Vendida Ao Trafico - Sammy Britto
Vendida Ao Trafico - Sammy Britto
Vendida Ao Trafico - Sammy Britto
1ª Edição
♛
Meu coração está acelerado, sinto até mesmo a pulsação em
meus ouvidos. Minhas mãos estão tremendo levemente em conjunto
com os meus joelhos.
As pessoas que estão perambulando pela rua olham-me de
relance, outras não disfarçam. Me incomoda, mas sei o porquê
desta atenção. Todos do Morro sabem o que está para acontecer
esta noite, não é novidade para ninguém que haveria garotas de
todos os lados.
Continuo o meu caminho tentando não me importar com a
atenção que estou recebendo.
Mesmo de longe, reconheço a Fernanda parada na esquina
da sua casa. Seus cabelos cacheados estão soltos, bem definidos.
Está usando um vestido amarelo e sandálias. Ela não precisa de
muito para estar bonita, ela já é incrivelmente perceptível.
— Você fica linda de amarelo — digo quando estou perto o
suficiente para que ela ouça.
— Obrigada. Você também está linda...
Estar lidando com o desconhecido é assustador. Tento não
criar expectativas ou fazer com que a minha ansiedade triplique.
Basicamente, estou em uma batalha entre precisar e fugir. Não
parecer interesseira, mas disfarçar o desespero de uma vida com
portas fechadas. De querer, no entanto, saber que a imaginação é
poderosa demais para criar uma ilusão.
— Camilla?! — ouço a Fernanda praticamente gritar.
— O que foi?
— Está onde, garota?
— Aqui — a palavra óbvio está gritando em minha testa.
— Engraçadinha você.
— O que foi? — pergunto novamente.
— Não quero te assustar, mas quando estava voltando do
trabalho um vapor veio me comunicar novamente sobre hoje...
Continuo a encará-la, tentando encontrar a parte em que ia
me assustar.
— Ele não perguntou de mim, ele mandou passar o recado
para você.
— Por que para mim? — volto atrás em minhas palavras.
— Não sei. Desta vez foi outro vapor, por isso achei estranho.
— É, é estranho mesmo.
Estamos caminhando em silêncio há alguns minutos.
Fernanda com os seus pensamentos e eu com os meus. Ter uma
mente hiper pensante as vezes pode ser um problema.
Algumas garotas passam por nós muito bem arrumadas,
radiantes e extremamente confiantes. Duas delas estão andando
em passos lentos, próximas a mim. É inevitável não ouvir a
conversa das duas.
— Hoje eu vi a Josi por aqui, Carol...
— Mas ela é da Maré!
— Sim, tenho certeza de que o mandado do Mancha vazou,
deve ter mais garotas das outras comunidades.
— Muito injusto, já tem gente demais aqui.
Fernanda ao meu lado arregala os olhos, balançando a sua
cabeça.
— ... não importa, ele vai me escolher — a garota, vulgo
Carol, fala animada não contendo alguns gritinhos.
— Que pena que ainda tenho quatorze — olho perplexa para
ela.
A menina realmente parece estar triste ao constatar o fato.
— Já consigo me imaginar em cima da moto dele — Carol
continua empolgada, não se importando com a tristeza da amiga.
— Nunca vi ninguém em cima daquela moto, a não ser ele
mesmo.
— Vou ser a primeira — ela finaliza confiante.
As garotas estão tão concentradas com a conversa, que não
percebem que estamos logo atrás.
— Aperta o passo, Camilla — Fernanda sussurra ao meu
lado.
Sei bem sobre a moto em que ela estava falando, o som
parece ecoar em meus ouvidos somente com a menção dela.
— Você está preparada para qualquer coisa que possa
acontecer? — minha amiga pergunta.
— Não quero ser uma aproveitadora e muito menos quero
que isso seja uma desculpa para a decisão que tomei — observo
que estamos perto da entrada da quadra. — Desde quando soube
deste evento, estou em conflito com os meus valores. Tenho medo,
mas estou preparada para o que venha acontecer.
Algumas dessas meninas são movidas pela fama, ao desafio
de estar com uma pessoa importante e com os bolsos cheios. As
drogas são um atrativo, a ilusão do poder faz com que os seus
cérebros pequenos cresçam com a ideia de serem superiores, que o
dinheiro tudo pode comprar e que nada pode atingi-las por estar
com um cara grande. A imaginação cria e a necessidade faz parecer
real.
Não estou tão longe delas. Elas procuram luxo, eu procuro
dinheiro — sendo praticamente a mesma coisa. Meus motivos são
nobres, mas ainda não estou em posição de julgamento. O dinheiro
em que procuro é sujo e isso me faz um deles.
— Vou estar com você — ela olha-me complacente.
— Obrigada.
Estava tão absorta que acabo não percebendo a voz alta dos
mc cantando através das grandes caixas de som. A este ponto não
consigo ao menos ouvir a voz da Fernanda. O chão vibra sob os
meus pés, assim como nos meus ouvidos.
Nunca tinha vindo em uma festa como está e, estando aqui,
talvez eu não queira pisar em uma nunca mais. Não é exatamente
ruim, mas não é algo que me faz ter a vontade de querer voltar.
Fernanda olha para todos os lados, como se fosse a minha
guarda-costas — tento esconder um sorriso.
A batida é forte, as janelas das casas próximas à quadra se
movem ao som do funk. O ritmo é fácil de acompanhar, posso até
ouvir muitas pessoas cantando.
Em frente à entrada, muitos carros e motos estão
estacionados. Há uma grande quantidade de pessoas espalhadas e
acredito que este número dobrará em poucas horas. Dá para se
contar nos dedos as pessoas que não estão consumindo algum tipo
de bebida ou droga, não devia ser, mais é algo absurdamente
normal. Consigo até mesmo arriscar que logo estarão embriagados
e sem uma linha de pensamento coerente, não conseguindo
aproveitar ou se divertir.
Fernanda faz um sinal para que entremos, então a sigo.
Se antes pensava que estava cheio, agora não sei o que
pensar. Uma grande quantidade de fumaça está se espalhando pelo
ar, o cheiro de bebida está me deixando tonta. Há pessoas se
esfregando para todos os lados, assim como outras que estão em
grupos somente dançando.
Minha amiga tenta falar alguma coisa, mas não consigo
entendê-la. Continuamos paradas somente observando o
movimento, esperando o inevitável.
Fernanda é do tipo que gosta do lugar em que estamos, se
não estivéssemos nesta situação, certamente ela estaria descendo
e rebolando até o chão, no entanto, ela parece não se importar com
o que está a sua volta, mas preocupada com a falta de importância
que as pessoas estão dando para este momento.
— Você viu o que eu vi? — Fernanda olha-me intrigada,
gritando em meu ouvido.
— O que você viu? — grito de volta.
— Tem vapores rodeando a gente — ela balança o dedo ao
nosso redor, tentando apontar para as pessoas.
Sigo a sua observação, constatando que realmente há
vapores a nossa volta como se estivessem nos vigiando. Começo a
analisar se eles estão de olho em todas as garotas com as idades
especuladas, ou se estão pairando sobre a gente. Percebo que a
Fernanda está certa.
— Será que fizemos algo de errado? — pergunto.
Percebemos quando o som parou. Alguns começam a vaiar,
mas outros gritam eufóricos, pois sabem o que está por vir.
A iluminação não é das melhores, mas em uma grande
estrutura de madeira improvisada uma fonte de luz branca parou,
clareando todos os detalhes do palco. Sobre a estrutura há uma
diversidade de mesas e cadeiras, contendo uma grande quantidade
de bebidas, havendo homens e algumas poucas mulheres sentadas
em volta.
— Ali é o grandão da Rocinha? — Fernanda fala ao meu
lado, confusa. — Que filho da puta inteligente.
Não entendo.
— Esse cara é egoísta. Ele não gosta que vão para o
território dele, então ele não pisa no espaço dos outros. Não sei o
que o Mancha fez, mas ele está aqui.
Quando penso em responder, uma voz risonha ecoa por um
microfone. Encaro a figura no centro do palco. O rapaz tem uma
estrutura mediana, moreno, roupas que parecem de marca e o
cabelo descolorido, assim como o seu bigode fino.
— Iaê, caralho! — o cara que não deve ter menos que vinte
anos grita. — A lei do Morro é a lei do dono dele. Então, meus
parças, que comece o show!
Muitos gritos explodem, assim como a grande quantidade de
palavras obscenas. Meu coração instantaneamente acelera. Talvez
eu tivesse pensado que estava preparada, mas acabo de perceber
que não estou. Respiro e inspiro em uma atividade consecutiva,
mas parece que o meu coração leva como incentivo para querer sair
pulando do meu peito.
— É o seguinte, o palco não tem espaço para todas, então de
vinte em vinte vocês sobem, beleza? — ele não espera uma
resposta.
Há cinco vapores na escada que leva até o palco, mas ao
escutar as palavras do moreno, eles dão espaço.
— Não serei a primeira — digo nervosa.
— Finge que não escutou — os seus lábios se abrem em um
sorriso acolhedor.
As pessoas tropeçam umas nas outras. Puxões de cabelo e
xingamentos rolam solto.
— Vamos nos encostar na parede!
Assim que escuto a Fernanda, tento caminhar em direção a
parede mais próxima, logo puxando-a para perto de mim.
— Pior que liquidação de fim de ano — Fernanda massageia
o seu coração.
Ao conseguir nos proteger, foi possível ver o quanto as
pessoas estão conseguindo se machucar para tentar subir as
escadas. É assustador.
— Já deu vinte! — o rapaz grita no microfone, movimentando
os braços.
Os vapores empurram todas que ainda tentam subir,
bloqueando a passagem. O cara fala alguma coisa para as garotas
em cima do palco. Rapidamente, todas se organizam uma do lado
da outra, como em uma exposição. As vinte garotas se mantêm em
silêncio e atentas.
Acho que vou vomitar.
De repente, saindo de uma porta, Marcos surge. Seus olhos
são escuros, sua postura reta e, músculos, muitos músculos,
grandes e... meu Deus. Que homem é esse?!
— Nem aqui, nem na China que ele é um zé droguinha —
não consigo focar em qualquer outra coisa, ele está puxando
inconscientemente toda a minha atenção.
Marcos move os seus olhos em todas as garotas, logo
dirigindo em torno de todo o espaço. Não tendo controle sobre os
meus atos, acabo me abaixando.
— O que você está fazendo, sua louca? — Fernanda se
abaixa ao meu lado.
— Eu não sei!
Me levanto em tempo de ver o Marcos falando com um vapor,
os dois olham para o lugar onde estávamos antes de toda a
bagunça começar.
Fernanda ao meu lado me encara incrédula.
Voltamos a nossa atenção para o palco, até que um par de
olhos negros se voltam para a direção em que estamos.
Puta que pariu.
Estamos longe o suficiente para que ele não consiga nos
reconhecer, se caso ele já conheça. No entanto, pelo seu olhar, sei
que não sou tão desconhecida como pensei.
