e a vida: o poema
foi uma experiência vital, e a vida adquiriu a intensidade da poesia.” (PAZ, 2013, p. 69)

Podemos entender, então, que, a partir do pensamento moderno a poética procura uma nova
identidade para a poesia, afastada de certa artificialidade causada pela obediência aos padrões
clássicos, para ser capaz de responder aos anseios do homem da modernidade. Em outras palavras,
a poesia agora está inteiramente ligada à vida, ela é metáfora da vivência. A poesia, assim, mais
do que uma escrita, ela é uma ação – a de dar sentido ao que não parece ter, a vida.

Quanto ao segundo ponto, o progresso, encontraremos também uma profunda transformação.


Esse conceito é dependente do valor que a História recebe nas sociedades modernas. Como já
entendido, a cultura do avanço tecnológico e científico criou a ideia de constante superação
no espírito humano. Compreendido o passado como atraso, cabe ao presente apresentar uma
novidade, uma nova origem, uma originalidade. Aliado ao conceito de autor está o de origem.
Nenhum poeta clássico podia ser original. Todo poeta moderno deve sê-lo. Essa transformação
é revolucionária e ainda rege o universo artístico dois séculos e meio depois. A poesia moderna
é uma cisão da poesia original. Agora há o antes e o depois da modernidade na poesia.

Contudo, essa procura pela diferença (toda originalidade é uma diferença em relação ao todo)
provoca um paradoxo: tão interessada em se distinguir do passado, a poesia moderna apontará
para ele o tempo todo, registrando sua oposição ou, ainda, homenagem. O recurso da paródia,
por exemplo, será cada vez mais um recurso moderno, na medida que a poesia mantém sempre
o interesse sobre si mesma e sua história. Na poesia brasileira, as inúmeras paródias de Canção
do exílio, feitas por Carlos Drummond de Andrade, Murilo Mendes, Oswald de Andrade, José
Paulo Paes e tantos outros, exemplificam esse fenômeno. Octavio Paz nos traz a seguinte reflexão
a respeito:

A modernidade é sinônimo de crítica e se identifica com a mudança. […] Um


contínuo ir em frente, sempre em frente – não sabemos aonde. E a isso chamamos:
progresso. […] só a partir da idade moderna os poetas se dão conta da natureza
vertiginosa e contraditória da seguinte ideia: escrever um poema é construir uma

44
O PENSAMENTO CRÍTICO DA MODERNIDADE • CAPÍTULO 4

realidade à parte e autossuficiente. É assim que se introduz a noção de crítica


“dentro” da criação poética. Nada mais natural, aparentemente: a literatura
moderna, como corresponde a uma ideia crítica, é uma literatura crítica. (PAZ,
2013, pp. 37, 38 e 41)

Sendo assim, podemos resumir da seguinte maneira os novos conceitos poéticos desenvolvidos
na modernidade:

» autoria: abandonada a prisão clássica, o poeta moderno é convidado a introduzir


sua própria visão de mundo na criação de seu poema. É o primado da subjetividade.
(Lembremos do que falamos sobre a biografia de Manuel Bandeira a respeito da leitura
de seu maior poema, Vou-me embora pra Pasárgada).

» aproximação com a vida: a poesia moderna, formada no seio do pensamento crítico,


deve inserir-se em seu tempo, sua própria época. Fora dos modelos artificiais da tradição
clássica, ela tem como objetivo produzir significado para a existência atual, da qual faz
parte.

» originalidade: a idealização do progresso e do futuro faria a poesia procurar novos e


imprevisíveis caminhos que reconstituíssem uma nova origem, fora dos modelos prévios,
capaz de fazê-la se destacar e se diferenciar do todo. Esse desejo será o combustível para
todas as mudanças que a poesia sofrerá ao longo dos séculos XIX e XX, sobretudo com
o surgimento das vanguardas.

A poética moderna: características temáticas

Os temas que retrataremos em seguida não se restringem a nenhum movimento literário, embora
tenham no romantismo seu surgimento. Mas o interesse aqui é de discutirmos o discurso poético
moderno, sobretudo no modo essencialmente autoral e subjetivo que, até nossos dias, perdura
na percepção do poético. Assim, poetas geralmente chamados de românticos, simbolistas,
pré-modernistas e modernistas serão lembrados aqui como parte dessa grande transformação
que foi a passagem da ordem clássica para o mundo moderno no que diz respeito à poesia.
Vamos, então, aos temas: paixão, mulher, natureza e sociedade.

Paixão: a geração de poetas alemães da segunda metade do século XVIII já aqui mencionada é
conhecida por sturm und drang, algo como tempestade e ímpeto. A proposta dessa nova poesia,
identificada como o princípio da poética romântica (moderna), é justamente a da criação poética
como uma força, uma ação surgida da intimidade, da natureza do poeta. O poeta é movido pela
paixão que sente. A poesia é o resultado desse sentimento.

Embora não possamos falar em ausência de paixão na poesia clássica, podemos concordar
que tais paixões, simbolizadas por personagens míticos, presa a uma retórica fixa, elevada,

45
CAPÍTULO 4 • O PENSAMENTO CRÍTICO DA MODERNIDADE

tornava o discurso apaixonado mais uma convenção do que uma confissão. E a diferença entre
essas duas ideias é fundamental para que entendamos a diferença da paixão moderna para a
que eventualmente surgia na ordem clássica. A paixão para a poesia moderna é uma força, um
elemento natural e espiritual, faz parte daquele que sente, mas é maior do que ele. É a paixão
erótica, mas além dela, a paixão pela pátria, o ódio apaixonado da sociedade e até de si mesmo.
Essa paixão é livre.

Desse modo, o discurso poético moderno intensificou a metáfora do sonho e do delírio como
instância que escapa à razão. Da mesma forma, deu outro tratamento à metáfora e à prosopopeia,
recursos poéticos antiquíssimos, condicionando-as à expressão da paixão sensível, isto é, do
corpo. Imagens em que olhos se deslumbram; relatos de fragrâncias e odores indizíveis; descrições
de cachos da mulher adorada, textura da pele do rosto de tantas outras, ondas do mar e ventos
noturnos tão sentidos ou apenas imaginados... Se observarmos os poetas do século XIX até os
da contemporaneidade veremos a abertura contínua das expressões do corpo presentes na lírica
moderna. Octavio Paz também nos explica tal mudança:

Embora as paixões corporais ocupem lugar central na grande literatura libertina


do século XVIII, só a partir dos pré-românticos e românticos o corpo começa a
falar. E a linguagem que fala é a linguagem dos sonhos, os símbolos e as metáforas,
numa estranha aliança do sagrado com o profano e do sublime com o obsceno.
Essa linguagem é a linguagem da poesia, não a da razão.

Observe os dois poemas a seguir. Um de Álvares de Azevedo, poeta brasileiro do século XIX, o
outro de Hilda Hilst, escrito cerca de cem anos depois. Em ambos encontramos a temática da
paixão amorosa carregada pelo apelo ao olhar. Os dois poemas se direcionam ao desejo do e pelo
outro: o primeiro suplica que seu sentimento seja reconhecido, o segundo solicita àquele que
olha seu merecido e justo desejo. A diferença é nítida; no primeiro, temos o eu lírico masculino
derramando sua paixão e sofrimento por uma mulher; já no segundo encontramos a voz feminina
a orientar o desejo do outro, invertendo os papéis. Vejamos essas expressões poéticas, e atentemos
para a exploração da paixão erótica, dos sentidos e da natureza:

Ai, Jesus!
(Álvares de Azevedo)

Ai, Jesus! Não vês que gemo,

Que desmaio de paixão

Pelos teus olhos azuis?

Que empalideço, que tremo,

Que me expira o coração?

46
O PENSAMENTO CRÍTICO DA MODERNIDADE • CAPÍTULO 4

Ai, Jesus! Que por um olhar, donzela,

Eu poderia morrer

Dos teus olhos pela luz?

Que morte! Que morte bela!

Antes seria viver!

