200 - Corpo, Gênero e Relações de Poder

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Corpo, Gênero e Relações de Poder

Corpo, Gênero e Relações de Poder

Estudos sociojurídicos

Organizador
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Arte de capa: AGSANDREW - https://www.shutterstock.com/g/agsandrew

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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)


Thiago Augusto Galeão de Azevedo (Org.)

Corpo, gênero e relações de poder: estudos sociojurídicos [recurso eletrônico] / Thiago Augusto Galeão de Azevedo (Org.) -
- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.

258 p.

ISBN - 978-65-5917-200-9
DOI - 10.22350/9786559172009

Disponível em: http://www.editorafi.org

1. Corpo; 2. Gênero; 3. Poder; 4. Estado; 5. Brasil; I. Título.

CDD: 340
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito 340
Sumário

Apresentação 9
Thiago Augusto Galeão de Azevedo

Capítulo 1 12
No limiar do homo sacer: as vidas matáveis da população LGBTQI+
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Gabriel Alberto Souza de Moraes

Capítulo 2 49
O silenciamento dentro e fora dos muros do cárcere: uma análise sócio-jurídica do
encarceramento feminino
Geovana Ferreira Faria Alvarenga
Victor Hugo Neves Silva
Lorena Araújo Matos

Capítulo 3 67
A legitimidade da transfobia no âmbito hospitalar: uma análise sobre a eficácia do
direito à saúde sexual e reprodutiva
Júlia Gabrielly Gomes da Silva
Myllene Borges Barbosa
Thiago Augusto Galeão de Azevedo

Capítulo 4 90
O acolhimento das mulheres transgênero nas delegacias especializadas no
atendimento à mulher de Cuiabá, Várzea Grande e Barra do Garças: uma análise do
controle sobre os corpos diversos
Gabriella Leite de Barros
Camyla Galeão de Azevedo

Capítulo 5 118
O provimento 73/2018 do CNJ e os desafios para a efetivação dos direitos da
personalidade das pessoas transexuais
Lucas Morais Queiroz Amaral
Douglas Santos Mezacasa
Capítulo 6 137
Divisão sexual do trabalho sob uma perspectiva crítica de gênero
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Camyla Galeão de Azevedo

Capítulo 7 161
Ala Arco-Íris: uma análise dos direitos da população LGBTQI+ privada de liberdade
Camila Versalli Ferreira
Julia Sebastiana Costa dos Santos
Lorena Araújo Matos

Capítulo 8 184
A significação da mulher dentro do feminismo: uma análise das discussões do
movimento feminista radical e feminismo transgênero
Camila Rezende Campos de Araújo
Clarice Victoria Moreira Soares
Lorena Araújo Matos

Capítulo 9 207
A quebra da restrição da doação de sangue pela comunidade LGBTQIA + diante de
uma calamidade pública: Covid-19
Fernanda Burghardt Silva
Matheus Yuma Shimazaki
Thiago Augusto Galeão de Azevedo

Capítulo 10 233
Direito e relações de poder: controle de corpos sob a ótica do cárcere feminino
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Lorena Araújo Matos
Apresentação

Thiago Augusto Galeão de Azevedo 1

A presente obra é a materialização do trabalho acadêmico de um ano


desenvolvido pelo Projeto de Pesquisa “Corpo, Gênero e Relações de Poder,
em uma interface com o Direito” vinculado à Universidade Federal de
Mato Grosso, campus Araguaia; sendo integrado por diversas pesquisado-
ras, alunas de graduação, assim como por professoras, mestras,
doutorandas e doutoras, vinculadas a múltiplas instituições.
O referido projeto envolve o estudo das relações de poder e seus efei-
tos no corpo e gênero de cada indivíduo. Considera-se a existência de um
complexo de poder incidente sobre a vida, colonizador da vida, em que os
corpos estão incluídos, atingidos, assim como o gênero.
Eis uma pesquisa dotada de suma relevância, uma vez que só é pos-
sível refletir sobre meios de subversão a uma dominação, quando se
conhece a configuração das relações de poder sobre um determinado ob-
jeto, assim como as suas respectivas ferramentas de normalização.
Esta obra se justifica pela sua relevância social em termos de estru-
turação de estratégias de subversão a uma realidade de poder dominadora
de corpos, de vidas. O funcionamento e os efeitos da estrutura de poder
incidente sobre o corpo justificam a importância do mapeamento do papel
do Direito para com a mesma, para que se possa refletir sobre meios de
resistência.

1
Coordenador do Projeto de Pesquisa “Corpo, Gênero e Relações de Poder, em uma interface com o Direito”. Orga-
nizador da Obra. Pós-doutorando em Direito – UNB. Doutor em Direito – UNB. Professor da Universidade Federal
de Mato Grosso – campus Araguaia.
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O transexual é tratado como ser abjeto, marginalizado em sociedade,


diante de seu caráter patológico [sic], tendo em vista ser um desviante das
normas sociais fixadas e reproduzidas socioculturalmente de forma indis-
tinta. Entre elas, a norma da coerência sexual, socialmente criada e
incrustada nos corpos e nos objetos componentes da sociedade, por meio
de uma violência simbólica, fazendo-os reproduzir o conceito de gênero
pautado em uma estabilidade para com o corpo sexuado. Sendo a cultura
um elemento determinante na fixação de tais normas sociais, tendo em
vista seu caráter de relevante ferramenta de relações de poder.
Uma lógica de poder incidente sobre o sexo, que ao invés de produzir
a sexualidade a partir de um sexo natural, de forma inversa, produz o sexo
como um elemento natural a ser reproduzido em sociedade. Com o prota-
gonismo da scientia sexualis, a Medicina tem um papel determinante na
construção de um corpo sexuado, correlacionado a interesses políticos, de
supremacia de uma classe sobre outras (FOUCAULT, 2014).
Constrói-se um corpo atravessado pelo sexo, este como um elemento
biológico, que marca o corpo, tornando-o um corpo sexuado, em um mo-
delo dimórfico, permeado por saberes como a Medicina (LAQUEUR, 2001).
Não há naturalidade no comportamento de homens e mulheres, tam-
pouco em relação aos espaços que ocupam e profissões que se permitem a
se dedicar. Conforme tratado pelas professoras Berlindes Küchemann,
Lourdes Bandeira e Tânia Mara Almeida (2015), trata-se de um aprendi-
zado de gênero, construído socioculturalmente, que é repassado aos
indivíduos em caráter hegemônico. Ensina-se a agir em obediência às nor-
mas de gênero difundidas em sociedade, satisfazendo-se os anseios sociais
de gênero correspondentes, também criados, artificiais.
Uma realidade construída por um complexo de poder, baseada em
“verdades”. O sexo é veiculado socialmente como natural e o corpo como
seu correspondente. Fixa-se uma naturalidade e continuação entre o sexo,
Thiago Augusto Galeão de Azevedo | 11

corpo e gênero. O indivíduo nasce com uma genitália, um sexo, possuindo


um corpo específico para o mesmo. Ou um corpo de menina ou de menino.
De forma consequencial, será mulher ou homem, a partir de seu corpo
sexuado. Trata-se da receita de inteligibilidade social. Fora disso, morte,
ainda que seja uma morte em vida.
A presente pesquisa está aqui situada, na busca pela compreensão da
estrutura do complexo de poder incidente sobre o corpo e gênero, para
que a partir dela se possa pensar em estratégias de subversão, buscando-
se alteridade, dignidade, liberdade e igualdade.

Referências

FOUCAULT, Michel. História da sexualidade I: A vontade de saber. Trad. Maria Thereza


da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 1ª ed. Rio de Janeiro/ São Paulo:
Paz & Terra, 2014.

KÜCHEMANN, Berlindes . A.; BANDEIRA, Lourdes Maria.; ALMEIDA, Tânia Mara C. A


categoria gênero nas Ciências Sociais e sua interdisciplinaridade. Revista do CEAM,
v. 3, n. 1, p. 63-81, 14 abr. 2015.

LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Trad. Vera
Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
Capítulo 1

No limiar do homo sacer:


as vidas matáveis da população LGBTQI+

Thiago Augusto Galeão de Azevedo 1


Gabriel Alberto Souza de Moraes 2

1 Introdução

Os movimentos sociais na virada da última década reivindicaram, os-


tensivamente, para além do direito de existir, com as exigências de direito,
a conquista de Direitos Sociais ora de segunda dimensão na instauração
de um Estado Democrático de Direito para o movimento LGBTQI+. Nesse
liame, a promessa da modernidade se embasou no discurso progressista e
na resiliência dos grupos sociais em persistirem nas reivindicações intrín-
secas para estes grupos: preenchendo espaços cada vez mais
longinquamente jamais estimados na pólis.
Não obstante, as modificações temporais do Direito deram permissi-
vidade para que tal progresso fosse consolidado paulatinamente na mesma
medida que, o Direito sempre fora Direito – abstrato e carregado dos cacos
deixados para trás no seu projeto de progresso das falhas estruturais que
legitimaram atrocidades teratológicas como o Regime Nazista Hitlerista.
Nessa senda, com o advento da insurgência de regimes de ultra-conserva-
dores ao redor do mundo há muito ocultos pela matriz progressista do

1
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
2
Discente do 4° período do curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Membro do Projeto
de Pesquisa "Corpo, Gênero, Relações de Poder, em uma interface com o Direito" (CGPD) da Universidade Federal
do Mato Grosso (UFMT).
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 13

direito e a da ascensão da política neoliberal no ocidente, imbuiu-se a re-


flexão se as vidas que foram preservadas outrora pelo mesmo direito ainda
são, de fato, as vidas dignas para o sistema jurídico.
Nessa toada, o presente escrito por meio da formulação problemática
da análise sobre em que medida as formas de vida do Movimento
LGBTQI+ se vinculam à figura do homo sacer na lógica da nova (bio)polí-
tica neoliberal e ultra conservadora do ocidente, visa correlacionar as vidas
do movimento LGBTQI+ com a figura do sintagma homo sacer presente
na teoria do filósofo italiano Giorgio Agamben, em face das mudanças
(bio)políticas modernas ante um novo regime neoliberal progressista e
eminentemente ultra conservador que vêm reproduzindo diversas reações
a estas formas de vida especialmente no Brasil.
Para o cumprimento desta proposta, utilizamos basilarmente autores
como Michel Foucault, Giorgio Agamben e comentadores, a fim de que a
atual investigação alcançasse de modo promissor os paralelos a serem fei-
tos. Sendo assim, em um primeiro momento foram tomadas as rédeas de
reflexão sobre as modificações políticas do progresso dos Direitos Sociais
aos grupos LGBTQI+ até o momento de seu desmonte, buscando a evolu-
ção histórica e gradativa da alçada de direitos humanos que os
movimentos sexuais tiveram como escopo até seu momento de degrada-
ção.
Na sequência, interpôs-se uma análise conceitual e contextual da fi-
gura do homo sacer como novo “sujeito de direito” da fachada do Estado
Democrático de Direito, numa reflexão sanguinolenta das vidas nuas pas-
sivas do ordenamento jurídico - como a figura do soberano – matáveis e
insacrificáveis, isto é, vidas aquelas esvaziadas de valor e despidas de di-
reitos, em face do (res)surgimento de Estados de Exceção como paridade
do sistema neoliberal e ultra conservador instaurado nas democracias mo-
dernas.
14 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

E, por fim, buscou-se a (re)ligação das vidas LGBTQI+ com as vidas


matáveis do homo sacer na práxis brasileira, aportando o discurso predo-
minante no exemplo do tratamento brasileiro para com o movimento
LGBTQI+ que se situa como um dos mais opressivos na configuração glo-
bal atual, bem como recorrendo ao advento do HIV para embasar esse tipo
de raciocínio de combate aos LGBTQI+.

2 Movimentos sexuais e a conquista de direitos

A presente seção tem como intuito realizar uma análise sobre os


principais movimentos sexuais no âmbito nacional. Entretanto, introduz-
se tal estudo a partir de breves considerações sobre os movimentos sexuais
no âmbito internacional, principalmente no contexto europeu e norte-
americano.
Todavia, antes de adentrar no estudo dos movimentos sexuais, faz-
se imperioso o esclarecimento acerca do sentido atribuído pela presente
pesquisa ao termo “categorias sexuais”, ou mesmo “identidades sexuais”.
Trata-se da especificação, da definição clara e expressa dos indivíduos a
partir de suas ditas práticas sexuais. Lésbicas, gays, bissexuais,
transexuais, travestis, transgêneros, intersexuais, pansexuais, assexuais.
Citando Regina Fachinni (2002), trata-se de uma “sopa de letrinhas”.
Feitos estes breves esclarecimentos, passar-se-á a análise dos
movimentos sexuais e sua relação com as categorias sexuais. O ativismo
“homossexual” teve como uma de suas primeiras lutas a oposição contra
a criminalização da “homossexualidade”, citando-se a campanha que teve
como líder Magnus Hirschfeld, no passar do século XIX para o século XX,
que tinha como objeto a abolição do parágrafo 175 do Código Penal alemão,
que estabelecia punições ao ato dito homossexual entre homens. Uma luta
que incluía, além da alteração legislativa, campanhas educativas; objetivos
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 15

estes que atraíram movimentos trabalhistas e socialistas, e libertários, com


os quais se fez uma aliança (FACCHINI, 2009).
A década de 1930 foi arrasadora para o movimento “homossexual”
europeu, diante da violência nazista. O Instituto de Ciência Sexual, em
Berlim, de Hirschfeld foi destruído, queimando-se os seus livros e
arquivos, em 1933, seguido de sua morte em 1935. A partir de tais fatos,
houve um retrocesso, sob a ótica das conquistas já atingidas pelo
movimento “homossexual”, através do ressurgimento, com uma maior
intensidade, das condenações por “homossexualidade”, inclusive com o
envio de prisioneiros homossexuais para campos de concentração.
Por sua vez, foi nos Estados Unidos que se desenvolveu uma nova
“onda de lutas”, a partir da década de 1940. Inicialmente, tratava-se de
grupos que se voltavam, ainda, à luta contra a criminalização da
“homossexualidade”. Ainda uma versão mais conservadora do
movimento, que adotava uma conduta mais moderada, com foco na
construção de uma imagem pública de maior respeito aos homossexuais,
com a sua consequente integração na sociedade (FACCHINI, 2009).
Tais movimentos foram sucedidos, nos anos posteriores, por um
movimento mais radical, tendo como berço de sua constituição os Estados
Unidos, em um contexto de majoração da politização da liberdade sexual,
que poderia ser identificado através dos movimentos juvenis,
representantes dessa liberdade sexual, como foi o caso da Geração Beat,
própria do final da década de 1950, e do hippie, característica da década de
1960. Compatível com tal movimento mais radical, propagou-se
expressões como “assumir-se”, “sair do armário”; no sentido de que os
indivíduos deveriam se libertar daquilo que os prendia, que os
encarcerava, que os fazia viver no silêncio, na clandestinidade (FACCHINI,
2009).
16 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

A tendência dos movimentos mais radicais não prevaleceu, cedendo


espaço ao movimento menos radical, que possui como concepção base a
minoria gay e lésbica, e não uma concepção anti-identitária, própria da
tendência radical.
Os grupos prevalecentes reivindicavam direitos inclusivos
correspondentes aos grupos minoritários culturalmente. Como local de
desenvolvimento de tais movimentos, destaca-se a cidade de São
Francisco, Estados Unidos, lugar em que houve a formação de áreas
urbanas predominantemente habitadas e ocupadas por indivíduos
autodenominados de gays e lésbicas. Frisa-se que tais grupos de indivíduos
identificados sexualmente representavam uma força política e econômica.
A força política e econômica de tais grupos derivou da concentração
espacial dos mesmos na cidade de São Francisco. Os ditos gays se
estabeleceram de forma predominante em determinadas áreas da cidade,
nas quais havia residências, bares, restaurantes, cinemas, centros
culturais; ou seja, formou-se uma área habitada predominantemente por
“gays”, marcada por uma vida social e cultural.
Em paralelo, em 1981, surgiram casos, nos Estados Unidos, que
alertaram para o surgimento de uma nova doença, destruidora do sistema
imunológico, expondo o corpo a doenças. Trata-se da AIDS, que originou,
novamente, a associação da “homossexualidade” à concepção de patologia.
A AIDS como uma doença que ensejou inúmeras respostas à sua epidemia,
através de movimentos ativistas “homossexuais”, de forma inovadora.
Entre os grupos pertencentes a tal movimento, destaca-se o ACT UP/NY,
próprio dos Estados Unidos, com uma atuação na pesquisa científica,
requerendo, simultaneamente, um plano de governo para o combate à
epidemia.
Foi a partir da forma de atuação e dos ideais compartilhados pelo
citado grupo, que se originou uma nova tendência no “ativismo
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 17

homossexual”, baseado em concepções opostas à política de inclusão de


minorias sexuais, a partir de suas identidades. Trata-se de um ativismo
intitulado como queer, marcado pela não limitação às identidades sexuais
e de gênero, ao contrário do movimento “homossexual” não radical, já
citado anteriormente, que influenciou diretamente os movimentos
“homossexuais” no âmbito brasileiro (FACCHINI, 2009).
No âmbito pátrio, por sua vez, os movimentos “homossexuais”,
característica que não é exclusiva apenas dos movimentos ocorridos neste
país, direcionaram-se para a construção de um coletivo de iguais.
Entretanto, para a sustentação desta igualdade, foi necessária a supressão
de singularidades, de particularidades que tornavam desiguais os, então,
iguais.
Explica-se. Os militantes dos movimentos “homossexuais” no Brasil,
principalmente no momento de abertura política, propagavam a luta por
um grupo, por um coletivo de indivíduos que se proclamavam como
iguais, marcados por um elemento que os unisse e os tornasse iguais, como
a “homossexualidade”, a fim de exercer uma transformação naquela
sociedade e de lutar por uma libertação sexual (FACCHINI, 2002).
Edward Macrae (1985), em sua tese de doutorado intitulada como O
Militante homossexual no Brasil da “abertura”, de 1985, comenta que essa
igualdade, estes elementos
que possibilitavam uma igualdade, um liame de unidade aos
indivíduos de um determinado grupo militante; tratava-se de uma aliança
entre os seus membros, com fins políticos. A unidade, a coesão propagada
pelos militantes de um determinado movimento funcionou como uma
aliança para fins políticos.
Pronunciar-se como um movimento “homossexual”, um movimento
que luta pela “libertação homossexual” é antes uma estratégia política. É a
partir deste primeiro comentário que a presente análise, dos movimentos
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sexuais no âmbito pátrio, será desenvolvida, no sentido de analisar de


forma breve os principais movimentos “homossexuais” brasileiros,
identificando e analisando a função que o uso de identidades sexuais por
tais movimentos teve no processo de aquisição de direitos por tais grupos.
No final da década de 70, o movimento “homossexual” surge no
Brasil, a partir de um projeto com um viés politizado da
“homossexualidade”, em oposição às anteriores alternativas propostas,
como de associações, por exemplo, que mesmo reunindo homossexuais
não eram politizadas, concentrando-se na “sociabilidade”, como o jornal
Snob, no período de 1963 a 1969, e a Associação Brasileira de Imprensa
Gay, no período de 1967 a 1968 (FACCHINI, 2002).
Trata-se de movimentos politizados de grupos que se auto
intitulavam de “gays” e “lésbicas”, componentes da chamada “primeira
onda” do movimento “homossexual” brasileiro. Movimentos que se
desenvolveram apenas no final da década de 70, o que de acordo com
James Naylor Green (2000), em sua obra Além do carnaval: a
homossexualidade masculina no Brasil do século XX, possui relação com o
governo militar da época, marcado pela censura e pela restrição dos
direitos democráticos.
Entretanto, deve-se destacar que a ditadura militar, da qual o país era
objeto na década de 70, trouxe aspectos “positivos” para o movimento
“homossexual” brasileiro, como o incentivo à resistência nos inúmeros
setores sociais e mesmo no caráter antiautoritário da “primeira onda” do
movimento “homossexual” do país (FACCHINI, 2002).
O primeiro grupo a ser destacado, pertencente à citada “primeira
onda” do movimento “homossexual” brasileiro, é o grupo Somos. Trata-
se do primeiro grupo reconhecido oficialmente como possuidor de uma
proposta politizada da “homossexualidade”, em 1978, na cidade de São
Paulo. Um grupo marcado pela criação de uma comunidade de iguais.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 19

Perpetrava-se um ideal homogeneizante, no sentido de que a


heterogeneidade daquele grupo formado por indivíduos identificados
como homossexuais era apagada em função da construção de uma ideia
de “homossexual” útil politicamente.
O grupo militante em questão era formado apenas por indivíduos
identificados como homossexuais, entretanto, construídos, unos, coesos, a
fim de que tal grupo pudesse estar capacitado politicamente. As
peculiaridades próprias dos ditos homossexuais daquele grupo eram
apagadas, em prol de um objetivo maior, qual seja: a formação de uma
identidade homossexual, legítima e indicada para os objetivos políticos do
grupo, da “onda” inicial do movimento “homossexual” brasileiro, um
movimento politizado.
Em 1980, o então grupo Somos sofre rachaduras, o que viabilizou a
separação deste e a derivação de três novos grupos, o Somos, o Grupo de
Ação Homossexualista, depois chamado de Outra Coisa e o GALF, Grupo
de Ação Lésbico-Feminista. Entretanto, em 1983, o grupo Somos não re-
siste aos seus problemas financeiros e às suas dificuldades com novos
membros, dissolvendo-se.
Por sua vez, o grupo Outra Coisa teve sua atuação pautada nas
questões relativas ao tema da violência, participando, ainda, da discussão
ligada à “homossexualidade” na campanha eleitoral do ano de 1982,
exercendo um papel inédito, ao ser o primeiro grupo a divulgar
informações relativas à AIDS, o que despertou suspeitas internas no
movimento, no sentido de duvidar se estas notícias acerca da AIDS não
eram um instrumento estratégico de controle da “homossexualidade” pela
medicina. Todavia, decorrente de ausência de fundos financeiros para
arcar com a sede do grupo e pela própria falta de interesse dos seus
integrantes, em 1984, o grupo se dissolveu (FACCHINI, 2002).
20 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

