Da Heresia À "Caça Às Bruxas" No Final Da Idade Média Ocidental

Fazer download em pdf ou txt
Fazer download em pdf ou txt
Você está na página 1de 10

rev. hist. (São Paulo), n.

176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

DA HERESIA À “CAÇA
ÀS BRUXAS” NO
FINAL DA IDADE
MÉDIA OCIDENTAL

Felipe Augusto Ribeiro*


Universidade Federal de Minas Gerais
Belo Horizonte – Minas Gerais – Brasil

João Guilherme Lisbôa Rangel**


Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro
Rio de Janeiro – Rio de Janeiro – Brasil

Resenha do livro: BOUREAU, Alain. Satã herético: o nascimento da demonologia na Europa


medieval (1280-1330). Tradução de Igor Salomão Teixeira e revisão técnica de
Néri de Barros Almeida. Campinas: Unicamp, 2016.

Alain Boureau é um autor versátil, capaz de transitar por temas diver-


sos com enorme erudição e de propor teses originais seja no campo restrito
de cada um deles, seja na articulação entre vários problemas e objetos de
pesquisa distintos. Em 2004, publicou Satan hérétique: naissance de la démonologie
dans l’Occident medieval (1280-1330). Paris: editora Odile Jacob, traduzido em

*
Doutorando em História e Culturas Políticas pela Universidade Federal de Minas Gerais – UFMG.
Pesquisador do Laboratório de Estudos Medievais – Leme. E-mail: [email protected].
**
Mestre em História pelo Departamento de História da Universidade Federal Rural do Rio de
Janeiro – UFFRJ. Pesquisador do Laboratório de Ensino e Pesquisa em Medievalística – Lepem.
E-mail: [email protected].

1
rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

2016 para o português pelo prof. dr. Igor Salomão Teixeira. A obra é, segundo
o próprio autor (que o afirma em seus agradecimentos), fruto de 15 anos de
pesquisa e de artigos publicados em periódicos diversos, que lhe propicia-
ram uma interlocução crítica com inúmeros outros estudiosos do tema da
Inquisição, do sabá (reunião de bruxos) e da “caça às bruxas” no alvorecer
da modernidade ocidental. Seja pelo estilo da escrita do autor, seja pelo bom
trabalho que fizeram o tradutor e a revisora técnica, esta edição brasileira
oferece uma leitura agradável e instigante e, o mais importante, uma tese
rica e inovadora, indispensável para aqueles que se dedicam não só aos
temas supracitados, mas também aos estudos sobre as heresias, as artes má-
gicas e as perseguições político-religiosas na Europa dos séculos XIII a XVI.
Inicialmente, no entanto, é preciso atentar para que, conquanto o título
da obra proponha um recorte espacial genérico (o “Ocidente”, no título ori-
ginal, ou a “Europa”, no título português), Boureau tem um escopo efetivo
menos abrangente: a Itália e a França, uma vez que os intelectuais e os tribu-
nais da Inquisição de que fala estão todos no domínio do Reino francês e da
Cúria papal que, àquela altura, residia em Avignon. Remissões a outras es-
pacialidades – notadamente a península Ibérica e a Germânia imperial – são
feitas, aqui e acolá, mas servem apenas para situar um ou outro argumento e
para contextualizar tanto a abordagem de alguma fonte documental quanto
a biografia de alguns dos intelectuais citados ao longo das análises.
Como propõe Martine Ostorero,1 a tese de Satã herético pode ser assim re-
sumida: haveria uma continuação entre a demonologia escolástica do final do
século XIII e a histeria da perseguição às bruxas a partir do século XV. Teria
sido a racionalidade escolástica radical a abrir novos e perigosos campos de
reflexão para a posteridade, incluindo a possibilidade de uma relação eficaz
e maligna entre homens e demônios. Em outras palavras, Boureau tenta de-
monstrar que a escolástica é que permitiu a “emergência do sabá”. A investiga-
ção do autor se coloca, assim, numa espécie de genealogia do tema em questão.
De fato, em sua introdução, Boureau diz querer superar as explicações
correntes sobre o fenômeno “louco” da “caça às bruxas”. Segundo ele, são
quatro os grandes esquemas explicativos para a problemática: 1) a bruxaria
derivaria de cultos ancestrais; 2) o sabá era uma invenção da própria In-
quisição, que a imputava aos condenados por meio de violência; 3) ele seria

