10 - Tarzan e Os Homens-Formiga - Edgar Rice Burroughs
10 - Tarzan e Os Homens-Formiga - Edgar Rice Burroughs
10 - Tarzan e Os Homens-Formiga - Edgar Rice Burroughs
Sobre a obra:
Sobre nós:
Tarzan
e os Homens-Formiga
No interior da estranha câmara rochosa onde fora tão rudemente lançado, Tarzan
tornou-se imediatamente o centro do interesse dos diversos jovens alalus que o
cercavam. Examinaram-no cuidadosamente, desviraram-no, seguraram-no com as
mãos, beliscaram-no. Finalmente, um dos jovens machos, atraído pelo medalhão de
ouro, tirou-o do pescoço do homem-macaco e colocou-o no seu. Talvez os mais baixos
seres na ordem da evolução humana, coisa alguma lhes prendia o interesse por muito
tempo. Logo depois, cansaram-se de Tarzan e saíram para o pátio ensolarado, deixando
que o homem-macaco recuperasse a consciência como pudesse, ou não absolutamente.
Para eles era inteiramente irrelevante o que acontecesse. Por sorte do Senhor das Selvas,
a queda através do teto da floresta fora amortecida pela ocorrência fortuita de ramos
flexíveis diretamente no caminho da descida. Em conseqüência, sofreu apenas ligeira
concussão cerebral. Já estava recuperando os sentidos. Logo depois de ser abandonado
pelos jovens alalus, abriu os olhos, rolou-os pesadamente, inspecionando o escuro
interior da prisão, e fechou-os novamente. Tinha a respiração normal e ao reabrir os
olhos pareceu-lhe como se tivesse emergido de um sono profundo e natural, tendo
apenas como único lembrete do acidente uma surda dor de cabeça.
Sentando-se, olhou em volta, acostumando gradualmente os olhos à escuridão do
aposento. Verificou que estava num grosseiro abrigo construído com grandes lajes de
pedra. Uma única abertura conduzia para o que, aparentemente, era outra câmara similar,
cujo interior parecia muito mais iluminado do que aquela onde se encontrava.
Lentamente, levantou-se atravessou a abertura. Através da segunda câmara viu outra
abertura conduzindo para o ar fresco e a luz do sol. Exceto por montes imundos de
palha velha no assoalho, os aposentos não tinham mobília nem sugeriam que fossem
utilizados como locais de habitação humana. Da segunda porta, que cruzou, olhou para
um estreito pátio murado por grandes lajes de pedra, cujas extremidades cravadas no
chão as mantinham eretas. Viu no local jovens alalus, alguns agachados ao sol e outros à
sombra. Tarzan observou-os com evidente perplexidade. Quem eram? Que lugar era
esse em que se encontrava, claramente encarcerado? Eram seus guardiões, ou
prisioneiros como ele? Como viera parar ali?
Passando os dedos pela espessa cabeleira preta num gesto característico de
perplexidade, sacudiu a cabeça. Lembrou-se da infeliz conclusão do vôo e até mesmo da
queda através da folhagem da grande árvore. Daí em diante havia um vazio no seu
cérebro. Permaneceu durante um momento examinando os alalus, que nenhum sinal
davam de ter-lhe percebido a presença ou os olhares. Penetrou ousadamente no pátio
como um leão indômito que ignora a presença dos chacais.
Viram-no imediatamente, levantaram-se e cercaram-no, as moças empurrando os
rapazes e aproximando-se ousadamente. Tarzan falou-lhes primeiro num dialeto nativo,
experimentou outro, mas, aparentemente, não o entendiam, pois não responderam.
Finalmente, como último recurso, falou-lhe na primitiva língua dos grandes macacos, a
língua de Manu, o macaquinho, a primeira que aprendera, quando, em criança, mamava
no peito cabeludo de Kala, a fêmea, e escutava os sons guturais emitidos pelos selvagens
membros da tribo de Kerchak. Mais uma vez, o auditório permaneceu calado — pelo
menos não deu resposta audível, embora movessem as mãos, ombros, corpos e
sacudissem a cabeça no que o homem-macaco logo reconheceu ser uma espécie de
linguagem de sinais. Tampouco emitiram quaisquer sons vocais que pudessem indicar
que se comunicassem entre si por meio de língua falada. Logo em seguida, perderam
novamente o interesse pelo recém-chegado e reiniciaram as indolentes atividades em
torno das paredes do pátio enquanto Tarzan percorria para a frente e para trás o local, ao
mesmo tempo que, com os olhos agudos, procurava um meio de fuga que o acaso
pudesse fornecer. Viu-o na altura das paredes cuja parte superior poderia alcançar
correndo para ela e saltando, estava certo. Mas não ainda. Teria de esperar pela noite
para ocultar a tentativa dos que também permaneciam no recinto fechado.
Aproximando-se a noite, os atos dos demais ocupantes do pátio modificaram-se
visivelmente. Andaram de um lado para outro, passando constantemente pela entrada do
abrigo na extremidade do pátio. Ocasionalmente, entravam no segundo aposento, onde
se punham à escuta durante um momento diante da grande laje que fechava a abertura
exterior. Voltavam em seguida ao pátio, em movimentos inquietos. Finalmente, um
deles bateu com o pé no chão. O gesto foi repetido pelos demais até que, em cadência
regular, o ruído dos pés nus no solo deve ter sido percebido a alguma distância além
dos limites do estreito pátio-prisão.
O que quer que tenham pretendido com o ato, coisa alguma aparentemente
aconteceu. Logo depois, uma das jovens, com o rosto mal-humorado, contraído num
rosnado de raiva, agarrou mais firmemente a clava com ambas as mãos e, aproximando-
se das paredes, começou a bater violentamente numa das lajes de pedra. Imediatamente,
as outras jovens seguiram-lhe o exemplo, enquanto os jovens machos continuavam a
marcar o compasso com os calcanhares.
Durante um momento, Tarzan ficou confuso, procurando uma explicação para o
comportamento dos prisioneiros. Mas foi o estômago que, finalmente, lhe sugeriu uma
resposta: — as criaturas estavam esfomeadas e tentavam atrair a atenção dos carcereiros.
O método de fazê-lo sugeria também algo mais, algo que a curta experiência com eles já
o havia parcialmente convencido — que eram destituídos da fala, talvez totalmente
mudos.
A moça que começara a bater na parede parou subitamente e apontou para Tarzan.
Os outros olharam-no e entreolharam-se. Ela apontou para a própria clava e indicou-o
novamente. Em seguida, fez uma pequena pantomima, muito curta e rápida, mas, apesar
disso, não menos realística. A pantomima descrevia a clava caindo sobre o crânio de
Tarzan, depois do qual ela, auxiliada pelos companheiros, o devorariam. As clavas
deixaram de bater nas paredes. Os calcanhares não mais amassaram a terra. O grupo
estava interessado na nova sugestão. Olharam esfaimados para Tarzan. A mãe que lhes
devia ter trazido comida, a Primeira Mulher, estava morta. Nada sabiam a respeito, mas
apenas que estavam famintos e que a Primeira Mulher não lhes levara alimentos desde o
dia anterior. Não eram canibais. Somente nos últimos estágios da fome ter-se-iam
devorado entre si como se sabe que fizeram marinheiros naufragados das raças
civilizadas. Não consideravam o estranho, porém, como um membro da própria espécie.
Era tão diferente deles como algumas das outras criaturas com que a Primeira Mulher
os alimentava. Não seria mais errado devorá-lo do que comer um antílope. O
pensamento, contudo, não teria ocorrido à maioria. Fora a moça mais velha que o
sugerira e ele não lhe teria ocorrido se houvesse outro alimento, pois sabia que ele não
fora levado ali com essa finalidade — fora trazido como companheiro da Primeira
Mulher, que, em comum com outras dessa raça primitiva, caçava um novo companheiro
cada estação entre as florestas e a selva, onde os tímidos machos levavam vidas solitárias,
exceto nas curtas semanas em que eram mantidos prisioneiros nos currais de pedra do
sexo dominante. Ali eram tratados com grande brutalidade e desprezo até mesmo pelos
filhos das esposas temporárias. Às vezes, conseguiam escapar, embora raramente, mas,
por fim, eram soltos, desde que parecia mais fácil caçar um novo macho na estação
seguinte do que alimentá-lo em cativeiro durante um ano inteiro. Nada havia que se
aproximasse de amor nas relações familiares desses selvagens. Os jovens, concebidos
sem amor, não conhecendo os pais, não revelavam nem mesmo afeição elementar entre
si, nem por qualquer outro ser vivo. Um certo laço prendia-os às selvagens mães, em
cujos seios mamavam durante poucos meses e de quem esperavam alimento até que se
tornassem suficientemente desenvolvidas para penetrar na floresta, caçar as próprias
presas, ou obter o alimento que a Natureza bonançosa lhes oferecesse.
Mais ou menos entre as idades de quinze e dezessete anos, os jovens machos eram
soltos e expulsos para a floresta, depois do que as mães não mais os distinguiam de
outros. Em idade análoga as fêmeas eram levadas para a caverna maternal, onde
passavam a morar, acompanhando a mãe na caça diária até que conseguissem capturar o
primeiro companheiro. Depois disso, passavam a morar em cavernas separadas,
cortando-se tão completamente o laço entre genitora e filha como se jamais tivesse
existido. E podiam, na estação seguinte, tornar-se mesmo rivais pelo mesmo homem ou
em qualquer ocasião lutar até a morte pelos despojos de uma caçada.
A construção dos abrigos e currais de pedra onde eram mantidos as crianças e os
machos constituía a única atividade comunal de que participavam as mulheres. E neste
trabalho eram obrigadas a agir sozinhas, desde que os homens teriam fugido para a
floresta na primeira oportunidade em que fossem soltos dos currais para participar do
trabalho de construção. As crianças, tão logo se tornassem bastante fortes para prestar
alguma ajuda, teriam, decerto, agido da mesma maneira. As grandes fêmeas, porém,
eram capazes de realizar sozinhas as obras titânicas.
Equipadas pela natureza com poderosos esqueletos e músculos de aço, extraíam as
grandes lajes de uma vertente debruçada sobre o anfiteatro, deixavam-nas escorregar
para o chão do pequeno vale, arrastavam-nas e empurravam-nas à força bruta.
Por sorte, raramente era necessário ampliar os abrigos e currais, pois a alta taxa de
mortalidade entre as fêmeas deixava habitualmente aberturas vazias para as jovens em
crescimento. O ciúme, a cobiça, os perigos da caça e as contingências das guerras
intertribais exigiam pesado tributo das fêmeas. Até mesmo os desprezados machos,
lutando pela liberdade, podiam matar ocasionalmente a captora.
A horrenda vida dos alalus constituía resultado natural de uma estranha inversão da
dominação dos sexos. É da alçada dos machos dar início ao amor e, por sua
superioridade, inspirar inicialmente respeito e, em seguida admiração no seio da fêmea
que deseja atrair. O amor em si desenvolve-se após estas emoções. A ascendência
gradualmente crescente das fêmeas alalus sobre os machos finalmente impediu que
fossem despertadas as emoções de respeito e admiração por eles, com o resultado de
jamais surgir o amor.
Sem amor pelo companheiro e tendo-se transformado em bruto mais poderoso, a
selvagem mulher alalu logo depois passou a tratar com desprezo e brutalidade os
membros do sexo oposto. Em conseqüência, a capacidade ou, pelo menos, o desejo de
iniciar o amor deixou de existir no coração do macho; não podia amar uma criatura que
temia e odiava, nem respeitar nem admirar as criaturas assexuadas em que as mulheres
alalus haviam-se transformado. Fugia, assim, para a selva, onde as fêmeas dominantes
os caçavam para evitar que a raça desaparecesse da face da terra.
E eram os descendentes dessas criaturas selvagens e pervertidas que Tarzan
enfrentava, plenamente consciente de suas intenções cani-balescas. Os machos não o
atacaram imediatamente. Em vez disso, ocuparam-se em reunir palha seca e pequenos
pedaços de madeira, retirados de uma das câmaras cobertas, enquanto as três moças, uma
delas mal ainda na casa dos sete anos, aproximavam-se cautelosamente com as clavas em
posição. Os machos preparavam a fogueira onde esperavam, antes de muito tempo,
assar suculentos nacos da estranha criatura que a cabeluda mãe lhes trouxera.
Um dos machos, um rapaz de dezesseis anos, manteve-se afastado, fazendo
excitados sinais com as mãos, cabeça e corpo. Parecia tentar dissuadir as jovens de
executar o plano. Chegou mesmo a apelar para os outros rapazes para que recuassem.
Eles, porém, meramente lançaram um olhar às jovens e continuaram com os
preparativos culinários. Finalmente, contudo, quando as jovens aproximaram-se
deliberadamente do homem-macaco, ele lhes tomou a frente e tentou detê-las.
Instantaneamente, os três pequenos demônios giraram as clavas no ar e saltaram para
destruí-lo. O rapaz esquivou-se, tirou diversas pedras emplumadas do cinto e lançou-as
contra as assaltantes. Tão rápidos e certeiros voaram os mísseis que duas moças caíram,
gemendo. O terceiro míssil, atingindo um dos rapazes na têmpora, matou-o
instantaneamente. Era ele o rapaz que roubara o medalhão de Tarzan e que, sendo como
todos os outros machos uma tímida criatura, manteve-o continuamente oculto pela
palma da mão desde que o homem-macaco recobrou os sentidos e entrou no pátio.
A moça mais velha, em nada amedrontada, saltou para frente com a face contorcida
numa careta de ódio. O rapaz lançou-lhe outra pedra, voltou-se e correu na direção do
homem-macaco. Que recepção esperava, provavelmente não sabia. Talvez fosse a
recrudescência da emoção há longo tempo morta do companheirismo que o levou a
colocar-se ao lado de Tarzan. Talvez o próprio homem-macaco, em quem a lealdade à
espécie era forte, tivesse inspirado esse redespertar de um atrofiado sentido de
solidariedade. O que quer que tenha sido, o rapaz aproximou-se e postou-se ao lado de
Tarzan enquanto a moça, evidentemente percebendo haver perigo para si mesma nesta
nova e estranha temeridade do irmão, avançava mais cautelosamente.
Em sinais, parecia dizer-lhe o que lhe faria se ele não deixasse de interpor sua fraca
vontade entre ela e seus desejos gastronômicos. Ele, porém, respondeu
desafiadoramente com sinais e permaneceu onde estava. Tarzan estendeu a mão e deu-lhe
uma palmadinha no ombro, sorrindo. O rapaz mostrou horrivelmente os dentes, mas
parecia evidente que tentava retribuir o sorriso do homem-macaco. Nessa ocasião, a
moça estava quase sobre eles. Tarzan ficou sem saber como agir. O seu cavalheirismo
natural impedia-o de atacá-la e lhe parecia um ato extremamente repelente feri-la, mesmo
em autodefesa. Mas sabia que, antes de terminar, poderia, possivelmente, ter de matá-la.
Assim, procurando uma alternativa, enrijeceu-se para praticar o ato que abominava.
Apesar disso, esperava escapar sem ter que fazê-lo.
A Terceira Mulher, conduzindo o novo companheiro da caverna para o curral onde
o manteria aprisionado durante uma ou duas semanas, ouviu as batidas cadenciadas dos
calcanhares nus e o ruído das pesadas clavas que partiam do curral da Primeira Mulher.
Imediatamente, compreendeu o que significavam. O bem-estar dos filhos da Primeira
Mulher não lhe interessava pessoalmente. O instinto comunal, porém, levou-a a libertá-
los para que pudessem procurar alimentos e não se perdessem seus serviços à tribo pela
fome. Não os alimentaria, naturalmente, pois não lhe pertenciam, mas abriria a porta da
prisão e os soltaria para que se arranjassem como pudessem, encontrassem ou não
alimentos, vivessem ou perecessem segundo a lei inexorável da sobrevivência dos mais
aptos.
A Terceira Mulher, porém, não tinha pressa. Com os dedos poderosos enfiados no
cabelo do rosnante esposo, arrastou a rebelde criatura até seu curral, removeu a grande
laje que tapava a entrada, empurrou-o rudemente para dentro, recolocou a pedra no
lugar e dirigiu-se preguiçosamente para o curral da Primeira Mulher. Retirando a porta
de pedra, passou pelas duas câmaras e penetrou no curral no momento em que a moça
mais velha avançava contra Tarzan. Parando à entrada, bateu a clava contra o muro de
pedra do abrigo, evidentemente para atrair a atenção dos que se encontravam no interior.
Imediatamente, todos a olharam. Era a primeira fêmea adulta que não a própria mãe que
as crianças da Primeira Mulher haviam visto. O jovem ao lado de Tarzan escondeu-se
por trás dele. Tarzan não se espantou com o medo despertado. A Terceira Mulher era a
primeira alalu adulta que vira, desde que durante todo o tempo em que permanecera nas
mãos da Primeira estivera sem sentidos.
A moça que o ameaçara com a grande clava parecia tê-lo esquecido. Voltou uma face
rosnadora e olhos apertados para a intrusa. De todas as crianças, ela parecia a menos
amedrontada.
O homem-macaco examinou a enorme e brutal fêmea de pé na extremidade do
curral, com os olhos selvagens postos sobre ele. Não o vira antes, pois estivera na
floresta caçando na ocasião em que a Primeira Mulher trouxera a presa para o anfiteatro.
Não soubera que a Primeira tinha um macho no curral, com exceção dos próprios
filhos. Ali, realmente, estava uma presa valiosa. Levá-lo-ia para seu próprio curral. Com
esse pensamento, e sabendo que, a não ser que ele pudesse esquivar-se dela e alcançar a
entrada, não lhe poderia escapar, dirigiu-se lentamente para o homem-macaco,
ignorando os demais ocupantes.
Tarzan, desconhecendo-lhe a intenção, pensou que ela ia atacá-lo, considerando-o
um estranho perigoso no sagrado interior de seu lar. Examinou-lhe o grande volume, o
enorme desenvolvimento muscular e o grande clava numa mão que parecia um presunto
e comparou-os com sua própria nudez inerme.
Para os nascidos na selva a fuga do combate inútil e desigual não encerra o estigma
da covardia. E não apenas Tarzan dos Macacos nascera e fora criado nas selvas, mas o
desnudamento, como sempre, despojava-o do leve e antinatural verniz de civilização.
Foi, então, um animal selvagem que enfrentou a atacante mulher alalu — um animal
astucioso e poderoso — um animal que sabia quando lutar e quando fugir.
Lançou um rápido olhar para trás. Viu agachado, tremendo de medo, o jovem alalu.
Além erguia-se a parede posterior do curral, com uma das grandes lajes inclinadas
ligeiramente para fora. Lenta é a mente do homem, mais lento ainda seu olho em
comparação com o olho e a mente do animal acuado que procura fugir. Tão rápido foi o
homem-macaco que desapareceu antes que a Terceira Mulher imaginasse que ele tentava
fugir. E com ele desapareceu o mais velho dos rapazes alalus.
Girando em um único movimento, Tarzan pôs o jovem macho ao ombro, saltou
rapidamente os poucos metros que o separavam da parede posterior do curral e, como
um gato, galgou a superfície lisa da laje ligeiramente inclinada até fechar os dedos na sua
parte superior, alçou-se sem um único olhar para trás, deixou o jovem cair no chão no
lado oposto, seguindo-o com tanta rapidez que quase desceram juntos. Olhou em volta.
Pela primeira vez, viu o anfiteatro natural e as cavernas, diante das quais permaneciam
ainda agachadas várias mulheres. Logo depois cairia a noite. O sol escondia-se por trás
das colinas que se situavam a oeste. Tarzan percebeu apenas uma rota de fuga — a
abertura na extremidade inferior do anfiteatro, através da qual a picada descia para a
floresta e o vale. Para ela correu, seguido pelo jovem.
