Fides v16 n2
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Fides v16 n2
Semestral.
ISSN 1517-5863
CDD 291.2
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Artigos
Certo tipo ou um tipo certo de ambiguidade? Uma exegese de Juízes 19
Danillo Augusto Santos.................................................................................................................. 9
Resenhas
Gramática prática de grego (Esequias Soares)
João Paulo Thomaz de Aquino...................................................................................................... 163
resumo
Este artigo é uma exegese que busca entender como interpretar ambigui-
dades bíblicas, especialmente em textos narrativos do Antigo Testamento. O
autor objetiva mostrar como e por que o texto de Juízes 19 tem sido grande-
mente debatido em círculos acadêmicos, examinando diferentes ambiguidades
encontradas nessa narrativa. Há várias omissões do narrador de Juízes 19 que
podem ser confusas para o leitor do século 21: uma imprecisão subjetiva,
o anonimato dos personagens e um aparente silêncio moral. Desse modo, o
autor procura mostrar em seguida que, ao se interpretar o texto de Juízes 19
levando-se em conta os princípios de seletividade narrativa e dos contextos
próximo e distante, as ambiguidades e omissões se encaixam perfeitamente
no significado pretendido em um texto que fala principalmente da ausência
de um rei para Israel.
palavras-chave
Exegese bíblica; Narrativa; Ambiguidade Textual; Seletividade Objetiva.
introdução
O texto de Juízes 19 tem sido grandemente debatido em círculos acadê-
micos. Perguntas como: Qual foi, na verdade, o pecado de Gibeá (se realmente
houve um pecado)? De quem é a culpa? Do levita? Da concubina? Do sogro?
* O autor é formado em Literatura Inglesa e Línguas Bíblicas pelo The Master’s College, em
Santa Clarita, Califórnia. Atualmente cursa o seu M. Div. em Exegese Bíblica no Seminário Teológico
Reformado, em Jackson, Mississipi. É responsável pelo ministério com internacionais na Igreja Presbi-
teriana Pear Orchard, em Ridgeland, Mississipi.
9
Danillo Augusto Santos, Certo Tipo ou um Tipo Certo de Ambiguidade?
1 McCANN, J. Clinton. Judges. Louisville: John Knox, 2002, p. 128 oferece um bom resumo
das variadas questões que concernem ao capítulo.
2 Todas citações das Escrituras são tiradas da versão Almeida Revista e Atualizada, ©1993 Socie-
dade Bíblica do Brasil, exceto quando designado de outra maneira.
3 David Pechansky escreveu um artigo sobre Juízes 19 no qual ele desarma toda e qualquer leitura
do texto, incluindo sua própria leitura, ignorando completamente qualquer possibilidade de alcançar a
intenção autorial. Ele termina seu artigo com uma sentença pessimista: “O discurso intertextual [pelo qual
ele quer dizer uma interação entre texto e leitor] me desarmou e afastou qualquer confiança em minha
abilidade de ler um texto, ou, por extensão, de mudar a sociedade. Que nós na academia continuamos a
fazer as duas coisas é um tributo à nossa tenacidade, ou à nossa estupidez, ou a ambas”. PECHANSKY,
David. Staying the night: intertextuality in Genesis and Judges. In: FEWELL, Danna Nolan (Org.).
Reading between texts: intertextuality and the Hebrew Bible. Louisville: John Knox, 1992, p. 86.
10
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 9-26
1. ambiguidades textuais
A primeira pergunta feita pela maioria dos intérpretes de Juízes 19
tem dois aspectos: 1) quem é a vg<l,Pi (traduzido por “concubina”) e 2) o que
significa o fato de que essa mulher wyl'[' hn<z>Tiw: (traduzido por “aborreceu-se
dele”)? Esta é a única vez em que a interpretação de hn;z" é questionada, sendo
que no resto das Escrituras a palavra é sempre traduzida no reino semântico
da imoralidade sexual. Talvez fosse de esperar que essa pergunta surgisse
de críticas feministas,4 mas não é esse o caso. Esse debate surge por causa de
variações na LXX. A resposta a essa pergunta determina quem é o culpado
ou a culpada, e, assim, pode lançar luz em aspectos posteriores na narrativa,
desde uma explicação da hospitalidade exagerada do sogro do levita até uma
explicação do estado mental do levita nos versículos 27-30.
A interpretação mais comum tem sido a de que vg<l,Pi5 significa uma “es-
posa de segunda categoria”.6 Assim, a palavra “marido”, referente ao levita,
e a palavra “sogro” fazem mais sentido do que se ela fosse apenas uma con-
cubina. Todavia, por que uma esposa, mesmo de segunda categoria, voltaria
para a casa de seu pai e permaneceria lá por quatro meses antes de o levita ir
buscá-la? Se eles tivessem problemas conjugais, não teria o pai: (1) se sentido
envergonhado por ter abrigado sua filha por quatro meses, ou (2) rejeitado o
levita para proteger sua filha? Também, não teria ela um mínimo de hesitação
ao recebr o levita na casa do pai? Contudo, “ela o fez entrar na casa de seu pai.
Este, quando o viu, saiu alegre a recebê-lo” (19.3).
Percebendo essa disparidade entre a identidade da mulher e sua forma
de agir, bem como as ações do levita, Mieke Bal atribui os fatos da narrativa
a uma divergência cultural. Ela argumenta que o conceito de casamento para
aquele homem é “virilocal”, no qual o homem se casa com uma mulher e ela vai
morar em sua casa, enquanto que o da mulher é “patrilocal”, no qual ela se casa
e ambos se mudam para a casa do pai da mulher.7 Bal então argumenta que “a
oposição entre o casamento patrilocal e virilocal é o conflito que gera a linha
4 Ver BAL, Mieke. Death & dissymetry: the politics of coherence in the Book of Judges. Chicago:
The University of Chicago Press, 1988, p. 80-84; YEE, Gale. Ideological criticism: Judges 17-21 and
the dismembered body. In: YEE, Gale A. (Org.). Judges & method: new approaches in Biblical studies.
Minneapolis: Fortress Press, 1995, p. 161-163; e ACKERMAN, Susan. Warrior, dancer, seductress,
queen: women in Judges and Biblical Israel. New York: Doubleday, 1998, p. 235-238, que tratam essas
palavras desde uma perspectiva feminista.
5 Independentemente do sentido, utilizarei a palavra “concubina” para referir-me à vg<lP
, i por falta
de um termo melhor.
6 “Uma esposa livre de uma posição mais baixa”, de acordo com EPSTEIN, Louis M. The insti-
tution of concubinage among the Jews. In: Proceedings of the American Academy for Jewish Research,
6 (1934-1935): 153-188, p. 161.
7 BAL, Death & dissymetry, p. 86.
11
Danillo Augusto Santos, Certo Tipo ou um Tipo Certo de Ambiguidade?
narrativa”.8 O problema com este argumento é que ele pressupõe uma tradução
alternativa da palavra hn;z". Sua tese é que a palavra “não possui necessaria-
mente esse sentido particular, negativo e sexual”,9 e que então o sentido “está
mais firmemente ancorado na transição entre duas instituições de casamento,
a saber, a transição entre um casamento patrilocal e virilocal”.10 Embora esse
argumento faça “sentido” para as ações encontradas no texto, ele é fraco em
termos contextuais (como será demonstrado adiante).
De que modo deve-se traduzir wyl'[' hn<z>Tiw:? Como foi visto nos argumen-
tos de Bal, essa é uma grande questão interpretativa. Outros dizem que, nessa
ocorrência da palavra, hn;z" significa “irar-se contra”.11 Se for esse o caso, os
elementos previamente díspares de 19.3-10 se encaixariam com mais facilidade.
O maior problema com essa tradução é que ela é singular.12 Embora possa ser
baseada na variante da Septuaginta “wvrgi,sqh auvtw/|”, não há nenhuma outra
ocorrência da mesma nos documentos aceitos. Seria mais fácil acreditar que
os tradutores da Septuaginta tentaram “reparar” um erro nos seus manuscritos
do que aceitar que esse caso isolado reflete uma tradição separada do Texto
Massorético.
A tradução padrão da raiz hebraica hnz – “prostituir-se contra” – parece
então ser a melhor e também se harmoniza com todas as outras ocorrências
nas Escrituras. “Cometer adultério” também se encaixa na gama semântica do
verbo no Qal Yiqtol.13 Porém, essa tradução ainda oferece alguns problemas.
Por exemplo: (1) por que o homem, depois de ser traído, desejaria HB'li-l[;
rBed:l. (falar ao coração dela)? e (2) por que o pai da mulher a aceita na sua
casa se ela o tinha envergonhado com seu adultério? O procedimento normal
para o adultério seria a pena de morte (Lv 20.10). Em outras palavras, como
alguém ofendido, o que incitaria o levita a HB'li-l[; rBed:l.? Além disso, em uma
sociedade fundamentada na vergonha, por que o pai de uma adúltera a aceitaria
de volta em sua casa?
Pamela T. Reis propõe uma solução que, de acordo com seus argumentos,
mantém a unidade semântica da palavra, enquanto, ao mesmo tempo, permite ao
“leitor entender por que a concubina deixa seu marido, por que seu pai a recebe
8 Ibid., p. 86.
9 Ibid., p. 87.
10 Ibid., p. 88.
11 NIDITCH, Susan. The “Sodomite” theme in Judges 19-20: family community, and social
disintegration. Catholic Biblical Quarterly 44 (1982), p. 366, e BOLING, Robert. Judges. New York:
Doubleday, 1975, p. 271.
12
KOHLER, Ludwig; Baumgartner, Walter. The Hebrew and Aramaic lexicon of the Old
Testament. Boston: Brill, 2001, p. 275 registra este como o único uso do verbo na acepção de “sentir
repugnância contra”.
13 Ibid., p. 275 diz que “fornicar” é o significado principal.
12
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 9-26
e por que o levita espera quatro meses antes de tentar recuperá-la”.14 Ela sugere
que hn;z" seguido pela preposição l[; pode ser traduzido como “ela prostitui-se
por ele”. Embora o argumento esteja em harmonia com a depravação de Israel
naqueles tempos, linguisticamente falando ele depende inteiramente de uma
preposição que, como Reis mesmo admite, “é uma preposição extremamente
comum na Bíblia e tem vários significados diferentes”.15
A mulher não é a única questionada nesse texto. O homem e suas moti-
vações também são incongruentes. Se ele foi atrás de sua vg<l,Pi para “falar-lhe
ao coração”, então como ele pode dormir tão tranquilamente enquanto ela é
violentada e abusada do lado de fora da casa (19.25-27)? Como é que ele fala
tão friamente a ela quando ele a encontra morta ou morrendo à porta pela
manhã (19.28)?
Há muito mais que se pode dizer a respeito das diferentes interpretações
oferecidas para explicar quem é o homem ou a mulher, ou para determinar as
questões de culpabilidade. A principal razão da ampla variedade de interpreta-
ções é que parece inviável ao leitor que um levita fosse atrás de sua esposa de
segunda categoria para trazê-la de volta, depois que se ela se mostrou infiel a
ele. Além disso, a maneira pela qual o genro (ou até mesmo a filha) é tratado
pelo sogro também parece estar, de alguma forma, fora de lugar. O caráter se-
letivo da narrativa não explica porque o levita troca de opinião tão fácilmente,
e nem porque sua vg<l,Pi o recebe na casa do pai tão abertamente. Além do uso
da palavra hn;z", o narrador não faz nenhum comentário explícito sobre o estado
moral dos personagens principais, mas transmite uma história ambígua na qual
o estado moral dos personagens fica somente implícito. Nas palavras de Meir
Steinberg: “A retenção de informações pelo narrador abre lacunas, lacunas
produzem descontinuidade e descontinuidade produz ambiguidade”.16
Não obstante, essas questões se referem apenas aos três primeiros versícu-
los. A ambiguidade do texto de Juízes 19 continua ao longo de todo o capítulo.
Na verdade, a seção seguinte (19.3-10) apresenta um problema em si mesma.
Essa seção se aproxima da seção de Gibeá (19.22-30) no número de palavras.17
Porém, à primeira vista, o relato de Belém não parece ter nenhum outro signi-
ficado a não ser o de servir como um prefácio ao relato de Gibeá. Ele apenas
dá ao leitor a razão pela qual o levita não pôde chegar a Ramá ou até a região
14 REIS, Pamela Tamarkin. The levite’s concubine: new light on a dark story. Scandinavian Journal
of the Old Testament 20 no. 1 (2006), p. 129.
15 Ibid., p. 130.
16 STERNBERG, Meir. The poetics of Biblical narrative: ideological literature and the drama of
reading. Bloomington: Indiana University Press, 1987, p. 236.
17 O relato de Belém contém 141 palavras individuais ou 129 palavras agrupadas (contando-se
palavras unidas pelo maqaf como uma “palavra agrupada”). O relato de Gibeá tem 180 palavras ou
149 palavras agrupadas.
13
Danillo Augusto Santos, Certo Tipo ou um Tipo Certo de Ambiguidade?
montanhosa de Efraim (supõe-se que teria sido possível para o levita chegar
ao seu destino se ele tivese saído da casa de seu sogro mais cedo). Por que
então há um relato tão longo da hospitalidade exagerada do sogro do levita?
A maioria dos comentaristas faz pouco caso deste relato, e o considera
um simples prefácio.18 Às vezes eles até reconhecem que a hospitalidade de
Belém serve como um contraste com a falta de hospitalidade dos homents
de Gibeá: de um lado, vemos Belém, uma cidade na qual o levita recebe
hospitalidade abundante, enquanto que, em Gibeá, este homem é recebido
de maneira completamente oposta.19 O paralelo então é evidente, mas, para
aqueles que o percebem, o relato tem pouco mais a oferecer do que um realce
da perversidade dos homens de Gibeá.
Admitindo-se que o propósito do “contraste” esteja presente no texto,
isto ainda não satisfaz a ênfase peculiar que o narrador dá a Juízes 19.3-10.20
Nesse ponto, a narração foi extremamente sucinta quando descreveu o rela-
cionamento entre o levita e sua vg<l,Pi; aqui, todavia, o narrador não somente
se concentra na hospitalidade do sogro, mas em sua insistência. Servindo
apenas como contraste, o relato não realçaria tanto a insistência do sogro,
mas convergiria talvez na pureza (para contrastar com a impureza de Gibeá),
e talvez até mencionaria hw"hy>, contra quem os homens de Gibeá cometeram
suas abomináveis atrocidades. Dessa forma, a perícope tem dois pontos focais:
hospitalidade e insistência.
Continuando a análise, e tendo em mente esse tema, o verbo qz:x/Y<w: (tra-
duzido por “deteve” em 19.4) aparenta estar um pouco deslocado – fora de
seu “habitat natural”. As duas outras ocorrências do verbo no mesmo texto
são traduzidas por “pegar” (v. 25 e 29), não estando associado com atos de
violência extrema nas duas ocorrências. Uma tradução mais adequada seria
“agarrar”. Além disso, o fato de esse verbo ser usado em 19.4 dá certo destaque
ao seu uso violento em uma narrativa de paz. Embora não faça sentido dizer
que o sogro prevalece sobre seu genro fisicamente ou de modo violento, o
18 “Exatamente o que está acontecendo aqui? A hospitalidade do pai parece comicamente exagera-
da, mas por quê?... Não parece haver uma resposta definitiva para essas perguntas”. McCANN, Judges,
p. 128. “Não só parece que são fornecidos detalhes desnecessários, mas também que é contada uma
história desnecessária. A oferta de hospitalidade generosa a um hóspede que quer sair parece ser uma
indulgência do narrador”. RYAN, Roger. Judges. Sheffield: Sheffield Phoenix Press, 2007, p. 145.
19 “É admissível alguém argumentar que as cenas de hospitalidade generosa na casa dos sogros
são relevantes no sentido de que a demosntração de hospitalidade ou a falta da mesma constitui um tema
menor que serve para destacar ainda mais o caos e a impiedade daquele período”. WONG, Gregory T.
K. Compositional strategy of the Book of Judges: an inductive, rhetorical study. Leiden: Koninklijke
Brill, 2006, p. 108.
20 Satterthwaite, Philip. “No King in Israel”: narrative criticism and Judges 17-21. Tyndale
Bulletin 44 (1993): 75-88, p. 81. Satterthwaite sustenta que há um trecho narrativo fora do comum re-
partido ao longo do evento descrito, mas o atribui a um presságio em suspense.
14
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 9-26
... para todos os propósitos e intenções, o episódio poderia ter começado com
algo do tipo: “Havia um levita que viajou com sua concubina e seu servo de
Belém de Judá até a região montanhosa de Efraim. Quando chegaram perto
de Jebus, o dia estava quase terminando...”, e nenhum aspecto do significado
do enredo geral da narrativa como um todo teria se perdido.23
21 ALTER, Robert. The art of Biblical narrative. New York: Basic Books, 1981, p. 93 define
Leitwort como “uma palavra ou uma raiz que reaparece significativamente em um texto, em uma série de
textos ou em uma configuração de textos: seguindo-se essas repetições, é possível decifrar ou apreender
um sentido do texto, ou, de qualquer maneira, o sentido será revelado de modo mais marcante”. Certa-
mente é este o caso de qz:x' em Juízes 19.
22 RYAN, Judges, p. 145.
23 WONG, Compositional strategy of the book of Judges, p. 108.
15
Danillo Augusto Santos, Certo Tipo ou um Tipo Certo de Ambiguidade?
Por meio de uma omissão permanente, forçando sobre nós as duas leituras
mutuamente exclusivas, ele [o autor] trata de obscurecer ambas as partes ao
crime de uma só vez. Por um lado, a mulher morreu... ainda à porta... Por outro
lado, seja silenciosamente ou inconscientemente, ela continuou viva até ser
desmembrada.24
2. certezas contextuais
A seletividade nas narrativas não está confinada somente à localização
de omissões e lacunas, mas vai ainda além para a estrutura de uma narrativa.
Juízes 19 não deve ser lido isoladamente, mas também à luz: 1) da estrutura
mais abrangente do livro de Juízes, 2) da história deuteronômica e 3) da si-
tuação histórica em geral.
O fator mais evidente do texto é que ele está situado dentro dos limites
dos capítulos 17-21, ou seja, no último dos dois epílogos de Juízes. A passagem
inteira de 17 a 21 é delineada por um quiasmo de variações na frase: “Naqueles
dias não havia rei em Israel. Cada um fazia o que achava mais reto”. Ela se
encontra de forma completa em 17.6 e 21.25, e a primeira parte, “Naqueles
dias não havia rei em Israel”, encontra-se em 18.1 e 19.1. Deste modo, o texto
deve ser lido sob a perpectiva dessas frases síntese.25
De fato, o tema da realeza permeia todo o livro de Juízes, que provavel-
mente foi escrito na época do reino unido de Israel, mais especificamente o
epílogo.26 Assim, a afirmação, “não havia rei em Israel” não é meramente
sintética, mas também carrega uma conotação moral do ponto de vista da
16
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 9-26
audiência original – uma audiência que olhava para uma nação desunida da
perspectiva da união solidificada pelo rei Davi.
Esse tema da realeza, no contexto mais amplo de Juízes, é visto de forma
explícita em Juízes 8.23, quando Gideão afirma: “Não dominarei sobre vós,
nem tampouco meu filho dominará sobre vós; o Senhor vos dominará”, uma
afirmação paradigmática para qualquer candidato ao juizado. Logo em segui-
da, ele pede ouro para fazer uma estola sacerdotal, a qual, como o narrador
expõe, “veio a ser um laço a Gideão e sua casa” (8.27). O filho de Gideão,
Abimeleque, tenta então ser rei sobre Israel e causa muito mal no capítulo
seguinte. Contudo, isto não significa que o livro de Juízes estabeleça uma po-
lêmica contra a realeza (“Não dominarei sobre vós, nem tampouco meu filho
dominará sobre vós;”) e pró-teocrática (“o Senhor vos dominará”), mas que
ele remete a atenção do povo de volta a Deuteronômio 17.15, no qual Deus
estipula: “estabelecerás, com efeito, sobre ti como rei aquele que o Senhor,
teu Deus, escolher”, e aponta para 1 Samuel 13.14, no qual Davi é contrastado
com Saul: “Já agora não subsistirá o teu reino. O Senhor buscou para si um
homem que lhe agrada e já lhe ordenou que seja príncipe sobre o seu povo...”
O estado geral de anarquia predominante em Israel clamava por um rei.
A segunda parte da fórmula, “cada um fazia o que achava mais reto”, não é
mencionada palavra por palavra depois da sua primeira parte em Juízes 19.1,
mas abrange a narrativa de 17 a 21, e já foi provado que reverbera com o uso
de qz:x' em 19.4, 25 e 27. Em cada um dos juízes maiores, a frase introdutória é
hw"hy> ynEy[eB. [r:h'-ta, laer"f.yI-ynEb. Wf[]Y:w: (traduzida por “Fizeram os filhos de Israel
o que era mau perante o Senhor”). A frase é repetida ipsis litteris em Juízes
2.11; 3.7 e 6.1, e também aludida em 3.12; 4.1; 10.6 e 13.1. Contudo, agora,
em vez da frase “mau diante dos olhos do Senhor”, o autor utiliza a frase “bom
diante dos seus próprios olhos”. No epílogo do livro, o mal é visto como algo
não mais reprimido, sem o “obstáculo” das ações dos juízes, e a fórmula que
préviamente apresentava a ação salvadora de um juíz é agora substituída por
uma frase que demonstra a falta de salvação, a falta de intervenção. A segunda
fórmula então alude à primeira, ao mesmo tempo demonstrando a depravação
irônica de Israel – eles não faziam o mal, mas o bem – a seus próprios olhos.27
Voltando ao âmbito do capítulo 19, é possível encontrar um grande debate
quanto ao porquê de o ancião oferecer não somente sua filha, mas também
a concubina do levita ao tentar aplacar os homens de Gibeá. Alguns têm ar-
gumentado que é para estabelecer um paralelo com Gênesis 19, no qual Ló
27 “No livro de Juízes existe uma mudança de ênfase de fazer o que é mau aos olhos de Iavé (2.11;
3.7,12; 4.1; 6.1; 10.6; 13.1) para fazer o que é certo aos próprios olhos (14.3; 17.6; 21.25). O mundo às
avessas descrito em Juízes 17-21 demonstra que fazer o que é certo aos próprios olhos é com frequência o
mesmo que fazer o que é mau aos olhos de Iavé”. LASINE, Stuart. Guest and host in Judges 19. Journal
for the Study of the Old Testament 29 (1984): 37-59, p. 55. Nota de rodapé 19.
17
Danillo Augusto Santos, Certo Tipo ou um Tipo Certo de Ambiguidade?
oferece duas filhas. Embora possa existir tal paralelo,28 ele é pequeno demais
para ser tão determinativo. De fato, o idoso diz logo em seguida: ~k,ynEy[eB. bAJh;
~h,l' Wf[]w:, traduzido por “fazei delas o que melhor vos agrade”.29 O substantivo
bAJ é então tomado por um verbo, e a ênfase “a seus olhos” (~k,ynEy[eB.) não é
traduzida. O fato de que o ancião diz aos homens de Gibeá que façam o bem
a seus próprios olhos não só cria um paralelo com Gênesis 19.8 (que utiliza a
mesma frase, trocando apenas bAJK; por bAJh;), mas também fixa este ponto do
relato dentro do contexto maior do epílogo de Juízes – assim como a nação
fazia o que era reto a seus próprios olhos, o velho pede aos homens de Gibeá
que façam o que é reto a seus próprios olhos. Ironicamente, ao pedir isto de-
les, o homem ofereceu as duas mulheres para serem violentadas e estupradas,
fazendo assim ele mesmo “o que era reto a seus próprios olhos”.30
O bem que cada um (vyai – um termo abrangente, que fala de toda a na-
ção) fazia a seus próprios olhos era, na realidade, um mal que, no decorrer do
livro de Juízes, é cada vez mais agravado, culminando nos capítulos 19 a 21.
Esses capítulos mostram então um quadro de pessoas que “são filhos néscios
e não inteligentes; são sábios para o mal e não sabem fazer o bem” (Jr 4.22).
O povo de Israel se torna moralmente cego ao fazer o bem a seus próprios
olhos, o que perpetua sua tolice. Como já foi dito, ao descrever os eventos
de Juízes 19 através de silêncios e lacunas na narrativa, o narrador concede
ao leitor uma noção perspicaz desse ciclo de depravação moral e degradação
intelectual. Dessa forma, Juízes 19.24 é mais uma comprovação dessa ruína
– com os benjamitas e efraimitas.
Daniel Block diz que o tema do livro de Juízes é “a canaanização da so-
ciedade israelita no período da colonização”.31 Isto se encaixa com o que tem
sido comentado até este momento. O mal dos israelitas se intensifica a ponto
de se tornar comparável com as nações que eles deveriam ter destruído. Isto é
claramente visível no contexto maior de Juízes 19 a 21. Essa corrupção moral
pode ser chamada de “a canaanização de Israel”.
28 “É possível que o escritor tenha se sentido forçado a oferecer uma simetria entre esta narra-
tiva e sua forma original em Gênesis 19. Visto que Ló ofereceu duas mulheres à turba de Sodoma,
a mecânica da história estrutural exigia que o efraimita oferecesse duas mulheres à turba de Gibeá”.
MATTHEWS, Victor H. Hospitality and hostility in Genesis 19 and Judges 19. Biblical Theology
Bulletin, 22 (1992): 3-11, p. 9.
29 As versões em inglês traduzem essa frase de forma semelhante. ESV – “do with them what
seems good to you”; NASB – “do to them whatever you wish”; NET – “do to them whatever you like”;
NIV – “do to them whatever you wish”; KJG – “do with them what seemeth good unto you”; NKJV –
“do with them as you please”.
30 “Muito embora o levita tenha se recusado a passar a noite em uma cidade que não pertencia a
Israel, nem ele, nem o idoso hospedeiro, nem os indivíduos sujos de Gibeá agem de acordo com o que
é bom e certo aos olhos de Iavé”. LASINE, Guest and host in Judges 19, p. 41.
31 BLOCK, Daniel I. Judges, Ruth. Nashville: Broadman & Holman Publishers, 1999, p. 58.
18
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Previamente nesse livro Israel havia sido oprimido pelas nações cana-
neias que Deus havia deixado na terra para prová-lo (Jz 3.1). Agora, uma de
suas próprias tribos é quem os oprime, e eles são convocados à guerra contra
essa tribo. A tribo de Benjamim não somente se torna como as outras nações
cananeias, mas o seu pecado chega a tal ponto que eles devem ser exterminados
como qualquer nação pagã.
