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CRIMINOLOGIA

Sumário
1. CONCEITO E DEFINIÇÃO. ANÁLISE HISTÓRICA E PROBLEMÁTICA DA EXATA DEFINIÇÃO ..3
1.1 Direito Penal x Criminologia .................................................................................................3
1.2 Conceito Moderno (Luiz Flávio Gomes e Antônio García-Pablos de Molina) .............5
2. CARACTERÍSTICAS DA CRIMINOLOGIA........................................................................................5
3. ESCOLAS E TEORIAS DA CRIMINOLOGIA ....................................................................................6
3.1 Escola Clássica (séc. XVIII e XIX) ......................................................................................6
3.2 Escola Positivista ou Positivismo Criminológico ...............................................................8
3.3 Escola de Chicago (Teoria Ecológica)............................................................................... 19
3.4 Teoria da Anomia ................................................................................................................. 21
3.5 Teoria das Subculturas Criminais ....................................................................................... 24
3.6 Teoria da Associação Diferencial (Edwin Sutherland) ................................................... 25
3.7 Teoria do Labelling Approach, do Etiquetamento ou da Rotulação ............................ 28
3.8 Criminologia Crítica ou Teoria Radical (Matiz Macrossociológica) .............................. 34
4. EXPANSÃO DO DIREITO PENAL ............................................................................................... 39
4.1 Sociedade de Risco ............................................................................................................... 39
4.2 Teoria das Janelas Quebradas, Movimento Lei e Ordem e Tolerância Zero .............. 43
4.3 Velocidades do Direito Penal e o Direito Penal do Inimigo ......................................... 46
5. PREVENÇÃO DA INFRAÇÃO PENAL .......................................................................................... 53
6. MODELOS DE REAÇÃO AO CRIME ............................................................................................ 55
7. VITIMIZAÇÃO PRIMÁRIA, SECUNDÁRIA E TERCIÁRIA ............................................................. 56

2
1. CONCEITO E DEFINIÇÃO. ANÁLISE HISTÓRICA E
PROBLEMÁTICA DA EXATA DEFINIÇÃO

De antemão, já insta registrar não haver um conceito exato de criminologia. Trata-se


de um ramo, de uma ciência, mas não se tem como defini-la diretamente. Isso porque
dependerá de uma variedade de fatores, dentre eles, o momento histórico e a análise do
contexto social em que a ideia de criminologia está sendo apreciada.

Sendo assim, há uma problemática para defini-la e conceituá-la. Não há como


conceber um conceito uniforme e tranquilo, isento de críticas. O objetivo maior seria,
então, atentar para as principais características, essas sim, comuns em diversos conceitos
variados ao longo da história.

Nesse sentido, vamos nos valer do conceito mais moderno e detalhado,


trabalhado por Antônio García-Pablos de Molina e Luiz Flávio Gomes. Contudo, antes
de trazer essa conceituação, necessita-se apontar como surgiu a criminologia. Vamos?

1.1 Direito Penal x Criminologia


- Ciência Normativa x Ciência Causal-Explicativa

Em verdade, a criminologia surgiu antes mesmo do próprio termo “criminologia”. É


que esse nome só veio a ser cunhado, ou formalizado, no final do século XIX, por Raffaele
Garófalo. Mas, perceba que nem por isso a criminologia surgiu com ele, e sim bem antes.

O fato é que a criminologia consiste, naturalmente, em um movimento que possui


uma série de convergências com o Direito Penal, mas que com ele não se confunde.
A propósito, a criminologia surge a partir de uma clara insatisfação de parcela dos estudiosos
com as respostas, e o potencial de explicação, trabalhados pelo Direito Penal.

É que o Direito Penal tratava o crime, em essência, como uma “regra anormal da
sociedade”. A sociedade era pautada em regras, e um comportamento anormal - a violação a
uma regra - ensejaria uma punição. Sendo assim, essa violação a uma regra (tida como um
“comportamento anormal”) poderia caracterizar um crime que deveria ser sancionado.

Perceba, então, que o crime tinha uma perspectiva normativa. É dizer, portanto,
que para ser crime no Direito Penal (e era esse o objeto da preocupação), deveria haver uma
delimitação externa a partir do princípio da legalidade, e a sua violação ensejaria uma punição.

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É esse o campo de abrangência, que na época do surgimento da criminologia, o Direito Penal
se debruçava.

E qual era o intuito da criminologia? Quem a estudava, divergindo do Direito Penal,


diante da insatisfação apresentada, buscava explicações/compreensões para o fenômeno
criminológico, o que não era atendido pelo Direito Penal. As expectativas eram
frustradas quando se estudava o crime à luz de uma excessiva lógica normativa.

Para contrapor essa ciência normativa (Direito Penal), surge a Criminologia como
uma ciência causal explicativa, com abrangência e objetivo diversos daqueles vistos pelo
Direito Penal.

Analisando o crime para a criminologia e para o Direito Penal, percebe-se que nesse
comparativo há pontos de convergência quanto à matéria-prima – o crime, o
criminoso. Logo, a matéria-prima é a mesma. Só que, tal qual um produto industrializado,
o que se vai fazer a partir daquela matéria-prima é diferente, tendo em vista que o campo de
abrangência e incidência será modificado. A exemplo, do plástico (matéria-prima),
origina-se tanto uma tigela, quanto um capacete. De maneira vulgar, é isso que temos do
crime para o Direito Penal e para a criminologia.

É nesse contexto de insatisfação quanto às respostas ofertadas pelo Direito


Penal às questões atreladas à criminalidade, que surge, então, a Criminologia como
uma ciência causal-explicativa.

Desejava-se trazer novas e efetivas explicações, analisando os aspectos a partir,


inicialmente, de uma relação causal ou etiológica. Seja vinculando essa causa/etiologia, ao
aspecto individual – o crime vinculado aos aspectos individuais do indivíduo -, ou, de outra sorte,
avançando um pouco, ao aspecto social – a causa não estaria mais no indivíduo, mas na sociedade.

Assim, teremos:

CRIME

Direito Penal Criminologia

Conduta reprovável, valorada da norma e Problema comunitário e social.


deve ser punida.

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1.2 Conceito Moderno (Luiz Flávio Gomes e Antônio García-Pablos de
Molina)
Vamos ao conceito que vai nos conceder elementos importantes. Mas, lembre-se! Não
se pode amarrar a ele, pois ainda não temos um conceito uniforme, tamanha é a variedade de perspectivas da
criminologia. Dito isso, vejamos o que diz o conceito de Luiz Flávio Gomes e Antônio García-
Pablos de Molina:

Cabe definir criminologia como ciência empírica e interdisciplinar, que se ocupa


do estudo do crime, da pessoa do infrator, da vítima e do controle social do
comportamento delitivo, e que trata de subministrar uma informação válida,
contrastada, sobre a gênese, dinâmica e variáveis principais do crime –
contemplado este como problema individual e como problema social -, assim como sobre os
programas de prevenção eficaz do mesmo e técnicas de intervenção positiva no
homem delinquente e nos diversos modelos ou sistemas de respostas ao delito.

O interessante desse conceito é que permeia uma série de elementos colhidos e


pinçados, das várias tendências e escolas que serão estudadas mais à frente.

2. CARACTERÍSTICAS DA CRIMINOLOGIA
Antes de adentrar no estudo das escolas da criminologia, cabe destacar algumas
características comuns, que serão reproduzidas e repetidas, pela maior parte dessas escolas,
desde o século XIX até os dias de hoje.

Aqui cabe uma interessante apreciação do professor Sérgio Salomão Schecaira. Ele
diz que, a criminologia “ocupa-se do estudo do delito, do delinquente, da vítima e do controle
social do delito e, para tanto, lança mão de um objeto empírico e interdisciplinar”.

Trata-se de um conceito, ou de uma rápida sentença, que aponta o objeto do estudo


diretamente atrelado à criminologia, mas traz o que já se pode afirmar serem os dois matizes,
ou as duas características mais relevantes que precisam ser apreendidas. Que são o
empirismo e a interdisciplinaridade.

A partir do empirismo é que se extrai o método indutivo de estudo e de análise


aplicável à criminologia. Quando se trata de método indutivo, observa-se primeiro os fatos
e a partir desses, mediante hipóteses que serão criadas, dão-se as leis. Ou seja, parte-se do
singular para o geral. Esse é mais um diferencial da Criminologia em relação ao Direito Penal.

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Isso porque o método principal dos penalistas é o dedutivo. É dizer, ao contrário do método
indutivo, na dedução parte-se das leis gerais para o caso concreto.

De maneira esquematizada, temos as seguintes características da Criminologia:

(i) Caráter descritivo: a criminologia é uma ciência eminentemente descritiva;


(ii) Empírica: o empirismo nada mais é do que aquela percepção de que o
conhecimento é extraído das experiências práticas e vivenciadas. Então, quando se diz tratar
de uma ciência eminentemente empírica, é porque a base do estudo da criminologia - das
conclusões criminológicas - são extraídas das experiências cotidianas. O empirismo fica
muito claro como característica da criminologia no período do Cesare Lombroso – a
criminologia lombrosiana;

(iii) Método indutivo (particular-todo): o método indutivo, umbilicalmente ligado


ao modelo empírico, parte do particular para o todo. Estudam-se as premissas e induz a
conclusão;

(iv) Multidisciplinar: como ensina o professor José Frederico Marques, a ideia da


criminologia é servir como um instrumento de complementariedade. Ou seja, a criminologia
é algo que vem para agregar, mas não é autossuficiente enquanto razão de existir. Ela surge
sim como ciência autônoma, mas para servir de complementariedade, trazendo novos
elementos que se conjugam e complementam as contribuições de outras ciências (sociologia,
antropologia, biologia, psicologia e tantas outras). Daí estar concebida em um cenário
multidisciplinar.

Agora estamos prontos para adentrar as escolas e teorias da Criminologia.

3. ESCOLAS E TEORIAS DA CRIMINOLOGIA


3.1 Escola Clássica (séc. XVIII e XIX)
- A Escola Clássica foi realmente uma Escola da Criminologia?
- Criminologia ou Iluminismo? Beccaria (Dos Delitos e das Penas, 1764) e Jeremy Bentham.

A Escola Clássica já surge com um problema: seria efetivamente uma escola?

Primeiramente, temos que a Escola Clássica é apreciada e estudada no século XVIII


(precisamente, entre o século XVIII e o início do século XIX). Considera-se a Escola Clássica
no rol de escolas e teorias por sua importância no que tange à contribuição e estruturação
para a formação da Criminologia. Mas, atenção, está longe de ser reconhecida,
unanimemente, como a primeira escola criminológica.

Grande parte da doutrina indica que nesse período ainda não era possível cunhar
efetivamente a existência da criminologia. Desse modo, se não era possível apreciar a

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existência da criminologia como ciência, tampouco era possível classificá-la como uma escola
(que pressupõe matizes uniformizados, modelos padronizados, alicerces homogêneos) tudo
o que ainda não havia nessa época.

Apesar disso, o período clássico, ou a “Escola Clássica”, sem dúvida alguma é muito
relevante para a criminologia, tendo em vista todas as contribuições teóricas e de bagagem
conceitual. Entretanto, não esqueça: não é possível identificar claramente uma escola, em
razão da ausência das uniformidades mencionadas.

A bem da verdade, a maior parte da doutrina sustenta que nesse momento houve
uma tendência de contribuição significativa do Iluminismo para o que, mais tarde, viria
a se tornar a criminologia, que somente se uniformiza a partir do Positivismo.

Dito isso, são poucos os teóricos que apontam a Escola Clássica como uma escola
embrionária da criminologia, trazendo como partícipes fundamentais alguns autores de
renome que são estudados no Liberalismo Penal - Direito Penal Liberal1. Como exemplos,
destacam-se dois:

- Cesare Bonesana, o Marquês de Beccaria: foi um aristocrata e jurista italiano,


que influenciado pelas ideias iluministas, escreveu o clássico “Dos Delitos e Das Penas”. O
livro foi publicado pela primeira vez na segunda metade do século XVIII (1764). Aqui, já se
identificara alguns traços da criminologia, qualificados por alguns como Escola Clássica.

- Jeremy Bentham: não se trata, efetivamente, de um criminológico, mas de um


jurista e filósofo inglês. Bentham é considerado como o pai da Teoria Utilitarista2, que trouxe
bastante contribuições para o estudo do Direito Penal. Basta lembrar que, quando se estudam
modelos de sistema punitivo, sobretudo quando se analisa execução penal e seus processos
históricos, há um modelo, tipicamente vinculado ao utilitarismo, idealizado por Jeremy
Bentham, qual seja o Modelo Panóptico.

1
Direito Penal Liberal pode ser compreendido como aquele erigido por meio do Estado Liberal. Ou seja,
aquele baseado na intervenção mínima, compreendendo a esfera penal como ultima ratio. Há uma limitação do
poder punitivo do Estado, bem como a proteção dos chamados direitos fundamentais.
2 A máxima do utilitarismo preconiza: “Agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar”.

De forma simplória, o utilitarismo considera que, para ser moralmente correta, a ação do agente deve ter como
finalidade/resultado garantir maior bem-estar e prazer ao maior número de pessoas possível, permitindo que
se cause dor e sofrimento para alguns se o resultado for favorável para a maioria. Perceba que importa a
consequência da ação do agente, o resultado. Por isso se fala que o utilitarismo é uma doutrina moral
consequencialista.

7
Tratava-se de um edifício constituído por uma torre central, que permitiria o
carcereiro manter o prisioneiro sobre constante observação, sem que fosse percebido. Em
outras palavras, o esquema viabilizava a visão completa do comportamento dos presos e
dificultava o acesso e o contato visual dos presos entre eles, e com os responsáveis por
manter a ordem. Observe uma imagem do que seria o edifício:

Obs.: O modelo Panóptico de Bentham é utilizado por Michel Foucault, filósofo e teórico
social francês, para se referir à busca incessante das sociedades ocidentais modernas pela
disciplina e controle. Tanto é que segundo o filósofo, não só as prisões seguiriam este
modelo, mas todas as demais estruturas hierárquicas como os hospitais, os quartéis, as
fábricas e as escolas. Isto porque, por meio da vigilância permanente e invisível, conseguir-
se-ia ter a submissão e a obediência de tal forma que as grades e barras para a dominação
seriam completamente desnecessárias.

Pois bem. Beccaria e Bentham possuem pontos em comum. Ambos são figuras
relevantes dentro do Movimento Iluminista, momento esse vinculado a um liberalismo, que
historicamente, se impõe após um absolutismo exacerbado, tanto no campo político, quanto
no campo das ciências.

3.2 Escola Positivista ou Positivismo Criminológico


A primeira escola, unanimemente, atribuída como inaugural da Criminologia é a
Escola Positivista ou Positivismo Criminológico. Vamos às suas contribuições:

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3.2.1 Características3

Algumas características apresentadas inicialmente acompanharão a maior parte das


linhas e escolas criminológicas. Mas algumas delas são mais vinculadas, ou, pelo menos,
inauguradas como essência da criminologia, dentro do Positivismo Criminológico.