Em resenha sobre a obra de Boureau: OSTORERO, Martine. Alain Boureau, Satan hérétique. Nais-
1

sance de la démonologie dans l’Occident médiéval (1280-1330). Médiévales [en ligne]. Vincennes: s. n.,
n. 48, printemps 2005. Disponível em: <http://medievales.revues.org/1087>. Acesso em: 18/02/2017.

2
rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

uma “formação de compromisso” a partir da qual os clérigos transcreviam


em termos cristãos esquemas antigos de comunicação com o além e atua-
lizavam as suas representações; 4) a crença nos demônios teria moldado a
cultura erudita europeia e marcado o Renascimento. Porém, para o autor,
nenhum desses esquemas explica de forma satisfatória o fenômeno. É por
isso que, ao longo de seu texto, Boureau enfrenta, de maneira crítica e con-
tributiva, obras consagradas nesse campo de estudos, como a célebre Storia
notturna: uma decifrazione del sabba, de Carlo Guinzburg, de 1988.
O argumento de partida do autor é que, até Tomás de Aquino (1225-
1274), os cristãos não teriam temido os demônios, pois os viam submetidos,
inescapavelmente, ao poder de Deus; seria possível, inclusive, controlá-los
por meio das artes mágicas (dentre elas a alquimia e a necromancia – a arte
de conjurar espíritos ou demônios) e, sob a égide da fé, torná-los “servos” e
colocá-los a serviço de causas justas e benignas. A mudança de mentalidade
e de sensibilidade em relação às forças demoníacas não teria sido produzida
por medos e histerias coletivas a partir do século seguinte – com o sofri-
mento de desgraças amplas e profundas, como a peste – mas, sim, pela ela-
boração de uma nova antropologia,2 de uma nova ciência sobre os homens
que, enfatizando as possibilidades negativas e destrutivas das relações e dos
atos humanos, transpôs para o plano espiritual as modalidades de engaja-
mento temporal entre as pessoas e tornou o diabo não mais um mero servo,
mas um agente positivo que, através do pacto com um homem, ganhava a
capacidade de se fazer presente no mundo e, portanto, de desviar os homens
da fé e de conduzi-los a ações malignas (assim como qualquer outro sujeito
com o qual um homem pactuava). A partir daí é que se acreditou ser neces-
sário perseguir aqueles que até então praticavam livremente a necromancia,
porque os pactos que eles estabeleciam com os demônios passaram a ser
vistos como ameaças à cristandade.
Podemos dizer que Satã herético se divide em duas partes: na primeira,
que compreende os capítulos 1 a 4, Boureau se debruça sobre as múltiplas
bases ideológicas e culturais que permitiram a formação de uma ciência de-
monológica no século XIV: respectivamente a base jurídica, a sacramental, a
pactual e, por fim, a escatológica. Todavia, tais arcabouços não se encontram,

O próprio Igor Teixeira trata especificamente deste ponto em um artigo: TEIXEIRA, Igor Sa-
2

lomão. Antropologia histórica e antropologia escolástica na obra de Alain Boureau. Bulletin du


centre d’études médiévales d’Auxerre [en ligne], n. 18.1, Auxerre: Bucema, 2014. Disponível em: <http://
cem.revues.org/13439>. Acesso em: 18/02/2017. DOI: 10.4000/cem.13439.

