Ebook - Criminologia
Ebook - Criminologia
Ebook - Criminologia
Sumário
1. CONCEITO E DEFINIÇÃO. ANÁLISE HISTÓRICA E PROBLEMÁTICA DA EXATA DEFINIÇÃO ..3
1.1 Direito Penal x Criminologia .................................................................................................3
1.2 Conceito Moderno (Luiz Flávio Gomes e Antônio García-Pablos de Molina) .............5
2. CARACTERÍSTICAS DA CRIMINOLOGIA........................................................................................5
3. ESCOLAS E TEORIAS DA CRIMINOLOGIA ....................................................................................6
3.1 Escola Clássica (séc. XVIII e XIX) ......................................................................................6
3.2 Escola Positivista ou Positivismo Criminológico ...............................................................8
3.3 Escola de Chicago (Teoria Ecológica)............................................................................... 19
3.4 Teoria da Anomia ................................................................................................................. 21
3.5 Teoria das Subculturas Criminais ....................................................................................... 24
3.6 Teoria da Associação Diferencial (Edwin Sutherland) ................................................... 25
3.7 Teoria do Labelling Approach, do Etiquetamento ou da Rotulação ............................ 28
3.8 Criminologia Crítica ou Teoria Radical (Matiz Macrossociológica) .............................. 34
4. EXPANSÃO DO DIREITO PENAL ............................................................................................... 39
4.1 Sociedade de Risco ............................................................................................................... 39
4.2 Teoria das Janelas Quebradas, Movimento Lei e Ordem e Tolerância Zero .............. 43
4.3 Velocidades do Direito Penal e o Direito Penal do Inimigo ......................................... 46
5. PREVENÇÃO DA INFRAÇÃO PENAL .......................................................................................... 53
6. MODELOS DE REAÇÃO AO CRIME ............................................................................................ 55
7. VITIMIZAÇÃO PRIMÁRIA, SECUNDÁRIA E TERCIÁRIA ............................................................. 56
2
1. CONCEITO E DEFINIÇÃO. ANÁLISE HISTÓRICA E
PROBLEMÁTICA DA EXATA DEFINIÇÃO
É que o Direito Penal tratava o crime, em essência, como uma “regra anormal da
sociedade”. A sociedade era pautada em regras, e um comportamento anormal - a violação a
uma regra - ensejaria uma punição. Sendo assim, essa violação a uma regra (tida como um
“comportamento anormal”) poderia caracterizar um crime que deveria ser sancionado.
Perceba, então, que o crime tinha uma perspectiva normativa. É dizer, portanto,
que para ser crime no Direito Penal (e era esse o objeto da preocupação), deveria haver uma
delimitação externa a partir do princípio da legalidade, e a sua violação ensejaria uma punição.
3
É esse o campo de abrangência, que na época do surgimento da criminologia, o Direito Penal
se debruçava.
Para contrapor essa ciência normativa (Direito Penal), surge a Criminologia como
uma ciência causal explicativa, com abrangência e objetivo diversos daqueles vistos pelo
Direito Penal.
Analisando o crime para a criminologia e para o Direito Penal, percebe-se que nesse
comparativo há pontos de convergência quanto à matéria-prima – o crime, o
criminoso. Logo, a matéria-prima é a mesma. Só que, tal qual um produto industrializado,
o que se vai fazer a partir daquela matéria-prima é diferente, tendo em vista que o campo de
abrangência e incidência será modificado. A exemplo, do plástico (matéria-prima),
origina-se tanto uma tigela, quanto um capacete. De maneira vulgar, é isso que temos do
crime para o Direito Penal e para a criminologia.
Assim, teremos:
CRIME
4
1.2 Conceito Moderno (Luiz Flávio Gomes e Antônio García-Pablos de
Molina)
Vamos ao conceito que vai nos conceder elementos importantes. Mas, lembre-se! Não
se pode amarrar a ele, pois ainda não temos um conceito uniforme, tamanha é a variedade de perspectivas da
criminologia. Dito isso, vejamos o que diz o conceito de Luiz Flávio Gomes e Antônio García-
Pablos de Molina:
2. CARACTERÍSTICAS DA CRIMINOLOGIA
Antes de adentrar no estudo das escolas da criminologia, cabe destacar algumas
características comuns, que serão reproduzidas e repetidas, pela maior parte dessas escolas,
desde o século XIX até os dias de hoje.
Aqui cabe uma interessante apreciação do professor Sérgio Salomão Schecaira. Ele
diz que, a criminologia “ocupa-se do estudo do delito, do delinquente, da vítima e do controle
social do delito e, para tanto, lança mão de um objeto empírico e interdisciplinar”.
5
Isso porque o método principal dos penalistas é o dedutivo. É dizer, ao contrário do método
indutivo, na dedução parte-se das leis gerais para o caso concreto.
Grande parte da doutrina indica que nesse período ainda não era possível cunhar
efetivamente a existência da criminologia. Desse modo, se não era possível apreciar a
6
existência da criminologia como ciência, tampouco era possível classificá-la como uma escola
(que pressupõe matizes uniformizados, modelos padronizados, alicerces homogêneos) tudo
o que ainda não havia nessa época.
Apesar disso, o período clássico, ou a “Escola Clássica”, sem dúvida alguma é muito
relevante para a criminologia, tendo em vista todas as contribuições teóricas e de bagagem
conceitual. Entretanto, não esqueça: não é possível identificar claramente uma escola, em
razão da ausência das uniformidades mencionadas.
A bem da verdade, a maior parte da doutrina sustenta que nesse momento houve
uma tendência de contribuição significativa do Iluminismo para o que, mais tarde, viria
a se tornar a criminologia, que somente se uniformiza a partir do Positivismo.
Dito isso, são poucos os teóricos que apontam a Escola Clássica como uma escola
embrionária da criminologia, trazendo como partícipes fundamentais alguns autores de
renome que são estudados no Liberalismo Penal - Direito Penal Liberal1. Como exemplos,
destacam-se dois:
1
Direito Penal Liberal pode ser compreendido como aquele erigido por meio do Estado Liberal. Ou seja,
aquele baseado na intervenção mínima, compreendendo a esfera penal como ultima ratio. Há uma limitação do
poder punitivo do Estado, bem como a proteção dos chamados direitos fundamentais.
2 A máxima do utilitarismo preconiza: “Agir sempre de forma a produzir a maior quantidade de bem-estar”.
De forma simplória, o utilitarismo considera que, para ser moralmente correta, a ação do agente deve ter como
finalidade/resultado garantir maior bem-estar e prazer ao maior número de pessoas possível, permitindo que
se cause dor e sofrimento para alguns se o resultado for favorável para a maioria. Perceba que importa a
consequência da ação do agente, o resultado. Por isso se fala que o utilitarismo é uma doutrina moral
consequencialista.
