Da Heresia À "Caça Às Bruxas" No Final Da Idade Média Ocidental
Da Heresia À "Caça Às Bruxas" No Final Da Idade Média Ocidental
Da Heresia À "Caça Às Bruxas" No Final Da Idade Média Ocidental
176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental
DA HERESIA À “CAÇA
ÀS BRUXAS” NO
FINAL DA IDADE
MÉDIA OCIDENTAL
*
Doutorando em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
Pesquisador do Laboratório de Estudos Medievais – Leme. E-mail: [email protected].
**
Mestre em História pelo Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro – UFFRJ. Pesquisador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Medievalística – Lepem.
E-mail: [email protected].
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rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental
2016 para o português pelo prof. dr. Igor Salomão Teixeira. A obra é, segundo
o próprio autor (que o afirma em seus agradecimentos), fruto de 15 anos de
pesquisa e de artigos publicados em periódicos diversos, que lhe propicia-
ram uma interlocução crítica com inúmeros outros estudiosos do tema da
Inquisição, do sabá (reunião de bruxos) e da “caça às bruxas” no alvorecer
da modernidade ocidental. Seja pelo estilo da escrita do autor, seja pelo bom
trabalho que fizeram o tradutor e a revisora técnica, esta edição brasileira
oferece uma leitura agradável e instigante e, o mais importante, uma tese
rica e inovadora, indispensável para aqueles que se dedicam não só aos
temas supracitados, mas também aos estudos sobre as heresias, as artes má-
gicas e as perseguições político-religiosas na Europa dos séculos XIII a XVI.
Inicialmente, no entanto, é preciso atentar para que, conquanto o título
da obra proponha um recorte espacial genérico (o “Ocidente”, no título ori-
ginal, ou a “Europa”, no título português), Boureau tem um escopo efetivo
menos abrangente: a Itália e a França, uma vez que os intelectuais e os tribu-
nais da Inquisição de que fala estão todos no domínio do Reino francês e da
Cúria papal que, àquela altura, residia em Avignon. Remissões a outras es-
pacialidades – notadamente a península Ibérica e a Germânia imperial – são
feitas, aqui e acolá, mas servem apenas para situar um ou outro argumento e
para contextualizar tanto a abordagem de alguma fonte documental quanto
a biografia de alguns dos intelectuais citados ao longo das análises.
Como propõe Martine Ostorero,1 a tese de Satã herético pode ser assim re-
sumida: haveria uma continuação entre a demonologia escolástica do final do
século XIII e a histeria da perseguição às bruxas a partir do século XV. Teria
sido a racionalidade escolástica radical a abrir novos e perigosos campos de
reflexão para a posteridade, incluindo a possibilidade de uma relação eficaz
e maligna entre homens e demônios. Em outras palavras, Boureau tenta de-
monstrar que a escolástica é que permitiu a “emergência do sabá”. A investiga-
ção do autor se coloca, assim, numa espécie de genealogia do tema em questão.
De fato, em sua introdução, Boureau diz querer superar as explicações
correntes sobre o fenômeno “louco” da “caça às bruxas”. Segundo ele, são
quatro os grandes esquemas explicativos para a problemática: 1) a bruxaria
derivaria de cultos ancestrais; 2) o sabá era uma invenção da própria In-
quisição, que a imputava aos condenados por meio de violência; 3) ele seria
Em resenha sobre a obra de Boureau: OSTORERO, Martine. Alain Boureau, Satan hérétique. Nais-
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sance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). Médiévales [en ligne]. Vincennes: s. n.,
n. 48, printemps 2005. Disponível em: <http://medievales.revues.org/1087>. Acesso em: 18/02/2017.
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O próprio Igor Teixeira trata especificamente deste ponto em um artigo: TEIXEIRA, Igor Sa-
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gia que do direito” (p. 32) porque tradicionalmente não se via a necromancia
como delito; foi necessário antes, portanto, forjar uma nova concepção sobre
ela, problema que residia no campo teológico. A teologia norteava o direito
e o esforço de João XXII consistiu justamente em uma inovação teológica
que pudesse engendrar um novo direito, capaz de enquadrar os necroman-
tes como hereges e torná-los condenáveis pelos tribunais régios e papais.
Ao mesmo tempo, tratava-se também de um desafio epistemológico e de
outro metodológico: era preciso, como dissemos, deslocar o foco da opi-
nião para a ação, da fé para o comportamento, e criar meios de investigação
que superassem os morosos e truncados trâmites dos julgamentos. Ambas
as estratégias convergiam para a mesma finalidade: livrar a Inquisição das
obstruções que o foro da consciência individual impunha e dar-lhe o poder
de processar sumariamente os suspeitos de necromancia. A urgência dos
processos escancarava o medo do segredo, situado na raiz da obsessão pelo
complô que viria a ser atrelado ao sabá.
