754 394 PB
754 394 PB
754 394 PB
2020
8 Apresentação
Reinaldo Marques
Varia
171 As vozes nas marginálias de Fantoches: roupagens
verbais e imagéticas de Erico Verissimo
The Voices in the Marginalias of Fantoches: Verbal
and Imagectic Clothing by Erico Verissimo
Airton Pott
Miguel Rettenmaier da Silva
Emílio Maciel
Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP), Ouro Preto, Minas Gerais/ Brasil
[email protected]
http://orcid.org/0000-0003-4384-1945
Resumo: Leitura de “Para mascar com chiclets”, de João Cabral de Melo Neto (1998), este
ensaio explora as complexidades sintáticas e figurativas do poema, tomando como ponto
de partida as tensões entre a aposta anti-ilusionista da poesia moderna e as intimações
antropomórficas e alucinatórias da tradição lírica ocidental. Ato contínuo, ao destacar a
sutil trama de interrupções que atravessa os versos, tenta-se mostrar como, neste poema,
o senso de uma clivagem insuperável separando homem e tempo se dá ver menos como
enunciado explícito do que como uma estranha solução de compromisso entre resistência e
abstração, prosaico e sublime, na qual o mergulho obsessivo e mecânico na pura repetição
torna-se o atalho inesperado para um bizarro ritual autodestitutivo.
Palavras-chave: João Cabral de Melo Neto; lírica; antropomorfismo; tropo.
Abstract: A reading of João Cabral de Melo Neto’s (1998) “Para mascar com chiclets”,
this essay explores the syntactic and figurative complexities of the poem, taking as a point
of departure the tensions between the anti-illusionistic commitment of modern poetry and
the anthropomorphic and hallucinatory intimations of western lyric tradition. Furthermore,
by enhancing the subtle net of disruptions which pervades the verses, one tries to show
how, in this poem, the sense of an unsurpassable cleavage separating Man and Time is
enacted less as an explicit statement than as frail compromise solution between resistance
and abstraction, prosaic and sublime, in which a mechanical and obsessive plunge into pure
repetition becomes an unexpected gateway to a weird ritual of self-destitution.
Keywords: João Cabral de Melo Neto; lyric; antropomorphism; trope.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 12-32, 2020 13
2
Quem pôde não reincidir no chiclets,
e saberente que não encarna o tempo:
ele faz sentir o tempo e faz o homem
sentir que ele homem o está fazendo.
Faz o homem, sentindo o tempo dentro,
sentir dentro do tempo, em tempo-firme,
e com que, mascando o tempo chiclets,
imagine-o bem dominado, e o exorcize.
(MELO NETO, 1998, p. 36).
2 longos e sinuosos períodos que constituem, por assim dizer, suas passagens
mais marcantes e memoráveis. Ou no mínimo, as que parecem mais
reverberação gerar numa primeira leitura. No que se refere às frases
indagativas, por sinal, que sem serem escandidas pelo ponto de interrogação
correspondente, soam como um mix de parábase ansiosa e pergunta retórica
desidratada, curioso notar como, lidas em sua acepção mais literal, elas
parecem como que devolver a um nível mais rés do chão o efeito ascendente
gerado pelos dois tours de force, funcionando nesse ponto como uma brusca
injeção de prosaísmo desarticulando uma símile que começava a soar talvez
demasiado brilhante e/ou sedutora. Ou isso, pelo menos, é o que parece se
dar com o advento da conjunção adversativa logo na linha 13, completando
– algo anticlimaticamente –, a primeira e mais longa estrofe, numa explícita
palinódia do que ia se insinuando no cotejo tempo x borracha. Até que tal
efeito se imponha, entretanto, e a precisão ao mesmo tempo bizarra e
cirúrgica da aproximação anterior tenha que ser subitamente freada pelo
cutucão da vida prosaica – terreno em que o parentesco entre tempo e chiclets
poderia passar no máximo por um dito chistoso –, tampouco soa gratuito,
de resto, que a própria construção meticulosa da símile expandida, em
gradação sutil, já pareça caminhar no sentido de bloquear o perigo de uma
fluência e/ou adesão excessivas, delineando então um traçado, noves fora,
onde a contraposição tão impactante de borracha e temporalidade, matéria
e abstração, jamais chega a assumir de fato a plena condição de metáfora,
mantendo-se o tempo todo acolchoada pela presilha que a um só tempo liga
e separa os contextos aproximados. Num plano um pouco mais microscópico
ainda – e como que dando um pouco mais de lastro à borracha que emerge
no verso 4 como parte que vale pelo todo –, outro ponto a ter em vista, nessa
frase de oito linhas, concerne a certo efeito de usurpação implícito na escolha
de manter o substantivo do título como termo protagonista; opção que, se
constitui seguramente de um lado um hábil logro sinedóquico – se pensarmos
que o tempo é aqui muito mais aparentado da borracha que do doce
barato –, de outro não deixa de configurar também um esteio imprescindível
para a graça e agilidade do texto, cujo impacto passa justo pela habilidade
de elevar a alturas sumamente abstratas um achado comezinho. Resultado:
produzindo assim uma drástica horizontalização de todos os termos
envolvidos, essa sistemática troca de guarda entre alto e baixo, acidental e
essencial, acaba gerando também um produtivo desconforto no leque de
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 12-32, 2020 16
retornar na conclusão deste ensaio –, outro dado que logo salta à vista,
nessa passagem, é o efeito encantatório e hipnótico gerado pelas repetições
das palavras “homem”, “sentir” e “tempo”, traço que parece de certo modo
radicalizar ainda mais o transe sutilmente produzido no octeto de versos
votado à equação tempo=chiclets. Encontrando ainda um apoio extra no
próprio caráter coringa de um verbo como “fazer”, que lembra quase um
jogo conceptista na agilidade com que iguala significados discrepantes, tal
passagem, mais uma vez, reforça o efeito de copertencimento dinâmico
com a outra longa frase do texto, de que ela é ao mesmo tempo rasura e
prolongamento. Senão vejamos: de um lado, ao eleger por ponto de partida
um juízo a ser dobrado e redobrado nas linhas seguintes, criando uma espécie
de cola anafórica à base da pura redundância sonora, os seis versos finais do
poema despontam com um bem-vindo respiro após a sensação de impasse
gerado pelo dístico que os antecede, e cujo truncamento sugere algo da
dificuldade de um raciocínio incoativo ainda lutando para vir a lume; de
outro lado, porém, ao fazer variar algo vertiginosamente à função sintática
dos termos – torção tornada especialmente incisiva quando, para garantir
à partícula “homem” o lugar de agência, o texto chega quase no limiar de
indistinguir os dois termos masculinos “tempo” e “homem” –, o trecho
parece converter em sequência de espasmos o que era, na símile do chiclets,
quase um sortilégio. Como possível resultado final de tais malabarismos –
num lance que não só dá de barato sem mais pruridos da distinção dentro
x fora como parece tornar inquietantemente incerta a fronteira do agir e
do ser agido –, o que se tem é um enlace, então, que, justo por tomar por
matéria prima uma série de expressões clichê envolvendo o termo coringa,
corre o risco de até dissimular um pouco a hiperbólica violência figurativa
que comete, ao fazer com que a alucinação da borracha enquanto “tempo
dentro” retorne na linha seguinte na confortadora catacrese de um tempo
firme e hospitaleiro ao homem; catacrese, aliás, de pronto desfeita bem
na linha seguinte. O impressionante, porém, é que, uma vez colocado
no microscópio, o próprio verso incumbido de efetivar o enlace (“sentir
dentro do tempo, em tempo firme”) parece também ele pervertido por uma
leve, mas nem por isso menos impressiva dissonância sintática, impressão,
aliás, facilmente sanável, por exemplo, se o poeta tivesse acrescentado um
pronome reflexivo ‘‘se” logo depois do verbo principal. Da forma como se
manteve no texto, entretanto, o fato é que, na bifurcação provocada pelo
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 12-32, 2020 19
não deixa de ser, por sinal, também uma ótima via de acesso à sua própria
hora histórica. Como convém a toda metáfora gasta, aliás, não há dúvida
que a simples conversão da dimensão tempo em um substantivo masculino
nos coloca sem dúvida a boas milhas de distância do acento idílico adotado
por Evans-Pritchard (2007), em sua etnografia dos Nuer, um povo cuja
felicidade, segundo o antropólogo, resultaria justamente do fato de
desconhecerem o uso linguístico do referido substantivo – para nós pairando
sempre como medida abstrata, para além da especificidade de cada
fenômeno. Num arco que pode incluir, portanto, ou o tempo de uma mijada,
ou o do cozimento do arroz, mas nunca os “x” minutos que essa mesma
atividade dispenderia no dial de uma panela elétrica, convém não esquecer
ainda que, nessa passagem até o que responde por muito da nossa, digamos,
infelicidade moderna – na guerra diária com uma entidade escassa que
jamais conseguimos gastar como se deve –, está um elemento que constitui
também, desde pelo menos as apóstrofes homéricas, um dos dispositivos
mais infalíveis da lírica tout court, entendendo-se por isso como a senha de
um regime discursivo que, no arco teórico que vai do Dante de Vita Nuova
até De Man (1999), Culler (2015) & cia, tem por fulcro exatamente a licença
para investir de qualidades humanas aquilo que não o é, conferindo desse
modo uma natureza por assim dizer mais responsiva ao mundo não raro
reduzido pela doxa a mero acumular de objetos. Num poeta tão radicalmente
moderno como João Cabral, aliás, se há um dado que funciona quase como
uma mini-quadratura do círculo em meio a tais tensões, ele não diz senão
respeito ao modo perversamente sistemático como, nesse e em vários outros
poemas, a mais valia semântica gerada em cada símile exitosa coexiste
quase em igualdade de condição com o impulso de desnaturar e corroer
associações gastas, como tática para reaver o frescor e mistério das catacreses
mobilizadas/imobilizadas pelo senso comum. Numa possível posição de
equidistância entre os dois polos – e longe, portanto, quer do tempo que se
gasta e se poupa das locuções vulgares, quer da símile que aposta todas as
fichas na dimensão elástica da referida entidade –, isso poderia remeter
também ao próprio tempo relógio também cantado por João Cabral em outro
conhecido poema, numa clave em boa medida afim ao que propõe E. P.
Thompson (2008) em seu antológico ensaio sobre o tempo no Capitalismo.
O mais curioso, entretanto, é que se essa impressão pode parecer até
convincente numa leitura na transversal – que se limite a colocar em destaque
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 12-32, 2020 22
um certo quê de servidão voluntária que subjaz a essa ascese, na qual a mais
mecânica e repetitiva de todas as atividades torna-se uma linha de fuga
capaz de aplacar a catacrese do escorrer pelos dedos –, o mesmo não parece
se manter, porém, quando passamos à leitura em câmera lenta da própria
abertura do poema, em que esse mesmo caráter repetitivo da atividade dá
a impressão antes de colocar-se a serviço de um certo efeito de imprecisão
e perda de norte, análogo ao de alguém que perde a conta dos números
depois de muito contar. Ensejando alguns dos versos mais estranhos e
retorcidos de todo o corpus cabralino, não se pode dizer que estejamos
exatamente pisando agora em terreno firme – e nem tampouco que se trate
apenas de um acidente de percurso. Entende-se o porquê: elegendo como
ponto de partida a ousada equiparação chiclets / novelo – que não só se
desenrola como em que também se sobe –, não há dúvida que, ao desaguar
na dupla negação que afirma por via transversa a expulsão do chiclets, esse
trecho parece celebrar a vitória por pontos da fria matéria sintética sobre a
medida humana, descrevendo um raciocínio que, ao realçar o poder de
resistência da prosaica borracha, prepara também a cama para a identificação
entre esta e a prosopopeia do tempo, aí investido, quase por contágio, de
lastro intimidador. Ultrapassada a símile de oito linhas, entretanto, e
confrontados assim com o óbvio efeito de simetria gerado pela repetição
da pergunta com o “quem” na frase adversativa, curioso notar como, ao
colocar em foco a quase impossibilidade de não reincidir no chiclets, o eco
sintático e semântico unindo os dois trechos caminha nitidamente no sentido
de delinear um ritmo que não seria propriamente exagero chamar de
compulsivo, cobrindo um ciclo no qual, a rigor, a impressão de continuidade
instaurada pela goma de mascar torna-se uma entidade que se eterniza por
substituição a cada vez que a goma recém descartada é suplementada por
outra. À primeira vista, aliás, no forte efeito de desproporção gerado por
essa injeção de pathos – cuja estranheza passa tanto pela dimensão
reduzidíssima do ato em si quanto pela supressão da suposta ou supostas
atividades principais cuja eficiência seria otimizada mastigar do chiclets –,
pode-se identificar um dado que instaura uma rica tensão com o admirável
senso construtivo de que o poema dá prova, não deixando de ser também
coerente com a própria feição de quase anacoluto de que ambas as frases
se investem, ao optarem por elidir o ninguém da pergunta retórica por um
pronome passível de ser ocupado por toda e qualquer pessoa. Num salto
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 12-32, 2020 23
resolver, numa tocada que permite também delinear com um pouco mais
de nuance o insólito construtivismo cabralino: programa, que, se é implacável
no ânimo desmistificador de solapar consensos fáceis – seja quando religa
a poesia ao prosaísmo, seja quando converte a trama de objetos numa espécie
de biombo atrás do qual se reflete a sombra espectral do eu –, nem por isso
deixa de ser também sensível a um certo elemento quase alucinatório de
toda boa metáfora, na sua capacidade de nos sequestrar momentaneamente
das âncoras do mundo literal. No que diz respeito a “Para mascar com
chiclets”, aliás, a julgar pelo próprio elenco de nomes há pouco convocado
para dar conta deste morde-assopra, não deixa de ser intrigante perceber,
por exemplo, a lucidez com que a fusão idílica do final é meticulosamente
desarmada por um certo componente de truque barato que se mantém
ressoando o tempo todo no significante “chiclets”, sem que isso signifique,
evidentemente, nem de longe, qualquer demérito. Pelo contrário: na medida
em que destaca o traço de contingência por baixo da elevação pseudo-
mística, e ao mesmo tempo nos força a reler com um pé atrás a majestosa
solenidade das duas longas símiles – que, já a começar pelo adjetivo
“consubstante” rasgando o verso 4, confere a toda descrição um traço de
liturgia paródica –, é possível que um dos traços mais chocantes do poema
seja exatamente essa habilidade de deslizar, quase sem cerimônia, entre
campos semânticos aparentemente inimigos, qualidade que o leva também
a suspender a própria barreira entre o sério e o cômico, ao desentranhar uma
inusitada trama de parentescos entre a hóstia e a goma de mascar. Com a
grande e decisiva diferença que, se no caso do pão sagrado do cristianismo,
tudo passa pela capacidade de pensar numa transposição sem resíduo do
verbo à carne, no avatar cabralino, em contrapartida, é como se a própria
condição indigerível da sua matéria forçasse o oficiante a prender-se num
reiterar ritualístico que tem muito menos de epifania do que de trabalho de
Sísifo, consistindo boa parte, digamos, da “virilidade madura” da referida
tarefa na meticulosidade e paciência para manter reconstruindo por um
tempo indefinido o que se sabe ser também a rigor um mero artefato
heurístico, aí convertido em alavanca capaz de suster e tornar amigável a
mais assustadora e elusiva de todas as prosopopeias modernas. Num plano
mais imediato, decerto, se pensarmos então no peso da borracha mediadora
na produção do enlace quase perfeito que irrompe ao fim do texto, tampouco
parece por acaso, na penúltima linha, que tal instrumento retorne literalmente
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 12-32, 2020 30
Referências
BAPTISTA, Abel Barros. O livro agreste. Campinas: Ed. Unicamp, 2005.
BAUDELAIRE. Spleen IV. In: BAUDELAIRE. As flores do Mal. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985. p. 296-297.
COSTA LIMA, Luiz. Lira e antilira: Mário, Drummond, Cabral. Rio de
Janeiro: Civilização Brasileira, 1968.
CULLER, Jonathan. Theory of the Lyric. Cambridge, Massachusetts: Harvard
University Press, 2015. DOI: http://doi.org/10.4159/9780674425781.
DE MAN, Paul. O ponto de vista da cegueira. Coimbra: Angelus Novus:
Cotovia, 1999.
DONNE, John. O êxtase. In: CAMPOS, Augusto de. Verso, reverso,
controverso. São Paulo: Perspectiva, 1978. p. 132-139.
EVANS-PRITCHARD. E.E. Os nuer. São Paulo: Perspectiva, 2007.
FAULKNER, William. O som e a fúria. São Paulo: Companhia das Letras,
2017.
MELO NETO, João Cabral de. Para mascar com chicletes. In: MELO
NETO, João Cabral de. A educação pela pedra e depois. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998. p. 36.
MELO NETO, João Cabral de. Poesias completas. Rio de Janeiro: José
Olympio, 1979.
OVÍDIO, Metamorfoses. São Paulo: Ed. 34, 2017.
PASCAL, Blaise. Pensamentos. São Paulo: Martins Fontes, 2001.
