Hazrat Inayat Khan - A Mensagem Sufi-IV
Hazrat Inayat Khan - A Mensagem Sufi-IV
Hazrat Inayat Khan - A Mensagem Sufi-IV
A MENSAGEM
SUFI-IV
O Caminho da Iluminação
A Linguagem Cósmica
UNIVERSALISMO
Sumário
O Mensageiro
Que é um Sufi?
O Emblema Sufi?
A Tradição do Sufismo
Mensagem Sufi
O CAMINHO DA ILUMINAÇÃO
V – Existe uma lei da reciprocidade, que pode ser observada por uma
consciência isenta de egoísmo aliada a um senso de vigilante justiça
VII – Existe uma moral, o amor que brota da autonegação e floresce em obras
de beneficência
O objetivo da vida
A vida terrena
Vocação
Nur-Zahur
Os Mestres
O espírito da profecia
II
III
IV
A LINGUAGEM CÓSMICA
Capítulo IX – A Vontade
Capítulo X – A Razão
Capítulo XI – O Ego
Que é um Sufi? – É aquele que não se separa dos outros pela opinião ou dogma
e que compreende que o coração é o Sacrário de Deus.
O Movimento Sufi não interfere no ideal de ninguém nem na devoção que cada
um tem ao seu Mestre. Seria isso um absurdo tão grande como se pensássemos
que uma criança pode amar mais a mãe de uma outra criança do que a sua
própria mãe. Tem alguém o direito de comparar e colocar em determinado lugar
os grandes Mestres ou as Escrituras? Ninguém. Onde podemos colocar o nosso
ideal é na devoção de nosso coração ao ideal que adoramos e isso é assunto
que só a nós diz respeito. Ninguém pode interferir.
Certa vez algumas meninas brincavam e diziam: “Minha mãe é a melhor das
mães”, ao que outras retrucavam: “Não, a minha mãe é a melhor”. Todas
apresentavam argumentos, mas uma delas, que tinha mais sabedoria do que as
outras, disse: “Não é nada disso, o que é adorável é a mãe, seja ela a sua mãe
ou a minha mãe”.
Interfere o Movimento Sufi na devoção das pessoas aos seus Mestres? Nunca,
mas convida as almas a ver que a fonte e a meta de todas as sabedorias é uma
só, e que todas as bênçãos que as almas almejam vêm da mesma fonte, pois a
verdade é que existe uma só e única fonte.
As preces Sufi Saum e Salat não são preces feitas pelo homem. São preces
enviadas do Alto, foram transmitidas da mesma forma que, em cada período de
reconstrução espiritual da humanidade, foram transmitidas as demais preces.
Essas preces têm poder e trazem bênçãos, especialmente para aqueles que
crêem.
A Mensagem de Deus tem sido enviada à terra aonde quer que o clamor da
humanidade chegue a um certo ponto, e tem sido outorgada numa forma
apropriada às necessidades do tempo; mas, em essência, é a mesma
eternamente. “Deus fala a seus filhos através dos lábios do homem”. Seus
Mensageiros Divinos têm sido muitos, e incluem Rama, que trouxe a Mensagem
da Sabedoria; Buda com a Mensagem da Compaixão; Zoroastro deu a
Mensagem da Pureza; Moisés, a Mensagem da Lei; Cristo foi portador da
Mensagem do Sacrifício de Si Mesmo, e Maomé deu a Mensagem da Unidade.
O Movimento Sufi tem crescido rapidamente durante os ultimas anos, sendo hoje
uma organização internacional com a sua sede em Genebra.
O CAMINHO DA ILUMINAÇÃO
Sumário
O CAMINHO DA ILUMINAÇÃO
PRIMEIRA PARTE
Pensamentos Sufis
SEGUNDA PARTE
O Objetivo da Vida
A Vida Terrena
Vocação
Nur-Zahur
Os Mestres
O Espírito da Profecia
Alif
TERCEIRA PARTE
Os Sufis
O CAMINHO DA ILUMINAÇÃO
PRIMEIRA PARTE
Pensamentos Sufis
Um poeta Sânscrito escreveu: “As jóias são pedras, mas não são encontradas
em qualquer lugar; a árvore do sândalo é uma árvore, mas não cresce em
qualquer floresta. Assim como há muitos elefantes, mas um só é o rei dos
elefantes, também existem seres humanos em todo o universo, mas o verdadeiro
ser humano é raramente encontrado”.
Aos olhos do homem que sabe ver, cada folha de árvore é uma página do livro
sagrado que contém a revelação divina e ele se inspira, em todos os momentos
de sua vida na leitura constante e na compreensão da escritura sagrada da
natureza.
É a lei da reciprocidade que salva o homem de se expor aos mais altos poderes
da justiça, pois um homem prudente tem menor chance de ser levado aos
tribunais. O senso de justiça é despertado numa mente perfeitamente sóbria, isto
é, em quem está livre da intoxicação da juventude, da força, do poder, da
riqueza, do comando, do berço ou posição na vida. Parece haver lucro quando
nada se dá mas se toma, ou quando se dá menos e se toma mais, mas em
ambos os casos existe na realidade um prejuízo maior que lucro, pois o lucro
assim obtido cobre com uma camada o senso íntimo de justiça. Quando grande
quantidade dessas camadas cobre a visão, o homem fica cego até diante de seu
próprio lucro. É como se permanecesse na sua luz própria. “Quem for cego na
Terra continuará cego no outro mundo”.
O Sufi sabe que a vida que emana do ser interior se manifesta na superfície de
várias formas. Neste mundo de multiplicidade o homem é a manifestação mais
bela, pois realiza em sua evolução a unidade do ser interior, até nas variadas
formas da vida exterior. Contudo, o homem evolui para seu ideal, o único objetivo
de sua vinda à terra, unindo-se aos outros homens.
O homem une-se aos outros homens por laços de família. É o primeiro passo na
sua evolução. No entanto, em eras passadas, as famílias lutavam entre si e
vingavam-se mutuamente por gerações inteiras, cada qual considerando sua
causa a única causa verdadeira e justa. Hoje o homem mostra que evoluiu,
porque une-se aos vizinhos e concidadãos e até mesmo desenvolve o espírito
de patriotismo para com o país onde nasceu. Mostra atualmente uma grandeza
maior que seus antepassados no que diz respeito à convivência e, todavia, foram
os homens assim unidos nacionalmente os responsáveis pela catástrofe das
guerras modernas, que serão olhadas pelas gerações vindouras à mesma luz
que hoje olhamos as famílias feudais de antigamente.
Existem compromissos raciais que cada vez mais alargam o círculo de unidade,
mas há sempre uma raça que despreza outra. Os compromissos religiosos
representam um ideal ainda mais elevado, mas surgiram deles várias seitas, que
se opuseram e se desprezaram entre si milhares de anos e foram as
responsáveis pelas separações e divisões sem fim entre os homens. O germe
da separação existe até no vasto campo da fraternidade. Embora a idéia da
fraternidade esteja disseminada, não será perfeita enquanto separar os homens.
*
VII – EXISTE UMA MORAL, O AMOR QUE BROTA DA AUTO-NEGAÇÃO E
FLORESCE EM OBRAS DE BENEFICÊNCIA.
A voz do povo diz que o amor é cego. Na verdade o amor é a luz da visão. Os
olhos podem ver apenas a superfície; o amor pode ver muito mais fundo. A
ignorância é motivada pela falta de amor. Assim como acontece com o fogo, que
quando não se inflama faz somente fumaça e quando se inflama faz surgir a
chama que ilumina, acontece o mesmo com o coração: é cego quando ainda não
se desenvolveu, mas quando o fogo que existe dentro dele é aceso, surge a
chama que iluminará o caminho do viajante da mortalidade para a vida eterna.
Os segredos da terra e do céu são revelados ao homem que possui um coração
amoroso. O homem que ama adquire o conhecimento perfeito de si próprio e dos
outros. Não só se comunica com Deus como se une a Ele.
Escreveu Rumi, um poeta Sufi: “Um viva a ti, ó amor, doce loucura! A ti que curas
todas as nossas enfermidades! Que és o médico de nosso orgulho e do nosso
amor-próprio! Que és nosso Platão e nosso Galeno.”
O Sufi sabendo disso adora a beleza em todos seus aspectos. Vê a face do Bem-
Amado em tudo que é visto. Vê o espírito do Bem-Amado no invisível. Assim,
sempre que olha, vê na sua frente o seu ideal de adoração. “Para qualquer lado
que eu olhe vejo Tua face sedutora, para qualquer lugar que eu me dirijo chego
à Tua morada”.
É por este motivo que os ensinamentos são dados aos povos em várias línguas,
há várias formas de adoração e há princípios diferentes em várias partes do
mundo. A verdade é uma só. É sempre a mesma. É mostrada em espectos
diferentes apropriados para os povos em determinadas épocas. Só os que não
compreendem isso é que zombam da fé dos outros, condenando ao inferno ou
à destruição os que não consideram sua fé a única e verdadeira fé.
Os que conhecem o segredo da vida sabem que a vida é uma só, embora tenha
dois aspectos: um, a vida imortal, toda-penetrante, a vida silenciosa; outro, a vida
mortal, ativa, que se manifesta em várias formas. Pertencendo a alma ao
primeiro aspecto, à vida imortal, ilude-se, torna-se impotente e prisioneira, ao
experimentar a vida em contato com a mente e o corpo, que pertencem ao
segundo aspecto, à vida mortal. A satisfação dos desejos do corpo e as fantasias
da mente não são suficientes para o objetivo da alma que, sem dúvida, deve
experimentar seu próprio fenômeno no visível e no invisível, embora sua
tendência é ser ela mesma e não outra coisa qualquer. Quanto à ilusão, faz a
alma sentir-se impotente, mortal e prisioneira, leva-a a sentir-se fora de seu
ambiente. Esta é a tragédia da vida, que faz do forte e do fraco, do rico e do
pobre, enfim, de todos, seres insatisfeitos à procura constantemente de algo que
não sabem o que é. O Sufi compreende isso e segue o caminho do auto-
aniquilamento. Guiado por um Mestre nesse caminho, vê no fim da jornada que
o destino era ele próprio, como disse Iqbal: “Vaguei à procura do meu próprio
ser. Fui o viajante e sou o destino”.
SEGUNDA PARTE
O OBJETIVO DA VIDA
Às vezes as almas se perguntam: “Por quê estou na terra?” Tal pergunta é feita
conforme a evolução da inteligência de cada uma. Um homem pode dizer: “Estou
na terra para comer, beber e me divertir”. Até os animais fazem isso, mas o que
mais realizou ele como ser humano? Outro homem afirma: “O importante é o
poder e posição”. É preciso que se saiba que poder e posição são transitórios.
O poder tem altos e baixos. Tudo que temos foi tirado dos outros de alguma
forma e os outros, por sua vez, estão esperando de mãos abertas se apoderar
do que possuímos.
É comum ouvir alguém dizer: “Estamos na terra para receber honrarias”. Neste
caso alguém terá que ficar em posição de inferioridade para que seja dada a
honraria que o outro procura obter, mas, por sua vez, esse homem pode ser
relegado a um plano inferior se aparecer outro candidato mais ávido de
honrarias. Podemos achar que o mais importante é sermos amados, mas é
preciso não esquecer que a nossa beleza, que faz com que alguém nos ame, é
transitória. Nossa beleza pode empalidecer quando comparada com a beleza
dos outros. Ao procurar o amor de alguém não ficamos apenas dependentes
desse amor, ficamos também desprovidos de amor. Pensar que é aconselhável
amar alguém que mereça nosso amor, é um engano, pois o objetivo do nosso
amor pode sempre nos causar desapontamentos e tal pessoa talvez nunca seja
o nosso ideal. Somos levados a supor e crer que a virtude é a única coisa de
valor na vida, mas notamos que o maior número de sofredores de alucinações
morais é encontrado entre as pessoas que consideramos justas.
Por este motivo o Sufi procura Deus como seu amor, seu amante e seu bem-
amado, seu tesouro, sua posse, sua honra, sua alegria, sua paz. Somente
chegando até Deus, fazendo essa aquisição com perfeição, é que o Sufi supre
todas as exigências da vida tanto na terra como no mundo após a morte.
Novamente, pois, pode-se dizer que existe um objetivo acima de cada objetivo e
há um objetivo abaixo de cada objetivo e todavia não existe nenhum objetivo
acima e abaixo de todos os objetivos. A criação existe porque existe.
A VIDA TERRENA
Podemos tentar ver as coisas sob o ponto de vista de outra pessoa e também
sob nosso próprio ponto de vista, dando liberdade de pensamento a todos,
porque nos mesmos exigimos essa liberdade. Podemos tentar apreciar o que é
bom em outra pessoa e não notar nela o que consideramos um mal. Se alguém
age egoisticamente em relação aos demais, podemos achar isso muito natural,
porque o egoísmo faz parte da natureza humana. Assim não ficamos
desapontados. Se, porém, os egoístas somos nós, é preciso começarmos a nos
esforçar para perder o egoísmo. Não há nada que não possamos tolerar e não
existe ninguém a quem não podemos perdoar. Nunca duvide daqueles em quem
confia, nunca odeie os que ama, nunca derrube os que você um dia elevou em
sua estima. Faça de todos que encontrar um amigo. Faça um esforço para ser
amigo daqueles que considera pessoas difíceis. Fique indiferente a essas
pessoas somente no caso de não ser bem-sucedido em seus esforços. Nunca
tente romper uma amizade uma vez feita.