3
rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

no panorama global da tese, separados, portanto, a análise não se subdivide


em segmentos estáticos, tornando a obra fragmentária. Todos os aspectos
tratados estão atravessados tanto pela filosofia quanto pela teologia escolás-
tica e partem, grosso modo, do mesmo corpus documental, permitindo que o
leitor acompanhe o raciocínio do autor sem grandes dificuldades. Em suma,
o fio condutor dessa primeira metade do livro é a problemática de como,
através de quais mecanismos e manipulando quais elementos da vida políti-
ca e religiosa baixo-medieval, o papado e os intelectuais que compunham a
sua corte vincularam a necromancia à heresia e viabilizaram a instrumenta-
lização do aparato inquisitorial para a perseguição dos bruxos e das bruxas
a partir do século seguinte, o século XV.
Nesse sentido, dois outros argumentos expostos pelo autor nos parecem
cruciais. Primeiro: a heresia teria sido o conceito-chave que serviu de ponte
para conduzir a necromancia à alçada da Inquisição e permitir a criminali-
zação das artes mágicas e, segundo: a heresia (e, por conseguinte, a própria
necromancia) teria deixado de ser um delito de fé para se tornar um delito
factual, concernente às ações e não mais às opiniões dos indivíduos. Aparece
com enorme importância, então, a ideia de factum hereticale que constituía a
prova material a subsidiar a Inquisição, a demonstração empírica daquilo
que, de outra maneira, não se podia elucidar: o sabá que, obviamente, acon-
tecia sempre em segredo e permanecia protegido pelas redes de silêncio e
cumplicidade dos bruxos, oculto nas consciências indevassáveis dos indi-
víduos. Dito de outra forma, foi a mudança na concepção sobre a heresia, o
enfoque na sua dimensão aparente, prática, fenomenológica, que permitiu a
condenação do sabá, a despeito da crença do alquimista ou mago na força
demoníaca. Afinal, no reduto da fé, era preciso levar em conta a reputação,
a motivação e a intenção do necromante, o que podia permitir ao tribunal
considerá-lo inocente ou ingênuo, especialmente se lembrarmos que boa
parte dos necromantes era composta de clérigos regulares (como monges e
abades) ou seculares (como cônegos e bispos), que faziam das artes mágicas
partes integrantes de seus ofícios, das liturgias e da própria cura animarum.
A nosso ver, tais argumentos trespassam conjuntamente a primeira
parte da obra de Boureau. Em seu primeiro capítulo, o autor trata da vin-
culação entre heresia e magia no seu âmbito jurídico e processual. Boureau
tem sucesso em evidenciar o “esforço contínuo” e pessoal do papa João XXII
(1249-1334, na sé de 1316 até a data de sua morte), mediante bulas e consul-
tas teológico-jurídicas a membros de sua cúria, em tipificar a necromancia
como heresia e em convencer os inquisidores a processá-las enquanto tal.
Boureau ressalta que “(...) a tarefa dos inquisidores dependia antes da teolo-