Me viro para a Fernanda procurando me libertar da sua
atenção, mas sinto quando alguém passa a mão na minha bunda.
Giro automaticamente, em cento e oitenta graus, somente para ver
um homem sorrindo malicioso.
— Te achei, ruivinha — ele agarra o meu pulso. — Vamos!
— Solta a minha amiga!
Vejo quando um vapor vem em nossa direção, tirando as
mãos do homem do meu pulso violentamente.
— Babalu, segura ele! — outro vapor aparece, segurando o
homem de antes. — O chefe não vai gostar nada disso.
— Ele não é daqui, Coringa! — Babalu grita, analisando a
figura que está segurando.
— Leva ele para a boca três. Ele não deve ter vindo sozinho.
Chame outros para ir com você! — Babalu acena, saindo com o
homem.
— Obrigada — ele continua me segurando. — Já pode me
soltar! — falo assim que vejo o Babalu arrastando o homem que
grita e se agita para ser solto.
Pela primeira vez, a atenção do Coringa veio em minha
direção.
— Você vem comigo!
— Deixa a minha amiga! — Fernanda grita novamente.
Coringa rapidamente faz uma vistoria em Fernanda. Ele sorri
para ela, puxando-me em direção as escadas, ignorando os nossos
protestos.
— Por que está me puxando? — tento parecer calma.
— Não me faça perguntas.
Escuto a Fernanda gritando atrás de mim, seguindo-nos.
Percebo que estamos chamando atenção. Minha regra está sendo
quebrada. Tento não olhar para os lados, pois parece que todos
estão querendo saber o porquê de eu estar sendo praticamente
rebocada por um traficante, enquanto uma garota grita
histericamente atrás.
— Deixem-na passar! — Coringa manda, assim que
chegamos aos seguranças da escada.
— JÁ TÊM VINTE! ESSA VAGABUNDA TEM QUE
ESPERAR! — sinto os meus cabelos sendo puxados.
Antes que eu possa gritar, minha cintura é segurada por
grandes mãos, fazendo-me colidir com um corpo duro e forte.
Meu corpo gela.
— Pensou que ia fugir, gatinha? — se antes os meus
pensamentos estavam sendo consumidos lentamente por ele, não
sei o que poderá acontecer depois de ouvir a sua voz raivosa
sussurrando em meu ouvido.
Suas mãos apertam os meus quadris, até que sinto um vazio,
assim que o seu toque não está mais em mim. Meus olhos
procuram pelos seus, mas sinto que o homem que me puxou, não é
o mesmo que está me analisando friamente.
Ele fala algo baixo para um dos vapores da escada. Não
consigo acompanhar o que está acontecendo, pois, logo o
anunciante da noite está ao meu lado, informando-me para que me
mantenha em silêncio e ao lado da última garota da fila.
Ouço a voz de muitas garotas me xingando, as que estão no
palco olham-me enojadas.
— Certo. Agora, podemos começar! — o rapaz anuncia em
seu microfone.
Confesso que, não consigo manter uma linha de raciocínio ao
mesmo tempo que o garoto continua falando no microfone, pois a
minha atenção está voltada totalmente para o que acabou de
acontecer e para aquele homem que age como se nada tivesse
ocorrido.
Respiro fundo e tento não olhar para frente. Saber que todos
estão focando em nossa direção e, que, estão mais confusos do que
eu, deixa-me extremamente nervosa e ansiosa.
Quero sair daqui, logo.
Fecho os meus olhos por alguns segundos, até que decido
observar as garotas que estão ao meu lado. Tem loiras, morenas,
ruivas, gordas, magras, baixas e altas, uma variedade de mulheres
com características e personalidades diferentes, querendo um único
homem. É horrível este pensamento, mas estou no mesmo barco,
não tenho o direito de opinar.
Respiro fundo novamente e conto até dez.
Todas estão com as suas melhores roupas, calçados de
marca, confiantes e acredito que as suas roupas as fazem ficar
ainda mais seguras neste momento.
Me avalio disfarçadamente.
Posso não estar bem vestida ou ter a melhor aparência, mas
sei que a minha mãe teve um grande trabalho para que eu pudesse
me aceitar como sou, não posso ceder para as minhas
inseguranças internas e a um pedaço de pano bonito.
Levanto o meu olhar e encaro todas aquelas pessoas,
procurando pela Fernanda. Não há encontro, mas vejo um grupo de
garotos fazendo gestos com as mãos enquanto falam entre si.
— Olhos em mim — a sua voz ativa as sensações mais
estranhas pelo meu corpo.
Ele sempre está com raiva?
O olhar de ódio em que ele está mirando, está me deixando
extremamente desconfortável. Sinto os meus pés suarem dentro
das sapatilhas, assim como um formigamento completamente
estranho, desde o meu pescoço, até lugares que jamais pensei em
sentir. Sei que estou em frente a um traficante e que devo ter medo,
mas a sensação de estar com ele é diferente.
Não consigo compreender se a minha mente está querendo
me alto-sabotar ou se o meu coração está querendo pertencer a
alguém.
Meu corpo é do contra. Mesmo que os olhos dele estejam me
deixando confusa, o meu corpo está lutando com as sensações. Ele
parece querer entender cada sentimento que se passa em meus
olhos, assim como em minha alma. Entretanto, a fúria e a
intensidade que inspira a ira em seu comportamento, faz com que
eu queira me afastar.
— Não tire os seus olhos de mim — ele parece ainda mais
nervoso.
Não consigo encontrar uma razão, ou motivo para entender o
porquê deste homem estar perdendo tempo comigo, enquanto há
garotas praticamente nos seus pés.
Ele me dá um último olhar até que comece a apaziguar entre
elas.
— Você é só mais uma puta, garota. Não se sinta tão
especial por ele te dar uma atençãozinha a mais! — a loira ao meu
lado murmura, sorrindo como se não tivesse me falado nada.
Ignoro, o espírito de barraqueira deixo para a Fernanda.
Marcos caminha lentamente em torno das garotas,
analisando cada detalhe. Algumas pendem de um pé para o outro,
enrolando os seus cabelos com os dedos, mordendo os lábios ou
tentando falar com ele.
Ele parece um predador analisando o seu alimento. A força e
a cólera emanam do seu corpo, no instante em que ele dá passos
calculados.
Ele para diante de uma morena. Seus cabelos são pretos e
brilhantes. Sua roupa apertada e curta mostra um piercing em seu
umbigo. A cor das suas roupas são chamativas, sendo um tomara-
que-caia em animal print rosa e um short coberto por manchas e
rasgos propositais — volto a minha atenção para o meu short.
Diferente do dela, o meu não é proposital, mas talvez eu esteja na
moda e nem sabia. Quero rir do meu pensamento.
Ele passa para outra garota, olhando-a minuciosamente.
Seus cabelos são cacheados, com uma fita prendendo-os, seu
vestido verde limão é bonito, porém transparente. Não sei se ela
chegou a perceber, ou esta é a sua real intenção.
— Mancha, eu... — a menina tenta falar.
Ele sinaliza para que ela fique em silêncio.
O modo em que ele está analisando estas garotas está me
incomodando, não só por elas estarem sendo avaliadas como um
objeto, mas por quem elas estão sendo analisadas. Por algum
motivo estranho, não estou gostando dele olhando para elas.
Ele continua com a sua vistoria. Em algumas ele foi rápido,
em outras olhava um pouco mais, até que chegou em uma loira
platinada, com grandes peitos e olhos verdes. Nunca vi está mulher.
Não é que eu conheça todas que estão por aqui, mas é
inevitável não esbarrar com algumas, na escola e nas ruas. Até
mesmo algumas garotas de outros Complexos é possível
reconhecer, mas esta mulher, com certeza, nunca esteve aqui.
Ela parece submissa ao seu redor, mas uma mulher sempre
terá intuição e a minha não está apontando nada bom para ela.
A loira parece empolgada com os olhos dele sobre ela, pois
sabe que um certo interesse despertou. Embora ela esteja eufórica,
Mancha não tem reação nenhuma, parece até que os seus olhos se
tornam ainda mais sombrios ao analisá-la. Talvez ele também tenha
percebido que ela possui uma energia ruim.
Enquanto tento fugir da visão do Marcos, os meus olhos
deslizam pelo espaço, desde o teto, até as mesas onde há pessoas
se divertindo com o “concurso”. O homem em que a Fernanda citou
a momentos atrás parece estar concentrado em algo que não está
aqui em cima. Continuo a minha vistoria, até que os meus olhos
param em um homem sentado próximo de mim. Nos seus olhos tem
malícia, assim como em seu sorriso.
Ele me analisa atentamente, fazendo um sinal com as mãos
enquanto pisca. Desvio o meu olhar rapidamente, constrangida. Por
instinto, me encolho em meu lugar, querendo que um buraco se
abra e me engula.
Ouço um rosnado. Marcos se move rápido até o homem
sentado, agarrando o seu pescoço. Ele fala baixo, cuspindo
palavras que ninguém consegue ouvir, mas o homem está ouvindo
tudinho, pois os seus olhos amedrontados estão prestes a derramar
lágrimas. O traficante cai da cadeira, tentando fugir, mas um dos
vapores o pega e o leva para longe.
Os músculos das grandes costas do Marcos tremem, se
virando para me encarar com os mesmos olhos raivosos.
Nunca fiz nada para ele e tudo o que recebo é ignorância e
uma fúria sem sentido, penso nas pessoas que dão motivos para ele
— certamente devem estar mortas.
A loira de antes olha-me enigmática.
Dou um passo para trás, mas sinto que a minha bunda bate
em algo duro, fazendo-me ficar petrificada em meu lugar.
— Não ouse dar mais um passo — o meu corpo treme.
A sua grande estrutura se move ao meu redor, se
materializando completamente em minha frente.
Meu peito sobe e desce ruidosamente. Sinto que vou ter um
ataque.
Seus olhos não me deixam por um segundo. Ele desvia e
desce um pouco, ficando na atura do meu ouvido. Seu nariz passa
lentamente pelos meus cabelos, até que a sua voz invade a minha
cabeça.
— Que não haja uma próxima vez, mas se você ficar de
charminho para cima dos meus mandantes, eu te mato!
Sei quem ele é, ainda assim, não posso deixar que ele
mande em mim, porque se eu deixar, ele vai me quebrar e tudo no
que acredito não será nada.
— Se houver uma próxima vez, pode ter certeza de que vou
verificar se você está olhando.
Observo quando as suas mãos se fecham em punho ao lado
do seu corpo, é visível que ele não estava esperando por isso.
— Não me importo, desde que você esteja sobre mim.
Eu não poderia ser menos virgem?
Confesso que as suas palavras atingem um ponto que não
pensei em ultrapassar, não agora. Será que ele pensa que sou
experiente? Porque o máximo que vi de um pênis está nos livros de
biologia.
— Te deixei assustada? — a raiva contida em sua voz abala
o meu corpo. — Não fique, tudo acontece no seu tempo.
Ele agarra a minha bunda, apertando-a, me fazendo analisar
a sua frase de duplo sentido.