Ai, Jesus! Que por um beijo perdido

Eu de gozo morreria

Em teus níveos seios nus?

Que no oceano dum gemido

Minh’alma se afogaria? Ai, Jesus!

Que no oceano dum gemido

Minh’alma se afogaria?

Ai Jesus! (AZEVEDO, 1999, p. 35)

Dez chamamentos ao amigo


(Hilda Hilst)

Se te pareço noturna e imperfeita

Olha-me de novo. Porque esta noite

Olhei-me a mim, como se tu me olhasses.

E era como se a água

Desejasse

Escapar de sua casa que é o rio

E deslizando apenas, nem tocar a margem.

Te olhei. E há tanto tempo

Entendo que sou terra. Há tanto tempo

Espero

Que o teu corpo de água mais fraterno

Se estenda sobre o meu. Pastor e nauta

Olha-me de novo. Com menos altivez.

E mais atento. (HILST, 2003, p. 76)

47
CAPÍTULO
A POÉTICA MODERNA:
CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E
FORMAIS 5
Apresentação

Neste quinto capítulo daremos continuidade ao estudo dos temas recorrentes na poesia moderna
e perceberemos não só o modo como essa poesia se transformou para continuar seu percurso
dentro da história da cultura ocidental, mas, também, o que de sua essência tornou-se ainda
mais fundamental em nossa sociedade.

Objetivos

» Conhecer as temáticas predominantes no discurso poético da modernidade.

» Compreender o surgimento de novas concepções formais, como o poema em prosa e


os versos livres, na revolução empreendida pela poesia moderna.

» Perceber algumas das características formais da poética moderna.

No capítulo passado, começamos a ver as principais características temáticas da poesia moderna.


Iniciamos o nosso estudo com o tema Paixão e, agora, em continuidade, estudaremos outros
três temas recorrentes: mulher, natureza e sociedade.

Mulher: na verdade, o caráter expressivo que mencionamos em nosso primeiro capítulo como
próprio do discurso poético incorpora facilmente a paixão do homem moderno. O que importa
compreendermos é que a poesia, a partir da modernidade, torna-se o espaço da linguagem
afetiva, pessoal e confessional. Em outras palavras, trata-se de um discurso único, pela força
do indivíduo criador que impulsiona a criação poética, mas, ao mesmo tempo, um discurso
universal, não apenas por conta da existência do outro, o leitor, mas também pela consciência
da tradição que exerce pressão sobre a linguagem poética.

Tomemos os dois poemas citados no final do capítulo 4 como exemplo para discutirmos o modo
como se dá essa dialética que confronta o indivíduo com a ordem que o envolve na criação poética.
A luta entre modernidade e tradição. Sabemos que a figura feminina é um dos elementos mais
tradicionais da poesia. E isso se dá por um fato simples: os poetas são homens. Logo, dentro da

48
A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS • CAPÍTULO 5

convenção poética e social, a paixão amorosa cantada por um homem se destina a uma mulher.
Na quase completa ausência de poetas mulheres na literatura até o século XX, torna-se difícil a
inversão desse paradigma, de que quem fala no poema é o homem – e à mulher cabe a função
de ser falada, ou seja, ser objeto poético. Desse modo, quando no poema de Hilda Hilst seu eu
poético diz “Olhei-me a mim, como se tu me olhasses”, ela está claramente produzindo a inversão,
colocando o objeto no lugar de sujeito e, assim, inovando a tradição lírica ao reagir a seu sexismo.

Mas até que mulheres como Hilda Hilst tomassem as rédeas da produção poética, dois séculos
de quase silêncio absoluto se passaram na formação da tradição lírica da modernidade. Você
certamente já estudou a representação da mulher na literatura romântica brasileira, e deve se
lembrar de que ela simbolizaria dor e sofrimento ao homem apaixonado na lírica de Álvares de
Azevedo, como pudemos ver no poema “Ai, Jesus!”, e também deve saber que essa simbologia não
é fixa, cabendo à mulher vários papéis simbólicos no imaginário lírico. Contudo, é importante
entendermos que essa simbologia começa a se tornar menos passiva e mais ativa conforme o
tempo passa e as mulheres começam a questionar papéis prévios que lhes são impostos, exigindo,
por sua vez, fazer emergir sua voz e sua pessoa de maneira mais viva e independente.

A poesia moderna oscila, assim, entre a recuperação da tradição ou sua contestação. E ambas
as possibilidades podem gerar belos poemas. Na modernidade brasileira, ninguém melhor que
Vinicius de Moraes cantou a tradição lírica de idealização feminina. O poema a seguir, A mulher
que passa, é representativo dessa tradição:

A mulher que passa


(Vinicius de Moraes)

Meu Deus, eu quero a mulher que passa

Seu dorso frio é um campo de lírios

Tem sete cores nos seus cabelos

Sete esperanças na boca fresca!

Oh! como és linda, mulher que passas

Que me sacias e suplicias

Dentro das noites, dentro dos dias!

Teus sentimentos são poesia

Teus sofrimentos, melancolia.

Teus pelos leves são relva boa

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CAPÍTULO 5 • A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS

Fresca e macia.

Teus belos braços são cisnes mansos

Longe das vozes da ventania.

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Como te adoro, mulher que passas

Que vens e passas, que me sacias

Dentro das noites, dentro dos dias!

Por que me faltas, se te procuro?

Por que me odeias quando te juro

Que te perdia se me encontravas

E me encontrava se te perdias?

Por que não voltas, mulher que passas?

Por que não enches a minha vida?

Por que não voltas, mulher querida

Sempre perdida, nunca encontrada?

Por que não voltas à minha vida

Para o que sofro não ser desgraça?

Meu Deus, eu quero a mulher que passa!

Eu quero-a agora, sem mais demora

A minha amada mulher que passa!

Que fica e passa, que pacífica

Que é tanto pura como devassa

Que boia leve como a cortiça

E tem raízes como a fumaça. (MORAES, 1995, p. 244)

Vinicius une o contingente com o universal, a mulher anônima que passa pela rua com o desejo
pessoal de encontrar o amor completo. O paradoxo da paixão na poesia moderna: idealizá-la é
afastar-se de sua realização: “Sempre perdida, nunca encontrada”.

50
A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS • CAPÍTULO 5

É evidente que a partir da tomada da voz feminina, como no exemplo que vimos de Hilda Hilst,
essa idealização é relativizada, afinal, quando quem antes era objeto passa a ser sujeito, é, na
verdade, outro sujeito, que se sabe oposto àquele que antes detinha a voz poética. Em outras
palavras, à mulher cabe a desidealização de si mesma como necessária à afirmação de sua voz.
Os poemas a seguir, de Ana Cristina César e Adélia Prado, elucidam esse procedimento. Enquanto
Ana C. fala da proibição do desejo e cita deusas e sereias, Adélia Prado delineia o desejo sexual
feminino como algo natural e feliz:

Nada, esta espuma


(Ana Cristina César)

Por afrontamento do desejo

insisto na maldade de escrever

mas não sei se a deusa sobe à superfície

ou apenas me castiga com seus uivos.

Da amurada deste barco

quero tanto os seios da sereia. (CÉSAR, 1992, p. 78)

Dia
(Adélia Prado)

As galinhas com susto abrem o bico

e param daquele jeito imóvel

– ia dizer imoral -

as barbelas e as cristas envermelhadas,

só as artérias palpitando no pescoço.

Uma mulher espantada com sexo:

mas gostando muito. (PRADO, 2001, p. 59)

Natureza: não deve haver nada mais primitivo na linguagem humana do que a apropriação
metafórica dos elementos da natureza em nosso discurso. O sol, a chuva, a vegetação, o mar,
a lua, os animais... o universo natural nos é ofertado aos sentidos como a materialização do
mundo exterior, do que não está em nós, mas que faz parte do todo junto com a humanidade.
Apropriar-se da natureza, então, está na base da cultura (de qualquer cultura), e desde os

51
CAPÍTULO 5 • A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS

primórdios da poesia o seu discurso tematiza e se utiliza dos elementos naturais na construção
do sentido do ser no mundo.

