Relato de Experiência 1
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Relato de Experiência 1
Resumo
O presente trabalho teve como objetivo apresentar a experiência de alunos e duas supervisoras no atendimento a
crianças provenientes de famílias de baixa renda, no estágio em Psicodiagnóstico Interventivo. Apresentamos a re-
levância desta prática tanto para os futuros profissionais quanto para os clientes que participam do processo. Para
ser realizado, o psicodiagnóstico em questão, seguiu-se a linha teórica fenomenológico-existencial e se desenvolveu
a partir das entrevistas iniciais (realizadas com os pais ou responsáveis), horas lúdicas (realizadas com as crianças),
até as entrevistas devolutivas (realizadas também com os pais e com as crianças). Pode-se notar, ao longo de nossa
prática como supervisoras deste estágio os benefícios que sua prática pode trazer, pois do lado do cliente, recebeu-
-se feedback das escolas e da família sobre mudanças significativas no comportamento das crianças. Pelo lado das
crianças, observou-se o desenvolvimento do exercício da autorreflexão sobre os sentimentos e resolução de conflitos
de modo mais assertivo que no início do processo. Do ponto de vista dos estagiários, pudemos observar, também,
o crescimento profissional destes, a partir desta experiência.
Palavras-chave: psicodiagnóstico – intervenção – crianças
Abstract
The present study aimed to present the experience of students and two supervisors in the care of children from low
income families, in the Interventive Psychodiagnosis internship. We present the relevance of this practice to both
future professionals and for clients participating in the process. To be performed, the psychodiagnosis in question,
followed the existential phenomenological theoretical line and developed from the initial interviews (conducted with
parents or guardians), playful hours (conducted with the children) and the devolutive interviews (conducted also
with parents and children). It can be noted our practice as supervisors of this stage the benefits that their practice
can bring, because from the client side, we received feedback from schools and family about significant changes in
children’s behavior. On the children’s side, the self-reflection exercise on feelings and conflict resolution was more
assertively developed than at the beginning of the process. From the trainees’ point of view, we could also observe
their professional growth from this experience.
Keywords: psychodiagnostic - intervention – children
*Docentes do curso de pós graduação stricto sensu em Psicologia e Políticas Públicas da Universidade Católica de Santos.
40 THALITA LACERDA NOBRE & MARINA PORTO VIEIRA
que se apresentam e daí em diante, poder sugerir alguns – Classificação nosológica: realizada para a testagem
possíveis caminhos para a solução de pontos em conflito. de hipóteses iniciais utilizando-se como referência os
É neste sentido, também, que Ancona-Lopez foi critérios diagnósticos.
precursora na introdução do modelo de Psicodiagnóstico – Diagnóstico diferencial: utilizado com o fim de
interventivo no Brasil, propondo que o processo se tor- realizar diagnósticos alternativos, uma vez que se observe
nasse ativo e cooperativo entre psicólogo e cliente. A ideia algumas inconsistências ou irregularidades no quadro de
de que se trata de um processo investigativo se manteve, sintomas.
porém com a possibilidade de intervenção do psicólogo. – Descrição: meio pelo qual se busca obter as for-
Cunha (2000) define o psicodiagnóstico como: ças e as fraquezas, além de descrever o desempenho do
cliente.
...um processo científico, limitado no tempo, que utiliza – Avaliação compreensiva: busca-se avaliar o funcio-
técnicas e testes psicológicos, em nível individual ou namento da personalidade com o intuito de compreen-
não, seja para entender problemas à luz de pressupostos der seu nível e a partir daí propor recursos terapêuticos
teóricos, identificar e avaliar aspectos específicos, seja adequados.
para classificar o caso e prever seu curso possível, comu- – Entendimento dinâmico: tem o intuito de obter
nicando os resultados, na base dos quais são propostas explicações acerca do comportamento que, muitas vezes,
soluções, se for o caso. (p. 26). encontram-se inacessíveis na entrevista. Auxilia no esta-
belecimento do foco terapêutico.
Deste modo, podemos diferenciar o psicodiagnóstico – Prognostico: objetiva a determinação do provável
do diagnóstico psicológico, sendo que o primeiro, con- curso que tomará o caso.
forme Cunha (2000) e Arzeno (1995) entendem, implica – Prevenção: tem o intuito de “antever” questões
na utilização de testes e outros instrumentos relevantes uteis a serem tratadas.
para um estudo em profundidade sobre a personalidade – Perícia forense: objetiva a avaliação psíquica a fim
do sujeito, ao passo que no diagnóstico psicológico, os de obter dados quanto à sanidade ou competências do
testes podem, nem sempre ser utilizados. sujeito. (Cunha, 2000).