No segundo capítulo, Boureau trata da dimensão sacramental que se
passou a atribuir à necromancia. Ela reforçava a imputação de heresia na
medida em que apresentava a necromancia como uma perversão do sacra-
mento divino, não tanto porque se movia por uma crença desviante – isto
é, a crença em Satã ao invés da crença em Deus (já destacamos: a crença
desviante era uma questão difícil de provar) –, mas porque o próprio ato
sacramental que selava o pacto demoníaco implicava a submissão voluntá-
ria a um outro poder, que não aquele aceitável, o divino. O sacramento não
tinha causa em si mesmo – por isso o problema não era a sua apropriação
pelos necromantes –, mas usá-lo para invocar o diabo era colocar Satã no
lugar de Deus e romper o pacto com este por uma nova aliança com aquele.
O necromante aceitava espontaneamente, assim, a soberania do antagonista
de Deus. E se o diabo era um ser naturalmente mau, qualquer pacto com ele
só poderia ter fins malignos.
No capítulo 3, Boureau lida justamente com a invenção de um poder
positivo, eficaz, para o pacto demoníaco. Frisa que “a força constitutiva dos
pactos tinha, nas sociedades da Idade Média central, uma ampla pertinência
da qual Satã podia lançar mão” (p. 83) e lembra que Tomás de Aquino, se-
guindo a doutrina voluntarista de Agostinho de Hipona (354-430) – segundo
a qual o livre-arbítrio consistia não na liberdade plena, mas na capacidade
de escolher o bem ao invés do mal –, havia aceitado a possibilidade desse
tipo de pacto e o condenado, simplesmente porque o próprio Deus havia
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vontade, ao passo que o segundo o faria por sua natureza), opositores como
Pedro Olivi destacavam que “o anjo não difere necessariamente do homem:
nos dois casos, é o querer próprio da criatura que o dana ou o salva”; Bou-
reau completa: “inversamente em relação ao anjo de Tomás, o anjo de Pedro
Olivi é muito mais próximo do homem que de Deus” (p. 125). Em Tomás,
portanto, os demônios eram impermeáveis à história (p. 130), enquanto que,
em Pedro Olivi, eles a recuperavam. Assim, paradoxalmente, a teologia to-
mista, por um lado, acorrentava o diabo, por outro, teria sistematizado um
saber acerca do demônio que abriria espaço para a reflexão demonológica
por meio da qual os franciscanos teriam desacorrentado o diabo e seus se-
guidores, aproximando-os dos homens.
No capítulo 5, por meio dos processos de canonização do início do
século XIV, ocorridos sob os pontificados de Clemente V e João XXII, Bou-
reau analisa a transformação em torno da demonologia. O autor observa
duas tendências no tratamento dos possessos: uma tratava a maioria dos
casos como loucura, outra invertia a proporção e considerava a maior parte
das vítimas como endemoninhados. Para o autor, tal discrepância indicia a
naturalização e a medicalização da loucura no século XIII. A partir de então,
muitos casos em que as testemunhas alegavam possessão passaram a ser
encarados como loucura; a centralidade da taumaturgia cedia lugar, então, à
centralidade da virtude. Contudo, propõe-se que os casos de possessão de-
moníaca não teriam desaparecido, mas tomado novos contornos. Em linhas
gerais, Boureau sugere que a permanência das menções ao exorcismo não
sinaliza meros arcaísmos em face de uma onda naturalista que medicalizava
a loucura; ao contrário, a nova sensibilidade sobre a presença demoníaca en-
tre os fiéis teria criado um verdadeiro embaraço para a Cúria pontifícia, para
além do ceticismo médico, obrigando-a a encarar o problema da possessão.
A partir daí, foram sistematizadas novas formas de possessão que associa-
vam Satã às aparições, aos hereges e aos mortos sem confissão, no mesmo
momento em que João XXII estava interessado em redefinir a relação entre
magos, hereges e demônios. Nesse sentido, a figura do louco não esgotaria
a complexidade dos quadros e se constituiria apenas como uma baliza para
avaliar a suscetibilidade dos indivíduos à possessão.
Graças a essa nova antropologia, derivada tanto do saber naturalista
quanto da reflexão escolástica, a constatação da presença invasiva do de-
mônio teria assumido, no século XIII, um novo sentido. Exploravam-se as
forças e as fraquezas da natureza humana. Ao inaugurar a reflexão siste-
mática acerca de Satã e de seus demônios, o saber escolástico se abriu para
uma investigação dos próprios limites e ações humanas; em outras palavras,
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a partir de uma reflexão sobre o diabo e sobre sua ação entre os homens,
refletiu-se acerca da própria natureza humana.