— O que você sente quando eu te toco? — ele se distancia.
— Nada — minto.
— Eu não te tocaria se eu não visse a permissão em seus
olhos — ele me prende em seu olhar. — Se ainda não estiver, vou
fazer sentir.
Ele sabe que estou mentindo.
Encaro qualquer ponto que possa me livrar do seu olhar, até
que acabo me debatendo com os olhares odiosos das outras
garotas, fazendo com que me volte para ele novamente.
— Ande, atrás de você tem uma porta, entre nela e fique lá.
Não estou pedindo.
— Vou sair por onde eu quiser.
— Eu não ligo para a sua revolta! Vai para a merda daquela
porta ou vou levá-la! — seu tom raivoso invade o meu sistema em
um aviso.
— Podemos ver que o chefe fez a sua escolha... — o moreno
fala no microfone.
No mesmo instante, Marcos vai até ele e fala algo em seu
ouvido. O semblante do garoto é de confusão. Ele não questiona o
Mancha.
— Vai continuar parada aí, porra?!
Mantenho o seu olhar, até que começo a dar passos para
trás. Me viro e seguro a maçaneta. Assim que abro a porta, dou um
último olhar para o palco, mas ele continua lá, como se estivesse
averiguando se vou entrar. É quando os meus pés pisam dentro do
quarto escuro que posso ouvir a escolha que ele fez.
— Garotas, podemos ver que uma foi expulsa e a outra foi a
escolhida — mais xingamentos ecoa pela quadra. — Obrigado pela
participação de cada uma, mas a escolhida é você, loira! — ele
aponta para a mulher platinada.
As palavras começam a martelar em minha cabeça, assim
como o seu olhar em mim.
Eu sou a expulsa.
4
DÚVIDA
CAMILLA FERRAZ
Ainda, domingo – 11 de março de 2018
ABANDONO
CAMILLA FERRAZ
Segunda-feira, 12 de março de 2018
APEGO
CAMILLA FERRAZ
Domingo, 1 de abril de 2018
10
VAZIO
MARCOS HENRIQUE
Domingo, 18 de março de 2018
Dizem que a vingança é para os fracos e que é um prato que se
come frio. Talvez, em algum momento da minha vida, tenha
acreditado em alguma destas frases ou tentei.
Nunca fui especialista em sentir afeto, remorso ou culpa. Fui
ensinado a ser frio, articuloso e ter medo de um homem viciado em
dinheiro e poder. O erro dele, foi ter me ensinado a ser tudo aquilo
que um dia ele temeu.
Minha mãe, uma prostituta, me ensinou a ser vigilante,
criterioso e perspicaz. Por outro lado, o homem que me criou tinha
certeza de que eu poderia ser um fantoche, o seu banco particular
ou o seu fundo de garantia. Saulo, preferiu acreditar no papel, do
que em uma criança que cresce e tem os seus próprios
pensamentos e pontos de vista.
Minha maior característica é o crime. Roubei e matei alguns
dos maiores corruptos e integrantes de lavagem de dinheiro, crimes
encobertos e documentação falsa. Construí a minha carreira em
cima de tudo que abomino e estou em meio a mais um dos meus
casos, ou terminando um deles.
Meu pai foi a minha maior inspiração, foi ele que me fez
acreditar que homens como ele não devem viver, muito menos
procriar. A sua ganância foi o meu maior ponto de incentivo, pois
assim como ele, eu sempre quero mais. Fui ensinado a não sentir
dor, pena ou me sensibilizar por algo. Todos tem que estar, onde
foram colocados para estar.
Meu pai dizia que o mundo é dos espertos e isso o dava o
direito de tirar dos outros. Minha mãe, sendo uma mulher que
vendia o seu corpo para viver, me dizia que, não podíamos interferir
no que já está definido. Se uma pessoa é rica, nunca seu posto será
tomado. Se é pobre, não há nada que poderá tirá-lo da pobreza.
Quando pequeno, pensava que era um pensamento egoísta,
mas quando cresci, percebi que para o pobre falta oportunidade,
para o rico falta humildade. Minha mãe nunca teve a oportunidade
de crescer, então ela achava que sempre e para todos, seria desta
forma. Já o meu pai, não foi privado de ensinamentos, mas sim, de
caráter.
Meu avô era um homem bom, minha avó nem tanto.
Meu pai engravidou uma prostituta e quando soube, pagou
para que ela abortasse. Meu avô descobriu e tirou a mulher da
prostituição e pediu para que ela continuasse com a gravidez. A
empresa italiana do meu avô precisava de um herdeiro, mas este
não seria o meu pai.
Tudo o que meu avô construiu, é meu. Sua empresa
bilionária, é minha.
Meu avô apostou tudo em mim quando eu ainda estava no
ventre da minha mãe. Meu pai não aceitou e me criou como se ele
fosse o dono de tudo, enquanto eu era o seu caixa de dinheiro. Ele
pensou que estava trapaceando o meu avô, mas estava enganando
a si mesmo. Até que um dia a raiva o cegou, a sua ambição e o
desejo pelo dinheiro foram capazes de matar o próprio pai. Minha
avó horrorizada com o monstro que criou, morreu de infarto. E eu, já
estando com dezenove anos, fiz a minha primeira vítima, sendo o
meu progenitor.
Quando ele morreu, descobri as muitas coisas que ele fez
para as pessoas. Tudo para suprir a sua necessidade de poder. Ele
machucou, matou, humilhou e tomou tudo de mais valioso. E foi
através dele, a minha inspiração, que eu resolvi devolver para os
que não tinham nada, a esperança de ter oportunidades.
Me formei na faculdade, mestrado e doutorado. Todos com
honra. Para alguns, estou no auge da vida, sendo um homem de
vinte e seis anos, conhecido pela sua profissão e por ser herdeiro de
uma multinacional, mas foi pela minha vontade de crescer, que
acabei sendo descuidado e deixando que a única coisa boa que
tinha em mim, fosse arrancada e torturada sem que eu pudesse
fazer nada.
Em todo este tempo, eu fui o homem que queriam que eu
fosse, mas quando descobri onde era o meu lugar, nada pode me
segurar. Sendo um acusador, logicamente, viriam atrás de mim, mas
eu não tinha nada, não tinha o porquê temer. Até que uma mulher
apareceu grávida e eu era o pai.
É por ela está missão, é por ela que a minha vingança tem
que continuar de pé.
O dinheiro molda o caráter de muitos, o papel com valor
transgressivo semeia a ambição, a vaidade e a ilusão do poder. O
dinheiro cria soluções, mas te apunha-la sem culpa. O engano te
leva a loucura, mas a realidade nunca se esconde da verdade por
muito tempo.
- Assédio Sexual;
- Assédio Moral;
- Homicídio Qualificado;
- Crime Unissubsistente e Plurissubsistente;
- Crime Profissional;
- Porte de Armas e Drogas.
São exatamente vinte e uma horas e estou sentada na calçada da minha casa.
Hoje está ainda mais quente que o normal, sendo assim, decidi vir para fora. Os
meus pensamentos estão agitados e o silêncio da minha casa está tornando-os
ainda mais constantes.
Hoje não fui a escola, senti que não estava preparada para
encarar as pessoas. Mesmo que eu não tenha reparado em quem
estava observando a briga de ontem, sei que estão comentando e
não estou a fim de escutar pessoas deduzindo sobre a minha vida
ou o que tenha acontecido.
A lua está brilhante e os mosquitos estão se aglomerando em
torno dos pontos de luz da rua sem saída. Perdi a conta de quantos
tive que matá-los e o quanto as minhas pernas estão coçando.
A luz da casa de alguns vizinhos estão acesas, dá até para
se ouvir o som das televisões ligadas. Seu Antônio está
ouvindo fundo de quintal e há um casalzinho novo se pegando na
frente da casa da dona Meire.
Encaro novamente o poste à minha frente e viajo por alguns
instantes. Penso em todas as coisas que aconteceram depois que o
Marcos entrou em minha vida, no quanto fui invisível e, agora, não
passo de uma foda — isso é uma das coisas em que tenho que
escutar.
Continuo aérea, até que vejo uma silhueta familiar surgindo
entre as casas. O corpo alto e grande está inclinado, sendo um
aviso silencioso que algo está errado. Me levanto e vou em direção
a ele.
Mancha segura o seu tórax, estando com a coluna curvada. A
sua postura arrogante ainda está lá, situando todo o seu poder. Me
sinto instantaneamente preocupada. Uma parte em mim diz que eu
não devia, mas a mensagem em que recebi ontem, pode ter
causado um efeito na forma em que eu o via.
Se ele me escolheu, o que ele está fazendo com a Gizele?
Por que me humilha e deixa que ela não só me envergonhe, mas as
outras pessoas também?
Quando estou perto o suficiente, constato que ele está
estranho. Assustada, procuro a causa da dor em sua feição.
— O que aconteceu, Marcos? — tremo ao ver as suas mãos
e roupas cheias de sangue.
Sua respiração é profunda, seus olhos transbordam raiva e
tudo nele grita uma misto de sentimentos baseados em ira e fúria.
— Vamos para casa — ele agarra a minha cintura e me puxa
para onde tinha entrado segundos atrás.
— Minha família...
— Eles não estão sozinhos.
Estou confusa, mas decido ir com ele.
— Espera, tenho que trancar a porta — ele não gosta da
minha resposta, mas me solto e corro.
Vamos para casa.
Suas palavras martelam em minha cabeça, enquanto vou em
direção a porta. Não entendi o que significa, mas, talvez, a perca de
sangue esteja afetando alguma parte do seu raciocínio.
Fugindo dos meus pensamentos, entro em casa e procuro
por uma bolsa. Assim que a encontro, jogo algumas coisas dentro,
constato que os dois estão dormindo e tranco a porta.
— Você só não ia fechar a porta? — seu olhar é furioso.
Ignoro.
— Quando eu falar com você, me responda!
Sinto vontade de respondê-lo no mesmo tom, mas acabo
escolhendo outras palavras.
— Vou precisar de algumas coisas — ele me puxa
novamente para os seus braços.
O que está acontecendo com ele?!
Mesmo com toda esta irritação, ele parece estar necessitado,
querendo me tocar e ver que estou realmente ao seu lado. Noto que
ele está me levando por um caminho diferente. Não digo nada,
apenas deixo que ele me guie, para sei lá onde.
Durante o percurso, percebo que as suas roupas estão se
ensopando ainda mais rápido. Embora o Marcos esteja com um
ferimento notavelmente grave, ele não transparece como a
momentos antes. Ele não diz nada, nem mesmo uma reclamação.
Ao seu pedido, pressiono o seu abdômen, tentando estancar
o sangue, enquanto ele pilota a moto. Não sei como ele está
conseguindo fazer isso, mas é inegável o quanto ele é forte.
Em instantes, chegamos a um local. A casa é estilo a outra.
Desço e espero que ele faça o mesmo. Ele abre o portão e leva a
moto para dentro. Sigo-o, ouvindo a porta ser trancada. Ele se senta
em um sofá de couro, arrancando a sua blusa e a jogando no chão.