Há também um paralelo léxico importante entre o texto de Juízes 19 e
Deuteronômio 13, ou seja: l[;Y:lib.-ynEb. yven>a;.32 Essa expressão é utilizada pelo
narrador em Juízes 19 para concentrar a atenção do leitor na versão deutero-
nômica da lei, que é a base para a sorte final de Gibeá.33 Como é demonstrado
19
Danillo Augusto Santos, Certo Tipo ou um Tipo Certo de Ambiguidade?
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37 As comparações entre as duas histórias não negam a validade histórica do relato de Juízes
19. Como Stuart Lasine diz: “A relação entre Juízes 19 e Gênesis 19 é na realidade um exemplo de
dependência literária ‘unilateral’. Por ‘dependência literária’ quero dizer que Juízes 19 pressupõe que
o leitor está consciente de Gênesis 19 em sua presente forma e depende dessa consciência a fim de ser
adequadamente compreendido”. LASINE, Guest and host in Judges 19, p. 38.
38 Minha lista baseia-se na de Gage em GAGE, Warren Austin. Ruth upon the threshing floor
and the sin of Gibeah: a Biblical-theological study. Westminster Theological Journal 51 (1989): 369-375,
p. 371.
39 HUDSON, Don Michael. Living in a land of epithets: anonymity in Judges 19-21. Journal for
the Study of the Old Testament 62, 1994: 49-66, p. 58.
40 Ibid., p. 59. Hudson diz que, em Juízes 19-21, a anonimidade “‘universaliza’ os personagens e
eventos da narrativa” e que “como um fenômeno sócio-linguístico ela desconstrói a atribuição de nomes;
a anonimidade corresponde à perda da identidade e da personalidade”.
21
Danillo Augusto Santos, Certo Tipo ou um Tipo Certo de Ambiguidade?
41 Lawrence A. Sinclair diz que “a pesada camada de cinzas encontrada pelos escavadores é uma
sombria evidência da queima de Gibeá”. An archaeological study of Gibeah (Tell el-Fûl). The Biblical
Archaeologist, 27.2 (1964): 52-64, p. 54.
42 DEMSKY, Aaron. Geba, Gibeah, and Gibeon: an historico-geographic riddle. Bulletin of the
American School of Oriental Research, 212 (1973): 26-31. Demsky propõe que Saul reconstruiu a cidade
e a chamou “Gibeá de Saul” para escapar às consequências previstas para aqueles que reconstruíam
cidades que haviam sido amaldiçoadas por meio de uma “brecha legal”. Considerando que, no começo
de seu reino e mesmo antes de sua proclamação oficial (1 Samuel 10) a cidade já era considerada a
casa de Saul, acho seu argumento um tanto fraco. De qualquer maneira, a cidade foi reconstruída quando
não deveria ter sido.
43 Considerando a tese principal do narrador no epílogo, “cada um fazia o que achava mais reto”,
seria contraditório mostrar uma Belém que era completamente justa em contraste com uma Gibeá ex-
tremamente injusta.
22
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 9-26
Jerusalém, até ao dia de hoje”. Dessa forma, é possível extrair dois pontos
relativos ao autor e seu estilo.
O primeiro é que a narrativa é seletiva. Se no mesmo capítulo Judá é
descrita como havendo conquistado e arrasado Jerusalém, e Benjamim como
deixando de expulsar os seus habitantes, e se o relato deve ser interpretado
como sendo historicamente preciso, deve-se também pressupor que o nar-
rador não está relatando os eventos de uma forma estritamente cronológica,
mas sintética. Assim, os relatos de Judá e Benjamim são justapostos, e essa
adjacência comunica um dos principais temas de Juízes, ou seja, a luta pelo
direito de sucessão real entre Benjamim e Judá.
O segundo ponto é que essa seletividade também é utilizada em Juízes
19 para representar Judá em uma luz mais favorável que Benjamim. O narra-
dor fala da decisão do levita de continuar viajando ao invés de passar a noite
em Jerusalém, porque a cidade era uma “cidade estranha, que [não pertencia
aos] filhos de Israel” (Jz 19.12). A ironia é que a cidade que deveria ser uma
cidade de israelitas, Gibeá, na verdade é uma cidade mais cananeia do que
outras cidades cananeias.
No capítulo 1, também encontramos que “esteve o Senhor com Judá”
(v. 19) quase imediatamente antes do fracassso de Benjamim no versículo 21.
Contudo, enquanto Judá é retratada em uma luz mais positiva do que Benjamim,
ela não o é irrestritamente, como se pode observar nas palavras que seguem no
versículo 19: “porém não expulsou os moradores do vale...”. De certa forma,
isto também é paralelo da maneira pela qual Belém é retratada em Juízes 19
– positivamente, mas não irrestritamente de modo positivo, e sim mais como
um contraste com Benjamim e seu fracasso.
Através do uso da saliência, o narrador de Juízes então justapõe Gibeá e
Sodoma, Benjamim e Judá, Belém e Gibeá e, finalmente, Saul e Davi. Nesses
picos textuais sobrepostos um ao outro, o narrador desenvolve o tema da de-
cadência moral e, ao mesmo tempo, clama por um rei legítimo, porque,
... no contexto da luta dinástica entre Davi e Saul, estas histórias [em Juízes 19]
de “Belém de Davi” (1Sm 20.6) e “Gibeá de Saul” (1Sm 15.34) são altamente
sugestivas como um testemunho profético da legitimidade moral da monarquia
davídica.44
3. conexões intertextuais
A narrativa de Juízes 19 é um texto cheio de linhas intricadas em retros-
pectiva e presságio, à margem da monarquia israelita, bem como linhas de
ambiguidade e certeza, que pintam o fundo do pecado de Israel com o esplendor
da soberania de Deus, mas também uma última linha, fina e tênua e de infinita
44 GAGE, Ruth upon the threshing floor and the sin of Gibeah, p. 370.
23
Danillo Augusto Santos, Certo Tipo ou um Tipo Certo de Ambiguidade?
45 GOLDSWORTHY, Grame. Preaching the Bible as Christian Scripture: the application of Bibli-
cal theology to expository preaching. Grand Rapids: Eerdmans, 2000, p. 141.
46 A frase exata é HB'li-l[; yTir>B;dIw>.
24
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 9-26
torna-se então a síntese das más ações de Israel e, ao mostrar tal maldade em
uma nação na qual não havia rei, o autor projeta o desejo do leitor por um rei
justo.47
Mesmo Judá, que havia recebido o favor de Deus (Jz 1.19), e que foi
escolhida para liderar o ataque contra Benjamim (20.18), foi derrotada duas
vezes antes de uma vitória final (20.21, 25 e 35). Belém, mesmo retratada
como um contraste com Gibeá, é justamente o primeiro dominó em uma longa
sequência de fatos que resulta na guerra civil de Israel. Ainda que o livro lance
luz sobre Davi como o futuro rei legítimo, o autor ainda reconhece que homem
nenhum alcança o critério de um Deus santo. Assim, Juízes 19 mostra uma
nação inteiramente infectada pelo pecado. Neste sentido, como a primeira etapa
do epílogo final de Juízes, o relato de Gibeá demonstra o fim cataclísmico de
uma nação de juízes.
No início do livro de Juízes, é Deus quem levanta juízes para Israel. A
raiz que aparece duas vezes ao falar desses juízes é [vy (2.16,18). A função dos
juízes seria trazer salvação. Ao mesmo tempo, o poder de salvar não provém
do juiz, mas do fato de que “o Senhor era com o juiz” (2.18). Interessa também
notar que essa função dos juízes diz respeito à raiz do nome do Messias (tanto
Jesus como o seu arquétipo Josué). Dessa maneira, os juízes são anafóricos
em que eles deveriam ter feito o mesmo que Josué, e catafóricos em que eles
antecipavam a necesidade de um salvador definitivo, que providenciaria a
salvação definitiva para Israel. Em todo o livro de Juízes, essa salvação é
vista somente como temporária (3.11, 30; 5.31; 8.28; 10.2, 3; 12.7, 10, 11,
14; 15.20; 16.31). No epílogo então a falta de salvação aponta para um reino
dinástico, que não sofreria do caráter transitório dos salvadores carismáticos.
Em resumo, o livro de Juízes, ao apontar para a salvação que haveria no reino
de Davi, aponta também para a salvação a ser trazida por Aquele que seria
aclamado como “o Leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi” (Ap. 5.5), que está
“no meio do trono e dos quatro seres viventes e entre os anciãos, de pé, um
Cordeiro como tendo sido morto” (Ap. 5.6).
conclusão
Há muitos textos difíceis e ambíguos como Juízes 19 no restante da Bí-
blia, porém a investigação dos elementos da narrativa pode revelar que, por
trás de uma suposta “ambiguidade”, há uma seletividade que revela a intenção
do autor. Todo texto oferece pistas, indícios, pequenas indicações e guias para
que o leitor possa ler de uma maneira que, o invés de parecer bem aos seus
próprios olhos, siga a interpretação correta sob a ótica do verdadeiro Autor.
47 BRETTLER, The book of Judges: literature as politics, p. 408-409, diz: “Os apêndices im-
plicitamente anseiam por uma era em que existe reinado, em que o povo irá fazer hayyasar, ‘o que é
agradável’”.
25
Danillo Augusto Santos, Certo Tipo ou um Tipo Certo de Ambiguidade?
abstract
This exegesis seeks to understand how to interpret biblical ambiguities,
especially in narrative texts of the Old Testament. The author seeks to show
how and why the text of Judges 19 has been greatly debated in academic circles
by examining different ambiguities of the text. There are many omissions of
the narrator of Judges 19 that might be confusing to the 21st century reader,
such as: a subjective vagueness, the anonymity of the characters, and an appa-
rent moral silence. Thus, the author also seeks to show subsequently that, by
interpreting the text of Judges 19 with the principles of narrative selectivity
and of the near and far contexts in mind, the ambiguities and omissions fit
together perfectly in the intended meaning in a text that speaks primarily of
the absence of a king for Israel.
keywords
Biblical exegesis; Narrative; Textual ambiguity; Objective selectivity.
48 VAN GRONINGEN, Gerard. Messianic revelation in the Old Testament. Eugene: Wipf and
Stock, 1990, p. 268.
26
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
resumo
Este artigo almeja explorar um entendimento bíblico acerca da busca
universal da humanidade por diversão. O autor investiga como um arcabouço
bíblico nas categorias de Criação, Queda e Redenção ajuda a compreender tal
fenômeno. Ele demonstra como o homem foi criado para existir como um ser
criativo na presença de Deus. Como tal, tudo o que ele cria reflete a criação
original em sua organização e elementos diversos. O ser humano se deleita na
diversão, pois se trata de uma subcriação na qual ele experimenta elementos
para os quais foi criado, como descanso, prazer, alegria e beleza. Depois se
analisa como a queda influencia a busca humana de diversão, fazendo com
que o homem busque ídolos e satisfação de seus desejos pecaminosos por
meio de coisas criadas. Por fim, investiga-se como o desiderium aeternitatis e
a compreensão da necessidade de redenção levam os seres humanos a buscar
na diversão consolo e fuga deste mundo, experimentando um pouco da paz e
vida para as quais foram criados.
palavras-chave
Diversão; Criação; Desiderium aeternitatis; Queda; Redenção; Eterni-
dade; Idolatria; Esporte.
27
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
introdução
A humanidade dedica grandes esforços na busca de diversão.1 O lazer
é um enorme componente cultural, social e financeiro da sociedade humana;
um elemento presente no mundo todo e através dos séculos. Todos os seres
humanos experimentam a diversão; ninguém é estranho ao conceito, e todos
já dedicaram tempo e outros recursos a este tipo de atividade. O lazer pode
aparecer de infinitas maneiras, desde grandes eventos midiáticos como a Copa
do Mundo até uma partida de xadrez ou um videogame numa tarde chuvosa. A
brincadeira tem a capacidade de aparecer nas situações mais sérias: piadas num
funeral, risadas na reunião da diretoria, e-mails engraçados durante o trabalho.
Ao examinar as formas de jogar e brincar de uma cultura podemos aprender
muito sobre ela; ao examinar a ubiquidade da diversão podemos aprender algo
sobre a humanidade como um todo.
Mas como aprender sobre o homem, seus anseios e tragédias através do
lazer? Haveria base bíblico-teológica para investigar as razões do fenômeno
ou estamos condenados a simplesmente fazer considerações práticas sobre o
que convém ou não e quando?2 Em diversas áreas no meio acadêmico tem se
buscado entender esse fascínio humano e sua importância. Em certos ramos
do saber já existe há muitos anos um crescente número de obras dedicadas
a análises mais sistemáticas do esporte e do lazer. São estudos que buscam
entender as razões do amor ao lazer, suas funções sociais, psicológicas, bio-
lógicas e muito mais.3
1 Para os propósitos deste trabalho trataremos os termos lazer, diversão e entretenimento como
essencialmente equivalentes. Certamente cada um apresenta nuances diferentes, mas para este artigo
introdutório elas não são essenciais.
2 A questão da ética da diversão é importante e merece consideração em outra oportunidade.
Análises neste sentido têm de levar em consideração ao menos os seguintes fatores: os mandamentos
bíblicos e o que pode ser logicamente deduzido destes; o princípio bíblico de não fazer o irmão tropeçar;
o princípio de não violar a consciência e informá-la biblicamente, o princípio da liberdade cristã e o
princípio do testemunho aos de fora da igreja.
3 A maioria desses estudos envolve uma ótica sociológica ou antropológica, incluindo todos os seus
pressupostos e objetivos. A obra seminal é HUIZINGA, Johan. Homo ludens: A study of the play-element
in culture. Boston, MA: Beacon Press, 1955. Outros autores importantes são: CAILLOIS, Roger. Man,
play and games. Chicago, IL: University of Illinois Press, 2001; SUTTON-SMITH, Brian. The ambiguity
of play. Cambridge, MA: Harvard University Press, 1997. Há ainda obras da psicologia e neurologia
que buscam compreender o lazer e seu lugar na vida humana. São exemplos: Csíkszentmihályi,
Mihály. Flow: The psychology of optimal experience. New York: Harper Perennial, 1990; PANKSEPP,
Jaak. Affective neuroscience: The foundations of human and animal emotions. Oxford University Press,
1998. Há interessantes trabalhos recentes que visam analisar a simbiose entre futebol e cultura brasileira.
Alguns dos principais são: GALEANO, Eduardo H. Futebol ao sol e à sombra. Porto Alegre: L & PM,
1997; WISNIK, José Miguel. Veneno remédio: O futebol e o Brasil. São Paulo: Companhia das Letras,
2008; BELLOS, Alex. Futebol: The Brazilian way of life. New York: Bloomsbury, 2002; HELAL, Ronaldo;
SOARES, Antônio Jorge; LOVISOLO, Hugo. A invenção do país do futebol: Mídia, raça e idolatria. Rio
de Janeiro: Mauad, 2001. Além disto, há obras interessantíssimas acerca do papel do esporte em conflitos
28
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
étnicos, regimes ditatoriais, etc. Ver: FOER, Franklin. How soccer explains the world: An unlikely theory
of globalization. New York: Harper Perennial, 2005; KUPER, Simon. Soccer against the enemy: How the
world’s most popular sport starts and fuels revolutions and keeps dictators. New York: Nation Books, 2006.
4 Os principais são os esforços de Shirl Hoffman. Seu último livro é especialmente útil: HOFF-
MAN, Shirl. Good game: Christianity and the culture of sports. Waco, TX: Baylor University Press,
2010. Outras obras, de arraiais teológicos diversos são: HOLMES, Arthur F. Towards a Christian play
ethic. Christian Scholar's Review 11, no. 1 (1998), p. 41-48; JOHNSTON, Robert K. The Christian at
play. Eugene, OR: Wipf & Stock, 1998; NAUGLE, David K. A biblical philosophy of sport and play.
Department of Philosophy, Dallas Baptist University, 1995. Disponível em: http://www.dbu. edu/naugle/
pdf/sport_play.pdf; RYKEN, Leland. Redeeming the time: A Christian approach to work and leisure.
Grand Rapids, MI: Baker Books, 1995; DEARDOFF, Donald; WHITE, John (Orgs.). The image of God
in the human body: Essays on Christianity and sports. Lewiston, NY: The Edwin Mellon Press, 2008;
GAROFALO NETO, Emilio. The Soccer World Cup 2010 as sub-creation: An analysis of human play
through a theological grid of Creation-Fall-Redemption. Ph.D. Dissertation, Reformed Theological Se-
minary, 2011; Heintzman, Paul; VAN ANDEL, Glen E.; VISKER, Thomas L. (Orgs.). Christianity
and leisure: Issues in a pluralistic society. Rev. ed. Sioux Center, IA: Dordt College Press, 2006. Para
um breve texto tratando de temas semelhantes a este artigo, ver meu GAROFALO NETO, Emilio. A
vida até parece uma festa. Revista iPródigo, No 1 (2011), p. 30-37.
5 KUYPER, Abraham; BRATT, James D. Abraham Kuyper: A centennial reader. Grand Rapids,
MI: Eerdmans, 1998, p. 461.
6 Aqui incluímos a Consumação dentro de Redenção. Vale, entretanto, notar que, segundo Geerhar-
dus Vos, “o aspecto escatológico é mais antigo na revelação do que o soteriológico”. VOS, Geerhardus.
Biblical theology: Old and New Testaments. Carlisle, PA: The Banner of Truth, 1948, p. 141, minha tra-
dução. Antes de Deus revelar a Adão e Eva que haveria salvação de seus erros (Gn 3.15), ele lhes havia
revelado algo sobre realidades escatológicas de bênção e descanso – ambas explícitas e exemplificadas
no Sábado e implícitas como recompensa aos que guardassem o pacto de obras.
7 Apesar de o apóstolo Paulo usar imagens esportivas com frequência em suas cartas, a igreja primi-
tiva tinha receio em se relacionar com o mundo esportivo. No Império Romano os jogos eram geralmente
interligados aos festivais pagãos e à idolatria, dificultando muito a participação e apoio dos cristãos. Para
maiores informações, ver: MATHISEN, James. A brief history of Christianity and sport: Selected highlights
of a puzzling relationship. In: DEARDOFF e WHITE, The image of God in the human body.
29
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
8 Rapidamente, vale notar as profecias de Isaías 11 e Zacarias 8 que apontam para ocasiões em
que a restauração da criação envolve brincadeiras e diversão. Notar ainda o uso que Paulo faz de figuras
esportivas, um tema amplo demais para este trabalho. Frequentemente o apóstolo utilizava figuras do
mundo esportivo para ilustrar aspectos da vida cristã. James Mathisen (A brief history, p. 8) nota que a
longa passagem de Paulo por Corinto deve ter coincidido com os Jogos Ístmicos, que ocorriam a cada
quatro anos. Paulo não está necessariamente recomendando os esportes, mas no mínimo parece pressupor
que se trata de uma esfera com a qual se pode aprender e talvez mesmo admirar em certos aspectos. Os
principais exemplos estão em Fp 3.12-14; 1 Co 9.24-27; 1 Co 10.7; Gl 2.2; Gl 5.7; 1 Tm 4.7,8; 1 Tm
6.12; 2 Tm 2.5.
9 Heber Campos alerta contra a visão de alguns acerca do Jardim do Éden como uma espécie
de resort onde não se faz nada além de relaxar; mas também mostra que na beleza, fartura e delícia da
criação “é como se Deus houvesse dito aos nossos primeiros pais: ‘Desfrutem da beleza e da gostosura
da minha criação!’”. CAMPOS, Heber Carlos de. O habitat humano: O paraíso criado. Estudos em
Antropologia Bíblia. São Paulo: Editora Hagnos, 2011, p. 100.
10 SMITH, Morton H. Systematic Theology. Greenville, SC: GPTS Press, 1994, v. 1, p. 240.
11 Como afirma Davi Charles Gomes: “Mesmo o homem supostamente autônomo é de fato teo-
30
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
referente, ainda que negativamente”. GOMES, Davi Charles. A metapsicologia vantiliana: uma incursão
preliminar. Fides Reformata XI, Nº 1 (2006): 113-139, p.117. Para considerações adicionais sobre o
termo, especialmente no que se relaciona com cosmovisão, ver: OLIVEIRA, Fabiano de Almeida.
Reflexões críticas sobre Weltanschauung: Uma análise do processo de formação e compartilhamento
de cosmovisões numa perspectiva teo-referente. Fides Reformata XIII, Nº 1 (2008): 31-52.
12 Como afirma Fabiano Oliveira: “Em termos teológicos, pode-se dizer que, nascido num contexto
marcado pela queda, o coração humano permanece escravo da orientação fundamental da apostasia e,
por isso, inescapavelmente tendente a servir como fonte de rebelião para todos os pensamentos e atos do
homem não regenerado. Somente através da regeneração do homem, operada pelo Espírito Santo, é que
este círculo hermenêutico vicioso pode ser quebrado, iniciando outro círculo hermenêutico, desta feita
virtuoso, de amor e obediência a Deus que, por sua vez, determinará uma direção em compasso com a
vontade divina revelada”. OLIVEIRA, Reflexões críticas sobre Weltanschauung, nota de rodapé 51,
p. 49.
13 VAN TIL, Cornelius. Common grace. Philadelphia, PA: Presbyterian and Reformed Publishing,
1947, p. 53. Minha tradução. Como explica Scott Oliphint, Deus é o arquétipo de quem somos o éctipo
em tudo o que somos e fazemos: “Nós somos, completa e exaustivamente, imagem de Deus... somos
icônicos. Tudo o que somos, pensamos, fazemos, nos tornamos e assim por diante é derivado, vindo de
ou desde algo; nós dependemos de e espelhamos o real, o Original, o Eimi. Na terminologia clássica,
somos éctipo. Os tipos ou formas de pessoas que somos, de conhecimento que temos, de pensamentos
que pensamos e de coisas que fazemos são sempre e em qualquer parte cópias, padrões, impressões e
imagens, tomando suas pistas metafísicas e epistemológicas do único que verdadeiramente é. Ou seja,
do próprio Deus”. OLIPHINT, K. Scott. God with us: Divine condescension and the attributes of God.
Wheaton, IL: Crosway Books, 2012, p. 90. Minha tradução. Sobre a distinção entre arquétipo e éctipo
em sua função histórica, ver o artigo: VAN ASSELT, Willem J. The fundamental meaning of theology:
Archetypal and ectypal theology in seventeenth-century Reformed thought. Westminster Theological
Journal 64, Nº 2 (2002), p. 319-336.
14 Devo as expressões “receptivamente criativo” e “ativamente redentivo” a Wadislau Martins
Gomes e Davi Charles Gomes.
15 As criaturas operam com recursos limitados (embora vastos) e com capacidade mental limitada
(e caída) estruturada dentro do universo criado nas coisas que são e que poderiam ser. O homem é in-
capaz, por exemplo, de imaginar uma cor que Deus não imaginou antes, ou de criar um mundo literário
fantástico que surpreenda a Deus com suas idéias. Hans Rookmaaker, artista e crítico de arte, escreveu
que “linguagem e expressão, pensar, administrar justiça, adquirir conhecimento, fazer ou reconhecer
algo belo – tudo isto só é possível dentro de leis estruturais. Não podemos viver ou trabalhar fora delas”.
ROOKMAKER, Hans. The creative gift: Essays on art and the Christian life. Westchester, IL: Cornerstone
Books, 1981, p. 58. Minha tradução.
31
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
16 O escritor e crítico literário J. R. R. Tolkien explicou que, no processo de sua criação literária,
ele agia como um subcriador, e que boas obras podem produzir um senso de arrebatamento em quem
desfruta da história: “É claro que as crianças são capazes de ter crença literária quando a arte do criador
de histórias é boa a ponto de produzi-la. Esse estado mental tem sido chamado de ‘suspensão voluntária
da incredulidade’. Mas isso não me parece ser uma boa descrição do que acontece. O que acontece de
fato é que o criador da narrativa demonstra ser um ‘subcriador’ bem-sucedido. Ele concebe um Mundo
Secundário no qual nossa mente pode entrar. Dentro dele, o que ele relata é ‘verdade’: está de acordo
com as leis daquele mundo. Portanto, acreditamos enquanto estamos, por assim dizer, do lado de dentro”.
TOLKIEN, J. R. R. Sobre histórias de fadas. São Paulo: Conrad Editora do Brasil, 2010, p. 43-44.
17 O cientista também tem esse impulso criativo. David Bohm argumenta que o cientista é movido
por mais que o mero desejo de descobrir; sua imaginação e seus afetos são fundamentais na tarefa. Sua
criatividade se mostra em propor modelos e teorias, os quais não são necessariamente resultantes dos
dados averiguados, mas construtos impostos pelas pressuposições e expectativas do pesquisador. BOHM,
David. On creativity. London: Routledge Classics, 2006, p. 2. Para mais reflexões sobre esse tema, ver:
POLANYI, Michael. The tacit dimension. Garden City, NY: Doubleday, 1966; KUHN, Thomas S. The
structure of scientific revolutions. 3rd ed. Chicago, IL: University of Chicago Press, 1996.
18 Por exemplo, no futebol, durante noventa minutos o objetivo da vida passa a ser chutar uma
esfera dentro de uma meta, seguindo regras preestabelecidas acerca de como se pode ou não fazê-lo.
Durante um filme, as regras de uma subcriação cinematográfica podem envolver a existência de extra-
terrestres, orcs ou grilos falantes; não é necessário ao cristão rejeitar tais obras pelo fato de essas coisas
não existirem.
19 BERGER, Peter. Redeeming laughter: The comic dimension of human experience. New York:
Walter de Gruyter, 1997, p. 13; BERGER, Peter. A rumor of angels: Modern society and the rediscovery
of the supernatural. Garden City, NY: Doubleday, 1969, p. 59.
20 SOLOMON, Jerry. Arts, entertainment, & Christian values. Grand Rapids, MI: Kregel Publi-
cations, 2000, p. 102. Minha tradução.
32
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
des espirituais, intelectuais e emocionais acerca do mundo que Deus fez para
sua glória”.21 Em grandes eventos como as Olimpíadas ou a Copa do Mundo
podemos esperar encontrar diversos pontos de contato entre nossas criações
e a criação divina. Porém, mesmo em coisas menores como um filme, uma
peça de teatro ou uma história infantil sempre encontraremos elementos que
remetem à forma e estrutura pela qual Deus criou o mundo, seja afirmando
e repetindo o que Deus fez, negando e distorcendo tudo isso ou até mesmo
elaborando sobre o original.
21 RYKEN, Philip. Art for God’s sake: A call to recover the arts. Phillipsburg, NJ: Presbyterian
and Reformed, 2006, p. 8. Minha tradução.
22 BERKHOF, Louis; VAN TIL, Cornelius. Foundations of Christian education: Addresses to
Christian teachers. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed, 1990, p. 47.