PONGE, Francis. O partido das coisas. São Paulo: Iluminuras, 2000.
THOMPSON. E. P. Costumes em comum. São Paulo: Companhia das Letras,
2008.
Resumo: Esse texto busca expor e analisar o papel que a articulação teórica entre a
disposição antropológica constitutiva a que tentamos alcançar com as denominações
de carência, lacuna, fragilidade, vulnerabilidade – e a mímesis como decisivo para a
compreensão da teorização recente de Luiz Costa Lima e do caminho que ela oferece para
os Estudos Literários. Como é usual na obra do autor, o exercício de teorização aparece
como uma interlocução. Nesse caso, os autores convocados são A. Gehlen e H. Blumenberg.
Palavras-chave: Luiz Costa Lima; mímesis; vulnerabilidade; antropologia filosófica;
teoria da literatura.
Abstract: This text seeks to expose and analyze the role that the theoretical articulation
between the constitutive anthropological disposition called of vulnerability and Mimesis
as decisive for understanding the recent theorization of Luiz Costa Lima and the way that
it provides for Literary Studies. As is usual in the author’s work, the theorizing exercise
appears as an interlocution. In this case, the authors summoned are A. Gehlen and H.
Blumenberg.
Keywords: Luiz Costa Lima; mímesis; vulnerability; philosophical anthropology; theory
of literature.
1
Ainda que a exploração desse terreno pareça dotada de novidade e que, de fato, suas
potencialidades permaneçam desconhecidas ou ignoradas, a literatura e a antropologia
mantêm relações intensas como participantes da configuração do mundo moderno. Sobre
isso, ver Riedel (2004).
2
Tratamos aqui, seguindo a Jean-Marie Schaeffer, a experiência estética como um fato
antropológico que, embora esteja enraizado na vida vivida, não oferece seu sentido de
forma imediata. Isso é, da perspectiva que adotamos, a experiência estética não é menos
mediada e circunstanciada que as demais relações que os seres humanos estabelecem com
o seu entorno. Experiência estética é, portanto, uma experiência humana básica, que se
realiza “em forma de uma vivência cognitiva e afetiva” (2004, p. 36). Nesse sentido, não
pode deixar de ser uma experiência vivida (vivência fenomênica, Erlebnis). Todavia, sua
singularidade repousa na capacidade de efetuar verdadeiras transformações- transgressões
nas formas de determinação do princípio de realidade, do que decorre que a experiência
estética também se inscreva como uma relação interativa com o mundo, isso é, como
estrutura lógica das representações (Erfahrung). O que é decisivo: a experiência estética
não engendra nenhum conceito próprio constitutivo de seu objeto. Cf. Schaeffer (2004).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 33-51, 2020 35
3
Talvez não seja ocioso lembrar que embora o nascimento das ciências humanas se dê
no momento em que o homem, como ser individual e ser social passa a ser tematizado
no plano do pensamento, isso não significa que o estudo do homem seja privilégio das
ciências humanas. O que é específico das ciências humanas não é o direcionamento para
um objeto próprio e singular, o ser humano. Específico da área das Humanas é estar,
em relação às demais ciências que tem o ser humano como objeto, em uma posição de
constante reduplicação, ocupando um lugar que se situa na distância que separa o empírico
e o transcendental. Cf. Foucault (1966, p. 365-366).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 33-51, 2020 38
fictício para além dos limites da obra literária, mostrando que a ficcionalidade
poética responde a uma demanda mais ampla, i.e antropológica. E (v) o
peso inegável do legado de Lévi-Strauss.
Dito isso, passemos ao primeiro ponto a ser abordado, chamando
atenção para o fato de que a elaboração mais contundente em relação à
importância adquirida pelo elemento antropológico constitutivo denominado
carência, lacuna ou vulnerabilidade na concepção teórica de Luiz Costa
Lima aparece em A ficção e o poema (2012), quando o autor discute as
consequências geradas pela posição heideggeriana ao conceber o âmbito
filosófico como sede da linguagem. Nesse contexto, o autor traz à cena a
antropologia filosófica de A. Gehlen:
Contra o risco do empobrecimento que assim se estabelece [pela
via heideggeriana], hão de se apresentar alternativas. Pessoalmente,
encontro-a na antropologia filosófica de A. Gehlen. Para tanto, volto
a lançar mão de uma curta passagem de Der Mensch. Partindo da
carência biológica que caracteriza o animal humano – o bebê humano
é uma espécie de prematuro fisiológico, isto é, normalizado, que sofre
da redução dos instintos, o animal, nas palavras de Nietzsche, ainda
não-diagnosticado – Gehlen afirmava, no início de sua obra capital:
“Antes de tudo, temos que recusar que o homem só se distingue dos
animais por uma questão de grau ou só pelo ‘espírito’, e portanto
não se define por um traço essencial e antinatural” – “Mesmo a
redução dos instintos ou meios de descarga (desafogo) firmemente
coordenados e específicos à espécie, mostram-se agora, vistos por
outro ângulo, como uma pressão crônica. Também aqui há uma
correlação direta entre as condições existenciais constitutivas do
homem e sua carência crônica”. Que relevância retiro da reflexão,
fragmentariamente aqui incluída, face aos problemas que encontro no
legado heideggeriano? A de, assinalando a ausência de um território
próprio ao homem, decorrente de sua vulnerabilidade, ressaltar que
ele se torna livre para aquilo que o cerca ou aberto para o mundo
(grifo nosso). (COSTA LIMA, 2012, p. 169)
4
Gumbrecht esmiúça, a partir da teoria sistêmica do sociólogo alemão Niklas Luhmann,
por meio da noção de códigos em colapso, zonas culturais de alta visibilidade que conjugam
funções discursivas específicas e sobrecargas emocionais e por isso, situam-se em uma zona
fronteiriça que quebra a estabilidade normativa baseada em dicotomias pré-estabelecidas.
Os “códigos em colapso” equivalem, num contexto de um quadro sincrônico, ao conceito
de “acontecimento”. Isso é, momento em que a interferência da contingência indica um
potencial de zonas de atrito. Cf. Gumbrecht (1999, p. 396-456).
5
Em sua concepção orgânica, a mímesis estabelece uma correspondência entre o estado
de mundo e uma configuração textual. A configuração interna da obra é pensada, em
relação ao “mundo”, como um organismo-mundo e o mundo é concebido como um corpo-
cósmico. Nessa concepção, o mimema (produto da mímesis) pode ser entendido como parte
ou órgão desse todo-cósmico ou como um mundo reduzido que porta em suas próprias
proporções as configurações fundamentais do todo. Em ambos os casos, a concepção
orgânica é mantida. Fundamental assinalar que, para Costa Lima, essa concepção se
mantém desde a Poética de Aristóteles, mas não está presente no texto aristotélico Daí sua
releitura a Poética a contrapelo da tradição ocidental. Para maior aprofundamento, indico
as entrevistas concedidas a Ana Lúcia de Oliveira, Sérgio Alcides e a mim, publicadas no
trabalho organizado por Dau Bastos. Cf. Bastos (2010. p. 125-158, 291-312, 359-376).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 33-51, 2020 40
trazendo à tona uma verdade que faz o pensamento tocar seu próprio limite.
Ainda que os resultados de cada uma dessas direções teóricas sejam não
somente diversas, mas contrárias entre si, o sentido, nos diz , é o mesmo:
pelo enigma estético se vislumbra uma verdade sob o preço de renunciar
a compreendê-lo. Essa renúncia atrela o âmbito estético ao filosófico, que
assume a tarefa renegada (, 2010, p. 357-407).
A imagem de esclarecimento mútuo entre o estético e o filosófico
é enganosa. Ao ser relacionada à verdade, a arte desperta a expectativa de
aportar resposta às perguntas genuinamente filosóficas, afirma Bubner (2010,
p. 388). Costa Lima também mostra isso em A ficção e o poema. Conforme
o autor brasileiro, ainda que a linguagem filosófica e a linguagem poética
tenham a mesma dignidade, quando o motivo da reflexão sobre arte está preso
à busca pela verdade, reserva-se ao pensamento filosófico o direito de dizer e
de explicar a poesia: o discurso filosófico seria a sede pensante da linguagem,
esfera a partir da qual a poesia ganha sentido (COSTA LIMA, 2012,
p. 183). Isso é: se a questão de fundo é a verdade, a filosofia segue
dominando, mesmo que discretamente.
Para ambos, Costa Lima e Bubner, recorrer ao conceito de verdade
coloca a reflexão sobre a experiência estética numa estreita e complicada
relação com a filosofia. Essa relação, que se desenrola historicamente como
a construção do topos da arte como véu que recobre e, ao mesmo tempo,
porta a verdade, está enraizada à visão de mundo cristã e coloca a dimensão
estética-ficcional sob o peso da dimensão ético-religiosa. Liberada, na
Modernidade, das regras de proporção e do conjunto, a arte não foi, contudo,
libertada dos “ferrões da verdade”, fenômeno ao qual Costa Lima denomina
como estatuto pré-ficcional do ficcional-poético. O efeito estético é tomado
como uma propriedade de superfície, que encobre a verdade:
[…] a recorrência do topos, já no começo da racionalidade moderna,
assinala a manutenção do estatuto precário que reflexão sobre a
ficção tem conservado. Nos tempos remotos, com as musas e a
Sibila explicava-se a propriedade da beleza – suas das camadas, uma
graciosa, mas enganadora, a outra, sua capacidade de revelação –
como indiciadora do mistério das divindades; na Odisséia, esse lastro
mítico-religioso era substituído por uma propriedade estritamente
humana: a fala do aedo mantinha-se próxima do falso e do mentiroso,
sem se confundir um e outro. Esse caminho que, ao ser desenvolvido,
seria o mais apropriado para compreender o modo de operação
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 33-51, 2020 48
Referências
BASTOS, D. (org.). Luiz Costa Lima: uma obra em questão. Rio de Janeiro:
Garamond, 2010.
BLUMENBERG, H. Fuentes, corrientes, icebergs. Buenos Aires: Fondo de
Cultura Econômica, 2016.
BLUMENBERG, H. “Imitação da natureza”: contribuição à pré-história da
ideia do homem criador. Tradução de Luiz Costa Lima, sob revisão de Doris
Offehaus. In: LIMA, Luiz Costa (org.). Mímesis e a reflexão contemporânea.
Rio de Janeiro: EdUERJ, 2010. p. 87-135.
BLUMENBERG, H. La légitimité des temps modernes. Paris: Gallimard,
1999.
BUBNER. R. Acción, historia y orden institucional: ensayos de filosofia
práctica y uma reflexion sobre estética. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Economica; Universidad Autonoma Metropolitana, 2010.
COSTA LIMA, Luiz Costa. Os eixos da linguagem. São Paulo: Iluminuras,
2015.
COSTA LIMA, Luiz Costa. Mímesis: desafio ao pensamento. Florianópolis:
Ed. da UFSC, 2014.
COSTA LIMA, Luiz Costa. Frestas: a teorização em um país periférico. Rio
de Janeiro: Editora Contraponto, 2013.
COSTA LIMA, Luiz Costa. A ficção e o poema. São Paulo: Companhia das
Letras, 2012.
COSTA LIMA, Luiz Costa. História. Ficção Literatura. São Paulo:
Companhia das Letras, 2006.
COSTA LIMA, Luiz Costa. Mímesis e modernidade: formas das sombras.
2. ed. São Paulo: Graal, 2003.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 33-51, 2020 51
Referências
BARTHES, Roland. A morte do autor. In: ______. O rumor da língua. Trad.
Mário Laranjeira. São Paulo: Brasiliense, 1988. p. 65-70.
BARTHES, Roland. O grau zero da escritura. Trad. Heloysa de Lima
Dantas. 2. ed. São Paulo: Cultrix, 1986.
BARTHES, Roland. O império dos signos. Trad. Leyla Perrone-Moisés. São
Paulo: Martins Fontes, 2007.
BARTHES, Roland. O prazer do texto. Trad. J. Guinsburg. São Paulo:
Perspectiva, 2013.
BARTHES, Roland. S/Z. Trad. Lea de Abreu Novaes. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 1992.
COSTA LIMA, Luiz. A crítica total. Folha de São Paulo, Mais!, 15 jul. 2001.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/fsp/mais/fs1507200110.htm.
Acesso em: 23 nov. 2020.
COSTA LIMA, Luiz. A teoria da literatura entre nós. Floema: Caderno de
Teoria e História Literária, Vitória da Conquista, BA, Ano II, n. 2A, p. 33-
40, out. 2006.
COSTA LIMA, Luiz. Antes que anoiteça ou panorama visto de antes. In:
______. O insistente inacabado. Recife: Cepe, 2018.
COSTA LIMA, Luiz. Da existência precária: o sistema intelectual no Brasil.
In: ______. Dispersa demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981.
p. 3-29.
COSTA LIMA, Luiz. Estruturalismo e Teoria da Literatura. Petrópolis:
Vozes, 1973.
COSTA LIMA, Luiz. Mimesis e modernidade. Rio de Janeiro: Graal, 1980.
COSTA LIMA, Luiz. Quem tem medo da teoria? In: ______. Dispersa
demanda. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981. p. 193-196.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 52-64, 2020 64
Luiz Costa Lima and the Theory of the Novel (Return to Poetics)
Nabil Araújo
Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Rio de Janeiro, Rio de Janeiro / Brasil
[email protected]
http://orcid.org/0000-0001-6352-2437
Preâmbulo
Qual é o lugar da teoria do romance na obra do maior nome da
teoria da literatura no Brasil? Quais as implicações da reflexão de Luiz
Costa Lima em torno da teoria do romance para a discussão de tópicos
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 65-97, 2020 66
1
Dos cinco volumes do original italiano, obra de referência fundamental para os estudos
romanescos contemporâneos, apenas o primeiro ganhou edição brasileira (MORETTI,
2009).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 65-97, 2020 67
Teorias do romance
Lembrando que a ampla produção romanesca florescente na
França durante o século XVII “permanecia desprezada sob a acusação de
insuficiência artística e abundância de licenciosidade”, Costa Lima (2009,
p. 157) ressalta ter ironicamente cabido a um bispo, Huet, o primeiro
tratado sobre o romance como gênero, publicado em 1670.2 Até então, “o
romance, enquanto gênero, não havia sido sequer consignado nos tratados de
retórica, compêndios que, a partir do exemplo dos antigos, normatizavam a
direção a ser seguida pelas belas-letras”, observa Costa Lima (2009, p. 156),
arrematando: “Em decorrência, o ideal da épica renascentista não deveria
transigir sequer com o roman courtois – espécie de filho bastardo de tempos
escuros. No epos, a heroicidade como fim em si tomava o prosaico cotidiano
como matéria do gênero cômico” (COSTA LIMA, 2009, p. 156-157).
Ao relacionar o romance com a épica, assinalando, sob a égide da
verossimilhança, “a vizinhança da épica legitimada com o novo gênero”,
Huet, observa Costa Lima (2009, p. 158), “se comportava como um adepto
do Aristóteles ‘corrigido’ pelos humanistas”. Ademais, a legitimação do
romance em Huet não se privaria do alerta contra o “gosto oriental” pelo
fabuloso que extrapola o verossímil, alerta pelo qual o tratadista “justificava
a prevenção contra as ficções: elas são o produto de povos demasiado
imaginativos” (COSTA LIMA, 2009, p. 159). Daí que: “O controle,
automaticamente aludido, encontra uma justificativa extra: ele é a prova de
que o bom ocidental, ainda quando o conheça, não se deixa fascinar pelo
canto das sereias” (COSTA LIMA, 2009, p. 159).
Neste se enredariam apenas os incautos, e os incultos; quanto ao
risco de propagação, pelo romance, de enredos falsos, não haveria dúvida:
“Os doutos se distinguem das almas simples por não se contentarem com
2
Costa Lima cita Huet a partir de uma edição italiana do Traité, obra que teve um breve,
mas ilustrativo trecho seu vertido para o português (HUET, 2014. p. 580-583).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 65-97, 2020 70
Noutro ponto, avança Costa Lima (2017, p. 69): “Ou talvez ainda a
chave para a questão estivesse na concepção hegeliana da linguagem como
meio instrumental de conjugação do interior com o exterior”; em suma:
“mais que diante de um erro de avaliação estamos diante da incompreensão
3
Para além dos originais em alemão, Costa Lima remete o leitor às traduções para o
português reunidas em (SCHLEGEL, 1994; SCHLEGEL, 1997).
4
Para além dos originais em alemão, Costa Lima remete o leitor à edição brasileira da
estética hegeliana (HEGEL, 1999-2004).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 65-97, 2020 72
5
Para além do original em alemão, Costa Lima remete o leitor à edição brasileira da teoria
do romance lukacsiana (LUKÁCS, 2000).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 65-97, 2020 73
romance: Ian Watt, autor de The rise of the novel [A ascensão do romance]
(1957), livro segundo o qual “o romance é o gênero em que a linguagem está
a serviço do realismo, isto é, da apresentação corriqueira da vida cotidiana”,
observa Costa Lima (2009, p. 218),6 acrescentando, sobre a associação,
feita por Watt, entre romance e “transcription of real life” [transcrição
da vida real], ser ela “demasiado ingênua para que ainda seja discutida”
(COSTA LIMA, 2009, p. 219).7 Daí, o anúncio: “Como o leitor perceberá,
passar da caracterização empírica, quase rasteira, de Watt, por meio da
eficiente de Bakhtin até a especulativa de Blumenberg, supõe endossar uma
complexificação crescente” (COSTA LIMA, 2009, p. 220).