(i) Método positivista: O Positivismo, do filósofo francês Auguste Comte, tinha como
intuito tentar atribuir às ciências sociais explicações calcadas na mesma lógica das ciências
exatas, naturais e biológicas. O positivista busca trazer a racionalidade das explicações causais
das ciências naturais, exatas e biológicas para os fenômenos sociais e ciências humanas. É
aqui que se desenvolvem as ciências etiológicas. Temos, então, a Etiologia como o estudo
das causas.

Na Criminologia, a etiologia terá dois braços relevantes. O primeiro é a etiologia


individualista ou individual, aquela em que se observa a relação de causalidade do
fenômeno criminal com causas intrinsecamente ligadas ao indivíduo. Essa vertente é adotada
pelas escolas positivistas italianas, partindo de Cesare Lombroso, passando por Enrico Ferri
e findando por Raffaele Garófalo. Estes são os três autores estudados dentro dessa etiologia
vinculada diretamente ao indivíduo.

Depois, avançado um pouco, há influência das percepções e observações do psicólogo social


francês, Émile Durkheim, observando-se, com maior ênfase, uma etiologia social, na qual
as causas e aspectos vinculados à criminalidade não estão exclusivamente, ou
fundamentalmente, atreladas ao indivíduo, como sugeria a etiologia individual, mas sim a
aspectos da sociedade.

(ii) Crime como fenômeno natural e social;

(iii) Pena como meio social;

(iv) Criminologia como ciência complementar: Essa característica já foi mencionada


anteriormente na ideia do professor Frederico Marques, ao afirmar que a criminologia tem
por intuito servir como um instrumento de complementariedade, ou seja, agregando,
trazendo novos elementos que se conjugam e complementam as contribuições de outras

3As características em vermelho são muito importantes e já foram objeto de, pelo menos, quatro questões da
Cespe/Cebraspe: “aponte as características do chamado Positivismo Criminológico”. Nas assertivas, seja de
verdadeiro ou falso, seja de múltipla escolha, a resposta apontada como correta foram as destacadas.

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ciências (sociologia, antropologia, biologia, psicologia e tantas outras). E aqui, ratifica-se com
o positivismo. Isso porque, os pontos de contato são muitos, incluindo as ciências exatas e
naturais.

(v) Negação do livre arbítrio e crença no determinismo: Essa característica fica mais
clara a partir de Enrico Ferri. Vejamos. O Direito Penal é pautado no livre arbítrio do
indivíduo. Aquele que não se comporta de acordo com as regras de convivência, tinha o livre
arbítrio para se comportar de maneira “anormal”, contrariando-as. Entretanto, esse
comportamento anormal/contrário a uma regra estabelecida, que a violava, ensejaria uma
sanção. Essa é a ideologia formada para a concepção de crime do Direito Penal.

Na Criminologia, como já mencionamos, havia um descontentamento com esse tipo de


apreciação, que não acendiam as compreensões entendidas como necessárias. Essa ideia de
livre arbítrio que fundamenta o Direito Penal, vinculando a culpabilidade, a desaprovação e
consciência do comportamento, não seria válida. Posto que, para os criminológicos do
positivismo, haveria, sim, a possibilidade de um determinismo comportamental. Poderia se
determinar o comportamento do ser humano a partir de outros aspectos, valores e
imposições.

(vi) Método empírico: O empirismo e o método indutivo de apreciação de estudo é, até


hoje, matiz da criminologia.

(vii) Neutralidade axiológica: Os positivistas entendiam (e esse é um ponto bastante


questionável) que o pesquisador não se contaminaria com o objeto de pesquisa. Entenda que
a axiologia é o estudo filosófico de valores. Logo, a neutralidade axiológica seria anular os
valores do pesquisador diante do estudo, para que não interfiram no seu resultado final.

3.2.2 Contextualização
- Insatisfação com o “direito penal clássico”. Determinismo Comportamental x Livre
Arbítrio.
- Charles Darwin e “A origem das Espécies” (1859).

A ideia da Criminologia como ciência foi consubstanciada de maneira mais uniforme


e perene, passível de ser moldada dentro de uma escola, pelo Positivismo, surgindo a partir
da insatisfação dos estudiosos com o chamado “direito penal clássico”, calcado no livre
arbítrio. Sustentavam que, contrariando o que até então se acreditava, o ser humano tinha
o comportamento passível de ser determinado - o determinismo comportamental que

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concede suporte ao positivismo criminológico. A partir desse momento o Direito
Criminológico, ou a Criminologia, começa a ser encampada.

Nesse caminhar, a publicação do livro “A origem das Espécies”, do biólogo britânico


Charles Darwin, foi bastante relevante para o surgimento da Escola Criminológica
Positivista. Considerando a multidisciplinaridade, a interdisciplinaridade e a
complementaridade, o Positivismo buscou elementos da biologia e de outras ciências exatas
e naturais, para explicar os fenômenos criminológicos.

Quem trabalhou, pioneiramente e com destaque, a ideia da biologia dentro da


Criminologia, fazendo grande uso das ideias concebidas por Charles Darwin, foi o psiquiatra
e cientista italiano Cesare Lombroso.

3.2.3 Positivismo Italiano e Etiologia Individual

a) Cesare Lombroso – Fase Antropológica (final do séc. XIX)


- O homem delinquente (1876) - “Antropologia Criminológica”;
- Influência do ATAVISMO de Darwin para a criminologia;
- Teoria do Criminoso Nato;
- Influência de Lombroso no Brasil: Raimundo Nina Rodrigues.

Cesare Lombroso foi um psiquiatra e cientista italiano que viveu no final do século
XIX. No ano de 1876, Lombroso publicou um livro intitulado “O homem delinquente”.
Nesse livro, e depois nos seus estudos, trouxe avanços muito importantes. Mas vale salientar,
que apesar de ter se tornado mundialmente conhecido, as ideias lombrosianas carregam uma
conotação pejorativa que, à luz dos dias atuais, é totalmente compreensível.

O livro “O homem delinquente” trabalhou com o que foi chamado e conhecido por
Antropologia Criminológica (fase antropológica do Positivismo Criminológico). A partir
dos estudos de Darwin, Lombroso estudou, antropologicamente, a formação dos homens.
Ele teve a possibilidade de trabalhar com parte do exército, ou força armada italiana, em
algumas guerras internas. Esse cenário o possibilitou um intenso contato com as tropas e
soldados, mas também com uma série de criminosos. Foi assim que pode estudar e
desenvolver o seu método empírico.

Há registros literários que apontam Lombroso ter conversado e analisado mais de


vinte mil homens ao longo dos anos. Ele mediu e registrou mais de quatrocentos crânios.

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Tudo isso para, pautado na ideia de Darwin, moldar e trazer aspectos físicos e
comportamentais uniformizados, apontando a possibilidade de formatar um criminoso
nato. Ou seja, uma pessoa com determinadas características físicas e comportamentais teria
nascido com matiz biológico-orgânico de criminoso.

Percebe-se aqui um determinismo comportamental a partir de características


genéticas. As ideias lombrosianas consideravam tamanho do crânio, do queixo, tipos de
comportamentos, a presença de tatuagens. Tudo isso formataria o que se chamou de
criminoso nato.

A ideia de criminoso nato surge da influência do livro “A origem das Espécies” de


Darwin, mas sobretudo do conceito de atavismo – o ser atávico, a espécie atávica. Em apertada
síntese, a concepção de atavismo, ou do cidadão ou ser atávico, é a ideia de alguém, uma
espécie ou um membro seu, que apesar da evolução natural, mantém ou desenvolve uma
característica que representa um retrocesso genético. Dizer, portanto, que uma pessoa
sustenta um atavismo ou é atávico, é indicar que ela apresenta algum traço de involução ou
estagnação genética.

Lombroso, analisando o estudo antropológico e empírico de medição e de traços de


hereditariedade, genéticos e comportamentais (como tatuagens), traça o cidadão atávico e
cria a ideia do criminoso nato. Nessa conjuntura, Cesare Lombroso acabou por conceber
um perfil/estereótipo e, quem nele se enquadrasse teria nascido para ser criminoso.
A ideia lombrosiana é a de que o crime seria um fenômeno biológico, e não jurídico.

Hoje em dia, essa concepção é bastante antiquada e ultrapassada. Modernamente,


sabe-se que não existe um perfil criminoso genético-hereditário. Mas, para o que interessa, a
principal crítica sofrida por Lombroso foi a que ele teria deturpado parte do estudo de
Charles Darwin.

Quando Darwin concebeu a ideia do atavismo, teria se limitado a traços hereditários


e genéticos. Entretanto, como foi mencionado, ao longo dos seus estudos empíricos,
Lombroso trouxe elementos hereditários e genéticos, mas também avaliou aspectos
comportamentais.

Nos livros, a maior parte dessa crítica aponta para um estudo específico em que ele
arrolou, dentro do estereótipo do criminoso nato, o uso de tatuagem. A doutrina que estuda
criticamente Lombroso, aponta que Darwin nunca mencionou que tais traços

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comportamentais estariam atrelados ao atavismo - contrariamente, o atavismo se limitaria a aspectos
genéticos e hereditários.

Fato é que Lombroso apresentou certos avanços relevantes. Dentro da criminologia,


apesar do contrassenso que é sustentar suas ideias para os dias atuais, deve-se reconhecer - e
isso é bastante forte dentre os criminólogos - a sua importância para o desenvolvimento do método
empírico e da metodologia indutiva. Lombroso foi responsável por um estudo muito extenso
de observação para posterior conclusão e indução a partir do empirismo.

No Brasil, há uma série de exemplares de influência das técnicas ou dos estudos


lombrosianos. O principal foi Raimundo Nina Rodrigues.

Raimundo Nina Rodrigues foi um médico legista maranhense, com atuação na Bahia,
e ficou conhecido como “doutor dos pobres”4. Aparentemente, para quem conhece seus
estudos, esse título seria deveras incoerente. Isso porque suas ideias eram movidas por seu
racismo, tendo utilizado o estudo e a lógica lombrosiana para considerar as pessoas negras
como uma subespécie – uma classe atávica.

Para ele, o criminoso nato era o negro, atrelando um retrocesso genético ao fato de
a pessoa ser preta. Como um eugenista, Nina Rodrigues defendia uma superioridade branca.
Inclusive, recomendava dois códigos de legislação penal: um para o “cidadão branco”, e
outro para a “subespécie ou espécie atávica de desenvolvimento da humanidade”, referindo-
se não só aos pretos, mas também aos indígenas e aos chamados mestiços.

Fazendo uso de um pensamento lógico, um racista não poderia ser considerado


“doutor dos pobres”. Entretanto, Raimundo Nina Rodrigues se notabilizou assim em
Salvador, atendendo e desenvolvendo no Brasil essa metodologia empírica e o método
indutivo, muito embora com nítido cunho racista e odioso.

b) Enrico Ferri – Fase Sociológica


- Periculosidade x Culpabilidade (Determinismo x Livre Arbítrio);
- Pena x Medidas de Proteção e de Defesa Social (Direito Penal do Autor);
- Comportamento Criminoso = Características inatas + Meio físico e social
(Multifatorialismo ou Criminologia Social).

4Já foi questionado em prova, apresentando um elevando índice de erro. Em prova, o examinador apontou
aspectos reais vinculados ao Raimundo Nina Rodrigues, concluindo ao final o seguinte: “não obstante isso era
conhecido, em Salvador, Bahia, como o doutor dos pobres”.

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Encontra-se na obra de Enrico Ferri clara influência de Cesare Lombroso, pois, além
de fazerem parte do mesmo movimento, Ferri foi seu aluno. Apesar disso, os estudos não se
confundem, pois há traços e interpretações na obra de Enrico Ferri que divergem das de
Lombroso. Há um natural avanço nos estudos de Ferri.

Ademais, Enrico Ferri voltou-se, fundamentalmente, para entrincheirar um repúdio


à ideia do livre arbítrio. Condenando, claramente, a culpabilidade do Direito Penal. Com
Ferri, o positivismo ganhou um defensor mais dedicado a defender o chamado
determinismo comportamental. Assim, os estudos de Ferri se inserem na fase sociológica
do Positivismo Criminológico.

Ferri dizia que o comportamento humano seria algo determinável, logo não haveria
que se falar em livre arbítrio. Assim, ao refutar a ideia do livre arbítrio ele se contrapunha à
concepção da culpabilidade (tido como o juízo de reprovação do agente: “eu quero me
comportar contrariamente a regra, sendo livre para tal”).

Lombroso também apontava o caminho do determinismo comportamental, mas


concebeu a figura do criminoso nato a partir de questões genéticas, hereditárias e traços
comportamentais. Ferri avançou, trabalhando com outros aspectos para além das
características inatas ao homem.

Nesse cenário de refutar a ideia de culpabilidade, para Ferri, a criminalidade estava


associada à ideia de perigo. Então, em Ferri teremos a periculosidade em detrimento da
culpabilidade. Isso porque, a culpabilidade pressupõe o libre arbítrio, ao passo que a
periculosidade se contrapõe ao determinismo comportamental.

Ao invés de falar de sancionamento através de pena, Ferri atribuía um novo nome a


esse tipo de sanção, que seriam as “medidas de proteção”, ou “medidas de defesa social”.
Isso porque, era a sociedade que estava sendo colocada em perigo. Era preciso muito mais
do que punir, mas ter estratégias e instrumentos para proteger a sociedade e o âmbito social
daquele que não consegue se determinar como se espera.

Ao tachar alguém como “perigoso”, a partir de sua periculosidade, volta-se não para
um Direito Penal do Fato, como hoje se interpreta majoritariamente o Direito Penal. Com
Ferri há um momento profícuo de difusão do que ficou posteriormente conhecido como
Direito Penal do Autor. O sancionamento, a medida de proteção e defesa social, como ele

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atribuía, incidia não no fato objetivamente analisado, mas sim naquele que se reputava
perigoso (que ostenta, ou ostentava, a periculosidade).

Considerando que para Ferri o aspecto perigoso, de periculosidade, era extraído não
só dos aspectos inatos ao homem (hereditários e genéticos) como defendia Lombroso, mas
também o comportamento criminoso sofreria influência do meio físico e social,
começa-se a desenvolver um aspecto de multifatorialismo.

É dizer, a criminalidade não se daria apenas em aspectos inatos, mas também haveria
influência relevante do meio físico e social no qual o agente foi concebido. Para Ferri,
teríamos um trinômio causal do delito, composto por fatores antropológicos, sociais e
físicos. É o que alguns autores falam como início de uma Criminologia Social.

c) Raffaele Garófalo – Fase Jurídica


- Livro “Criminologia” (final do séc. XIX). Formalização do termo.
- Conceito Natural de Crime – Violação ao senso de piedade e probidade;
- Superioridade Europeia?