Imediatamente, uma mulher sentada à entrada de uma caverna viu-o e, agarrando a
clava, levantou-se de um salto e iniciou a perseguição. Atraídas por ela, outras a
acompanharam até que cinco ou seis corriam pesadamente, descendo a trilha.
O jovem, apontando o caminho, corria velozmente à frente do homem-macaco, mas,
apesar de ágil, não podia superar na corrida os músculos flexíveis que haviam, com
tanta freqüência no passado, livrado seu possuidor da arremetida do furioso Numa ou
lhe dado uma refeição disputando uma corrida com a ágil Bara, a corça. As pesadas e
desajeitadas mulheres não tinham possibilidade de alcançar a ágil dupla se fossem
depender inteiramente de velocidade. Mas isto tampouco tinham intenção de fazer.
Possuíam os mísseis de pedra com os quais, quase desde o nascimento, o haviam
praticado até conseguir quase a perfeição no arremesso contra alvos móveis ou
estacionários. Mas escurecia, a trilha contorcia-se e dava voltas, e a velocidade das presas
tornava-se alvos esquivos contra os quais as fêmeas pudessem lançar um míssil com
pontaria certeira para atordoar, sem matar. Naturalmente, com grande freqüência, o
míssil destinado a atordoar matava realmente, mas a presa teria que correr o risco. O
instinto advertia-as a não matar os machos, embora não contra a tratá-los com a maior
brutalidade. Tivesse Tarzan compreendido por que as mulheres o perseguiam, teria
corrido ainda mais velozmente. Logo que os mísseis começaram a voar em volta,
porém, talvez tenha acelerado um pouco a velocidade.
Logo depois, alcançou a floresta e, como se se tivesse dissolvido no ar, desapareceu
das vistas das espantadas perseguidoras, pois, a partir daquele momento, estava em seu
próprio elemento. Enquanto elas o procuravam no solo, saltava agilmente pelos ramos
mais baixos, mantendo sob vigilância o garoto alalu que corria pela trilha.
Escapando o homem, as mulheres pararam e voltaram para as cavernas. Não
queriam o rapaz. Durante dois ou três anos ele vaguearia pela floresta sem ser molestado
por sua própria espécie. E, se escapasse dos animais selvagens, e das azagaias e flechas
dos homens-formiga e chegasse ao status de homem, seria boa presa das grandes fêmeas
durante a estação de acasalamento. Durante algum tempo, pelo menos, levaria uma
existência relativamente segura e feliz.
As suas possibilidades de sobrevivência foram substancialmente reduzidas pela fuga
prematura para a floresta. Tivesse sobrevivido a Primeira Mulher, ela o teria mantido
em segurança no interior do curral por outro ano, pelo menos, quando teria melhor
oportunidade de enfrentar os perigos e emergências da vida na floresta.
O rapaz, percebendo com os aguçados ouvidos que as mulheres haviam desistido da
perseguição, parou e procurou a estranha criatura que o havia libertado do odiado
curral. Mas pôde ver apenas por uma curta distância na escuridão da noite cada vez mais
fechada da floresta. O estranho não estava à vista. O jovem empinou as grandes orelhas
e escutou atentamente. Não ouviu outro som de passos humanos do que os das
mulheres, que rapidamente diminuíam. Escutou outros sons, porém, sons
desconhecidos da floresta que lhe encheram de terrores o estúpido cérebro — sons que
vinham das moitas circundantes e dos ramos das árvores. E captou também apavorantes
odores.
A escuridão, completa e impenetrável, fechou-se em torno dele com uma
subitaneidade que o deixou trêmulo. Podia quase senti-la fechando-se sobre ele,
esmagando-o e, ao mesmo tempo, deixando-o exposto a indizíveis terrores. Olhou em
volta e nada viu. Pareceu-lhe que estava sem olhos e, não tendo voz, não podia
amedrontar inimigos ou atrair a atenção da estranha criatura que o ajudara, e cuja
presença havia, estranhamente, despertado em seu peito uma emoção inexplicável — e
emoção agradável. Não podia explicá-la. Não tinha uma palavra para ela, pois não tinha
palavras para coisa alguma. Mas sentia que ela ainda lhe aquecia o peito e desejava, à sua
maneira confusa, que pudesse emitir um som que lhe trouxesse, mais uma vez, a
estranha criatura. Sentiu-se solitário e profundamente amedrontado.
Um estalo nas moitas próximas provocou-lhe novo e mais profundo pavor.
Alguma coisa grande se aproximava pela noite escura. O jovem permaneceu com as
costas contra uma grande árvore. Não ousava mover-se. Farejou, mas o sopro de ar que
porventura havia dirigia-se dele em direção à coisa que se aproximava furtivamente na
terrível floresta, e não a pôde identificar. O instinto, porém, disse-lhe que a criatura o
identificara e aproximava-se para saltar sobre ele e devorá-lo.
Nada sabia de leões, a menos que o instinto possua uma imagem das várias criaturas
que os habitantes da selva instintivamente temem. Em toda sua vida jamais estivera fora
do curral da Primeira Mulher. E como seu povo era destituído de fala, a mãe coisa
alguma lhe poderia ter dito do mundo exterior. Mas, ainda assim, quando o leão
bramiu, soube que era um leão.
Capítulo 4
Tarzan dos Macacos, após ter-se esquivado das mulheres que o haviam perseguido e
ao jovem alalu pela floresta adentro, parou na árvore sob a qual o apavorado filho da
Primeira Mulher deteve-se também. Estava ali, bem perto dele, quando Numa atacou.
Estendendo rapidamente a mão para baixo, segurou-o pelo cabelo e puxou-o para a
segurança, enquanto as cortantes garras abraçavam o ar sob os pés do rapaz.
No dia seguinte, o homem-macaco saiu diligentemente à procura de alimentos,
armas e vestuário. Nu e desarmado como estava, teria sido difícil a situação fosse ele
outro que Tarzan dos Macacos.
E teria sido difícil para o alalu não fosse a ajuda dele. Encontrou frutas, nozes e
ovos de aves, mas ansiava por carne e, para obtê-la, procurou assiduamente a caça não
apenas pela carne da presa, mas pela pele, tripas e tendões, que poderia usar na
fabricação das coisas de que precisava e lhe dariam segurança e conforto naquela
existência primitiva.
Enquanto procurava o rastro da presa, buscava também madeiras apropriadas para
uma azagaia, arco e flechas, não difíceis de encontrar nessa floresta de árvores
conhecidas. O dia, porém, quase havia terminado quando a brisa suave, contra a qual
estivera caçando, trouxe às suas sensíveis narinas o odor de Bara, a corça.
Subindo para uma árvore, indicou com um movimento ao alalu para segui-lo. Tão
inábil e desastrosa era a criatura, porém, que Tarzan foi obrigado a arrastá-la para um
local entre os ramos, onde, por sinais, procurou dizer-lhe que queria que ficasse ali,
tomando conta dos materiais que reunira para fabricar as armas, enquanto continuava
sozinho a caçada.
Não teve absoluta certeza de que o jovem o compreendera, mas ele, pelo menos, não
o seguiu quando saltou silenciosamente pelos galhos da floresta ao longo da trilha
indefinível do ruminante, cujo odor era sempre traduzido pelo filho de criação de Kala,
a macaca, como Bara, a corça, embora, de fato, e praticamente sempre, o animal fosse
um antílope. Fortes, porém, são as impressões da infância e desde o velho dia em que
estudara a colorida cartilha na distante cabana do falecido pai, no porto cercado de terras
na Costa Ocidental, aprendeu que “C significa Corça”, e admirara o desenho do belo
animal. A coisa que mais se parecia com ela, e que conhecia bem na vida diária, o
antílope, tornou-se para ele, e para sempre, Bara, a corça.
Aproximar-se o suficiente de Bara para abatê-la com azagaia ou flecha exige astúcia e
conhecimento da selva muito acima dos limites dos conhecimentos do civilizado. O
caçador nativo perde mais do que ganha neste jogo de habilidade e conhecimentos.
Tarzan, contudo, deveria exceder a ambos na agudeza das faculdades perceptivas e na
coordenação de músculos e mente para que pudesse abatê-la com as únicas armas com
que a natureza o dotara.
Correndo em alta velocidade pela selva, guiado pelas narinas, na direção de Bara, a
corça, o eflúvio familiar cada vez mais forte informou-o de que a presa não estava
muito longe, com muitas outras de sua espécie. A boca do selvagem homem-macaco
encheu-se de água pensando no banquete que o aguardava na volta. Aumentando o
odor, mais cautelosamente seguiu o grande animal, movendo-se silenciosamente qual
sombra entre as sombras da floresta, até que chegou às bordas de uma clareira onde viu
uma dúzia de antílopes pastando.
Agachando-se imóvel num ramo baixo, observou os movimentos do rebanho,
esperando o momento em que um deles se aproximasse o suficiente das árvores
circundantes para dar ao ataque pelo menos uma oportunidade de êxito. Esperar
pacientemente, muitas vezes hora após hora, para que a presa se exponha à morte certa
constitui parte da grande partida que precisam jogar os caçadores da vida selvagem. Um
único movimento inoportuno ou impensado pode provocar o disparo da assustadiça
vítima para uma distância muito grande, da qual talvez não volte durante dias.
Evitando essa possibilidade, permaneceu em estatuesca imobilidade esperando que o
acaso enviasse um dos antílopes à distância de ataque. Enquanto esperava, chegou
vagamente as suas narinas o odor de Numa, o leão. Tarzan contraiu as sobrancelhas.
Estava contra o vento em relação a Bara e não havia leão entre ele e o antílope. Devia,
por conseguinte, estar a favor do vento em relação à presa e a si mesmo. Mas por que
não haviam as sensíveis narinas dos herbívoros captado o cheiro do arquiinimigo antes
que o percebesse o homem-macaco? Que não o haviam percebido era evidente pela
placidez com que contentes pastavam, com as caudas mexendo-se e, ocasionalmente, a
cabeça erguida e as orelhas empinadas sem exibir nenhum dos sintomas do terror que
imediatamente se seguiria à descoberta de Numa nas vizinhanças.
Concluiu o homem-macaco que um desses caprichos das correntes de ar que, com
tanta freqüência, deixa um bolsão imóvel diretamente no caminho do fluxo, havia
envolvido momentaneamente os antílopes, isolando-os, por assim dizer, do meio
imediato. E enquanto assim pensava, desejando que Numa se fosse, ouviu, chocado, um
súbito estalo nas moitas no lado oposto da clareira onde pastavam os antílopes, que
imediatamente ficaram alertas e prepararam-se para a fuga. Quase imediatamente surgiu
um jovem leão que, ao ver os antílopes, emitiu um aterrorizante bramido e atacou.
Tarzan poderia ter arrancado os cabelos de fúria e decepção. A estupidez do jovem leão
havia-o roubado da carne e os ruminantes disparavam em todas as direções. O leão,
atacando inutilmente, perdera sua carne e a de Tarzan. Mas, espere O que seria isso? Um
macho apavorado, cego para tudo salvo para o único pensamento de escapar das garras
do temível carnívoro, corria diretamente para a árvore onde ele se empoleirava. Ao
chegar embaixo, um lustroso corpo amorenado mergulhou de cabeça saindo da
folhagem, dedos de aço fecharam-se em torno da garganta do macho e fortes dentes
abocanharam-lhe o pescoço. O peso do caçador selvagem lançou a presa de joelhos e,
antes que ela pudesse levantar-se mal segura nas patas, uma rápida sacudidela das
poderosas mãos torceram-lhe e quebraram-lhe o pescoço.
Sem um único olhar para trás, o homem-macaco lançou a carcaça aos ombros e
pulou para a árvore mais próxima. Não precisava ter perdido tempo para ver o que
Numa estaria fazendo, pois compreendeu que saltara sobre Bara aos olhos do rei dos
animais. Mal havia alcançado a segurança quando o grande gato saltou com estardalhaço
no lugar que havia ocupado.
Numa, confuso, rugiu furiosamente ao olhá-lo, empoleirado da árvore. Tarzan
sorriu.
— Filho de Dango, a hiena — disse zombeteiramente —, fique com fome até
aprender a caçar — e lançando desdenhosamente um ramo quebrado no focinho do
leão, desapareceu entre os copados ramos, levando a presa sem esforço sobre os grandes
ombros.
Era dia ainda quando voltou ao local onde o alalu o aguardava. O jovem possuía
uma pequena faca de pedra e, com ela, o homem-macaco cortou uma generosa porção
do antílope para o filho da Primeira Mulher e outra para si mesmo. Na carne crua,
esfomeados, cravaram-se os poderosos dentes brancos do lorde inglês, enquanto o
jovem alalu, fitando-o surpreso, procurava materiais para fazer uma fogueira.
Divertido, Tarzan observou-o até ele preparar o alimento como julgou que devia fazê-lo
— a parte externa queimada até as cinzas, e a interna crua. Apesar disso, era comida
assada e, sem dúvida, dava ao comensal um sentimento de grande superioridade sobre
os animais inferiores que devoravam carne crua, como se fosse um epicurista civilizado
comendo caça estragada e queijos podres em algum clube da moda de Londres.
Tarzan sorriu pensando como é tênue, afinal de contas, a linha que separa o homem
primitivo do civilizado em questões referentes a instintos e apetites. Alguns dos seus
amigos franceses, com quem jantara certa ocasião, ficaram horrorizados ao saber que,
em comum numerosas tribos africanas e macacos, ele comia lagartas. E manifestaram o
horror com as bocas cheias de caracóis, que degustavam naquele momento. O
provinciano americano zomba dos franceses por comerem pernas de rã enquanto
mastiga perna de porco! Os esquimós comem gordura crua e os amazonenses, brancos e
nativos, o conteúdo do estômago de papagaios e macacos, considerando-o petiscos, ao
passo que o cule chinês não pergunta como morreu a carne que come, nem quando. E
há um homem em Nova Iorque, estimável e em outras coisas inofensivo, que come
queijo Limburger com pêssegos.
No dia seguinte, dispondo de carne suficiente para vários dias, Tarzan começou a
trabalhar nas armas e na tanga. Mostrando ao alalu como raspar a pele do antílope com a
faca de pedra, o homem-macaco lançou-se ao trabalho sem outras ferramentas que uma
pedra tirada do leito de um regato a fim de modelar as armas com que poderia lutar com
êxito contra as mulheres alalus, os grandes carnívoros, e quaisquer outros inimigos.
Enquanto trabalhava, observava o jovem alalu, perguntando-se que utilidade
poderia ter para ele a pobre criatura se queria encontrar o caminho através da floresta de
espinhos circundante, que precisaria atravessar antes de alcançar terreno conhecido e
uma trilha para o lar. Que a pobre criatura era medrosa fora evidenciado pela maneira
como fugira das mulheres alalus e pelo pavor ao ver-se frente a frente com Numa. A
sua mudez tornava-o inútil como companheiro. Desconhecia tudo sobre a vida na selva
e possuía apenas um grosseiro e instintivo tipo de conhecimento que em nada lhe
serviria. Mas ele se havia postado a seu lado durante a luta no curral e, embora não
pudesse ter sido útil em coisa alguma, ganhara pelo ato o direito à consideração. Além
disso era claro, evidente, que a criatura ligara-se a Tarzan e que tencionava permanecer
em sua companhia.
Ocorreu-lhe uma idéia enquanto trabalhava nas armas e pensava no alalu: faria
armas semelhantes para o jovem e lhe ensinaria a usá-las. Notara que as grosseiras armas
das mulheres alalus não ficariam à altura de alguém armado com arco e flechas, ou
mesmo uma boa azagaia. Elas não podiam ter esperança de atirar os mísseis tão longe
quanto um bom arqueiro podia enviar as flechas. E as clavas de nada valiam frente a
uma azagaia bem lançada.
Sim, faria armas para o jovem e o treinaria no seu uso. Ele passaria a ser útil na caça
e, se necessário, na luta. Enquanto pensava no assunto, o alalu parou subitamente o
trabalho e encostou um ouvido no chão. Levantou a cabeça e voltou os olhos para
Tarzan, indicando-lhe com um gesto que devia fazer o mesmo. O homem-macaco
compreendeu que devia escutar como ele e, ao fazê-lo, ouviu claramente o som de
passos ressoando na batida picada.
Reunindo suas posses, levou-as para bem alto entre as altas árvores, onde as
guardou com os restos de Bara, a corça. Voltando em seguida, ajudou o jovem a subir
para a árvore a seu lado.
Aos poucos o jovem alalu já se sentia mais à vontade nas árvores e podia ajudar-se
muito mais, escalando-as sem auxílio. Mas era ainda praticamente inútil na estimativa de
Tarzan.
Não tiveram de esperar muito e apareceu na trilha uma das terríveis mulheres do
anfiteatro e, atrás delas, a uns dez ou quinze passos, outra, seguida de uma terceira. Não
era comum que viajassem assim, pois levavam existência solitária, sendo as alalus quase
destituídas de instintos gregários. Apesar disso, muitas vezes partiam à caça juntas,
especialmente quando atrás de algum animal perigoso que lhes invadira o território ou,
quando, não conseguindo capturar homens suficientes na floresta durante a estação de
acasalamento, as infelizes reuniam-se para fazer uma incursão nos currais de uma tribo
vizinha.
As três, inclinadas para frente, passaram bem por baixo da árvore de onde Tarzan e
o jovem as observavam. As grandes e chatas orelhas balançavam preguiçosamente, os
olhos escuros vagueavam de um lado para outro e, muitas vezes, elas moviam
rapidamente a pele de parte do corpo para desalojar insetos incômodos.
Os dois na árvore permaneceram imóveis enquanto as três mulheres passavam pela
trilha e se perdiam de vista numa curva. Após curto intervalo de escuta, desceram para o
solo e reiniciaram os trabalhos interrompidos. O homem-macaco sorriu, pensando nos
eventos dos últimos minutos. Tarzan dos Macacos, Rei das Selvas, escondendo-se nas
árvores para ocultar-se de três mulheres! Mas, que mulheres! Pouco conhecia ainda
sobre elas e seus costumes, mas o que sabia já era suficiente para convencê-lo de que
eram inimigas tão formidáveis como quaisquer outros que encontrara e, enquanto
permanecesse desarmado, não era adversário à altura das grandes clavas e mísseis
rapidamente arremessados.
Passaram-se os dias. O homem-macaco e o mudo companheiro aperfeiçoaram as
armas que lhes trariam mais facilmente os alimentos. O último trabalhava
mecanicamente, seguindo as instruções do amo até que, finalmente, chegou a ocasião em
que Tarzan e o alalu estavam plenamente equipados. Caçaram juntos, treinando o
homem-macaco o jovem no uso do arco, azagaia e na longa corda de embira que, desde
a infância, formara um aspecto diferente do armamento do homem-macaco.
Durante os dias de caça o jovem alalu, de maneira inesperada, passou por uma
grande mudança. Fora hábito seu deslizar sorrateiramente pela floresta, inclinando-se
muitas vezes para olhar de um lado para outro, aparentemente temeroso de todas as
criaturas que vagueavam pelas picadas escuras, além do grande medo das ferozes fêmeas
de sua espécie. Subitamente, tudo isso mudou como por passe de mágica. Aos poucos
começou a dominar a arte do arco, flecha e azagaia. Com profundo interesse e respeito
observara Tarzan abater numerosos animais, grandes e pequenos, para obter alimento. E
uma vez o vira matar Sabor, a leoa, com um único golpe de azagaia quando a fera o
surpreendera numa clareira longe do abrigo das árvores amadas. Por fim, chegou seu
dia. Caçava em companhia de Tarzan quando provocaram o disparo de um pequeno
bando de javalis, abatendo ele dois com suas flechas. Os outros dispararam em todas as
direções. Um deles, um macho, vendo o alalu, atacou-o. O jovem teve vontade de fugir,
pois idades de instinto herdado aconselhavam-no a isso. Os alalus machos sempre
fugiam do perigo e, fugindo dos carnívoros e de suas próprias mulheres, eles se haviam
tornado muito velozes, tão velozes que nenhum inimigo perigoso podia alcançá-los. O
homem alalu podia ser capturado apenas pela astúcia. Podia ter escapado do javali pela
fuga e, durante um instante, esteve a ponto de empreendê-la. Um súbito pensamento,
porém, deteve-o. Recuou a mão que segurava a azagaia como o homem-macaco lhe
ensinara a fazer e pôs todo o peso do corpo no arremesso. O javali corria diretamente
para ele. A azagaia atingiu-o na frente do ombro esquerdo e penetrou até o coração.
