Miolo DIP - 1. Edição 2020

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I.

ª PARTE
APONTAMENTOS INTRODUTÓRIOS
(RITUAL DE INICIAÇÃO)

I.ª PARTE – APONTAMENTOS INTRODUTÓRIOS

© JOÃO DOMINGOS MORAIS & FIGUEIREDO DALA


4 | Apontamentos Introdutórios

CAPÍTULO I
LINHAS ORIENTADORAS
CAPÍTULO I – Linhas Orientadoras

1.1. Enunciado do Problema

O homem é por natureza, como nos ensina magistralmente


ARISTÓTELES (384 – 322 a.C) na sua reflexão clássica destilada quer
em A Política, como na Ética a Nicômaco, um animal social e político.
Desmistificando, um ser que não pode viver senão com os outros
homens, i.e., viver em sociedade1. Na mesma senda expõe MIGUEL
REALE que “o homem não apenas existe, mas coexiste, ou seja, vive
necessariamente em companhia de outros homens2”. Porém, como bem
ensina no seu magistério PAULO NADER, “o homem, se quiser viver
realmente em sociedade, tem de atender às exigências de um
condicionamento imensurável: submeter-se às leis da natureza, por um
lado, e, por outro, construir o seu mundo cultural3 (negrito nosso).

Um destes vários resultados ou produtos que surge no processo de


construção deste mundo cultural do, pelo e para o homem é, sem
sombras para dúvidas, o direito; direito este que, desde logo, se propõe
a regular as relações que se estabelecem entre as pessoas (singulares e
colectivas), determinando os seus direitos e definindo os seus deveres,
protegendo as suas legítimas e naturais expectativas, colocando à
disposição destes sujeitos de direito a possibilidade, a probabilidade, ou
se quisermos, a susceptibilidade, em muitos casos, do uso da força para
fazer cumprir os seus comandos em caso de violação, garantindo a
estabilidade e a continuidade destas relações jurídicas.

1 Sendo um Deus ou uma besta se viver fora da humanidade.


2 REALE, Miguel. Lições Preliminares de Direito, 27.ª ed., São Paulo: Saraiva, 2012, 11.ª
tiragem, 2012, p. 22.
3 NADER, Paulo. Introdução ao Estudo do Direito, 36.ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 2014,

p. 51.
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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 5

Do exposto retro, constatamos sem grandes aporias que a existência do


direito constitui apanágio exclusivo da vida em sociedade e isto
independentemente da forma organizativa que esta adopte; como se
sabe, ubi societas ibi ius, ubi ius ibi societas4.

Ora, destas várias formas organizativas de sociedade uma delas é o


Estado5. Via de regra, o direito que vigora num determinado Estado,
como bem assevera NORBERTO BOBBIO, regula (…) relações
intersubjectivas em que os respectivos sujeitos são residentes e cidadãos6
do mesmo Estado e o seu objecto (coisa ou prestação) pertence ao
território deste Estado (ou é nesse Estado que a prestação deve ser
cumprida). Assim acontece com o nosso país7 que dispõe de um direito

4 Que em vernáculo significa que onde há sociedade há direito, e onde há direito há


sociedade. O exemplo frequente que ilustra esta temática é o da inexistência do direito
na ilha em que vivia, sozinho, Robinson Crusoe. Robinson Crusoe é um romance escrito
por DANIEL DEFOE e publicado originalmente em 1719 no Reino Unido. O título original
da obra é The Life and Strange Surprizing Adventures of Robinson Crusoe, of York,
Mariner: Who lived Eight and Twenty Years, all alone in an uninhabited Island on the
Coast of America, near the Mouth of the Great River of Oroonoque; Having been cast on
Shore by Shipwreck, where in all the Men perished but himself. With An Account how he
was at last as strangely deliver’d by Pyrate.
5 Asseveramos que o Estado é uma comunidade politicamente organizada composta

por povo, território e poder político. Em sentido concordante com o dito, JELLINEK
afirma que o Estado “é a corporação de um povo, assentada num determinado território
e dotada de um poder originário de mando”, in G. JELLINEK, Allegemeine Staatslehre, 3ª
ed., pp. 180, 181, 183. A utilização moderna da denominação Estado remonta a
NICCOLO MACHIAVELLI (ou simplesmente MAQUIAVEL), quando este inaugurou a sua
grande e conhecida obra O Príncipe com a frase célebre: “Todos os Estados, todos os
domínios que têm tido ou têm império sobre os homens são Estados, e são repúblicas ou
principados”, in Il Príncipe, 13.ª ed., p. 37.
6 Não podemos confundir cidadão com citadino. Negrito nosso.
7 No caso das nossas lições, importa referir os ramos do direito privado,

nomeadamente, O Direito Civil (direito das sucessões, direito das obrigações, direitos
reais, direitos da família), o Direito do Trabalho e o Direito Comercial. Há autores que
vão no sentido da autonomização do Direito de Família encarando-o como um ramo
de direito privado especial. Quanto à nós, somos da humilde opinião que o facto do
nosso legislador ordinário ter desentranhado o antigo livro IV do Código Civil,
revogando-o com o Código de Família, não o faz deixar de ser Direito Civil (que é Direito
Privado Comum) e passar a ser Direito Privado Especial. Há realmente uma autonomia,
mas uma autonomia meramente normativa que se justifica pela seguinte ordem de
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6 | Apontamentos Introdutórios

interno aplicável às mais diversas relações estabelecidas entre as


pessoas, constituindo-as, modificando-as ou extinguindo-as, atribuindo,
direitos e obrigações aos sujeitos. Facilmente conseguimos ver que, a
grande maioria dos factos levados ao conhecimento dos tribunais (quer
judiciais, como arbitrais), das conservatórias, dos notários e/ou dos
outros órgãos de aplicação do direito no nosso país são, em regra, factos
que estão apenas em contacto com a ordem jurídica angolana. Assim
também acontece com os outros países.

Ex positis, a guisa de esclarecimento, podemos hic et nunc avançar três


exemplos: (1) se Antonica e Manuel, cidadãos angolanos, residentes
igualmente em Angola, decidirem, por mútuo consenso, contrair
matrimónio aqui no nosso país, será aplicado à constituição dessa
relação jurídico-matrimonial – quer à forma, quer ao conteúdo – as
disposições do nosso Código de Família e demais legislação conexa
aplicável; (2) o mesmo se dando com a aplicação do direito das
obrigações no contrato de compra e venda de uma viatura Hyundai
Santa Fé 2016, celebrado entre Miguel (na qualidade de vendedor) e
André (na qualidade de comprador), ambos angolanos, residentes aqui
no país, encontrando-se o carro igualmente em território angolano,
executando-se o contrato igualmente aqui em Angola, ou ainda, (3) a
compra para revenda de cinquenta (50) viaturas pela BONS CARROS,
LDA. a COSAL, LDA., contrato este a ser executado aqui em Angola,
sendo-lhe aplicado a legislação comercial vigente.

Esta é a configuração normal das relações ou situações jurídico-privadas


que têm lugar num dado país e que são submetidas aos seus órgãos de
aplicação do direito, e é esta a configuração que melhor explica a
acepção avançada por NORBERTO BOBBIO.

razões: necessidade de integrar num único diploma de modo sistematizado, claro e


acessível ao cidadão comum o conjunto das normas deste ramo de direito; contribuir
para um novo relacionamento familiar livre da opressão e da discriminação;
necessidade de uniformidade do tratamento jurídico das relações sociais; orientar as
pessoas ou membros das famílias no sentido da solidariedade, assistência recíproca e
no respeito pela individualidade e dignidade pessoal de cada um; etc. (vide mais
desenvolvimentos em MEDINA, Maria do Carmo. Direito de Família, Escolar Editora,
2011, pp.17-64). Pontofinalizando, o Direito de Família é um sub-ramo do Direito Civil.
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Ora, hodiernamente, sabemos já, as relações jurídicas que se


estabelecem entre os indivíduos, ou seja, entre as pessoas nessa
exagerada aldeia global criada pelo fenómeno da globalização,
extravasam a toda a hora as barreiras impostas pelos limites ou fronteiras
estaduais. O desenvolvimento do comércio entre os povos (comércio
internacional), a miscigenação galopante, a livre circulação de pessoas,
bens e serviços, o próprio desenvolvimento técnico-científico, os
investimentos estrangeiros e também as conhecidas e constantes
correntes migratórias entre os Estados despoletadas por inúmeros
factores (guerras, fomes, catástrofes naturais, etc.), conjugados com a
diversidade legislativa, fazem surgir no cenário jurídico-privado
(interessa-nos este) um grupo de relações jurídicas que apresentam uma
configuração diversa das demais: SÃO PLURILOCALIZADAS ou, se
quisermos, TRANSNACIONAIS. São, na magnífica fórmula de
MAGALHÃES COLLAÇO, relações que “atravessadas por fronteiras”8.
Mas afinal, o que são relações ou situações jurídico-privadas
plurilocalizadas?

Na verdade e em rigor dos factos, estamos diante de relações jurídico-


privadas que através de um ou mais dos seus elementos,
designadamente, os sujeitos, os objectos e os factos9, e/ou também, no
que diz respeito ao conteúdo e aos efeitos dos contratos, por exemplo,
através da vontade10 das partes exercida de maneira válida (isto é, em
8 Em Direito Internacional Privado, vol. I, Lisboa, AAFDL, 1958, p. 16.
9 Em Direito Internacional Privado a garantia não é um elemento relevante, não
integrando por isto mesmo em sede deste ramo de direito os elementos das chamadas
relações jurídicas internacionais.
10 A vontade a que nos referimos aqui é válida em Direito Internacional Privado no

âmbito dos contratos. A vontade não é um elemento da relação jurídica. Os elementos


da relação jurídica relevantes em DIP são apenas: os sujeitos, o objecto e o facto
jurídico. Em bom rigor, a vontade, ou se quisermos a convenção das partes, é um
elemento que surge de maneira exógena àqueles, mas que possui igualmente a
apetência de estabelecer a ligação entre uma determinada relação jurídico-privada e
um dado ordenamento jurídico, tudo isto no âmbito do exercício daquele que é um
importante princípio de direito: o princípio da autonomia privada (Cfr. o artigo 41.º do
CC). O DIP reconhece a autonomia da vontade das partes no âmbito obrigacional. Este
é uma conexão (no caso a convenção das partes) que também encontramos em
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respeito aos pressupostos legais para a sua admissibilidade previstos


fundamentalmente no art.º 41.º do CC, sob a umbrela do princípio da
autonomia da vontade), entram em contacto com mais de um
ordenamento jurídico estadual que possuem ou dão um tratamento
material diferente a questão em causa que se levanta, suscitando muitas
vezes o problema da lei aplicável a ela, noutras apenas suscitando o
problema de se reconhecer ou aferir a validade de um direito constituído
ou adquirido à luz de um direito estrangeiro. Como lecciona
lapidarmente a Dr.ª Helena Mota, por toda a parte e a todo o momento,
homens de todos os países e latitudes criam uns com os outros mil
contactos e relações de autêntica vida em sociedade, juntando novas
malhas à teia de um comércio jurídico internacional sempre em
crescimento.11

Veritas, a lei de um Estado não pode ser indiscriminadamente aplicada


a todo e qualquer tipo de relações ou situações jurídicas, ela encara
limites no seu âmbito de eficácia espacial e temporal. Neste sentido, o
direito, ou a lei de um Estado, não pode querer regular factos que com
eles não esteve ou não está em contacto quer no momento da sua
constituição, como no da sua modificação ou extinção, salva as

BAPTISTA MACHADO quando aborda as modalidades de conexões e quando, ao


debruçar-se sobre a parte especial do DIP, fala, na secção II das suas Lições, do Direito
das obrigações. Cfr. MACHADO, João Baptista, Lições de Direito Internacional Privado,
3.º Edição Actualizada (4.ª Reimpressão), Almedina, Coimbra, 2011, pp. 59, 358 – 366.
Vide ainda, dentre outros, DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Curso de Direito Internacional
Privado, 10.ª Edição (revista, actualizada e ampliada), Rio de Janeiro: Forense, 2014,
pp. 101 – 108; Cfr. RITA LOBO XAVIER, Limites à Autonomia Privada na Disciplina das
Relações Patrimoniais entre os Cônjuges, Coimbra, Almedina, 2000, pp. 222 e ss.;
HELENA MOTA, in Algumas Considerações sobre a Autonomia da Vontade Conflitual em
Matéria de Efeitos Patrimoniais do Casamento; ALFONSO LUIS CALVO CARAVACA,
Derecho Internacional Privado, Vol. II, Granada, 2000, p. 74; ANTÓNIO MARQUES DOS
SANTOS, As normas de aplicação imediata no Direito Internacional Privado — Esboço de
uma teoria geral, Vol. I, p. 8, nota 19, e p. 43, nota 151. Por outra, este é um princípio
que vem com a Escola Estatutária Francesa, mais concretamente, com CHARLES
DUMOULIN, no séc. XVI.
11 In Aulas teóricas de Direito Internacional Privado ao 5.º ano académico do curso de

licenciatura em Direito da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, no ano lectivo


2004-2005, p. 1. Disponível em: https://pt.scribd.com/doc/26764350/Sebenta-DIP-
direito-internacional-PRIVADO. Consultado no dia 23 de Fevereiro de 2016.
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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 9

excepções aceites por exemplo em Direito Internacional Privado, não


podendo, em princípio, aplicar-se quer àqueles factos que ocorreram
antes da sua entrada em vigor (princípio da irretroactividade das leis),
como àqueles que ocorreram fora do seu âmbito territorial de aplicação
(princípio da não transactividade das leis). E isto é postulado pela
própria natureza do direito e decorre directa e verticalmente do
princípio universal do direito, que é o princípio segundo o qual à uma
relação ou situação jurídica só se aplicam as leis, e só as leis, que
estejam em contacto com ela.

A violação desse sacrossanto princípio de direito acarreta consigo a


inevitável violação de direitos adquiridos e das legítimas e naturais
expectativas dos indivíduos, dando azo a instabilidade das relações
jurídicas, a incerteza e a insegurança jurídicas, colocando em risco a
continuidade das relações, gerando grave falta de uniformidade de
regulamentação das situações intersubjectivas, tornando o direito
aplicável bastante imprevisível e potenciando o fórum shopping,
quebrando com isto a fé pelo direito e pelas suas instituições.

Nestes termos e noutros melhores de direito, para percebermos mais


claramente o que atrás se deixou dito, se um dos cônjuges, no caso de
um casal de nacionalidade portuguesa, casados e residentes em
Portugal, sem nenhuma ligação com outros ordenamentos jurídicos,
levantasse em tribunais angolanos, aquando do gozo de férias, o
problema da validade substancial ou apenas a validade formal do seu
casamento, é óbvio que, a princípio, esta validade ou invalidade há-de
ser aferida em face da lei portuguesa. A aplicação a causa da lex
materialis fori (direito material do Estado do foro, que no caso é Angola)
disciplinador desse tipo de situação material controvertida, ou em duas
palavras, desse instituto, não é de tolerar, isto por força do já
mencionado princípio universal de justiça12, pois, in casu, só há uma lei

12Esclarece-nos JOSÉ FROTA que, este princípio apresenta duas dimensões ou funções.
Uma dimensão ou função negativa e outra positiva. Quanto à sua dimensão negativa,
ele exclui todos os ordenamentos jurídicos que não apresentam pontos de contacto ou
de conexão com a situação em causa, não podendo, portanto, serem aplicáveis. No que
diz respeito a sua dimensão positiva, ela delimita os ordenamentos jurídicos
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10 | Apontamentos Introdutórios

em contacto com a situação – e esta lei é a lei portuguesa. Aplicar a lei


material angolana a situação, seria aplicar uma lei com a qual as partes
nunca puderam ou poderiam contar e que, em princípio, a única lei
interessada, no caso a lei portuguesa (que aparece a todos os títulos,
quer como lex patriae, lex domicilii, lex loci actus, lex rei sitae, lex causae,
etc., dado ser uma situação jurídico-privada puramente interna no que
diz respeito ao Estado português e relativamente internacional no
tocante ao Estado angolano) não manda aplicar. Mas, contrariamente,
já é, por exemplo, de aceitar aqui a aplicação da lex formalis fori, ou seja,
da lei formal do foro, pois, esta, enquanto a lei do lugar em que se
levanta ou coloca o problema13 não atinge, regra geral, o mérito da
causa, limitando-se tão-somente a regular a tramitação processual para
se identificar a lei ou as leis potencialmente aplicáveis.