Considera-se que foi o jurista italiano Raffaele Garófalo, no final do século XIX, que
cunho a expressão “criminologia”. Garófalo formalizou a criminologia como termo
científico a partir da publicação do seu livro homônimo, “Criminologia”. Perceba que isso
não quer dizer que a criminologia surge com Garófalo, mas é ele quem traz e consubstancia
o termo que até hoje é usado.

A diferença de Raffaele Garófalo em relação aos demais, dentro do positivismo


italiano, apesar dos pontos em comum, é a de ter trabalhado (ou teve a intenção de trabalhar)
com o conceito natural de crime. Havia um incômodo de com a ideia de crime que era
pautado na época, e é ainda hoje. Isso porque o crime se fulcrava em um aspecto atrelado,
necessariamente, ao princípio da legalidade.

Perceba, se tal conduta, para ser crime, pressupõe uma delimitação externa à luz da
legalidade, estamos dizendo que um comportamento – ou qualquer que seja – pode ser
caracterizado como crime. O problema disso é que se perde um referencial. Tudo pode ser
crime, e nada pode ser crime. Tudo dependerá dessa delimitação externa. Garófalo não
entendia isso, nem considerava positivamente compreensível.

15
Assim, ele desenvolve (ou procura desenvolver) o conceito natural de crime. O
objetivo de Garófalo era o de que crime fosse toda e qualquer conduta entendida como tal,
independentemente do momento, do tempo histórico, do contexto social e do local em que
fosse praticada.

Para esse conceito natural de crime, que independeria de delimitação externa à luz da
legalidade, ele apontava que essa concepção natural seriam aquelas condutas que violassem
o senso comum de piedade e probidade. Acontece que esses são termos fluídos e de
difícil aplicabilidade, o que prejudicou a teoria de Garófalo.

Posteriormente foi observada mais uma dificuldade, contribuindo para o insucesso


da pretensão de Garófalo: a superioridade geográfica da Europa. É o que alguns autores
apontam um eurocentrismo exacerbado na concepção natural de crime para Garófalo. Ele
dizia que o senso de piedade e probidade da Europa, ou dos europeus, era muito mais
evoluído, ao passo que nas Américas e na África esse senso era inexistente ou ínfimo. Daí
porque, essa violação aos aspectos de piedade e probidade eram muito mais frequentes e
naturais na África e nas Américas.

Por esse conceito natural há clara carga de superioridade eurocentrista. Também por
isso, além dos termos piedade e probidade serem fluídos e de difícil aplicabilidade, a ideia do
conceito natural não progrediu como Garófalo esperava com a evolução e avanço dos
estudos.

Agora, para avançarmos nos estudos, vejamos algumas observações


importantes:

O que são Teorias Etiológicas ou Criminologia Etiológica?

Como já foi mencionado, a etiologia nada mais é do que o estudo das causas. Dentro da
criminologia, uma criminologia etiológica é o estudo da causa do seu objeto (o crime, o
delinquente, a delinquência...), a sociedade e o indivíduo como fatores criminológicos.

Etiologia Individual x Etiologia Social: Importância do sociólogo Émile Durkheim


- Escolas Italianas x Escolas (Norte) Americanas;
-Virada Sociológica (Alessandro Baratta): fenômeno criminal a partir de fatores alheios às
questões biológicas;

16
- Sociedade como um fator criminológico.

Dentro das Teorias Etiológicas ou da Criminologia Etiológica, podemos dividir


duas linhas:

● Etiologia Individual:

Na Etiologia Individual o estudo da causa está atrelado com maior ênfase ao


comportamento do indivíduo, associando-se bem com o chamado Positivismo Italiano.
Tanto Lombroso, quanto Ferri e Garófalo voltaram os seus estudos etiológicos buscando
causas vinculadas ao indivíduo. Claro que tiveram percepções e peculiaridades, mas todas as
causas foram centradas no indivíduo;

● Etiologia Social ou Etiologia Sociológica:

Na Etiologia Social ou Sociológica a sociedade passa a ser um fator criminológico.


Estamos diante do que o jurista e sociólogo italiano Alessandro Baratta chamou de virada
sociológica. Isso porque haverá uma tendência a atribuir o fenômeno criminal a partir de
fatores alheios às questões biológicas, como até então se fazia no Positivismo Italiano.

Para além dessa virada sociológica, mencionada por Alessandro Baratta, na dicotomia
entre a etiologia individual e a etiologia social da criminologia, há uma importante influência
do sociólogo francês Émile Durkheim.

Em seus estudos sociológicos, Durkheim apontou o crime como algo natural,


comum e necessário na sociedade, inclusive colaboraria para o desenvolvimento social. O
crime não poderia ser considerado uma doença, mas um fato social normal, podendo
considerar uma anormalidade em casos de incidência exagerada. Se analisarmos uma
sociedade sem crime, tendo-o por algo natural, tratar-se-ia de uma sociedade, muito
provavelmente, primitiva e involuída.

Vejamos um trecho de sua obra As regras do método sociológico: “imaginem uma


sociedade de santos, um claustro exemplar e perfeito. Os crimes propriamente ditos nela
serão desconhecidos; mas as faltas que parecem veniais ao vulgo causarão o mesmo
escândalo que produz o delito ordinário nas consciências ordinárias”. O sociólogo francês
quer dizer que o crime é fruto da natureza humana, das divergências de consciência e, quanto
mais uma sociedade se purifica, mais seria intolerante às divergências ela se torna.

17
É assim que a criminologia passou a ser influenciada pelo âmbito social. Claro que
haverá ainda elementos causalista e etiológicos, mas, a partir de então, avançamos de uma
etiologia vinculada ao indivíduo para o campo social.

Na Etiologia Social daremos maior atenção às Escolas Positivistas (Norte)


Americanas.

Criminologia do Consenso x Criminologia do Conflito

Antes de nos debruçarmos sobre as escolas mais atreladas à etiologia social, necessita-
se fazer uma diferenciação muito importante, tanto por ser cobrada em provas, quanto para
o entendimento.

O estudo da sociologia se divide em dois grupos: a microssociologia, na qual se


avalia a relação indivíduo-sociedade, os pequenos grupos e padrões; e a macrossociologia,
quando se estuda as estruturas sociais em si e as tendências em grande escala. Dentro da
macrossociologia, no que se refere à sociologia criminal, teremos dois grupos, quais sejam a
Criminologia do Consenso e a Criminologia do Conflito.

Dentro da Criminologia, as ideias das teorias criminológicas do consenso parte do


pressuposto de que a ordem, o objetivo, as metas e a estruturação social são calcadas e
padronizadas a partir de um consenso de valores comuns da sociedade. Então, algo que é
crime, o é por um consenso social, por uma média dos valores, objetivos e anseios sociais.
Essa é a principal ideia da teoria do consenso.

Por outro lado, a criminologia do conflito opta por uma vertente bastante diferente.
A ideia é a de que os objetivos, valores, e o que é prioridade, não tem consenso. Na verdade
são produtos de um conflito no qual a força dos mais fortes vem a prevalecer. Os valores e
objetivos prementes dentro de uma sociedade é produto de uma imposição dos mais fortes5.
É dizer, após um conflito existente e tipicamente social, prevalecerão os anseios, valores e
objetivos daquele que é mais forte e que consegue impô-los.

Dito isto, teremos a seguinte divisão de teorias:

5 E isso também refletiria dentro da criminalidade, da criminologia e do Direito Penal Positivo.

18
Teorias do Consenso Teorias do Conflito

- Escola de Chicago; - Teoria do Labelling Approach


ou Etiquetamento;
- Anomia;
- Teoria Crítica.
- Associação Diferencial;

- Subcultura Delinquente.

3.3 Escola de Chicago (Teoria Ecológica)


- Relação da gênese delitiva com o conglomerado urbano;
- Desordem Urbana e formação de Zonas de Delinquência. Ausência de “equilíbrio biótico”;
- Criminalidade: Doença Individual x Doença da Sociedade;
- Positivismo e Relação Pobreza generalizada com Criminalidade;
- Método Qualitativo de Investigação.

A Escola de Chicago também pode ser denominada como Teoria ou Escola


Ecológica.

No início do século XX, Chicago vivia um tumulto, com alto grau de imigração,
oriunda das mais diversas partes do mundo. Nesse contexto, os índices de criminalidade
passaram a ser analisados à luz de outra perspectiva. Trata-se da relação da gênese do crime
com o conglomerado urbano. Em outras palavras, os estudiosos da Escola de Chicago
passam a analisar o crime vinculado à distribuição da cidade.

O problema observado foi que a disposição urbana da cidade de Chicago poderia


justificar a criminalidade. Nesse sentido, os estudiosos fazem um paralelo da urbanidade
como um organismo vivo, e afirmam que a lógica aplicada a este também se aplica àquele. É
dizer, portanto, que para a sua vivência (ou sobrevivência) saudável, ou seja, para atingir um
bem-estar social, é preciso que a cidade alcance aquilo que chamaram de equilíbrio biótico.

Dito de outra forma, ausente o equilíbrio biótico, naturalmente haverá um mal estar.
Esse mal estar, para os grandes centros urbanos, dentre outros aspectos, poderia ser
percebido com o incremento da criminalidade. A desordem urbana e a formação do que se
chamou de zonas de delinquência e zonas de quadrilha (delinquency areas e ganglands) e
abalam e desestruturam, causando a degradação urbana-social. As zonas de delinquência

19
seriam responsáveis pelo desequilíbrio biótico urbano-social gerador de uma criminalidade
exacerbada e injustificada.

Aquele entendimento da criminalidade como doença (ou condição patológica


individual, vista no positivismo italiano) teria sido superado, passando a ser considerada, aqui,
como um problema da sociedade. A sociedade vira um fator criminológico, como disse
Alessandro Baratta. É a sociedade que está com problema, sendo este o desequilíbrio biótico.

Essa teoria tem duas grandes vantagens. A (i) primeira seria elevar e materializar, em
uma escola criminológica, a ideia da sociedade como fator criminógeno. A (ii) segunda seria
o uso do método qualitativo de investigação. Aqui, os estudiosos começaram a ter a
percepção e necessidade de estudar a estruturação da sociedade urbana, passando a analisar
mapas, formatação do tecido social, aspectos econômicos, origem das pessoas, distribuição
de rede sanitária e de esgoto, acesso à educação... A tudo isso foi dado relevante importância
para a compreensão do fenômeno criminológico.

Além disso, faz-se relevante comentar que a partir dessa investigação estrutural dos
centros urbanos, foi possível atentar para a necessidade de reparação social dos espaços
públicos que ofertasse socialização e bem-estar à população. Iluminação das ruas,
investimentos em praças, escolas, clubes e ambientes públicos seriam medidas importantes
para tanto.

Contudo, a teoria de Chicago peca com o insustentável entendimento (para os dias


de hoje) que atrela a pobreza generalizada à criminalidade, uma vez que imputa as zonas de
delinquência como responsáveis pelo desequilíbrio biótico e o consequente incremento da
criminalidade. Perceba que há um determinismo aqui também. Passou-se de um
determinismo biológico de Lombroso a um determinismo ecológico, já que relaciona o
crime à população pobre que vivia nas regiões periféricas da cidade.

Sabe-se que não é a pobreza em si que gera a criminalidade. Pode até ser um dos
fatores (o que é bastante questionável), mas não há essa proporcionalidade direta, “onde tem
pobreza, tem criminalidade”. Entretanto, essa é uma marca da Escola de Chicago e, por isso,
é considerada por muitos uma escola obsoleta.

Outra crítica que poderia ser feita à Escola de Chicago seria o urbanismo
centralizador, tendo em vista existir uma preocupação única e exclusiva com a criminalidade
dentro dos centros urbanos, esquecendo as demais localidades.

20
3.4 Teoria da Anomia
- Influência do Funcionalismo de Durkheim;
- Robert Merton: Crime como um fenômeno social, normal e funcional;
- Influência de Talcott Parsons e o Funcionalismo Estrutural. Teoria do Consenso;
- Sistematização da relação entre METAS (Estrutura Cultural) e MEIOS (Estrutura Social).

Na Teoria da Anomia, cujo maior estudioso foi o sociólogo americano Robert


Merton, pode-se identificar, com maior evidência, a influência do funcionalismo de Émile
Durkheim, que comparava a sociedade a um organismo vivo. Sendo assim, cada indivíduo
teria um papel e desempenharia uma função que garantiria a sobrevivência de toda a
coletividade.

Durkheim argumentava que o crime era algo necessário para o desenvolvimento


social. Dessa forma, não haveria que trabalhá-lo como uma patologia do indivíduo,
tampouco como uma patologia da sociedade. Disse ele, que uma sociedade sem
criminalidade, muito provavelmente, seria uma sociedade primitiva. Assim, Robert Merton
passa a abordar a criminalidade (objeto da criminologia) à luz de um fenômeno social, normal
e funcional, como defendia Durkheim.

Além do funcionalismo de Durkheim, Merton teve a influência do sociólogo Talcott


Parsons, seu orientador e membro do que se chamou de Funcionalismo Estrutural. Parsons
defendia, com destaque, a linha das teorias do consenso para a criminalidade. Então, para
eles, havia a fixação de metas para alguns aspectos, ou alguns membros da sociedade, bem
como meios e estruturações para que aquelas metas fossem atingidas. A definição dessas
metas e meios era estabelecida através de um pacto, de uma atividade consensual. Esse
consenso geraria equilíbrio para o perfeito funcionamento da sociedade.

À vista disso, foi desenvolvida por Robert Merton a teoria que trabalhava com as
adaptações e expectativas dos cidadãos à luz das metas e dos meios disponibilizados. As
metas seriam a estrutura cultural, aquilo que era a expectativa do cidadão (dinheiro, poder,
status social...); ao passo que os meios seriam a estrutura social, ou seja, os mecanismos
disponibilizados para que os cidadãos atingissem as suas metas (emprego, educação...).
Quando não é possível atingir a meta através do meio disponibilizado surge a anomia: a
desordem.

Durkheim, nas suas obras “Da divisão social do trabalho” e “O Suicídio”, trabalhou
bastante o conceito de anomia. Para o sociólogo francês, a anomia social, considerada a

21
ausência de normas e regras sociais que direcionem o comportamento, é observado
sobretudo diante das transformações sociais. Por exemplo, com a modernidade, muitas
regradas tradicionais foram quebras. De alguma forma, em um dado momento, essa quebra
produziu insegurança, incerteza e insatisfação. A partir daí, o cidadão precisaria buscaria
novos caminhos e um novo sentido para a vida. Ou seja, era necessário se adaptar.

Então, partindo do “jogo” analítico entre meta e meio, estrutura cultural e estrutura
social, Merton traçou meios de adaptação percebidos dentro do campo de uma sociedade.
É dizer, diante da desigualdade dos meios para que se atingisse as metas, foram observados
tipos de adaptação, classificados da seguinte forma:

Principais tipos de Ideia Principal


Adaptação

Conformidade A adaptação conformista (ou comportamento modal) seria


uma resposta positiva do indivíduo quanto às metas e meios
culturais. Adesão às metas e aos meios que são
disponibilizados. Esse é um tipo de adaptação considerado
ideal.