Horta, o javali, desmoronou-se sobre as patas.
Uma nova expressão apareceu nos olhos e espalhou-se pela face do alalu. Não teve
mais aquela expressão acovardada; não mais se arrastava pela floresta lançando olhares
medrosos para cada lado. Caminhava agora ereto, ousadamente, e com fisionomia
intimorata e, talvez, em vez de temer o aparecimento de uma fêmea, desejasse o
acontecimento. Era a personificação da masculinidade vingativa. No íntimo,
inflamavam-se idades incontáveis de tratamento desdenhoso e de crueldade às mãos das
fêmeas. Sem dúvida, não pensou no assunto desta maneira, mas o fato permaneceu e
Tarzan compreendeu que a primeira infeliz mulher que cruzasse com o jovem, ia ter a
surpresa de sua vida.
E enquanto Tarzan e o alalu vagueavam pela estranha terra orlada pela Grande
Floresta dos Espinhos e o primeiro procurava uma rota de fuga, Esteban Miranda e a
pequena Uhha, filha de Khamis, o feiticeiro, percorriam a orla exterior da floresta em
busca de uma trilha para o oeste e a costa.
Capítulo 5
Com uma devoção canina, o jovem alalu apegou-se a Tarzan. Este aprendera a
escassa linguagem de sinais do seu protege, o que lhes deu um meio de comunicação
adequado para as necessidades. O primeiro, ganhando confiança com o crescente
conhecimento das novas armas, tornou-se mais independente. Em conseqüência, os dois
se separavam com maior freqüência para caçar, o que assegurava uma cozinha mais
abastecida.
Numa dessas ocasiões, Tarzan deparou inesperadamente com um espetáculo
estranho. Estivera seguindo o odor de Bara, a corça, quando o odor misturou-se com o
de uma das grandes fêmeas alalus. Isto provavelmente significava que outro ser tentaria
roubá-lo da presa. O instinto selvagem da besta predominou nos pensamentos do
homem-macaco. Não foi o polido Lord Greystoke, de Londres, cujos lábios superiores
revelaram duas brilhantes presas — mas, sim, o bruto caçador primevo a ponto de ser
espoliado.
Subindo às árvores, dirigiu-se rapidamente para a mulher alalu, mas, antes de avistá-
la, um novo odor chegou-lhe às narinas — um estranho e novo cheiro que o deixou
perplexo. Coisa alguma anteriormente parecida com aquilo lhe chamara a atenção. Era
muito leve, mas, apesar disso, sabia que a coisa estava próxima. Logo em seguida, à
frente, ouviu vozes, baixas vozes musicais que lhe chegaram amortecidas aos ouvidos. E
embora fossem baixas e musicais havia algo na qualidade e timbre delas que sugeriam
excitação. Tarzan passou a andar mais cautelosamente, esquecido inteiramente de Bara, a
corça.
Ao aproximar-se, compreendeu que eram muitas vozes e grande a comoção. Chegou
a uma grande planície que se estendia até as colinas distantes e, no primeiro plano, a não
mais de cem metros de distância, viu algo que o levou a duvidar da veracidade dos
próprios olhos. A única figura conhecida era a gigantesca mulher alalu. Cercando-a,
havia uma horda de homens diminutos — pequenos guerreiros brancos — montados
no que parecia ser uma forma do Antílope Real da Costa Ocidental. Armados com lanças
e espadas, atacavam repetidamente as enormes pernas da alalu, que, recuando lentamente
para a floresta, chutava violentamente os assaltantes e atacava-os com a pesada clava.
Tornou-se evidente para Tarzan que eles tentavam cortar-lhe os tendões e, tivessem
obtido sucesso, poderiam tê-la facilmente matado. Mas, embora houvesse uns cem deles,
as oportunidades de sucesso pareciam escassas, desde que com um único pontapé das
possantes pernas a mulher podia abater uma dúzia ou mais dos assaltantes de cada vez. Já
metade da força estava hors de combat, os seus corpos e muitas de suas montarias dispersas
pela planície marcando a trilha do combate até o momento em que Tarzan chegou ao
local.
A coragem dos sobreviventes, contudo, encheu-o de admiração, ao observá-los
lançando-se à morte quase certa no teimoso esforço para derrubar a fêmea. Nesta
ocasião, o homem-macaco percebeu a razão aparente dos insanos sacrifícios de vidas —
na mão esquerda, a alalu tinha um dos pequenos guerreiros. Era para salvá-lo,
evidentemente, que os demais mantinham a carga sem esperança.
Se os guerreiros encheram Tarzan de admiração, o mesmo, ou pouco menos,
fizeram suas corajosas e ágeis montarias. Sempre pensara que o Antílope Real, o menor
membro conhecido dessa família, fosse a mais assustadiça das criaturas, mas isto não
acontecia com esses primos. Um pouco maiores, talvez com trinta e sete centímetros e
meio na cernelha eram em todas as demais aparências idênticos. Apesar disso, guiados
pelos cavaleiros, saltavam corajosamente para junto dos pés enormes e da grande clava, a
trabalhar como um mangual. Eram perfeitamente conduzidos, também, tão habilmente
que seus músculos pareciam coordenados com a mente dos cavaleiros. Saltavam para
frente e para trás, mal tocando o solo para evitar um ataque. Cobriam três a três metros e
meio em cada salto. Tarzan espantou-se não apenas com a coragem que demonstravam
mas com a quase maravilhosa habilidade dos guerreiros, que se podiam manter na sela
de modo tão perfeito nas montarias que saltavam, corcoveavam, viravam e se
contorciam.
Era um espetáculo belo e inspirador e, por mais irreal lhe tivesse parecido à primeira
vista, logo depois compreendeu que observava uma raça de autênticos pigmeus — não
membros das tribos negras que todos os exploradores da África mais ou menos
conhecem, mas daquela perdida raça branca de homens diminutos, mencionados
ocasionalmente em antigos manuscritos de viagens e exploração, mito e lenda.
Muito embora o combate o interessasse e o tivesse observado inicialmente como
neutro imparcial, Tarzan descobriu que suas simpatias gravitavam para os minúsculos
guerreiros. Logo que se tornou evidente que a mulher alalu conseguiria fugir para a
floresta com a vítima, o homem-macaco resolveu intervir pessoalmente no assunto.
Ao sair do esconderijo na floresta, os pequenos guerreiros foram os primeiros a vê-
lo. Decerto, tomaram-no inicialmente por outro dos gigantescos inimigos, pois soltaram
um grande grito de desapontamento e recuaram pela primeira vez desde que Tarzan os
observava na luta desigual. Desejando tornar claras suas intenções antes que os
homenzinhos o atacassem, dirigiu-se rapidamente para a mulher. No instante em que o
viu, ela lhe fez gestos imperativos dizendo-lhe que a ajudasse a liquidar o resto dos
pigmeus. Estava acostumada a ser temida e obedecida pelos homens quando os tinha em
seu poder. Talvez se espantasse um pouco com a temeridade desse macho, pois, de
modo geral, todos fugiam dela. Mas precisava dele urgentemente e foi essa a idéia que
lhe dominou os pensamentos.
Aproximando-se, Tarzan ordenou-lhe na língua dos sinais, que aprendera com o
jovem, que soltasse o cativo e fosse embora, não molestando mais os homenzinhos. Ao
compreender o que ele lhe dizia, a mulher fez uma feia careta e, erguendo a clava,
aproximou-se para atacá-lo. O homem-macaco ajustou uma flecha no arco.
— Recue! — disse em sinais. — Recue, ou eu a matarei. Recue e solte o
homenzinho.
Rosnando furiosamente, ela aumentou a velocidade. Tarzan ergueu o arco à altura
do olho e puxou-o até curvá-lo. Os pigmeus, compreendendo que, pelo menos na
ocasião, este estranho gigante apresentava-se como aliado, continuaram nas suas
montarias, esperando o resultado do duelo. O homem-macaco esperava que a mulher
lhe obedecesse as ordens antes que fosse obrigado a tirar-lhe a vida. Mas até mesmo um
olhar superficial para o rosto da atacante nada revelou senão que queria levar avante seus
propósitos, que pareciam agora o de aniquilar também esse presunçoso intrometido.
Continuou a avançar. Já estava perto demais para tornar seguro a menor demora. O
homem-macaco soltou a flecha. O dardo penetrou diretamente no selvagem coração e,
enquanto ela tropeçava, caindo,
Tarzan saltou, ao seu encontro, tirando-lhe o guerreiro das mãos antes que ela
pudesse cair sobre o minúsculo corpo e esmagá-lo. Ao fazê-lo, os demais guerreiros,
evidentemente lhe compreendendo mal as intenções, esporearam as montarias e
avançaram brandindo armas. Mas, antes que o alcançassem, pôs o antigo prisioneiro no
solo e soltou-o.
Imediatamente mudou mais uma vez a atitude dos pigmeus atacantes e os brados de
guerra transformaram-se em vivas. Acicatando as montarias, colheram as rédeas diante
do guerreiro que Tarzan salvara. Diversos deles saltaram e, ajoelhando-se, levaram-lhe a
mão aos lábios. O homem-macaco compreendeu logo que havia salvo alguém muito
importante entre eles, talvez o chefe. E perguntou-se que atitude tomariam, enquanto,
com uma expressão de divertida tolerância nas feições sombrias, observava-os como
alguém pode observar as interessantes ações de um formigueiro.
Ao felicitarem o companheiro pela salvação milagrosa, Tarzan teve oportunidade de
examiná-los mais de perto. O mais alto deles media quarenta e cinco centímetros de
altura, tinha a pele branca amorenada pela exposição aos elementos e era um pouco mais
escura do que a sua. Apesar disso, dúvida alguma havia de que eram homens brancos,
com feições regulares e corpo bem proporcionado. Por quaisquer padrões, a nossa raça
os teria considerado belos. Havia, naturalmente, variações e exceções. Mas de modo
geral, eram homens de excelente aparência. Tinham todos rostos lisos e não parecia
haver pessoa alguma muito idosa entre eles, ao passo que aquele que salvara da mulher
alalu era aparentemente mais jovem do que a média e muito mais moço do que os que
haviam desmontado para prestar-lhe vassalagem.
Enquanto Tarzan os observava, o jovem mandou que os outros se erguessem,
falou-lhes durante um momento e, em seguida, voltando-se para o homem-macaco,
dirigiu-lhe algumas observações, nenhuma das quais, naturalmente, ele conseguiu
entender. Pela maneira, contudo, imaginou que o outro lhe agradecia e, possivelmente,
pedia-lhe esclarecimento de suas intenções ulteriores para com eles. Em resposta, o
homem-macaco esforçou-se para assegurar-lhes de que lhes desejava a amizade. E para
frisar ainda mais as intenções pacíficas, lançou fora as armas e deu um passo à frente,
com os braços ligeiramente estendidos e as palmas das mãos viradas para eles.
O jovem pareceu entender o gesto cordial, pois avançou também, oferecendo-lhe a
mão. O homem-macaco percebeu que o outro queria que ele a beijasse, mas isto não
faria, preferindo assumir o papel de igual com os mais altos. Em vez disso, caiu sobre
um joelho para poder alcançar mais facilmente a mão estendida do pigmeu e, apertando
suavemente os diminutos dedos, inclinou ligeiramente a cabeça numa curvatura formal
em que não havia a menor sugestão de servilismo. O outro pareceu satisfeito, retribuiu a
curvatura com igual dignidade e tentou dizer ao homem-macaco que ele e seu grupo iam
atravessar a planície, convidando-o a acompanhá-los.
Bastante curioso e desejoso de saber mais alguma coisa sobre o pequeno povo,
Tarzan aceitou prazerosamente o convite. Antes de partirem, contudo, o grupo
dispersou-se para recolher os mortos e feridos e sacrificar os antílopes estropiados
demais para viajar. Fizeram isto com a espada relativamente comprida e reta que fazia
parte do armamento de cada um. Deixaram as lanças em repouso nas guardas cilíndricas
presas ao lado direito das selas. No tocante a outras armas, Tarzan nada mais pôde
descobrir com exceção de uma diminuta faca na bainha, levada à ilharga direita de cada
guerreiro. A lâmina, parecida com a de um florete, tinha dois gumes, mas media apenas
cerca de quatro centímetros de comprimento.
Tendo recolhido mortos e feridos, estes foram examinados pelo jovem líder, que se
fazia acompanhar dos quatro ou cinco que o haviam cercado no momento em que
Tarzan o libertara. Estes Tarzan julgou tenentes ou subchefes. Viu-os interrogarem os
feridos e, em três casos, evidentemente sem remédio, o líder cravou rapidamente a
espada no coração dos infelizes.
Enquanto a medida militar aparentemente cruel, embora válida, estava sendo tomada,
o resto dos guerreiros, sob a ordem de sub-oficiais, abriram uma longa cova ao lado
dos mortos, vinte ao todo, usando uma forte pá presa à sela e que podia ser rapidamente
ajustada à haste da lança ou de uma azagaia. Trabalhavam com extrema rapidez e de
acordo com um plano que parecia abominar movimentos inúteis, que foram reduzidos
ao mínimo. Dentro de um tempo incrivelmente curto escavaram uma cova de um metro
e vinte de comprimento, quarenta e cinco centímetros de largura e vinte e dois e meio de
profundeza, a equivalente da qual para homens normais teria sido de quase vinte e dois
metros de comprimento, um e oitenta de largura e nojenta centímetros de profundeza.
Na cova arrumaram os mortos como sardinhas, em duas fileiras. Em seguida, lançaram
terra suficiente para encher os interstícios entre os corpos e alcançar o nível da fileira
superior, depois do que pedras soltas foram roladas até os cobrirem por uns cinco
centímetros. A terra restante da escavação foi então colocada em cima das pedras.
Ao ser terminado o trabalho, os antílopes desgarrados haviam sido capturados e
amarrados os feridos às suas costas. A uma palavra do comandante, o grupo formou
com precisão militar. Um destacamento partiu à frente com os feridos e, momentos
depois, o resto da tropa montou e iniciou a marcha. Essa manobra, pelo seu caráter
excepcional, interessou profundamente a Tarzan. Os guerreiros desmontados formaram
em linha, de frente para o jovem líder, que estava montado, bem como diversos oficiais.
Os guerreiros seguravam as montarias pelas rédeas. O comandante fez um rápido sinal
com a espada — não foram pronunciadas ordens de comando — e, logo, baixou-a
rapidamente, virando no mesmo instante a montaria, que saltou com rapidez na direção
para onde se voltava a tropa, virando com ele as montarias dos oficiais como se
motivados por um único cérebro. No mesmo instante, a montaria de cada guerreiro
alternado na linha saltou e, quando saltou, o cavaleiro pulou para a sela, escanchando-se
nela com a leveza de uma pena. No momento em que a primeira linha passou, os
antílopes da segunda saltaram atrás, montando os cavaleiros da mesma forma que os
demais. Com um segundo e mais longo salto, os intervalos foram fechados e a tropa
partiu a galope em linha compacta. Era uma evolução muito inteligente e prática e que
tornava possível pôr em ação a cavalaria com a mesma rapidez que a infantaria. Nada
havia das longas demoras causadas pela marcação de distância, montagem e fechamento
das linhas.
Galopando a tropa para frente, dez guerreiros fizeram uma conversão saindo do
flanco esquerdo e, seguindo um dos oficiais que se separara do grupo do comandante,
aproximou-se de Tarzan. Por sinais, o oficial informou-o de que o devia seguir e que
guiaria até o destino. O principal grupo, por essa ocasião já muito distante, atravessava a
planície descampada, saltando suas ágeis montarias um metro e meio a dois metros em
cada movimento. Até mesmo o veloz Tarzan não os poderia ter acompanhado.
Partindo sob a orientação do destacamento, os pensamentos do homem-macaco
voltaram, durante um instante, para o jovem alalu que caçava sozinho na floresta que
deixavam atrás. Mas logo o esqueceu, compreendendo que ele estava mais bem equipado
para defender-se do que qualquer outro membro de sua espécie e que, quando tivesse
visitado o país dos pigmeus, poderia, sem dúvida alguma, voltar e encontrá-lo se assim
desejasse.
Tarzan, acostumado à dureza e às longas e rápidas marchas, iniciou um trote que
podia manter durante horas sem descanso, enquanto os guias trotavam também em suas
graciosas montarias, justamente à frente. A planície era mais ondulada do que parecera à
bordo da floresta, surgindo aqui e ali grupos de árvores. Havia relva em abundância e
se viam bandos ocasionais da espécie maior de antílopes, pastando. À vista dos
cavaleiros e da figura relativamente gigantesca de Tarzan, estouraram e correram. Certa
ocasião, passaram por um rinoceronte, fazendo o grupo apenas um pequeno desvio para
evitá-lo. Mais tarde, num grupo de árvores, o líder deteve subitamente o destacamento e,
tirando a lança, avançou mais uma vez com cautela para as moitas, transmitindo ao
mesmo tempo uma ordem aos soldados, que se dispersaram e cercaram o pequeno
bosque.
Tarzan parou e observou-lhe os atos. O vento soprava dele em direção ao bosque e,
por isso, não podia determinar que tipo de criatura, se alguma, atraíra a atenção do
oficial. Logo depois, porém, quando os guerreiros cercavam inteiramente as moitas e os
que se encontravam no lado oposto nela penetraram, com as azagaias em posição, ouviu
um feroz rosnado partindo do centro do bosque e, um instante depois, um gato do mato
africano saltou diretamente sobre o oficial, que o esperava de lança em riste. O peso e
ímpeto da fera quase desmontaram o cavaleiro, cuja lança cravou-se no seu peito. Houve
alguns espasmódicos movimentos antes que ocorresse a morte. Se, durante esses
momentos, a azagaia tivesse quebrado, o homem teria sido extensamente mutilado e,
talvez, morto, pois o gato era um animal relativamente tão formidável como é o leão
para nós. No instante em que morreu, quatro guerreiros saltaram das montarias e, com
as afiadas facas, cortaram-lhe a cabeça e tiraram-lhe a pele em tempo incrivelmente curto.
Tarzan não pôde deixar de notar que tudo que essas pessoas faziam era realizado
com o máximo de eficiência. Não parecia haver jamais qualquer movimento inútil,
ninguém ficava sem saber o que fazer, nem um atrapalhava os movimentos de outro.
Mal passaram dez minutos desde o momento em que encontraram o gato e o
destacamento pôs-se mais uma vez a caminho, com a cabeça da fera presa à sela de um
dos guerreiros e a pele à de outro.
Era jovem o oficial que comandava o destacamento, pouco mais velho, se é que o
era, do que o comandante da tropa. Que era corajoso, Tarzan podia testemunhar pela
maneira como enfrentara o que devia ter sido, para um povo tão diminuto, uma fera
mortal e feroz. Mas, igualmente, o ataque sem esperança de todo o grupo sobre a
mulher alalu provara que eram todos valentes. E o homem-macaco admirava e
respeitava a coragem. Já gostava dos homenzinhos, embora lhe fosse difícil às vezes
aceitá-los como coisas reais, tão inclinados somos nós a duvidar da possibilidade de
existência de qualquer forma de vida que não conhecemos por associação ou por
informação digna de fé.