23 John Frame se refere a esse capital emprestado como a “parte da revelação de Deus que eles
[os descrentes] não reprimiram”. FRAME, John. Apologetics to the glory of God. Philipsburg, NJ:
Presbyterian and Reformed, 1994, p. 72. Minha tradução. Frame ainda explica que o homem é “capaz
de evitar o total niilismo apenas pela inconsistência em reconhecer alguns elementos da revelação de
Deus”. FRAME, John. Cornelius Van Til: An analysis of his thought. Philipsburg, NJ: Presbyterian and
Reformed, 1995, p. 42. Minha tradução.
24 “Se o descrente levasse ao extremo suas convicções metafísicas, epistemológicas e éticas, a
antítese entre ele e o crente iria impedir que os dois se comunicassem, pois as perspectivas fundamen-
tais seriam completamente diferentes; a orientação de um seria sempre desorientada para o outro. Mas
o descrente na realidade não vive e raciocina consistentemente com suas teorias professas. Ele pensa
(psicologicamente) de uma maneira particular que não comporta (epistemologicamente) sua argumen-
tação”. BAHNSEN, Greg. Van Til’s apologetic: Readings and analysis. Phillipsburg, NJ: Presbyterian
and Reformed, 1998, p. 436. Minha tradução.
33
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
Nenhum cristão pode deixar de encarar o fato de que muitos cientistas não-
cristãos descobriram muita verdade acerca da natureza… isto é verdade apesar
de sua visão de vida imanentista e por causa do fato de não poderem evitar
trabalhar com o capital emprestado do cristianismo.28
25 Fabiano Oliveira explica que “o homem recebeu de Deus a vocação de positivar a cultura e
ainda que no processo a queda tenha afetado a raiz central deste direcionamento, ela, contudo, não pôde
afetar a ordem estrutural responsável pelo desenvolvimento social”. OLIVEIRA, Reflexões críticas sobre
Weltanschauung, nota de rodapé 41, p. 45.
26 BAHNSEN, Van Til’s apologetic, p. 228.
27 Assim como o missionário que encontra uma tribo e se depara com enorme mistura de verdade
e erro, podemos esperar encontrar nas subcriações de diversão humana semelhante medida de mistura,
na qual a verdade divina se entrelaça com vãs imaginações humanas.
28 VAN TIL, Cornelius. An introduction to systematic theology: Prolegomena and the doctrines of
revelation, Scripture, and God. 2nd ed. Ed. William Edgar. Phillipsburg, NJ: Presbyterian and Reformed,
2007, p. 153. Minha tradução.
29 VAN TIL, Cornelius. The defense of the faith. 4th ed. Ed. K Scott Oliphint. Phillipsburg, NJ:
Presbyterian and Reformed, 2008, p. 343.
34
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
1.2.1 Descanso
Esse é um princípio da criação exemplificado principalmente no sábado.
Este era um tempo de cessação do trabalho, um parêntese na semana durante o
qual as pessoas refrescavam corpo e coração. Nele, “como no brincar, sua não-
instrumentalidade se mostrava produtiva”.30 Ao contrário do modelo grego, no
qual apenas as elites tinham direito ao descanso, o modelo hebraico permitia,
e de fato exigia, que todos, judeu ou estrangeiro, livre ou escravo, e mesmo
os animais, tivessem ao menos um dia de descanso na semana.31 De maneira
semelhante, na diversão o homem é capaz de deixar um pouco seu trabalho
e aproveitar o mundo: “Assim como o descanso de Deus, o lazer nos liberta
da necessidade da produtividade e nos permite aproveitar o que já foi feito”.32
Pela graça comum, Deus permite que todos tenham descanso e mesmo alegria
nesta vida (At 14.17).
35
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
Ora, se ponderarmos a que fim Deus criou os alimentos, verificaremos que ele
quis levar em conta não só a necessidade, mas também o deleite e alegria; assim,
na indumentária, além da necessidade, foi seu propósito fomentar o decoro e
a dignidade; nas ervas, árvores e frutas, além dos variados usos, proporciona a
beleza da aparência e suavidade do perfume.33
33 CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã. Trad. Waldyr Carvalho Luz. 2 ed. São Paulo:
Cultura Cristã, 2006, III.x.2, p. 192.
34 O apóstolo Paulo escreve que o atleta não é coroado se não lutar conforme as regras (2Tm 2.5);
numa analogia do menor para o maior, ele mostra que o que é verdade na subcriação esportiva é verdade
na criação de Deus.
35 NOVAK, Michael. The joy of sports. New York: Basic Books, 1976, p. 41.
36
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
36 CAILLOIS, Man, play and games, p. 122. A propósito, alguns argumentam que esta é parte
da atração de videogames como Guitar Hero: a pessoa é capaz de aproveitar parte das boas coisas
ligadas a tocar um instrumento com apenas uma fração do trabalho e disciplina envolvidos em tocar
de verdade. Ver RADOSH, Daniel. While my guitar gently beeps. The New York Times Magazine, 11 de
agosto de 2009.
37 ROOKMAAKER, The creative gift, p. 27.
37
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
cristãos, tendo um novo coração, são incapazes de evitar que sua pecamino-
sidade apareça em suas subcriações. Essas distorções do pecado aparecem
frequentemente na busca humana de lazer e diversão. Esse campo serve como
terreno fértil para o plantio de desejos corruptos, para colher satisfação ime-
diata ilícita e mesmo para corromper coisas boas da criação com o veneno do
pecado. Tratemos de algumas destas maneiras.
Uma vez que temos a verdade que Deus dá a cada um de nós, em nossos pecados
fazemos um deus à nossa imagem. Ao fazê-lo, criamos uma religião ao redor
do falso deus que criamos… Essa é a reação inevitável, dos que permanecem
em Adão, ao conhecimento de Deus implantado em nós.41
Idolatria é “quando alguém ou alguma coisa que não Jesus Cristo tem
controlado a confiança do nosso coração, como objetivo, preocupação, leal-
dade, serviço ou prazer”.42 Os ídolos buscam suprir coisas que Deus concede
38
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
Os deuses que as nações adoram são personificações de tudo o que nos impres-
siona… procuramos magnificência e poder, e adoramos essas coisas quando
inspiram temor e admiração: nos estádios dos grandes triunfos esportivos ou
nas vidas de heróis esportivos adulados, em batalhões de soldados, em desfiles
de equipamentos militares, nos deques de porta-aviões, nos palcos de concertos
de rock ou no brilho das celebridades da TV e do cinema.44
2.2.1 Sexualidade
A diversão no mundo caído frequentemente está associada a formas ilícitas
de sexualidade. Aquilo que Deus criou para o usufruto no casamento torna-se
43 Ibid., p. 31. Richard Keyes sugere que, nesta função de falsificar o verdadeiro Deus, os ídolos
geralmente aparecem em pares, um sendo o ídolo próximo que busca imitar a imanência de Deus e
outro sendo distante, que busca imitar a transcendência de Deus. Aplicando a este estudo, vemos que os
heróis esportivos são ídolos próximos que se aliam aos ideais esportivos heróicos que buscam suprir as
realidades transcendentes de beleza, coragem e grandiosidade. Os ídolos próximos permanecem falhos.
Esta relação com os ídolos é de amor e também de ódio; os mesmos fãs que torcem por certo jogador
e o reverenciam têm prazer em vê-lo cair, se envolver em escândalos e engordar. Para esse excelente
ensaio, ver: KEYES, Richard. The idol factory. In: GUINNESS, Os (Org.). No God but God. Chicago,
IL: Moody Press 1992, p. 37.
44 WRIGHT, Christopher J. H. The mission of God: Unlocking the Bible’s grand narrative. Downers
Grove, IL: Intervarsity Press, 2006, p. 167. Minha tradução.
45 Para ótimas discussões acerca de idolatria, além do material de Keyes e Powlison, ver: BEALE,
G. K. We become what we worship: A biblical theology of idolatry. Downers Grove, IL: IVP Academic,
2008; KELLER, Tim. Counterfeit gods: The empty promises of money, sex, and power, and the only
hope that matters. New York: Dutton, 2009; RAMACHANDRA, Vinoth. Gods that fail: Modern idolatry
& Christian mission. Downers Grove, IL: Intervarsity Press, 1996.
39
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
fonte de diversão em uniões ilícitas e fator atrativo para vender produtos e ativi-
dades de lazer. Isto se mostra de variadas formas. A sexualização é um objetivo
de diversão em si mesma e ainda aparece em outras formas de entretenimento.
É evidente, por exemplo, nos grupos de amigos que saem juntos para os bares
nas noites de sexta-feira com o objetivo de achar parceiros sexuais; aparece na
sexualização das líderes de torcida, de atletas e cantores; na erotização dos
filmes, quadrinhos e programas de televisão, e assim por diante.
46 Para excelentes e incisivas observações acerca de como os cristãos devem lidar com as dificul-
dades éticas do instinto assassino nos esportes, ver: HOFFMAN, Good game, cap. 6.
47 John White mostra o interessante exemplo da Alemanha Oriental, que infligia dor e dano aos
seus jovens atletas a fim de obter resultados esportivos que elevassem a nação aos olhos do mundo.
White compara esta atitude com os profetas de Baal em 1 Reis 18, que estavam dispostos a se ferir
para que seu falso deus respondesse. WHITE, John. Idols in the stadium: Sport as an “idol factory”. In:
DEARDOFF, The image of God in the human body, p. 143.
48 Curiosamente, em certas ocasiões o esporte foi proibido justamente por sua capacidade de agregar
as massas ao redor de um objetivo comum. O futebol é importante o suficiente para “ser banido pelo
último sultanato otomano, pelos demagogos neuróticos da revolução cultural chinesa e pela teocracia
40
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
revolucionária do Irã”. GOLDBLATT, David. The ball is round: A global history of soccer. New York:
Riverhead Books, 2008, p. xiv. Minha tradução. Diversas formas de arte e produtos culturais têm sido
utilizados como instrumentos para resistir à opressão: filmes, peças infantis, canções populares, etc.
49 Para uma útil discussão acerca de como o nazismo, o comunismo e o fascismo utilizaram
o esporte em seus regimes, ver: GUTTMANN, Allen. Sports: The first five millennia. Boston, MA:
University of Massachusetts, 2004, p. 293-303. Para um capítulo que aborda a Copa do Mundo de
1978 e a ditadura argentina, ver: SPURLING, Jon. Death or glory! The dark history of the World Cup.
London: VSP, 2010, cap. 4. No Brasil, a seleção de futebol de 1970 e seus jogadores foram explorados
pelo governo militar como símbolos de um país pretensamente unido que triunfa na arena mundial. O
próprio Campeonato Brasileiro de Futebol, criado em 1971, tinha o objetivo de levar a alegria do torneio
aos cantos remotos do país. Um dito comum na época era: “Onde a ARENA vai mal, mais um clube no
nacional”. Ditadores europeus apoiavam times de certas cidades que se identificavam particularmente
com seus regimes: o Real Madrid ilustrava os desejos e anseios de importância européia de Franco; Hitler
favorecia o Schalke 04; Salazar apoiava o Benfica; Mussolini o Roma e Ceausescu favorecia o Steua
Bucareste, na Romênia. FRANCO JR., Hilário. A dança dos deuses: Futebol, sociedade, cultura. São
Paulo: Companhia das Letras, 2007, p. 169. Para um interessantíssima descrição da intrincada ligação
entre futebol, etnia e religião no moderno Estado de Israel, ver: MONTAGUE, James. When Friday
comes: Football in the war zone. London: Mainstream Publishing, 2008, p. 89-98. Os times geralmente
representam rígidas estruturas sócio-políticas dentro do país, a não ser que um jogador seja tão bom que
essas diferenças sejam convenientemente ignoradas.
50 KUPER, Soccer against the enemy, p. 88.
51 Para relatos chocantes e nuances diversas de como o esporte se misturou com conflitos e iden-
tidades étnicas na época, ver: FOER, How soccer explains the world, p. 12.
41
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
humano sente maior liberdade para exercer seus desejos pecaminosos, pois
não se trata de um mundo “pra valer”. Assim, o mesmo homem que não rouba
no trabalho acha divertido roubar no jogo de cartas ou no Banco Imobiliário;
outro, que não trairia sua esposa, acha que é inofensivo ver pornografia na
internet, pois está supostamente apenas se divertindo sem fazer mal a nin-
guém. O presbítero ensina a amar os inimigos na aula de Escola Dominical,
mas exemplifica ódio ao ofender a torcida adversária e os árbitros. Palavrões
e ofensas que ninguém usaria num ambiente de trabalho ou família são livre-
mente incentivados nos estádios por pais orgulhosos.
Numa esfera aparentemente não-séria o homem sente-se mais livre para
atender o chamado de seus desejos pecaminosos. Claro, tudo isto vem da
pecaminosidade e hipocrisia humana, mas parece que justamente o aspecto
não-final da subcriação faz com que o homem seja menos cuidadoso com seus
filtros e atue de maneira a dar vazão a seus impulsos. Nisto se observa uma
grande oportunidade para a igreja em sua tarefa profética. Especialmente em
sociedades em que há grande ênfase no comportamento externo, pode ser que
justamente o pecado exercido livremente na esfera da diversão possa ser
amorosamente exposto demonstrando-se a seriedade do pecado e a necessi-
dade de Cristo. Talvez ao se exporem nos estádios e pistas de dança é que os
homens reconhecerão quem de fato são por natureza. A igreja também deve
olhar para si mesma nessa questão, pois muitas vezes é igualmente culpada de
cruzar limites e se afastar de Deus, além de assumir formas de pensar e agir do
mundo do entretenimento que são contrários aos caminhos da palavra de Deus.
O mundo do esporte, por exemplo, passa a influenciar a igreja e, ao invés de
ser uma fonte de diversão, passa a ditar a maneira de agir.52
Várias outras coisas poderiam ser tratadas acerca de como a queda distorce
o lazer e a diversão, mas cremos ser esta uma amostra suficiente. Muito mais
ainda poderia ser dito a respeito do consumismo que se mostra na diversão, da
priorização do lazer sobre outras responsabilidades como família e trabalho,
e assim por diante.
O homem ama a diversão, pois nela encontra ocasião para saciar seus
desejos pecaminosos, utiliza-a para fins escusos e ainda pode em certos casos
manter o autoengano de retidão.
52 Curiosamente, como um ídolo que molda seus seguidores, o esporte acaba por ditar aos crentes
como viver a vida. Por muitas décadas a igreja, principalmente nos Estados Unidos, tem se associado à
cultura dos esportes de maneira não-crítica e tem sucumbido a formas de pensar caídas. É o fenômeno
chamado “Cristianismo Muscular”, ou o que Shirl Hoffman chama de “Esportianismo”: uma associação
doentia entre os objetivos e métodos do mundo esportivo e os da igreja. Jesus passa a ser visto e ima-
ginado como um atleta superdedicado, a igreja passa a enfatizar a vitória sobre a sabedoria, a bravata
sobre a humildade, a espada sobre o cajado. HIGGS, Robert J. God in the stadium: Sports & religion in
America. Lexington, KY: University of Kentucky Press, 1995, p. 312. Para ótimas considerações, ver
principalmente HOFFMAN, Good game.
42
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
O autor quer dizer que Deus não apenas designou a cada um o seu tempo na
história… mas também estabeleceu no homem um impulso que o leva além
do temporal em direção ao eterno: está em sua natureza não se contentar com
o temporal, mas romper os limites que este traça ao seu redor, para escapar da
prisão e inquietude na qual ele é mantido, e no meio das incessantes mudanças
do tempo se consolar dirigindo seus pensamentos para a eternidade.55
53 A mensagem do livro de Eclesiastes é que o homem busca satisfazer esse desejo, mas que o
faz achando que toda sorte de coisas criadas irá fornecer essa satisfação, sendo na realidade apenas um
vapor que não mata a sede. O desiderium aeternitatis não é satisfeito debaixo do sol. Ver DELITZSCH,
Franz. Commentary on the Song of Songs and Ecclesiastes. Edinburgh: T&T Clark, 1891, p. 262.
54 EDGAR, William. Truth in all its glory: Commending the Reformed faith. Phillipsburg, NJ:
Presbyterian and Reformed, 2004, p. 15.
55 DELITZSCH, Commentary on the Song of Songs and Ecclesiastes, p. 261. Minha tradução.
43
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
45
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
3.2.2 Reconciliação
No lazer o homem é capaz de experimentar parcial reconciliação com
seus iguais e com a criação. Em Isaías 11.8-9 a profecia indica uma interessante
instância de interação pacífica e até mesmo brincalhona entre os animais e
mesmo entre seres humanos e animais. No melhor que o lazer tem a oferecer,
nós nos sentimos reconciliados e unidos aos nossos parceiros de brincadeira.
As diferenças podem ser esquecidas, a unidade no prazer pode ser alcançada.
Num sentido bem real, o esporte pode trazer união e reconciliação entre partes
fraturadas da humanidade, bem como a esperança de coisas melhores.
59 Para um tratamento mais extenso, ver minha tese de doutorado: GAROFALO NETO, Emilio.
The 2010 World Cup as sub-creation: An analysis of human play through a theological grid of Creation-
Fall-Redemption. Reformed Theological Seminary, 2011.
46
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
60 BLOOMFIELD, Steve. Africa united: Soccer, passion, politics, and the first World Cup in
Africa. New York: Harper Perennial, 2010, p. 295.
61 VOS, Biblical theology, p. 141.
62 VENEMA, Cornelis. The promise of the future. Carlisle, PA: Banner of Truth Trust, 2000, p. 476.
63 O eschaton é a consumação da obra cósmica de Deus que se iniciou com a criação ex nihilo.
VAN GRONINGEN, Gerard. From creation to consummation. Sioux Center, Iowa: Dordt College Press,
1996, p. 12.
64 THOENNES, Erik. Created to play: Thoughts on play, sport and the Christian life. In: DEAR-
DOFF, The image of God in the human body, p. 96.
65 Ibid.
47
Emilio Garofalo Neto, A Busca Humana da Diversão sob a Ótica Bíblica...
conclusão
O filósofo Blaise Pascal escreveu acerca da insaciável busca de satisfação
nas coisas criadas em lugar do Criador:
O que essa busca e inquietação revelam, se não que houve um dia em que nós
tínhamos verdadeira alegria, da qual o que resta é apenas um esboço e traços
vazios? O homem tenta sem sucesso preencher o vazio com tudo o que o cerca,
buscando em coisas ausentes a ajuda que não encontra nas que são presentes,
mas todas são incapazes de fazê-lo. Esse abismo infinito só pode ser preenchido
com um objeto infinito e imutável, quer dizer, o próprio Deus. Apenas ele é nosso
verdadeiro bem. Desde o tempo que o largamos, é curioso que nada foi capaz
de tomar seu lugar: estrelas, céu, terra, elementos, plantas, repolho, alho-poró,
animais, insetos, bezerros, cobras, febre, pragas, guerra, fome, vício, adultério,
incesto. Desde o tempo em que perdemos o verdadeiro bem o homem pode vê-
lo em todo lugar, mesmo em sua própria destruição, embora seja tão contrário
a Deus, à razão e à natureza. Alguns buscam esse bem último na autoridade,
outros na busca intelectual de conhecimento e outros no prazer.66
Como qualquer outro ídolo, o lazer falha. Ele nunca irá satisfazer plena-
mente, pois apenas Deus e a criação mediada pela lei de Deus podem satisfazer.
No uso autônomo de fé-amor-esperança o homem rebelado contra Deus põe sua
fé em si mesmo e em seus feitos, exercita seu amor em dedicação a diferentes
formas de diversão na esperança de que através de jogos e divertimentos ele
encontrará significado e satisfação. A diversão não pode dar significado último,
pois apenas refletindo as atividades humanas através das lentes divinas é que
o homem o encontrará, ancorado em Cristo e ligado à eternidade.
Uma estrutura bíblica de Criação-Queda-Redenção ajuda-nos a entender
tudo o que o ser humano faz, inclusive sua busca por vezes desenfreada de
diversão. O homem ama se divertir, pois foi criado para fazê-lo e nesta ati-
vidade reflete diversos aspectos criacionais de sua identidade e relação com
o mundo. Ele faz suas subcriações e imita a Deus em ser criativo. O homem
ama a diversão, pois nela pode dar vazão a seus instintos pecaminosos nas
mais variadas áreas, em um ambiente muitas vezes considerado inofensivo
e seguro para pecar. O homem ama se divertir, pois assim toca o desiderium
66 PASCAL, Blaise. Pensées and other writings. Trand. Honor Levi. Oxford World’s Classics.
Oxford, UK: Oxford University Press, 1999, p. 12. Minha tradução do inglês, minha ênfase.
48
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 27-49
abstract
This article seeks to explore a biblical understanding regarding mankind’s
universal search for entertainment. The author investigates how a biblical
structure of Creation-Fall-Redemption helps to comprehend the phenomenon.
The author demonstrates that man was made to be a creative being before God.
As such, all that he creates reflects the original creation in its organization and
diverse elements. Man delights in play because it is a sub-creation in which
he experiences elements for which he was created such as rest, pleasure, joy,
and beauty. The author analyzes how the Fall influences the human search for
entertainment, causing man to seek idols and satisfaction for his sinful desires
through created things. Finally, the author investigates how the desiderium
aeternitatis and a realization of the need for redemption make man seek solace
and escape from this world in play, experiencing a little of the peace and the
life for which he was made.
keywords
Entertainment; Play; Creation; Fall; Redemption; Eternity; Idolatry;
Sports.
49
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 51-94
resumo
O artigo visa proporcionar uma análise crítica do processo de desenvol-
vimento histórico-cultural, com foco específico na Modernidade, a partir de
um paradigma que transcenda o domínio dos paradigmas filosóficos, históricos
e sociológicos vigentes. Dentro de uma perspectiva biblicamente orientada
(teorreferente), o artigo pretende discernir esse desenvolvimento histórico-
cultural muito mais à luz de seu estatuto religioso central do que à luz de
qualquer outro fator, remontando às suas raízes religiosas e demonstrando a
relação de determinação entre o eu fundamentalmente religioso das pessoas
que participaram da dinâmica social moderna e os desdobramentos histórico-
culturais ocorridos na Modernidade. Isso será feito através de um inventário
crítico dos principais ídolos deste período presentes nas obras de alguns dos
mais destacados representantes filosóficos da Modernidade.
palavras-chave
Ídolos; Idolatria individual e socialmente compartilhada; Amor e confian-
ça últimos; Cosmovisão; Análise crítica teorreferente; Modernidade; Filosofia
moderna.
51
Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
introdução
Em um dos meus artigos anteriores pude discorrer sobre o que são cosmo-
visões e demonstrar, minimamente, em termos teóricos, como elas se formam
e são compartilhadas por indivíduos e até por sociedades inteiras.1 Ali vimos
que a comunhão de crenças, valores, certezas, vivências e percepções comuns,
entre indivíduos e sociedades, é um fenômeno profundamente religioso, sen-
do a fé a responsável última em possibilitar essa comunhão de pressupostos
comuns entre pessoas e grupos sociais.
Em função da queda, essa fé religiosa, compartilhada pelos indivíduos
de uma determinada sociedade, ao invés de se dirigir a Deus, comumente é
dirigida a ídolos. É esta fé idólatra da sociedade que, em grande medida, tem
impulsionado e moldado o desenvolvimento da cultura e o desenrolar da his-
tória através de um processo contínuo de emancipação em relação a Deus e
sua Palavra. Bob Goudzwaard vai nesta direção quando afirma:
52
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 51-94
Aleluia! Louvai ao Senhor do alto dos céus, louvai-o nas alturas. Louvai-o,
todos os seus anjos; louvai-o, todas as suas legiões celestes. Louvai-o, sol e
lua; louvai-o, todas as estrelas luzentes. Louvai-o, céus dos céus e as águas que
53
Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
Embora não haja nenhum tipo de intencionalidade por parte dos seres
inanimados e dos animais que configure um ato pessoal e autoconsciente de
adoração como há em nós, ao funcionar dentro dos princípios estruturais para
os quais foi criada, cada parte da criação promove a glória de Deus, o que é
retratado pelo salmista no Salmo 148 através de linguagem antropomórfica
e personificada. Isso demonstra o caráter fundamentalmente religioso da
criação,7 o fato de que, do ponto de vista bíblico, nada do que Deus criou
é religiosamente isento ou neutro: o movimento dos astros, os fenômenos
naturais, a frutificação das árvores, etc., tudo isso existe por causa de Deus,
por meio de Deus e para Deus, como seu ponto de referência último. Com os
seres humanos, se dá o mesmo. A diferença é que essa essência religiosa, no
ser humano, se manifesta através de atos pessoais e autoconscientes como
pensamentos, sentimentos, palavras e atitudes.
Todavia, mesmo as coisas mais comuns e triviais da vida humana são
religiosamente qualificadas, pois também têm em Deus seu ponto de referência
último. Em 1 Coríntios 10.31 vemos o apóstolo Paulo afirmando esta verdade:
“Portanto, quer comais, quer bebais ou façais outra coisa qualquer, fazei tudo
para a glória de Deus”. Isso nos remete à nossa próxima definição de religião.
7 Segundo Kuyper, o fato de a criação existir por causa de Deus e não o contrário, confere à rea-
lidade criada “uma expressão religiosa no conjunto da natureza inconsciente – nas plantas, nos animais”
e sobretudo no homem, cuja “natureza é de caráter fundamentalmente religioso”. Kuyper, Calvinismo,
p. 55-56. Neste caso se torna evidente que a religião “tem um caráter universal pleno” (Ibid., p. 62), e
que, por isso, não há nenhum aspecto da nossa existência que possa ser considerado indiferente ou neutro
em relação à religião. Como Kuyper mesmo diz: “Se tudo o que é existe por causa de Deus, então se
segue que a criação toda deve dar glória a Deus. O sol, a lua e as estrelas no firmamento, os pássaros do
céu, toda a natureza ao nosso redor, mas, acima de tudo, o próprio homem que, como sacerdote, deve
fazer convergir para Deus toda a criação e toda a vida que se desenvolve nela. E embora o pecado tenha
insensibilizado grande parte da criação para a glória de Deus, a exigência – o ideal, permanece imutável,
que cada criatura deve ser submergida no rio da religião e terminar por colocar-se como uma oferta
religiosa sobre o altar do Todo-Poderoso” (Ibid.). Sendo assim, segundo a interpretação kuyperiana,
tudo é dotado de caráter essencialmente religioso. Isso significa que tudo o que existe tem o propósito
último de servir a Deus e promover a sua glória no mundo (Ibid., p. 62-63).