Em outras palavras, o conformista é aquele que representa o


perfeito objeto de adaptação para o equilíbrio social. Satisfeito
com as expectativas que dele são esperadas, bem como com
os meios para atingi-las (realidade social, econômica...). Aqui
não há desvio.

22
Inovação6 Na inovação se adere aos fins culturais (as metas), mas
nãos aos meios para atingi-los, que não estão disponíveis
de forma igualitária.

A inovação contrapõe-se à ideia do conformismo. O


inovador, apesar de aderir aos fins culturais (ou seja, aderir e
anuir com as metas, aquilo que lhe é esperado), rechaça os
meios disponibilizados. Há uma frustação e uma privação
relativa. É o indicativo de um comportamento criminoso.

Imagine uma criança de periferia. As metas são: trabalhar,


ganhar dinheiro, ter condições de comprar um tênis, de ter
acesso à educação, se alimentar e etc. Ele adere, ou seja,
concorda com as metas. Mas para isso, os meios seriam: não
ter condição de se alimentar até certa idade, o Estado vai
querer prender os seus pais, chegar aos 18 anos sem qualquer
educação formal porque o Estado não irá prover e a família
também não tem condições de arcar... Nesse contexto ele
pode concordar com as metas, mas não com esses meios.
Assim, diante dessa privação relativa voltada aos meios, há
uma sensação de frustração, e o ser humano, sobretudo aquele
adaptado à luz da inovação, busca mecanismos alternativos
para viabilizar o atingimento daquelas metas inicialmente
previstas. E é aí que se abre a porta para a criminalidade.

Renúncia/Retirada/Evasão O renunciante abre mão das metas e de seus meios. Esse


tipo de adaptação é frequente (normalmente e não
exclusivamente) em grandes cidades.

Trata-se daquela pessoa que renuncia ao seu papel na


sociedade, não aderindo às metas, tampouco aos meios.
Teríamos como exemplo o usuário de drogas. A analogia que
vem sendo feita se refere aos usuários do crack. Ao menos
àquele agrupamento de pessoas que, por influência da droga

6 Dentre os tipos de adaptação, é o mais frequente em provas de concurso.

23
e em razão dela, abre mão da vida social para ficar ali, isolado,
quase como zumbis humanos.

Ritualismo O indivíduo renuncia aos fins culturais por se achar


incapaz de consegui-los, porém respeita quem consegue.

O ritualista não adere às metas, mas não por achar os meios


insuficientes, ou por discordar deles, mas sim por se achar
incapaz.

Rebelião Nesse meio de adaptação, não há aderência, mas sim


propostas de novos meios e metas culturais.

O rebelde quer modificar a tessitura social. Podemos pensar,


por exemplo, que as revoluções sociais surgiriam da
coletividade de rebeldes.

3.5 Teoria das Subculturas Criminais


- Foco na Delinquência Juvenil;
- Rebeldia contra os valores da Classe Dominante;
- Busca de outros meios, valores e metas.

A Teoria das Subculturas Criminais está atrelada a relação entre a minoria e a maioria.
Entretanto, apesar de se debruças, basicamente, sobre essa relação, percebe-se que o foco
principal (objeto principal) dessa teoria reside na delinquência juvenil, na ideia da
delinquência inicial da criança, dos jovens e adolescentes. Pode-se dizer que seu principal
teórico foi o sociólogo Albert Cohen, que foi aluno de Robert Merton, e é o autor do livro
“Jovens Delinquentes: a cultura das gangues” (Delinquent boys).

Os teóricos das subculturas criminais, dentro do foco da delinquência juvenil,


observam que a rebeldia está, justamente, na insatisfação dos valores perpetrados e impostos
pela classe dominante. Trata-se da reação de um grupo tido como uma “minoria”, marcado
pela frustração de não usufruir, ao menos legitimamente, dos anseios e metas da cultura
dominante.

Consegue-se fazer uma associação entre aquele perfil da inovação de Merton,


flertando com a rebelião. Isso porque, não há tanto um questionamento sobre as metas, mas
sobre a forma com a qual essas metas foram estabelecidas e os meios que as inviabilizam.

24
Seria nesse cenário que se iniciaria a criminalidade adolescente, como um repúdio aos
valores impostos pela classe dominante.

Há duas linhas para se interpretar a teoria das subculturas criminais.


Doutrinariamente, prevaleceria a primeira linha, advogando que nessa delinquência juvenil,
não há um intento, nítido, de obter lucro com essa criminalidade. É dizer, portanto, que a
delinquência juvenil, nesse cenário, ostenta, marcadamente, o objetivo e o caráter de se
rebelar contra o sistema.

De outra sorte, há uma segunda linha, fazendo associação com a Teoria Da


Associação Diferencial de Edwin Sutherland (que estudaremos a seguir), buscando enxergar,
desde já, um aspecto embrionário de objetivação do lucro. Porque, além do repúdio ao
disposto pela classe dominante, essa delinquência juvenil visaria, também, obter o lucro, uma
vez que somente assim viabilizaria a busca por outros meios, valores e metas pós-rebelião.

3.6 Teoria da Associação Diferencial (Edwin Sutherland)


- Teoria da Aprendizagem ou dos Contratos Diferenciais;
- Processo de Aprendizagem como móvel do comportamento desviado do cidadão.
Superação da carga moral ou da patologia da criminalidade;
- Sutherland: Rompimento da lógica “pobreza-delinquência”;
- Crime do Colarinho Branco (White Collar crime) – Década de 1940. Criminalidade em
todas as classes sociais;
- Crime do Colarinho Branco e as Cifras Douradas da Criminalidade.

A Teoria da Associação Diferencial, do sociólogo americano Edwin Sutherland,


também é conhecida como Teoria da Aprendizagem ou dos Contatos Diferenciais.
Didaticamente, “teoria da aprendizagem” seria a nomenclatura que denotaria um significado
mais claro, remetendo ao sentido da teoria, embora seja mais frequente observarmos como
teoria da associação diferencial.

Sutherland trabalha a ideia do comportamento criminoso, não como algo inato ao


cidadão, nem como um processo causado, necessariamente, pela sociedade. Na verdade, ele
aponta a criminalidade como algo perfeitamente aprendível. Seria um conhecimento
passível de ser adquirido como qualquer um. Assim, Sutherland rompe com o paradigma, até
então existente, de associar, quase que umbilicalmente, a criminalidade com a pobreza.

25
Há um processo de aprendizagem que consegue moldar o comportamento do
cidadão. Se este for educado, posto num processo de aprendizado de associação voltado para
um comportamento reputado como correto, há uma tendência, cada vez maior, e à medida
do tempo e frequência com a qual ele é exposto a esse processo de aprendizagem, de assimilar
tais valores. Por outro lado, colocando o indivíduo num processo de aprendizagem, dentro
do qual o objetivo é o comportamento desviado, há uma tendência que, da mesma forma,
aquilo seja assimilado por ele.

Percebe-se, então, que se rompe a ideia da carga moral ou patologia, individual ou


social, da criminalidade. Tanto se supera a patologia vista nas escolas da etiologia
individualista (o indivíduo patológico), quanto aquela da escola de Chicago (a sociedade
patológica). Rompe-se, pois, com a ideia “pobreza-delinquência”. Não é apenas o pobre -
aquele que não tem acesso a determinados elementos – que possui o condão de aprender a
ser criminoso. Todos podem aprender.

É nesse contexto, que na década de 1940, Sutherland publica, pela primeira vez, um
artigo que, em 1949, é transformado em livro e cunha a expressão mundialmente conhecida
“crime do colarinho branco” (white collar crime). Trata-se de uma criminalidade associada à alta
classe, que trabalha de terno, frequenta círculos de influência decisiva político-econômica e
social. São crimes de escritório, crimes de gabinete, crimes contra o sistema financeiro, crimes
de lavagem de capital... Ou seja, é a criminalidade que envolve a macroeconomia em essência,
vultosos volumes de dinheiro. Crimes que não se enxerga com frequência, por vários
motivos.

Se crime fosse apenas resultado de uma associação pobreza-delinquência, essa


macrocriminalidade e os crimes do colarinho branco não existiriam. E Sutherland aponta,
justamente, um processo de aprendizagem. A teoria da associação diferencial não escolhe
pobreza, nem riqueza, o crime é algo suscetível a qualquer ser humano.

Nesse cenário, apesar de não ter sido desenvolvido por Sutherland, cumpre anotar à
expressão “cifras douradas da criminalidade”, mais desenvolvida pela criminologia crítica.
Na verdade, as colorações das cifras que se verá mais a frente, estão associadas à chamada
cifra obscura, oculta negra da criminalidade.

Os doutrinadores, e por todos podemos citar o jurista argentino Eugenio Raúl


Zaffaroni, apontam que essas cifras ocultas vão se contrapor à criminalidade registrada.

26
Isso ocorre porque, na grande gama de crimes que ocorre, apenas parcela ínfima é enxergada,
selecionada, investigada, processada e punida. Essa criminalidade registrada esconde uma
cifra obscura da criminalidade, que é toda aquela informal, não chegando a ser oficialmente
registrada pelo aparato investigativo, persecutório e judicial do Estado.

Dentro dessas cifras obscuras, é possível enxerga o que a doutrina denominou “cifras
douradas”. Nada mais é do que a criminalidade do colarinho branco, que não chega a sequer
ser investigada, processada e punida. Ela existe, mas não é formalizada. Isso porque, há uma
ideia de eleição (que será visto nas Escolas da Reação Social) e de se ocupar com
determinados crimes que são selecionados para passar a impressão de que a criminalidade
está atrelada a uma parcela da população, em detrimento das demais. É esse conceito que é
rompido na teoria da associação diferencial.

Obs.: Colorido das Cifras Ocultas da Criminalidade: Nomenclatura para concurso


público!

Dentro do que se entende cifras ocultas ou obscuras da criminalidade, há algumas


outras colorações. Já foram mencionadas as cifras ocultas e as cifras douradas. Vejamos
outros tipos/colorações:

Cifra azul: são os crimes de rua, praticados pela classe marginalizada da sociedade e que não
chegam ao conhecimento do aparato do Estado. Obs.: Fala-se também, aqui, em crimes de
colarinho azul, contrapondo-se aos crimes de colarinho branco e fazendo alusão às fardas
(macacões) utilizadas pelos empregados de fábricas nos Estados Unidos da América. Nesse
caso, teríamos os crimes patrimoniais, crimes contra a pessoa etc.
Cifra verde: a doutrina aponta como os crimes ambientais que não chegam ao conhecimento
do Estado e das instituições responsáveis pela investigação e persecução penal judicial. Green
Criminology é um ramo moderno da criminologia, bastante em voga, tendo em vista a urgente
questão ecológica e do meio ambiente.
Cifra amarela: são aquelas infrações praticadas por funcionários públicos que não chegam ao
conhecimento formal do Estado.
Ex.: um caso concreto que se depare em prova, no qual, hipoteticamente, policiais militares
espancam ou torturam investigados, são crimes (tortura ou, no mínimo, abuso de autoridade)
que, muitas vezes, não vão chegar ao conhecimento. A esse tipo de criminalidade praticada
por funcionário público e não conhecida, é cunhada como cifra amarela.

27
Cifra rosa: seria a criminalidade não registrada em relação às mulheres. Aqui é possível
imaginar uma associação entre cifra rosa e Lei Maria da Penha, sobretudo para quem estuda
para concurso de viés estadual.
Cifra cinza: são aqueles crimes devidamente noticiados, ou seja, que até chegam ao
conhecimento do Estado, da autoridade policial, mas não se formalizam em processo.
Cifra arco-íris: seriam os crimes homofóbicos, transfóbicos, LGBTfóbicos que não chegam
ao aparato do Estado. Sobre o tema, vale conhecer a Criminologia Queer 7.

3.7 Teoria do Labelling Approach, do Etiquetamento ou da Rotulação


- Controle Social (reação das demais pessoas ou do Estado) x Fatores de Causalidades ligados
aos sujeitos ou à sociedade;
- Interacionismo simbólico: relações entre pessoas influenciam no comportamento delas;
Hegel: “O mundo simbólico só se constrói por meio da interação entre duas ou mais pessoas
e, portanto, o simbolismo não é resultado de interação do sujeito consigo ou mesmo de sua
interação com um simples objeto”.
- Interações geram significados às coisas: Conceito de crime, criminalidade e o parâmetro da
legalidade;
- Delimitação externa e Etiquetamento da criminalidade;

A Teoria do Labelling Approach (Interacionismo Simbólico, Etiquetamento ou


Rotulação) é uma teoria do conflito que se desenvolve numa nova fase da criminologia, a
chamada fase da Reação Social. O nome denota alguns aspectos relevantes. Vejamos.

Se antes a ênfase maior era na lógica etiológica, ou seja, a questão se vinculava ao


estudo das causas dos fatores criminológicos – das causas da criminalidade -, agora esse foco
será alterado. Passa-se a não se preocupar tanto com a questão etiológica (relação causa e
efeito), como era nas searas individuais e sociais. A patologia não se encontra instaurada
dentro do indivíduo, tampouco dentro da sociedade, o crime seria um fato social, algo
comum e, até, necessário, como foi visto nas influências de Durkheim.

A teoria do labelling approach (etiquetamento ou rotulação) ganha relevo ao tentar


perceber, ou atribuir valor à criminalidade, a partir da reação social: reação das demais
pessoas e do Estado. Qual é a reação das pessoas em relação a determinado procedimento

7Um artigo do professor Salo de Carvalho:


https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/sistemapenaleviolencia/article/view/12210

28
de criminalização? Por que essa reação é determinante para fins de caracterização da
criminalidade?

O que se deve perceber, primeiramente, é a preocupação que, se antes voltava aos


fatores da criminalidade (ligados aos sujeitos ou à sociedade), agora teremos o controle social
como matriz primordial dessa estruturação de estudo e análise da criminalidade.

Deve-se associar a teoria do labelling approach (etiquetamento ou rotulação) à


corrente filosófica e sociológica do interacionismo simbólico, cuja tese aponta que as relações
entre as pessoas influenciam no comportamento delas. Fazendo um paralelo, o problema do
comportamento criminológico não estaria ínsito, na essência do ser humano, tampouco seria
um problema específico da sociedade, de uma zona de delinquência como apontava a Escola
de Chicago. O interacionismo simbólico apontava que, marcadamente, as relações
interpessoais gerariam e moldaria comportamentos variados, entre eles, inclusive, o
comportamento criminoso.

São as relações interpessoais que formarão aspectos, nos quais se pautarão os


sentidos dos atos, símbolos e determinadas condutas. A teoria do labelling approach
(etiquetamento ou rotulação) à luz da lógica do interacionismo simbólico aponta que o crime
não é uma qualidade da conduta humana. Contrariamente, o crime se formará a partir de
uma delimitação exterior. É um processo que delimita a concepção, o alcance, a aplicabilidade
e as consequências daquilo que se reputará como crime. E esse processo é produto da
interação interpessoal, que influencia no comportamento e influenciarão na análise e
delimitação externa das consequências de tal comportamento.