4
rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

gia que do direito” (p. 32) porque tradicionalmente não se via a necromancia
como delito; foi necessário antes, portanto, forjar uma nova concepção sobre
ela, problema que residia no campo teológico. A teologia norteava o direito
e o esforço de João XXII consistiu justamente em uma inovação teológica
que pudesse engendrar um novo direito, capaz de enquadrar os necroman-
tes como hereges e torná-los condenáveis pelos tribunais régios e papais.
Ao mesmo tempo, tratava-se também de um desafio epistemológico e de
outro metodológico: era preciso, como dissemos, deslocar o foco da opi-
nião para a ação, da fé para o comportamento, e criar meios de investigação
que superassem os morosos e truncados trâmites dos julgamentos. Ambas
as estratégias convergiam para a mesma finalidade: livrar a Inquisição das
obstruções que o foro da consciência individual impunha e dar-lhe o poder
de processar sumariamente os suspeitos de necromancia. A urgência dos
processos escancarava o medo do segredo, situado na raiz da obsessão pelo
complô que viria a ser atrelado ao sabá.
No segundo capítulo, Boureau trata da dimensão sacramental que se
passou a atribuir à necromancia. Ela reforçava a imputação de heresia na
medida em que apresentava a necromancia como uma perversão do sacra-
mento divino, não tanto porque se movia por uma crença desviante – isto
é, a crença em Satã ao invés da crença em Deus (já destacamos: a crença
desviante era uma questão difícil de provar) –, mas porque o próprio ato
sacramental que selava o pacto demoníaco implicava a submissão voluntá-
ria a um outro poder, que não aquele aceitável, o divino. O sacramento não
tinha causa em si mesmo – por isso o problema não era a sua apropriação
pelos necromantes –, mas usá-lo para invocar o diabo era colocar Satã no
lugar de Deus e romper o pacto com este por uma nova aliança com aquele.
O necromante aceitava espontaneamente, assim, a soberania do antagonista
de Deus. E se o diabo era um ser naturalmente mau, qualquer pacto com ele
só poderia ter fins malignos.
No capítulo 3, Boureau lida justamente com a invenção de um poder
positivo, eficaz, para o pacto demoníaco. Frisa que “a força constitutiva dos
pactos tinha, nas sociedades da Idade Média central, uma ampla pertinência
da qual Satã podia lançar mão” (p. 83) e lembra que Tomás de Aquino, se-
guindo a doutrina voluntarista de Agostinho de Hipona (354-430) – segundo
a qual o livre-arbítrio consistia não na liberdade plena, mas na capacidade
de escolher o bem ao invés do mal –, havia aceitado a possibilidade desse
tipo de pacto e o condenado, simplesmente porque o próprio Deus havia

5
rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

condenado Satã. Ostorero3 pontua a importância da distinção que o autor


faz entre pacto forte e pacto fraco. O pacto forte, mais poderoso, seria o enga-
jamento legítimo, aceito, porque inserido na lógica sacramental (através de
ritos como o do juramento) e partícipe da autoridade divina; ele não podia
ser quebrado senão por um dissenso voluntário, movido por más intenções,
constituindo crime e ameaça à ordem social. Já o pacto fraco, menos podero-
so, seria aquele feito fora ou em afronta a tal ordem: ele teria a sua eficácia,
mas não partilharia do poder divino – ao contrário: estaria sujeito às san-
ções dos poderes eclesiástico e régio, oriundos da autoridade divina – e po-
deria (ou deveria) ser quebrado. O pacto forte produziria o bem e a salvação;
o fraco produziria a morte e a danação e precisaria ser, por isso, investigado
e combatido, dissolvido à força, afinal, embora fraco, ele permitiria ao necro-
mante trazer Satã e o mal para o mundo dos homens. Essa lógica reforçava o
caráter sectário e privativo dos pactos demoníacos, opondo-os aos pactos le-
gítimos que tinham por característica a publicidade. Destarte, a argumenta-
ção do autor é arguta em mostrar que, assim como a heresia, o problema da
necromancia era questão de desobediência, de dissidência, não de crença ou
doutrina desviante: “o pacto, aqui, é assimilado à traição feudal, que consiste
em requerer por um acordo explícito a ajuda do inimigo de seu senhor. Essa
concepção banal e externa do pacto, como modo de negociação entre pode-
res rivais a um nível vassálico, era muito difundida no século XIII” (p. 93).
No capítulo 4, o autor examina as ações dos agentes diabólicos. Como
anunciado na introdução do livro, mostra-se aqui que, até o século XIII, a
teologia não havia dado muita atenção aos demônios, mas que tal situação
muda a partir do tratado tomista De malo, datado provavelmente de 1272. Os
doze artigos presentes no tratado teriam renovado as considerações esparsas
sobre o tema e formado um corpus doutrinário amplo e original. Boureau
sustenta que o De malo não representaria, contudo, uma síntese de diversas
opinões teológicas organizadas pelo dominicano, mas um posicionamen-
to particular que rapidamente seria atacado por alguns franciscanos como
Guilherme de La Mare, em 1277, e Pedro de João Olivi, no início dos anos
1280. As polêmicas giraram ao redor da natureza de Satã e de seus acólitos,
bem como seus poderes e atuações. O autor indica que, enquanto Tomás
separava o pecado de Satã do pecado dos homens (fixando um limite claro
entre os demônios e a humanidade, uma vez que o primeiro pecaria por sua

OSTORERO, Martine. Alain Boureau, Satan hérétique, op. cit., 2005, p. 2.