— O que aconteceu com você? — repito preocupada.
— Levei um tiro, caralho!
— Quero saber o que aconteceu, não o tipo do ferimento.
— Fui atrás de um cara... — sua resposta é vaga.
— Encontrou ele?
— Sim — suas respostas são curtas.
— E quem era esse cara?
— Não começa, Camilla.
Ignoro a sua arrogância e me abaixo, na altura do seu
ferimento. Analiso o seu peitoral cheio de sangue e me preocupo
com a quantidade que está saindo.
— Você não vai para o hospital? Isso está muito feio!
Ele não responde.
Respirei fundo.
Marcos está se saindo melhor que uma criança mimada.
— Vai tomar um banho. Vou cuidar de você — tento uma
outra vez.
Tenho uma certa noção de como cuidar de um ferimento,
observo a forma em que os médicos cuidam da minha mãe, mas
não sei se vou ser capaz de tirar uma bala do corpo de alguém.
O olhar que o Marcos lança em mim não é do tipo que estou
acostumada, pelo contrário, não sei definir. Nunca recebi este tipo
de olhar dele. Não tem frieza, ignorância, cólera ou qualquer coisa
do tipo. É simplesmente diferente.
Noto que ele se levanta e entra em um corredor, sem falar
nada.
Após um tempo, Marcos aparece limpo. Ele se senta ao meu
lado, ainda quieto e sem me olhar. Mesmo sem nenhuma palavra,
entendo o seu recado.
Quando o Mancha começou a mandar dinheiro pelo Coringa,
não pensei em usá-lo, mas com o tempo, se tornou necessário.
Iniciei a compra de medicamentos e alguns outros materiais.
Geralmente, minha mãe precisa trocar os curativos, então, pensei
ser mais que preciso ter objetos como estes.
Antes de sair de casa, coloquei algumas gases e
esparadrapos, remédios e coisas que podem o ajudar. Pego a bolsa
que estava no chão e a abro. Mancha encara confuso os objetos
que tiro da bolsa, mas não se pronuncia.
— Você sabe o que está fazendo? — ouço a sua voz grossa,
assim que pego todas as coisas e me aproximo dele.
— Não.
Ele balança a cabeça.
— Melhor eu, do que ficar com dor — digo.
Me posiciono em sua frente, analisando todo o seu corpo. Ele
está sentado, com as pernas afastadas e os lábios entreabertos.
Seus músculos estão duros e o sangue está começando a manchar
a sua pele novamente.
Me sinto egoísta por encarar os seus lábios por um tempo,
querendo beijá-lo.
Me agacho em sua frente e examino o ferimento mais uma
vez. Não sei o que fazer, mas esta bala precisa ser retirada. Afasto
a ideia de que posso atingir alguma veia importante do seu corpo ou
algum órgão.
— Vai doer... — não olho para ele enquanto aviso.
Mancha sustenta o peso dos meus olhos.
— Pegue o meu celular, está em cima da mesa — me levanto
e pego.
Entrego em suas mãos, vendo-o discar números aleatórios e
chamar pelo Coringa. Talvez ele pensou que eu não sou capaz de
tirar uma bala do seu corpo. Não discordo.
— Não quero você aqui quando ele chegar.
— Por quê?
— Camilla... só fica no quarto — ele parece cansado.
Assinto, mesmo não entendendo, como sempre.
Não demora até que escuto o nome do Marcos ser chamado.
Ele tenta se levantar, mas, pela primeira vez, a dor assume o
controle da sua feição. Rapidamente vou até a porta, abrindo-a.
Coringa me olha, assente e entra.
— O que aconteceu? — ele pergunta, visualizando o sangue
descendo.
— Fui atrás dele.
— Falei para você não ir sozinho, caralho. Você sabe que
eles estão sempre com as suas babás! — ouço, não
compreendendo uma palavra.
— Vai para o quarto, Camilla! — Marcos manda.
— Mas eu...
— Não vou mandar de novo.
Não querendo mais problemas, decido sair.
— Tem algumas coisas ali que você pode usar — aponto
para os materiais que trouxe.
— Eu mandei você falar com ele? — Mancha respira
pesadamente.
— Calma, cara! Ela só está tentando ajudar — Coringa diz
em minha defesa.
— Estou vendo a sua cara de pau de olhar para a minha
mulher — ele tenta se levantar mais uma vez.
— Você está ficando sem controle, irmão!
— Não se mexe ou vai piorar — aviso, vendo como ele está
ficando nervoso.
— Vai piorar se você não for para a porra daquele quarto!
Notando que a sua ignorância pode crescer altos níveis, me
viro e saio em direção ao corredor. Sei o quanto ele pode ser
desiquilibrado e com a dor, isso pode piorar.
— Quantos desta vez? — consigo escutar através da porta.
— Quatro.
— Conseguiu pegar o João? — Coringa fala baixo, mas abro
a porta e escuto pela brecha.
— Sim. Ele abaixou a guarda com a perca do filho. Já estava
me esperando.
— Conseguiu encontrar o outro? — Coringa parece mexer
em algo.
— Não, mas para ele querer ela... deve estar sabendo sobre
algo — reconheço o tom raivoso. — Reforce as entradas, ele está
conseguindo se infiltrar. Tem um filho da puta dando passagem.
— Estou desconfiado de um.
— Tenha provas e pegue-o — ele parece falar entredentes.
O silêncio paira, até que ouço o Coringa novamente.
— Você está perdendo o controle. Estão começando a notar
ela! — Coringa parece nervoso. — Se você quer ela, vai ter que
fazer mais!
— A garota está sofrendo!
— Eles vão fazê-la sofrer mais se tiverem certeza de que
você está se importando. Você quer que tudo se repita? — Coringa
força.
Minha cabeça vira um nó, com esse bate e volta de assuntos
que não estou fazendo ideia do que seja. Talvez, porque eu não
devia estar ouvindo, mas a curiosidade, a vontade de saber mais
sobre ele, é maior.
— Ainda não consigo acreditar que... logo ela! Porra!
— Você começou, agora termine.
— Você sabe que...
— Sei, mas você vai ter que dar um jeito.
Decido que é melhor não escutar mais. Não estou
entendendo, muito menos vou conseguir tirar algo sobre isso do
Marcos, mas de alguma forma me atinge, deixando-me atordoada.
Antes, já tinha consciência do quanto ele é misterioso, mas,
agora, parece que sou a agulha dentro do palheiro.
Quando estou prestes a fechar a porta, ainda consigo escutar
o Coringa.
— Se quiser continuar, tenha foco, porque a Gizele não é
mais uma distração.
Sinto os meus pés enraizarem no chão.
Me afasto da porta ainda aérea com o que ouvi. Algumas
coisas começam a se encaixar, mas outras dúvidas começaram a
surgir. Nunca pensei em ouvir o nome da Gizele e a palavra
distração na mesma frase.
Me sento na cama e encaro o teto.
Tão branco.
Limpo.
Os meus pensamentos estão travando uma batalha em
minha cabeça e tudo o que quero, é uma solução para todos estes
acontecimentos e dúvidas. Balanço a minha cabeça como se isso
pudesse me ajudar a apagar a imagem desta mulher. Não sinto algo
bom em relação a ela, mesmo que eu somente pense.
O quarto está quente, sinto os meus cabelos começarem a
grudar em minha nuca. Com isso, faço um coque apertado em uma
tentativa de diminuir a sensação agoniante no meu corpo.
Buscando uma distração, observo o quarto, procurando
pontos para analisar. Uma atitude visível de tédio. Noto o
acabamento das paredes, a ausência de móveis, a janela, até que
me deparo com uma porta. Talvez seja um banheiro.
Pensando em lavar o rosto, vou até a porta, mas a surpresa
me atinge quando encontro o interruptor e a luz brilha em direção a
objetos que não tem nada a ver com as peças de um banheiro.
Inconscientemente, levo as minhas mãos até a minha boca,
não acreditando no que estou vendo.
Passo os meus olhos pelas paredes sem reboco que estão
sendo decoradas com diversos tipos de papéis e fotos, jornais
e post-it. Me certifico de olhar para trás, pois sei que não devo estar
aqui. Quando me sinto segura de continuar, volto a minha atenção
novamente para o pequeno quarto.
Meus olhos viajam por todos os cantos, analisando o espaço
detalhadamente. Busco por uma linha de raciocínio para poder
entender o que a pessoa que fez isso pretende e quais são os seus
motivos.
Uma mesa com diversos papéis jogados está no centro,
assim como na parede acima. Vou até ela e pego um deles,
percebendo que se trata de um documentário. Enquanto leio,
examino as imagens.
A data é de dois anos atrás.
"Homens foram encontrados mortos próximo ao teleférico do
Alemão, Rio de Janeiro. A polícia não tem pistas, mas seguem a
procura do causador de tamanha frieza".
Continuo olhando os outros documentários e noto que
praticamente todos são do mesmo período, havendo distinção
somente nos meses. Encaro as pilhas de fotos espalhadas e sinto
vontade de vomitar.
Por que o Marcos guarda este tipo de coisa?!
Nas fotos tem pessoas mortas, muitas pessoas mortas.
Tripas, sangue, órgãos... é horrível! Pego uma das fotos e vejo que
há uma descrição no verso.
Tenente Ramalho, MORTO.
Pego outra foto.
Dr. Frederico Carvalho, MORTO.
Jair Vasconcelos, MORTO.
Henrique Fonseca, PENDENTE.
Encaro a pilha de imagens e respiro fundo. Todos parecem
ser importantes, com boas profissões e contas bancárias gordas.
Ele matou todas essas pessoas?!
Continuo olhando e noto que são poucas as fotos que estão
como pendentes, diria até que noventa porcento dos que estão nas
pilhas, já estão mortos.
Deixo as imagens onde encontrei e sigo para o painel grande,
com mais fotos e ligações. Setas feitas em caneta vermelha estão
para todos os lados, assim como mais jornais com as mesmas
datas.
Reparo em um tabuleiro de xadrez ao canto. Em cada peça
tem um rosto e em cada casa, um nome. Sessenta e quatro
homens.
Algumas das peças estão caídas e as imagens riscadas.
Ouço o Marcos gritar alguns xingamentos e volto
rapidamente para as setas. Talvez, Coringa esteja terminando,
tenho que ser mais rápida se quero descobrir algo sobre o passado
dele.
Sigo cada linha vermelha, lendo os documentários e vendo
mais e mais fotos que para mim, não tem sentido algum.
"De acordo com o Dr. Marcos Henrique Valentini, Tiago
Castellanos está sendo preso por um longa fixa de crimes, sendo
um deles assassinato e envolvimento com tráfico de drogas e
pessoas..."
Dr. Marcos Henrique Valentini?!
Procuro pela data e comparo com os outros jornais, sendo
este o mais antigo.
"Duas mulheres e uma criança foram encontradas
carbonizadas em uma área isolada em uma cidade nobre do Rio de
Janeiro..."
"Julho de 2016, cem policiais foram encontrados mortos. A
polícia procura a causa de tantas mortes. Suas famílias protestam
por justiça..."