Se alguém nos fizer mal, tentemos pensar que merecemos isso de uma certa
forma, ou então que a pessoa que nos fez mal não sabe o que fez. Lembremos
que todas as almas que se elevam na vida recebem grande oposição do mundo.
Tem sido assim com todos os profetas, santos e sábios. Portanto, ninguém pode
esperar que isso não lhe aconteça. É a lei da natureza e é também o plano de
Deus em ação, preparando algo desejável. Não há ninguém superior ou inferior
a nós. Devemos ver em todas as fontes que suprem nossas necessidades uma
só fonte – Deus – única fonte. Se admiramos, reverenciamos e amamos alguém,
tenhamos em mente que fazemos isso a Deus. Devemos procurar Deus na
tristeza e na alegria. É preciso agradecer sempre a Deus. Não lamentemos o
passado nem nos preocupemos com o futuro. Tentemos apenas tirar o maior
proveito do presente. Não pensemos em fracasso, pois mesmo numa queda
encontramos sempre um degrau para subir. Para o Sufi, cair e levantar pouco
significa. Não devemos nos arrepender pelo que tivermos feito, porque
pensamos, dizemos e fazemos o que queremos. Não tenhamos medo das
consequências ao fazer o que queremos na vida, pois o que tiver que acontecer,
acontecerá.
VOCAÇÃO
Todo ser tem uma determinada vocação. Tal vocação é a luz que ilumina sua
vida. O homem que despreza sua vocação é uma lâmpada apagada. O homem
que procura sinceramente seu verdadeiro objetivo na vida, é procurado pelo
objetivo. Quando o homem se concentra na busca do seu objetivo, nota que uma
luz começa a brilhar na confusão que existe dentro de si, luz essa chamada
revelação, inspiração, ou outro nome que se lhe queira dar. A desconfiança faz
o homem errar. A sinceridade conduz o homem diretamente ao objetivo.
NUR-ZAHUR
De acordo com o ponto de vista Sufi, o universo nada mais é que uma
manifestação do Ser Divino. Na terminologia Sufi essa manifestação divina
chama-se Nur-Zahur. O Deus Supremo, abandonando Sua existência de Ser
Único e Exclusivo, caminhou, digamos assim, o mais possível em direção à
superfície. Manifestou-se na superfície através de Sua atividade. Usando Sua
vontade impulsionadora dessa atividade, desceu do céu à terra. Partindo do
estado menos consciente de Sua existência, cego e ignorando Seu ser como
ocorre com a rocha, foi pouco a pouco despertando e tomando consciência das
coisas que O rodeavam na superfície. No Corão encontramos esta mesma idéia
de que o mundo foi criado das trevas. Gradativamente, à proporção que a
jornada se desenvolve, o Ser interior chega à condição de planta, flor e fruto,
depois ao estado de verme, germe e animal, até que Ele se manifesta como
homem, o Ashraf al-Makhluqát, o senhor deste universo e o controlador dos
céus. Alcança no homem a meta final do Seu destino, quando então Se realiza
como Ser integral, o que não havia realizado até então. É como está escrito na
Bíblia: “Deus fez o homem à sua imagem”.
Diz Hazrat Ali: “O segredo de Deus pode ser estudado na Sua natureza”. O
viajante que caminha a pé, via de regra, acende sua tocha quando chega a noite.
O mesmo acontece com o Viajante Celestial. Vendo que as trevas das esferas
inferiores do Seu caminho estão deprimindo-O, acende uma tocha. A luz dessa
tocha é chamada, no Corão, de Nur-o Mohammadi. Essa tocha guiou-O na
superfície, para que pudesse distinguir com clareza e encontrar o caminho de
volta. Aos olhos do homem que sabe, essa luz – Nur – é o verdadeiro Maomé.
Foi essa luz que emitiu seus raios através de todos os Mestres da humanidade
e é conhecida como Luz-Guia.
A função dos objetos luminosos é espalhar luz à volta. Todavia, um raio de luz
vindo diretamente desses objetos luminosos iluminará mais do que a luz
espalhada em toda a volta. Notamos a mesma coisa se observarmos a luz do
sol. As almas que estavam na zona do raio da Luz-Guia, intencionalmente ou
por acaso, foram as que o mundo conheceu como os escolhidos de Deus. Viram
Deus mais cedo, ouviram Deus mais depressa, estiveram mais perto de Deus
que as outras almas. Essas almas podem ser chamadas de eleitas de Deus,
como consta da “Canção em louvor da Alma do Santo”:
Desde a criação do homem todas as almas que estavam sob essa luz se
tornaram Mestres e vieram ao mundo umas após as outras, ligadas pelo elo de
uma corrente, que primeiramente nasce no mais íntimo do ser e depois se alarga
e se expande no universo.
A luz divina vem brilhando sobre os reinos mineral e vegetal. Neles podemos
também observar o fenômeno dessa luz, embora seu completo esplendor seja
visto somente no ser humano. Pode-se ver essa luz na inteligência evoluída e
pode ela ser observada no sistema cósmico e nos reinos mineral e vegetal. A luz
do sol brilha na lua e nos planetas. Cada estrela nada mais é que um reflexo
dessa mesma luz. Assim, todo sistema cósmico é iluminado apenas pelo sol.
No reino vegetal vemos uma pequena planta, um fruto ou uma flor espalhando
influência à sua volta, cobrindo depois de um certo tempo uma parte da floresta
com a mesma fruta doce ou com o mesmo perfume da flor.
O Corão diz que o homem foi escolhido para ser o Califa de todos os seres, o
que pode ser bem compreendido se atentarmos para o fato de que todos os
seres do mundo servem ao homem, são por ele controlados, e obedecem as
suas leis, O homem usa esses seres para o fim que deseja. Além disso, é o
homem que corretamente pode ser chamado de semente de Deus, pois só no
homem é que a inteligência se desenvolve na sua forma mais perfeita, permitindo
que ele não só aprecie as obras de Deus como O adore. Ao homem é dada a
capacidade de alcançar a auto-suficiência e a consciência toda-penetrante da
vida eterna de Deus. O homem realiza sua perfeição em Deus. Deus realiza sua
perfeição no homem.
Vemos a tendência de liderança em escala menor nos pais. Qualquer que seja
seu modo de vida, desejam que os filhos se beneficiem com suas experiências,
querem que os filhos vivam dignamente. Há muitas pessoas neste mundo cheio
de egoísmo que advertem os amigos sobre o perigo de se extraviarem. Numa
comunidade é comum vermos um líder que sacrifica a vida e seu bem-estar em
benefício de seus semelhantes unindo-os numa cadeia de amor e harmonia. A
mesma qualidade de auto-sacrifício, mas num grau mais elevado de evolução,
vamos encontrar nos Mestres da humanidade, que agem como representantes
do Governo Infinito e que são conhecidos no mundo como Mensageiros. Entre
eles existem almas santas de diversas hierarquias, chamadas pelos Sufis de
Wali, Ghauth, Qutb, Nabi e Rasul.
OS MESTRES
Cada um dos aspectos da vida de um indivíduo e da vida do mundo, tem seu
ciclo. Na vida do indivíduo a primeira parte corresponde do nascimento à morte,
a segunda parte da morte até a assimilação no Infinito. Os sub-ciclos da vida do
homem vão da infância à juventude, onde termina uma parte, e da juventude à
velhice, a conclusão. Há ainda outros ciclos inferiores: infância, meninice,
juventude, maturidade, senilidade. Existem ciclos de queda e elevação do
homem. Assim, existe um ciclo de vida na terra, o ciclo da criação do homem e
sua destruição, o ciclo do reinado das raças e das nações e o ciclo do tempo
como ano, mês, semana, dia e hora.
A natureza de cada um desses ciclos tem três aspectos: princípio, clímax e fim,
chamados de Uruj, Kemal e Zeval ou por exemplo a lua nova, a lua cheia e a
lua minguante; o nascer do sol, o zênite e o ocaso. Esses ciclos, sub-ciclos e
ciclos inferiores e os três aspectos de sua natureza são divididos e distinguidos
pela natureza e curso da luz. Assim como a luz do sol, da lua e dos planetas
representa a parte mais importante da vida na terra, quer individual quer
coletivamente, a luz do Espírito-Guia também divide o tempo em ciclos. Cada
ciclo está sob a influência de um determinado Mestre, que possui diversos
controladores sob suas ordens trabalhando como trabalha a hierarquia espiritual,
que controla os assuntos de todo o universo, principalmente os assuntos que
dizem respeito às condições espirituais internas do mundo. Os Mestres tem
vindo à terra em grande número desde a criação do homem. Apareceram com
nomes e formas diferentes, mas Deus estava disfarçado neles, pois Deus é o
único Mestre da eternidade.
Isso é bem ilustrado pela fábula de Ramachandra. Conta o Purana que certa vez
Sita, esposa de Ramachandra, estava como guardiã de Vashita Riti em
companhia de seus filhos. O filho mais moço Lahu foi visitar a cidade vizinha e
viu Kalanki, um belíssimo cavalo, galopando pela cidade sem cavaleiro. Quando
perguntou que cavalo era aquele, responderam-lhe que se tratava de um cavalo
que havia sido deixado solto e quem conseguisse agarrá-lo tornar-se-ia rei. O
jovem ficou tentado e correu atrás do cavalo para agarrá-lo. Correu durante muito
tempo e nada conseguiu. Sentiu-se frustrado por não ter conseguido agarrar o
cavalo. Quando chegava perto dele pensando que ia agarrá-lo, o cavalo
escapulia de suas mãos. Chegando ao desapontamento total, viu seu irmão que
vinha procurá-lo a pedido da mãe. Disse-lhe que não voltaria enquanto não
agarrasse o cavalo. Disse-lhe o irmão mais velho: “Não é essa a maneira de
pegar um cavalo. Ao invés de correr atrás do cavalo, corra ao encontro dele”.
Este conselho fez com que o irmão mais moço agarrasse imediatamente o
cavalo. Os dois irmãos foram à presença do pai Ramachandra, que os abraçou
e reconheceu a orientação de um e a obra do outro.
Para poder atrair a humanidade e pudesse ela receber a Mensagem que traziam,
era necessário que os Mestres reivindicassem para si uma posição excepcional.
Alguns desses Mestres eram chamados Avatar, encarnação de Brahma, como
Vishnu, Shiva, Rama e Krishna, enquanto que outros eram chamados de
Payghambar, profeta intercessor. Seus adeptos tinham discussões tolas a
respeito da grandeza de suas pretensões, sobre o que faziam e ensinavam, ou
sobre o modo de vida que levavam, admirando e odiando ao mesmo tempo, de
acordo com suas preferências pessoais.
O ESPÍRITO DA PROFECIA
Havia um homem que vivia com a mulher e os filhos numa pequena vila. Ouviu
uma voz que veio do fundo de sua alma. Renunciou à vida com a família e partiu
para a floresta, para uma montanha chamada Sinai, levando consigo o filho mais
velho, o único filho já crescido. As crianças que ficaram com a mãe e que tinham
uma vaga lembrança do pai, perguntavam às vezes onde ele estava, ansiosas
por vê-lo. A mãe contou-lhes que o pai havia partido há muito tempo e talvez já
tivesse morrido. Às vezes, para amenizar as saudades dos filhos, ela dizia:
“Talvez seu pai volte ou mande notícias, pois prometeu isso ao partir”. Muitas
vezes as crianças choravam pela ausência do pai, pelo seu silêncio. Quando
sentiam a falta dele, confortavam-se com a esperança “talvez ele volte para ficar
conosco como prometeu”.
As crianças perguntaram: “Como é possível terdes sido enviado pelo nosso pai
que partiu há tanto tempo e nunca nos enviou qualquer notícia?”. Respondeu o
irmão: “Se vós não podeis compreender, chamai vossa mãe que poderá
explicar”. Mas a mãe havia morrido, dela só ficara a sepultura é nada mais podia
explicar. O irmão voltou a falar: “Consultai vossos tutores. Talvez possam contar-
vos, recordando o passado ou pelo que ouviram de nossa mãe, as palavras que
nosso pai proferiu sobre a minha chegada”. Os tutores tinham se tornado
negligentes, indiferentes, cegos, perfeitamente felizes com a posse de toda
aquela fortuna, desfrutando do tesouro em ouro confiado à sua guarda, usando
seu poder incontestável e tendo completo domínio sobre as crianças. O primeiro
pensamento que os tutores tiveram ao saber que o irmão havia voltado foi de
aborrecimento, mas quando o viram ficaram bastante despreocupados, pois não
viram nele nenhum vestígio do que havia sido. Como notaram que ele não tinha
poder nem riqueza e estava completamente mudado na aparência, nas roupas
que usava, enfim, em tudo, não lhe deram a mínima importância. As crianças
perguntaram ao irmão: “Com que autoridade proclamais ser o filho do nosso pai
que há tanto tempo desapareceu e é bem provável que esteja no céu?”, ao que
ele respondeu: “Eu vos amo, ó filhos do meu pai, embora não possais me
reconhecer. Se não podeis me reconhecer como vosso irmão, tomeis minhas
palavras de ajuda como se fossem as palavras de vosso pai, fazendo o bem na
vida e evitando o mal, pois todo o trabalho tem uma recompensa”.
Os irmãos mais velhos, a quem a vida já havia endurecido, não lhe deram
atenção. Os menores eram ainda muito jovens para compreender, mas os do
meio, ao escutarem as palavras do irmão mais velho, seguiram-no
tranquilamente, conquistados pelo seu magnetismo e encantados com sua
personalidade, de onde jorrava o amor.