7
Tratava-se de um edifício constituído por uma torre central, que permitiria o
carcereiro manter o prisioneiro sobre constante observação, sem que fosse percebido. Em
outras palavras, o esquema viabilizava a visão completa do comportamento dos presos e
dificultava o acesso e o contato visual dos presos entre eles, e com os responsáveis por
manter a ordem. Observe uma imagem do que seria o edifício:
Obs.: O modelo Panóptico de Bentham é utilizado por Michel Foucault, filósofo e teórico
social francês, para se referir à busca incessante das sociedades ocidentais modernas pela
disciplina e controle. Tanto é que segundo o filósofo, não só as prisões seguiriam este
modelo, mas todas as demais estruturas hierárquicas como os hospitais, os quartéis, as
fábricas e as escolas. Isto porque, por meio da vigilância permanente e invisível, conseguir-
se-ia ter a submissão e a obediência de tal forma que as grades e barras para a dominação
seriam completamente desnecessárias.
Pois bem. Beccaria e Bentham possuem pontos em comum. Ambos são figuras
relevantes dentro do Movimento Iluminista, momento esse vinculado a um liberalismo, que
historicamente, se impõe após um absolutismo exacerbado, tanto no campo político, quanto
no campo das ciências.
8
3.2.1 Características3
(i) Método positivista: O Positivismo, do filósofo francês Auguste Comte, tinha como
intuito tentar atribuir às ciências sociais explicações calcadas na mesma lógica das ciências
exatas, naturais e biológicas. O positivista busca trazer a racionalidade das explicações causais
das ciências naturais, exatas e biológicas para os fenômenos sociais e ciências humanas. É
aqui que se desenvolvem as ciências etiológicas. Temos, então, a Etiologia como o estudo
das causas.
3As características em vermelho são muito importantes e já foram objeto de, pelo menos, quatro questões da
Cespe/Cebraspe: “aponte as características do chamado Positivismo Criminológico”. Nas assertivas, seja de
verdadeiro ou falso, seja de múltipla escolha, a resposta apontada como correta foram as destacadas.
9
ciências (sociologia, antropologia, biologia, psicologia e tantas outras). E aqui, ratifica-se com
o positivismo. Isso porque, os pontos de contato são muitos, incluindo as ciências exatas e
naturais.
(v) Negação do livre arbítrio e crença no determinismo: Essa característica fica mais
clara a partir de Enrico Ferri. Vejamos. O Direito Penal é pautado no livre arbítrio do
indivíduo. Aquele que não se comporta de acordo com as regras de convivência, tinha o livre
arbítrio para se comportar de maneira “anormal”, contrariando-as. Entretanto, esse
comportamento anormal/contrário a uma regra estabelecida, que a violava, ensejaria uma
sanção. Essa é a ideologia formada para a concepção de crime do Direito Penal.
3.2.2 Contextualização
- Insatisfação com o “direito penal clássico”. Determinismo Comportamental x Livre
Arbítrio.
- Charles Darwin e “A origem das Espécies” (1859).
10
concede suporte ao positivismo criminológico. A partir desse momento o Direito
Criminológico, ou a Criminologia, começa a ser encampada.
Cesare Lombroso foi um psiquiatra e cientista italiano que viveu no final do século
XIX. No ano de 1876, Lombroso publicou um livro intitulado “O homem delinquente”.
Nesse livro, e depois nos seus estudos, trouxe avanços muito importantes. Mas vale salientar,
que apesar de ter se tornado mundialmente conhecido, as ideias lombrosianas carregam uma
conotação pejorativa que, à luz dos dias atuais, é totalmente compreensível.
O livro “O homem delinquente” trabalhou com o que foi chamado e conhecido por
Antropologia Criminológica (fase antropológica do Positivismo Criminológico). A partir
dos estudos de Darwin, Lombroso estudou, antropologicamente, a formação dos homens.
Ele teve a possibilidade de trabalhar com parte do exército, ou força armada italiana, em
algumas guerras internas. Esse cenário o possibilitou um intenso contato com as tropas e
soldados, mas também com uma série de criminosos. Foi assim que pode estudar e
desenvolver o seu método empírico.
11
Tudo isso para, pautado na ideia de Darwin, moldar e trazer aspectos físicos e
comportamentais uniformizados, apontando a possibilidade de formatar um criminoso
nato. Ou seja, uma pessoa com determinadas características físicas e comportamentais teria
nascido com matiz biológico-orgânico de criminoso.
Nos livros, a maior parte dessa crítica aponta para um estudo específico em que ele
arrolou, dentro do estereótipo do criminoso nato, o uso de tatuagem. A doutrina que estuda
criticamente Lombroso, aponta que Darwin nunca mencionou que tais traços
12
comportamentais estariam atrelados ao atavismo - contrariamente, o atavismo se limitaria a aspectos
genéticos e hereditários.
Raimundo Nina Rodrigues foi um médico legista maranhense, com atuação na Bahia,
e ficou conhecido como “doutor dos pobres”4. Aparentemente, para quem conhece seus
estudos, esse título seria deveras incoerente. Isso porque suas ideias eram movidas por seu
racismo, tendo utilizado o estudo e a lógica lombrosiana para considerar as pessoas negras
como uma subespécie – uma classe atávica.
Para ele, o criminoso nato era o negro, atrelando um retrocesso genético ao fato de
a pessoa ser preta. Como um eugenista, Nina Rodrigues defendia uma superioridade branca.
Inclusive, recomendava dois códigos de legislação penal: um para o “cidadão branco”, e
outro para a “subespécie ou espécie atávica de desenvolvimento da humanidade”, referindo-
se não só aos pretos, mas também aos indígenas e aos chamados mestiços.
4Já foi questionado em prova, apresentando um elevando índice de erro. Em prova, o examinador apontou
aspectos reais vinculados ao Raimundo Nina Rodrigues, concluindo ao final o seguinte: “não obstante isso era
conhecido, em Salvador, Bahia, como o doutor dos pobres”.
13
Encontra-se na obra de Enrico Ferri clara influência de Cesare Lombroso, pois, além
de fazerem parte do mesmo movimento, Ferri foi seu aluno. Apesar disso, os estudos não se
confundem, pois há traços e interpretações na obra de Enrico Ferri que divergem das de
Lombroso. Há um natural avanço nos estudos de Ferri.
Ferri dizia que o comportamento humano seria algo determinável, logo não haveria
que se falar em livre arbítrio. Assim, ao refutar a ideia do livre arbítrio ele se contrapunha à
concepção da culpabilidade (tido como o juízo de reprovação do agente: “eu quero me
comportar contrariamente a regra, sendo livre para tal”).
Ao tachar alguém como “perigoso”, a partir de sua periculosidade, volta-se não para
um Direito Penal do Fato, como hoje se interpreta majoritariamente o Direito Penal. Com
Ferri há um momento profícuo de difusão do que ficou posteriormente conhecido como
Direito Penal do Autor. O sancionamento, a medida de proteção e defesa social, como ele
14
atribuía, incidia não no fato objetivamente analisado, mas sim naquele que se reputava
perigoso (que ostenta, ou ostentava, a periculosidade).