Do mesmo modo, se Moussa Djilobodji N'Doye, senegalês, residente


em Paris quisesse concorrer a sucessão de seu pai Boukary Kouyaté
N'Doye, igualmente senegalês, com último domicílio na Namíbia, que
no momento da sua morte deixou bens imóveis em Paris (França),
Veneza (Itália), Dakar (Senegal) e Califórnia (Estados Unidos da
América), bem como bens móveis em Windhoek (Namíbia), e colocasse
o problema da sucessão mortis causa em tribunais angolanos, em
princípio, a lei angolana ou a título de exemplo uma outra lei que não
aquelas citadas como a lei chinesa, a brasileira, a vietnamita ou qualquer
outra, não sendo nenhuma destas uma das leis interessadas, ou melhor,
não estando estas leis em contacto com a situação, em princípio, as suas
normas materiais, como normas de conduta que são, não são chamadas

potencialmente aplicáveis a situação (negrito nosso), em Direito Internacional Privado


(1.º Semestre), Coimbra, 2001-2003, página 14. Disponível em:
https://pt.scribd.com/doc/38232587/Direito-Internacional-Privado-1-%C2%BA-
Semestre. Acessado no dia 24 de Março de 2016. O documento em questão, é um
resumo dos Apontamentos, feitos pelo autor, das Aulas do 1.º Semestre de Direito
Internacional Privado e Comunitário (Prof. Dr. Nuno Castelo Branco e Prof. Dr. Nuno
Ascensão Silva), cadeira do 4.º Ano da Faculdade de Direito da Universidade de
Coimbra.
13 Para melhor elucidação sobre o que é a lei do foro, vide dentre outros SANTOS,

António Marques dos, As normas de aplicação imediata no Direito Internacional


Privado – Esboço de uma teoria geral, vol. I, Coimbra, 1991, pp. 43-44.
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a regular esta sucessão, salvo se no caso as principais leis interessadas


as mandassem aplicar ou interviesse algum problema de fraude à lei, de
ordem pública internacional, etc.

É isto que quer significar o princípio da não transactividade das leis.


O princípio da não transactividade das leis é aquele segundo o qual
nenhuma lei ― a do foro ou qualquer outra ― deve considerar-se
aplicável a um facto ou situação que não se acha (por qualquer dos seus
elementos e/ou também pela vontade) em contacto com ela.

A aplicação da lex materialis fori ou de qualquer outro direito interno


estrangeiro a factos que lhe sejam estranhos, ou seja, que não tenham
com ela qualquer conexão espacial, violaria irremediavelmente o Princípio
Universal de Justiça. Aplicar a lei material do estado do foro a todas e
quaisquer situações jurídicas (não importando se se trata de ser
transnacional ou não) seria um retrocesso evolutivo ao princípio da
territorialidade das leis, despoletando potencialmente as implicações
que avançamos na página 9 destas lições.

E é fácil perceber, basta para tal que configuremos as seguintes


hipóteses: sabendo nós que em Angola a maioridade se atinge aos 18
anos de idade (conforme preceitua o art.º 24.º da Constituição da
República), se recuarmos ao princípio da territorialidade, por exemplo,
um angolano com idade compreendida entre os 18 a 20 anos se viajasse
para a Coreia do Sul onde, segundo a legislação local, a maioridade se
atinge aos 21 anos (e lá vigorasse o princípio da territorialidade absoluta,
o que não é o caso, alertamos, é apenas uma hipótese académica), não
poderia celebrar determinados negócios jurídicos, vendo a sua
capacidade de exercício brutalmente afectada em caso de lhe ser
aplicada a lei material sul coreana pelo simples facto de se encontrar
naquele território. Ou seja, perderia grande parte dos direitos já
adquiridos em Angola.

O mesmo se diga se um cidadão da Arábia Saudita com idade


compreendida entre os 15 e 17 anos (ou, no caso das mulheres, com
uma idade que vai dos 8 aos 17 anos), viesse em território angolano (na

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mera hipótese académica de aqui vigorar a territorialidade absoluta das


leis, o que não acontece, alertamos novamente, até porque l’excès de
prudence ne peut nuire14).

Uma outra situação que podemos trazer à liça, partindo do exemplo que
nos é dado pelo Dr. ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS15, a quem
somos a pedir, desde já, a devida permissão para efectuar alterações
com vista a, humildemente, garantir um bom enquadramento à
realidade angolana, é o da celebração de um contrato de compra e
venda de um imóvel situado em Paris, concluído validamente em França
entre um angolano, Manuel João Morais, e um milionário francês, Jean
Paul Vivant, mediante mero escrito particular, em obediência ao
definido no parágrafo 2.º in fine do art.º 1.582.º do Código Civil Francês.
Ora, tal contrato é inválido segundo a lei civil angolana. Contrariamente
à França, em Angola exige-se, através do artigo 875.º do CC, que o
mesmo contrato seja celebrado por escritura pública, sob pena de estar
ferido de nulidade, nos termos do art.º 220.º do CC. Há aqui em sede
desta exigência legal um claro desvio ao princípio da liberdade de forma
previsto no art.º 219.º igualmente do nosso CC. Assim, caso se levantasse
o problema por exemplo da validade deste contrato perante tribunais
angolanos, e aqui vigorasse a territorialidade absoluta, obviamente que
o quadro estaria negro para aquele que tinha todo o interesse na sua
continuidade ou validade.

Como muito bem nos elucida o professor FLORISBAL DE SOUZA


DEL’OLMO16, “seria um contrassenso imaginar que o ser humano, ao
ultrapassar as fronteiras de seu país, nele deixasse os direitos adquiridos,
especialmente os que constituem o seu estatuto pessoal”. Na mesma
senda, acrescenta o professor que, “trata-se de direitos privados, que
foram constituídos ou reconhecidos pelo17 ordenamento jurídico
competente” (negrito nosso). Assevera, e muito bem, o ilustre Professor

14 Do latim abundans cautela non nocet (cautela a mais não prejudica ninguém).
15 SANTOS. António Marques dos. Direito Internacional Privado, vol. I.
16 DEL’OLMO, Florisbal de Souza. Curso de Direito Internacional Privado, 10.ª Edição

(revista, actualizada e ampliada), Rio de Janeiro: Forense, 2014, p. 53.


17 No original está por.

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 13

brasileiro HAROLDO VALLADÃO “(…) o Direito Internacional Privado é


o anjo da guarda do ser humano em suas viagens através do espaço” e
tem a “esplendente missão” de “assegurar a continuidade espacial (…)
da personalidade humana”18.

Cumpre alertar que, aceitar ou reconhecer os direitos dos estrangeiros


no Estado do foro, não quererá significar uma aceitação sem limites.
Não é isto. Pois, nessa abertura, nesse processo de reconhecimento e
aplicação de direitos estrangeiros, ainda que validamente
adquiridos/constituídos, modificados ou extintos, são repelidos, são
colocados de parte, ou seja, não são aplicáveis, por óbvio, os que
atentem contra as bases fundamentais, os princípios chaves e
estruturantes do ordenamento jurídico do foro, operando nesses casos
o mecanismo ou a reserva da ordem pública internacional (obviamente
este expediente possui requisitos e pressupostos que devem estar
devidamente preenchidos para poder ser accionado pelo aplicador do
direito), vide o art.º 22.º do CC.

E mais se diga, caso tivéssemos de retroceder ao princípio da


territorialidade absoluta das leis, a maior parte das pessoas seria tentada,
e podemos afirmar que já têm sido tentadas, a dirigir-se para aqueles
ordenamentos jurídicos que maiores vantagens oferecem para a sua
pretensão. É a situação conhecida como forum shopping.

Por outra banda, impõem-se também limites às leis quer no tempo


como no espaço porque existe uma relatividade espácio-temporal da
concepção de justiça de qualquer sistema jurídico. O que é que isto
significa? Significa que o conceito de justiça varia de Estado para Estado,
de sociedade para sociedade, de época para época.

Entende-se que cada Estado tem o seu ideal de justiça, tem a sua própria
concepção de justiça. Se lançarmos um olhar cauteloso a realidade
vislumbraremos que a ideia de justiça tem sofrido uma regular
metamorfose em função do tempo e do espaço, ganhando significações
18VALLADÃO. HAROLDO. Direito Internacional Privado, vol. I, prefácio à 1.ª ed., VII e
seg., Rio de Janeiro.
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diferentes em função destes dois elementos. Assim, do ponto de vista


sincrónico, o conceito de justiça do Estado angolano não é o mesmo
que o do Estado Árabe, nem com o do Estado Israelita, ou ainda o
Britânico, e por aí afora. Por outra, e agora já numa perspectiva
diacrónica, o conceito de justiça do Estado angolano de 1975 a 1992
não é o mesmo que o de 1992 a 2009, nem com o de 2010 a 2018.

O professor BAPTISTA MACHADO afirma que:

“(…) sendo a natural expectativa dos indivíduos na


continuidade e estabilidade das suas relações jurídicas ou
direitos um pressuposto fundamental da existência do
Direito como ordem implantada na vida humana de
relação, há que se respeitar os direitos adquiridos ou
situações jurídicas constituídas à sombra da lei eficaz, isto
é, da lei sob cujo império ou dentro de cujo âmbito de
eficácia o direito foi adquirido ou a situação jurídica se
constituiu”.19

No direito romano consolidou-se, a propósito, a regra hominum causa


omne ius constitutum est (todo direito é constituído para os homens). A
necessidade de se solucionar os possíveis conflitos de leis emergentes
das situações ou relações transnacionais ou plurilocalizadas referidas
retro, despoletadas pelos múltiplos pontos de conexão que apresentam,
por força dos factores aludidos em páginas anteriores, faz com que seja
necessário a existência de um corpo de princípios e de normas jurídicas
colimados à regulamentação de tais situações, concursos ou conflitos de
leis.

Salvo melhor opinião, tudo isto que atrás ficou dito, reclama e justifica o
aparecimento e a manutenção do Direito Internacional Privado, que é
um direito de conflitos, i.e., um direito de conflitos de leis no espaço. Daí
brotando a sua inestimável importância.

19 MACHADO, João Baptista, Lições de Direito Internacional Privado, 3.º Edição


Actualizada (4.ª Reimpressão), Almedina, Coimbra, 2011, p. 9. Idem, Âmbito de Eficácia
e Âmbito de Competência das Leis, Coimbra, 1970, pp. 3 e ss.
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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 15

Partilhamos da opinião do professor FERRER CORREIA de que:

O DIP bem merece ser objecto de maior consideração


no ensino do Direito e na elaboração dos respectivos
currículos universitários, devendo ser-lhe consagrada,
pelo menos, uma disciplina anual, no último ano da
licenciatura, já que a aprendizagem do DIP pressupõe –
e coroa – o ensino, não só das demais disciplinas
privatísticas – entre as quais se insere –, mas também,
de outras cadeiras com ele conexas (…).

1.2. Noção do DIP

Chegados a este ponto importa agora saber: o que é então este direito
de conflitos denominado Direito Internacional Privado?

A doutrina é unânime em considerar que a noção mais aceitável e mais


completa que temos é a avançada pelo ilustre Professor Dr. ANTÓNIO
DE ARRUDA FERRER CORREIA. Ora, para este insigne professor
catedrático da Universidade de Coimbra, o Direito Internacional Privado
é o “ramo da ciência jurídica onde se procuram formular os princípios e
as regras conducentes à determinação da lei ou das leis aplicáveis às
questões emergentes das relações jurídico-privadas de carácter
internacional e, bem assim, assegurar o reconhecimento no Estado do
foro das situações jurídicas puramente internas de questões situadas na
órbita de um único sistema de Direito estrangeiro”.

1.3. Objecto do DIP: Situações ou Relações Jurídico-Privadas


Internacionais

Este ponto será, estrategicamente, abordado em dois pilares: o primeiro,


onde abordamos, de um modo geral, a classificação feitas as relações
ou situações jurídicas privadas tendo como ponto de partida ou critério
de análise e agrupamento a sua localização no espaço; segundo, uma
vez compreendida tal classificação, rumaremos para a delimitação ou
determinação daquelas relações ou situações que são relevantes para o
DIP e que por este facto constituem o seu objecto de regulação.

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1.3.1. A taxionomia de DANIEL JOSEPHUS JITTA

O quadro que foi pintado até aqui neste Capítulo I mostra-nos que,
grosso modo, no âmbito das relações jurídico-privadas que se
estabelecem entre os sujeitos de direito, surgem três diferentes níveis de
relações ou situações tendo como critério ou ponto de referência a
localização das mesmas no espaço.

Destarte, tendo em conta este critério da localização, teremos, segundo


a classificação de JITTA, três tipos de relações ou situações jurídicas
privadas, a saber: (a) situações puramente internas, (b) situações
relativamente internacionais e as (c) situações absolutamente
internacionais20.

Explicando:

20 Sobre a matéria das situações jurídico-privadas, vide, para maiores extensões e


melhor entendimento, dentre outros, MACHADO, João Baptista, Lições de Direito
Internacional Privado, 3.º Edição Actualizada (4.ª Reimpressão), Almedina, Coimbra,
2011, pp. 10-12; MIMOSO, Maria João e SOUSA, Sandra C.. Nótulas de Direito
Internacional Privado – Casos Práticos, Reimpressão, Lisboa: Quid Juris?, 2011, pp. 11 e
12; VILELA, Álvaro da Costa Machado. Tratado Elementar (Teórico e Prático) de Direito
Internacional Privado. Vol. I, Coimbra Editora, 1921, pp. 285, nota de rodapé n.º 1, todas
as suas alíneas; RUI MANUEL GENS DE MOURA RAMOS. Direito Internacional Privado
e Constituição – introdução a uma análise das suas relações, Coimbra, 1991, pp. 44 e
segs.. Vide fundamentalmente JOSEPHUS JITTA, Méthode du Droit International Privé,
1890, pp. 200 e ss., e La Substance des Obligations dans le Droit International Privé,
Tomo I, 1906, pp. 21 a 23. A doutora MARISTELA BASSO tenta fazer uma abordagem,
partindo de iguais premissas, diferenciada, subdividindo, ou melhor, sintetizando a
tripla classificação de JITTA em apenas duas (2): factos jurídicos tradicionais (quando
não contém nenhum elemento de estraneidade, e que a nosso ver, correspondem as
chamadas situações puramente internas na classificação de DANIEL JOSEPHUS JITTA)
de um lado, e, os factos jurídicos mistos ou multinacionais (para ela, quando possui um
elemento estrangeiro, o que nos leva a pensar que tal tipo de factos correspondem em
JITTA as chamadas situações jurídico privadas relativa e absolutamente internacionais),
mas consideramos ser, sem querer demostrar alguma arrogância, ser melhor a doutrina
de DANIEL JOSEPHUS JITTA, por esta ser, na visão de MACHADO VILELA e na nossa, a
mais rigorosa, não trazendo por isso mesmo e pelo seu conteúdo, neste caso a doutrina
de MARISTELA BASSO absolutamente nada de novo quanto a este assunto.
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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 17

a) As situações puramente internas são aquelas em que todos os


elementos de contacto ou de conexão relevantes de uma relação
jurídica (sujeito, objecto e facto jurídico) e/ou a vontade21
exercida validamente, referem-se ao mesmo ordenamento
jurídico, que é concomitantemente o ordenamento jurídico do
foro, ou seja, o ordenamento jurídico do Estado em que a
questão é levantada. Aqui ao órgão local de aplicação do direito
não se colocam quaisquer problemas de determinação da lei
aplicável – esta há-de ser obviamente, a lex materialis fori.