Isso posto, não há dúvida acerca da centralidade assumida pela
caracterização “eficiente” de Bakhtin na reflexão costalimiana sobre o
romance. “Se insistimos em examinar o romance sobre o prisma da forma,
a primeira utilidade da reflexão de Bakhtin consiste em realçar ser ele um
gênero sem regras preestabelecidas, por isso constantemente sujeito a novos
desenvolvimentos”, afirma Costa Lima (2009, p. 173). Segundo Bakhtin,
“ao passo que, nos outros gêneros literários, o ponto de vista de organização
do material é dado inerentemente pelo próprio gênero”, acrescenta Costa
Lima (2017, p. 70), “[a] falta de autocaracterização do romance e o espaço
incerto em que seu autor se põe fazem necessário que o romancista adote
uma máscara, que, de sua parte, põe em questão o elo convencional entre
ficção e mentira”.
Nesse sentido, Costa Lima recorrerá às reflexões de um Paul
Zumthor sobre o romance justamente na medida em que elas reforçam
e complementam a caracterização bakhtiniana: “É curioso que, sem o
conhecimento do texto de Bakhtin, escrito originalmente entre 1937-1938”
– o autor tem aí em vista o ensaio “As formas do tempo e do cronotopo no
romance” –,8 “sua observação fosse reforçada por Zumthor que notava a
6
Costa Lima cita a partir do original em inglês. Edição brasileira (WATT, 1990).
7
Discordando de que se trate de uma associação “ingênua” de Ian Watt, eu mesmo procurei
discuti-la em vista do contexto discursivo no qual ela teve lugar, bem como o significado
da reafirmação do postulado wattiano do “realismo formal” no Brasil, meio século depois
da publicação original de The rise of the novel. Isto, nas páginas deste mesmo periódico,
há cinco anos (ARAÚJO, 2015, p. 139-156).
8
Ensaio que Costa Lima cita a partir da tradução anglófona disponível no volume The
dialogic imagination (University of Texas Press, 1981): “Forms of time and chronotope
in the novel”. Edição brasileira (BAKHTIN, 2014. p. 211-362).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 65-97, 2020 74
9
Costa Lima cita Zumthor a partir do original em francês. Edição brasileira (ZUMTHOR,
1993).
10
Título do ensaio de 1941 de Bakhtin que Costa Lima cita a partir da tradução anglófona
disponível no volume The dialogic imagination (University of Texas Press, 1981): “Epic
and novel”. Edição brasileira (BAKHTIN, 2014. p. 397-428).
11
Costa Lima cita o artigo (BLUMENBERG, 1964. p. 9-27).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 65-97, 2020 75
que então afirmam que a obra exprime o real” (COSTA LIMA, 2012, p. 26), ao passo que
a de Bakhtin (suplementado por Blumenberg) encarnaria a proposição teórica da “mímesis
da produção”, na qual, em face do produto da mímesis artística, “é preciso que o receptor
apreenda seu significado pela análise de sua produção”, com vistas a um “alargamento
do real” (COSTA LIMA, 2003, p. 181); assim: “a semelhança no ponto de partida com o
real é subvertida pelas diferenças produzidas pelo próprio relato ou composição, as quais
terminam por constituir um real por sua própria feitura” (COSTA LIMA, 2012, p. 26-27).
Em suma: “A mímesis da representação descreve um estado de coisas; a mímesis da produção
se cumpre por um processo de feitura” (COSTA LIMA, 2012, p. 27).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 65-97, 2020 77
ambiguidade que não teria sentido não fosse that kind of Historical Faith
com que os romances, em geral, eram lidos”. Costa Lima enxerga aí um
autor sitiado, o qual “tinha de desviar-se da suspeita que o perseguia, dando
a entender que participaria da crença de que o romance é uma espécie de
história” (COSTA LIMA, 2009, p. 197-198), e explica quanto a isto:
Mais do que estratégia comercial, a recorrência à ambiguidade se
impunha como ato de sobrevivência. Porque o romance era o primeiro
gênero a ser editado sem que tivesse uma audiência previamente
garantida – ou os círculos nobres, ou os frequentadores habituais do
parterre, no teatro clássico francês –, ou seja, cujo êxito dependia da
aceitação por um público anônimo, o autor era obrigado a planejar sua
obra de acordo com o horizonte de expectativas do provável receptor.
Antes de cogitar em ser útil, o escritor tinha de pensar em fazer com
que sua obra lhe fosse vantajosa, isto é, garantisse sua subsistência ou,
pelo menos, um editor permanente. Ora, se o cálculo de Richardson
estava correto, não há reconhecimento da ficção como ficção. O
público espera interessar-se por algo que mantém a aparência de
realidade. […] Para o ficcionista, para que seu enredo fizesse sentido
e pudesse interessar, era preciso que o leitor acreditasse ou para si
mesmo fizesse de conta acreditar em seu caráter histórico (COSTA
LIMA, 2009, p. 198).
do que isso, Costa Lima atestará articulação dos dois elementos na Poética:
“Para todos os gêneros poéticos vale o mesmo princípio: é o papel neles
desempenhado pela faculdade da imaginação que articula mímesis e ficção”
(COSTA LIMA, 2015, p. 209). Mais à frente: “Ao passo que a mímesis é
a viga que acolhe e orienta os valores da sociedade e os converte em vias
de orientação que circulam em suas obras, a ficção diz da caracterização
discursiva de tais textos” (COSTA LIMA, 2015, p. 210). Em suma: “Como
a mímesis, também a ficção contrasta com a demanda própria ao conceito
– a busca de conhecer – e a demanda própria aos operadores – saber lidar
com algo. […] Toda ficção supõe uma mímesis em ação, ainda quando, de
imediato, seja impossível reconhecê-la” (COSTA LIMA, 2015, p. 211).
Em suma, na Poética aristotélica, é o princípio da mímesis verossímil
o que permite distinguir “todos os gêneros poéticos” dos demais gêneros
discursivos, marcando a “caracterização discursiva de tais textos” como
ficção em contraste com os gêneros não ficcionais, aqueles submetidos seja
à “demanda própria ao conceito – a busca de conhecer”, seja à “ demanda
própria aos operadores – saber lidar com algo”.
Ora, nesse sentido, é inegável que as considerações de Stierle
nos impelem a pensar no “amplo campo da poiesis” anteriormente à sua
restrição pelo princípio aristotélico da mímesis verossímil, que a converte
em “gênero poético”, ficcional, contrastante, como tal, com os gêneros
não ficcionais; em outras palavras, na invenção ou criação verbal ainda
não balizada pela distinção entre o ser verdadeiro e o parecer verdadeiro;
entre o dizer a verdade e o fingir dizer a verdade: “Apenas vislumbramos
o que ‘é’ a ficção quando nos damos conta do trabalho sobre o conceito de
fingere” (STIERLE, 2006, p. 11). É o próprio Costa Lima, aliás, quem o
admitirá, quando reconhece:
Todo meu esforço de questionamento da ideia de mímesis visa mostrar
como ela tem um fundo básico de invenção. Então, nesse sentido, tem
um fundo poiético. Só que o poiético é mais amplo que a mímesis.
Poiético diz respeito à capacidade de invenção, que está tanto na teoria
da relatividade quanto num poema de Dante... Onde quer que haja
invenção, há poiesis. Mas a poiesis não é necessariamente mímesis
(COSTA LIMA, 2019, p. 195-196).
da linguagem como tal” –, ou, para falar com Bakhtin, por efeito de uma
estabilização genérica de enunciados num determinado tipo enunciativo.
A partir do fundo poiético-metafórico avultado pela metaforologia
blumenberguiana podemos, portanto, projetar, quiçá reconstituir, os
processos diacrônicos de estabilização genérica pelos quais chegou-se a
configurar, sincronicamente, um sistema de gêneros como o nosso, em
que, graduados entre o polo da “ficção literária” – “onde a incidência e
a modalidade metafóricas são indiscutíveis” – e o polo da “ciência” –
“onde a supremacia absoluta do conceito é indiscutível” –, vigem, com
sua plurivocidade mais ou menos “controlada”, modalidades discursivas
diversas, como a “filosofia” ou as “ciências humanas”.
Este, aliás, o programa mínimo de um retorno à Poética, aqui
entrevisto à luz daquele possível e desejável diálogo entre Bakhtin e
Blumenberg encorajado por Costa Lima (2009, p. 174-175) em sua
abordagem da teoria do romance.
Referências
ADAM, Jean-Michel; HEIDMANN, Ute. O texto literário: por uma
abordagem interdisciplinar. Tradução de João G. S. Neto et al. São Paulo:
Cortez, 2011.
ARAÚJO, Nabil. O postulado do “realismo formal” no Brasil: da tautologia
nacional à profissão de fé. O Eixo e a Roda, Belo Horizonte, v. 24, n. 2,
p.139-156, 2015. DOI: https://doi.org/10.17851/2358-9787.24.2.139-156
BAKHTIN, Mikhail. Os gêneros do discurso. In: ______. Estética da
criação verbal. 4. ed. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Martins Fontes,
2003. p. 261-306.
BAKHTIN, Mikhail. Questões de literatura e de estética: a teoria do
romance. Tradução de Aurora F. Bernardini et al. 7. ed. São Paulo: Hucitec,
2014.
BLUMENBERG, Hans. Teoria da não conceitualidade. Tradução de Luiz
Costa Lima. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 2013.
BLUMENBERG, Hans. Wirklichkeitsbegriff und Möglichkeit des Romans
[O conceito de realidade e a possibilidade do romance]. In: JAUSS, H. R.
Nachahmung und Illusion (org.). München: Fink, 1964. p. 9-27.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 65-97, 2020 95
Roniere Menezes
Centro Federal de Educação Tecnológica de Minas Gerais (CEFET-MG), Belo Horizonte,
Minas Gerais / Brasil
CNPq
[email protected]
https://orcid.org/0000-0002-9490-9658
Resumo: Este trabalho visa refletir sobre ensaios críticos de Luiz Costa Lima em que
o autor analisa o estranho lugar do intelectual brasileiro e latino-americano. Exercendo
suas atividades em território pouco afeito ao cuidado detido com a escrita, com o esforço
analítico e muito influenciado por expressões ligadas à oralidade e ao exagero retórico,
o intelectual e o escritor que habitam os trópicos, muito comumente, situam-se como
estrangeiros diante de seu objeto de trabalho e de seu próprio país. Muitas vezes assumem
uma escrita relacionada à fala cotidiana visando à comunicação mais direta com o público.
Iremos estabelecer análises relativas ao posicionamento de Costa Lima frente a essa questão,
enfatizando os conceitos – tratados pelo autor – de improviso e auditividade. Trataremos dos
livros Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria (1981), Pensando nos trópicos
(1991) e Frestas: a teorização em país periférico (2013). Ao final, demonstraremos como
as ideias de Costa Lima transitam entre textos sobre o pensamento brasileiro e críticas
literárias. Tomaremos como exemplo análises do autor relativas à obra do poeta João Cabral
de Melo Neto presentes nos ensaios “A traição consequente ou a poesia de Cabral”, do
livro Lira e antilira: Mário, Drummond e Cabral (1968) e Dispersa demanda: ensaios
sobre literatura e teoria (1981). Buscaremos mostrar que os estudos sobre improviso e
auditividade configuram-se como importantes modelos analíticos. Os textos apresentam
ricas ferramentas que nos ajudam a entender melhor a cultura e a produção literária do país.
Palavras-chave: Luiz Costa Lima; crítica; oralidade; João Cabral.
Abstract: This paper aims to reflect upon the critical essays by Luiz Costa Lima in which
the author analyzes the strange place of a Brazilian or Latin-American intellectual. Working
from a place that is not auspicious to the demands of writing or to the analytical efforts and
being highly influenced by spoken language and overstated rhetorics, the intellectual or
writer from the tropics usually feel as foreigners facing their work in their own land. They
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 98-117, 2020 99
often choose to write similarly to spoken language in order to establish a more effective
communication with their audience. We are going to analyze Costa Lima’s positioning
towards this topic, emphasizing the author’s concepts of improvisation and auditivity. We
are going to work with the books Dispersa demanda: ensaios sobre literatura e teoria
(1981), Pensando nos trópicos (1991) and Frestas: a teorização em país periférico
(2013). As a conclusion, we are going to demonstrate how Costa Lima’s ideas shift from
the texts when considering the Brazilian thinking and literary criticism. We are going
to take as an example his analyses of poems by João Cabral de Melo Neto presented in
the essay “A traição consequente ou a poesia de Cabral”, from the book Lira e antilira:
Mário, Drummond e Cabral (1968) and Dispersa Demanda: ensaios sobre literatuar e
teoria (1981). We aim to show that studies on improvisation and auditivity are important
analytical models. The texts present useful tools that help us better understand the culture
and the literary production of the country.
Keywords: Luís Costa Lima; criticism; spoken language; João Cabral.
Algo da estagnação
dos palácios cariados,
comidos
de mofo e erva-de-passarinho.
Algo da estagnação
das árvores obesas
pingando os mil açúcares
das salas de jantar pernambucanas,
por onde se veio arrastando.
(É nelas,
mas de costas para o rio,
que “as grandes famílias espirituais”
da cidade
chocam os ovos gordos
de sua prosa.
Na paz redonda das cozinhas,
ei-las a revolver viciosamente
seus caldeirões
de preguiça viscosa).
(João Cabral de Melo Neto)
Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor
Importa salientar que, nos casos citados, há uma oralidade muito bem
conduzida pelas mãos do artífice poeta. Os exemplos não se configuram
como oralidade frouxa ou mesmo exagerada. Tudo é medido, ponderado,
por mais que se perceba o valor dado à expressão popular oral, o diálogo
com essa modalidade de linguagem.
Ao estabelecer a diferença entre cultura auditiva e cultura oral, Costa
Lima assinala:
a cultura auditiva é profundamente uma cultura de persuasão. Mas da
persuasão sem o entendimento. Donde, da persuasão sedutora. Ela se
diferencia dos discursos persuasivos das culturas orais porquanto estes
visam à integração dos participantes (...), ao passo que a persuasão
auditiva visa à submissão (LIMA, 1981, p. 16).
Dependência cultural
O aspecto da auditividade e do improviso irão reaparecer no capítulo
“Dependência cultural e estudos literários”, do livro Pensando nos trópicos,
de 1991. Antes de entrarmos nesses conceitos, cumpre lembrar que o autor
critica a ênfase dada por vários pensadores à cultura popular como forma de
se buscar ou inventar uma originalidade, uma “autenticidade” nacional, em
contraposição à arte, à cultura e ao pensamento importados. O Romantismo
deixou seus espectros vagando muitas vezes na inconsciência e na utopia
da nacionalidade redentora e autônoma, encampadas, por exemplo, por
autores modernistas.
A dependência cultural não se vincula diretamente e isoladamente
à dependência econômica. Na verdade, ela “irradia do prestígio intelectual
de certos centros” (LIMA, 1991, p. 269). Certamente esses centros detêm
maior desenvolvimento econômico, mas esse aspecto, sozinho, não explica
a ligação submissa entre a periferia e determinados núcleos culturais de
maior prestígio. Costa Lima retoma Antonio Candido para explicar que,
no Brasil, o intelectual foi reconhecido por meio de sua participação em
acontecimentos de outra ordem: processos ligados à independência, à
abolição da escravatura, à guerra do Paraguai. O escritor apresentava-se
como militante e defensor da causa nacional (Cf. LIMA, 1991, p. 269). O
lugar específico da atividade intelectual não encarnava notoriedade, era
vista apenas como adereço, ornamento. O reconhecimento vinha, antes,
das ações políticas do homem das letras.
Completando o raciocínio, o autor declara que o aspecto econômico
não se desvincula de outros fatores culturais na apreciação do lugar
do intelectual na sociedade brasileira. A falta de apoio por parte de
“administradores, políticos e burocratas” (LIMA, 1991, p. 270) ao trabalho
com o pensamento, com a teoria, revela-se como reflexo do modo com que
a atividade intelectual é julgada no país: distante das questões práticas,
objetivas e “importantes” para o desenvolvimento econômico-social.
Nós somos dependentes culturalmente porque a sociedade, em geral, e
não apenas seus mandantes, não considera atividade de valor o exercício
intelectual, o trabalho artístico-cultural. A partir dessas constatações, Costa
Lima estabelece a análise mais específica de dois traços que endossam o
pouco valor do intelectual brasileiro: “o papel da auditividade” e do “culto
da improvisação”, conforme assinalado acima (LIMA, 1991, p. 270).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 98-117, 2020 107
contato mais efetivo com a reflexão filosófica (Cf. LIMA, 1991, p. 278). Sem
esses aspectos, “o aumento de conhecimentos permanecerá estéril se não
tivermos consciência de nossa auditividade e de nosso culto à improvisação.