Considerando que para Ferri o aspecto perigoso, de periculosidade, era extraído não
só dos aspectos inatos ao homem (hereditários e genéticos) como defendia Lombroso, mas
também o comportamento criminoso sofreria influência do meio físico e social,
começa-se a desenvolver um aspecto de multifatorialismo.
É dizer, a criminalidade não se daria apenas em aspectos inatos, mas também haveria
influência relevante do meio físico e social no qual o agente foi concebido. Para Ferri,
teríamos um trinômio causal do delito, composto por fatores antropológicos, sociais e
físicos. É o que alguns autores falam como início de uma Criminologia Social.
Considera-se que foi o jurista italiano Raffaele Garófalo, no final do século XIX, que
cunho a expressão “criminologia”. Garófalo formalizou a criminologia como termo
científico a partir da publicação do seu livro homônimo, “Criminologia”. Perceba que isso
não quer dizer que a criminologia surge com Garófalo, mas é ele quem traz e consubstancia
o termo que até hoje é usado.
Perceba, se tal conduta, para ser crime, pressupõe uma delimitação externa à luz da
legalidade, estamos dizendo que um comportamento – ou qualquer que seja – pode ser
caracterizado como crime. O problema disso é que se perde um referencial. Tudo pode ser
crime, e nada pode ser crime. Tudo dependerá dessa delimitação externa. Garófalo não
entendia isso, nem considerava positivamente compreensível.
15
Assim, ele desenvolve (ou procura desenvolver) o conceito natural de crime. O
objetivo de Garófalo era o de que crime fosse toda e qualquer conduta entendida como tal,
independentemente do momento, do tempo histórico, do contexto social e do local em que
fosse praticada.
Para esse conceito natural de crime, que independeria de delimitação externa à luz da
legalidade, ele apontava que essa concepção natural seriam aquelas condutas que violassem
o senso comum de piedade e probidade. Acontece que esses são termos fluídos e de
difícil aplicabilidade, o que prejudicou a teoria de Garófalo.
Por esse conceito natural há clara carga de superioridade eurocentrista. Também por
isso, além dos termos piedade e probidade serem fluídos e de difícil aplicabilidade, a ideia do
conceito natural não progrediu como Garófalo esperava com a evolução e avanço dos
estudos.
Como já foi mencionado, a etiologia nada mais é do que o estudo das causas. Dentro da
criminologia, uma criminologia etiológica é o estudo da causa do seu objeto (o crime, o
delinquente, a delinquência...), a sociedade e o indivíduo como fatores criminológicos.
16
- Sociedade como um fator criminológico.
● Etiologia Individual:
Para além dessa virada sociológica, mencionada por Alessandro Baratta, na dicotomia
entre a etiologia individual e a etiologia social da criminologia, há uma importante influência
do sociólogo francês Émile Durkheim.
17
É assim que a criminologia passou a ser influenciada pelo âmbito social. Claro que
haverá ainda elementos causalista e etiológicos, mas, a partir de então, avançamos de uma
etiologia vinculada ao indivíduo para o campo social.
Antes de nos debruçarmos sobre as escolas mais atreladas à etiologia social, necessita-
se fazer uma diferenciação muito importante, tanto por ser cobrada em provas, quanto para
o entendimento.
Por outro lado, a criminologia do conflito opta por uma vertente bastante diferente.
A ideia é a de que os objetivos, valores, e o que é prioridade, não tem consenso. Na verdade
são produtos de um conflito no qual a força dos mais fortes vem a prevalecer. Os valores e
objetivos prementes dentro de uma sociedade é produto de uma imposição dos mais fortes5.
É dizer, após um conflito existente e tipicamente social, prevalecerão os anseios, valores e
objetivos daquele que é mais forte e que consegue impô-los.
18
Teorias do Consenso Teorias do Conflito
- Subcultura Delinquente.
No início do século XX, Chicago vivia um tumulto, com alto grau de imigração,
oriunda das mais diversas partes do mundo. Nesse contexto, os índices de criminalidade
passaram a ser analisados à luz de outra perspectiva. Trata-se da relação da gênese do crime
com o conglomerado urbano. Em outras palavras, os estudiosos da Escola de Chicago
passam a analisar o crime vinculado à distribuição da cidade.
Dito de outra forma, ausente o equilíbrio biótico, naturalmente haverá um mal estar.
Esse mal estar, para os grandes centros urbanos, dentre outros aspectos, poderia ser
percebido com o incremento da criminalidade. A desordem urbana e a formação do que se
chamou de zonas de delinquência e zonas de quadrilha (delinquency areas e ganglands) e
abalam e desestruturam, causando a degradação urbana-social. As zonas de delinquência
19
seriam responsáveis pelo desequilíbrio biótico urbano-social gerador de uma criminalidade
exacerbada e injustificada.
Essa teoria tem duas grandes vantagens. A (i) primeira seria elevar e materializar, em
uma escola criminológica, a ideia da sociedade como fator criminógeno. A (ii) segunda seria
o uso do método qualitativo de investigação. Aqui, os estudiosos começaram a ter a
percepção e necessidade de estudar a estruturação da sociedade urbana, passando a analisar
mapas, formatação do tecido social, aspectos econômicos, origem das pessoas, distribuição
de rede sanitária e de esgoto, acesso à educação... A tudo isso foi dado relevante importância
para a compreensão do fenômeno criminológico.
Além disso, faz-se relevante comentar que a partir dessa investigação estrutural dos
centros urbanos, foi possível atentar para a necessidade de reparação social dos espaços
públicos que ofertasse socialização e bem-estar à população. Iluminação das ruas,
investimentos em praças, escolas, clubes e ambientes públicos seriam medidas importantes
para tanto.
Sabe-se que não é a pobreza em si que gera a criminalidade. Pode até ser um dos
fatores (o que é bastante questionável), mas não há essa proporcionalidade direta, “onde tem
pobreza, tem criminalidade”. Entretanto, essa é uma marca da Escola de Chicago e, por isso,
é considerada por muitos uma escola obsoleta.
Outra crítica que poderia ser feita à Escola de Chicago seria o urbanismo
centralizador, tendo em vista existir uma preocupação única e exclusiva com a criminalidade
dentro dos centros urbanos, esquecendo as demais localidades.
20
3.4 Teoria da Anomia
- Influência do Funcionalismo de Durkheim;
- Robert Merton: Crime como um fenômeno social, normal e funcional;
- Influência de Talcott Parsons e o Funcionalismo Estrutural. Teoria do Consenso;
- Sistematização da relação entre METAS (Estrutura Cultural) e MEIOS (Estrutura Social).