Somente a partir da modernidade, contudo, a natureza receberia novo tratamento, que perdura,
inclusive, até nossos dias. Com o advento da industrialização e conquista do globo terrestre, o
ocidente intensificou o domínio e apropriação tecnológica da natureza em prol do progresso.
Fato esse que nos é bastante óbvio e continua na ordem do dia, contemporaneamente discutido
sob a ideia da sustentabilidade. A poesia moderna, assim, apresenta-se como o espaço livre
para o homem ocidental recriar a ordem do mundo perdida a partir das noções de progresso
que definem as sociedades capitalistas. O poeta, muitas vezes, é um anticapitalista, e a poesia,
o retorno à origem perdida (inocente) do homem. Em outras palavras, se o mundo capitalista
caminha por sobre a natureza, em ritmo industrial, o poeta moderno direciona seu olhar para
outro caminho, em direção à natureza, em contradição com seu tempo. Não tem outra origem
a idealização da natureza (clichê dos estudos literários) iniciada no romantismo, e modificada
no simbolismo e no modernismo, já no século XX.

Mas há, ainda, outra diferença em relação ao uso da natureza como símbolo poético a
partir da modernidade. O senso comum, preso sempre aos clichês e ideias simples (dadas),
costuma trabalhar poeticamente a natureza respeitando o padrão clássico de simplicidade e
nobreza. Assim, manhãs de sol, luzes da lua sobre o mar e cantos de rouxinóis e pardais são
exaustivamente utilizados na simbologia do belo e do agradável que definem, para o senso
comum, o discurso poético. Sabemos, por outro lado, que tal visão é ingênua e incompleta. Na
natureza existem tempestades avassaladoras, escuridão absoluta, insetos e répteis repugnantes,
relações predatórias e toda sorte de elementos negativos (ou seja, que negam a beleza fácil da
natureza), mas que, também, simbolizam nosso estar no mundo. É desse modo que a noção
de belo é alterada a partir da poesia moderna. Belo é o que toca o sujeito, intensifica sua
experiência de estar-no-mundo – e muitas vezes o grotesco, o artificial e uma natureza menos
óbvia se fazem presentes.

Vejamos agora três poemas do século XX. O primeiro, de Alphonsus de Guimaraens Filho, ainda
representativo de uma tradicional utilização da metáfora da natureza, a relação entre florescer
e viver; o segundo, de Manoel de Barros, metalinguístico, em que expressa a necessidade do
poeta de reinventar a língua ao regressar à nossa natureza simples e prosaica; e por fim, um
poema de João Cabral de Melo Neto que conflitua o sol, como símbolo antigo do homem, com
a ciência moderna, simbolizada pela aspirina. Em todos os poemas, não apenas a metáfora,
mas a tematização da natureza é fundamental para a justa interpretação do discurso poético.
Vamos a eles:

52
A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS • CAPÍTULO 5

Deitas teu corpo em flor


(Alphonsus de Guimaraens Filho)

Deitas teu corpo em flor no campo claro

e toda ao sol te entregas, matinal.

Um perfume de luz se espalha qual

puro delírio, canto esquivo e raro.

Sorver o aroma, recolher o puro

estremecer de flor, ó pólen, ó mel

que irrompendo de tudo vibra em céu

de água a cair das coisas num futuro

instante de fantástica beleza

e de beijo e de afago e de um supremo

arfar de chama em límpida penugem.

Deitas teu corpo em flor, e a natureza

Funde-se em ti no alto silêncio extremo

de volúpia desfeita em brisa e nuvem. (GUIMARAENS FILHO, 1997, p. 88)

Retrato quase apagado em que se pode ver perfeitamente nada


(Manoel de Barros)

VII

O sentido normal das palavras não faz bem ao poema.

Há que se dar um gosto incasto aos termos.

Haver com eles um relacionamento voluptuoso.

Talvez corrompê-los até a quimera.

Escurecer as relações entre os termos em vez de aclará-los.

Não existir mais rei nem regências.

Uma certa luxúria com a liberdade convém.

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CAPÍTULO 5 • A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS

VIII

Nas Metamorfoses, em 240 fábulas,

Ovídio mostra seres humanos transformados

em pedras vegetais bichos coisas

Um novo estágio seria que os entes já transformados

falassem um dialeto coisal, larval,

pedral, etc.

Nasceria uma linguagem madruguenta, adâmica, edênica, inaugural

– Que os poetas aprenderiam –desde que voltassem às crianças que foram

às rãs que foram

às pedras que foram.

Para voltar à infância, os poetas precisariam também de reaprender a errar

a língua.

Mas esse é um convite à ignorância? A enfiar o idioma nos mosquitos?

Seria uma demência peregrina. (BARROS, 2005, p. 49)

Num monumento à aspirina


(João Cabral de Melo Neto)

Claramente: o mais prático dos sóis,

o sol de um comprimido de aspirina:

de emprego fácil, portátil e barato,

compacto de sol na lápide sucinta.

Principalmente porque, sol artificial,

que nada limita a funcionar de dia,

que a noite não expulsa, cada noite,

sol imune às leis de meteorologia,

a toda hora em que se necessita dele

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A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS • CAPÍTULO 5

levanta e vem (sempre num claro dia):

acende, para secar a aniagem da alma,

quará-la, em linhos de um meio-dia.

Convergem: a aparência e os efeitos

da lente do comprimido de aspirina:

o acabamento esmerado desse cristal,

polido a esmeril e repolido a lima,

prefigura o clima onde ele faz viver

e o cartesiano de tudo nesse clima.

De outro lado, porque lente interna,

de uso interno, por detrás da retina,

não serve exclusivamente para o olho

a lente, ou o comprimido de aspirina:

ela reenfoca, para o corpo inteiro,

o borroso de ao redor, e o reafina. (MELO NETO, 1999, p. 276)

Sociedade: uma poética que valoriza a expressão individual (autoral) e se baseia na ideia de
progresso (avanço permanente) não teria uma relação exatamente pacífica com a sociedade
que a cerca. A poesia moderna alimenta a sensação de desacordo entre o homem e a sociedade
– especialmente quando esse homem, o poeta, é um sujeito aberto à sensibilidade do mundo
e crítico a respeito das verdades públicas. O poeta moderno é um sujeito em contradição com
o mundo que o envolve. Lorde Byron, Charles Baudelaire, Edgar Alan Poe, Arthur Rimbaud,
Reiner Maria Rilke, Fernando Pessoa são alguns dos inúmeros poetas que recusaram festejar
uma sociedade calcada no progresso tecnológico e no acúmulo de capital.

A poesia moderna abre o espaço da crítica radical da sociedade e da imagem do poeta como
um inconformado, um engajado. Ferreira Gullar, hoje politicamente identificado às forças
conservadoras da sociedade, foi, nos anos 1960 e 1970, um poeta engajado. Um de seus mais
famosos poemas, Não há vagas, escrito naquela época, nos revela esse olhar crítico de uma
sociedade repleta de graves e profundos defeitos – e estende essa crítica ao papel da poesia
dentro desse cenário. Nada mais moderno do que a crítica de si mesmo:

55
CAPÍTULO 5 • A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS

O preço do feijão

não cabe no poema. O preço do arroz

não cabe no poema.

Não cabem no poema o gás

a luz o telefone

a sonegação

do leite

da carne

do açúcar

do pão

O funcionário público

não cabe no poema

com seu salário de fome

sua vida fechada

em seus arquivos.

Como não cabe no poema

o operário

que esmerila seu dia de aço

e carvão

nas oficinas escuras.