"Polícia acredita que um Serial Killer esteja à solta na Zona
da Leopoldina, Rio de Janeiro, sendo acrescentado mais vinte e
cinco homens, entre eles, advogados e um Deputado Federal..."
"O Juiz Antônio Alencar foi morto está tarde com quatro tiros
na cabeça. Provas foram misteriosamente apresentadas, afirmando
que o falecido Juiz era um dos mandantes e sócios de uma facção
criminosa..."
Pego o jornal e encaro o homem na imagem.
Mancha.
Levo as mãos em minha boca, evitando um possível grito.
Meu corpo está tremendo, o meu coração se agita em meu peito.
Deixo o jornal no mesmo lugar e volto a minha atenção para
as outras imagens. Mais pessoas mortas. Passo os meus olhos
pelos diversos homens riscados, até que paro em um. Lágrimas
inundam os meus olhos imediatamente.
Ao lado do homem, tem uma outra foto sendo apontada por
uma flecha.
Sinto que as minhas pernas começam a vacilar.
Sou eu.
A flecha aponta para mim.
Puxo a foto e reconheço o colégio em que estudo atrás. Ele
estava me seguindo, realmente. Volto para a outra figura e,
rapidamente, reconheço o meu pai. Ele não é o mesmo homem que
conheci quando pequena, ainda assim, me lembro, principalmente,
dos seus cabelos ruivos, iguais aos meus.
A surpresa realmente não foi essa. A palavra certa seria
decepção.
Mulheres estão a sua volta e um círculo vermelho marca o
seu estado, MORTO.
Marcos matou o meu pai, matou alguém que já estava morto.
A cada vítima, atrás da imagem, se encontra uma data e a
minha surpresa é ainda maior por ver que o Marcos matou o meu
pai há dois meses. Dois meses.
Quem era o meu pai?!
Passo a minha mão em meu rosto tentando acabar com
qualquer rastro de lágrimas, que nem mesmo percebi que estava
derramando. Pego a minha foto e vejo o que ele escreveu sobre
mim.
Em meu rosto tem um círculo em azul, INOCENTE.
No mesmo instante, ouço-o esbravejar.
Tento absorver mais das imagens, procurando entender o
que ele está fazendo, ocupando um posto que não combina com
ele.
Continuo olhando até que me deparo com a imagem da loira.
Hoje faz exatamente um mês que aquela noite aconteceu. Um mês, que o Marcos
ainda continua com aquela mulher. Parece até que nenhuma das minhas palavras
tiveram força suficiente naquele dia. Posso até afirmar que ele mudou, o seu jeito
está diferente, principalmente comigo, ainda assim, ele continua com ela.
Se isso me machuca? Com certeza. Mas o que posso fazer?
Dar um gelo nele? — quando pensei, me pareceu bom. E, foi o que
fiz, mas como ignorar alguém que sumiu?
Está é a segunda vez que ele some, da primeira, ele
apareceu com duas balas alojadas em seu corpo. Não sei como ele
vai aparecer agora.
Embora ele tenha sumido duas vezes, já estou conseguindo
me acostumar. É mais que evidente a sua obsessão por esse
segredo. Não tenho coragem de questioná-lo, mas passo grande
parte do meu tempo pensando e me preocupando com o que ele
está fazendo.
Termino de beber a minha água e vejo o celular vibrando em
cima da mesa. Desbloqueio a tela e noto uma nova mensagem com
o número desconhecido.
"Boa tarde, ruiva. Espero não estar incomodando. Tudo bem
por aí? — Samuel".
Encaro o celular sem acreditar. Um mês depois, ele me
manda mensagem.
— Mãe! — ouço o Bruno me chamar.
"Boa tarde! Por aqui tudo normal e por aí? — antes de clicar
em enviar, penso se devo realmente fazer isso, mas acabo
mandando".
— Oi! — grito de volta.
— Estou com fome!
Guardo o remédio para cólica e vou até o Bruno. Noto que já
passou das treze horas e me sinto culpada, pois ele deve estar
realmente com fome.
Está cólica tem me deixado totalmente inválida, fazendo-me
querer somente a minha cama. Quero ficar enroladinha no meu
edredom e dormir, dormir muito. Porém, não será possível. No
domingo, será o Dia das Mães e a escolinha do Bruno está
organizando uma festinha.
A professora tinha nos comunicado sobre um ensaio antes da
comemoração. Ela pediu para que nós levássemos as crianças na
parte da tarde. Entretanto, estou extremamente atrapalhada que até
o almoço acabei esquecendo.
Está dor contínua vem me atormentando a alguns dias, estou
atrasada e parece que este mês vou sofrer um pouquinho. Minha
menstruação não é regulada, mas nunca senti algo como isso.
— Bruno, mamãe vai fazer o almoço. Você espera um
pouquinho? — peço.
Bruno sorri, vindo ao meu encontro.
— Mamãe, dodói? — pego ele no colo e beijo todo o seu
rosto.
— Não — minto, fazendo uma careta.
— Vovó disse que é feio mentir — dou risada com a carinha
que ele faz.
— Já estou melhor.
— Estou com fome — ele reclama novamente.
— Vamos fazer um trato. Primeiro você toma banho,
enquanto a mamãe faz alguma coisa para a gente comer, certo? —
pergunto.
— Certo.
Levo ele até o banheiro, tiro a sua roupa e o coloco embaixo
do chuveiro. Dou um banho rápido nele, somente para amenizar o
calor, pois já tinha dado banho nele mais cedo.
Mamãe teve um bom avanço em sua saúde e até mesmo foi
ao verdurão com a dona Vânia, mãe do Matheus. Com a sua
ausência, tenho que me virar para fazer algumas coisas ao mesmo
tempo.
Enrolo o Bruno em sua toalha verde com touca de bichinho e
orelhinhas, enxugando-o. Após ver que ele está quase seco, o
enrolo totalmente, segurando-o em meu colo, indo do banheiro para
o quarto. Quando ponho os meus pés no cômodo, escuto quando
batem na porta.
— Fique aqui, já volto! — aviso-o, colocando-o no chão.
Me viro e vou até a porta, abrindo-a.
— Estou com fome — Marcos fala, com olhos extremamente
famintos.
— Eu também, mamãe! — sinto que vou perder o meu juízo.
Bruno aparece atrás de mim no mesmo instante. Observo
que a touca com as orelhinhas está caindo em seus olhos,
deixando-o irritado.
— Você some e quando volta me fala isso? — digo com
raiva.
— Só me convida para entrar! — abro espaço e ele entra.
Embora eu devesse estar me esgoelando, questionando e
colocando ele para fora, penso no porquê tenho comida em casa e
quem é responsável por isso.
— Papai, o Henrique falou que eu não tenho papai! — Bruno
despeja a sua frustração.
Há uns dias, Bruno me contou sobre um coleguinha que
estava sendo maldoso com ele. Isso mexeu muito com o meu
menino, ou não teria o feito guardar e contar para o Marcos assim
que o viu.
— E o que você respondeu? — Marcos prende a sua tenção
no Bruno.
— Eu disse que tenho dois — ele mostra com os dedinhos.
— Dois? — ele se vira para mim.
Faço cara de paisagem, não entendendo o que o Bruno está
dizendo.
— Papai — ele aponta para o Marcos. — E o papai Vitor.
Sinto o meu queixo cair de surpresa. Bruno nunca mencionou
o Vitor desta forma.
Vitor é um belo homem, mas é casado. Bruno não entende
isso, mas ele sabe que o Vitor cuida da sua avó e que sempre lhe
dá balas quando o vê. Assim como o Marcos, Vitor é um homem
que vem nos ajudando e o fato dele gostar do Bruno, do modo
carinhoso que o trata, torna a carência do meu filho ainda mais
cheia de expectativas.
— Quem é Vitor? — Mancha dirige o seu olhar para mim.
— Ninguém — respondo depressa, mesmo sabendo que ele
vai insistir. — Vou trocar o Bruno, já volto.
— Papai, Vitor, não? — ele parece confuso.
— Filho, o Vitor, não! — falo baixinho em seu ouvido. — Ele
já tem uma namorada.
— Já? — ele questiona triste.
— Já, meu amor.
Pelo seu rostinho, Bruno entendeu o que eu quis dizer. Pelo
menos espero que tenha.
Pego as suas roupinhas na cômoda e visto-o com o uniforme
da escola e os seus sapatos novos.
— Cabelo, mãe! — ele aponta.
— Vou pegar o creme — aviso, indo até o banheiro.
Vou em direção do banheiro, mas antes que eu possa voltar
ao quarto, Marcos me encurrala contra o azulejo frio.
— Quem é o caralho do Vitor? — ele não me parece nada
calmo.
— Não existe nenhum Vitor.
— Você mente muito mal.
— Não me esqueci das coisas que te disse a um mês, um
mês, Marcos! — tento ser o mais sincera possível, mesmo que eu
esteja me enganando.
Minhas palavras não têm firmeza. Desde que entendi que o
amo, não consigo olhar ou pensar em qualquer outro homem. Todos
parecem tão sem graça, abertos demais, desesperados talvez. A
verdade é que ninguém é como ele.
As suas mãos apertam os meus cabelos em seu punho,
fazendo com que a minha cabeça se incline de encontro ao seu
rosto.
— Estou perdendo a minha paciência!
— Entendo.
— Ainda posso te machucar, Camilla.
— Você está me ameaçando? — debocho descaradamente.
Seu corpo cola ao meu em instantes. É rápido os efeitos do
seu toque em mim.
Meus olhos se fecham por um momento, lutando para que a
vontade de me entregar a ele não me vença.
— Não estou te ameaçando, estou avisando.
— Mamãe...
— Me solta — peço, saindo do seu aperto.
Vou até a cozinha respirando fundo, tentando colocar os
meus pensamentos no lugar. Abro a geladeira e pego algumas
salsichas. Decido fazer um lanche rápido. Não estou com cabeça
para fazer algo elaborado.
Separo os ingredientes para fazer o cachorro-quente.
Começo a organizar algumas coisas enquanto as salsichas ficam
prontas.
Sinto a presença do Marcos em minhas costas e o Bruno
tenta manter uma conversa com ele. Fico surpresa quando vou
pegar os pães em cima da mesa e vejo o Marcos penteando os
cachinhos do Bruno — com a minha fuga do banheiro, acabei
esquecendo do creme que fui pegar, mas o Marcos tomou a frente.
Bruno parece animado, contando sobre a escola e coisas que
nem mesmo eu consigo entender. Acredito que ele está
aproveitando este contato que nunca teve.
— Eu sou o seu pai, Bruno. Não tem um segundo, sou só eu
— sua voz é firme, mas em um tom compreensivo.
Bruno o observa com olhos brilhantes, balançando a cabeça
em afirmação.
Volto a minha atenção para o que estou fazendo, observando
que somente falta montar. Depois de pronto, pego o refrigerante na
geladeira e ponho em cima da mesa junto com os lanches.