54
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 51-94
8 Amor e confiança últimos são termos que funcionam aqui como conceitos limites para se referir
à expressão vital, originária e integral da religiosidade humana, quer seja numa condição redimida ou
não. Amar de maneira última significa amar de maneira absoluta e incondicional. Jesus se refere a esta
forma de amor quando diz que somente a Deus devemos amar com todo o nosso coração, e de toda a
nossa alma, e de todo o nosso entendimento, e de todas as nossas forças (Mc 12.30). O problema é que,
com a queda, este amor absoluto passa a ser dirigido ao eu, o ídolo-mor. Por confiança última me refiro
à fé. Seguindo Kuyper, Dooyeweerd dirá que qualquer pessoa possui esta “fé”; a diferença é que aquele
que teve seu coração dominado pelo Espírito e pela Palavra a dirigirá para Deus, enquanto que aquele que
ainda tem seu coração aprisionado pelo pecado permanecerá com sua fé fechada, apontada na direção de
um ídolo, absolutizando algo criado. Dooyeweerd, Herman. A new critique of theoretical thought.
4 vols. Jordan Station, Ontario: Paideia Press, 1984, v. 2, p. 304, 316. Ver também: KALSBEEK, L.
Contours of a Christian philosophy: An introduction to Herman Dooyeweerd’s thought. Toronto: Wedge
Publishing Foundation, 1981, p. 133.
9 Ou semen religionis, como diria Calvino: “Mas, assim como a experiência atesta em todos ser
a semente da religião divinamente implantada, assim também dificilmente se encontra um em cem que
faça medrar o que lhe foi gerado no coração, porém nenhum em quem chegue à maturação, muito menos
que fruto apareça a seu tempo [Sl 1.3]”. CALVINO, João. As Institutas: edição clássica. 4 vols. 2. ed.
São Paulo: Cultura Cristã, 2006, I.IV.1.
10 “Que existe na mente humana, e na verdade por disposição natural, certo senso da divindade,
consideramos como além de qualquer dúvida. Ora, para que ninguém se refugiasse no pretexto de
ignorância, Deus mesmo infundiu em todos certa noção de sua divina realidade, da qual, renovando
constantemente a lembrança, de quando em quando instila novas gotas, de sorte que, como todos à uma
reconhecem que Deus existe e é seu Criador, são por seu próprio testemunho condenados, já que não só
não lhe rendem o culto devido, mas ainda não consagram a vida à sua vontade”. Calvino, As Institutas,
I.III.1.
11 Não é por acaso, que logo após apresentar este postulado, Calvino trate da religiosidade inerente
55
Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
Não se há de julgar que o tentador poderia fazer cair o homem, se na alma do ho-
mem não tivesse precedido o orgulho que deveria reprimir, para que aprendesse
pela humilhação do pecado quanto presumira de si mesmo sem fundamento.14
13 Timoty Keller reproduz de maneira muito acessível esta idéia quando afirma que um ídolo é
“qualquer coisa que seja mais importante que Deus, que absorva seu coração e imaginação mais que
Deus”, “qualquer coisa que seja tão central e essencial em sua vida que, caso você o perca, achará difícil
continuar vivendo”. Segundo Keller, um caso de idolatria em curso se dá justamente quando “um ídolo
tem uma posição de controle tão grande em seu coração que você é capaz de gastar com ele a maior
parte de sua paixão e energia, seus recursos financeiros e emocionais, sem pensar duas vezes”. Keller,
Timothy. Deuses falsos: Eles prometem sexo, poder e dinheiro, mas é disso que você precisa? Rio de
Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2010, p. 15. Um rigoroso estudo sobre o significado do conceito de ido-
latria, sobretudo a partir de uma perspectiva veterotestamentária, pode ser encontrado em Halbertal,
Moshe; Margalit, Avishai. Idolatry. Cambridge: Harvard University Press, 1992.
14 AGOSTINHO. Comentário literal ao Gênesis. São Paulo: Paulus, 2005, XI.V.7.
56
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 51-94
Foi no seu íntimo que começaram a ser maus para logo caírem em ostensiva
desobediência. De fato, não se chega ao ato mau sem que a vontade má o tenha
precedido. Ora qual pode ser o começo da vontade má senão o orgulho? Efeti-
vamente, o orgulho é o começo de todo o pecado.15
Com razão, a Escritura fixou o orgulho como o início de todo pecado... Portanto,
o amor perverso de si mesmo priva da santa companhia o espírito inflado, e a
miséria coarcta aquele que já deseja saciar-se mediante a iniquidade. Daí que,
depois de ter dito em outra passagem: Os homens serão amantes de si mesmos,
acrescentou em seguida: amantes do dinheiro, descendo da avareza geral, da
qual o orgulho é o princípio, para esta especial que é própria dos homens.19
ximações às obras de Agostinho, é feita em RENO, R. R. Pride and idolatry. Interpretation, Apr. 2006,
60, 2; ProQuest Religion, p. 166.
19 Agostinho, Comentário literal ao Gênesis, XI.XV.19-20.
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Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
E não só isso, mas também que os seres humanos, quase que um a um, têm tido
seus próprios deuses. Porque, como à ignorância e às trevas se adicionam a te-
meridade e a petulância, dificilmente um só jamais se achou que não fabricasse
para si um ídolo ou imagem no lugar de Deus...22 Do que é lícito concluir que
a imaginação do homem é, por assim dizer, uma perpétua fábrica de ídolos”.23
20 AGOSTINHO. Sermones. Obras de San Agustin. Madrid: La Editorial Católica, 1981, sermão
340A.1.
21 John Maynard Keynes parece ir nesta mesma direção quando, ironicamente, afirma que tão
logo a idolatria do ideal de prosperidade econômica seja atingida, seria possível descartar os ídolos
inconvenientes representados pela avareza e pela usura que a teriam tornado possível. Keynes, John
Maynard. Economic possibilities for our grandchildren. New York: Harcourt, Brace & Co., 1932, p. 372.
Embora concorde com a crítica feita por Goudzwaard a Keynes de que não seria tão fácil se desvincular
dos ídolos do nosso tempo, no entanto, concordo com a idéia de que os ídolos menores existam apenas
para servir e satisfazer o ídolo maior, que é o próprio eu, sendo descartáveis tão logo deixem de atender às
expectativas das pessoas que vivem em sociedade. Sobre esta questão ver Goudzwaard, Capitalism
and progress, p. 152.
22 Calvino, As Institutas, I.V.12.
23 Ibid., I.XI.8.
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24 Na religião grega, por exemplo, Atena representava o ideal de conhecimento e sabedoria, Afro-
dite o ideal de beleza, Artemis o ideal de fertilidade e produtividade. Em todas as religiões politeístas e
anímicas antigas é possível averiguar a relação entre ídolo/ideia e ícone. Embora ídolo e imagem acabem
se tornando indissociáveis, o que as pessoas realmente adoram (servem com todo o coração) não é a
imagem, mas aquilo que a imagem representa: a idéia por detrás da imagem. E isso acontece quando
o homem coloca nela toda a confiança de sua vida, suas expectativas de que esta idéia saciará todas as
suas necessidades de realização humana.
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Dois amores fundaram, pois, duas cidades, a saber: o amor de si, que leva ao
desprezo de Deus, fundou a cidade terrena; o amor a Deus, que leva ao desprezo
de si, fundou a cidade celestial...25 Estes dois amores, dos quais um é santo, o
outro impuro, um social, o outro privado, um que olha para o bem da utilidade
comum em ordem à companhia celestial, o outro, que submete o comum a seu
poder por causa da dominação arrogante, um sujeito a Deus, o outro, rival de
Deus, um tranquilo, o outro, turbulento, um, pacífico, o outro, rebelde, um que
prefere a verdade às louvaminhas dos que erram, o outro, ávido de louvor de
qualquer maneira, um amigável, o outro, invejoso, um que quer para o próximo
o que quer para si, o outro, que quer submeter o próximo a si, um que governa o
próximo para a utilidade do próximo, o outro, para a sua utilidade; estes amores
existiram antes entre os anjos: um nos bons, o outro nos maus; e separam as duas
cidades fundadas no gênero humano sob a admirável e inefável providência de
Deus que administra e ordena todas as coisas criadas, uma dos justos, a outra
dos pecadores.26
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33 Obviamente que esta análise, além de breve, terá também um escopo limitado. Ela se limitará
63
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36 Bob Goudzwaard, em sua obra Capitalism and progress, acertadamente identifica a absolutização
do ideal de progresso científico, tecnológico e econômico como um dos principais ídolos socialmente
compartilhados da Modernidade. Nas suas palavras: “Não é uma questão fácil fornecer uma explicação
satisfatória da esquizofrenia cultural do homem ocidental. Mas é claro que os intrigantes fenômenos
que funcionaram como sintomas dessa clivagem estão, de alguma forma, relacionadas com a sua fé no
progresso... Tornou-se evidente que o motivo ‘progresso’ não foi apenas um dos muitos possíveis motivos
em ação, mas o que revelou características religiosas definitivas. O Ocidente aprendeu a viver pela fé no
progresso, na esperança do progresso e pelo amor ao progresso... Na medida em que o homem ocidental
atribui estatura divina às forças do progresso, podemos muito bem ser confrontados com uma situação
paralela àquela da adoração de ídolos nas culturas primitivas. A estas forças são dadas prerrogativas
divinas, tão logo o homem coloque sua confiança incondicional nelas, isto é, tão logo passemos a depen-
der do progresso econômico e tecnológico como os guias para o nosso bem-estar e como os mediadores
da nossa felicidade”. Goudzwaard, Capitalism and progress, p.151. Uma das evidências desta fé
socialmente compartilhada no ideal de progresso pode ser vista em várias obras de autores iluministas
da época. Uma das mais emblemáticas é a obra do filósofo iluminista Condorcet, Esboço de um quadro
histórico dos progressos do espírito humano, onde ele inventaria a história do progresso humano em
etapas distintas, apontando, de maneira otimista, para o caráter cumulativo das conquistas humanas, o
que, a seu ver, levaria a uma condição futura de perfectibilidade social sob a condução da razão, que à
sua época já estaria às portas.
64
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37 Neste caso em particular, o problema não está no ideal em si, mas na sua absolutização.
38 Por exemplo: numa concepção tipicamente cíclica da história, própria da visão de mundo grega,
especialmente a trágica, não havia lugar para a idéia de progresso linear.
39 Agostinho, em sua filosofia/teologia da história, já advogava essa mesma compreensão: “Com
a mescla das duas [cidades fundadas pelos dois tipos de amor antitéticos] o mundo caminha até serem
separadas no último juízo, uma, unida aos anjos bons, até conseguir a vida eterna com seu Rei; a outra,
unida aos anjos maus, até ser mandada para o fogo eterno com seu rei”. Agostinho, Comentário
literal ao Gênesis, XI.XV,20.
40 Para uma apresentação crítica dos aspectos positivos e da influência da fé cristã no desenvolvi-
mento da ciência moderna, ver: HOOYKAAS, R. A religião e o desenvolvimento da ciência moderna.
Brasília: Polis, Editora da Universidade de Brasília, 1988, e PEARCEY, Nancy; THAXTON, Charles
B. A alma da ciência: Fé cristã e filosofia natural. São Paulo: Cultura Cristã, 2005.
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46 Um tratamento crítico teorreferente e paradigmático sobre esta questão pode ser encontrado no
quinto capítulo de Roots of western culture, de Herman Dooyeweerd, especialmente nas páginas 111-141.
47 Dooyeweerd, Roots of western culture, p. 111-121.
48 Uma extensa análise da arte medieval pode ser vista em KESSLER, Herbert L. Seeing medieval
art. Ontario: Broadview Press, 2004.
49 ROOKMAAKER, H. R. Arte moderno y la muerte de una cultura. Barcelona: Editorial Clie,
2003, p. 49-52.
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50 No geral, foi isso mesmo o que aconteceu. Contudo, é necessário dizer que nem sempre todos os
reformadores magisteriais foram coerentes e uniformes na aplicação desse princípio. Uma análise detalhada
dos escritos deles demonstrará isso. Lutero, por exemplo, a despeito de sua imensa contribuição ao ideal
biblicamente orientado de um sacerdócio universal dos crentes, expressava em seu discurso, vez por outra,
uma tensão própria da presença do motivo dualista natureza e graça em sua visão de mundo, sobretudo
aquela radicalizada pelo nominalismo de Ockam. Exemplo disso era a sua perspectiva a respeito do papel
da razão no domínio da graça (fé e teologia). Sobre isso, ver: HARRISON, Peter. Philosophy and the
crisis in religion. In: HANKINS, James (Org.). The Cambridge companion to Renaissance philosophy.
New York: Cambridge University Press, 2007, p. 245. Certamente, o reformador que melhor expressou
este ideal crítico representado pela aplicação integral e abrangente da Palavra à totalidade da vida foi
Calvino. Entretanto, não podemos perder de vista que nem mesmo os escritos de Calvino estiveram ple-
namente imunes de algum tipo de síntese com os pressupostos acalentados pela visão de mundo de seu
tempo. O que deve ser visto com naturalidade. Afinal, vivemos numa condição caída, sorvendo dia a dia
os resultados dos efeitos do pecado sobre nossa racionalidade e sobre a percepção da realidade que nos
envolve, a despeito de já experimentarmos a operação redentiva da graça de Deus em nossos corações.
Com nossos antepassados na fé não era diferente: eles também tinham “pés de barro”. Reconhecer isso é
muito importante, pois nos dá uma perspectiva realista e honesta da história, e resguarda nossa admira-
ção pelos nossos antepassados na fé e pela tradição que eles nos legaram, ao mesmo tempo em que nos
condiciona a confiar de maneira absoluta tão somente na Palavra do Senhor Deus.
69
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renovada pela retórica, cujo estudo já era comum na Idade Média. Esses que
estudavam as obras clássicas de retórica (Cícero, Sêneca, etc.) passaram a ser
chamados Humanistas.51
O humanismo renascentista foi um movimento muito eclético em se tra-
tando de suas razões, finalidades e tendências. Entretanto, pode ser afirmado
que este movimento se caracterizou por um objetivo comum, um retorno ad
fontes aos clássicos gregos e latinos motivado pelos studia humanitatis – o
estudo das humanidades ou artes liberais – que no século XV incluía maté-
rias como poesia, gramática, retórica, história e filosofia moral.52 Segundo
Kristeller, o humanismo renascentista, “pelo menos na sua origem e nos seus
típicos representantes”, foi “uma tendência geral daquela época para atribuir
grandíssima importância aos estudos clássicos e para considerar a antiguidade
clássica como modelo e medida comum para todas as atividades culturais”,
“um vasto movimento cultural e literário que, na substância, não foi filosófico,
mas teve importantes implicações e consequências filosóficas”.53 Tal busca
pelos clássicos era motivada pelo seu compromisso com o ideal de eloquên-
cia, muito comum desde os retores medievais de quem os humanistas eram
herdeiros diretos. A idéia era imitar os modelos clássicos e aprender com eles
a se expressar e a escrever bem, o que acabou desembocando nas análises fi-
lológicas renascentistas.54 Mas o cultivo humanista dos clássicos antigos não
se restringiu apenas a interesses políticos e aos valores cívicos e culturais.
Refiro-me, em especial, à aplicação dos princípios humanistas à religião cristã.
Por “humanistas cristãos” devemos entender aqueles estudiosos que aliavam à
educação, aos interesses e aos métodos do humanismo a devoção e os ensina-
mentos do cristianismo.55 Francesco Petrarca (1304-1374), um dos primeiros e
51 Segundo Paul Kristeller, o uso do termo humanismus para designar aquele movimento de resgate
da cultura clássica antiga através da leitura dos clássicos, característico dos séculos XIV ao XVII, é relativa-
mente recente, tendo sido “cunhado em 1808 por um pedagogo alemão, Friedrich Immanuel Niethammer,
para sublinhar a importância dos clássicos gregos e latinos no ensino secundário, contra as exigências, então
emergentes, de um método educativo mais prático e mais científico. Em tal sentido, o termo é aplicado por
muitos historiadores do século XIX aos doutos do Renascimento, que tinham já também defendido e fixado
a função essencial dos clássicos no currículo dos estudos, e em algumas cidades alemãs tinham fundado,
durante o século XVI, escolas que ainda no século XIX prosseguiam na mesma tradição”. KRISTELLER,
P. O. Tradição clássica e pensamento do Renascimento. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 16.
52 KRISTELLER, P. O. Ocho filósofos del Renacimiento italiano. México: Fondo de Cultura
Económica, 1970, p. 194.
53 Kristeller, Tradição clássica e pensamento do Renascimento, p. 99, 29.
54 Ibid., p. 103.
55 Ibid., p. 90. Kristeller aponta para o caráter redundante da expressão “humanismo cristão”,
afirmando que, na sua origem, o humanismo renascentista foi um movimento tipicamente cristão (Ibid.,
p. 90). Ele chama de “lendárias e preconceituosas” as análises historiográficas da Renascença realizadas
no século XIX, por traçarem um cenário de hostilidade e rejeição ao cristianismo por parte da cultura
renascentista. Segundo ele, os recentes estudos historiográficos feitos por estudiosos de seu tempo ten-
diam a ir na direção oposta (Ibid., p. 76-78).
70
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56 Ibid., p. 83.
57 VASOLI, Cesare. I miti e gli astri. Nápoles: Guida, 1977. Nesta obra Vasoli destaca a importância
que a astrologia tinha neste período. Por exemplo, Marsílio Ficino (1433-1499), filósofo renascentista,
era favorável ao uso da astrologia a despeito de seu apego ao princípio da razão, enquanto que Pico
Della Mirandola a considerava incompatível com a dignidade humana fundada nos ditames da liberdade
e da razão. Ver, por exemplo, GANHO, Maria Lurdes S. Acerca do pensamento de Giovanni Pico Della
Mirandola. In: Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa, Edições 70, 1989, p. 31. Sobre a relação
entre o método científico moderno nascente e a prática da alquimia, ver a crítica de Bacon no Novum
organum, I.LXXIII.
58 BOUWSMA, William James. Calvin and the Renaissance crisis of knowing. Calvin Theological
Journal, v. 17:2, 1982, p. 191.
71
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59 GILSON, Étienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1998, p. 796.
60 Dooyeweerd, Roots of western culture, p.117-118.
61 MIRANDOLA, Giovanni Pico Della. Discurso sobre a dignidade do homem. Lisboa, Edições
70, 1989, p. 51.
72
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62 Uma evidência disso é a proposta filosófica de William of Ockam. Ver Dooyeweerd, Roots
of western culture, p. 137-139.
63 Bacon, Francis. Novum organum. São Paulo: Abril Cultural, 1973, I.XI, XII, XIII, XIV.
64 Ibid., I.XV, XVI, XVIII, XIX, LXVII.
65 Ibid., LXII-LXV.
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Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
inanidade que, com grande leviandade, tentaram construir uma filosofia natural
sobre o primeiro capítulo do Gênesis, sobre o Livro de Jó e sobre outros livros
das Sagradas Escrituras, buscando assim os mortos entre os vivos. É da maior
importância coibir-se e frear esta inanidade, tanto mais que dessa mescla danosa
de coisas divinas e humanas não só surge uma filosofia absurda, como também
uma religião herética. Em vista do que é sobremodo salutar outorgar-se, com
sóbrio espírito, à fé o que à fé pertence.66
Embora Bacon, corretamente, entenda não ser papel das Escrituras for-
necer um conhecimento científico do cosmos, contudo, a separação estanque
entre os domínios da fé (“coisas divinas”) e da razão, tal como preconizada
por ele, dá mostras do potencial emancipatório moderno já neste período. Em
sua concepção, as “coisas divinas” deveriam ser tratadas apenas no âmbito da
fé, enquanto que as “coisas humanas” (filosofia, ciência, etc.) deveriam gozar
de completa independência em relação ao âmbito da fé. A mesma crítica é
dirigida às sínteses explícitas entre teologia e filosofia, muito comuns durante
todo o período medieval, especialmente na Baixa Idade Média.
66 Ibid., I.LXV.
67 Ibid., I.LXXXIX.
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75
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A razão que me leva a apresentar-vos esta obra é tão justa – e, quando conhecer-
des seu desígnio, estou certo de que tereis o também justo desígnio de tomá-la
sob vossa proteção – que penso nada melhor poder fazer, para torná-la de algum
modo recomendável a vossos olhos, do que dizer-vos, em poucas palavras, o que
me propus nela. Sempre estimei que estas duas questões, de Deus e da alma,
eram as principais entre as que devem ser demonstradas mais pelas razões da
Filosofia que da Teologia: pois, embora nos seja suficiente, a nós outros que
somos fiéis, acreditar pela fé que há um Deus e que a alma humana não morre
com o corpo, certamente não parece possível poder jamais persuadir os infiéis
de religião alguma, nem quase mesmo de qualquer virtude moral, se primeira-
mente não se lhes provarem essas duas coisas pela razão natural.73
76
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Além disso, sabedor de que a principal razão que faz com que muitos ímpios
não queiram crer de forma alguma que existe algum Deus e que a alma é
distinta do corpo, e que eles declaram que ninguém até o presente momento
pôde demonstrar essas duas coisas; apesar de eu não ser absolutamente dessa
opinião, mas que, ao contrário, sustente que quase todas as razões apresentadas
por tantas grandes personagens, no que diz respeito a essas duas questões, são
outras tantas demonstrações e, quando são bem entendidas, afirme que seja
quase impossível criar novas, acredito que nada poderia ser feito de mais útil
na filosofia do que procurar, com interesse e zelo, as melhores e mais sólidas
razões e dispô-las numa ordem tão clara e tão exata que, a partir daí, seja certo
a todo o mundo serem verdadeiras demonstrações.74
...e, enfim, depois que as razões pelas quais eu provo que existe um Deus e que
a alma humana se distingue do corpo tiverem sido levadas ao ponto de clareza
e evidência a que eu tenho certeza ser possível conduzi-las, que deverão ser
tomadas como demonstrações muito exatas, e quiserdes declarar isto mesmo
e testemunhá-lo publicamente; eu não duvido, digo, que, se isto for realizado,
todos os equívocos e falsas opiniões que nunca existiram acerca dessas duas
questões sejam em breve eliminados do espírito dos homens. Porque a verdade
fará com que todos os doutos e pessoas de espírito aceitem vosso julgamento
e vossa autoridade, de tal maneira que os ateus, que são habitualmente mais
arrogantes do que doutos e sensatos, se dispam de seu espírito de contradição ou
talvez sustentem, eles mesmos, as razões que verão serem acolhidas por todas
as pessoas de espírito como demonstrações, receando parecerem desprovidos
74 Ibid.
77
Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
Destas quatro coisas assim referidas como introdução, penso que podemos
estabelecer as medidas e fronteiras entre fé e razão: a carência das quais pode
possivelmente ter sido a causa, se não de grandes desordens, pelo menos de
grandes disputas e talvez de grandes erros no mundo.77
75 Ibid.
76 Descartes, Meditações, Segunda Meditação, § 4.
77 LOCKE, John. Ensaio sobre o entendimento humano. 3. ed. Lisboa: Fundação Calouste Gul-
benkian, 2008, IV.XVIII.1.
78
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79
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rística). Aliás, para Locke, o crivo último pelo qual uma verdade deveria ser
julgada como revelada ou não seria justamente a sua relação de identificação
com os cânones da razão:
Posto isto, em todas as coisas em que temos evidência clara das nossas ideias
e desses princípios de conhecimento, que acima mencionei, a razão é o próprio
juiz, e a revelação, embora possa, ao estar de acordo com ela, confirmar as
suas decisões, não pode, em tais casos, invalidar as suas leis; nem podemos ser
obrigados, quando tivermos a clara e evidente sentença da razão, a renunciar a
ela por uma opinião contrária, sob o pretexto de que é assunto de fé, porque esta
não pode ter nenhuma autoridade contra os ditames evidentes e claros da razão.81
79 Ibid., IV.XVIII.5.
80 Ibid., IV.XVIII.6.
81 Ibid.
82 Ibid., IV.XVIII.7.
80
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Se esta luz interior, ou qualquer proposição que sob este título passe por uma
inspiração, for conforme aos princípios da razão, ou à Palavra de Deus que é
uma revelação certa, a razão garante-a e podemos recebê-la seguramente como
verdadeira e sermos guiados por ela nas nossas crenças ou ações.87
81
Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
90 McGIFFERT, Arthur Cushman. Protestant thought before Kant. New York: Harper & Torch-
books, 1962, p. 188.
91 Ibid., p. 188-189.
82
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A nossa época é a época da crítica, à qual tudo tem que submeter-se. A reli-
gião pela sua santidade e a legislação, pela sua majestade, querem igualmente
subtrair-se a ela. Mas, então suscitam contra elas justificadas suspeitas e não
podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem pode sustentar
o seu livre e público exame.94
83
Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
95 Nesse período se acreditava que, para alcançar o progresso científico, tecnológico e econômico,
o homem teria que se libertar de toda forma de obstáculo que impedia o pleno uso de sua faculdade
racional; em última instância, isso incluía a tradição cristã e as Escrituras. O homem voltou a ser a
medida de todas as coisas e a razão passou a ser a medida do homem. O racionalismo radical iluminista
dizia que o homem devia se livrar de toda forma de crença que não pudesse se conformar com as exi-
gências da razão. Até mesmo a moral e a religião passaram a ser vistas sob a ótica da razão. Boa parte
das questões sobrenaturais e milagrosas da Bíblia não podia ser provada pela razão e nem pela ciência;
então, deveriam ser reinterpretadas ou se manterem dentro dos limites da esfera privada do indivíduo.
Essa confiança nos poderes da razão era tão intensa que no século XVIII, por ocasião do Iluminismo
e da Revolução Francesa, a razão foi literalmente idolatrada na França, a ponto de os Jacobinos terem
criado um novo calendário destinado a substituir o calendário cristão e fazer esquecer os domingos. As
festas religiosas cristãs foram substituídas por celebrações da Natureza e da Razão. O culto à razão foi
proposto por Jacques Réne Hébert (1757-1794) e tinha como objetivo substituir o cristianismo.
96 KANT, Crítica da razão pura, B34.
97
Ibid., B34, B55, B56. Também A287 B344 até A289 B345. Sobre a distinção entre noumenon
e fenômeno, bem como a origem destes termos e de seu significado, consultar também A 249 B 306; e
KANT, Immanuel. Prolegômenos a toda metafísica futura. Lisboa: Edições 70, 1988, § 32 e 33.
98 Ibid., A 287 B344 até A 289 B345.
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99 KANT, Immanuel. Crítica da razão prática. Lisboa: Ed. 70, 1997, A215-241.
100 KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é Iluminismo? In: A paz perpétua e outros opús-
culos. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 11-19.
