Fichamento - Estive Lá Fora
Fichamento - Estive Lá Fora
Fichamento - Estive Lá Fora
sofridas de colegas e professores, que não perdoavam sua rebeldia nem seu desprezo por um
modelo de ensino corrompido, em meio às sombras da repressão. Por duas vezes escapara de
um massacre durante as aulas e quis desistir do confronto. Sentia um absurdo desejo de
repetir João Domísio, o tio arrastado pela enchente do rio Jaguaribe, o corpo branco perfurado
de balas, irreconhecível nos redemoinhos da correnteza. Não passou pela cabeça de Cirilo a
questão se a vida valia a pena, nem foi a ausência de motivos lógicos para viver que o trouxe à
ponte em que se debruça. Sua revolta não se filia a nenhuma causa revolucionária como a do
irmão Geraldo. Teria abjurado toda verdade proclamada para continuar andando pelos becos
infames do Recife, em meio ao lixo e à merda. Os suicidas jogam com a morte uma peleja
cheia de malícia e sedução, trabalham estratégias ao longo de anos e o que chamam de
impulso é apenas a cartada final. (BRITO 2012, p.7)
Entre o impulso do corpo e o salto para baixo, nesse tempo mínimo, Cirilo se despede das
coisinhas pequenas, sem significado aparente. Os olhos, doentes de tudo querer ver,
enxergam aguapés na correnteza lamacenta e flores semelhantes ao lótus. Sujeira borra as
pétalas aquáticas e refaz lembrança de outros rios e flores, num lampejo de gosto pela vida. E
se desistir de morrer? As mãos se crispam na balaustrada da ponte entre ilhas do Recife,
cidade cujo destino é inundar-se no Atlântico. Ele também irá sumir; encher os pulmões de
lama podre e sepultar-se entre algas marinhas que o olhar não alcança. Caso sobreviva ao
afogamento, morrerá de pneumonia ou remorso pelo crime de João Domísio, o fantasma cuja
história o persegue desde criança. (BRITO, 2012, p.8)
Sabe que no último instante lançará pedidos de salvação. Sempre se deixou conduzir por um
rio invisível, debatendo-se em vez de nadar aprumado como os atletas das piscinas. Enquanto
a mão esquerda o afastava do desespero, a direita anotava em cadernos o que lhe parecia
necessário dizer, sobrevivendo através desses sinais. Quem garante a um náufrago que seu
testamento escrito num pedaço de pano, enfiado numa garrafa e atirado ao mar, será lido? E
que importância tem que seja lido ou não, se ao escrever o autor se liberta da apreensão,
deixando seu testemunho sobre as ruínas? Centenas de escritos se guardaram por anos
debaixo da terra, em túmulos ou edifícios soterrados, à espera de quem os libertasse da
mudez. O que está sob a terra é nada. Olhar para cima e encarar a luz é bem mais aprazível
que morrer. Pensa nessas coisas, porém nunca lembra quem as escreveu (BRITO, 2012, Pp. 8-
9)
O sol do Recife cega. Não menos intenso brilhava numa cidade longe sobre a cabeça da avó, do
pai, da mãe e dos irmãos, no dia em que se despediram chorando à porta de casa, a mãe
recuada uns passos para que não vissem suas lágrimas. O pai levaria Cirilo à rodoviária, ao
ônibus e à promessa ameaçadora do Recife. Altivo, parecia alheio à contração dos dentes do
filho, à força com que segurava o choro porque era interditado aos homens da família chorar.
Caminhava à frente, como o deus Hermes conduzia as almas ao inferno. Na véspera, Luís
Eugênio narrara a história do rei que possuía três filhos homens e cada um deles, ao atingir a
idade adulta, pedia licença para deixar a casa paterna. Geraldo, o mais velho, fora embora
havia quatro anos, um pouco antes do golpe militar. “Você quer minha bênção com pouco
dinheiro ou minha maldição com muito dinheiro?”, perguntava o pai da história, e apenas o
filho mais novo escolhia a bênção e um caminho espinhoso. (BRITO, 2012, p.9)
Adianta recompor os cenários que o cercam, se tem certeza de que irá morrer? Importa se
nesse lugar onde se equilibra precariamente existiu, no século dezenove, uma ponte de ferro
ou de madeira? A concretude da ponte não diminui seu desejo de evadir-se para fora da luz,
num salto que ainda não aconteceu. Fugir significa delegar a morte para outro? Quem pulará
da ponte no seu lugar? Geraldo não aceita os traçados da família, as árvores genealógicas que
a mãe desenrola sobre a mesa após a janta, buscando nos rostos dos filhos sinais que apenas
ela reconhece. Qual ponte do Recife Geraldo cruza nesse momento, indiferente às aflições da
mãe? Em casa, o pai arrancou da moldura o retrato do filho primogênito, deixando um vazio
na parede, uma ausência que nenhuma imaginação preenche. (BRITO, 2012, p.10)
Sente um oco no estômago, não comeu quase nada desde o café. Os bolsos vazios de
dinheiro, a barriga vazia de alimentos. E se despisse a roupa antes de atirar-se nas águas?
Achariam que desejava se banhar no Capibaribe, do mesmo jeito que se banhava no rio
Jaguaribe. O morto boiando nu pareceria desvalido, sozinho e despojado do sobrenome Rego
Castro que tanto orgulha a mãe. Encontraram o tio João Domísio com todos os sinais da
nobreza: jaqueta de veludo, camisa fina com abotoadores de prata, botinas de couro curtido,
um anel de ouro com arabescos de flores e ramos entrelaçados. No meio das águas barrentas,
o corpo preso aos destroços das margens, morto com três tiros no peito esquerdo. Longe do
Recife que ele tanto amou, onde Cirilo desceu de um ônibus empurrado pela vontade do pai,
arrastando a mala de sola com poucas roupas e uma caixa de livros. Ansiando por encontrar o
irmão, mas sem querer repetir a história do tio assassino (CARVALHO, 2012, Pp. 10-11)
A ponto de invadir as ruas, águas barrentas cobrem as pilastras de sustentação da ponte e não
é possível enxergar os moradores habituais do mangue, os caranguejos de patas sorrateiras,
que nas marés baixas escalam paredes como soldados as muralhas de uma fortaleza, para
tomá-la de assalto. Formam escadas uns sobre os outros, desmoronam e caem. Os de baixo
desistem de sustentar os de cima, abandonam a posição inferior que ocupam na escada de
equilibristas e todos retornam à lama. Dizem que a sociedade recifense reproduz o
comportamento dos caranguejos: ninguém gosta de ver o outro subir na vida. Cirilo inquieta-
se, acende um cigarro, procura saber a hora. Por que a preocupação com o tempo? Escuta a
voz de Álvaro, um amigo com quem divide angústias e o quarto de estudante: — Aproveita o
impulso! Ou queres te matar depois de reflexões? (BRITO, 2012, p.11)
Cirilo apalpa no bolso esquerdo da camisa uma carta que Leonardo escrevera para ele quatro
anos atrás, quando ainda cursavam o primeiro período de medicina e quase fora linchado
durante uma aula de anatomia. Na época, também decidiu se matar e procurou a mesma
ponte da Madalena. Possuía um vínculo com a paisagem, os miasmas da lama, o cheiro podre
da maré, o oceano um pouco além, colorido pelos barcos pesqueiros do Pina. Morou numa rua
próxima à Benfica, dividia apartamento com sete colegas do mesmo lugar onde nascera. No
tempo livre, caminhava até a ponte e observava os pescadores arriscando a sorte. Conhecia
quase todos. Nunca se interessou pelos nomes, chamando cada um de pescador. Eles pediam
cigarro, ofereciam os peixes pequenos, mas Cirilo não aceitava. Temia a poluição da água, a
sujeira dos esgotos que envenenava as carnes brancas dos peixes. A mãe convencera o filho de
que tinha saúde frágil, olhando-o como um sobrevivente dos nove meses de gravidez. Não
podia correr riscos, bastavam os cigarros, mais de um maço por dia. Aprendera a beber e a
fumar com Leonardo (BRITO, 2012, Pp. 11-12)
...As cidades se constroem com camadas superpostas de fantasias, cada geração se desfaz dos
sonhos da anterior, tenta imprimir seu gosto ao presente, provar que está viva e possui
vontade. Os resultados, muitas vezes catastróficos, davam ao Recife uma feição disforme, um
rosto sem linhas serenas... (BRITO, 2012, p. 12)
Nas noites em que perdia o sono, Cirilo sentava num banco da praça e fechava os olhos para
escutar o lamento. Se não havia carros passando nem cães latindo, se o vento soprava da rua
da Aurora naquela direção, ele também ouvia os gritos de Geraldo atravessando as paredes de
uma sala imunda, onde homens encapuzados o torturavam. (BRITO, 2012, p.14)
Chegaram juntos para a aula de anatomia, no anfiteatro de cento e cinquenta lugares, cheio
com duzentos e setenta e cinco alunos, muitos de pé ou sentados no chão. Amontoavam-se no
espaço exíguo, forçados a um calor infernal durante três horas de informações técnicas sobre
ossos, músculos e nervos. Cirilo levantou-se e protestou contra o desconforto. Foi vaiado.