À vista disso, foi desenvolvida por Robert Merton a teoria que trabalhava com as
adaptações e expectativas dos cidadãos à luz das metas e dos meios disponibilizados. As
metas seriam a estrutura cultural, aquilo que era a expectativa do cidadão (dinheiro, poder,
status social...); ao passo que os meios seriam a estrutura social, ou seja, os mecanismos
disponibilizados para que os cidadãos atingissem as suas metas (emprego, educação...).
Quando não é possível atingir a meta através do meio disponibilizado surge a anomia: a
desordem.
Durkheim, nas suas obras “Da divisão social do trabalho” e “O Suicídio”, trabalhou
bastante o conceito de anomia. Para o sociólogo francês, a anomia social, considerada a
21
ausência de normas e regras sociais que direcionem o comportamento, é observado
sobretudo diante das transformações sociais. Por exemplo, com a modernidade, muitas
regradas tradicionais foram quebras. De alguma forma, em um dado momento, essa quebra
produziu insegurança, incerteza e insatisfação. A partir daí, o cidadão precisaria buscaria
novos caminhos e um novo sentido para a vida. Ou seja, era necessário se adaptar.
Então, partindo do “jogo” analítico entre meta e meio, estrutura cultural e estrutura
social, Merton traçou meios de adaptação percebidos dentro do campo de uma sociedade.
É dizer, diante da desigualdade dos meios para que se atingisse as metas, foram observados
tipos de adaptação, classificados da seguinte forma:
22
Inovação6 Na inovação se adere aos fins culturais (as metas), mas
nãos aos meios para atingi-los, que não estão disponíveis
de forma igualitária.
23
e em razão dela, abre mão da vida social para ficar ali, isolado,
quase como zumbis humanos.
A Teoria das Subculturas Criminais está atrelada a relação entre a minoria e a maioria.
Entretanto, apesar de se debruças, basicamente, sobre essa relação, percebe-se que o foco
principal (objeto principal) dessa teoria reside na delinquência juvenil, na ideia da
delinquência inicial da criança, dos jovens e adolescentes. Pode-se dizer que seu principal
teórico foi o sociólogo Albert Cohen, que foi aluno de Robert Merton, e é o autor do livro
“Jovens Delinquentes: a cultura das gangues” (Delinquent boys).
24
Seria nesse cenário que se iniciaria a criminalidade adolescente, como um repúdio aos
valores impostos pela classe dominante.
25
Há um processo de aprendizagem que consegue moldar o comportamento do
cidadão. Se este for educado, posto num processo de aprendizado de associação voltado para
um comportamento reputado como correto, há uma tendência, cada vez maior, e à medida
do tempo e frequência com a qual ele é exposto a esse processo de aprendizagem, de assimilar
tais valores. Por outro lado, colocando o indivíduo num processo de aprendizagem, dentro
do qual o objetivo é o comportamento desviado, há uma tendência que, da mesma forma,
aquilo seja assimilado por ele.
É nesse contexto, que na década de 1940, Sutherland publica, pela primeira vez, um
artigo que, em 1949, é transformado em livro e cunha a expressão mundialmente conhecida
“crime do colarinho branco” (white collar crime). Trata-se de uma criminalidade associada à alta
classe, que trabalha de terno, frequenta círculos de influência decisiva político-econômica e
social. São crimes de escritório, crimes de gabinete, crimes contra o sistema financeiro, crimes
de lavagem de capital... Ou seja, é a criminalidade que envolve a macroeconomia em essência,
vultosos volumes de dinheiro. Crimes que não se enxerga com frequência, por vários
motivos.
Nesse cenário, apesar de não ter sido desenvolvido por Sutherland, cumpre anotar à
expressão “cifras douradas da criminalidade”, mais desenvolvida pela criminologia crítica.
Na verdade, as colorações das cifras que se verá mais a frente, estão associadas à chamada
cifra obscura, oculta negra da criminalidade.
26
Isso ocorre porque, na grande gama de crimes que ocorre, apenas parcela ínfima é enxergada,
selecionada, investigada, processada e punida. Essa criminalidade registrada esconde uma
cifra obscura da criminalidade, que é toda aquela informal, não chegando a ser oficialmente
registrada pelo aparato investigativo, persecutório e judicial do Estado.
Dentro dessas cifras obscuras, é possível enxerga o que a doutrina denominou “cifras
douradas”. Nada mais é do que a criminalidade do colarinho branco, que não chega a sequer
ser investigada, processada e punida. Ela existe, mas não é formalizada. Isso porque, há uma
ideia de eleição (que será visto nas Escolas da Reação Social) e de se ocupar com
determinados crimes que são selecionados para passar a impressão de que a criminalidade
está atrelada a uma parcela da população, em detrimento das demais. É esse conceito que é
rompido na teoria da associação diferencial.
Cifra azul: são os crimes de rua, praticados pela classe marginalizada da sociedade e que não
chegam ao conhecimento do aparato do Estado. Obs.: Fala-se também, aqui, em crimes de
colarinho azul, contrapondo-se aos crimes de colarinho branco e fazendo alusão às fardas
(macacões) utilizadas pelos empregados de fábricas nos Estados Unidos da América. Nesse
caso, teríamos os crimes patrimoniais, crimes contra a pessoa etc.
Cifra verde: a doutrina aponta como os crimes ambientais que não chegam ao conhecimento
do Estado e das instituições responsáveis pela investigação e persecução penal judicial. Green
Criminology é um ramo moderno da criminologia, bastante em voga, tendo em vista a urgente
questão ecológica e do meio ambiente.
Cifra amarela: são aquelas infrações praticadas por funcionários públicos que não chegam ao
conhecimento formal do Estado.
Ex.: um caso concreto que se depare em prova, no qual, hipoteticamente, policiais militares
espancam ou torturam investigados, são crimes (tortura ou, no mínimo, abuso de autoridade)
que, muitas vezes, não vão chegar ao conhecimento. A esse tipo de criminalidade praticada
por funcionário público e não conhecida, é cunhada como cifra amarela.
27
Cifra rosa: seria a criminalidade não registrada em relação às mulheres. Aqui é possível
imaginar uma associação entre cifra rosa e Lei Maria da Penha, sobretudo para quem estuda
para concurso de viés estadual.
Cifra cinza: são aqueles crimes devidamente noticiados, ou seja, que até chegam ao
conhecimento do Estado, da autoridade policial, mas não se formalizam em processo.
Cifra arco-íris: seriam os crimes homofóbicos, transfóbicos, LGBTfóbicos que não chegam
ao aparato do Estado. Sobre o tema, vale conhecer a Criminologia Queer 7.
28
de criminalização? Por que essa reação é determinante para fins de caracterização da
criminalidade?