101 Ibid. Ver também, A481,483,484.
102 Ibid., A481,482.
103 Ibid., A484.
85
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104 KANT, Immanuel. Conflito das faculdades. Lisboa: Ed. 70, 1993.
105 KANT, Immanuel. Que significa orientar-se no pensamento? In: A paz perpétua e outros opús-
culos. Lisboa: Edições 70, 1995, p. 39-55.
106 Ibid., A325.
107 Ibid.
108 Ibid., A326.
109 KANT, Crítica da razão pura, B562.
110 KANT, Crítica da razão prática, A58, 59, A237 e KANT, Immanuel. Fundamentação da me-
tafísica dos costumes. Lisboa: Edições 70, 1988, BA39-63.
111 KANT, Fundamentação da metafísica dos costumes, BA37.
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87
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119 Abraham Kuyper reproduz esta redução do conceito de religião originada pelos efeitos tardios
do pensamento iluminista, de maneira magistral, quando afirma: “Assim é encontrado o órgão religioso
não no todo de nosso ser, mas em parte dele, estando limitado a nossos sentimentos e à nossa vontade;
consequentemente, também a esfera da vida religiosa deve assumir o mesmo caráter parcial. A religião
fica excluída da ciência, e sua autoridade do campo da vida pública; doravante a câmara interior, a cela
de oração e o segredo do coração deveriam ser seus lugares de habitação exclusiva. Por sua expressão
Du sollst [você deve], Kant limitou a esfera da religião à vida ética. Os místicos de nossos dias baniram
a religião para os abrigos do sentimento. E o resultado é que, de modos diferentes, a religião, outrora
a força central da vida humana, é agora colocada ao lado dela e é forçada a esconder-se em um lugar
distante e quase privado da prosperidade do mundo” (Kuyper, Calvinismo, p. 60). Ênfase minha.
120
Nas notas A323 e 324 do opúsculo Que significa orientar-se no pensamento?, ao se contrapor ao
espinosismo, Kant afirma: “A crítica [da razão pura] corta totalmente as asas do dogmatismo no tocante
ao conhecimento [teórico, especulativo] dos objetos suprassensíveis...”, afirmação essa que certamente
tinha em vista, também, o dogmatismo teológico das verdades reveladas cristãs.
121 O Romantismo foi um movimento artístico, filosófico e político que surgiu na segunda metade
do século XVIII, especialmente na Alemanha. O movimento romântico alemão surge como uma reação
contra o racionalismo e individualismo iluministas do século XVIII. Além disso, este movimento tam-
88
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bém foi marcado pelo interesse renovado pelo passado histórico. Não é por acaso que bastante ênfase
fosse colocada em aspectos irracionais como substitutos da razão, como, por exemplo, o sentimento,
a imaginação, a vontade e a própria fé. Junto com o idealismo alemão, também introduziu no campo
filosófico o paradigma histórico (Hegel), indicando com isso que a pesquisa histórica representaria um
guia mais confiável para a sociedade do que a razão somente. Esse movimento, por sua vez, junto com
o idealismo hegeliano, originou aquilo que conhecemos hoje por Historicismo. Segundo essa corrente
filosófica, todas as produções culturais humanas deveriam ser reduzidas aos processos históricos de
formação e, portanto, seriam relativas às épocas e lugares onde surgiram e se desenvolveram. Essa
perspectiva, por isso, tende ao relativismo cultural. A Alta Crítica surge justamente como produto do
Historicismo aplicado ao campo literário antigo, inclusive o bíblico.
122 Isso fica evidente no tratamento dado por Schleiermacher à natureza própria da “religião”,
quando, diante do dilema posto por aqueles a quem ele chama, no âmbito da religião, de “teóricos”
(metafísicos) e “práticos” (moralistas), afirma: “Os teóricos no âmbito da religião, que se propõem como
meta o saber acerca da natureza do Universo e de um Ser Supremo, o qual é seu criador, são metafísicos,
porém suficientemente condescendentes para não desdenhar tão pouco algo de moral. Os práticos, para
quem a vontade de Deus é o fundamental, são moralistas, porém um pouco ao estilo da metafísica...
Certamente, no que se refere a este ponto [ponto de conexão entre os aspectos metafísicos e moral que
qualificaria a religião enquanto tal] a solução não pode encontrar-se nem na filosofia prática, pois esta
não se preocupa dele, nem na teórica, pois esta procura com todo o zelo persegui-lo e destruí-lo, tanto
quanto possível, tal como por demais, é próprio de sua tarefa... Desta forma, a religião, para tomar posse
de sua propriedade, renuncia a toda pretensão sobre tudo o que pertence àquelas e devolve tudo o que lhe
tem sido imposto pela força. Ela não pretende, como a metafísica, explicar e determinar o Universo de
acordo com sua natureza; ela não pretende aperfeiçoá-lo e consumá-lo, como a moral, a partir da força
da liberdade e do arbítrio divino do homem. Sua essência não é pensamento nem ação, senão intuição e
sentimento. Ela quer intuir o Universo, quer observá-lo piedosamente em suas próprias manifestações
e ações, quer ser impressionada e plenificada, na passividade infantil, por seus influxos imediatos”.
Schleiermacher, F. D. F. Sobre a religião: Discurso a seus menosprezadores eruditos. São Paulo:
Novo Século, 2000, p. 30-33.
123 Ibid.
89
Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
124 No século XIX temos uma avalanche de propostas teóricas que começam a colocar o primado
da razão sob suspeita, atribuindo a aspectos não racionais boa parte do mérito na condução da vida
humana, social e histórica. Exemplos disso, no campo da filosofia, são o Romantismo alemão (Goethe,
Schleiermacher) com sua ênfase nos sentimentos e na história; Kierkegaard com sua ênfase na fé exis-
tencial; Schopenhauer com sua ênfase na vontade; Marx com sua ênfase na dialética do materialismo
econômico (luta e interesses de classes); Freud com sua ênfase no irracional psíquico (energia pulsio-
nal) e na existência do inconsciente psíquico, e também Nietzsche, para quem o mundo não é ordem e
racionalidade, mas irracionalidade, sem falar no fato de que, para ele, a razão, tal como concebida pelo
Ocidente, era tendenciosa e escravizava a liberdade. Todas estas propostas reproduzem o novo espírito
global (Zeitgeist) que já estava se delineando.
125
Sobre a proposta nietzscheana de “transvaloração” dos valores, ver NIETZSCHE, Friedrich
Wilhelm. Assim falava Zaratustra. São Paulo: Escala Educacional, 2006.
90
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 51-94
91
Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
conclusão
Tendo em vista toda essa trajetória emancipatória que se iniciou no Re-
nascimento, fermentou no Racionalismo clássico e alcançou seu apogeu no
pensamento iluminista e pós-iluminista,129 o resultado não poderia ser outro:
o completo desarraigamento da fé na Palavra de Deus de sua participação
efetiva na esfera pública, com a consequente minimização de sua relevância
em todos os assuntos relacionados a ela.130 Como vimos, a demarcação fér-
rea entre esfera privada e pública, aliada ao processo de secularização, com
a consequente racionalização e dessacralização da realidade, e privatização
do domínio religioso, é uma invenção tipicamente moderna, uma ideologia
idolátrica que pavimentou a visão de mundo global que, em muitos aspectos,
ainda permanece vigorando.
O processo de secularização continuou até os nossos dias, levando à
supremacia do domínio secular nos negócios públicos e culturais e, conse-
quentemente, reduzindo o alcance do domínio da fé à esfera privada (igreja,
família e espiritualidade pessoal). Não é por acaso que, em nosso tempo, uma
grande parcela de cristãos evangélicos, mundo afora, ainda não ache pertinen-
te, ou mesmo plausível e necessário, articular seus pensamentos e atitudes de
maneira consistente com a fé bíblica, diante dos desafios apresentados pelas
demandas públicas da esfera de atuação de cada um deles. Não é sem razão
também que, atualmente, ainda uma boa parcela deles prefira uma postura de
129 O que se percebe nesse itinerário de emancipação da razão em relação à fé é, inicialmente, (1)
uma separação de domínios (Bacon) e, posteriormente, (2) uma supervalorização do papel supervisor da
razão, inclusive sobre a fé, com a consequente redução do domínio da fé cada vez mais à esfera privada e
sua irrelevância na esfera pública (Descartes, Locke) e, finalmente, (3) a tentativa de libertar o domínio
da fé das restrições impostas ao domínio da razão pelo ceticismo humeano, com a consequente redução da
religião à esfera moral ou domínio do sentimento (Kant, românticos, teólogos liberais clássicos).
130
Uma excelente obra que aborda este assunto a partir de uma perspectiva crítica teorreferente é
PEARCEY, Nancy. Verdade absoluta: libertando o cristianismo de seu cativeiro cultural. Rio de Janeiro:
CPAD, 2006.
92
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 51-94
abstract
Departing from a paradigm that transcends the current philosophical,
historical, and sociological paradigms, this article intends to offer a critical
analysis of the process of socio-cultural development in the West, with a specific
focus on Modernity. Within a biblically-oriented perspective (Theo-referent),
the article aims to discern such historical-cultural development much more
in light of its central religious statute than in light of any other factor, going
back to its religious roots and demonstrating the relationship of determination
between the fundamentally religious self of the individuals who participated
in the modern social dynamic and the historical-cultural developments that
took place in Modernity. This is done by means of a critical inventory of the
main idols of this period present in the works of some of the most prestigious
philosophical representatives of Modernity.
93
Fabiano de Almeida Oliveira, Diagnosticando os Sintomas do Nosso Tempo: Parte 1
keywords
Idols; Individual and socially-shared idolatry; Ultimate love and con-
fidence; Worldview; Theo-referent critical analysis; Modernity; Modern
philosophy.
94
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
resumo
Este artigo busca fazer uma análise da doutrina da vocação ministerial. O
assunto é tratado principalmente nas perspectivas de João Calvino e Richard
Baxter. Parte-se do pressuposto de que a vocação pastoral, em alguns aspectos,
pode ser estudada e ensinada como análoga à vocação dos profetas no Antigo
Testamento e dos apóstolos no Novo Testamento, especificamente quanto ao
manuseio da Palavra de Deus, o impulso do Espírito Santo que foi no passado e
é no presente o aplicador da Palavra de Deus e, por fim, o trato com o povo de
Deus como receptor da Palavra de Deus ensinada e proclamada. O autor busca
as conexões do ministério pastoral com o cumprimento da Grande Comissão,
atribuindo aos ministros a responsabilidade direta de evangelização dos não-
convertidos como uma evidência externa da vocação pastoral. Por fim, aponta
alguns perigos a armadilhas do ministério pastoral nesta era contemporânea.
palavras-chave
Pastor; Chamado; Vocação pastoral; Dons espirituais; Sacerdócio uni-
versal dos crentes.
introdução
A dicotomia feita por alguns estudiosos entre missiólogos e missionários
somente será procedente se quem faz a análise ou um dos grupos analisados
95
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
96
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
1 LUTERO, Martinho. Sermão a respeito da missa. Obras Selecionadas. São Leopoldo: Sinodal,
v. 2, p. 268.
97
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
Daí se segue que leigos, sacerdotes, bispos ou como dizem, espirituais e secu-
lares, no fundo verdadeiramente não têm qualquer diferença senão em função
do cargo ou da ocupação, e não pela sua classe, pois todos eles são de classes
espirituais, autênticos sacerdotes, bispos e papas. Contudo, nem todos têm a
mesma ocupação, assim também entre os sacerdotes e monges nem todos tem
a mesma ocupação.2
2 LUTERO, Martinho. À nobreza cristã da nação alemã. Obras Selecionadas. São Leopoldo:
Sinodal, v. 2, p. 283.
3 VEITH JR., Gene Edward. Deus em ação. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 15.
98
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
Da mesma forma como aqueles que agora são chamados de clérigos ou sacer-
dotes, bispos ou papas, não são mais dignos ou distintos do que outros cristãos
senão pelo fato de deverem administrar a palavra de Deus e os sacramentos –
esta é a sua ocupação e seu oficio... Mesmo assim todos são sacerdotes e bispos
ordenados de igual modo, e cada qual deve ser útil e prestativo aos outros no
ofício ou ocupação, de modo que múltiplas ocupações estão voltadas para uma
comunidade, para promover corpo e alma, da mesma forma como os membros
do corpo servem todos um ao outro.4
É possível que o resgate desta doutrina bíblica, através dos estudos e in-
terpretações bíblicas feitos a partir de Lutero, tenha contribuído para o avanço
da igreja em dimensões anteriormente vistas apenas na época dos apóstolos,
principalmente quanto ao crescimento espiritual dos crentes nos lugares mais
longínquos da terra. A doutrina assume uma forma axiomática nos documentos
da Reforma. O Catecismo Maior de Westminster também mostra a plenitude
desse conceito quanto estabelece de forma clara a possibilidade e o dever da
livre leitura das Escrituras por todos os crentes:
A Palavra de Deus deve ser lida por todos? Embora não seja permitido a todos
lerem a Palavra publicamente à congregação, contudo os homens de todas as
condições têm obrigação de lê-la em particular para si mesmos e com as suas
famílias; e para este fim as Santas Escrituras devem ser traduzidas das línguas
originais para as línguas vulgares.5
99
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
6 CALVINO, João. As institutas da religião cristã. 4 volumes. São Paulo: Casa Editora Presbi-
teriana, 1985, Livro IV, p. 72.
7 HODGE, Charles. Teologia sistemática. São Paulo: Hagnos, 2003, p. 1288.
8 MACARTHUR JR., John. Redescobrindo o ministério pastoral. Rio de Janeiro: CPAD, 1999,
p. 85.
100
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
Enquanto que Cristo delegou poder à igreja como um todo, também provi-
denciou para que este poder fosse exercido ordinária e especificamente por
órgãos representativos, separados para a manutenção da doutrina, do culto e
da disciplina. Os oficiais da igreja são os representantes do povo, escolhidos
por voto popular. Isto não significa, porém, que eles recebem a sua autoridade
do povo, pois o chamamento do povo é apenas a confirmação do chamamento
interior feito pelo Senhor; e é do Senhor que eles recebem a sua autoridade e a
ele são responsáveis.9
A vocação não deve ser assumida levianamente, pois não é o suficiente que uma
pessoa tenha conhecimento. Ele precisa estar certo de haver sido devidamente
vocacionado. Aqueles que exercem o ministério sem a devida vocação almejam
bom propósito, mas Deus não abençoa os seus labores. Eles podem ser bons
pregadores, mas não edificam.10
9 BERKHOF, Louis. Teologia sistemática. Campinas: Luz Para o Caminho, 1990, p. 1.289.
10 LUTHER, Martin. Commentary on the Epistle to the Galatians. Grand Rapids, MI: Zondervan,
1949, 1:1.
101
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
102
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
O homem que não for totalmente sincero como cristão, não poderá estar apto
para ser pastor de igreja. Isto se comprova quanto ao seu amor a Deus... Tam-
pouco serve para ser um ministro de Cristo o homem que não tem adequando e
notório espírito para com a igreja. É preciso que ele se deleite com a beleza da
Igreja, anele sua felicidade, procure a sua prosperidade e se regozije com o seu
bem-estar. Ele deve estar disposto a gastar-se e a ser gasto por amor à Igreja.15
Se vocês não sentem o calor sagrado, rogo-lhes que voltem para casa e sirvam
a Deus em suas respectivas esferas. Mas se, com certeza, as brasas de zimbro
chamejam por dentro, não as apaguem.17
14 Ibid., p. 110.
15 Ibid., p. 96, 97.
16 CESAR, Kléos Magalhães Lenz. Vocação. Viçosa: Ultimato, 1997, p. 153.
17 SPURGEON, Charles H. Lições aos meus alunos. São Paulo: PES, 1990, v. 2, p. 31.
103
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
A vocação do pastor é realmente um oficio especial. Não que ela tenha mais
mérito do que qualquer outra vocação. Deus age e também está escondido em
outras vocações. Mas o oficio pastoral não serve apenas ao mundo, mas ao reino
espiritual de Deus. Cristo age no trabalho do pastor de modo libertador, graças
à palavra do pastor e às consequências eternas do ministério.18
Ninguém deve ser considerado um mestre legítimo, a não ser que demonstre
que foi chamado do alto. Eu já mencionei em diversas ocasiões que a vocação
tem dois aspectos: a vocação interna foi primordial quando a igreja estava em
estado de desordem... Mas, quando a igreja está correta e regularmente formada,
104
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
ninguém pode arrogar-se pastor ou ministro, a não ser que seja também chamado
pela escolha dos homens.21
21 Ibid.
22 Tradução utilizada pelo próprio Calvino conforme o seu Comentário das cartas pastorais. São
Paulo: Edições Paracletos, 1998.
23 Ibid., p. 82.
24 LLOYD-JONES, D. Martyn. Pregação e pregadores. São José dos Campos, SP: Fiel, p. 73-87.
25 SPURGEON, Lições aos meus alunos, v. 2, p. 31.
105
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
... jamais me deixarei afastar do caminho que ele indicou; especialmente se sua
vontade clara me indicar o ministério, para lá irei com alegria e zelo. Mas se
por sua providência essa estrada estiver fechada, aceitarei e lembrarei que em
qualquer posição na vida sua glória deve ser objetivo supremo.26
No batismo fui consagrado a esse ministério; em toda a minha vida tive convicção
de ser responsável pelo cumprimento dos votos de meus pais e secretamente (pois
nunca confessaria este sentimento a outros) tenho desejado que chegue o dia em
que possa cumprir esta promessa... Outra coisa que reforçou meu sentimento
foi o interesse de outros, que expressaram a certeza de que, afinal, eu me deci-
diria pelo ministério: os de casa, amigos e até estranhos. Pois se agora concluir
ser meu dever e privilégio cumprir tantas expectativas, aceitarei alegremente
e louvarei a Deus, por me dar tal honra. Não terei duvidas em sacrificar seja o
que for (do ponto de vista mundano) para optar pelo ministério – contanto que
seja a vocação com clareza.27
26 SIMONTON, Ashbel G. Diário. São Paulo: Casa Editora Presbiteriana, 1980, p. 98. Simonton,
missionário americano, pioneiro presbiteriano no Brasil. Chegou ao Rio de Janeiro em 1859, plantando
a primeira igreja em 1862. Teve seis anos de profícuo ministério, com forte ênfase na evangelização.
27 Ibid., p. 97.
106
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
1) Será que você conhece a Deus como um Deus perdoador? Será que você tem
o amor de Deus habitando em si mesmo? Será que você deseja ver apenas Deus
e nada mais em sua vida? Será que você é santo em toda a sua conversação? 2)
Será que você possui os dons para o trabalho e compreende claramente o que é
o trabalho ministerial; será que sabe julgar (discernir) as coisas de Deus? Será
que você tem concepção clara da salvação pela fé e claramente pode discernir
como ensinar isso aos homens? 3) Será que você têm frutos (convertidos)? Há
verdadeiramente alguém que foi convencido do pecado e convertido a Deus
através de sua pregação?31
107
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
Pois assim como a salvação de seu rebanho é a coroa do pastor, assim também
todos os que perecem serão requeridos das mãos dos pastores displicentes. Diz-se
que um pastor salva a si mesmo quando ele obedece a sua vocação, cumprindo
fielmente o ofício a ele confiado, não só porque assim evita o terrível juízo com
108
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
o qual o Senhor ameaça pela boca de Ezequiel: “Seu sangue o requerei de tuas
mãos” (33.8), mas porque é costumeiro falar aos crentes como que conquistando
sua salvação, permanecendo no curso de sua salvação.33
A ação pastoral não pode ser vista como mera atitude humana ou profis-
sional, mas como o cumprimento da vontade de Deus através de instrumentos
separados para se dedicarem exclusivamente à edificação do seu povo e anúncio
do seu evangelho aos não convertidos. Assim Baxter enumera quatro pecados
costumeiros na vida dos ministros de sua época: orgulho, falta de dedicação aos
estudos, falta de sinceridade e de vigor nas pregações e ausência de compaixão
com os pobres das congregações.34
Para Baxter, o propósito do ministério é a edificação do mundo, salvando-o
da ira de Deus, aperfeiçoando a criação, alcançando os fins da morte de Cristo.
Ele diz:
Não veremos grandes reformas até que obtenhamos a reforma na família. Po-
derá haver um pouco de religião aqui e ali, mas enquanto as transformações
estiverem restritas a pessoas particulares, e não forem promovidas nas famílias,
não prosperarão nem produzirão frutos.36
Irmãos, se a salvação das almas for realmente a sua missão para a glória de Deus,
certamente desejarão realizá-la tanto no púlpito quanto fora dele. Empregarão
todos os esforços para alcançar o alvo de Cristo. Indagarão a si mesmos tanto
em relação ao dinheiro do bolso quanto em relação às palavras da boca: “Como
33 Ibid., p. 126-127.
34 BAXTER, Manual pastoral do discipulado, p. 119-128.
35 Ibid., p. 93, 105.
36 BAXTER, Manual pastoral do discipulado, p. 83.
109
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
entregarei tudo isso para o maior bem, em especial pelas almas dos homens?”
Ah! Se este fosse o seu esforço diário – como usar para a glória de Deus as
riquezas, as amizades e tudo mais que possuem da mesma maneira como dese-
jam empregar a língua – então veríamos o fruto do trabalho como nunca vimos.
Entretanto, se os senhores apenas almejam o ministério do púlpito, não serão
ministros exceto quando estiverem pregando. Nesse caso, não serão dignos do
respeito devido aos ministros de Cristo.37
... o ministro é usado por Deus para declarar sua vontade ao seu povo na igreja...
Para Calvino, o trabalho do ministro na igreja é como um trabalho delegado.
Deus usa o seu ministério para continuar o trabalho que Deus começou. Calvino
tinha grande atenção ao ministério na igreja e seu entendimento influenciou a
tradição protestante.38
Considerando que Deus não habita entre nós de forma visível, ele usa o minis-
tério de homens para declarar abertamente sua vontade, transferindo-lhes o seu
direito e honra, servindo suas bocas apenas para que ele possa fazer seu próprio
trabalho – como um operário utiliza uma ferramenta para fazer o seu trabalho.39
37 Ibid., p. 47.
38 WHITLOCK, From call to service, p. 31.
39 Ibid.
110
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
E esse ofício não poderia ser mais esplendidamente adornado do que quando
nosso Senhor disse: “Quem vos der ouvidos, ouve-me a mim, e quem vos rejeitar
a mim me rejeita” (Lc 10.16). E ainda Paulo, que considera que o ministério do
evangelho é a administração do Espírito, da justiça e da vida eterna.40
40 Ibid.
41 BAXTER, Manuel pastoral do discipulado, p. 151s.
42 Ibid., p. 153.
111
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
43 Ibid., p. 173.
44 COPPENGER, Mark. Livrando-nos da profissionalização. In: ARMSTRONG, John (Org.).
O ministério pastoral segundo a Bíblia. São Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 57.
112
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
113
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
ministério pastoral. Para Peterson, toda vez que o ministro perde o essencial
no trabalho evangelístico e abandona este essencial por qualquer outra coisa,
a sua vocação é diminuída e o valor do seu ministério é reduzido.48
A vocação pastoral possui diversos inimigos, sendo a secularização do
ministério o mais tenebroso dardo do maligno contra os pastores. Este consegue
afastar a consciência do chamado à medida que seculariza o pastorado. Para
Baxter, a tratativa da teologia como uma disciplina científica corroía a essência
da vocação e separava a realidade transcendente do chamado para o ministério,
fazendo do pastorado um trabalho como outro qualquer, ignorando o trato com
as Escrituras e com os sacramentos como boca de Cristo aos seus eleitos para
edificação e sentença do Supremo Juiz para condenação dos ímpios.
Para ele, não se deve tratar a teologia apenas como uma disciplina
acadêmica. Se os instrutores das faculdades e universidades se ocupassem
principalmente em familiarizar os seus alunos com a doutrina da vida, e se
trabalhassem para colocá-la em seus corações, isso seria um meio feliz para
abençoar almas, e resultaria numa feliz igreja e feliz comunidade. Mas quando
fazem leitura de teologia como filósofos – como se fosse uma coisa não mais
importante que uma lição de música ou de aritmética, e não a doutrina da vida
eterna – eles a destroem e suprem a igreja de mestres não santificados! “Eis
porque temos tantos pregadores mundanos a apregoar uma felicidade invisível
e tantos homens carnais a declarar os mistérios do Espírito”.49
Nessa mesma direção, Baxter apontou que a rota para o ministro cuja
teologia extrapolava as possibilidades acadêmicas seria, de fato, transcendente
e não coexistiria como uma ciência da religião, mas superaria as expectativas
humanas por se tratar de coisas inerentes ao Espírito de Deus. Por esta razão,
as expectativas do ministério faziam florescer frutos no reino de Deus:
48 PETERSON, Eugene. A vocação espiritual do pastor. São Paulo: Mundo Cristão, 2006, p. 14,
15.
49 BAXTER, Manual pastoral de discipulado, p. 42.
50 BAXTER, O pastor aprovado, p. 127.
114
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
...a igreja não é uma instituição secular, mas espiritual e a vocação do pastor
tem um conteúdo específico e não pode ser reduzida a apenas conduzir uma
instituição... As vocações não devem ser confundidas, e agir fora do âmbito de
uma vocação é a fórmula para o desastre... Os pastores, cujo chamado é espe-
cialmente pregar o evangelho, apascentar as ovelhas de Cristo, estudar e ensinar
a Palavra de Deus, serão particularmente abençoados quando perceberem que
é Cristo quem está ministrando por intermédio deles.52
115
Jedeias de Almeida Duarte, A Vocação para o Serviço ou o Serviço dos Vocacionados?
conclusão
Até aqui pudemos observar que a teologia reformada admite a vocação
pastoral como uma intervenção de Deus na vida da igreja para a edificação do
corpo. Também é possível concluir, observando a teologia reformada, que o
crescimento do corpo de Cristo através do ministério pastoral está conectado
com o trabalho evangelístico desenvolvido pelo ministro, sendo esta conexão
uma evidência externa da vocação para o ministério da palavra. Por fim é pos-
sível observar que o dom pastoral, ao ser exercitado pelo pastor e reconhecido
pela igreja, produz uma relação que deve se desenvolver por toda a vida do
ministro, sendo o secularismo do ministério o mais difícil dos perigos a ser
enfrentado pelo pastor independentemente de sua idade ou tempo de ministé-
54 PETERSON, Eugene. Um pastor segundo o coração de Deus. Rio de Janeiro: Textus, 2001, p. 1.
55 PETERSON, Eugene H.; DAWN, Marva J. O pastor desnecessário. Rio de Janeiro: Textus,
2001, p. 16 e 214.