Me sento junto com os dois na mesa e comemos ao som da
voz do Bruno que fala sem parar. Reparo nas mãozinhas agitadas
dele, se sujando de maionese. Até que sinto algo me incomodar.
Meu estômago começa a revirar e um enjoo forte me atinge.
Tento disfarçar e volto a comer, mas novamente o incomodo volta e
eu já não tenho mais controle para segurar. Corro para o banheiro
onde vomito todo o meu almoço.
— O que você tem? — Marcos vem até mim, percebendo que
não fechei a porta.
Não consigo responder, somente vomito ainda mais. Mancha
vendo o meu estado, segura os meus cabelos, passando as mãos
em minhas costas com preocupação.
Quando me sinto bem para ficar de pé, limpo o meu rosto,
escovo os meus dentes e elimino toda a sujeita do vaso. Jogo água
várias vezes em meu rosto, tentando aliviar toda tensão, mas
parece que está vindo novamente.
Não demora muito para que eu volte para o vaso, de novo e
de novo, até que me sinto totalmente vazia.
— Que porra, Camilla! Você tem que ir ao médico! — ele
parece agoniado.
— Não precisa, estou bem.
Após o meu estômago aceitar que não tem mais nada para
jogar no vaso, volto para a cozinha, colocando o que sujamos na pia
para lavar depois. Levo o Bruno ao banheiro para ele escovar os
seus dentinhos, fazendo o mesmo com os meus mais uma vez.
Mancha somente nos observa sem dizer uma palavra. Não
me importo. Vou até o quarto, onde troco a minha blusa e arrumo os
meus cabelos em um rabo de cavalo.
— Você vai sair assim? — a sua preocupação está
conseguindo me atingir.
— Camilla, cheguei! — minha mãe diz, entrando.
— Oi, dona Joana — Mancha cumprimenta a minha mãe,
fazendo-a se assustar.
— Oi — ela responde relutante.
Mamãe me olha desconfiada, mas não se pronuncia, apenas
deixa as suas sacolas em cima da mesa e beija o Bruno, que em
instantes já está em seus braços.
— A senhora conhece algum Vitor, dona Joana? — Marcos
só pode estar brincando.
— Acho que não — ela para por alguns segundos, parecendo
pensar em algo. — O meu médio se chama Vitor.
— Médico, é? — ele olha para mim.
— É. Um bom rapaz, com um ótimo coração e tem uma
família linda — encaro a minha mãe aflita, mas ela não parece
perceber. — Por quê?
— Nada não.
Sei das coisas que ele pode fazer quando se sente
ameaçado. Não quero ver o Marcos indo atrás do Vitor, até porque
ele não vai ter uma conversa amigável, ele vai para machucar.
Marcos se manteve quieto, mas depois de um tempo abriu a
porta e se foi, sem dizer uma palavra.
Ele consegue ser extremamente irritante.
Noto que o Bruno sujou a sua roupa e o troco. Constato que
horas são e vou em direção a escola dele. Muitas mães já deixaram
os seus filhos e o meu menino fica feliz ao ver os seus amiguinhos.
Converso rapidamente com a professora sobre o horário em que
devo vir buscá-lo e vou embora.
Faço o caminho de volta, até que ouço uma voz conhecida
me chamar. Olho para trás e me deparo com a Fernanda correndo
em minha direção, ela parece eufórica. Paro na calçada e espero
que ela esteja perto o suficiente para que me conte o que está lhe
deixando agitada.
— ...a Yohana me deixou entrar mais tarde hoje! — ela
explica, citando a sua patroa. — Mas não é isso que quero te contar.
Ela me deixa apreensiva.
— O que foi?
— Gizele está espalhando no Morro que está grávida.
Sinto que as minhas pernas vão me deixar, a estrutura do
meu corpo está ameaçando desmoronar. Meus olhos perdem o foco
por alguns segundos, até que consigo estabelecer o meu raciocínio
lógico. Fernanda, em minha frente, continua falando sem perceber
que não estou conseguindo ouvir nada.
— Fernanda! — chamo a sua atenção.
Ela parece perceber que não estou acompanhando o
assunto.
— Repete o que você falou.
— Hoje, pela manhã, o Izac comentou sobre o herdeiro do
Marcos e quando fui ao mercadinho, ouvi duas meninas falando a
mesma coisa.
É óbvio que ela pensaria em algo para tentar prendê-lo. Ela
conseguiu o que queria. Se a sua ideia é me humilhar e me afastar
do Marcos, seu plano teve sucesso.
— Acredito que mais da metade do Morro já sabe —
Fernanda continua.
— É algo que ia acontecer de qualquer jeito — penso nas
suas ameaças.
Gizele mostrou querer o Mancha de qualquer forma, desde o
início. Não é uma ideia muito inteligente, engravidar para segurar
um homem. Ela vai conseguir atingir um ponto.
— Ouvi a Emily dizer que ela está de um mês.
— Será que ele sabe? — penso nos acontecimentos de um
mês atrás, quando ele foi baleado.
— Com certeza.
Em meu peito, meu coração se quebra em vários pedacinhos,
meus olhos transbordam e tudo o que posso fazer se baseia em
querer estar longe do Marcos. Longe das suas mentiras, segredos e
as suas palavras rudes e codificadas.
17
CULPA
CAMILLA FERRAZ
Domingo, 13 de maio de 2018
Acordo ainda pior do que nos dias anteriores. As cólicas diminuíram, mas o que
está realmente me incomodando são os enjoos constantes. Entretanto, não posso
ficar em casa. Hoje é Dia das Mães e tenho que levar o Bruno até a sua escola
para a apresentação.
Engulo o remédio com água e vou para o banheiro, onde
tomo um banho rápido e frio. Assim que termino, visto as minhas
roupas e arrumo os meus cabelos.
Minha mãe já deu um banho no Bruno e tomou o seu, sendo
que somente estão esperando por mim. Respiro fundo e busco não
deixar que os meus pensamentos assumam o controle.
Vem sendo uma batalha dominar a imagem do Marcos em
minha cabeça, principalmente quando o relaciono ao fato de que ele
será pai. E o pai do filho da Gizele, a mulher que mostrou ser pobre
de espírito, alma e coração. Até tento pensar em outras coisas, mas
ele simplesmente se infiltrou e não a nada que possa tirá-lo.
Todas as lágrimas que consegui segurar, se derramaram em
meu travesseiro durante a noite. Sufoquei os meus soluços, quis
apagá-lo da minha cabeça, mas é impossível. Não consigo acreditar
que caí direitinho no seu jogo, em como ele conseguiu o que queria
e no quanto as suas palavras foram sempre uma mentira.
Posso culpá-lo por muitas coisas, mas ele foi direto quando
disse que não poderia me dar exclusividade. Ele não mentiu quando
falou que iria cuidar de mim ou quando insistiu que é o pai do Bruno.
Ele dosou as suas mentiras e verdades em um equilíbrio agoniante,
onde não posso culpá-lo sem defendê-lo, ou o defender sem o
acusar.
Vou até o quarto e passo perfume, calço os meus pés e,
novamente, permaneço dizendo a mim mesma que tenho que
esquecer o Marcos e tudo relacionado a ele.
Após olhar no relógio e constatar que já passa das duas
horas da tarde, pego na mão do Bruno e espero que a minha mãe
tranque a porta.
— Mamãe?
— Oi? — respondo encaminhando a minha atenção para
baixo.
— Por que eu não sou assim? — ele aponta para o meu
braço.
— Assim como?
— Assim ô! — ele usa o seu pequeno dedo para mostrar o
meu braço novamente, logo mostrando o seu.
Fico por alguns segundos tentando entender se está é uma
pergunta que de qualquer forma ele iria fazer, ou se alguém apontou
está diferença.
Ainda o olhando, me abaixo e fito os seus olhos castanhos.
— Porque a mamãe não teve a sorte de ser bonita como
você.
Passo os meus dedos em sua pele negra, até subir as suas
bochechas redondas, acariciando-as.
— Eu acho você bonita.
— É mesmo? Pois, eu te acho incrível!
— O que é incrível?
— Incrível é uma pessoa deste jeitinho, como você — subo
as minhas mãos para os seus cabelos. — Bonito por fora, por
dentro, gentil, educado...
— Ahhh...
— Por que você me perguntou isso?
— Nada não.
— Tem certeza?
Ele não usa palavras, mas balbucia algo como resposta.
Mesmo não acreditando no que ele disse, deixo passar, mas vou
insistir neste assunto mais tarde.
Andamos pelas ruas, sempre procurando pela sombra, pois o
sol está derretendo até mesmo o asfalto. Continuamos
atravessando as ruas, minha mãe cumprimentando algumas
pessoas, Bruno tagarelando, até que faltando uma esquina para
podermos chegar à escola, visualizo a figura da última pessoa que
gostaria de ver.
A mulher loira, com três garotas ao seu lado, ri
escandalosamente.
Gizele está sentada em uma das mesas de madeira na
pizzaria que é lanchonete durante o dia. Ela parece feliz e aparenta
querer demonstrar isso para todos. A observo balançar os seus
cabelos em um movimento estravagante e petulante. Ela se mostra
superior, vejo até que uma das suas amigas fica sem graça com
algo que ela diz, mas a Gizele não parece notar.
Desvio o meu olhar, vendo que demorei ao analisá-la. Assim
que decido ignorá-la, ouço a sua voz irritante me chamando em um
coral de risos e ironia.
— O Morro vai ter um herdeiro, vadiazinha! — as suas mãos
pousam em sua barriga. — Adivinha quem é o pai?
— Parabéns, Gizele! — parabenizo sem ânimo. — Você
conseguiu o que queria.
— Eu sempre consigo, garota!
Ouço o escárnio nas vozes risonhas ao fundo, enquanto a
minha atenção continua na Gizele, que, neste momento, desce os
seus olhos para o Bruno e a minha mãe com nojo.
— Você pode ser a marmita que ele come quando quer, mas
a mulher dele sou eu! É para mim que ele corre todos os dias. E,
sou eu quem vai ser a mãe do filho dele! — ela ironiza. — Os seus
dias de putinha dele, acabou!
— Já falei sobre isso uma vez, não tenho problema nenhum
em repetir.
Me posiciono diretamente em sua linha de visão, fazendo
com que ela possa visualizar perfeitamente os meus olhos e todos
os sentimentos que estão passando por eles.
— O homem que você está falando, é o mesmo que vem
atrás de mim. Se você está se fazendo de surda ou está querendo
bater no mesmo ponto, aconselho você a fazer melhor, pois o que
quer que você esteja fazendo, não está sendo o suficiente —
minhas palavras conseguem atingi-la, visto que, sua postura
desmorona lentamente. — Você acha que sou eu que fico atrás
dele? Tenho pena de você por não conseguir ver o que está em sua
frente.
Noto que ela está prestes a rebater, mas acaba engolindo as
suas palavras. Ela deve saber que não vou deixar que fale,
enquanto me mantenho em silêncio. Antes que possa voltar ao meu
caminho, me viro mais uma vez, segurando o seu olhar raivoso.