Hegel, importante filósofo alemão, analisando o interacionismo simbólico, apontou


aspectos importantes: “O mundo simbólico só se constrói por meio da interação entre duas
ou mais pessoas e, portanto, o simbolismo não é resultado de interação do sujeito consigo
ou mesmo de sua interação com um simples objeto”. Esse interacionismo - e simbolismo -
é produto da interrelação pessoal entre as pessoas e entre a sociedade.

Interação, portanto, gera significado às coisas e aos atos. Se para determinar o sentido
e consequência de determinadas condutas demandará um interacionismo simbólico, uma
relação interpessoal que vai variar de acordo com a cultura, o tempo e local em que será
analisado, teremos que essa análise, ou interacionismo simbólico (conjunto de relações

29
interpessoais), influenciarão no processo de delimitação. É a partir dessas interações
interpessoais que se qualificará determinada conduta como crime.

É essa a ideia da teoria do etiquetamento, a partir do parâmetro da legalidade8. São


as relações interpessoais de uma sociedade que influenciarão na concepção do que é crime,
para proteger determinados valores que ali prevalecem. Seja a partir de um processo de teoria
do consenso, mas, normalmente, a partir de uma convivência conflitual, na qual os mais
fortes em choque com os mais fracos (em regra, as minorias) fazem prevalecer os seus
interesses. É por isso que há uma influência muito significativa na rotulação ou
etiquetamento de determinadas condutas como crimes e outras tantas, não.

A rotulação/etiquetamento da criminalidade sofre sensível influência desses


interesses extraídos das relações interpessoais do interacionismo simbólico.

- Criminalidade: Conduta humana ou processo de estigmatização?


- Desvio primário e Desvio secundário (Edwin Lemert).

Ainda sobre a teoria do labelling approach (etiquetamento ou rotulação), se a


criminalidade não é uma qualidade da conduta humana, já que há um conjunto de influências
que geram a delimitação externa (juridicamente podemos imaginar à luz do princípio da
legalidade), a criminalidade seria formatada a partir do chamado processo de
estigmatização (processo de etiquetamento da criminalidade).

Para que se compreenda esse processo, precisamos nos valer da lógica conceitual
bem trabalhada por Edwin Lemert, sociólogo americano. Ele estudou e consubstanciou a
ideia do processo de estigmatização com base em duas etapas do comportamento desviante
ou desviado, quais sejam o desvio primário e o desvio secundário. Vejamos:

Refere-se ao desvio ocasional. É


multifatorial (causado por uma
Desvio Primário
multiplicidade de fatores que fogem ao
controle), razão pela qual deve ficar fora da
explicação do crime.

Caracteriza-se pelo resultado da conjugação


Desvio Secundário
do desvio e a resposta formal do Estado.

8Princípio constitucional, tipicamente associado aos estados democráticos de direito, com aplicação mais do
que abrangente na seara criminal.

30
O desvio primário, segundo Lemert, seria algo multifatorial, devendo ficar apartado
da explicação do crime ou da criminalidade. Para Lemert o processo do desvio primário, por
ser multifatorial, era passível de ser causado por uma gama inexata de justificativas e causas,
a ponto de se colocar o desvio primário quase como uma situação ínsita a própria essência
humana.

Assim, pode-se dizer que qualquer pessoa já conheceu ou conviveu com alguém que,
em determinada fase da vida, apresentou algum comportamento que, à luz do parâmetro de
legalidade, seria rotulado ou reputado criminal. A exemplo, no uso dessa lógica, furtar
bombom ou faltar aula, quando jovem, poderia ser classificado com um desvio primário.

No mesmo sentindo, estaria aquele que foi flagrado por agentes do Estado usando
ou portando algum tipo de droga, na entrada de shows, por exemplo. A reação dos agentes
estatais - bem como a repugnância social -, se, na situação mencionada, o flagrante for de um
jovem de classe média alta, será diferente da reação gerada se o jovem for do subúrbio. Sabe-
se que o primeiro, dificilmente, será torturado ou achincalhado pelos agentes estatais, ao
passo que o segundo, em regra, é abusado e humilhado. Sendo, muitas vezes, colocado em
ambientes totalmente equivocados, e que só contribuem para uma péssima formação. É aqui
que entra a lógica do desvio secundário.

O desvio primário, para a teoria da rotulação, é considerado “normal”, praticamente


sem importância para fatores da criminalidade. Por outro lado, o desvio secundário é a
consolidação do desviado primariamente. Percebe-se que todos nos estamos suscetíveis,
nesse processo, ao desvio primário. Razão pela qual, a criminologia – ao menos à luz do
processo de estigmatização -, não deveria se preocupar com o desvio primário. Apenas parte
desses desvios primários se tornarão desvios secundários, e aí sim seria objeto de análise e
estudo da criminologia.

O desvio secundário será, justamente, operacionalizado, a partir do comportamento,


ou da reação social, estabelecida em face do desvio primário. Percebe-se que, no exemplo do
portador de droga dado anteriormente, em relação ao indivíduo de classe média alta, a reação
é uma, e outra totalmente diferente para o jovem da periferia. Segundo a teoria do
etiquetamento, é essa reação social diferenciada que materializará a classificação do desvio
secundário e, portanto, a qualificação do comportamento criminoso do jovem do subúrbio
em face do jovem de classe média alta - que gerará uma reação social muito diferente, mais
condescendente.

31
- Criminologia da Reação Social: Estigmatização pela Reação Social.

A partir da lógica plasmada anteriormente foi que se cunhou a expressão


“Criminologia Da Reação Social” à luz, exatamente, desse processo de estigmatização, ou
a estigmatização pela reação social.

Com base na teoria do etiquetamento e da reação social, o desvio primário não é tão
relevante para fins de criminologia. É o controle social, muito mais que a causalidade ínsita
ao indivíduo ou à sociedade, que importa. Como reage os setores da sociedade e do Estado
ante a um desvio primário (comportamento “compreensível” de qualquer indivíduo)? É esse
comportamento e reação que irá consubstanciar o desvio secundário. Esse sim relevante para
fatores da criminalização, segundo a teoria.

É essa a ideia da criminologia da reação social: o processo de estigmatização bem


desenvolvido por Edwin Lemert, de desvio primário e secundário.

Sobre o que foi visto até agora, toda essa ideia da reação social, da teoria do labelling
approach, etiquetamento ou rotulação, importante atentar para uma citação do doutrinador
italiano, Alessandro Baratta, já mencionado anteriormente quando da virada sociológica:

“As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da ‘população criminosa’
aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social
(subproletariado e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho
(desocupação, subocupação, falta de qualificação) e defeitos de socialização familiar
e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos,
e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal
contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes,
conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.”

Essa citação nos autoriza a buscar a essência da teoria do etiquetamento. Percebe-se


que o comportamento dito “criminoso”, ou essa “população criminosa”, apresentaria
determinadas qualificações e características muito bem arrolados por Alessandro Baratta, que
em outras teorias por ele mencionadas (positivista e liberal), são apontadas com base em uma
causalidade (é por possuírem tais características, que desenvolvem um comportamento
criminológico).

32
Aqui há uma diferenciação, pois, esse é um público alvo, justamente em razão do
processo de delimitação social externa do que é criminalidade. Então, à luz da teoria dos
conflitos, há de se impor a vontade do mais forte – leia-se, das classes dominantes.
As classes dominantes teriam o condão de delimitar o que se entende por criminalidade, bem
como de efetivar e potencializar para determinada camada, população e público-alvo da
estigmatização criminológica, todos os esforços dentro da lógica do desvio secundário –
afastando esse desvio secundário de outra parte da população, que está passível e
efetivamente comente desvios primários. Há uma seleção da população que será
estigmatizada.

O labelling approach está ligado a algumas políticas criminais como a


descriminalização, o devido processo legal, a diversificação e a desinstitucionalização. É a
chamada “política dos quatro D’s”. As consequências vão muito ao encontro do garantismo
penal e da mínima intervenção do direito penal.

Obs.: Interacionismo Simbólico (Etiquetamento) x Criminologia Crítica:


Diferenças entre:
(i) Perspectiva Microssociológica
(ii) Perspectiva Macrossociológica

Ainda nesse cenário, há que se fazer um gancho para que se entenda uma diferença
de perspectiva.

A teoria do etiquetamento, rotulação, ou labelling approach tem sua base filosófica


extraída do interacionismo simbólico, diferentemente da criminologia crítica, que será vista
adiante.

A criminologia crítica é uma ideia de reação social e se preocupa com o conjunto de


relações. Entretanto, quando falamos do interacionismo simbólico à luz do etiquetamento,
tratamos de uma perspectiva microssociológica. É dizer que aquelas interrelações pessoais
relevantes para a teoria do etiquetamento são calcadas em processos menores, mais próximos
ao contexto da realidade individual. Logo, o etiquetamento se preocupa com as relações
interpessoais em escala micro, daí se falar em microssociologia ou perspectiva
microssociológica. É a relação entre o agente e vizinhos, seus familiares, convivência no
bairro ou na comunidade, escolas, ou seja, as relações nos ciclos menores.

33
A partir daí, houve uma série de críticas que culminou na formatação do que hoje se
entende por Criminologia Crítica, imbuída de uma perspectiva macrossociológica.

3.8 Criminologia Crítica ou Teoria Radical (Matiz Macrossociológica)


- Críticas à Teoria do Etiquetamento;
- Desvios secundários associados à: (i) estruturação do tecido social; (ii) exploração dos meios
de produção; (iii) concentração do capital; (iv) aspectos ligados à macroeconomia; (v)
seletividade do sistema de justiça criminal;
- Cifras Negras, Ocultas ou “Criminalidade Registrada ou Aparente”;
- Seletividade: patológica ou necessidade do sistema?

Uma das críticas mais severas à teoria do etiquetamento foi, basicamente, não dar
qualquer valor ao chamado desvio primário, concentrando-se somente no desvio secundário.
Nesse sentido, foi visto que o desvio primário era considerado algo normal, quase que ínsito
à conduta do ser humano. Ao banalizar o desvio primário, a teoria do etiquetamento sofreu
muitas críticas.

Para a formação da Criminologia Crítica ou Teoria Radical, o conceito que se


contrapôs foi fundamentalmente a matiz macrossociológica. A ideia é que a teoria do
etiquetamento desconsiderou importantes aspectos e valores capazes de gerar aquela
rotulação da conduta como criminosa.

Na criminologia crítica, relações macro eram fatores criminógenos mais relevantes.


Segundo os doutrinadores que formaram a ideia da criminologia crítica, precisava-se atentar
para as relações econômicas, as relações macrossociais, na exploração ou na divisão dos
meios de produção, aspectos vinculados ao relacionamento macroeconômico entre Estados,
a distribuição federativa, enfim, vários valores.

Além dessas perspectivas que influenciarão para a criminologia crítica no


procedimento do desvio secundário, ou seja, no processo de estigmatização, essa vertente da
criminologia se pautou, muito fortemente, a partir de uma verdadeira militância. Explicando
melhor, a criminologia crítica acusava os estudiosos da teoria do etiquetamento de serem
muito pacíficos, de não assumirem lado e não se posicionarem politicamente.

A criminologia crítica ou teoria radical tem importante influência da teoria


marxista. Perceba que a macrossociologia leva em conta o impacto da infraestrutura na qual
consiste o sistema econômico e social. Para o marxismo, em síntese, a desigualdade na

34
distribuição dos meios de produção e a dificuldade de satisfação material de parte da
sociedade geraria um conflito de classe. E a criminologia crítica acaba por observar o
processo de criminalização dentro do modelo capitalista e suas consequências.

Chega a ser polêmico, pois a criminologia crítica defende a assunção de um papel e


de um lado político, colocando-se contrariamente aos aspectos macrossociológicos. Isso
porque, os fatores macrossociológicos seriam criminógenos. E, se há pretensão de buscar
explicações, refutando algumas questões a eles vinculadas, precisa-se enfrentar, questionar e
se colocar contrariamente a essa lógica macrossociológica.

De maneira objetiva, os desvios secundários associados à criminologia crítica, não


estariam pautados, exclusivamente, nas relações interpessoais numa perspectiva
microssociológica. Mas sim, estão associados à estruturação do tecido social (algo muito mais
amplo), a exemplo da exploração dos meios de produção, concentração do capital, aspectos
ligados à macroeconomia, culminando na seletividade do sistema de justiça criminal. É essa
a perspectiva enxergada a partir da criminologia crítica, rompendo com o círculo mais restrito
de influência das relações interpessoais.

Aqui é importante resgatar a ideia das cifras ocultas da criminalidade. A criminologia


crítica diz que há um procedimento seletivo e estigmatizante, que seleciona e delimita
externamente quais condutas serão qualificadas como crime.

Além dessa qualificação externa já mencionada juridicamente atrelada ao princípio da


legalidade, ainda assim, na prática, a maior parte das condutas são efetivamente investigadas,
menos ainda processadas e, tampouco, condenadas e sancionadas. É nesse ponto que se deve
compreender o que seria uma criminalidade registrada ou aparente em detrimento àquelas
cifras obscuras ou ocultas.

Basicamente, a criminalidade registrada ou aparente é aquela que, estatisticamente,


consegue-se aferir, ou perceber numericamente. Acontece que essa parcela representa uma
ínfima quantidade dos crimes efetivamente ocorridos. A criminalidade que permanece oculta,
por vários motivos, é, justamente, o que se chama de cifra obscura ou oculta. Vários fatores
e interesses justificam a sua existência.

Mas, importante! A cifra oculta, em detrimento da criminalidade registrada ou


aparente, da mesma forma como a seletividade do sistema, não são aspectos estranhos ao

35
sistema existente. Em outras palavras, não representam uma patologia sistêmica da linha de
justiça9.

Na criminologia crítica, o próprio sistema de justiça criminal é concebido e


estruturado para funcionar dessa maneira. É dizer, a realidade não é neutra! Todo o
embasamento da existência da justiça criminal é voltado para a modulação de um processo
seletivo. De fato, seleciona-se a criminalidade registrada (como um ínfimo número) em
paralelo às cifras ocultas (criminalidade obscura ou criminalidade das sombras).

A justificativa para isso é simples: considerando que na sociedade exista uma série de
condutas que violam diversos valores, nem todas essas violações interessam ao direito
criminal. Logo, há uma restrição de bens jurídicos. Do mesmo modo, dentre a gama de bens
jurídicos violados, há apenas uma ínfima quantidade de comportamentos violadores que
geram o crime, já que é necessária a tipificação da conduta, exigência lógica do princípio da
legalidade.

Nesse sentido, temos várias violações a vários bens jurídicos, mas somente alguns
bens jurídicos recebem a “proteção” penal, e somente algumas condutas contrárias a esses
bens jurídicos interessarão. Portanto, seria uma ínfima quantidade que justificaria para um
pleno funcionamento da justiça.