116
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 95-117
rio. Esse grave perigo pode sufocar o ministério pastoral em qualquer tempo
ou lugar, afastando o pastor da Grande Comissão através do relativismo, do
pragmatismo e do subjetivismo.
Assim, ocorre o relativismo missional ou a fragmentação do evangelho,
sua diluição e até desqualificação para atender às necessidades da sociedade,
retirando o confronto do pecador com seus pecados e com a cruz do Redentor,
com a ressurreição corpórea e histórica do Senhor Jesus Cristo, anulando a
autoridade das Sagradas Escrituras, infalíveis, inerrantes e plenamente inspi-
radas por Deus. Em nome da relevância se perde o conteúdo transformador do
evangelho, oferecendo-se apenas a sua diluição sem o Cristo vivo. Observa-se
também o pragmatismo missional ou a busca do crescimento a qualquer custo
e sob qualquer bandeira, perdendo-se a direção soberana do Espírito Santo e
a qualificação do povo mediante dons e ministérios dados pelo Espírito, e não
pelas perspectivas das ciências sociais. E por fim há um subjetivismo missional
ou a troca do treinamento, da capacitação dos vocacionados, por estratégias
mercadológicas, tornando-se a seleção um processo de mercado e não uma
marca indelével do Espírito.
abstract
This article seeks to analyze the doctrine of calling, mainly from the
perspectives of John Calvin and Richard Baxter. It starts from the presupposi-
tion that, in some aspects, the pastoral calling can be studied as analogous to
the calling of the prophets in the Old Testament and the apostles in the New
Testament. The main points of contact are the use of God’s Word, the impulse
of the Holy Spirit as the one who applies the Word, both in the past and in the
present, and the dealings with the people of God as the recipients of God’s
Word as it is taught and proclaimed. The author looks for connections between
the pastoral ministry and the fulfillment of the Great Commission, ascribing
to ministers the direct responsibility of evangelizing the unconverted as an
external evidence of their pastoral calling. Finally, he points to some dangers
and traps in pastoral ministry in the present time.
keywords
Minister; Calling; Pastoral calling; Spiritual gifts; Universal priesthood
of the saints.
117
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 119-149
resumo
Costa analisa a religião entre os gregos, demonstrando a ausência de
ateísmo comprovado, sendo este considerado uma “doença”. À luz do Salmo 14,
analisa a origem do ateísmo e algumas de suas características e implicações
intelectuais, espirituais e éticas. Uma das conclusões é que se todo o conheci-
mento parte de Deus, a negação de sua existência gerará, inevitavelmente, um
distúrbio intelectual que afetará a nossa capacidade de conhecer o significado
ontológico das coisas e, portanto, existencial do real. Sem Deus a vida é nula
de sentido. Adverte-nos também quanto ao perigo de um ateísmo prático co-
metido pelos cristãos e a certeza de que o universo no qual vivemos tem um
Deus atento que dirije a história de forma santa, justa e misericordiosa.
palavras-chave
Ateísmo; Conhecimento de Deus; Religião; Religiosidade grega; Ética.
119
Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
1 Nietzsche, F. Ao Deus desconhecido. Poesia escrita quando Nietzsche tinha menos de vinte
anos. Apud Siegmund, Georg. O ateísmo moderno: história e psicanálise. São Paulo: Loyola, 1966,
p. 264.
2 Rousseau, J. J. Sobre o contrato social (primeira versão). In: Rousseau e as relações inter-
nacionais. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 2003, III.1, p. 167. Esta versão esboçada, Manuscrito
de Genebra, é de 1761. Na versão definitiva, publicada em 1762, a questão da religião civil é tratada no
capítulo IV. Ver: Rousseau, J. J. O contrato social e outros escritos. São Paulo: Cultrix, 1975, IV.8,
p. 126-134.
3 “É uma verdade indiscutível que o sentimento religioso é conatural ao ser humano, pois não existe
nenhuma sociedade primitiva ou civilizada, que não acredite em seres sobrenaturais ou que não pratique
alguma forma de culto”. D’Onofrio, Salvatore. Metodologia do trabalho intelectual. São Paulo: Atlas,
1999, p. 13. Geisler e Feinberg dizem que o “o homem é incuravelmente religioso”. GEISLER, Norman
L.; FEINBERG, Paul D. Introdução à filosofia: uma perspectiva cristã. São Paulo: Vida Nova, 1983,
p. 269, 278. Do mesmo modo: NASH, Ronald H. Questões últimas da vida: uma introdução à filosofia.
São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 19.
120
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 119-149
do outro: todos desejam o mesmo equilíbrio, ainda que não pelos mesmos
caminhos e com nomes diferentes. A religião é um apanágio do ser humano.
O grande etnólogo Bronislaw Malinowski (1884-1942), inicia o seu livro
Magia, ciência e religião com esta afirmação: “Não existem povos, por mais
primitivos que sejam, sem religião nem magia”.4
Na Antiguidade, Cícero (106-43 a.C.), Plutarco (50-125 AD) e outros
constataram este fato. Cícero observou que não há povo tão bárbaro, não há
gente tão brutal e selvagem, que não tenha em si a convicção de que há Deus.5
Calvino (1509-1564) acentua que
... a aparência do céu e da terra compele até mesmo os ímpios a reconhecerem que
algum criador existe. (...) Certamente que a religião nem sempre teria florescido
entre todos os povos, se porventura as mentes humanas não se persuadissem de
que Deus é o Criador do mundo.6
Aqueles que cumpriam cuidadosamente com todos os atos do culto divino e por
assim dizer os reliam atentamente foram chamados de religiosos de relegere,
como elegantes de eligere, diligentes de diligere, e inteligentes de intellegere;
de fato, nota-se em todas estas palavras o mesmo valor de legere que está pre-
sente em religião.9
4 Malinowski, Bronislaw. Magia, ciência e religião. Lisboa: Edições Setenta, (s.d.), p. 19.
5 Ver: Cicero. The Nature of the Gods. England: Penguin Books, 1972, I.17; II.4.
6 Calvino, João. Exposição de Hebreus. São Paulo: Paracletos, 1997, (Hb 11.3), p. 299. Em
outro lugar: “... tão belo é seu arranjo [dos céus], e tão excelente sua estrutura, que todo seu arcabouço
é declarado como o produto das mãos de Deus”. CALVINO, João. O Livro dos Salmos. São Paulo:
Parakletos, 2002, v. 3, p. 585 (Sl 102.25).
7 CALVINO, João. As Institutas. Campinas, SP: Luz para o Caminho, 1985-1989, I.3.2.
8 Cicero, The Nature of the Gods, II.72-74. p. 152-153.
9 Ibid., II.28.
10 Cf. Religio. In: MULLER, Richard A. Dictionary of Latin and Greek theological terms. Grand
Rapids, Michigan: Baker, 1985, p. 262.
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19 JAEGER, Werner. La teologia de los primeros filosofos griegos. 3ª reimpresión. México: Fondo
de Cultura Económica, 1992, p. 28. Ver os comentários de GILSON, Étienne. Deus e a filosofia. Lisboa:
Edições 70, (2003), p. 19ss.
20 Ver: Ovídio. As metamorfoses. Rio de Janeiro: Editora Tecnoprint, 1983, Livro VIII, p. 214-216.
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2. a “doença do ateísmo”
25 CALVINO, João. Gálatas. São Paulo: Paracletos, 1998, p. 127 (Gl 4.8).
26 No grego clássico existiam os termos a)/qeoj (“sem deus” ou “abandonado pelos deuses”; cf.
Liddell & Scott; Bauer; Ef 2.12) e a)qeo/thj (“irreligiosidade”, “incredulidade”, “impiedade”). A palavra
ateísmo surgiu apenas no século XVI, sendo usada pela primeira vez em francês (athéisme) e posterior-
mente em inglês (atheism), por Miles Coverdale (1488-1569). A Bíblia traduzida por ele foi a primeira
edição completa das Escrituras impressa em inglês (04/10/1535). Em francês a palavra é empregada
para se contrapor a outra palavra, também nova, deísmo, criada pelos socinianos, que não queriam que
seu pensamento fosse confundido com o pensamento ateu. Cf. Deísmo. In: LALANDE, A. Vocabulário
técnico e crítico da filosofia. São Paulo: Martins Fontes, 1993, p. 236. É neste sentido que o teólogo
calvinista Pierre Viret (1511-1571), amigo e correspondente de Calvino, usou a expressão em 1564:
“Há vários que confessam que acreditam que existe um Deus e uma Divindade, como os Turcos e os
Judeus. Ouvi dizer que há nesse bando aqueles que se chamam Deístas, uma palavra totalmente nova
que eles querem opor ao Ateísmo”. VIRET, P. Instruction chrétienne. Apud Deísmo. In: LALANDE,
Vocabulário técnico e crítico da filosofia, p. 236. Em português a palavra também é datada do século
XVI (ver: http://en.wikipedia.org/wiki/Atheist#cite_note-12 (acesso em 17/10/11); MOHLER JR., R.
Albert. Ateísmo remix: um confronto cristão aos novos ateístas. São José dos Campos, SP: Editora Fiel,
2009, p. 21-22; Ateísmo. In: MORA, José Ferrater. Dicionário de filosofia. São Paulo: Loyola, 2000,
v. I, p. 213; Dios. In: COROMINAS, J.; PASCUAL, J. A. Diccionario crítico etimológico de la lengua
castellana. 6ª reimpresión. Madrid: Editorial Gredos, 2007, v. 2, p. 498-500.
27 No grego clássico a palavra não era reservada apenas ao conteúdo religioso; tinha um emprego
mais amplo, envolvendo a conduta (conteúdo ético). Platão, por exemplo a emprega no sentido de “im-
piedade (...) para com os deuses e para com os pais” (Platão. A república. 7ª ed. Lisboa: Fundação
Calouste Gulbenkian, 1993, 615c), desprezo para com os homens (A república, 391c). Ver diversos
exemplos em: FOERSTER, W., a(sebh/j, etc., in: FRIEDRICH, Gerhard; KITTEL, Gerhard (Orgs.).
Theological dictionary of the New Testament. 8ª ed. Reprinted. Grand Rapids, Michigan: Eerdmans
1982, v. VII, p. 185-187. Consulte também: Günther, W. Piedade. In: Colin Brown (Ed. Ger.). O
novo dicionário internacional de teologia do Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1981-1983, v. III,
p. 544-547. No Novo Testamento a palavra tem o emprego comum de impiedade: Rm 1.18; 11.26; 2Tm
2.16; Tt 2.12; Jd 15,18.
28 Quanto à progressiva distinção entre a)qeo/thj e a)se/beia, ver: FOESTER, W. a(sebh/j, etc.
In: FRIEDRICH, G.; KITTEL, Gerhard (Orgs.). Theological dictionary of the New Testament, v. VII,
p. 186.
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Sócrates (469-399 a.C.), que, entre outras acusações, recebeu a de “... não crer
nos deuses em que o povo crê e sim em outras divindades novas”.29
Mas, na realidade – apesar de listas antigas de “ateus” gregos,30 cuja
crença é qualificada por Platão (427-347 a.C.) como “doença”31 – tem sido
extremamente difícil provar além de qualquer contestação que algum pensador
grego tivesse sido ateu “puro”. No entanto, o que acontecia era coisa diferente:
apesar do paganismo grego da Antiguidade ser cheio de lendas e superstições,
de quando em quando alguns pensadores se levantavam contra as crenças e
costumes populares, declarando algo de relevo. Muitas das críticas estavam
relacionadas – ainda que não solitariamente – à fragilidade moral dos deuses tão
candidamente descrita nas obras de cunho histórico-religioso e que dominava a
mente dos povos.32 Encontramos, por exemplo, a percepção de que os homens
tendiam a fazer seus deuses à sua imagem e semelhança. Aliás, esta é uma
característica do ser humano, projetando o seu mundo a partir de si mesmo,33
dando uma espécie de “troco” a Deus. Calvino diz que o homem pretende
usurpar o lugar de Deus: “Cada um faz de si mesmo um deus e virtualmente
se adora, quando atribui a seu próprio poder o que Deus declara pertencer-
lhe exclusivamente”.34 No entanto, a compreensão de Calvino a respeito do
homem crente permanece: “O coração fiel não inventa um deus a seu gosto,
mas põe a sua atenção no único Deus verdadeiro, e não Lhe atribui o que lhe
parece bom, mas se alegra com o que de Deus lhe é revelado”.35 E: “O único
fundamento de toda a religião é a imutável verdade de Deus”.36
29 Platão. Defesa de Sócrates. Os Pensadores, v. II. São Paulo: Abril Cultural, 1972, 24b-c, p. 17.
Ver: LACOSTE, Jean-Yves. Ateísmo. In: LACOSTE, Jean-Yves (Org.). Dicionário crítico de teologia.
São Paulo: Paulinas/Loyola, 2004, p. 204-205. Evidentemente, há inúmeros outros casos. Outro bem
conhecido é o do Diágoras de Melos (c. 465-410 a.C.) – aliás, em todas as menções feitas ao seu nome,
aparece o apelido “o ateísta” –, discípulo de Demócrito que foi acusado de impiedade quando ensinava
em Atenas (411 a.C.) devido ao seu suposto ateísmo. Ver: Cícero, The nature of the Gods, I.1. p. 69;
III.88-90, p. 232; GUTHRIE, W. K. C. Os sofistas. São Paulo: Paulus, 1995, p. 220-221.
30 Cf. GUTHRIE, Os sofistas, p. 220-221. Ver: Cícero, The nature of the Gods, I.1; CALVINO,
As Institutas, I.3.3.
31 Platão usa a expressão: “doença do ateísmo” (Leis, p. 357-358, 402). O capítulo X de sua obra
é dedicado à defesa da religião, combatendo algumas formas de ateísmo. Ver um bom resumo desse
capítulo em: Ateísmo, Abbagnano, N. Dicionário de filosofia. 2ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1982,
p. 82-83.
32 Ver alguns exemplos de insatisfação em: GUTHRIE, Os sofistas, p. 212ss.
33 “O homem em geral, e o homem primitivo em particular, tem tendência para imaginar o mundo
exterior à sua imagem” (Malinowski, Magia, ciência e religião, p. 20).
34 CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 3, p. 549 (Sl 100.1-3).
35 CALVINO, João. As Institutas da Religião Cristã: edição especial com notas para estudo e
pesquisa. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, v. 1 (I.1), p. 61.
36 CALVINO, João. As pastorais. São Paulo: Paracletos, 1998, p. 303 (Tt 1.2).
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Homero e Hesíodo atribuíram aos deuses tudo o que para os homens é opróbrio
e vergonha: roubo, adultério e fraudes recíprocas.
Como contavam dos deuses muitíssimas ações contrárias às leis: roubo, adultério
e fraudes recíprocas.
Mas os mortais imaginam que os deuses são engendrados, têm vestimentas, voz
e forma semelhantes a eles.
Tivessem os bois, os cavalos e os leões mãos, e pudessem, com elas, pintar e
produzir obras como os homens, os cavalos pintariam figuras de deuses seme-
lhantes a cavalos, e os bois semelhantes a bois, cada (espécie animal) reprodu-
zindo a sua própria forma.
Os etíopes dizem que os seus deuses são negros e de nariz chato, os trácios
dizem que têm olhos azuis e cabelos vermelhos.37
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49 Ver: JAEGER, Werner. Paidéia: a formação do homem grego. 2ª ed. São Paulo/Brasília: Martins
Fontes/Editora Universidade de Brasília, 1989, p. 236.
50 Ver a descrição desta batalha in: Heródoto. História. Rio de Janeiro: Ediouro, [s.d.], VI.93-
120.
51 Ibid., VIII.24-96.
52 Ibid., IX.1-107, 115-121.
53 Apud PLATÃO. Teeteto. In: Teeteto e Crátilo. Belém: Universidade Federal do Pará, 1988,
152a; 160c. Ver: Aristóteles, Metafísica, XI, 6. 1 062; Platão, Eutidemo, 286.
54 Diógenes Laercio, Vidas, opiniones y sentencias de los filósofos más ilustres. Buenos
Aires: Librería “El Ateneo” Editorial, 1947, X, p. 581-582. Ver também: Mondolfo, Rodolfo. O
pensamento antigo. 3ª ed. São Paulo: Mestre Jou, 1971, v. I, p. 144-145.
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55 Melisso de Samos, Dox. 3. In: Bornheim, Os filósofos pré-socráticos, p. 66. Ver também
a citação em Cicero, The nature of the Gods, I.1, 29, 63,117.
56 Calvino, João. As Institutas, I.5.12. Na sequência, Calvino comenta a insuficiência da reve-
lação na natureza para o homem auferir um conhecimento sólido e precioso de Deus.
57 Platão, A república, 338e-339a; 343c-344c.
58 Ibid., 336b; 338c; Platão, Leis, 889e.
59 Ver: Xenofonte, Ditos e feitos memoráveis de Sócrates, I.4.10ss; Platão, Leis, 885b,
888c; Platão, A república, 365d-e.
60 Pródico, Das horas, Fragmento, 2. Ver também: Xenofonte, Ditos e feitos memoráveis
de Sócrates, II.1.28; Platão, Protágoras, 315c.
61 Ver: Cicero, The nature of the Gods, I.118; Guthrie, Os sofistas, p. 221-224.
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 119-149
fórmulas usadas por esses líderes religiosos era fazer as pessoas crerem que
poderiam mudar a vontade dos deuses mediante a oferta de sacrifícios ou por
meio de determinados encantamentos. Os deuses seriam, portanto, limitados
e aéticos, sem padrão de moral, sendo guiados pelas seduções humanas:
Mendigos e adivinhos vão às portas dos ricos tentar persuadi-los de que têm o
poder, outorgado pelos deuses devido a sacrifícios e encantamentos, de curar
por meio de prazeres e festas, com sacrifícios, qualquer crime cometido pelo
próprio ou pelos seus antepassados, e, por outro lado, se se quiser fazer mal a
um inimigo, mediante pequena despesa, prejudicarão com igual facilidade justo
e injusto, persuadindo os deuses a serem seus servidores – dizem eles – graças
a tais ou quais inovações e feitiçarias. Para todas estas pretensões, invocam os
deuses como testemunhas, uns sobre o vício, garantindo facilidades (...). Outros,
para mostrar como os deuses são influenciados pelos homens, invocam o teste-
munho de Homero, pois também ele disse: “Flexíveis até os deuses o são. Com
as suas preces, por meio de sacrifícios, votos aprazíveis, libações, gordura de
vítimas, os homens tornam-nos propícios, quando algum saiu do seu caminho
e errou”(Ilíada IX.497-501).62
Ele era bom, e naquele que é bom nunca se lhe nasce a inveja. Isento de inveja,
desejou que tudo nascesse o mais possível semelhante a ele. (...) Deus quis que
tudo fosse bom: excluiu, pelo seu poder, toda imperfeição, e assim, tomou toda
essa massa visível, desprovida de todo repouso, mudando sem medida e sem
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Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
ordem, e levou-a da desordem à ordem, pois estimou que a ordem vale infini-
tamente mais que a desordem.67
67 PLATÃO, Timeu, 29-30. Agostinho aventa a possibilidade de Platão ter tido contato com as
Escrituras. Agostinho, A cidade de Deus. 2ª ed. Petrópolis, RJ: Vozes, 1990, v. 1, VIII.11. Acredita
que Platão possa ter conhecido o profeta Jeremias no Egito. Santo Agostinho. A doutrina cristã.
São Paulo: Paulinas, 1991, II.29. p. 135.
68 Ver: GILSON, O espírito da filosofia medieval, p. 54ss.
69 Cicero, The nature of the Gods, I.32. Ver Guthrie, Os sofistas, p. 230-231.
70 Cf. GREEN, Michael. Evangelização na igreja primitiva. São Paulo: Vida Nova, 1984, p. 16.
71 Justino Mártir (c. 100-165) e Clemente de Alexandria (c. 153-c. 215).
72 Taciano, o Sírio (c. 120-c. 180) e Tertuliano (c. 160-c. 220). Para uma abordagem mais completa
deste tema ver: MARROU, Henri-Irénée. História da educação na Antiguidade. 5ª reimpr. São Paulo:
EPU, 1990, p. 484ss; GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995,
p. 1ss; NUNES, Ruy A. da Costa. História da educação na Antiguidade cristã. São Paulo: EPU/EDUSP,
1978, p. 5ss; BOEHNER, Philotheus & GILSON, Etienne. História da filosofia cristã. 3ª ed. Petrópolis,
RJ: Vozes, 1985, p. 35; MONDIN, Battista. Curso de filosofia. São Paulo: Paulinas, 1983, v. I, p. 216-222.
É muito interessante também a obra de COCHRANE, Charles Norris. Cristianismo y cultura clásica.
2ª reimpresión. México: Fondo de Cultura Económica, 1992, p. 213ss.; COSTA, Hermisten M. P. Raízes
da teologia contemporânea. São Paulo: Cultura Cristã, 2004, p. 327-329.
73 Ver: Justino de Roma, I Apologia, 20.3-5. p. 37-38.
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usar de impiedade e para proferir mentiras contra o Senhor, para deixar o faminto na ânsia da sua fome
e fazer que o sedento venha a ter falta de bebida” (Is 32.5-6).
80 “É provável que não neguem a existência de Deus de maneira franca, mas o imaginam como
que recluso no céu e destituído de justiça e poder; e esse comportamento equivale à formação de um
ídolo no lugar de Deus”. CALVINO, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 273 (Sl 14.1). Do mesmo modo, ver:
Schökel, Luís Alonso; Carniti, Cecília. Salmos I: Salmos 1-72. São Paulo: Paulus, 1996, p. 255.
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Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
81 Cf. CLARK, Gordon H. Ateísmo. In: HENRY, Carl (Org.). Dicionário de ética cristã. São
Paulo: Cultura Cristã, 2007, p. 63. “Defender a crença num ‘poder do alto’ nebuloso é balançar entre
o ateísmo e um cristianismo total com suas exigências pessoais”. SPROUL, R. C. Razão para crer.
São Paulo: Mundo Cristão, 1986, p. 48). Quanto à perspectiva do “neo-ateísmo”, ver: Mohler Jr.,
Ateísmo remix: um confronto cristão aos novos ateístas. Quanto à tentativa de se classificar alguns tipos
de ateísmo, ver: GEISLER, Norman. Enciclopédia de apologética: respostas aos críticos da fé cristã. 2ª
impressão. São Paulo: Vida, 2002, p. 83.
82 Ver: Hengstenberg, Ernst W.; Thomson, John. Commentary on the Psalms. Reprinted.
Tennessee: General Books, ©1846, 2010, v. 1, p. 51-52 (Sl 5).
83 Keil e Delitzsch vão além, entendendo que a negação é da existência de um Deus pessoal. KEIL,
C. F.; Delitzsch, F. Commentary on the Old Testament. Grand Rapids, MI: Eerdmans, 1871, v. V
(I/III), p. 203-204 (Sl 14.1).
84 G. Ernest Wright (1907-1974) salienta que na doutrina de Israel sobre o homem, “o EU, ou
a identidade, não está associado a qualquer faculdade particular, ou órgão do ser humano, quer seja
sua natureza psíquica, seu espírito ou sua razão. O EU é a criatura total. Pensa-se no homem com ser
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As palavras hebraicas bl (lêbh) e bbl (lêbhãbh) têm uma gama mais ex-
tensa do que esta, apontando mais propriamente para “o homem essencial”;86 o
homem todo, em contraste com a sua aparência exterior, que é alvo dos juízos
mais apressados (1Sm 16.7).
Bavinck resume:
Deus pede o nosso coração: “Dá-me filho meu, o teu coração, e os teus
olhos se agradem dos meus caminhos” (Pv 23.26; ver 1Rs 8.23). Observe que há
uma relação determinante: quando o nosso coração é confiado a Deus, nós nos
agradamos dos seus caminhos, da sua Palavra: “Agrada-me fazer a tua vontade,
ó Deus meu; dentro em meu coração está a tua lei”, declara Davi (Sl 40.8).
volitivo e ativo. Se algum termo especial, mais que outro, sugere a idéia pessoal é a palavra ‘coração’,
mas o ‘coração’ não é parte ou faculdade do homem”. WRIGHT, G. E. A doutrina bíblica do homem na
sociedade. São Paulo: ASTE, 1966, p. 137.
85 Banwell, B. O. Coração. In: DOUGLAS, J. D. (Org.). O novo dicionário da Bíblia. São
Paulo: Junta Editorial Cristã, 1966, v. I, p. 322. Ver: McDONALD, H. D. Doutrina do homem. In:
ELWELL, Walter A. (Org.). Enciclopédia histórico-teológica da igreja cristã. São Paulo: Vida Nova,
1988-1990, v. II, p. 260; Spykman, Gordon J. Teología reformacional: un nuevo paradigma para hacer
la dogmática. Jenison, MI: The Evangelical Literature League, 1994, p. 242; LOWER, M. Heart. In:
TENNEY, Merril C. (Org.). The Zondervan pictorial encyclopaedia of the Bible. 5ª ed. Grand Rapids,
MI: Zondervan, 1982, v. III, p. 58.
86 Conforme expressão de Vorländer. Vorländer, H. Homem. In: BROWN, Colin (Org.). O
novo dicionário internacional de teologia do Novo Testamento, v. II, p. 376.
87 BAVINCK, Herman. Teologia sistemática. Santa Bárbara d’Oeste, SP: SOCEP, 2001, p. 19.
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Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
88 KIDNER, Derek. Salmos 1-72: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão,
1980, v. 1, p. 95 (Sl 14.1).
89 BAIGENT, John W. Salmos (1-72). In: BRUCE, F. F. (Org.). Comentário bíblico NVI: Antigo
e Novo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 776 (Sl 14).
90 Ver: Van Deursen, Frans. Los Salmos. Países Bajos: Fundacion Editorial de Literatura
Reformada, 1996, v. 1, p. 80-82.
91 SARTRE, Jean P. O existencialismo é um humanismo. Os Pensadores, v. 45. São Paulo: Abril
Cultural, 1973, p. 15 e 28.
92 Goldberg, Louis. Nabal. In: HARRIS, R. Laird et. al. (Orgs.). Dicionário internacional de
teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 910. Do mesmo modo, KIDNER, Derek.
Provérbios: introdução e comentário. São Paulo: Vida Nova/Mundo Cristão, 1980, p. 40.
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 119-149
93 Deus usava inclusive do recurso musical para ensinar a Lei ao povo: “Escrevei para vós outros
este cântico e ensinai-o (dml)(lamad) aos filhos de Israel; ponde-o na sua boca, para que este cântico
me seja por testemunha contra os filhos de Israel. (...) Assim, Moisés, naquele mesmo dia, escreveu este
cântico e o ensinou (dml)(lamad) aos filhos de Israel” (Dt 31.19,22; 32.1-47).