Jogaram bolas de papel e pedaços de madeira em cima dele. Os colegas não perdoavam seus
cabelos grandes, a calça baixa mostrando os pentelhos, a camisa curta, o ar de desprezo pela
turma. Ergueram um aluno de corpo franzino e o empurraram sobre Cirilo, que se levantou e
acusou-os de rebeldes sem causa. Viviam em plena ditadura, universitários eram presos,
torturados e mortos, e eles se comportavam como moleques sem educação. Por que não
agiam politicamente ao invés de fazerem baderna? Espantou-se com o discurso tomado de
empréstimo ao irmão Geraldo, não costumava falar essas coisas. (BRITO, 2012, Pp. 14-15)
Ninguém se defendia das denúncias de Cirilo, intensificando as vaias. Quando ele chamou-os
de frouxos e covardes, responderam em coro: “Bicha! Maconheiro! Comunista!” Rapazes e
algumas moças cerraram carga no apedrejamento, nos gritos e assobios, vencendo espaços
que separavam os campos inimigos. Houve troca de murros e pernadas, mas ninguém sacou
punhal ou revólver. Quando o tumulto fugia ao controle, o professor catedrático irrompeu na
sala com sua equipe de adjuntos. Lembravam dominicanos inquisidores, cães do regime militar
envergando batas longas e sujas. O chefe da tropa mandou Cirilo retirar-se e procurá-lo no dia
seguinte. Ameaçou os amotinados com o IV Exército e garantiu que poria todos na cadeia, se
não se comportassem bem durante as aulas. A turba fez silêncio e a aula teve início. (BRITO,
2012, p.15)
No primeiro ano de medicina, os alunos começam a aprendizagem lidando com a morte, uma
educação às avessas para quem pretende cuidar de vivos. Lembrou-se do pai, da mãe, dos
irmãos e do que eles fantasiavam sobre a universidade e o ensino médico. Quando retornou
para casa de cabeça raspada, usando a boina de feltro verde com a palavra medicina, todos o
olhavam como se fosse um rapaz de sorte, com o futuro garantido. A mãe confeccionara duas
batas brancas com seu nome bordado no bolso e achou estranho que se recusasse a
frequentar o hospital, mesmo sabendo que ele apenas passara no vestibular e que ainda não
assistira a uma única aula. Surpreendia os olhares orgulhosos dos pais e temia não
corresponder aos sacrifícios que os dois fizeram. Os primeiros sintomas de uma ansiedade
beirando o pânico surgiram em consequência dessas expectativas, das dúvidas em relação ao
curso que escolhera. (BRITO, 2012, Pp. 15-16)
No dia anterior, soubera que Geraldo fora preso mais uma vez, porém ninguém o informara
em qual delegacia. Lembrou-se da mãe implorando para que ele zelasse pela vida do irmão.
Desejou morrer. (BRITO, 2012, p. 16)
Os corredores sombrios por onde Cirilo caminha parecem os de um castelo num filme de
terror. Só aos poucos ele consegue distinguir os contornos dos jambeiros, das mangueiras e
dos fícus com lianas pendentes dos galhos altos. Passa a cantina, a rampa que dá acesso à
biblioteca do primeiro andar, teme que joguem um saco plástico cheio de água em sua cabeça.
O trote dura o ano inteiro. Cirilo assistia à maior parte das aulas molhado. Mais corredores
pavorosos a atravessar e o medo de novas agressões da turma do segundo ano. No trote,
cortaram seu cabelo e enfiaram os pelos dentro da calça. Mandaram que rolasse pela grama
do pátio, pintaram seu corpo de vermelho e por último o obrigaram a mergulhar no canal onde
corriam os esgotos da universidade. Ninguém o socorreu. Os revoltados apanhavam bem mais.
Dentro e fora dos quartéis, os estudantes que pensavam ou se comportavam diferente do
rebanho geral eram surrados sem compaixão. Um aluno não suportou o preconceito porque
era homossexual e enforcou-se num departamento da escola. (BRITO, 2012, p.16)
Apanhou um ônibus, desceu a Caxangá, saltou na rua Benfica e caminhou até a ponte da
Madalena, a mesma que procuraria quatro anos depois, decidido a se atirar no rio. A voz de
João Domísio ordenava: Venha! Pule! Morra! (BRITO, 2012, p. 17)
Cirilo move-se pelo desespero do presente, tateando às cegas, sem uma lanterna na mão que
lance luz sobre o futuro — escreveu Álvaro numa carta, sem revelar o autor da citação. Talvez
nem lembrasse quem falara isso. Não tinha importância, pois o desespero e a escolha pelo
suicídio se assemelhavam no personagem a quem ele se referia e no autor da sentença (BRITO,
2012, p. 19)
O futuro pertence a Deus, repetia a mãe como uma atriz guiada por um ponto cego, num palco
em ruínas. Poderia ser verdade, de tanto proclamar a tradição, embora todos já estivessem
cansados desse criador perfeito e absoluto e desejassem assumir a própria criatividade. O
futuro pertence a Deus, e a Cirilo apenas as águas barrentas que não cessam de correr, da
mesma maneira que ele corria desesperado, num sonho da noite anterior (BRITO, 2012, p. 19)
Sempre gostou de chuva. Basta o tempo mudar em chuvoso para sentir-se feliz. Lá no sertão
de onde veio, quando o tempo ficava nublado, dizia-se que estava bonito. Feio era um dia de
sol, queimando as lavouras e esquentando as cabeças descobertas. Demorou a acostumar-se
com as pessoas que olhavam o sol quente e falavam: que dia bonito! (BRITO, 2012, Pp.22-23)
Os carros passam em velocidade, jogam água das poças em Cirilo. Ele sente calafrios e o
desconforto da posição de monge meditando em meio ao barulho, um monge de calça Lee e
camisa xadrez. Recebeu da mãe, que ganhou num lote de doações vindas dos Estados Unidos,
na campanha União para o Progresso. Segundo o irmão Geraldo, os gringos mandavam
donativos ao terceiro mundo — como eles descaradamente chamavam o Brasil e os outros
países da América do Sul e Central —, cobrando em troca dos mestiços de índios e negros que
se comportassem e não fizessem revoluçõezinhas iguais às de Cuba. A mãe também enviou
algumas dessas roupas para o irmão mais velho. Ele cuspiu nelas e pisou-as enfurecido. Cirilo
aceitou o presente materno, mesmo ficando ridículo em manequins bem maiores do que ele.
Não tinha escolha (BRITO, 2012, p. 23)
Constata que o mesmo abismo concebido por Shakespeare entre os personagens populares e
os nobres se manteve através de séculos. Só que no poeta inglês o desprezo pelos miseráveis e
ignorantes não assume disfarce, é explícito e cruel. O amigo Álvaro não perdoa a
promiscuidade e a contradição das esquerdas. A cada maré alta os ribeirinhos convivem com a
merda que boia nas águas e se afundam na mais dura realidade. Mesmo assim alimentam de
maconha as alucinações da burguesia esclarecida e dos estudantes universitários que vão às
ruas morrer pelas causas sociais. (BRITO, 2012, p. 26)
Num lapso de memória, Cirilo escuta a voz nasalada de Álvaro falando que a esquerda festiva
se mistura com a ralé como se fizesse parte dela, se expõe a alguns riscos bem vigiados, mas
na hora do perigo real tira a bunda da seringa. A direita, essa, é bem mais coerente: mantém-
se no mesmo apartheid desde a colonização. Cirilo pede a lata ao magricela, bebe uns bons
goles e ri debochado da sociologia política do amigo. Ele fala de riscos como um professor de
doenças infecciosas. (BRITO, 2012, p.27)
...Os patrões — como nomeiam os que possuem mais dinheiro do que eles, o que significa a
população inteira do Recife — não sentem dor na consciência ao se empanturrarem de comida
e bebida, olhando do primeiro andar de suas mansões as palafitas da ilha do Leite, bem ao
longe. O incômodo é estético, os pobres criam um fundo realista demais para as sebes bem-
aparadas do jardim, os postes de ferro fabricados na Inglaterra e os jarrões de antúrios
vermelhos... (BRITO, 2012, p. 31)
Depois que deixa os pescadores e os brincantes, Cirilo pega um ônibus na praça do Derby e
desce na avenida Guararapes. Não pode faltar mais uma vez ao emprego, um curso para
estivadores em que é professor. As aulas são ministradas pela televisão e ele esclarece as
dúvidas dos alunos, acompanha os exercícios, passa tarefas. A turma de portuários é pequena,
homens de várias idades que passam o dia carregando fardos pesados e chegam morrendo de
cansaço nas aulas. Tentam aprender em dois semestres o conteúdo de quatro anos da escola
regular. No final do intensivo, fazem exame. Se forem aprovados entram para o segundo grau,
mesmo sem condições reais de concorrerem às vagas de uma universidade. (BRITO. 2012, p.
34)
Cirilo nunca subiu o lance de escadas que leva ao prazeroso céu do andar superior. Esbarra em
marinheiros bêbados, falando idiomas incompreensíveis; em mulheres sumariamente vestidas
e com excesso de pintura no rosto; em executivos que dão o terceiro expediente nas camas do
bordel. De início estranhou a convivência de um sindicato de homens rudes do porto, que
sofreu intervenção após o golpe militar de 1964, com as mulheres pouco recomendadas.