São exemplos deste tipo de situações as três hipóteses por nós


avançadas nas páginas 25 e 26 destas lições, recordando: (1)
Antonica e Manuel, cidadãos angolanos, residentes igualmente
em Angola, decidirem, por vontade própria, contrair matrimónio
na 3.ª Conservatória do Registo Civil em Luanda; (2) o contrato
de compra e venda de uma viatura Hyundai Santa Fé, celebrado
entre Miguel (na qualidade de vendedor) e André (na qualidade
de comprador), angolanos, residentes aqui no país, contrato este
a ser igualmente executado aqui em Angola, e, (3) a compra para
revenda de cinquenta (50) viaturas pela BONS CARROS, LDA a
COSAL, LDA, contrato este para ser executado aqui em Angola.
Na verdade, podem ser formulados “N” exemplos deste tipo de
situações. Estes tipos de situações ou relações jurídicas não são
relevantes para o Direito Internacional Privado, pois, não
levantam nenhuma dificuldade no tocante a lei aplicável.

b) As situações relativamente internacionais são aquelas


situações puramente internas, mas situadas na órbita de um
ordenamento jurídico estrangeiro. Dito doutro modo, são
aquelas em que todos os seus elementos (sujeito, objecto e facto
jurídico) e/ou a vontade22 (quando exercida validamente)
apresentam pontos de contacto ou conexão com um único

21No âmbito dos contratos.


22Reiteramos que ela é válida no âmbito dos contratos, tendo em atenção o art.º 41.º
do CC.
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18 | Apontamentos Introdutórios

ordenamento jurídico que, todavia, não é o ordenamento jurídico


do foro. Seguindo o magistério do professor BAPTISTA
MACHADO, estamos perante situações que são relevantes para
o DIP23. Mas é importante salientar que, parafraseando o mesmo
professor, também aqui não se põe o problema da determinação
do direito aplicável, ou seja, um problema de «escolha de lei»
(choice of law)24, pois, por respeito ao princípio da não-
transactividade, apenas poderá ser aplicada ao caso a lei do
ordenamento jurídico que com a relação jurídica em causa
apresenta pontos de contacto ou conexão. O problema que se
levanta aqui é o da aplicação de um direito estrangeiro no estado
do foro.

Ex.: Anne, inglesa, é casada com Brian, também de nacionalidade


inglesa, residentes em Manchester (Inglaterra), discutem em
tribunal angolano a propriedade de um imóvel situado em
Londres (Inglaterra). Aqui, por respeito ao princípio da não-
transactividade, a única lei aplicável é a inglesa. Aqui também não
há já um conflito de leis. Há uma situação relevante para o DIP,
mas não há conflito de leis. Só existe uma lei (no caso a inglesa)
em contacto com a situação. Não é necessário neste tipo de
situações a utilização de uma regra de conflitos. Não. A solução
aqui passa apenas pelo chamamento da lei por força do princípio
da não-transactividade, máxime, do princípio universal de justiça.
Pode também suceder que estejamos diante de uma situação
relativamente internacional e, como é de se esperar, a nossa
norma de conflitos remeta para um único ordenamento jurídico,
só que, ao invés de remeter para um ordenamento jurídico
unitário, indique um ordenamento jurídico complexo,
levantando-se em sede deste verdadeiros conflitos interlocais
(como no caso de remeter para um Estado federado como é o
caso dos EUA, da Venezuela, Sudão, México e Brasil) e conflitos
interpessoais (caso remeta para ordenamentos jurídicos como o

23 Cfr. MACHADO, João Baptista, Lições de Direito Internacional Privado, 3.º Edição
Actualizada (4.ª Reimpressão), Almedina, Coimbra, 2011, p. 11.
24 Ibidem. p. 11.

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 19

da Nigéria, onde para além de ser um estado federado, vigoram


ao mesmo também neste mesmo estado, obviamente em
distintos locais, a ordem normativa muçulmana e a ordem
normativa jurídica).

c) As situações absolutamente internacionais são aquelas que,


através dos seus elementos (sujeito, objecto e facto jurídico) e/ou
a vontade exercida validamente, se encontram em contacto com
dois ou mais ordenamentos jurídicos. Apenas neste último caso
coloca-se verdadeiramente o problema da determinação da lei
aplicável (the choice of law), visto serem duas ou mais leis em
contacto com a situação. Neste caso de pluralidade, cada uma
das leis tem competência potencial e pode pretender regular ou
aplicar-se a situação, gerando um conflito de leis. Daí a
necessidade da intervenção do DIP.

Nas situações absolutamente internacionais, a simples aplicação


do princípio da não-transactividade das leis por si só não basta.
Após a tarefa de delimitar os ordenamentos jurídicos
potencialmente competentes ou aplicáveis a uma dada situação
absolutamente internacional (primeiro momento do DIP), temos
ainda de fazer intervir, ou seja, de mobilizar uma especial regra
de conflitos capaz de dirimir o concurso entre as leis aplicáveis,
tendo em atenção o ponto de contacto ou de conexão entre os
ordenamentos jurídicos em concurso e os factos que exigem uma
solução (segundo momento do DIP).

Ex.: um comerciante angolano, residente em Luanda, conclui no


Brasil um contrato de compra e venda de capuca com um
brasileiro residente no Rio de Janeiro. O comerciante angolano
demanda o brasileiro em tribunais estado-unidenses por
incumprimento do dever principal decorrente do contrato.
Agora, é necessário chamar, hic et nunc, com BAPTISTA
MACHADO, especial atenção que uma situação pode até ser
absolutamente internacional e não estarmos perante um conflito
de leis. É o que acontece quando todas as leis do circuito estejam

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20 | Apontamentos Introdutórios

de acordo quanto a lei aplicável, todas apontam para a mesma


lei. Neste tipo de situações, assevera BAPTISTA MACHADO, não
há nenhum conflito de leis.

Procedendo a separação das águas, cumpre agora estabelecer os


elementos diferenciadores entre estes tipos de situações ou relações
jurídicas. Assim:

 Situações puramente internas versus as situações privadas


relativamente internacionais: podemos apontar duas grandes
diferenças, a primeira é a de que, nas situações puramente
internas há uma coincidência entre o ordenamento jurídico ou
o estado em contacto com a situação e o ordenamento jurídico
ou estado do foro, ou seja, são uma mesma e única coisa, tudo
ocorre dentro do mesmo espaço (constituição, modificação ou
extinção e o recurso aos órgãos de aplicação do direito).
Contrariamente, nas situações privadas relativamente
internacionais o estado em contacto com a situação é um estado
estrangeiro em relação ao estado do foro e vice-versa. Dito
doutro modo, não obstante a situação ser também puramente
interna, esta não o é em relação ao estado do foro; a segunda é
a de que, entre entres dois tipos de relações só as situações
privadas relativamente internacionais é que constituem
problema ou objecto do DIP, as puramente internas não;

 Situações absolutamente internacionais versus situações


privadas relativamente internacionais: aqui, a grande
diferença é a de que enquanto nas situações absolutamente
internacionais existem vários ordenamentos jurídicos em
contacto com a situação, contrariamente, nas situações privadas
relativamente internacionais a situação está apenas em contacto
com um único ordenamento jurídico estrangeiro. Por outra, nas
situações absolutamente internacionais, dado o número de leis
interessadas ou em contacto com a situação, muitas vezes (e não
sempre) estaremos diante de um conflito de leis, mas o mesmo
não acontece quanto as situações privadas relativamente

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 21

internacionais, ou seja, em sede destas, por lógica não é possível


configurar em momento algum um conflito de leis pois aí só há
uma lei em contacto com a situação.

1.3.2. O Objecto propriamente dito do DIP

Da noção de DIP (de FERRER CORREIA) avançada no ponto 1.2.,


conjugada com a abordagem feita no ponto 1.3.1. e com as lições do
prof. BAPTISTA MACHADO25, facilmente depreendemos que o DIP tem
como objecto as situações da vida privada internacional, isto é, os
factos susceptíveis de relevância jurídico-privada que têm ou estão
em contacto com mais de um sistema jurídico (situações
absolutamente internacionais) ou que se passaram adentro do
âmbito de eficácia de uma (e só uma) lei estrangeira (situações
relativamente internacionais).

Pontofinalizando, mas abrindo sempre as portas para ao pensamento


de outros estudiosos, a nosso entender, e isso decorre directamente do
pensamento dos professores FERRER CORREIA e BAPTISTA
MACHADO, só as situações ou relações relativamente internacionais e
as absolutamente internacionais são relevantes para o Direito
Internacional Privado, só estas constituem objecto do DIP.

1.4. Funções do DIP

O Direito Internacional Privado tem como função principal dirimir os


conflitos de leis no espaço, escolhendo dentre as leis potencialmente
aplicáveis (leis interessadas no caso), somente uma para regular a
situação. É necessário referir que, se esta é a principal função do DIP,
não há-de ser a única. Ao DIP compete também, entre outras funções,
assegurar o reconhecimento de situações jurídicas puramente internas de
questões situadas na órbita de um único sistema de Direito estrangeiro
(nestas últimas não há nenhum conflito a dirimir, mas ainda assim o DIP

25 MACHADO, João Baptista. Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª Edição


actualizada (reimpressão), Almedina, 2012, p. 12.
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22 | Apontamentos Introdutórios

é chamado), proteger as legítimas e naturais expectativas dos indivíduos


e dos seus direitos validamente adquiridos, etc..

Ora, é importante esclarecer que, o DIP não determina já a competência


de uma lei pelas suas normas de conflitos, esta competência é desde
logo determinada pelo princípio universal de justiça através de um dos
seus corolários que em sede do DIP se concretiza no princípio da não-
transactividade.

A referência que a norma de conflitos faz é meramente recognitiva de


competências e não já atributiva de competências. O que o DIP faz, na
verdade e em rigor dos factos, é, num primeiro momento, através do
princípio da não-transactividade atribuir competência a estas leis, e, num
segundo momento, através da norma de conflitos, obviamente para
aquelas questões tidas como absolutamente internacionais, destacar,
individualizar, dentre as leis potencialmente competentes uma (cuja
competência já foi atribuída pelo princípio da não-transactividade) e
apenas uma, para regular a relação ou situação jurídica em causa.

Não podemos nunca confundir a função do DIP com a função da


norma de conflitos. O DIP não se resume a soma das normas de
conflitos e é bom ter em conta que o DIP é informado por princípios e
de que um dos principais é o princípio da não-transactividade, este é um
princípio estruturante e é uma verdadeira muralha da china na aplicação
espacial das normas, é aí onde começa o DIP (não que queiramos
contrariar o prof. FERRER CORREIA que atribui toda a honra e toda a
glória ao princípio da harmonia internacional de decisões, só que
seguimos de perto BAPTISTA MACHADO para quem o princípio da
harmonia internacional de decisões não pode querer sobrepor-se aos
da não-transactividade e da não retroactividade – este último ligado ao
Direito Intertemporal. Mas importa frisar que concordamos com
FERRER CORREIA que é o ideal supremo do DIP, portanto, o fim e não
já o princípio. Para além destes, surpreendemos no DIP outros
princípios, tais como o da harmonia material ou interna, do favor negotii,
da maior proximidade ou da efectividade das decisões, da paridade de
tratamento entre a lex fori e as leis estrangeiras, da boa administração

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 23

da justiça, o princípio da cristalização dos direitos adquiridos e o


princípio da reserva ou excepção da Ordem Pública Internacional.
Cumpre referir que em DIP os princípios são hierarquicamente
superiores às normas. Em caso de conflito entre uma norma e um
princípio, aplica-se o princípio.

Temos vindo a formular nas provas parcelares e nos exames um caso


prático que elucida esta superioridade dos princípios. Julgamos ser útil
avançarmos aqui.

AISHA MANUEL nasceu em Janeiro de 1999 na Katepa, província de


Malanje (Angola), residindo em Luanda no Bairro 4 de Abril, no
Camama. Em Setembro de 2016, AISHA MANUEL ganhou uma bolsa
de 1 ano e 2 meses para efectuar um curso intensivo de Antropologia na
República Árabe do Egipto. Já na terra dos faraós, vislumbrada com a
cultura local e também porque aos participantes do curso foi aberta uma
excepção de poderem adquirir a nacionalidade egípcia sem grandes
obstáculos, decidiu imediatamente mudar de nacionalidade tornando-
se egípcia, deixando de ser, validamente, por livre e espontânea vontade
(com fundamento na alínea a) do n.º 1 do art.º 17.º da Lei da
Nacionalidade – Lei n.º 2/16, de 15 de Abril), nacional de Angola.

De regresso à Angola, querendo dar o show, AISHA MANUEL,


aproveitou a promoção na COSAL, LDA. e adquiriu um Hyundai Santa
Fé 2016 “full options” com o qual fez imediatamente uma viajem para
Malanje. Acontece que, TI JINDUNGO, pai de AISHA, não concordando
com o negócio jurídico celebrado pela filha, decidiu reaver os valores
pagos e devolver o carro. Destarte, olhando para o disposto nos artigos
25.º e 31.º, ambos do CC, recorreu aos tribunais angolanos para anular
o contrato de compra e venda do automóvel, alegando que à luz da lei
da nacionalidade da filha (lei egípcia), a maioridade só se adquire aos
21 anos de idade e ela contava apenas com 19 anos, e, como “menor”,
a mesma não tem capacidade para de per si celebrar contratos.

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24 | Apontamentos Introdutórios

Face ao problema temos, dentre outras coisas, procurado saber por


parte dos estudantes: deverá o tribunal anular o contrato? Qual é a
lei aplicável ao mérito da causa?

A resposta é simples. Senão vejamos: o tribunal não poderá anular o


contrato com fundamento na menoridade e isto por força do princípio
da cristalização dos direitos adquiridos. Rigore juris, e tendo em atenção
a construção da hipótese prática, determina o art.º 29.º do nosso CC
(que é um dos locais onde encontramos vazado o referido princípio) a
aquisição de uma nova nacionalidade não prejudica a maioridade já
adquirida à luz da antiga lei pessoal. Nos termos deste artigo, uma vez
maior, sempre maior. Aceita-se esta situação por força da estabilidade,
certeza e segurança jurídicas.

Nesta perspectiva, a maioridade adquirida por AISHA na altura em que


era nacional de Angola cristalizou-se, continuando a ser maior
independentemente daquilo que dispõe a sua actual lei pessoal.

Resulta como consequência do exposto que, o contrato celebrado por


AISHA é válido, pois, ela tem capacidade de exercício, sendo-lhe
aplicável como lei reguladora da sua capacidade (maioridade ou não) a
lei da sua nacionalidade anterior, no caso a lei angolana.