3

6
rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

vontade, ao passo que o segundo o faria por sua natureza), opositores como
Pedro Olivi destacavam que “o anjo não difere necessariamente do homem:
nos dois casos, é o querer próprio da criatura que o dana ou o salva”; Bou-
reau completa: “inversamente em relação ao anjo de Tomás, o anjo de Pedro
Olivi é muito mais próximo do homem que de Deus” (p. 125). Em Tomás,
portanto, os demônios eram impermeáveis à história (p. 130), enquanto que,
em Pedro Olivi, eles a recuperavam. Assim, paradoxalmente, a teologia to-
mista, por um lado, acorrentava o diabo, por outro, teria sistematizado um
saber acerca do demônio que abriria espaço para a reflexão demonológica
por meio da qual os franciscanos teriam desacorrentado o diabo e seus se-
guidores, aproximando-os dos homens.
No capítulo 5, por meio dos processos de canonização do início do
século XIV, ocorridos sob os pontificados de Clemente V e João XXII, Bou-
reau analisa a transformação em torno da demonologia. O autor observa
duas tendências no tratamento dos possessos: uma tratava a maioria dos
casos como loucura, outra invertia a proporção e considerava a maior parte
das vítimas como endemoninhados. Para o autor, tal discrepância indicia a
naturalização e a medicalização da loucura no século XIII. A partir de então,
muitos casos em que as testemunhas alegavam possessão passaram a ser
encarados como loucura; a centralidade da taumaturgia cedia lugar, então, à
centralidade da virtude. Contudo, propõe-se que os casos de possessão de-
moníaca não teriam desaparecido, mas tomado novos contornos. Em linhas
gerais, Boureau sugere que a permanência das menções ao exorcismo não
sinaliza meros arcaísmos em face de uma onda naturalista que medicalizava
a loucura; ao contrário, a nova sensibilidade sobre a presença demoníaca en-
tre os fiéis teria criado um verdadeiro embaraço para a Cúria pontifícia, para
além do ceticismo médico, obrigando-a a encarar o problema da possessão.
A partir daí, foram sistematizadas novas formas de possessão que associa-
vam Satã às aparições, aos hereges e aos mortos sem confissão, no mesmo
momento em que João XXII estava interessado em redefinir a relação entre
magos, hereges e demônios. Nesse sentido, a figura do louco não esgotaria
a complexidade dos quadros e se constituiria apenas como uma baliza para
avaliar a suscetibilidade dos indivíduos à possessão.
Graças a essa nova antropologia, derivada tanto do saber naturalista
quanto da reflexão escolástica, a constatação da presença invasiva do de-
mônio teria assumido, no século XIII, um novo sentido. Exploravam-se as
forças e as fraquezas da natureza humana. Ao inaugurar a reflexão siste-
mática acerca de Satã e de seus demônios, o saber escolástico se abriu para
uma investigação dos próprios limites e ações humanas; em outras palavras,