A continuá-las, permaneceremos a encarar as teorias como algo a ser
aplicado!” (LIMA, 1991, p. 278). Ao contrário do pensamento cuidadoso,
minucioso, individual e organizado coletivamente, dotado de imaginação,
criatividade e que contribuiria para rompermos a dependência cultural,
a ênfase na ideia de teoria como aplicação, como caixa de ferramenta, o
repisar das noções de auditividade e do improviso não nos farão romper
com o ciclo de subserviência teórico-conceitual em que nos encontramos.
1
Não sabemos se Luiz Costa Lima chegou a assistir à apresentação da peça que estreara
no TUCA (Teatro da Universidade Católica), no Rio de Janeiro, em 1966, com direção de
Silnei Siqueira e Roberto Freire e trilha sonora de Chico Buarque. Em 1966, a peça ganha
prêmio de crítica e público no IV Festival de Teatro Universitário de Nancy, na França.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 98-117, 2020 111
E se pensava: os nova-seitas,
em coro, feito as lavadeiras,
lá estão na água de canto,
alma e roupa lavando.
(MELO NETO, 1999, p. 304-305).
ainda que se interessasse pelo flamenco e pelo frevo, por exemplo, por
despertarem-no ao invés de adormecê-lo. O poema ainda aproxima o canto
horizontal religioso do coro de lavadeiras. Ao cantarem na igreja, os homens
e as mulheres parecem estar ao mesmo tempo lavando a roupa e a alma,
totalmente imersos, entregues ao êxtase propiciado pelas notas, pelos ritmos
musicais. Nada, portanto, mais distante do fazer poético cabralino. Assim, ao
aproximar-se da figura do administrador e religioso José Ferreira, o sujeito
lírico estabelece distanciamentos entre suas perspectivas.
Costa Lima sugere, a título de novas investigações, uma aproximação
entre João Cabral e Bertold Brecht. O ensaísta enxerga uma sombra do
dramaturgo alemão em alguns posicionamentos poéticos do brasileiro. Em
Brecht há o afastamento lírico, o distanciamento entre ator e personagem, a
luta anticatarse; em Cabral, percebe-se uma poética contrária ao envolvimento
emocional, ao fascínio provocado pelo texto, ao ilusionismo dramatúrgico,
como ocorre com Severino, para o crítico, “menos um personagem que um
modelo didático” (LIMA, 1968, p. 321). Dados que aproximam os dois
autores da própria perspectiva crítica almejada por Costa Lima, distante de
modelos ligados à oralidade e ao improviso. Em diálogo com o João Cabral
de Serial, em Brecht pode-se ainda verificar o resgate do prosaísmo em dicção
popular, a presença de coloquialismo e a negação do mistério.
Gostaríamos de salientar que as análises presentes nesse ensaio de
1968 contribuem para investigações relativas a criações futuras de João
Cabral, como é o caso de A escola das facas (1975-1980), em que memória,
prosaísmo e dicção popular mesclam-se ao sempre esmerado trabalho
linguístico. Um livro que também pode ser aproximado das análises feitas
sobre O rio e Morte e Vida Severina é a peça teatral Auto do Frade, de 1984.
Aqui se percebe uma condução da linguagem que mescla estudo histórico,
prosaísmo e busca de um diálogo mais próximo ao leitor. Vale ressaltar
que o discurso cabralino revela-se sempre tangenciado pela lucidez e pela
sobriedade, nunca aberto à coloquialidade solta, ao improviso. Para Costa
Lima, a linguagem do poeta mostra-se domada, “suas fontes mágicas ou
melódicas são transformadas em fontes de lucidez” (LIMA, 1968, p. 410).
Gostaríamos, para concluir, de realizar um breve comentário a
respeito de “Descoberta da literatura”, de A escola das facas. O poema, de
caráter memorialístico, conta a história das leituras de romances populares
feitas pelo sujeito lírico, ainda criança, para os cassacos do eito da fazenda,
no engenho. Percebe-se, no texto, uma crítica ao caráter comum da
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 98-117, 2020 115
Referências
ANDRADE, Carlos Drummond de. Poesia completa. Fixação de textos e
notas de Gilberto Mendonça Teles. Introdução de Silviano Santiago. Rio de
Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002.
ANDRADE, Mário de. O banquete. 2. ed. São Paulo: Livraria Duas Cidades,
1989.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 98-117, 2020 117
Resumo: Este artigo visa estudar as linhas de força do projeto intelectual de Luiz Costa
Lima, a fim de analisar como sua teoria sobre a mímesis se insere no questionamento
epistemológico acerca de uma filosofia da literatura, com contribuição decisiva para se
examinar os modos e as condições com as quais o discurso literário pode ser pensado na
modernidade. Tomo como ponto de partida o diálogo travado pelo crítico brasileiro com
o pensamento pós-estruturalista, mais especificamente, os dois ensaios por ele elaborados
acerca da filosofia antirrepresentacional de Gilles Deleuze. Parto da hipótese de que, tomada
sob a lógica da reivindicação da diferença, entendida seja em um prisma político-cultural,
seja em um prisma ontológico, independentes, mas complementares, a antropologia literária
de Costa Lima não se revela um projeto isolado no cenário de pesquisas contemporâneo
acerca da literatura.
Palavras-chave: mímesis; representação; diferença; ficção.
Abstract: This article aims to study the strengths of Luiz Costa Lima’s theoretical project,
in order to analyze how the debate on mimesis, created by him, participates in contemporary
epistemological questioning, with a decisive contribution to thinking about the modes and
conditions with which literary discourse can be enunciated in modernity. The starting point
is the dialogue carried out by the Brazilian critic with post-structuralist thinking, more
specifically, the two essays he elaborated regarding Gilles Deleuze’s anti-representational
philosophy. The hypothesis is that, considered under the logic of claiming difference,
understood either in a political-cultural prism or in an ontological prism, independent but
complementary, Costa Lima’s literary anthropology does not reveal itself as an isolated
project in the contemporary research scene that has literature as its central object.
Keywords: mimesis; representation; difference; fiction.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 118-141, 2020 119
1. Um origami?
1
Já em Mímesis e modernidade, lançado em 1980, o autor a reconhecia a necessidade
de investir seus esforços na ficcionalidade: “Esta conclusão torna pois forçoso o
desenvolvimento, aqui não praticado, do conceito de ficção e de seu papel nas sociedade
humanas como agenciador do imaginário. Ele contudo será comprometido se simplesmente
der lugar a uma reflexão estética.” (COSTA LIMA, 2003, p. 81)
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 118-141, 2020 121
2
Refiro-me às obras Vida e mímesis (1995), para as dimensões positivas e negativas do
controle, e O controle do imaginário & a afirmação do romance (2009), para a história
moderna do gênero.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 118-141, 2020 122
3
Sobre o sistema intelectual brasileiro conferir, principalmente: “Da existência precária:
o sistema intelectual no Brasil” (Dispersa demanda, 1981), “A crítica literária no Brasil
de agora” e “Nosso país, será isso mesmo?” (Frestas, 2013).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 118-141, 2020 125
2. A diferença
diferença na experiência estética? Sua obra não participa por outras vias da
crítica à metafísica do sujeito moderno? Com um giro na leitura, não poderia
dizer que o empreendimento teórico de Costa Lima se aproxima, como
intento, do pós-estruturalismo, ao apostar no valor indeterminado da noção
de mímesis, fazendo-a deslizar para fora das definições e enquadramentos
históricos? Repensar a mímesis não significou justamente a “desconstrução”
da evidência do conceito, esvaziando-o de sua conotação metafísica, para
negar e afirmar sua potência?
Como se sabe, o teórico brasileiro não se furtou à tarefa de firmar
uma conversação crítica com a recente filosofia francesa com a qual o
debate teórico e político sobre a diferença se condensa e se dissemina.
Gilles Deleuze, Jacques Derrida, Michel Foucault e Jacques Rancière,
entre outros, são dispostos em seu tabuleiro teórico e alçados à condição de
interlocutores. Há, por exemplo, dois textos em que ele aborda diretamente
a obra de Deleuze. Tomo-os agora como objeto de análise. Parto da hipótese
que aposta na fricção entre dois sistemas distintos de pensamento como
estratégia para articulações teóricas, sem desconsiderar as divergências
estruturais que os separam, a fim de identificar as principais objeções de
Costa Lima à filosofia da diferença deleuziana. Em seguida, traço algumas
considerações a respeito.
O primeiro texto, elaborado em 1984 e hoje integrante da Trilogia
(2007), detém-se na leitura de Diferença e repetição (2000), obra clássica
dentro da linhagem pós-estruturalista, enquanto o segundo, inserido em
Mímesis desafio ao pensamento, embora se dirija às leituras que o filósofo
francês realiza do intrigante escrivão de Melville, reunidas em “Bartleby, ou
a fórmula”, e da pintura de Francis Bacon, em Lógica das sensações, percorre
uma série de noções e obras deleuzianas. Nos dois casos, Costa Lima
visa apreender, por meio da influente perspectiva do filósofo, a episteme
antirrepresentacional configurada desde o romantismo e reelaborada, mais
tarde, com o pensamento das vanguardas, na qual se define a recusa da
referencialidade e, por conseguinte, o “desterro da mímesis”.
O teórico brasileiro seleciona e comenta escritos, no primeiro ensaio
sobre Deleuze, de artistas-críticos modernos (Apollinaire, Huidobro, André
Breton, Paul Klee e Marcel Duchamp), em que identifica, embora reconheça
as diferenças tanto das propostas quanto do talento especulativo dos
cotejados, as linhas de força catalizadoras das vanguardas, a saber, a crítica
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 118-141, 2020 129
3. En passant: capturas4
4
No jogo de xadrez, quando um peão se movimenta duas casas em seu primeiro lance,
passando para o lado de um peão adversário, esse outro peão tem a opção de capturá-lo
assim que ele passar, sem se mover. No entanto, esse lance precisa ser executado na rodada
seguinte ou ele já não poderá ser capturado.
5
Duas observações complementares: a) a noção de diferença é estudada por Deleuze desde
o decênio de 1950, como se pode notar com a reunião de seus primeiros textos em A ilha
deserta e outros textos (1953-1974), edição organizada por David Lapoujade; b) em função
dos temas desenvolvidos em seus últimos trabalhos, a filosofia deleuziana passa a receber
também designações genéricas de “filosofia do virtual” ou filosofia da multiplicidade.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 118-141, 2020 136
6
Para esclarecimentos: Proust e os signos foi publicado em 1964, Diferença e repetição
em 1968 e Francis Bacon: lógica da sensação em 1981.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 118-141, 2020 139
Referências
BASTOS, Dau. Luiz Costa Lima: uma obra em questão. Rio de Janeiro:
Garamond, 2010.
BLUMENBERG, Hans. Descripción del ser humano. Buenos Aires: Fondo
de Cultura Económica, 2011.
COSTA LIMA, Luiz. Frestas: a teorização em país periférico. Rio de Janeiro:
Ed. PUC-RJ; Contraponto, 2013.
COSTA LIMA, Luiz. Luiz Costa Lima: história, vida, discurso. Uma
entrevista com Luiz Costa Lima. História da Historiografia, Ouro Preto, v.
3, n. 5, p. 265-276, 2010. DOI: https://doi.org/10.15848/hh.v0i5.100.
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis e modernidade. Formas das sombras. São
Paulo: Paz e Terra, 2003.
COSTA LIMA, Luiz. Mímesis: desafio ao pensamento. Florianópolis: Ed.
UFSC, 2014.
COSTA LIMA, Luiz. Trilogia do controle. O controle do imaginário.
Sociedade e discurso ficcional. O fingidor e o censor. Rio de Janeiro:
Topbooks, 2007.
DELEUZE, Gilles. Bartleby, ou a fórmula. In: ______. Crítica e clínica. São
Paulo: Editora 34, 1997. p. 80-103.
DELEUZE, Gilles. Como reconhecer o estruturalismo? In: CHÂTELET,
François. A história da filosofia. Ideias, doutrinas. O século XX. Lisboa:
Dom Quixote, 1977. p. 245-273.
DELEUZE, Gilles. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro: Ed. 34, 1992.
DELEUZE, Gilles. Diferença e repetição. Lisboa: Relógio d’Água, 2000.
DELEUZE, Gilles. Francis Bacon: lógica da sensação. Rio de Janeiro:
Zahar, 2007.
DELEUZE, Gilles. Proust e os signos. Rio de Janeiro: Forense Universitária,
2003.
DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. Mil platôs. Capitalismo e
esquizofrenia. São Paulo: Ed. 34, 1997. v. 5.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 118-141, 2020 141
Myriam Ávila
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
[email protected]
https://orcid.org/0000-0002-3726-4670
polos, fazendo sua disciplina oscilar entre o método científico que garante a
fixidez da res factae e a narrativa que garante a reconstrução do transcurso
histórico. Enquanto se nota (mais especificamente em Droysen) a necessidade
de guardar o discurso histórico da ameaça “da arbitrariedade e da fantasia”
(COSTA LIMA, 2019, p.57), deve-se reconhecer, com Gervinus, que o uso da
narrativa irá, em alguma medida, afastar o historiador da “mera factualidade,
pelo emprego de ‘um procedimento artístico mais livre’” (COSTA LIMA,
2019, p.58). Obviamente, ao tentar dar conta do “impulso atuante” nos
“atos de vontade individuais” de uma “pluralidade de agentes” (todas estas
expressões vêm de Droysen), postula-se uma profunda sensibilidade no
historiador que, segundo Droysen, deveria “pôr-se na alma” dos que agiram.
Talvez por esse motivo, Costa Lima (2019), vez ou outra, mencione as
motivações pessoais desses teóricos da história que, também na discussão dos
fundamentos de sua disciplina, percebem-na como Verlauf, como objeto em
devir, cujo reconhecimento depende em grande parte da narrativa que dele
é feita. Assim, fala do posicionamento de Gervinus como “confirmado por
sua biografia” (COSTA LIMA, 2019, p.58) e lembra a “posição pessoal” de
Chladenius. Koselleck é citado a respeito da “relatividade de toda perspectiva
de julgamento”: “Estender a imparcialidade a tal ponto que o historiador seja
empurrado para o papel de espectador que tudo narra, sem ter diante de si uma
finalidade, seria o mesmo que tornar sem sentido a própria imparcialidade”
(COSTA LIMA, 2019, p.77).
Curioso é que Costa Lima (2019, p. 59) também infere da biografia
do ficcionista Fielding “as razões subjetivas da afirmação” que destaca do
romance Tom Jones. Depreende-se que não apenas a retórica ou a poética
respondem pela especificidade do encadeamento de fatos numa narrativa,
mas que as opções por esse ou aquele relato passam também pelo sujeito
empírico, por sua biografia e pelos interesses que o movem.
Pode-se supor, assim, que a diferença entre história e ficção reside
na dosagem de res factae e res fictae em cada uma. O grau de “ficção do
fático”, para usarmos o termo de Koselleck, era objeto de cogitação já em
Droysen, helenista e tradutor do teatro ático, em cujas palavras se pode ouvir
um certo lamento: “os materiais que se mostram ao pesquisador [em História]
raramente, ou melhor, nunca alcançam tão longe que possam concorrer com
o poeta”. Costa Lima (2019, p. 81) conclui que a prática historiográfica
de Droysen “não pretendia ser superior à narrativa do ficcional”. O autor
de O insistente inacabado adverte, entretanto: “Para que não se pense em
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 142-150, 2020 146
Referências
COSTA LIMA, Luiz. O insistente inacabado. Recife: CEPE, 2018.
COSTA LIMA, Luiz. A crítica como gesto de resistência. [entrevista cedida
a] Guilherme Freitas. Armazém Literário, São Paulo, n. 772, nov. 2013.
Disponível em: http://www.observatoriodaimprensa.com.br/armazem-
literario/_ed772_a_critica_como_gesto_de_resistencia/. Acesso em: 11
dez. 2020.
ERBEN, Dietrich; ZERVOSEN, Tobias. Das eigene Leben als ästhetische
Fiktion: Autobiographie und Professionsgeschichte. Bielefeld: transcript,
2018. DOI: https://doi.org/10.14361/9783839437636.
SVEVO, Italo. A consciência de Zeno. Tradução de Ivo Barroso. São Paulo:
Abril Cultural, 1984.
Georg Otte
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Belo Horizonte, Minas Gerais / Brasil
[email protected]
http://orcid.org/0000-0002-4276-1778
1
Foi publicada, em 2011, pela mesma editora, Paz & Terra, a segunda edição revisada e
ampliada dessa obra.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 152
2
Trata-se de uma das grandes ironias da história pós-guerra intelectual na Alemanha
de Jauss ter conseguido passar por partidário de um movimento antiautoritário – ou até
revolucionário –, sendo que seu passado como oficial da Waffen-SS, a tropa nazista
responsável por ações de extermínio, o identifica como representante ativo – ele chegou a
assumir a função de instrutor – de um regime opressor. Para mais detalhes, cf. Ette (2019)
e Zilberman (2017).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 153
6
O artigo Wikipédia em português omite o forte vínculo de Rothacker com o nazismo,
inclusive seu apoio explícito a Adolf Hitler e sua função como diretor de seção no Ministério
da Propaganda de Joseph Goebbels (cf. WIKIPÉDIA. Disponível em: http://pt.wikipedia.
org/wiki/Erich_Rothacker. Acesso em: 5 jul. 2020.).