Pensa escrever sobre essa promiscuidade, mesmo sabendo que não terá coragem de mostrar
seu texto a ninguém, muito menos publicá-lo. Convive com intelectuais, poetas, cineastas,
escritores, músicos, pintores, simpatizantes da contracultura, hippies e místicos, todos de
alguma maneira impregnados pelo discurso da esquerda, do feminismo e da liberdade sexual.
Às vezes se imagina habitando o Recife livre de antigamente, aonde chegaram populações de
holandeses, franceses, alemães, negros, judeus, católicos e protestantes, que se juntaram aos
nativos, falando-se durante muitos anos todas as línguas vivas da Europa e várias da África.
Mas duvida se houve mesmo essa Veneza dos trópicos, com as liberdades propaladas nos
livros de História. Existem Recifes para todos os discursos conservadores e libertários, para a
poesia de um número infinito de poetas. E na festiva esquina do Cinema São Luiz, em meio aos
horrores da ditadura, alguns hippies teimam em se comportar como os jovens desgarrados e
libertos, que andam sem destino e pedem carona nas estradas da Califórnia. Enxertados às
margens do rio Capibaribe, rapazes e moças fabricam colares e pulseirinhas, fumam maconha,
tocam violão e zanzam de um lado para outro feito os caranguejos (BRITO, 2012, p.35)
Geraldo não perdoaria Cirilo, talvez nunca mais o olhasse no rosto, se soubesse que uma única
vez ele cedera à tentação de subir os degraus da escada que levava ao quarto andar do prédio
do sindicato, para entregar-se a um deleite reprovado na cartilha socialista. Movido por uma
compulsão erótica e libido intensa, Cirilo cogitou muitas vezes essa possibilidade, desejou-a
mesmo que contrariasse o irmão comunista e o que aprendera na convivência com as
mulheres da família. Cada um praticava o feminismo ao seu modo. Geraldo buscava na mulher
a companheira revolucionária, capaz para a luta, em tudo igual ao homem. Cirilo conhecia o
ideário da contracultura, as reivindicações feministas, mas guiava-se pelo exemplo de Célia
Regina administrar a casa e educar os filhos. Por extensão desse olhar sobre a mãe, alcançava
a avó, as tias, as irmãs, as vizinhas, as outras mulheres. Quando ainda moravam na fazenda,
estranhava que, após os trabalhos no campo, os homens sentassem para conversar, fumar e
ouvir rádio. As mulheres lavavam a louça do jantar, arrumavam a casa, finalizavam o fabrico
dos queijos, adiantavam o almoço do dia seguinte, punham feijão e milho de molho,
debulhavam cereais, torravam amendoim e gergelim, e, quando todos já dormiam,
costuravam as roupas dos filhos, de alguns empregados e do próprio marido. De madrugada, a
mãe levantava junto com o pai: ele para tirar o leite das vacas e cuidar do gado; ela para servir
o café e preparar o almoço. Os filhos também precisavam de cuidados e educação. O pai
ajudava, apesar da canseira de sua própria luta, mas todo seu esforço se tornava pequeno, se
comparado ao da esposa. Os homens que participavam das tarefas domésticas diziam fazer
isso por generosidade, achando-se especiais e merecedores de elogios, enquanto os excessos
da lida feminina não passavam de dever. Não havia lei de congresso estabelecendo a divisão
de trabalho nas famílias, por isso as mulheres aceitavam passivamente as funções acumuladas
ao longo de séculos. Algumas pareciam felizes nesse papel, como se dependessem dele para
alcançar a plenitude. Continuavam vivendo e trabalhando, cuidando do marido e dos filhos da
mesma maneira que suas bisavós, avós e mães. Célia Regina, apesar do catolicismo
empedernido, do ranço de nobreza sertaneja alimentado pelas árvores genealógicas dos Rego
Castro, que vez por outra ela desenrolava sobre a mesa da sala de visitas, era uma mulher
forte e corajosa, mesmo sem cartilha ou discurso ideológico (BRITO, 2012, Pp. 37-38)
Sem estímulo para o emprego no Sindicato dos Portuários, Cirilo torna-se um professor ao
acaso, garantindo a sobrevivência com o salário miserável. Completa a renda modesta dando
aulas particulares a meninos ricos, que não gostam de estudar por motivos diferentes dos
estivadores. A única chance de um estudante de medicina conseguir dinheiro é ensinar nos
colégios. No começo, pensou que não manteria a promessa feita ao pai, de ajudá-lo a educar
os irmãos mais novos. Fizera um acordo de receber dinheiro da família apenas seis meses, o
tempo de se estabelecer na cidade, ser aprovado no vestibular e descobrir maneiras de ganhar
a vida sozinho, o que se revelava bastante difícil de cumprir (BRITO, 2012, p.38)
Cirilo sente-se faminto e desamparado, o corpo dói e não relaxa na carteira desconfortável.
Deita a cabeça para trás, tenta abstrair-se dos números...desejava morrer de verdade?
Certamente não. Ou sim? Por que está sentado nesse lugar, ...Cirilo desistiu de compreender o
que lhe ensinam, fecha os olhos e registra apenas os roncos da barriga, a boca amarga, a fome.
(BRITO 2012, p.38-39)
O dinheiro nunca sobrou para o luxo de um táxi, mal pagava o cinema e o chope nos finais de
semana. Ele e Cirilo faziam parte do reduzido número de alunos que cursavam medicina
trabalhando. Uma penúria revelada em algumas notas baixas, num sono permanente, em
ansiedade e medo de não dar conta das tarefas. Assumiam poucos estágios e tinham a remota
perspectiva de um plantão remunerado a partir do sexto ano. Leonardo pedia dinheiro
emprestado a Sílvio e aos colegas da Casa, assinava vales de adiantamento no jornal e nunca
saía do vermelho. Nenhum dos amigos economizava algum trocado, todos sofriam uma
carência crônica de alimento, amor e sexo. O restaurante universitário não funcionava aos
sábados e domingos, obrigando os estudantes a procurar a casa de parentes e socorrer o
estômago. Os mais desvalidos e sem familiares na cidade passavam fome. (BRITO, 2012, Pp 45-
46)
A história da família de Cirilo começara num engenho de Pernambuco, há trezentos anos.
Envolvidos na Guerra dos Mascates, os Rego Castro fugiram para as terras férteis do vale do rio
Jaguaribe, nos Inhamuns. Um tio-avô do oitavo grau, João Domísio, fez comércio e enriqueceu
transportando carne jabá, em tropas de burros, do sertão até o Recife. Percorria em sentido
contrário a rota de fuga. Talvez sentisse a nostalgia da cana, do cheiro da garapa e do mel
cozinhando nos tachos do engenho. Na primeira viagem encantou-se com a cidade, os sinos
tocando no alto das torres das igrejas, o rio largo e perene, as pontes e o mar azul. Na terceira
ou quarta apaixonou-se por uma moça a quem se apresentou como solteiro, acertando
casamento. Longe, a esposa o esperava com os filhos. Voltou triste aos Inhamuns, não
encontrando sossego na própria casa, nem saciedade no corpo gasto de Donana. Consumido
pela saudade da noiva que deixara longe, resolveu matar a esposa. Inventou aos irmãos dela
que estava sendo traído. Eles responderam que agisse de acordo com o código de honra
sertanejo. Iriam apurar a intriga e, se ele estivesse mentindo, que se preparasse para a
vingança. Numa tarde de inverno em que Donana se banhava num riacho atrás de casa, João
Domísio enfiou um punhal em suas costas. Depois fugiu e se escondeu na casa do irmão mais
velho, num quarto escuro aonde a luz do sol nunca chegou. Os cunhados vieram à sua procura,
dispostos a vingar a irmã. Traziam nas mãos a prova do crime: o punhal ensanguentado.
Perguntaram por João Domísio e exigiram que o entregassem a eles. A resposta foi um pedido:
que respeitassem as leis da hospitalidade, sobretudo na casa de um irmão; se desejavam
matá-lo, que o fizessem noutro lugar, ali, não. Francisca, a filha mais velha de Domísio, partiu
em cima dos tios e tomou a faca assassina, arremessando-a bem longe no terreiro. Um
vaqueiro de passagem enxergou uma ave prateada, ouviu o tinir do metal contra as pedras do
terreiro e depois o silêncio. Ninguém nunca encontrou a faca, em anos de busca. Perderam-se
os sinais da morte gravados na lâmina e o rico ouro de seu cabo, na forma de duas serpentes.