Interação, portanto, gera significado às coisas e aos atos. Se para determinar o sentido
e consequência de determinadas condutas demandará um interacionismo simbólico, uma
relação interpessoal que vai variar de acordo com a cultura, o tempo e local em que será
analisado, teremos que essa análise, ou interacionismo simbólico (conjunto de relações
29
interpessoais), influenciarão no processo de delimitação. É a partir dessas interações
interpessoais que se qualificará determinada conduta como crime.
Para que se compreenda esse processo, precisamos nos valer da lógica conceitual
bem trabalhada por Edwin Lemert, sociólogo americano. Ele estudou e consubstanciou a
ideia do processo de estigmatização com base em duas etapas do comportamento desviante
ou desviado, quais sejam o desvio primário e o desvio secundário. Vejamos:
8Princípio constitucional, tipicamente associado aos estados democráticos de direito, com aplicação mais do
que abrangente na seara criminal.
30
O desvio primário, segundo Lemert, seria algo multifatorial, devendo ficar apartado
da explicação do crime ou da criminalidade. Para Lemert o processo do desvio primário, por
ser multifatorial, era passível de ser causado por uma gama inexata de justificativas e causas,
a ponto de se colocar o desvio primário quase como uma situação ínsita a própria essência
humana.
Assim, pode-se dizer que qualquer pessoa já conheceu ou conviveu com alguém que,
em determinada fase da vida, apresentou algum comportamento que, à luz do parâmetro de
legalidade, seria rotulado ou reputado criminal. A exemplo, no uso dessa lógica, furtar
bombom ou faltar aula, quando jovem, poderia ser classificado com um desvio primário.
No mesmo sentindo, estaria aquele que foi flagrado por agentes do Estado usando
ou portando algum tipo de droga, na entrada de shows, por exemplo. A reação dos agentes
estatais - bem como a repugnância social -, se, na situação mencionada, o flagrante for de um
jovem de classe média alta, será diferente da reação gerada se o jovem for do subúrbio. Sabe-
se que o primeiro, dificilmente, será torturado ou achincalhado pelos agentes estatais, ao
passo que o segundo, em regra, é abusado e humilhado. Sendo, muitas vezes, colocado em
ambientes totalmente equivocados, e que só contribuem para uma péssima formação. É aqui
que entra a lógica do desvio secundário.
31
- Criminologia da Reação Social: Estigmatização pela Reação Social.
Com base na teoria do etiquetamento e da reação social, o desvio primário não é tão
relevante para fins de criminologia. É o controle social, muito mais que a causalidade ínsita
ao indivíduo ou à sociedade, que importa. Como reage os setores da sociedade e do Estado
ante a um desvio primário (comportamento “compreensível” de qualquer indivíduo)? É esse
comportamento e reação que irá consubstanciar o desvio secundário. Esse sim relevante para
fatores da criminalização, segundo a teoria.
Sobre o que foi visto até agora, toda essa ideia da reação social, da teoria do labelling
approach, etiquetamento ou rotulação, importante atentar para uma citação do doutrinador
italiano, Alessandro Baratta, já mencionado anteriormente quando da virada sociológica:
“As maiores chances de ser selecionado para fazer parte da ‘população criminosa’
aparecem, de fato, concentradas nos níveis mais baixos da escala social
(subproletariado e grupos marginais). A posição precária no mercado de trabalho
(desocupação, subocupação, falta de qualificação) e defeitos de socialização familiar
e escolar, que são características dos indivíduos pertencentes aos níveis mais baixos,
e que na criminologia positivista e em boa parte da criminologia liberal
contemporânea são indicados como as causas da criminalidade, revelam ser, antes,
conotações sobre a base das quais o status de criminoso é atribuído.”
32
Aqui há uma diferenciação, pois, esse é um público alvo, justamente em razão do
processo de delimitação social externa do que é criminalidade. Então, à luz da teoria dos
conflitos, há de se impor a vontade do mais forte – leia-se, das classes dominantes.
As classes dominantes teriam o condão de delimitar o que se entende por criminalidade, bem
como de efetivar e potencializar para determinada camada, população e público-alvo da
estigmatização criminológica, todos os esforços dentro da lógica do desvio secundário –
afastando esse desvio secundário de outra parte da população, que está passível e
efetivamente comente desvios primários. Há uma seleção da população que será
estigmatizada.
Ainda nesse cenário, há que se fazer um gancho para que se entenda uma diferença
de perspectiva.
33
A partir daí, houve uma série de críticas que culminou na formatação do que hoje se
entende por Criminologia Crítica, imbuída de uma perspectiva macrossociológica.
Uma das críticas mais severas à teoria do etiquetamento foi, basicamente, não dar
qualquer valor ao chamado desvio primário, concentrando-se somente no desvio secundário.
Nesse sentido, foi visto que o desvio primário era considerado algo normal, quase que ínsito
à conduta do ser humano. Ao banalizar o desvio primário, a teoria do etiquetamento sofreu
muitas críticas.
34
distribuição dos meios de produção e a dificuldade de satisfação material de parte da
sociedade geraria um conflito de classe. E a criminologia crítica acaba por observar o
processo de criminalização dentro do modelo capitalista e suas consequências.
35
sistema existente. Em outras palavras, não representam uma patologia sistêmica da linha de
justiça9.
A justificativa para isso é simples: considerando que na sociedade exista uma série de
condutas que violam diversos valores, nem todas essas violações interessam ao direito
criminal. Logo, há uma restrição de bens jurídicos. Do mesmo modo, dentre a gama de bens
jurídicos violados, há apenas uma ínfima quantidade de comportamentos violadores que
geram o crime, já que é necessária a tipificação da conduta, exigência lógica do princípio da
legalidade.
Nesse sentido, temos várias violações a vários bens jurídicos, mas somente alguns
bens jurídicos recebem a “proteção” penal, e somente algumas condutas contrárias a esses
bens jurídicos interessarão. Portanto, seria uma ínfima quantidade que justificaria para um
pleno funcionamento da justiça.
9Em provas de concurso, uma assertiva que associa a cifra oculta (obscura ou negra) como uma
patologia do sistema à luz da criminologia crítica está ERRADA.
36
- Processo de Criminalização Primária:
- Substituição da ideia de crime por “processo de criminalização”;
- Ato do Legislador;
- Processo Social e Cultural – Política Legislativa – Tipificação de Condutas;
- Influência no ato final do legislador (seletividade).
Como um exemplo, sem fazer juízo de valor, sabe-se que o parlamento brasileiro é
bastante conservador. Então, questões vinculadas à criminalização das drogas e do aborto é
desenho, ou reflexo, de um cenário de escolha de um parlamento conservador, que formatará
uma política legislativa para uma série de planos - inclusive o plano criminal -, e a tipificação
de condutas. Por isso, é muito difícil de imaginar que o parlamento brasileiro, a curto ou
médio prazo, adote uma posição de maior flexibilidade quanto às drogas, aborto, eutanásia...
(Atenção! É nesse cenário que se tende a observar, cada vez mais, um papel de ativismo
judicial do Supremo Tribunal Federal como instituição contra majoritária).