Os tutores se alarmaram ao pensar que as crianças confiadas à sua guarda
pudessem abandoná-los e pensaram: “Algum dia, mesmo os que ficaram,
poderão ficar encantados com a magia desse homem e o controle que temos
sobre eles com a posse da riqueza que Ihes pertence, nosso conforto nesta casa,
nossa importância e dignidade, tudo isso ficará diminuído perante seus olhos e,
assim, não podemos mais deixar as coisas como estão”. Resolveram matar o
homem. Incitaram os irmãos que haviam ficado dizendo-lhes que sentiam
piedade pelos queridos irmãos que haviam se extraviado e tinham abandonado
o lar e o conforto a que estavam habituados, fazendo-lhes ver que as
reivindicações do irmão mais velho não tinham nenhum fundamento.
Esse homem era exímio nadador. O mar não tinha poder para afogá-lo. Deu a
impressão de ter afundado, mas livrou as mãos e pés das cordas com que o
haviam amarrado, ergueu-se acima das águas e começou a nadar
magistralmente como havia aprendido. Partiu ao encontro do pai no deserto,
contou-lhe as experiências de sua longa jornada, demonstrou seu amor e desejo
de obedecer à vontade do pai e cumprir todos os seus mandamentos, ir
novamente ao encontro dos filhos de seu pai com redobrada força e poder, a fim
de conduzi-los ao ideal que era o único desejo do pai.
As crianças menores, porém, que não o conheciam, sentiam que havia entre
eles um parentesco sanguíneo, pois não só seus corações não estavam
empedernidos como suas idéias não estavam muito enraizadas. Amaram-no e
reconheceram-no. Sua experiência agora era muito maior que a experiência da
vez anterior, ocasião em que os outros irmãos, insuflados e influenciados pelos
tutores, haviam lutado e se rebelado contra tudo que havia feito. Apesar de toda
resistência e sofrimento, guiou os filhos do seu pai, tantos quantos lhe foi
possível guiar, até que o nome do pai fosse novamente glorificado e seus irmãos,
direta ou indiretamente, fossem conduzidos através das complicações do mundo
e dos segredos do céu.
Quando as vibrações mentais fluem para o plano astral sem uma direção
consciente, chamam-se Imaginação. Quando têm uma direção consciente,
chamam-se Pensamento. Quando a imaginação trabalha durante o sono,
chama-se Sonho.
ANIQUILAMENTO (Fanà) é a mesma coisa que perder o falso ego (Nafs), o que
novamente culmina no que se chama Vida Eterna Baqà.
ALIF (primeira letra do alfabeto árabe, que se escreve como um traço vertical).
Os pais fizeram pelo filho tudo que puderam. Colocaram-no sob a direção de
vários professores, mas não fez nenhum progresso. Ficaram desapontados. Por
fim o menino fugiu de casa para não ser um fardo para a família. Foi viver na
floresta e passou a ver a manifestação do Alif na floresta; havia tomado a forma
da grama, da folha, da árvore, do galho, da fruta e da flor. O mesmo Alif
manifestava-se como montanha e como morro, como pedra e como rocha.
Presenciou o mesmo Alif como germe, pássaro e animais. Viu o Alif em si próprio
e nos outros. Pensava em um, via um, sentia um, realizava um. Nada mais que
isso.
Depois de ter aprendido bem essa lição voltou para cumprimentar seu velho
mestre, que o havia expulsado da escola. O mestre, absorvido na visão da
multiplicidade das formas, já havia esquecido aquele aluno, mas Bullah Shah
não podia esquecer seu velho professor, que lhe havia ensinado a primeira e a
mais inspirada das lições, que tinha enchido quase toda a sua vida. Curvou-se
humildemente perante o mestre e lhe disse: “Preparei a lição que vós tão
bondosamente me ensinastes. Podereis ensinar-me mais alguma coisa que
deva ser aprendida?” O professor achou graça e pensou: “Depois de tanto tempo
este simplório ainda se lembra de mim”. Bullah Shah pediu permissão para
escrever a lição e o professor zombeteiramente respondeu: “Escreva-a naquela
parede”. Bullah Shah escreveu o sinal do Alif na parede e ela se partiu ao meio.
O professor ficou atônito com o milagre assombroso e disse: “Tu és meu mestre.
O que aprendeste com a letra Alif eu nunca consegui aprender com todo meu
saber”. E Bullah Shah cantou uma canção cuja letra é a seguinte:
Há versos que falam do ideal acima dos nomes e formas. Os que estão no
estágio Fanà-fi-Allah são os que se integram nesses versos. Têm consciência
do seu ideal acima dos nomes e das formas, das qualidades e dos méritos, ideal
esse que não pode ser confinado no conhecimento, porque está acima de todas
as limitações. Muitas vezes o advento do ideal é expresso em versos
descrevendo a doçura da voz, a beleza do semblante, a graça dos movimentos,
o louvor, os méritos, as qualidades e os sedutores caminhos do ideal. Há
também versos que falam do amor do que ama, da sua agonia com a separação,
sua prudência na presença da bem-amada, sua humildade, seus ciúmes e
rivalidades, todas as vicissitudes naturais de um amante. É uma combinação de
poesia, música e arte. Não é uma simples canção. Cria uma visão total do reino
da música na mente do Sufi, que é capaz de visualizá-la em ambientes positivos.
Em outras palavras, o Sufi com o auxílio da música cria na imaginação sua visão
ideal.
Peregrinação é a mesma coisa que uma viagem comum. A única diferença está
no objetivo. Quando se viaja, a finalidade é mundana, enquanto que a
peregrinação é feita com um objetivo sagrado. Algumas vezes ao ouvir música,
o Sufi fica profundamente comovido, outras vezes as lágrimas dão vazão aos
seus sentimentos e muitas vezes todo o seu ser, cheio de música e alegria,
expressa-se em movimentos que, na terminologia Sufi, chama-se Raqs.
O homem que ama a Deus, cujo coração está cheio de devoção, é o que pode
se comunicar com Deus, não o que faz um esforço intelectual para analisar Deus.
Em outras palavras, o que ama a Deus é o que pode se comunicar com Ele, não
o que quer estudar a natureza de Deus. O eu e o tu dividem e, não obstante, o
eu e o tu constituem as condições necessárias para o amor. Embora o eu e o tu
dividam a vida em duas, o amor une os dois pela corrente que se estabelece
entre eles. Chamamos essa corrente de comunhão. Ela flui entre o homem e
Deus. Para responder às perguntas: “O que é Deus? O que é homem?” podemos
dizer que a alma, consciente de sua existência limitada é o homem. A alma
refletida pela visão do ilimitado é Deus. Em palavras mais simples: o homem
consciente de si mesmo é homem e o homem consciente do seu ideal mais
elevado é Deus. Pela comunhão entre os dois, com o tempo ambos passam a
ser um só, pois na realidade eles já são um. Entretanto, a alegria da comunhão
é ainda muito maior do que a alegria da união, pois toda a alegria da vida reside
no pensamento do eu e do tu.
Quando este ideal é transportado para um plano ainda mais elevado, penetra no
real e a verdadeira luz manifesta-se ao homem piedoso. O que já era um crente
se transforma no homem que atingiu a realização de Deus.
TERCEIRA PARTE
Os Sufis
I
O que é um Sufi? Estritamente falando, todo aquele que procura a Verdade
eterna é realmente um Sufi, quer tenha esse nome ou não. Como, porém, o
homem procura a Verdade de acordo com seu ponto de vista, frequentemente
acha difícil acreditar que os outros, tendo pontos de vista diferentes, estão
procurando a mesma Verdade e cheguem a ela embora em graus diferentes.
Este é realmente o ponto de vista do Sufi, diferente dos outros somente pelos
constantes esforços que faz para compreender que cada um, seguindo seu
próprio gênero de vida, ajusta-se ao esquema geral e por fim alcança não só seu
próprio objetivo, como o objetivo final de toda a humanidade.
Assim, cada um pode ser chamado de Sufi, quer esteja procurando compreender
a vida quer esteja disposto a acreditar que todos os demais seres humanos
também acharão e tocarão o mesmo ideal. Quando uma pessoa opõe-se ou
impede a expressão de um grande ideal e está pouco disposta a acreditar que
se unirá aos seus semelhantes, logo que tiver penetrado profunda e
suficientemente na verdadeira alma, está impedindo a si mesma realizar o
ilimitado. Todas as crenças são simplesmente graus de clareza da visão. Todas
fazem parte do mesmo oceano da verdade. Quanto mais for isso compreendido,
mais fácil será ver a verdadeira relação existente entre todas as crenças e mais
vasta será nossa visão de um e único grande oceano.
Qual a posição do Sufi em relação a Cristo? A pergunta feita pelo próprio Jesus:
“O que pensais vós de Cristo?” por si só fornece a resposta. A ênfase está no
“vós”. Há tantos pensamentos sobre Cristo quantas são as pessoas que os
expressam. O Sufi não se limita a expressar esses pensamentos. Cristo é o
nome do ideal do Sufi ou Rasul, como é chamado em Árabe. Tudo que está
centralizado no Rasul está centralizado no Cristo. As duas concepções são uma
só. Todos os nomes e funções que serviram para criar uma concepção do Cristo,
do Profeta, do Sacerdote, do Rei, do Salvador, do Noivo, do Amado, são
compreendidos pelo Sufi. Pela constante meditação o Sufi realiza todos esses
aspectos do Ser único e mais além, Allah ou Deus.
II
Sobre a iniciação na Ordem Sufi, a primeira tendência do homem é querer saber
algo diferente do que é ensinado abertamente pelo mundo. Sua vontade é
procurar saber alguma coisa que não sabe bem o que é. Sabe que os opostos,
o bem e o mal, o certo e o errado, o amigo e o inimigo, não estão separados uns
dos outros como em geral se pensa.
Sente que seu coração está mais predisposto à compaixão que nunca. Seu
senso de justiça deseja julgar primeiro a si próprio antes de julgar os outros. Tudo
isso prova que o homem deve procurar um guia que o conduza através desses
caminhos desconhecidos. Principalmente depois de ter lido ou ouvido falar algo
sobre Sufismo, pensa que já é um verdadeiro Sufi, que está sintonizado com o
círculo Sufi. Sente-se então atraído para o espírito do Mestre, de cujas mãos
deve receber a iniciação. Depois de estudar os livros publicados pelo Movimento
Sufi, ou depois de falar com o Murshid (Mestre), surge nele o sentimento de que
a Mensagem é autêntica e verdadeira.
O passo seguinte é decidir o seguinte: “se devo ter um guia, quem será ele?”
Não há um carimbo para identificar a espiritualidade, nem um selo de perfeição
estampado na testa de ninguém permitindo que se possa dizer: “Esta é a pessoa
de cujas mãos receberei iniciação”. Para constatar o mérito não podem ser
levadas em consideração nem a aparência nem as palavras. A única coisa em
que se deve confiar é na atração que a alma da pessoa exerce sobre nosso
coração. Mesmo assim é bom se convencer se é o mal atraindo a maldade que
existe dentro da pessoa, ou se é Deus atraindo o que existe de bom dentro dela.
Há três maneiras de confiar: a primeira é não confiar em alguém até que com o
tempo esse alguém prove ser digno de confiança. Os que confiam desta maneira
não tiram nenhum proveito no caminho espiritual, porque continuarão agindo
como espiões, experimentando e testando seu Mestre com os olhos focalizados
para baixo. Assim fazendo, conseguem ver apenas o ser imperfeito do Mestre e
jamais poderão ver a beleza do seu ser perfeito, que está acima e além dos
limites de sua visão.
Para ser um iniciado na Ordem Sufi, pois, é preciso ter boa vontade para
concordar com seus ensinamentos e objetivos, boa vontade para deixar de dar
importância às diferenças existentes nas várias crenças do mundo e ver em
todos os Mestres a personificação do Espírito Divino. É preciso que o candidato
não esteja seguindo outro curso de treinamento espiritual. Se já segue um
treinamento espiritual, porque ir a um outro Mestre? Seria o mesmo que navegar
em dois barcos com um pé em cada barco. Cada barco segue uma rota diferente
e embora os barcos se encontrem no fim no mesmo porto, durante o trajeto o
navegante se afoga. Ninguém deve procurar a orientação de dois Mestres ao
mesmo tempo, a menos que haja falta de paciência da parte de um ou falta de
confiança da parte do outro, devendo ainda assim ficar com o primeiro.
Assim, pois, uma pessoa não pode ser iniciada por amor à curiosidade, para
saber o que existe numa Ordem secreta. Tal pessoa naturalmente não poderá
ver o que deseja, pois só os olhos da sinceridade podem ver. Os olhos da
curiosidade são cobertos com uma catarata de dúvidas e, portanto, já estão
cegos. Não se é iniciado também com a finalidade de obter vantagens materiais
nas ocupações. Iniciação não é um processo científico, não é invenção de um
engenheiro ou um empreendimento comercial, nem é coisa que possa ser
roubada ou algo a ser comprado. É revelação que renasce a cada instante, que
não pode jamais ser roubada por um ladrão. O único processo para se auferir
lucro é usar de retidão. Quando a luz está encoberta por uma camada de mato,
nem mesmo o Jam (o copo de bebida) do mistério, roubado do Jamsheyd, de
nada servirá senão para ser usado como um vaso para guardar terra.
Não se procura ser iniciado para alcançar a felicidade. É verdade que ninguém
obtém sabedoria sem tirar dela uma certa vantagem, pois é muito mais vantajoso
ser sábio que ignorante, mas não é para isso que se empreende a jornada.
Todavia, à proporção que o Sufi progride no caminho espiritual, sente uma paz
maravilhosa que, inevitavelmente, vem da presença constante de Deus.