A história narrada por sucessivas gerações fez do crime de João Domísio um legado dos
homens Rego Castro, herança passível de se repetir noutros assassinos potenciais. (BRITO,
2012, Pp.51-52)
Quando caminhava até a ponte, desejando jogar-se nas águas barrentas do rio Capibaribe,
Cirilo não tinha clareza se atuava por vontade própria, ou se apenas repetia a sina ruim de João
Domísio. Tempo depois do crime, Domísio foi encontrado morto, o corpo perfurado de balas,
boiando noutro rio, o Jaguaribe. Peixes haviam comido o seu rosto. As feições depuradas em
cromossomas e genes perderam-se para sempre. (BRITO, 2012, p.53)
Esperaram horas numa sala estreita cheirando a fumaça de charuto. Molas de arame
machucavam o corpo mal-acomodado no sofá com remendos e buracos. Pela divisória de vidro
avistavam o primo de corpo moreno e gordo, em que se reconheciam traços dos índios jucás,
primeiros habitantes dos Inhamuns, dizimados até só restarem as mulheres, os úteros de
gerações sertanejas. O delegado também fizera o caminho de volta ao Recife e se instalara
num posto de mando semelhante ao dos seus parentes coronéis. Descendia da Casa Grande
do Umbuzeiro, fundada por um padre colonizador — o irmão do infeliz João Domísio — e uma
índia de nome Páscoa, os pais de doze machos procriadores. A família herdeira dessa semente
ainda reinava absoluta nos Inhamuns e os moradores de suas fazendas sujeitavam-se a
trabalhar de graça, dois dias na semana. Cirilo se lembrou de um caso que a mãe costumava
narrar para ele, e quis desistir da conversa com o primo. No povoado onde o delegado nascera,
um irmão dele obrigou os pais de uma garota a entregá-la à dona de um cabaré para se
prostituir, porque soube que ela transara com o noivo antes do casamento. Pela moral
sertaneja, qualquer moça que perdia a virgindade e não casava tornava-se uma prostituta
(BRITO, 2012, p. 53-54)
Um arrepio eriçou os pelos de Cirilo e ele preferiu não relatar suas lembranças ao amigo.
Acendeu um cigarro sem pedir permissão, achando que no ambiente impregnado de tabaco
um pouco mais de fumaça não faria diferença. Pessoas com a ética e a moral do primo
ocupavam os cargos políticos e aplicavam a justiça e a lei. Sentiu-se um bárbaro dos trópicos,
porém os livros lhe ensinavam que mesmo em países onde se criou a mais elevada arte e
filosofia não conseguiram conter o impulso para o holocausto. E que há pouco mais de vinte
anos milhões de homens e mulheres morriam na Europa culta e desenvolvida, em nome de
ideologias e discursos de limpeza racial, coisa tão absurda quanto as arbitrariedades dos
primos sertanejos. Apesar dos temores, ainda conseguia pensar. Extraía as experiências do
passado recente desejando renová-las, mesmo sentindo-se vulnerável à decadência e às ruínas
do tempo sombrio no Recife. Teve consciência de que sua geração vinha sendo aniquilada em
delegacias semelhantes a esta onde ocupava uma poltrona suja. Porém confiava permanecer
vivo, nem que fosse por esperteza ou sorte (BRITO, 2012, p. 54)
Para diminuir o tédio nas aulas, Leonardo escrevia poemas e frases em pedaços de papel. Cirilo
recebia os textos, lia-os e se achava incompetente para respondê-los: “O transtorno que nos
deixa inquietos é consequência de um corte em nossas vidas: a separação da família que
amávamos, o afastamento do campo e da natureza, a perda do elo com o sagrado. Temos o
quê, de próprio? Quase nada. Talvez apenas o ceticismo.” (BRITO, 2012, p.55)
O pai tutelava as escolhas profissionais dos filhos. Desde menino Geraldo foi pressionado a
ingressar nas forças armadas, a seguir carreira militar, chegando, se possível, ao posto de
general. Foram tantos os argumentos e chantagens de Luís Eugênio que o rapaz submeteu-se a
trinta dias de caserna, raspou o cabelo no estilo soldado, adoeceu gravemente de asma sem
nunca antes haver cansado, até que o dispensaram com uma carteira de reservista de terceira
categoria, por excesso de contingente. Célia Regina, cujo avô coronel havia comprado a
patente, não sentia encantamento pelos galões militares. Sonhava ter um filho padre, mas
logo cedo Geraldo frustrou-a, pois vivia cheio de namoradas e não manifestou vocação
religiosa nem mesmo para assistir a missas aos domingos ou rezar o terço em família, seguindo
a recomendação do papa Pio XII. Percebendo que semeava a fé em solo infértil, Célia Regina
investiu no filho Cirilo, mais dócil e submisso, forçando-o a tomar lições de catecismo e latim, a
ser coroinha na capela de um abrigo para velhas, o que implicava sair de casa às seis horas da
manhã, antes mesmo de tomar o café e ir ao colégio. Como se não bastasse a pesada carga
religiosa imposta ao filho, convidou para seu padrinho de crisma o clérigo a quem ele ajudava
nas missas, sacerdote de carreira, mais tarde promovido a monsenhor. A manobra seguinte da
mãe foi orientar a criança a solicitar ao padrinho uma bolsa de estudos no colégio diocesano, o
que o deixaria preso por laços indissolúveis à Igreja católica. (BRITO, 2012, p.62)
Cirilo resignou-se ao fardo imposto pela mãe e aprimorou o quanto pôde o seu latim
canhestro. Gostava dos cantos litúrgicos, das celebrações da Semana Santa, de balançar o
turíbulo cheio de brasas vermelhas e sentir o aroma do incenso. Sua maior tortura se dava
quando o padre distribuía a comunhão segurando o cálice com as hóstias consagradas,
enquanto ele sustinha a patena debaixo dos queixos fiéis, para que não se perdesse um único
fragmento do corpo de Jesus. Algumas velhas o assustavam tanto quanto as pinturas de
Brueghel, com seus olhos esbugalhados, verrugas gigantes na face e orelhas enormes. Quando
o padre segurava a hóstia anunciando o Corpo de Cristo, elas abriam bocas descomunais,
estiravam as línguas grossas e compridas, ameaçando engoli-lo como o peixe monstruoso que
engoliu Jonas. O próprio celebrante esquecia as funções piedosas de que fora investido e não
disfarçava o seu asco. Com pontaria arremessava a hóstia na cratera aberta à sua frente,
cuidando em não contaminar as pontas dos dedos na saliva viscosa. (BRITO, 2012, Pp. 63-34)
Luis Eugênio sabia por experiência própria que trabalho de menino é pouco, mas quem o
desperdiça é louco, pois começara a ser levado à roça pelo pai desde os cinco anos. Ao tomar
conhecimento de que o menino fora dispensado das funções litúrgicas, que lhe garantiam uma
bolsa de estudos diocesana, depressa arranjou uma nova ocupação para o filho:
responsabilizou-o pela feira semanal e pelas compras diárias de mercado e açougue, numa
época em que a geladeira era um luxo para poucos milionários. Temeroso de que a mãe
maquinava uma nova armadilha, que o empurraria de volta aos braços da Igreja, Cirilo
comemorou a troca de ofício, achando vantajoso tornar-se o intendente da casa. Para garantir-
se no posto, ele assumiu além das compras no comércio ser o emissário dos recados da mãe e
acompanhá-la nas visitas aos parentes. Esforçava-se na eficiência, corria em vez de caminhar
quando o mandavam em alguma missão, ajudava as irmãs nas tarefas escolares e ainda
conseguia manter-se em primeiro lugar no colégio (BRITO, 2012, p.65)
Geraldo frustrou o pai no projeto de ter um general na família, mas Luis Eugênio nunca desistiu
do sonho acalentado desde que o convocaram com dezenove anos para lutar na Europa. Não
viajou à Itália porque as forças aliadas chegaram antes dele, acabando a Segunda Guerra. Os
tios comentavam à boca pequena que ele morria de medo de segurar um fuzil e casou-se às
pressas para ser dispensado. Luis disparou a carga de sua infantaria no filho mais velho, sem
jamais conseguir alvejá-lo. E se Geraldo se candidatasse ao Instituto Tecnológico da
Aeronáutica, a elite da engenharia brasileira? A obsessão por trabalho, estudo e sucesso movia
as roldanas da casa Rego Castro, impulsionava marido e mulher desde que habitavam a
fazenda nos Inhamuns e resolveram deixar a lavoura e a pecuária para trás, como coisa
superada e sem perspectiva de futuro. — O progresso está nas cidades, o campo esgotou-se e
morreu — proclamava Luis para os vizinhos fazendeiros, gente que sacrificava a vida por
cabras e pés de milho. — E quem vai alimentar os da cidade? — desafiavam. — A lavoura
mecanizada — respondia com convicção. E a conversa terminava por aí, Luis assumindo ares
de profeta, a face transtornada. Quem duvidava de um homem que aprendera a ler sozinho
nos livros da esposa, que trouxera o primeiro rádio para os Inhamuns e ouvia as notícias do
Brasil e do planeta? Ninguém. (BRITO, 2012, p. 67)
Agora desejava mudar de rosto, não se reconhecer a mesma pessoa, reagir aos massacres e
bater de frente…Contemplou-se sem compaixão e jurou que nunca mais seria maltratado, nem
que para isso fosse preciso matar. (BRITO, 2012, P.80)
Quando o primogênito voltava da cidade, após noitadas de namoro e farra nos cabarés, Luis
Eugênio retirava os arreios e a sela do cavalo e ia soltá-lo no pasto, a troco de um pagamento
simbólico: que o irmão lesse em voz alta, para ele escutar, romances e livros de cavalaria. Por
estranhas conjunções, os pais não haviam conseguido dar o mesmo grau de ensino aos nove
filhos. Alguns, como o irmão mais velho, se destacavam por seus conhecimentos diferenciados
e certo grau de cultura livresca. Luis inventava utensílios domésticos e agrícolas, técnicas de
prensar queijo, de trançar varas nas cercas ou drenar riachos e fazer açudes, mas faltavam-lhe
esforço e concentração para os livros, o que ele só veio a alcançar bem mais tarde. O trabalho
na fazenda desses Rego Castro menos nobres significava religião e vida. Ninguém conhecia o
lazer, entregando-se aos afazeres da agricultura, da pecuária e da casa numa rotina
interminável e estafante, que envelhecia as pessoas cedo e as matava antes do tempo. Aos
quarenta e cinco anos, o pai mais parecia um velho, embora o corpo não revelasse cansaço,
nem se entregasse à preguiça e ao descanso. Quando ia à cidade para algum negócio urgente,
não tomava café para não perder tempo, alegando haver muito serviço esperando por ele.