Viajavam quase havia seis horas pela planície quando o vento mudou e chegou às
narinas de Tarzan, iniludivelmente, o odor de Bara, a corça, que se encontrava à frente.
O homem-macaco, que não provara alimento naquele dia, estava esfomeado. O odor da
carne despertou todos os instintos selvagens nutridos pela educação que recebera.
Saltando para o lado do líder do destacamento que o escoltava, disse-lhe em sinal que
parasse e, tão claramente como podia com o relativamente trabalhoso, e nunca
inteiramente satisfatório, meio de outros sinais explicou que estava com fome, que havia
carne à frente, que deviam permanecer na retaguarda até que seguisse a presa e a
abatesse.
Tendo o oficial compreendido e manifestado seu assentimento, Tarzan rastejou
furtivamente para um pequeno grupo de árvores, além da qual o agudo olfato
informou-o de que havia diversos antílopes. Atrás de Tarzan seguia o destacamento, tão
silenciosamente que nem mesmo os agudos ouvidos do homem-macaco os ouviu.
Abrigado pelas árvores, Tarzan viu uma dúzia ou mais de antílopes pastando a curta
distância. O mais perto estava a uns trinta metros, se tanto, do pequeno bosque. Tirando
o arco que trazia a tiracolo e um punhado de flechas da aljava, o homem-macaco dirigiu-
se silenciosamente para a árvore mais próxima do antílope. O destacamento seguiu-o de
perto, embora parasse no momento em que o oficial viu a caça que Tarzan seguia, com
medo de afugentá-la.
Os pigmeus nada sabiam de arco e flechas e por isso mesmo observaram com
profundo interesse cada movimento do homem-macaco. Viram-no ajustar uma flecha
no arco, puxá-la bem para trás e soltá-la quase num mesmo movimento, tão rápido era
com a arma. E viram o antílope saltar ao receber o impacto do míssil, seguido em rápida
sucessão por um segundo e terceiro. E enquanto atirava, Tarzan saltou à frente em
perseguição da presa. Mas não havia perigo de perdê-la. Ao receber a segunda flecha o
macho caíra de joelhos e, ao alcançá-lo, já estava morto.
Os guerreiros, que o haviam seguido imediatamente desde o momento em que não
havia mais necessidade de cautela, já cercavam o antílope, onde conversavam com muito
mais agitação do que Tarzan vira em ocasião anteriores, com o interesse aparentemente
centralizado nos projéteis mortais que tão facilmente haviam abatido um grande animal,
pois para eles o antílope era tão grande como é para nós o maior dos elefantes. Ao
verem o olhar do homem-macaco, sorriram e esfregaram rapidamente as palmas das
mãos num movimento circular, ato este que Tarzan supôs manifestar aplauso.
Tendo retirado as flechas e as recolocado na aljava, Tarzan, com gestos, pediu
emprestado o florete do líder. Durante um momento, o homem pareceu hesitar e seus
companheiros olharam-no atentamente. Ele, porém, tirou a espada e entregou-a, pelo
cabo, ao homem-macaco. Quem vai comer carne crua ainda quente não sangra a carcaça,
nem isso fez Tarzan na ocasião. Em vez disso, cortou um quarto traseiro, tirou o que
queria e começou a devorá-lo esfomeadamente.
Os homenzinhos observaram-lhe os atos com uma surpresa em que não deixava de
haver certo horror. E quando lhes ofereceu parte da carne, recusaram-se e afastaram-se.
O que eram suas reações, não podia saber, mas desconfiou que sentiam forte aversão
pela carne crua. Mais tarde, descobriria que, em toda a experiência anterior deles, as
únicas criaturas que devoravam carne crua devoravam-nos também. Quando, por
conseguinte, viram o poderoso gigante comer a carne crua da presa não podiam deixar
de evitar a conclusão de que, caso ficasse suficientemente esfomeado, ele os devoraria
também.
Embrulhando parte da carne do antílope na própria pele do animal, Tarzan lançou-a
aos ombros e o grupo reiniciou a marcha. Os guerreiros pareciam preocupados e,
enquanto conversavam em voz baixa, lançavam numerosos olhares na direção do
homem-macaco. Não sentiam medo por si mesmos, pois estes guerreiros mal sabiam o
significado do medo. A questão que os preocupava dizia respeito à prudência de levar
para o meio do povo um enorme devorador de carne crua que, numa única refeição
apressada, comera o equivalente a um homem adulto.
A tarde caía quando Tarzan observou a distância o que parecia um grupo de
pequenas colinas simétricas, em forma de domos. Mais tarde, aproximando-se mais,
notou que um grupo de guerreiros montados lhes vinha ao encontro. De sua grande
altura, viu-os antes que os pigmeus que o acompanhavam. Atraindo a atenção do oficial,
informou-o por sinais de sua descoberta. Os guerreiros que se aproximavam, porém,
estavam ocultos pelas ondulações do terreno.
Compreendendo isto, Tarzan curvou-se e, antes que o oficial lhe pudesse imaginar a
intenção, segurou o antílope e o cavaleiro suavemente nas mãos poderosas e levantou-os
muito acima do chão. Durante um momento, os demais guerreiros ficaram
consternados.
Espadas brilharam e um grito de advertência subiu-lhes das gargantas e até mesmo o
corajoso pigmeu que ele segurava nas mãos sacou de sua diminuta arma. Um sorriso do
homem-macaco, porém, tranqüilizou-os. Um momento depois, o oficial percebeu por
que motivo Tarzan o levantara do chão. Gritou para os companheiros embaixo e, pelas
suas maneiras e do homenzinho que ele alçara às alturas, o homem-macaco compreendeu
que o grupo que se aproximava era composto de amigos. Minutos depois, o fato
confirmou-se ao serem cercados por várias centenas de pigmeus, todos cordiais,
entusiásticos e curiosos. Entre ele figurava o líder que salvara da mulher alalu, que
cumprimentou com um aperto de mão.
Houve uma conferência entre o líder do destacamento que o escoltara, o jovem
comandante do grupo maior, e diversos outros guerreiros mais velhos. Pela expressão
dos rostos e tom das vozes, Tarzan compreendeu que o assunto era grave e, que lhe
dizia respeito, teve certeza pelos numerosos olhares que lhe dirigiam. Não podia saber,
no entanto, que o tema da conferência era o relatório do comandante da escolta, de que o
possante convidado comia carne crua e, conseqüentemente, constituía um perigo levá-lo
para o meio do povo.
O chefe, o jovem comandante, contudo, resolveu a questão lembrando-lhes de que,
embora o gigante devesse ter estado muito esfomeado para ter devorado tanta carne
como lhe haviam dito, apesar disso viajara durante muitas horas com apenas um
pequeno número de guerreiros, ao seu fácil alcance, e que não os molestara. Parecia isto
argumento conclusivo de boas intenções. A cavalgada recomeçou sem mais demora na
direção das pequenas colinas claramente visíveis a uns dois ou três quilômetros de
distância.
Aproximando-se, Tarzan viu o que pareceu, literalmente, um número incontável de
homenzinhos andando em torno das pequenas colinas. Chegando mais perto, verificou
que o que pareciam cômoros eram montes simétricos de pequenas pedras, evidentemente
construídos pelos pigmeus e que as hordas que se moviam por ali eram operários, pois
uma longa fila caminhava toda na mesma direção, emergindo de um orifício no chão e
tomando um caminho bem marcado até um cômoro semicompletado, evidentemente em
obras. Outra fila movia-se, de mãos vazias, em direção oposta, penetrando no solo
através de um segundo orifício. Nos flancos de cada linha e a intervalos freqüentes
marchavam guerreiros armados, enquanto outras filas similares de trabalhadores
protegidos entravam e saíam de aberturas em cada uma das estruturas em forma de
domo, lembrando ao homem-macaco um formigueiro ocupado em suas panelas.
Capítulo 6
Tarzan dos Macacos foi levado em linha reta do Domo Real para as pedreiras de
Veltopismakus, que se situam a quatrocentos metros do mais próximo dos oito domos
que constituem a cidade. Um nono estava em construção e era para ele que a fila de
escravos carregados de pedras coleava a partir da entrada da pedreira à qual foi
conduzido o homem-macaco. Imediatamente abaixo da superfície, numa câmara bem
iluminada, foi entregue ao comandante da guarda, juntamente com as instruções do Rei.
— Seu nome? — perguntou o oficial, abrindo um grande livro depositado sobre a
mesa à qual se sentava.
— Ele é tão estúpido como um zertalacolol — explicou o comandante da escolta. —
Por conseguinte, não tem nome.
— Nós o chamaremos então de O Gigante — disse o oficial — pois como tal foi
conhecido desde sua captura — e escreveu Zuanthrol, indicando Zoanthrohago como
proprietário e Trohanadalmakus como cidade de origem. Voltou-se, então, para um dos
guerreiros que mandriavam num banco próximo. — Leve-o à turma de madeira na
ampliação do túnel treze, no trigésimo sexto nível, e diga ao Vental encarregado para
dar-lhe trabalho leve e providenciar para que nenhum mal lhe ocorra, pois tais são as
ordens do thagosoto. Ande! Mas, espere! Eis aqui o número. Prenda-o no ombro dele.
O guerreiro recebeu o pedaço circular de tecido com hieróglifos pretos e gravados,
afixou-os no ombro de Tarzan com um grampo de metal e, em seguida, com um gesto,
disse-lhe que o seguisse.
Tarzan penetrou num corredor curto e escuro, que logo em seguida se abriu para
outro mais largo e mais iluminado ao longo do qual caminhavam inumeráveis escravos
descarrregados, movendo-se todos na mesma direção em que o guarda o escoltava.
Notou que o chão do corredor apresentava um declive constante e que se voltava sempre
para a direita, formando uma grande espiral que mergulhava na terra. As paredes e o
teto eram revestidos de madeira, e o assoalho, pavimentado com pedras chatas,
amaciadas pelos milhões de pés cobertos de sandálias que passavam por elas. A
intervalos bem freqüentes, havia velas em nichos na parte esquerda da parede e, também,
a intervalos regulares, outros corredores que para ali se abriam. As aberturas eram
encimadas por mais estranhos hieróglifos de Minuni. Conforme Tarzan viria a aprender
depois, as indicações designavam os níveis em que se encontravam os túneis e
conduziam aos corredores circulares que cercavam a principal pista em espiral. Desses
corredores circulares partiam os numerosos túneis horizontais que conduziam às frentes
de trabalho em cada nível. Poços de ventilação e saídas de emergência perfuravam os
túneis a várias distâncias, correndo da superfície até os níveis mais baixos da pedreira.
Em quase todos os níveis alguns escravos viravam para os túneis laterais, sempre
bem iluminados, embora não tão brilhantemente como a espiral. Logo depois de terem
iniciado a descida, Tarzan, acostumado desde a infância à atenta observação das coisas,
começara a tomar nota dos números das entradas de túneis por onde passava. Mas podia
apenas conjeturar sobre a diferença nas profundezas dos níveis para os quais se abriam.
Um cálculo aproximado sugeria quatro metros e meio, mas antes de alcançarem o
trigésimo sexto, no qual viraram, Tarzan pensou que devia haver um erro nos cálculos,
pois tinha certeza de que não poderia estar a cento e setenta metros de profundeza,
abaixo da superfície da terra, sem velas e ventilação forçada.
O corredor horizontal em que entraram após terem deixado a espiral curvava-se em
ângulo quase reto para a direita e, em seguida, voltava à esquerda. Pouco depois, a
passagem cruzava um amplo corredor circular pelo qual caminhavam escravos
carregados e descarregados, além dos quais viu duas filas, os carregados com pedras,
que se moviam para a direção da qual ele viera, enquanto os outros, transportando
madeira, caminhavam na mesma direção que ele. Em ambas as filas havia escravos
descarregados.
Após percorrer durante considerável distância o túnel horizontal, alcançaram, por
fim, o grupo de trabalho. Tarzan foi entregue ao Vental, um guerreiro que, na
organização militar dos minunianos, comandava dez homens.
— Então, este é O Gigante! — exclamou o Vental. — E não podemos puxar muito
por ele. — Falava em tom desagradável, de zombaria. — Que gigante! — bradou. —
Ora, ele não é mais alto do que eu e, de quebra, têm receio de que trabalhe muito. Ouça,
ele vai trabalhar aqui ou provará o chicote. Kalfastoban não admite preguiçosos. — E
bateu no peito com jactância.
O guarda que o trouxera pareceu repugnado.
— Você faria bem, Kalfastoban — disse, dando-lhe as costas para voltar à casa da
guarda — em prestar atenção às ordens do Rei. Eu odiaria estar no seu lugar se alguma
coisa acontecesse a este escravo mudo, que provocou comentários de todo mundo em
Veltopismakus e tornou Elkomoelhago tão ciumento de Zoanthrohago que mandaria
enfiar uma faca entre as costelas dele se não soubesse que era impossível roubar os
aplausos recebidos pelo grande sábio.
— Kalfastoban não teme rei algum — vociferou o Vental — e ainda menos o triste
espécime que enodoa o trono de Veltopishago. Ele não engana ninguém. Todos
sabemos que Zoanthrohgo é seu cérebro e que Gefasto é sua espada.
— Apesar disso — avisou o outro — tome cuidado com o Zuanthrol. — E saiu.
Kalfastoban pôs o novo escravo a trabalhar no revestimento de madeira dos túneis
que estavam sendo escavados a partir da grande morena que formava a pedreira. A fila
de escravos que vinha da superfície com as mãos vazias descia de um lado do túnel até o
fim, soltava cada um deles uma rocha ou, se pesada demais, dois escravos, e voltavam
subindo o túnel pelo lado oposto, levando as cargas de volta à pista espiral usada pelos
que deixavam as frentes de trabalho e, sempre para cima, até o novo domo. A terra, uma
argila leve que enchia os interstícios entre as rochas na morena, era socada na abertura
por trás do madeirame da parede, sendo o túnel deliberadamente aberto com largura
suficiente para permitir tal operação. Certos escravos eram designados para esse
trabalho; outros transportavam tábuas cortadas nas dimensões certas pela turma
apropriada, da qual fazia parte Tarzan. A turma, composta de três pessoas, precisava
apenas cavar uma estreita e rasa vala sobre a qual colocava o pé de cada tábua, ajustava-a
no lugar certo e corria o madeira-mento do teto sobre elas. Na extremidade de cada
tábua do teto havia uma trava, previamente presa à superfície, que impedia o madeirame
da parede de cair após ter sido posto no lugar. A areia socada por trás dele prendia-o
sòlidamente no lugar, constituindo o conjunto um ancoramento seguro e de construção
rápida.
O trabalho era leve para o homem-macaco, embora ele ainda estivesse fraco em
conseqüência dos ferimentos. E dava-lhe oportunidade de observar com grande
freqüência tudo que ocorria em volta e reunir novas informações a respeito do povo em
cujo poder se encontrava. Classificou logo Kalfastoban como um fanfarrão falador, de
quem coisa alguma se precisaria temer durante a rotina do trabalho diário, mas que
mereceria ser observado se, por acaso, surgisse oportunidade para que ele desse um
espetáculo de autoridade ou força física diante dos olhos dos superiores.
Os escravos trabalhavam sem parar, mas não davam impressão de fazê-lo acima de
suas forças. Os guardas, que estavam sempre por perto, a razão de um guerreiro por
cada quinze escravos, não revelavam, por sua vez, brutalidade no tratamento que davam
às pessoas sob sua custódia, tanto quanto Tarzan pôde observar.
O fato que mais o deixou perplexo, desde o momento em que recobrara a
consciência, foi a estatura dessas pessoas. Não eram pigmeus, mas homens de altura
igual aos europeus comuns. Não havia ninguém tão alto como o homem-macaco, mas
não faltavam muitos que precisavam apenas de centímetros para alcançá-lo. Sabia que
eram veltopismakusianos, o mesmo povo que vira em combate com os
trohanadalmakusianos. Falavam em tê-lo capturado na batalha que fora travada;
chamavam-no de Zuanthrol, O Gigante, embora fossem da mesma altura que ele. E
quando deixara o Domo Real a caminho da pedreira vira-lhes os gigantescos domos
elevando-se a cento e vinte metros de altura sobre sua cabeça. Embora fosse tudo
absurdo e impossível, ele tinha o testamunho de todas suas faculdades de que aquilo era
a verdade. Pensar no caso servia apenas para confundi-lo e resolveu renunciar a decifrar
o mistério e dedicar-se à coleta de informações a respeito de seus captores e da prisão,
aguardando a ocasião, que sabia que algum dia viria, em que os meios de fuga se
ofereceriam aos vivos e agudos instintos do animal selvagem que, no coração, ele
sempre se considerara.
Em toda parte em que fora em Veltopismakus, e entre todos os que ouvira referir-se
ao assunto, pareceu-lhe que o povo, de modo geral, estava insatisfeito com o rei e o
governo. E sabia que, entre um povo descontente, a eficiência estaria no ponto mais
baixo e a disciplina desmoralizada de tal maneira que, caso observasse sem perder
detalhe, descobriria por fim a oportunidade que procurava graças à frouxidão dos
responsáveis por sua guarda. Não esperava o acontecimento naquele dia ou no seguinte,
mas o hoje e o amanhã eram os dias sobre os quais devia lançar os alicerces da
observação que, por fim, revelhar-lhe-iam uma rota de fuga.
Ao aproximar-se o fim do longo dia de trabalho, os escravos eram conduzidos para
suas acomodações que, descobriu Tarzan, ficavam sempre em níveis próximos àqueles
onde trabalhavam. Ele, em companhia de diversos outros escravos, foi conduzido ao
trigésimo quinto nível e levado por um túnel, a extremidade do qual fora ampliada para
as proporções de uma grande câmara. A estreita entrada da câmara tinha sido fechada
com pedras, exceto por uma pequena abertura, através da qual os escravos eram
obrigados a rastejar na entrada e na saída. Logo que o último passava, a abertura era
fechada por uma sólida porta, fora da qual dois guerreiros montavam guarda a noite
inteira.
Uma vez no interior e de pé, o homem-macaco olhou em volta e descobriu
encontrar-se numa câmara tão grande que parecia poder acomodar sem dificuldade a
grande massa de escravos, que devia montar em cinco mil almas de ambos os sexos. As
mulheres preparavam alimentos sobre pequenas fogueiras, cuja fumaça se evolava de
aberturas no teto. Em vista do grande número de fogueiras, causava espécie o pouco
volume de fumaça, fato este, contudo, explicado pela natureza do combustível, uma
madeira vegetal dura, sem impurezas. Mas, por que os gases libertados não os
asfixiavam era coisa que o homem-macaco não podia compreender, como continuavam
misteriosas as chamas das velas e o ar puro nas profundezas em que trabalhavam. As
velas queimavam em nichos em todas as paredes e havia pelo menos uma meia dúzia das
grandes no assoalho.
Os escravos eram de todas as idades, desde a infância até a meia-idade, mas não se
viam figuras veneráveis entre eles. As peles das mulheres e crianças eram as mais alvas
que Tarzan já vira. Observou-as espantado até que se lembrou de que alguns dos
primeiros e todas as últimas jamais haviam visto a luz do dia desde o nascimento. As
crianças nascidas naquele lugar subiriam à superfície algum dia, quando alcançassem
uma idade que justificasse o começo do treinamento para as vocações que os meus amos
lhes haviam designado. As mulheres capturadas em outras cidades, todavia, ali
permaneceriam até que a morte as reclamasse, a menos que ocorresse o mais raro dos
milagres — que fosse escolhida por um guerreiro veltopismakusiano como sua
companheira. Mas isso era possibilidade difícil, mesmo remota, desde que os
guerreiros, quase sem exceção, escolhiam as companheiras entre escravas de túnica
branca, com as quais entravam em contato diário nos domos da superfície.