O GALF, obviamente, após a dissolução do Somos, passou a se dedicar


majoritariamente ao movimento feminista. Trata-se do único grupo
paulistano que sobreviveu aos mais de 20 anos de movimento, compondo
o contexto dos movimentos na década de 90 como Rede de Informação Um
Outro Olhar.
Entretanto, cabe destacar que um evento vem a desacelerar a atuação
e, conseqüentemente, as conquistas do movimento “homossexual”
brasileiro, qual seja: a AIDS. O aparecimento da AIDS como um elemento
exercente de um poder desmobilizador das propostas propagadoras da
liberação sexual. Ademais, o seu próprio aparecimento reconduziu uma
série de indivíduos da luta pelo movimento “homossexual” para a luta
contra a AIDS.
No período do referido declínio, MacRae (1985) destaca a atuação de
dois grupos que ainda não possuíam expressividade na “primeira onda”
do movimento “homossexual”, trata-se do Triângulo Rosa e do Grupo Gay
da Bahia.
O grupo Triângulo Rosa foi fundado por João Antônio Mascarenhas,
em 1985, e Luiz Mott o fundador do Grupo Gay da Bahia. Com ambos,
inaugura-se um novo tipo de militância, marcada por peculiaridades
distintas das pertencentes aos grupos da “primeira onda” do movimento
“homossexual”, principalmente em relação ao grupo Somos e aos
pertencentes ao eixo Rio de Janeiro – São Paulo.
Trata-se de grupos que possuem uma menor atuação no que
concerne a projetos de transformação social, rodas de discussões. Há uma
atuação mais pragmática, uma atuação mais voltada para a promoção de
direitos civis e para a luta contra a discriminação e violência contra os
indivíduos identificados como homossexuais.
O Triângulo Rosa, assim como o GGB, preocupava-se com a sua
oficialidade, no sentido de registro, legalização da sua existência. Tais
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 21

grupos, assim, foram registrados, reconhecidos oficialmente e legalizados


como agremiações destinadas à questão “homossexual”. Entre os efeitos
da personalidade jurídica de tais grupos se pode destacar o direito de
associação e, claramente, à concretização das ações diretas e pragmáticas
propostas pelo grupo, no que concerne à promoção dos direitos civis
“homossexuais” (FACCHINI, 2002).
Percebe-se, nitidamente, diferenças entre a atuação dos grupos da
“primeira onda” do movimento “homossexual” e a dos próprios à
“segunda onda”. A “primeira onda” foi a responsável pela consolidação de
uma identidade homossexual, pela construção do ser um “homossexual
militante”. Identidade esta naturalizada pela “segunda onda”, que não
tinha mais como objeto o transformar social, e sim a luta por direitos, a
garantia de direitos civis para os indivíduos identificados como
homossexuais. Destaca-se, uma reivindicação de direitos pautada em
identidades sexuais.
Entre as principais pautas do movimento “homossexual” estavam: a
despatologização da “homossexualidade”, a luta por uma legislação que
não fosse discriminatória, a legalização do casamento gay e a inclusão da
educação sexual nos currículos das escolas. Em 1989, a partir do III
Encontro Brasileiro de Homossexuais, uma nova preocupação surgia, a
discriminação religiosa contra os homossexuais.
Em 1990, decidiu-se pela distribuição gratuita de medicamentos
antirretrovirais na rede pública de saúde, seguida do, até então, inédito
pronunciamento do presidente em relação à epidemia da AIDS. Ainda com
a AIDS em foco, em 1995, os encontros entre os grupos do movimento
passam a ser financiados por programas estatais de combate à AIDS
(FACCHINI, 2002).
Pode-se destacar, ainda, neste contexto de promoção de direitos
relativos à AIDS, a constituição de um grupo de risco. Um grupo formado
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por indivíduos que seriam considerados mais propensos à doença, eram


eles: indivíduos identificados como homossexuais, os profissionais do sexo
e os usuários de droga (injetáveis).
A instituição de um grupo vulnerável foi alvo de críticas, no sentido
de que se estaria diante de um instrumento discriminatório. Todavia, a
formação do grupo daqueles que estavam em risco acabou por propiciar
benefícios e direitos para aqueles indivíduos, no sentido de que apesar de
se relacionar o HIV/AIDS à “homossexualidade”, aos profissionais do sexo
e aos usuários de droga injetáveis, taxando-os como propensos; estes
grupos foram beneficiados, conquistaram direitos por meio da utilização
destas categorias, dessas identidades, a partir, por exemplo, da aplicação
de estratégias específicas para aqueles grupos, inclusive com o
financiamento de grupos por agências internacionais, de cooperação
internacional e por órgãos governamentais.
Percebe-se, a partir desta breve análise, uma importância atribuída
às identidades sexuais. Discriminam-se grupos? Sim, filia-se à concepção
que entende a associação da “homossexualidade” à AIDS como uma
discriminação; mas não se pode ser leviano ao ponto de não perceber que
esse ato possui um reverso, outra face, qual seja: a conquista de direitos, o
fortalecimento dos movimentos “homossexuais”, através de seus
financiamentos (FACCHINI, 2002).
Apesar do viés discriminatório da associação da AIDS à
“homossexualidade”, esta propiciou um debate social, uma ênfase à
questão da sexualidade e da “homossexualidade”, ensejando, inclusive, a
promoção de políticas públicas de saúde, políticas de prevenção e
tratamento com a participação dos grupos do movimento “homossexual”
e com os próprios ditos homossexuais.
Em oposição à face discriminatória, destaca-se outra perspectiva da
associação do HIV à “homossexualidade”, uma perspectiva que concede
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 23

visibilidade à questão da “homossexualidade” através de uma política


identitária “homossexual” brasileira, o que permite, por via de
consequência, a garantia de direitos a estes indivíduos, identificados,
moldados a serem homossexuais.
Regina Facchini dá a essa política identitária “homossexual” o nome
de “sistema classificatório ‘segregacionista’” da sexualidade, em oposição
a um sistema “assimilacionista”. Entretanto, deve-se ressalvar que a
política identitária sexual não é a única concepção para se pensar a
sexualidade no Brasil na década de 90, uma vez que a partir de uma
preocupação com acesso àquelas que são alvo de uma política preventiva
e com a concretização de resultados em relação à mudança de hábitos que
poderiam ser considerados de riscos, em relação à AIDS, criou-se
categorias como a HSH – Homens que fazem sexo com Homens,
priorizando-se a prática “homossexual”, independentemente de uma
identidade “homossexual” construída, o que a autora chama de “categorias
mais ‘flexíveis’”.
Agências estatais direcionadas para o combate à AIDS, utilizam-se da
sigla HSH, a fim de atingir aqueles que não se identificam com base em
suas práticas sexuais, incentivando, entretanto, que os mesmos se
enquadrem, assumam uma identidade sexual, possuidora de um potencial
redutor da vulnerabilidade dos “homossexuais”, a partir de experiências
em âmbito internacional, por meio da aplicação da chamada educação “por
pares”, efetuadas pelos militantes do movimento “homossexual”
(FACCHINI, 2002).
Em linhas finais, por meio da presente seção, pôde-se perceber que
as identidades sexuais tiveram um papel importante na conquista de
direitos para os então considerados grupos de indivíduos identificados
como não heterossexuais. Tais categorias, identidades, tiveram um papel
político, um papel concessor de visibilidade.
24 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

3 O sintagma do “homo sacer”: a ascensão de um estado biopolítico


neoliberal e um “novo sujeito de direito”

Sob o lampejo de uma narrativa analítica que angariou a evolução


dos Direitos Sociais essencialíssimos à vanguarda do Movimento
LGBTQI+, principalmente com a profícua observância de uma frente pro-
gressista que alcançou seu apogeu na virada do século XXI e,
surpreendentemente, pacificou-se diante de uma política neoliberal ascen-
dente na mesma medida, neste fragmento da presente pesquisa, buscou-
se uma compreensão extensiva acerca do fenômeno massivo da desvalori-
zação dessas vidas como nova manobra (bio)política ocidental.
Para tanto, com o credo de que tamanha reviravolta do progresso
ocorrera tão abruptamente, a filosofia contemporânea aliada à ciência po-
lítica, conformam-se na busca de meios no seu ineditismo de que maneira
e qual caminho a sanar dúvidas emergentes acerca de que forma de go-
verno vem incorporando o poderio soberano de decidir sobre essas formas
de vida, com o intento da construção de uma linha lógica que satisfaça a
condição universal de um desmonte do progresso tão latente. Que, aliás,
vem sendo interpretado sob a pecha de um fenômeno tão inexplicável cujo
qual, na realidade, é mais visceral do que se cogita estipular.
Nesse liame, recorreu-se, basilarmente a uma observação Agambeni-
ana da crise do progresso que assola o ocidente com a fagocitação das
formas de vida pela mais nova nascida forma de corpo hegemônico de go-
verno: a (bio)política neoliberal. No limiar dessa ótica crítica e de
emergência, o filósofo italiano Giorgio Agamben (1995) busca, ontologica-
mente, nestes moldes, o sintagma do homo sacer como figura da vida
matável a qual estarão fortemente vinculadas as vidas nuas dos seres-vi-
ventes no grande parque recreativo biopolítico: corpos fadados à morte,
na vida pura, impassíveis de valor do sacrifício. Na senda de um alarme de
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 25

incêndio eminentemente instaurado, o progresso se subverteu e se tornou


a fachada do Estado Democrático do Direito que oculta o esqueleto da he-
gemonia neoliberal do Estado de Exceção que decidirá em tanatos adentro
dos grupos minoritários das vidas LGBTQI+ quais farão morrer e outras
quais deixará viver na arena (bio)política.
Nestes termos, na suposta iconografia do Estado Democrático de Di-
reito que encortina sua parede de fumaça ante aos destroços do retrocesso
que enseja o poder soberano sobre a morte e a exceção permanente, o
homo sacer seria o indivíduo de direito desta nova forma de fazer a política
e o progresso, isto é, o sujeito de direito (des)assegurado pela nova van-
guarda neoliberal, ora as vidas LGBTQI+ estes (não) viventes?

3.1 A (bio)política neoliberal do ocidente: pontapé norte-americano à


hegemonia progressista neoliberal

Com o advento da política do New Deal estadunidense, Nancy Fraser


(2020) e Michel Foucault (1997) dialogam perfeitamente no tocante a in-
surgência da forma do neoliberalismo americano que ocupa o centro das
transformações políticas tardias do ocidente e, especialmente, em termos
biopolíticos, à conduta naturalística dos corpos no espaço vital neoliberal.
Quer dizer, o neoliberalismo teratológico que sua frente opositora objeti-
vou criticar em décadas de ciência política crítica, amoldou-se como uma
luva nos anseios Estatais de estabilidade e com a ascensão mercadológica
que, gradativamente, parecia ocupar o escopo da forma de governo e pro-
jetar um umbral sobre todo e qualquer ato político voltado aos corpos de
grupos de minoritários – estes, alvos primordiais de políticas públicas do
Estado de Direito. Nesta amálgama, é possível perceber o bojo progressista
neoliberal3 que insurge uma vez explorado por Fraser a partir do advento

3
Progressismo Neoliberal é um conceito trabalhado por Nancy Fraser no livro que faz alusão um excerto conhecido
de Gramsci, o qual o torna interlocutor da crise, “O velho está morrendo e o novo não pode nascer”. O conceito
acomoda uma ressignificação ante ao modelo neoliberal estadunidense antes da política trumpista vigente, como um
26 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

do New Deal, uma vez investigado por Foucault sobre o nascimento da


biopolítica.
Nessa senda, a iconografia do humano, sua caricatura de zoé e bíos
em interseção que possibilitaria a imersão do zoo polykton aristotélico não
caberia e não cumprira com a promessa do novo progressismo que toma
as novas dimensões do horizonte político do ocidente, descaracterizado
com o sujeito da ordem jurídica e do estado agenciador. Ao se tratar de
uma subversão brusca, o Estado do bem-estar social se afunda no ascen-
dente Estado Absoluto Neoliberal em crise e impõe sua cortina de fumaça
do progressismo neoliberal (citar nota de rodapé referência explicando o
conceito de progressismo neoliberal) como elabora Fraser, argumentando:

O bloco progressista-neoliberal combinou um programa econômico expropri-


ativo e plutocrático com uma política de reconhecimento liberal-meritocrático.
O componente distributivo desse amálgama era neoliberal. (...)
Para que o projeto neoliberal triunfasse, tinha que ser reembalado, receber um
apelo mais amplo e ligado a outras aspirações emancipatórias não econômicas.
Somente quando adornada como progressista é que uma economia polí-
tica profundamente retrógrada poderia se tornar o centro dinâmico de
um novo bloco hegemônico. (FRASER, 2020, p. 38-39, grifo nosso).

Bloco sob novo escopo de proposta emancipatórias, este em que o


mercado ocuparia logo o vácuo promissário que uma vez o Estado ocupara
no agenciamento dos corpos, isto é, um biopoder munido de uma raciona-
lidade econômica caricatamente neoliberal (FOUCAULT, 1997, p. 90), em
que, de fato, políticas públicas progridem em prol de grupos vulneráveis –
entre estes, como bem observado e tema desta pesquisa central, os grupos

novo escopo para o neoliberalismo em crise que havia se saturado com o discurso economista puro, buscando numa
nova roupagem que trajasse novas aspirações emancipatórias a fim de, suspeitamente, liberar o mercado. FRASER,
Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução de Gabriel Landi Fazzio. São Paulo: Autonomia
Literária, 2020.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 27

LGBTQI+ – contudo, com explícitos intentos mercadológicos que prolife-


ram-se proporcionalmente nesse espaço vital aonde o os dispositivos
optam pela salvação do mercado – novo agenciador de corpos, no lugar
que o Estado uma vez ocupara. Eis, proficuamente, a perspectiva foucaul-
tiana trazida nas palestras ministradas no Collège De France ao elencar as
notas sobre o neoliberalismo americano insurgente que infecta os prag-
matismos políticos do ocidente:

Mas o que chamou a atenção nesse neoliberalismo americano foi o movimento


completamente oposto ao que se encontra na economia social de mercado na
Alemanha: (...), esse neoliberalismo americano busca estender a raciona-
lidade do mercado, os esquemas de análises que ela propõe e os critérios
de decisão que sugere a domínios não exclusivamente ou não prioritari-
amente econômicos. No caso, a família e a natalidade ou a delinquência e
a política penal (FOUCAULT, 1997, p. 96, grifo nosso).

Foucault reflete que esse processo de extensão encadearia uma forma


de reducionismo das formas vidas e um novo tipo de entendimento de in-
divíduos viventes de um espaço biopolítico neoliberal, a qual suas vidas
estariam subjugadas ao empreendimento de si mesmas. Não obstante,
consideravelmente restariam dúvidas acerca de que se o novo agente po-
lítico é o mercado para o contexto Neoliberal, em qual lugar
remanesceriam os corpos reféns da onda progressista de um Estado Bio-
político de suposto progresso e quem seriam eles.
Pois bem, não tratar-se-ia mais de docilizar os corpos para atender o
interesse de uma eugenia social e à satisfação da governamentalidade li-
beral – argumento ainda mais obscuro que, mais a frente, não será
descartado, no tocante à teoria agambeniana. Para Foucault, o processo de
dessubjetivação incipiente com o fim de esvaziamento de conteúdo em
converter o indivíduo ao mais resvalar nível de “não-pessoa” se coaduna a
28 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

ideias marxistas veementes como a mais-valia, por exemplo. A perspectiva


seria, para todos os meios, que um agente político como o Mercado que
tomou o lugar do Estado tenha agora optado por valorar um indivíduo não
mais político, vazio de conteúdo e empreendedor de si mesmo, um Homo
Oeconomicus4 em que a produção da economia e de sua ordem havia se
encontrado como única razão para qual as políticas públicas e, consequen-
temente, o Estado, deveriam se prestar.
Com esse efeito esvaziador das nuances dos corpos da sua dimensão
política e social à arriscada redução de uma lógica de oikonomia neoliberal,
a onda progressista a qual intentamos elencar como ponto de partida para
uma nova gama de modificações positivas não encontra, ao menos até
agora, um desfecho aprazível para os grupos vulneráveis como os
LGBTQI+. A lógica é que, de fato, tais grupos não correspondem ao meca-
nismo de empreendedorismo individual que o mercado como titular do
poder estatal por detrás da cortina fumacenta objetiva (re)produzir a par-
tir de sua totalidade (bio)política neoliberal, visto que historicamente
como núcleos oprimidos pelos seus opressores, a demanda por reformas
legislativas e políticas de prestação social são incompatíveis com o pensa-
mento econômico neoliberal que a política do ocidente vem incorporando.
Sendo assim, os grupos LGBTQI+ afundam no limbo de desvalor criado
pelos dispositivos neoliberais, nos quais gradativamente aceleram dispari-
dades de qualidade de vida.
Nesse contexto, arrisca-se inferir que esse processo de redução e ex-
termínio velado é muito mais soturno e visceral, tomando proporções mais
obscuras a que se possa imaginar para o movimento LGBTQI+, pois, não

4
Foucault traz o sintagma do Homo Oeconomicus num dos cursos ministrados no Collège de France, muito embora
implícito, no “Nascimento da biopolítica”, Foucault se atenta ao fenômeno neoliberal americano que se estende a
nichos não somente restritos a coletividade, mas para pessoa a pessoa, indivíduos que têm vários nichos abarcados
pelo empreendimento de si mesmo, seja a natalidade, família e etc. Desse modo, este seria o novo paradigma de
sujeito a atender a governamentalidade liberal uma vez explorada. FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do
Collège de France (1970-1982). 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1997.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 29

tratar-se-á de um homo oeconomicus, mas possivelmente uma coisificação


mais contundente. Para isso, uma das ideias centrais ao estudo da figura
do homo sacer do filósofo italiano Giorgio Agamben (2002) – conceito-
chave este e essencialíssimo a ser analisado a posteriori nesta investigação
–, a vida nua, cumprem adequadamente as demarcações circunstanciais
de desvalor e esvaziamento que trouxemos nesta narrativa.
Não obstante, para Agamben, muito embora não ocorra debater ex-
pressamente sobre uma divisão bem definida entre o Estado Neoliberal e
o Estado de Exceção em que os corpos – as vidas nuas – (des)politizados
estão mergulhados, em virtude da assimilação de uma zona de indiscerni-
bilidade em que muitos conceitos políticos se encontram, é possível tomar,
de todo modo, o Estado Biopolítico Neoliberal como parte integrante desta
interseção de dois opostos que geram um terceiro elemento5. Nesse liame,
pelo viés agambeniano, tomar-se-á o Estado Neoliberal como uma contra-
face do estado de exceção que será usado. Visto isso, tem-se:

A tradição dos oprimidos no ensina que o ‘estado de exceção’ no qual vivemos


é a regra. Precisamos chegar a um conceito de história que corresponda a esse
fato. (BENJAMIN apud AGAMBEN, 2015, p. 16-17).

Nessa toada, o diagnóstico de Walter Benjamin é atemporal e se


amolda no fecho. Agamben em sua leitura benjaminiana observa que a
fundação do poder, de fato, não possui outra legitimação além da emer-
gência a qual a comunidade encontra-se imersa, recorrendo a ela (à
emergência) em qualquer matéria que atue, trabalhando secretamente
para produzi-la, pois, como não pensar em um sistema que funcione na
base da emergência que não meça esforços a qualquer preço em mantê-

5
Giorgio Agamben em Signatura Rerum, um dos livros da compilação Homo Sacer, projeto de vida do autor que se
dedica desde o final do século 20, esboça perfeitamente a reflexão sobre paradigma que comporta a metodologia
agambeniana em comparar dois elementos e buscar, entre eles, uma zona de intersecção.
30 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

la? (AGAMBEN, 2015, p. 17). Nesse ínterim, a forma de vida que se tornou
dominante foi, irrefreavelmente, a vida nua, a qual outrora ocultamente
exerceu seu manifesto na soberania, mas que, atualmente, entranha-se
dominantemente pelo sistema de vida como um todo.
Assim, com as considerações de um Estado Neoliberal em que o bio-
poder impera e (re)produz homo oeconomicus, apenas a vida no estado de
exceção normalizado é a vida nua que reinventa e (des)figura os âmbitos
das formas de vida da sua coesão de forma-de-vida. Tal qual a cisão mar-
xiana entre homem e cidadão, equipara-se ao extirpar a vida nua detentora
da soberania e as múltiplas formas de vidas abstratas recodificadas em
pessoas jurídico-sociais.
Esse processo de desfiguração e ressignificação negativa das formas
de vida é o ineditismo que as políticas neoliberais deixaram, nas sombras,
ascender paralelamente – isso se é possível pensar que não fazem parte de
um projeto de governo. E que, evidentemente, teve seu início com a der-
rocada do Estado Democrático de Direito e o repasse a um novo agente
que opera o centro de todo o modo de vida na política decidindo não só
sobre o utilitarismo nas políticas públicas para a população minoritária
LGBTQI+, mas sobre o utilitarismo destas formas de vida: tais corpos são
dignos de vida? O novo advento desse tipo de tecnologia de poder na so-
berania reinventa o fazer viver e deixar morrer pela díade de fazer morrer
e deixar viver.
Tal molde tempestivo e sombrio que se toma como último argumento
dessa toada apresentada como um pessimista presságio do realismo polí-
tico do ocidente que tende a se tornar e uma vez se tornou verdade,
obstina-se como parâmetro para entender, de certo modo, a dimensão on-
tológica que as vidas LGBTQI+ de fato possuem: não homo oeconomicus,
mas homo sacer. Vida matável, insacrificável, em desvalor e vida nua,
aquela cuja qual suspendeu-se o valor sacrificial pela hegemonia soberana
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 31

e remanesceu a vida expiatória, não correspondendo valor vexatório o ho-


micídio desta (AGAMBEN, 2002). Tal conceito inovador é o sintagma
chave trazido por Giorgio Agamben (2002) na incipiência da compilação
homo sacer que é, de fato, o norte mais visível e uma possível explanação
– muito embora cética – do que a política ocidental tem se tornado em seu
horizonte sobre que tipo de sujeito pretende advogar.

3.2 O homo sacer presente nos corpos LGBQI+

O sintagma homo sacer surge como alento primordial para toda a


argumentação agambeniana do que o novo horizonte da política democrá-
tica realmente produziria sob os corpos. Nesse sentido, com a discussão
ontológica da vida no centro da (bio)política, a iconografia do homo sacer
se adianta à vida nua que fora trazida e será brevemente explorada nesta
investigação: a vida nua, matável, aquela que não se é ilícito sacrificar, e
não constitui sacrilégio sua morte por outrem, estas as quais as vidas
LGBTQI+ vieram a se comunicar por intermédio da nova tecnologia sob
forma subterrânea neoliberal de governo.
Giorgio Agamben (2002), em “Homo sacer: o poder soberano e a vida
nua”, articula os conceitos de zoé e bíos aristotélicos da Grécia antiga como
essenciais para o desenvolver de sua tese do homo sacer do direito. Para
tanto, é necessário tomar a zoé como a vida pura, atinente à “voz”, ela que
personifica e equaliza a vida pura sem a participação política que mulhe-
res, crianças e estrangeiros não eram adornados na pólis; e, ademais, a
bíos, a vida isoladamente política, ela que os homens conterrâneos gregos
muniam-se em valor, a “linguagem”:

Não é um acaso, então, que um trecho da Política situe o lugar próprio da polis
na passagem da voz à linguagem. O nexo entre vida nua e política é o mesmo
que a definição metafísica do homem como ‘vivente que possui a linguagem’
32 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

busca na articulação entre phoné e logos: ‘Só o homem entre os viventes pos-
sui a linguagem. A voz, de fato, é sinal da dor e do prazer e, por isto, ela
pertence também aos outros viventes (a natureza deles, de fato, chegou até a
sensação da dor e do prazer e a representá-los entre si), mas a linguagem serve
para manifestar o conveniente e o inconveniente, assim como também o justo
e o injusto; isto é próprio do homem com relação aos outros viventes, somente
ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e das outras coisas
do mesmo gênero, e a comunidade destas coisas faz a habitação e a cidade’
(1253a, 10-18). [...] O vivente possui o logos tolhendo e conservando nele a
própria voz, assim como ele habita a polis deixando excluir dela a própria vida
nua. (AGAMBEN, 2002, p.15-16).