— Nunca mais dirija este olhar para a minha família, até
porque a pessoa que merece o nojo em seus olhos, é você. Não me
importo com o que você diz sobre mim, mas sobre eles... — aponto
para os dois que somente me olham. — ... você engole! Você não
tem família, é somente uma desesperada.
Respiro e inspiro forte, controlando a minha ira.
Não me arrependo por nenhuma das palavras que usei, pelo
contrário. Me arrependo por não ter colocado ela em seu lugar
antes, mesmo correndo o risco de ser surpreendida em minha casa.
As risadas cessaram, mas não demora para que os gritos
histéricos e xingamentos extremamente altos se espalhem pelo ar,
no mesmo instante que dou as costas a ela.
Assim que me viro, tenho o deslumbre do Bruno mostrando a
língua para todos os que estão atrás de mim, mas assim que vê que
estou o observando, ele disfarça.
Muitas pessoas que andavam pela rua pararam para
observar a "amante" e a fiel do dono do Morro em uma troca de
farpas. Reparo que estou sendo um entretenimento mais uma vez e,
pior, em uma discussão onde o principal alvo é um homem. Brigar
por um cara está na lista das situações que mais repudio. E, olha
onde estou, em um bate e volta sobre o Marcos.
Virei notícia quando o Marcos fez a sua cena em escolher
uma mulher. As pessoas me viam como a recalcada e a amante de
bandido. Cheguei a escutar que sou o lanchinho de muitos, da
mesma forma que acabei de ouvir.
Em todo este tempo, colecionei algumas ameaças, palavras
que jamais penso em usar em meu vocabulário e os olhares, este
com certeza foi um dos piores. O olhar de desprezo, pena, desdém,
indiferença... me fez ver sobre até onde as pessoas vão pela inveja.
Não inveja de mim, mas inveja da situação. O dinheiro,
reconhecimento e a ilusão do poder podem alavancar sentimentos
como estes, capaz de pensar que tem o direito de pisar, humilhar e
causar dor.
Neste instante, percebo que mesmo me posicionando diante
da afronta da Gizele, sairia sendo somente a amante revoltada e
que, o meu lugar sempre será de uma simples garota que foi usada
por um homem poderoso.
O que aprendi e o que tenho usado diariamente, é o poder de
ignorar. E, deste modo, usufruo desta habilidade.
Meu estômago dá um leve sinal de vida, fazendo com que a
minha cabeça gire por um momento. Continuo andando, tentando
controlar todos os sintomas infundados que estou sentindo.
Viramos a esquina e conseguimos avistar a escola, onde
entramos.
Corações, flores e cartazes estão espalhados por toda parte.
Assim como na Páscoa, há uma grande quantidade de decoração,
com direito a lembrancinhas e comes e bebes.
Alguns minutos depois, a professora chama todos os alunos
para que eles fiquem na frente do pequeno palco improvisado. Ela
entrega para cada um, uma cestinha e um cartão.
Observo quando uma outra docente segura o microfone para
um menino, logo formando uma sequência de crianças dizendo
coisas fofas para os seus pais. Vejo cada homenagem com lágrimas
descendo por meu rosto. Noto que não sou a única, muitos pais
estão emocionados.
— Mamãezinha do meu coração, você me dá carinho, me
chama de amorzinho... é a menina mais incrível! Te amo — a voz do
Bruno, literalmente, me fez soluçar.
Assim que eles terminam de homenagear os seus pais e de
cantarem uma música que me fez chorar ainda mais, Bruno corre
para os meus braços, sorrindo, entregando a cesta e o cartão que
ele mesmo fez.
Após o término da festa, fomos embora, ouvindo o meu filho
cantarolando animado.
O seu melhor dia, pode ser as vinte e quatro horas mais tristes da
vida de outra pessoa.
A minha vida após a partida da minha mãe teve um grau de
distinção gritante, pois existe a parte em que fui feliz com ela e a
outra, em que sou feliz e que pratico o que me foi ensinado por ela.
A minha mãe viajou em paz, mas somente pude perceber
quando as minhas lágrimas deram espaço para os meus
pensamentos coerentes. Ela repetiu várias vezes para que eu
pudesse entender. Dona Joana não dava arrodeio quando precisava
dizer algo.
"Nunca a deixarei. Em seu coração, pensamentos e alma, eu
estou. Não se deixe entristecer com a minha partida, pois um dia
nos encontraremos. Viva intensamente, seguindo o que pude lhe
ensinar".
A dor por não tê-la perto, ainda está presente, mas não farei
jus as suas palavras se eu deixar que o sofrimento me engula. Tudo
o que fez foi para me ver feliz e vou seguir desta forma.
Tento controlar as minhas mãos que estão tremendo.
Hoje estou me casando com um traficante.
Mesmo que a simplicidade esteja por toda parte, ainda não
parece ser a minha realidade.
Fui criada na pobreza, onde nem mesmo a comida era algo
frequente na mesa. Não tenho vergonha, muito menos me sinto mal
em lembrar. Sou feliz pela criação que tive e por saber que tudo foi
conquistado. A filha única de uma viúva, não foi mimada. Não teve
as melhores roupas, o celular do ano ou os privilégios que qualquer
um pensou que teve. Nenhuma vida é fácil, não seria diferente com
a minha.
Os meus dias eram monótonos, as mesmas preocupações,
medos e aflições, até que ele chegou. Marcos intensificou as
mudanças, transformou as minhas páginas e trouxe alívio para as
minhas esperanças. Nunca me faltou amor, acredito que este tenha
sido o motivo, pois quando o nosso coração está cheio, precisamos
compartilhar.
Não tínhamos um nome para chamar o nosso
relacionamento, até hoje.
Nestes dois meses, Marcos demonstrou mais do que um dia
fui capaz de imaginar. Tudo aconteceu de forma rápida, porém
foram do melhor modo.
As noites são as mais quentes, onde os nossos corpos se
aquecem com a paixão inquietante das nossas vontades. Em nossa
cama todo o passado, arrogância e insatisfação são meras palavras
inexistentes. Lá, somente há eu e ele. Nenhum sonho chegou a
alcançar a realidade.
Há exatamente um mês, ele me pediu em casamento
novamente. Marcos não se ajoelhou, fez um discurso bonito e
estendeu um anel. Esse não seria ele caso fizesse. O homem para
quem estou andando, me olhou com intensidade, segurou o meu
rosto e pediu. Ele não foi exigente. Marcos simplesmente saboreou
a espera pelo meu sim, enquanto deixava que a sua pele quente e o
coração acelerado me tocassem.
Este homem não está em um padrão.
Jurei nunca me envolver com um homem fora da lei. Prometi
a mim mesma que jamais me deixaria levar pelo tráfico, até que sou
surpreendida ao ser vendida para ele.
Marcos aprendeu sozinho as lições mais duras e, tudo,
porque não usou pretextos, mas porque assumiu a culpa e o erro.
As minhas necessidades se tornaram as suas. E, assim como ele,
me deixei ser vencida.
Por um segundo, desvio o meu olhar para tudo o que está em
minha volta.
Rosas brancas, girassóis e lírios estão em alguns pontos,
assim como alguns tecidos da mesma cor, em volta das cadeiras
metálicas em dourado.
Tenho certeza de que tudo não foi feito por qualquer equipe
de decoração, pois tudo o que está por aqui reflete os meus gostos.
A escolha das cores, das flores, o vestido... o botão de rosa no
termo dele. Tudo se relaciona com as minhas preferências. Sei que
as mãos da Fernanda esteve por aqui, mas a participação dele foi
fundamental para que tudo funcionasse.
Observo as pessoas que estão presentes e constato que são
poucas, porém não há convidados melhores para este dia. Sorrio,
pois sou uma mulher de muita sorte.
Do meu lado direito se encontra a Fernanda, com a sua mãe
e irmão. Dona Maria está chorando ao me ver entrar, enquanto a
Fernanda sorri amplamente. O meu filho está sentado ao lado do
Izac, balançando os seus pezinhos, ao mesmo tempo que segura o
seu terno fofo, sorrindo orgulhoso. Retribuo o sorriso com lágrimas
em meus olhos. Do outro lado se encontra a minha vizinha, Vânia, e
a sua família. E no centro está ele, pairando sobre mim com o seu
olhar.
Marcos preparou tudo. Tudo.
Estou aflita, nervosa, talvez em choque.
Eu estou me casando.
A nossa pequena Joana balança em meu ventre como se
sentisse os meus sentimentos ou ela simplesmente saiba que o seu
pai está perto, pois tem sido assim, desde que ela mexeu pela
primeira vez.
Firmo os meus olhos nele, não conseguindo tirar o meu foco
do seu corpo, sendo coberto por algo tão formal. Nunca imaginei vê-
lo de terno. Seus músculos fortes estão sendo valorizados pelo
tecido grosso, ressaltando o homem imponente que ele é. Confesso
que estou extremamente excitada com a visão que estou tendo e
algo me diz que ele sabe.
As tatuagens fogem da sua roupa, tornando-o ainda mais
quente. Seus cabelos estão alinhados perfeitamente para trás. Sua
postura é sólida e ereta, enquanto as suas mãos se mantem em
suas costas. Subo o meu olhar e me deparo com os seus olhos,
escuros e intensos.
Ele está gostando do que vê.
Quebro a distância entre nós, prostrando-me a sua frente.
— Obrigado, Kaique! — ele agradece quando o seu amigo
me entrega a ele.
Minutos atrás, Coringa pediu para que pudesse me levar até
o Marcos. O seu pedido foi honesto, de forma que a única resposta
certa seria um sim. Até, então, eu entraria sozinha, mas a minha
felicidade se tornou completa ao saber que ele se prontificou de boa
vontade, com um sorriso no rosto.
Ainda estava sendo difícil para o Marcos lidar com o gênero
masculino perto de mim, mas senti a sua confiança ao ver o seu
amigo ao meu lado.
— Cuida dela, cara — Coringa avisa, indo para o lado da
Fernanda.
Sorrio para ele em agradecimento.
Marcos até tentou ser discreto, mas as suas mãos quebraram
o protocolo ao segurar em minha cintura, levando-me para mais
junto dele, pousando uma delas em minha barriga, onde nossa filha
está se movimentando freneticamente.
Entendo que é a sua aliança.
Ao decorrer da cerimônia, notei que o Marcos estava
impaciente ao meu lado. Ele pediu algumas vezes para o padre se
apressar, até que ele pode fazer o que estava o deixando nervoso.
Ele prende o seu olhar com o meu, até que vejo a sua mão puxar do
seu bolso um papel dobrado.
— Está é a primeira vez que irei me expor para tantas
pessoas e, certamente, a última. O meu orgulho não me deixa
mostrar tanto, mas estou aprendendo... — ele diz, nunca desviando
os seus olhos dos meus. — Fiz os meus votos, amor.
Marcos chegou a me contar como seria o nosso casamento,
mas pelo que me disse, seria somente no civil. Até que me deparei
com mais uma das suas surpresas. Claramente, se soubesse,
também teria feito os meus. Porém, a verdade é que não estava
acreditando que ele realmente preparou algo para me dizer,
enquanto temos pessoas ao redor para escutá-lo.