Ora poderíamos ser tentados a seguir o disposto no art.º 25.º do CC o


que nos remeteria para a aplicação da lei egípcia para aferir a
capacidade jurídica de exercício de AISHA, mas não podemos, nem
devemos fazê-lo e porquê? Porque na nossa hipótese prática o que TI
JINDUNGO utiliza como fundamento para pedir a anulabilidade do
contrato é a incapacidade da filha derivada da menoridade, mas não
podemos olvidar que a mesma tinha outra nacionalidade à luz e sob o
império da qual se tornou maior, antes de mudar de nacionalidade.
Nestes casos, a norma que resolve este problema é a do art.º 29.º. O
art.º 29.º consagra um princípio em forma de norma e afasta desde
logo, a aplicação do art.º 25.º do CC à esta situação. Assim sendo, a
pretensão de TI JINDUNGO não procede, por força do princípio da
cristalização dos direitos adquiridos que prevalece sobre o art.º 25.º.

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 25

Para afastar certos fantasmas que devem estar a pairar no ar, cumpre
frisar que, a hipótese prática formulada aqui não espelha um problema
de conflito positivo de nacionalidades, pois, AISHA não tem dupla
nacionalidade. O que é uma situação totalmente diferente! Ela deixou
de ser, validamente, por livre e espontânea vontade, nacional de
Angola, o que é possível à luz da já referida alínea a) do n.º 1 do art.º
17.º da Lei n.º 2/16, de 15 de Abril (Lei da Nacionalidade), que é uma
das várias formas apontadas pelo legislador ordinário para a perda da
nacionalidade. A aplicação da lei angolana à situação brota da resolução
do conflito entre um princípio de DIP e uma norma de conflitos.

Para além dos princípios e das normas de conflitos, podemos ainda


encontrar no DIP normas materiais, cláusulas de excepção e outros
expedientes jurídicos, como a fraude à lei. Matérias que são igualmente
abordadas neste livro.

Dissemos que o DIP escolhe, dentre as leis em concurso, ou em conflito,


apenas uma, e só uma, para regular a relação, mas isto ocorre,
obviamente, sem prejuízo do princípio (técnica ou processo26) do
dépeçage ou da especialização, princípio que consiste em destacar da
relação jurídica em causa determinados elementos ou aspectos, ou seja,
fragmenta-la, dividi-la em vários aspectos e, depois, eleger para cada
um deles uma conexão independente, podendo aplicar-se assim a cada
aspecto da relação jurídica em questão o ordenamento jurídico
competente.

Rigore, cada norma de conflito tem um âmbito de aplicação


especializado, isto é, cada norma é aplicada a uma determinada matéria
ou questão jurídica que resulta de uma situação jurídica. À diferentes
aspectos da relação jurídica podem aplicar-se diferentes leis, o que o
DIP não tolera é a aplicação simultânea a um mesmo aspecto da relação
jurídica de várias leis, salvo naquelas situações em que, através de uma

26 Linguagem de FERRER CORREIA. António de Arruda. O Novo Direito Internacional


Privado Português (Alguns Princípios Gerais). Doutrina, In Boletim da Faculdade de
Direito da Universidade de Coimbra, Vol. XLVIII, Coimbra, 1972, p. 33.
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26 | Apontamentos Introdutórios

conexão múltipla cumulativa se exige a natural e efectiva convocação


e aplicação simultânea de dois ou mais direitos a uma única questão
jurídica. Um exemplo deste tipo de conexão cumulativa é a que vem
prevista no n.º 3 do artigo 60.º do Código Civil.

Uma pergunta que remanesce e persiste em ser respondida é a seguinte:


que leis são estas que são designadas como potencialmente
aplicáveis pelo princípio universal do direito?

As leis designadas como potencialmente aplicáveis pelo princípio


universal do direito são aquelas que estão em contacto com a situação
através de qualquer (uma ou mais) das conexões relevantes em DIP,
conexões estas que ligam as relações jurídicas aos ordenamentos
jurídicos, através dos sujeitos, através do objecto e através do facto
jurídico ou, podemos acrescentar ainda um outro meio de
estabelecimento da ligação entre uma relação jurídica e um
ordenamento jurídico que não seja nenhum destes três, e que já vimos
fazendo referência ao longo deste livro, que é a vontade.

O que são então as conexões? As conexões são as circunstâncias de facto


que ligam as pessoas, a sua vontade, os objectos e os factos às ordens
jurídicas estaduais, traduzindo o contacto entre eles.

Nunca nos podemos esquecer deste dado; e porquê? Porque a resposta


a questão por nós formulada constitui, em função dos elementos nela
enunciados, a base fundamental para se perceber a teoria de BAPTISTA
MACHADO: as leis potencialmente aplicáveis não são mais do que as
leis que estão em contacto com a situação, ou seja, são leis que detém
uma competência potencial que lhes é conferida desde logo pelo
contacto, maxime, pelo princípio universal de justiça. Depois, a função
da norma de conflitos é a de escolher dentre estas leis, uma, e apenas
uma, para regular a questão jurídica em concreto que se coloca a
apreciação, portanto dirimindo assim o conflito entre as leis em
contacto, sempre tendo em atenção o princípio do dépeçage.

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 27

In terminis, resumidamente, a função do DIP é, em primeira linha,


regular as situações ou relações privadas transnacionais. Esta função
bifurca-se em: (1) dirimir conflitos de leis e (2) reconhecer os direitos
adquiridos ou a faculdade de adquiri-los mediante o direito estrangeiro
competente.

1.4.1. O problema da função da norma de conflitos: as Doutrinas


Bilateralistas e Unilateralistas

Quando falamos das funções do DIP fizemos questão de em linhas gerais


avançar também aquela que é a função da norma de conflitos. Cumpre,
em sede deste subtema, referir que, a doutrina não tem caminhado de
mãos dadas quanto a este assunto, sendo por isto mesmo de capital
importância expormos aqui as concepções ou as posições que a doutrina
tem vindo a consolidar face a esta questão da função da norma de
conflitos.

Porém, é importante sabermos o que são normas de conflitos em DIP


para melhor avançarmos. As normas de conflitos são disposições
(comandos) jurídicas gerais e abstratas constituídas, de um ponto de
vista estrutural, por um conceito quadro (que delimita/determina o
instituto jurídico, o dado normativo, a categoria jurídica, a questão
jurídica) e por um elemento de conexão (que contém a situação de facto
susceptível de estabelecer a ligação entre os ordenamentos jurídicos e
as relações jurídico-privadas, e que determina ou indica, por via desta,
a lei efectivamente competente para reger a situação ou relação, ou para
sermos mais coerentes, determinado aspecto duma relação jurídico-
privada internacional). Este é um primeiro conceito da norma de
conflitos, questão sobre a qual voltaremos a nos debruçar em sede do
Capítulo VIII deste livro que trata de modo específico da norma de
conflitos.

Quando se fala da função da regra de conflitos a pergunta que se põe é


a de saber se a regra de conflitos tem uma função unilateral ou uma
função bilateral. Por outras palavras, e de modo mais simplista, se a
regra de conflitos tem como função apenas definir o âmbito de
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28 | Apontamentos Introdutórios

aplicação do ordenamento jurídico material do foro ou se apenas


determinar a aplicação dos direitos ou ordenamentos jurídicos materiais
estrangeiros ou então de ambos? Quanto a este particular a doutrina
responde a estas questões de duas formas: uma, por via das chamadas
doutrinas bilateralistas e, outra, pelas chamadas doutrinas unilateralistas.
Vamos então ver mais abaixo que argumentos é que cada uma destas
correntes invoca para sustentar a sua tese.

1.4.1.1. As Doutrinas Bilateralistas

Em tese geral, as doutrinas bilateralistas são aquelas que entendem que


a função da regra de conflitos é a de determinar tanto a aplicação do
direito material do estado do foro, quanto do direito material
estrangeiro, ou seja, delimita quer o âmbito de competência dum, como
de outro. É este o seu pressuposto fundamental. Esta corrente ou
doutrina tem duas variantes fundamentais: a variante tradicional e a
variante moderna.

A chamada variante tradicional ou concepção tradicional entende que a


regra de conflitos tanto se refere ao ordenamento jurídico material do
foro, quanto aos ordenamentos jurídicos materiais estrangeiros, só que
no que tange a aplicação da lex materialis fori, até mesmo nas relações
puramente internas, este direito material só seria de aplicar se uma
norma de conflitos lhe reconhecesse competência.

Esta concepção tradicional foi ultrapassada pela concepção moderna do


bilateralismo que, apesar de partir do mesmo pressuposto, ou seja, de
que a regra de conflitos tanto pode designar como aplicável o
ordenamento jurídico do foro, como qualquer ordenamento jurídico
estrangeiro, defende que, no que toca a aplicação da lex materialis fori,
a norma de conflitos só interviria nos casos absolutamente internacionais
(situações que têm contacto com mais do que um ordenamento
jurídico), e porquê? Porque estas são as únicas situações que suscitam
conflitos de leis no espaço. Nestes termos, a norma de conflitos não deve
intervir quer nos casos puramente internos (em que a lei do foro seria
aplicável directamente, ou seja, de per si), nem as situações

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 29

relativamente internacionais, e acrescentamos, por força do princípio


universal de justiça.

Qual é então a diferença entre estas duas concepções ou variantes?


No primeiro caso, a concepção tradicional entende a norma de conflitos
como o ponto de partida absoluto de todo o DIP, isto é, uma norma
material só se aplicaria se uma norma de conflitos lhe atribuir
competências, e isto aplicar-se-ia até mesmo nas situações puramente
internas. Só se aplicaria o direito material do foro se uma norma de
conflitos lhe atribuísse competência. A concepção moderna obviamente
dá um passo qualitativo importante e vem dizer que é verdade que a
função da norma de conflitos é tanto a de chamar o direito interno do
foro, quanto direito estrangeiro, mas esta norma só intervém quando
estejamos perante verdadeiros conflitos de lei, isto é, só nas chamadas
relações absolutamente internacionais. E porquê? Porque nas relações
puramente internas, ou se quisermos, nesse caso só estamos a falar das
puramente internas porque estamos a falar da aplicação do direito
material do foro, não há necessidade de haver uma norma de conflitos
a chamar o direito material do foro e porquê? Porque: primeiro, não há
nenhum conflito de leis a dirimir, segundo, porque a situação só está em
contacto com o direito interno do estado do foro, logo, ao abrigo do
princípio básico do direito segundo o qual uma lei só se aplica a factos
com os quais tenha estado em contacto, só se pode aplicar a essa
situação o direito interno do foro, assim, a aplicação da lei material do
foro nestes casos decorre deste princípio de direito e não já de uma
norma de conflitos.

Esta é a diferença fundamental entre estas duas concepções.

Parece-nos que isto aqui é claro, há aqui de facto um salto qualitativo


desta concepção moderna que é no fundo aquela a que aderiu o nosso
legislador. Se o leitor olhar por exemplo para a norma do art.º 50.º do
CC (com respeito aos desvios que lhe é imposto pelo disposto no art.º
51.º), que é muito simples, irá vislumbrar que, nos termos desta, a forma
do casamento é regulada pela lei do lugar da celebração do acto; ora,
a lei do lugar da celebração do acto é a lei do estado em que o

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30 | Apontamentos Introdutórios

casamento se celebrou (ou se quer celebrar, isto nos casos de


constituição). Ao abono da verdade, a partida quando se elabora esta
norma não se sabe se no caso concreto o casamento é ou será celebrado
em Angola ou no Japão, certo? Então, esta norma é tipicamente uma
norma bilateral, porque a conexão que ela contém ao concretizar-se
tanto pode designar como aplicável a lei de Angola, se o casamento se
tiver celebrado em Angola, como pode designar como aplicável a lei do
Japão ou doutro país se o casamento se tiver celebrado nestes. Esta é
tipicamente uma norma bilateral, a sua função é de tanto de determinar
a aplicação do direito interno do estado do foro, quanto do direito
estrangeiro.

1.4.1.2. As Doutrinas Unilateralistas

O que é que nos dizem então as chamadas doutrinas unilateralistas?


As doutrinas unilateralistas entendem basicamente que a regra de
conflitos tem uma função única: delimitar o âmbito de aplicação do
direito interno do estado do foro (directa ou indirectamente). Ora, estas
doutrinas unilateralistas têm também duas variantes que vamos aqui
esmiuçar: chamada variante extroversa, ou seja, a doutrina
unilateralista extroversa ou unilateralismo extroverso e a chamada
variante introversa, doutrina unilateralista introversa ou unilateralismo
introverso.

O que é que o unilateralismo extroverso entende como sendo a função


da regra de conflitos? Para os autores que a defendem, como ROBERTO
AGO, ANZILOTTI e grande parte da escola italiana, a única função da
regra de conflitos é a de chamar para a regulamentação dos factos da
vida jurídica externa um determinado direito material estrangeiro,
delimitando assim indirectamente o âmbito de aplicação da lex
materialis fori, ou seja, da lei interna do estado do foro. ROBERTO
AGO diz mesmo que a função da regra de conflitos é a de inserir direito
estrangeiro no ordenamento interno, ou seja, nacionalizar o direito
estrangeiro. Ora bem, e porquê que se afirmou delimitação indirecta do
âmbito de aplicação do direito material do foro? Porque o que a norma
de conflitos faz, na óptica destes autores, é chamar um direito

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 31

estrangeiro, designar um direito estrangeiro e inserir esse direito através


do mecanismo de recepção no direito interno do estado do foro, com a
seguinte consequência lógica: é que esse direito estrangeiro ao integrar
o ordenamento jurídico do foro, quando regula directamente a relação
jurídica controvertida, regula-a como direito interno do foro e não como
direito estrangeiro.

Ora bem, esta é a noção da remissão feita pela norma de conflitos a um


direito estrangeiro defendida por estes autores. Por esta razão,
ROBERTO AGO diz que a função da regra de conflitos é inserir direito
estrangeiro no ordenamento interno do estado do foro. E isto como é
que funciona? Reparem, é muito simples, o que esses autores entendem
é que a norma de conflitos define, identifica uma determinada situação
fáctica, uma determinada situação da vida para a qual procura uma
regulamentação jurídica. Através do elemento de conexão esta norma
indicará como competente a título de exemplo o direito japonês, isso
significa que a nossa norma de conflitos admitamos hipoteticamente que
estamos em Angola a usar uma norma de conflitos para podermos
esclarecer esta comparação, a nossa norma de conflitos está a fazer uma
remissão ao direito japonês e através desta remissão a chamar o direito
japonês a integrar uma lacuna do ordenamento interno angolano que
acabam por ser preenchidas por normas materiais do direito japonês,
que quando são aplicadas a situação em concreto, já o não são como
direito japonês, mas como normas do direito angolano, e porquê?
Porque foram recebidas no ordenamento interno angolano e
transformadas em normas de direito interno angolano. É isto que estes
autores querem significar.

O grande problema é que AGO defende não já a recepção material,


mas sim a recepção formal.

A recepção material é exactamente aquela que nós fizemos através da


nossa Lei Constitucional em 1975, isto é, consolidamos como direito
angolano aquelas normas que estavam em vigor a 11 de novembro de
1975, e que se transformaram de direito português em direito angolano.
A partir daí essas normas ficaram como que estratificadas, consolidadas

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32 | Apontamentos Introdutórios

e não sofreram alteração a não ser aquelas que as nossas próprias fontes
lhes tivessem de fazer, o que é que isso quer dizer? Quer dizer que nós
não recebemos as alterações que as fontes de direito português fizeram
ao seu direito depois daquela data. Portanto, tais alterações não têm
relevância em Angola, não são recebidas em Angola as normas que
resultem de alterações ou de produção legislativa posterior aquela data,
ou seja, a 11 de Novembro de 1975. Significa que fizemos uma recepção
material, consolidamos no nosso ordenamento jurídico as normas tal
como elas existiam a 11 de Novembro de 1975.