Na inflexão do excerto, Agamben toma a linguagem como aquilo que


é essencial para a prática da política na pólis, visto que o zoo polykton po-
deria exercer a coisa política mediante a um juízo de valor mediante às
questões num plano de imanência (aos homens); enquanto a voz se desig-
nava a emissão de som e prazer, pois estes seriam seres animalescos, não
passíveis da vivência política (crianças, mulheres e estrangeiros). É correto
definir, nesse nexo, que a hermenêutica de uma vida política nasceria des-
tes dois lados concomitantes e que, com um dos dois polos, uma vez
isolados, seria possível isolar algo como uma vida nua, despersonificada,
matável: um homo sacer.
O sintagma “homo sacer” (homem sagrado) era utilizado na Roma
Antiga para designar aquele que havia sido afugentado da vivência em so-
ciedade e que se fadou à morte pelas mãos de qualquer persona sem que
isso fosse considerado reprovável. Com a noção de sacrilégio, salienta-se
que não constituiria sacrilégio algum essa matabilidade dessa forma de
vida, podendo ela, vida impura, ser aniquilada por persona qualquer, ine-
xistindo crime. Diante disso, entenderia-se que, de todos os modos, o homo
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 33

sacer se situaria num cruzamento entre uma matabilidade e uma insacri-


ficabilidade, permeando o direito humano quanto o direito divino
(AGAMBEN, 2002, p. 81).
Implica-se, desse modo, na dessubjetivação política (bíos), redu-
zindo-o ao nicho da zoé. Assim, homo sacer é aquele que foi compelido à
vida nua (vida abandonada, desgarrado do bando soberano e ao mesmo
tempo vinculado, passivo da decisão do soberano sobre a morte). No en-
tendimento de Castro (2016): “é aquele que o povo julgou por um delito e
não é ilícito sacrificá-lo, porém, se alguém o mata, não será considerado
sacrifício” (2016, p. 64). Em virtude de que não se pode matar alguém que
já era considerado morto, o que, uma vez, sequer foi vida. Em outros ter-
mos, Milovic (2009) observa, “homo sacer é aquele que está exposto à
morte” (2009, p. 108). Um nex.
Numa breve genealogia, a vida não possui inscrição conceitual jurí-
dica, que no direito romano indicava o simples fato de viver ou um modo
de vida particular, mas que haveria um único caso em que a vida adquiriria
uma significação jurídica, transformando-se em vitae necisque potestas,
designando uma forma de poder de vida e de morte do pater sobre o filho
homem. Vida não seria senão, portanto, um corolário de nex, do poder
de matar. No direito, doravante, vida apenas apareceria como o oposto a
um poder que a ameaça de morte. Nessa relação dúplice, logo, Agamben
aponta que direito de vida e de morte está para o pater, tal qual está para
o poder soberano (imperium) sendo o pater a célula originária
(AGAMBEN, 2015, p. 16)
É nesse sentido que a constituição da ontologia do termo aufere que
o sintagma nasce da contraposição de duas partes em que se tem, equiva-
lentes à zoé e a bíos, visto que é fonte sumária para a teoria agambeniana
o direito romano: uma vida sacra – aquela destinada aos deuses e às di-
vindades do direito romano, levando-se em conta o sacer e o sacrificium,
34 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

pois é intocável – e a vida matável – aquela que, uma vez isolada em sua
zoé, torna-se vida pura, passível de sacrifício.
Posto isso, na envergadura da reflexão ontológica sobre a figura do
homo sacer, Agamben parafraseando Kerényi, importa que o homo sacer
não poderia ser objeto de sacrifício propriamente dito, de um sacrificium
(por mais que teológica, traria a ideia de valor), pois aquilo que é sacer já
está sob posse dos deuses, e é originariamente e de modo particular pro-
priedade dos deuses ínferos, portanto não haveria necessidade de torna-lo
tal com uma nova ação (AGAMBEN, 2002, p. 81).
Não obstante, há a presença de um oxímoro denotado, pois o termo
“sagrado” induz ao pensamento de que aquela vida é protegida e intocável,
divina e onipotente, porém, no sentido atribuído por Agamben (2002) im-
porta em dizer curiosamente o oposto: o sagrado é aquele que pode ser
morto sem que haja qualquer tipo de punibilidade. Dessa forma, o autor
considera que:

Enquanto encarna na sua pessoa os elementos que são normalmente distintos


da morte, o homo sacer é, por assim dizer, uma estátua viva, o duplo ou o
colosso de si mesmo. Tanto no corpo do devoto sobrevivente como de modo
ainda mais incondicionado, no corpo do homo sacer, o mundo antigo se en-
contra pela primeira vez diante de uma vida que, excepcionando-se em uma
dupla exclusão do contexto real das formas de vida, sejam profanas ou religi-
osas, é definido apelas pelo seu ser em íntima simbiose com a morte, sem,
porém, pertencer ainda ao mundo dos defuntos. E é na figura desta ‘vida sacra’
que algo como uma vida nua faz a sua aparição no mundo ocidental. Decisivo
é, porém, que esta vida sacra tenha desde o início um caráter eminentemente
político e exiba uma ligação essencial com o terreno sobre o qual se funda o
poder soberano. (AGAMBEN, 2002, p. 106).

O homo sacer então se localizaria numa zona de indistinção, num tipo


de ambivalência do sacro: entre aquilo que é realmente sagrado e possui
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 35

bojo de intangibilidade, não podendo de forma alguma ser morto em sa-


crificium. E, na articulação daquilo que é insacrificável, mas matável –
homo sacer.
A critérios de fundamentação, Agamben (2008) dedica uma escrita
exemplar literária inteira, “O Que Resta de Auschwitz”, um testemunho
para analisar a figura do campo como matriz oculta do ordenamento jurí-
dico em que diversos níveis de vidas nuas, homo sacer, são transeuntes
dessa zona de indiscernibilidade em que a figura do sacrilégio inexiste,
num diagnóstico cético que os campos6 são a nova matriz política oculta
dos ordenamentos jurídicos das democracias ocidentais da pós-moderni-
dade e que se imbuem na (re)produção da matabilidade da vida nua. E é
especialmente neste espaço em que as vidas LGBTQI+ se comunicam com
o homo sacer pela intervenção soberano-estado na política subterrânea ne-
oliberal a qual são subjugadas.
Nesse sentindo, reservar-se-á o desfecho dessa investigação aos cor-
pos LGBTQI+ no único lugar a que eles foram designados como
indesejados das gentes, portadores de HIV, muselmann: os campos. Lugar
este em que a articulação entre homo sacer e suas vidas comunicam-se.

4 As vidas LGBTQI+ em “campo”: no limiar da existência biológica das


indesejadas das gentes

Nos tópicos supracitados, a hercúlea narrativa do processo de ade-


quação social e de alçada de direitos sociais e humanos ocorrida na virada
das últimas décadas para com a população LGBTQI+ fora sobressaltada.
Bem como à derrocada de sua estabilidade após um apogeu do bem-estar

6
Equívoco é, apesar de literal sentido pela experiência da história, pensar que os campos em que Agamben confabula
são unicamente os utilizados no regime nazista na contenção das vidas nuas. O argumento de Agamben é mais
profundo, teratológico e cirúrgico, ponderando que, na realidade, tais campos são oriundos de paradigmas que se
encontram na historicidade subvertida do direito em punir e segregar aqueles com o intuito de extermínio. Nessa
senda, os campos são um paradigma para a modernidade recorrente e não um acontecimento isolado.
36 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

social do progressismo; e enfim a emergência de um estado neoliberal pro-


gressista à figura do homo sacer como sujeito de direito desta nova
configuração de governamentalidade subterrânea. Foram estes os enfo-
ques basilares que possibilitam, agora, a inserção de uma argumentação
final neste escrito.
Posto isso, importa é salutar o fato de que os ordenamentos jurídicos
contemporâneos e os governos democráticos ocidentais, nada progressis-
tas, veridicamente têm conspirado para reapropriar grupos minoritários
como as vidas LGBTQI+ a nichos em que sejam um limbo existencial os
quais as lutas político-sociais obstinaram-se a afastá-los; de acordo com
Agamben, afinal trata-se da estrutura de uma política originária e cons-
tante de um estado de exceção.
Desse modo, a percepção pelas lentes agambenianas nesta investiga-
ção expôs um diagnóstico o qual, num possível desdobramento em que
tais vidas matáveis se situam em desvalor, nada soa otimista. Em uma
narrativa a qual as vozes dessas indesejadas gentes são silenciadas e fada-
das ao extermínio em campos lacerais de existência não-política e não-
biológica, este tópico versará em finalmente articular a comunicação exis-
tente do homo sacer com as vidas LGBTQI+ e expor a grande vertigem em
que suposta política progressista tem os inserido quando, na realidade,
mais se aproxima de preocupantes aniquilações em campos ao céu aberto.

4.1 Vidas LGBTQI+ no “campo”: existência biológica e “morte”

Com a eventualidade de campos de concentração a céu aberto, sendo


eles a nova forma de exercício da soberania e do biopoder, é relevantíssimo
toma-los como uma realidade próxima em que o estado soberano buscou
nas mais nefastas topologias para isolar as formas de vida nua e, constan-
temente reproduzi-las. Como outrora dito, Agamben (2008) dedica o
testemunho de “O que Resta de Auschwitz” numa intentona escancarada
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 37

de esboçar os níveis mais resvalares de vida nua que os corpos comungam


nos campos – sejam eles na periferia, campos de refugiados, zonas apátri-
das de aeroportos ou até mesmo a cidade urbana e etc, todas estas zonas
de indiscernibilidade, campos, vigentes hoje – e como estas vidas se com-
portam.
Para isso, ao introduzir a comunicação visceral com as vidas matáveis
da população LGBTQI+ recorre-se a figura do muselmann, o muçulmano,
do campo de extermínio nazista, mais especificamente Auschwitz. O mu-
çulmano é aquele intestemunhável, que sequer pode ser fadado à
terminologia da “morte”, pois também sequer uma vez foi vida; é um
morto-vivo, um cadáver ambulante por antonomásia, que se situa entre a
vida e a morte, transeunte da zona cinzenta que é o campo. Nos dizeres
trépidos de Agamben:

São eles, os muçulmanos, os submersos, são eles a força do campo: a multidão


anônima, continuamente renovada e sempre igual, dos não-homens que mar-
cham e se esforçam em silêncio; já se apagou neles a centelha divina, já estão
tão vazios, que nem podem realmente sofrer. Hesita-se em chama-los vivos;
hesita-se em chamar ‘morte’ à sua morte, que eles já nem temem, porque es-
tão esgotados demais para poder compreendê-la. (AGAMBEN, 2008, p. 52).

Com esse paradigma de indivíduo sob o efeito esvaziador do campo,


é possível inferir a eminência de comparação com as vidas LGBTQI+ pas-
sivas do extermínio na margem ordenados pelos soberanos nas cadeiras
parlamentares e do executivo na política do ocidente nas mais truculentas
democracias, seja pelo trumpismo, putinismo ou bolsonarismo. Ora, não
seria pouca coincidência a abordagem que a Revista Forum trouxe em 09
de maio de 2018, com um rubro chamado de emergência ao genocídio da
população LGBTQI+, cujo qual Marcelo Hailer diz: “as maiorias do Brasil
38 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

estão sendo massacradas por uma minoria odiosa que acha que pode de-
cidir quem deve morrer e quem deve viver”. Esse ímpeto de decisão sobre
um destino mórbido sustado pela morte é a realidade do cotidiano e fazem
jus ao que a não-pessoa do muçulmano no campo remonta.
Na verdade, Auschwitz ensina pelo inenarrável que “é exatamente o
lugar em que o estado de exceção coincide, de maneira perfeita, com a
regra, e a situação extrema converte-se no próprio paradigma cotidiano”
(AGAMBEN, 2008, p. 57). Longe de um equívoco, a grande lição é que,
pelas palavras de Benjamin, o estado de exceção7 é a realidade histórica
que estamos vivendo e quiçá Agamben em dizer que é uma constante nas
democracias ocidentais.
O estado de exceção adjunto ao campo que são expelidos pelas cama-
das mais abissais da ordem jurídica da governamentalidade vigente são
responsáveis por esse processo de despersonificação fatídico, pois o campo
em situação extrema permite a discernibilidade entre o que é um humano
e animalesco, homem e muçulmano (AGAMBEN, 2008, p. 56); e se, de fato
vulneráveis as vidas LGBTQI+ estão aos altos índices de mortalidade ur-
bana, o campo da cidade já oficializou e as reduziu à vida nua do
muselmann. Quiçá confabular se esse tipo de vida se enquadra, ao menos,
na vida biológica.
Longe disso. Para Antelme, segundo Agamben (2008), o que estava
em jogo nos campos era uma reinvindicação “quase biológica” de pertença

7
A expressão “estado de exceção” é trazida pela primeira vez em “Homo Sacer I: o poder soberano e vida nua” por
Agamben (2002), muito embora ele paute e fundamente o termo no livro “Estado de exceção”, cujo qual propõe-se
a uma análise sistemática, ontológica e genealógica da figura do estado de exceção. A figura dessa forma de governo
aparece ante a uma emergência constitucional de salvaguarda da democracia sendo o sacrifício de perde-la, tempo-
rariamente, a melhor forma de protege-la com medidas excepcionais que incluem pela exclusão com força de lei
certas condutas em sociedade que sob um estado de normalidade seriam vexatórias, mas que a suspensão da lei nesse
caso é o melhor estigma para uma emergência. Agamben não só é crédulo que o estado de exceção surge excepcio-
nalmente, mas que é uma constante nas democracias modernas, oculto e entranhado no sistema. AGAMBEN, Giorgio.
Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 39

à espécie humana, o sentimento último de pertencer à espécie e ser consi-


derado ao menos animal, possuir “voz”, pois a negação da qualidade de
homem provoca uma reinvindicação quase biológica de pertencimento à
espécie humana (AGAMBEN, 2008, p. 65). E nesses moldes, o muselmann,
a população LGBTQI+, parecem compartilhar dessa interação diante de
um discurso aniquilatório vindo das autarquias de governo neoliberal. Afi-
nal, seriam estas vidas matáveis também ao menos passíveis da existência
biológica?
Os dilemas éticos e de moral num aceno de reconhecimento dessa
forma de vida como ao menos biológica é, perceptivelmente, até mesmo
aquilo que os campos – vindouros hoje – perpetuam na sua tecnologia de
necropoder em nulificar e exterminar. Com a desintegração dos pilares
éticos e morais em Auschwitz – e o que os campos nas cidades urbanas e
periferias vingam hodiernamente –, Primo Levi, nas palavras de Agamben
(2008) o muçulmano é um experimento limítrofe do que se poder, verda-
deiramente, violar e matar sem elencar a moral e a ética, pois não fora vida
uma vez sequer. Descortina-se:
Para Levi, o muçulmano é, antes, o lugar de um experimento, em que
a própria moral, a própria humanidade, são postas em questão. É uma
figura-limite de uma espécie particular em que perdem sentido não
só categorias como dignidade e respeito, mas até mesmo a própria
ideia de um limite ético. (AGAMBEN, 2008, p. 70, grifo nosso)
Nas palavras de Agamben (2008), “onde a morte não pode ser cha-
mada de morte, nem mesmo os cadáveres podem ser chamados de
cadáveres” (p. 77). Nessa chamada, o reducionismo arquitetado para com
a figura do muselmann despido de pilares morais, éticos, da vida biológica
e política, propele então um único direcionamento possível que o espaço
vital do campo poderia abarcar: se não vidas, “cadáveres”, pois a partir do
40 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

momento que ingressam nessa zona, são extirpados de todas as suas ga-
rantias que uma vez pertenceram – alusão referente às leis marciais que a
SS se prontificou em exercer sobre os judeus ao nulificar qualquer digni-
dade. Tudo se trata, não de uma dignidade da vida, mas primeiramente,
da morte.
Nesse entendimento, se o campo que se (re)configura na moderni-
dade não é um espaço que produz morte, nas observações agambenianas,
o mais provável é que se trate de uma “fábrica de cadáveres”. O remontar
do termo explorado por Hannah Arendt numa entrevista concedida Gun-
ter Gaus em 1964 nas lentes agambenianas é capaz de situar a grande
letalidade e condenação que as vidas nuas são subjugadas no campo, como
um evento que jamais deveria ter acontecido. Diz-se:
Em todo caso, a expressão “fabricação de cadáveres” implica que aqui
já não se possa propriamente falar de morte, que não era morte aquela dos
campos, mas algo mais ultrajante que a morte. Em Auschwitz não se mor-
ria: produziam-se cadáveres. Cadáveres sem morte, não-homens cujo
falecimento foi rebaixado à produção em série (AGAMBEN, 2008, p. 78).
Esse tipo de designação que nada soa condolente, friamente expõe a
conditio inhunana dos campos. Pois, sobretudo, indivíduos que sequer
passam pelo processo de reconhecimento da dignidade pela morte transi-
tam aquele espaço e, do momento que ingressam nessa zona cinzenta,
estão despidos de qualquer forma de identificação que pudessem fornecer
a eles um testemunho, pois, não eram ninguém.
Com a topologia do campo em relação ao muselmann, esclarecidas
foram as devidas considerações sobre essa forma de vida como a mais apli-
cada no grande espaço urbano, periférico, da margem, que a modernidade
se tornou. Campo esse em que as vidas LGBTQI+ tornam-se vida nua,
homo sacer, muselmann, sentenciados a um tipo de política de extermínio
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 41

senão oculta, visível pelas trucidações de discurso dos grupos maioritários


e opressores da forma de governo neoliberal subterrânea.
Nesse fluxograma o paralelo teórico com as teorias agambenianas e
suas conceituações enquadram as vidas matáveis da população LGBTQI+
eminentemente no seu nicho de segregação correspondente. Todavia, so-
mente com um caso de reconhecimento destas faculdades pela concretude
será possível dar forma para uma compreensão final de que estas formas
de vida fazem parte de um projeto de aniquilação insurgente da política
democrática ocidental. Conforme isso, o cenário brasileiro é o que mais
corresponde a essa obscura exigência.

4.2 O caso brasileiro: vidas matáveis da população LGBTQI+

Ernani Chaves traz em seu texto a “Indesejada das gentes” (2020)


um retrato sobre os efeitos sociais da AIDS e, em face de um nupérrimo
cenário, da COVID-19. O termo “indesejada das gentes” usado pelo autor
arremata um poema de Manuel Bandeira do mesmo título, cujo qual o eu-
lírico declara o receio, muito embora serena, da espera pela chegada da
indesejada das gentes. Contudo, longe de um contemplar afável, o texto
expõe que em face a um cenário pandêmico, o caos chega com a indesejada
das gentes sem pedir licença.
A aforia presente no discurso de Ernani Chaves no escrito possibilita,
em trechos reservados especiais a isso, estabelecer uma conexão com os
homossexuais soropositivos, vitimados pelo vírus do HIV que escracha os
efeitos sociais tais quais de um portador do vírus da COVID-19 carrega.
Quiçá, rechaça-se que é um efeito mortificante a qual qualquer um que
carregue esse agente viral possa pôr a iconografia da morte em questão,
da mais indesejada das gentes.
Robustecendo a emergência teratológica de mortalidade da morte
como o inferno de Dante àqueles afetados pela pandemia, Chaves permite
42 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

a passagem do mesmo sentimento aos soropositivos pelos anos 80 no Bra-


sil, tratando em tom confessional sua experiência pessoal com a
terminologia “grupos de risco” frequentemente sobressaltada pelas man-
chetes jornalísticas que tripudiavam especialmente “outrem de uma
sexualidade transgressora”. Era fato que a ciência, a sociedade, havia se
contaminado com tamanho moralismo regressivo em dogmas resgatados.
Nas palavras de Ernani:

Não há comparação entre o peso dado pela opinião pública e mesmo pela ci-
ência ao lugar concedido à homossexualidade masculina nesse caso, em
relação aos não contaminados pela via sexual, hemofílicos e usuários de drogas
injetáveis. A contaminação pela via sexual inflacionou de moralismo a própria
ciência. (2020).