Sentar numa cadeira enfadava mais do que passar o dia curvado na enxada, limpando o mato
dos pés de arroz ou tirando leite das vacas. Depois de acordar de madrugada e passar a manhã
cozinhando o almoço para dezenas de pessoas, a mãe sentava à mesa e comia com o marido,
os filhos e agregados. Terminada a refeição, ficava um longo tempo de olhar perdido, absorta e
distante. Por fim ela se mexia na cadeira e era como se a ordem do mundo se refizesse,
autorizando as pessoas a também se moverem e falarem. (BRITO, 2012, p.84)
Diplomada professora, Célia Regina aceitou o primeiro emprego que lhe ofereceram: dar aulas
na fazenda de uns parentes enriquecidos com o plantio de arroz e a criação de gado. O ramo
aristocrático e falido dos Rego Castro se curvava ao outro ramo sem classe, porém rico. As
terras ficavam distantes do lugar onde se formara, mas Célia Regina não tinha escolha. Sua
mãe conseguira arruinar a propriedade do pai, em poucos anos de viuvez e fracasso
administrativo, nunca aceitando casar novamente e se impondo um luto rigoroso. (BRITO,
2012, p.85)
Humilhado por se achar rude e ignorante frente à professora educada e culta, Luis Eugênio
demorou a compreender que sua raiva não passava de um disfarce da paixão. Despeitado e
com ciúme dos outros alunos, decidiu aplicar-se nos estudos e em menos de um ano seu
progresso na leitura, na gramática e na aritmética deixou a professora surpresa. Ela soube
depois que o aluno mal dormia, passava as noites ao lado de um candeeiro aceso, lendo com
voracidade e enchendo as páginas dos cadernos com cópias de crônicas e exercícios de
matemática. O pai levantava-se da cama, ia junto dele e reclamava contra os excessos da
vontade de aprender, lembrando que no dia seguinte ele teria de acordar de madrugada para
a ordenha das vacas. A fazenda se mantinha e prosperava com o trabalho de todos e não
gostava de lembrar isso aos filhos. Ansioso por recuperar os anos perdidos, por dizer ao irmão
primogênito que nunca mais levaria seus cavalos ao pasto em troca da esmola de ouvir a
leitura de um livro, desejando falar com a professora sem ser corrigido a cada frase, Luis
Eugênio não media sacrifício nos estudos, mesmo adquirindo olheiras escuras e fundas por
conta da vigília. Após dois anos morando na casa dos parentes, Célia Regina olhou o moço
absorvido na interpretação de um texto, achou-o tão belo que sentiu um aperto no peito.
Nessa noite, foi ela quem não dormiu pensando no que a mãe iria falar quando soubesse que a
filha se apaixonara por um dos alunos. Não demorou e a mãe mandou buscá-la de volta,
imediatamente, pois não consentia que pernoitasse debaixo do mesmo telhado com o homem
por quem se apaixonara. (BRITO, 2012, Pp.86-87)
Um tio do rapaz levou o pedido de casamento, celebrado três meses depois. Luis Eugênio
recebeu terras para administrar num sertão longe e seco, com casa, açude e cabeças de gado.
De quebra, livrou-se da Guerra e da chance de morrer anônimo na Itália. Célia Regina
acrescentou ao seu modesto enxoval uma pequena biblioteca, que cabia num caixote de
madeira em que a mãe guardava rapadura, antes do engenho arruinar-se. (BRITO, 2012, p.87)
Graças aos conhecimentos armazenados nessa caixa, Luis Eugênio pôde continuar seus
estudos nos dez anos em que viveram no sertão de lajedos. Ao chegar à cidade onde foram
morar depois, candidatou-se ao exame de admissão numa escola noturna, quando já
completara trinta anos e se envergonhava de sentar ao lado de rapazinhos. Convencido de que
o saber chegara tarde para ele, resignou-se ao constrangimento e concluiu com louvor um
curso de segundo grau em contabilidade, profissão que nunca exerceu porque se dedicou ao
comércio. O aprendizado dos cálculos não impediu que um primo sócio o desfalcasse e o
levasse à ruína financeira, quando Geraldo e Cirilo moravam no Recife e a família mais
precisava de dinheiro (BRITO, 2012, p.88)
A vida urbana aproximou-o do cinema, dos jornais e revistas, ampliando seus conhecimentos
sem corrigir a inclinação política conservadora, alinhada aos partidos de direita, embora fosse
avesso às coisas da religião. A ruptura com a Igreja aconteceu logo na chegada à cidade,
quando procurava uma casa para alugar. A maior dona de imóveis era a diocese católica, que
não assumia publicamente o apego ao dinheiro, atribuindo seus bens a uma instituição com o
nome de Obras Vocacionais, encarregada de formar jovens pobres na carreira eclesiástica. O
administrador de vocações era um padre de fala camuflada e olhar enviesado. Ele enganou o
impaciente Luis Eugênio, dando preferência aos inquilinos mais recomendados, protelando o
contrato até o dia em que Luis perdeu a paciência. Os tios velhos da família Rego Castro se
escandalizavam com o pavio curto do sobrinho no tratamento com os clérigos, mas houve
quem atribuísse o acontecido ao sol quente de outubro e ao excesso de preocupações
financeiras. Na subida ao seminário diocesano, depois de expor pela décima vez os motivos
por que tinha urgência em receber a casa, Luis Eugênio deixou-se arrebatar pela cólera do
mesmo modo que Jesus Cristo ao ver o templo ocupado pelos vendilhões, e num ímpeto
desfechou uma bofetada no padre, que perdeu o equilíbrio e caiu na ladeira de pedras. Foi um
escândalo na cidadezinha com bispado, e só não abriram um processo de excomunhão contra
Luis Eugênio porque o lugar ainda não se refizera de outro processo mais famoso, desta vez
contra o padre Cícero, acusado de embuste e sacrilégio. (BRITO, 2012, Pp. 88-89)
No andar térreo havia apenas essa pequena sala de recreação; o restante do espaço se abria
ao campus. Os três pavimentos superiores possuíam cada um dezesseis quartos, onde se
alojavam quatro estudantes, num arranjo que lembrava a arquitetura socialista de Niemeyer
ou os edifícios periféricos do leste europeu. Os andares se dividiam em alas servidas por dois
banheiros coletivos, com apenas duas privadas e dois chuveiros, o que provocava
congestionamento em horários concorridos como o amanhecer. Os cubículos das privadas
tinham portas, mas os chuveiros eram abertos, não permitindo nenhum recato durante os
banhos. Favorecia os exibicionistas, que costumavam desfilar nus pelos corredores, de
bandeiras hasteadas como se fossem subir numa mulher ou se exercitar na mão. A Casa era
um ambiente de homens, ou melhor, de machos, oferecendo poucas chances de sobrevivência
aos tímidos e delicados. Nos dias em que faltava água, o que se tornou frequente durante um
longo período, os estudantes não podiam tomar banho, as bacias sanitárias se enchiam de
merda até as bordas, se espalhava um cheiro pestilento pelos quartos e corredores,
reforçando o cenário e a atmosfera de campo de concentração. Como os protestos tinham
sido proibidos por ato institucional, havendo risco em praticá-los, muitos estudantes optavam
por abandonar temporariamente a residência. Os que não tinham para onde ir sufocavam na
atmosfera duplamente escatológica: a das coisas que devem acontecer no final dos tempos,
num contexto apocalíptico vislumbrado pelos profetas, e a das coisas mais terrenas, relativas
aos excrementos humanos. Nenhum sociólogo investigava a sério os frequentes suicídios e
acessos de loucura entre os moradores, talvez para não descobrir o desconforto e o
sofrimento a que viviam submetidos. (BRITO, 2012, Pp. 91-92)
Mulheres não entravam ali, em nenhuma hipótese, o que fez circularem boatos sobre um
estudante de História, membro de uma Irmandade Mariana. Ele tinha visões de Nossa Senhora
apenas do lado de fora do prédio, porque nem mesmo à Virgem Maria se franqueava o acesso.