- porque o poema, senhores,

está fechado:

“não há vagas”

Só cabe no poema

o homem sem estômago

a mulher de nuvens

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A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS • CAPÍTULO 5

a fruta sem preço

O poema, senhores,

não fede nem cheira. (GULLAR, 1997, p. 117)

A poética moderna: características formais

Poesia e prosa: consagrado pelo poeta francês Charles Baudelaire, o poema em prosa é a superação
dos limites formais impostos à poesia por meio da versificação que vimos em capítulos anteriores.
Fora de seu espaço formal restrito e, mais ainda, adentrando o espaço de outro gênero, o da
narrativa, a poesia em prosa é uma interrogação latente que se coloca sobre a própria identidade
poética. É justamente o que afirma Suzanne Bernard a respeito desse formato poético: “o que
torna difícil (e também apaixonante...) a questão do poema em prosa é que talvez nenhuma forma
poética, em meio àquelas que há um século têm tentado render a linguagem a nossas exigências,
chega a pôr em jogo com tanta acuidade a própria noção de poesia.” (BERNARD, 1959, p. 9)

A poesia escrita sem versos, mas em prosa, retoma a noção de fábula presente na origem do
discurso mítico da poesia. Sua mensagem poética torna-se mista, envolta na representação
comum ao texto em prosa (narrativo) e na expressão, típica do texto lírico. Em nosso curso temos
apresentado exclusivamente poemas do mundo lusófono, já que a tradução de poesia é tarefa
complicada, pois entre uma língua e outra se inserem novos sons e ritmos, às vezes, intraduzíveis.
Contudo, abriremos uma exceção para aquele que melhor encarnou o espírito da poesia moderna
ainda em seu início, no século XIX, o próprio Baudelaire. O poema que reproduzimos a seguir
trata da “perda da aura”, ou “auréola” como símbolo da perda do elo sagrado para o homem
moderno. Perceba como o texto oscila entre a narrativa e a expressão poética, comum a esse
subgênero de poesia:

A perda da auréola
(Charles Baudelaire)

Olá! O senhor por aqui, meu caro? O senhor nestes maus lugares! O senhor
bebedor de quintessências e comedor de ambrosia! Na verdade, tenho razão
para me surpreender!

Meu caro, você conhece meu terror de cavalos e viaturas. Agora mesmo, quando
atravessava a avenida, muito apressado, saltando pelas poças de lama, no meio
desse caos móvel, onde a morte chega a galope de todos os lados ao mesmo
tempo, minha auréola, em um brusco movimento, escorregou de minha cabeça
e caiu na lama do macadame. Não tive coragem de apanhá-la. Julguei menos
desagradável perder minhas insígnias do que me arriscar a quebrar uns ossos.
E depois, disse para mim mesmo, há males que vêm para o bem. Posso, agora,

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CAPÍTULO 5 • A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS

passear incógnito, cometer ações reprováveis e abandonar-me à crapulagem


como um simples mortal, E eis-me aqui, igual a você, como você vê.

O senhor deveria, ao menos, colocar um anúncio dessa auréola ou reclamá-la


na delegacia caso alguém a achasse.

Não! Não quero! Sinto-me bem assim. Você, só você me reconheceu. Além
disso a dignidade me entedia. E penso com alegria que algum mau poeta
a apanhará e a meterá na cabeça descaradamente. Fazer alguém feliz, que
alegria! E sobretudo uma pessoa feliz que me fará rir. Pense em X ou em
Z. Hein? Como será engraçado. (BAUDELAIRE, 2002, p. 443)

Versos livres: mas é evidente que a poesia em versos persiste. Contudo, a metrificação regular,
que aprendemos, seria gradativamente abandonada no século XIX, tornando-se até mesmo
desnecessária à forma poética dos últimos cem anos. Não será de todo abandonada, é claro,
mas cada vez menos presente na expressão do poeta moderno. Nasce, então, o verso livre, que
não obedece mais à regularidade da tradição poética, mas respeita o ritmo próprio que o poeta
deseja construir em seu discurso: versos mais longos ou, ainda, muito curtos, são estratégias
poéticas a que o autor se vale. Oswald de Andrade, no poema Amor, exemplifica brilhantemente
(e muito antecipadamente) a liberdade conquistada pela poesia moderna:

Amor
Humor (ANDRADE, 1991, p. 44)

O poema, que conta com apenas um verso, não respeita qualquer regra formal, no entanto constrói
discurso completo em que o amor, tema antiquíssimo da poesia, é reduzido a uma piada, dada
a ironia do poeta. Em seguida, retomaremos esse princípio, o da liberdade e do avanço formais,
na formação das vanguardas e da abertura sofrida pela poesia nos últimos cem anos.

Até o momento, podemos resumir nosso curso nas três seguintes etapas: primeiramente,
discutimos qual seria a natureza do discurso poético, de que modo ele se faz diferente em relação
ao discurso da linguagem comum, do dia a dia; depois estudamos as bases teóricas e históricas
que a cultura ocidental construiu em torno da linguagem poética, foi a chamada concepção
clássica, repleta de regras e performances específicas; por fim, nos foi possível observar as
profundas mudanças surgidas no discurso poético a partir da erupção da modernidade e seus
conceitos de originalidade, mudança e autoria.

Passemos, então, a uma última discussão a respeito da poesia e de seu discurso. Vamos, agora,
partir de um ponto deixado por nós anteriormente: o do aspecto moderno de superação do
passado e conquista do futuro de que tanto falamos – o progresso, afinal.

Você talvez saiba que o adjetivo moderno sempre foi utilizado para designar o novo, o mais atual.
Pois bem, isso nada tem demais. Porém, talvez você não tenha atinado ainda para o seguinte:

58
A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS • CAPÍTULO 5

somente a nossa época (entendida nos seus últimos cem anos) assumiu o nome de moderna, isto
é, chamou para si mesma a condição de superação do passado sobre que já discutimos. O avanço
da modernidade, contudo, é irrefreável. Deve-se sempre buscar o futuro, o aperfeiçoamento: isso
vale tanto para o ramo da telefonia, com a corrida tecnológica dos aparelhos celulares, quanto
para a criação poética, com suas inovações e experiências linguísticas que conheceremos aqui.
Acontece que, como você também deve saber, telefones celulares e poemas são coisas inteiramente
diferentes. Ou não?

Desde o princípio do século XX e a eclosão da Primeira Guerra Mundial, a modernidade entrou


em uma espiral antropofágica incessante, em que o antigo era destruído em prol da novidade
que, em breve, pela ironia implacável do tempo, seria transformada em antiguidade e destruída
também. Nesse contexto, surgiram as primeiras vanguardas poéticas e seus manifestos que
propuseram as mais diferentes formas de construções poéticas e rediscutiram a função, a natureza
e o sentido da poesia diante do mundo novo que surgia ao sujeito do século XX.

Você pode estar pensando, e não seria injusto dizer que de maneira correta, que a modernidade
que estudamos no capítulo passado, denominada romantismo em seu princípio na história da
estética ocidental, já pressupunha tais valores de mudança e superação muito antes do século
XX. É verdade, românticos e vanguardistas são irmãos distantes (no tempo) – estes por manterem
o espírito romântico de inserção da vida real na poesia, aqueles por se posicionarem na linha de
frente de uma mudança cultural revolucionária, isto é, na posição de vanguarda. Há, entretanto,
singular diferença:

A vanguarda rompe com a tradição imediata […] e essa ruptura é uma continuação
da tradição iniciada pelo romantismo. […] Mas há algo que distingue os
movimentos de vanguardas com os anteriores: a violência das atitudes e dos
programas, o radicalismo das obras. A vanguarda é uma exasperação e um exagero
das tendências que a precederam. (PAZ, 2013, p. 119)

Quando uma época assume seu nome de modernidade e suas tendências estéticas se julgam
modernistas, irrompe a cultura da vanguarda na arte – e a poesia não seria uma exceção. Do
mesmo modo que as artes plásticas se refaziam e se reinventavam a partir do cubismo, fauvismo,
expressionismo etc., os novos (e alguns antigos) poetas arregaçaram as mangas para dar ao
discurso poético nova forma, perspectiva e sentido, sem, para isso, poupar qualquer energia
ou conter impulsos capazes de superar qualquer limite que a poesia anterior não poderia ter
atingido. Não é permitido parar com as inovações formais, com as novas experiências poéticas.
Mas o que acontece quando essas formas e experiências aparentemente se esgotam? Para onde
ir? Este é o dilema do artista pós-moderno, nosso contemporâneo:

A violência e o extremismo defrontam rapidamente o artista com os limites de


sua arte ou de seu talento […] Embora a vanguarda abra novos caminhos, os
artistas e poetas os percorrem com tal pressa que não demoram a chegar no

59
CAPÍTULO 5 • A POÉTICA MODERNA: CARACTERÍSTICAS TEMÁTICAS E FORMAIS

final e esbarrar num muro. O único recurso é uma nova transgressão: furar o
muro, saltar o abismo. Cada transgressão é sucedida por um novo obstáculo e
cada obstáculo, por outro salto. Sempre entre a espada e a parede, a vanguarda é
uma intensificação da estética da mudança inaugurada pelo romantismo. (PAZ,
2013, p. 119)

As correntes de vanguarda surgidas na Europa ocidental e oriental nas primeiras décadas do século
XX são por demais diversas e específicas para enumerarmos aqui. Neste curso não trataremos
disso. Por outro lado, não seria completo um curso sobre o discurso poético sem tratar de aspectos
da linguagem poética intensificados pelas experiências das vanguardas.