Mas a recepção que ROBERTO AGO propõe com a sua teoria do


unilateralismo extroverso e através da remissão é uma recepção formal,
isto é, a norma de conflitos, por exemplo, produz a sua consequência
jurídica chamando determinado direito estrangeiro numa determinada
data, suponhamos um caso em que se aplica o direito japonês à filiação,
estamos a falar num caso de 10 de Outubro de 1999; as normas do
direito japonês que são transformadas são integradas no nosso direito
interno e que vão ser aplicadas na regulação daquela questão filiação
em concreto são as normas que estiverem em vigor no japão a 10 de
outubro de 1999, certo? Essas são as normas que vamos aplicar
enquanto direito interno angolano. Mas se por acaso a 10 de Outubro
de 2004 termos um outro caso em tribunais angolanos em que a norma
de conflitos manda aplicar direito japonês a filiação, e por necessidades
próprias, em 2000, o parlamento japonês alterou as normas sobre
filiação, quais serão as normas sobre filiação que vamos aplicar em
2004? São as de 1999 ou as de 2000? São as de 2000, porque aqui há
uma recepção formal, isto é, atende, ou seja, recebe também as fontes
de direito estrangeiro, não se referem apenas as normas materiais, isto
é, o direito que se aplica é aquele que estiver a vigorar no estado
estrangeiro à data que temos que aplicar estas normas.

Entende-se esta diferença? ROBERTO AGO defende esta teoria de


recepção formal do direito estrangeiro que é chamado a integrar o
direito interno do estado do foro, portanto, em última análise há aqui
uma delimitação indirecta do âmbito de competência do direito material
do foro, porquê? Porque ele está sempre a ser enriquecido por normas

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 33

de direito estrangeiro, mas quando é aplicado é de facto o direito


material do estado do foro que se aplica a questão controvertida. Daí
AGO defender que a norma de conflitos nacionaliza o direito
estrangeiro. Esta é a visão do chamado unilateralismo extroverso.
Extroverso porquê? Porque se destina a chamar para a regulamentação
dos factos da vida jurídica externa um determinado direito estrangeiro
incorporando-o, transformando-o em direito interno.

A variante unilateralista introversa é a mais difundida encontrando


mais seguidores e considerada pelos seus defensores como mais
importante do que a extroversa. Esta variante, de acordo com DE NOVA,
entende que a única função da regra de conflitos seria a de delimitar
directamente o âmbito de aplicação do direito material do estado do
foro. Isto significa que, a norma unilateral determina em concreto a que
casos se aplica a lex materialis fori. Um exemplo de uma norma conflitos
que está ligada a esta variante unilateralista introversa da função da
norma de conflitos é o art.º 28.º do CC.

Temos aí uma norma que é unilateral porque determina directamente a


aplicação do direito angolano a questão da capacidade dos indivíduos,
esta norma é uma norma que, como se pode perceber, se destina a
proteger o tráfico jurídico interno de situações em que os estrangeiros
pudessem de forma fraudulenta levar a anulação de negócios jurídicos
por ele celebrados em território angolano com base na sua
incapacidade.

E isto se compreende facilmente.

Suponhamos que um japonês de 19 anos de idade compra uma viatura


num stand de automóveis daqui de Angola, a lei japonesa determina
que a maioridade se atinge aos 20 anos de idade. Portanto, com 19 anos
esse japonês é menor de idade, é incapaz do ponto de vista da sua lei
pessoal, ou seja, da sua lei nacional. Admitamos agora que esse japonês
faz uma volta pelo país com o carro, vai até a Namíbia e depois chega
ao Stand e diz ao vendedor: “meu amigo se faz favor devolva-me o preço
porque esse negócio é anulável na medida em que eu sou incapaz e não

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34 | Apontamentos Introdutórios

podia ter comprado esta viatura de modo que me dê o dinheiro de volta e


está aqui a sua viatura!”. Esta norma que aqui está vazada visa
exactamente proteger situações de fraude como esta, porquê? Porque
contém um instrumento que permite que se aplique a lei angolana à
capacidade daquele japonês no caso acabado de construir, isto é, como
ele tem 19 anos e à lei angolana determina que a maioridade e a
capacidade de exercício se atingem aos 18 anos, então, perante a lei
angolana esse japonês era maior, logo, se estivessem reunidos os outros
requisitos previstos no art.º 28.º, como o desconhecimento desta
incapacidade. Como é óbvio, tem de se proteger a parte angolana ou
estrangeira (desde que resida ou o negócio tenha sido realizado em
Angola), mas ela só pode ser protegida se efectivamente ela não tivesse
conhecimento da incapacidade. Então esta norma é unilateral porque
vem dizer que nestas circunstâncias e nestes casos aplica-se a lei
angolana a capacidade e não a lei da nacionalidade tal como dispõe o
art.º 25.º (esta norma por sua vez é bilateral), como sabemos, a
capacidade, o estado das pessoas, as relações de família, as relações
sucessórias são reguladas pela lei nacional. Ora bem, então nós temos
aqui um caso típico de uma norma unilateral que é uma norma que
determina a aplicação do direito interno do estado do foro a uma
questão em concreto, neste caso à capacidade.

A normas unilaterais são aquelas que determinam directamente a que


casos se aplicam o direito interno do foro, ou seja, fazem a delimitação
directa do âmbito de competência do direito interno do foro.

Estas são as linhas de forças destas duas correntes, destas duas


doutrinas, do unilateralismo e do bilateralismo quanto a função da
norma de conflitos.

1.4.1.3. Das Críticas e da posição adoptada

Ora, vamos nos referir primeiramente a duas críticas que ROBERTO


AGO faz as outras teses bilateralistas. Por um lado, ROBERTO AGO e
outros defensores do unilateralismo extroverso, não aceitam que as
normas de conflitos se apliquem para mandar aplicar o ordenamento

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 35

de que fazem parte, portanto, as normas de conflitos não podem ser


utilizadas para mandar aplicar o ordenamento jurídico do qual fazem
parte, elas só podem remeter para direito estrangeiro para ser lógica a
sua posição, só podem remeter para direito estrangeiro incorporando,
inserindo direito estrangeiro no ordenamento estadual e, por outro
lado, ainda contra a tese bilateralista, ROBERTO AGO invoca ainda o
segundo argumento, ele diz que a tese bilateralista se vê forçada a
conferir ao legislador estadual o papel de um legislador supraestadual,
ele entende que se o legislador estadual pode mandar aplicar tanto o
direito nacional, quanto o direito estrangeiro, sendo este direito
estrangeiro aplicado como direito estrangeiro, então o legislador
estadual está a colocar-se acima do estado, está a assumir um papel do
legislador supraestadual porque está a assumir poderes que o levam a
determinar como aplicável a determinados factos direitos estrangeiros
ou o próprio direito do estado do foro.

Esta é efectivamente a crítica de AGO, ele entende que assim as


doutrinas bilateralista estariam a colocar no mesmo plano e como
equivalentes o direito material do foro e os direitos estrangeiros. Coisa
que ele não defende, pois, ele não aceita que se coloque no mesmo
plano o direito material do foro e os direitos estrangeiros.

A posição que adoptamos face a estas propostas da doutrina e de facto


podemos dizer que nós aderimos a segunda variante da posição
bilateralista, ou seja, a variante moderna da posição bilateralista. Para
nós a regra de conflitos tanto designa o ordenamento do foro, quanto
os ordenamentos estrangeiros. Mas, no que toca ao ordenamento do
foro, só interviria nas hipóteses de relações jurídico-privadas
absolutamente internacionais. Para nós a norma de conflitos não
intervém, não tem de intervir, não é chamada a intervir nas situações
puramente internas, nem nas situações relativamente internacionais. Ela
pode sim chamar o ordenamento jurídico do foro naquelas situações em
contacto com mais do que um estado como resultado obviamente da
resolução do conflito de leis que essa mesma norma de conflitos
proporciona, ou seja, só intervém quando exista uma possibilidade de
escolha entre vários ordenamentos, quer entre vários ordenamentos

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36 | Apontamentos Introdutórios

estrangeiros, quer entre vários ordenamentos estrangeiros ou um ou


mais ordenamentos estrangeiros e o ordenamento angolano. A norma
de conflitos nada mais faz do que dirimir o concurso entre as leis
designadas como potencialmente aplicáveis pelo princípio universal do
direito.

Que leis são estas que são designadas como potencialmente aplicáveis
pelo princípio universal do direito? São aquelas que estão em contacto
com a situação através de qualquer das conexões relevantes em DIP,
conexões estas que ligam as relações jurídico-privadas aos
ordenamentos jurídicos. Estas são as bases fundamentais para se
perceber a teoria de BAPTISTA MACHADO: as leis que estão em
contacto com a situação são leis potencialmente competentes, detém
uma competência potencial que lhes é conferida desde logo pelo
contacto e depois a função da norma de conflitos será a de escolher
dentre estas leis uma e apenas uma para regular a questão jurídica em
concreto que se coloca a apreciação, portanto dirimindo assim o conflito
entre as leis em contacto.

Partindo destas premissas que acabamos de enunciar, podemos afirmar


então, ou retirar como corolários destas premissas que não é verdade
que o Bilateralismo implica a usurpação de uma autoridade
supraestadual por parte do legislador estadual, como sabemos esta é
uma das críticas de ROBERTO AGO às doutrinas bilateralistas, podemos
afirmar que não é verdade que o bilateralismo implica a usurpação de
uma autoridade supraestadual por parte do legislador estadual, e
porquê? Porque não são as regras de conflitos que repartem as
competências entre os diferentes ou diversos estados, a tarefa de
repartição destas competências no fundo está atribuída ao princípio
universal do direito. As competências são repartidas pelo contacto, e
esse contacto é relevante para atribuir essas competências por força do
princípio universal do direito. Logo, decorre desta afirmação que a regra
de conflitos tem uma função subordinada, mas necessária de dirimir
concursos entre as várias leis potencialmente aplicáveis.

Outro corolário é o seguinte: a concepção bilateralista coloca em pé de

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 37

igualdade o direito material do foro e os direitos estrangeiros, mas


unicamente para efeitos de resolução de concursos, pois, em rigor,
no quadro da resolução do concurso de leis o critério deve ser o mesmo:
o da igualdade de tratamento. Parece que isto faz sentido, se a lei do
foro é uma das leis potencialmente competentes como será uma lei
estrangeira ou mais do que uma lei estrangeira, porque é que se há de
dar um tratamento diferente ao direito do foro? Não faz nenhum
sentido. Estes direitos, os tais chamados direitos potencialmente
competentes, têm que ser objecto duma igualdade de tratamento para
que a resolução do conflito de leis possa ser feita, portanto, isto quer
dizer o quê? Esta igualdade de tratamento o que é que significa?
Significa que devemos considerar que a lei do foro é tão potencialmente
competente como é uma lei estrangeira pelo facto de que esta
competência potencial lhe ser atribuída pelo mesmo título que tem a
competência potencial que é atribuída a uma lei estrangeira. E qual é
este título? Este título é a conexão, é o contacto entre a lei e a situação
em concreto. Não faz sentido de facto fazer aqui qualquer discriminação
entre estas duas leis. Esta é a posição de facto da versão moderna do
bilateralismo. Para dirimir o concurso de leis há que garantir a igualdade
de tratamento entre a lei do foro e as leis estrangeiras. Logo, cai por
terra também nesta perspectiva o argumento de ROBERTO AGO que
entende que o bilateralismo não pode ser aceite por dar tratamento
idêntico ao direito do foro e aos direitos estrangeiros.

Ora bem, em relação a tese unilateralista introversa, BAPTISTA


MACHADO critica entendendo que o unilateralismo introverso
confunde direito material e direito de conflitos e nega a autonomia das
regras de conflitos. Entende BAPTISTA MACHADO que o direito de
conflitos e o direito material não se podem confundir, e não se podem
confundir porquê? Porque se situam em planos diversos, obedecem a
critérios de justiça distintos e destacam como relevantes elementos ou
aspectos diferentes da realidade de facto. Esses são os fundamentos para
a não confusão entre direito material e direito de conflitos. E isso se
compreende muito facilmente. Senão vejamos:

As normas materiais se situam num plano normativo diferente das

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38 | Apontamentos Introdutórios

normas de conflito, e porquê? Porque estas constituem, modificam e


extinguem relações jurídicas, as normas de conflito situam-se no plano
da escolha das leis materiais aplicáveis, de resolução dos conflitos de
leis, portanto, são planos normativos diferentes. Porquê critérios de
justiça diferentes? Também parece ser óbvio que em termos de direito
material os critérios de justiça têm a ver com o válido e com o inválido,
com o eficaz e o ineficaz, com a criação, com a modificação, com a
extinção de relações jurídicas. Quais são os critérios de justiça do direito
de conflitos? Os critérios de justiça do DIP fundam-se basicamente na
escolha da conexão decisiva para a designação da lei aplicável, tem a
ver com a escolha da lei aplicável e mais adequada para a regulação da
questão controvertida, não tem a ver com a validade ou invalidade, com
a eficácia ou ineficácia, com a criação, modificação ou a extinção das
relações jurídicas, assim, até ao nível dos critérios de justiça estes dois
direitos são distintos. Destacam como relevantes elementos ou aspectos
diferentes da realidade de facto. Ao direito de conflitos o que é que
interessa? Interessa apenas a conexão dos factos com as leis, ao passo
que ao direito material interessam estes factos enquanto integradores
de hipóteses que despoletam depois determinadas consequências
jurídicas concretas. Ao DIP não interessam os factos nesta perspectiva,
ao DIP interessa apenas a ligação, a conexão entre estes factos e o factor
espaço, enquanto que para o direito intertemporal interessam apenas a
ligação destes factos com o factor tempo, logo, também neste domínio
estes dois ramos do direito são distintos, ou seja, se não podem
confundir. E esta é a crítica mais profunda que BAPTISTA MACHADO
faz ao unilateralismo introverso.

Contra o unilateralismo extroverso a crítica é a seguinte: é que o


unilateralismo extroverso assenta numa concepção da função da regra
de conflitos que confundindo a regra de conflitos com uma norma
material de remissão ad aliud ius (uma remissão extrassistemática)
igualmente implica uma negação da autonomia do direito de conflitos
em face do direito material. E isto por quê? Se repararem na teoria de
ROBERTO AGO a norma de conflitos ao designar um determinado
direito cumpre a função de chamar o direito material estrangeiro
designado pelo elemento de conexão da norma de conflitos a integrar

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 39

o direito material do ordenamento interno do estado do foro, portanto


a norma de conflitos funciona aqui como uma verdadeira norma de
remissão (não nos vamos ater, de momento, com muitos detalhes o que
é isso de remissão enquanto técnica legislativa, por ser uma matéria
muito técnica e se tratar do Curso de Relações Internacionais, matéria
que deveria ser vista de modo aprofundado nos primeiros anos do curso
em Introdução ao Estudo Direito e noutras cadeiras de direito).