A residência das moças universitárias funcionava no centro da cidade e não estabelecia
nenhum intercâmbio com a dos homens. Nesse ambiente masculino de três andares, doze
banheiros, quarenta e oito quartos mobiliados com camas, mesas de estudo com luminárias
próprias, guarda-roupas e maleiros, cento e noventa e dois rapazes das mais variadas
procedências geográficas, estratos sociais, credos, ideologias e cursos confinavam-se como
num gueto, sutilmente vigiados pelo esquema repressivo da reitoria e por colegas olheiros que
aceitavam o emprego de delatores, a troco de benefícios insignificantes e um pouco de
dinheiro. Os pelegos nem sempre conseguiam manter o disfarce e sofriam rejeição dos
estudantes mais politizados. Uma corja de moradores mau-caráter formava um partido
naquele ambiente rústico, dando sustentação aos Judas. Estouravam agressões, que
terminavam sempre na sala de uma assistente social. Ela escutava as queixas, indiferente e
sonolenta, contando o tempo para a aposentadoria. Se as disputas ganhavam cores
subversivas, encaminhavam os suspeitos a um departamento de vigilância e repressão,
instalado dentro da própria universidade. (BRITO, 2012, Pp. 92-93)
No começo Cirilo rejeitou a ideia de residir na Casa do Estudante, pois temia não suportar
outro ambiente repressivo além da faculdade de medicina. Assumiu um número maior de
alunos particulares, mas não ganhava o suficiente para continuar dividindo os custos do
apartamento onde morava com sete colegas. No final do primeiro ano, fez um balanço
financeiro e declarou-se falido. Não tendo a quem pedir ajuda, chegou à conclusão de que a
única saída para reduzir suas despesas a menos da metade era a Casa. Convenceu Leonardo a
candidatar-se a uma vaga com ele e, se tivessem sorte, dividirem o mesmo quarto com dois
desconhecidos. Leonardo temia não conseguir um documento necessário, a folha corrida da
polícia com a declaração de que não possuía antecedentes criminais. A lista de papéis também
incluía um atestado fornecido pelo juiz, vigário ou delegado da cidade do aspirante à vaga,
afirmando que o mesmo era pobre na forma da lei. Também exigiam histórico escolar,
comprovando o bom desempenho no curso frequentado, cartas de recomendação de pessoas
importantes e certificado de serviço militar ou dispensa temporária. No trote promovido pelos
moradores da Casa, o folclore era de que eles submetiam os novatos ao teste da goma, uma
prova em que o aspirante sentava despido sobre fina camada de pó branco e, em seguida,
contavam-se as impressões deixadas pelas pregas anais. Com esse procedimento simples
descobriam se o aspirante perdera alguma membrana em práticas condenadas na cartilha
machista. Tratava-se de uma brincadeira estudantil jocosa, a que ninguém era submetido de
verdade, mas com ela se estabelecia o padrão de conduta sexual na morada universitária.
(BRITO, 2012, Pp. 93-94)
No Recife, se alguém atrasa um encontro, se homens estranhos perguntam por determinada
pessoa, se avistam uma Rural verde nas imediações de casa, é sinal para ligar as sirenes. Mas
quem escuta sirenes, se os ouvidos estão surdos de medo? Leonardo desejava acompanhar o
amigo. Cirilo preferiu que ele não fosse por conta da ficha suja na polícia. Álvaro discursou
duas horas sobre a perversidade do regime transformar uma vítima em bandido. Trata-se
apenas de um estudante do primeiro ano de medicina, um rapazinho agredido por colegas em
sala de aula. Mas um estudante não comum pelo sobrenome. A árvore genealógica dos Rego
Castro chama atenção com Geraldo, um ramo que começa a dar trabalho ao regime. (BRITO,
2012, p.109)
A pergunta veio à queima-roupa, sem preâmbulos. Cirilo esperava por ela, desde o começo do
interrogatório. Pensou em responder que não o conhecia, não porque tivesse medo, apenas
para sacanear o professor. Mas tinha certeza de que ele providenciara seu dossiê completo no
serviço de informação da reitoria, onde sabiam os pormenores de sua vida dentro e fora da
universidade.
— Somos irmãos.
— Geraldo é um excelente rapaz, um ótimo filho. Meu pai e minha mãe lutaram bastante para
nos educar.
Estudantes protestam em frente ao velho Hospital Pedro II, onde há um século a nobreza
recifense dançou um baile no primeiro andar, durante a passagem do imperador pela cidade.
Somente depois da festa inauguraram o edifício neoclássico imaginado pelo engenheiro que
também projetou um ginásio, a casa de detenção e o cemitério mais famoso do Recife. É difícil
conceber os mesmos dedos rabiscando desenhos tão diferentes: salas abertas ao ensino e ao
futuro, cubículos destinados a homens sem perspectivas, enfermarias de doentes, covas e
gavetas para os mortos. Ninguém protestou contra a dança e a música entre as paredes do
hospital. Protestam agora em recusa a um novo decreto-lei do regime militar. Em meio aos
alunos, instituições e partidos, um velho discursa como os profetas bíblicos ou os beatos
milenaristas que arrastavam multidões nas terras secas nordestinas, alertando contra as coisas
ruins. O homem falando a linguagem extravagante cheia de passagens bíblicas só é possível
mesmo nessas bandas de cá, por onde caminharam levantando suas vozes e pregando o
sebastianismo Antonio Conselheiro de Canudos e José Lourenço de Juazeiro do Norte. (BRITO,
2012, p.123)
— Até quando o exército será um esconderijo de torturadores? Até quando vai durar o
abominável ato institucional que dá poderes absolutos aos tiranos? Ai! Gememos nós, do
povo! Ai! Mas vamos parar de gemer porque este é um grande dia! Não há outro semelhante a
ele! Quebraremos a canga que pesa sobre nosso pescoço e romperemos as cadeias. Vamos à
luta! (BRITO, 2012, p. 126)
— Pensar tornou-se crime, sujeito a penalidades. Ser conformista e de boca fechada é mais
vantajoso e lucrativo. Os que escolhem manter-se fora da política não podem se opor às
injustiças e arbitrariedades do regime, nem exercer seus direitos de expressão. Não haverá
mais tempo! Não fique em cima do muro, decida-se por um lado! (BRITO, 2012, p. 126)
Sem valorizar a fama alcançada por Geraldo nas lutas estudantis e no partido, Célia Regina
preferia que ele tivesse frequentado regularmente o curso de engenharia, conseguido um bom
emprego, que ganhasse bastante dinheiro e ajudasse os irmãos mais novos, que casasse e lhe
desse netos. A luta por igualdade social e transformação política do país lhe parecia um ideário
vago, falatório de quem possuía excesso de juventude e muita fumaça na cabeça. Não
distinguia os discursos de direita e esquerda, achando que ao chegarem ao poder os mesmos
erros seriam cometidos pelos dois lados, e que não se respeitava a liberdade nem na China
nem no Brasil, havendo em ambos os países intolerância, repressão, tortura e morte. Existiam
pessoas boas e más em qualquer tempo, Jesus Cristo apontara o caminho para a salvação do
homem, bastava praticar os Evangelhos, o que ela mesma reconhecia não fazer corretamente.
Mas nem por isso aceitava a Igreja politizada e atuante em causas sociais. À medida que Luis
Eugênio se perdia num mundo de culpas e remorsos, ausentando-se da educação dos filhos e
do papel de provedor da casa, Célia Regina se descobria capaz de pensar, expor ideias fortes e
corajosas, compreender as escolhas dos filhos sem deixar de amá-los, mesmo não
concordando com eles. As diferenças entre Cirilo e Geraldo, sempre visíveis, tornavam-se
claras. A mãe temia que por algum mecanismo inconsciente eles buscassem acentuá-las a
ponto de se confrontarem. O segundo filho aceitara a primogenitura imposta pelos pais,
assumira uma carga de obrigações financeiras, e até a responsabilidade pela vida em perigo do
irmão mais velho. Para Luis Eugênio, mesmo Cirilo alcançando o mais sublime êxito
profissional, não o compensaria pelo extravio do seu filho pródigo. (BRITO, 2012, Pp.134-135)
Célia Regina notou certa frieza nos parentes e amigos, que a revoltaram de início, mas
deixaram de magoá-la com o passar do tempo. Poucas pessoas do convívio familiar se
interessavam pelo destino de Geraldo, dos presos torturados e desaparecidos. Quando se
referiam à repressão política e à resistência, diziam tratar-se de uma luta fora do mundo em
que gravitavam, interessando apenas aos que estavam engajados. O falso milagre econômico
permitia que trocassem o carro e viajassem à Disney. Geraldo explicou numa carta para a mãe
que existia um Brasil campo de batalha e um Brasil bolha de privilégios, em que os de sempre
continuavam usufruindo o de sempre. Esses privilegiados temiam mudanças sociais, faziam
vista escura à repressão e davam respaldo à ditadura. Na cidade cearense distante quase
setecentos quilômetros do Recife, Célia Regina e Luis Eugênio tornaram-se conhecidos como
os pais do comunista e eram olhados como se olham os leprosos (BRITO, 2012, p. 135)
Pouco depois do golpe de 1964, Geraldo ingressou num curso da Escola de Engenharia, na
antiga Universidade do Recife, sendo o primeiro classificado no vestibular. Os estudantes de
engenharia tornaram-se conhecidos pela atuação junto aos movimentos sociais e já no
primeiro dia do novo regime saíram às ruas protestando contra os militares, numa passeata
em direção ao Palácio do Governo. Recebidos à bala pela polícia, dois rapazes morreram. Os
manifestantes não se acovardaram diante da força do regime e a escola continuou sendo um
espaço em que fervilhavam os ideais revolucionários, o diálogo com intelectuais de esquerda e
pensadores. (BRITO, 2012, p. 136)
Ao invés de sentir-se atraído pela matemática e pelos cálculos, Geraldo encantou-se com a
política do diretório acadêmico, chegando anos depois a ser presidente da União dos
Estudantes de Pernambuco. Nos seus discursos, condenava as arbitrariedades dos militares,
defendia ensino público gratuito, liberdades democráticas e a reorganização das entidades
representativas dos estudantes, extintas ou constantemente fechadas pela ditadura. (BRITO,
2012, p. 136)
Antes de sua primeira aula, Geraldo participou de uma greve contra a transferência da Escola
de Engenharia do antigo local onde funcionava, no centro da cidade, para o campus
universitário distante. Acreditava que a intenção dessa mudança era enfraquecer a força
combativa dos alunos que se opunham abertamente aos militares, isolando-os num local
ermo. A greve ficou conhecida como a primeira levada à frente, desde o golpe. Geraldo foi
preso por ter elaborado um cartaz incitando à paralisação, com frases agressivas ao regime. A
prisão arbitrária, mesmo para as leis da época, teve um delegado responsável. Ele declarou
que se tratava apenas de um corretivo, uma ação disciplinar contra arroubos juvenis. (BRITO,
2012, p. 136-137)
Um ano depois, o jovem revolucionário continuava envolvido com as lutas estudantis do curso
de engenharia e ausente das salas de aula. Sofre a segunda prisão. Membros da polícia militar
e civil de Pernambuco invadem a casa onde mora e o prendem. Em seguida é encaminhado ao
IV Exército, ficando três semanas numa cela de um metro por um metro e meio, paredes com
chapisco pontiagudo de cimento cru, escura e sem um colchão onde pudesse deitar.
