Grelha Correcao Exame de Recurso Direito Penal I 09.04.2021

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DIREITO PENAL I

3.º ANO – NOITE/2020-2021


Regência: Paulo de Sousa Mendes
Colaboração: João Matos Viana, David Silva Ramalho, Mafalda Moura Melim e Tiago Geraldo
Exame de recurso – 6 de abril de 2021
Duração: 90 minutos

1. Em 2019, na sequência de diversos confrontos entre claques de futebol, o Governo aprovou


o decreto-lei que cria o “Regime Jurídico de Combate ao Ódio Desportivo”, onde previu um
conjunto de novas medidas de segurança nos estádios de futebol e uma incriminação nova.
De acordo com o seu artigo 3.º, com a epígrafe “Ultraje de clube de futebol”, “[q]uem
publicamente por palavras, gestos ou divulgação de escrito, ou por outro meio de
comunicação com o público, ultrajar o símbolo, designação, estrutura societária ou jogador
de clube de futebol da primeira Liga, ou faltar ao respeito que lhes é devido, é punido com
pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.”
Aprecie a constitucionalidade desta incriminação. Tenha em conta na sua resposta a
incriminação prevista no atual artigo 332.º do Código Penal. (4 valores)

2. Em 2005, no Kansas, foi criada a Igreja do Monstro do Esparguete Voador como forma de
protesto contra o ensino do criacionismo em condições de paridade com o evolucionismo nas
escolas públicas. O objetivo da criação desta Igreja era o de sugerir que, se o criacionismo e
o evolucionismo mereciam igual destaque, então o mesmo deveria suceder com esta nova
forma de explicação do Universo. Imagine que em 2018 André fundou o grupo dos
Pastafarians de Lisboa, enquanto seguidores da Igreja do Monstro do Esparguete Voador.
Certo dia, Bernardo, católico devoto, desloca-se ao Templo dos Pastafarians e, em plena
reunião, diz que aquela religião era uma farsa e que os seus membros eram ridículos só por
ali estarem.
Poderá Bernardo ser julgado pela prática dos crimes previstos no artigo 251.º, n.º 1, ou
252.º, alínea b), do Código Penal? (4 valores)

3. No dia 13 de novembro de 2020 foi publicada a Lei n.º 73/2020 que prevê um conjunto de
medidas destinadas a prevenir a propagação da Covid-19, nas quais se inclui a punição como
crime de desobediência da violação do dever de recolher obrigatório durante o fim de semana
de 14 a 16 de novembro. Ana foi passear o seu cão na noite de 13 de novembro e quando
regressava a casa foi interpelada por um agente da PSP que lhe disse que já passava da meia-
noite e que, por isso, Ana praticara o crime de desobediência. Poderá Ana ser julgada pela
prática do crime de desobediência? (4 valores)

4. Aníbal reside em Lisboa há 10 anos. No início do ano, as autoridades chinesas requereram a


sua extradição, por o mesmo ser suspeito da prática de um crime de homicídio ocorrido em
2004. Poderá Aníbal ser extraditado para a China, tendo em conta que, ao abrigo da lei
portuguesa, o crime estaria já prescrito? Independentemente da resposta a esta questão,
caso Portugal recusasse a extradição, poderia julgar Aníbal de acordo com a lei chinesa?
(4 valores)

Ponderação Global: 2 valores


Grelha de correção:

Questão 1

a) Violação do princípio da legalidade, dimensão de lei estrita: violação do artigo 165.º,


n.º 1, alínea c), da CRP, na medida em que a incriminação e a medida de segurança foram
criadas por decreto-lei do Governo.
b) Violação do princípio da necessidade penal: segundo o artigo 18.º, n.º 2, da CRP, as
penas e medidas de segurança devem limitar-se ao necessário para salvaguardar interesses
constitucionalmente protegidos.
Neste caso concreto, nem sequer se poderia afirmar que os símbolos de um clube
de futebol merecem qualquer tipo de tutela constitucional acrescida, para além daquela
que é devida a qualquer pessoa individual ou coletiva, ao abrigo das incriminações de
difamação (artigo 180.º do CP) e ofensa a pessoa coletiva (artigo 187.º do CP).
Inexiste, portanto, qualquer valor autonomamente tutelável que justifique a
incriminação penal, a qual seria desnecessária.
A mesma discussão poderia ser equacionada a propósito do artigo 332.º do CP,
convocando para esse âmbito a dimensão negativa da dignidade punitiva e o confronto
do comportamento ali punido com outros valores constitucionalmente garantidos, como
a liberdade de expressão a que se refere o artigo 37.º da CRP, ainda que, neste caso, a
soberania da República e os seus símbolos (bandeira nacional e hino nacional) tenham
relevância constitucional autónoma (por exemplo, ao abrigo do artigo 11.º da CRP).