Muitas pessoas que professam crenças e fés diferentes, têm escrito sobre a
prática da presença de Deus e todos falaram da felicidade que tiveram na Sua
presença. Assim, não será surpresa se também o Sufi, se quiser falar nisso, dê
seu testemunho de gozar de idêntica felicidade. O Sufi não reivindica para si
maior felicidade que para seus semelhantes, porque é um ser humano e está
sujeito a todas as fraquezas da espécie humana. No entanto, os outros podem
avaliar sua felicidade melhor que suas palavras poderiam expressar. A felicidade
experimentada com a presença de Deus não tem paralelo no mundo, por mais
precioso que seja o que possuímos. Todos que experimentam tal felicidade
afirmam a mesma coisa.
Quem tem princípios muito enraizados e não quer abandoná-los não deve
receber iniciação. Deve descobrir que os alicerces que construiu não
correspondem ao edifício a ser agora erigido sobre esses alicerces. Esse tipo de
pessoa é a que gosta de ir de um mestre a outro, de um método a outro, e nunca
será capaz de obter aquilo que só pode ser obtido pela constância. Os que
querem ensinar enquanto estão aprendendo, não devem se colocar no lugar de
discípulos, devem vir como mestres.
A seguinte pergunta pode ser feita: “Por que o segredo sobre esses
ensinamentos? Se são verdadeiros, por que não divulgá-los? Tal atitude pode
dar a impressão de que o segredo está sujeito a censuras”. A resposta,
entretanto, é multo simples: há necessidade de se manter um certo segredo,
pois, se não fosse assim, algumas concepções Sufi poderiam facilmente ser mal
compreendidas e mal-usadas ao serem transmitidas ao público em geral. O
discípulo zeloso não falará nelas sem levar na devida consideração o auditório.
Outro ponto é que, quando um mestre não depende absolutamente de seus
discípulos, prefere selecioná-los. Se alguém quiser aprender com o melhor
professor de violino, procurará um virtuose famoso, mas talvez o violinista não
se interesse em perder tempo com tal aluno. Talvez se interessasse se tivesse
certeza que o aluno iria cumprir fielmente tudo que lhe fosse recomendado e
chegasse ao ponto em que chegou o próprio professor. Qualquer instrução que
transmitisse ao aluno deveria naturalmente ser mantida em segredo. Seria um
assunto pessoal. O aluno poderia transmiti-la aos seus futuros alunos mais tarde,
mas não poderia mandar imprimi-la e fazê-la circular indiscriminadamente. O
segredo nada mais é que isso. Pode-se também dizer que cada escola, ao dar
uma instrução especial e individual ao iniciado, confia em que haverá
consideração da parte do que aprende, em retribuição à pessoa que o ensinou.
Todos os ensinamentos podem ser mal interpretados e desvirtuados, dando a
impressão de serem ridículos. Fazer isso com os ensinamentos Sufis, consciente
ou inadvertidamente, não ajudará o discípulo, absolutamente. Um determinado
remédio pode ser bom para um doente em certa ocasião, mas não quer dizer
que deva ser usado por todos os doentes. Não seria vantajoso para ninguém se
tal remédio fosse aconselhado indiscriminadamente. Se houvesse necessidade
de dizer a composição desse remédio, o médico não deixaria de dar tal
informação.
Como é natural, muitos perguntam: “Por que razão os que estão acordados não
despertam do sono da confusão os povos da terra?” A resposta é a seguinte:
não é aconselhável que crianças pequeninas, cuja felicidade é cochilar, sejam
acordadas. O crescimento delas depende do sono. Se ficarem muito tempo
acordadas adoecem e não serão tão úteis no lidar com os assuntos da vida
quando crescerem. Quando pequeninas as crianças precisam de mais sono e
devem dormir. Tal é a natureza das almas imaturas: são crianças, embora
estejam em corpos de velhos. Suas fantasias, alegrias e encantos relacionam-
se com coisas sem importância na vida, assim como a vida das crianças é
absorvida por doces e brinquedos. Portanto, os que estão acordados caminham
vagarosa e suavemente, com medo que seus passos possam perturbar o cochilo
dos que dormem. Acordam somente, enquanto caminham, os que encontram
agitando-se no leito. A estes, os viajantes do caminho espiritual estendem a mão
silenciosamente. É por este motivo que o caminho espiritual é chamado de
caminho místico. Não é indelicado acordar alguns e deixar muitos adormecidos,
mas é grande bondade deixar cochilar aqueles que precisam dormir.
Enquanto for um discípulo, deve manter o hábito da disciplina, o que faz do aluno
o discípulo ideal. A auto-negação é a principal religião. Só é aprendida pela
disciplina. É tão necessária no caminho do discípulo, como é para o soldado no
campo de batalha. Quando não há disciplina, o discípulo resiste justamente ao
que deseja aniquilar ao receber iniciação. “Ser mestre está no servir. Somente o
que serve é que pode se tornar mestre”.
Deve também o discípulo ter uma atitude respeitosa para com seu Mestre, não
com o intuito de elevar a dignidade do Mestre aos seus próprios olhos ou aos
olhos dos outros. O intuito é aprender a ter uma atitude respeitosa para com
quem a merece. O discípulo então pode desenvolver, em sua natureza, o mesmo
respeito por todos, como uma garotinha que aprende a lição da maternidade ao
brincar com bonecas. Respeitar os outros significa tirar de si uma excessiva
vaidade, vaidade essa que constitui um véu entre o homem e Deus.
III
É o Sufismo uma religião? Deve ter ficado claro, pela explicação anterior, que a
religião do Sufi não se separa das religiões existentes no mundo. Os povos
sempre discutiram em vão sobre nomes e vidas de seus Salvadores, ao invés
de se unirem na Verdade que Ihes é ensinada. Vestígios da Verdade podem ser
encontrados em todas as religiões, mesmo se uma Comunidade chamar a outra
de pagã, infiel ou bárbara. Há indivíduos que alegam que as escrituras de sua
religião são as únicas verdadeiras, o lugar de adoração de seu povo a única
morada de Deus. Sufismo é um nome dado a uma certa filosofia por aqueles que
não aceitam a filosofia. Não pode, pois, ser chamado de religião. Encerra uma
religião, mas não é propriamente uma religião. Sufismo é religião; se alguém
quiser aprender religião, mas está acima da religião, pois é a luz, o sustento de
todas as almas e eleva o ser mortal à imortalidade.
É Sufismo uma crença? O que se quer dizer com a palavra crença? Faz parte
da natureza da mente humana crer. Descrer acontece depois. Nenhum
descrente nasceu incrédulo. Se uma alma não tivesse crença desde que nasceu,
jamais teria conseguido aprender a falar. Todo conhecimento do homem foi
adquirido através da crença. Quando a crença se fortalece pelo conhecimento,
o homem começa a descrer das coisas que não se ajustam ao seu conhecimento
e das coisas que não se ajustam ao seu conhecimento e das coisas que sua
razão não pode justificar. Deixa então de acreditar nas coisas em que acreditou
um dia. Um descrente é aquele que trocou sua crença pela descrença. A
descrença frequentemente obscurece a alma, mas muitas vezes a ilumina. Há
um ditado Persa: “Até que a crença se transforme em descrença e a descrença
novamente se transforme em crença, um homem não é um verdadeiro
Muçulmano. Quando, porém, a descrença se transforma num muro e se antepõe
a uma maior penetração da mente na vida, aí então a descrença escurece a
alma, pois não há mais oportunidade para um maior progresso. O orgulho e a
satisfação do homem pelo que sabe limita o campo de sua visão”.
Um constante por quê? ergue-se na mente do homem inteligente. Quando esse
por quê? recebe uma resposta da vida que o satisfaça, o homem progride cada
vez mais e penetra em todos os diferentes planos da vida. Quando, porém, esse
por quê? não recebe uma resposta satisfatória da vida, surgem a dúvida, a
consternação e o descontentamento, que resultam em confusão, perturbação e
desespero. Às vezes é pior a crença que a descrença. Isto acontece quando o
homem, escudado em sua fé, impede seu próprio progresso, não permitindo que
sua mente vá além da pesquisa da vida, recusando orientação e conselhos dos
outros porque só deseja preservar sua crença. É assim que uma crença
preservada como uma virtude, transforma-se no maior dos pecados. Pela prática
e com o tempo tanto a crença como a descrença se transformam em tendências
naturais. O indivíduo propenso à crença cria o hábito de acreditar em todas as
coisas e em tudo. O descrente, com o tempo, tende a descrer de tudo, o certo e
o errado. Temperamento otimista é o da pessoa que crê. O pessimismo, via de
regra, faz parte da natureza do incrédulo. Os Profetas sempre prometeram uma
recompensa aos que crêem e ameaçaram os incrédulos com um castigo, porque
só na vida de um crente há possibilidade de iluminação espiritual. O descrente
cobre a alma com sua própria descrença.
“Verdade é uma coisa em que não se pode falar plenamente. Aquilo em que se
pode falar não é precisamente a Verdade”.
IV
Com respeito à atitude do Sufi sobre o certo e o errado – concepções criadas
pelo homem – pode-se perguntar se o que fazemos tem importância.
Por que existe tanto sofrimento na vida quando Deus é descrito como
misericordioso? Se Deus fosse um ser separado do homem e se Ele se
regozijasse com o sofrimento humano, poderia ser culpado mas, na
compreensão do Sufi, Deus é o sofredor e é o sofrimento e no entanto está acima
de todos os sofrimentos. Isso pode ser compreendido não apenas acreditando
em Deus, mas conhecendo-O. Suponhamos que suas mãos deixassem cair um
enorme peso nos seus pés e os ferisse. Suas mãos seriam culpadas? Não, pois
elas compartilhariam da dor que você sentiria nos pés. Embora seus pés é que
pareceriam estar machucados, todo seu ser também sofreria. Na realidade todo
o seu ser estaria ferido e as mãos compartilhariam da dor dos pés. Assim
acontece com Deus. Nossa verdadeira vida é Deus e Ele não está isento do
sentimento de alegria ou de dor que nós temos. Na verdade Deus sente o que
imaginamos sentir. Não obstante, o Ser Perfeito de Deus coloca-O acima das
alegrias e sofrimentos da terra. Nossa imperfeição nos impõe limitações e,
portanto, ficamos sujeitos a alegrias e sofrimentos, por menor que sejam.
Podemos ainda dizer que o pecado e a virtude são padrões do bem e do mal,
criados pelos Mestres das religiões. Os padrões da moral mantêm a ordem no
mundo. A destruição da ordem é a causa do declínio da religião. É a responsável
pelas guerras, fome e catástrofes. A fim de manter a ordem, Mensageiros vêm à
terra de tempos em tempos, controladores espirituais são enviados para diversos
pontos do universo.
Por esta razão é que os Mestres da humanidade ensinam ao homem a fé, como
primeira lição da religião. Os que são perdoados pelos pecados da vida inteira,
os que sempre acreditaram que a qualquer momento a morte poderia chegar e
se abstiverem de fazer qualquer coisa que não estivesse de acordo com o prazer
do Senhor, mas que, devido a imperfeição humana, falharam em agir
corretamente – foram esses os que mais ardentemente pediram o perdão de
Deus.
A LINGUAGEM CÓSMICA
sumário
A LINGUAGEM CÓSMICA
I – Vozes
II – Vozes (continuação)
III – Impressões
VI – A Vida do Pensamento
VIII – Memória
IX – Vontade
X – Razão
XI – O Ego
XIII – Intuição
XIV – Inspiração
CAPÍTULO I
Das Vozes
Cada cidade tem uma voz particular, ou por outra, a voz nos fala de quem morou
na cidade, como vivia o povo e o seu estilo de vida. A voz refere-se ao grau de
evolução dos moradores, narra seus feitos, fala do resultado do seu
comportamento. As pessoas percebem as vibrações das casas mal-
assombradas unicamente devido a sua atmosfera agitada e tensa. Essas
vibrações muitas vezes são sentidas distintamente. Não há cidade ou lugar
algum que não tenha adquirido sua própria voz.
Estamos nos referindo à voz que ficou gravada num determinado lugar, de tal
forma que se transformou num disco no qual foi gravado o que lhe foi transmitido,
consciente ou inconscientemente. Há uma voz que predomina onde muitas
pessoas viveram, mais distinta que as outras vozes. Do mesmo modo que
podemos sentir o que um compositor quer transmitir através da música que
compôs, tocada por diversos instrumentos, as diferentes vozes emitidas em
conjunto também produzem um efeito. Esse efeito, para quem pode ouvir as
vozes em conjunto, assemelha-se ao som de uma sinfonia.
Quando ouvimos essa voz numa cidade, numa nova metrópole, passamos a ter
um pensamento coletivo especial. É uma espécie de voz do passado e voz do
presente, a voz de todos numa só voz, que produz um efeito peculiar, muito
especial. Nessa voz está toda a tradição. Quem pode ouvir claramente essa voz,
sente como se a cidade estivesse contando seu passado e seu presente.
O pensamento das pessoas que até hoje visitam o túmulo de Chishti não
contribuiu para manter a atmosfera do lugar, o pensamento delas é que foi
adicionado à atmosfera local, como acontece com os instrumentos: havendo
uma flauta, o som do clarinete, da trombeta ou do trombone é adicionado ao som
da flauta, contribuindo para o volume do som, mas há sempre um instrumento
que se destaca, que toca a primeira parte. É a voz principal que se ergue como
um sopro. As outras vozes, atraídas pela voz principal, criam ao redor da voz
principal uma forma, mas o sopro permanece como vida. A forma pode ser
composta ou decomposta, mas o sopro permanece como vida.