7
Para mais detalhes, cf. Costa Lima (2015, p. 125-131).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 155
8
Cabe lembrar que a raiz etimológica de “conceito”, “concepção”, “conceber” etc. é a mesma
de “captar”, ou seja, também remonta a uma ação concreta. Não se trata, aqui, de atribuir às
etimologias algo como um significado “verdadeiro” dos verbos em questão, mas de mostrar
que, historicamente, observa-se, em muitos casos, um movimento do sentido concreto
(captar, pegar etc.) para o abstrato (entender, compreender etc.), isto é, um movimento
metafórico cujas origens não “explicam” o sentido, mas ampliam seu horizonte semântico.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 156
9
Em Dialética do Esclarecimento (1985), publicado pela primeira vez em 1944, Adorno e
Horkheimer também desmentem a ideia de uma superação do mythos pelo logos, não apenas
porque estavam assistindo, em meio à Segunda Guerra Mundial, ao fracasso histórico do
Esclarecimento (Aufklärung) diante das catástrofes do século XX, mas também demonstrando
como, por um lado, o mito é perpassado por uma racionalidade própria e como, por outro
lado, as ciências, apesar de sua pretensão racionalista, são guiadas por mitos ou, como se
diria hoje, por narrativas cujos fundamentos não resistem a um questionamento racional.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 157
10
As pesquisas do historiador Sérgio Ricardo da Mata, da UFOP, em torno da “Escola de
Joachim Ritter”, que se denominou Collegium philosophicum, prometem contribuir a uma
divulgação maior desse contexto.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 158
11
Cabe mencionar que Blumenberg, no último capítulo de Naufrágio com espectador
(1990), cujo original foi publicado em 1979, apresenta, como último capítulo, uma
“Perspectiva para uma teoria da não conceitualidade”. Sobre o livro Naufrágio com
espectador, cf. Lavelle (2019).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 159
12
„Alle Erkenntnisse, das heißt: alle mit Bewußtsein auf ein Objekt bezogene Vorstellungen
sind entweder Anschauungen oder Begriffe. − Die Anschauung ist eine einzelne Vorstellung
(repraesentat. singularis), der Begriff eine allgemeine (repraesent. per notas communes)
oder reflektierte Vorstellung (repraesent. discursiva).
Die Erkenntnis durch Begriffe heißt Denken (cognitio discursiva).
Observação 1. Der Begriff ist der Anschauung entgegengesetzt; denn er ist eine allgemeine
Vorstellung oder eine Vorstellung dessen, was mehreren Objekten gemein ist, also eine
Vorstellung, so fern sie in verschiedenen enthalten sein kann.”
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 160
13
„[...] Metaphern, die abgenutzt und sinnlich kraftlos geworden sind, Münzen, die ihr
Bild verloren haben und nun als Metall, nicht mehr als Münzen, in Betracht kommen.“
(NIETZSCHE, 1997, p. 314). A modificação se refere à tradução de “ihr Bild“ por “sua
efígie”, ao invés de “seu troquel”, conforme a tradução utilizada.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 163
14
„Diesem Ideal voller Vergegenständlichung entspräche die Vollendung der Terminologie,
die die Präsenz und Präzision der Gegebenheit in definierten Begriffen auffängt. In diesem
Endzustand wäre die philosophische Sprache rein ‚begrifflich‘ im strengen Sinne: alles kann
definiert werden, also muß auch alles definiert werden, es gibt nichts logisch Vorläufiges
mehr, so wie es die morale provisoire nicht mehr gibt. Alle Formen und Elemente
übertragener Redeweise im weitesten Sinne erweisen sich von hier aus als vorläufig und
logisch überholbar [...].” Cf. a tradução francesa (BLUMBERG, 2006, p. 7-8).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 165
Referências
ADORNO, Theodor W.; HORKHEIMER, Max. Dialética do esclarecimento.
Fragmentos filosóficos. Tradução de Guido de Almeida. Rio de Janeiro:
Zahar, 1985.
BLUMENBERG, Hans. La raison du mythe. Tradução de Stéphan
Dirschauer. Paris: Gallimard, 2005.
BLUMENBERG, Hans. Licht als Metapher der Wahrheit. Im Vorfeld
der philosophischen Begriffsbildung. In: ______. Ästhetische und
metaphorologische Schriften. Frankfurt: Suhrkamp, 2001. p. 139-171.
BLUMENBERG, Hans. Naufrágio com espectador. Tradução de M.
Loureiro. Lisboa: Vega, 1990.
BLUMENBERG, Hans. Paradigmen zu einer Metaphorologie. Frankfurt
am Main: Suhrkamp, 1997.
BLUMENBERG, Hans. Paradigmes pour une metaphorologie. Paris: Vrin,
2006.
BLUMENBERG, Hans. Wirklichkeitsbegriff und Wirkungspotential des
Mythos. In: FUHRMANN, Manfred (org.). Terror und Spiel. Probleme der
Mythenrezeption. München: Fink, 1971. p. 11-66.
COSTA LIMA, Luiz. “O muito que escrevi nos vários livros que dediquei
ao assunto caberia numa só frase: por mímesis, entenda-se um processo
metamórfico que contraria os padrões da realidade”. [Entrevista cedida
a] Ana Lúcia Oliveira, Italo Moriconi, Fábio Lopes da Silva e Georg
Otte. Fórum de Literatura Brasileira Contemporânea, Rio de Janeiro, v.
10, n. 19, p. 163-198, jun. 2018. DOI: http://doi.org/10.35520/flbc.2018.
v10n19a19621. Disponível em: http://revistas.ufrj.br/index.php/flbc/article/
view/19621/14158. Acesso em: 22 jun. 2020
COSTA LIMA, Luiz. Introdução. In: BLUMENBERG, Hans. Teoria da
não conceitualidade. Tradução e organização de Luiz Costa Lima. Belo
Horizonte: Editora UFMG, 2013. p. 7-41.
COSTA LIMA, Luiz. Mimesis e arredores. Curitiba: Editora CRV, 2017.
COSTA LIMA, Luiz. Os eixos da linguagem. São Paulo: Iluminuras, 2015.
DERRIDA, Jacques. A mitologia branca. In: ______. Margens da filosofia.
Tradução de Joaquim Torres Costa e Antônio M. Magalhães. Campinas:
Papirus, 1991. p. 249-314.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 151-169, 2020 168
Airton Pott
Universidade de Passo Fundo (UPF), Passo Fundo, Rio Grande do Sul / Brasil
[email protected]
https://orcid.org/0000-0002-9809-1320
Resumo: Autor de uma gama de obras, sobretudo romances e demais narrativas, Erico
Verissimo não se abstém da criatividade na hora da escrita. O que também pode surpreender
alguns de seus leitores é o hábito que possuía de fazer registros não verbais, tais como
caricaturas de suas personagens e demais representações imagéticas relacionadas às
suas obras. A edição de Fantoches (1972), que comemora o quadragésimo aniversário
da publicação de estreia desse livro, o primeiro do autor, é um propício exemplo disso.
Sendo assim, esta obra, formada por uma série de pequenas narrativas, muitas delas peças
teatrais, fornece o corpus para os estudos aqui propostos, já que se pretende analisar os
registros manuscritos, tanto verbais quanto não verbais, feitos pelo próprio autor e que
confirmam a crítica dele mesmo com relação às suas próprias produções. Para tanto, as
análises fundamentam-se nos estudos de crítica literária de Bordini (1995), bem como sobre
teorias a respeito dos recursos verbais e não verbais, de Ackerman (2014) e Aurouet (2014),
utilizando-se também o primeiro volume de Solo de Clarineta: Memórias (2005), também
de Verissimo. Autocrítico como é, Erico Verissimo permite fazer inferências sobre o fato
de que uma obra publicada não significa que não existe a possibilidade de acrescências
posteriores, o que na edição analisada de Fantoches permite muitas percepções a respeito
das diferentes vozes encontradas também nas marginálias do livro, acrescidas pelo autor
por meio de desenhos e observações verbais.
Palavras-chave: Fantoches; marginálias; vozes; Erico Verissimo.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 171-187, 2020 172
Abstract: Author of a range of works, especially novels and other narratives, Erico
Verissimo does not abstain from creativity at the time of writing. What may also surprise
some of his readers is his habit of making non-verbal records, such as caricatures of his
characters and other imagistic representations related to his works. The edition of Fantoches
(1972), which commemorates the 40th anniversary of the publication of this book, which
was his first, is a fitting example of this. Thus, this work, formed by a series of small
narratives, many of them plays, provides the corpus for the studies proposed here, since
it is intended to analyze the verbal and non-verbal manuscript records made by the author
himself and confirm his own criticism of his own productions. To that end, the analyses are
based on Bordini’s (1995) studies of literary criticism, as well as on verbal and nonverbal
theories by Ackerman (2014) and Aurouet (2014), and the first volume of the book Solo
de Clarineta: Memórias (2005), also by Verissimo. Self-critical as he is, Erico Verissimo
allows us to make inferences about the fact that the publication of a work does not mean
that there is no possibility of later additions, which in the analyzed edition of Fantoches
(1972) leaves room for many perceptions regarding the different voices also found in the
marginalia of the book, added by the author through drawings and verbal observations.
Keywords: Fantoches; marginalias; voices; Erico Verissimo.
1 Considerações iniciais
Muitos dos estudos de crítica genética levam em conta os manuscritos
da obra antes de ela ser publicada. No entanto, com a edição que homenageia
os quarenta anos de Fantoches o inverso é concebível, já que o próprio
autor da obra faz considerações verbais e não verbais ao longo dos textos
do livro, republicado quatro décadas depois.
Fantoches (1972) é um livro composto por narrativas, muitas delas
peças de teatro, e foi o livro de estreia de Erico Verissimo, reconhecido como
um dos grandes nomes da literatura prosaica brasileira. Já na epígrafe, bem
como em outros elementos pré-textuais, o autor faz fac-símiles manuscritos,
o que se sucede ao longo de toda a obra.
Graças aos registros verbais e imagéticos, feitos por esse escritor em
uma das edições anteriores desse livro, foi possível publicar uma nova edição
com essas narrativas e os manuscritos de Erico Verissimo. Muitas dessas
informações, feitas à mão, mostram a habilidade de desenhar de Verissimo,
já que ele gostava de materializar os personagens, e não apenas imaginá-los.
O livro Fantoches (1972) apresenta o material de análise. No
entanto, os estudos de crítica literária de Bordini (1995) subsidiam tanto
a fundamentação teórica quanto as análises dos manuscritos selecionados.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 171-187, 2020 173
era típico dele desenhar as personagens para elas não ficarem apenas na
imaginação. No entanto, as concepções arroladas ao fato de o desenho ser
um suporte para uma ideia coincidem com o desenho preparatório abordado
e considerado por Ackerman (2014, p. 67):
O caso mais frequente do desenho preparatório parece ser o do
desenho como suporte para uma ideia. De fato, certos desenhos não
correspondem a um plano particular, mas expressam o tema geral
ligado ao elemento representado. O desenho serve, nesses casos, para
memorizar a ideia principal de uma cena.
Desse modo, o leitor tem papel fundamental não só nas obras de Erico
Verissimo, mas em todas as obras produzidas, pois é ele quem se torna o
sujeito atuante, receptor do texto, e pode ou não gostar do que leu ou está
lendo. Diante disso, o leitor depende do autor para ler algo, assim como o
autor precisa do leitor para que haja alguém que leia suas produções. Erico
Verissimo tem plena consciência disso e de críticas, tanto favoráveis quanto
contrárias, assim como o processo de influências e experiências prévias,
pois em suas memórias autobiográficas ele evidencia, a respeito da obra
Fantoches, que:
Fantoches apareceu assim em 1932 – uma coleção de contos em
sua maioria na forma de pequenas peças de teatro, com influências
de Ibsen, Shaw, Anatole France e Pirandello [...]. Agripino Grieco,
crítico iconoclasta, implacável demolidor de figurões literários,
mas juiz indulgente dos principiantes, tratou meu primogênito com
grande simpatia, o que muito me incentivou. Amigos escreveram
notas favoráveis sobre os meus bonecos. É natural que houvesse
também críticas desfavoráveis ou apenas neutras. (VERISSIMO,
2005, p. 234).
Não obstante, nesta história, eles têm apenas uma rápida aparição, conforme
pode ser averiguado na figura a seguir:
FIGURA 2 – Desenho e escrita a partir do texto
5 Considerações finais
As imagens e as anotações verbais não estão ali, nas marginálias de
Fantoches (1972), apenas como uma forma de complementação de algo,
muito menos apenas com a concepção de que Verissimo as desenhou por
passatempo. Elas estão ali também para representarem o dito e o não dito
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 171-187, 2020 186
das narrativas, seja das personagens, dos cenários, dentre outros elementos.
Desse modo, o verbal e o não verbal feitos pelo próprio autor são como
croquis pós-confecção, ou seja, uma roupagem feita para vestir melhor seus
filhos – os personagens e as narrativas.
Diante disso, os elementos gráficos e imagéticos são complementações
e, de certa forma, suporte para as obras. Esse suporte é de uma abrangência
visível, pois é composta por diferentes anotações, personagens e demais
seres, como o “personagem-palito” aqui considerado ao longo dos estudos.
Este, junto a outras vozes manifestadas nas marginálias, bem como as vozes
narrativas, constituem uma polifonia.
Em vista às análises realizadas, é possível verificar que nas marginálias
de Fantoches (1972) são guardadas várias vozes, várias complementações
feitas por Verissimo. Essa revisitação do autor à sua obra marca uma releitura
daquilo que antes ele não havia constatado. O autor de outrora não era tão
experiente como o de agora, ainda não havia escrito tantas obras. Afinal, sua
primeira publicação foi essa que ele voltou para criticar, estabelecer relações
com outras obras, acrescentar informações e vozes interacionais por meio
das marginálias, que simbolizam as lacunas antes deixadas e que, 40 anos
depois, foram evidenciadas.
Através dos textos, dos desenhos, das falas escritas e das caricaturas
tem-se um aglomerado de processos criativos. Ao serem vistas como notas
feitas por Verissimo, as marginálias de Fantoches (1972) são, em tese,
uma figuração do mundo feita de pedaços de experiências, imaginações e
realidades que, juntos, formam um mosaico de informações, retalhos que
vestem um corpo, uma obra.
Livros e textos são fantoches que mostram o mundo de outra
forma, mas cabe ao leitor fazer bom uso desses guias e intermediadores.
No caso de Fantoches, o autor, também tendo sido leitor, permitiu-se fazer
uma constituição de identidade de memórias através de seus manuscritos
verbais e imagéticos. Autocrítico e modesto como é, Verissimo faz bastantes
considerações, inclusive sobre possíveis melhorias. Afinal, assim como todo
texto é inacabado, também nenhum autor é perfeito, completo; e Verissimo
reconhece isso, o que engrandece ainda mais sua modéstia, a qual contribui
para a composição da roupagem de suas próprias obras e personagens.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 171-187, 2020 187
Referências
ACKERMAN, Ada. Os desenhos preparatórios de Ivan, o Terrível, que tipo
de ferramenta genética? A análise genética aplicada aos filmes. In: PASSOS,
Marie-Hélène Paret et al (org.). Processo de criação Interartes: cinema,
teatro e edições eletrônicas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2014. p. 61-88.
AUROUET, Carole. Do visual ao verbal: o método de escritura do roteiro
de Jacques Prévert. O exemplo de Les visiteurs du soir. In: PASSOS, Marie-
Hélène Paret et al (org.). Processo de criação Interartes: cinema, teatro e
edições eletrônicas. Vinhedo: Editora Horizonte, 2014. p. 33-59.
BORDINI, Maria da Glória. Criação literária em Erico Verissimo. Porto
Alegre: L&PM: EDIPUCRS, 1995.
VERISSIMO, Erico. Fantoches. Porto Alegre: Editora Globo, 1972.
VERISSIMO, Erico. Solo de clarineta: memórias. 20. ed. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005. v. 1.
Resumo: Publicado em 2011, pela Editora Nova Fronteira, o volume de contos Antes
das primeiras estórias reúne quatro contos da juventude de João Guimarães Rosa (1908-
1967) publicados na revista O Cruzeiro e no diário O Jornal. Apesar de ainda não terem
conquistado a devida atenção por parte da crítica especializada, os contos dessa coletânea
flertam com as vertentes do insólito ficcional e evidenciam uma faceta de sua obra que será
posteriormente aprimorada nas narrativas de matriz regionalista. O objetivo do presente
estudo é apresentar uma leitura do conto “Chronos kai Anagke” pelo viés de uma dessas
vertentes. Com base no arcabouço teórico de Tzvetan Todorov e Filipe Furtado, pretende-se
demonstrar que a narrativa rosiana se enquadra no que Todorov denomina “fantástico puro”.