Incomunicável, tem a companhia dos mosquitos, que destroçam sua pele branca e fina, e de
homens encapuzados que o levam para longos e intimidantes interrogatórios. Dorme no chão
e faz as necessidades conforme o arbítrio do oficial do dia: é escoltado até um banheiro sem
porta e senta numa bacia sanitária, de frente para soldados com fuzis apontados em sua
direção. Após a estada numa companhia de guardas, transferem-no para outro regimento.
Passa a última semana de prisão incomunicável e sem direito à assistência de um advogado.
(BRITO, 2012, p. 137)
Da mesma maneira que um paciente de psicanálise preenche seu discurso vazio com histórias
fantasiadas, Luis Eugênio ocupa as margens do livro com interpretações de fatos divulgados na
imprensa. Geraldo nunca escreveu ao pai ou à mãe narrando o que lhe acontecia, nem
conversou com Cirilo, bem próximo dele no Recife. Seguia ao pé da letra uma cartilha de
silêncio; nada informava, não deixava pistas nem endereços, imaginando que dessa maneira
não o pegariam outra vez. Habituado aos relatos sertanejos sobre o cangaço, o pai indagou se
Geraldo possuía algum protetor, um coiteiro dos que escondiam os bandidos das volantes
policiais, durante as perseguições. Célia Regina não gostou que o marido confundisse as
atividades do filho com as de um cangaceiro, embora ele argumentasse que ambos viviam na
clandestinidade, fugindo e se escondendo da polícia. (BRITO, 2012, p. 137-138)
No livro de capa preta — como ficou conhecido dentro da família Rego Castro —, a que Luis
Eugênio dedicou seus últimos anos de lucidez, há várias anotações de pé de página explicando
os motivos da segunda prisão de Geraldo, junto a outros líderes. Como secretário do Diretório
Acadêmico de Engenharia, ele havia participado de uma assembleia em que foram aplicadas
sanções contra dois estudantes, por terem denunciado como subversivos dois colegas da
mesma turma. A votação esmagadora de quatrocentos votos a favor de expulsar os pelegos do
diretório, contra apenas onze votos contrários, foi considerada pela ditadura como um tribunal
popular comunista à moda chinesa e cubana. (BRITO, 2012, p.138)
Há uma comovente nota escrita por Luis Eugênio, logo após os acontecimentos que levaram o
filho à cadeia, que atesta seu extremo amor paterno. O texto pouco legível, por conta da letra
trêmula, diz o seguinte: Geraldo nunca se afastou dos princípios de honestidade que incutimos
nele, como sendo o maior bem. Mesmo eu não aceitando a escolha política do meu filho,
mesmo sofrendo ao vê-lo estragar um futuro brilhante, me orgulho de suas atitudes, pois
reconheço que não agiria diferente. A traição dos dois rapazes merecia ser punida. O
julgamento foi justo e a pena correta. Parabéns, Geraldo! Orgulho-me de você! Um pouco
mais abaixo, na caligrafia de Célia Regina, uma nota foi acrescentada, quando Luis Eugênio já
não compreendia o significado do livro a que dedicara os últimos anos de vida: As mães
temem ver os filhos transformados em heróis, pois este é o primeiro passo ao martírio. Se a
escolha de Geraldo é voluntária e irreversível, rogo a Deus que o proteja e guarde. É o que
posso fazer: suplicar a quem governa acima dos mortais. O resto foge à minha vontade e
determinação. Deus se compadeça de você, meu filho. Segue-se à bênção materna um
pequeno recorte de jornal com vários erros que corrigimos: Em liberdade, responderam a um
processo na justiça militar, compareceram às audiências e no dia do julgamento, pouco antes
de ouvirem a sentença, saíram de fininho. Foram condenados a um ano de prisão, mas já não
estavam lá para serem presos. Logo depois, vem a transcrição de uma rara carta de Geraldo,
chegada à família por caminhos tortuosos e marginais: Fiquei sumido porque essa era a única
forma de apelar ao Supremo Tribunal Militar. Depois me entreguei e fui novamente preso num
quartel da polícia. Minha advogada conseguiu para mim o direito de ir à escola fazer as provas,
bem escoltado, é verdade. Desse modo, eu estava quase diariamente na Faculdade de
Engenharia e, mesmo preso, pude me articular com os estudantes e fazer várias reuniões.
Meses depois, fomos todos absolvidos pelo Supremo (BRITO, 2012, Pp. 138/139)
A partir daí, acontece uma mudança radical na maneira como o pai organiza o relatório do
filho extraviado. Consulta juristas, enche as páginas de leis e teorias do direito, cola notas
sobre os partidos clandestinos, junta documentos como se preparasse uma futura defesa.
Célia Regina assume de vez a administração da casa e dos negócios do marido, emprega duas
filhas como menores aprendizes ganhando cada uma meio salário mínimo, aceita mais um
turno de professora e convida um irmão solteiro para morar com a família, pois insiste que as
manias de Luis Eugênio são sintomas de demência. (BRITO, 2012, P.140)
Eleito presidente da União dos Estudantes de Pernambuco, fechada desde o golpe militar,
Geraldo se torna uma referência entre os universitários que o aclamaram. Mais perseguido do
que antes pelos órgãos de segurança da ditadura, ele corta todo contato com a família. Já não
possui endereço certo, dorme na casa da namorada e dos companheiros, porém nunca se
demora mais de uma semana debaixo do mesmo teto, nem come com ninguém o punhado de
sal que a avó afirmava ser uma condição necessária para as pessoas se conhecerem e
tornarem-se amigas (BRITO, 2012, Pp.140-141)
Querida mãe, perdoe a falta de notícias. Não tenho segurança em enviar cartas pelo correio,
pois tenho certeza que nos vigiam e abrem nossa correspondência, à procura de alguma pista
de Geraldo. Como se nós soubéssemos mais do que eles sabem. Aproveito o tempo disponível,
levo minhas encomendas até a rodoviária e procuro alguém de confiança que possa entregá-
las aí em casa. Mando sempre coisinhas pequenas com receio de incomodar as pessoas. A
senhora não imagina a vontade de mandar uns presentinhos para as meninas, besteirinhas
iguais às que eu comprava quando fazia as feiras. Mas sinto-me envergonhado de pedir favor e
segue apenas o essencial. Às vezes retorno com a encomenda na mão, porque não vejo rostos
familiares. Nos cinco anos morando longe, esqueci os amigos e acho que também fui
esquecido. (BRITO, 2012, p.143)
Conheço o Recife porque vou para todos os lugares a pé. Caminhando, economizo as
passagens de ônibus. Saio do Hospital Pedro II, ando por uma rua de armazéns de madeira e
atravesso uma ponte com grades de ferro, aplicadas nos parapeitos. É a ponte Velha, que une
o bairro da Boa Vista ao de São José. Tenho certeza que a senhora vai se encantar, quando
atravessá-la. Da ponte avistamos a Casa de Detenção, um prédio que seria bonito se não fosse
uma penitenciária. Além dos criminosos comuns, nela vivem muitos presos políticos. Geraldo
não se encontra ali, fique tranquila. Lamento entristecer a senhora, mas pelo que andei me
informando, seu filho é um dos mais procurados e ninguém vai tratá-lo bem quando botarem
as mãos nele. Não fique com raiva de mim por falar dessa maneira, nem mostre minha carta a
papai, pois talvez ele me chame de cínico e frio. Não sou nada disso, apenas desejo preveni-
los. (BRITO, 2012, Pp. 143-144)
Minha atitude perante a vida e minhas ideias mais profundas são contrarrevolucionárias.