Após a mudança ocorrida a partir da poesia moderna, quais seriam os pontos de acesso à inovação
exagerada e radical (nas palavras de Octávio Paz) desejada pelas vanguardas? Se a regularidade
formal e a preservação dos modelos clássicos foram abandonadas pela poesia moderna, o que
restaria para ser questionado na expressão da poesia de agora?

É o que veremos em nosso próximo e último capítulo!

60
CAPÍTULO
AS VANGUARDAS POÉTICAS E
ANÁLISE DE POEMAS 6
Apresentação

Neste último capítulo discutiremos os caminhos e os impasses da poesia nos últimos anos,
especialmente com o crescimento da cultura midiática contemporânea. Além disso, estabeleceremos
uma prática: a de analisar poemas.

Vamos oferecer três poemas devidamente analisados e interpretados, a servir de estopim para a
própria análise a ser feita por você ao final do curso, já que a análise de poesia é um dos requisitos
fundamentais a um profissional de Letras.

Objetivos

» Compreender os impasses e obstáculos que a cultura vanguardista encontra no século XX.

» Entender a atual situação do discurso poético em nossa cultura, cada vez mais ofuscado
por outras fontes de fruição e entretenimento, e a importância de sua resistência.

» Conhecer os diversos níveis de interpretação presentes em uma análise de poesia: sonoro,


visual, sintático, lexical e semântico.

» Compreender o modo de interpretação e análise desenvolvido ao final do capítulo e sua


aplicabilidade em outros poemas.

As vanguardas poéticas

O espírito da vanguarda revolucionou a pintura europeia do século XX. O fim da pintura que
respeitava os princípios da verossimilhança, chamada de pintura em perspectiva, veio por meio
da abstração, de uso de formas livres e variadas que acabaram por impulsionar a quebra de
paradigmas em outros tipos de produção artística, como a poesia. E o que equivaleria às formas
cubistas de Picasso ou às abstratas de Miró, para a forma poética? Pensemos, primeiramente,
na natureza dessa forma.

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CAPÍTULO 6 • AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS

A poesia é feita de palavras, obviamente. É essa a sua matéria-prima. Palavras que se organizem
numa ordem específica, claro, afinal a sintaxe da língua é a orientação para o entendimento do
discurso. Desse modo, mais do que ritmo ou sonoridade, a poesia, desde a Antiguidade, é feita
da nossa sintaxe, da organização de palavras em orações sequenciadas. Por isso não começamos
a leitura de um poema de um verso qualquer, nem alternamos a ordem da leitura desses versos
de acordo com nosso livre interesse. Lemos o primeiro verso e seguimos um por um até o final
do poema.

Toda natureza é, pois, uma limitação. Não voamos, por mais que desejemos e sejam inventados
os mais diversos tipos de aeronave, porque nossa natureza não permite – somos terrestres e
morreremos assim. A vanguarda tenta, por sua vez, superar um limite, uma interdição imposta
pela natureza da própria forma artística. E superar a ordem sintática da linguagem verbal é o
que propõem as vanguardas poéticas do século passado. Uma poesia capaz de produzir sua
mensagem de forma instantânea e que oferece ao leitor o caminho para adentrá-la e coproduzir
seu significado. E “como organizar a matéria verbal, que por essência é temporal e sucessiva,
numa disposição espacial e simultânea?” (PAZ, 2013, p. 126). Cubistas dos anos 1920 e concretistas
dos anos 1960 procuram responder a essa pergunta, como veremos agora nos dois poemas a
seguir, o primeiro de Oswald de Andrade e o segundo de Haroldo de Campos:

Hípica
Saltos records

Cavalos da Penha Para refletir

Correm jóqueis de Higienópolis Neste curso não nos aprofundaremos


na descrição e análise de épocas
Os magnatas
literárias, como no caso do primeiro
As meninas modernismo de Oswald de Andrade
e a vanguarda concretista de Haroldo
E a orquestra toca
de Campos, que são assuntos da
Chá disciplina de Literatura Brasileira
moderna, por exemplo. Por isso,
Na sala de cocktails (ANDRADE, 1997,
trataremos de alguns aspectos dessas
p. 65) correntes como exemplos de recursos
comuns à poesia, sem nos alongarmos
nas razões particulares que permitiram
a existência desses recursos.

(CAMPOS, 2003, p. 167)

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AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS • CAPÍTULO 6

Enquanto o poema de Oswald sequencia uma série de imagens ao mesmo tempo em que suprime
os elos sintáticos mais comuns (pronomes e conjunções), Haroldo de Campos separa sílabas
capazes de formar as mais variadas palavras e frases, dependendo de onde se inicia a leitura do
poema e por qual caminho se escolhe percorrê-lo.

O espírito da vanguarda tende a diminuir a necessidade da expressão emotiva, tão comum à


poesia (inclusive à moderna), em prol de uma exploração racional e objetiva da forma poética.
No caso da simultaneidade buscada nos poemas, voltamos a Octávio Paz:

O poema continuou sendo uma estrutura verbal, linear e sucessiva, mas que
pretendia dar a sensação – ou a ilusão – de simultaneidade. […] a supressão
dos elos sintáticos era, em poesia, um ato de consequências semelhantes às
da abolição da perspectiva na pintura. O presente […], confluência de todos
os tempos, se imobiliza e adquire a fixidez do espaço, enquanto o espaço flui,
bifurca-se, volta a se encontrar consigo mesmo e se perde. O espaço adquire as
propriedades do tempo. (PAZ, 2013, p. 128)

Parece que Paz se refere mesmo aos dois poemas que apresentamos anteriormente. O que nos
interessa entender é que a partir da interferência das experiências de vanguarda, o discurso poético
adquire certa maturidade e se desdobra sobre si mesmo e suas possibilidades, ampliando seu raio
de atuação e a natureza de seu objeto, o poema. A poesia não mais exigirá a presença das regras
verbais, utilizará o espaço como elemento criativo (poemas que formam desenhos na página
do livro, outros que são escritos nos muros e espaços públicos) e, principalmente, transferirá
ao leitor o dever de interferir criativamente na formação do discurso do poema, como no caso
da poesia de Haroldo de Campos, que vimos agora. O mundo virtual, ainda recente na história
da humanidade, parece um novo campo de atuação para o futuro na incessante transformação
do discurso poético.

O que restou do poético?

Após tantas transformações, o que restou do discurso poético na contemporaneidade? Em uma


cultura cada vez mais aprofundada no consumismo e no entretenimento, qual deve ser o caminho
de uma linguagem artística que suscita pouco apelo comercial e exige concentração e reflexão
de seu público, ao contrário de atividades mais superficiais e sedutoras, como as provenientes
dos gadgets atuais? A resposta para essa pergunta é difícil. Talvez, mesmo por se tratar de uma
crise mais profunda que verificamos na cultura contemporânea, a crise da cultura letrada, da
qual o livro de poesia é, possivelmente, a maior das vítimas.