7
rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

a partir de uma reflexão sobre o diabo e sobre sua ação entre os homens,
refletiu-se acerca da própria natureza humana.
No capítulo 6, a fim de melhor compreender as “fendas abertas no edifí-
cio da personalidade humana” (p. 169), Boureau investiga a figura do sonâm-
bulo. Essa personagem é inserida por Clemente V (1264-1314, papa a partir de
1305), à época das Constituições clementinas, no cânone Si furiosus, que apresen-
tava uma novidade: “o sono, como a loucura, a infância ou a legítima defesa,
constitui então fator de irresponsabilidade penal” (p. 170). A inimputabilida-
de penal do sonâmbulo evocava certa natureza pura para o ser humano, que
era reduzido a um estado de passividade, “como um simples receptáculo de
influências” (p. 172). Nesse sentido, o sonâmbulo se aproximava da figura do
endemoninhado, visto que ambos estavam suscetíveis à possessão externa.
Para o autor, os debates acerca da relação entre a alma e o corpo expan-
diram a discussão sobre a personalidade humana. Do lado tomista, ter-se-ia
afirmado “a unidade do sujeito” e entendido a alma como uma infusão de
Deus na matéria, e não uma dedução dela. De outro lado, os “neoagosti-
nianos” – em especial os franciscanos, mas também alguns dominicanos e
seculares – teriam defendido a ideia de uma pluralidade das formas subs-
tanciais do homem. Segundo Boureau: “a teoria pluralista colocava em evi-
dência uma estrutura federativa ou mesmo confederativa do sujeito” (p. 185).
Como notou Ostorero,4 admitia-se a possibilidade de em um mesmo corpo
coabitar a alma do indivíduo e um hóspede divino ou satânico. Essa fragili-
dade é que viria a ser explorada à época da caça às bruxas.
Finalmente, em seu último capítulo, Boureau se atém justamente ao
debate acerca da fronteira entre as possessões divina e demoníaca. Duas for-
mas de possessão divina são identificadas: a incorporação e a inhabitação. Nos
dois casos o que está em jogo é a abertura do sujeito para a própria salvação,
bem como para a ação direta da divindade. Tais casos seriam tratados pela
Igreja com cautela, porque “os inspirados ofereciam a imagem temível de um
individualismo religioso que tendia a apagar e mesmo rejeitar a mediação
da Igreja entre Deus e os homens” (p. 224); os partidários do livre-espírito
(acusados de autodeísmo e antinomismo), por exemplo, foram considerados
heréticos pelo próprio Clemente V. De toda forma, tal debate teria preparado
não apenas a possibilidade da divinização do sujeito, mas também a opor-
tunidade da evocação de anjos decaídos para dentro do possesso: “as novas

Idem, p. 4.
4

8
rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

Pandora místicas carregavam em seu seio uma temível caixa que não tardaria
a ser aberta. Os demônios dela escapariam” (p. 225).
Ao longo de seus capítulos, Boureau faz digressões que tornam a sua
obra valiosa não só para os estudiosos da Inquisição e da demonologia, mas
para todos aqueles que se interessam pelas temáticas relativas à história
medieval e à história moderna. Suas reflexões conciliam referenciais teó-
ricos clássicos com outros mais atuais (considerando o ano da publicação
original, 2004) e formam um arcabouço condizente com as teorias vigentes
sobre seus temas correlatos – as heresias, a feudalidade, a santidade e os
processos judiciários, por exemplo – e são capazes de conectá-los de forma
pertinente à questão da demonomancia, construindo uma tese geral bas-
tante coesa. Mesmo a introdução do livro faz uma digressão; esta, porém,
é menos profunda do que gostaríamos, pois ela cumpre o papel fulcral de
inserir a problemática no quadro dos conturbados acontecimentos coevos.
Pouco retomada posteriormente – visto que o autor está mais preocupado
com a história intelectual e a história do pensamento – ela acaba ficando
em segundo plano no desenvolvimento da tese. Em poucas palavras o autor
resume a sua contextualização:

O período da “virada demoníaca” (1280-1330) coincide com um momento de viva


tensão entre os poderes espiritual e secular, entre o papado e as monarquias. Os ele-
mentos de uma perseguição pública dos adoradores de demônios podem ser facilmente
identificados nesse contexto de violência institucional e ideológica, que culmina com
a captura do papa Bonifácio VIII pelas tropas de Filipe, o Belo, em Agnani em 1303. A
presença de Satã ao lado de uma ou de outra parte dá lugar a procedimentos jurídicos
especializados e a grandes affaires (p. 19).