O lugar onde alguém costuma sentar-se e meditar sobre qualquer assunto, capta
seu pensamento e registra o que foi falado, de forma que nenhum homem pode
esconder seu pensamento ou sentimento, que ficam registrados até mesmo no
lugar em que estava enquanto pensava. As pessoas sensíveis captam quando
se sentam naquele lugar. Algumas vezes o efeito é inteiramente contrário. É
quando alguém senta-se num lugar determinado e no momento que se senta,
sente ou capta um pensamento que lhe é totalmente estranho, um sentimento
que não lhe pertence. No lugar em que se sentou existia aquele pensamento,
aquele sentimento, a vibrar. Assim, como um assento pode conservar as
vibrações do pensamento por muito mais tempo que a vida da pessoa que
pensou ou falou, também fica uma influência no lugar em que nos sentamos, em
que moramos, onde pensamos e sentimos, onde tivemos alegrias e onde
tivemos tristezas e isso continua por tempo incomparavelmente mais longo que
a vida de quem falou ou pensou.
Dizem que sempre brotam rosas na sepultura do Mestre Sufi Sáadi ou Sa’di. Seu
túmulo nunca está sem rosas, o que não é difícil acreditar porque Sáadi escreveu
o livro “O Jardim das Rosas” pensando na Beleza. Embora o corpo dele não mais
exista, a beleza do seu pensamento continua tão viva como na época em que a
expressou. Não será surpresa alguma se, ainda por muitos séculos, as rosas
continuarem a florir no lugar onde Sáadi foi sepultado.
Muitas vezes nos admiramos ao saber que os Hindus, dotados de uma forte
mentalidade filosófica e que penetram profundamente no misticismo, acreditam
num rio sagrado. Acreditam realmente no rio sagrado, mas no sentido simbólico.
Um rio sagrado tem outra significação: os grandes Mahatmas, que vivem no
topo do Himalaia, onde nasce a torrente que forma os rios Ganges e Jumna, rios
esses que tomam direções diferentes até se juntarem novamente e formarem
um só rio – sabem realmente o que representa esse fenômeno tão profundo no
seu simbolismo e verdadeiro significado. No seu simbolismo, vemos que os dois
rios começam como um só e se separam depois, formando dois rios. Depois de
separados milhares de milhas, são atraídos um para o outro. Juntam-se
novamente num lugar chamado Sangam, em Allahabad, lugar de peregrinação.
Isso mostra, em sua interpretação e em seu verdadeiro significado, o ideal de
toda a manifestação: a manifestação é una no início, dual depois e termina numa
só, na unidade. Há mais: os pensamentos dos grandes Mahatmas, fluindo com
a água, misturam-se com a corrente viva do Ganges, desaguando no mundo. A
água transmite as vibrações desses grandes Seres, fala com uma voz que possui
forças, que desperta, que traz bênçãos, pureza e unidade, para quem puder ouvi-
la.
Os que não têm consciência dessas bênçãos são também abençoados quando
se banham no rio, porque o rio não tem somente água, contém pensamentos da
mais alta vitalidade, pensamentos que têm força e vida. Os que compreendem,
conhecem seu segredo. Muitos poemas em Sânscrito falam dos videntes que
ouviam, nas ondas do Ganges e do Jumna, a voz das almas evoluídas e sentiam
sua atmosfera, como se fosse uma corrente da respiração desses seres
espiritualizados, transmitida através da água.
Em Meca existe um tanque cuja água foi bebida pelos Profetas de todos os
tempos. Esse tanque é chamado Zemzem. Não bebiam apenas a água do
tanque, tiravam dela o que lá havia sido colocado. Por sua vez, deixavam na
água tudo que tinham para lhe dar. Atualmente os peregrinos que visitam esse
tanque recebem a água como bênção.
Há uma história no Oriente sobre cinco irmãos que decidiram fazer uma viagem.
Cada um era dotado de certo poder. Ao chegarem a um determinado lugar,
constataram que haviam perdido seu poder. Ficaram confusos, desapontados.
Procuraram saber o motivo de tal acontecimento, até que o mais sábio, usando
sua força de concentração, achou finalmente o motivo: era efeito do lugar. O
lugar havia perdido a vida, era um lugar morto. Todos que ali chegavam sentiam
como se não tivessem mais vida. A vida interior fugia-Ihes. Vemos o mesmo
acontecer com um solo usado milhares de anos e que perdeu a força, a vitalidade
da terra. Se o solo pode perder sua vitalidade exterior, internamente a vitalidade
– a respiração do solo – pode também desaparecer. Muitas vezes sentimo-nos
mais inspirados num determinado lugar e noutro sentimo-nos deprimidos.
Sentimo-nos confusos num lugar e noutros estúpidos. Nada encontramos que
nos possa interessar e nada, nos atrai. Pensamos que talvez seja efeito do
tempo, mas há lugares cuja natureza é bela exteriormente, possuem clima
admirável e, no entanto, não nos sentimos inspirados. Se um artista nasceu num
país sem vida, seu talento não se desenvolverá ali, porque não tem com que se
nutrir. Seu impulso artístico fica paralisado. Até uma planta não se basta a si
mesma: precisa de ar, sol e água. Um Profeta, entretanto, pode reviver um solo
morto apenas passando por ele.
Séculos atrás Jelal-ud-Din Rumi disse que o fogo, a água, a terra e o ar são
apenas coisas para o homem, mas para Deus são seres vivos que trabalham
sob Seu comando. O significado das palavras de Rumi é que todos os objetos e
todos os lugares são como discos de vitrola: o que neles foi gravado é
reproduzido e ouvido quer pela alma quer pela mente do homem, de acordo com
seu grau de evolução.
O que uma pessoa usa pode ter um efeito sobre sua saúde, estado mental,
sentimentos. Se usa uma jóia, talvez haja nela uma voz falando há milhares de
anos. Quanto mais antiga a jóia, mais tradição possui. Fala por si. Pessoas
intuitivas, de grande sensibilidade e sentimento, podem receber
conscientemente as vibrações das pedras antigas. Essas pedras parecem que
falam com tais pessoas. Aliás, tudo que se dá a alguém, em forma de alimento,
doce, bebida, frutas ou flores, transmite também um pensamento e um
sentimento, produzindo efeitos. Entre os Sufis do Oriente existe o hábito de dar
um pedaço de pano, uma flor, ou uma fruta, alguns grãos de milho. Atrás desse
hábito há um significado: não é o ato de dar o objeto que é importante, o
importante é o que se transmite ao objeto.
Sabemos muito pouco quando afirmamos “Creio naquilo que vejo”. Seria
verdadeiramente maravilhoso se todos pudessem saber como trabalha a
influência, como falam o pensamento e o sentimento e como disso partilham os
objetos. Como acontece com o pensamento e o sentimento, transmite-se vida e
influência através de um objeto.
CAPÍTULO III
Impressões
Notamos o mesmo na atmosfera que rodeia as árvores nas florestas, nos jardins.
A atmosfera expressa o passado. Sentimos as impressões ali deixadas por
aqueles que se sentaram debaixo das árvores. Frequentemente ouve-se falar de
um povo que é supersticioso com uma árvore que chamam de mal-assombrada.
Isso acontece mais no Oriente. Singelamente falando, há uma vibração criada,
consciente ou inconscientemente, por alguém que lá viveu sob a proteção da
árvore e que meditou sobre determinado pensamento e sentimento. A árvore se
apossou dessas impressões e passou a expressá-las. Talvez isso tenha sido
esquecido, mas a árvore continua repetindo o que lhe foi transmitido, pois a
árvore, mais facilmente que uma rocha, pode exprimir a voz que penetrou no seu
interior. Nos países tropicais onde, nos tempos antigos, as pessoas viajavam a
pé através de bosques e florestas, as árvores captaram tudo que o povo pensava
e sentia. Os que têm abertas suas faculdades intuitivas, podem escutar o que
ficou gravado nesses lugares muito mais claramente do que se ouvissem um ser
vivo falando.
Isso nos serve de alerta e nos conduz a um outro campo do pensamento: o efeito
que uma associação pode criar numa pessoa, isto é, associação com uma
pessoa triste, feliz, tola ou sábia, associação com uma pessoa possuidora de
uma mente nobre ou com uma pessoa de condição inferior. O associado
compartilha com a pessoa com a qual se associa e vibra com aquilo com que
compartilha. Vemos isso e quase podemos ouvir isso falado na atmosfera da
pessoa, na sua expressão, modo de falar, enfim, em todas as suas ações. Por
mais feliz que seja uma pessoa, se associar-se com uma pessoa infeliz terá uma
linha melódica de infelicidade. Tal melodia continua, canta a sua canção
separada de toda a sinfonia, tem seu tom especial, pode ser sempre distinguida.
Um sábio que tenha se associado a um tolo, entra noutra faixa de vibração. É
uma melodia inteiramente diferente, numa clave diferente e seu tom não é o
mesmo do canto original. Quem se associa a uma pessoa de mente nobre de
alta qualidade, a despeito de todas as deficiências, pode distinguir uma linha
melódica que se destaca, distintamente audível para os corações que sabem
escutar.
Que dizer, pois, de vagões, carros e navios usados com risco de vidas humanas?
Por quem são feitos? Qual seria o estado mental dos construtores do navio
Titanic que soçobrou ao ser inaugurado? Será que havia alguém com espírito
pacificador ensinando-os a manter um certo ritmo mental enquanto o navio era
construído?
Tudo que é fabricado tem uma influência mágica. Se é feito com um pensamento
inteiramente em desacordo com o que é exigido, pode trazer perigo ao que está
sendo fabricado. Por exemplo: um navio, trem, vagão ou automóvel. Muitas
vezes, sem razão aparente, encontramos um bote em perigo ou um objeto que
se quebra sem justificativa plausível. Quando estava sendo fabricado houve um
grande pensamento de destruição. Esse pensamento continuará atuando e
muitas vezes mais forte e vivo que o próprio objeto. Dá-se o mesmo na
construção de uma casa. Os pensamentos transmitidos a ela pela pessoa que a
construiu ou pelos operários têm grande influência.
Uma obra de arte pode ser bela à vista, pode ter sido feita com grande esmero,
mas o que representa é a mente do artista que a criou. O efeito que a obra causa
não é uma sugestão exterior, é o que ela clama em altos brados, isto é, é a voz
emitida pelo coração do artista. Em cada quadro, em cada estátua, em cada obra
de arte, podemos constatar este fato: há uma voz oculta a dizer continuamente
para que fim foi criada a obra de arte.
Muitas vezes o artista não tem noção do que está criando e segue a própria
imaginação. Pode até trabalhar em desfavor de sua obra de arte, criando um
efeito que não desejou nem para si nem para a pessoa a quem se destina o
trabalho. Fui visitar certa vez um templo. Não o achei belo. Era porém uma obra
admirável, única no gênero. Tão depressa comecei a penetrar no esquema de
cores das pinturas, nas características proeminentes daquele templo, fiquei
surpreendido ao pensar como era possível que ele tivesse sobrevivido por tanto
tempo. Há muito deveria ter deixado de existir. Algum tempo depois soube que
o templo tinha sido destruído. Veio-me o seguinte pensamento: o construtor do
templo estava tão absorvido com seu esquema que tinha olvidado a harmonia
do espírito que deveria ter presidido o respectivo plano. O resultado foi um
fracasso total.
Uma vez fui levado por uma amiga a ver as pinturas feitas por seu marido. Logo
que as contemplei deduzi toda a história do artista: como aquela alma tinha
vivido, as agonias por que tinha passado. Estava tudo expresso nos seus
quadros. E qual era o estado de espírito da viúva, a possuidora daqueles
quadros? Só havia nela tristeza e depressão.
É sempre bom um artista recear fazer uma obra que possa produzir um efeito
indesejável, pois assim será bastante cuidadoso. Se quiser saber o efeito que
seu trabalho causará, descobrirá. É muito fácil entusiasmar-se com a idéia
pitoresca, mas nunca deve deixar de pensar que o importante não é somente a
idéia e sim o que ela vai transmitir e o efeito que vai causar. Será um efeito
construtivo ou destrutivo? Por exemplo, nos navios, especialmente os que
navegam o canal da Mancha, a primeira coisa que se vê ao entrar no camarote
é o cartaz ensinando a colocar o colete salva-vidas no caso de naufrágio. É a
primeira coisa que impressiona o passageiro, como um presságio. Certamente
a finalidade do cartaz é instruir, mas não é uma instrução boa, psicologicamente
falando. Essas instruções são necessárias, mas não seria melhor distribuir
cartazes ilustrados depois que o navio zarpasse e os passageiros já estivessem
acomodados? Também é imprudente – talvez fosse melhor usar uma outra
palavra – colocar numa sala de aulas ou numa capela, cenas de morte, mesmo
sendo de Santos e Mestres, que nunca morrem por serem imortais.
O que foi dito acima está de acordo com o ponto de vista psicológico, o que não
quer dizer que é o ponto de vista de um Sufi. Os Sufis são apaixonados por
poesia. Sua paixão pela poesia vai algumas vezes muito longe, a ponto de
expressar por meio dela seus sentimentos de aspiração, ansiedade, mágoa
profunda e desapontamento. Mas isso não é psicológico e, segundo a psicologia,
nada correto.
Dá-se o mesmo com a música. É muito interessante como um musicista faz uma
espécie de música mágica descrevendo uma inundação, como uma cidade foi
destruída e tudo que nela existia desapareceu. No momento isso pode lhe
parecer um divertimento, uma fantasia de imaginação, mas produz uma
influência.