O rosto das mulheres trazia uma marca de tristeza que levantou uma espontânea
onda de simpatia no peito do selvagem homem-macaco. Nunca, anteriormente, vira tal
expressão de desesperança desenhada numa fisionomia.
Atravessando o aposento, muitos foram os olhares lançados em sua direção, pois era
óbvio pelo seu bronzeado profundo que se tratava de um recém-chegado. Da mesma
forma, algo havia nele que o distinguia como argila diferente. Logo depois, sussurros
começaram a passar de um grupo a outro da multidão, pois os escravos que com ele
haviam entrado identificaram-no para os demais. E quem, mesmo nas entranhas da
terra, não ouvira falar do maravilhoso gigante capturado por Zoanthrohago durante a
batalha com os trohanadalmakusianos?
Logo depois, uma jovem, ajoelhada em frente a uma grelha onde assava um pedaço
de carne, despertou-lhe a atenção e, com um gesto, chamou-o. Aproximando-se, notou
que era muito bela, com uma pele de brancura translúcida, acentuada pelo preto retinto
da lustrosa cabeleira.
— Você é o gigante? — perguntou.
— Eu sou Zuanthrol — respondeu ele.
— Ele me falou a seu respeito — disse a moça. — Eu cozinharei também para você.
A menos — acrescentou com uma nota de embaraço — que haja outra que prefira que
cozinhe para você.
— Não há pessoa alguma que eu prefira — assegurou-lhe Tarzan. — Mas quem é
ele?
— Eu me chamo Talaskar — disse ela — mas o conheço apenas pelo número. Ele
diz que enquanto permanecer escravo não tem nome, que usará sempre o número, que é
Oitocentos Elevado à Terceira Mais Vinte e Um. — Observou-lhe o hieróglifo preso ao
ombro. — Você tem nome?
— Chamam-me de Zuanthrol.
— Ah — disse ela — você é um homem alto, mas eu dificilmente o chamaria de
gigante. Ele, também, é de Trohanadalmakus e tem mais ou menos sua altura. Nunca
ouvi dizer que houvesse gigantes em Minuni com exceção daqueles que o povo chama
de zertalacolols.
— Eu pensei que você fosse um zertalacolol — disse uma voz ao ouvido de Tarzan.
O homem-macaco voltou-se e viu um dos escravos com quem estivera trabalhando
olhá-lo de maneira brincalhona e sorrir.
— Eu sou um zertalacolol para meus senhores — respondeu. O interlocutor alçou
as sobrancelhas.
— Compreendo — disse. — Talvez você seja sábio. Não serei eu que o trairei — e
continuou em seus negócios.
— O que foi que ele quis dizer com isso? — perguntou a moça.
— Não pronunciei palavra, até agora, desde que fui prisionado — explicou Tarzan
— e pensam que sou mudo, embora tenha certeza de que não me pareço com um
zentalacolol. Apesar disso, há quem insista que sou um deles.
— Eu nunca vi um deles — disse a moça.
— Teve sorte — respondeu Tarzan. — Nem são agradáveis de ver nem de
conhecer.
— Mas eu gostaria de vê-los — insistiu ela. — Eu gostaria de ver qualquer coisa
que fosse diferente destes escravos que vejo todos os dias.
— Não perca a esperança — encorajou-a Tarzan — pois, quem sabe, é possível que
muito cedo você volte à superfície.
— Voltar — repetiu ela. — Eu nunca estive lá.
— Nunca esteve na superfície Quer dizer, desde que foi capturada.
— Eu nasci nesta câmara — explicou ela — e nunca saí dela.
— Você é uma escrava de segunda geração e está ainda confinada às pedreiras. Não
compreendo isto. Fui informado de que, em todas as cidades minunianas, os escravos
de segunda geração recebem uma túnica branca e a relativa liberdade acima do solo.
— Não para mim. Minha mãe não o permitiu. Ela preferia que eu morresse a que
me cassasse com um veltopismakusiano, ou outro escravo, como terei de fazer lá em
cima na cidade.
— Mas como consegue evitá-lo? Os senhores certamente não deixam estas coisas à
discrição dos escravos.
— Num local onde há tantos, um ou dois podem passar despercebidos para sempre
e as mulheres, se mal favorecidas em aparência, não causam comentários de parte dos
senhores. Meu nascimento nunca foi comunicado e eles não têm registro de minha
existência. Minha mãe tirou um número para mim da túnica de um escravo que morreu
e, desta maneira, não atraio atenção nas poucas ocasiões em que nossos senhores ou
guerreiros penetram na câmara.
— Mas você não é desfavorecida... O seu rosto, decerto, atrairia atenção em
qualquer parte — lembrou-se Tarzan.
Durante um instante ela lhe deu as costas, colocando as mãos no rosto e nos cabelos
e, quando se voltou, o homem-macaco viu uma horrenda e enrugada megera para a qual
homem nenhum olharia a segunda vez.
— Deus! — exclamou Tarzan.
Lentamente, o rosto da moça relaxou-se, reassumindo as linhas normais da beleza e,
com rápidos e hábeis dedos, rearrumou o cabelo desgrenhado. Uma expressão que era
quase sorriso apareceu-lhe nos lábios.
— Minha mãe ensinou-me isto — disse — para que, quando viessem e me
examinassem, não me quisessem.
— Mas não seria melhor casar com um deles e viver uma vida de conforto lá em
cima do que prolongar uma terrível vida aqui embaixo? — perguntou. — Os
guerreiros de Veltopismakus não diferem muito, decerto, daqueles de seu próprio país.
Ela sacudiu a cabeça.
— Não para mim — disse. — Meu pai era da distante Mandalamakus. Minha mãe
lhe foi roubada e, umas duas luas depois, eu nasci nesta câmara horrenda, longe do ar e
da luz do sol de que minha mãe nunca se cansava de falar-me.
— E sua mãe? — perguntou Tarzan. Está aqui? A jovem sacudiu, triste, a cabeça.
Vieram buscá-la há vinte luas e levaram-na. Não sei o que lhe aconteceu.
— E os outros, não a trairão nunca? — indagou.
— Nunca! O escravo que traísse outro seria reduzido a pedaços pelos
companheiros. Mas, venha, você deve estar com fome — e ofereceu-lhe a carne que
estivera assando.
Tarzan teria preferido crua a sua carne mas não a quis ofender, agradeceu-lhe e
comeu o que lhe foi oferecido, agachado em frente a ela, diante da grelha.
— É estranho que Aoponato não venha — observou ela, usando a palavra
minuniana para Oitocentos Elevado à Terceira Mais Vinte e Um. — Ele nunca chegou
tão tarde antes.
Um escravo musculoso, que se aproximara por trás das costas da moça, parará e
olhava carrancudo para Tarzan.
— Talvez seja ele — disse Tarzan à jovem, indicando-o com um gesto.
Talaskar voltou-se com um rápido movimento, quase com uma luz feliz nos olhos.
Mas logo que viu quem se encontrava às suas costas, mudou a expressão para outra de
asco.
-— Não — disse ela —- não é ele.
— Está cozinhando para ele? — perguntou o indivíduo, apontando para Tarzan. —
Mas não quer cozinhar para mim — disse, acusando-a, e não esperando uma resposta à
pergunta, que parecia mais do que óbvia. — Quem é ele para que você cozinhe para ele?
Ele é melhor do que eu? Você cozinhará também para mim.
— Há muita gente para cozinhar para você, Caraftap — respondeu Talaskar — e eu
não o desejo fazer. Procure outra mulher. Até que haja homens demais temos liberdade
de escolher aqueles para quem queremos cozinhar. E eu não o quero escolher.
— Se você sabe o que melhor lhe convém — rosnou o homem — você cozinhará
para mim. Você será também minha companheira. Eu tenho direito a você porque lhe
pedi muitas vezes antes que eles chegassem. De preferência a que eles a tenham, eu direi
ao Vental amanhã a verdade a seu respeito e ele a levará. Você já conhece Kalfastoban?
A moça estremeceu.
— Eu darei um jeito para que Kalfastoban a consiga — continuou Caraftap. — Não
permitirão que você continue aqui quando descobrirem que você se recusa a produzir
mais escravos.
— Eu preferiria Kalfastoban a você — zombou a moça — mas nenhum dos dois
me terá.
— Não fique tão certa assim — exclamou ele e, dando um passo à frente com
rapidez, agarrou-a pelo braço antes que ela lhe pudesse escapar. Puxando-a para si, o
homem tentou beijá-la. Em vão. Dedos de aço fecharam-se sobre o seu ombro, foi
arrancado violentamente de sua vítima e lançado impiedosamente a doze passos de
distância, aos trambolhões, estatelando-se no chão. Entre ele e a moça interpõe-se o
estranho de olhos cinzentos e cabeleira negra.
Quase bremindo de raiva, Caraftap levantou-se atabalhoadamente e atacou Tarzan —
atacou-o como faz um touro louco, de cabeça baixa e olhos injetados.
— Por isso, você vai morrer! — gritou.
Capítulo 12
— Por isso, você vai morrer! — bradou Caraftap, arremetendo contra Tarzan dos
Macacos na longa galeria da senzala dos escravos na pedreira de Elkomoelhago, Rei de
Veltopismakus.
O homem-macaco deu um rápido passo para o lado, evitando-o, e fê-lo cair com
um pé, lançando-o de rosto no chão. Caraftap, antes de erguer-se, olhou em volta como
se procurasse uma arma. Caindo seus olhos sobre a grelha quente, estendeu a mão e
agarrou-a. Subiu um murmúrio de desaprovação entre os escravos, que, estando
ocupados por ali, haviam presenciado todo o começo da discussão.
— Armas, não! — exclamou um deles. — Não é permitido entre nós. Lute com as
mãos nuas, ou desista.
Caraftap, porém, estava embriagado demais pelo ódio e ciúme para escutá-los ou
prestar-lhes atenção. Agarrou, portanto, a grelha e, erguendo-a, arremeteu contra
Tarzan, para lançá-la em seu rosto. Nesta ocasião, foi outro que o fez cair estendendo o
pé e, desta vez, dois escravos saltaram sobre ele e lhe tomaram a grelha das mãos.
— Lute lealmente! — advertiram-no, e puseram-no de pé. Tarzan permanecia
sorridente e indiferente, pois a fúria dos demais o divertia quando era maior do que as
circunstâncias justificavam. Esperava por Caraftap. Quando o adversário viu-lhe o
sorriso, isto serviu apenas para aumentar-lhe a irritação e ele quase que saltou sobre o
homem-macaco na loucura para destruí-lo. Tarzan enfrentou-o com a mais
surpreendente das defesas que Caraftap, que durante longo tempo fora um ferrabras
entre os escravos, jamais encontrara: um punho fechado na extremidade de um braço
reto que o alcançou na ponta do queixo, lançando-o de costas no chão. Os escravos, que
por essa ocasião haviam-se reunido em número considerável para observar a luta,
manifestaram aprovação no agudo “Ee-ah-ee-ah”, que constituía uma das formas de
aplauso.
Confuso e atordoado, Caraftap levantou-se cambaleante mais uma vez e, de cabeça
baixa, olhou em volta como se à procura do inimigo. A moça Talaskar aproximara-se de
Tarzan e olhava-o no rosto.
— Você é muito forte — disse ela, embora a expressão nos seus olhos dissessem
mais ou, pelo menos, assim pareceu a Caraftap. Pareceu-lhe falar de amor, ao passo que
era apenas a admiração que uma mulher normal sente pela força usada em prol de uma
causa nobre.
Caraftap emitiu um som que pareceu mais o grunhido de um porco furioso e, mais
uma vez, arremeteu contra o homem-macaco. Por trás deles, alguns escravos eram
introduzidos no corredor e, uma vez que a abertura estava descerrada, um dos
guerreiros por trás dela, que por acaso estava agachado, viu o que se passava no
interior. Viu muito pouco, embora o que visse fosse suficiente — um grande escravo
com uma basta cabeleira negra levantando outro corpulento escravo bem acima da cabeça
e lançando-o violentamente ao solo. O guerreiro, empurrando os escravos para o lado,
correu pelo corredor e para o centro da câmara. Antes que lhe percebessem a presença,
postou-se em frente a Tarzan e Talaskar. Era Kalfastoban.
— O que significa isto? — bradou e, em seguida: — Ah, ah! Compreendo. É o
Gigante. Quer mostrar aos outros escravos como é forte? Olhou para Caraftap, que
procurava, com esforço, levantar-se, e seu rosto tornou-se muito sombrio. Caraftap era
seu favorito. — Tais coisas não são permitidas aqui, companheiro! — gritou, sacudindo
o punho diante do rosto do homem-macaco, esquecendo na sua ira que o novo escravo
nem falava nem compreendia coisa alguma. Logo depois, porém, lembrou-se e, com um
gesto, disse a Tarzan que o seguisse. — Cem chicotadas explicarão a ele que não deve
brigar — bradou em voz alta para ninguém em particular, mas olhando para Talaskar.
— Não o castigue — disse a moça, esquecendo-se de sua situação. — Foi tudo
culpa de Caraftap, e Zuanthrol agiu em legítima defesa.
Kalfastoban não podia tirar os olhos do rosto da moça e, logo depois, percebendo o
perigo que corria, ela corou, mas permaneceu onde estava, intercedendo pelo homem-
macaco. Um sorriso tortuoso apareceu na boca de Kalfastoban e ele pousou uma mão
íntima sobre o ombro da moça.
— Que idade tem? — perguntou. Ela lhe disse, tremendo.
— Procurarei seu amo e a comprarei — disse. — Não aceite companheiro.
Tarzan observava-a e pareceu-lhe que ela murchava, como murcha uma flor em
atmosfera envenenada. Em seguida, Kalfastoban voltou-se para ele.
— Você não me pode compreender, sua besta estúpida — disse — mas posso dizer-
lhe, e os que estão em volta podem escutar e, talvez, desse modo evitar confusões. Desta
vez, deixo-o escapar, mas se isto acontecer novamente, receberá cem vergastadas, ou
pior ainda, talvez. Se ouvir dizer que você teve alguma coisa com esta moça, que eu
tenciono comprar e levar para a superfície, será ainda pior para você. — E com as
últimas palavras dirigiu-se para a entrada e passou para o corredor.
Partindo o Vental e fechada a porta da câmara, uma mão foi posta sobre o ombro de
Tarzan e uma voz chamou-o por trás.
— Tarzan!
O nome soou estranho em seus ouvidos, no fundo da câmara sepultada sob o solo,
numa cidade estrangeira e em meio de gentes estranhas, nenhuma das quais jamais lhe
ouvira o nome. Ao voltar-se para o homem que o cumprimentava, uma expressão de
reconhecimento e um sorriso de prazer espalharam-se pelo seu rosto.
— Kom!... — começou a dizer, mas o outro levou um dedo aos lábios. — Não,
aqui — disse. — Aqui sou Aoponato.
— Mas sua estatura! Você é tão alto como eu. Não consigo compreender. O que
aconteceu para dar à raça dos minunianos estas proporções relativamente gigantescas?
Komodoflorensal sorriu.
— O egoísmo humano não lhe permitirá atribuir a mudança a uma causa oposta do
que aquela a que a atribuí — disse.
Tarzan contraiu as sobrancelhas e olhou durante longo tempo, pensativo, para o real
amigo. Uma expressão em que se misturavam incredulidade e divertimento subiu-lhe
gradualmente a seu rosto.
— Quer dizer — disse, medindo as palavras — que fui reduzido em tamanho à
estatura de um minuniano?
Komodoflorensal inclinou afirmativamente a cabeça.
— Não é mais fácil de acreditar nisso do que pensar que uma raça inteira e todas
suas posses, mesmo seus locais de resistência e as pedras de que elas são construídas,
todas suas armas e até seus diadetes, foram aumentados em tamanho até alcançar sua
estatura?
— Mas eu lhe digo que isso é impossível! — exclamou o homem-macaco.
— Eu teria dito a mesma coisa há algumas luas — respondeu o Príncipe. — Mesmo
quando ouvi o boato aqui que o haviam reduzido de tamanho, não acreditarei, não
durante longo tempo, e estava ainda um pouco céptico quando entrei nesta câmara e o vi
com meus próprios olhos.
— Como é que foi feito isso? — perguntou Tarzan.
— A mente mais poderosa de Veltopismakus, e talvez de toda Minuni, é a de
Zoanthrohago — explicou Komodoflorensal. — Reconhecemos isto há muitas luas,
pois, durante os intervalos ocasionais em que estamos em paz com Veltopismakus, há
certo intercâmbio de idéias e mercadorias entre nossas duas cidades. Ouvimos falar,
assim, das numerosas maravilhas atribuídas a este que é o maior dos walmaks.
— Nunca ouvi falar desse sábio em Minuni até agora — disse Tarzan, pois pensou
que tal era o significado da palavra walmak, e talvez seja, tanto quanto pode ser
traduzida. Um cientista que faz milagres seria, talvez, melhor definição.
— Foi Zoanthrohago quem o capturou — continuou Aoponato — cercando sua
queda de meios simultaneamente científicos e miraculosos. Depois que você caiu, ele o
fez perder a consciência e, enquanto se encontrava nessa situação, você foi arrastado até
aqui por dezenas de diadetes atrelados a uma padiola improvisada na hora, construída
com pequenas árvores amarradas com nós fortes umas às outras, depois de removidos
os ramos. Somente depois que você estava em segurança aqui em Veltopismakus,
Zoanthrohago começou a trabalhar para reduzir-lhe a estatura, utilizando aparelhos que
ele mesmo construiu. Ouvi-os discutindo o assunto e dizem que não consumiu muito
tempo.
— Tenho a esperança de que Zoanthrohago tenha o poder de desfazer tudo o que
fez — disse o homem-macaco.
— Dizem que isto é duvidoso. Ele jamais foi capaz de tornar uma criatura maior do
que fora antes, embora em seus numerosos experimentos tenha reduzido o tamanho de
muitos animais inferiores. O fato é que — continuou Aoponato — procura meios de
aumentar o tamanho dos veltopismakusianos de modo que eles possam dominar todos
os povos de Minuni, mas conseguiu apenas formular um método que produz resultados
que são o total oposto do que procura. Assim, se ele não pode ampliar a estatura dos
outros, duvido que possa fazê-lo mais alto do gue é agora.
— Eu ficaria bastante inerme entre os inimigos do meu próprio mundo — disse
Tarzan em tons melancólicos.
— Não precisa aborrecer-se por isso, meu amigo — disse em voz carinhosa o
Príncipe.
— Por quê? — perguntou o homem-macaco.
— Porque é mínima a possibilidade de que volte a seu povo — disse
Komodoflorensal com certa tristeza. — Eu não tenho a menor esperança de ver
Trohanadalmakus outra vez. Somente através da derrota completa de Veltopismakus
pelos guerreiros de meu pai poderia eu alimentar a esperança de socorro, desde que
coisa alguma pode dominar a guarda na entrada da pedreira. Muito embora capturemos
amiúde escravos de túnica branca de cidades inimigas, é muito raro prendermos um de
túnica verde. Somente em casos raros, de ataques de surpresa durante o dia, podem
ocorrer, e apenas uma vez na vida de um homem, ou nunca.
— Você acredita que vamos passar o resto de nossas vidas neste buraco
subterrâneo? — perguntou-lhe Tarzan.
— A menos que tenhamos oportunidade de ser usados como trabalhadores durante
o dia na superfície, uma vez ou outra — respondeu o Príncipe de Trohanadalmakus
com um sorriso irônico.
O homem-macaco encolheu os ombros.
— Isto veremos — disse.
Após a saída de Kalfastoban, Caraftap havia-se afastado manquejando para a
extremidade mais distante da câmara, murmurando para si mesmo, com o rosto sombrio
e carrancudo.
— Receio que ele vá causar-lhe problemas — disse Talaskar indicando o
desapontado escravo com uma inclinação da bem conformada cabeça. — E lamento que
tudo tenha acontecido por minha causa.