É importante ressaltar que acreditamos que na Ressaltamos que na proposta da disciplina de estágio
atualidade e no contexto em que temos experienciado o em psicodiagnóstico que realizamos, os objetivos residem
psicodiagnóstico, a utilização de testes não tem se apre- na avaliação compreensiva, seja na primeira etapa (durante
sentado como a principal ferramenta do processo. Junto o primeiro semestre de cada ano), seja na segunda etapa
a essa, temos observado que há outras estratégias eficien- (durante o segundo semestre de cada ano).
tes e eficazes para o trabalho investigativo de crianças e A seguir exporemos a respeito da especificidade do
adolescentes que têm sido inclusas e delas se obtém bons processo que realizamos no centro de Psicologia Aplicada
resultados. No item a seguir, relataremos algumas delas. da Universidade em questão.
Com relação à realização do processo, podemos
compreender que este possui alguns critérios a serem 1.2 A especificidade do psicodiagnóstico realizado
seguidos que o caracterizam. Porém, não se deve acreditar Antes de descrever a especificidade da prática, é
que um processo será igual para todos os clientes, já que importante ressaltar que, na atualidade, o psicodiagnóstico
cada um deve ser entendido em sua singularidade. Em pode contar com diversos referenciais teóricos, filosóficos
outras palavras, as intervenções seguem alguns pressu- e práticos (Vieira, 2009). A abordagem fenomenológico-
postos comuns, contudo as estratégias são definidas de -existencial tem sido uma das mais utilizadas já que,
acordo com o caso especifico a ser tratado. conforme afirma Azevedo (2002), este modo de compre-
De acordo com Cunha (2000), além da singularidade ensão do ser humano aceita a prática do psicodiagnóstico
do cliente, também devem ser levados em consideração como descrição e compreensão global dos fenômenos da
os objetivos que se pretende atingir com o processo. De existência humana e suas rupturas, não utilizando-as para
acordo com a autora, podem ser os seguintes: rotular como doença mental ou no campo da adequação
-Classificação simples: quando o resultado obtido ou não adequação, mas sim para aquilo que causa sensa-
pelo examinando é comparado com o resultado da po- ção de estranheza e sofrimento.
pulação correspondente e daí em diante os dados são É desta forma que Ancona Lopez (2002) compre-
classificados.
ende que o psicodiagnóstico passa a ser, na atualidade, rapeuta (estagiário) buscasse desconstruir a situação
uma construção pautada “...na experiência do sujeito de si apresentada pelos pais ou responsáveis da criança ou
mesmo com o outro.” (p. 93). Neste sentido, o psicólogo adolescente, a fim de investigar seu significado principal,
não ocuparia o lugar do detentor do saber, mas sim, a que até então se encontrava velado. Em outras palavras,
voltar seu trabalho para a compreensão da experiência da em um primeiro momento, buscou-se escutar a queixa
relação entre ele e o sujeito, bem como daqueles que o advinda do discurso dos pais e não toma-la como verda-
cercam, como o meio familiar, social e escolar. de absoluta sobre o que se deve compreender da criança
Pode-se dizer, com isso, que o fazer do psicólogo e sim, como algo que se fala sobre ela e que pode ser
amplia-se, exigindo deste uma maior maturidade para um material útil para se compreender sobre o que possa
compreender seu papel ativo e participante, para o en- estar ocorrendo com ela. De acordo com Ancona-Lopez
tendimento do paciente e sobre as possibilidades de (2002), deste modo, “a queixa deixou de ser vista de
encaminhamento feitas posteriormente. modo isolado para tornar-se via de acesso ao mundo do
Além disso, uma das contribuições do psicodiagnós- sujeito, a seus objetos intencionais, e aos conflitos nele
tico fenomenológico-existencial, segundo Yehia (2002) é instalados...” (p. 94) e é, por meio da queixa, que se pode
a reavaliação dos papéis desempenhados pelo cliente e buscar o esclarecimentos dos significados ali presentes
pelo psicólogo. O cliente se torna um parceiro ativo e para que houvesse ressignificação e se modificassem os
envolvido no trabalho de compreensão e em sua eventual modos da criança estar consigo e com o outro.