A norma de remissão ao referir-se ao ordenamento ad quam, vai


produzir como resultado a recepção deste ordenamento no
ordenamento interno, ou seja, no chamado ordenamento a quo,
portanto, integra, faz a recepção deste ordenamento ad quam no
ordenamento a quo, quem fala em ordenamento pode estar a falar
também apenas em determinadas normas desse ordenamento jurídico.
Se esta é a perspectiva, então essa norma que está a remeter para um
direito material e a produzir a recepção deste material no direito
material do foro acaba por se confundir com uma verdadeira norma
material de remissão. Isto é, não há aqui da parte da Escola italiana uma
distinção clara entre o que é direito de conflitos e o que é direito
material, e põe-se uma norma que é suposto ser uma norma de
conflitos, que se deve situar num plano normativo diferente do direito
material a produzir como resultado a inserção de direito material no
ordenamento material do foro. Logo, a última conclusão a que se pode
chegar é a de que de facto também essa concepção não reconhece a
autonomia do direito de conflitos relativamente ao direito material.

Podemos concluir que num mesmo sistema de DIP podemos encontrar


normas de conflitos bilaterais, normas de DIP unilaterais, vimos já um
exemplo deste tipo de normas no nosso Código Civil, que é a norma do
art.º 28.º, n.os 1 e 2, que é uma verdadeira norma unilateral porque
impõe a aplicação do direito angolano a questão da capacidade de
estrangeiros e podemos ainda encontrar aquilo a que se chama em DIP
de normas bilaterais imperfeitas.

Normas bilaterais imperfeitas, que normas são estas? As normas


bilaterais imperfeitas são aquelas normas de conflitos que se referindo

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40 | Apontamentos Introdutórios

apenas a situações que mantenham com o estado do foro uma dada


conexão só para estas determinam a lei aplicável (portanto para aquelas
situações que mantenham com o estado do foro uma dada conexão),
podendo esta lei ser a lei do foro ou uma outra lei estrangeira conforme
a que for apontada por uma outra conexão considerada decisiva. Dito
doutra maneira, são normas bilaterais imperfeitas aquelas normas que
determinam tanto a aplicação do direito local, quanto de leis
estrangeiras, mas que, entretanto, se ocupam só de certos casos dentre
os possíveis, caracterizados por certos elementos que os ligam ao estado
do foro. E porquê que são tidas por imperfeitas? São imperfeitas porque
ao contrário das outras normas bilaterais só se aplicam (podendo a lei
mandada aplicar ser a do foro ou uma lei estrangeira) em relação a
casos que tenham com o estado do foro uma determinada conexão, não
se aplicam a generalidade dos casos, é preciso que o caso tenha com o
estado do foro uma dada conexão, uma determinada conexão para que
esta norma intervenha na escolha da lei aplicável, e é bilateral
exactamente porque é susceptível de apontar quer para a lei do foro,
quanto para uma lei estrangeira. Um exemplo de uma norma bilateral
imperfeita é o que consta do nosso art.º 51.º do CC.. Estes são
basicamente os tipos de normas que nós encontramos em qualquer
sistema de DIP.

Pontofinalizando, reiteramos que a posição que aderimos no fundo é a


vertente moderna do bilateralismo, sem que obviamente isto signifique
a negação das chamadas normas unilaterais. Consideramos que a
utilização das normas unilaterais é importante em determinados casos
para cumprir determinadas tarefas no quadro do direito internacional
privado, mas entendemos que o corpo principal de qualquer sistema de
DIP deve ser constituído por normas bilaterais porque tanto indicam
como aplicável a lei do estado do foro como qualquer direito estrangeiro
colocando-os em plena igualdade do ponto de vista do tratamento.

1.5. A Denominação Direito Internacional Privado

A denominação, designação ou o nome da nossa disciplina é Direito


Internacional Privado. Mas esse nome carrega a sua própria história,

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 41

sendo que quanto a denominação deste ramo de direito a doutrina nem


sempre foi e nem tem sido unânime, ou seja, tal ramo de direito nem
sempre foi designado desta forma. Durante muito tempo vários nomes
surgiram para se referir a este ramo de direito, desde conflito de Leis,
usado quer pelo ilustre estatutário holandês ULRICH HUBER na sua
obra clássica intitulada De Conflictu Legum Diversarum in Diversis
Imperiis, do séc. xvii, como pelo norte-americano JOSEPH STORY na
sua obra Conflict of Law publicada em 1834. Em 1841 o alemão
SCHAEFNER publicou o livro Internationales Privatrecht. Mas esta
denominação torna-se famosa e difundiu-se na ciência do direito através
da influência de uma obra de FOELIX, jurista francês, intitulada «Traité
du Droit International Privé ou du conflit des lois de diferentes nations, en
matière de droit privé», publicada em 1843.

É esta a denominação (Direito Internacional Privado) que veio a


prevalecer nos países da Europa Continental (podemos apontar em
Portugal o trabalho do Dr. MACHADO VILELA elaborado em 1921
denominado Tratado Elementar (Teórico e Prático) de Direito
Internacional Privado, bem como os trabalhos sonantes dos professores
BAPTISTA MACHADO, FERRER CORREIA, LIMA PINHEIRO,
MAGALHÃES COLLAÇO, ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, RUI
MANUEL GENS MOURA RAMOS e outros), da América Latina (onde
avultam nomes como os de JACOB DOLINGER, NÁDIA DE ARAÚJO e
MARISTELA BASSO27, FLORISBAL DE SOUZA DEL’OLMO, entre
tantos) e da África lusófona, mais concretamente em Angola28 (onde se
apontam estas nossas lições e os do professor MATEUS JAIME
CHITONGA) e Moçambique. Por seu turno, diferentemente dos
supracitados, os anglo-americanos dirigem a sua preferência a
expressão Conflict of Laws ao invés de Direito Internacional Privado.

27BASSO, Maristela. Curso de Direito Internacional Privado, Editora Atlas, 2009.


28No nosso país a disciplina recebe a denominação de Direito Internacional Privado na
maior parte das Universidades (até agora não encontramos uma sequer que a designe
de modo diferente), quer na Universidade Agostinho Neto, na Universidade Católica de
Angola, na Universidade Metodista de Angola, na Universidade Independente de
Angola, na Universidade Lusíada de Angola, na Universidade José Eduardo dos Santos,
na Universidade Mandume Ya Ndemo Fayo, na Universidade Katyavala Buila, etc..
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42 | Apontamentos Introdutórios

BAPTISTA MACHADO nos dá ainda a notícia de que a nossa disciplina


já foi denominada por Direito Interespacial, Direito Intersistemático,
Teoria da extra-actividade das Leis, Limites Locais das Leis (Savigny),
Direito dos Limites no espaço (Grenzrencht), Transnacional Law, etc.,
mas obviamente, tais designações ou denominações não lograram
êxitos29.

O Professor JACOB DOLINGER30 leva esta discussão a uma estrada mais


íngreme, mostrando como é que ao longo destes tempos também se
tem discutido a correcção, ou seja, a rigorosidade ou não dos termos
“internacional” e “privado” na composição da designação deste ramo
de direito. Discussão esta que faremos em sede de um outro “trabalho
massudo” que vimos preparando.

1.6. O Problema da Autonomia do DIP: Científica e Normativa

Uma das questões igualmente interessantes de abordar é a que tem a


ver com o facto de procurarmos saber se o Direito Internacional Privado
é ou não um ramo de direito autónomo completamente distinto do
Direito Internacional Público ou ainda do Direito Intertemporal ou
transitório, que também é um direito de conflitos.

Ora, a autonomia dum ramo de direito pode ser vista sob duas
perspectivas: científica e normativa. A científica têm a ver com o facto
desta, enquanto ciência, ter um objecto de estudo próprio, conceitos
próprios, métodos, técnicas e princípios informativos próprios31. Já a
normativa diz respeito a existência de um corpo de princípios e normas
jurídicas próprias, não obstante a subsidiariedade, que regulam

29 MACHADO, João Baptista. Lições de Direito Internacional Privado, 3.ª Edição


actualizada (reimpressão), Almedina, 2012, p. 13.
30 Vide, DOLINGER, Jacob. Direito Internacional Privado (Parte Geral), 55.ª edição

ampliada e atualizada, 1997.


31 Cf., de outros, CRETELLA JÚNIOR, José, Curso de Direito Administrativo, 9. ed., Rio

de Janeiro, Forense, 1987, p. 13; SÃO TOMÁS DE AQUINO, Summa Theologica, p. I, q.


45, a. 2.
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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 43

determinadas situações jurídicas de maneira autónoma e específica, e


no caso pelo menos do ramo a que nos propusemos escrever, ter um
método próprio. Vale realçar que a autonomia normativa não exclui a
complementaridade ou subsidiariedade que deve existir entre os
diversos ramos de direito.

É preciso asseverar que os ramos de direito não são compartimentos


estanques, mas sim vazos comunicantes.

A nosso ver, se lançarmos um olhar cauteloso ao Direito Internacional


Privado enquanto disciplina ou doutrina veremos que consiste no estudo
científico, estruturado e sistemático dos princípios e normas jurídicas que
compõem o Direito Internacional Privado enquanto ramo do direito
objectivo e das soluções por elas dadas, ou seja, enquanto complexo
normativo tendente a disciplinar in concreto o processo de delimitação
das leis potencialmente competentes e indicação daquela que possui a
conexão mais forte. Portanto, o objecto do Direito Internacional Privado
enquanto ciência é o Direito Internacional Privado enquanto ramo do
direito objectivo. Nesta perspectiva, vamos encontrar o Direito
Internacional Privado em forma de manuais, tratados, revistas,
relatórios, compêndios, etc..

Porém, se visitarmos os manuais, tratados, relatórios ou compêndios de


vários doutrinadores que discorrem sobre tais princípios fundamentais e
regras de conflitos do Direito Internacional Privado como os livros de
JOÃO BAPTISTA MACHADO, FERRER CORREIA, LIMA PINHEIRO,
ISABEL DE MAGALHÃES COLAÇO, MACHADO VILELA, MARIA JOÃO
MIMOSO e SANDRA SOUSA, RUI MANUEL GENS MOURA RAMOS
(nomes estes que vimos fazendo muita referência), veremos que, a
priori, o adjectivo privado aparece quase como que o único elemento
distintivo.

Será que isto nos levaria a negar a autonomia científica ao Direito


Internacional Privado? Julgamos que não. Pois, salvo melhor
argumento, consideramos que este ramo de Direito é cientificamente
autónomo. Senão vejamos, enquanto ciência possui um objecto de

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44 | Apontamentos Introdutórios

estudo próprio (o DIP enquanto direito objectivo) e métodos próprios


(hipotético-dedutivo, normativo e hermenêutico).

Já no tocante a sua autonomia normativa, somos de opinião que ela é


igualmente autónoma por possuir normas e princípios próprios que
regulam de modo específico e diferente quer o dirimir de conflitos de
leis no espaço, quer o problema da competência internacional, bem
como o reconhecimento no estado do foro de decisões estrangeiras e
direitos adquiridos. É exemplo disto o princípio da não-transactividade
decorrente do princípio universal de justiça, o princípio da harmonia
internacional de decisões também conhecido como princípio da
harmonia internacional de julgados, o princípio da paridade/igualdade
de tratamento do direito do foro e dos direitos estrangeiros, o princípio
da eficácia/maior proximidade/efectividade ou do Estado da melhor
competência, o princípio da boa administração da justiça, o princípio da
harmonia material, o princípio do favor negotii ou da justiça material, o
princípio da autonomia da vontade, o princípio do respeito dos direitos
adquiridos, o princípio da ordem pública internacional, bem como as
normas contidas no Código Civil que vão dos artigos 15.º a 65.º entre
outras que podemos encontrar em várias legislações. Este complexo
normativo tem um método próprio aplicado em juízo, nas
conservatórias, notários e consulados: o método de conexão ou método
conflitual (devendo reconhecer-se nos dias que correm que a aplicação
de tal método não deve ser seca, nem cega).

1.7. O DIP e Disciplinas Afins: Aproximações e Distanciamentos

O exercício a que nos propusemos agora não é o de fazer uma


diferenciação profunda, exaustiva ou alongada entre o DIP e as outras
disciplinas jurídicas, mas tão-somente traçar, em linhas mestras, alguns
dos mais visíveis traços distanciadores e aproximadores para ficarmos
com uma mínima ideia do campo de actuação de umas e de outras. Por
este motivo, está lançado o desafio àqueles que gostam de investigar,
para aprofundarem aquilo que, como aprendizes, nos propusemos aqui
fazer.

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Capítulo I – Linhas Orientadoras | 45

1.6.1. O DIP e o Direito Constitucional

Até aos anos setenta, muitos autores negavam, e se calhar alguns ainda
negam, a existência de uma possível zona de interferência entre o DIP e
o Direito Constitucional. O ponto de partida destes era a visão que
tinham quanto as normas de DIP. Para estes, as normas de DIP eram
vistas (e esta é também a visão tradicional ou clássica do DIP) como
normas fundamentalmente formais, técnicas e, do ponto de vista
material, axiologicamente neutras, normas puramente metodológicas, e
apenas dirigidas ao órgão aplicador do direito.

Ora, obviamente nos dias que correm, dadas as metamorfoses sofridas


pelo DIP, somos, com FERRER CORREIA, a afirmar que TAL VISÃO É
COMPLETAMENTE ERRADA, uma vez que se é verdade que apesar das
normas de DIP terem este cunho predominantemente formal, não quer
com isto significar que as mesmas tendem a uma ordem arbitrária, cega
a valores, pois, nelas predominam também a defesa da certeza e a
segurança jurídica, a estabilidade e continuidade das relações jurídicas,
a protecção das legítimas e naturais expectativas dos sujeitos privados
(ou que actuam nestas vestes), a defesa dos interesses do comércio
jurídico, mas também, e isto é importante, vigora em sede do DIP a
excepção ou reserva da ordem pública internacional.

Por outro lado, temos de ter em atenção a Constituição é hoje,


parafraseando Faria Costa, «o referente normativo inarredável para a
compreensão e delimitação de um qualquer outro ramo de direito»32. A
Constituição é a lei mãe de um país, a lei suprema, a lex fundamentalis.
Existe, no ordenamento jurídico angolano, uma analogia substancial
entre a Ordem axiológica constitucional e a Ordem axiológica que
preside os demais ramos de direito (dentre eles o DIP), funcionando a

32JOSÉ DE FARIA COSTA, Um Olhar Cruzado entre a Constituição e o Processo Penal, in


A Justiça dos Dois Lados do Atlântico — Teoria e Prática do Processo Criminal em
Portugal e nos Estados Unidos da América, Seminário realizado no auditório da
Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento em Novembro de 1997, Versão
portuguesa, Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento, Novembro 1997, p.
187. (negrito nosso).
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46 | Apontamentos Introdutórios

primeira como a baliza, a trave mestra em que as demais devem apoiar-


se e orientar-se. Assim quer as normas de DIP, quer os resultados com
elas alcançados não devem contrariar brutalmente os princípios e
normas fundamentalíssimos da Constituição.

A Constituição é, nos dias que correm, “a expressão imediata dos valores


jurídicos básicos acolhidos ou dominantes na comunidade política, a
sede da ideia de Direito nela triunfante, o quadro de referência do poder
político que se pretende ao serviço desta ideia”.

Recaindo para a nossa concreta realidade, vislumbramos diversos


espaços em que a Constituição condiciona quer a elaboração das
normas de DIP, como a sua aplicação.