— Sua causa? — perguntou Komodoflorensal.
— Sim — disse a moça. — Caraftap ameaçava-me quando Aoponato interferiu e
castigou-o.
— Aoponato? — indagou Komodoflorensal.
— O meu número — explicou Tarzan.
— E foi por causa de Talaskar que vocês estiveram brigando? Eu lhe agradeço, meu
amigo. Lamento não ter estado aqui para protegê-la. Talaskar cozinha para mim. É uma
boa moça. — Komodoflorensal olhava-a enquanto falava e Tarzan notou que os olhos
dela baixavam e que delicado rubor lhe subia ao rosto. Compreendeu a situação e sorriu.
— Então este é o Aoponato de quem me falou? — perguntou Talaskar.
— Sim, é ele.
— Sinto muito ter sido capturado, mas é bom encontrar um amigo aqui — disse o
homem-macaco. — Nós três poderemos descobrir algum plano de fuga. — Mas eles
sacudiram as cabeças, com uma expressão de tristeza nos sorrisos.
Durante algum tempo, depois de terem feito a refeição, continuaram a conversar,
participando algumas vezes outros escravos, pois Tarzan fizera muitos amigos ali desde
que castigara Caraftap. Teriam conversado a noite inteira se o homem-macaco não
tivesse perguntado a Komodoflorensal quais eram os costumes de dormida dos
escravos.
Komodoflorensal riu e apontou aqui e ali para figuras deitadas sobre o duro chão
de terra. Homens, mulheres e crianças dormiam, na maior parte, no local onde haviam
feito a refeição da noite.
— Os verdes não são mimados — respondeu em curtas palavras.
— Eu posso dormir em qualquer local — disse Tarzan — embora mais facilmente
no escuro. Esperarei até que as luzes sejam apagadas.
— Esperará, então, para sempre — disse-lhe Komodoflorensal.
— As luzes nunca são apagadas?
— Se fossem, todos nós morreríamos logo — replicou o Príncipe. — Estas chamas
servem a duas finalidades: dissipam a escuridão e consomem os gases prejudiciais que,
de outro modo, nos asfixiariam em pouco tempo. Ao contrário das chamas comuns;
estas velas, aperfeiçoadas com base nas descobertas e invenções de antigos cientistas
minunianos, consomem os gases prejudiciais e libertam oxigênio. É por esse motivo,
ainda mais do que pela luz, que são usadas exclusivamente em toda Minuni. Até mesmo
nossos domos seriam lugares escuros, mal cheirosos e nocivos não fossem por elas, ao
passo que as pedreiras não poderiam, em absoluto, ser exploradas.
— Então não esperarei até que elas sejam apagadas disse Tarzan estendendo-se a fio
comprido no sujo assoalho com um gesto de cabeça e um “Tuano!” — o “Boa Noite!”
minuniano — para Talaskar e Komodoflorensal.
Capítulo 13
Kalfastoban voltou-se imediatamente para iniciar a busca das várias câmaras de seus
aposentos, mas Caraftap pôs uma mão cautelosa em seu braço.
— Espere, Vental — implorou. — Se eles estão aqui, não seria melhor assegurar-
lhes a captura fechando as portas que saem de seu aposento?
— Uma boa idéia, Caraftap — respondeu Kalfastoban — e, então, poderemos dar
uma cuidadosa busca, sem pressa. Fora daqui, vocês, mulheres! — berrou, mandando-
as ir com um gesto para os aposentos de Hamadalban. Um momento depois, as duas
portas que davam entrada para os aposentos de Hamadalban e a galeria foram fechadas e
aferrolhadas.
— E agora, senhor — sugeriu Caraftap —, desde que há dois deles, não seria bom
que me desse uma arma?
Kalfastoban enfunou o peito.
— Uma dúzia como eles Kalfastoban poderia vencer sozinho — berrou. — Mas,
para sua própria proteção, apanhe uma espada naquele quarto ali enquanto eu tranco
novamente esta gata na cela.
No momento em que Kalfastoban seguiu Talaskar até o quarto em que ela fora
confinada, Caraftap cruzou a porta para o depósito onde o Vental dissera que
encontraria a arma.
O Vental chegou à porta do quarto imediatamente atrás da moça e, estendendo a
mão, segurou-a pelo braço.
— Não com tanta pressa, minha bela! — exclamou. — Um beijo antes de deixar-
me. Mas não se agite! No momento em que tivermos certeza de que esses escravos
criminosos não se encontram nestes aposentos, voltarei para você. Não fique anelante,
portanto, pelo seu Kalfastoban.
Talaskar voltou-se e esbofeteou-o.
— Não ponha suas mãos sujas sobre mim, seu animal! — exclamou, lutando para
libertar-se.
— Ho, ho! Uma gata, realmente! — exclamou ele. Mas não a soltou e, assim,
lutaram até desaparecer no interior da cela. No mesmo momento, Caraftap, o escravo,
pôs a mão no ferrolho do depósito e, abrindo-o, entrou.
Ao fazê-lo, dedos de aço saíram da escuridão e fecharam-se em torno de sua
garganta. Teria gritado de horror, mas som algum podia escapar de uma garganta assim
tão fechada. Lutou e atacou a coisa que o segurava — uma coisa tão poderosa que
percebeu que não podia ser humana. Nesse momento, uma voz, fria e apavorante,
sussurrou-lhe no ouvido:
— Morra, Caraftap! — disse a voz. — Vá ao encontro do destino que você merece,
e que sabia muito bem que merecia quando disse que não ousava voltar aos aposentos
dos escravos de Zoanthrohago após trair dois de seus colegas. Morra, Caraftap! E saiba,
antes de morrer, que aquele que ia trair é o seu assassino. Você procurou Zuanthrol... e
encontrou-o! — Com as últimas palavras os dedos terríveis fecharam-se sobre a
garganta do homem. Espasmodicamente, o escravo lutou, tentando respirar. Em
seguida, as mãos viraram-se sem pressa em direção opostas, e a cabeça do traidor foi
arrancada do corpo.
Lançando o cadáver ao lado, Tarzan saltou para a câmara principal dos aposentos do
Vental e correu para a porta da cela de Talaskar, seguido nos calcanhares por
Komodoflorensal. A porta do pequeno quarto fora empurrada pelos contendores, em
luta no interior. Abrindo-a, Tarzan viu a moça nas garras do enorme Vental que,
evidentemente enlouquecido pela resistência oferecida, perdera a paciência por completo
e tentava uma saraivada de golpes contra o rosto na moça, que procurava evitá-los
agarrando-lhe os braços e as mãos.
Uma mão pesada caiu-lhe sobre os ombros.
— Você nos procura! — sussurrou-lhe ao ouvido uma voz baixa. — Aqui estamos!
Kalfastoban soltou a moça e voltou-se, estendendo ao mesmo tempo a mão para a
espada. Diante dele viu os dois escravos, ambos armados, embora apenas Aoponato
tivesse sacado da arma. Zuanthrol, que o segurava, não havia ainda desembainhado a
sua.
— Uma dúzia como eles Kalfastoban poderia vencer sozinho — repetiu Tarzan. —
E aqui estamos, fanfarrão, e somos apenas dois. Mas não podemos esperar até que nos
mostre como você é possante. Sentimos muito. Se não tivesse molestado a moça, eu teria
simplesmente trancafiado você no aposento, do qual logo depois teria sido solto. Mas a
sua brutalidade merece apenas um castigo: — morte.
— Caraftap! — gritou Kalfastoban. Não parecia mais fanfarrão, rouquejador e
desafiador. A voz estava aguda de medo e ele tremia nas mãos do homem-macaco. —
Caraftap! Socorro! — gritou.
— Caraftap está morto — disse Tarzan. — Morreu porque traiu os colegas. Você
morrerá porque foi brutal com uma indefesa escrava. Passe-lhe a espada,
Komodoflorensal! Não temos tempo a perder aqui.
No momento em que o trohanadalmakusiano retirou a espada do coração de
Kalfastoban Vental e o cadáver deslizou para o chão da cela, Talaskar correu e lançou-se
aos pés do homem-macaco.
— Zuanthrol e Aoponato! — exclamou. — Nunca pensei em vê-los novamente. O
que foi que aconteceu? Por que estão aqui? Vocês me salvaram, mas agora estão
perdidos. Fujam, não sei para onde, mas saiam daqui! Não deixem que os encontrem
aqui. De qualquer modo, não posso compreender por que estão aqui.
— Estamos tentando escapar — explicou Komodoflorensal — e Zuanthrol não irá
sem você. Deu uma busca na pedreira a sua procura e agora no Domo Real. Ele fez o
impossível, mas, encontrou-a.
— Por que fez isto por mim? — perguntou Talaskar, olhando espantada para
Tarzan.
— Porque você foi bondosa comigo quando fui levado à câmara dos escravos de
Zoanthrohago — respondeu o homem-macaco — e porque prometi que, quando
chegasse a hora da fuga, nós três iríamos juntos.
Levantou-a do chão e levou-a para a câmara principal. Komodoflorensal
permaneceu de lado, com os olhos baixos. Tarzan lançou-lhe um olhar, e uma expressão
de perplexidade apareceu-lhe nos olhos, mas qualquer que tenha sido o pensamento que
a ocasionou, deve tê-lo expulso sem demora, tendo em vista considerações mais
urgentes.
— Komodoflorensal, você conhece melhor do que eu em que rotas de fuga haverá
menos perigos de descoberta. Devemos sair pelos aposentos de Hamadalban ou através
da galeria que eles mencionaram? São questões que não posso responder de maneira a
convencer-me. E, olhe! — os seus olhos haviam estado percorrendo o aposento. — Há
uma abertura no teto. Para onde poderá dar?
— Pode levar a quase qualquer parte, ou a nenhuma, absolutamente! — respondeu
o trohanadalmakusiano. — Muitas câmaras possuem tais aberturas. Às vezes, acabam em
sótãos que não conduzem a qualquer outra câmara. Outras vezes, desembocam em
aposentos secretos, ou mesmo em corredores em outro nível.
Ouviram batidas na porta que dava para os aposentos de Kalfastoban e uma voz de
mulher chamando em voz alta:
— Kalfastoban, abra! Está aqui um ental da guarda da pedreira à procura de
Caraftap. A sentinela em frente dos aposentos dos escravos de Zoanthrohago foi
encontrada morta e eles desejam interrogar Caraftap, acreditando haver uma conspiração
entre os escravos.
— Temos que ir pela galeria — sussurrou Komodoflorensal, dirigindo-se em
passos rápidos para a porta naquela direção.
Ao alcançá-la, alguém pôs a mão no ferrolho do lado oposto e tentou abri-la.
— Kalfastoban! — gritou a voz da galeria. — Deixe-nos entrar! Os escravos não
saíram por aqui. Vamos, abra logo!
Tarzan dos Macacos olhou, rápido, em volta. Mostrou um pouco os dentes, pois era
mais uma vez a besta acuada. Mediu a distância do solo até a clarabóia no teto e, em
seguida, com uma pequena corrida, saltou sem esforço. Esquecera até que ponto a
redução do peso lhe afetara a agilidade. Esperara encontrar apoio para as mãos na parte
superior da abertura, mas, em vez disso, passou inteiramente por ela, caindo em pé
sobre o assoalho de uma câmara escura. Voltando-se olhou para os amigos embaixo. A
consternação estava escrita em sinais bem visíveis nos rostos de ambos. Mas não poderia
ele mesmo deixar de estar espantado. Estava quase tão surpreendido quanto ambos.
— É muito alto para vocês saltarem? — perguntou.
— Muito alto! — responderam.
Ele se pendurou, então, de cabeça para baixo pela abertura, segurando a borda da
clarabóia com a parte interna dos joelhos. À porta da galeria as pancadas tornaram-se
insistentes e, naquela que se abria para os aposentos de Hamadalban, uma voz de homem
suplantava a da mulher. O indivíduo exigia furioso que o deixassem entrar.
— Abra! — berrou. — Em nome do Rei, abra!
— Abra você mesmo! — gritou o indivíduo que estivera batendo na porta oposta,
pensando que o pedido para abrir viera do interior da câmara onde queria entrar.
— De que modo posso abrir? — mugiu o outro. — A porta está fechada do seu
lado!
— Não está fechada do meu lado. Está fechada do seu — berrou o outro, furioso.
— Você está mentindo! — berrou o que queria entrar vindo dos aposentos de
Hamadalban — e você pagará caro quando isto for comunicado ao Rei.
Tarzan pendeu, de cabeça para baixo, com as mãos estendidas para os companheiros.
— Erga-me Talaskar — disse a Komodoflorensal. E quando o outro assim fez,
segurou os pulsos da moça e levantou-se até que ela pudesse segurar parte de seu
talabarte de couro e agüentar-se sem cair. Segurou-a em seguida mais embaixo e
levantou-a ainda mais alto e, desta maneira, ela conseguiu subir para a alcova.
Os furiosos guerreiros às duas portas estavam agora evidentemente enfurecidos e
tentavam derrubá-las. Pesados golpes caíam sobre as grossas almofadas, que ameaçavam
estalar a qualquer momento.
— Encha a bolsa de velas, Komodoflorensal — disse Tarzan — e, em seguida, salte
para minhas mãos.
— Apanhei todas as velas que podia transportar quando estivemos no depósito —
respondeu o outro. — Segure-se! Vou saltar.
Uma almofada estalou e pedaços de madeira voaram para o centro do assoalho
vindos da porta da galeria no momento em que Tarzan agarrou as mãos estendidas de
Komodoflorensal. Um instante depois, ambos ajoelharam-se na escuridão do sótão e
olharam para a câmara. A porta do outro lado abriu-se e dez guerreiros que compunham
o ental entraram violentamente nos calcanhares do Vental em comando.
Durante um instante, olharam em volta em total surpresa. Por fim, tiveram a atenção
despertada pelas batidas na outra porta. Um sorriso passou pela face do Vental quando
deu um rápido passo à frente em direção à porta da galeria e abriu-a. Guerreiros
furiosos caíram sobre ele, mas logo que ele explicou a confusão com que ambos os
grupos haviam tentado entrar na câmara, prorromperam em gargalhadas, ainda que um
pouco envergonhados.
— Mas quem estava aqui? — perguntou o Vental que trouxera os soldados da
pedreira.
— Kalfastoban e o escravo verde Caraftap — disse uma das mulheres de
Hamadalban.
— Devem estar escondidos! — exclamou o guerreiro. r»£(»m uma bnsrn! - -
comandou o Vental.
— Não demorará muito a encontrar um deles — disse outro guerreiro, apontando
para o assoalho logo depois da porta do depósito.
Os demais olharam e viram uma mão humana no solo. Os dedos, imobilizados,
lembravam garras. Sem palavras, proclamavam a morte. Um dos guerreiros entrou sem
demora no depósito, abriu a porta e puxou o cadáver de Caraftap, ao qual a cabeça
prendia-se ainda por um fiapo de carne. Até mesmo os guerreiros recuaram,
horrorizados. Examinaram rapidamente a câmara.
— Ambas as portas estavam fechadas por dentro — disse o Vental. — O que quer
que tenha feito isto deve estar ainda aqui.
— Não pode ter sido coisa deste mundo — sussurrou a mulher que os
acompanhara desde o aposento vizinho.
— Procurem cuidadosamente — disse o Vental e, como era homem valente, entrou
em uma câmara após outra. Na última, encontraram Kalfastoban, com o coração
perfurado por um golpe de espada.
— É tempo de cairmos fora daqui se houver alguma rota de fuga — sussurrou
Tarzan a Komodoflorensal. — Um deles examinará sem demora esta abertura.
Com toda cautela, os dois tentaram, na direção oposta, em volta das paredes do sótão
escuro e abafado. Poeira profunda, a poeira de idades incontáveis, erguia-se em torno
deles, sufocando-os, confirmando que o aposento não fora usado durante anos. Logo
depois, Komodoflorensal ouviu um “Psiu!” do homem-macaco, que o chamava.
— Venham aqui, vocês dois. Encontrei alguma coisa.
— O que foi? — perguntou Talaskar, aproximando-se.
— Uma abertura na base da parede — respondeu Tarzan. — É bastante grande para
um homem rastejar por ela. Acha, Komodoflorensal, que seria seguro acender uma
vela?
— Não, não agora — respondeu o Príncipe.
— Irei sem ela, então — disse o homem-macaco — pois precisamos saber, de
qualquer maneira, onde desemboca este túnel.
Caiu de joelhos. Talaskar, que estivera de pé ao seu lado, ouviu-o afastar-se. Não
podia vê-lo — estava escuro demais no sombrio sótão.
Embora esperassem, Zuanthrol não voltou. Ouviram vozes no aposento embaixo.
Perguntaram-se lá com seus botões se os investigadores logo depois examinariam o
sótão. Os investigadores resolveram sitiar o local — seria mais seguro do que rastejar
por aquele buraco escuro atrás de uma coisa que podia arrancar a cabeça de um homem.
Quando descesse, como teria que descer, estariam à espera para destruí-la. Mas,
entrementes, contentavam-se em esperar.
— O que foi que aconteceu com ele? — sussurrou Talaskar nervosamente.
— Você se preocupa muito com ele, não? — perguntou Komo-doflorensal.
— Por que não? — perguntou a moça. — Você se preocupa também, não?
— Sim — respondeu ele.
— Ele é maravilhoso — disse a moça.
— Sim — concordou Komodoflorensal.
Como que lhes atendendo aos desejos, ouviram um baixo assovio das profundezas
do túnel pelo qual Tarzan rastejara.
— Venham! — sussurrou o homem-macaco.
Entrando Talaskar em primeiro lugar, seguiram-no. rastejando sobre as mãos e os
joelhos através de um tortuoso túnel, tenteando pela escuridão, até que, finalmente, uma
luz tremeluziu à frente e viram Zuanthrol acender uma vela numa pequena câmara, que
tinha altura suficiente apenas para que um homem permanecesse de pé.
— Cheguei até aqui — disse-lhes — e como oferecia um bom esconderijo, onde
podemos ter luz sem medo de descoberta, fui chamá-los. Podemos ficar aqui durante
algum tempo em conforto relativo, até que eu possa explorar o túnel mais adiante. Pelo
que posso julgar, nunca foi usado durante a existência de qualquer veltopismakusiano
vivo e, assim, há pouca probabilidade de que alguém pense em procurar-nos aqui.
— Acha que nos seguirão? — perguntou Talaskar.
— Acho que sim — respondeu Komodoflorensal — e desde que não podemos
voltar, é melhor continuar imediatamente, pois parece razoável supor que a extremidade
deste túnel termine em outra câmara. Possivelmente, lá encontraremos caminho para
fugir.
— Você tem razão, Komodoflorensal — concordou Tarzan. — Coisa alguma
podemos ganhar permanecendo aqui. Eu vou na frente. Deixe que Talaskar me siga e,
você, feche a retaguarda. Se o lugar for um beco sem saída, não ficaremos em pior
situação por tê-lo investigado.
Iluminado o caminho desta vez com velas, os três rastejaram penosa e
dolorosamente pelo chão de pedra irregular do túnel, que virava com freqüência de um
lado para outro como se passasse em torno de câmaras até que, para alívio geral, a
passagem ampliou-se abruptamente, tanto em largura como altura, e eles puderam
continuar andando. O túnel, em seguida, caiu em profundo declive para outro nível, e,
um momento depois, os três entraram numa pequena câmara, onde Talaskar subitamente
colocou a mão no braço de Tarzan, inalando uma súbita respiração.
— O que é aquilo, Zuanthrol! — murmurou ela, apontando para a escuridão à
frente.
Sobre o assoalho de um dos lados do aposento discernia-se uma figura agachada
junto ao muro.
— E aquilo! — exclamou a moça, apontando para outra parte do aposento.