sequência. Assim, no psicodiagnóstico infantil, a partici- O terapeuta deveria se prestar à tarefa de identificar
pação dos pais se faz de extrema importância, uma vez a experiência do outro, bem como seu significado e, para
que a criança tende a sentir-se mais livre para envolver-se isso deveria, segundo podemos compreender, buscar
no processo quando observa o empenho dos pais, no “enxergar o mundo com as lentes do outro”, com a lente
trabalho em conjunto com o psicólogo para compreensão desses pais, que veem essa criança. É importante ressaltar,
e intervenção em seus aspectos emocionais. que em momentos posteriores, de encontro com a crian-
Diante disso, o processo psicodiagnóstico, aqui ça, também era recomendado que o estagiário (terapeuta)
discutido, foi realizado em modo grupal pois se baseia buscasse compreender o mundo da criança a partir das
no entendimento de Ancona-Lopez (2002) que se trata lentes da mesma.
de uma “...prática colaborativa, contextual e interven- É desde este contato inicial que o psicólogo deveria
cionista” (p. 87), na qual podemos, por meio do grupo, gerar condições para que os pais se engajassem no pro-
compreender o sujeito em situação social. cesso de criação de sentido, pois este sentido, dado por
No que tange ao atendimento dos pais, o grupo eles, poderia fazer toda a diferença durante a intervenção
pode ser eficaz para que assim estes possam sentir que que se realizou com a criança ou adolescente.
“não estão sozinhos”, uma vez que encontram outros Esta entrevista inicial era feita simultaneamente
pais buscando outros estagiários em psicologia para os com os pais das crianças que buscavam atendimento e se
auxiliarem. utilizava da “técnica do cochicho”, tal qual proposta por
Com relação às crianças, Munhoz (2002) destaca que Yehia. Assim, em um mesmo espaço físico (sala de aten-
a intervenção grupal permite a observação da interação dimento) ocorriam, ao mesmo tempo, todas as entrevistas.
entre elas e o ambiente, com outras pessoas e consigo Os estagiários trabalhavam, em geral, em duplas e eram
mesma, além de permitir comparar seu desenvolvimento atendidos os pais de cerca de seis crianças. O supervisor
biopsicossocial ao de outras crianças de mesma faixa de estágios permanecia presente durante os cinquenta
etária que utilizam o serviço. minutos de atendimento, atendendo eventualmente os
O processo é dividido em algumas etapas, como estagiários em suas dificuldades. De acordo com Ancona-
discutiremos a seguir: -Lopez (2002), a aplicação dessa técnica e realizada desse
A primeira etapa referia-se ao momento em que modo, “...propõe que alunos e supervisores trabalhem
os pais ou responsáveis procuravam o atendimento e o conjuntamente com os clientes.” (p. 81). Do ponto de
contato inicial com o terapeuta (estagiário) se estabelece. vista dos pais, tem-se uma tendência a sentirem-se con-
Nesse momento inicial, os estagiários eram orientados a fortáveis, uma vez que não se colocam como o centro
praticar a escuta da queixa, buscando acolher os pais em das atenções e do ponto de vista do aluno (estagiário),
sofrimento e compreender o campo fenomenal do sujeito. podem “...experimentar o contato com o cliente e assistir
Para que isso ocorresse, foi necessário que o te- ao manejo do grupo pelo supervisor” (Ancona-Lopez,
importância. Isto porque, no que se refere aos alunos, crianças, favorecendo o diálogo com os pais e as escolas,
foi dada a oportunidade de eles realizarem leituras e se além de propiciar boa formação aos futuros profissionais
aproximarem tanto da técnica quanto da teoria fenome- psicólogos.
nológico-existencial.
A presença do supervisor durante os atendimentos Referências
permitiu que, no momento posterior à sessão, fossem Ancona-Lopez, M. (Org) (2002). Psicodiagnóstico: Processo de intervenção. São
Paulo: Cortez.
apontados e discutidos alguns pontos que necessitavam Ancona-Lopez, M. (2002). Introduzindo o psicodiagnóstico grupal interventivo:
ser mais bem observados. No que tange ao raciocínio uma história de negociações. In M. Ancona-Lopez (Org.). Psicodiagnóstico:
Processo de intervenção. São Paulo: Cortez.
clínico, foi possível observar que os alunos tendiam a Azevedo. D.C. (2002). Análise situacional ou psicodiagnóstico infantil: uma
desenvolver, diante desta experiência proposta, a capa- abordagem humanista-existencial. In Angerami-Camon, V.A. Psicoterapia
cidade de articular conceitos teóricos com a prática e a fenomenológico existencial. São Paulo: Pioneira Thompson.