Palavras-chave: João Guimarães Rosa; conto; insólito; fantástico.
Abstract: Published in 2011, by Nova Fronteira, the volume of short stories Antes das
primeiras estórias brings together four short stories from the youth of João Guimarães Rosa
(1908-1967) published in the magazine O Cruzeiro and in the daily O Jornal. Although
they have not yet received due attention by the specialized critics, the short stories of this
collection flirt with the strands of the literature of the unusual and show a facet of his work
that will be further refined in the narratives of regionalist matrix. The aim of this study is to
present an analysis of the short story “Chronos kai Anagke” through the perspective of one
of these strands. Based on the theoretical framework of Tzvetan Todorov and Filipe Furtado,
we will demonstrate that this short story fits into what Todorov calls “pure fantastic”.
Keywords: João Guimarães Rosa; short story; unusual; fantastic.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 189
1
O conto “Chronos kai Anagke” apareceu em mais duas publicações, a saber: Folha de
São Paulo, 15 nov. 1992. Caderno Mais!, p. 6; Asas da palavra – Revista de Letras, Belém:
Unama, v. 10, n. 22, p. 37-41, 2007.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 192
aos Alpes suíços bem como à tradição e cultura desses espaços. A maior
parte dessas narrativas revela a afeição do jovem Rosa pelo horror, terror,
mistério, suspense, fantasia e a influência da literatura europeia e norte-
americana. Embora divirjam das obras marcadas pelo quesito “regional” –
vertente na qual o autor mineiro se insere e da qual constitui um dos maiores
expoentes na literatura brasileira –, é notável, já nas primeiras produções,
a veia insólita de Guimarães Rosa. O primeiro conto por ele publicado, “O
mistério de Highmore Hall”, evidencia clara influência de Horace Walpole
e Edgar Allan Poe. Trata-se de uma narrativa construída em conformidade
com as convenções da literatura gótica. Nesse conto, um sombrio e decadente
castelo escocês opera como morada de um perturbado aristocrata e sepulcro
de sua infiel esposa e seu amante – ambos enterrados vivos. A inimaginável
volta do rival, ao final, equivale à reaparição de um morto-vivo.
Em “Makiné”, o segundo conto premiado, a ação ocorre na famosa
gruta cujo nome dá título à narrativa e que se situa na região de Cordisburgo,
cidade natal de Rosa. Embora seja a única narrativa ambientada em solo
nacional, trata-se ainda de um Brasil pré-cabralino, mais precisamente uma
Minas Gerais ancestral, habitada por tupinambás, mas extraordinariamente
visitada pelo mercenário astrólogo fenício Kartpheq e uma série de
representantes de outros povos antigos (egípcios, etíopes, cananeus, hebreus
e filisteus, dentre outros). O conto é uma miscelânea de história, lenda e
inventividade que agrada leitores ávidos por enredos regados a ganância
desmedida por tesouros escondidos e atos de extrema crueldade, como o
sacrifício humano e o emparedamento. Na leitura de Braulio Tavares (2008,
p. 14), “Makiné” pode ser considerada “uma heroic fantasy ou até mesmo
historical fantasy”.
A terceira aventura literária do jovem Rosa, “Chronos kai Anagke”,
objeto do presente estudo, configura-se enquanto narrativa fantástica
delineada bem à moda dos séculos XVIII e XIX. Diferentemente desse
conto e das duas primeiras narrativas de Antes das primeiras estórias,
“Caçadores de camurças”, último conto da coletânea, é o único texto que
não se insere no universo do insólito. A história gira em torno da disputa
de dois amigos de infância, Ulrich e Rudolph, pelo amor de uma mulher,
devendo, para conquistá-lo, caçar a camurça mais valente das cordilheiras
suíças. Tal enredo “tem o clima de aventuras à Guilherme Tell – o que se
confirma especialmente pelo aspecto cultural aproximado, a presença do
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 193
2
O termo “Fantástico”, conforme aparece na citação de Fausto Cunha, faz notar a
ambivalência de tal categoria, visto que o mesmo pode ser compreendido tanto em sentido
lato quanto stricto. Com relação ao primeiro, lato sensu, o “Fantástico” se apresenta como
equivalente ao macrogênero “Insólito”, abrangendo, portanto, como já exemplificado,
as mais distintas manifestações literárias, dentre as quais, a própria “Ficção Científica”
explicitamente evocada nesse excerto. Já no que se refere ao sentido stricto, o “Fantástico”
compõe um dos “subgêneros” do macrogênero “Insólito” (ou do “Fantástico lato sensu”),
isto é, constitui uma das varetas desse guarda-chuva maior.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 194
2 A vereda do fantástico
A mais difundida definição de “fantástico”3 – embora também criticada
em função de restringir o campo de atuação desse gênero e de elencar um
número bastante restrito de obras eminentemente fantásticas – é a de Tzvetan
Todorov, um dos pioneiros a sistematizá-lo. Em Introdução à literatura
fantástica, publicada em 1970, o autor diz que a condição imperativa para a
emergência do fantástico reside justamente na “hesitação experimentada por
um ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (2004, p. 31). A fórmula que resumiria o espírito do fantástico
estaria na seguinte expressão: “Cheguei quase a acreditar” (2004, p. 36).
Na visão do estudioso, o fantástico existe enquanto essa hesitação perdurar.
Como explica Todorov (2004, p. 30-31, grifo nosso),
Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem
diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento que não
pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele
que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis: ou
se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação
e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então
o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade,
3
Fantástico stricto sensu.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 195
mas nesse caso esta realidade é regida por leis desconhecidas para
nós. Ou o diabo é uma ilusão, um ser imaginário; ou então existe
realmente, exatamente como os outros seres vivos: com a ressalva de
que raramente o encontramos.
O fantástico ocorre nessa incerteza; ao escolher uma ou outra resposta,
deixa-se o fantástico para entrar num gênero vizinho, o estranho ou
o maravilhoso.
4
O segundo conto, “Makiné”, foi originalmente publicado na primeira página do número
de estreia do “Suplemento dos domingos: de tudo um pouco”, de O Jornal (Rio de
Janeiro) – órgão líder dos Diários Associados –, e o primeiro, “O mistério de Highmore
Hall”, na revista O Cruzeiro (Rio de Janeiro) – também dos Associados. Embora tenha
sido igualmente premiado por este semanário, ao que se sabe, um problema técnico teria
impedido o encaixe de “Makiné” na edição correspondente da revista (ROSA, 2019, p. 517).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 197
numa área isolada. Suas ruínas estão “entrelaçadas de hera” (ROSA, 2011,
p. 61), planta “sempre verde”, “que cresce no solo sombrio das florestas
ou sobre rochedos”, e que, além de lembrar “a noite e a morte”, é também
“símbolo da vida e da imortalidade”, sendo “usada como ornamento dos
túmulos” (LURKER, 1997, p. 308).
Na pintura que o narrador faz desse cenário hostil, provável palco
de uma iminente experiência negativa de Zviazline, vemos que ele não
economiza nos detalhes. Conforme o traçado de seus pincéis góticos,
transposto o umbral do castelo, o personagem “caminhou pelo corredor
longo, lúgubre, silencioso. Parecia-lhe andar pela nave de um templo”
(ROSA, 2011, p. 61), um espaço pertencente e dedicado ao sagrado. Até
então, ele não tinha percebido que um ser sinistro, dotado de “um rosto de
cera, inexpressivo” (ROSA, 2011, p. 61), ia à sua frente. Conduzido por
ele, Zviazline percorreu um “número infinito de salas semelhantes” (ROSA,
2011, p. 62). Todas elas eram quadradas e seus “ladrilhos se alternavam,
brancos e pretos, quadriculando um campo de xadrez” (ROSA, 2011, p. 62).
Além disso, “esfinges de pedra” (ROSA, 2011, p. 62) ocupavam cada uma
das divisões quadradas do tabuleiro. O único aspecto que variava de uma sala
para outra eram as disposições das peças. Diante desse espaço, semelhante
a uma enorme mesa de xadrez – quem sabe, até, em plena partida devido
às alterações de posição dos trebelhos –, o jovem enxadrista não demonstra
espanto: “Na sua semi-inconsciência, tudo lhe parecia natural, como se
jamais tivesse vivido noutro lugar que não aquele” (ROSA, 2011, p. 62).
A trama se aproxima de seu ponto mais alto quando Zviazline e
o sinistro guia passam por “uma porta acortinada de pesado reposteiro
negro” (ROSA, 2011, p. 62). Nesse momento, o protagonista atinge o que
poderíamos chamar de o santo dos santos, a área mais sagrada do castelo.
Diferentemente dos demais recintos, a forma geométrica da sala que ele
adentra é circular. Conforme veremos, a simbologia de ambas as formas
apresenta íntima relação com o que ele está prestes a descobrir. O círculo
representa o céu. Segundo Jean Chevalier e Alain Gheerbrant (1997, p. 250),
ele está ligado ao “mundo espiritual, invisível e transparente” e “simboliza
a atividade do céu, sua inserção dinâmica no cosmo, sua causalidade, sua
exemplaridade, seu papel providente”. O quadrado, por sua vez, “é o símbolo
da terra por oposição ao céu, mas é também, num outro nível, o símbolo
do universo criado, terra e céu, por oposição ao incriado e ao criador; é a
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 205
5
“Luz que aparece à noite, ger. emanada de terrenos pantanosos ou de sepulturas, e que
é atribuída à combustão de gases provenientes da decomposição de matérias orgânicas”
(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 1363).
6
Sinônimo de “fantasmas” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 356).
7
“Nos tratados de magia, selo que se imprimia em pergaminho de pele de bode ou se
gravava em metal precioso e que se relacionava com realidades poderosas e invisíveis”
(HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 2179).
8
“Que tem caráter cabalístico, mágico, misterioso” (HOUAISS; VILLAR, 2001, p. 25).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 206
2011, p. 65). Trajando “uma ampla capa preta, ele se delineava ao bruxoleio
baço das tochas, como a silhueta fantástica de um morcego” (ROSA, 2011,
p. 63) – um animal justamente “associado a demônios e bruxas” (LURKER,
1997, p. 454). O outro jogador tinha longas barbas prateadas e cabelos cor
de neve, “mas a fisionomia austera e majestosa não era absolutamente a
de um velho” (ROSA, 2011, p. 63). Pelo contrário, “ele parecia acima das
idades” (ROSA, 2011, p. 63) e tinha “aspecto sacerdotal” (ROSA, 2011,
p. 63), “majestoso, hierático, impassível” (ROSA, 2011, p. 66). Ao lado
dele, sobre a mesa, havia uma ampulheta, símbolo da contínua e inexorável
passagem do tempo e da transitoriedade da vida.
Zviazline olha para o tabuleiro, mas a partida deles estava muito além
do seu entendimento. Apesar dos esforços, era impossível tentar analisar
a posição dos trebelhos. Neste instante, enquanto o jogador de cabelos
brancos se mantinha alheio, em atitude de total concentração, “o homem
da cara de abutre” (ROSA, 2011, p. 64), rindo sarcasticamente, se dirige ao
jovem ucraniano: “– Ah! Ah! Ah!... Chega afinal o nosso amigo!... Há tanto
tempo que esperávamos!...” (ROSA, 2011, p. 64). Lendo os pensamentos
de Zviazline, que entrara em estado de choque, ele prossegue:
Tu és o predestinado, o eleito para receber de nós a iniciação completa
nos arcanos impenetráveis aos teus semelhantes, tão ávidos sempre do
conhecimento da verdade!... Essa verdade, eu a lancei à Terra, velada
pelas posições variantes inesgotáveis do xadrez, único tarot absoluto,
chave de todo simbolismo!... Mas o que a Fatalidade lhes dera, só com
o Tempo poderiam os humanos decifrar!... E, através dos séculos, o
xadrez não foi para quase todos senão um jogo, para alguns uma arte,
e uma ciência para muito poucos... (ROSA, 2011, p. 64).
Desse dia em diante, porém, para geral admiração, ele abandona de uma vez
por todas a Arte de Caíssa, o que leva o narrador a concluir o relato com
o seguinte comentário: “Mais forte que Adão, recusara provar do fruto da
Ciência, e mais humano que Prometeu, se não atrevera a roubar o fogo do
céu” (ROSA, 2011, p. 69). Em outras palavras, Zviazline recusa “a oferta de
um domínio superior sobre o jogo de xadrez, [...] preferindo preservar sua
limitada condição humana” (TEIXEIRA, 1995, p. 153). O fruto proibido
oferecido a Adão continha a promessa sedutora da serpente à Eva: “Deus
sabe que, no dia em que dele comerdes, vossos olhos se abrirão e vós
sereis como deuses, versados no bem e no mal” (Gn 3.5). O resultado da
desobediência do casal foi a expulsão do paraíso. Quanto ao mito grego, a
centelha do fogo celeste, roubada por Prometeu para beneficiar os homens,
era “privilégio de Zeus” e simbolizava o conhecimento, a “inteligência”
(BRANDÃO, 2000, p. 329). Em decorrência de seu ato insolente, Prometeu
foi agrilhoado e condenado a viver o suplício de, todos os dias, ter seu fígado
devorado por uma águia, o qual se recompunha à noite. A exemplo do que
ocorreu com Adão e Prometeu, para Zviazline, a posse de um conhecimento
arcano, reservado aos deuses, para fins próprios, talvez pudesse acarretar
dolorosas consequências.
Em Introdução à literatura fantástica, Todorov (2004, p. 47-48,
grifo nosso) afirma que
O fantástico [...] dura apenas o tempo de uma hesitação: hesitação
comum ao leitor e à personagem, que devem decidir se o que
percebem depende ou não da “realidade”, tal qual existe na opinião
comum. No fim da história, o leitor, quando não a personagem, toma
contudo uma decisão, opta por uma ou outra solução, saindo desse
modo do fantástico. Se ele decide que as leis da realidade permanecem
intactas e permitem explicar os fenômenos descritos, dizemos que a
obra se liga a um outro gênero: o estranho. Se, ao contrário, decide
que se devem admitir novas leis da natureza, pelas quais o fenômeno
pode ser explicado, entramos no gênero do maravilhoso.
4 Considerações Finais
Conforme procuramos demonstrar no decorrer desse estudo, há
uma faceta na produção de João Guimarães Rosa que oferece um profícuo
campo de trabalho ao pesquisador, que é a presença das diversas vertentes
do insólito ficcional. Já nos primeiros trabalhos da juventude, o autor deu a
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 211
Referências
BÍBLIA DE JERUSALÉM. Tradução de Euclides Martins Balancin et al.
São Paulo: Paulus, 2006.
BRANDÃO, Junito de Souza. Dicionário mítico-etimológico da mitologia
grega. 4. ed. Petrópolis: Vozes, 2000. 2 v.
CAUSO, Roberto de Sousa. Ficção científica, fantasia e horror no Brasil:
1875 a 1950. Belo Horizonte: UFMG, 2003.
CEZAR, Adelaide Caramuru. O inquietante em “Droenha” de João
Guimarães Rosa. Letras & Letras, Uberlândia, v. 2, n. 2, p. 507-515, 2012.
CHEVALIER, Jean; GHEERBRANT, Alain. Dicionário de símbolos: mitos,
sonhos, costumes, gestos, formas, figuras, cores, números. Tradução de Vera
Costa e Silva et al. 11. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1997.
COVIZZI, Lenira Marques. Uma ficção insólita num mundo insólito. In:
______. O insólito em Guimarães Rosa e Borges. São Paulo: Ática, 1978.
p. 25-47.
CUNHA, Fausto. A ficção científica no Brasil: um plante quase desabitado.
In: ALLEN, L. David. No mundo da ficção científica. Tradução de Antonio
Alexandre Faccioli e Gregório Pelegi Toloy. São Paulo: Summus, 1974.
p. 5-20.
FLORA, Fábio. Segundas estórias: uma leitura sobre Joãozito Guimarães
Rosa. Rio de Janeiro: Quartet, 2008.
FRANÇA, Julio; SILVA, Daniel Augusto P. Aspectos góticos na estrutura
narrativa de “Sarapalha”, de Guimarães Rosa. Nonada, Porto Alegre, v. 2,
n. 29, p. 185-200, 2017.
FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa: Livros
Horizonte, 1980.
GAMA-KHALIL, Marisa Martins. O real maravilhoso deslocado em “A
santa”, de Gabriel García Márquez, e ocultado em “A menina de lá”, de
Guimarães Rosa. Revista Semioses, Rio de Janeiro, v. 1, n. 7, p. 92-100, 2010.
GARCÍA, Flavio. Quando a manifestação do insólito importa para a crítica
literária. In: GARCÍA, Flavio; BATALHA, Maria Cristina (org.). Vertentes
teóricas e ficcionais do insólito. Rio de Janeiro: Caetés, 2012. p. 13-29.