Um primeiro exemplo tem que ver com aquelas normas e princípios


constitucionais que tutelam direitos fundamentais, funcionando como
um limite à actividade legiferante, à aplicação do Direito estrangeiro
competente e ao reconhecimento de efeitos de decisões estrangeiras. É
o caso, do princípio da igualdade entre homens e mulheres consagrado
no n.º 2 do art.º 35.º da CRA (podemos também apontar o art.º 23.º da
CRA do qual aquele é uma concretização). Este princípio em forma de
norma de natureza constitucional acabou por revogar, ainda que
parcialmente, a norma de conflitos constante do n.º 2 do art.º 52.º, do
art.º 57.º e o n.º 1 do art.º 58.º, todos do Código Civil. Em sede destes
artigos dava-se prevalência a conexão domicílio ou nacionalidade do
marido ou do pai do que da esposa ou da mãe o que, desde logo,
claramente atenta contra o princípio da igualdade entre homens e
mulheres, sendo por isto mesmo inconstitucional, afastando-se a sua
aplicação. Outros casos são os da proibição da submissão a tratamentos
cruéis e degradantes e o da imposição do respeito pela dignidade da
pessoa humana, sendo ferida de inconstitucionalidade uma norma de
DIP que permite tais actos ou violações e não sendo de aceitar também
a aplicação de um direito material estrangeiro que oferecesse uma
solução contrária a esses preceitos.

© JOÃO DOMINGOS MORAIS & FIGUEIREDO DALA


Capítulo I – Linhas Orientadoras | 47

Ademais, o Direito Constitucional interfere com o DIP quer quando


dispõe sobre a recepção do Direito Internacional Público geral no
tocante as condições da sua vigência no ordenamento jurídico angolano
das convenções e do direito derivado emanado de organizações
internacionais (art.º 12, 13.º, 26.º CRA); quer quando dispõe sobre
matérias conexas ao DIP, designadamente o Direito da Nacionalidade
(art.º 9.º) e o Direito dos Estrangeiros (art.º 25.º) por exemplo; bem
como, quando de forma geral afecte o sistema de Direito de Conflitos.

1.6.2. O DIP e o Direito Transitório ou Intertemporal

Quer o Direito Internacional Privado, quer o Direito Intertemporal


constituem, ou, numa linguagem mais simples, são Direito de Conflitos.
Ambos resolvem conflitos de leis, um usa a localização dos factos no
espaço (o DIP) e, o outro usa a localização dos factos no tempo (o Direito
Intertemporal), daí serem direitos de conexão. Para o DIP importa a
dinâmica das relações jurídicas, enquanto para o Direito Intertemporal
preocupa-se com a dinâmica das leis.

Explicando melhor, o DIP resolve o problema do conflito de leis


resultante da existência ou vigência simultânea, em territórios diversos,
de leis distintas; por seu turno, o Direito Intertemporal resolve o
problema do conflito de leis resultante do fenómeno da sucessão no
tempo, no seio da mesma ordem jurídica, de duas normas ou complexos
normativos diferentes. Estas normas ou leis que ao entrarem em vigor
tomam, como é óbvio, o lugar de outras normas ou leis, acabam por
interferir com situações jurídicas preexistentes, colocando-se nesta sede
o problema da aplicação da Lei Nova ou da Lei Antiga.

O Direito Internacional Privado tem sido tratado por muitos como o


direito de conflitos por sinédoque33, ou seja, como se houvesse uma

33 Sinédoque é uma figura de estilo que consiste em tomar a parte como se do todo se
tratasse. Segundo a Enciclopédia Livre Wikipédia, esta figura de estilo consiste na
atribuição da parte pelo todo (pars pro toto), ou do todo pela parte (totum pro
parte): "Moscou caiu às mãos dos alemães", o singular pelo plural ("Quando o Gama
chegou à Índia"), o autor pela obra ("Estou a estudar Pessoa"), a capital pelo governo
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48 | Apontamentos Introdutórios

coincidência absoluta, ou uma perfeita sinonímia entre DIP e Direito de


conflitos, dito doutro modo, tratamos o DIP de Direito de conflitos,
muitas vezes como se fosse o único direito de conflitos, mas não o é,
pois, existem outros direitos de conflitos, dos quais um dos exemplos é
o Direito intertemporal34. Ambos fazem parte do mesmo conjunto, ou
seja, integram aquilo a que chamamos Direito de Conflitos. O Direito de
conflitos é o género daquilo que o DIP e o Direito Intertemporal são as
espécies. Daí concluir-se que ambos são parentes. São direito sobre
direito. Ambos são compostos por normas de aplicação de outras
normas. Constituem direito de segundo grau, instrumentais ou
secundários, porque não resolvem directamente a situação, muito pelo
contrário indicam é o ordenamento jurídico ou a lei competente para
regular a situação. Quanto a isto, importa realçar que existem situações
em que, com recurso por exemplo das chamadas normas materiais de
DIP, este vai regular directamente uma situação, mas obviamente esta
não é já a regra (mas também não é que a encaremos como excepção,
é apenas uma das formas, vias, técnicas ou processos que o DIP actual
lança mão para regular situações privadas internacionais).

O princípio da não retroactividade35 que é inerente ao Direito


Intertemporal corresponde ao princípio da não-transactividade que é
inerente ao Direito Internacional Privado. Ambos assentam no princípio
universal de justiça. Refere BAPTISTA MACHADO que a grande
diferença entre estes dois direitos de conflitos reside no problema
derivado dos concursos de leis aplicáveis, que as específicas regras de
conflitos têm por missão resolver. Tal problema resolvido pelas regras

do país ("Washington decidiu enviar tropas para o Iraque"), uma peça de vestuário pela
pessoa que o usa ("Um vestido negro surgiu pela porta"), etc. Na verdade, trata-se da
inclusão ou contiguidade semântica existente entre dois nomes e que permite a
substituição de um pelo outro. Disponível em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Sin%C3%A9doque. Acessado no dia 7 de Janeiro de 2016.
34 Além do Direito Intertemporal, encontramos o Direito de Conflitos Interlocal (ou

Interterritorial), o Direito de Conflitos Interpessoal e o Direito de Conflitos Público.


35 Nos termos do art.º 12.º do CC, este princípio tem o sentido de que a lei só dispõe

para o futuro, ou seja, ela não é aplicável aos factos e aos efeitos destes que ocorridos
antes da sua entrada em vigor. Esse princípio não é absoluto, sofrendo algumas
excepções.
© JOÃO DOMINGOS MORAIS & FIGUEIREDO DALA
Capítulo I – Linhas Orientadoras | 49

de conflitos é um problema privativo do Direito Internacional Privado e,


por isso mesmo, as específicas regras de conflitos do DIP, não têm
paralelo no Direito transitório. Conclui o mesmo autor que, não há no
Direito Intertemporal normas idênticas as regras de conflitos. Ambos têm
o objectivo de garantir a estabilidade e a continuidade das relações
jurídicas interindividuais e, assim, tutelar a confiança e as naturais e
legítimas expectativas dos interessados. Perseguem interesses ou valores
como a segurança e a certeza jurídicas.

In terminis, é importante frisar que o fenómeno da sucessão de leis no


tempo também ocorre em sede do Direito Internacional Privado.

1.6.3. O Direito Internacional Privado e o Direito Internacional


Público

Vários são os critérios que podem ser utilizados para distinguir o Direito
Internacional Privado do Direito Internacional Público: quanto as fontes,
o objecto, os sujeitos, os princípios, os métodos, as normas, a natureza
jurídica, etc.. Obviamente, não o faremos quanto as fontes, uma vez que
tanto um quanto outro podem nalguns casos ter a mesma fonte, o que
retira desde logo de órbita qualquer interesse de nossa parte nesta
abordagem em particular.

O Direito Internacional Privado tem como objecto as chamadas relações


jurídico-privadas de carácter internacional. Destarte, os sujeitos do
Direito Internacional Privado são os particulares, ou seja, os privados,
pessoas singulares (físicas) e colectivas (jurídicas) que actuam em
paridade, ou melhor, em igualdade. Tais relações jurídicas privadas
transnacionais que geram um conflito de leis (em muitos casos) são
reguladas de maneira material pelo Direito Privado aplicável.
Contrariamente, o Direito Internacional Público regula relações jurídico-
públicas que se estabelecem entre os sujeitos de direito internacional.

Reforçando, os seus sujeitos são, em regra, entes públicos,


nomeadamente, sujeitos com capacidade plena (os Estados Soberanos),
sujeitos com capacidade limitada (subdividindo-se em: sujeitos de base

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50 | Apontamentos Introdutórios

territorial – Estados beligerantes, Estados Semi-soberanos e Associações


de estados; e, sujeitos sem base territorial – que por sua vez podem ser:
de interesses espirituais como a Santa Sé e a Ordem de Malta; ou de
interesses políticos, como Nação e Movimentos Nacionais; além destes
temos ainda outros que são o Indivíduo e as Organizações
Internacionais, estas últimas podemos trazer à baila como exemplos a
ONU, OIT, UNESCO, FAO, OMS).

Quanto aos princípios, o Direito Internacional Privado é informado pelos


princípios da não-transactividade (apesar de muitos não o inserirem
aqui), da harmonia internacional de julgados, da harmonia interna, do
favor negotii (do favor validitatis ou da justiça material), da maior
proximidade (ou do Estado da melhor competência ou da máxima
efectividade), da paridade de tratamento entre a lex fori e as ordens
jurídicas estrangeiras, o da autonomia da vontade. Contrariamente, o
Direito Internacional Público é informado pelos princípios da não
ingerência nos assuntos internos de outros Estados, da necessidade de
recepção das convenções na ordem jurídica de cada Estado, do mare
liberum, da solidariedade internacional, da Não-agressão, do não
reconhecimento de aquisição de territórios mediante o recurso à força,
da Auto Determinação dos Povos, da Proibição do Genocídio, etc.

Quanto às normas, à função, ao método e a natureza jurídica, o Direito


Internacional Privado é um direito de conflitos que tem dentre as suas
funções a de dirimir o conflito de leis no espaço e o reconhecimento de
situações jurídicas privadas, é um direito de natureza privada onde
predomina a justiça formal (preferimos a palavra predomina, pois, não
é a única, porque hoje em dia já foi abandonada aquela visão clássica
seca, cega e desprovida de qualquer interesse material, e nele
encontramos também a preocupação com a justiça material) e que
utiliza uma norma muito específica, as regras de conflito, que são
fundamentalmente normas formais (nem todas as normas de DIP são
conflituais), cuja função e método se consubstancia na designação, de
entre as diversas leis em concurso de uma, e apenas uma lei competente
(sem prejuízo do princípio do dépeçage) para regular a relação ou
situação jurídica decidenda levada à apreciação para os órgão de

© JOÃO DOMINGOS MORAIS & FIGUEIREDO DALA


Capítulo I – Linhas Orientadoras | 51

aplicação do direito no Estado do foro, dirimindo assim o conflito de leis


no espaço existente.

On the other hand, o Direito Internacional Público é por regra composto


por normas convencionais, que são regras materiais, pois, visam a
regulação directa das relações a que se propõem e que em regra têm a
condicioná-las, do ponto de vista da sua eficácia nos ordenamentos
jurídicos dos Estados Membros o mecanismo da recepção, sem o qual
não têm eficácia ou não vigoram dentro de um dado ordenamento
jurídico interno. Trata-se de um Direito de natureza pública cujo método
é o da regulação directa das relações ou situações jurídicas.

At last, but not the least, ao Direito Internacional Privado não tem grande
importância o facto de um determinado Estado ser ou não reconhecido.
Tanto assim que se a norma de conflitos indicar como competente ou
aplicável uma determinada lei pertencente a um Estado não
reconhecido, desde que seja aquele o direito material que efectivamente
vigore naquele estado, é aquele o direito material que será aplicado,
ressalvadas algumas excepções como o caso da OPI ou Fraude à Lei.
Para o Direito Internacional Privado interessa apenas o ordenamento
jurídico que vigora efectivamente num dado Estado, esteja ele ou não
reconhecido na arena internacional, se surgiu de um golpe de estado e
um grupo de rebeldes tomou o poder, ou se está a ser objecto de uma
ocupatio bellica por parte de outro estado. Este é um problema do
Direito Internacional Público e não já do Direito Internacional Privado
que em qualquer uma destas situações desde que os seus princípios e
normas de conflitos levassem a aplicação de um desses ordenamentos
jurídicos o mesmo seria aplicado.

1.6.4. O DIP e o Direito Privado Uniforme

O Direito Internacional Privado visa a resolução de conflitos de leis no


espaço. Por seu turno, o Direito Privado Uniforme visa a supressão de
conflitos de leis no espaço. O DIP existe em razão da diversidade de leis
materiais estaduais. O Direito Privado Uniforme é direito material.

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52 | Apontamentos Introdutórios

Obviamente, para muitos seria uma forma ideal para fazer desaparecer
o DIP, mas não o faz. E não o faz porquê? Não o faz:

 Primeiro, porque, apesar de este fazer, num primeiro momento,


desaparecer o problema do DIP através da celebração de
convenções entre os mais diversos Estados que contenham
normas materiais reguladoras ou que facultam as mesmíssimas
soluções aos problemas jurídicos que possam surgir na arena
jurídico-privada internacional, não fará nunca o DIP desaparecer
pelo simples facto de que tal não pode ser feito em todos os ramos
de direito, salvo se para além das normas, também as influências
que estão na sua base e as suas origens, assim como os valores
sociais, culturais, económicos e históricos sejam também
harmonizáveis, dado este que se reputa como bastante utópico. É
só olharmos para os direitos de família e sucessórios e veremos
sem grandes dificuldades que tais ramos estão embebidos da
cultura de cada povo em concreto.

 Segundo, porque, de pouco ou nenhum efeito será ou servirá se


tais convenções não forem ratificadas por todos os Estados.
Destarte, caso poucos Estados a ratifiquem, e uma vez que as
pessoas não podem ser impedidas de desenvolver a sua vida
mediante a colaboração com os outros independentemente do
lugar em que se encontram ou de que são originários e dado que
ninguém os impedirá, via de regra, a entrarem em contacto com
tais pessoas, o problema do DIP renascerá constantemente.

 Terceiro, porque, mesmo nas áreas que oferecem grandes


oportunidades de uniformização (como o direito das obrigações,
o direito real e o direito comercial), o momento concreto da
aplicação da norma aos casos decidendos cria um novo dilema: é
que uma vez que a aplicação de toda e qualquer norma jurídica
pressupõe lógica e cronologicamente o expediente da
interpretação, despoleta consequentemente novas divergências
entre Estados.

© JOÃO DOMINGOS MORAIS & FIGUEIREDO DALA


Capítulo I – Linhas Orientadoras | 53

1.6.5. O DIP e o Direito Comparado

Cumpre preambularmente referir que o Direito Comparado é apenas


um ramo doutrinário e não já um ramo de direito objectivo. Ele é, rigore
scientiae, na perspectiva do Dr. RUI PINTO DUARTE, um estudo dos
vários Direitos, num momento estaticamente tomado, e que implica a
justaposição dos resultados desse estudo e o registo das semelhanças e
das diferenças (o que não obriga necessariamente a que nos estudos
comparativos surja uma secção formalmente autónoma evidenciando
tal registo; a comparação pode estar implícita no modo de descrição dos
vários direitos)36.

Estes estudos, questionamentos ou análises comparativas podem recair


quer sobre Direitos de Conflitos, como sobre Direitos materiais (visando
via de regra estabelecer semelhanças e diferenças entre sistemas
jurídicos considerados na sua globalidade – efectuando deste jeito uma
macro-comparação – e entre institutos jurídicos afins em ordens
jurídicas diferentes – elaborando uma micro-comparação) e têm em
vista o posterior traçar de novos caminhos.

Os estudos de Direito Comparado têm a vantagem de ser extremamente


valiosos para os legisladores dos mais diversos estados, orientando-os
para aquilo que é a mais actualizada concepção de justiça e protecção
do ser humano, garantindo um desenvolvimento humano, durável e
sustentável (já o dissemos: homini causa, omne jus costitutum est).