37
- Processo de Criminalização Secundária:
- Aplicação e funcionamento do Sistema de Justiça;
- Seleção dos alvos do sistema repressor: homogeneidade do perfil de presos x
heterogeneidade da população.
Nesse sentido, tomando por base o sistema penitenciário brasileiro, percebe-se que
ele tem cor, idade e classe social: tem o público eleito. É a chamada “clientela criminal
penitenciária”.
Basta observar que há um alvo bem específico dentro do sistema de justiça brasileiro.
Isso é facilmente observado se fizermos um paralelo entre a população carcerária, estruturada
de maneira homogênea, ante a heterogeneidade da população. Não há representação dessa
heterogeneidade na população efetivamente punida.
38
4. EXPANSÃO DO DIREITO PENAL10
4.1 Sociedade de Risco
- Deslocamento da Fonte de Risco;
- Riscos “Clássicos” x Riscos Globais ou Democráticos.
- Direito Penal como solução “óbvia”;
- Expansão do Direito Penal: (i) Direito Penal Clássico + (ii) Direito Penal Securitário ou
Segurador!
- Características do “Novo Direito Penal”: (i) Respostas punitivas exacerbadas; (ii) Bens
jurídicos supraindividuais; (iii) Proliferação da tipologia de delitos de perigo abstrato; (iv)
Antecipação punitiva e (v) Legislação penal simbólica em profusão.
- Espiritualização ou Desmaterialização dos bens jurídicos.
A sociedade de risco seria o pano de fundo para o novo Direito Penal e as novas
velocidades do Direito Penal.
A sociedade e o Direito Penal clássico se voltam para os riscos tradicionais (ou riscos
clássicos). Estes riscos estão atrelados, basicamente, a fenômenos naturais ou a
comportamentos humanos individuais, os quais são perfeitamente singularizáveis,
identificáveis, e, assim, passíveis de repressão.
Este ponto, quando não é cobrado como Criminologia, aparece nas provas dentro da disciplina de
10
Direito Penal.
39
mais teóricos, ou restritivamente geográficos; amplitude do acesso e velocidade da
informação; interação; operações comerciais e econômicas cada vez mais intensas e
frequentes; agilidade e velocidade; sociedade cada vez mais dinâmica e acelerada.
Diante dessa complexidade, é quase que intuitivo apontar que aquele tradicionalismo
do Direito Penal, em muitos pontos, fica obsoleto. Ou, em outras palavras, passa a deixar de
ser capaz de proteger bens jurídicos tipicamente atrelados a essa sociedade complexa da
chamada sociedade de risco.
Esses riscos são globais e democráticos, os quais não são facilmente individualizados,
como catástrofes humanas e naturais de efeitos globais - ataques à luz da conduta humana,
mas com aspectos biológicos -, a exemplo do terrorismo biológico, armas nucleares, ameaças
ou guerra nuclear, terrorismo cibernético, terrorismo efetivo, bem como crimes contra o
sistema financeiro e crimes ambientais... Enfim, uma série de questões, reflexo dessa
sociedade dinâmica. Portanto, são bens jurídicos supraindividuais, que começam na
tessitura social política e legislativa, devendo se observar com peculiaridade e ênfase.
É com base nessa situação de dicotomia entre riscos clássicos, defendidos e tutelados
pelo Direito Penal Clássico, e riscos globais e democráticos, que passa a surgir um debate
sobre eventual necessidade de modernização do Direito Penal. São riscos que,
aparentemente, não possuem a efetiva resposta e proteção estatal.
De um lado, tem-se a sensação de que o Direito Penal é capaz de dar proteção para
os riscos tradicionais – o que é uma falácia, mas vamos partir do pressuposto que é esse o
sentimento tendencioso da sociedade, ou o sentimento fabricado que se quer acreditar -,
naturalmente é preciso modernizar o Direito Penal para proteger esses riscos globais, pós-
modernos e difusos (Direito Penal Difuso ou Liquefeito).
O fato é que teríamos duas possibilidades: modernizar, abrindo mão de riscos antigos
que não fariam mais tanto sentido, enxugando a legislação criminal interna ou, de outra sorte,
ampliar e criar dois braços do Direito Penal, sem abdicar do viés tradicional, criando um
40
novo direito penal. Eis que teremos o chamado Direito Penal Securitário ou Segurador.
Esta foi a opção aderida por boa parte dos países. Daí o inchaço (ou expansão, usando um
termo técnico) do Direito Penal.
Como exemplo, podemos citar a Lei 11.343/06, a lei de drogas. Na lei anterior, a
pena mínima para o tráfico era de 03 anos. Com o discurso de aliviar a situação do usuário,
o art. 2811 foi incluído para despenalizar (como optou por qualificar o STF) a conduta de
consumo pessoal de drogas. Em contraposição, a legislação novel exacerbou ainda mais a
pena do tráfico (05 a 15 anos), sob a justificativa de tutelar o bem jurídico “saúde pública”.
O grande problema é que muitas vezes, na aplicação prática, esses conceitos são facilmente
manipuláveis, e vários usuários passaram a ser taxados como traficantes.
11 Lei 11.343/06. Art. 28. Quem adquirir, guardar, tiver em depósito, transportar ou trouxer consigo, para
consumo pessoal, drogas sem autorização ou em desacordo com determinação legal ou regulamentar será
submetido às seguintes penas:
I - advertência sobre os efeitos das drogas;
II - prestação de serviços à comunidade;
III - medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo.
§ 1o Às mesmas medidas submete-se quem, para seu consumo pessoal, semeia, cultiva ou colhe plantas
destinadas à preparação de pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física
ou psíquica.
§ 2o Para determinar se a droga destinava-se a consumo pessoal, o juiz atenderá à natureza e à quantidade da
substância apreendida, ao local e às condições em que se desenvolveu a ação, às circunstâncias sociais e pessoais,
bem como à conduta e aos antecedentes do agente.
§ 3o As penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo prazo máximo de 5 (cinco)
meses.
§ 4o Em caso de reincidência, as penas previstas nos incisos II e III do caput deste artigo serão aplicadas pelo
prazo máximo de 10 (dez) meses.
§ 5o A prestação de serviços à comunidade será cumprida em programas comunitários, entidades educacionais
ou assistenciais, hospitais, estabelecimentos congêneres, públicos ou privados sem fins lucrativos, que se
ocupem, preferencialmente, da prevenção do consumo ou da recuperação de usuários e dependentes de drogas.
§ 6o Para garantia do cumprimento das medidas educativas a que se refere o caput, nos incisos I, II e III, a que
injustificadamente se recuse o agente, poderá o juiz submetê-lo, sucessivamente a:
I - admoestação verbal;
II - multa.
§ 7o O juiz determinará ao Poder Público que coloque à disposição do infrator, gratuitamente, estabelecimento
de saúde, preferencialmente ambulatorial, para tratamento especializado.