Como é maravilhoso notar que a arte boa ou má, em cada um de seus aspectos,
é uma coisa viva, falante! Não admiramos somente o que vemos nos afrescos
dos velhos palácios da Itália e na arte reproduzi da na estatuária dos templos
antigos. Essas obras de arte contam a história do passado. Falam do artista que
as criou, do seu estágio de evolução, da sua motivação, da sua alma e do espírito
daquele tempo. O que nos ensina que nossos pensamentos e sentimentos são
inconscientemente gravados em todas as coisas que fazemos e usamos, seja
um lugar, rocha, árvore, onde nos sentamos ou naquilo que preparamos. Na arte,
contudo, um artista completa a música de sua alma, a música da sua mente. Não
se trata de um efeito automático, é um efeito consciente um efeito que muitas
vezes resulta num outro efeito. É uma prova de que não é suficiente para nós
apenas aprender arte ou nos ocuparmos com ela. Como complemento da arte
devemos estudar a sua psicologia, porque é através da arte que realizamos
nosso objetivo na vida.
CAPÍTULO VI
A Vida do Pensamento
Deus é Onisciente, Onipotente, Onipresente, o Único Ser, sugerindo-nos que o
Absoluto é um Ser Vivo, o Ser Único, que não existe o que chamamos morte,
nem o que chamamos fim, que toda coisa, todo ser, toda partícula tem uma
continuidade, porque a vida é eterna.
A vida é urna acomodação e tudo nela uma vez nascido – pensamento, palavra,
ação ou sentimento – é tratado, cultivado e levado à frutificação. Dificilmente
pensamos que tal coisa possa acontecer, pensamos apenas que se tratam de
pensamentos, palavras, ações ou sentimentos que não mais existem, que o que
foi feito acabou, ou ainda, que sentimos algo que não mais sentimos. Mas houve
apenas uma transformação, da qual estamos conscientes. Avistamos
determinada coisa e ela desaparece. Pensamos que como não mais a vemos
ela desapareceu, mas é um engano, ainda existe. Continua a existir e segue seu
curso porque tem vida. Em tudo há vida. A vida simplesmente vive; tudo sendo
vida, não existe a morte.
Sem dúvida alguma, nascimento, morte, começo, fim, são nomes dos diferentes
aspectos do trabalho mecânico do universo. É uma espécie de trabalho
automático, que nos dá a idéia de alguma coisa que começou e alguma coisa
que terminou.
Uma pequena pedra atirada no mar põe a água em movimento. Não nos damos
ao trabalho de pensar até onde essa vibração atua no mar. O que podemos ver
são as pequenas ondas e círculos que a pedrinha produziu. Vemos apenas isso.
Entretanto, a vibração que a pequena pedra produziu no mar segue muito mais
além do que o homem pode imaginar. O que chamamos espaço é um mundo
muito mais delicado. Se chamarmos esse espaço de mar, é um mar de líquido
muito mais delicado. Se o chamarmos de terra, é uma terra incomparavelmente
mais fértil que a terra que conhecemos. A terra recebe tudo, alimenta, germina
e permite que tudo nela cresça, aquilo que nossos olhos não vêem os nossos
ouvidos não escutam.
Esse pensamento não nos torna responsável por todo movimento que fazemos,
por toda idéia que emitimos, por todo o sentimento que passa pela nossa mente
ou nosso coração? Se soubermos utilizar nossa atividade, se soubermos dirigir
nossos pensamentos, expressá-los com palavras, fazê-los avançar com nossos
movimentos, senti-los, para que criem sua própria atmosfera, não haverá um
momento da nossa vida desperdiçado. Que tremenda responsabilidade! A
responsabilidade de cada homem é maior que a responsabilidade de um rei. É
como se cada homem tivesse seu próprio reino pelo qual fosse responsável, um
reino que não é menor que qualquer outro reino conhecido, mas
incomparavelmente mais vasto que os reinos da terra. Isto nos ensina a pensar
e a conscientizar, a sentir nossa responsabilidade a cada movimento que
fazemos. O homem, entretanto, não sente isto, não se conhece e não procura
conhecer o segredo da vida. Segue como um ébrio ao caminhar pelas ruas. Não
sabe o que está fazendo, se é bom ou mau.
Como pode viver um pensamento? De que maneira vive? Possui para viver um
corpo, uma mente, uma respiração? Sim. A primeira coisa que precisamos saber
é que uma respiração, vinda diretamente da Fonte, procura um corpo, uma
acomodação, onde possa funcionar. Um pensamento é como um corpo,
pensamento que vem da Fonte como um raio do Espírito e que pode ser
comparado ao sol.
Isso faz do pensamento uma entidade que vive como entidade. Essas entidades
são chamadas na linguagem Sufi de Muwakkals, que quer dizer elementais.
Vivem e têm certo objetivo a cumprir. O homem dá-lhes condições de nascer e
por trás delas há um objetivo que Ihes dirige a vida. Imaginai como é terrível, na
abstração de um momento, alguém exprimir indignação, paixão ou rancor, pois
uma palavra expressa em tal momento vive e executa seu objetivo. É como se
um indivíduo criasse ao seu redor um exército de inimigos. Talvez um
pensamento tenha vida mais longa que outro. Depende da vida que lhe foi dada.
Se o corpo é mais forte, vive mais tempo. Da energia da mente depende a força
da entidade-pensamento.
Há a fase da meninice, durante a qual a criança nada sabe. Destrói coisas belas
e de valor por curiosidade e fantasia. Quando a criança cresce, começa a sentir
sua responsabilidade. O sinal de maturidade é o sentimento de
responsabilidade. Assim, quando uma alma amadurece, começa a sentir sua
responsabilidade. A partir desse momento, sua vida começa. Quando a alma
renasce, ou nasce de novo, começa realmente a viver, porque enquanto ela não
nascer novamente, não entrará no reino de Deus. O reino de Deus está na terra.
O homem não conhecerá o reino de Deus enquanto não estiver consciente de
sua responsabilidade. Ao tornar-se consciente de sua responsabilidade, o
homem desperta para o reino de Deus, o berço da alma.
Em apoio dessa idéia existe no idioma Sânscrito uma palavra que é usada para
designar as pessoas conscientes de Deus. Essa palavra é Brahman, o Criador.
Tão logo a alma assimila essa idéia, começa a saber que exterior ou
interiormente cada momento de sua vida é criativo. Se é responsável por sua
criação, é responsável também por todos os momentos de sua vida. Nada mais
na vida será desperdiçado. Qualquer que seja a condição da alma, desamparada
ou infeliz, ainda assim sua vida não pode ser desperdiçada, pois ela é a força
criativa que trabalha através de cada movimento, cada pensamento, cada
sentimento. Está sempre fazendo alguma coisa, criando.
Existe outra palavra em Sânscrito para Brahman: Duija, que significa a alma que
renasceu. Do momento que tudo é compreendido a alma nasce de novo. A
realização da vida passa a ter um novo enfoque, nosso plano de vida se modifica
e diferente se torna nossa ação.
Pensamento e Imaginação
Em que forma existe? Na forma criada pela mente. A alma toma uma forma no
mundo físico, uma forma que tomou por empréstimo do mundo. Do mesmo
modo, o pensamento toma a forma que tomou emprestado do mundo mental.
Uma mente lúcida, portanto, pode dar ao pensamento uma vida distinta, uma
forma distinta. Uma mente confusa produz pensamentos indistintos. Nos sonhos
vemos como isso é verdadeiro: os sonhos dos que possuem uma mente lúcida
são claros e distintos, os sonhos dos que têm a mente pouco clara, são confusos.
É muito interessante notar como são belos os sonhos dos artistas, dos poetas e
dos musicistas, porque vivem numa atmosfera de beleza e pensam na beleza.
Os sonhos dos que têm a mente repleta de dúvidas, temores e confusões, têm
o mesmo caráter do estado de suas mentes.
A Memória
A memória é uma faculdade mental tão distinta quanto a mente, é uma máquina
registradora que registra tudo que vê por meio dos cinco sentidos. O que é visto,
ouvido, aspirado, tocado e provado é registrado na memória. Uma forma, uma
pintura, uma imagem vista, permanecem, às vezes, na memória toda a vida, se
forem bem registradas por ela. No convívio social ouvimos muitas palavras e, no
entanto, só algumas que a memória registrou é que ficam para sempre
registradas e se tornam vivas. Dá-se o mesmo com a música. Quando ouvimos
uma música maravilhosa e a mente a registrou, ela permanece eternamente. A
memória é uma máquina tão viva que podemos reproduzir a qualquer tempo o
que nela está registrado, porque esse registro nunca se apaga. Se sentimos o
cheiro de um bom perfume, sempre nos lembraremos dele. O sentido do paladar
permanece conosco e o sentido do tato é retido pela memória.
As coisas não são registradas na memória como fazemos com um livro de notas.
O livro de notas não tem vida e o que nele é registrado é coisa morta. A memória
ao contrário é viva. O que fica na memória, portanto, tem vida, é uma sensação
viva. Uma recordação agradável registrada pela memória é, às vezes, tão
preciosa que desejamos sacrificar o nosso mundo objetivo por ela.
Ao visitar certa vez uma viúva, fiquei muito sensibilizado. Seus parentes
mostraram desejo que eu a aconselhasse a frequentar a sociedade novamente,
a conviver com as pessoas, enfim levar uma vida mais social. Quando comecei
a aconselhá-la ela me disse gentilmente: “Todas as experiências da vida social,
embora agradáveis, não me dariam nenhum prazer. Minha única alegria é a
lembrança do meu amado. Tudo o mais não me faz feliz e me deprime. Minha
felicidade está em pensar no meu ente querido”. Não disse mais uma palavra
para que modificasse seu estado de espírito. Seria imperdoável de minha parte
– pensei – afastá-la da sua alegria. Se a lembrança do marido fosse para ela
uma infelicidade, poderia ter-lhe falado como desejavam os parentes, mas para
ela a lembrança do marido era a sua única e verdadeira felicidade. Uma grande
estima foi só o que senti por ela. Não consegui pronunciar mais nenhuma
palavra.
Como estamos acostumados a experimentar tudo por meio do veículo corpo, até
mesmo os nossos sentimentos, somos dependentes do corpo por algum tempo,
mas isso não quer dizer que não podemos experimentar tudo que pertence à
mente sem o auxílio do corpo. Além disso, se alguém se elevar acima do seu ser
objetivo, encontrará sua memória intacta. O que sucede é que a memória não
pode simplesmente funcionar num cérebro em desordem, mas as impressões
durante o tempo em que a pessoa perdeu a memória, continuam a ser
registradas. Voltam mais tarde. Quando alguém perde a memória, a memória
deixa de fazer o registro das coisas que vê.
Ter boa memória não é somente uma boa coisa, é uma bênção, é sinal de
espiritualidade, porque é uma demonstração de que a luz da inteligência está
clara, iluminando cada partícula do cérebro. Uma boa memória é o apanágio das
grandes almas. Além disso, a memória é o tesouro onde está guardado o nosso
conhecimento. Se um homem não puder extrair o conhecimento coletado de sua
memória, o que aprendeu nos livros tem muito pouco valor.
Um dia, depois de seis meses do meu Mestre me ter recebido como discípulo,
começou a falar sobre metafísica. Como tinha inclinação pela metafísica, fiquei
contente com a oportunidade. Durante esses seis meses nunca fiquei
impaciente, nunca me mostrei ansioso de conhecer mais alguma coisa além do
que me era permitido conhecer. Contentava-me plenamente em ficar aos pés do
Mestre. Isso bastava-me. Entretanto, foi um grande estímulo para minha mente
ouvi-lo falar de metafísica. Assim que tirei do bolso meu caderno de notas, o
Mestre parou de falar no assunto, não quis mais prosseguir. Naquele dia aprendi
uma lição: o Mestre me fez ver que o caderno de notas não devia ser o depósito
dos meus conhecimentos, havia um caderno de notas vivo que era a minha
memória, o verdadeiro caderno de notas que seria meu toda a vida e que eu
levaria comigo quando a vida na terra se extinguisse.
É lógico que as coisas terrenas devem sempre ser anotadas no papel, números
e ocorrências, mas o que se refere a assuntos espirituais, à lei divina, é de muita
importância para ser registrado num simples caderno de notas, deve ser
entesourado na memória, pois a memória não é apenas uma máquina
registradora, é um terreno fértil. O que ali é colocado está em constante
criatividade, está fazendo alguma coisa. Portanto, nós não possuímos somente
alguma coisa que depositamos, também há juros.
Mas aprendemos pelo caminho Sufi a apagar do nosso registro uma memória
viva de algo que aconteceu no passado. É um trabalho que realizamos por meio
da concentração e da meditação. Não é fácil, é bastante difícil, mas é uma das
coisas mais valiosas. É por isto que nós, os Sufis, mantemos nossos
ensinamentos livres das especulações, crenças, doutrinas e dogmas, pois
acreditamos no trabalho feito dentro de nós mesmos. Que aconteceria se uma
determinada coisa Ihes fosse dita hoje, passassem a acreditar nela, e no dia
seguinte duvidassem e não mais acreditassem? Se Ihes fosse dito que existe
uma casa, um palácio, no sétimo céu, o que Ihes serviria isso? Serviria apenas
como objeto de curiosidade e não os levaria a parte alguma. Assim, por meio da
meditação, alcançamos nós mesmos todas essas coisas. Podemos extirpar da
memória o que quisermos e, assim, ficaremos aptos a construir nós mesmos o
nosso céu, controlar a mente e fazê-la trabalhar como um artista trabalha uma
tela, reproduzindo nela o que quiser. Eis aí o segredo do esoterismo.