HOUAISS, Antonio; VILLAR, Mauro de Salles. Grande dicionário Houaiss
da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 188-213, 2020 213
Abstract: The objective of this paper is to show the presence of philosophical issues in
Hilda Hilst’s poems, mainly in those published in the books of the 1950s. In those poems,
the Paulista writer discussed strictly philosophical questions that would identify her literary
production as love, the sacred, the searching for the first principle of the Ancient Greek
philosophers, the platonic ideal, death and the drama of existence, the limits and uses of
language, and so on. As representative of what has been intended to do, it was selected
the poem XVI, from Balada de Alzira (1951) to analyze and comment, to be evident
the relation between both the fields of literature and philosophy, and to demonstrate that
in those early works, Hilda Hilst, wanting to achieve the maturity of her writing and
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 215
poetical styles, has written poems in which are evident exercises of thinking and deeply
philosophical reflections.
Keywords: Hilda Hilst; Balada de Alzira; Contemporary Brazilian Poetry; Western
Philosophy.
1
O primeiro decênio da trajetória literária de Hilda Hilst (HH), iniciada
aos 20 anos, foi marcado pela publicação de quatro livros de poesia pela
leitura dos quais é possível perceber os esforços de uma escritora que,
em busca de uma voz própria, abraçou o objetivo de a cada nova obra se
distanciar da constante referência a outros autores ou movimentos literários,
recebendo, a despeito disso, comentários críticos relativamente favoráveis
desde o primeiro momento, conforme pontua Duarte (2014).
Uma das maiores dificuldades do texto hilstiano, provavelmente
responsável pelas frequentes tentativas de categorização de sua obra,
certamente reside nas suas “interrogações radicais”, como diz Coelho (2004,
p. 7), revestidas de um hermetismo que por vezes torna incompreensível a
mensagem que a autora tenha intentado transmitir, independente do molde
que esse texto assuma, se mais para as formas canônicas ou não,1 e isso se
nota na sua poesia repleta de referências a fenômenos do mundo físico, a
questões e conceitos filosóficos, a figuras ou teorias religiosas.
Isso demonstra que o leitor interessado em HH é convocado a
progredir juntamente com ela de modo a se habituar à sua linguagem,2
1
Tendo em vista o comentário de Fortuna (2017) à publicação do volume Da poesia pela
Editora Companhia das Letras, ao dizer que em Hilda não é possível encontrar a subversão
do jogo poético pelo experimentalismo ou por qualquer tipo de vanguardismo, ao contrário,
afirma, HH é bem mais conservadora e fiel à tradição portuguesa nesse gênero literário
que é a poesia do que pretendem alguns de seus comentadores ao pintá-la como artista
iconoclasta e fora dos padrões; quer dizer, não é fala expressa pela poeta paulista; crítica
literária e comentadores é quem vão afirmar isso. Ademais, seja escrevendo trovas, cantigas,
baladas, sonetos, HH o fez à sua maneira, isso per se já seria uma quebra da tradição ou
uso da tradição contra si mesma, além disso, esse é caso de menor importância. O que de
fato pode ser associado à sua escrita, se algo assim o pode, é a confissão de ter se dedicado
por várias décadas a trabalhar a palavra, seus sentidos, intenções, sem fingimentos, sem
engodos, convivendo com a sina de ilegível porque labiríntica (CASTELLO, 2013).
2
Apesar de isso parecer uma obviedade que se estenda a qualquer escritor, não se pode
negar que há autores e obras considerados mais “acessíveis” que outros pela crítica literária
e pelo público leitor.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 216
2
Uma primeira observação que deve ser feita diz respeito ao ponto de
vista de Heidegger (1949), aqui compartilhado, sobre a origem das palavras
e seus usos na produção poética, o que poderia, com alguma liberdade, ser
denominado de “etimologia poética”, procedimento efetuado por ele nas
leituras que realizou dos versos de Hölderlin, Rilke, Trakl.
Para o filósofo alemão, a etimologia desempenha papel fundamental
e frequentemente ignorado, pois ele se apercebe da sua utilidade para que
se tenha acesso a significados ocultos quando de maneira geral somente se
recorrem aos sentidos mais elementares que as palavras possuem, conforme
dispostos em dicionários (EILAND, 1982).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 217
3
“anarquia sf. ‘falta de governo ou de autoridade capaz de manter o equilíbrio da estrutura
política, social etc.’ ‘confusão, desordem’ | anarchia XVIII | Do fr. anarchie, deriv. do gr.
anarchía” (cf. CUNHA, 2010.p. 37).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 218
4
Em reportagem, Lago (2014) menciona que HH se sentia incomodada com os três
primeiros livros, isso em função de algumas críticas terem lhe causado certo desconforto,
reconhecendo que o de 1959 seria o ponto inicial de sua caminhada como poeta e, portanto,
uma reunião de suas poesias, naquele momento, como ocorreu com o volume lançado pela
Quíron, em 1980, deveria demarcar o período de 1959 a 1979.
5
Foi colunista de assuntos literários em jornais como O Estado de São Paulo durante as
décadas de 1940 a 1970 (cf. BIGNARDI; GUERINI, 2019).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 219
para muitos que afirmam que compreendem (mas não compreendem) e para
muitíssimos que não têm a coragem de declarar que nada compreenderam”.
Coelho (2004, p. 8), em vez de categorizar HH em um movimento,
estilo de época ou geração, ao escrever sobre os livros de 1959 a 1979
identifica um elemento, o silêncio, como “a presença mais forte que se
impunha” a poetas, como ela, “nos anos 50” em razão, entre outros eventos,
do pós-guerra e, principalmente, das tensões relacionadas à Guerra Fria.
Essa tentativa de a vincular ao referido movimento literário6 esteve
relacionada, entende-se, aos temas, tons e formas poéticas, como a balada,
por exemplo, contidos nessas obras, que, ao menos aos críticos, coadunavam-
se com os objetivos daquela geração de poetas a qual se opunha às inovações
trazidas pelos modernistas de 1922, propondo-se retornar ao modelo poético
petrarquiano,7 aos valores clássicos, ao verso acima da poesia, ao cultivo
das formas fixas, ao rebuscamento (COSTA, 1998).
Mas se não avançaram as investidas em regular o exercício dessa
poética cujos contornos eram imprecisos, pois esboçavam algumas linhas
físico-metafísicas e existenciais desde os primeiros momentos, não
falhou HH em expor suas intenções como afirmou certa vez que somente
interrompeu sua atividade literária porque teve fim sua ânsia de comunicar,
se não a compreenderam, ela o disse da maneira como pensou ser melhor
inteligível (HILST, 1999).
Se em parte não foi compreendida, isto, possivelmente, advém
do fato de a arte da poesia com toda certeza ser bem mais que justapor
períodos ou organizar versos em cadeia, é dar voz ao indizível, sentido
ao incompreensível ou extrair tudo do todo, contrapor-se ao status quo,
desafiar o establishment, desconformar-se com o imposto e comumente
aceitável, contrariar o clichê, tornar estranho o que antes parecia familiar
(HOWARD, 2010). É ainda ousar saber, em respeito ao verso de Horácio
adotado por Kant (2012) para quem ousar é um dever em direção de saída da
imaturidade, essa incapacidade que se apossou do humano, para a conquista
da autonomia, de um pensar próprio.
6
Ainda sobre essa associação, Coelho (2004, p. 9) diz: “Terra e água, os elementos
primordiais da criação do mundo, são as metáforas que Hilda Hilst toma dos versos
de Péricles Eugênio da Silva Ramos (um dos poetas mais representativos da Poesia-45
brasileira).”
7
Pécora (2010) identificou esse modelo poético em HH.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 220
8
Gagliardi é um dos que estabelece ponte entre a “epistemologia pessoana” e a
fenomenologia de Husserl para quem a explicação de um fenômeno determinado somente
é possível depois de ele haver sido compreendido em si (cf. GAGLIARDI, 2006).
9
Em 1951, ainda acadêmica na Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo (USP),
no Largo do São Francisco, curso concluído no ano seguinte e cujo ofício exerceu com certo
pavor por alguns meses (ROSENFELD, 1970), HH publica pela editora paulistana Alarico
o segundo livro, de curta extensão, contando dezessete poemas, numerados à romana,
sendo o último o único a receber denominação própria, homônima à obra (HILST, 2017).
10
Série de tratados produzidos por volta do ano 350 a.C.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 221
11
Aristóteles (2015), no quinto livro da referida obra desenvolve sua percepção de “causa”,
mencionando haverem basicamente quatro: a material (de que uma coisa é feita); a formal
(como uma coisa se parece); a eficiente (por que uma coisa muda ou não); e a final (para
que uma coisa serve).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 223
12
A teoria dos quatro estágios desenvolvida pelo psicólogo suíço Jean Piaget é exemplo disto.
Até o segundo estágio, as crianças trabalham mais a imaginação e a representação, ou seja,
simbolizam mais, o que seria explicado pela ausência de pensamento lógico-racional cujo
desenvolvimento se dá a partir do terceiro estágio, operatório concreto, crianças na faixa-
etária dos 7 aos 11 anos, quando são instituídas as bases do pensamento racional havendo
progressiva limitação da função simbólica. Para mais detalhes, cf. Borges e Fagundes (2016).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 224
13
Criador e primeiro mantenedor do instituto dedicado à preservação da obra e da memória
da poeta paulista, hoje sob a responsabilidade de seu filho, Daniel Fuentes. Essas são
informações extraídas da página oficial do Instituto Hilda Hilst. Disponível em: https://
www.hildahilst.com.br/blog/jose-luis-mora-fuentes-o-companheiro-da-casa. Acesso em:
9 maio 2020.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 226
Referências
ARISTÓTELES. Metafísica. 5. ed. São Paulo: Edições Loyola, 2015. v. II.
BACHELARD, Gaston. A poética do devaneio. São Paulo: Martins Fontes,
1996.
BIGNARDI, Ingrid; GUERINI, Andréia. “Pontos de vista de uma mulher”:
Giacomo Leopardi “traduzido” por Bruna Becherucci n’O Estado de São
Paulo. O Eixo e a Roda, Belo Horizonte, v. 28, n. 3, p. 13-40, 2019. DOI:
https://doi.org/10.17851/2358-9787.28.3.13-40.
BORGES, Karen Selbach; FAGUNDES, Léa da Cruz. A teoria de
Jean Piaget como princípio para o desenvolvimento das inovações.
Educação, Porto Alegre, v. 39, n. 2, p. 242-248, maio-ago. 2016.
DOI: https://doi.org/10.15448/1981-2582.2016.2.21804. Disponível
em: https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/faced/article/
viewFile/21804/14817. Acesso em: 07 maio 2020.
CASTELLO, José. Potlatch, a maldição de Hilda Hilst, 1994. In: DINIZ,
Cristiano (org.). Fico besta quando me entendem: entrevistas com Hilda
Hilst. São Paulo: Globo, 2013. p. 157-163.
COELHO, Nelly Novaes. A poesia obscura/luminosa de Hilda Hilst e a
metamorfose de nossa época. Revista Ecos, Cuiabá, v. 2, n. 1, p. 7-14, jul.
2004.
14
Nesse aspecto, HH e o filósofo alemão compartilham a mesma preocupação: a palavra,
em sentido lato, a palavra como unidade da linguagem e a linguagem como caminho
para o que existe, pois, em sentença marcante e bastante referenciada, Heidegger (1998,
p. 239) afirma que a “linguagem é a morada do ser”. E pronuncia uma mensagem que
aparenta mesmo ser direcionada a HH: “Aqueles que pensam e criam com palavras são
os guardiões desta casa.”
15
Leituras recentes têm defendido não apenas na poesia, mas na prosa a dimensão metafísica
da escrita hilstiana, mas associando o termo à ideia do gnosticismo transcendental que não
efetivamente é o cerne e o eixo motivador da poesia metafísica como concebida por John
Donne e outros e seguida por HH (cf. MORRIS; CARVALHO, 2018).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 227
COSTA, Édison José da. A geração de 45. Letras, Curitiba, n. 49, p. 53-60,
1998.
CUNHA, Antônio Geraldo da. Dicionário etimológico da língua portuguesa.
4. ed. Rio de Janeiro: Lexicon, 2010.
CUNHA, Rubens da. Hilda Hilst e a experiência romântica do afastamento.
Terra roxa e outras terras: Revista de Estudos Literários, Londrina, v. 27,
p. 64-73, dez. 2014.
DINIZ, Cristiano (org.). Fico besta quando me entendem: entrevistas com
Hilda Hilst. São Paulo: Globo, 2013.
DUARTE, Edson. Recepção da Literatura de Hilda Hilst. Palimpsesto, Rio
de Janeiro, n. 18, p. 135-145, jul-ago 2014. Disponível em: https://www.e-
publicacoes.uerj.br/index.php/palimpsesto/article/view/34894/24652.
Acesso em: 7 maio 2020.
EILAND, Howard. Heidegger’s etymological web. Boundary 2, Durham,
v. 10, n. 2, p. 39-58, 1982. DOI: https://doi.org/10.2307/302895. Disponível
em: https://www.jstor.org/stable/302895?seq=1. Acesso em: 7 maio 2020.
FORTUNA, Felipe. Com obra reunida, Hilda Hilst é uma poeta complexa
e matizada. Folha de São Paulo, São Paulo, 17 jun. 2017. Seção Crítica.
Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2017/06/1893477-
com-obra-reunida-hilda-hilst-e-uma-poeta-complexa-e-matizada.shtml.
Acesso em: 9 maio 2020.
GAGLIARDI, Caio. Os três Caeiros. In: PESSOA, Fernando. Poemas
completos de Alberto Caeiro. São Paulo: Hedra, 2006. p. 9-25.
HEIDEGGER, Martin. Existence and Being. Chicago: Henry Regnery
Company, 1949.
HEIDEGGER, Martin. Pathmarks. Cambridge University Press, 1998. DOI:
https://doi.org/10.1017/CBO9780511812637.
HILST, Hilda. Da poesia. 1. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.
HILST, Hilda. Em 50 anos serei considerada genial. O Globo, Rio de Janeiro.
25 dez. 1999. Entrevista concedida a Pedro Maciel. Disponível em: https://
revistacaliban.net/quando-morre-mos-podemos-ser-geniais-a2d894169bf7.
Acesso em: 10 maio 2020.
HOWARD, Patrick. How literature works: Poetry and the Phenomenology
of Reader Response. Phenomenology & Practice, Edmonton, v. 4, n. 1,
p. 52-67, 2010. DOI: https://doi.org/10.29173/pandpr19827.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 214-228, 2020 228
Resumo: Este artigo discute os poemas Novo Éden: Poemeto da adolescência (1888-
1889), Harpa de Ouro (1888-1889) e O Guesa, O Zac (1902) com destaque ao teor político
republicano que os constitui. Nessa tríade, Sousândrade constrói uma narrativa legitimadora
da República brasileira apresentando-nos ao panorama da luta pela emancipação da nação
livre e democrática como resultado dos esforços de dois heróis nacionais: Tiradentes
e, surpreendentemente, a princesa Isabel, ambos representados como mártires cristãos
defensores de um novo éden político. Vale ressaltar que esses poemas se inscrevem no
momento de transição do Brasil monárquico para o republicano, marcado por disputas
ideológicas de grupos políticos que tencionavam ser protagonistas da modernização da
nação rumo ao século XX.
Palavras-chave: literatura brasileira; século XIX; poesia; república; Sousândrade.
Abstract: This article discusses the poems Novo Éden: Poemeto da adolescência (1888-
1889), Harpa de Ouro (1888-1889) and O Guesa, O Zac (1902) with emphasis on the
republican political content that constitutes them. In this triad, Sousândrade builds a
legitimizing narrative of the Brazilian Republic by presenting us with the panorama of the
struggle for the emancipation of the free and democratic nation as a result of the efforts
of two national heroes: Tiradentes and, surprisingly, Princess Isabel, both represented as
Christian martyrs defenders of a new political Eden. It is worth mentioning that these
poems are inscribed in the moment of transition from a monarchic to a republican Brazil,
marked by ideological disputes by political groups that intended to be protagonists of the
nation’s modernization towards the 20th century.