Por outro lado, afirmar que “a poesia morreu” é um equívoco. Se voltarmos ao nosso primeiro
capítulo, nos lembraremos da referência à linguagem poética como uma instância de criação
e expressão individuais intrínseca à espécie humana. Portanto, enquanto houver mulheres e

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CAPÍTULO 6 • AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS

homens – e não robôs comandados por corporações da internet (mera suposição paranoica) –
haverá necessariamente o discurso poético.

Além disso, enquanto consumidores de cultura, podemos verificar em diversos veículos (de arte
e entretenimento) a presença do poético, dessa instância criadora e expressiva. Um filme, por
exemplo, pode ser poético, dependendo de técnicas específicas utilizadas em sua produção a
fim de produzir determinada sensação no público. O cineasta russo Sergei Eisenstein – um dos
diretores fundamentais na formação do cinema – afirmava a existência mesma de dois tipos de
cinema: o narrativo, mais tradicional, que conta uma história; e o poético, que procura expressar
uma ideia ou emoção, seguindo técnicas e estruturas diferentes daquelas comuns à narração.

E se o adjetivo poético define uma intenção, um modo e um efeito da criação artística, isso se
deve ao predomínio e prestígio da arte poética, isto é, poesia feita em versos, que durou cerca
de dois milênios (quem sabe mais) na cultura ocidental e, de modo diverso ao que estudamos
neste curso, oriental. A recente transformação que modificou o estatuto da cultura escrita em
nossa sociedade, colocando-a em par de igualdade (ou, às vezes, de inferioridade) com atividades
muito mais imagéticas (basicamente oriundas da informática e das telecomunicações), não é
capaz ainda de suprimir a necessidade humana de recriar a nossa existência por meio de uma
atividade criativa e livre: o discurso poético. Se o progresso tecnológico chegará a nos modificar
a esse ponto, criando uma era pós-poética, é apocalipse que este professor não consegue (ou
não deseja) imaginar. O poético é, talvez mais do que nunca, uma resistência – e professores de
literatura não têm outra função no mundo que levar essa atitude resistente aos outros, aos que
ainda não são robôs.

Níveis de análise de poemas

Nesta última etapa de nosso curso, percorreremos poemas de autores da língua portuguesa.
A escolha desses poemas e autores se deu por ordem puramente subjetiva, isto é, do gosto
do professor. Por isso mesmo, não trataremos aqui da importância histórica, tampouco nos
importaremos com características pessoais desses autores. Nosso interesse é demonstrar de
que modo deve ser praticada uma das mais fundamentais tarefas de um estudante de Letras: a
análise e interpretação da poesia.

Para que nosso trabalho seja bem organizado, sugerimos a seguir alguns níveis de abordagem
considerados básicos para a análise de poemas:

» Nível lexical: é fundamental observar o vocabulário de um poema para melhor analisá-lo.


O poeta escolheu vocábulos da linguagem comum ou da linguagem culta? Há presença
de termos que ferem regras gramaticais, como a ortográfica? Qual classe de palavra
predomina, a dos verbos de ação, produzindo possível efeito de dinamismo no texto,

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AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS • CAPÍTULO 6

ou dos de ligação e adjetivos, imprimindo sentido estático ao tema? Estaremos atentos


a esses dados nas leituras seguintes.

» Nível sintático: além da versificação e estrofação, que estudamos no início deste curso,
é preciso observar de que modo o poema é sintaticamente organizado. Há predomínio
de vírgulas e de elementos de ligação (pronomes e conjunções)? Ou os elos são todos
suprimidos, como vimos no poema de Oswald de Andrade há pouco? Há repetições de
orações, formando uma anáfora? Algum elemento coesivo é insistentemente usado,
ligando diversas orações em um longo período?

» Nível semântico: é evidente que a semântica (o sentido) sofre interferências diretas dos
níveis anteriores. Contudo, devemos observar nesse nível a apreensão do todo referente
ao poema. Qual seu sentido? Quais sentidos ele assume? A interpretação é fácil ou cifrada?
O tema é trabalhado de que forma? Surpreendentemente ou respeitando uma expectativa
comum? Há uma crítica política? De que modo? No fundo, esse nível representa a reunião
das ideias em torno do poema que constroem sua mensagem ao leitor.

» Nível sonoro: este nível trata do que já discutimos. Os recursos de rima, metrificação,
assonâncias, aliterações, enfim, os processos linguísticos de natureza sonora que
condicionam a musicalidade de um poema. Mais do que memorizar os nomes dessas
classificações, espera-se de uma análise a percepção dos processos sonoros presentes
na poesia. Mas é evidente que, uma noção mais embasada das especificações existentes
ajudam na identificação das nuances sonoras utilizadas pelo poeta.

» Nível visual: como vimos na poesia de Haroldo de Campos, há uma visualidade que se
tornou comum à poesia contemporânea. Cada vez mais identificada com a imagem,
a atualidade impulsionou à poesia a entrada desse novo recurso. Explora-se, assim, a
própria folha de papel como um quadro em que não apenas signos verbais, mas também
visuais, adentrem na construção do discurso poético. Em 1986, os Titãs lançavam um
de seus mais prestigiados álbuns, Cabeça dinossauro. A última faixa do álbum, O quê,
se trata de poema concreto, pois no encarte do disco encontramos assim colocada a
letra da canção:

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CAPÍTULO 6 • AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS

Como se pode observar, a circularidade da música (se não a conhece, ouça em algum canal da
internet para entender melhor essa observação) se reflete na imagem da letra: um círculo, em
que se pode entrar e percorrê-lo a partir de qualquer ponto que sempre se retornará à mesma
frase insistentemente repetida.

Além disso, devemos sempre ter em mente que a poesia trabalha, como toda arte, dentro da
lógica analógica, isto é, em que termos e recursos se encontram emparelhados a outros, enquanto
a poesia se emparelha com a vida. Expliquemos por meio do trabalho da professora Norma
Goldstein, em Versos, sons, ritmos. A respeito dos paralelos, ela afirma que:

Ao empregar figuras na construção do poema, o poeta cria sugestões múltiplas


de significação, tanto no plano denotativo como no conotativo. A análise do nível
semântico deve sempre ser associada à dos outros níveis. É importante relacionar
termos, em função de sua semelhança e de sua divergência. Podem-se aproximar
termos, em um poema, pelas mais diversas razões:

∙ por estarem na mesma posição;

∙ por estarem em posição simétrica;

∙ por terem a mesma função sintática;

∙ por pertencerem à mesma classe gramatical;

∙ por terem a mesma sonoridade etc.

Tentam-se todos os tipos de paralelo que forem possíveis, sempre relacionando


cada aspecto ao conjunto do poema como uma unidade. (GOLDSTEIN, 1985,
pp. 66-67)

Vamos, agora, aos poemas que nos servirão de exemplos para as análises e interpretações de
poesia com as quais encerraremos nosso curso.

Três poemas analisados:

Tecendo a manhã
(João Cabral de Melo Neto)

Um galo sozinho não tece uma manhã:

ele precisará sempre de outros galos.

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

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AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS • CAPÍTULO 6

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

que com muitos outros galos se cruzem

os fios de sol de seus gritos de galo,

para que a manhã, desde uma teia tênue,

se vá tecendo, entre todos os galos.

E se encorpando em tela, entre todos,

se erguendo tenda, onde entrem todos,

se entretendendo para todos, no toldo

(a manhã) que plana livre de armação.

A manhã, toldo de um tecido tão aéreo

que, tecido, se eleva por si: luz balão.

O que imediatamente observamos no poema de João Cabral é a indicação por meio de numerais da
ordem das estrofes: 1 e 2. Quando algo assim surge no texto, devemos desconfiar de sua obviedade.
A presença desses numerais parece indicar a importância de se entender que o que se encontra
na primeira estrofe representa o início de um processo ou sua primeira metade, enquanto a
segunda estrofe, evidentemente, representa a sequência do que se iniciou, uma segunda etapa.
Pois bem, respeitemos tal indicação. Vamos dividir nossa análise também em duas etapas. Mas,
antes, observemos o título: Tecendo a manhã. Já podemos observar a presença da metáfora da
manhã de sol como um tecido construído, costurado. Da análise das partes do poema seremos
capazes de perceber essa costura e o significado dessa metáfora.