94 “A maioria dos ateus se orgulha de ser racional. Mas para que ser racional se o universo é o
resultado do acaso irracional? Não há razão para ser racional num universo aleatório. Logo, o maior
orgulho dos ateus não é possível sem Deus”. GEISLER, Enciclopédia de apologética, p. 86.
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Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
... à ação de, com a inteligência, tomar conhecimento das causas. (...) Designa o
processo de pensar como uma disposição complexa de pensamentos que resultam
numa abordagem sábia e bastante prática do bom senso. Outra consequência é
a ênfase no ser bem-sucedido.97
O salmista lamenta que os seus pais não atentaram, não deram atenção às
maravilhas de Deus e à sua misericórdia; faltou discernimento: “Nossos pais,
no Egito, não atentaram às tuas maravilhas; não se lembraram da multidão das
tuas misericórdias e foram rebeldes junto ao mar, o mar Vermelho” (Sl 106.7).
É Deus mesmo quem se propõe a nos ensinar; contudo, o ímpio não quer
aprender. Deus diz a Davi: Instruir-te-ei (lkV) e te ensinarei o caminho que
deves seguir; e, sob as minhas vistas, te darei conselho” (Sl 32.8).
Aos reis rebeldes contra o Ungido do Senhor, a palavra é: “Agora, pois,
ó reis, sede prudentes (lkV); deixai-vos advertir, juízes da terra” (Sl 2.10). No
entanto, o ímpio, rejeita a instrução e o discernimento: “As palavras de sua boca
são malícia e dolo; abjurou o discernimento (lkV) e a prática do bem” (Sl 36.3).
O salmista declara que tem mais entendimento do que os seus mestres
porque medita na lei de Deus: “Compreendo (lkV) mais do que todos os meus
mestres, porque medito nos teus testemunhos” (Sl 119.99). No entanto, ao
ímpio falta-lhe totalmente este discernimento e compreensão. Ele persiste em
sua ignorância refletida afirmando a sua suposta superioridade pelo fato de
negar a Deus.
Isto se torna ainda mais grave pelo fato de Deus ter se revelado de forma
compreensível na Criação e mais completamente na redenção de seu povo.
Aliás, a negação de Deus traz como pressuposto a sua revelação, visto que
95 Ver: GESENIUS, William. Hebrew-Chaldee lexicon to the Old Testament. 3ª ed. Grand Rapids,
MI: Eerdmans, 1978, p. 789-790; GOLDBERG, Louis. Sakal. In: HARRIS, R. Laird et. al. (Orgs.).
Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 1478-1480;
Girdlestone, Robert B. Synonyms of the Old Testament. Reprinted. Grand Rapids, MI: Eerdmans,
1981 (1897), p. 74, 224-225.
96 Neste texto aparece tanto o verbo (lkV) como o substantivo lk,v, evidenciando o profundo
conhecimento que os levitas tinham do serviço do Senhor: “Ezequias falou ao coração de todos os levitas
que revelavam bom entendimento (lk,v,) no serviço do Senhor; e comeram, por sete dias, as ofertas da
festa, trouxeram ofertas pacíficas e renderam graças ao Senhor, Deus de seus pais” (2Cr 30.22).
97 Goldberg, Sakal, Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento, p. 1478.
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Assim é que Deus tem estabelecido por toda parte, em todos os lugares, em todas
as coisas, suas insígnias e provas, às vezes em brasões de tal nítido entendimento
que ninguém pudesse alegar ignorância por não conhecer um tal soberano
Senhor que tão amplamente havia exaltado sua magnificência. É quando, em
todas as partes do mundo, no céu e na terra, Ele escreveu e praticamente gravou
a glória de Seu poder, Sua bondade, sabedoria e eternidade.98
98 Prefácio de Calvino à tradução do Novo Testamento feita por Pierre Olivétan. In: FARIA,
Eduardo Galasso (Org.). João Calvino: textos escolhidos. São Paulo: Pendão Real, 2008, p. 15. Ver
também: CALVINO, João. Exposição de Hebreus. São Paulo: Paracletos, 1997, p. 299-301 (Hb 11.3);
O Profeta Daniel: 1-6. São Paulo: Parakletos, 2000, v. 1, p. 186 (Dn 3.2-7); Exposição de 1 Coríntios.
São Paulo: Paracletos, 1996, p. 62 (1Co 1.21).
99
CALVINO, João. Exposição de Romanos. São Paulo: Paracletos, 1997, p. 64 (Rm 1.19).
Berkhof, L. Teologia sistemática. Campinas, SP: Luz para o Caminho, 1990, p. 32.
100 “Moisés diligentemente buscou (vrd) o bode da oferta pelo pecado....” (Lv 10.16). Ver mais
detalhes em: COPPES, Leonard J. Dãrash. In: HARRIS, R. Laird et. al. (Orgs.). Dicionário internacional
de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 328-329.
139
Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
O não investigar (vrD) (Sl 10.4) significa não se importar, não buscar a
Deus. O ímpio acredita não ter elementos suficientes para crer em Deus; con-
tudo, paradoxalmente, sustenta ter razões suficientes para negá-lo. Ou, como
afirmou Eco: “... não vejo como é possível não acreditar em Deus e considerar
que não se pode comprovar Sua existência, e depois a acreditar firmemente na
inexistência de Deus, pensando poder prová-Lo”.101
O não investigar é um mal em si mesmo. Um bom princípio é examinar
o que se nos apresenta como realidade, não nos deixando seduzir e guiar por
nossas inclinações ou pelas tendências massificantes. Podemos ser conduzidos
simplesmente por princípios que nos agradam sem verificar a sua veracidade. O
fim disso pode ser trágico. Assim sendo, por mais auto-eloquentes que possam
se configurar aspectos da chamada realidade, precisamos examiná-los antes de
os tomarmos como pressupostos para a aceitação de outras declarações tam-
bém reivindicatórias. Há o perigo de formarmos a nossa cosmovisão baseada
em um mosaico de peças promíscuas, contraditórias e excludentes. Por isso o
salmista declara: “A salvação está longe dos ímpios, pois não procuram (vrd)
os teus decretos” (Sl 119.155).
101 Umberto Eco, in: ECO, Umberto; MARTINI, Carlo Maria. Em que crêem os que não crêem?
Rio de Janeiro: Record, 1999, p. 85. Do mesmo modo: “O ateísmo é uma questão de fé tanto quanto o
cristianismo”. McGRATH, Alister. O Deus desconhecido: em busca da realização espiritual. São Paulo:
Loyola, 2001, p. 23. “O cristão que acredita em Deus, então, o faz por fé. Mas o ateu precisa fazer o mes-
mo. Ele crê que Deus não existe. Isso mesmo: crê. Como não consegue provar que não existe Deus, o
ateísmo também é um tipo de fé”. McGRATH, Alister. Como lidar com a dúvida sobre Deus e sobre você
mesmo. Viçosa, MG: Ultimato, 2008, p. 36. “Pode-se negar que a existência de Deus seja demonstrável.
Não se pode demonstrar que Deus não existe”. LACOSTE, Ateísmo, Dicionário crítico de teologia,
p. 204. Ver: CLARK, Gordon H. Em defesa da teologia. Brasília, DF: Monergismo, 20109, p. 29ss.
102 Esse conhecimento envolve a capacidade de discernir (Sl 4.4), experimentar (Sl 9.11; 20.7;
25.4.14; 119.75; 139.1,2,4; 139.14; ver Sl 16.11); pensar/perceber (Sl 35.8), perfeito conhecimento
(Sl 37.18; 44.21; 50.11; 69.5; 94.11; 103.14; 139.23; 142.3), conhecimento íntimo e pessoal (Sl 51.3),
intimidade/proximidade (Sl 55.13; 88.18), compreender (Sl 73.16), aprender (Sl 78.3), ensinar (Sl 90.12),
fazer notório/manifestar (Sl 98.2; 103.7; 145.12).
140
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 119-149
aqueles que os alimentam. O homem, por sua vez, como coroa da criação,
cedendo ao pecado perdeu totalmente o seu discernimento espiritual; já não
reconhecemos nem mesmo o nosso Criador; antes lhe voltamos as costas e
prosseguimos em outra direção:103 “O boi conhece ([dy) o seu possuidor, e o
jumento, o dono da sua manjedoura; mas Israel não tem conhecimento ([dy)
o meu povo não entende (!yb).104 “Ai desta nação pecaminosa, povo carregado
de iniquidade, raça de malignos, filhos corruptores; abandonaram o Senhor,
blasfemaram do Santo de Israel, voltaram para trás” (Is 1.3-4).
Na realidade, há uma obstinação, uma antítese ativa aos ensinamentos de
Deus. Os ímpios aqui descritos praticam a maldade com naturalidade;105 não
se sentem pesarosos de nada. Estão totalmente insensíveis.
É isto que o Senhor diz a respeito do povo no deserto que durante 40
anos viu sinais do seu poder, amor e misericórdia, contudo, não quis aprender:
“Durante quarenta anos, estive desgostado com essa geração e disse: é povo
de coração transviado, não conhece ([dy) os meus caminhos” (Sl 95.10).
Os artífices idólatras constroem suas imagens pagãs também desta forma.
Como não poderia deixar de ser, nada entendem:“Todos os artífices de imagens
de escultura são nada, e as suas coisas preferidas são de nenhum préstimo; eles
mesmos são testemunhas de que elas nada vêem, nem entendem ([dy), para
que eles sejam confundidos” (Is 44.9).
103 Lloyd-Jones explora com vivacidade a analogia do texto. Ver: Lloyd-Jones, D. M. O caminho
de Deus, não o nosso. São Paulo: Publicações Evangélicas Selecionadas, 2003, p. 43-46.
104 O verbo (!yb) apresenta a ideia de entendimento, fruto de observação demorada, e nos permite
discernir para interpretar com sabedoria e conduzir os nossos atos. “O verbo se refere ao conhecimento
superior à mera reunião de dados. (...) Bîn é uma capacidade de captação julgadora e perceptiva e é
demonstrada no uso do conhecimento”. GOLDBERG, Louis. Bîn. In: HARRIS, Laird et. al. (Orgs.).
Dicionário internacional de teologia do Antigo Testamento. São Paulo: Vida Nova, 1998, p. 172. Ele
permite diversas traduções (ARA): acudir (Sl 5.1, no sentido de considerar), ajuizado (Gn 41.33,39),
atentar (Dt 32.7,29; Sl 28.5), atinar (Sl 73.17; 119.27), considerar (Jó 18.2; 23,15; 37.14), contemplar
(Sl 33.15), cuidar (Dt 32.10), discernir (1Rs 3.9,11; Jó 6.30; 38.20; Sl 19.12), douto (Dn 1.4), ensinar
(Ne 8.7,9), entender/entendido/entendimento (Dt 1.13;4.6; 1Sm 3.8; 2Sm 12.19; 1Rs 3.12;1Cr 15.22;
27.32; 2Cr 26.5; Ed 8.16; Ne 8.2,3,8,12; 10.28; Jó 6.24;13.1; 15.9; 23.5; 26.14; 28.23; 32.8,9; 42.3),
fixar no sentido de pensar detidamente (Jó 31.1), inteligência (Dn 1.17), mestre no sentido de expert
(1Cr 25.7,8), penetrar com o sentido de discernir (1Cr 28.9; Sl 139.2), perceber (Jó 9.11;14.21; 23.8),
perito (Is 3.3), procurar (Sl 37.10), prudentemente (2Cr 11.23), reparar (1Rs 3.21), revistar ou procurar
atentamente (Ed 8.15), saber/sabedoria (Ne 13.7; Pv 14.33), “sisudo” em palavras (1Sm 16.18), supe-
rintender por ter maior conhecimento (2Cr 34.12).
105 Faz-se necessário enfatizar que o ateísmo não é necessariamente imoral. Apenas indico, à luz
do salmo, que a imoralidade tem como um de seus fundamentos a negação de Deus. GEISLER, Enci-
clopédia de apologética, p. 85-86. Outro ponto é que a perseguição aos cristãos fiéis com frequência é
promovida por pessoas ditas religiosas, mas que não conhecem o Senhor. Ver: COSTA, Hermisten M.
P. Os perseguidos: assumindo o preço da contracultura cristã. Disponível em: https://docs.google.com/
viewer?a=v&pid=explorer&chrome=true&srcid= 0BO3Dkx1kn89YzY2Yzg5NDctYzdkOS00ZjNjLWE
zYjEtYTJiNWQ4MGEzNTFj&hl=en. Acesso em: 15 out. 2011.
141
Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 119-149
Seres humanos jamais são neutros em relação a Deus. Adoramos a Deus como
Criador e Senhor ou nos afastamos de Deus. Porque o nosso coração é dirigido
por Deus ou contra Deus, o pensamento teórico jamais é puro ou autônomo
como muitos gostariam de pensar.110
108 “Deixar de relacionar-se com Deus é deixar de ser completamente humano. Ser realizado é ser
plenificado por Deus. Nada transitório pode preencher esta necessidade. Nada que não seja o próprio
Deus pode esperar tomar o lugar de Deus. Assim mesmo, por causa da decadência da natureza humana,
há hoje a tendência natural de se tentar fazer com que outras coisas preencham essa necessidade. O
pecado nos afasta de Deus, e nos leva a pôr outras coisas em seu lugar. Essas vêm para substituir Deus.
Elas, porém, não satisfazem. E, como a criança que experimenta e expressa insatisfação quando o pino
quadrado não se encaixa no orifício redondo, passamos a experimentar um sentimento de insatisfação.
De alguma forma, permanece em nós a sensação de necessidade de algo indefinível de que a natureza
humana nada sabe, só sabe que não o possui”. McGRATH, Alister E. Paixão pela verdade: a coerência
intelectual do evangelicalismo. São Paulo: Shedd Publicações, 2007, p. 68.
109 VEITH, JR., Gene Edward. De todo o teu entendimento. São Paulo: Cultura Cristã, 2006, p. 73.
110 NASH, Questões últimas da vida, p. 22.
111 “O ateísmo em questão é mais prático que teórico, não tento negar a existência de Deus, mas
sim sua relevância”. MOTYER, J. A. Os Salmos. In: CARSON, D. A. et. al. (Orgs.). Comentário bíblico
Vida Nova. São Paulo: Vida Nova, 2009, p. 748 (Sl 14).
112 Ver: BOICE, James M. Psalms: an expositional commentary. Grand Rapids, MI: Baker, 1994,
v. 1, p. 114 (Sl 14).
113 Ver: Mohler Jr., Ateísmo remix, p. 15-17; MONDIN, Battista. Quem é Deus? Elementos da
teologia filosófica. São Paulo: Paulus, 1997, p. 130.
114 Rookmaaker, H. R. A arte não precisa de justificativa. Viçosa, MG: Editora Ultimato, p. 35.
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Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
Como o ateu quer viver como se Deus não existisse, tende a racionalizar
o seu comportamento alegando a inexistência de Deus e, por isso mesmo, a
falta de sentido metafísico da existência. Embarca assim num círculo vicioso
no qual sempre é reforçado pelos motivos que justificam a sua impiedade.
Aqui temos a essência do agir e pensar néscio. O ateísmo teórico produz seus
frutos na conduta de seu proponente.
A negação de Deus traz em seu bojo a diminuição de nossa própria hu-
manidade. A grandeza do homem está em Deus que o criou à sua imagem. Na
negação de Deus desfiguramos a nossa própria imagem; nos corrompemos e nos
aproximamos muito, com inúmeros agravantes, dos animais, os quais, por sua
vez, revelam em muitas ocasiões, mais discernimento do que o homem ímpio
(Is 1.2-4; Jr 4.22; 8.7). Não há grandeza no homem fora de Deus. A majestade
de Deus enche toda a Terra. Sem Deus o homem fez-se nulo em todo o seu
pensar, sentir e agir (Rm 1.18-27).
144
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 119-149
3. Não há bondade em seus atos (bAj)116 (1,3). Eles não praticam mais
o bem, não são bondosos nem justos; os seus atos são sempre interesseiros.
Talvez aqui seja aplicável a descrição feita no Sl 36.4 a respeito do ímpio: “No
seu leito, maquina a perversidade, detém-se em caminho que não é bom, não
se despega (sam) do mal” (Sl 36.4).
4. Extraviaram-se (rWs) e se corromperam (xla) (3). E s t e e x t r a v i o
envolve a ideia de afastar-se (Nm 12.10), retirar-se (Nm 14.9; Jz 16.20; 1Sm
18.12), desviar-se (1Sm 28.15; 1Rs 15.5; 2Rs 22.2; Ez 6.9), desamparar (1Sm
28.16), apartar-se (2Rs 13.11; 14.24), entregar-se (Os 4.18).
Por eles se desviarem de Deus e de Sua Palavra é que juntamente se
corromperam mutuamente. Há uma associação natural daqueles que pensam,
fazem e defendem o mal. “Todos os homens se deixaram arrebatar de tal
forma por suas caprichosas luxúrias, que nada ficou de pureza ou integridade
em toda a sua vida. Essa, portanto, é uma apostasia tão completa, que toda a
piedade foi extinta”.117
5. Trabalham de modo iníquo destruindo o povo (4). “Acaso, não enten-
dem ([dy) todos os obreiros (l[P) da iniquidade (!wa), que devoram (lka) o
meu povo, como quem come (lka) pão, que não invocam o Senhor?” (Sl 14.4).
Estes se unem porque proliferam rapidamente (Sl 92.7; 92.9);118 são
traiçoeiros119 e, por isso, maquinam o mal.120 Eles se alimentam (comem,121
devoram,122 esmigalham,123 consomem124) do povo (Mq 3.1-3).125 A maldade
é o seu alimento. “Os ‘malfeitores’ alimentam-se dos ‘desgraçados’ como se
116 Bondade (Sl 21.3; 23.6), bom (Sl 25.8; 34.9,15), bem (Sl 34.11,12; 37.3), melhor (Sl 63.3;
118.8,9), vale mais (Sl 84.10), bens (Sl 107.9).
117 Calvino, O Livro dos Salmos, v. 1, p. 277 (Sl 14.2).
118 Na verdade, este crescimento que enche os seus olhos é enganoso: “Ainda que os ímpios bro-
tam como a erva, e florescem todos os que praticam a iniqüidade, nada obstante, serão destruídos para
sempre” (Sl 92.7). “Eis que os teus inimigos, Senhor, eis que os teus inimigos perecerão; serão dispersos
todos os que praticam a iniqüidade” (Sl 92.9). Deus os aborrece: “Os arrogantes não permanecerão à tua
vista; aborreces a todos os que praticam a iniquidade” (Sl 5.5).
119 “Não me arrastes com os ímpios, com os que praticam a iniquidade; os quais falam de paz ao
seu próximo, porém no coração têm perversidade” (Sl 28.3). “As palavras de sua boca são malícia e
dolo; abjurou o discernimento e a prática do bem” (Sl 36.3).
120 “No seu leito, maquina a perversidade, detém-se em caminho que não é bom, não se despega
do mal” (Sl 36.4).
121 Mq 3.3.
122 Jr 50.17; Ez 22.25.
123 Dn 6.25.
124 Na 1.10.
125 “Disse eu: Ouvi, agora, vós, cabeças de Jacó, e vós, chefes da casa de Israel: Não é a vós outros
que pertence saber o juízo? 2 Os que aborreceis o bem e amais o mal; e deles arrancais a pele e a carne
de cima dos seus ossos; 3 que comeis a carne do meu povo, e lhes arrancais a pele, e lhes esmiuçais os
ossos, e os repartis como para a panela e como carne no meio do caldeirão?” (Mq 3.1-3).
145
Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
Esta é uma atitude comum ao ímpio, conforme nos diz também no Salmo 10:
2
Com arrogância, os ímpios perseguem o pobre (yn[); sejam presas das tramas
que urdiram. (...)8 Põe-se de tocaia nas vilas, trucida os inocentes nos lugares
ocultos; seus olhos espreitam o desamparado.9 Está ele de emboscada, como o
leão na sua caverna; está de emboscada para enlaçar o pobre (yn[): apanha-o e,
na sua rede, o enleia.10 Abaixa-se, rasteja; em seu poder, lhe caem os necessi-
tados (Sl 10.2,8-10).
O insensato aqui descrito usa de todos os recursos que lhe vem à mão
para destruir, dominar, intimidar e ridicularizar o crente fiel. A motivação pri-
mária é o seu ódio a Deus e a tudo que pareça negar a sua cosmovisão. Deste
modo, ele se vale de técnicas diferentes conforme as circunstâncias. Se não for
possível perseguir, ele não o fará diretamente; porém, há formas alternativas
como a zombaria, o isolamento intelectual ou o esquecimento, que não deixam
de ser tipos de sanção.
Quanto a estas e outras formas de discriminação intelectual, precisamos
permanecer firmados na Palavra, prontos a testemunhar de forma teórica e
prática a respeito de nossa fé procedente da Escritura. A instrução de Pedro
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 119-149
Considerações Pontuais
1. Este Salmo, ainda que descreva com maior ênfase a atitude daquele
que em sua insensatez nega a existência de Deus, refere-se também à poten-
cialidade para o mal inerente a todo ser humano devido à queda. A depravação
total não é uma realidade de alguns, mas de todos nós, pecadores que somos.
2. Viver sem o conhecimento do verdadeiro Deus, forjando os seus deuses,
sejam eles produto do intelecto individual ou cultural, é uma forma de paganis-
mo. Isto consiste também em uma forma de ateísmo, não pela falta de deuses,
mas por viver sem a autêntica esperança que procede do verdadeiro Deus. O
paganismo é uma forma de ateísmo, a negação do verdadeiro Deus. Diz Paulo
aos Efésios: “Naquele tempo, estáveis sem Cristo, separados da comunidade
de Israel e estranhos às alianças da promessa, não tendo esperança e sem Deus
(a)/qeoj) no mundo” (Ef 2.12). Calvino interpreta corretamente:
132 CALVINO, João. Efésios. São Paulo: Paracletos, 1998, p. 68 (Ef 2.12).
133 Ver: Sl 34.19,21; 37.25; 75.10, etc.
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Hermisten Maia Pereira da Costa, A Religião entre os Gregos e o Ateísmo Prático...
134 Veith, JR., De todo o teu entendimento, p. 72. Ver também: Schaeffer, Francis A. Morte
na cidade. São Paulo: Cultura Cristã, 2003, p. 12.
135 COLSON, Charles; FICKETT, Harold. Uma boa vida. São Paulo: Cultura Cristã, 2008, p. 174.
136 SCHAEFFER, Francis A. A arte e a Bíblia. Viçosa, MG: Editora Ultimato, 2010, p. 76. “Ne-
nhuma obra de arte é mais importante que a própria vida do cristão e todo cristão deve ser preocupar
em ser um artista nesse sentido”. Ibid., p. 76.
137 “O ateísmo prático é a atitude daqueles que dizem crer, mas na realidade vivem como se não
cressem, numa plena indiferença religiosa e numa vida completamente materialista, desprovida de
qualquer compromisso com a Transcendência”. MONDIN, Quem é Deus?, p. 130. “… um ateu prático
pode até acreditar que existe um ser supremo, mas vive como se não existisse nenhum Deus”. POJMAN,
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 119-149
abstract
Costa analyzes religion among the Greek, showing the absence of proven
atheism, which was considered a “disease”. In light of Psalm 14, he analyzes
the origin of atheism and some of its characteristics and intellectual, spiritual,
and ethical implications. One of the conclusions is that if every knowledge
comes from God, the denial of God’s existence will inevitably produce an
intellectual disturbance that will affect our ability to know the ontological
meaning of things and therefore the existencial knowledge of what is real.
Without God life is devoid of meaning. He also warns us about the danger of
the practical atheism practiced by Christians and reasserts the certainty that the
universe in which we live has an attentive God who directs history in a holy,
righteous, and merciful way.
keywords
Atheism; Theism; Knowledge of God; Religion; Greek religiosity; Ethics.
Louis P. Ateísmo. In: AUDI, Robert (Org.). Dicionário de filosofia de Cambridge. São Paulo: Paulus,
2006, p. 54.
138 Devo esta observação a Bevan. Ver: BEVAN, Walter T. Libro de los Salmos. Llavallol: Fundacion
Cristiana de Evangelizacion, 1976, v. 1, p. 105.
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Resumo
O Dr. P. H. R. van Houwelingen é professor de Novo Testamento na Uni-
versidade Teológica de Kampen, na Holanda, bem como assistente de pesquisa
no Departamento de Estudos do Novo Testamento da Universidade de Pretória,
na África do Sul. O artigo “Enigmas a respeito da carta aos Hebreus” lida com
os três problemas principais na interpretação dessa epístola. São problemas
introdutórios relacionados à identidade do autor, dos destinatários e à situação
que gerou a carta. Assim, o Dr. van Houwelingen escreve o presente estudo
para dar sua contribuição a esse debate. O artigo é dividido em três seções, cada
qual lidando como uma das questões mencionadas: Quem é o autor? Quem
são os destinatários? E qual a situação que gerou a escrita da carta? À primeira
pergunta o autor dá três respostas: possivelmente não foi Paulo; foi Barnabé;
não foi Apolo nem Priscila. O Dr. van Houwelingen sustenta que o autor de
Hebreus não foi Paulo com base nos seguintes motivos: as diferenças de estilo
entre as cartas paulinas e a carta aos Hebreus, a falta da abertura epistolar tão
característica das cartas paulinas e o fato de que o próprio autor de Hebreus
afirma ter recebido o evangelho daqueles que o receberam de primeira mão
(2.3-4). Considerando o que Paulo afirma em Gálatas 1.11-12, é virtualmente
impossível que ele falaria de si mesmo como alguém que recebeu o evangelho
de segunda mão. Os argumentos para defender a possível autoria de Barnabé
são os seguintes: a evidência textual dá margem para a afirmação de que o autor
faz parte do círculo mais próximo de Paulo; o conteúdo da carta aponta para
151
Rob van Houwelingen, Riddles around the Letter to the Hebrews
Palavras-chave
Barnabé; Carta aos Hebreus; Igreja de Jerusalém.
Introduction
The letter to the Hebrews has been referred as the most enigmatic of all
the writings of the New Testament. It ends like a letter, but it lacks the begin-
ning typical of a letter. The author’s name is absent, but he clearly has a good
relationship with the readers; he hopes to meet them personally (Heb 13:23b).
And yet, the community of believers to whom this letter is addressed is not
identified or located in any way. This is all very puzzling.
At the same time, there can be no doubt that the letter to the Hebrews is
a text of great theological significance, as for example when it discusses the
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 151-162
reconciling work of Jesus Christ, and the function of the new covenant as a
fulfilment of the earlier covenant relationship between the God of Israel and
his people.