Por essa razão, a reativa simbologia da ferida, do estigma, que um


portador de HIV carregaria na sociedade, especialmente com intensidade
na práxis brasileira. Ernani traz uma percepção que, apesar de soar fatí-
dica, é verossímil ao conduzir a ideia do combate do HIV como
primeiramente um combate contra a sexualidade, contra indivíduos trans-
gressores da heteronormatividade, por estarem atinentes a um hediondo
presságio de morte pela carga viral que possuíam. E para todos os modos,
defender a sociedade dessas indesejadas gentes seria um ponto nevrálgico
para salvaguarda-la. Melhor:

O combate contra o HIV foi, antes de tudo, um combate moral, ‘civilizatório’,


que só fez aumentar e justificar a homofobia. O homossexual masculino, mas
também os travestis que, em geral, sobreviviam pela prostituição, demonstra-
vam, de forma altissonante uma mudança no ‘eixo político da
individualização’, isto é, aqueles cujas práticas sexuais deveriam ser combati-
das e, se possível, eliminadas, em nome da ‘defesa da sociedade’. Tornavam-
se assim possíveis transmissores e propagadores da morte. (CHAVES, 2020).
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 43

Nesse prisma em que as querelas segregacionistas emergem e que,


como abordado por Chaves, força-se um moralismo regressivo aliado a
identificação dos soropositivos como agenciadores da morte, não é errô-
neo situar neste constructo a existência do estigma de ser homossexual.
De ser LGBTQI+, quando os institutos nos cuidados do progresso da his-
tória parecem se coadunar com o discurso aniquilador da diversidade.
E, como denotou-se, a teoria agambeniana encontra o nexo causal ao
mortificar os corpos da população LGBTQI+ por intermédio deste mora-
lismo, da subversão dos pilares morais e éticos, em identifica-los como
vida nua reduzida a condição de homo sacer e, enfim, trajados da morte.
Pois, uma vez andarilhos do grande campo que é a cidade, o sítio urbano,
a sociedade como um todo, tornam-se muselmann fadados sequer ao me-
recimento do pertencimento a existência biológica da espécie humana, seja
pela histórica estrutura de combate à diversidade pautada na doença do
HIV, ou seja pela tendência do modelo neoliberal de governo vigente em
decidir sobre a morte destas formas de vida.
Doravante, não é, aliás, atoa esse processo de coisificação, tendo em
vista que ele se tornou enraizado na tecnologia do necropoder de extermí-
nio dos sistemas político-neoliberais – supostamente progressistas,
principalmente aqueles que carregam uma tradição histórica de silencia-
mento dos oprimidos como se concebe o sintoma do bioma social
brasileira. Ademais, para tanto, conquanto soe pessimista enxergar nestas
lentes, a disformia que ocupa o vácuo do poder soberano no Brasil é, es-
sencialmente, o melhor exemplo de intentona de eugenia social
hodiernamente escrachada.
Sob ampliação de perspectiva pelas lentes da teoria agambeniana, em
30/03/2011, o atual ocupante da cadeira do executivo da república federa-
tiva brasileira, proferiu declarações as quais íntimas aparentam ser com a
locação das vidas LGBTQI+ na zona cinzenta que é o campo: “O que esse
44 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

pessoal tem para oferecer para a sociedade? Casamento gay? Adoção de


filhos? Dizer que se seus jovens, um dia, forem ter um filho, que se for gay
é legal? Esse pessoal não tem nada a oferecer” (Sic) (LADO A, 2016, grifo
nosso)
Ora, melhor, a prerrogativa que mais flerta com a topologia do exter-
mínio dos campos que o Estado Biopolítico Nazista discursou sobre a
hegemonia ariana, em 02/07/2014 quando o mesmo soberano subjuga as
vidas LGBTQI+, em entrevista comparando gays a pedófilos e dizendo que
a minoria deve ser calada, a grau de menor importância, pelos seguintes
dizeres: “Que respeitar homossexual. Eles que tem que nos respeitar”
(Sic) (LADO A, 2016). Dentre outras que ajustam a tecnologia de opressão
e de nulificação arquitetada pelo poder soberano no campo.
Fato é que, o atual portador da instituição do poder soberano, corres-
ponde exatamente ao soberano que decide sobre a morte. Sobre quem fará
morrer e quem deixará viver. E é impossível pensar que tal pensamento
não está interseccionalizado pela tendência histórica do eixo das normas e
costumes do Brasil, como fora trazido nas palavras de Ernani, quando um
dos dizeres que comprovam a pecha de inércia e da indiferença do ocu-
pante do poder executivo é fortemente vinculante com o enxergar a
indesejada das gentes como, sobretudo, não só vida nua, mas agenciadores
da morte pelo vírus que necessariamente devem carregar. Ditos estes que
são:
Bolsonaro polemizou em 2011 sobre doação de sangue dizendo que
hospitais deveriam separar sangues de gays e héteros para transfusões.
Para ele, sangue de gays tem 17 vezes mais risco de transmitir a Aids, mas
deu a entender que não queria receber sangue de um homossexual.
Usando os riscos acrescidos de gays se infectarem com o HIV sexualmente,
ele deturpou a informação e abriu uma campanha por uma lei para sepa-
rar os sangues, que acabou abandonada. ‘O sangue de um homossexual
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 45

pode contaminar o sangue de um heterossexual’. (Revista Lado A,


2016).
A heteronormatividade é, sobretudo, um dos alentos que a forma ne-
oliberal de governo ao se entranhar na cultura ultraconservadora –
principalmente no regimento interno das relações sociais brasileiras, visto
que há uma onda de extrema-direita infectando o país – propicia e se pro-
põe a proteger destes agenciadores da morte. A agressividade desta tese,
no entanto, passa a emergir no momento em que a heteronormatividade
se torna norma e se colaciona como um padrão ético de comportamento e
que, tudo aquilo destoante desta faculdade, deve ser homogeneizado (vide
as terapias de cura gay que orbitam o celibato cristão) ou, no pior dos ca-
sos, eliminado.
Essa aniquilação, doravante, se encadeia pela redução das formas de
vida da população LGBTQI+ à zoé na pólis brasileira que é um grande
campo fabricador de cadáveres dos corpos desviantes do padrão; vida nua
que, torna-se muselmann, ao ser defenestrada para fora da existência po-
lítico-biológica, não pertencendo à espécie humana, do mundo dos
homens, pois, como agenciadores da morte e uma fratura na normativi-
dade, devem ser combatidos. Ao menos, é o que a onda de extrema-direita
opressora no Brasil procura sintetizar na ontologia de seus mais obscuros
pensamentos. Desfecho esse, uma vez súbito na mudança do progres-
sismo, que rompe com toda evolução e a alçada de direitos sociais e
humanos para o processo de reconhecimento da população LGBTQI+
como parte de uma sociedade, e não a parte que hoje, tem sido tripudiada
a ser desmembrada.

Considerações finais

Portanto, na alçada do constructo lógico deixado neste escrito, ficou


evidente a luta política que teve início nas últimas décadas pelos
46 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

movimentos sexuais que culminaram na representatividade LGBTQI+


que, robustamente, buscaram agregar a política de reconhecimento de
direitos humanos e sociais no apogeu do Estado de bem-estar social – hoje,
suposto Estado Democrático de Direito. Todavia, cenário este degenerativo
que reservou lacuna a ser preenchida pelo retrocesso da forma
(bio)política neoliberal de governo, usando a máscara do progressismo
que esteve em alta como muito tempo e como a única alternativa para a
aderência dessa forma de governo.
Os corpos das vidas LGBTQI+ que uma vez estavam tutelados pelas
políticas públicas e de equidade do Estado, viram-se abruptamente amea-
çados por essas mesmas políticas com o fulcro de afugentamento em
defesa de uma sociedade heteronormativa, homogênea e desigual, que os
dispositivos se destinaram a destroçar paulatinamente e torná-los indig-
nos de todo e qualquer direito equânime, quiçá, da existência política e
biológica.
Nesse ínterim, o homo sacer emerge e satisfaz as condições das con-
trovérsias que a nova configuração subterrânea de Estado se obstina a
controlar os corpos das vidas matáveis LGBTQI+, reduzidas à vida nua,
muselmann. É visível que, todavia, o estado brasileiro é um paradigma que
se amolda como uma luva no processo de coisificação e de matabilidade a
qual essa ontologia se apropria das vidas LGBTQI+, principalmente pelo
histórico repressivo do combate da AIDS nas décadas de 70 e 80, bem
como a ascensão de uma extrema-direita ultraconservadora na política
brasileira que parece veladamente impor uma política de extermínio em
campos a céu aberto nesse combate contra a diversidade das formas de
vida.
O estigma do LGBTQI+ em solo brasileiro é, então, fomentado no seio
mais segregacionista na sociedade. No entanto, em meio a tantas intento-
nas de transformar esse coletivo minoritário em nada, é possível retomar
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 47

o que Michel Foucault uma vez falara sobre Resistência. É necessário que,
em tempos tão obscuros de (bio)política neoliberal da morte em que todos
sejamos vidas nuas, homo sacer e mulsemman, sejamos insurgentes atu-
ando resistentemente por meio de ações micropolíticas com efeitos macro.
Nessa empreitada, somente agindo, nas palavras de Agamben, pela
potência de não fazer como Bartleby, o escrivão, que poderemos nos
emancipar e parar o funcionamento do maquinário biopolítico que sub-
juga as formas de vida e as isola em vida matável, e depondo com eficácia
a ordem opressora que nos codifica em vida nua. Somente desse jeito, se
configurando em resistência ante ao poder soberano, que será possível
pensar numa forma em que o Direito não esteja contaminado e que uma
nova ordem seja pensada em meio aos devaneios de exílio que os grupos
LGBTQI+ tem passado ao tentar resgatar sua principal essência desde o
momento que suas narrativas foram silenciadas.

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AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer I: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora
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Horizonte: Autêntica, 2015.

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III]. Tradução de Selvino Assmann, apresentação de Jeanne-Marie Gagnebin. São
Paulo: Boitempo Editorial, 2008.

CASTRO, Edgardo. Introdução a Giogio Agamben: uma arqueologia da potência. Editora


Autêntica: Belo Horizonte, 2016.
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FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução de Gabriel
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Derrida. Cadernos de Ética e Filosofia política, v. 14, 2009. p. 103-121.

REVISTA LADO A. 100 frases homofóbicas de Jair Bolsonaro. Disponível em:


https://revistaladoa.com.br/2016/03/noticias/100-frases-homofobicas-jair-
bolsonaro/. Acesso em 15 jan. 2021.
Capítulo 2

O silenciamento dentro e fora dos muros do cárcere:


uma análise sócio-jurídica do encarceramento feminino

Geovana Ferreira Faria Alvarenga 1


Victor Hugo Neves Silva 2
Lorena Araújo Matos 3

1 Introdução

Diante da curva crescente do número de mulheres que se encontram


privadas de liberdade no Brasil, esta pesquisa visa analisar a linha do
tempo desde as causas que levaram essas mulheres a transgredir, os ilíci-
tos penais que elas mais cometem, o tratamento masculinizado do sistema
carcerário feminino brasileiro, a eficácia da pena aplicada e, por fim, a
reinserção dessas ex-detentas em sociedade pós-cárcere.
Este artigo foi confeccionado por meio de pesquisa bibliográfica, ba-
seando-se em leitura de livros, artigos científicos, legislação e matérias
jornalísticas, bem como análise de dados obtidos por pesquisadores da
área.
O Infopen Mulheres (2014), expôs o crescimento exorbitante de mu-
lheres presas, principalmente se comparado a taxa masculina. Durante o
período dos anos 2000 a 2014, a média de mulheres custodiadas subiu
567,4%, mais que o dobro em paralelo a média de 220,20% do cresci-
mento de homens encarcerados.

1
Acadêmica do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Campus Univer-
sitário do Araguaia; Integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Gênero e Poder.
2
Acadêmico do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Campus Univer-
sitário do Araguaia; Integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Gênero e Poder.
3
Mestra em Direito Constitucional (IDP); Especialista em Direito Penal e Processo Penal (Damásio); Pós-Graduanda
em Direito Homoafetivo e de Gênero (UNISANTA); Professora Universitária e Advogada.
50 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Entretanto, mesmo com o aumento notório de mulheres em situação


de cárcere, não há políticas públicas efetivas que buscam solucionar esse
problema pela raiz, pelo contrário, não há infraestrutura adequada nas
penitenciárias para que essas mulheres cumpram a pena de forma digna
e adequada, visando a ressocialização em sociedade e não reincidência no
crime. Com isso, faz-se necessário pesquisas e discussões sobre o presente
tema para que a situação dessas mulheres saia da invisibilidade e seja tra-
tada como um problema real em nossa sociedade.
Portanto, em um primeiro momento, vamos analisar o perfil das mu-
lheres encarceradas para, assim, desvendar as causas e circunstâncias que
motivaram essas mulheres a infringir a lei e como estas estão intimamente
ligadas com a natureza dos crimes mais praticados por elas. Em seguida,
trataremos da questão envolvendo mulheres transexuais encarceradas e
discutiremos sobre o tratamento masculinizado recebido pelas detentas.
Por fim, será exposto sobre a reinserção de egressas do sistema carcerário.

2 As mulheres inseridas no Sistema Carcerário Brasileiro

A Constituição Federal prevê em seu art. 5º, caput e inciso I, que “To-
dos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]. I -
homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição” (BRASIL, 1988).
Porém, o contexto fático se difere do que versa a legislação, principal-
mente quando esse olhar é voltado para o cenário do cárcere, onde a
maioria masculina se destaca em meio a minoria feminina, desde o mo-
mento em que é cometido o crime até a ressocialização desses indivíduos
em sociedade, momento o qual será analisado nesse artigo.
Ao traçar o perfil da mulher encarcerada no Brasil, temos que a maior
parte é composta por jovens, mães, de cor/etnia pretas e pardas e com
baixa escolaridade. Esse perfil está diretamente interligado com a taxa de
Geovana Ferreira Faria Alvarenga; Victor Hugo Neves Silva; Lorena Araújo Matos | 51

desemprego entre a população feminina brasileira que, segundo dados da


Pnad Covid, pesquisa criada pelo IBGE, a taxa de desocupação chegou a
16,9% em setembro de 2020, superando a masculina de 11,8%. Somados
com a diferença salarial de quase 30% maior dos homens em relação às
mulheres e ao fato de que apenas 3% das mulheres no Brasil ocupam car-
gos de liderança, comumente vemos mulheres exercendo profissões
secundárias e periféricas, podemos apontar que o principal motivo que
atrai a mulher para o crime são a vantagem financeira
Em um contexto social, as mulheres se encontram em situação de
vulnerabilidade desencadeada pela pobreza, baixa escolaridade e concomi-
tantemente a falta de oportunidades de emprego, o que consequentemente
acarreta a prática de ilícitos penais e então, o encarceramento.
Prova disso é o fato de que os crimes cometidos por mulheres são de
natureza menos gravosa, sem violência, sendo em sua maioria o tráfico de
drogas, como aponta os dados mais recentes levantados pelo Departa-
mento Penitenciário Nacional, através do Relatório Temático sobre
Mulheres Privadas de Liberdade, o Infopen Mulheres de junho de 2017:

No que se refere a frequência dos crimes tentados/consumados entre os regis-


tros das mulheres custodiadas no País, observa-se que o crime de tráfico de
drogas é o principal responsável pela maior parte das prisões, perfazendo um
total de 59,9% dos casos. (INFOPEN, 2017).

Isso se deu devido ao advento da Lei nº 11.343/2006, comumente co-


nhecida como Lei de Drogas, juntamente com o crescimento do crime
organizado nas favelas e periferias do país. Em seguida ao tráfico, temos
os crimes de natureza patrimonial, como furto e roubo. Sendo assim, resta
claro que o principal norteador para essas mulheres é o dinheiro.
No mundo do tráfico, a mulher ocupa espaços secundários, exer-
cendo o papel de “mula”, fazendo o transportando drogas em pequena
52 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

quantidade, como observa Vergara (1998): “(...) a mulher atua muito mais
como coadjuvante, sendo que o protagonista nessa situação geralmente é
do sexo masculino e sempre estão ligados por laços de afetividade, como
irmãos, parceiros, parentes”.
Constantemente, as mulheres se encontram em posição de chefe de
família, onde devem promover o sustento dos filhos, porém sem oportu-
nidades de emprego sobretudo devido à falta de profissionalização, além
de enfrentar preconceitos de gênero, posição social e cor. Assim, essas mu-
lheres são tentadas a cometer pequenos delitos visando o retorno
financeiro, a fim de complementar a renda. Como relata Queiroz (2017)
em seu livro “Presos que menstruam”:

Segundo o Ministério da Justiça, entre 2007 e 2012, a criminalidade cresceu


42% entre as mulheres — ritmo superior ao masculino. Uma tese em voga
entre ativistas da área é a de que a emancipação da mulher como chefe da casa,
sem a equiparação de seus salários com os masculinos, tem aumentado a pres-
são financeira sobre elas e levado mais mulheres ao crime no decorrer dos
anos.
Dados comprovam a teoria. Os delitos mais comuns entre mulheres são aque-
les que podem funcionar como complemento de renda. [...] tráfico de
entorpecentes lidera o ranking de crimes femininos todos os anos no Censo
Penitenciário. Os próximos da lista, e para os quais vale o mesmo raciocínio,
são os crimes contra o patrimônio, como furtos e assaltos.
Os crimes cometidos por mulheres são, sim, menos violentos; mas é mais vi-
olenta a realidade que as leva até eles. (QUEIROZ, 2017, p. 63).

Este é o panorama do perfil do encarceramento feminino no Brasil.


No próximo tópico analisar-se-á a invisibilidade das mulheres trans diante
da privação de liberdade.
Geovana Ferreira Faria Alvarenga; Victor Hugo Neves Silva; Lorena Araújo Matos | 53

2.1 As mulheres trans no sistema carcerário brasileiro

Em se tratando de minorias pertencentes a comunidade LGBTQIA+


vemos o quão precário é o tratamento e a permanência de mulheres trans
no governo e principalmente no sistema penitenciário brasileiro, já que se
tratando do assunto, o Brasil é o país que mais matam indivíduos transe-
xuais. Em um primeiro momento teremos que sanar perguntas específicas
sobre a temática apresentada, já que por sua vez, mulheres trans necessi-
tam de políticas e normativas específicas para sua permanência prisional.
Para criarmos um pilar sólido em relação ao tratamento, as seguintes
perguntas devem ser respondidas, de que transexuais estamos falando?
Essas pessoas para serem considerados transexuais necessitam passar por
procedimentos cirúrgicos de redesignação sexual? É necessário que os in-
divíduos estejam fazendo o processo hormonal? É necessário que o
indivíduo se entenda como mulher a algum tempo antes do encarcera-
mento? Em casos de mulheres trans condenadas por crime de violência
sexual contra uma mulher, essas condenadas podem ficar em mesma cela
que mulheres? Caso ocorra algum tipo de violência por parte de uma mu-
lher trans dentro da penitenciária ela deve ser encaminhada a uma ala
própria ou ser inserida em uma ala masculina?
Inicialmente para definir o conceito de transexual teremos que utili-
zar a definição utilizada pela “Associação Brasileira de Lésbicas, Gays,
Travestis e Transexuais (ABGLT)” em uma de suas publicações no ano de
2007:

Transexualidade: contexto vivencial que se refere a um indivíduo com identi-


dade de gênero caracterizada por uma postura afirmativa de autoidentificação,
solidamente construída e confortável nos parâmetros de gênero estabelecidos
(masculino ou feminino) independente e soberano aos atributos biológicos de
nascença sexualmente diferenciados. Essa afirmativa consolidada traduz-se
54 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

numa não identificação com esses atributos e pode, eventualmente, se trans-


formar em desconforto ou estranheza diante dos mesmos, a partir de
condições socioculturais adversas ao pleno exercício da vivência da identidade
de gênero constituída. Isso pode se refletir na experiência cotidiana de autoi-
dentificação ao gênero feminino – no caso das mulheres que vivenciam a
transexualidade (que apresentam órgãos genitais classificados como masculi-
nos no momento em que nascem), e ao gênero masculino – no caso de homens
que vivenciam a transexualidade (que apresentam órgãos genitais classifica-
dos como femininos no momento em que nascem). A transexualidade também
pode, eventualmente, contribuir para o indivíduo que a vivência objetivar al-
terar cirurgicamente seus atributos físicos (e até genitais) de nascença para
que os mesmos possam ter correspondência estética e funcional à vivência
psicoemocional da sua identidade de gênero vivencialmente estabelecida
(ABGLT, 2007:11, grifo nosso).

Com essa definição feita podemos entender que existem particulari-


dades na vivência transexual e que uma mulher trans não necessita de
cirurgia para que seja mulher.
E de fato o preconceito com essa determinada classe é mais latente
já que é corriqueiro vermos mulheres transexuais sendo colocadas em alas
masculinas sem o devido cuidado resultando em agressões, estupros e vi-
olência psicologias frutos da transfobia já vista na sociedade fora do
cárcere.
Essa violência tem como pilar a marginalização proveniente do pre-
conceito sofrido por mulheres no geral e ainda é agravada pela ideia de
que transexuais e travestis são pessoas piores e que não são sujeitos de
trabalho ativos e produtivos, já que o índice de mulheres trans empregadas
são mínimos e que o único trabalho seria a prostituição.
Em relação a sujeitos que fazem o processo hormonal vemos mais
uma vez a precariedade do sistema prisional brasileiro, já que para indiví-
duos que nasceram com o sexo biologicamente feminino não vemos o
Geovana Ferreira Faria Alvarenga; Victor Hugo Neves Silva; Lorena Araújo Matos | 55

sistema ofertar absorventes, quem dirá os medicamentos hormonais para


a transição.
O despreparo prisional para indivíduos transexuais é tão forte que
vemos isso até na divisão de alas prisionais, já que, não se colocam mulhe-
res trans na ala feminina por medo desses indivíduos praticarem abusos e
agressões contra as demais detentas e em paralelo não se tem alas especí-
ficas para transexuais, e com isso as mulheres trans voltam para a ala
masculina, onde voltam a sofrer abusos e agressões. Porém existem exce-
ções positivas quanto a isso, a Resolução nº 348/20 publicada pelo CNJ,
que estabeleceu diretrizes inovadoras em se tratando da população LGBTI
no âmbito criminal. Mesmo que agora as mulheres trans possam escolher
se ficarão em presídios masculinos ou femininos em alas específicas para
o público LGBTQIA+, somente 3% das penitenciárias brasileiras contam
com essa ala em questão.
Em uma ótica positiva temos a aprovação da Resolução Conjunta nº
1 de abril de 2014 que trouxe direitos e princípios que ajudam na melhor
permanência de indivíduos pertencentes a comunidade LGBTQIA+, essa
resolução também em específico versa sobre um tratamento mais humano
para detentos transgêneros, como exemplo, temos o artigo 5º, que em seu
texto traz a seguinte descrição:

Art. 5º - À pessoa travesti ou transexual em privação de liberdade serão facul-


tados o uso de roupas femininas ou masculinas, conforme o gênero, e a
manutenção de cabelos compridos, se o tiver, garantindo seus caracteres se-
cundários de acordo com sua identidade de gênero.

Porém, na prática são poucas as penitenciárias e as cadeias que im-


plementa e efetivam essa resolução, já que, muitas vezes vemos mulheres
transexuais sendo descriminadas por agentes penitenciários, mas como
toda a regra existem exceções, na Capital de Mato Grosso, Cuiabá temos
56 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

celas e alas feitas especialmente para esse grupo de pessoas, essa ala possui
o nome de “ala arco-íris”, elas contam com horários e uma maior possibi-
lidade de visitas intimas, os agentes são instruídos a chamarem as detentas
pelo nome social, o que garante um sentimento de dignidade e respeito
Já em pensamento pós cumprimento de pena temos um lado mais
cruel e discriminatório, vemos indivíduos sem uma promessa de melhora,
já que por sua vez, as penitenciárias não cumprem seu papel de reeducar
os indivíduos transgêneros e não oferecem uma capacidade laborativa
para que eles exerçam quando saírem da prisão. Um clico vicioso se forma,
os indivíduos quando voltam para a sociedade não conseguem trabalho e,
por isso, precisam voltar para o tráfico ou à prostituição, ao optarem pelo
tráfico cedo ou tarde voltarão às penitenciárias, optando pela prostituição
ficarão sempre expostas a perigos, abusos e risco a vida, como é exposto
pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), “Até pouco
tempo, não se via pessoas trans à luz do dia, só nas esquinas escuras du-
rante a noite”
A realidade principal é que o sistema de justiça criminal brasileiro
não está preparado e muito menos interessado nesses indivíduos, já que o
Brasil ainda segue um pensamento machista, misógino e transfóbico, in-
clusive, o tratamento que as mulheres recebem durante sua permanência
nas penitenciarias é totalmente criado e efetivado com preceitos masculi-
nos. Diante desse importante aspecto, entende-se a importância de se
tratar a musculinização sofrida pelas mulheres nas penitenciarias e ca-
deias brasileiras.