1. O poema se inicia com uma negativa seguida de sua explicação: “Um galo sozinho não
tece uma manhã: ele precisará sempre de outros galos.” Simples e direto, o período inicial
forma uma tese a que o poema deve elucidar. Perceba o uso da pontuação como elo
coesivo mais eficiente, unindo a negativa da oração principal com a afirmativa presente
na explicativa. A ideia, assim, fica clara na mente do leitor.

A partir do terceiro verso, contudo, a simplicidade dá lugar à formação de uma sintaxe menos
direta e capaz de produzir efeitos estranhos, sentidos durante a leitura. Observemos, então, a
sequência dos versos três ao seis (este até o ponto-e-vírgula): “De um que apanhe esse grito
que ele / e o lance a outro; de um outro galo / que apanhe o grito de um galo antes / e o lance

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CAPÍTULO 6 • AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS

a outro”. É fácil notar que há uma lacuna entre as orações. Podemos preenchê-la mentalmente
também de forma fácil, veja: “De um que apanhe esse grito que ele lançou / e o lance a outro;
de um outro galo / que apanhe o grito de um galo antes lançado/ e o lance a outro”. As formas
verbais de lançar foram subitamente retiradas pelo poeta, mas estão inseridas semanticamente
e podem ser imaginadas pelo leitor. Isso é importante.

Voltaremos a essas lacunas. Mas de antemão podemos observar que são as únicas do poema,
já que na sequência dos versos tudo parece em seu devido lugar. Continuando nossa leitura,
chegamos à “conclusão” da primeira estrofe, em que se afirma que o trabalho conjunto dos galos
começa a formar o amanhecer. Observando o léxico da estrofe, veremos que a palavra galo(s) é
fundamental, obviamente, já que se repete oito vezes nesta estrofe, além da utilização do pronome
ele, designando o galo novamente. Além disso, reforça-se a metáfora da tessitura já mencionada
no título por meio das palavras fio (representando os gritos dos galos) e teia (a formação inicial
da manhã que os galos anunciam). Tudo isso será importantíssimo ao interpretarmos a segunda
estrofe. Vamos a ela.

2. Além da numeração, a estrofe se inicia com uma conjunção aditiva (e), indicando que
o processo iniciado na primeira estrofe se desdobra agora em novas ações. Relendo
essa estrofe, sentiremos como o fonema /t/ é recorrente, formando o que se chama de
aliteração. Além do efeito sonoro, podemos observar que a palavra galo, onipresente
na primeira estrofe, desaparece do poema, não sendo mais repetida. No lugar dela
entra o pronome todos, reforçando a ideia de coletividade apresentada nos dois
primeiros versos do poema. Essa mudança lexical ocasiona uma mudança semântica:
se inicialmente a atenção se concentra na ação individual de cada galo (um lançando
a outro seu grito), agora é a coletividade que toma forma: “um galo sozinho não tece
uma manhã”. Poderíamos lembrar-nos aqui do dito popular “uma andorinha só não
faz verão”, lembrando-nos da importância do trabalho conjunto para que alguma coisa
seja transformada.

Voltando ao vocabulário da costura, percebemos que, se na primeira estrofe se formava uma “teia
tênue”, agora há uma gradação indicando o surgimento e consolidação da manhã de sol descrita
no poema. Vejamos: de teia se passa a tela, de tela se forma uma tenda, e esta se transforma
em toldo. E por que podemos afirmar ser uma gradação? Por se tratar de formas cada vez mais
fortes, encorpadas. Observe, então, o quadro a seguir:

teia < tela < tenda < toldo

Além da gradação semântica, você percebe alguma outra? Veja que há também uma organização
ortográfica crescente, pois os termos estão sequenciados em ordem alfabética, reforçando a
ideia gradativa fundamental para a percepção de que o trabalho coletivo é uma força crescente,
organizada e dominante.

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AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS • CAPÍTULO 6

Ademais, devemos notar que a aliteração em /t/ não é mero recurso sonoro, tem também
significação semântica. Se são todos os que trabalham na formação da manhã, é natural que os
objetos tecidos por esses indivíduos carreguem algo semelhante, de mesma natureza. Assim,
o /t/ de todos iniciará as palavras teia, tela, tenda e toldo. Os tecidos dos galos são da mesma
natureza, ainda que cada vez mais fortes que os anteriores. Do mesmo modo devemos perceber a
repetição do /t/ na preposição entre, especialmente quando João Cabral se vale de um neologismo
brilhante: entretendendo, em que se observa a ideia de se estar entre semelhantes, os galos,
construindo a costura do amanhecer, indicada pelo gerúndio.

Brilhante, não? Mas e as lacunas verbais da primeira estrofe? Como interpretá-las? Voltemos à
estrofe, mas, desta vez, mais do que ler, gostaria que nós víssemos estes versos:

De um que apanhe esse grito que ele

e o lance a outro; de um outro galo

que apanhe o grito de um galo antes

e o lance a outro; e de outros galos

Olhando os versos, percebemos que há uma simetria entre eles, especialmente entre os versos
pares, o segundo e o quarto. O ponto-e-vírgula central é o indicativo mais forte dessa simetria,
pois dá a entender que os períodos se encontram nesse ponto preciso. Se nos lembrarmos de que
todo o poema é construído em torno da metáfora da costura, é fácil imaginar que esses versos
representam os fios do tecido, e o ponto-e-vírgula se transforma justamente no ponto em que
esses fios devem formar a costura. Só que nessa parte do poema, nem mesmo a “teia tênue” se
formou, quiçá o toldo que finaliza o trabalho dos galos. Estamos falando de uma construção,
que tem em sua natureza inicial a forma ainda incompleta, básica, ou seja, lacunar. João Cabral
nos deixa sem os verbos mencionados para que notemos que o trabalho ainda está no seu início,
é ainda frágil, incompleto.

Léxico, imagem, frases, sons... São muitos os recursos de um poeta. A interpretação do poema
precisa levar todos esses dados em consideração. Após essa leitura, será que podemos enxergar
no poema mais do que mera construção linguística capaz de revelar a sofisticação do poeta? Sim,
podemos. Tecendo a manhã é, na verdade, um poema político, engajado. Ainda que se disfarce
muito bem. O primeiro indício desse engajamento está evidenciado na ideia central do poema, sua
premissa que já interpretamos, a de que o indivíduo não é capaz sozinho de uma transformação,
apenas a coletividade. Mas, além disso, notemos que o que os galos tecem, a manhã, pode
formar outra palavra mais indicativa de participação política; para isso, basta lermos: a manhã
= amanhã. No antepenúltimo e penúltimo versos, “a manhã” é repetida em um mesmo ponto
de leitura, e quando lemos essas duas palavras devemos reconhecer que são idênticas do ponto
de vista sonoro ao substantivo amanhã. E esse substantivo é, universalmente, metáfora para o

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CAPÍTULO 6 • AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS

futuro, o que ainda não existe, mas que pode vir a existir se todos trabalharem conjuntamente.
O que, afinal, João Cabral de Melo Neto parece afirmar é que um indivíduo só não faz o futuro,
precisaremos de todos nós para que um dia tenhamos a formação de uma sociedade mais clara,
solar, como o voo triunfante de uma “luz balão”.

Ao desconcerto do mundo
(Luís de Camões)

Os bons vi sempre passar

No Mundo graves tormentos;

E para mais me espantar,

Os maus vi sempre nadar

Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim

O bem tão mal ordenado,

Fui mau, mas fui castigado.

Assim que, só para mim,

Anda o Mundo concertado.