Questão 2

Neste caso, trata-se de um problema de interpretação da lei penal.


A esse propósito, segundo o artigo 165.º, n.º 1, alínea c), da CRP, os crimes
devem ser definidos por lei da Assembleia da República ou decreto-lei autorizado.
Considerando que o legislador parlamentar se exprime por palavras, então, para se
respeitar aquela reserva de lei, deve-se respeitar também as palavras utilizadas pelo
legislador.
Resulta daqui que o limite inultrapassável da interpretação em direito penal
consiste no sentido comunicacional possível e previsível das proposições e das palavras
que as integram, interpretadas sistematicamente no seu contexto normativo.
Entre os vários sentidos possíveis e previsíveis das palavras, uma vez que as
palavras são polissémicas, ter-se-á de selecionar aquele que melhor corresponda ao
sentido do proibido (ao sentido do ilícito) consagrado pelo legislador (elemento
teleológico).
Neste caso, quer recorrendo ao sentido das proposições, quer ao sentido do ilícito,
ter-se-á de concluir que, quando o legislador menciona os conceitos de “crença ou função
religiosa” e “ato de culto de religião” nos referidos tipos incriminadores, constantes dos
artigos 251.º, n.º 1, e 252.º, alínea b), do CP, não pretendeu incluir formas de protesto
como aqueles que resultam do movimento Igreja do Monstro do Esparguete Voador.

Questão 3

a) A violação do dever de recolher obrigatório consuma-se durante todo o período durante


o qual o indivíduo não se encontrar recolhido. Trata-se, portanto, de um crime
permanente.
b) Adicionalmente, a Lei n.º 73/2020 constitui uma lei temporária, no sentido do artigo 2.º,
n.º 3, do CP. A infração que tiver sido praticada ao abrigo de uma lei temporária será
julgada ao abrigo desta lei, ainda que lei mais favorável lhe suceda.
c) Finalmente, a Lei n.º 73/2020 é uma lei incriminadora.
d) As leis incriminadoras só podem ser aplicadas quando prévias ao comportamento que se
encontra sob avaliação (artigo 29.º, n.º 4, da CRP; artigo 1.º, n.º 1 e 2.º, n.º 1, do CP).
Neste caso, a lei incriminadora é prévia ao comportamento de Ana. Ou seja, a lei entrou
em vigor às 00:00 de dia 14.11 e, depois dessa hora, Ana encontrava-se em violação do
dever de recolher obrigatório. O facto de Ana ter saído de casa antes das 00:00 é, para
estes efeitos, irrelevante (não estamos a considerar nesta resposta, pois o enunciado nada
diz a este propósito, eventuais exceções relacionadas com a possibilidade de passear
animais domésticos).
e) Ana poderá ser julgada por este comportamento, ao abrigo do artigo 2.º, n.º 3, do CP,
ainda que a lei tenha caducado no dia 16.11 e lhe tenha sucedido uma lei mais favorável.

Questão 4

a) Assumindo-se, por nada ser dito em contrário, que Aníbal é português, a extradição
deverá ser recusada, nos termos do artigo 32.º, n.º 1, alínea b), da Lei n.º 144/99, por não
se verificarem as exceções previstas no n.º 2.
b) Caso já tivesse sido instaurado processo-crime em Portugal, por a lei portuguesa se
considerar competente, e o mesmo tivesse sido arquivado por prescrição, a extradição
deveria ser recusada, na medida em que (i) a prescrição do procedimento segundo a lei
portuguesa é fundamento de recusa de cooperação judiciária pelo Estado Português
(artigo 8.º, n.º 1, al. c), da Lei n.º 144/99) e (ii) isso implicaria uma dupla apreciação
jurisdicional do mesmo facto (artigo 29.º, n.º 5, da CRP).
c) Portugal apenas pode julgar um arguido de acordo com uma lei estrangeira (aplicação de
lei estrangeira em tribunais portugueses) se, resultando a competência dos tribunais
portugueses do artigo 5.º do CP, a lei estrangeira se revelar concretamente mais favorável
ao arguido, conforme dispõe o artigo 6.º, n.os 1 e 2, do CP.

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