3 O tratamento masculinizado que as mulheres recebem na prisão

Na maior parte do sistema penitenciário brasileiro, vemos um mo-


delo de tratamento diretamente voltado a objetificação, abusos e
Geovana Ferreira Faria Alvarenga; Victor Hugo Neves Silva; Lorena Araújo Matos | 57

subjugação do gênero feminino em relação ao masculino. Há uma mascu-


linização na forma em que as mulheres são tratadas quando se encontram
em situação de encarceramento.
Fazendo uma análise histórica, podemos reconhecer que há um pa-
drão nos dados quantitativos apresentados. José Gabriel de Lemos Britto,
entre 1923 e 1924, percorreu o Brasil com a intenção de obter dados sobre
o sistema carcerário feminino, diante das informações obtidas escreveu o
livro “Os systemas penitenciarios do Brasil”.
Levando em consideração os dados obtidos na penitenciária do es-
tado do Maranhão no ano de 1923, havia 146 detentos no total, sendo 143
homens e apenas 3 mulheres, não havendo distinção de celas por gênero.
Já na penitenciária de Fortaleza-CE, no ano de 1924, tínhamos o total de
106 detentos, sendo 5 mulheres. Por fim, na penitenciária de Natal-RN não
havia população carcerária feminina, apenas masculina.
Posteriormente, em 1934, o Conselho Penitenciário do Distrito Fede-
ral encontrou “no universo de todos os presos das capitais dos estados, 46
mulheres presas para 4633 sentenciados do sexo masculinos, ou seja, 1%
da população carcerária das capitais eram formadas por mulheres”
(ANDRADE, 2011, p. 19 apud APB, 1942). Os dados mais recentes apresen-
tados pelo Departamento Penitenciário Nacional, que correspondem ao
segundo semestre de 2019, apontam que a população carcerária feminina
perfaz 4,94% do total, ou 36.929 mulheres, em comparação com 96,06%
de encarcerados masculinos.
Quando privadas de liberdade, na maioria das vezes essas mulheres
ao menos são destinadas a presídios apropriados, tendo em vista que ape-
nas 7% das penitenciárias brasileiras são exclusivamente femininas e 17%
são mistas. Dessa forma, há um tratamento masculinizado das mulheres
em cárcere, pois não há infraestrutura adequada, as celas são superlota-
das, produtos de higiene escassos, tratamento médico inadequado ou
58 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

quase inexistente principalmente para as gestantes, levando em conside-


ração que 90% das unidades prisionais mistas e 49% das exclusivamente
femininas não são adequadas para detentas grávidas.
No entanto, a violência que as mulheres sofrem no cárcere não se
resume a falta de infraestrutura física, mas também como o gênero é uti-
lizado como mecanismo de controle dos corpos, um grande exemplo disso
é a burocracia para visitas íntimas nos presídios femininos, ou regular-
mente a falta destas, como observa o Relatório Sobre Mulheres Presas e
Encarceradas no Brasil, 2007.

É importante salientar que a questão da visita íntima, totalmente vedada em


algumas unidades prisionais, quando existe, está condicionada geralmente a
requisitos como: comprovação de vínculo de parentesco, uso obrigatório de
contraceptivos; ou são concedidas em condições inadequadas sem a privaci-
dade devida. Em uma comparação histórica com as condições de
encarceramento masculina pode-se depreender que há grande diferença, dis-
paridade e discriminação na efetiva concessão do direito a visita íntima às
presas.

Dessa forma, analisando os dados apresentados ao norte, nota-se que


as penitenciárias brasileiras seguem o modelo masculinizado, tendo em
vista que ao decorrer da história carcerária brasileira sempre houve um
padrão em relação a maior quantidade de encarcerados do gênero mascu-
lino em comparação com a minoria feminina. Com isso, podemos concluir
que este pode ser um dos fatores que sustenta o tratamento masculinizado
que as mulheres encarceradas recebem até os dias atuais.
Dito isso, faz-se necessário avaliar as possibilidades dessas mulheres
na vida pós-cárcere diante do estigma de ex-presidiária que as acometem.
Geovana Ferreira Faria Alvarenga; Victor Hugo Neves Silva; Lorena Araújo Matos | 59

4 A reinserção de ex-detentas na sociedade

Em se tratando do cárcere vemos que durante todo cumprimento de


pena as detentas passam por diversos estigmas, preconceitos e uma
grande marginalização de todos os seus direitos básicos, infelizmente esses
estigmas não terminam com o fim da pena, o período mais difícil se inicia
com o fim do cárcere e sua tentativa de reinserção na sociedade. Para me-
lhor entendermos as dificuldades da reinserção veremos alguns pontos.
O primeiro ponto a ser tratado é o abandono familiar, assim como a
sociedade no geral possui um certo preconceito com a mulher, a falta de
esperança que a família tem sobre a presa faz com que ela se afaste dos
sentidos e comportamento próprios, já que, o cárcere a isola de toda a so-
ciedade, hábitos e comportamentos que a sociedade adota e entende por
comum, por isso a importância das visitações familiares. A detenta neces-
sita se sentir acolhida e, de certo modo, tenha motivos para cumprir sua
pena com mais determinação para que um dia ela volte para o seio fami-
liar.
O segundo ponto, é a dificuldade que as penitenciárias têm de prepa-
rar as presas para retornarem à sociedade. A grande maioria das
penitenciárias brasileiras não possuem cursos de capacitação, trabalhos e
nem acesso a informações exteriores, muitas presas não sabem o que está
acontecendo no mundo e no Brasil, já que informações exteriores são
muito escassas. Ao passar dos anos, o verdadeiro conceito e finalidade das
penitenciárias foi de fato esquecido, elas por si só têm a finalidade de ree-
ducar e ressocializar os indivíduos para que retornem à sociedade e tenha
uma vida normal, porém só é vista e utilizada como um órgão para esque-
cimento e administração de penas.
Assim como a informação e a real utilidade das penitenciárias, a ca-
pacitação também é desprezada, perpetuando e colocando a mulher em
uma situação de looping carcerário, já que, não se aperfeiçoando ela não
60 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

conseguirá um lugar de destaque ou de trabalho, não trabalhando a


egressa irá procurar meio de sustentar seus familiares e a si própria e a
única saída será retornar as práticas que a colocaram no sistema prisional.
Para melhor descrever devemos analisar a fala de Denise da Conceição
Maia em sua monografia de pós-graduação que explica a imersão do preso
na vida de crime pós-encarceramento:

A inserção dos condenados na “sociedade dos cativos” significa a reelaboração


de parte da teia de relações sociais, inclusive com o mundo externo, que eles
perderam com o isolamento que a pena de prisão promove. Essa inserção es-
tabelece os critérios para a filiação, competência lealdade e pertencimento que
definem uma nova cidadania. Não é desprezível o papel que essa ‘cultura de-
linquente’ desempenha no reforço dos códigos de orientação para o crime,
para a imersão ainda mais funda dos indivíduos nas carreiras criminais.
(2003, p. 24).

Mas por que a mulher retorna a vida de crime? Em relação financeira


o crime é compensatório? Essas são as perguntas que a maioria dos pes-
quisadores de áreas criminais fazem quando o assunto é a mulher
retornando para o crime após seu cumprimento de pena. O crime é mais
estruturado e organizado que pensamos, nas favelas encontramos verda-
deiros “governos criminais” onde tudo de fato é efetivado, desde o
pagamento por seu trabalho no tráfico e até mesmo penas por transgres-
sões a regras impostas. E, mais um vez, temos a mulher sendo subjugada
por regras e leis masculinas, já que, até no tráfico encontramos essa hie-
rarquia que a mulher precisa seguir caso queira sobreviver, o pior é que
as egressas precisam cumprir a regra já que a sociedade em geral, na mai-
oria das vezes, não contratam ex-presidiárias para trabalhos formais, e é
por isso que vemos em muitos casos o retorno ao crime ou trabalhos au-
tônomos como por exemplo a venda de artesanatos e produtos feitos com
um esforço próprio de criação.
Geovana Ferreira Faria Alvarenga; Victor Hugo Neves Silva; Lorena Araújo Matos | 61

Um último fator que influencia na dificuldade de encontrar oportu-


nidade laborativa é o preconceito com determinada raça, já que, um ex-
detenta branca e cis possuem mesmo que poucas, melhores oportunidades
que uma mulher negra e trans. Esse preconceito racial possui raízes fir-
madas desde a época colonial, e não abrange apenas egressas, mas todas
as mulheres de um modo geral, de início, é cada vez mais necessário que
mulheres pretas ocupem lugares de destaque na sociedade, para que isso
reflita também a mulheres pretas que procuram oportunidade pós cárcere.
Um dos exemplos e medidas para ajudar essas mulheres é a criação
de espaços de vivência, como a ONG “Casa Flores”, idealizada e criada por
Flávia Ribeiro de Castro uma educadora que tem como principal tema de
trabalho o empoderamento de mulheres egressas. Casa Flores está locali-
zada na Vila Madalena, zona oeste da cidade de São Paulo, e seu intuito e
funcionamento é em prol de oferecer um olhar mais humanitário a egres-
sas do sistema penitenciário, fazendo com que elas possam compartilhar
suas vivências e fazendo com que laços sejam restaurados, como o fami-
liar, e com isso, dar força e suporte para que as mulheres possam seguir
rumo a sua reinserção na sociedade.

Considerações finais

Considerando dados que mostram o crescente aumento da quanti-


dade de mulheres em situação de cárcere no Brasil, o presente artigo
buscou encontrar as causas que levam essas mulheres a transgredir e as
consequências que essa prática traz para essas mulheres quando egressas
e para a sociedade como um todo.
Logo, através de dados coletados por profissionais da área em peni-
tenciárias brasileiras, foi possível traçar o perfil da mulher presa no Brasil:
jovens, pretas, mães e com baixa escolaridade. Fazendo uma análise con-
junta da taxa de desemprego ascendente no país, do nível de ocupação
62 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

feminino inferior ao masculino, somados com a diferença salarial dos ho-


mens em relação às mulheres, podemos apontar que o principal motivo
que atrai a mulher para o crime é a vantagem financeira.
O crime que mais prende mulheres no Brasil é o tráfico de drogas e,
por conseguinte, os crimes de natureza patrimonial, como furto e roubo.
Sendo assim, resta claro que o principal norteador para essas mulheres é
o dinheiro.
Constantemente, as mulheres se encontram em posição de chefe de
família, onde devem promover o sustento dos filhos, porém sem oportu-
nidades de emprego sobretudo devido à falta de profissionalização e
estudos, além de enfrentar preconceitos em razão de gênero, posição social
e cor. Assim, essas mulheres são tentadas a cometer pequenos delitos vi-
sando o retorno financeiro, a fim de complementar a renda.
Frequentemente são aliciadas por homens com quem possuem laços afe-
tivos e que já estão inseridos no crime em posição superior.
Por conseguinte, temos o desafio que envolve a reintegração de egres-
sas em sociedade. Levando em consideração as causas que transgrediram
essas mulheres apresentadas ao norte, juntamente com seu perfil, conclu-
ímos que a vida das mulheres ex-detentas pós-cárcere não seria mais fácil,
pelo contrário, há mais obstáculos para superar. Além dos estigmas recaí-
dos sobre elas anteriores ao aprisionamento, agora levarão consigo um
adendo: o de ex-presidiária.
Nota-se que a sociedade e o Estado vêm falhando com essas mulhe-
res, tanto na hora de estabelecer políticas públicas efetivas, através de
acesso e incentivo à educação e preparação ao mercado de trabalho,
quanto à oferta de trabalho. Quando privadas de liberdade, não há infra-
estrutura diga e adequada no sistema prisional brasileiro. Assim, a pena
imposta a elas é inteiramente punitiva e não cumpre o caráter reeducativo
e preventivo a qual se propõe.
Geovana Ferreira Faria Alvarenga; Victor Hugo Neves Silva; Lorena Araújo Matos | 63

Em uma ótica mais negativa temos as mulheres trans, além de sofre-


rem todo o preconceito em razão do machismo, ainda se encontram em
um estado de maior vulnerabilidade por serem oposto a indivíduos cis, o
que apenas agrava o estigma sofrido por elas. Temos como fato que o Bra-
sil é o país que mais mata pessoas transexuais, e a falta de políticas públicas
para esse grupo em específico apenas revela quão precário o governo e
consequentemente o sistema carcerário são em se tratando de proteção e
tratamento para esse grupo. Uma saída para esse problema seria não ape-
nas a criação e implementação de políticas públicas eficazes, mas a
importância de dar voz, visibilidade e acolhimento para essas pessoas, for-
talecendo laços que as impulsionam na sua busca a reinserção na
sociedade brasileira, afinal, para que elas voltem a sociedade é necessário
que a sociedade as queira acolhê-las.
Logo, a sociedade falha consigo mesma ao propagar a ideia de que
“bandido bom é bandido morto”, não promovendo uma discussão pro-
funda acerca do problema do encarceramento em massa no país e da
importância de que o Estado assegure um cumprimento de pena baseado
na reeducação dessas mulheres, visando uma melhor qualidade de vida,
implementando medidas que as auxiliem pós-cárcere, como meio que as
possibilitem se prepararem para o mercado de trabalho brasileiro, dando
opções para que não venham recorrer ao tráfico novamente e, consequen-
temente a não reincidência a prisão. Outro meio extremamente necessário
é a criação de órgãos que ajudem na reinserção em suas vidas familiares,
projetos como a ONG “Casa das flores”, onde a mulher egressa tem todo
espaço de fala para se abrir em relação a suas dúvidas, medos e angústias,
afinal, a família é a maior expressão de sociedade que conhecemos ou te-
mos como exemplo.
64 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

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2021.

QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. 8ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.

TAXA de desemprego bate 17% para mulheres e 16% para negros, diz IBGE. Brasil
Econômico, 23 de out. de 2020. Disponível em <https://economia.ig.com.br/2020-
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VERGARA, F. O Perfil sócio-demográfico da mulher criminosa em Marília (1990 -1997).


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Cássia. Criminalidade e Condição Feminina: Estudo De Caso Das Mulheres
Criminosas E Presidiárias De Marília – SP. Revista de Iniciação científica da FFC, v.4,
n.3, 2004.
Capítulo 3

A legitimidade da transfobia no âmbito hospitalar:


uma análise sobre a eficácia do direito
à saúde sexual e reprodutiva

Júlia Gabrielly Gomes da Silva 1


Myllene Borges Barbosa 2
Thiago Augusto Galeão de Azevedo 3

1 Introdução

Este artigo faz uma análise das dificuldades enfrentadas por travestis
e transexuais para desfrutar de seus direitos e busca responder a seguinte
pergunta-problema: em que medida os direitos humanos, sexuais e repro-
dutivos de uma pessoa identificada como transgênera são garantidos
nacionalmente?
Para responder tal questionamento, tomou-se como diretriz o mé-
todo pesquisa bibliográfica, de forma que as obras e os artigos estudados
possibilitassem uma análise solidificada, operacionalizando a resposta à
pergunta elencada.
Considerando o objetivo geral da presente pesquisa, que é compre-
ender o nível de garantia dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos de
pessoas transgêneras na sociedade brasileira contemporânea, passa-se a
expor a estrutura do presente estudo.
Em um primeiro momento, explica-se de forma breve a diferença en-
tre orientação sexual, identidade de gênero e as nomenclaturas usadas

1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso.
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso.
3
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
68 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

para cada caso. Nesse contexto, problematiza-se a distinção binária e a he-


terossexualidade compulsória.
Em seguida, expõe-se a criação do Sistema Único de Saúde e como o
mesmo funciona para pessoas transgêneras em circunstâncias legais e so-
ciais. Analisa-se, também, a discriminação e outros fatores que reprimem
essas pessoas e dificultam o simples ato de buscar por atendimento mé-
dico.
Por conseguinte, questões como rejeição familiar, evasão escolar e o
desemprego também são discutidas de forma que as elucidações citadas
consubstanciam a violência e trazem para discussão a viabilidade da pa-
rentalidade trans e da execução do aborto.

2 Orientação sexual e identidade de gênero

A sexualidade é uma questão complexa que sempre despertou curio-


sidade nas pessoas. Seja com quem elas se relacionam, o que as atraem,
com qual corpo elas se identificam e com quem é compartilhado suas emo-
ções e sentimentos. Mesmo que essas pautas sejam bastante comentadas
neste momento, ainda assim, são consideradas tabus na sociedade.
O fato de muitas pessoas não terem o interesse de se aprofundar
nessa temática, por assumirem posições conservadoras, consequente-
mente, faz com que a opressão e a discriminação sobre as minorias sexuais
e de gênero cresçam progressivamente. Falar sobre sexo, gênero, orienta-
ção sexual e identidade de gênero é de grande importância para que ocorra
a desmistificação de algumas narrativas sobre esse tema.
O sexo é biológico e determinado antes mesmo de nascermos, po-
dendo ser designado como feminino ou masculino pelo médico. Já o
gênero, muitas vezes, erroneamente, associado como sinônimo do sexo,
vai além dos limites do corpo, ele está relacionado a construção social e as
expectativas designadas socialmente à cada sexo, tornando essa distinção
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 69

binária (masculino/feminino) e heteronormativa. Portanto, o gênero é o


corpo sexuado constituído pelas relações de poder que compõem suas ves-
timentas, aparências, e o modo de agir e pensar.
Na descrição da socióloga Ann Oakley (2015, p.64):

Sexo é um termo biológico; “gênero "é um termo psicológico e cultural. O


senso comum sugere que há apenas duas maneiras de olhar para a mesma
divisão e que alguém que, digamos, pertença ao sexo feminino pertencerá au-
tomaticamente ao gênero correspondente (feminino). Na realidade, não é bem
assim. Ser um homem ou uma mulher, um menino ou uma menina, é tanto
uma atividade como vestir-se, gesticular, ter um trabalho, redes de sociabili-
dades e personalidade, quanto possuir um tipo particular de genitais.

No entanto, Judith Butler afirma que tanto o sexo quanto o gênero


são construídos socialmente, consequentemente, para ela o sexo não cor-
responderia ao modelo biológico e sim ao domínio sociocultural.

Se o caráter imutável do sexo é contestável, talvez o próprio construto cha-


mado 'sexo' seja tão culturalmente construído quanto o gênero; a rigor, talvez
o sexo sempre tenha sido o gênero, de tal forma que a distinção entre sexo e
gênero revela-se absolutamente nenhuma. Se o sexo é, ele próprio, uma cate-
goria tomada em seu gênero, não faz sentido definir o gênero como a
interpretação cultural do sexo (BUTLER, 2010, p. 25).

A orientação sexual é definida pelo desejo afetivo-sexual que uma


pessoa tem por outra. Esse desejo é categorizado, no mínimo, em quatro,
podendo ser determinado como: heterossexual, homossexual, bissexual ou
pansexual e assexual.
A heterossexualidade é o envolvimento amoroso ou sexual entre in-
divíduos de sexos diferentes. Já a homossexualidade é o oposto, essa é
definida como o envolvimento entre pessoas do mesmo sexo (BRASIL,
2016).
70 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

A bissexualidade é determinada como a atração física ou emocional


entre dois, ou mais gêneros (BRASIL, 2016). Os indivíduos que se identifi-
cam com essa orientação estão o todo tempo sujeitos a críticas como “estar
em cima do muro” e serem “pessoas confusas”. Semelhantemente, a pan-
sexualidade é a atração sexual ou emocional que independe de sexo e
gênero, ou seja, estes não são fatores determinantes para que haja inte-
resse entre a partes.
Por outro lado, a assexualidade é a ausência de atração sexual de ma-
neira parcial, condicional ou total. Uma pessoa assexuada pode se
apaixonar ou mesmo não ter nenhum interesse romântico por alguém,
dessa forma, essas pessoas são chamadas de românticas e arromânticas.
Há também aqueles que sentem atração sexual a partir de alguma condi-
ção estabelecida.
Desde crianças, e até mesmo antes do nascimento, já é predetermi-
nado como devemos agir e como temos que manter a nossa aparência de
acordo com o nosso sexo biológico [sic]. Crescemos ouvindo frases do tipo
“isso é coisa de menina(o)”, “seja homem!”, “senta que nem moça”, entre
outras que visivelmente ressaltam a heterossexualidade compulsória en-
raizada da sociedade.

Assim, a heteronormatividade não se refere apenas aos sujeitos legítimos e


normalizados, mas é uma denominação contemporânea para o dispositivo his-
tórico da sexualidade que evidencia seu objetivo: formar a todos para serem
heterossexuais ou organizarem suas vidas a partir do modelo supostamente
coerente, superior e “natural” da heterossexualidade. (Miskolci, 2007)

Richard Miskolci em “A Teoria Queer e a Questão das Diferenças: por


uma analítica da normalização” problematiza o conceito da heterossexua-
lidade compulsória e evidencia que essa concepção também possui
relevância para aqueles que não se relacionam com pessoas do sexo
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 71

oposto. Este conceito está em estabelecer o cidadão heterossexual como


aquilo que é “normal” e deve ser aceito pela sociedade.
No entanto, a identidade de gênero se refere a como o indivíduo se
sente em relação ao seu sexo biológico, ou seja, se a pessoa se identifica ou
não com o sexo em que nasceu [sic]. Aqueles que se reconhecem de forma
diferente são chamados de transgêneros, esses não se identificam com o
gênero atribuído em decorrência do sexo biológico, considerando uma so-
ciedade que propaga a coerência sexual, em níveis de predeterminação
biológica. Em contrapartida, aqueles que se identificam são chamados de
cisgêneros, visto que, sua identidade de gênero é congruente ao seu sexo
genital. A identidade de gênero não tem relação com a orientação sexual.
As pessoas trans podem ter qualquer orientação sexual, assim como as cis.
O homem trans (FTM — female to male4) é alguém que nasceu bio-
logicamente do sexo feminino, porém se identifica com as “características
masculinas”. A mulher trans (MTF — male to female5) é alguém que nas-
ceu biologicamente do sexo masculino, porém se identifica com as
“características femininas”. O transgênero pode realizar mudanças em seu
corpo por meio da modificação dos adereços do gênero em que se identi-
ficam ou até a realização de mudanças físicas, seja com hormonioterapia
ou com as cirurgias de redesignação sexual (BRASIL, 2016).
A partir dos estudos apresentados acima, consideramos que a sexua-
lidade é parte integrante da pessoa e o indivíduo que diverge dos padrões
morais, sociais e religiosos da sociedade, que são considerados como “nor-
mais”, é colocado em segundo plano. Em razão disso, a transexualidade é
um assunto com pouca visibilidade e a trans parentalidade está sujeita ao
descaso da sociedade e do Estado.