Ouvimos constantemente, e repetimos também, que os tempos modernos produziram mulheres


e homens deslocados, que não se encaixam no mundo, não compreendem a ordem do universo
e se sentem, por isso, estrangeiros. Precisamos revisar essa ideia, pois ela é falsa. A humanidade
constrói códigos e valores para dar uma ordem ao universo e um sentido para si mesma. Mas, na
verdade, o próprio universo, nada tem com isso. As abstrações puramente mentais, denominadas,
por exemplo, consciência moral, justiça e verdade não são garantias de absolutamente nada
concreto, dada a imprevisibilidade da vida e o caos do universo. E isso se dá em qualquer tempo.
Pessoas sensíveis, sejam da modernidade ou da Idade Média, percebem esse descompasso entre
o que o mundo e nós somos de fato, e o que gostaríamos que fosse. Esse é o desconcerto do
mundo, muito mais antigo do que a própria poesia de Luís de Camões.

Observemos a simplicidade do poema. O eu lírico se mostra desafortunado por não compreender


os signos do mundo e, por isso, se sente em desconcerto. Camões se vale no poema do jogo lexical
entre os pares bem/mal e bom/mau que a língua portuguesa oferece em um jogo semântico,
sintático e sonoro.

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AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS • CAPÍTULO 6

Bom e mau são adjetivos. Bem e mal, no poema de Camões, substantivos. Os primeiros
caracterizam um julgamento subjetivo, por isso, relativo. Julgo uma música boa, meu amigo, má.
Os substantivos, por sua vez, são abstratos, já que representam valores, e dependem, por isso,
de que alguém os sinta ou reconheça. São, portanto, também subjetivos e igualmente relativos.
Em sociedades democráticas, por mais imperfeitas que sejam, defende-se a liberdade individual
como um bem inabalável, já em sociedades teocráticas, o bem é uma conduta dogmática e
supraindividual. Em resumo, essas quatro palavras não têm lugar fixo, mas ocupam espaços
distintos a partir de perspectivas diferentes.

O poema de Camões é construído sobre esse jogo lexical e existencial, em que se percebe o
julgamento equivocado do eu lírico como causa de seu trágico destino. Nos cinco primeiros
versos do poema, o eu lírico identifica bem como “mar de contentamentos” e mal como “graves
tormentos”. Por ambição de encontrar a felicidade, o eu lírico, então, inverte os sinais, na lógica
de que para se ter o bem (felicidade) deve-se ser mau. O que evidentemente não funciona. O
poema revela que, no fundo, o mundo não é injusto ou desconcertado, mas que não há qualquer
fórmula prévia para se chegar ao que se entende por contentamento ou tormento. Não há mapas
a indicar o lugar do bem ou do mal, menos ainda o necessário a uma vida boa ou má.

Poema concreto de Décio Pignatari (1957)

O poema de Décio Pignatari é construído em cima de uma única frase: “beba Coca-cola”.
Símbolo do capitalismo e do imperialismo americano (sobretudo na época em que esse poema

71
CAPÍTULO 6 • AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS

foi composto), a Coca-cola, como qualquer empresa, se vale de vários slogans, frases dinâmicas
capazes de “colar-se na mente” dos consumidores e identificar seu produto. A ordem “beba
Coca-cola” é um indicativo evidente desse propósito mercadológico. Pelo processo de corte/
montagem – muito anterior à vanguarda concretista – Décio procura reconstruir a mensagem
da empresa americana, produzindo agora um efeito oposto, uma contrapropaganda.

Para isso o poeta se vale do recurso da paronomásia, figura de linguagem que identifica palavras
de formação gráfica e sonora muito semelhante, mas que são de fato diferentes. Sapo e sopa,
por exemplo, formam um par paronomástico. Assim como beba e babe ou coca e caco, como
fez Décio Pignatari no poema.

O jogo paronomástico começa a formar um discurso crítico a respeito da cultura consumista


norte-americana, mostrando que por dentro do próprio discurso da propaganda pode-se
descobrir seu oposto, por meio das mesmas letras e fonemas, apenas rearticuladas em outro
léxico. Se a ordem da propaganda é para que o consumidor “beba”, a poesia de Pignatari revela
um consumidor alienado, que baba, verbo que sugere um sujeito passivo e títere nas mãos da
propaganda.

O mesmo se dá com a palavra coca, transformando-se em caco: resto, destroço, algo nocivo
e inútil. Se a propaganda propõe sempre o engrandecimento de seu objeto e a felicidade do
consumidor, Pignatari, em contraponto, concebe um consumidor idiota que aceita (babando)
tudo que lhe é empurrado, até o lixo.

A postura crítica se aprofunda na medida em que o jogo segue. Ao fim do poema, restam as
palavras caco e cola, esta, por mais que seja parte do nome real do produto, quando isolada,
indica claramente a artificialidade do refrigerante, seu aspecto industrial. E esse lixo (caco)
da indústria (cola) gera a palavra derradeira, que finaliza a crítica e confere humor ácido ao
poema: cloaca, o orifício de aves e répteis constantemente identificado ao ânus e às fezes –
embora também sirva para o depósito dos ovos dessas espécies. A “Coca-cola”, sua bilionária
marca, presente (hoje, não na época do poema de Décio) em praticamente todas as sociedades
humanas, símbolo da vitória do capital e do consumo é resumida, assim, em uma cloaca,
por conta de sua outra natureza, omitida pela propaganda, de alienação e industrialização
alimentar. Algo desagradável, grotesco, sujo. O poema de Décio revela que, mesmo em um
contexto minimalista da poesia concreta, a crítica sociopolítica é não apenas possível, mas
mesmo necessária, para que a poesia não se perca em um discurso vazio de mero consumo –
como o da propaganda.

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AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS • CAPÍTULO 6

Que tal aproveitar para conhecer outros poemas concretos? Busque analisá-los a partir de todas
as reflexões já feitas até aqui.

http://katarinafarias.blogspot.com.br/2012/09/poesia-concreta.html

http://geniosegeneros.blogspot.com.br/2013/03/poemas-concretos-e-cineticos.html

73
CAPÍTULO 6 • AS VANGUARDAS POÉTICAS E ANÁLISE DE POEMAS

Considerações finais

Ler e interpretar poemas são atividades vistas, muitas vezes, especialmente pelos alunos dos
Ensinos Fundamental e Médio, como “impossíveis” ou sem finalidade clara, na famosa frase
dos estudantes: “para que eu preciso saber isso?!”. Ambas as ideias são equivocadas e é nosso
dever desfazer tais impressões.

A interpretação de poemas é encarada como tarefa árdua ou angustiante, na medida em que


o leitor não consegue entender o texto ou, pior, não consegue entender a explicação sobre ele
que o professor oferece. Portanto, torna-se fundamental que o professor funcione como um
guia à leitura, orientando caminhos e ofertando definições que os alunos ainda não possam
captar – mas é igualmente fundamental que o professor permita ao aluno construir sua própria
interpretação do discurso poético. Para tal, devemos nos ater a uma dupla interdição: nenhum
poema carrega apenas um significado (mesmo que à revelia de seu autor); nenhum poema permite
todas as interpretações. Em outras palavras, não pode ser nem o significado rígido de um ensino
tradicional e caduco, tampouco o relativismo exagerado do “vale tudo” da interpretação. Por
exemplo, podemos chegar a uma interpretação sociopolítica nos poemas de João Cabral de Melo
Neto e de Haroldo de Campos, mas em nenhum dos dois é possível encontrar uma interpretação
de uma expressão amorosa, por exemplo. Isso os poemas não oferecem.

Quanto à outra pergunta comum dos estudantes, o famoso “pra que saber isso?”, deve-se oferecer
outra pergunta: quem disse que tudo o que se deve saber tem um porquê? Essa resposta, longe
de se tratar do também famoso “porque sim!” (que muitos professores teimam em se apegar)
deve servir de reflexão para uma sociedade que somente aceita aprender e se concentrar sobre
o que efetivamente oferece retorno material e concreto. A poesia é fundamental, pois quanto
mais se enxerga o mundo, se vê que nossa razão de existir ainda não está acabada, e a poesia
é o mais antigo recurso humano de adentrar as origens e significados presentes na existência
humana. Oxalá que ela persista!

74
Referências
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