Acontece que, mesmo com toda essa “restrição”, o sistema é desenhado e


concebido para não funcionar. Sabe-se que todo sistema de justiça criminal, em quase
qualquer lugar do mundo, está assoberbado, ainda que com essa “ínfima” quantidade de
comportamentos criminalizados.

A ideia é de assoberbar todo o sistema de justiça, desde o plano investigatório,


passando pelo plano acusatório, plano defensivo ou defensório, até o aspecto julgador das
cortes e estruturação judicante. É tudo desenhado para ficar assoberbado, apesar da
restrição de bens jurídicos e comportamentos criminalizados. E, no sistema de justiça,
necessita-se, mais uma vez, materializar a última etapa da seleção: escolhe-se o que interessa
para investigar, processar, julgar e punir.

É essa a ideia. E tudo isso, à luz da criminologia crítica, no plano da criminalização


primária e da criminalização secundária. Vejamos.

9Em provas de concurso, uma assertiva que associa a cifra oculta (obscura ou negra) como uma
patologia do sistema à luz da criminologia crítica está ERRADA.

36
- Processo de Criminalização Primária:
- Substituição da ideia de crime por “processo de criminalização”;
- Ato do Legislador;
- Processo Social e Cultural – Política Legislativa – Tipificação de Condutas;
- Influência no ato final do legislador (seletividade).

O processo de criminalização se diferencia do desvio primário e secundário, uma vez


que o plano é macrossociológico, é dizer, mais amplo. Não há simplesmente um crime. Para
a criminologia crítica o agente é submetido a um processo de criminalização. Esse processo,
no plano jurídico, pode ser imaginado como a lógica da legalidade na qual o parlamento e o
poder legislativo escolhem algumas condutas e alguns bens jurídicos, cujas violações
caracterização crime. Efetivamente, no plano jurídico, é isso.

Mas, lembre-se! A criminologia crítica não se limita ou se satisfaz com o plano


jurídico. Sendo assim, o ato criminalizador do legislador é o ápice, ou seja, o cume desse
processo de criminalização primária. Isso porque, antes, há um processo social e cultural,
base para a formação de um parlamento que, por sua vez, sustentará uma política legislativa,
culminando na tipificação de condutas.

Como um exemplo, sem fazer juízo de valor, sabe-se que o parlamento brasileiro é
bastante conservador. Então, questões vinculadas à criminalização das drogas e do aborto é
desenho, ou reflexo, de um cenário de escolha de um parlamento conservador, que formatará
uma política legislativa para uma série de planos - inclusive o plano criminal -, e a tipificação
de condutas. Por isso, é muito difícil de imaginar que o parlamento brasileiro, a curto ou
médio prazo, adote uma posição de maior flexibilidade quanto às drogas, aborto, eutanásia...
(Atenção! É nesse cenário que se tende a observar, cada vez mais, um papel de ativismo
judicial do Supremo Tribunal Federal como instituição contra majoritária).

Percebe-se que esse processo de criminalização primária, conforme a criminologia


crítica, não se limita ao plano jurídico representado no ato concreto do legislador. Há, sim,
um processo social e cultural que formatará a política legislativa, culminando com o
ato final do legislador. Esse processo de criminalização primária é um processo
estigmatizante e seletivo. E assim se escolhem, dentre os vários bens jurídicos existentes, as
condutas violadoras que interessam criminalizar.

Mas não é só, há o processo de criminalização secundária.

37
- Processo de Criminalização Secundária:
- Aplicação e funcionamento do Sistema de Justiça;
- Seleção dos alvos do sistema repressor: homogeneidade do perfil de presos x
heterogeneidade da população.

No processo de criminalização primária temos o embasamento político que culminou


na tipificação. Agora, precisa-se materializar a seleção inicialmente planejada, através do
“braço” do funcionamento do sistema de justiça criminal. “Como vamos aplicar? Como
vamos escolher?”, essa seleção é percebida através do público alvo.

Nesse sentido, tomando por base o sistema penitenciário brasileiro, percebe-se que
ele tem cor, idade e classe social: tem o público eleito. É a chamada “clientela criminal
penitenciária”.

Para a criminologia crítica, essa seleção perpassa por um processo de criminalização


primária, mas vai além. Se conclui na aplicação e observância do sistema de justiça. É dizer,
a tolerância com a classe mais abastarda - que se utiliza de vários recursos, joguetes, demoras,
sendo beneficiada com prazos prescricionais convenientes ao sistema de justiça e ao sistema
político -, e quase que uma tolerância zero, um punitivismo exacerbado, para condutas
cometidas pela classe menos abastarda.

Basta observar que há um alvo bem específico dentro do sistema de justiça brasileiro.
Isso é facilmente observado se fizermos um paralelo entre a população carcerária, estruturada
de maneira homogênea, ante a heterogeneidade da população. Não há representação dessa
heterogeneidade na população efetivamente punida.

Quase 70% da população carcerária do Brasil é formada por quatro tipos de


criminalidade, em ordem: tráfico de drogas, roubo, furto e homicídio. Percebe-se que o furto
– crime patrimonial sem violência ou grave ameaça -, é majoritariamente cometido por um
público seleto. Por sua vez, mais de 60% dos presos por tráfico de drogas são as chamadas
“mulas”, facilmente substituídas na traficância. Assim, consegue-se manter,
convenientemente, o sistema ocupado, enquanto não há como dar conta de outras condutas
que adentram na cifra oculta ou obscura.

38
4. EXPANSÃO DO DIREITO PENAL10
4.1 Sociedade de Risco
- Deslocamento da Fonte de Risco;
- Riscos “Clássicos” x Riscos Globais ou Democráticos.
- Direito Penal como solução “óbvia”;
- Expansão do Direito Penal: (i) Direito Penal Clássico + (ii) Direito Penal Securitário ou
Segurador!
- Características do “Novo Direito Penal”: (i) Respostas punitivas exacerbadas; (ii) Bens
jurídicos supraindividuais; (iii) Proliferação da tipologia de delitos de perigo abstrato; (iv)
Antecipação punitiva e (v) Legislação penal simbólica em profusão.
- Espiritualização ou Desmaterialização dos bens jurídicos.

A sociedade de risco seria o pano de fundo para o novo Direito Penal e as novas
velocidades do Direito Penal.

Primeiramente, para entender o contexto da sociedade de risco, necessita-se fazer um


corte epistemológico para diferenciar o Direito Penal Clássico, à luz da sociedade clássica, e
a sociedade de risco, com aspectos modernos ou pós-modernos.

A sociedade e o Direito Penal clássico se voltam para os riscos tradicionais (ou riscos
clássicos). Estes riscos estão atrelados, basicamente, a fenômenos naturais ou a
comportamentos humanos individuais, os quais são perfeitamente singularizáveis,
identificáveis, e, assim, passíveis de repressão.

Trata-se do Direito Penal que se debruça, essencialmente, naqueles crimes


decorrentes de condutas humanas individualizadas, ou seja, nos crimes patrimoniais, nos
crimes contra a vida, contra a higidez física (crimes de lesão corporal, aborto, homicídio,
contra a Administração Pública). É dizer, comportamentos que partem de riscos naturais, ou
de condutas humanas perfeitamente singularizáveis.

Ocorre que a sociedade, naturalmente, com reflexo em todas as áreas do


conhecimento, foi passando por um processo de complexidade: limites de nações cada vez

Este ponto, quando não é cobrado como Criminologia, aparece nas provas dentro da disciplina de
10

Direito Penal.

39
mais teóricos, ou restritivamente geográficos; amplitude do acesso e velocidade da
informação; interação; operações comerciais e econômicas cada vez mais intensas e
frequentes; agilidade e velocidade; sociedade cada vez mais dinâmica e acelerada.

Diante dessa complexidade, é quase que intuitivo apontar que aquele tradicionalismo
do Direito Penal, em muitos pontos, fica obsoleto. Ou, em outras palavras, passa a deixar de
ser capaz de proteger bens jurídicos tipicamente atrelados a essa sociedade complexa da
chamada sociedade de risco.

Esses riscos são globais e democráticos, os quais não são facilmente individualizados,
como catástrofes humanas e naturais de efeitos globais - ataques à luz da conduta humana,
mas com aspectos biológicos -, a exemplo do terrorismo biológico, armas nucleares, ameaças
ou guerra nuclear, terrorismo cibernético, terrorismo efetivo, bem como crimes contra o
sistema financeiro e crimes ambientais... Enfim, uma série de questões, reflexo dessa
sociedade dinâmica. Portanto, são bens jurídicos supraindividuais, que começam na
tessitura social política e legislativa, devendo se observar com peculiaridade e ênfase.

É com base nessa situação de dicotomia entre riscos clássicos, defendidos e tutelados
pelo Direito Penal Clássico, e riscos globais e democráticos, que passa a surgir um debate
sobre eventual necessidade de modernização do Direito Penal. São riscos que,
aparentemente, não possuem a efetiva resposta e proteção estatal.

Ora, se temos riscos sociais existentes, e há um sentimento (fabricado, artificial ou


real) de que aqueles riscos não estão efetivamente protegidos, são valores limites da sociedade
que precisam de uma tutela, e o Direito Penal Tradicional não os cobriria. Logo,
encontrávamo-nos na seguinte celeuma: é quase que intuitivo que o Direito Penal precisa ser
erigido à solução para esses problemas.

De um lado, tem-se a sensação de que o Direito Penal é capaz de dar proteção para
os riscos tradicionais – o que é uma falácia, mas vamos partir do pressuposto que é esse o
sentimento tendencioso da sociedade, ou o sentimento fabricado que se quer acreditar -,
naturalmente é preciso modernizar o Direito Penal para proteger esses riscos globais, pós-
modernos e difusos (Direito Penal Difuso ou Liquefeito).

O fato é que teríamos duas possibilidades: modernizar, abrindo mão de riscos antigos
que não fariam mais tanto sentido, enxugando a legislação criminal interna ou, de outra sorte,
ampliar e criar dois braços do Direito Penal, sem abdicar do viés tradicional, criando um

40
novo direito penal. Eis que teremos o chamado Direito Penal Securitário ou Segurador.
Esta foi a opção aderida por boa parte dos países. Daí o inchaço (ou expansão, usando um
termo técnico) do Direito Penal.

Esse novo Direito Penal, Securitário ou Segurador, possui características


emblemáticas e importantes, que necessitam de atenção por parte de quem o estuda.
Características essas que, muitas vezes, são enxergadas na própria legislação interna brasileira.
Sobretudo desde o final dos anos 90, quando o novo direito penal – ou direito penal
moderno, securitário ou segurador – vem se intensificando. Vejamos:

(i) Respostas punitivas exacerbadas: há uma tendência de gerar uma alta


punitividade em abstrato, supostamente para tutelar e proteger esses bens jurídicos.

Como exemplo, podemos citar a Lei 11.343/06, a lei de drogas. Na lei anterior, a
pena mínima para o tráfico era de 03 anos. Com o discurso de aliviar a situação do usuário,
o art. 2811 foi incluído para despenalizar (como optou por qualificar o STF) a conduta de
consumo pessoal de drogas. Em contraposição, a legislação novel exacerbou ainda mais a
pena do tráfico (05 a 15 anos), sob a justificativa de tutelar o bem jurídico “saúde pública”.
O grande problema é que muitas vezes, na aplicação prática, esses conceitos são facilmente
manipuláveis, e vários usuários passaram a ser taxados como traficantes.

11 Lei 11.343/06. Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para
consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas
destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física
ou psíquica.
§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da
substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais,
bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco)
meses.
§ 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo
prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais
ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se
ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que
injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento
de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.

41
(ii) Bens jurídicos supraindividuais: temos um cardápio, cada vez maior e
moderno, de legislações punindo violações ao sistema financeiro nacional, meio ambiente,
saúde pública, fé pública, sistema de justiça... São bens jurídicos dificilmente observáveis de
maneira concreta. É a chamada proliferação de bens jurídicos supraindividuais protegidos
pelo Direito Penal Moderno.

(iii) Proliferação da tipologia de delitos de perigo abstrato;

(iv) Antecipação punitiva e

(v) Legislação penal simbólica em profusão: É a própria lei que pressupõe a


lesividade da conduta, independentemente de a conduta ter lesado ou gerado ameaça
concretamente. Inicialmente, levou-se a defesa da inconstitucionalidade desses crimes de
perigo abstrato, uma vez que para haver crime no estado democrático de direito, deve existir,
efetivamente, lesão ou risco de lesão no caso concreto. Isso porque, para que seja crime, não
basta que a conduta potencialmente venha a gerar um crime.

Há o desvalor da conduta, mas é preciso haver um desvalor do resultado. Se esse


resultado desvalorado é impossível de se dar no caso concreto, ou seja, se, no caso concreto,
não houver risco de lesão ou ameaça de lesão ao bem jurídico, a ideia de consubstanciar um
crime consumado não faz sentido.

Entretanto, nos chamados crimes de perigo abstrato, existe essa concepção. É a


própria lei que pressupõe, independentemente do caso concreto, que há uma lesão ou ameaça
de lesão. O STF e o STJ vêm, reiteradamente, de maneira tranquila, apontando pela
constitucionalidade, ou seja, pela possibilidade de existência da tipificação de crimes de
perigo abstrato. O objetivo dessas tipificações seria evitar e antecipar a punição. Antecipa-se
uma punição de uma conduta que, no caso concreto pode até, sequer, ter gerado um mínimo
risco efetivo a um bem jurídico. No entanto, será crime, pois a lei diz que a própria conduta
deve ser pressuposta como geradora de perigo ou ameaça de lesão.

Essa antecipação punitiva culmina a proliferação de uma legislação penal


simbólica (legislação penal simbólica em profusão).

Como exemplo dessa legislação penal simbólica, pode-se citar a Lei de Crimes
Hediondos (Lei nº 8.072/90), que consistiu na resposta do poder legislativo, em razão da
pressão da imprensa e dos poderes econômicos, ao sequestro do empresário paulistano

42
Abílio Diniz, em dezembro de 1989. Na prática, não trouxe qualquer resultado útil e desejado
para além do simbolismo que é reproduzido até os dias de hoje.

Outro exemplo da legislação penal simbólica foi a inclusão do homicídio qualificado


no rol de crimes hediondos. Não havia tal previsão quando do assassinato da atriz Daniela
Perez, filha da autora de novelas Glória Perez. Houve uma grande mobilização com apoio
da mídia, resultando na modificação.

A grande questão não adentra o mérito de ser ou não correto tais modificações e
inovações legislativas, mas sim envolve a ideia do simbolismo. É o que tipicamente marca o
novo direito penal. É o direito penal mostrando sua força e condição de dar respostas
exigidas pela sociedade.