Meu coração almeja sair do meu peito, mas tento tranquilizá-
lo, atentando-me aos movimentos e a tudo o que o Marcos tem a
me dizer.
— O nosso início foi errado — ele começa olhando para o
papel. — Planejei tudo nos mínimos detalhes para que não
houvesse imprevistos, mas nenhum destes detalhes me preparou
para quando pousei os meus olhos em você. Não achei que poderia
me sentir um louco em somente te olhar — ele levanta os seus
olhos em minha direção por alguns segundos, voltando para o
papel. — Sinto que não tenho controle sobre todas estas
descobertas — ele dá uma pausa. — Fui o seu pior pesadelo por
um tempo, fiz você sofrer, mas prometo me desculpar pelo resto das
nossas vidas.
A suas palavras são sinceras e intensas. Acabo deixando que
as lágrimas desçam pelo meu rosto.
— Peço que me aceite do jeito que sou, com os meus
defeitos e as minhas mínimas qualidades. Vou fazer o meu melhor
para que a nossa família seja feliz e que eles tentam como base
honestidade e amor — neste momento, ele encara o Bruno, me
fazendo derramar ainda mais lágrimas. — Eu sou o seu pai de
acordo com a lei... e o coração — levo as minhas mãos até a minha
boca, em uma reação instantânea. — O Bruno era a outra parte que
faltava em mim...
Assim como eu, as pessoas choram ao ouvi-lo.
— Te prometo fidelidade e algo que eu nunca havia dito a
ninguém... — ele prende os meus olhos. — O meu amor por você
não tem tamanho, virgulas ou pontos. Eu quero você para amar,
respeitar e proteger, para sempre.
O meu coração falha uma batida.
Não aguentando mais a distância, passo os meus braços em
torno do seu pescoço, moldando-me ao seu corpo. Sinto quando ele
me corresponde, apertando-me de encontro ao seu peito.
Choro em seu pescoço, até que eu tenha forças para
responder.
— Eu também te amo, Marcos.
— Repete — ele sussurra em meu ouvido.
— Eu amo você.
Ouço palmas ecoarem ao nosso redor, oficializando a nossa
união.
— Não posso te dar uma lua de mel, não agora. Mas
podemos repetir todos os atos e posições que você desejar na
nossa cama — ele diz baixo, roçando a sua barba em meu rosto.
— Eu aceito.
Algumas horas depois, estou na cozinha bebendo água,
observando o anel cintilante em meu dedo. Eu realmente estou
casada.
No momento em que estive naquele palco, não pensei que
meses depois estaria me casando com o homem misterioso que
surgiu de repente. Ele ainda consegue me deixar atordoada, ainda
assim encontrei uma alegria que não acreditei existir ao seu lado.
Mais cedo, ele avisou-me sobre pegar tudo o que quisesse
levar para a minha nova casa. Somente embalei os objetos de
importância e valor sentimental. Ele insistiu para que eu me
mudasse assim que a minha mãe faleceu, mas não estava
preparada para deixar o lugar.
Marcos cuidou dos mínimos detalhes, mas o que mais me
tocou, foi o modo em que ele preparou um quarto somente para o
Bruno. A decoração e cada objeto parece ter sido escolhido por ele
— arrisco, mesmo não tendo o ouvido dizer sobre isso.
As paredes são na cor verde, com papel de parede, onde há
vários bichinhos. Tem brinquedos por toda parte, uma cama branca,
um pequeno guarda-roupa e uma mesinha com cadeiras coloridas
no centro.
Joana também teve o privilégio de ter um quarto somente
para ela, onde alguns moveis e decorações já estavam
posicionados.
Não preciso dizer o quanto chorei ao ver o que ele fez, mas
sei o quanto ele está disposto a ser pai. Ele amou o Bruno, assim
como eu o amei. Ele não somente acolheu as minhas necessidades,
como abraçou as do Bruno e o da Joana. Ele tornou possível a
nossa família.
Não sei se odeio o meu pai por me vender ou se agradeço.
23
AUTOCONFIANÇA
CAMILLA FERRAZ
Sábado, 3 de novembro de 2018
Faltam alguns minutos para a saída e, amei estar aqui. Sei que foi
somente o meu primeiro dia — onde pude notar a personalidade das
muitas crianças; algumas nada fáceis de lidar, outras são
extremamente carinhosas, mas entendo que, com paciência dá
certo.
Bruno parece enciumado. Ele não está acostumado a dividir
a sua mãe com outras crianças, mas é bom que ele entenda a
importância de compartilhar, pois logo vamos ter uma garotinha. E,
certamente, não será somente a minha atenção que ela irá querer.
Fiz alguns desenhos, brinquei de casinha e dirigi alguns
carrinhos, instrui todos na hora do lanche e contei histórias para
dormirem. A cada vez que ouvi um: tia, meus olhos brilhavam. A
experiência foi encantadora, principalmente por saber que os pais
dessas crianças confiam em mim para cuidar delas.
Olhando para elas, penso na minha mãe. Ela fez o que pode
para me ver na escola, mesmo não tendo condições de pagar um
curso ou qualquer coisa que pudesse me ajudar nesta questão,
ainda assim, tentava me ajudar com as atividades. Algumas vezes,
quando era trabalho em grupo, eu tinha que fazer sozinha ou
conversar com o professor, pois não tinha dinheiro para os
equipamentos necessários da pesquisa e todos sabiam.
Minha mãe sempre me dizia que iria ficar tudo bem e,
realmente, ficava. Sinto falta da sua positividade, das suas palavras
doces e do quanto conseguia acalmar o meu coração. Ela sempre
me abraçada e dizia as coisas certas.
— Tchau, tia! Amanhã a senhora vai estar aqui, né? — ouço
um menininho falar, enquanto a sua mãe acena para ele.
— Tchau, Luan! Vou estar, sim.
— Oi, Camilla! Vai trabalhar aqui? — ouço uma voz
conhecida em minhas costas.
— Oi, Fabio! Sim, mas é temporário — respondo.
Fabio é o pai de duas crianças. Sei que ele é um dos homens
que trabalha para o Marcos, ainda assim, não deixa de ser um bom
pai e que presa pela sua família. Algumas vezes, quando estava
esperando o Bruno no portão, ele ou a sua esposa puxavam
conversa.
— Não fala com a minha mãe, meu pai não gosta! — me viro
chocada.
Bruno nunca foi um criança ciumenta, mas sei exatamente de
onde está vindo isso.
— Bruno! — o repreendo. — Peça desculpas!
Ele não me parece arrependido.
— Eu vou contar para o meu pai! — o pai do aluno ri com a
atitude ciumenta e irritada do meu filho.
— Ele está chamando o Mancha de pai? — Fabio pergunta,
ainda rindo do rosto emburrado do menino que está agarrando a
minha perna.
— Sim.
Mesmo que muitos saibam sobre o meu antigo
relacionamento com o Marcos, o nosso casamento ainda é um
segredo. Eles sabem até chegar no assunto Gizele, depois disso,
somente a nossa família tem ciência sobre tudo. Mas, agora, uma
outra parte será compartilhada, pelo simples fato de o Bruno chamá-
lo de pai, a minha barriga enorme e a aliança reluzente em meu
dedo.
— Amor, senta ali. A mamãe já está indo — sinalizo o lugar
para ele, onde momentos atrás pedi para que ele me esperasse.
— Não, meu pai vai vir me buscar — olho para ele
espantada.
— Quando que ele falou isso? — pergunto, não me
importando com o Fabio que observa a nossa conversa.
— Hoje — ele diz simples.
Deve ter sido quando ele saiu pela manhã.
Me despeço dos filhos do Fabio e entro para pegar as minhas
coisas. Falo com algumas professoras, agradeço novamente pelo
trabalho e vou embora com o Bruno segurando a minha mão.
— Bruno! — quando estamos prestes a virar a esquina, ouço
a voz grossa do Marcos.
— Pai! — Bruno grita, se soltando.
A cada vez que o Bruno o chama de pai parece que algo
acende em seus olhos. Eles brilham, como se em todas as vezes
fosse a primeira. Observo quando algumas pessoas param para
analisar a cena. Bruno corre para os seus braços, sendo acolhido
em seu peito. Ele se move em minha direção, examinando-me,
quando está perto o suficiente, sou puxada e os seus lábios colam
nos meus.
— Tinha um homem falando com a minha mãe — puta que
pariu.
Noto que a sua feição muda.
— Que homem, Camilla?
— Era só o pai de um aluno me pedindo informações, Marcos
— tento me manter tranquila.
— Que informações? — ele continua.
— Estava em uma escola para crianças, Marcos. É normal
que os pais tenham perguntas a fazer sobre os seus filhos — dou as
costas a ele.
— Camilla... — o meu nome em sua boca não sai nada gentil,
muito pelo contrário.
Sorrio, logo disfarçando.
— O que?
— Não me provoca.
— Não estou.
Vejo-o respirar fundo.
Ele sabe que é viável a minha resposta, pois ele é o tipo de
pai que pergunta sobre os seus filhos e ainda quer saber cada
detalhe. Joana nem mesmo nasceu e já é alvo das suas perguntas
para a médica — talvez o advogado dentro dele tenha mais
influência do que pensei.
— Não ensine essas coisas para o Bruno — reclamo.
— Ele é o meu filho também!
— Não estou te privando de ensiná-lo, mas colocar ele para
me vigiar, já é demais!
— Não disse nada a ele — ele segura o meu olhar.
Mudo os meus olhos de direção.
— Você pode até não ter dito, mas sabe que é um exemplo
para ele.
Bruno parece entender que estamos falando dele.
— Vamos almoçar — ouço-o se pronunciar depois de alguns
segundos.
Me pergunto sobre a capacidade do Marcos em ser aleatório.
Ele consegue ir do irritado, até chamar para um almoço.
— Nós vamos errar, mas precisamos dar o nosso melhor
para que isso não aconteça — sinto que ele entende aonde quero
chegar.
— Quando te conheci, falei sobre este sentimento que não
consigo controlar.
— Eu entendo, também sinto ciúmes — confesso. — Mas
nem por isso influencio o Bruno a vigiar você.
Noto que há curiosos tentando ouvir a nossa conversa.
— Vamos embora — Marcos puxa a minha mochila do meu
ombro, colocando no seu. — Entra no carro.
— Vamos para fora do Complexo? — pergunto, pois ele
sempre está com a sua moto.
— Sim — ele abre a porta traseira, posicionando o Bruno em
uma cadeirinha.
Mesmo sem entender, abro a porta e entro, vendo-o se sentar
ao meu lado. Ainda olhando-o acabo me esquecendo do cinto, mas
ele percebe. Mancha puxa a faixa roçando em meus seios,
prendendo-o ao meu redor.
♛
TENSÃO
MARCOS HENRIQUE
Ainda, sábado – 15 de dezembro de 2018
MARCOS HENRIQUE
SETE ANOS DEPOIS