4
FTM: é uma terminologia transgênero para aqueles que transicionam do corpo feminino ao corpo masculino.
5
MTF: é uma terminologia transgênero para aqueles que transicionam do corpo masculino ao corpo feminino.
72 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

3 Criação do SUS e direito à saúde sexual e reprodutiva

Em 2020, o Sistema Único de Saúde completou 30 anos de existência,


porém, antes de ser reconhecido como um dos maiores sistemas de saúde
pública do mundo, o Brasil era coordenado pelo Instituto Nacional de As-
sistência Médica da Previdência Social (INAMPS). Este último, beneficiava
apenas seus associados, ou seja, trabalhadores da economia formal, aque-
les que obtinham carteira assinada e seus dependentes.
Em razão disso, foi estabelecido em 1988, por meio da Constituição
Federal Brasileira, no art. 196, que a saúde é direito de todos e dever do
Estado. Assim, o SUS foi criado e institucionalizado por meio da lei
8080/90, esta regula em todo o território nacional as ações e serviços de
saúde, executados isolada ou conjuntamente, em caráter permanente ou
eventual, por pessoas naturais ou jurídicas de direito público ou privado.
O Art. 7º, capítulo II, § 1º da lei 8080, define um dos princípios do
SUS, a “universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis
de assistência”. A assistência à saúde passa a ter caráter universal, visando
atender igualmente toda a população brasileira. Outros princípios também
são características desse sistema, como a equidade e a integralidade.
Foi a partir da Declaração Universal dos Direitos Humanos e das Con-
ferências promovidas pela Organização das Nações Unidas (ONU) que os
direitos reprodutivos foram definidos. Em 1994, ocorreu a Conferência In-
ternacional sobre População e Desenvolvimento (CIPD) realizada no Cairo,
Egito, essa conferência foi uma das mais importantes para colocar em foco
a discussão a respeito do direito e da saúde reprodutiva, deixando de lado
o quesito demográfico, em uma perspectiva apenas econômica, e colo-
cando no centro a vida sexual e reprodutiva no plano político. Nessa
Conferência também foi determinado que a saúde reprodutiva é um di-
reito humano e constituinte importante para a igualdade de gênero,
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 73

colocando em pauta a igualdade e desigualdade de gênero (PATRIOTA,


1994).
A Organização Mundial da Saúde (OMS) definiu o conceito de saúde,
em 1948, da seguinte forma: “A saúde é um estado de completo bem-estar
físico, mental e social e não meramente a ausência de doença ou enfermi-
dade”. Essa definição representou um avanço, porém a partir das
resoluções da Conferência do Cairo, a saúde reprodutiva foi definida da
seguinte forma:

A saúde reprodutiva é um estado de completo bem-estar físico, mental e social,


e não simples a ausência de doença ou enfermidade, em todas as matérias
concernentes ao sistema reprodutivo e a suas funções e processos. A saúde
reprodutiva implica, por conseguinte, que a pessoa possa ter uma vida sexual
segura e satisfatória, tenha a capacidade de reproduzir e a liberdade de decidir
sobre quando, e quantas vezes o deve fazer. Implícito nesta última condição
está o direito de homens e mulheres de serem informados e de ter acesso a
métodos eficientes, seguros, permissíveis e aceitáveis de planejamento fami-
liar de sua escolha, assim como outros métodos, de sua escolha, de controle da
fecundidade que não sejam contrários à lei, e o direito de acesso a serviços
apropriados de saúde que dêem à mulher condições de passar, com segurança,
pela gestação e pelo parto e proporcionem aos casais a melhor chance de ter
um filho sadio. De conformidade com a definição acima de saúde reprodutiva,
a assistência à saúde reprodutiva é definida como a constelação de métodos,
técnicas e serviços que contribuem para a saúde e o bem-estar reprodutivo,
prevenindo e resolvendo problemas de saúde reprodutiva. Isto inclui também
a saúde sexual cuja finalidade é a intensificação das relações vitais e pessoais,
e não simples aconselhamento e assistência relativos à reprodução e a doenças
sexualmente transmissíveis. 6

Essa definição descreve homens e mulheres compreendidos como


cisgêneros. Podemos pensar em saúde reprodutiva para a população

6
Programa de Ação do Cairo, capítulo VII, parágrafo 7.2
74 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

trans? O Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos Humanos


de LGBT estabelece algumas diretrizes relacionadas aos direitos reprodu-
tivos trans:

5.40. Efetivação do Estado Laico como pressuposto para a implementação do


SUS, garantindo os Direitos Sexuais e Direitos Reprodutivos, bem como o
atendimento de qualidade e não discriminatório por orientação sexual e iden-
tidade de gênero, raça e etnia. [...]
5.44. Qualificação da atenção no que concerne aos direitos sexuais e direitos
reprodutivos em todas as fases de vida para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Tra-
vestis e Transexuais, nos âmbito do SUS; [...]
5.48. Disponibilização do acesso universal e integral de reprodução humana
assistida às Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais em idade re-
produtiva; [...]

4 O acesso à saúde para a população trans em circunstâncias legais e sociais

Conforme citado anteriormente, é fato que o Sistema Único de Saúde


é um dos maiores sistemas de saúde pública do mundo. O SUS atende mais
de 100 milhões de habitantes e oferece, de forma gratuita, exames, trata-
mentos e medicamentos específicos, além de se encarregar também pela
vigilância sanitária, entre outros serviços.
Em contrapartida, ele é constantemente submetido a um cenário ca-
ótico, visto que, a desumanização e falta de preparo dos profissionais na
hora dos atendimentos são eventos corriqueiros para a população trans,
tendo até como consequência, o abandono de tratamentos como os de
HIV/Aids (ROCON et al., 2018).
É importante lembrar que consultas urológicas e ginecológicas são
essenciais para a prevenção de doenças como câncer de próstata, mama e
colo de útero, mas o desrespeito ao nome social e a discriminação são um
dos vários fatores que tornam essa busca por atendimento médico um de-
safio para o transexual (ROCON et al., 2016).
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 75

Paralelo a isso, a Síndrome do Braço Quebrado (Trans Broken Arm


Syndrome) é uma expressão que tem sido utilizada para descrever quando
o médico presume que todos os problemas de saúde são consequências de
a pessoa ser trans. Outro fator é quando levado pelo preconceito, o profis-
sional de saúde faz associação a IST7 e até demonstra medo de tocar no
paciente, ou apenas conclui que o indivíduo está com efeitos colaterais do
PrTr8, sem ao menos entrevistá-lo. Dessa forma, a relação médico-paci-
ente é lesada e não ocorre identificação e resolução do problema
(PEREIRA; CHAZAN, 2019).
Vale ressaltar também que não são todas as mulheres que possuem
vagina, assim como homens um pênis, e por isso, deveria ser recomen-
dado questionar se o paciente pratica sexo penetrativo ou possui vida
sexual ativa.
A Portaria nº 1.820, de 13 de agosto de 2009 dispõe sobre os direitos
e deveres dos usuários da saúde e em seu artigo 4º decreta:

Art. 4º Toda pessoa tem direito ao atendimento humanizado e acolhedor, re-


alizado por profissionais qualificados, em ambiente limpo, confortável e
acessível a todos. Parágrafo único. É direito da pessoa, na rede de serviços de
saúde, ter atendimento humanizado, acolhedor, livre de qualquer discrimina-
ção, restrição ou negação em virtude de idade, raça, cor, etnia, religião,
orientação sexual, identidade de gênero, condições econômicas ou sociais, es-
tado de saúde, de anomalia, patologia ou deficiência, garantindo-lhe: I -
identificação pelo nome e sobrenome civil, devendo existir em todo documento
do usuário e usuária um campo para se registrar o nome social, independente
do registro civil sendo assegurado o uso do nome de preferência, não podendo
ser identificado por número, nome ou código da doença ou outras formas des-
respeitosas ou preconceituosas; II - a identificação dos profissionais, por

7
IST: Infecções Sexualmente Transmissíveis. Este termo é recomendado pela OMS desde 2016 uma vez que deve-se
pressupor e incluir situações assintomáticas.
8
PrTr: sigla utilizada para indicar Processo Transexualizador.
76 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

crachás visíveis, legíveis e/ou por outras formas de identificação de fácil per-
cepção; III - nas consultas, nos procedimentos diagnósticos, preventivos,
cirúrgicos, terapêuticos e internações, o seguinte: a) a integridade física; b) a
privacidade e ao conforto; c) a individualidade; d) aos seus valores éticos, cul-
turais e religiosos; e) a confidencialidade de toda e qualquer informação
pessoal; f) a segurança do procedimento; g) o bem-estar psíquico e emocional;
[...]

Do mesmo modo, a Portaria nº 2.836, de 1 de dezembro de 2011 ins-


titui ao SUS a Política Nacional de Saúde Integral LGBT. A mesma não só
garante extinguir toda discriminação para que seja mantido o respeito e a
prestação de serviços de qualidade, mas também cita o uso do nome social,
o acesso ao processo transexualizador e promete uma atenção singular à
saúde mental, de forma que essas pessoas possam receber acolhimento e
apoio.
“Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a invi-
olabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à
propriedade [...]” é o que determina o artigo 5º, caput, da Constituição da
República Federativa do Brasil de 1988. Mister entender que a supracitada
inviolabilidade não diz respeito apenas ao direito de viver, mas também o
de viver com dignidade.
Necessita-se considerar investir em uma educação profissional vol-
tada para a diversidade visto que, à luz do Princípio da Dignidade da
Pessoa Humana, a vida deve ser reconhecida e respeitada em seus aspectos
biológicos, psíquicos e sociais (DE MOURA, 2017).
O projeto de pesquisa “Corpo, Gênero e Poder, em uma interface com
o Direito”, vinculado à Universidade Federal de Mato Grosso, campus Ara-
guaia, da cidade de Barra do Garças e coordenado pelo Prof. Dr. Thiago
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 77

Augusto Galeão de Azevedo, tem como objetivo formar um espaço de re-


flexão sobre a sociedade e suas relações de poder.
Para maior visibilidade desse tema, a criação e desenvoltura de pro-
jetos como esse são de extrema importância, principalmente em
graduações voltadas à saúde, uma vez que grande parte dos profissionais
carecem de informações e tratam as pessoas LGBTQ+ de forma desrespei-
tosa. A exemplo, o Núcleo de Pesquisa e Acolhimento Trans da Faculdade
de Odontologia da Universidade Federal de Uberlândia (FOUFU) realiza
desde debates a atendimentos e ações voltadas para essa comunidade (DE
OLIVEIRA, 2019).
Uma outra ideia seria adicionar essa temática como matéria obriga-
tória já que a maioria dos cursos não possuem em sua grade curricular os
cuidados às especificidades de saúde de uma pessoa transgênera.

4.1 O processo transexualizador e as dificuldades para acessar este recurso

A realização de cirurgias de redesignação sexual, a partir de 2008, foi


considerado um grande avanço para os movimentos sociais e para a de-
mocracia participativa. A partir desse momento, foi permitida a realização
de cirurgias de modificação corporal e genital, hormonioterapia e acom-
panhamento multiprofissional. Porém, somente em 2013 que o SUS
passou a incluir homens trans e travestis, quando o Ministério da Saúde
redefiniu e ampliou o Processo Transexualizador, que está prescrito na
Portaria nº 2803, de 19 de novembro de 2013 (BENEVIDES, 2020).
A linha de cuidados para a realização do processo é estruturada por
dois componentes: a Atenção Básica e a Atenção Especializada. A básica
refere-se ao primeiro contato que a pessoa tem com o sistema de saúde,
as avaliações médicas e encaminhamentos para tratamentos específicos.
Já a especializada é dividida em duas modalidades: a Ambulatorial (trata-
se do acompanhamento psicoterápico e a hormonioterapia) e a Hospitalar
78 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

(a realização de cirurgias e acompanhamento pré e pós operatório). A


idade mínima para os procedimentos hospitalares é de 21 anos, já para os
ambulatoriais diminui para 18 (VIANA, 2018).
Entretanto, um dos motivos que dificultam o processo para muitos
trans é a existência de poucos hospitais habilitados. Estes localizam-se no
Rio de Janeiro, Recife, Porto Alegre, São Paulo e Goiânia. Ademais, Uber-
lândia, Curitiba, João Pessoa, Belém e São Paulo possuem sedes
ambulatoriais que oferecem atendimentos em áreas como endocrinologia,
proctologia, fonoaudiologia e saúde mental (VIANA, 2018).
Somado a isso, não podemos ignorar questões próprias como po-
breza, perda de laços familiares, evasão escolar e entre outros problemas
que acompanham essa minoria. Esses, não só atrapalham a realização do
processo transexualizador, como também trazem para a vida do indivíduo
consequências maiores como doenças psicológicas, uso de substâncias psi-
coativas, prostituição e até suícidio (ROCON et al., 2016). Análise esta que
será realizada a seguir.

5 Problemas sociais no âmbito trans

Em um país onde o patriarcalismo e consequentemente o machismo,


a homofobia, a misoginia e a desigualdade de gênero ainda predominam,
não seria surpresa liderar o ranking mundial de assassinato de transexu-
ais. Segundo os dados do Observatório de Assassinatos Trans9, nos
primeiros nove meses de 2020, 124 trans foram mortos no Brasil (JUSTO,
2020).
Esse cenário tem, entre muitos fatores citados anteriormente, a re-
jeição familiar, a evasão escolar e a exclusão do mercado de trabalho.

9
Trans Murder Monitoring.
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 79

O sociólogo Mannheim conceitua o controle social como “conjunto de


métodos pelos quais a sociedade influencia o comportamento humano,
tendo em vista manter determinada ordem” (1971, p. 178). Esses métodos
são nada menos que a propagação de dogmas e preceitos morais da hete-
ronormatividade, a qual considera como “anormal” qualquer ideia
contrária às categorias feminino e masculino. Dessa forma, é indiscutível
que as práticas religiosas não influenciam de forma direta na percepção da
família sobre o que deve ser aceito ou não.
Paralelo a isso, em uma estatística divulgada pelo Instituto Nacional
de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), pelo menos
410 estudantes autodeclarados transexuais estão matriculados em um
curso superior, o que equivale a 0,1% do total de 553 mil alunos de insti-
tuições federais, este estudo apresenta a resposta de 26 universidades
(GOMES; FAHEINA; KER, 2019).
O índice supracitado se justifica quando reconhecemos que a escola,
um lugar que deveria ser como segunda casa para os estudantes, na ver-
dade, é violento e excludente. Infelizmente, essa intolerância não é
corrigida pelos professores e diretores das instituições, e na maioria das
vezes, os mesmos assumem uma postura homofóbica ainda que de forma
indireta. Desse modo, se torna uma opção viável abandonar o ambiente
escolar e consequentemente não adentrar uma faculdade (LIMA; DORSA;
BORGES, 2016, p. 31-47).
A vulnerabilidade dessa minoria se apresenta também no mercado
de trabalho, o qual além de ser cis heteronormativo, e justificar que uma
pessoa trans não é o “perfil” da empresa, tem exigido curso superior ou no
mínimo, ensino médio completo. Ao contrário do que muitos pensam, a
prostituição não é necessariamente uma escolha ou a opção mais fácil.
Ninguém quer barganhar o próprio corpo para sobreviver. Entretanto,
80 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

quando se trata de pessoas que não têm ou tiveram oportunidades, a pro-


cura pela prostituição se torna atrativa (LIMA; DORSA; BORGES, 2016, p.
31-47).
Trata-se de pessoas que foram negligenciadas. Quando a família “dá
as costas”, a escola concede legitimidade às reações de ódio, o Estado não
demonstra preocupação com a incidência dessa marginalização e as tenta-
tivas de conseguir emprego são frustradas, a prostituição acaba se
tornando, muitas vezes, o único caminho.
Paradoxalmente, com uma história de superação, Ariane Senna, 25,
expõe que além de enfrentar a incompreensão do meio-irmão e do avô, foi
expulsa de casa juntamente com sua mãe e tomou como solução imediata
a prostituição. Na época foi estuprada, assaltada e até atropelada, mas en-
tendeu que só concluindo o ensino médio poderia conseguir uma vida
melhor. Segundo Senna “A juventude trans morre muito cedo porque,
quando a gente é expulsa de casa, a gente vai parar na rua” e acrescenta:
“Não te aceitam, mas vão te procurar na orla à noite”. Em 2016, Ariane se
tornou a primeira psicóloga transexual de Salvador e ainda recebeu certi-
ficado de honra ao mérito por ser classificada como a melhor da turma.
“Nos negam acesso ao trabalho, à saúde, à segurança, à educação. É como
se não existíssemos. Mas estamos aqui.” (IKEMOTO, [entre 2017 e 2020]).

6 Desconstrução da parentalidade trans

Como mencionado anteriormente, a dignidade da pessoa humana é


um direito fundamental garantido pela Constituição. Dentre os inúmeros
conceitos dados a esse princípio, compreende-se que todas as pessoas são
detentoras de igual dignidade, independente de raça, gênero, nacionali-
dade, religião e entre outras características (DE ANDRADE, 2008). A partir
dessa ótica que o direito à liberdade é conceituado como primordial, com
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 81

a intenção de que o indivíduo exerça seus direitos civis e realize suas pró-
prias escolhas e projetos de vida, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos no artigo 1º determina: “Todos os seres humanos nascem livres
e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência,
devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
Desse modo, compreendendo a dignidade da pessoa humana e o di-
reito à liberdade, toda a sociedade tem autonomia para constituir outros
modelos de entidade familiar sem a interferência dos demais. Porém, ape-
sar de a lei ter como um dos seus pilares, a igualdade entre os seres
humanos, seria a dignidade do casal transgênero também respeitada e
compreendida socialmente?
O planejamento familiar é fundado nos princípios da dignidade da
pessoa humana. O art. 2 da lei nº 9.263/96 regulamentou o mesmo como
“o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos
iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo
homem ou pelo casal”. É por meio dessa lei que são garantidos os acessos
igualitários à informações e meios para ser exercida a parentalidade res-
ponsável.
É fato que ser trans não é uma escolha e ao se assumir, a pessoa está
apenas exteriorizando a sua verdadeira identidade. Desse modo, a partir
do momento em que o corpo masculino engravida, as normas da socie-
dade, as quais estão habituadas a associarem o corpo grávido à imagem
feminina, são desafiadas. Diante disso, mesmo o respeito à dignidade e à
liberdade serem assegurados a todos, de nada adianta enquanto ainda
houver segmentos alvos da exclusão social e de um tratamento desiguali-
tário (DIAS, 2007), uma vez que, em uma sociedade hetero cisnormativa,
grande parte da população acredita que essas pessoas não são capazes de
cuidar de uma criança e irão influenciá-las a não seguirem o modelo hete-
rossexual.
82 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Trata-se de uma afirmação completamente contrária à realidade, afi-


nal de contas, a orientação sexual não é uma escolha do indivíduo,
ninguém opta por qual gênero sente atração afetiva e sexual. De acordo
com Vencato “Tendemos a interpretar aquilo que não (re)conhecemos
como que pertencente à ordem do estranho, do esquisito, do inadequado,
do errado, e que pode e deve ser excluido, afastado ou, mesmo, eliminado.”
(2014, v. 1, p. 22).
Nesse ponto de vista, João W. Nery, conhecido como o primeiro ho-
mem trans operado no Brasil, conta em suas biografias a dificuldade que
foi para conseguir exercer a parentalidade, pois a equipe médica não acre-
ditava que um homem transexual pudesse ser pai de um filho saudável.
No texto “De viagem solitária ao ativista”10 João revela como foi exercer a
parentalidade responsável (NERY, 2014, p. 1):

Aos 37 anos, assumi a paternidade da gravidez da minha mulher e conto para


o meu filho, na época com 13 anos, a minha história, o que nos aproximou
mais. Hoje ele está com 26 anos, possui nível superior de escolaridade, traba-
lha e é casado com uma mulher. Fatos que desmistificam que pais transexuais
não podem ter filhos saudáveis.

Não podemos esquecer que com base no movimento feminista e na


luta das mulheres para conquistar espaço na sociedade que questões
como: o direito ao próprio corpo, autonomia para escolher entre exercer
ou não a maternidade e a legalização do aborto entraram em debate.
Apesar do feminismo ter como essência a sororidade e a união entre
as mulheres, algumas feministas radicais ainda acreditam que a participa-
ção das mulheres trans nos manifestos feministas estaria perdendo o foco

10
Texto parcial da palestra apresentada durante o 7º Seminário Internacional de Bibliotecas Públicas e Comunitárias
em novembro de 2014.
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 83

do movimento e reforçaria os estereótipos de gênero (LUPPI, 2019). Con-


tudo, o movimento trans também faz parte dessa luta, uma vez que, todas
as mulheres são constantemente oprimidas pelo machismo, incluindo as
mulheres trans, e os homens trans também abortam, assim como as mu-
lheres cis. Nesse sentido, a luta contra a transfobia também faz parte do
movimento feminista e o movimento trans é um aliado, o qual, também
luta contra o machismo e toda forma de opressão.
Um dos assuntos em que o feminismo e o movimento trans estão
interligados é o aborto. A interrupção da gravidez na mulher cis é um tema
bastante polêmico que diverge opiniões, já nos homens trans é um tema
com pouca visibilidade, mas que se encontram diversos relatos na internet.
O instituto feminista AzMina11 disponibilizou um relato de autoria desco-
nhecida, em sua revista digital, de um homem trans que engravidou e
realizou um aborto após ser vítima de um estupro coletivo. Nesse relato,
ele conta como foi suportar o preconceito em sua universidade, aguen-
tando perseguições e piadas diariamente, e diz que, após sair da aula à
noite, cinco homens o agrediram e estupraram, emitindo frases como:
“Vou te mostrar que você é mulher”, “Vou te corrigir”. Um mês após o
acontecimento percebeu mudanças em seu corpo e descobriu que estava
esperando um bebê. Em seu relato ele afirma que:

Eu tinha vergonha de sair, tinha vergonha de pedir ajuda. Como entrar numa
delegacia pra registrar o estupro? Eu, com um corpo de homem, mas com uma
vagina. Eles iam rir da minha cara. Não fui à Polícia, não fiz exame de corpo-
delito, não fui a um médico. [...] Não tinha a quem recorrer, me sentia com-
pletamente só. Precisava interromper aquela gravidez, e não via uma saída
[...] Fui salvo por uma rede de apoio a lésbicas e mulheres bissexuais. Consegui
tomar um remédio abortivo e dei fim àquele sofrimento. [...] Penso em quem

11
Relato de autoria desconhecida fornecido pela Revista AzMina, em 22 de setembro de 2017.
84 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

não conseguiu ajuda como eu. Em quem morre em clínicas clandestinas, san-
grando, em quem sofre na mão de bandidos que vendem remédios falsificados,
em quem não consegue interromper uma gravidez indesejada. Os que vocife-
ram contra a legalização do aborto jogam pesado. Mas essa é uma guerra sem
vencedores.

No Brasil, o aborto é considerado legal por meio do artigo 128 do De-


creto Lei nº 2.848 de 07 de dezembro de 1940, em casos de aborto
necessário, quando não há outro meio de salvar a vida da gestante, e o
aborto no caso de gravidez resultante de estupro.
Nesse caso explícito acima não houve a execução desta lei, em razão
de a vítima não se sentir confortável para registrar o ocorrido na delegacia.
Porém, é evidente a similaridade dessa circunstância com os casos de es-
tupro e aborto que ocorrem com as mulheres cis. Situações como essas
que desencadeiam o medo no cotidiano das mulheres e que fazem com que
elas tomem um cuidado redobrado, temendo que isso ocorra com elas.