No capítulo 6, a fim de melhor compreender as “fendas abertas no edifí-
cio da personalidade humana” (p. 169), Boureau investiga a figura do sonâm-
bulo. Essa personagem é inserida por Clemente V (1264-1314, papa a partir de
1305), à época das Constituições clementinas, no cânone Si furiosus, que apresen-
tava uma novidade: “o sono, como a loucura, a infância ou a legítima defesa,
constitui então fator de irresponsabilidade penal” (p. 170). A inimputabilida-
de penal do sonâmbulo evocava certa natureza pura para o ser humano, que
era reduzido a um estado de passividade, “como um simples receptáculo de
influências” (p. 172). Nesse sentido, o sonâmbulo se aproximava da figura do
endemoninhado, visto que ambos estavam suscetíveis à possessão externa.
Para o autor, os debates acerca da relação entre a alma e o corpo expan-
diram a discussão sobre a personalidade humana. Do lado tomista, ter-se-ia
afirmado “a unidade do sujeito” e entendido a alma como uma infusão de
Deus na matéria, e não uma dedução dela. De outro lado, os “neoagosti-
nianos” – em especial os franciscanos, mas também alguns dominicanos e
seculares – teriam defendido a ideia de uma pluralidade das formas subs-
tanciais do homem. Segundo Boureau: “a teoria pluralista colocava em evi-
dência uma estrutura federativa ou mesmo confederativa do sujeito” (p. 185).
Como notou Ostorero,4 admitia-se a possibilidade de em um mesmo corpo
coabitar a alma do indivíduo e um hóspede divino ou satânico. Essa fragili-
dade é que viria a ser explorada à época da caça às bruxas.
Finalmente, em seu último capítulo, Boureau se atém justamente ao
debate acerca da fronteira entre as possessões divina e demoníaca. Duas for-
mas de possessão divina são identificadas: a incorporação e a inhabitação. Nos
dois casos o que está em jogo é a abertura do sujeito para a própria salvação,
bem como para a ação direta da divindade. Tais casos seriam tratados pela
Igreja com cautela, porque “os inspirados ofereciam a imagem temível de um
individualismo religioso que tendia a apagar e mesmo rejeitar a mediação
da Igreja entre Deus e os homens” (p. 224); os partidários do livre-espírito
(acusados de autodeísmo e antinomismo), por exemplo, foram considerados
heréticos pelo próprio Clemente V. De toda forma, tal debate teria preparado
não apenas a possibilidade da divinização do sujeito, mas também a opor-
tunidade da evocação de anjos decaídos para dentro do possesso: “as novas
Idem, p. 4.
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Pandora místicas carregavam em seu seio uma temível caixa que não tardaria
a ser aberta. Os demônios dela escapariam” (p. 225).
Ao longo de seus capítulos, Boureau faz digressões que tornam a sua
obra valiosa não só para os estudiosos da Inquisição e da demonologia, mas
para todos aqueles que se interessam pelas temáticas relativas à história
medieval e à história moderna. Suas reflexões conciliam referenciais teó-
ricos clássicos com outros mais atuais (considerando o ano da publicação
original, 2004) e formam um arcabouço condizente com as teorias vigentes
sobre seus temas correlatos – as heresias, a feudalidade, a santidade e os
processos judiciários, por exemplo – e são capazes de conectá-los de forma
pertinente à questão da demonomancia, construindo uma tese geral bas-
tante coesa. Mesmo a introdução do livro faz uma digressão; esta, porém,
é menos profunda do que gostaríamos, pois ela cumpre o papel fulcral de
inserir a problemática no quadro dos conturbados acontecimentos coevos.
Pouco retomada posteriormente – visto que o autor está mais preocupado
com a história intelectual e a história do pensamento – ela acaba ficando
em segundo plano no desenvolvimento da tese. Em poucas palavras o autor
resume a sua contextualização:
O pacto satânico tornou-se perigosamente atual no século XIII por duas razões: uma
política, outra teológica. Desde o vasto movimento de expansão demográfica e de
concentração do habitat que caracterizou o início do primeiro milênio, as formas de
organização da vida coletiva multiplicaram-se e sobrepuseram-se (comunidades rurais
e urbanas, paróquias, senhorios, principados, reinos etc.). O estatuto complexo, de níveis
sobrepostos, da propriedade, no seio da organização feudal, multiplicou as situações
de pertencimentos múltiplos. A um período de concorrência conquistadora, que con-
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