Aqui se adentra no na concepção da expressão “Espiritualização ou


Desmaterialização ou Liquefação dos Bens Jurídicos”. Se antes, no direito penal
tradicional, tínhamos bens jurídicos palpáveis, enxergáveis e singularizáveis, no novo direito
penal passamos a ter uma espiritualização, ou seja, uma desmaterialização, uma difusão de
bem jurídicos.

Quando nos depararmos com essa tendência de espiritualização, ausência de


materialização ou desmaterialização, ou, ainda, liquefação, é, justamente, a inclinação do
novo direito penal segurador de tutelar bens jurídicos difusos ou supraindividuais.

4.2 Teoria das Janelas Quebradas, Movimento Lei e Ordem e Tolerância


Zero
Nesse contexto de ampliação do espectro de atuação do Direito Penal, teremos
alguns estudos, teorias e políticas criminais importantes de serem anotadas e revisadas. Tanto
para complementar a compreensão da lógica da expansão do Direito Penal à luz da sociedade
de risco, como por ser objeto de questões de concurso.

Os pontos são: Teoria das Janelas Quebradas, Movimento Lei e Ordem e a Política
de Tolerância Zero.

Começaremos pela Teoria das Janelas Quebradas, já que em tempos históricos ela se
apresenta, de maneira mais clara, como a primeira desses movimentos estabelecidos dentro
da sociedade norte-americana.

43
a) Teoria das Janelas Quebradas (1982)
- James Wilson e George Kelling – baseado no experimento do psicólogo Philip Zimbardo
(Stanford).
- Necessidade de reparação imediata de qualquer avaria – política criminal?

A teoria das janelas quebradas foi fundamentalmente estabelecida, no que interessa à


criminologia, nos estudos de James Wilson e George Kelling, realizados na década de 80 nos
Estados Unidos da América. Para tanto, esses dois estudiosos se pautaram no experimento
do psicólogo Philip Zimbardo, da Universidade de Stanford.

O experimento de Philip Zimbardo consistiu em colocar um carro inteiro,


estacionado e abandonado, em uma região mais rica e abastarda da cidade, e outro carro, nos
mesmos moldes, em uma região mais pobre. No dia seguinte, percebeu que na região mais
rica o carro continuava intacto, ao passo que na região menos favorecida o carro estava todo
depredado.

Zimbardo avançou nos seus estudos e observações. Para isso, modificou a situação
da seguinte forma: fez o mesmo experimento na região mais rica da cidade, deixando o carro
com uma janela visivelmente quebrada. No outro dia, ao retornar, percebeu que,
diferentemente do que ocorrera na primeira experiência, deixando uma janela quebrada, o
carro tinha sido todo destruído, apesar de ali ser uma região nobre e abastarda.

A partir dessa experiência, James Wilson e George Kelling criaram a teoria das janelas
quebradas, que consubstanciava, em essência, na lógica de que não seria possível deixar
aspectos de abandono, desleixo ou descaso, é necessário reparar de maneira imediata
toda e qualquer imperfeição de conduta. Do contrário, gerar-se-á sensação e aparência
de descaso, abandono e indiferença estatal.

A analogia foi a de que, ao colocar um carro inteiro nada acontece com ele, porque
não gera naquela sociedade o sentimento de descaso, desprezo e resignação. Mas, quando se
deixa e abandona um carro com a janela quebrada, produz o sentimento de que “se o dono
ou responsável não está ligando, porque a população ligaria?”, atuando, assim, na esfera
criminológica do indivíduo, estimulando a criminalidade. Essa é a lógica da teoria das janelas
quebradas.

Apenas de sofrer severas críticas, essa lógica é muito defendida ainda nos dias de
hoje, por ser força motriz e por gerar a necessidade de um panpenalismo, ou seja, de uma

44
ultrapunitividade, culminando com uma ótica de tolerância zero, na qual se necessita apontar
a lei e a ordem, seja qual for. O que acaba por resgatar a máxima do direito romano dura lex,
sed lex (a lei é dura mas é lei).

b) Movimento Lei e Ordem e Tolerância Zero


- Lei e Ordem: Nova York, 1990, Rudolph Giuliani – Operação Tolerância Zero;
- Direito Penal Máximo ou Panpenalismo;
- Reflexos e Críticas da política criminal.

Na década de 80 a teoria das janelas quebradas foi ganhando força e adeptos. Assim,
em Nova Iorque, no início dos anos 90, os índices de criminalidade passaram a preocupar
bastante os nova-iorquinos. Naquele momento assume o governo o prefeito Rudolph
Giuliani, trazendo consigo o movimento Lei e Ordem e a política de Tolerância Zero.

A teoria das janelas quebradas evolui de modo a chegar nessa idealização. Rudolph
Giuliani ficou mundialmente conhecido, justamente por implantar e difundir a lógica da lei
e ordem. Enquanto prefeito, ele defendia a necessidade de a população entender, claramente,
que havia lei, e quem a violasse, seja qual e como fosse, haveria ordem.

A desordem não seria admitida porque, simbolicamente, geraria o sentimento de uma


janela quebrada (sentimento de desleixo), que fomentaria a criminalidade. A partir daí,
instaurou-se o programa de política criminal de Tolerância Zero. É dizer, toda e qualquer
violação seria efetivamente punida.

Nesse contexto, fundado nessa lógica, vislumbra-se com maior intensidade a


aplicação, numa grande cidade mundial, do chamado Direito Penal Máximo – movimento
por alguns apontados como Panpenalismo. É o direito penal como solução para todos os
males sociais. Ao menos, essa é a ideia vendida pela política da Tolerância Zero e o
movimento Lei e Ordem.

Nesse período, reconhece-se que houve uma melhora efetiva dos índices de
criminalidade. Esse foi inclusive um dos alicerces da propaganda política de Rudolph
Giuliani, que tinha pretensões de se tornar presidente dos Estados Unidos.

Acontece que tudo isso culminou com uma ampla repressão e um aumento
significativo da população carcerária. Importante lembrar que nos EUA, a maior parte das

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penitenciárias são terceirizadas, é dizer, são negócios lucrativos. Logo, toda essa lógica passou
a representar um movimento economicamente proveitoso para alguns.

Naturalmente, como já mencionado, na época houve uma diminuição dos índices de


criminalidade, e foi essa a propagada do movimento Lei e Ordem e da política de Tolerância
Zero. Hoje, contudo, há um reconhecimento, inclusive por parte do próprio Rudolph
Giuliani, que não foi essencialmente a repressão punitiva generalizada que justificou a
redução dos índices de criminalidade.

Na verdade, aponta-se como elemento propulsor que, concomitantemente à política


de Tolerância Zero, houve uma requalificação dos espaços urbanos com a retomada do
crescimento da economia, e o melhoramento de certas regiões nas quais a criminalidade era
mais intensa. Assim, o ambiente passou a ficar propício para a melhora dos índices de
criminalidade.

Há quem diga, inclusive, que mesmo antes da política de Tolerância Zero e do


movimento Lei e Ordem, já era possível se observar os índices de criminalidade de Nova
Iorque reduzindo, pois já havia essa restauração do ambiente econômico e social. Mas se
aproveitou o ambiente e a sinalização de melhora para a edificação de um cartão de visita e
de uma marca, até hoje conhecida e defendida por muitos, da Lei e Ordem e da política de
Tolerância Zero.

Ainda há muita discussão se esse panpenalismo é a panaceia e o efetivo necessário


para a melhora do ambiente e dos índices de criminalidade, ou se o pano diferenciador e
destoante que culmina com esse melhoramento seria o investimento em aspectos sociais ou
econômicos.

4.3 Velocidades do Direito Penal e o Direito Penal do Inimigo


- Expansão do Direito Penal (Jesus-Maria Silva Sánchez). Dois “blocos” do Direito Penal.
- Formação de um “Terceiro Bloco”? Direito Penal do Inimigo?

Chama-se “velocidades do direito penal” o ritmo que se dará à aplicação do Direito


Penal. Como vai se estabelecer e procedimentalizar, - tanto em termos de intensidade,
velocidade, celeridade e ritmo – a observância de garantias penais, processuais e
constitucionais, para a aplicação do Direito Penal? É esse o aspecto a ser observado e
modificado para a adequada qualificação do Direito Penal.

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A princípio, tínhamos duas velocidades. Essas velocidades foram intensificadas,
quanto aos seus estudos, pelo penalista espanhol Jesus-Maria Silva Sánchez. A ideia do
professor Silva Sánchez, inicialmente, era a de que o Direito Penal poderia ser dividido,
idealizado ou identificado a partir de dois “blocos” diferentes:

BLOCO I BLOCO II

Infrações às quais são cominadas Infrações que veiculam sanções


penas de prisão. penais diversas da prisão.

Em suma, a diferença entre os dois blocos varia quanto ao ritmo de aplicação do


Direito Penal. Enquanto os crimes que envolvem privação de liberdade (bloco I, de primeira
velocidade) demandam um processo mais longo (repleto de garantias protegidas e previstas
pelo legislador e o constituinte, que culminarão, possivelmente, em face de condenação,
numa privação de liberdade), o bloco II (segunda velocidade), como não envolve,
efetivamente, um risco à liberdade, já que seriam punidos com restrições de direito,
admitiriam uma flexibilização das garantias legais e processuais penais. Veremos mais
didaticamente adiante.

O fato é que, evoluindo o estudo, o professor Silva Sánchez, em edições diferentes


de duas obras, identifica um movimento, sobretudo a partir do ano de 2001 - não
exclusivamente, mas se destaca nesse momento -, com os ataques ao World Trade Center (as
Torres Gêmeas, em 11 de setembro na cidade de Nova Iorque) à luz do estudo bastante
desenvolvido pelo penalista alemão Gunther Jakobs12.

Sem dúvidas, o professor Gunther Jakobs é o maior destaque hoje dentro do Direito
Penal mundial, mas também um dos mais polêmicos, justamente pela difusão da sua ideia do
Direito Penal do Inimigo.

Ao Direito Penal do Inimigo se atribuiria alguns aspectos do bloco I (primeira


velocidade), e alguns aspectos do bloco II (segunda velocidade), formando um híbrido que
o professor Silva Sánchez chama de terceira velocidade do Direito Penal. Vejamos essas
velocidades mais detidamente.

a) Direito Penal de Primeira Velocidade

12
Muito estudado e de maior renome, mas também muito criticado pelo perfil semi-nazista atribuído a ele por
alguns estudiosos.

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- “Essência do Direito Penal”
- (i) Pena Privativa de Liberdade + (ii) Respeito intransigente às garantias constitucionais e
processuais do cidadão.

Quando se pensa em Direito Penal, naturalmente, associa-se à privação da liberdade.


Isso porque o Direito Penal é, basicamente, o único que enseja como algo ordinário a
privação da liberdade de alguém. No Brasil, por exemplo, com exceção do devedor de
alimentos, somente existe essa possibilidade.

Então, a essência do Direito Penal é a pena privativa de liberdade, e a primeira


velocidade está associada a isso.

Sendo assim, a primeira velocidade estabelece que o ritmo de aplicação do Direito


Penal, que culminará com a pena privativa de liberdade, deve ser numa marcha mais
cuidadosamente observada, com respeito intransigente, inflexível, às garantias
constitucionais e processuais do indivíduo. Não daria para flexibilizar tais garantias e, ao
fim e ao cabo, sancionar alguém com privação de liberdade.

A primeira velocidade defende, então, que para prender é preciso respeitar as


garantias constitucionais e processuais. Naturalmente, em razão do devido processo legal, a
tendência é que a velocidade de aplicação seja mais lenta, ao menos em contraposição ao
direito penal de 2ª velocidade, cuja marca principal é a maior celeridade devido à flexibilização
e relativização de garantias.

b) Direito Penal de Segunda Velocidade ou Direito Penal


Reparador
- Penas Alternativas (restritivas de direito) + Relativização e Flexibilização das Garantias;
- Modelo (aparentemente) Antagônico (ex.: Lei 9.099/95)

O direito penal de segunda velocidade se contrapõe, em termos, ao de primeira


velocidade por dois motivos: (i) se a primeira velocidade está para os crimes que ensejam
pena privativa de liberdade, na segunda velocidade teremos aqueles crimes que culminam,
em regra, com penas restritivas de direito; (ii) se na primeira velocidade há a observância
intransigente e inflexível das garantias constitucionais e processuais, na segunda velocidade
há uma clara flexibilização.

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O exemplo dado, à luz da legislação brasileira, é a Lei 9.099/95, em especial o
instituto da transação penal, autorizada pela Constituição Federal de 1988. Que nada mais é
do que a aplicação de uma sanção restritiva de direito àquele que supostamente cometeu um
fato, cuja pena máxima idealizada no tipo penal não ultrapassa os dois anos (crime de menor
potencial ofensivo) sem que haja processo.

Na transação penal, o indivíduo se submete e precisa cumprir uma “pena”, chamada


de “condições”. No entanto, apesar da mudança de nomenclatura são efetivamente penas,
pois se confundem com as penas restritivas de direito. Assim, depois de cumpri-las, é como
se nunca tivesse existido processo ou condenação.

Perceba que a segunda velocidade é um modelo antagônico. Isso porque, se de um


lado há uma pena mais simples (restritivas de direito), por outro, para a sua materialização,
estimula-se a submissão a uma relativização ou flexibilização de garantias constitucionais e
processuais.

c) Direito Penal de Terceira Velocidade ou Direito Penal do


Inimigo
- Simbiose das 2 anteriores e Rigorismo Penal: (i) Pena Privativa de Liberdade + (ii)
Flexibilização das Garantias;
- Origem: Mezger ou Gunther Jakobs;
- Direito Penal do Cidadão x Direito Penal do Inimigo;
- Qual é o processo para a formação e identificação do “inimigo”? (i) Reincidência, (ii)
Habitualidade, (iii) Delinquência Profissional e (iv) Organizações Criminosas;
- Influência de Jean Jacques Rousseau (Contrato Social), Johan Fichte (Teoria do Contrato
do Cidadão) e Kant;
- Direito Penal do AUTOR.

Na concepção da sociedade moderna (sociedade de risco) teremos novas ameaças


globalizadas. É nesse contexto que o professor alemão Gunther Jakobs idealiza a figura do
direito penal do inimigo, que o professor Silva Sánchez atribui a um terceiro bloco, ou
terceira velocidade.

A terceira velocidade, na verdade, é uma simbiose das duas velocidades anteriores.


São selecionados dois aspectos, combinando-os, e passando a aplicá-los em um terceiro
ritmo. São: a pena privativa de liberdade (elemento da 1ª velocidade, que lá, para sua

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aplicação, não renunciaria à observância das garantias constitucionais e processuais) aliada a
flexibilização e relativização das garantias constitucionais e processuais (elemento da 2ª
velocidade). Em tese, pela lógica constitucional, é uma combinação incompatível.

Teremos, na terceira velocidade, à luz do direito penal do inimigo, penas privativas


de liberdade – exacerbadas, inclusive -, mas através da flexibilização ou relativização das
garantias. Abre-se mão do divido processo legal, que consubstancia a dignidade da pessoa
humana na esfera processual, para prender e tolher a liberdade de um indivíduo. É essa a
ideia.