Considerações finais

Colorir
Faltará tinta
No dia que o céu for livre
Pra todos serem o que são
Cobertos pelo sol, sem nenhum tipo de opressão
Faltará nomes
Pra descrever o mundo sem as misérias
O que sentimos, o que nos tornamos
O novo ser sem medo de viver
Faltará a falta que nos entristece
Que hoje enche o peito de vazio e fumaça
Não faltará amor, não faltará sonhos
O novo mundo se abrirá para o futuro
Onde o presente dominará o passado
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 85

E nossos corações enfim serão salvos


(Virgínia Guitzel)

O presente artigo teve como objeto de estudo o acesso à saúde para


transexuais e a aplicabilidade do Direito, sustentando a ideia que o mesmo,
ainda que crie leis e portarias, não consegue garantir que a medicina deixe
de ser transfóbica.
Além disso, analisou-se desde rejeição familiar à desconstrução da
parentalidade trans. Tal problemática é um tema de grande relevância so-
cial mas que paradoxalmente encontra-se poucas informações a respeito.
Trata-se de um assunto considerado um tabu, o qual nenhum dos fatores
supracitados são capazes de justificar tamanha exclusão.
Nas pesquisas realizadas para a execução deste, foi explícito a neces-
sidade de buscar semelhanças em documentos preexistentes para que
sejam resguardados os direitos reprodutivos dos transexuais. Não existem
leis específicas sobre esse assunto nos textos oficiais e conforme exposto,
os direitos sexuais e reprodutivos dessas pessoas são garantidos apenas
por meio de portarias.
Trata-se de uma imensa falha do Estado, uma vez que as portarias
têm valor inferior às leis e decretos-lei. Entretanto, entende-se que políti-
cas públicas voltadas para transgenêros muitas vezes são impedidas pela
resistência de grupos, principalmente, os religiosos.
Vê-se, pois, que esse assunto abrange pouca visibilidade à custa da
discriminação estrutural presente na sociedade e dessa forma, para a rea-
lização do exposto, foram encontrados poucos dados sobre essa temática,
sendo necessária a sua extensão. Buscou-se, assim, aprofundar nesse pro-
blema e nos temas relacionados a ele a fim de que novas pesquisas sobre
esse conteúdo sejam encontradas mais facilmente em todos os veículos de
informação.
86 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

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Capítulo 4

O acolhimento das mulheres transgênero


nas delegacias especializadas no atendimento à mulher
de Cuiabá, Várzea Grande e Barra do Garças:
uma análise do controle sobre os corpos diversos

Gabriella Leite de Barros 1


Camyla Galeão de Azevedo 2

1 Introdução

As Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher foram criadas


em 1985, no estado de São Paulo, por ideia da Secretaria de Segurança
Pública e sancionada pelo então Governador do Estado Franco Montoro.
No mesmo ano, o Governo de Mato Grosso se apropriou da ideia, e em
poucos meses a primeira DEAM de Mato Grosso já estava inaugurada,
sendo o segundo estado a adotar tal política, que aqui passou a ser cha-
mada de DEDM – Delegacia Especializada de Defesa da Mulher.
A Assembleia Legislativa de Mato Grosso elaborou a Lei n° 4.965/85,
que dispõe sobre as Delegacias Especializadas da Mulher. Mencionada lei
não foi alterada desde sua publicação, permanecendo como embasamento
até os dias atuais para o funcionamento de diversas delegacias. A Lei n°
4.965/85 antecede à criação da Constituição Federal que rege este país, em
vigor desde 1988.
Ocorre que, em termos gerais, diante de denúncias em órgãos esta-
tais e escândalos midiáticos, o atendimento às mulheres ‘trans’ nas

1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso. Integrante dos Projetos de Pesquisa Gênero,
Identidade e Sexualidade; e Corpo, Gênero e Relações de poder, em uma interface com o Direito.
2
Doutoranda em Direito pela UFMG; Mestra em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional – CESUPA.
Pós-graduanda em Direito Civil pela PUC-MG. Advogada. Assessora Jurídica.
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 91

Delegacias de Atendimento à Mulher tem sido negligente na maioria das


Delegacias Especializadas do Estado de Mato Grosso, considerando que al-
gumas tampouco aceitam realizar os procedimentos necessários com
mulheres travestis e transexuais. Dessa forma, como problemática desta
pesquisa, questiona-se: em que medida o Estado, representado pelos mu-
nicípios de Cuiabá, Barra do Garças e Várzea Grande, mediante as
Delegacias Especializadas no Atendimento à Mulher, exerce controle e li-
mitação sobre os corpos de mulheres transgênero?
Objetiva-se avaliar a eficiência que as Delegacias de Atendimento à
Mulher possuem no que tange ao acesso enquanto equipe multidisciplinar
e demais procedimentos necessários às ‘trans’, bem como interpretar a
condição destas mulheres em meio às políticas disponíveis para as mulhe-
res cisgênero vítimas de violência e relacioná-las. Ademais, abranger
análise assertiva sobre a capacitação e preparo das DEAMs dos municípios
em receber o feminino enquanto gênero.
O trabalho realizado em rede, com um conjunto de instituições dis-
poníveis para auxiliar a comunidade LGBTQIA+, é de extrema relevância
para a garantia de direitos desse grupo vulnerável, tema que será discutido
no decorrer desta pesquisa.
Diante disso, supõe-se, como hipótese, que as DEAMs das três men-
cionadas cidades não estão sendo solícitas com as mulheres transgênero
em razão da falta de capacitação das (dos) agentes e entes públicos. Tam-
bém, pressupõe-se que não há total eficiência nessa política pública para
corpos ‘trans’, tampouco disposição de rede multidisciplinar para atendê-
las. Em última hipótese, presume-se que uma das soluções possíveis para
a problemática tratada seria a alteração da Lei 4.965/85. Tal alteração des-
continuaria as negligências tratadas.
Metodologicamente, utilizar-se-á a análise bibliográfica para cons-
truir investigação embasada e delimitar o objeto de estudo. Outrossim,
92 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

uma entrevista semiestruturada fora realizada remotamente, em razão da


pandemia do Coronavírus, a fim de averiguar a atual situação da institui-
ção estudada e, partir daí, fazer a análise do conteúdo. Escolheu-se a
contribuição da teoria de Michel Foucault para enxergar e entender os fe-
nômenos a seguir relatados. Severiano (2016) elucida que, para
compreender a multiplicidade das relações de poder, é preciso se despir de
uma série de valores, julgamentos e certezas que, ao longo do tempo, nos
acompanham. O filósofo atribuiu novas disposições acerca das relações de
poder e da sexualidade dos indivíduos, estudos essenciais para a conclusão
da presente pesquisa.
Para tanto, em um primeiro momento, optou-se por construir as ba-
ses teóricas do artigo, relacionando os problemas de gêneros, a
transexualidade e, depois, a teoria de Michel Foucault como norteadora
para este balanço. Nas próximas seções, escritos referentes à pesquisa re-
alizada nas delegacias, suas problemáticas e desdobramentos. Por fim, a
análise conclusiva dos fenômenos observados.

2 A construção de gênero e a identidade transexual

A violência doméstica no Brasil alcança números acima da média


mundial, como divulgado pelo Senado Federal em dezembro de 2019, que
expõe aumento percentual de 284% dos casos de agressão de ex-compa-
nheiros entre 2011 a 2019. Outrossim, o Mapa da Violência (2015), revela
o país como ocupante da quinta posição quando se trata de feminicídios.
As mulheres estão sujeitas a um sistema sexista, patriarcal e capitalista que
as nega direitos materiais fundamentais.
Simone de Beauvoir (2016) busca entender, como sua questão pri-
mordial, de onde vem a submissão da mulher. A construção do ‘ser
mulher’ é advinda da concepção do ‘ser homem’; a classificação existente
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 93

de um depende do outro. É com essa ideia de que o gênero feminino cons-


titui-se ‘o Outro’ que a filósofa existencialista se preocupa em achar
explicações para a condição feminina ao logo dos séculos. A partir dos da-
dos da ciência biológica, a autora enuncia que as especificações fisiológicas
reprodutivas não justificam referida submissão, tendo em vista que os ga-
metas dos dois sexos são interdependentes e coexistem se
complementando. As diferenças biológicas são fatos, e não são suficientes
para entender a supremacia masculina.
Valendo-se da reconstrução histórica, Beauvoir estuda as relações das
civilizações primitivas e a construção do sistema que veio se entender por
‘patriarcado’. O papel da maternidade, apesar de importante e sagrado
para algumas sociedades antigas, não garantiu a soberania feminina. A
mulher, mesmo nas civilizações que muito a valorizava, não fora protago-
nista na maioria das vezes. A força física, diretamente ligada com a caça,
conferia valores diferenciados ao homem. Ao longo da história, o feminino
não pôde experimentar autonomia plena, já que o masculino não reconhe-
ceu a mulher como semelhante. O casamento, instituição primordial para
entender o patriarcado, proporcionou às mulheres um espaço cada vez
mais restrito e confinante. O lar, marido, os filhos e filhas, deveriam ser as
prioridades de uma mulher. O mercado de trabalho, quando era uma op-
ção, se mostrava sob condições precárias, mão de obra barata e longas
jornadas. Outrossim, a religião, historicamente, é um dos institutos res-
ponsáveis por tolher o exercício da sexualidade feminina. A construção
bíblica da mulher como pecadora (Eva) e, em contraposição, da virgem e
santificada (Maria), expõe a criação de tabus e expectativas sobre as atitu-
des esperadas de uma mulher, como a pureza.
No panorama político-social do século XX e XXI, a nova realidade não
deixou de ser machista, mas progressos políticos como o sufrágio marca-
ram a nova condição da mulher nos espaços. Posteriormente, quando
94 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Simone de Beauvoir trabalha a figura da mulher lésbica, entende que a


homossexualidade é a prova que o desejo não é definido somente pela ge-
nitália, o que a faz pensar contrariamente aos enunciados formulados por
homens de que, nesse caso, o desejo é orientado pela ‘inveja do masculino’.
As diferentes mulheres passam por situações diversas, e o estudo da opres-
são da mulher não pode ser homogêneo, e nem só percebido em relação à
uma área, mas levando em consideração vários fatores.
Heleieth Saffioti (2015) conceitua a exploração sob perspectiva am-
pla, que abrange raça, etnia, poder, patriarcado e gênero. A violência
contra a mulher em todas as suas formas perpassa por tais marcadores. O
uso do gênero não deve excluir o uso do patriarcado, estes podem traba-
lhar em conjunto, e são imprescindíveis para elucidar a submissão da
mulher. As pessoas são socializadas para manter o pensamento machista,
classista, e sexista estabelecido gradativamente pelo sistema patriarcal de
poder. Não só os homens, mas as mulheres reproduzem tal ideologia. Sa-
ffioti analisa fenômenos como o feminicídio e a violência doméstica sob a
ótica do capitalismo, que se mantém por processos de dominação-explo-
ração. A sexualidade, o corpo, e o aborto são comparados a depender da
posição que a mulher ocupa frente à uma sociedade heteronormativa e em
que a branquitude detém o poder. O trabalho da autora em relação à con-
ceituação de patriarcado é essencial para desenvolver pensamento crítico
da vivência de mulheres cisgênero ao longo da história.
Os problemas envolvendo o gênero são fundamentais para dar intro-
dução à condição das mulheres transexuais. A socialização da mulher
‘trans’ perpassa diretamente as condições em que as mulheres ‘cis’ vivem.
Berenice Bento (2012) discorre sobre o mecanismo de poder que pessoas
‘trans’ experimentam:
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 95

O sistema binário (masculino versus feminino) produz e reproduz a ideia de


que o gênero reflete, espelha o sexo e que todas as outras esferas constitutivas
dos sujeitos estão amarradas a essa determinação inicial: a natureza constrói
a sexualidade e posiciona os corpos de acordo com as supostas disposições
naturais. (BENTO, 2012, p.17)

A mulher transgênero está inserida em uma essencialização das iden-


tidades e critérios de normalidade e anormalidade. Os determinismos,
estereótipos e performances que transpassam as mulheres transexuais de-
monstram uma sociedade pautada em dimorfismos e idealizações. A
quebra da causalidade entre sexo/gênero/desejo desnuda os limites de um
sistema binário assentado no corpo-sexuado (BENTO,2012). Além de sen-
tir muitos dos preconceitos advindos de um sistema patriarcal, elas
suportam o ‘fardo’ de fazer parte da comunidade LGBTQIA+ em um país
extremamente intolerante com a diversidade, e que se desenvolve a partir
de práticas heterocisnormativas.
De acordo com o Dossiê Assassinatos e Violência Contra Travestis e
Transexuais Brasileiras em 2019, divulgado pela Associação Nacional de
Travestis e Transexuais do Brasil (ANTRA), os números asseguram ao
Brasil o 1º lugar no ranking dos assassinatos de pessoas ‘trans’ durante os
últimos 10 anos. Portanto, vê-se a necessidade de políticas públicas bem
articuladas por parte dos Poderes, que possam auxiliá-las e reparar mini-
mamente esse grupo vulnerável, com o intento de proporcionar um
sistema democrático em que um é igual a um formal e materialmente. Esta
é uma das prerrogativas que as DEAMs devem atentar-se.

3 O dispositivo da sexualidade à luz de Michel Foucault

Para compreender o cenário hodierno a que estão expostas as mu-


lheres transgênero, revisitar Michel Foucault, in História da Sexualidade:
a vontade de saber (2019) é caminho fundamental. Através de seus estudos
96 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

acerca da psiquiatria, direito, medicina e diversas ciências, o filósofo expõe


ideias novas de como se articula o poder na sociedade através dos séculos.
Iniciando pela Era Vitoriana, Foucault explica que o século XVII era feito
de ‘certa franqueza’. Era possível notar discursos e atos deliberados visi-
velmente despreocupados. Não existia vergonha, tampouco incômodos ao
se falar de assuntos tidos hoje como ‘inapropriados’. Contudo, a mudança
do poder político monárquico para uma burguesia mercantil, e o período
inicial do que se entende hoje por capitalismo, também organizou nova
forma com que as relações sociais se articularam.
O século XVIII fora decisivo para a instauração da maneira de pensar
a sexualidade que ainda vigora. A burguesia, agora detentora do poder
econômico e social, tratou de encerrar cuidadosamente os discursos antes
reproduzidos. A instituição familiar, a partir daí, se torna responsável ape-
nas pela reprodução, e a figura do casal legítimo se instala: homem e
mulher heterossexuais, religiosos e dispostos à gerar vidas. O poder e a
verdade estabelecem uma lógica de controle. A consequência é clara, a cri-
ação de indivíduos marginalizados em razão de daquilo que não mais
poderia ser discutido amplamente: o sexo.
A Contrarreforma, nesta época, provocou a proliferação dos discur-
sos sexuais por meio da ferramenta da ‘confissão’, importantíssima para
que o sexo e a sexualidade começassem a ser enxergados e praticados com
base na culpa cristã, e mais, que tais assuntos fossem discutidos e empre-
gados somente em meios destinados a eles:

O cerceamento das regras de decência provocou, provavelmente, como con-


traefeito, uma valorização e uma intensificação do discurso indecente. Mas o
essencial é a multiplicação dos discursos sobre o sexo no próprio campo do
exercício do poder: incitação institucional a falar do sexo e a falar dele cada
vez mais; obstinação das instâncias do poder a ouvir, falar e fazê-lo falar ele
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 97

próprio sob a forma da articulação explícita e do detalhe infinitamente acu-


mulado (FOUCAULT, 2019, p.20).

O sistema da confissão, realizado pelas instituições da Reforma Pro-


testante, foi responsável pela multiplicação dos dizeres sobre o sexo, mas
não de forma deliberada. O sexo, agora, faz parte de um mecanismo de
poder vigiador, reprodutor e, principalmente, religioso. Dessa forma, o
ocidente coloca um imperativo sob os indivíduos, que incita o dizer tudo
sobre seu sexo, para assim, produzir a verdade e o poder sobre os mesmos.
Assim, Foucault expõe como essa nova técnica começou a se relacionar:

Uma das grandes novidades nas técnicas de poder, no século XVIII, foi o sur-
gimento da ‘população’ como um sistema econômico e político: população-
riqueza, população de mão de obra ou capacidade de trabalho, população em
equilíbrio entre seu crescimento próprio e as fontes de que dispõe. Os gover-
nos percebem que não têm de lidar simplesmente com sujeitos, nem mesmo
com um ‘povo’, mas com uma ‘população’, com seus fenômenos específicos e
suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança de vida, fecundi-
dade, estado de saúde, incidência das doenças, forma de alimentação e de
habitat (FOUCAULT, 2019, p. 28).

Paulatinamente, as pessoas puderam vivenciar o surgimento do po-


der disciplinar e da biopolítica das populações, dois fenômenos
constituintes do biopoder. Por certo, com o fim do poder soberano, aquele
presenciado durante os regimes monárquicos, a população começa a ser
regida por mecanismos de poder ainda mais abrasivos e, ao mesmo tempo,
mais difíceis de serem detectados. Trata-se de um poder que ‘’ causa a vida
ou devolve a morte’’ (GALEÃO DE AZEVEDO, 2016). Gradativamente, é o
casal identificado como heterossexual e gerador de filhos que dita a lei, e
se torna o padrão a ser almejado. O sexo não fora reprimido, mas sim in-
citado e saturado pelo dispositivo da sexualidade, que regula o mesmo
98 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

através de suas instituições. Os indivíduos, agora, são regulados e contro-


lados por intermédio da biologia, psiquiatria, escola, família, dentre outras
organizações, das quais uma merece especial destaque na presente pes-
quisa: o Direito, possuindo formas de exercer seu domínio.
De acordo com Foucault, sustenta-se que a maneira com que referido
poder se manifesta taticamente na sociedade é por meio de práticas jurí-
dico-discursivas, ou seja, o Direito é mecanismo responsável por ditar, por
lei, o sexo e suas relações. Estabelece-se o lícito e o ilícito, o permitido e o
proibido. Se cuida de um poder essencialmente jurídico, baseado no enun-
ciado da lei e na interdição (GALEÃO DE AZEVEDO, 2016). O sexo se
decifra a partir de sua relação com a lei, fazendo sua regra e regulação.
O dispositivo da sexualidade é um dispositivo histórico, uma grande
rede da superfície em que a estimulação dos corpos, incitação dos discur-
sos, intensificação dos prazeres, dentre outros fenômenos, juntam-se uns
aos outros, segundo algumas grandes estratégias de saber e de poder
(FOUCAULT, 2019). Vale ressaltar que a família, sendo uma das institui-
ções que perpetuam tais relações de poder, possui papel fundamental em
relação à reprodução de práticas e estereótipos, além de ser a precursora
do dispositivo da sexualidade a partir de dimensões como as relações ma-
rido-mulher, pais-filhos. A entidade familiar aparece como crucial no
desenvolvimento do dispositivo, a responsável por transportar a lei e a di-
mensão do jurídico para o dispositivo da sexualidade (GALEÃO DE
AZEVEDO, 2016). Portanto, as figuras da mulher nervosa, do homem sá-
dico e perverso, da criança precoce sexualmente e do jovem identificado
como homossexual rondaram e rondam o círculo familiar, gerando novos
tipos de relações que alimentam o dispositivo que controla o poder.
Além de eixos centrais dessa nova tecnologia, como a Medicina, Pe-
dagogia e a demografia, que instituem a ‘normalidade’ e classificam os
indivíduos, o Direito possui a função do aval, de deliberar o que permitido
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 99

e proibido na sociedade e, consequentemente, o que moral/ imoral, le-


gal/ilegal. Por certo, a ciência jurídica molda os indivíduos, e caminha
conforme a ideologia dominante que ronda a tecnologia. O Direito é um
dos elementos do biopoder, assim como o poder e a verdade.
O Direito é atravessado pelo poder normativo em sua construção, e
essa relação social define seu contexto. A norma sempre produz efeitos, e
estes se deslocam e perpetuam-se entre os indivíduos. A entidade estatal,
manifestada na presente pesquisa pelas Delegacias de Defesa da Mulher,
precisa estar funcionando em acordo com as normas disponíveis e respon-
sáveis, e estas, por sua vez, são regidas por algo exterior: o dispositivo da
sexualidade. Portanto, observa-se que as leis e as instituições incumbidas
presentes no ordenamento brasileiro também são produtos de misoginia,
racismo, transfobia e etc.
Apesar de serem fundamentais no contexto hodierno, precisam ser
analisadas com certa criticidade. A implementação de políticas públicas fa-
voráveis ao grupo LGBTQIA+ separa, distancia e classifica essas pessoas
como diferentes, em meio à uma sociedade violenta com as mesmas. Em
razão da vulnerabilidade, são necessárias delegacias, núcleos jurídicos, va-
ras, dentre outras medidas, que sejam especializadas em atender
agrupamentos sociais que não possuem igualdade, visibilidade e tampouco
espaço político. Algo que, no momento, é paliativo, no futuro precisa ser
superado. Dessa forma, as pautas identitárias são classificantes de indiví-
duos, e isso recai sobre a figura do feminino e seus respectivos dogmas:

O masculino como perfeito, como arrazoado. O feminino como o perverso,


inverso, ausência, incompletude. Diante de sua perfeição, o problema estaria
na irradiação do feminino no masculino, sendo encarada como uma contami-
nação, que, por via da consequência, deveria ser controlada, gerenciada. Um
100 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

gerenciamento dos desvios sexuais efetivado pela criação das identidades se-
xuais desviantes. Aquilo que é anormal deve ser identificado e nomeado, por
ser administrado, controlado (GALEÃO DE AZEVEDO, 2016, p. 168).

A transexualidade, por performar e se conectar com o feminino, pos-


sui diretamente sua marginalidade multiplicada. As mulheres ‘trans’ e
travestis, ao chegarem em uma delegacia, primeiro precisam se distinguir
como transgênero, para depois possuírem seus direitos de fato, se conse-
guirem os pleitear. Identifica-se os sujeitos através de suas práticas
sexuais, primordialmente. Ressalta-se que o recorte de raça e classe é in-
dispensável, também, para entender como o dispositivo da sexualidade
opera com as ‘trans’.
A marginalização das mulheres transgênero é um fenômeno intrín-
seco à suas vidas. Trata-se de uma problemática social, econômica e
política. Se rebelar contra o dispositivo da sexualidade, atravessá-lo, se
desviando do padrão médico, biológico, jurídico-discursivo e familiar é ‘in-
fringir’ o que está posto como ‘normal’ na sociedade, é praticar a
resistência. O papel da ciência jurídica em meio a isso é construir o ‘’ di-
reito novo’’, que se liberte de si mesmo, que seja um instrumento de
emancipação dos indivíduos. Que conceda garantias, mas que, para isso,
não precise os restringir a ideia de uma falsa liberdade sexual (GALEÃO
DE AZEVEDO, 2016).
Assim, analisar-se-á a realidade de algumas das Delegacias da Mulher
de Mato Grosso para vislumbrar a tríade Poder, Verdade e Direito ope-
rando no cotidiano, através de mecanismos simples e quase imperceptíveis
inseridos na lógica de poder, que implica no funcionamento da ciência e
sistema jurídico. Lógica esta que, através dos séculos, remodela o sistema
de confissão incidente sobre o sexo e nos faz refém do discurso dominante.
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 101

4 Percepções acerca das delegacias especializadas de atendimento à


mulher de Cuiabá, Várzea Grande e Barra do Garças

A seguir, serão apresentadas as concepções e entendimentos acerca


das Delegacias da Mulher das três cidades pesquisadas. Notou-se que a
entidade, em cada município, possui maneiras diferentes de conduzir o
trabalho de atendimento, com projetos locais que auxiliam as mulheres.
Com a ausência de padronização, pontos positivos e negativos das políticas
adotadas serão analisados.