41
(ii) Bens jurídicos supraindividuais: temos um cardápio, cada vez maior e
moderno, de legislações punindo violações ao sistema financeiro nacional, meio ambiente,
saúde pública, fé pública, sistema de justiça... São bens jurídicos dificilmente observáveis de
maneira concreta. É a chamada proliferação de bens jurídicos supraindividuais protegidos
pelo Direito Penal Moderno.
Como exemplo dessa legislação penal simbólica, pode-se citar a Lei de Crimes
Hediondos (Lei nº 8.072/90), que consistiu na resposta do poder legislativo, em razão da
pressão da imprensa e dos poderes econômicos, ao sequestro do empresário paulistano
42
Abílio Diniz, em dezembro de 1989. Na prática, não trouxe qualquer resultado útil e desejado
para além do simbolismo que é reproduzido até os dias de hoje.
A grande questão não adentra o mérito de ser ou não correto tais modificações e
inovações legislativas, mas sim envolve a ideia do simbolismo. É o que tipicamente marca o
novo direito penal. É o direito penal mostrando sua força e condição de dar respostas
exigidas pela sociedade.
Os pontos são: Teoria das Janelas Quebradas, Movimento Lei e Ordem e a Política
de Tolerância Zero.
Começaremos pela Teoria das Janelas Quebradas, já que em tempos históricos ela se
apresenta, de maneira mais clara, como a primeira desses movimentos estabelecidos dentro
da sociedade norte-americana.
43
a) Teoria das Janelas Quebradas (1982)
- James Wilson e George Kelling – baseado no experimento do psicólogo Philip Zimbardo
(Stanford).
- Necessidade de reparação imediata de qualquer avaria – política criminal?
Zimbardo avançou nos seus estudos e observações. Para isso, modificou a situação
da seguinte forma: fez o mesmo experimento na região mais rica da cidade, deixando o carro
com uma janela visivelmente quebrada. No outro dia, ao retornar, percebeu que,
diferentemente do que ocorrera na primeira experiência, deixando uma janela quebrada, o
carro tinha sido todo destruído, apesar de ali ser uma região nobre e abastarda.
A partir dessa experiência, James Wilson e George Kelling criaram a teoria das janelas
quebradas, que consubstanciava, em essência, na lógica de que não seria possível deixar
aspectos de abandono, desleixo ou descaso, é necessário reparar de maneira imediata
toda e qualquer imperfeição de conduta. Do contrário, gerar-se-á sensação e aparência
de descaso, abandono e indiferença estatal.
A analogia foi a de que, ao colocar um carro inteiro nada acontece com ele, porque
não gera naquela sociedade o sentimento de descaso, desprezo e resignação. Mas, quando se
deixa e abandona um carro com a janela quebrada, produz o sentimento de que “se o dono
ou responsável não está ligando, porque a população ligaria?”, atuando, assim, na esfera
criminológica do indivíduo, estimulando a criminalidade. Essa é a lógica da teoria das janelas
quebradas.
Apenas de sofrer severas críticas, essa lógica é muito defendida ainda nos dias de
hoje, por ser força motriz e por gerar a necessidade de um panpenalismo, ou seja, de uma
44
ultrapunitividade, culminando com uma ótica de tolerância zero, na qual se necessita apontar
a lei e a ordem, seja qual for. O que acaba por resgatar a máxima do direito romano dura lex,
sed lex (a lei é dura mas é lei).
Na década de 80 a teoria das janelas quebradas foi ganhando força e adeptos. Assim,
em Nova Iorque, no início dos anos 90, os índices de criminalidade passaram a preocupar
bastante os nova-iorquinos. Naquele momento assume o governo o prefeito Rudolph
Giuliani, trazendo consigo o movimento Lei e Ordem e a política de Tolerância Zero.
A teoria das janelas quebradas evolui de modo a chegar nessa idealização. Rudolph
Giuliani ficou mundialmente conhecido, justamente por implantar e difundir a lógica da lei
e ordem. Enquanto prefeito, ele defendia a necessidade de a população entender, claramente,
que havia lei, e quem a violasse, seja qual e como fosse, haveria ordem.
Nesse período, reconhece-se que houve uma melhora efetiva dos índices de
criminalidade. Esse foi inclusive um dos alicerces da propaganda política de Rudolph
Giuliani, que tinha pretensões de se tornar presidente dos Estados Unidos.
Acontece que tudo isso culminou com uma ampla repressão e um aumento
significativo da população carcerária. Importante lembrar que nos EUA, a maior parte das
45
penitenciárias são terceirizadas, é dizer, são negócios lucrativos. Logo, toda essa lógica passou
a representar um movimento economicamente proveitoso para alguns.
46
A princípio, tínhamos duas velocidades. Essas velocidades foram intensificadas,
quanto aos seus estudos, pelo penalista espanhol Jesus-Maria Silva Sánchez. A ideia do
professor Silva Sánchez, inicialmente, era a de que o Direito Penal poderia ser dividido,
idealizado ou identificado a partir de dois “blocos” diferentes:
BLOCO I BLOCO II
Sem dúvidas, o professor Gunther Jakobs é o maior destaque hoje dentro do Direito
Penal mundial, mas também um dos mais polêmicos, justamente pela difusão da sua ideia do
Direito Penal do Inimigo.
12
Muito estudado e de maior renome, mas também muito criticado pelo perfil semi-nazista atribuído a ele por
alguns estudiosos.
47
- “Essência do Direito Penal”
- (i) Pena Privativa de Liberdade + (ii) Respeito intransigente às garantias constitucionais e
processuais do cidadão.
48
O exemplo dado, à luz da legislação brasileira, é a Lei 9.099/95, em especial o
instituto da transação penal, autorizada pela Constituição Federal de 1988. Que nada mais é
do que a aplicação de uma sanção restritiva de direito àquele que supostamente cometeu um
fato, cuja pena máxima idealizada no tipo penal não ultrapassa os dois anos (crime de menor
potencial ofensivo) sem que haja processo.
49
aplicação, não renunciaria à observância das garantias constitucionais e processuais) aliada a
flexibilização e relativização das garantias constitucionais e processuais (elemento da 2ª
velocidade). Em tese, pela lógica constitucional, é uma combinação incompatível.
Vale anotar que essa concepção de direito penal do inimigo vem sendo,
majoritariamente, atribuída a Gunther Jakobs. Contudo, uma menor parte da doutrina – por
todos, cita-se Rogério Grecco -, aponta que, apesar do desenvolvimento de Jakobs, a teoria
não seria inédita, é algo que já fora trabalhado, idealizado e efetivado anteriormente por
Edmund Mezger, jurista do regime nazista de Hitler13.