Mas a terceira velocidade não se aplicaria a qualquer cidadão. Na idealização mais


complexa da teoria, a terceira velocidade ou direito penal do inimigo dissociará a ideia do
cidadão, criando um direito penal para esse cidadão, e outro direito penal para o inimigo.

Vale anotar que essa concepção de direito penal do inimigo vem sendo,
majoritariamente, atribuída a Gunther Jakobs. Contudo, uma menor parte da doutrina – por
todos, cita-se Rogério Grecco -, aponta que, apesar do desenvolvimento de Jakobs, a teoria
não seria inédita, é algo que já fora trabalhado, idealizado e efetivado anteriormente por
Edmund Mezger, jurista do regime nazista de Hitler13.

Quanto à figura do inimigo, a ideia de Jakobs não seria flexibilizar direitos e garantias
fundamentais para o cidadão. O direito penal teria uma função social (Jakobs é um
funcionalista – funcionalismo sistêmico ou radical), sendo assim, a uma regra violada deve
ser aplicado o direito penal, respeitando, claramente, as garantias e direitos fundamentais,
constitucionais e processuais desse cidadão. A função do direito penal é reafirmar valores e
ordem.

Para o inimigo, por sua vez, é diferente. O inimigo é o anti-cidadão. As regras do


jogo são para quem está jogando. Pode até violá-las, mas deve respeitá-las e aderir ao pacto
social e normativo. O inimigo não adere a esse pacto. O inimigo é aquele que,
sistematicamente, atua com o modus operandi violador, sem qualquer valorização e respeito às
regras do jogo. A esse que não adere às regras, não se deve tratar como cidadão, mas sim
como inimigo. E ao inimigo não se observa as mesmas garantias previstas para o cidadão.

13 Essa atribuição do direito penal do inimigo a Mezger pode ser mencionada numa fase subjetiva.

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Quanto ao processo de formação e identificação do inimigo, temos que será
paulatinamente formado, não a partir de um comportamento violador apenas, mas a partir
da reincidência, da habitualidade criminosa, daquilo que Jakobs chama de delinquência
profissional que culmina em grandes organizações criminosas, de atuação interna, regionais,
nacionais e, até internacionais – perpassando, aqui, pelo terrorismo.

O ápice da defesa e difusão do direito penal do inimigo se deu com os ataques da Al-
Qaeda às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Foi nesse ambiente que proliferou
aquilo que se chamou de sociedade de risco – sem dúvidas, maior força motriz que o evento
do 11 de setembro de 2001 não houve – fazendo com que Jakobs passasse a sustentar que
as organizações terroristas renunciavam às suas condições de cidadãos. E se cidadão não são,
devem ser taxados como inimigos e assim tratados.

Neste ponto, consegue-se perceber um embasamento interessante de Jakobs a partir


dos estudos defendidos pelos filósofos Jean Jacques Rousseau, Johann Fichte e Immanuel
Kant. Todos eles apontavam a lógica que os cidadãos se reúnem entre si e abrem mão de
parcela da sua autonomia, ou seja, do seu “direito natural”, em um “contrato social”, criando
uma sociedade. O Estado que daí surgiria, viabilizava, regulamentava e aplicava a
sistematização de normas e regras para consubstanciar a convivência mais pacífica e ordeira
em comunidade.

Com base nessa lógica, valendo-se dos escritos do próprio Immanuel Kant, que
apontava aquele reincidente e costumeiramente violador de regras como não respeitador do
Estado Comunitário Legal, Jakobs fomenta a ideia do direito penal do inimigo. Teríamos o
direito penal focado no autor, e o inimigo não deveria ser processado e meramente punido,
mas sim enfrentado e combatido. E no combate, tudo vale. Não há que se falar em regras,
garantias e devido processo legal – é estado de exceção, ataque e guerra ao inimigo.

Claramente, ao taxar alguém como inimigo, inverte-se toda a lógica do Direito Penal
Democrático, aquele calcado nos fatos, ou seja, o chamado Direito Penal do Fato, pelo
Direito Penal do Autor. Aqui, permite rememorar Ferrer, que já trabalhava a ideia do Direito
Penal do Autor, quando afastava e refutava, com maior intensidade, a questão do livre
arbítrio em razão de um determinismo comportamental, renunciando a ideia de culpabilidade
e defendendo a periculosidade.

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Essa é a ideia do Direito Penal do Inimigo, atribuído pelo professor Silva Sánchez
como a terceira velocidade do Direito Penal, já que dita um novo ritmo de aplicação do
direito.

d) Direito Penal de Quarta Velocidade


- Eugênio Raul Zaffaroni e Daniel Pastor (Neopunitivismo).
- Condutas Criminosas descumpridores de Tratados, Convenções e Compromissos
Internacionais;
- Tribunal Penal Internacional como foro competente para julgamento;
- Direito Penal Internacional, Incidência Política na Seletividade e violações a princípios da
Reserva Legal, Juiz Natural e Irretroatividade da Lei Penal.

Já há quem fale e trabalhe com o conceito de quarta velocidade do direito penal. Essa
concepção, não necessariamente com essa nomenclatura, pode ser extraída, na América
Latina, de obras do professor argentino e ex-presidente da Suprema Corte da Argentina,
Eugênio Raul Zaffaroni, bem como do também argentino Daniel Pastor, que vem se
destacando nessa abordagem, chamada por ele não de quarta velocidade, mas sim de
neopunitivismo14.

Alguns falam que a quarta velocidade seria um direito penal do inimigo específico,
internacionalizado 15 . Apesar dessa qualificação, a quarta velocidade ou o neopunitivismo
possui contornos e alicerces incertos, por ser, ainda, uma concepção incipiente. Entretanto,
podem-se apontar aspectos de internacionalidade como principal diferenciador se
comparado à terceira velocidade (direito penal do inimigo).

Estamos, então, diante de condutas criminosas descumpridoras de tratados,


convenções e compromissos internacionais. Há um foro específico que deve julgar esses
fatos tidos como violadores criminais internacionais, que é o Tribunal Penal Internacional -
TPI.

As obras que trabalham o neopunitivismo e o direito penal de quarta velocidade,


amiúde, mencionam o caso da ex-Iugoslávia e o genocídio de Ruanda, nos quais o TPI criou

14 Se a expressão “neopunitivismo” for cobrada em prova objetiva, provavelmente virá associado a Daniel
Pastor, já que o termo é bastante desenvolvido por ele. Do mesmo modo, se o tema for cobrado em provas
subjetivas, ou existir a oportunidade de abordá-lo, o autor deverá ser mencionado.
15 Em prova objetiva, uma assertiva associando a quarta velocidade a uma especialização do direito penal do

inimigo, ou ainda, afirmando ser um direito penal do inimigo marcadamente internacional, deve ser registrada
como CORRETA.

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tribunais específicos para julgar os crimes contra a humanidade cometidos que violavam,
justamente, aquelas normas, valores, tratados, compromisso e convenções internacionais.

Importante lembrar que também há, aqui, uma extrema flexibilização ou, por melhor
dizer, uma inobservância de valores caros para as instituições democráticas. O Direito Penal
Internacional ou neopunitivismo, dentro da seara do panpenalismo – ou do Direito Penal
como solução para todos os males – possui uma marcada incidência política na
seletividade e na violação das garantias fundamentais e processuais.

Há de se questionar, por exemplo, porque algumas nações que sistematicamente


violam tratados, convenções e compromissos internacionais não são objeto de retaliação,
apreciação e de julgamento por esse Tribunal Penal Internacional. E quando se elege e
seleciona quem vai se submeter, os julgamentos são marcadamente qualificados com a
flexibilização de valores caros, a exemplo do princípio da reserva legal. Algumas vezes, a
criminalização e punição se dão em relação a atos concretamente não previstos, ou não
delimitados, no aparato normativo.

Nesse sentido, a violação mais severa e mais questionada é em relação ao juiz natural,
isso porque o TPI cria o tribunal que julgará o caso concreto. Se o tribunal é criado para o
julgamento, claramente estaremos diante de uma violação ao princípio do juiz natural, ao
devido processo legal – pelo qual se materializa a dignidade da pessoa humana -, bem como
a fixação de um julgamento realizado por um tribunal de exceção.

É algo associado a aspectos internacionais e panpenais, com marcada incidência


política como critério de seletividade, muitas vezes incompreendidos, mas efetivamente
existentes.

5. PREVENÇÃO DA INFRAÇÃO PENAL

Por falar em prevenção do crime, entende-se todas as medidas tomadas para que o
fato delituoso não chegue a se efetivar. Ou seja, são aquelas ações que visarão a evitar o
crime.

O delito pode ser evitado por dois caminhos distintos, mas complementares. O
primeiro é aquele que atua de forma indireta, e leva em consideração o ser e o meio em que

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vive. Ou seja, todas as medidas economico-sociais que visam uma melhoria na qualidade de
vida acabam por, indiretamente, evitar o cometimento de delitos.

De outra sorte, teremos intervenções diretas, visando a prevenção clara e concreta


do ato delituoso, como a atuação da polícia ostensiva e a punição, em si.

Assim, podemos identificar tipos de prevenção, quais sejam:

PREVENÇÃO PRIMÁRIA São medidas gerais e indiretas, que visam


melhorias sociais e atuam no que poderia
ser a gênese do crime (enfoque etiológico),
evitando-a. Aqui teremos medidas e ações
econômicas, culturais e sociais, tais como
programas de moradia, educação, saúde e
bem-estar gerais. Essas medidas possuem
efeito a médio-longo prazo e se direcionam
a toda população.

PREVENÇÃO SECUNDÁRIA Atua diretamente visando grupos que já


carregam o estigma da criminalidade,
ocorrendo após ou na iminência de
condutas criminosas. Por exemplo, a
prevenção secundária visa grupos e facções,
atuando por meio de policiamento, da
ordem urbana, do controle dos meios de
comunicação. Essas medidas possuem
efeito a curto-médio prazo, e é a que mais
costuma acontecer, tendo em vista o
aumento da criminalidade.

PREVENÇÃO TERCIÁRIA Possui destinatário certo: o apenado. E tem


como objetivo evitar a reincidência. Atua
por meio de programas de ressocialização e
reinserção social, inclusive dentro do
sistema penitenciário

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6. MODELOS DE REAÇÃO AO CRIME

Os modelos de reação ao crime estão umbilicalmente ligados à prevenção da infração


penal. Explico. Se a prevenção visa evitar o fato delituoso, quando, mesmo assim, este
acontece, inevitavelmente o Estado irá reagir.

É dizer que, diante do crime se espera uma reação social contrária à violação
cometida. Assim, diante das evoluções do direito criminal, foram identificados três modelos
de reação. Vejamos:

Modelo Dissuasório (Clássico) O modelo clássico visa a pena como


retribuição ao mal causado, que lhe deve ser
proporcional, além de intimidatória.

Neste modelo atuam apenas o Estado e o


agente criminoso. Não há espaço para a
vítima e a sociedade.

Modelo Ressocializador O modelo ressocializador, além de aplicar a


punição, busca reinserir o agente infrator na
sociedade.

Questiona-se a utilidade da punição não


apenas para a sociedade como prevenção,
como também para o agente que se pune.
Além da retribuição do mal, deseja-se uma
intervenção positiva.

Há uma responsabilização social do Estado


e a participação da sociedade na
ressocialização do agente causador do dano.

Modelo Restaurador (Integrador) O modelo restaurador busca estabelecer o


status quo ante dos atores existentes no
conflito. É a chamada Justiça Restaurativa.
Há uma preocupação em recuperar o
agente delituoso, amparar a vítima e
recuperar o equilíbrio social. Chama-se a

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comunidade para tomar as rédeas do
centro do conflito, incentivando métodos
extrajudiciais e mais eficazes na construção
da justiça. O objetivo é a restauração do
bem-estar por meio da reparação do dano
causado.

7. VITIMIZAÇÃO PRIMÁRIA, SECUNDÁRIA E TERCIÁRIA

A vítima é um dos componentes do estudo conceitual de crime. Lembre-se que temos


a infrator, o fato criminoso, a vítima e o meios de controle social. A vitimologia é o estudo
desse componente “vítima”, que nada mais é do que aquele ou aquela que sofre diretamente
o ato criminoso. Trata-se de um ramo novo na seara criminal, tendo em vista as primeiras
atenções datarem da década de 1950.

Entendem-se por “vítimas” as pessoas que, individual ou colectivamente, tenham


sofrido um prejuízo, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou mental,
um sofrimento de ordem moral, uma perda material, ou um grave atentado aos seus
direitos fundamentais, como consequência de actos ou de omissões violadores das
leis penais em vigor num Estado membro, incluindo as que proíbem o abuso de
poder.

Esse é o conceito de vítima que se pode extrair da Declaração dos Princípios


Fundamentais de Justiça Relativos às Vítimas da Criminalidade e de Abuso de Poder, da
Organização das Nações Unidas, datada de 1985.

Na vitimologia se estuda a vitimização, um assunto relevante para concursos


públicos. A vitimização nada mais é do que o processo de vitimar algo ou alguém, o processo
de tornar vítima. Esse processo é bastante complexo e envolve várias questões históricas de
poder, seja social ou cultural. Não vamos adentrar, por ora, nesse aspecto.

Vamos focar nas formas de vitimização:

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(i) Vitimização primária: decorre do próprio fato criminoso e das consequências diretas
causadas à vítima, sejam materiais, físicas ou psicológicas. São as experiências pessoais do
ofendido;

(ii) Vitimização secundária: decorre da relação entre a vítima e o próprio sistema de justiça.
Aqui, a vítima é sobrevitimizada pelos atores que deveriam solucionar o conflito. Seja pela
dinâmica do sistema de justiça criminal (inquérito e ação penal), pela ausência de assistência,
ou pela desconfiança da vítima para com o sistema de justiça.

(iii) Vitimização terciária: aqui além de a vítima já carrega os danos do ato criminoso e
aqueles causados pelo próprio sistema de justiça, ela sofre pelo grupo social e falta de amparo
dos órgãos públicos. A vitimização terciária também está ligada à reação da sociedade, dos
grupos de convivência do ofendido. Há exclusão e estigmatização da vítima e ausência de
incentivo a denunciar o delito.

Importante! A vitimização terciária é questão importante no contexto das cifras ocultas da


criminalidade. Isso porque, a vítima, por vezes, deixa de comunicar o crime por receio de
ser revitimizada, bem como por ausência de acolhimento social. Podemos dar como exemplo
o caso das vítimas de violação sexual. Muitas dessas vítimas deixam de levar o acontecido ao
conhecimento do Estado por medo de serem responsabilizadas pelas violações sofridas.

(iv) Vitimização quaternária: há quem fale em vitimização quaternária, que seria,


basicamente, o medo de se tornar vítima. Esse processo se relaciona com o papel da mídia
em alimentar determinado terror e temor a determinadas figuras, considerando-as como
perigosa.

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