Refiro-me tanto à revolução que Geraldo pretende fazer quanto ao golpe militar que chamam
de revolução. Atravesso esse fogo e recebo estilhaço de todos os lados, até mesmo das
pessoas que se dizem neutras, as piores a meu ver, os verdadeiros fariseus. Lembra o
apocalipse de São João? “Conheço tua conduta: não és frio nem quente. Oxalá fosses frio ou
quente! Assim, porque és morno, nem frio nem quente, estou para te vomitar de minha boca.”
Eu sou quente, não me incomodo de morrer queimado, porém em outro fogo. Qualquer dia
lhe exponho mais claramente os meus pontos de vista. (BRITO, 2012, P.144)
Voltemos ao Recife. Eu fazia o caminho até a rodoviária, um passeio simples, por ruas nem
sempre bem-cheirosas, mas nem por isso menos bonitas. Quando entrar nas igrejas barrocas,
vai sentir um deslumbramento. A que eu mais gosto é a Basílica do Carmo, com o altar-mor
cheio de anjinhos, igual aos altares das festas de coroação de Nossa Senhora, no mês de maio.
Gosto mais dessa igreja porque os ornamentos parecem profanos, repletos de símbolos
pagãos. Falo essas coisas que não lhe agradam, mas elas me deixam feliz. Tem dias em que me
invade um profundo cansaço diante dos acontecimentos de nossa vida, todos previsíveis,
todos inevitáveis. Geraldo faria outra escolha, como papai desejava? Não sei responder.
(BRITO, 2012, Pp. 144-145)
Não se preocupe com meu carinho pelos hippies, tomo banho todos os dias e possuo a própria
escova de dente. (BRITO, 2012, p.145)
Nunca dissimulo minha verdadeira situação, traço pequenos mapas de meus acertos e
equívocos na cidade onde criei raízes e que amo, apesar de sufocante e de me revelar seu pior
rosto. Será que de alguma maneira dependo desse ambiente claustrofóbico para viver? Vou
pensar melhor nisso. Continuo na corda bamba, como na música que a senhora adorava
cantar. Mando pra vocês o salário do sindicato e um pouco do que ganho com as aulas
particulares. Garanto o dinheiro do cigarro e sempre pego empréstimo com Sílvio, meu colega
de Várzea-Alegre. (BRITO, 2012, Pp. 145-146)
Acho que escrevi uma carta literária, o oposto das suas: objetivas e diretas. Não levei surra
bastante de papai e por isso faço tudo errado. Continuo com o projeto de escritor, me
arriscando vez por outra num conto ou numa peça de teatro. Quando a medicina se torna
frustrante, imagino que sou um romancista e dessa maneira consigo tocar a rotina de estudo e
plantões. Se a literatura me enfada, mergulho de cabeça na medicina e tapeio o escritor. O
risco é tornar-me medíocre nas duas profissões. Felizmente tenho boas notas, embora estude
pouco. Acho que sou um menino inteligente, como sempre falaram de mim. (BRITO, 2012,
p.146)
A senhora não gosta que eu perca tempo com literatura, não é verdade? Nem papai.
Acreditam que não vale a pena escrever num país de poucos leitores, onde não se ganha
dinheiro escrevendo e nem se leva escritor a sério. Vocês têm razão, ninguém me leva mesmo
a sério quando retiro da bolsa uma folha de papel datilografada e leio pros amigos.
(BRITO,2012, p.146)
Geraldo não nos revela seu endereço porque desconfia que somos vigiados. Sílvio me ensinou
uma maneira de escrever cartas e não botar em risco meu destinatário. É só inventar disfarces,
criar um palavreado sem sentido e no meio dele enxertar os assuntos importantes. Acho que
já escrevo dessa maneira. Você e papai me compreendem? (BRITO, 2012, p.147)
Eu suporto a universidade apenas porque nós criamos uma confraria de amigos intelectuais,
sem filiação partidária: poetas, músicos, artistas plásticos, jornalistas e diletantes iguais a mim,
que se reúnem para conversar, beber cerveja, trocar livros e artigos censurados. O Bar Savoy,
no centro do Recife, é nosso paradeiro. Sem esse mundinho marginal, eu não sobreviveria.
Tentamos compreender os acontecimentos à nossa volta. Mas será compreensível o que
ameaça a segurança e o equilíbrio mental de pobres estudantes, muitos vivendo em condições
precárias, como eu vivo? Não pense que apenas o sertão se transformou em ruínas, também a
universidade, que me custou tanto esforço alcançar, lembra um deserto (BRITO, 2012, p. 147)
Também nunca lhe contei as minúcias da entrevista com o professor de anatomia. Isso faz
quatro anos e ainda não destilei o veneno. Portei-me como um covarde, ou um cínico
tentando livrar a pele. Geraldo o enfrentaria, mas eu preferi jogar com as armas dele: a
hipocrisia e a mentira. Eis a diferença entre seus dois filhos: Geraldo é um rebelde com causa e
eu sou um revoltado sem causa. (BRITO, 2012, p.148)
Andou de um lado para outro da rua, desejando que botassem fogo na antiga masmorra. As
pessoas tentavam amenizar o passado, transformando prisões em casas de cultura. Uma
falácia. Melhor deixar o prédio em ruínas ou vir abaixo, expondo os males da história. Podiam
explodir tudo numa festa, como faziam ao boneco representando o Judas, no domingo de
Páscoa (BRITO, 2012, p.162)
Agora vamos às notícias boas. As meninas estão cada dia mais bonitas e aplicadas na escola.
Helena é a primeira da turma, como você e Geraldo. Seu pai declarou que nenhuma filha sairá
de casa para estudar no Recife, ficam aqui mesmo e se formam professoras, igual à mãe.
Precisa ver a tristeza no rosto dele, quando fala essas coisas. A insegurança nos consome. As
pessoas que sempre nos respeitaram olham para nós como se fôssemos criminosos. Também
se sente discriminado na sua faculdade? Tudo isso é doloroso, meu filho, porque não temos
nada com a política e queremos apenas ficar quietinhos, no nosso canto. Mas ninguém deixa a
gente em paz. Até padre Frederico me perguntou como era ser a mãe de um comunista ateu.
Respondi que meu filho não era o diabo, e deixei de assistir à missa na igreja de São Vicente.
Agora, só frequento a Sé. Felizmente, o pior acontece no Recife, longe dos nossos olhos. O que
os olhos não veem o coração não sente. Porém mãe sente em dobro, mesmo o que não vê.
Recife é um paradeiro ruim, desde o tempo de tio João Domísio. (BRITO, 2012, p.174-175)
Olival foi preso, aquele gerente do banco que morava em nossa rua. As pessoas assistiram à
prisão, as caras mais cínicas. Tudo muito ligeiro, uma brutalidade. Ninguém reagiu, nem
protestou. A esposa de Olival perguntava aos vizinhos se eles nunca tinham visto um homem
honrado sendo preso. Mandou que fossem para suas casas cuidar da vida, pois não se tratava
de um ladrão de galinhas. Também prenderam o dono da Sapataria Modelo e um comerciante
de tecidos. Disseram que ninguém sabe notícia dos presos políticos e muitos desaparecem sem
deixar rastro. As rádios e os jornais só publicam besteiras. Teu pai consegue alguns jornais e
coleciona os recortes. Cola papéis e escreve num livro de capa preta. Não sei o que ele tanto
escreve. Penso que esse vício só agrava a loucura. Ou será que ajuda a passar o tempo?
(BRITO, 2012, p.175
A periferia cresce desordenada, sem planejamento urbano nem preservação dos poucos
edifícios de valor. O patrimônio histórico se interessa pelo barroco, mas não se importa com a
arquitetura popular, como se bastassem as lembranças de um único período de nossa história.
Esquece que a cidade não é formada apenas por seu centro e bairros antigos. Ela se espraia em
subúrbios cheios de gente alvoroçada, sempre nas ruas, andando para cima e para baixo,
falando alto, gesticulando, cantando, gritando, lavando calçadas, jogando bola, mexericando
com os vizinhos. Cirilo experimenta uma alegria suave, o corpo amolece de desejo por uma
vida tranquila, debaixo de coqueiros, mangueiras, sapotizeiros, jaqueiras, cajueiros, pés de
fruta-pão, carambola, jambeiros e bananeiras. Os jardins pequenos, na frente ou nas laterais
das casas, se enfeitam de papoulas e antúrios. Parece bem mais agradável viver ali, longe do
comércio de mascates e biscateiros e dos prédios ruindo abandonados. Portas e janelas nas
fachadas leves se abrem às pessoas que passam, chegam, batem palma, pedem esmola,
trazem um cachorro fujão pela corda, gritam ô de casa e entram sem ouvir ô de fora, sentam à
mesa arrumada e cheia de alimentos, servem-se e comem. (BRITO, 2012, Pp.179 180)