Quanto à figura do inimigo, a ideia de Jakobs não seria flexibilizar direitos e garantias
fundamentais para o cidadão. O direito penal teria uma função social (Jakobs é um
funcionalista – funcionalismo sistêmico ou radical), sendo assim, a uma regra violada deve
ser aplicado o direito penal, respeitando, claramente, as garantias e direitos fundamentais,
constitucionais e processuais desse cidadão. A função do direito penal é reafirmar valores e
ordem.
13 Essa atribuição do direito penal do inimigo a Mezger pode ser mencionada numa fase subjetiva.
50
Quanto ao processo de formação e identificação do inimigo, temos que será
paulatinamente formado, não a partir de um comportamento violador apenas, mas a partir
da reincidência, da habitualidade criminosa, daquilo que Jakobs chama de delinquência
profissional que culmina em grandes organizações criminosas, de atuação interna, regionais,
nacionais e, até internacionais – perpassando, aqui, pelo terrorismo.
O ápice da defesa e difusão do direito penal do inimigo se deu com os ataques da Al-
Qaeda às Torres Gêmeas, em 11 de setembro de 2001. Foi nesse ambiente que proliferou
aquilo que se chamou de sociedade de risco – sem dúvidas, maior força motriz que o evento
do 11 de setembro de 2001 não houve – fazendo com que Jakobs passasse a sustentar que
as organizações terroristas renunciavam às suas condições de cidadãos. E se cidadão não são,
devem ser taxados como inimigos e assim tratados.
Com base nessa lógica, valendo-se dos escritos do próprio Immanuel Kant, que
apontava aquele reincidente e costumeiramente violador de regras como não respeitador do
Estado Comunitário Legal, Jakobs fomenta a ideia do direito penal do inimigo. Teríamos o
direito penal focado no autor, e o inimigo não deveria ser processado e meramente punido,
mas sim enfrentado e combatido. E no combate, tudo vale. Não há que se falar em regras,
garantias e devido processo legal – é estado de exceção, ataque e guerra ao inimigo.
Claramente, ao taxar alguém como inimigo, inverte-se toda a lógica do Direito Penal
Democrático, aquele calcado nos fatos, ou seja, o chamado Direito Penal do Fato, pelo
Direito Penal do Autor. Aqui, permite rememorar Ferrer, que já trabalhava a ideia do Direito
Penal do Autor, quando afastava e refutava, com maior intensidade, a questão do livre
arbítrio em razão de um determinismo comportamental, renunciando a ideia de culpabilidade
e defendendo a periculosidade.
51
Essa é a ideia do Direito Penal do Inimigo, atribuído pelo professor Silva Sánchez
como a terceira velocidade do Direito Penal, já que dita um novo ritmo de aplicação do
direito.
Já há quem fale e trabalhe com o conceito de quarta velocidade do direito penal. Essa
concepção, não necessariamente com essa nomenclatura, pode ser extraída, na América
Latina, de obras do professor argentino e ex-presidente da Suprema Corte da Argentina,
Eugênio Raul Zaffaroni, bem como do também argentino Daniel Pastor, que vem se
destacando nessa abordagem, chamada por ele não de quarta velocidade, mas sim de
neopunitivismo14.
Alguns falam que a quarta velocidade seria um direito penal do inimigo específico,
internacionalizado 15 . Apesar dessa qualificação, a quarta velocidade ou o neopunitivismo
possui contornos e alicerces incertos, por ser, ainda, uma concepção incipiente. Entretanto,
podem-se apontar aspectos de internacionalidade como principal diferenciador se
comparado à terceira velocidade (direito penal do inimigo).
14 Se a expressão “neopunitivismo” for cobrada em prova objetiva, provavelmente virá associado a Daniel
Pastor, já que o termo é bastante desenvolvido por ele. Do mesmo modo, se o tema for cobrado em provas
subjetivas, ou existir a oportunidade de abordá-lo, o autor deverá ser mencionado.
15 Em prova objetiva, uma assertiva associando a quarta velocidade a uma especialização do direito penal do
inimigo, ou ainda, afirmando ser um direito penal do inimigo marcadamente internacional, deve ser registrada
como CORRETA.
52
tribunais específicos para julgar os crimes contra a humanidade cometidos que violavam,
justamente, aquelas normas, valores, tratados, compromisso e convenções internacionais.
Importante lembrar que também há, aqui, uma extrema flexibilização ou, por melhor
dizer, uma inobservância de valores caros para as instituições democráticas. O Direito Penal
Internacional ou neopunitivismo, dentro da seara do panpenalismo – ou do Direito Penal
como solução para todos os males – possui uma marcada incidência política na
seletividade e na violação das garantias fundamentais e processuais.
Nesse sentido, a violação mais severa e mais questionada é em relação ao juiz natural,
isso porque o TPI cria o tribunal que julgará o caso concreto. Se o tribunal é criado para o
julgamento, claramente estaremos diante de uma violação ao princípio do juiz natural, ao
devido processo legal – pelo qual se materializa a dignidade da pessoa humana -, bem como
a fixação de um julgamento realizado por um tribunal de exceção.
Por falar em prevenção do crime, entende-se todas as medidas tomadas para que o
fato delituoso não chegue a se efetivar. Ou seja, são aquelas ações que visarão a evitar o
crime.
O delito pode ser evitado por dois caminhos distintos, mas complementares. O
primeiro é aquele que atua de forma indireta, e leva em consideração o ser e o meio em que
53
vive. Ou seja, todas as medidas economico-sociais que visam uma melhoria na qualidade de
vida acabam por, indiretamente, evitar o cometimento de delitos.
54
6. MODELOS DE REAÇÃO AO CRIME
É dizer que, diante do crime se espera uma reação social contrária à violação
cometida. Assim, diante das evoluções do direito criminal, foram identificados três modelos
de reação. Vejamos:
55
comunidade para tomar as rédeas do
centro do conflito, incentivando métodos
extrajudiciais e mais eficazes na construção
da justiça. O objetivo é a restauração do
bem-estar por meio da reparação do dano
causado.
56
(i) Vitimização primária: decorre do próprio fato criminoso e das consequências diretas
causadas à vítima, sejam materiais, físicas ou psicológicas. São as experiências pessoais do
ofendido;
(ii) Vitimização secundária: decorre da relação entre a vítima e o próprio sistema de justiça.
Aqui, a vítima é sobrevitimizada pelos atores que deveriam solucionar o conflito. Seja pela
dinâmica do sistema de justiça criminal (inquérito e ação penal), pela ausência de assistência,
ou pela desconfiança da vítima para com o sistema de justiça.
(iii) Vitimização terciária: aqui além de a vítima já carrega os danos do ato criminoso e
aqueles causados pelo próprio sistema de justiça, ela sofre pelo grupo social e falta de amparo
dos órgãos públicos. A vitimização terciária também está ligada à reação da sociedade, dos
grupos de convivência do ofendido. Há exclusão e estigmatização da vítima e ausência de
incentivo a denunciar o delito.
57