A memória jamais se perde, o que acontece é que quando a mente está abatida
a memória se torna confusa, porque a tranquilidade da mente é que nos faz
distinguir tudo que está na memória. Quando a mente está sobrecarregada,
quando alguém não está tranquilo, naturalmente está incapacitado de ler tudo
que a memória registrou. Não é verdade que a memória deixe escapar o que
nela foi registrado, apenas acontece que o homem perde o ritmo de sua vida
pela superexcitação, nervosismo, fraqueza nervosa, ansiedade, preocupações,
temores e confusões. É isso que causa uma espécie de perturbação na mente.
Nesse estado de perturbação ninguém pode ver distintamente o que a memória
registrou. Por exemplo, quem não consegue decorar, a primeira coisa que deve
fazer é tranquilizar a mente para que ela tenha condições de decorar. É uma
maneira mental, mas há uma maneira de melhorar a memória no campo físico:
comer menos, dormir normalmente, não trabalhar e não se preocupar
demasiadamente, afastando da mente toda ansiedade e temor. Não é preciso
trabalhar a memória para torná-la clara. Para torná-la perfeitamente clara, basta
o homem fazer de si um indivíduo tranquilo, rítmico e pacífico.
CAPÍTULO IX
A Vontade
Vontade não é UMA força e sim TODA a força que existe. Como Deus criou o
mundo? Pela vontade. Por conseguinte, o que chamamos força de vontade é na
realidade uma força de Deus que, por ser reconhecida como potencialidade pelo
homem, cresce e prova que é o fenômeno mais importante da vida. Se existe
um segredo que possa ser visto oculto no mistério do mundo fenomênico, é a
força de vontade. Tudo que fazemos física e mentalmente se completa pela força
de vontade. Nossas mãos, apesar de seu perfeito mecanismo, não segurarão
um copo d’água se não forem acionadas pela força de vontade que o sustenta
firme. Um indivíduo pode parecer muito saudável, mas se lhe faltar força de
vontade não será capaz de se manter em pé. Não é o corpo que nos faz
permanecer em posição vertical, é a nossa força de vontade, que sustenta o
nosso corpo e o faz mover-se. Os pássaros na realidade não voam com as asas,
voam impulsionados pela força de vontade. Os peixes não nadam com o corpo,
nadam pela força de vontade. Quando o homem tem vontade de nadar, nada
como um peixe.
O homem tem sido capaz de executar coisas maravilhosas usando sua força de
vontade. O sucesso e o fracasso são fenômenos da vontade. O que leva uma
pessoa ao sucesso é apenas o fenômeno da vontade. Quando a vontade está
ausente, falha o indivíduo, embora qualificado e inteligente. A vontade, portanto,
não é uma força humana, é uma força divina que trabalha no homem. O trabalho
executado pela vontade na mente é ainda muito maior, pois nenhum homem
pode sustentar na mente uma idéia por um momento sequer a não ser que tenha
força de vontade. Se uma pessoa não consegue se concentrar, se não pode fixar
seu pensamento por um momento sequer, falta-lhe força de vontade, pois a
vontade é que sustenta o pensamento.
Diz o Corão: “Faça-se e fez-se”. É uma chave para a entrada no mundo dos
fenômenos. Para o mundo em progressão, para o pensamento avançado, é a
chave para se compreender como a manifestação passou a existir. A
manifestação veio a lume em resposta à Vontade que se expressou dizendo:
“Faça-se” e a manifestação se fêz. Este fenômeno não pertence apenas à origem
das coisas, pertence à existência de todas as coisas, a todo o processo da
manifestação.
Estamos aptos a olhar toda a criação como um mecanismo, como acontece com
o homem moderno, e não paramos para pensar como um mecanismo pode
existir sem um engenheiro. O que é um mecanismo? É somente uma expressão
da vontade de um engenheiro, que o fabricou para atender certas exigências.
Como não vemos diante de nós o engenheiro e apenas vemos o mecanismo,
envolvemo-nos nas leis que regem o funcionamento do mecanismo e nos
esquecemos completamente do engenheiro, a cujo comando obedece todo o
mecanismo em funcionamento. Como disse Rumi, o grande inspirador e filósofo
Sufi, no seu livro Masnavi: “A terra, a água, o fogo e o ar parecem ao homem
coisas ou objetos, mas para Deus são seres vivos. São Seus servos obedientes
e obedecem à Vontade Divina”. Herdamos parte dessa Vontade como herança
divina. A consciência dessa herança divina é que a torna maior. Se dela não
estivermos conscientes, tornar-se-á menor.
É provável que muitos queiram perguntar: “Por que não deixar a mente livre
como nós somos livres?” Mas o homem e a mente não são duas coisas
diferentes. Seria o mesmo que dizer: “Deixemos o cavalo ser livre e o cavaleiro
também”. Se deixarmos o cavalo livre talvez ele queira ir para o sul e o cavaleiro
para o norte. Como poderiam cavalgar juntos? Alguns podem também dizer:
“Sejamos livres e a vontade será livre”. Mas o que somos nós afinal? Não somos
nada sem disciplina. A disciplina tem um lugar de destaque na vida do homem.
A autodisciplina embora pareça difícil e tirânica a princípio, no fim faz da alma a
mestra do eu. Não foi em vão que os grandes sábios e adeptos levaram uma
vida ascética. Tinham um objetivo em vista. Não é uma coisa que deve ser
seguida por todos, mas compreendida. Devemos compreender, por exemplo, o
que desejavam fazer de suas vidas, o que desejavam realizar. Essa vida de
autodisciplina visava ao desenvolvimento da força de vontade.
Tudo que nos falta na vida tem origem na falta de vontade. Todas as bênçãos
que recebemos vêm por meio da força de vontade. Alguns pensam que não
depende deles próprios a força de vontade, que ela é dada a certos homens
como graça, como bênção. Não depende de nós mesmos porque ela é o próprio
ser do homem. Sem dúvida é graça e é bênção, mas mesmo assim deve ser
encontrada dentro de nós, porque a força de vontade é o nosso próprio ser.
CAPÍTULO X
A Razão
No entanto, se analisarmos bem a razão, ela nada mais é que ilusão, ilusão que
mantém o homem em constante perplexidade. A causa de toda desarmonia e de
todos os desacertos, está na falta de compreensão da razão alheia. O que é
razão? – pergunta-se. A que lugar pertence? A razão pertence tanto à terra como
ao céu. É celestial no que tem de mais profundo e é terrena na sua parte
superficial. O que enche o vácuo que existe entre a terra e o céu na forma da
razão, é a sua parte do meio, a parte intermediária, que a une. Portanto, a razão
pode ser a coisa mais confusa ou mais iluminadora. A parte mais profunda da
razão é o raciocínio mais perfeito e pertence ao céu. Há um outro raciocínio que
pertence à terra. Se perguntarmos a alguém: “Por que tirou a capa de chuva de
fulano?”, é possível que responda: “Porque estava chovendo”. Sem dúvida
procurou uma razão para justificar seu procedimento, mas precisa de uma outra
razão que o leve a pensar: “Não devia ter tirado a capa de uma outra pessoa.
Embora estivesse chovendo, a capa não é minha”. É uma outra razão. Os
ladrões e assassinos não têm sua própria razão? Às vezes são boas razões,
mas são superficiais. Não diz um ladrão para justificar o roubo: “Que significa
para o dono disto tudo, tão rico, perder esse dinheiro? Aqui estou eu, um homem
pobre, que pode fazer melhor uso desse dinheiro. Não vou roubar toda a fortuna,
apenas tirar a quantia que necessito. Vai me ser útil, porque posso fazer o bem
com o dinheiro”.
Com relação à essência das coisas: onde podemos encontrar a razão? Onde
podemos saber algo sobre ela? A razão terrena aprende-se com a vivência de
nossas experiências do mundo. Quando dizemos: “Isto é direito e aquilo é
errado”, foi o resultado do nosso aprendizado na terra, em que nos ensinaram a
achar que uma coisa é certa e outra é errada. Ambas as coisas nada
representam para uma criança inocente, que por sua pouca idade nada sabe
sobre o certo e o errado porque ainda não adquiriu a razão terrena. Há uma
razão que está acima da razão terrena. Aquele homem da história que tirou a
capa do companheiro, tinha sua razão e desculpou-se dizendo que a tirou
“porque estava chovendo”. Mas acima dessa razão vamos encontrar uma outra
razão, a que fez o homem pensar: “você tirou a capa, mas ela não lhe pertencia”.
É uma outra razão, a razão atrás da razão.
Como chegar a essa razão? Entrando no ritmo chamado Satva. Existem três
ritmos: Tammas, Rajas e Satva. Conhece a razão terrena o indivíduo que vive
no ritmo Tammas. O homem cujo ritmo de vida é Rajas conhece não só a razão
terrena como a razão oculta atrás de uma razão. Aquele que começa a ver ou
viver no ritmo Satva, principia a ver a causa de todas as razões, a que está na
parte mais profunda de todos os seres. É a razão de Deus.
Há um verso Persa que diz: “O jardineiro é quem sabe qual a planta que deve
ser cultivada e a que deve ser cortada”.
Será essa a nossa atitude? Não devemos ir ajudar? Sim, podemos ajudar. Mas
também se uma pessoa espiritualizada não faz aparentemente o que dela
esperamos, não é preciso falar-lhe sobre isso, pois devemos saber que há uma
razão. Não é preciso julgá-la, porque quanto mais evoluímos mais nossa razão
é diferente. Assim ninguém tem poder para julgar ninguém, o que deve fazer é
agir da melhor maneira possível.
Sem dúvida a educação atual constitui grande obstáculo para as crianças. São
ensinadas a raciocinar livremente com os pais. Com esse raciocínio livre, quando
chegam a uma certa idade não param para pensar. Antes de pensar
argumentam, discutem e perguntam: “Por que não?”, “Por que?” Dessa maneira
jamais chegarão à razão celestial, pois para chegar a ela é preciso ter uma
atitude respondente e não uma atitude exercitante. O que uma criança hoje em
dia aprende é uma atitude agressiva. Quer impor aos outros o seu conhecimento.
Por não possuir uma atitude respondente perde a criança a oportunidade de
chegar à essência da razão, o espírito de Bodhisatva. Eis a grande dificuldade
na vida das almas evoluídas. O que aconteceu com Jesus Cristo? Havia a razão
terrena de um lado e do outro a razão celestial.
Certa vez ao olhar para meu Murshid (Mestre) surgiu-me o seguinte pensamento:
“Por que uma alma tão elevada como a do meu Murshid usa chinelos bordados
a ouro?” Controlei-me imediatamente, tudo não havia passado de um
pensamento apenas. Jamais meus lábios deixariam passar tal pensamento e já
o havia controlado. Mas o pensamento tinha sido emitido e como eu não podia
abafar minha insolência com os lábios e o meu coração era um livro aberto para
o meu Mestre, ele imediatamente leu meu pensamento. Sabem a resposta que
me deu? “Tenho a meus pés os tesouros da terra”.
Certa vez um Mestre foi à cidade e voltou comentando: “Estou tão alegre, como
estou contente! Senti uma grande exaltação na presença da bem-amada”. Um
dos discípulos pensou: “Encontrou uma bem-amada e sentiu grande exaltação,
que maravilha! Vou até lá para ver se encontro uma bem-amada”. Andou pela
cidade e voltou dizendo: “Que coisa horrível, como o mundo é terrível! Todos
pareciam querer engolir um ao outro, foi esse o quadro que vi. Só senti
depressão, como se todo meu ser tivesse sido cortado em pedaços”. “Você está
certo”, disse o Mestre. O discípulo indagou o motivo dele, o Mestre, ter ficado tão
exaltado com a visita à cidade e ele sentiu como se tivesse sido cortado em
fatias. “Simplesmente não pude suportar, foi horrível!” finalizou o discípulo. E o
Mestre apenas disse: “Você não andou no mesmo ritmo que eu”. O que o Mestre
quis dizer foi que não se tratava do ritmo vagaroso de andar, mas do ritmo em
que a mente se move, do ritmo a que se chega à observação. Aí é que está a
diferença entre uma pessoa e outra, é isso que cria harmonia entre as pessoas.
Quem diz “não quero ouvir tua razão”, sem dúvida alguma tem razão para dizer
isso, como todos têm suas razões, mas melhoraria sua razão se pudesse ouvir
a razão dos outros e pudesse também entendê-la. A razão oriunda da mente
humana é como se fizesse círculos. A mente de uma pessoa fez um círculo num
minuto, a de outra fez o mesmo círculo em cinco minutos. A razão não é igual. A
mente de uma outra fêz um círculo em quinze minutos e sua razão é diferente.
Quanto mais tempo levar, mais largo é o horizonte de sua visão e será assim a
sua perspectiva na vida.
O raciocínio é uma escada. Por essa escada podemos subir e podemos cair,
porque se o raciocínio não nos ajudar a subir pode nos ajudar a descer. Se para
cada passo que se dá para subir há uma razão, há também uma razão para cada
passo para baixo. Sem dúvida que tal distinção existe para permitir que
compreendamos que há realmente uma só razão, que é uma faculdade.
Podemos dividir o corpo humano em três partes, mas ele continua sendo um
corpo, é uma pessoa. A razão é um grande fator. Tem em si possibilidades de
trazer inúmeras maldições e bênçãos.
