Flip Lilia Schwarcz
Flip Lilia Schwarcz
Flip Lilia Schwarcz
brasileiro
Lilia Moritz Schwarcz
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1. Escravidão e racismo
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mando e obediência, e criou uma sociedade condicionada pelo
paternalismo e por uma hierarquia muito estrita.
Além disso, e diferentemente do que se procurou difundir,
não se confirma a noção de que no país teria existido uma escravi‑
dão “mais branda”. Um sistema que prescreve a propriedade de
uma pessoa por outra, não tem nenhuma chance de ser benevo‑
lente. Ele pressupõe o uso intenso e extenso da mão de obra cativa,
a vigilância constante, a falta de liberdade e o arbítrio. Para que se
tenha uma ideia, trabalhava‑se tanto por aqui e as sevícias eram
tão severas, que a expectativa de vida dos escravizados homens no
campo, 25 anos, ficava abaixo da dos Estados Unidos, 35.
No caso das mulheres, o destino não era muito diferente.
Submetidas à força à alcova do senhor escravista, elas experimen‑
tavam, no corpo, a violência do sistema. Davam de mamar aos
pequenos senhores e senhoras, sendo muitas vezes obrigadas a
abandonar seus próprios filhos na “roda dos expostos” ou “dos
enjeitados” — um mecanismo empregado para abrir mão (“ex‑
por” ou “enjeitar” na linguagem da época) de recém‑nascidos que
ficavam aos cuidados de instituições de caridade; sujeitavam‑se a
regimes árduos de trabalho, acumulando funções domésticas.
Data também desse período a perversa representação da “mulata”
como uma mulher mais “propensa” à sexualidade e à lascívia. Es‑
ses são estereótipos, construções históricas e sociais, que nada de‑
vem aos dados da realidade. Carregam, porém, a faculdade de
construir realidades e criar grande prejuízo. Isso sem contar que já
se delineava nesses primórdios brasileiros uma “cultura do estu‑
pro”, como veremos mais à frente, ainda hoje enraizada no país.
Com a desproporção sexual entre africanos embarcados, a entra‑
da muito maior de colonos homens, bem como a manutenção de
hierarquias de mando, a prática implicou o estabelecimento de
relações igualmente hierárquicas, e raramente consentidas. Fazia
parte, portanto, das “atividades diárias” das escravizadas sujeitar‑
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‑se aos desmandos dos senhores, o que acabou gerando uma re‑
presentação oposta — como se fossem elas a se “oferecer”.
Entretanto, toda moeda carrega consigo seu outro lado. Por
aqui — e contrariando a ladainha que descreve um sistema menos
severo — escravizados e escravizadas reagiram mais, mataram
seus senhores e feitores, se aquilombaram, suicidaram‑se, aborta‑
ram, fugiram, promoveram insurreições de todo tipo e revoltas
dos mais diferentes formatos. Também negociaram seu lugar e
condição, lutando para conseguir horas de lazer, recriar seus cos‑
tumes em terras estranhas, cultuar seus deuses e realizar suas prá‑
ticas, cuidar de suas lavouras, e trataram de preservar suas famílias
e filhos.
Por seu turno, senhores de escravos inventaram verdadeiras
arqueologias de castigos, que iam da chibatada em praça pública
até a palmatória, bem como informaram‑se sobre as experiências
e leis abolicionistas aplicadas em outras colônias escravocratas,
muito especialmente na América espanhola. Por isso, adiaram, o
quanto foi possível, o fim do regime, adotando um modelo gra‑
dual e lento de abolição.
Um sistema como esse só poderia originar uma sociedade
violenta e consolidar uma desigualdade estrutural no país. Escra‑
vizados e escravizadas enfrentavam jornadas de trabalho de até
dezoito horas, recebiam apenas uma muda de roupa por ano,
acostumavam‑se com comida e água pouca e nenhuma posse. Se a
alfabetização não era formalmente proibida, foram, porém, raros
os casos de proprietários que concederam a seus cativos o direito
de frequentar escolas, criando‑se assim uma sociabilidade partida
pelo costume e pela realidade. Nas sociedades ocidentais, sem es‑
tudo formal não há possibilidade de mudança social, com as clas‑
ses se comportando como estamentos congelados e destituídos da
capacidade de romper ciclos de pobreza herdados do passado.
