Panorama Pré-Modernismo Como Se Faz Um Monstro
Panorama Pré-Modernismo Como Se Faz Um Monstro
Panorama Pré-Modernismo Como Se Faz Um Monstro
Panorama
Os sertões
Euclides da Cunha
Como se faz um monstro
[...] E surgia na Bahia o anacoreta sombrio, cabelos crescidos até aos ombros, barba inculta e longa; face
escaveirada; olhar fulgurante; monstruoso, dentro de um hábito azul de brim americano; abordoado ao
clássico bastão, em que se apoia o passo tardo dos peregrinos...
É desconhecida a sua existência durante tão largo período. Um velho caboclo, preso em Canudos nos
últimos dias da campanha, disse-me algo a respeito, mas vagamente, sem precisar datas, sem pormenores
característicos. Conhecera-o nos sertões de Pernambuco, um ou dois anos depois da partida do Crato. Das
palavras desta testemunha, concluí que Antônio Maciel, ainda moço, já impressionava vivamente a
imaginação dos sertanejos. Aparecia por aqueles lugares sem destino fixo, errante. Nada referia sobre o
passado. Praticava em frases breves e raros monossílabos. Andava sem rumo certo, de um pouso para
outro, indiferente à vida e aos perigos, alimentando-se mal e ocasionalmente, dormindo ao relento à beira
dos caminhos, numa penitência demorada e rude...
Tornou-se logo alguma coisa de fantástico ou mal-assombrado para aquelas gentes simples. Ao abeirar-se
das rancharias dos tropeiros aquele velho singular, de pouco mais de trinta anos, fazia que cessassem os
improvisos e as violas festivas.
Era natural. Ele surdia – esquálido e macerado – dentro do hábito escorrido, sem relevos, mudo, como uma
sombra, das chapadas povoadas e duendes...
Passava, buscando outros lugares, deixando absortos os matutos supersticiosos.
Dominava-os, por fim, sem o querer.
No seio de uma sociedade primitiva que pelas qualidades étnicas e influxo das santas missões malévolas
compreendia melhor a vida pelo incompreendido dos milagres, o seu viver misterioso rodeou-o logo de
não vulgar prestígio, agravando-lhe, talvez, o temperamento delirante. A pouco e pouco todo o domínio
que, sem cálculo, derramava em torno, parece haver refluído sobre si mesmo. Todas as conjeturas ou
lendas que para logo o circundaram fizeram o ambiente propício ao germinar do próprio desvario. A sua
insânia estava, ali, exteriorizada. Espelhavam-na a admiração intensa e o respeito absoluto que o tornaram
em pouco tempo árbitro incondicional de todas as divergências ou brigas, conselheiro predileto em todas
as decisões. A multidão poupara-lhe o indagar torturante acerca do próprio estado emotivo, o esforço
dessas interrogativas angustiosas e dessa intuspecção delirante, entre os quais evolve a loucura nos
cérebros abalados. Remodelava-o à sua imagem. Criava-o. Ampliava-lhe, desmesuradamente, a vida,
lançando-lhe dentro os erros de dois mil anos.
Precisava de alguém que lhe traduzisse a idealização indefinida, e a guiasse nas trilhas misteriosas para os
céus...
O evangelizador surgiu, monstruoso, mas autômato.
Aquele dominador foi um títere. Agiu passivo, como uma sombra. Mas esta condensava o obscurantismo de
três raças. E cresceu tanto que se projetou na História...
CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 122-123.
Vocabulário
anacoreta: religioso que vive em retiro, na solidão.
barba inculta: barba sem cuidado, rude.
face escaveirada: face muito magra, macilenta.
hábito: vestimenta; túnica parecida com a usada por monges.
peregrino: que faz peregrinação; romeiro.
campanha: guerra, batalha; série de operações militares que visam à consecução de um objetivo definido, em
determinada época, numa mesma área geográfica.
praticar: expor ideias, dizer.
esquálido e macerado: magro e mortificado.
absorto: extasiado, enlevado, embevecido.
matuto: que vive no mato, na roça; caipira.
influxo: influência.
evolver: evoluir.
autômato: pessoa sem raciocínio e sem vontade própria, que se deixa dirigir por outrem.
Minibiografia
Euclides Rodrigues da Cunha (1866-1909) nasceu em Cantagalo, Rio de Janeiro, e morreu assassinado na
mesma cidade. Ainda jovem, ingressou na Escola Militar, de onde foi expulso por suas ideias republicanas.