Keywords: Brazilian literature; 19th century; poetry; republic; Sousândrade.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 229-248, 2020 230
1 Introdução
Nos primeiros anos após a proclamação da república no Brasil, o
poeta maranhense Joaquim de Sousa Andrade (1832-1902), ou Sousândrade,
publicou três poemas que buscavam construir uma narrativa legitimadora
do novo regime político instaurado. Sua primeira contribuição nesse sentido
foi Novo Éden: Poemeto da adolescência (1888-1889), publicado em 1893,
no qual aparece, pela primeira vez, o imaginário de fundação da República
ligada historicamente à Inconfidência Mineira (1789) e à Lei Áurea. Também
em O Guesa, o Zac, de 1902, e Harpa de Ouro (1888-1889), publicado
postumamente, Tiradentes ou Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792) é
exaltado como o inspirador de Deodoro da Fonseca e Benjamin Constant, ao
lado da Princesa Isabel, que é surpreendentemente caracterizada como mártir
republicana por ter assinado a sentença de extinção da Casa de Bragança
ao libertar os escravos. Sousândrade procurou construir nessas obras um
panorama da luta pela emancipação da nação brasileira livre e democrática
e exaltar os seus heróis
Indubitavelmente o mais complexo dos três poemas, Novo Éden
pode ser interpretado em chaves diversas. Dividido em sete cantos ou
dias, de acordo com o mito bíblico da criação do mundo, cada um desses
cantos é acompanhado por epígrafes, além de uma espécie de glosa ao final,
reforçando a feitura divina de cada dia descrito. As epígrafes, mais de uma
por canto, contribuem para a hermeticidade do poema, pois a sua relação
com o contexto narrado não é evidenciada. Nelas são citadas, por exemplo,
John Milton, Victor Hugo, Gonçalves Dias e o bíblico livro de Genesis. Ao
longo de 88 páginas, o poema apresenta estrutura intrincada, mesmo aos
leitores cientes do processo de criação poética do autor que, desde o épico
O Guesa, se apropria de inúmeras referências literárias, históricas e pessoais
sem, contudo, explicitá-las. Ficamos quase sempre na superfície do texto,
sem conseguir decodificar completamente o enredo.
Considerando as diferentes interpretações de leitura, a crítica
sousandradina é unânime em reconhecer o fechamento semântico desse
“poemeto da adolescência”. Por exemplo, em Revisão de Sousândrade,
Augusto e Haroldo de Campos avaliam Novo Éden como:
homenagem à República nascente, se caracteriza pelo uso da alegoria
e de um maravilhoso compósito (com personagens de extração
mitológica ou imaginadas livremente pelo autor), ao qual se somam as
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 229-248, 2020 231
1
O autor dessa alcunha é anônimo, identificando-se apenas como “um republicano”. A
menção ocorreu no texto “Pergunta a um republicano: Será possível radicar-se e prosperar
o governo republicano no nosso país?”, estampado na seção Publicações a pedido do
jornal maranhense Pacotilha (MA), na edição de quarta-feira, 29 de abril de 1896. Cf.
Um Republicado (1896).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 229-248, 2020 237
2
Carta Inédita, disponível na Fundação Joaquim Nabuco, Recife: N° 1722 [CP P39 DOC
906]. A íntegra dessa missiva foi reproduzida na tese de doutorado da autora. Cf. Carneiro
(2016)
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 229-248, 2020 241
3
Carta Inédita, disponível na Fundação Joaquim Nabuco, Recife: N° 1722 [CP P39 DOC
906]. A íntegra dessa missiva foi reproduzida na tese de doutorado da autora. Cf. Carneiro
(2016)
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 229-248, 2020 242
4
Sousândrade estava de volta ao Brasil em 4 de outubro de 1884, conforme noticiado na
imprensa ludovicense: “Entrados hoje no vapor Brunswick: […] Dr. Joaquim de Souza
Andrade, D. Maria Bárbara de Souza Andrade […]”. Cf. O Paiz (MA), (1884, p. 3).
5
Sousândrade assumiu o cargo de superintendente da província de São Luís depois que
a república foi proclamada. Por essa época, iniciou mudanças no sistema educacional
da região e concebeu o projeto da fundação da primeira universidade no Maranhão, que
nunca se realizou. Sousândrade via o atraso do Brasil, já na sua fase republicana, como
consequência da falta de investimento em novas tecnologias para a extração de recursos
minerais e desenvolvimento da agricultura, assim como na ausência de trabalhadores
qualificados. Por isso, além de investimento na formação de profissionais em ciências
aplicadas, o governo republicano deveria aproveitar o potencial que os índios e negros
libertos apresentavam, pois esses poderiam contribuir para o crescimento e modernização
do país, dispensando a vinda de trabalhadores imigrantes. Cf. Carneiro (2016).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 229-248, 2020 243
6 Considerações finais
Nos poemas analisados assistimos à construção do mito de fundação
de um éden moderno, sinônimo de futuro e progresso, assim como de um
panorama da luta e dos heróis responsáveis pela emancipação do Brasil
republicano, livre e democrático. Nesse contexto, são recorrentes as
figurações de Tiradentes e da princesa Isabel, especialmente, como mártires,
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 229-248, 2020 247
Referências
CAMPOS, Augusto de; CAMPOS, Haroldo de. ReVisão de Sousândrade.
3. ed. revisada e ampliada. São Paulo: Perspectiva, 2002.
CARNEIRO, Alessandra da Silva. Do tatu fúnebre ao Lar-titú: implicações
do Indianismo no Canto Segundo do poema O Guesa, de Sousândrade. 2011.
135 f. Dissertação (Mestrado) – Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011. Disponível
em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/tde-27052011-160658/
publico/2010_AlessandradaSilvaCarneiro.pdf Acesso em: 6 out. 2020.
CARNEIRO, Alessandra da Silva. O Guesa em New York: Republicanismo e
Americanismo em Sousândrade. 2016. 214 f. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2016. Disponível em: https://teses.usp.br/teses/disponiveis/8/8149/
tde-29062016-114340/publico/2016_AlessandraDaSilvaCarneiro_VCorr.
pdf. Acesso em: 6 out. 2020.
CARVALHO. José Murilo de. A formação das almas: o imaginário da
República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2014.
DAIBERT JUNIOR, Robert. Isabel, a “Redentora” dos escravos: uma
história da Princesa entre olhares negros e brancos (1846-1988). Bauru, SP:
EDUSC, 2004.
LOBO, Luiza. Épica e modernidade em Sousândrade. 2. ed. rev. Rio de
Janeiro: 7Letras. 2005.
LOPES, Hélio. Norte-americanos em nosso romantismo. In: ______. Letras
de Minas e outros ensaios. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo,
1997.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 229-248, 2020 248
O PAIZ (MA). São Luís, 4 out. 1884, Edição 00080, p. 3. Disponível em: http://
memoria.bn.br/DocReader/docreader.aspx?bib=704369&pasta=ano%20
188&pesq=&pagfis=7300. Acesso em: 6 out. 2020.
SANTIAGO, Clarindo. Sousa Andrade: o solitário da “vitória”. Revista da
Academia Brasileira de Letras, Rio de Janeiro, ano 3, v. 39, n. 126, 1932.
SOUSA ANDRADE [Sousândrade, Joaquim de]. [Correspondência]
Destinatário: Joaquim Nabuco. Rio de Janeiro 26 ago. 1896. Fundação
Joaquim Nabuco, Recife: N. 1722 [CP P39 DOC 906].
SOUSÂNDRADE. Harpa de Ouro (1888-1889). In: WILLIAMS, Frederick
G.; MORAES, Jomar (org.). Poesia e prosa reunidas de Sousândrade. São
Luís: Edições AML, 2003. p. 429-450.
SOUSÂNDRADE. Novo Éden: Poemeto da adolescência. 1888-1889. São
Luís, MA: Typ. a vapor de João d’Aguiar Almeida & C. 1893. Disponível
em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008326&bbm/1261#page/1/
mode/2up. Acesso em: 31 mar. 2020.
SOUSÂNDRADE. O Guesa, o Zac. In: WILLIAMS, Frederick G.;
MORAES, Jomar (org.). Poesia e prosa reunidas de Sousândrade. São Luís:
Edições AML, 2003. p. 202-204.
SOUSÂNDRADE. O Guesa. Londres: Cooke & Halsted, 1884. Disponível
em: https://digital.bbm.usp.br/view/?45000008327&bbm/619#page/20/
mode/2up. Acesso em: 12 jul. 2020.
TORRES, João Camilo de Oliveira. O Positivismo no Brasil. Rio de Janeiro:
Vozes, 1943.
UM REPUBLICANO. Pergunta a um republicano: será possível radicar-se
e prosperar o governo republicano no nosso país?. Pacotilha, Maranhão,
29 abr. 1896. Disponível em: http://memoria.bn.br/DocReader/docreader.
aspx?bib=168319_01&pasta=ano%20188&pesq=&pagfis=17755. Acesso
em: 6 out. 2020.
WILLIAMS, Frederick G. Sousândrade: vida e obra. São Luís: Sioge, 1976.
1 Introdução
Antonio Candido de Mello e Souza (1918-2017) é referido como
um dos mais importantes ensaístas brasileiros. O ensaio, forma eleita pelo
crítico para tecer suas considerações sobre a produção literária nacional e
estrangeira, é um gênero híbrido, fronteiriço, que se situa no limiar entre
reflexão teórico-crítica e criação literária, entre ciência e imaginação.
Candido integrou as primeiras gerações formadas pela Faculdade
de Filosofia, Ciências e Letras, nos anos 1940, as quais buscaram, em larga
medida, contrapor-se ao diletantismo e à prática ensaística que então marcava
o pensamento nacional, veiculada por intelectuais de formação bacharelesca
e muitas vezes autodidatas. Em nome da construção e sedimentação das
Ciências Humanas e Sociais no Brasil, os jovens intelectuais advindos da
Universidade de São Paulo se voltaram contra a tendência à falta de método
e rigor conceitual que predominava entre as gerações mais velhas. Antonio
Candido, entretanto, estabeleceu um profícuo diálogo com a prática ensaística
precedente. Se a formalização acadêmica buscou romper com a tradição
ensaística nacional, Candido manteve um fio de continuidade com ela.
De que modo ocorre esse diálogo? Em que se aproxima e em que se
distancia a forma ensaística de Antonio Candido em relação àquela produzida
pela geração pregressa? Com base em teóricos do ensaio e comentadores
da obra de Candido, discutiremos a relação que o crítico estabelece com o
ensaísmo nacional a partir de uma posição limite entre tradição e ruptura,
tomando o crítico Sérgio Milliet (1898-1966) como ponto de transição entre
a tradição ensaística nacional e o ensaísmo candidiano.
2 A forma ensaio
O ensaio tem sua origem no Renascimento francês, com os Ensaios
(1580) de Michel de Montaigne (1533-1592). A obra máxima do autor
renascentista trata, segundo ele nos informa, de si mesmo: “Assim, leitor,
sou eu mesmo a matéria deste livro, o que será talvez razão suficiente
para que não empregues teus lazeres em assunto tão fútil e de tão mínima
importância.” (MONTAIGNE, 2016, p. 40). Montaigne busca desenhar
um autorretrato, uma imagem de si: o humano é sua matéria. A tendência
humanista está na origem do ensaio.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 249-267, 2020 251
3 O ensaio no Brasil
Certa tendência ensaística vigora no pensamento brasileiro desde
pelo menos o século XIX, principalmente por meio da imprensa. Segundo
historicização de Alexandre Eulalio, é com o Correio Brasiliense, periódico
fundado por Hipólito da Costa em 1808, que tem origem no Brasil o
“ensaio em alto nível intelectual” (EULALIO, 1992, p. 18). O ensaísmo se
desenvolve entre nós em paralelo com o desenvolvimento do periodismo,
através da prática do folhetim. Findo o Primeiro Reinado, a imprensa passa
a se modernizar e o folhetim se populariza, contando com a colaboração de
grandes escritores e intelectuais da época: “a prova de que todos os ‘belos
talentos’ têm de passar, antes de receberem de vez seus preciosos diplomas
de almas sensíveis e espirituosas.” (EULALIO, 1992, p. 31).
O espírito de missão da geração romântica encampa a forma
ensaística, engendrando um novo vigor crítico na vida intelectual nacional.
Por meio da imprensa, artistas e críticos fomentam o debate político e
estético. Essa tendência prevalece até meados do século XIX, quando
desponta a figura de Sílvio Romero (1851-1914). Seus estudos de história
literária iriam lhe reservar “desde logo um lugar central em nosso ensaísmo,
que ele se apressou a ocupar com todo o gosto” (EULALIO, 1992, p. 45). Na
mesma época, também estreia uma eminente geração de ensaístas do porte
de José Veríssimo, Joaquim Nabuco, Rui Barbosa, Capistrano de Abreu e
Araripe Júnior. Com isso, história, política, direito e sociologia passam a
envolver os temas dos ensaios produzidos por nossos pensadores.
Já no século XX, o ensaio ganha novo fôlego com a geração
modernista, da qual se destaca a produção ensaística de Mário de Andrade,
que contribuiu até seus últimos anos com o debate estético-literário nacional.
Da seara modernista despontam também, a partir do decênio de 30, dois
dos mais refinados exemplos daquele que Alexandre Eulalio denomina de
“ensaio crítico e interpretativo” (EULALIO, 1992, p. 67): Gilberto Freyre
(1900-1987) e Sérgio Buarque de Holanda (1902-1982). Tidos como os
mais importantes intérpretes da nação, ambos se valeram do ensaio de viés
sociológico como forma de elucidar os dilemas nacionais, em um movimento
que explora a observação de questões pontuais da vida brasileira para
produzir teses amplas e gerais. Nas análises sociológicas desses autores,
prevalece certo vigor estético, que faz de suas obras grandes narrativas de
formação, o que acaba por produzir um cruzamento entre “a imaginação
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 249-267, 2020 254
1
A esse respeito, conferir, à guisa de exemplo, o artigo: A torre de marfim de um modernista
arrependido: apontamentos sobre a trajetória crítica de Antonio Candido. (CERQUEIRA,
2010).
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 249-267, 2020 265
7 Considerações finais
Concluímos, por fim, que o ensaio, em Antonio Candido, constitui
ferramenta fundamental para a pretensão de uma crítica integrativa e
empenhada, na medida em que possibilita ao crítico estabelecer um diálogo
entre a tradição interpretativa brasileira de extração modernista e o repertório
científico e acadêmico da Universidade de São Paulo, num intuito construtivo,
formativo, humanista, mediador e modernizante de que a postura crítica
de Sérgio Milliet foi emblemática, fazendo de sua atividade intelectual o
intermédio entre as duas dimensões centrais da formação de Candido.
A relação com o passado, no pensamento de Antonio Candido, não
significa, portanto, um apego à tradição, nem tampouco ímpeto de ruptura,
mas tentativa de mediar e reatar os nexos entre passado e presente, tendo
em vista a sedimentação do futuro.
Referências
ADORNO, T. W. O ensaio como forma. In: ______. Notas de literatura I.
Tradução de Jorge de Almeida. São Paulo: Duas Cidades: 34, 2003. p. 15-45.
ARANTES, P. E. Providências de um crítico literário na periferia do
capitalismo. In: ARANTES, P. E.; ARANTES, O. B. F. Sentido da formação:
três estudos sobre Antonio Candido, Gilda de Mello e Souza e Lúcio Costa.
Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. p. 7-66.
BARRENTO, J. Do ensaio e do fragmento. In: ______. O género intranquilo:
anatomia do ensaio e do fragmento. Lisboa: Assírio & Alvim, 2010.
(Peninsulares, 96). p. 14-97.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 249-267, 2020 266
CANDIDO, A. Clima. In: ______. Teresina etc. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1980. (Coleção Literatura e Teoria Literária, 38). p. 153-171.
CANDIDO, A. De cortiço a cortiço. In: ______. O discurso e a cidade. 3.
ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades, 2004a. p.
105-130.
CANDIDO, A. Dialética da malandragem. In: ______. O discurso e a
cidade. 3. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Duas Cidades,
2004b. p. 17-45.
CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira: momentos decisivos,
1750-1880. 16. ed. Rio de Janeiro: Ouro sobre Azul; São Paulo: Fapesp,
2017.
CANDIDO, A. Literatura e cultura de 1900 a 1945 (panorama para
estrangeiros). In: ______. Literatura e sociedade: estudos de teoria literária.
Rio de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2008. p. 117-145.
CANDIDO, A. O ato crítico. In: ______. A educação pela noite. 5. ed. Rio
de Janeiro: Ouro Sobre Azul, 2006a. p. 147-165.
CANDIDO, A. O método crítico de Sílvio Romero. 4. ed. Rio de Janeiro:
Ouro Sobre Azul, 2006b.
CANDIDO, A. O significado de Raízes do Brasil. In: HOLANDA, S. B. de.
Raízes do Brasil. 26. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 1995. p. 9-21.
CANDIDO, A. Plataforma da nova geração. In: ______. Textos de
intervenção. São Paulo: Duas Cidades: 34, 2002. p. 241-250.
CERQUEIRA, R. A torre de marfim de um modernista arrependido:
apontamentos sobre a trajetória crítica de Antonio Candido. Itinerários,
Araraquara, n. 30, p. 101-113, 2010. Disponível em: https://periodicos.fclar.
unesp.br/itinerarios/article/view/2998. Acesso em: 29 abr. 2020.
EULALIO, A. O ensaio literário no Brasil. In: ______. Escritos. Organização
de Berta Waldman e Luiz Dantas. Campinas: Unicamp, 1992. p. 11-67.
GONÇALVES, L. R. Sérgio Milliet, crítico de arte. São Paulo: Perspectiva:
EDUSP, 1992. (Coleção Estudos, 132).
LUKÁCS, G. A alma e as formas. Tradução de Rainer Patriota. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015. (Coleção Filô).
MILLIET, S. Da crítica de arte. In: ______. Pintura quase sempre. Porto
Alegre: Globo, 1944. p. 7-11.
Eixo Roda, Belo Horizonte, v. 29, n. 4, p. 249-267, 2020 267