Nestes termos, o Direito Comparado está ao serviço dos ramos de direito


(onde se inclui o DIP), servindo-lhe quando muito como uma fonte
mediata, influenciando na criação do próprio direito, bem como no seu
desenvolvimento e aperfeiçoamento. Por outra, o Direito Comparado

36Em: Introdução ao Direito Comparado. Separata da Revista “O Direito IV”, Almedina,


2006, pp. 771-772. Passim TENÓRIO, Óscar. Direito Internacional Privado. v. I, p. 47; e,
VALLADÃO, Haroldo. Direito Internacional Privado, V. I, p. 30. O professor Carlos de
Almeida, que ensina Direito Comparado português possuí um entendimento diverso
dos dois autores citados. In, ALMEIDA, Carlos Ferreira de. Introdução ao direito
comparado. p. 9.
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54 | Apontamentos Introdutórios

releva na interpretação e aplicação da generalidade das normas de


conflitos. Ora, sabemos já a esta altura das nossas lições que o DIP pode
ser visto ou existe quer como ramo de direito objectivo, quer como
estudo ou doutrina. Por outro lado, o estudo feito em sede do DIP não
se propõe a comparação dos diversos ramos de direito, ou para o caso,
dos diversos sistemas de conflitos e procurar depois eliminar as
diferenças, não obstante isto não lhe ser totalmente alheio. Tudo isto faz
com que a aplicação de certas normas de Direito dos estrangeiros exija
o recurso ao Direito Comparado.

O Direito Comparado, além do papel fundamental que assume para a


elaboração de Direito material unificado, é instrumento privilegiado da
interpretação deste Direito, que, nos termos atrás expostos, deve, em
princípio, ser uma interpretação autónoma e favorecer a uniformidade
internacional de interpretação.

1.6.6. O DIP e a História do Direito

O objecto da História do Direito é da mesma natureza que a do Direito


Comparado, divergindo apenas na perspectiva. A História do Direito faz
um estudo da evolução do Direito. Mas nalguns casos este envereda
para um estudo histórico-comparado. É de se lhe apontar, mutatis
mutandis, a mesma utilidade que se apontou ao Direito Comparado.

© JOÃO DOMINGOS MORAIS & FIGUEIREDO DALA


Capítulo II – Âmbito de Estudo do DIP | 55

CAPÍTULO II
ÂMBITO DE ESTUDO DO DIP
CAPÍTULO II – Âmbito de Estudo do DIP

Vimos aquando da abordagem do problema da autonomia do Direito


Internacional Privado que esta pode bifurcar-se em autonomia científica,
ou seja, podemos ver o DIP enquanto disciplina científica estudadas por
vários jurisconsultos e ministrada nos mais diversos cursos dos Institutos
ou faculdades das mais diversas universidades, e autonomia normativa,
ou seja, vermos o DIP numa perspectiva positivista-legalista, o DIP
enquanto, nas palavras de FERRER CORREIA, ciência jurídica, ramo do
direito objectivo, enquanto conjunto de princípios e normas que
dirimem os conflitos de leis no espaço. Dissemos ainda que o objecto do
DIP enquanto disciplina é o DIP enquanto ramo do direito objectivo,
enquanto princípios e normas de conflitos que regulam as relações
privadas transnacionais.

A pergunta que surge agora é a de procurar saber se em concreto quais


são as matérias que devem ser ou são estudadas em sede do DIP
ensinado nas Universidades? Qual é o âmbito das matérias estudadas
em DIP?

2.1. Do âmbito: Posições Doutrinárias

Quanto à esta questão, do âmbito do DIP, a doutrina diverge. Daí termos


de abordar tal questão de modo separado tendo em conta as acepções
defendidas por cada uma das escolas.

2.1.1. A Escola Transalpina e a Escola Germânica

Tanto a doutrina transalpina como a doutrina germânica confinam o


âmbito do DIP ao problema do conflito de leis no espaço. Constatamos,
todavia, que nestes países existem compêndios dedicados também ao
reconhecimento e execução de sentenças estrangeiras. Em suma,
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56 | Apontamentos Introdutórios

abrangem problemas que fazem parte do Direito Processual Civil


Internacional.

2.1.2. A Escola Anglo-saxônica

Relactivamente à escola anglo-saxónica, o DIP ocupa-se


fundamentalmente de 3 questões, a saber: 1.ª A questão da lei
competente (que também é designada nos países anglo-saxónicos de
“choice of law”); 2.ª A questão da jurisdição competente (também
designada por choice of jurisdiction) e a 3.ª A Questão do
reconhecimento das sentenças estrangeiras.

2.1.3. A Escola Francesa

Comparativamente às escolas anteriores, a escola francesa tem uma


visão mais ampla, ou seja, mais alargada sobre o âmbito do estudo do
DIP. Para essa escola o DIP ocupar-se-ia de quatro matérias,
designadamente: (1.ª) dos conflitos de leis; (2.ª) dos conflitos de
jurisdição; (3.ª) da nacionalidade; e, por último, (4.ª) da condição
jurídica dos estrangeiros.

Quanto à este ponto é preciso salientar que, dentre os cultores do DIP


francês, ANTOINE PILLET defendia a autonomia científica e pedagógica
do estudo da condição jurídica dos estrangeiros. Isto significa que a
condição jurídica dos estrangeiros não seria estudada em sede do DIP,
mas seria um estudo autónomo. Esta doutrina em Portugal foi adoptada
pelo professor MACHADO VILELA e é aquilo que então veio a ser
conhecido como a doutrina dos direitos adquiridos.

Por outro lado, é importante falar que a doutrina de PILLET e de


MACHADO VILELA não são aceites, pois, não se reconhece a
autonomia científica e pedagógica a questão do reconhecimento dos
direitos adquiridos. Segundo o professor MACHADO VILELA, a questão
dos direitos adquiridos constituiria um prius daquilo que a regra de
conflitos constituiria um posterius. Isto significa que antes mesmos de se
colocar a questão, seria da competência (de um tribunal) de um
© JOÃO DOMINGOS MORAIS & FIGUEIREDO DALA
Capítulo II – Âmbito de Estudo do DIP | 57

determinado ordenamento jurídico resolver primeiro a questão do


reconhecimento dos direitos adquiridos.

Esta doutrina não é aceite e encontrou várias objecções, desde logo, é


refutada pelos adeptos de Savigny, ou seja, daqueles que defendiam que
o DIP poderia apenas ocupar-se das regras de conflitos, isto é, o DIP
seria apenas um mero conjunto de regras de conflitos. Mas a doutrina
de MACHADO VILELA teve o mérito de pela primeira vez distinguir o
direito de conflitos das regras de conflitos, isto quer dizer que, o direito
de conflitos não se confunde com as regras de conflitos, para além das
regras de conflitos, o direito de conflitos se ocupa de outras matérias,
quando para os adeptos de Savigny o DIP seria apenas um conjunto de
regras de conflitos. Do ponto de vista substancial, é óbvio que esta
doutrina de PILLET e MACHADO VILELA tem o seu mérito, mas não é
aceite. Esta doutrina encontra igualmente forte oposição nos professores
BAPTISTA MACHADO e FERRER CORREIA.

O professor BAPTISTA MACHADO diz que a doutrina dos direitos


adquiridos seria autônoma em relação ao direito de conflitos se
porventura os problemas específicos que visam resolver as regras de
conflitos se confundissem com o próprio direito de conflitos, mas como
vimos, o direito de conflitos não se confunde com as regras de conflitos.
Para o Prof. FERRER CORREIA a doutrina de PILLET e MACHADO
VILELA tem o seu mérito é óbvio, porque é importante que se estude a
questão do reconhecimento dos direitos adquiridos, mas esse papel,
essa relevância que tem esta doutrina não é fundamental ou suficiente
para justificar a sua autonomia em relação ao direito de conflitos.

Assevera FERRER CORREIA que, no âmbito do estado do foro, por


exemplo, independentemente de se tratar do reconhecimento de um
direito adquirido no estrangeiro, é preciso que o tribunal do estado do
foro faça a averiguação se este direito no estrangeiro foi adquirido de
acordo com a lei competente. Isto quer dizer que, quando estamos a
discutir a questão do reconhecimento dos direitos adquiridos é preciso
averiguar também sobre a validade deste mesmo direito em sede de um

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58 | Apontamentos Introdutórios

preceito que no estado do foro seria capaz de indicar aquela norma ou


ordenamento como competente.

2.1.4. A Escola Portuguesa

Não estamos certos se nos é líquido falar numa verdadeira escola


portuguesa de DIP uma vez que as contrariedades entre as várias
universidades não nos permitem fazer uma abordagem em bloco.
Perguntar-se-ão, então porquê que o ponto 2.1.4. designa-se a escola
portuguesa? Eis a resposta: fizemo-lo apenas por questões didáctico-
metodológicas. Destarte, teremos de falar da posição de vários autores
para compreendermos melhor o pensamento português.

Quanto ao professor ÁLVARO DA COSTA MACHADO VILELA o DIP tem


como objecto: (1) o problema do direito dos estrangeiros; (2) o
problema do conflito de leis; e, (3) o problema do valor dos direitos
adquiridos ou declarados por sentença em país estrangeiro37.

Quanto ao professor ANTÓNIO DE ARRUDA FERRER CORREIA o DIP


ocupa-se fundamentalmente das questões conflituais. Isto quer dizer
que, segundo este catedrático, o problema central da nossa cadeira é o
direito de conflitos. Mas, diz o professor de Coimbra que não significa
isso que o DIP se ocupa apenas das regras de conflitos. Para ele, em
sede do DIP também são estudadas outras matérias, nomeadamente, a
questão da nacionalidade. Assim, teríamos aqui que para o professor
FERRER CORREIA o direito de conflitos e teríamos também a condição
jurídica dos estrangeiros.

Quanto à professora ISABEL MARIA TELLO DE MAGALHÃES COLAÇO,


o DIP ocupa-se fundamentalmente do direito de conflitos. Todavia,
acrescenta no seu magistério que, é preciso ter em conta, em sede do
DIP, não apenas as regras de conflitos, mas também aquelas matérias
que constituem um pressuposto ou limite da aplicação das regras de
conflitos, por um lado, e por outro, aquelas matérias que se encontram
37
VILELA, Álvaro da Costa Machado. Tratado Elementar (Teórico e Prático) de Direito
Internacional Privado. Vol. I, Coimbra Editora, 1921, pp. 7 e 8.

© JOÃO DOMINGOS MORAIS & FIGUEIREDO DALA


Capítulo II – Âmbito de Estudo do DIP | 59

numa relação de atinência, proximidade, assessoriedade ou


complementariedade com as regras de conflitos. Esta é a fórmula
atribuída a doutora ISABEL DE MAGALHÃES COLAÇO e que é
praticamente aceite por quase todos os autores. E quais são essas
matérias? Infelizmente, a ilustre professora não teve vida suficiente para
oferecer uma resposta a este quesito. Relativamente a isto foram outros
autores que ensaiaram diversas respostas na tentativa de preencher o
conteúdo dessa fórmula deixada por MAGALHÃES COLLAÇO.

São fundamentalmente indicadas como matérias que se encontram


numa relação de atinência, proximidade, assessoriedade ou
complementariedade com as regras de conflitos, três, nomeadamente:
as regras de direito material do DIP, as regras de aplicação imediata e
também as matérias conexas com o DIP (nesta última, os autores têm
enquadrado aquelas matérias que apesar de não terem que ver
necessariamente com a regulação das relações internacionais, não
sendo regras de conflitos, têm uma certa influência na regulação das
relações jurídicas internacionais, estamos a falar por exemplo das
normas no âmbito da cooperação judiciária entre as autoridades
competentes de diferentes estados).

Nesta linha de pensamento o professor ANTÓNIO MARQUES DOS


SANTOS elenca uma lista um tanto quanto enorme de matérias que
devem ser estudadas no âmbito do DIP, desde logo: O direito material
do DIP, destinado a regular as relações transnacionais; o direito especial
do DIP; as regras de cooperação judiciária, que têm que ver com a
cooperação entre várias autoridades e que tem relevância para
regulação das relações privadas internacionais, estamos aqui a falar por
exemplo das normas de cooperação no âmbito da adopção e protecção
de crianças. Para o professor ANTÓNIO MARQUES DOS SANTOS, em
sede do DIP também é estudada a nacionalidade, bem como o conflito
de jurisdição, a condição jurídica dos estrangeiros, enfim é uma lista
enorme de matérias que, segundo este autor, podem ser estudadas em
sede do DIP.

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60 | Apontamentos Introdutórios

Por último, o prof. LUÍS DE LIMA PINHEIRO começa por dizer que o
direito de conflitos, se preferirem, o DIP, entendido em sentido amplo
desdobra-se em dois: por um lado, encontramos o direito de conflitos
stricto sensu e, por outro, o direito de reconhecimento. Partindo desta
dicotomia, o prof. LIMA PINHEIRO advoga então que em sede do DIP
devemos estudar em primeiro lugar o direito de conflitos stricto sensu, e
depois, o direito de reconhecimento. Mas também reconhece que no
âmbito do DIP não são apenas estas as únicas matérias, podendo
também se estudar uma outra que tem que ver com o reconhecimento
do direito dos estrangeiros. Então, resumindo, para o prof. LIMA
PINHEIRO no âmbito do DIP estuda-se fundamentalmente três matérias:
direito de conflitos strictu sensu, direito de reconhecimento e direito da
competência internacional.

Esta posição foi renovada pelo professor LIMA PINHEIRO aquando da


apresentação da sua comunicação intitulada UM DIREITO
INTERNACIONAL PRIVADO COMUM?, apresentada no Congresso
Internacional “25 Anos na União Europeia – 25 Anos de Instituto
Europeu”, realizado na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa,
em Novembro de 2011, afirmou o ilustre que:

“Por Direito Internacional Privado entendo aqui não só


o Direito de Conflitos – que visa determinar o Direito
aplicável a situações transnacionais (i.e., com contactos
relevantes com mais de um Estado soberano) – mas
também o Direito da Competência Internacional, que
se ocupa da determinação das jurisdições competentes
para dirimirem os litígios emergentes de situações
transnacionais, e o Direito de Reconhecimento, que
diz principalmente respeito aos efeitos que decisões
estrangeiras podem produzir na nossa ordem jurídica.
As situações aqui em causa são, em princípio, situações
de Direito privado.”

2.2. Posição Adoptada: Plano de Estudo.

Chegados a este ponto, aquele que lê estas lições deve estar a


questionar-se: o que é que se estuda nesta cadeira de Direito
© JOÃO DOMINGOS MORAIS & FIGUEIREDO DALA
Capítulo II – Âmbito de Estudo do DIP | 61

Internacional Privado na Universidade Óscar Ribas? O que é que é


ministrado em sede de Direito Internacional Privado pelos docentes João
Morais e Figueiredo Dala?

A posição que adoptamos quanto ao âmbito do DIP, quer enquanto


docentes da Universidade Óscar Ribas, quer enquanto Advogados,
bem como enquanto sedentos cultores deste ramo do direito, é a
sufragada pelo Dr. LIMA PINHEIRO, ou seja, de que no estudo do DIP
enquadram-se três ordens de matérias: (1) o Direito de Conflitos; (2) o
Direito da Competência Internacional; e, (3) o Direito de
Reconhecimento.

Esta posição é igualmente seguida no nosso país e em Luanda pela


Faculdade de Direito da Universidade Agostinho Neto.

JE-EDITORA®

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