O homem-macaco sacudiu a mão da moça e deu um rápido passo à frente, com a
vela erguida alta na mão esquerda, tendo a direita no cabo da espada. Aproximou-se da
figura agachada e inclinou-se para examiná-la. Colocou as mãos sobre ela e a forma
desmoronou-se num monte de pó.
— O que é? — perguntou a jovem.
— Era um homem — respondeu Tarzan —, mas está morto há muitos anos. Estava
acorrentado à parede. O ferrugem corroeu a corrente.
— E os outros dois? — perguntou Talaskar.
— Há diversos deles — disse Komodoflorensal. — Está vendo? Ali, e ali.
— Pelo menos eles não nos podem deter — disse Tarzan, e atravessou novamente a
câmara em direção a uma porta na parede oposta.
— Mas contam-nos, possivelmente, alguma coisa — aventurou Komodoflorensal.
— O quê? — perguntou o homem-macaco.
— Que este corredor dá para os aposentos de um veltopismakusiano muito
poderoso — respondeu o Príncipe. — Tão poderoso que podia liquidar desta forma os
inimigos, sem provocar perguntas. É conta-nos também que tudo isto aconteceu há
muitos e muitos anos.
— O estado do corpo contou-nos isso — disse Tarzan.
— Não, inteiramente — respondeu Komodoflorensal. — As formigas o teriam
reduzido àquele estado dentro de pouco tempo. Em idades passadas, os mortos eram
deixados no interior dos domos e as formigas, que eram nossas coveiras, pouco depois
os consumiam, mas elas, às vezes, atacavam os vivos. Transformaram-se num
aborrecimento e, por fim, numa ameaça. Todas as precauções foram, então, tomadas
para não atraí-las. Além disso, nós as combatemos. Houve grandes batalhas em
Trohanadalmakus entre os minunianos e as formigas e milhares de nossos guerreiros
foram comidos vivos. E embora matássemos bilhões delas, suas rainhas podiam
reproduzir-se com rapidez ainda maior do que matávamos as operárias assexuadas que
nos atacavam, juntamente com os soldados. Finalmente, voltamos a atenção para as
panelas. Nesse caso, a carnificina foi terrível, mas conseguimos matar-lhes as rainhas e
desde então nenhuma formiga entrou em nossos domos. Vivem em volta de nós, mas
nos temem. Apesar disso, não nos arriscamos a atraí-las novamente deixando os mortos
no interior dos domos.
— Então você acredita que este corredor conduz aos aposentos de algum grande
nobre? — perguntou Tarzan.
— Acredito que conduzia, outrora. As idades acarretam mudanças. A saída pode
estar murada agora. A câmara aonde conduz pode ter hospedado um filho de rei quando
estes ossos eram jovens. Hoje, talvez seja um quartel, ou um estábulo de diadetes. Mais
ou menos tudo que sabemos com certeza — concluiu Komodoflorensal — é que não
foi usado durante longo tempo e, com toda probabilidade, por conseguinte, é
desconhecido dos modernos veltopismakusianos.
À frente da câmara da morte, o túnel caía rapidamente para níveis mais baixos,
entrando, finalmente, numa terceira câmara, maior do que as anteriores. Sobre o chão
viram os corpos de numerosos homens.
— Estes não estavam acorrentados às paredes — observou Tarzan.
— Não, morreram lutando, como se pode ver pelas espadas nuas e pela posição dos
ossos.
No momento em que os três passaram para olhar em volta da câmara, chegou-lhes
ao ouvido o som de uma voz humana.
Capítulo 19
Komodoflorensal não seguiu o gato que se retirara para a extremidade mais distante
do poço. Saltou imediatamente em ajuda a Tarzan e, juntos, mantiveram a distância o
primeiro animal enquanto recuavam juntos para o portão, onde se encontrava o homem
da câmara contígua, pronto para recebê-los na segurança de seu próprio apartamento.
Os dois gatos atacaram e, em seguida, retiraram-se, saltando para frente e para trás
com grande rapidez, pois haviam sentido o gosto do aço afiado com o qual os humanos
se defendiam. Os dois homens estavam quase no portão e, em outro instante, poderiam
saltar para o outro lado. Os gatos atacaram novamente e, mais uma vez, foram expulsos
para a extremidade oposta do buraco. O homem na câmara vizinha abriu o portão.
— Rápido! — gritou e, no mesmo instante, duas figuras saíram velozmente pela
boca da calha e, ferozmente engalfinhadas rolaram pelo buraco do assoalho diretamente
no caminho dos carnívoros atacantes.
Capítulo 20
Vendo que Talaskar e Janzara estavam expostas ao ataque selvagem das esfaimadas
feras, Tarzan e Komodoflorensal saltaram sem demora na direção das duas moças. Da
mesma forma que ocorrera quando Komodoflorensal caíra inesperadamente no poço,
os gatos ficaram surpresos com o súbito aparecimento dos dois novos seres humanos e,
no primeiro instante, saltaram novamente para a extremidade mais distante da toca.
Janzara perdera a adaga ao deslizarem as duas pela calha. Talaskar viu-a naquele
instante ao lado. Soltando a Princesa, agarrou a arma e pôs-se de pé com um salto.
Tarzan e Komodoflorensal já estavam a seu lado e os gatos voltavam ao ataque.
Janzara ergueu-se devagar, meio estonteada. Olhou em volta, o pavor desfigurando-
lhe a maravilhosa beleza. Neste momento, o homem da câmara vizinha reconheceu-a.
— Janzara! — exclamou. — Minha Princesa, espere! — e agarrando o banco sobre
o qual se sentara, a única coisa na câmara que podia ser convertida numa arma, levantou-
o alto nos ares e saltou no aposento onde os quatro enfrentavam as feras que, naquele
momento, estavam absolutamente enfurecidos.
Ambos os animais, sangrando por numerosos ferimentos, estavam enlouquecidos
de dor, raiva e fome. Rugindo e rosnando, lançaram-se contra as espadas dos dois
homens, que, com as moças às costas, para onde as haviam empurrado, recuavam
devagar para o portão. O homem do banco juntou-se nesse momento a Tarzan e
Komodoflorensal, e os três repeliram os ataques dos carnívoros furiosos.
O banco mostrou-se arma de defesa tão boa como as espadas e, juntos, os cinco
recuaram aos poucos até que, com total subitaneidade e sem o menor aviso, os dois
gatos saltaram rapidamente para os lados e correram por trás do grupo, como se
percebessem que as mulheres seriam presas mais fáceis. Um deles quase chegou a
abocanhar Janzara, não fosse o homem do banco, por todas as aparências imbuído de
uma fúria demoníaca, que saltou sobre a fera com a estranha arma e bateu-lhe com tanta
raiva que ela foi forçada a abandonar a Princesa.
Mesmo assim o homem não deixou de persegui-lo e, brandindo o banco, acuou-o e
ao outro animal com tais gritos apavorantes e prodigiosos golpes que, para fugirem
dele, ambos os gatos entraram na câmara que o homem ocupara. E antes que os animais
pudessem voltar à carga, ele, com o banco, empurrou com estrondo o portão e fechou-o
pelo outro lado. Em seguida, voltou-se e encarou-os.
— Vosso escravo! — respondeu o nobre, caindo sobre um joelho e inclinando-se
muito para trás, com os braços estendidos.
— Você me salvou a vida, Zoanthrohago — disse Janzara — depois de todas as
indignidades que lancei sobre você! De que modo posso recompensá-lo?
— Eu a amo, Princesa, como sabe há muito tempo — respondeu o homem. — Mas
agora é tarde demais, pois amanhã morrerei por ordem do Rei. Elkomoelhago falou e,
mesmo que você seja filha dele, não hesito em dizer que sua própria ignorância impede-
lhe de reformar uma decisão, uma vez tenha sido tomada.
— Eu sei — disse Janzara. — Ele é meu pai, mas não o amo. Ele matou minha mãe
num acesso injustificado de ciúme. Ele é um imbecil, o imbecil dos imbecis.
Subitamente, voltou-se para os outros.
— Estes escravos gostariam de fugir, Zoanthrohago — exclamou ela. — Com
minha ajuda, poderiam fazê-lo. Em companhia deles, poderíamos fugir também, e
encontrar asilo na terra deles.
— Se um deles tiver poder suficiente em sua cidade nativa — respondeu
Zoanthrohago.
— Este — disse Tarzan, vendo uma milagrosa oportunidade de liberdade — é o
filho de Adendrohahkis, Rei de Trohanadalmakus — o primogênito e Zertolosto.
Janzara olhou para Tarzan durante um momento depois de ter ele terminado de
falar.
— Eu fui má, Zuanthrol — disse. — Mas pensei que o amava e, sendo filha do Rei,
raramente me negaram o que eu queria. — E, para Talaskar: — Leve seu homem,
minha filha, e seja feliz com ele. — E empurrou Talaskar suavemente na direção do
homem-macaco. Talaskar, porém, recuou.
— Você está enganada, Janzara — disse. — Eu não amo Zuanthrol, nem ele me
ama.
Komodoflorensal olhou rapidamente para Tarzan como se esperasse que ele negasse
a declaração de Talaskar. O homem-macaco, porém, inclinou a cabeça afirmativamente.
— Você quer dizer — perguntou Komodoflorensal — que não ama Talaskar? — E
olhou no fundo dos olhos do amigo.
— Pelo contrário, amo-a muito — respondeu —, mas não da maneira como
pensou, ou devo dizer, temeu? Amo-a porque ela é uma boa moça, uma amiga leal e
bondosa, e também porque ela estava em dificuldades e precisava de amor e proteção
que somente você e eu podíamos dar-lhe. Mas como o homem ama sua companheira
não a amo, pois tenho uma companheira em meu país além dos espinheiros.
Komodoflorensal nada disse, mas pensou muito. Refletiu no que significaria voltar
para sua própria cidade onde era o Zertolosto e onde, de acordo com costume velho de
idades, deveria casar-se com uma princesa de outra cidade. Mas ele não queria uma
princesa — queria Talaskar, a pequena escrava de Veltopismakus, que mal conhecera a
mãe e, com toda probabilidade, nunca ouvira falar do pai, se é que a mãe o conhecia.
Queria Talaskar, mas podia tê-la em Trohanadalmakus apenas como escrava. O
amor que sentia por ela era profundo e, por isso, não insultaria pensando em tal
possibilidade. Se não a pudesse fazer princesa, não a teria absolutamente e, por isso,
Komodoflorensal, o filho de Adendrohahkis, sentiu-se triste.
Mas não dispunha em absoluto de muito tempo para pensar em mágoas, pois os
demais já planejavam as melhores maneiras de escapar.
— Os tratadores descem para alimentar os gatos deste lado — disse Zoanthrohago,
indicando uma pequena porta na parede do poço em frente da câmara onde fora
encarcerado.
— Indubitavelmente, não está fechada — disse Janzara —, pois um prisioneiro não
a poderia alcançar sem passar pela gaiola onde os gatos eram conservados.
— Veremos — disse Tarzan, e dirigiu-se para a porta.
Um momento bastou para abri-la, revelando um estreito corredor mais além. Um
depois do outro os cinco rastejaram pela pequena abertura e, seguindo o corredor,
subiram um aclive, iluminando o caminho com velas tiradas do interior do covil dos
carnívoros. Na parte superior, uma porta abria-se para um largo corredor, a curta
distância da qual um guerreiro montava guarda diante de uma porta.
Janzara olhou pela pequena fresta aberta por Tarzan, viu o corredor e o homem.
— Ótimo! — disse. — É o meu próprio corredor e o guerreiro está de guarda em
frente à minha porta. Conheço-o bem. Graças a mim deixou de pagar impostos nas
últimas trinta luas. Ele morreria por mim. Venha! Nada temos a temer! — E pisando
sem medo no corredor, aproximou-se da sentinela, seguida de perto pelos demais.
Até que a reconhecesse, havia o perigo de que o indivíduo soltasse o alarme, mas, no
momento em que a viu, transformou-se em cera nas suas mãos.
— Você é cego — disse-lhe ela.
— Se a Princesa Janzara assim quiser — respondeu ele.
Ela lhe disse o que queria — cinco diadetes e alguns pesados capotes de guerreiros.
Ele observou os que a acompanhavam e, por certo, reconheceu Zoanthrohago e
desconfiou de quem eram os dois outros.
— Eu não apenas serei um cego pela minha Princesa — disse — mas amanhã
morrerei por ela.
— Traga então seis diadetes — disse a Princesa. Em seguida, voltou-se para
Komodoflorensal.
— Você é o Príncipe Real de Trohanadalmakus? — perguntou.
— Sou.
— Se nós lhe mostrarmos o caminho para a liberdade, não nos escravizará?
— Eu os levarei à cidade como meus próprios escravos e os libertarei — disse ele.
— Isto é algo raramente feito, se é que já o foi — disse ela, pensativa. — Não na
memória da pessoa viva em Veltopismakus. Fico na dúvida se seu pai o permitirá.
— O fato não é sem precedentes — respondeu Komodoflorensal.
— Foi feito, embora de raro em raro, mas foi feito. Penso que podem contar com
uma recepção cordial na corte de Adendrohahkis, onde o saber de Zoanthrohago não
deixará de ser apreciado e recompensado.
Passou-se longo tempo antes que o guerreiro voltasse com os diadetes. Tinha o
rosto coberto de suor e sangue nas mãos.
— Tive de lutar por eles — disse — e teremos de lutar para usá-los, se não nos
apressarmos. Aqui, Príncipe, trouxe-lhe armas. — * E entregou uma espada e uma
adaga a Zoanthrohago.
Montaram rapidamente. Era a primeira experiência de Tarzan com as musculosas,
ativas e pequeninas montarias dos minunianos. Mas descobriu que a sela era bem
concedida e que o diadete se deixava controlar facilmente.
— Eles me seguirão a partir do Corredor do Rei — explicou Oratharc, o guerreiro
que fora buscar os diadetes. — Seria melhor, neste caso, sair por um dos outros.
— Trohanadalmakus fica a leste de Veltopismakus — disse Zoanthrohago — e se
partirmos pelo Corredor das Mulheres com dois escravos de Trohanadalmakus,
suporão que fomos naquela direção. Mas, se partirmos por outro corredor, não terão
certeza, e se perderem até mesmo pouco tempo para dar início à perseguição, dar-nos-ão
outro tanto de vantagem. Se formos diretamente para Trohanadalmakus seremos quase
sem dúvida alcançados, pois os diadetes mais velozes serão usados na perseguição. A
nossa única esperança reside em enganá-los sobre nossa rota ou destino e, para
conseguir isso, acho que devemos partir ou pelo Corredor dos Guerreiros ou pelo dos
Escravos, cruzar as colinas ao norte da cidade, fazer um grande círculo pelo norte e
leste, não voltando ao sul até estarmos muito além de Trohanadalmakus. Desta maneira,
poderemos aproximar-nos da cidade vindo do leste, enquanto nossos perseguidores
estarão patrulhando o território a oeste de Trohanadalmakus até Veltopismakus.
— Vamos pelo Corredor dos Guerreiros, então — sugeriu Janzara.
— As árvores e arbustos nos ocultarão até passarmos para o norte da cidade —
disse Komodoflorensal.
— Precisamos partir imediatamente — insistiu Oratharc.
— Vá, então, à frente, com a Princesa — disse Zoanthrohago — pois há
possibilidade de que a guarda à entrada a deixe passar com um grupo. Nós nos
ocultaremos bem dentro de nossos capotes de guerreiro. Vamos, tome a frente!
Com Janzara e Oratharc à frente e os outros seguindo de perto, trotaram pelo
corredor circular em direção ao Corredor dos Guerreiros. Somente quando entraram
neste último, ouviu-se o primeiro sinal de perseguição. Ainda assim, embora escutassem
vozes de homens à retaguarda, hesitaram em irromper num galope mais vivo para não
despertar as suspeitas dos guerreiros da guarda, por quem deveriam passar perto da
boca do corredor.
Nunca parecera o Corredor dos Guerreiros tão longo a qualquer um dos
veltopismakusianos do grupo como naquela noite; nunca tiveram maior vontade de
disparar com os diadetes como naquele instante; mas mantiveram as montarias em trote
regular que jamais teria sugerido ao mais desconfiado que seis pessoas procuravam
fugir, a maioria da morte.
Haviam chegado quase à porta quando perceberam que os perseguidores haviam
entrado no Corredor dos Guerreiros e que avançavam rapidamente.
Janzara e Oratharc recolheram as rédeas junto à sentinela estacionada à boca do
corredor, que se adiantara para impedir-lhes a passagem.
— A Princesa Janzara! — anunciou Oratharc. — Afaste-se e dê passagem à Princesa
Janzara!
A Princesa tirou o capuz do capote de guerreiro, revelando um rosto bem conhecido
de todos os guerreiros do Domo Real — e muito temido. O soldado hesitou.
— Afaste-se, homem! — Exclamou a Princesa. — Ou eu o derrubarei.
Um grande alarido prorrompeu no corredor atrás. Guerreiros montados em
diadetes a galope saltaram no corredor em direção a eles. Os guerreiros gritavam alguma
coisa, cujo sentido era ocultado pelo ruído. A sentinela, porém, ficou desconfiado.
— Espere até que eu chame o Novand da guarda, Princesa — gritou ele. — Há
alguma coisa errada e eu não ouso deixar ninguém passar sem ordens. Mas, espere!
Aqui está ele. — O grupo voltou-se na sela e viu emergindo da porta o Novand da
guarda seguido por certo número de guerreiros.
— A galope! — gritou Janzara e esporeou o diadete diretamente contra a única
sentinela que lhes barrava o caminho.
Os demais ergueram rapidamente as montarias e seguiram-no. A sentinela caiu,
atacando em vão com a espada as pernas e ventres dos animais que voavam à frente. O
Novand e seus homens saíram correndo da casa da guarda exatamente a tempo de colidir
com os perseguidores, que imediatamente supuseram ser membros atrasados do grupo
de fugitivos. Os curtos minutos em que lutaram, antes que explicações pudessem ser
oferecidas e compreendidas, deram aos fugitivos tempo para costear as árvores para o
lado leste da cidade e, virando para o norte, tomar a direção das colinas, apenas
indistintamente percebidas à luz de uma noite clara, mas sem lua.
Oratharc, que disse conhecer perfeitamente as trilhas das colinas, ia na frente,
seguindo-o os demais tão próximos quanto possível, fechando Komodoflorensal e
Tarzan a retaguarda. Continuaram, assim, em silêncio durante a noite, através de
tortuosas e alcantiladas trilhas montanhosas, pulando aqui e ali de pedra a pedra, onde,
na própria trilha, não conseguiam encontrar apoio; deslizando para úmidas ravinas,
subindo através de vegetação espessa e árvores ao longo de picadas que pareciam túneis
e que lhes acompanhavam o colear, ou galgavam os paredões de estreitas cordilheiras ou
largos platôs. Durante toda a noite, nenhum som ouviram de perseguição.
Chegou por fim a manhã e, com ela, do cume de uma altaneira cordilheira, viram
um panorama de uma larga planície, que se estendia até o norte, colinas distantes,
florestas e regatos. Resolveram, então, descer para uma das numerosas clareiras,
lembrando um parque, que viam aninhada nas colinas embaixo, para dar repouso às
montarias e deixá-las alimentarem-se, pois fora duro para elas o trabalho da noite.
Sabiam que, nas colinas, podiam esconder-se quase para sempre, tão selvagens e tão
pouco viajadas eram. Armaram acampamento, porém, num pequeno vale em forma de
taça, cercado por grandes árvores, dessedentando e alimentando as montarias com um
senso de segurança maior do que haviam sentido desde que deixaram Veltopismakus.
Oratharc saiu a pé e abateu certo número de codornas. Tarzan matou a lança dois
peixes no regato. Prepararam-nos e comeram-nos e, revezando-se os homens de
sentinela, dormiram até a tarde, pois nenhum deles dormira na noite anterior.