Becker, E., Donatelli, M., Fleury, S. & Mary Dolores, E. (2004). Psicodiagnós-
capacidade de compreender a demanda psicológica do tico e livro de história: possibilidade de uma experiência integradora na
cliente (indivíduo e/ou instituição), além de elaborar o entrevista devolutiva para crianças. In: Programas e Resumos: Conf. Internacional
de Avaliação Psicológica Forma e Contexto. Braga: Univ. do Minho.
material de devolutiva para a criança e o relatório aos pais Cunha, J. A. e Colaboradores (2000). Psicodiagnóstico-V. 5ª. ed. Porto Alegre:
(e/ou escola) a partir dos dados obtidos. Artmed.
Finalmente, conforme a proposta desse estudo, no Donatelli, M. F. (2005). A compreensão da religiosidade no Psicodiagnóstico interventivo
Fenomenológico-Existencial. Tese (Doutorado). PUC-SP, São Paulo, SP.
que se refere à população usuária do serviço, tivemos Donatelli, M. F. (2014) Psicodiagnóstico interventivo fenomenológico existen-
retornos bastante significativos das escolas e especiali- cial. In Ancona-Lopez, S. (org). Psicodiagnóstico interventivo: evolução de uma
prática. 1.ed. São Paulo: Cortez.
dades médicas que encaminharam as crianças ao serviço. Gardner, R.A. (1993) Storytelling in psychotherapy with children. New Jersey:
Acreditamos que precisamos de pesquisas posteriores Jason Aronson.
para mensurar as mudanças ocorridas pós intervenção Maichin, V. (2011). Os diversos caminhos em psicoterapia infantil. In Ange-
rami, V. A. (org). O atendimento infantil na ótica fenomenológico-existencial. São
psicodiagnóstica. Porém, foi possível obter como feedback Paulo: Cengage Learning.
a observação de mudanças positivas no comportamento Munhóz, M. L. P. (2002). A Criança Participante do Psicodiagnóstico Infantil Grupal.
In Ancona-Lopez, M. (Org). Psicodiagnóstico: Processo de intervenção.
da maior parte das crianças durante o processo. São Paulo: Cortez.
A quase totalidade das crianças vincularam-se aos Oak1ander, v. (1980). Descobrindo crianças: a abordagem gestáltica com crianças e
terapeutas e deixavam o processo a contragosto, porém, adolescentes. São Paulo: Summus.
Ocampo, M. L. S. & colaboradores (1981). O Processo Psicodiagnóstico e as Técnicas
ao receberem na entrevista devolutiva o livrinho com a Projetivas. São Paulo, Martins Fontes.
história de seu processo, tendiam a sentirem-se como fun- Safra, G.(1984). Um método de consulta terapêutica através do uso de histórias infantis.
Dissertação (Mestrado). Instituto de Psicologia da Universidade de São
damentais ao processo, que sabiam que um dia acabaria. Paulo.
Na relação entre pais e filhos, pudemos observar o Trinca, W. (1984). Diagnóstico Psicológico – a prática clínica. São Paulo: EPU.
estabelecimento de uma escuta mais atenciosa deles em Vieira, M.A.S.D. (2009). Da família ao grupo social: a complexidade do psicodiagnóstico
infantil grupal. (Artigo inédito). Monografia do curso de especialista em
relação ao que as crianças expressavam, muitas vezes, terapia de casais e famílias pelo CAEP – centro de atendimento e estudos
não em palavras, mas em comportamentos diferentes do em psicodrama em parceria com a PUC-Goiás, GO.
Yehia, G. Y. (2002). Reformulação do papel do psicólogo no psicodiagnóstico
esperado por eles. fenomenológico-existencial e suas repercussões sobre os pais. In Ancona-
Assim, acreditamos que mediante esta proposta de -Lopez, M. (org). Psicodiagnóstico: processo de intervenção. São Paulo: Cortez.
estágio em psicodiagnóstico oferecido pela Universidade,
Submetido em: 29-4-2019
pudemos contribuir com a sociedade de nossa região, Aceito em: 24-11-2019
auxiliando no desenvolvimento emocional saudável de