Iniciou sua carreira como jornalista no jornal Província de São Paulo (atual O Estado de S. Paulo),
escrevendo artigos em que pregava a derrubada da Monarquia. Após a proclamação da República, foi
reincorporado ao Exército como tenente e depois nomeado engenheiro da Estrada de Ferro Central do
Brasil. Em 1896, abandonou o Exército novamente e voltou a escrever reportagens para o mesmo jornal,
cobrindo a rebelião de Canudos, a tempo de assistir aos últimos dias de combate e à queda do arraial.
Desses fatos, nasceu sua obra mais famosa: Os sertões.
Explorando o texto
3 Identifique e registre no caderno trechos que revelam que, nesse momento da narrativa, Antônio
Conselheiro não tinha consciência de ser um guia espiritual.
4 Registre no caderno as hipóteses levantadas pelo narrador para explicar o fascínio exercido por
Conselheiro sobre os sertanejos.
a) A aparência física do místico.
b) O determinismo biológico e a miséria do povo.
c) A necessidade de um guia messiânico, místico.
d) O imaginário popular.
e) A fluência verbal do mito.
5 Identifiquem um trecho do texto em que se justifica o apelido de Conselheiro, dado a Antônio Maciel.
6 O escritor Euclides da Cunha segue princípios dos movimentos realista e naturalista. Nos romances
dessas estéticas, predomina o Determinismo, segundo o qual o homem é influenciado pelas condições
geográficas, sociais, econômicas, assim como pela herança genética. Identifique no caderno uma passagem
do texto que ilustre essa influência.
Peregrinações e martírios
Assim se apresentou o Conselheiro, em 1876, na vila do Itapicuru de Cima. Já tinha grande renome.
Di-lo documento expressivo publicado aquele ano, na Capital do Império.(*)
“Apareceu no sertão do norte um indivíduo, que se diz chamar Antônio Conselheiro, e que exerce grande
influência no espírito das classes populares servindo-se de seu exterior misterioso e costumes ascéticos, com
que impõe à ignorância e à simplicidade. Deixou crescer a barba e cabelos, veste uma túnica de algodão e
alimenta-se tenuemente, sendo quase uma múmia. Acompanhado de duas professas, vive a rezar terços e
ladainhas e a pregar e a dar conselhos às multidões, que reúne, onde lhe permitem os párocos; e, movendo
sentimentos religiosos, vai arrebanhando o povo e guiando-o a seu gosto. Revela ser homem inteligente, mas
sem cultura.”
Estes dizeres, rigorosamente verídicos, de um anuário impresso centenares de léguas de distância, delatam
bem a fama que ele já granjeara.”
(*) O documento referido é a “Folhinha Laemmert”, de 1877.
CUNHA, Euclides da. Os sertões: campanha de Canudos. São Paulo: Abril Cultural, 1982. p. 124.
Vocabulário
ascético: contemplativo; devoto, místico.
tenuemente: pouco.
professa: seguidora de sua fé; relativo a freira ou padre.
granjear: conquistar, atrair.
Muitos estudiosos classificam Os sertões como um misto de ensaio e reportagem. O trecho contém
elementos que justificam essa classificação? Explique sua resposta.
Panorama
Os sertões: Canudos e Antônio Conselheiro
Os sertões é um ensaio/reportagem em que Euclides da Cunha narra os fatos que observou como repórter
de um jornal, pelo qual foi enviado para cobrir a Guerra de Canudos.
O autor dirige seu olhar para um aspecto da realidade brasileira do final do século XIX e do início do século
XX: o interior da Bahia e o sertão nordestino. Assim, revela e contrapõe, ainda no Pré-Modernismo, os
contrastes existentes entre essa região, a zona rural do interior paulista (de Monteiro Lobato) e o litoral
urbano carioca (de Lima Barreto).
A obra se divide em três partes. Nas duas primeiras, é descrita a relação entre o homem e o meio ambiente,
valendo-se das teorias científicas da época: Positivismo, Determinismo, Cientificismo. Na terceira parte,
Euclides da Cunha descreve a Guerra de Canudos e denuncia os massacres que as tropas do Exército
brasileiro impuseram aos sertanejos, liderados por Antônio Conselheiro.
Antônio Conselheiro
Antônio Vicente Mendes Maciel (1828-1897) foi um líder religioso brasileiro. Em 1859, começou a cruzar
os sertões nordestinos ganhando fama de milagreiro. Em 1893, passou a pregar o não pagamento de
impostos e acabou preso. Depois disso, estabeleceu-se no arraial de Canudos, na Bahia, onde organizou
uma comunidade na qual a posse de bens obedecia a princípios socialistas. Conselheiro se tornou um
problema para os governantes com boatos de que era a favor da restauração da Monarquia. Foi morto
enquanto fazia uma greve de fome, na frente de batalha.