CAPÍTULO XI
O Ego
Foi assim que a alma criou sua concepção e essa concepção da alma é tão
profunda que passa a chamar todos os outros objetos, pessoas ou seres, cores
ou linhas, por nomes diferentes. A alma não concebe tudo isso como seu, porque
já possui sua concepção: é o corpo, a primeira coisa que conheceu ou imaginou
ser. Tudo mais que a alma vê é através do veículo-corpo, considerando-o como
coisa diferente, separada.
Pelo processo espiritual aprendemos a tirar os véus da ilusão que cobrem o falso
ego. O aniquilamento do falso ego é tirar os véus que o cobrem. Logo que a
ilusão desaparece, o verdadeiro ego aparece e reconhece seu valor. Com essa
realização a alma entra no reino de Deus, com essa realização a alma nasce de
novo, há, portanto, um renascimento que lhe abre as portas do céu.
A alma não precisa que o corpo e a mente existam para sua autoconsciência. A
alma não depende para viver da mente e do corpo, assim como os olhos não
dependem do espelho para viver. Os olhos dependem do espelho apenas para
ver seu reflexo. Sem o espelho os olhos poderão ver tudo que quiserem, menos
a si mesmos. Um exemplo é a inteligência. A inteligência não pode se conhecer
se não tiver alguma coisa inteligível em que se apoiar. Só assim a inteligência
se realiza. O homem que tem um dom poético, que nasceu poeta, jamais poderá
se realizar como poeta se não escrever sua poesia e se seus versos não tocarem
uma corda dentro do seu coração. Só assim poderá dizer que é um poeta. Até
então havia dentro dele o dom da poesia, mas não sabia que existia.
Os olhos não se tornam poderosos por que se viram no espelho. São poderosos,
mas só sabem o que são realmente, quando vêem seu reflexo no espelho. O
prazer está na realização dos próprios méritos, dos próprios dons, daquilo que
possui. Nessa realização é que está o mérito. Seria sem dúvida motivo de
tristeza se os olhos pensassem: “Somos tão mortos como este espelho” ou se
mirassem o espelho e pensassem: “Não existimos a não ser como espelho”. O
falso ego, portanto, é a maior de todas as limitações.
Pergunta-se: “Embora a alma se sinta à parte dos outros seres, não se sente
una com Deus?” Nem mesmo com Deus. Como poderia? Uma alma cativa de
uma falsa concepção, que não pode remover a barreira que existe entre ela e o
vizinho, como pode remover a barreira que existe entre ela e Deus, que ainda
não conhece? Apesar de tudo, a crença da alma em Deus é uma concepção,
porque foi ensinada por um sacerdote, consta da escritura sagrada ou porque os
pais disseram que existe um Deus. Apenas isso. Essa alma sabe que existe um
Deus em algum lugar, mas está sempre sujeita a mudar de crença. Infelizmente,
quanto mais avançar, intelectualmente, mais se afastará da crença. Crença que
uma inteligência pura não pode conservar sempre, não avança muito. O objetivo
da vida é preenchido pela compreensão da crença. Lê-se no livro Gayan: “O
descobrimento de Deus se dá quando há o descobrimento da alma”.
O ego propriamente dito nunca é destruído, é a única coisa que vive e é o sinal
da vida eterna. O segredo da imortalidade está no conhecimento do ego. Quando
lemos no Gayan que a “morte morre e a vida vive”, o ego é que é a vida, o falso
estado é que é a morte. O falso desaparecerá um dia, o verdadeiro sempre será.
Isso acontece com a vida: o ser verdadeiro que vive é o ego. Ele vive e tudo o
mais que tomou emprestado dos diversos planos e esferas, em que se perdeu,
é expulso. Não vemos essa expulsão em nosso próprio ser? As coisas que não
pertencem ao nosso ser não permanecem nele, nem no sangue, nem nas veias,
nem em qualquer outro lugar. O corpo não conserva tais coisas, repele-as. O
mesmo acontece em todas as esferas: não retêm o que não Ihes pertence. Tudo
que é de fora mantêm afastado. O que pertence à terra é conservado na terra, a
alma repele. Destruição do ego é apenas uma maneira de dizer, não se trata de
destruição e sim de descobrimento.
Mente e Coração
O coração é um dos corpos da alma, o primeiro corpo da alma, que caminha com
a alma na sua longa jornada, acompanhando-a na sua viagem de retorno. O
coração é a mesma coisa que o corpo angelical. O mundo dos sentimentos é
mais elevado que o mundo do pensamento. Pode-se dizer que de certa forma o
coração está mais perto da alma e a mente mais perto do corpo. A alma
igualmente experimenta através de todo o ser, através do corpo, da mente, do
coração, como acontece nos diferentes planos da existência.
Quanto mais pensamos no coração mais constatamos que, se há algo que possa
nos falar de nossa personalidade, é o coração. Se há algo que nos faz sentir ou
contribui para que possamos nos conhecer, saber o que realmente somos, é o
coração, o que ele contém. Logo que o homem compreende a natureza, o caráter
e o mistério do coração, passa a entender a linguagem de todo o universo.
Intuição
A intuição brota do fundo do coração humano. Tem dois aspectos: a intuição que
depende da impressão recebida do exterior e a intuição que não depende de
qualquer impressão exterior. Chamamos de impressão ao primeiro aspecto e de
intuição ao segundo aspecto. Intuição é uma faculdade delicada. É, portanto,
uma faculdade feminina, porque provém da sensibilidade e por natureza a
mulher é mais intuitiva do que o homem.
Quantas vezes ouvimos alguém dizer: “Este homem causa-me uma certa
impressão” e não haver nenhuma razão a justificar tal impressão. Talvez a
pessoa que proferiu a frase nem seja capaz de encontrar um motivo plausível
que justifique sua impressão, mas, apesar disso, a impressão é correta. Há
pessoas, e até certos povos, que são intuitivos por natureza. Para um intuitivo
não há necessidade de conhecer uma pessoa para saber tudo acerca dela, basta
vê-la por alguns momentos. Logo que os olhos do intuitivo caem sobre a pessoa,
instantaneamente surge uma impressão do primeiro aspecto, isto é a intuição
que depende da impressão exterior. O homem possuidor de uma mente
delicada, tranquila, em geral tem intuição. O que possui uma mente grosseira e
inquieta, não tem intuição. Intuição é super-sentido e pode ser chamada de sexto
sentido. É a essência de todos os sentidos. Quando alguém diz que está
sentindo alguma coisa, não significa que tem razões objetivas para provar o que
está sentindo, simplesmente sentiu sem que tenha havido qualquer razão
externa ou sinais objetivos.
É preciso que saibamos, em primeiro lugar, que captar uma intuição é uma das
coisas mais difíceis, porque imediatamente entram em ação, de um lado, a
intuição e, de outro lado a mente. É como se as duas extremidades de uma vara
se movessem para cima e para baixo e não conseguíssemos notar qual das duas
se elevou em primeiro lugar. Precisamos, pois, analisar bem a ação da nossa
mente, como se tivéssemos uma ardósia à nossa frente. Enquanto estivermos
olhando, é preciso que sejamos capazes de afastar as impressões que surgem
de todos os lados e fixar a mente exclusivamente no nosso ser interior. Através
do desenvolvimento da concentração e da quietude da mente, podemos nos
sintonizar com o diapasão, ou som padrão de afinação, até atingir a percepção
da nossa intuição. Se ficarmos desapontados com a percepção da intuição, não
percamos a coragem, continuemos, mesmo que pareça estarmos incorrendo
sempre em erros. Se perseverarmos, chegaremos à correta percepção da
intuição.
Não há sonho sem significado. Se o sonho não tiver nada a ver com a intuição,
será mera atividade automática de tudo que nossa mente produziu durante um
dia de trabalho, passando automaticamente diante de nossos olhos como uma
fita de cinema. Mas mesmo atrás disso há um significado, pois nada é projetado
na tela da mente que não tenha raiz no solo do coração, produzindo desse solo
do coração flores e frutos. Se a intuição estiver trabalhando no sonho, o sonho
será uma narrativa de alguma coisa do passado, do presente ou do futuro.
Um homem muito evoluído não sonha muito. Também uma pessoa muito densa,
que nunca se preocupou que seu cérebro funcionasse, não sonha muito. Está
feliz e contente e não tem a mínima preocupação em pensar. Não tem muitos
sonhos. Não pensem que é raro encontrar tais almas. Estamos com muita
frequência encontrando almas que consideram um transtorno o ato de pensar.
Preferem não se preocupar com pensamentos.
A mente exerce uma reação sobre o corpo. O corpo reage sobre a mente.
Portanto, é natural que uma irregularidade no corpo físico lance uma sombra na
mente e produza na mente a mesma desordem. Os sonhos que constantemente
mostram sufocações, os sonhos que incluem afogamentos e incapacidade de
andar e falar, não são devido ao estado de saúde. São resultados das
impressões conservadas pela mente. São uma espécie de desordem psíquica
da mente, de uma doença da mente. A mente deve ser curada desse mal. Os
sonhos que incluem vôos, estão muito ligados a idéias biológicas. Expressam
também psicologicamente o contínuo esforço da alma para se elevar acima da
escravidão da limitação imposta pela vida na terra. Esses sonhos de vôos
significam igualmente uma jornada a ser empreendida pelo homem no futuro. É
a dança da alma que faz uma pessoa cantar durante o sono.
Há sonhos que podem ser chamados de visões. São reflexos. Reflexos das
pessoas, de suas mentes, de mundos, dos planos em que a mente está
focalizada. Se a mente estiver focalizada no mundo exterior, os sonhos virão
desse mundo exterior. Se alguém focalizar a mente sobre si mesmo, no sonho
aparecerão seus próprios pensamentos. Se a mente estiver focalizada em
determinada pessoa, essa pessoa e tudo que estiver no seu íntimo se refletirão
no sonho. Se a mente estiver focalizada num determinado plano de existência,
as condições desse plano serão refletidas na mente. As condições dos sonhos
serão as que prevalecerão após a morte.
Inspiração
Inspiração é uma forma mais elevada da intuição, porque surge como uma idéia,
como um tema completo com sua improvisação, como uma frase criativa de um
poema. Inspiração é uma torrente, torrente de coisas espetaculares e
maravilhosas. Um ser realmente inspirado, um escritor, um poeta ou um
compositor, não importa o tipo de atividade, do momento que recebe uma
inspiração se sente satisfeito, não consigo mesmo, mas satisfeito com a
inspiração que acabou de receber. A inspiração foi um grande alívio para essa
alma, pois estava tentando captá-la e lhe foi dado justamente o que desejava
obter. Recebeu o que pediu. É por esse motivo que chamam a inspiração de
recompensa da alma.
A ansiedade não nos faz receber o que desejamos. Não fazemos poesia
forçando o cérebro e não compomos uma peça musical preocupando-nos
constantemente. Quem fizer isso não está recebendo uma inspiração. A pessoa
que recebe uma inspiração é sempre tranquila e inteiramente despreocupada
com o que está por acontecer. É verdade que todos nós queremos receber
alguma coisa, queremos ardentemente criar, mas só focalizando a mente na
Mente Divina é que o homem recebe a inspiração, consciente ou
inconscientemente. O fenômeno é de tal grandeza e tão maravilhoso que a
alegria que a inspiração proporciona não pode ser comparada com qualquer
outra alegria no mundo. Essa alegria levam os gênios inspirados à êxtase. É um
prazer quase indescritível. É uma elevação do sentimento. Quando a mente
humana está focalizada na Mente Divina, o homem se eleva da terra. A
inspiração vem da Mente Divina. O que os grandes músicos, poetas,
pensadores, filósofos, escritores e profetas legaram ao mundo foi sempre de
caráter muito elevado. Entretanto, nem todas as almas compreendem seu
legado e por isso não podem apreciá-lo em toda sua plenitude. Se pudessem
imaginar a alegria da inspiração que eles receberam, veriam como é difícil
expressá-la em palavras. É uma inspiração que começa quando o sinal de Deus
é revelado ao homem. Os homens geniais materialistas, entretanto, por mais
materialistas que sejam, começam a admirar o Espírito divino quando recebem
uma inspiração.
Como surge a inspiração? Como um quadro já pronto? Como uma carta escrita?
Não. A inspiração aparece no artista como se sua mão fosse dirigida pela mão
de outra pessoa, como se seus olhos estivessem fechados e seu coração aberto.
O artista desenhou alguma coisa, pintou algo, mas não sabe quem realmente
pintou ou quem desenhou. A inspiração vem a um músico como se alguém
estivesse tocando ou cantando e ele estivesse apenas registrando a música que
encantou sua alma. Ao poeta a inspiração vem como se alguém estivesse
ditando e ele apenas anotando. Não há esforço do seu cérebro, nenhuma
ansiedade quando recebeu a inspiração.
É uma alegoria. Moisés estava à procura da luz para sustento de sua própria
vida. Era preciso subir aos planos mais elevados. Não lhe era possível alcançar
aquela luz na terra, onde se achava. Era necessário subir ao topo. Não encontrou
só uma luz, encontrou relâmpagos, uma luz acima da capacidade de Moisés
aguentar. Caiu no chão. O que significa essa queda? Cair é tornar-se nada, é
esvaziar-se. Quando Moisés chegou ao estado de esvaziamento, seu coração
ficou sonoro e ele começou a se comunicar com Deus em todas as Suas
manifestações na terra, na rocha, na árvore, na planta, nas estrelas, no sol e na
lua. Qualquer coisa que Moisés via entrava imediatamente em comunicação com
sua alma.
E foi assim que todas as coisas passaram a revelar a Moisés suas naturezas e
segredos. A respeito dessa revelação escreveu Sa’di: “Quando a alma aprende
a ler, cada folha de árvore se transforma numa página da Escritura Sagrada”.