Even though some of the questions that arise may be left unanswered, a
study of the so-called introductory problems of the letter is definitely worthwhile.
The three greatest riddles we find in Hebrews are these: Who is the author?
Who are his audience? What is their situation? In this article, I will attempt to
find – as far as may be possible – a coherent answer in the development of the
congregation of Jerusalem during the “sixties” of the first century AD.
1 For this reason, see ROTHSCHILD, Clare K. Hebrews as Pseudepigraphon. Tübingen: Mohr
Siebeck, 2009. She argues that an imitator of Paul composed this letter from existing Pauline material,
as a supplement to an early collection of Pauline letters. However, she does not explain why the author
remains anonymous. The reference to Timothy in 13:23 is “too casual and unobtrusive to be a pseude-
pigraphical element” (ATTRIDGE, Harold W. Hebrews. Hermeneia; Philadelphia: Fortress Press, 1989,
p. 6, n. 46).
153
Rob van Houwelingen, Riddles around the Letter to the Hebrews
2 The personal comments do not occur in vs 22 but already in vss 18-19, where the author uses
the exceptional first person “I” (found elsewhere only in 11:32) to ask his readers to pray for him. See
FILSON, Floyd V. ‘Yesterday’. A study of Hebrews in the light of chapter 13. London: SCM Press, 1967;
WESTFALL, Cynthia Long. A discourse analysis of the Letter to the Hebrews. The relationship between
form and meaning. Edinburgh: T & T Clark, 2005, p. 291-296. Contra: VANHOYE, Albert. La structure
litteraire de l’ Épître aux Hebreux. Paris: Desclée de Brouwer, 1963; VANHOYE, Albert. Structure and
message of the Epistle to the Hebrews. Roma: Pontificio Istituto Biblico, 1989.
3 Nowhere does Hebrews refer explicitly to “apostles”, since the letter regards Jesus Christ as
the apostle par excellence (Heb 3:1).
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 151-162
nied Paul on his first missionary journey, and was part of the delegation that
presented the decision of Jerusalem to the congregation in Antioch.4
The fact that the apostles have named him Barnabas makes him an espe-
cially attractive candidate: he is typified as “the son of encouragement” (Acts
4:36: ui`o.j paraklh,sewj). This corresponds well with the fact that the author
himself, at the end of his letter, describes it as a “word of encouragement” (Heb
13:22: lo,goj th/j paraklh,sewj). Barnabas would have been especially suited
to speak or write such a word of encouragement. It was not just in Jerusalem
that he was known as a prominent personality. He also shows up as one of the
teachers in the congregation at Antioch (Acts 11:26; 13:1), and throughout
the early Christian church he was regarded as a person with authority (compare
I Cor 9:6).
In the second century AD, none less than Tertullian explicitly names Bar-
nabas as the author of Hebrews. This appears to have been a widely accepted
identification during this period, for Tertullian adds that this letter is more wi-
dely accepted in the churches than Hermas’ The Shepherd, which he considers
apocryphal (An exhortation to chastity, 20,2).5 Besides, an anonymous letter
from the time of the apostolic fathers is entitled The Epistle of Barnabas; the
fact that this text is ascribed to Barnabas is best explained by the commonly
held view that he wrote Hebrews, a critique of traditional Judaism.6
4 Öhler provides a great deal of information. He does not, however, express a view concerning
Barnabas’ possible authorship of Hebrews (ÖHLER, Markus. Barnabas. Die historische Person und ihre
Rezeption in der Apostelgeschichte. Tübingen: Mohr Siebeck, 2003). Kollman states that it is “reizvoll”
[appealing] to regard Hebrews as the source for Barnabas’ theological thinking; still he does not regard
the evidence as sufficient (KOLLMANN, Bernd. Joseph Barnabas. Leben und Wirkungsgeschichte.
Stuttgart: Verlag Katholisches Bibelwerk, 1998, p. 63-64).
5 Zahn correctly points out that the identification of Barnabas as author arose directly from the
manuscript Tertullian was using, since he explicitly refers to a title: “exstat enim et Barnabae titulus
[not: epistola] ad Hebreaeos”. ZAHN, Theodor. Einleitung in das Neue Testament II. Dritte, vielfach
berichtigte und vervollständigte Auflage. Leipzig: A. Deichert’sche Verlagsbuchhandlung, 1907, p. 118.
In this connection, Tertullian adds that Barnabas received his doctrine “from the apostles”, which is not
inconsistent with what the author of Hebrews himself writes in 2:3,4.
6 RIESNER, Rainer. Der Hebräer-brief nach Altkirchlichen Zeugnissen. European Journal of
Theology 11.1 (2002), p. 15-29.
155
Rob van Houwelingen, Riddles around the Letter to the Hebrews
are too many theological differences between Hebrews and Philo to justify a
direct connection.7
The second possible author is Priscilla, perhaps in collaboration with her
husband Aquila. They had arrived in Corinth from Italy just before Paul, and
he had found a place to live with them – like him, they were tanners – while he
was in Corinth (Acts 18:2,3). This could explain the greetings extended from
Italy (Heb 13:24b), and it is quite understandable that a female author (or her
immediate surroundings) would not have identified herself by name.8 On the
other hand, the author’s elegant rhetorical flourish: “I do not have time to
tell about...” (Heb 11:32) contains a masculine singular participle (not me
dihgoume,nhn but me dihgoume,non). In short, neither Apollos nor Priscilla appear
to be likely authors of the anonymous letter to the Hebrews.
In summary: for reasons unknown to us, the author of Hebrews does not
identify himself. Unlike Paul, he does not present himself as an apostle. He
does, however, appear to be someone who was within Paul’s immediate circle.
His authority within the early Christian church was unchallenged, especially
when he was drawing directly on Scripture. Of all potential authors, Barnabas
appears the most likely candidate. He was certainly no stranger in Jerusalem.
Still, the questions surrounding the authorship of Hebrews cannot be resolved
with any degree of certainty, and in the end, we can do little other than agree
with Origen: only God knows who the author of Hebrews is.
7 See WILLIAMSON, Ronald. Philo and the Epistle to the Hebrews. Leiden; Brill, 1970.
8 HOPPIN, Ruth. Priscilla: Author of the Epistle to the Hebrews. New York: Exposition, 1969.
9 The Greek grammatical construction of v 24b can be regarded as an attraction, in which a[gi,oi
is amplified by v 24a: “Those (the saints in Italy) greet you from Italy”. The phrase avpo. th/j Iv tali,aj is
effectively equivalent to evn th/| VItali,a| (as in Acts 17:11,13: the Jews from or in Thessalonica). This
refutes the theory that this text refers to Italian migrants, who had come from Italy, and were sending
greetings to those who were living in Italy. Wherever, in the manuscript tradition, the subscriptio men-
tions a place of origin, it is either Rome (as in the Codex Alexandrinus) or Italy (as in the Majority Text).
Regarding the theory referred to above, see for example KOESTER, Craig R. Hebrews. The Anchor
Bible. New York: Doubleday, 2001, p. 49-50. This theory assumes that Hebrews simply belongs to the
material that records the development of the Christian church in Rome. See HVALVIK, Reidar. Jewish
156
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 151-162
We can compare this greeting to that of Paul, when he writes to the church
in Corinth: “the churches in the province of Asia send you greetings” (1 Cor
16:19).10 It appears, then, that Hebrews was written from Italy. This would
then also explain that I Clement, written at an early date, is already familiar
with this letter.11
It is possible that the letter’s puzzling superscription: ‘To the Hebrews’
(pro.j ~Ebrai,ouj) dates from the time when all of Paul’s letters were brought
together, with no other purpose than to harmonize this letter with the other
material in the collection. Still, almost every subsequent manuscript takes over
this title “to the Hebrews” as a subscriptio (it is to be found, for instance, in
the Codex Sinaiticus, the Codex Alexandrinus and the Majority Text).12
believers and Jewish influence in the Roman Church until the second century. In: SKARSAUNE, Oskar;
HVALVIK, Reidar (eds.). Jewish Believers in Jesus. Peabody: Hendrickson, 2007, p. 179-216. For a
documented discussion of the meaning of oi` avpo. th/j vItali,aj see SPICQ, C., L’ Épître aux Hebreux I.
Études Bibliques; Paris: Gabalda, 1952, p. 261-265.
10 There is an apocryphal but credible tradition, dating from the same time as Tertullian’s account,
that Timothy and Barnabas spent some time in Rome, prior to Paul’s departure for Spain (The Acts of
Peter [Actus Vercellenses], 4). Cf. Heb 13:23.
11 The similarity between Hebrews and I Clement was already noted by Eusebius, Ecclesiastical
History III 38, 1-3. See also HAGNER, Donald Alfred. The use of the Old and New Testament in Clement
of Rome. Leiden: Brill, 1973, p. 179-195. “It seems certain that Clement read, loved, was taught by, and
made use of, the Epistle to the Hebrews in writing his pastoral letter to the Church at Corinth” (194).
12 Only minuscle 81 has the geographical clarification “in Jerusalem”.
13 BARNETT, Paul. The birth of Christianity. The first twenty years. Grand Rapids: Eerdmans,
2005, p. 107-108.
157
Rob van Houwelingen, Riddles around the Letter to the Hebrews
158
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 151-162
never make perfect those who draw near to worship. If they could, he says,
would they not have stopped being offered (Heb 10:1,2)? If he had written
his letter after the fall of Jerusalem and the destruction of the temple, it is
unlikely that he would have made his point in these terms. In other places,
too, it appears that cultic worship is still alive and well (Heb 7:27-28; 8:3-5;
9:25; 10:8; 13:10). For this reason it is hard to believe that this letter can be
dated any time after 70 AD.15
It is remarkable, though, that the writer nowhere refers explicitly to the tem-
ple. Instead, he continually goes back to the Tent of Meeting, and to the people
of Israel during their time in the wilderness. He consistently portrays the cultic
worship in Jerusalem in Old Testament terms. This is similar to what Stephen
did in his address, and it may have served to relativize the importance of the
temple, and to warn the Jews against misplaced pride (Acts 7). The sanctuary
in Jerusalem is neither the beginning nor the end of meeting with God. If the
old covenant is described as obsolete and aging (Heb 8:13), that must certainly
include the Old Testament cultic worship that went with it. In constructing his
argument, the author goes back to the Old Testament foundation of the temple
worship. By highlighting the mobility and the temporary character of the Tent
of Meeting, he makes his readers see that true worship has been moved to
heaven. There, in the person of Jesus Christ the Son of God, it finds its resting
place and final destination.16
15 WALKER, Peter W.L. Jesus and the Holy City. New Testament perspectives on Jerusalem.
Grand Rapids: Eerdmans, 1996, p. 227-230; CARSON, D.A.; MOO, Douglas J. An introduction to the
New Testament. 2nd ed. Leicester: Apollos, p. 606-607.
16 Cf. WESTCOTT, B.F. The Epistle to the Hebrews. The Greek text with notes and essays. Reprint
Grand Rapids: Eerdmans, 1977, p. xl.
159
Rob van Houwelingen, Riddles around the Letter to the Hebrews
It is entirely possible that both this sermon and the letter to the Hebrews are
elaborations on a form of address that was customary in the synagogues.17
One might, then, read Hebrews as a sermon in written form, a homily in the
tradition of the Hellenistic-Jewish synagogue.18 By writing down this sermon
and sending it as a letter, one could bridge the kilometres, and encourage from
afar the Jewish Christians from Jerusalem.
The author wishes to create the impression that he is in the midst of the
assembled church, speaking to it directly and personally. He carefully avoids
any reference to writing or reading; instead, he accentuates speaking and lis-
tening (Heb 2:5; 5:11; 6:9; 8:1; 9:5; see also 11:32: “I do not have time to tell
about...”). He often uses “we” and “us”; from a distance he identifies with his
unseen audience. He frequently uses rhetorical devices, and the dynamic wi-
thin the letter is enhanced by regularly alternating instruction and admonition.
17 ECK, John van. Handelingen. De wereld in het geding. CNT; Kampen: Kok, 2003, p. 284.
18 THYEN, H. Der Stil der jüdisch-hellenistischen Homilie. Göttingen: Vandenhoeck & Ruprecht,
1955.
19 WALKER, Jesus and the Holy City, p. 201-226.
160
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 151-162
3. The “city” we look for is the city of the future, the heavenly Jerusalem.
God the Father nurtures his children with discipline – according to
Proverbs 3; the trials of this life are part of the school of faith, and
may not discourage us.
conclusion
The letter to the Hebrews aims to speak a word of encouragement in a
time of crisis. It is a sermon in written form, which stimulates the reader to
persevere in the power of faith, even when Jerusalem is overrun and the tem-
ple is destroyed... The anchor of Christian hope is not let down, but up, into
heaven, where Jesus Christ is, the embodiment of our New Testament worship.
The following table may assist in understanding this, by linking the chap-
ter divisions and the Scripture references to the three great themes: homeland,
temple, and city.
20 This suggests the departure of the Jerusalem Church before or in the first phase of the Jewish
war (AD 66-70) in order to find a temporary safe haven at the city of Pella in Transjordan. For further
details see: HOUWELINGEN, P. H. R. van. Fleeing forward: The departure of Christians from Jeru-
salem to Pella. Westminster Theological Journal 65/2 (2003), p. 181-200. Cf. GLEASON, Randall C.
The eschatology of the warning in Hebrews 10:26-31. Tyndale Bulletin 53.1 (2002), p. 97-120 [120];
MOSSER, Carl. Rahab outside the camp. In BAUCKHAM, Richard e.a. (eds). The Epistle to the He-
brews and Christian theology. Grand Rapids: Eerdmans, 2009, p. 383-404. Contra: MACKIE, Scott D.
Eschatology and exhortation in the Epistle to the Hebrews. Tübingen: Mohr Siebeck, 2007, p. 135-150,
who takes the view that Hebrews only relativizes the value of Roman citizenship.
161
Rob van Houwelingen, Riddles around the Letter to the Hebrews
abstract
The letter to the Hebrews is very puzzling with regard to the introductory
questions. The three most outstanding riddles about Hebrews are: who is the
author, who are the readers, and what was the situation? How these questions
are answered has implications for the way in which we understand the letter.
The author is difficult to identify, but it may have been Barnabas. We are able
to discover rather more about the possible readers and the historical situation
in which they may have been living when we make the connection with the
church at Jerusalem, the mother church of all Christians.
keywords
Barnabas; Hebrews, letter to the; Jerusalem Church.
162
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 163-166
resenha
João Paulo Thomaz de Aquino*
163
Gramática grega
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 163-166
1 PORTER, Stanley E.; REED, Jeffrey T.; O’DONNELL, Matthew Brook. Fundamentals of New
Testament Greek. Grand Rapids: Eerdmans, 2010.
2 MOUNCE, William D. Basics of Biblical Greek grammar. 3rd ed. Grand Rapids: Zondervan,
2009. Infelizmente a edição que temos no Brasil, publicada pela Editora Vida (2009), é uma tradução
da segunda edição americana.
3 RUNGE, Steven E. A discourse grammar of the Greek New Testament: A practical introduction
for teaching and exegesis. Bellingham: Logos Research Systems, 2010.
165
Gramática grega
166
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 167-169
Resenha
Solano Portela*
O Dr. Héber Campos produz mais um livro em sua série de obras teoló-
gicas (O Ser de Deus e seus Atributos, 1999; O Ser de Deus: A Providência e
a sua Realização Histórica, 2001; As Duas Naturezas do Redentor, 2004; A
União das Duas Naturezas do Redentor, 2005; A Humilhação do Redentor:
Encarnação e Sofrimento, 2008; A Humilhação do Redentor: Sua Morte e
Sepultamento, 2009; O Habitat Humano: O Paraíso Criado, 2011). Seus
textos têm sido sempre muito agradáveis e teologicamente sólidos. O autor
consegue a feliz conjunção do binômio, quase contraditório em nossos dias, de
profundidade e simplicidade. Seus verdadeiros tratados doutrinários oferecem
uma leitura que vai descortinando à sua frente novos horizontes teológicos,
ao mesmo tempo em que você se apercebe de um eminente caráter pastoral e
prático, que tanto tem servido à igreja no Brasil, e especialmente aos pastores
presbiterianos.
O autor tem reconhecida capacidade e preparo intelectual. Seus anos de
escrita, palestras e ministério firmaram sua reputação como um dos maiores
especialistas em Teologia Sistemática, com uma estatura que ultrapassa as
fronteiras do nosso país. A consequência disso é o reflexo, nos livros, da ver-
dadeira piedade cristã, da exortação aos leitores a que seja vivida uma vida
exemplar e, portanto, uma mensagem que honra a Deus. Claramente a inten-
ção do autor é preparar outros servos para levar avante a tocha do evangelho
salvador de Cristo Jesus.
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O habitat humano
168
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 167-169
169
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 171-176
resenha
Leonardo Bruno Galdino*
171
Em defesa da teologia
não obstante sua transcendência, esse Deus “pode ser sentido”. Aqui Clark
dirige parte de sua crítica aos pentecostais e aos “fundamentalistas rasos”, a
quem ele chama a ala “extrema direita” desse grupo. “Os integrantes dessa casta
generalizada”, diz Clark, “perguntam-se o que a teologia, com seus detalhes
e a ortodoxia morta, teria em comum com a oração e a religião ‘fervorosa’”.
Contra essa invectiva, Clark observa (em nota de rodapé) que “hoje, há tão
pouca ortodoxia de qualquer tipo que seria reconfortante encontrar até mesmo
a ortodoxia morta” (p. 25). Mas o alvo de Clark é mesmo os neo-ortodoxos, a
ala “extrema esquerda” do grupo. Começando por Schleiemacher, “o inicia-
dor moderno da teologia da experiência” (p. 25) e passando por Kierkegaard,
aquele que “rejeitou o sentimento do infinito substituindo-o pela ‘paixão pelo
infinito’” (p. 26), Clark chega, então, a Emil Brunner e a Karl Barth, a quem
dirigirá críticas mais específicas no capítulo quatro, sobre a neo-ortodoxia.
Sobrou até para Herman Dooyeweerd, a quem Clark acusa de defender pontos
de vistas “extáticos, irracionais e existenciais” (p. 27), mas sem justificar o
porquê disso – o que é uma falta grave da sua parte.
Diz Clark que “os mais bíblicos desse grupo, não particularmente a
multidão desatenta que dorme durante o sermão, mas, em especial, pastores e
autores de livros devocionais populares, são, na maioria, incoerentes. Possuem
uma pobre compreensão lógica e por isso, firmemente agarrados a alguma
doutrina fundamental, também defendem, pregam e escrevem as heresias mais
selvagens. Essa mistura indigesta”, continua ele, “é enfeitada de forma regular
com o chantili fofo do absurdo” (p. 27). O quarto grupo, por fim, consiste nos
que estudam mais teologia que a pregada no púlpito, a quem Clark dedicará o
último capítulo de sua obra.
A partir do segundo capítulo é que Clark se dirige de forma específica
aos quatro grupos acima listados, começando pelos ateus. Como o cristão deve
combater o ateísmo? Para Clark,
Ele entende que o método evidencialista (embora não use esse termo),
além de ser árduo, é praticamente inútil. Clark também ressalta a inutilidade do
método evidencialista ao dizer que “os cristãos deveriam se preocupar menos
com a existência de Deus e mais com o tipo de Deus existente”. Para ele, afir-
mar que Deus existe “não ajuda em nada o cristianismo”. “Já que tudo existe, a
palavra existe é desprovida de informação. Por isso que o Catecismo pergunta:
‘O que é Deus?’, e não: ‘Deus existe?’” (p. 36). Qual o método, então? “Nosso
axioma é o de que Deus falou. Ou, de modo mais completo – Deus falou na
172
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 171-176
Bíblia. De forma mais precisa, as afirmações bíblicas são o que Deus falou”,
responde ele (p. 38). Que Clark tem em mente aqui o escrituralismo (as Escri-
turas como a única fonte de verdade, em contraponto ao pressuposicionalismo
do tipo vantiliano-schaefferiano, que contempla verdade em outras fontes) fica
evidente no restante do livro.
No terceiro capítulo, como já foi mencionado, Clark se dirige aos “desin-
teressados”. São aqueles que consideram a teologia uma matéria nada prática
ou inútil, e que aderem a bordões já desgastados como “nenhum Credo, senão
Cristo” e “o que conta não é o que se crê, mas o que se sente” (p. 41). Para
Clark, contudo, “caso Deus exista – supondo o descarte do ateísmo – ele deve
ser alguém que deveríamos conhecer”. Isso o leva a afirmar que “ninguém
pode ser crente sem teologia – o conhecimento de Deus” (p. 42). Clark tam-
bém observa que “o temperamento americano é ativista e prático e talvez se
impressione mais com a necessidade de teologia para o evangelismo”. Após
citar o quanto se desdenha de doutrinas como a ressurreição de Cristo nas facul-
dades e escolas de ensino fundamental – onde as pessoas são “inculcadas pela
educação humanista” –, Clark aproveita para denunciar alguns “evangelistas”
que, para contornar tais objeções, resolvem simplesmente excluir a ressurrei-
ção do “evangelho” deles ou então existencializá-la como “a feliz sensação
de confiança sentida ao ressurgir das profundezas da frustração”, como fazem
os neo-ortodoxos (p. 42, 43).
Clark apresenta esses problemas como “desafios intelectuais ao evange-
lismo”, e diz que “seria lastimável se o cristão conhecesse a Bíblia de modo
menos completo que seu colega conhece o humanismo” (p. 43), no que con-
cordamos com ele. Para esse autor, “se quisermos conhecer a Deus é indis-
pensável levar criteriosamente em conta a metodologia”. E que metodologia
é essa? Uma teologia cujo conteúdo proceda “inteira e somente da Bíblia”
(p. 44). “Nossa tarefa”, prossegue, “é coletar versículos e passagens da Bíblia,
entendê-los preliminarmente e depois sistematizar o conteúdo” (p. 45).1 Mas,
para justificar seu ponto, Clark faz um uso inapropriado – levando em con-
sideração o contexto da passagem – do texto paulino em que o apóstolo diz
que “Deus não é Deus de confusão… tudo, porém, seja feito com decência
e ordem” (1 Co 14.33,40). Ele conclui o capítulo tomando como ilustração a
construção de uma casa, que somente é possível graças ao arranjo lógico dos
materiais (pregos, tijolos, cimento etc.).
No quarto capítulo é que Clark vai bater mais forte nos neo-ortodoxos,
os quais, segundo ele, são o grupo que “domina as principais denominações
nos EUA e no exterior”. Para Clark, a neo-ortodoxia é a “religião experimen-
tal” (p. 48); a “religião da irracionalidade” (p. 50); proponente de uma “dupla
173
Em defesa da teologia
verdade” (p. 55) e, por isso mesmo, “antilógica” (p. 56). Por quê? Porque ela
insiste que o homem nunca poderá conhecer Deus, visto que este é o “total-
mente outro” (Barth) e ideias afins. A propósito, quando se refere a Barth,
Clark diz que “é difícil entender por que tantas das asserções de Barth dão
ao leitor de boa-fé a impressão exatamente contrária das verdadeiras crenças
dele” (p. 58).2 Para Clark, Barth, além de abraçar o paradoxo, “nega quase
de forma absoluta que o homem seja a imagem de Deus, de acordo com 1
Coríntios 11.9” (p. 58), como também “não crê na ressurreição do corpo”
(p. 61). Tais coisas arrancam de Clark declarações fortes, como a de que “a
igreja visível é muitas vezes atormentada pela peste dos místicos pseudode-
votos que apostam na própria intuição”, e arremata: “o pensamento criterioso
e a teologia dogmática repeliram-nos” (p. 58). O problema básico de Barth e
dos pregadores super-religiosos é epistemológico, segundo Clark, visto que os
tais, ao ignorarem a proposição bíblica de que o homem é a imagem de Deus,
estão de fato repudiando a lógica (p. 64).
E é justamente a esta última que Clark dedica as linhas do quinto ca-
pítulo, no qual ele pretende fazer uma “defesa da teologia lógica” (p. 67). E
o que vem a ser essa “teologia lógica”? Basicamente, é a pregação de todo o
conselho de Deus. Para Clark, “Deus é um espírito ou intelecto racional e
lógico, do qual o homem recebeu a imagem”. Aqui, ele continua criticando
aqueles que exaltam a práxis em detrimento da atividade intelectual. Segundo
ele, “todos os homens são obrigados a obedecer aos mandamentos divinos e
devemos ‘fazer a verdade’ até onde a verdade puder ser realizada”. “Agora”,
ironiza, “como ‘fazer’ a Trindade é um enigma” (p. 69). Doravante, ele fará
outra crítica injustificada a Dooyeweerd, a quem chama de “existencialista”
junto com Rookmaker, os quais seriam os mentores de um “grande grupo que
detesta o conhecimento ou a lógica: os que tem mais interesse na estética que
na teologia ou filosofia” (p. 71). Seria interessante se Clark pelo menos nos
remetesse a algum escrito seu no qual ele confronta de forma mais apropriada
(para não dizer justa) o filósofo holandês. Caberá também uma crítica a Leland
Ryken, que disse que “é possível receber a verdade de Deus ouvindo o Messias
de Handel. [...] Não basicamente pela razão, mas pelos sentidos (audição) e
emoções” (p. 71). Para Clark, porém, uma vez que “somente as proposições
podem ser verdades” (p. 74), “a arte não substitui a informação do evangelho”
(p. 76). A partir da página 84 Clark apresentará alguns argumentos formais na
Escritura em defesa da lógica, e da página 90 até ao final do capítulo, algumas
notas sobre lógica simbólica, que é, de longe, a parte mais maçante do livro.3
2 Embora seja oportuno dizer que evidentemente esta não é uma exclusividade dos leitores de
Barth. Incluem-se aqui os próprios leitores de Clark.
3 Especialmente para quem não entende bem o assunto, como eu. Por isso, prefiro não comentá-lo.
174
FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 171-176
No último parágrafo do livro é que Clark fará uma síntese de todo ele:
Deus nos deu uma revelação verbal; temos a obrigação de estudá-la. Nenhuma
outra exortação é necessária. Não há dúvidas de que muitos depreciadores da
lógica e da informação sejam cristãos, entretanto o que publicam, pregam e
conversam não é cristão. Também não são logicamente coerentes ao repudiarem
o dogma bíblico, pois cristianismo sem doutrina inteligível é simplesmente
doutrina inteligível sem cristianismo (p. 104-105).
175
Em defesa da teologia
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FIDES REFORMATA XVi, Nº 2 (2011): 177-178
Resenha
Augustus Nicodemus Lopes*
177
Desintoxicação sexual
178
Excelência acadêmica e piedade a serviço do Reino de Deus
Impressão e acabamento
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