Recomeçando a fuga em meados da tarde, estavam já bem adentrados na planície
quando a noite os alcançou. Komodoflorensal e Zoanthrohago cavalgavam bem
distantes pelos flancos, procurando um local apropriado para o acampamento. Foi o
segundo quem o encontrou e, quando se reuniram em torno dele, Tarzan nada viu, à luz
minguante do dia, que fizesse o local parecer, em qualquer coisa, um acampamento
melhor do que qualquer outro na planície: um pequeno grupo de árvores, mas haviam
passado por muitos deles, e coisa alguma a respeito deste parecia oferecer maior
segurança do que qualquer outro. Para dizer a verdade, a Tarzan pareceu qualquer coisa,
menos um local desejável de acampamento. Não havia água, pouco era o abrigo contra o
vento e nenhum contra o inimigo. Mas talvez penetrassem entre as árvores. Isto seria
melhor. Olhou com amor para os altaneiros galhos. Como pareciam enormes essas
árvores! Conhecia-as pelo que eram, árvores de tamanho médio, embora, para ele agora,
elas erguessem as copas como se fossem verdadeiros gigantes.
— Eu entrarei primeiro — ouviu Komodoflorensal dizer e voltou-se para verificar
ao que ele se referia.
Os outros três homens estavam de pé à boca de um grande buraco, para dentro do
qual olhavam. Tarzan sabia que a abertura era entrada de um buraco de texugo, o
membro africano da família das marmotas, e perguntou-se por que algum dos
companheiros queria entrar ali. Aproximou-se e ficou ao lado dos outros. Neste
momento, viu Komodoflorensal rastejar para a abertura com a espada desembainhada na
mão.
— Por que ele está fazendo isso? — perguntou a Zoanthrohago.
— Para expulsar, ou matar o canbom, se ele estiver lá — respondeu o Príncipe,
dando ao texugo o nome minuniano.
— E por quê? — perguntou Tarzan. — Não, certamente, para comer-lhe a carne!
— Não, mas queremos a casa dele para passar a noite — respondeu Zoanthrohago.
— Esqueci-me de que você não é minuniano. Passaremos a noite nas câmaras
subterrâneas do canbom, a salvo dos ataques do gato e do leão. Seria melhor que já
estivéssemos lá agora. Esta é uma má hora da noite para minunianos estarem ao largo na
planície ou na floresta, pois é a hora em que o leão caça.
Minutos depois Komodoflorensal emergiu do buraco.
— O canbom não está aqui — disse. — O buraco estava vazio. Encontrei apenas
uma serpente, que matei. Entre, Oratharc, e Janzara e Talaskar o seguirão. Vocês têm
velas?
Tinham e, um a um desapareceram pela boca do buraco até que Tarzan, que pedira
para ficar por último, permaneceu sozinho na clareira, olhando para a boca do buraco
do texugo, com um sorriso nos lábios. Parecia-lhe ridículo que Tarzan dos Macacos
jamais pensasse em esconder-se de Numa num ninho de texugo ou, pior ainda, fugir do
pequeno Skree, o gato-do-mato. E enquanto permanecia ali, sorrindo, um vulto
despontou sombriamente entre as árvores. Os diadetes, pastando nas proximidades,
soltos, fungaram e afastaram-se. Ao virar-se, Tarzan contemplou o maior leão que vira
até aquele momento — um leão que se alteava a duas alturas acima da sua.
Como era imenso e quão apavorante Numa parecia para uma pessoa do tamanho dos
minunianos.
O leão agachou-se com a cauda estendida, a ponta da qual movia-se muito
lentamente. O homem-macaco, porém, não se deixou enganar. Imaginou o que estava a
caminho e, no exato momento em que o grande gato saltou, voltou-se e mergulhou de
cabeça no buraco do texugo. Por trás dele chocalhou a terra solta empurrada para a boca
do buraco por Numa, ao aterrar sobre o ponto onde Tarzan estivera.
Capítulo 21
Durante três dias viajaram em direção ao leste. Finalmente, no quarto, viraram para
o sul. Uma grande floresta despontava no longínquo horizonte sul, estendendo-se
também por grande distância em direção ao leste. Ao sul, ficava Trohanadalmakus, a uns
bons dois dias de jornada dos cansados diadetes. Tarzan freqüentemente se perguntava
que descanso obtinham as pequenas criaturas. À noite, eram soltas para pastar. Mas o
seu conhecimento dos hábitos dos carnívoros assegurava-lhe que os pequenos antílopes
deviam passar a maior parte da noite em apavorada vigília ou em fuga. Apesar disso,
todas as manhãs as montarias estavam de volta ao acampamento, esperando as ordens
dos seus senhores. O motivo de não terem escapado para sempre deve-se, decerto, a
dois fatos. O primeiro, que haviam sido criados durante idades incontáveis nos domos
minunianos — não conheciam outra vida que em companhia de seus senhores — e,
segundo, a extrema bondade e afeição que os minunianos dedicam às maravilhosas
alimárias, atitudes essas que conquistaram o amor e a confiança dos pequenos animais a
tal ponto que o diadete só se sente contente quando em companhia do homem.
Na tarde do quarto dia da fuga, Talaskar subitamente chamou-lhes a atenção para
uma pequena onda de poeira muito à retaguarda do grupo. Durante algum tempo os seis
olharam-na atentamente, à medida que ela aumentava de tamanho e se aproximava.
— Deve ser a longamente esperada perseguição — disse Zoanthrohago.
— Ou alguém de meu povo, vindo de Trohanadalmakus — sugeriu
Komodoflorensal.
— Quem quer que seja, são muito superiores em número — disse Janzara — e
penso que devemos procurar abrigo até lhes descobrirmos a identidade.
— Podemos chegar à floresta antes que nos alcancem — disse Oratharc — e na
floresta poderemos enganá-los, se for preciso.
— Tenho medo da floresta — disse Janzara.
— Não temos alternativa — respondeu Zoanthrohago — mas, mesmo agora,
duvido de que a possamos alcançar antes deles. Vamos! Precisamos andar depressa.
Nunca, anteriormente, Tarzan dos Macacos cobrira distância com tal rapidez no
lombo de um animal. Os diadetes voavam pelo ar em grande saltos. Por trás deles, o
núcleo da nuvem de pó tomou a forma de uma dúzia de guerreiros montados, contra os
quais as suas quatro lâminas teriam sido inúteis. A única esperança, portanto, consistia
em alcançar a floresta à frente dos perseguidores e, num momento, parecia que podiam
fazê-lo e, no seguinte, que seria impossível.
A floresta, até então distante, parecia correr em direção a eles, enquanto Tarzan
observava os diminutos chifres da graciosa montaria. Atrás, o inimigo ganhava terreno.
Eram veltopismakusianos — estavam bastante próximos para que fossem distinguidas
as insígnias em seus capacetes — e haviam reconhecido os perseguidos, pois gritaram
em voz alta que parassem, chamando vários deles pelos nomes.
Um dos perseguidores galopou à frente dos demais. Aproximou-se por trás de
Zoanthrohago que corria na retaguarda ao lado de Tarzan. A meio caminho, à frente de
Zoanthrohago, estava Janzara. O indivíduo gritou-lhe em voz alta.
— Princesa! — bradou. — O perdão do Rei para todos vós se nos devolver os
escravos. Renda-se e tudo será esquecido.
Tarzan dos Macacos ouviu e perguntou-se o que fariam os ves-topismakusianos.
Deve ter sido grande a tentação. Não tivesse sido por Talaskar, ele os teria aconselhado a
voltar para os amigos. Mas não admitia que a escrava fosse sacrificada. Puxou a espada
e diminuiu um pouco a marcha postando-se ao lado de Zoanthrohago, embora o outro
jamais lhe desconfiasse das intenções.
— Rendam-se e tudo será perdoado! — gritou novamente o perseguidor.
— Nunca! — gritou Zoanthrohago.
— Nunca! — ecoou Janzara.
Então, agüentem as conseqüências — gritou o mensageiro.
E continuaram a desabalada carreira, perseguidores e perseguidos, em direção à
sombria floresta. Na franja da floresta, olhos selvagens observavam a furiosa corrida e
línguas vermelhas passavam prelibando, sobre lábios esfomeados.
Tarzan ficara satisfeito ao ouvir a resposta dada por Zoanthrohago e Janzara, que
considerava companheiros agradáveis e bons camaradas. A atitude de Janzara mudara
por completo desde que se reunira a eles na tentativa de fuga. Não era mais a filha
estragada de um déspota, mas uma mulher que buscava a felicidade no novo amor que
encontrara, ou o velho amor que acabara de reencontrar, pois dizia com freqüência a
Zoanthrohago que sabia agora que sempre o amara. E este novo fator na sua vida
enchia-a de mais consideração e amor pelos demais. Ela parecia estar tentando
compensar Talaskar pela crueldade do ataque, quando a conhecera. A paixonite insana
por Tarzan reconhecia à sua verdadeira luz — porque fora recusada, queria-o, e o teria
aceito como príncipe contra a vontade do pai, a quem odiava.
Komodoflorensal e Talaskar cavalgavam juntos, mas o trohanadalmakusiano não
disse palavra de amor à pequena escrava. Uma grande resolução cristalizava-se em sua
mente, embora não houvesse tomado ainda forma definitiva. E Talaskar, parecendo feliz
em estar apenas próxima, corria cheia de felicidade nos primeiros dias da única liberdade
que jamais conhecera. Mas, naquele instante, tudo estava esquecido, salvo o perigo
imediato de captura e as concomitantes alternativas de morte e escravidão.
Esporearam as esforçadas montarias. A floresta estava tão próxima! Ah, se apenas
pudessem alcançá-la! Ali um guerreiro poderia valer tanto quanto três e as desvantagens
contra eles seriam reduzidas, pois na floresta os doze não podiam engajá-los
simultaneamente em combate e, mediante manobras cuidadosas, poderiam, sem dúvida,
separá-los.
Iam ter êxito! Um grande grito subiu aos lábios de Oratharc no momento em que
seu diadete saltou para a sombra das primeiras árvores e foi repetido pelos demais
durante um curto instante e, em seguida, morreu-lhes nos lábios ao verem uma mão
gigantesca baixar-se e arrancar Oratharc da sela. Tentaram parar e virar as montarias,
mas era tarde demais. Já estavam na floresta, cercados de todos os lados por uma horda
de medonhos zertalacolols. Um a um foram arrancados dos diadetes, enquanto os
perseguidores, que devem ter visto o que ocorria na floresta, davam a volta e galopavam
para longe.
Talaskar, contorcendo-se nas mãos de uma alalu, voltou-se para Komodoflorensal.
— Adeus — gritou. — Isto é o fim. Mas posso morrer a seu lado e, por isso, estou
mais feliz em morrer do que estive em viver até que você veio a Veltopismakus.
— Adeus, Talaskar! — respondeu ele. — Vivendo, não ousava dizer-lhe, mas,
morrendo, posso proclamar meu amor. Diga-me que me ama.
— Com todo meu coração, Komodoflorensal! — Pareciam ter esquecido que
existiam outras pessoas, salvo elas mesmas. Na morte, estavam sozinhos com seu amor.
Tarzan descobriu que estava nas mãos de um macho e começou a perguntar-se, no
próprio momento em que enfrentava a morte certa, como é que este grande bando de
machos e fêmeas alalus poderia estar caçando em conjunto. Notou, então, as armas dos
machos. Não eram as grosseiras clavas e fundas que haviam usado outrora, mas longas
e elegantes azagaias, arcos e flechas.
Na criatura que o erguera até a altura do rosto e o examinava atentamente, Tarzan
percebeu uma expressão de reconhecimento e espanto no semblante bestial e, ele, por seu
lado, reconheceu o captor. Era o filho da Primeira Mulher. Tarzan não esperou para
descobrir qual o estado de espírito do velho conhecido. Possivelmente a relação estava
alterada agora. Recordou-se da devoção canina da criatura quando a vira pela última vez
e experimentou-a imediatamente.
— Ponha-me no chão! — sinalizou peremptoriamente. — E diga a sua gente para
pôr no chão todos meus amigos. Não lhes faça mal!
Sem demora, a grande criatura colocou Tarzan suavemente no chão e fez imediatos
sinais aos companheiros para que fizessem o mesmo com os cativos. Os homens
obedeceram imediatamente e todas as mulheres, com exceção de uma. Ela hesitou. O
filho da Primeira Mulher saltou contra ela com a azagaia erguida como um chicote. A
fêmea acovardou-se e pôs Talaskar no chão.
Muito orgulhoso, o filho da Primeira Mulher explicou a Tarzan, tanto quanto
podia, a grande mudança pela qual haviam passado os alalus desde que o homem-
macaco dera armas a um deles e o filho da Primeira Mulher descobrira o que o uso
apropriado delas significaria para os machos da raça. Naquele momento, todos os
machos tinham uma mulher que cozinhava para eles — pelo menos uma e, alguns deles
— os mais fortes — mais de uma.
Para divertir Tarzan e mostrar-lhe que grandes progressos a civilização fizera na
terra dos zertolocolols, o filho da Primeira Mulher agarrou uma fêmea pelo cabelo e,
puxando-a, bateu-lhe fortemente na cabeça e rosto com o punho fechado. A mulher caiu
de joelhos e acariciou-lhe as pernas, olhando ansiosamente para ele, com o rosto
brilhante de amor e admiração.
Naquela noite, os seis dormiram cercados pelos grandes zertalocolols e, no dia
seguinte, partiram pela planície em direção a Trohanadalmaskus, onde Tarzan resolvera
permanecer até recuperar a estatura normal, ocasião em que faria um esforço
determinado para abrir caminho pela floresta de espinhos até seu próprio território.
Os zertalocolols acompanharam-nos durante uma curta distância pela planície e
homens e mulheres tentaram em sua rude e selvagem maneira mostrar a Tarzan a
gratidão sentida pela mudança que operava entre eles e pela nova felicidade que lhes
tinha dado.
Dois dias depois, os seis fugitivos aproximaram-se dos domos de
Trohanadalmakus. Haviam sido vistos pela sentinela ainda muito longe e um
destacamento de guerreiros galopou à frente para recebê-los, pois é sempre prudente
descobrir a natureza dos negócios de um visitante em Minuni antes que ele se aproxime
muito.
Ao descobrirem que Komodoflorensal e Tarzan haviam voltado, os guerreiros
gritaram de alegria e certo número deles galopou à frente para espalhar a notícia na
cidade.
Os fugitivos foram conduzidos imediatamente à sala do trono de Adendrohahkis. O
grande Rei tomou o filho nos braços e chorou, tão grande era a felicidade de vê-lo de
volta são e salvo. Tampouco esqueceu Tarzan, embora passasse algum tempo antes que
ele e outros trohanadalmakusianos pudessem acostumar-se ao fato de que este homem,
não mais alto do que eles, era o grande gigante que ali morara poucas luas antes.
Adendrohahkis chamou Tarzan ao pé do trono e ali, diante dos nobres e guerreiros
de Trohanadalmakus, elevou-o à categoria de Zertol, ou príncipe, deu-lhe diadetes e
riquezas e designou-lhe aposentos de acordo com sua posição, suplicando-lhe que
permanecesse para sempre entre eles.
A Janzara, Zoanthrohago e Oratharc deu a liberdade e permissão para permanecerem
em Trohanadalmakus. Por fim, Komodoflorensal puxou Talaskar para os pés do
trono.
— E agora para mim, peço uma mercê, Adendrohahkis — disse. — Como
Zertolosto, sou forçado pelos costumes a casar-me com uma princesa prisioneira,
tomada a outra cidade. Mas, nesta jovem escrava, encontrei aquela a quem amo. Permita-
me renunciar aos meus direitos ao trono e tê-la, em vez disso.
Talaskar levantou a mão, como se fosse protestar. Komodoflorensal, porém, não
deixou que ela falasse. Adendrohahkis levantou-se, desceu os degraus até onde se
encontrava Talaskar e, tomando-lhe a mão, levou-a para um lugar ao lado do trono.
— Você é obrigado somente pelos costumes, Komodoflorensal — disse — a casar-
se com uma princesa. Mas o costume não é lei. Um trohanadalmakusiano pode casar-se
com quem quiser.
— E mesmo que ele fosse obrigado pela lei — disse Talaskar — a casar-se com
uma princesa, poderia ainda desposar-me, pois sou filha de Talaskhago, Rei de
Mandalamakus. Minha mãe foi capturada pelos veltopismakusianos algumas luas antes
do meu nascimento, que ocorreu na mesma câmara em que Komodoflorensal me
encontrou. Ela me ensinou que eu devia suicidar-me antes de casar com outra pessoa
que não um príncipe. Mas eu lhe teria esquecido os ensinamentos se Komodoflorensal
tivesse sido filho de um escravo. Que fosse filho de rei foi coisa com que não sonhei até
que deixamos Veltopismakus e eu já lhe tinha dado meu coração muito antes, embora ele
não soubesse disto.
Passaram-se semanas e, apesar disso, nenhuma mudança ocorreu em Tarzan dos
Macacos. Sentia-se feliz em companhia dos minunianos, mas, ainda assim, tinha
saudades de sua própria gente e da companheira, que deviam estar sofrendo por sua
causa. Assim, resolveu partir como estava, passar pela floresta de espinheiros e dirigir-
se para o lar, confiando em que pudesse, por acaso, escapar dos incontáveis perigos que
lhe infestariam o caminho e, talvez, voltar ao tamanho normal durante a longa viagem.
Os amigos tentaram dissuadi-lo, mas ele estava resolvido e, por fim, não admitindo
mais demora, partiu em direção ao suleste onde pensava ficar o ponto por onde entrara
na terra de Minuni. Um kamak, um grupo de mil guerreiros montados, acompanhou-o
até a grande floresta, onde, após uma demora de alguns dias, o filho da Primeira
Mulher encontrou-o. Os minunianos despediram-se e, quando os viu cavalgar para
longe em suas graciosas montarias, subiu-lhe à garganta uma coisa que somente ocorria
nas raras vezes na vida em que Tarzan dos Macacos sabia o que era saudade.
O filho da Primeira Mulher e seu selvagem bando escoltaram-no até a borda da
floresta de espinhos. Mais adiante não podiam ir. Um momento depois, viram-no
desaparecer entre os espinhos com um gesto de adeus. Durante dois dias, Tarzan, não
mais alto do que um minuniano, abriu caminho pelo espinheiro. Encontrou pequenos
animais, na ocasião bastante grandes para representarem perigo, mas coisa alguma que
não pudesse enfrentar. À noite dormia nos ninhos de grandes animais subterrâneos.
Aves e ovos eram seu alimento.
Na segunda noite, acordou sentindo uma náusea percorrer-lhe o corpo. Assaltou-o
uma premonição de perigo. Era escuro como uma cova o buraco que escolhera para
passar a noite. Subitamente ocorreu-lhe o pensamento de que poderia estar prestes a
passar pela provação de recuperar a estatura normal. Deixar que isso acontecesse
enquanto jazia enterrado no pequeno buraco significaria a morte, pois seria esmagado,
estrangulado ou sufocado antes de recuperar os sentidos.
Já se sentia estonteado, como uma pessoa prestes a perder a consciência. Pôs-se de
joelhos com esforço e subiu, agarrando-se no solo, o aclive que conduzia à superfície.
Chegaria a ela a tempo? Tropeçou e, subitamente, uma lufada de ar fresco chegou-lhe às
narinas. Levantou-se cambaleando. Estava fora do buraco! Estava livre!
Atrás dele, ouviu um baixo rosnado. Agarrando a espada, mergulhou para frente
entre os espinheiros. Que distância percorreu e em que direção, não soube. Era ainda
escuro quando tropeçou e caiu sem sentidos no solo.
Capítulo 22
FIM