A superficialidade do tratamento dado a essa dimensão acaba deixando


de lado as tensões e, especialmente, as colaborações que o poder papal em
Avignon teceu com o poder régio francês, as quais encontraram na Inquisi-
ção um ponto de convergência, uma vez que a perseguição aos hereges era
não apenas um negócio de domínio e submissão, mas também de conquista
territorial. Nas palavras do próprio autor,

O pacto satânico tornou-se perigosamente atual no século XIII por duas razões: uma
política, outra teológica. Desde o vasto movimento de expansão demográfica e de
concentração do habitat que caracterizou o início do primeiro milênio, as formas de
organização da vida coletiva multiplicaram-se e sobrepuseram-se (comunidades rurais
e urbanas, paróquias, senhorios, principados, reinos etc.). O estatuto complexo, de níveis
sobrepostos, da propriedade, no seio da organização feudal, multiplicou as situações
de pertencimentos múltiplos. A um período de concorrência conquistadora, que con-

9
rev. hist. (São Paulo), n.176, r00417, 2017 Felipe Augusto Ribeiro & João Guilherme Lisbôa Rangel
http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-9141.rh.2017.127324 Da heresia à “caça às bruxas” no final da Idade Média ocidental

duziu ao esgotamento e ao abandono progressivo de terrenos e das possibilidades de


expansão, sucede, no século XIII, um período de confrontos, tensões entre as diversas
formas de organização. As soberanias tentavam se afirmar sem meios institucionais e
ideológicos para fazê-lo (p. 20).

Tal argumento só será retomado, rapidamente, no curto epílogo do livro,


quando Boureau lembra que o mapeamento dos assentamentos heréticos e
das presenças de bruxas no século XIV indicia certo projeto de conquista de
áreas, próximas aos Alpes, ainda fora das esferas de poder dos papas e dos
reis franceses. Diante das experiências fracassadas de conversão dos judeus,
dos muçulmanos e dos valdenses é que os teólogos e juristas passaram a
conceber a sua perseguição e extermínio.
Além disso, uma grande motivação para o nascimento da demonolo-
gia no século XIV, que Boureau evoca logo em seu primeiro capítulo, fica
infelizmente obliterada nos capítulos posteriores: o medo e a obsessão de
homens como João XXII com relação às possibilidades de estender ou de
encurtar a vida humana por meio da magia e da necromancia. Ela nos su-
gere que todo o processo histórico em questão não era apenas questão de
mudanças mentais, ideológicas e culturais, mas também de estratégias de
proteção e contra-ataque em disputas políticas. O próprio autor inicialmente
lembra: João XXII, assim como todos os papas que ocuparam a sé de Avig-
non, foram eleitos em clima de intensas disputas que os fizeram temer pela
segurança de seus mandatos e pelas suas próprias vidas. Se, enquanto car-
deais, eles recorreram à magia e à alquimia para defender suas posições e
seus interesses, após eleitos eles temeram que seus adversários, dentro e fora
da cúria, empregassem os mesmos recursos contra eles, no que podemos ver,
então, certa tentativa de controle dessas artes, não apenas uma vontade de
exorcizá-las e suprimi-las.
A presente tradução conta com um prefácio escrito pela própria reviso-
ra técnica da edição, Néri de Barros Almeida. Em sucintas palavras, Almeida
apresenta um excelente esboço do livro; todavia, a autora transcende os
limites gerais atribuídos a um prefácio, conectando a obra de Boureau à pró-
pria essência do fazer historiográfico. Por isso, recomendamos que o leitor
o leia após ter percorrido os capítulos do livro, pois a revisora oferece uma
chave de leitura que amplia a compreensão de um tema que, malgrado a
antiguidade, permanece contemporâneo.

Recebido: 20/02/2017 – Aprovado: 08/06/2017

10

Você também pode gostar