O sistema acabou tarde e de maneira conservadora. Apenas
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depois de uma série de leis graduais, como a Lei do Ventre Livre,
de 1871 (que libertava os filhos mas não as mães, e ainda garantia
ao senhor o direito de optar entre ficar com os libertos até 21 anos
de idade e entregá‑los ao governo), a Lei dos Sexagenários, de
1885 (que manumitia escravizados precocemente envelhecidos e
muitas vezes impossibilitados de trabalhar, representando despesa
em vez de lucro para o proprietário), e finalmente a Lei Áurea, de
13 de maio de 1888. Curta, ela representou uma solução de com‑
promisso. A lei não ressarciu os senhores, que esperavam receber
indenização do Estado por suas “perdas”. No entanto, também não
previu nenhuma forma de integração das populações recém‑li‑
bertas, inaugurando um período chamado de pós‑emancipação,
que teve data precisa para começar mas não para terminar.
Foi exatamente nesse contexto que teorias deterministas,
também denominadas “darwinistas raciais”, pretenderam classifi‑
car a humanidade em raças, atribuindo‑lhes distintas capacidades
físicas, intelectuais e morais. Segundo tais modelos científicos, os
homens brancos e ocidentais ocupariam o topo da pirâmide so‑
cial, enquanto os demais seriam considerados inferiores e com
potencialidades menores. Pior sorte teriam as populações mesti‑
ças, tidas como “degeneradas” porque provenientes da mistura de
raças essencialmente diversas. Esse “saber sobre as raças” visava
justificar, com o aval das teorias da época, o domínio “natural” dos
senhores brancos sobre as demais populações. Visava, ainda, subs‑
tituir a desigualdade criada pela escravidão por outra, agora justi‑
ficada pela biologia.
Assim, enquanto o Século das Luzes, o xviii, e o liberalismo
político tinham divulgado a concepção de que os homens eram
iguais perante as leis, teorias do determinismo social e racial pre‑
tenderam concluir o oposto: que a igualdade e o livre‑arbítrio não
passavam de uma quimera, uma balela da Ilustração. Talvez por
isso, na época da imediata pós‑emancipação um sábio dito popu‑
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lar circulou pelas ruas do Rio de Janeiro: “A liberdade é negra, mas
a igualdade é branca”. A citação se referia à liberdade recém‑con‑
quistada pelos negros, com a abolição da escravidão, mas indica‑
va, igualmente, a persistência dos severos padrões de desigualdade
no país, problema que ainda aflige os brasileiros.
Ademais, as decorrências desses pressupostos tinham, entre
outros, o poder de perpetuar estruturas de dominação do passa‑
do, colocando em seu lugar novas formas de racialização, as quais
buscavam justificar biologicamente diferenças que eram históri‑
cas e sociais. Conforme desabafou em seu diário o escritor negro
Lima Barreto, ainda nos inícios do século xx: “A capacidade men‑
tal dos negros é discutida a priori e a dos brancos, a posteriori”.
A emergência do racismo é, portanto, uma espécie de “troféu
da modernidade”. Se a presença de negros em espaços de prestígio
social já era basicamente vedada, ou muito dificultada pela escra‑
vidão, permaneceu bastante incomum no começo de nossa histó‑
ria republicana. Por isso, o sistema escravocrata só aparentemente
restou fincado no passado. Tal configuração social, que levou à
exclusão de boa parte da população das principais instituições
brasileiras, produziu ainda um apagamento dos poucos intelec‑
tuais negros que haviam logrado se distinguir na época colonial e
especialmente durante o Império. Também ocultou a formação de
uma série de sociedades, associações e jornais comunitários ne‑
gros, idealizados na Primeira República, que procuravam, na base
da coletividade, lutar pela necessária inclusão social. Conforme
define o sociólogo Mário Augusto Medeiros da Silva, essa seria
uma “dupla morte” das pessoas negras; mata‑se o indivíduo mas
também sua memória.
Com a entrada do século xx, e diferentemente do que a pro‑
paganda republicana divulgou, a exclusão social voltou a crescer
no Brasil; os negros sendo sistematicamente apartados das políti‑
cas e das benesses do Estado. Essa longa história também explica
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LILIA MORITZ SCHWARCZ é professora
titular no Departamento de Antropologia da
USP e Global Scholar na Universidade de
Princeton. É autora de, entre outros livros,
O espetáculo das raças (1993), As barbas do
imperador (1998, prêmio Jabuti de Livro do
Ano), Brasil: Uma biografia (com Heloisa
Murgel Starling, 2015) e Lima Barreto: Triste
visionário (2017, prêmio Jabuti de Biografia).
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