4.1 Delegacia da mulher de Cuiabá e demais problemáticas relacionadas à


Lei Maria da Penha e rede multidisciplinar

Cuiabá é uma capital que conta com ampla estrutura para o amparo
às mulheres vítimas das mais variadas violências cotidianas. A rede de en-
fretamento multidisciplinar está à disposição das mulheres com Casa
Abrigo, atendimento psicossocial, Núcleo de Defesa da Mulher da Defen-
soria Pública, Secretaria Municipal da Mulher, Conselho Municipal dos
Direitos da Mulher, dentre outras entidades.
A Lei Maria da Penha, em seu artigo 5°, foi a primeira norma da fe-
deração a reconhecer uniões homoafetivas como legítimas para fins de lide
processual, estabelecendo relações de orientação sexual e gênero como de-
terminantes e importantes na sociedade. Por essa e outras razões,
mencionada lei foi classificada pela Organização das Nações Unidas (2009)
como uma das três legislações mais avançadas do mundo no que diz res-
peito ao enfrentamento da violência contra as mulheres.
Na mesma norma, cuida-se dos procedimentos necessários para aco-
lher mulheres vítimas de violência nas Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher, consoante, sempre, com a utilização da Lei Maria
da Penha como diretriz para o funcionamento da instituição.
Diante dessa disposição, uma análise qualitativa de conteúdo para in-
terpretar o fenômeno se mostra necessária, já que tem-se que tomar nota
102 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

da realidade dos fatos, a partir de algo que, formalmente, já existe. Para


tanto, utilizou-se de uma entrevista, a fim de demonstrar experiências vi-
venciadas pelas transexuais na instituição. Realizado por esta
pesquisadora remotamente, em razão de a presente pesquisa ter sido de-
senvolvida durante a pandemia do Coronavírus, o diálogo foi agendado via
rede social, bem como realizado por ligação telefônica gravada, com dura-
ção de 12 minutos, no dia 9 de dezembro de 2020. Para a coleta de
informações, a técnica foi semiestruturada, não se constituindo em um
questionário fechado. Tal perspectiva fora tomada a partir do entendi-
mento de não retirar a liberdade e espontaneidade da entrevistada, bem
como de compreender o objeto de pesquisa como um assunto amplo
(AZEVEDO, C.G., 2020).
Não serão divulgados dados pessoais, mas sim nome fictício para a
entrevistada. Débora, (nome fictício) é mulher travesti, ativista LBGTQIA+
e advogada.
A partir da transcrição do diálogo, analisou-se excertos que demons-
tram a vivência de mulheres transgênero na Delegacia da Mulher do
município. Débora demonstra em sua fala que, ao seu ver, a referida dele-
gacia, ao invés de amparar mulheres ‘trans’ em situação de violência, se
recusa à atendê-las por considerar uma narrativa de gênero biológica, se
referindo à lei estadual da criação das Delegacias da Mulher como justifi-
cativa para a negativa. A Lei 4.965, publicada em 1985, é a legislação que
rege as DEAMs de Mato Grosso, as conferindo andamento:

Muitas meninas, a gente, analisando a conjuntura atual, as pessoas ‘trans’, elas


passaram a procurarem a polícia, procurarem a justiça, né. Não é uma questão
de que aumentou a violência, é que esses sujeitos e essas sujeitas começaram
a buscar os seus direitos após a violação, né (...) então, em especial, as pessoas
‘trans’ buscam a Delegacia da Mulher, e eu ressalto que, do Estado do Mato
Grosso, uma das poucas delegacias que se recusam a atender às mulheres
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 103

‘trans’ é a Delegacia da Mulher do município de Cuiabá, ao qual a delegada


titular se embasa numa lei de criação, uma lei que é mais antiga que a Consti-
tuição né, se baseia nessa lei para desamparar as pessoas ‘trans’ que buscam
o atendimento na Delegacia da Mulher né, afirmando que o atendimento na
delegacia, ele é feito através do órgão genital né.

Em seu artigo terceiro, o texto da lei se utiliza do termo ‘sexo femi-


nino’ para designar as pessoas a quem a investigação e apuração das
Delegacias da Mulher devem se cuidar.3 À vista disso, percebe-se que tal
expressão é usada como justificativa para o não atendimento completo das
mulheres transgênero. Trata-se de uma consequência de um pensamento
conservador em uma sociedade que, formalmente, garante direitos equâ-
nimes, mas não na materialidade. Constituem-se discursos
heterocisnormativos, binários e difusos pela construção moral da moder-
nidade. A ideia de feminino e masculino está inserida em uma lógica de
poder que constrói a verdade sobre a sexualidade (GALEÃO DE AZEVEDO,
2016).
Levando em consideração que mencionada norma foi publicada há
mais de 30 anos, é preciso entender que, naquela oportunidade, não existia
a compreensão necessária de termos como ‘gênero’, ‘orientação sexual’ e
demais terminologias que hoje são utilizadas para diferenciar as vivências
de diferentes grupos. Entender o contexto político-social e saber interpre-
tar uma lei é um exercício obrigatório para os aplicadores a aplicadoras do
Direito.
A entrevistada, quando questionada acerca dos procedimentos reali-
zados na delegacia e os tratamentos dados às mulheres transexuais,
responde:

3
Art. 3 – A Delegacia Especializada de Defesa da Mulher cabe a investigação e apuração dos delitos de autoria conhe-
cida, incerta ou não sabida, contra a pessoa do sexo feminino, previstos na Parte Especial, Título I, Capítulo II e Seção
I e Título VI do Código Penal Brasileiro, ocorrido no Município da Capital, concorrentemente com as Delegacias
Municipais e Distritais.
104 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

(...) Elas chegam na Delegacia, são atendidas, é registrada a queixa, mas, no


momento do desandar do inquérito, que deveria ser dado pela Delegacia da
Mulher, pela especificidade do caso né, essa delegada encaminha para a Dele-
gacia de Proteção à Pessoa né, que não...Como se não fosse o foro da Delegacia
da mulher. Então ela faz o atendimento, registra a ocorrência, mas não pede
medida protetiva através da Delegacia para o juiz né.

Vê-se que o atendimento das mulheres travestis e transexuais não é


feito de maneira equânime em relação às mulheres ‘cis’, e recai sobre todo
o processo judicial. O encaminhamento do inquérito para a Delegacia Es-
pecializada de Homicídios e Proteção à Pessoa de Cuiabá faz com que as
mulheres ‘trans’ tenham direito à medida protetiva, mas não aos auxílios
psicossociais fornecidos às vítimas amparadas pela Lei Maria da Penha.
Não reconhecer a necessidade de atenção à vulnerabilidade da mulher
transgênero demonstra o controle sobre os corpos deste grupo. Descre-
vendo a vivência das vítimas e seus estereótipos, a entrevistada expõe a
necessidade de todo o sistema de justiça, poderes e instituições, e
seus/suas servidores/as compreenderem que o ciclo da violência não recai
somente sobre as mulheres cisgênero:

Então, a gente também precisa ressaltar que as pessoas ‘trans’ também são
vulneráveis à violência, por serem né, por carregarem todo o estereótipo do
machismo, do feminino, do cuidado, da delicadeza. Então elas tem os seus
companheiros que violam, que agridem dentro de casa (...) todo o ciclo de vi-
olência é igual ao de uma mulher cisgênero né. É igual o casamento, a briga, o
ciúmes, a agressão física, a separação, aí o arrependimento do companheiro,
aí vem a lua de mel novamente, e mais uma vez a reincidência de violência.

O ciclo da violência que percorre o gênero feminino as coloca em risco


de vida todos os dias, e o desamparo da Polícia Civil justifica o número alto
de assassinatos a que elas estão submetidas. Em Cuiabá, no ano de 2019,
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 105

por meio de levantamento divulgado pela Secretaria Adjunta de Inteligên-


cia do Estado, foram registradas 4.143 ocorrências de ameaça, bem como
1.766 de lesão corporal em mulheres cisgênero. As ameaças, dores físicas,
psicológicas e diversas opressões não cessam sem a interferência das ins-
tituições responsáveis por salvaguardar a integridade da pessoa.
A partir de casos expostos publicamente na cidade de Cuiabá, em que
a problemática ganhou visibilidade, a ativista menciona a autoria de uma
das queixas feitas aos órgãos competentes para tentar compreender o con-
flito:

Eu como militante fiz um questionamento ao Ministério Público, e na Ouvido-


ria da Polícia Civil, que questionou a delegada (...) para ela, sexo feminino é
pessoas que tem vagina. A mulher ‘trans’, para ela, não tem vagina, então, ela
coloca à frente uma cultura falocêntrica, de que ser mulher é ter a vagina, e
não é uma construção social (...) é uma fala, que ela é arraigada de conserva-
dorismo, carregada de transfobia, que a palavra correta é isso né.

Débora explica que buscou Ministério Público Estadual para informar


a maneira que as mulheres ‘trans’ estão sendo recebidas na Delegacia de
Defesa da Mulher de Cuiabá. Para ela, o que está acontecendo é discrimi-
nação carregada de estereótipos no consequente atendimento, tendo em
vista a transfobia que essas mulheres estão enfrentando. O inconformismo
de Débora, representante das mulheres ‘trans’, é quanto ao ‘ser mulher’,
não reconhecido no contexto atual, pós Constituição Federal.
Os números divulgados pela Delegacia Especializada de Defesa da
Mulher de Cuiabá em seu anuário de 2019 registram dados como raça,
escolaridade, quantidade de atendimentos, perfil das vítimas e dos agres-
sores, medidas protetivas, encaminhamentos à Casa de Amparo, dentre
outras providências. Contudo, no documento publicado anualmente, o
termo utilizado às mulheres se refere ao ‘sexo feminino’, e tampouco são
106 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

mencionadas quantificações em relação à mulheres transexuais e travestis.


Dessa forma, a realidade das mulheres transgênero em Cuiabá é a subno-
tificação, em se tratando de números divulgados, e invisibilidade política.
Não existe um levantamento de dados acerca dos atendimentos das mu-
lheres ‘trans’ em situação de violência, bem como disposição de
procedimentos à favor dessas mulheres.
Percebe-se que o tema tratado tem de ser percebido como uma inter-
ferência do Estado sob os corpos transgênero. As mulheres ‘trans’ estão
submetidas a um sistema que não as auxilia, fazendo com que estas per-
maneçam, na maioria das vezes, em relacionamentos abusivos e
consequentemente em risco de vida. A rede multidisciplinar de atendi-
mento à mulher vítima de violência do município não consegue abarcar e
dialogar com essa camada, já que não há a capacitação e o entendimento
necessário das pessoas que estão à frente da Delegacia e de outras institui-
ções. Não existe efetividade de atendimento, tampouco eficiência e
articulação em rede dessa política pública para as pessoas transexuais.
Com o advento da ‘Constituição Cidadã’ não houve recepção na parte
da Lei 4.965/85, no que diz respeito ao termo ‘sexo feminino’, porquanto
‘estar mulher’ ultrapassa ao nascer do sexo feminino e com órgão sexuais
que a identificam mulher.
A alteração da Lei 4.965/85 poderia, de fato, incluir mulheres trans-
gênero em suas disposições, e passar a olhar com um viés ainda mais
humanizado para todo o feminino, independente de fatores biológicos. A
alteração é necessária. Contudo, a Lei Maria da Penha já dispõe sobre re-
ferido atendimento, fazendo cumprir algo que está no ordenamento
jurídico nacional desde 2006. É como instrui Maria Berenice Dias em A Lei
Maria da Penha na Justiça (2013):
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 107

Ao ser afirmado que a mulher está sob o abrigo da Lei, sem distinguir sua
orientação sexual, assegura proteção tanto às lésbicas, como às travestis, às
transexuais, às transgêneros de identidade feminina que mantêm relação ín-
tima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. A Lei busca a preservação
plena da dignidade da pessoa humana, fazendo valer o gênero alegado pela
pessoa vitimada. Todos esses relacionamentos, quando ocorrem situações de
violência justificam a especial proteção da Lei Maria da Penha (DIAS, 2013, p.
54).

Há de se mencionar que, notoriamente, a criação ou alteração de uma


norma não faz com que os dogmas e paradigmas já presentes no consci-
ente social mudem. A norma, à luz de Foucault é, na realidade, um
instrumento de controle e limitação. O corpo não é individual, mas sim do
Estado.
A modificação da referida lei é assunto para levar em consideração
como medida à longo prazo. A realidade atual, de mulheres desamparadas
e em risco, poderia ser mudada independente da mencionada alteração,
em razão da necessidade de cumprimento da LMP.
A dignidade da pessoa humana é princípio do Estado Democrático de
Direito, inserido na Constituição Federal no artigo 1º, III. Ter dignidade é
saber que o respeito é a irmanação inerente a todos e todas. Assim, há que
se vislumbrar a interpretação conforme pelos aplicadores e aplicadoras
das leis. Fazer a interpretação conforme, segundo Lenza (2009), é obser-
var a prevalência da Constituição, que é a essência do método, enfatizando
a supremacia da Lei Maior, só assim será possível o alcance da eficácia. O
que foi dito antes do advento da Constituição Federal deverá ser lido con-
forme interpretação dela, sob pena de não recepção.
Diante dos movimentos sociais, denúncias públicas, portarias, e ou-
tras ‘pressões’, o rumo da mencionada Delegacia é no futuro, com certeza,
começar a atender essas mulheres, mas é necessário pensar no que fora
108 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

preciso ser feito para contornar a situação e, principalmente, quantas vi-


das foram postas em risco em razão da ausência de atendimento
qualificado. A presente questão precisa ser enxergada não só como um
problema conferido ao poder público, mas que é inerente a ele. Trata-se
de uma questão de gênero, que atinge a todas/os/es naturalmente.

4.2 Delegacias especializadas de atendimento à mulher de Barra do Garças


e Várzea Grande

Primeiramente, tem-se que mencionar que a Delegacia da Mulher do


município de Várzea Grande não é especializada ao gênero feminino, em
razão de funcionar conjuntamente com o atendimento aos idosos, idosas,
adolescentes e às crianças. Dessa maneira, é chamada de Delegacia Espe-
cializada de Defesa da Mulher, da Criança e do Idoso (Dedmci). Em
algumas das cidades de Mato Grosso que possuem unidades tencionadas
ao atendimento das mulheres em situação de violência, o espaço também
é destinado a atender outros grupos de vulneráveis: idosos e crianças. Tal
medida é justificada pela Polícia Judiciária Civil como o possível nesse mo-
mento em razão da ausência da destinação de verbas adequadas para abrir
unidades próprias a cada necessidade do contingente populacional.
A ‘não especialização’ da delegacia de Várzea Grande demonstra,
como uma das resultantes diretas, certa precarização do atendimento ao
gênero. Quando uma mulher chega na delegacia para registrar boletim de
ocorrência, para pedir medida protetiva de urgência e demais procedimen-
tos, apesar de ser amparada, o processo pode ser mais demorado, por
exemplo, por ter que esperar outras pessoas que possuem prioridade de
atendimento naquele momento. A atenção que a mulher precisa receber
acaba por não ser totalmente efetiva e prioritária, em comparação com um
espaço destinado a atender e receber somente à ocorrências de mulheres.
O termo ‘prioritário’ revela a situação preferencial e de importância para
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 109

o atendimento e resolução. Todavia, um espaço que deveria ser de priori-


dade de atendimento para apenas um segmento deixa de o ser quando
passa a dividir a atenção com outros segmentos que exigem atendimento
preferencial. Nunca será justa a escolha entre uma das prioridades para
‘escolher’ o recebimento.
Outrossim, na mencionada cidade metropolitana da capital, ao gê-
nero feminino está disponível a Patrulha Maria da Penha, nome dado ao
programa da Polícia Civil, em parceria com a Guarda Municipal, que pos-
sui viaturas destinadas somente ao acolhimento das mulheres. Além do
encaminhamento dos documentos via on-line para a medida protetiva
através do Processo Judicial Eletrônico (PJe) a fim de garantir celeridade,
a delegacia oferece uma viatura que vai até as casas das vítimas e as acom-
panham até a unidade de atendimento. A equipe multidisciplinar e
psicossocial está presente na Dedmci igualmente.
Em se tratando do recebimento às transexuais e travestis, por meio
de conversa desta pesquisadora com a delegada adjunta da unidade, fora
disponibilizado inquérito que versa sobre o atendimento de uma vítima
transgênero para expor os procedimentos iguais entre mulheres ‘cis’ e mu-
lheres ‘trans’. No documento, estão presentes dados pessoais, tipo de
agressão, laudo médico da vítima que passou pelo Instituto Médico Legal
e outras continuidades que irão dar início à ação na Vara de Violência Do-
méstica da cidade. Diante disso, é possível notar que a Delegacia
Especializada de Defesa da Mulher, da Criança e do Idoso de Várzea
Grande realiza atendimentos às transexuais e travestis de forma equâ-
nime, com a equipe multidisciplinar e demais auxílios, e o processo recebe
os andamentos necessários na vara judicial correta.
Já na comarca de Barra do Garças, há um diferencial positivo para as
mulheres habitantes. A Rede de Enfrentamento à Violência Doméstica
contra a Mulher de Barra do Garças e Pontal do Araguaia, mais conhecida
110 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

na região como Rede de Frente, realiza, desde 2013, um trabalho de aco-


lhimento e articulação. Criada após uma reunião entre o Poder Judiciário,
Defensoria Pública e Ministério Público, a Rede de Frente de Barra do Gar-
ças é referência nacional no que tange ao serviço interdisciplinar de
proteção às mulheres, fazendo cumprir o artigo 8° da Lei Maria da Penha:4

Artigo 8- A política pública que visa coibir a violência doméstica e familiar


contra a mulher far-se-á por meio de um conjunto articulado de ações da
União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e de ações não gover-
namentais, tendo por diretrizes:
I - a integração operacional do Poder Judiciário, do Ministério Público e da
Defensoria Pública com as áreas de segurança pública, assistência social, sa-
úde, educação, trabalho e habitação.

O Manual Rede de Frente: uma construção coletiva (2018), que gira


em torno dos eixos Rede de Atenção/Proteção Social na Violência Domés-
tica; Aplicação humanizada do procedimento legal; Educação permanente
dos agentes sociais; Núcleo acadêmico de pesquisa; e, Prevenção e sensi-
bilização social; proporciona às mulheres locais maior amparo e
atendimento especializado e efetivo.
A Delegacia Especializada de Defesa da Mulher de Barra do Garças,
instituição que colabora na Rede, é de atenção exclusiva ao gênero femi-
nino, não dividindo seu espaço com outros grupos, o que garante atenção
diferenciada, voltada somente aos inquéritos das mulheres. Ademais, por
meio de um exemplar destinado para a presente pesquisa, notou-se que o
boletim de ocorrência, medida protetiva e os seguintes procedimentos es-
tão sendo realizados no município em acordo com as recomendações
nacionais, atendendo de maneira equânime todo o gênero feminino. As

4
Dados retirados do Manual Rede de Frente: uma construção coletiva (2018)
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 111

mulheres transexuais e travestis podem realizar os trâmites da mesma


forma que as mulheres ‘cis’.
Com a Norma Técnica de Padronização das DEAMs (2006), realizada
pelo Governo Federal, instituiu-se as atribuições das DEAMs, fases e fluxos
de atendimento, infraestrutura e, principalmente, a garantia da atenção
psicossocial para todas as vítimas. Para tanto, assistentes sociais, psicólo-
gas/os e capacitações femininas fazem parte desse conjunto. Na cidade de
Barra do Garças, realiza-se quinzenalmente, através do Centro de Refe-
rência Especializado de Assistência Social (CREAS), Grupo Reflexivo para
Homens. Trata-se de um cuidado à longo prazo com a consciência social,
do que significam as recorrentes agressões às mulheres o que isso acarreta
na sociedade. Esta política é um dos programas realizados no município,
dentre outras ações tencionadas ao gênero feminino que visam a humani-
zação. Contudo, apesar de o atendimento na Delegacia da Mulher ser
realizado para as ‘trans’ conforme as recomendações, no mencionado Ma-
nual, que serve como diretriz de todo atendimento municipal no que tange
à violência doméstica, não são referenciadas quaisquer políticas públicas
de atenção às transexuais e travestis, fazendo perceber a precariedade de
ações voltadas a elas. O histórico de garantias de direitos para o gênero
feminino é também perpassado pela invisibilidade ‘trans’ e, antes de tudo,
coloca em xeque o termo ‘inclusão’.
A inclusão das mulheres transgênero como uma das pertencentes à
pauta feminina é questionável, tendo em vista o descaso com o grupo em
todas as instituições e ações promovidas pelo fim da violência contra à
mulher no sistema de justiça, por exemplo. Em suma, a população
LGBTQIA+ sempre é obrigada a contentar-se com ‘migalhas’ de direitos,
e no combate às agressões do sistema patriarcal não seria diferente.
As Delegacias da Mulher de Barra do Garças e Várzea Grande reali-
zam imprescindível trabalho, atendendo mulheres transexuais.
112 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Entretanto, nota-se que não é possível dialogar da mesma maneira com


elas. Não há a sensibilização exigida para aproximar os serviços e progra-
mas disponíveis às mulheres ‘cis’ para as transexuais, não cumprindo uma
inclusão, tampouco um sistema democrático de fato.

Considerações finais

As questões de gênero que assolam não só as mulheres, mas todos os


indivíduos, são consequência de um sistema histórico, político, econômico
e social de inúmeras opressões. As mulheres cisgênero são movidas por
estereótipos deterministas cercados por ideais de feminilidade e perfor-
matividade, o que acarreta diretamente na marginalização das travestis e
transexuais.
À vista disso, o presente artigo visou compreender como se dá a as-
sistência às mulheres ‘trans’ nas Delegacias Especializadas no
Atendimento à Mulher de Cuiabá, Várzea Grande e Barra do Garças, fa-
zendo amplo diagnóstico da situação mato-grossense em referência à
inclusão do grupo em suas agendas. Em comparação com o cenário naci-
onal, o estado se encontra em débito, já que não possui a articulação dos
entes públicos para efetivar o atendimento às ‘trans’ nas delegacias e de-
mais programas de auxílio. Mato Grosso não se encontra uniforme, nem
consensual, quanto à necessidade da acolhida dessas mulheres, em dife-
rença de estados como a Paraíba, que possui portarias e normativas que
indicam tal necessidade.
Por certo, existe, de fato, em resposta à problemática, controle pelo
Estado, aqui representado pelas Delegacias mencionadas. Por falta de ins-
trumentos, como a capacitação permanente dos servidores e programas
voltados para a atenção especial às mulheres transgênero, que visem tra-
zer perspectiva e interpretação efetivamente democrática, esses corpos são
impedidos de acessos básicos, como os antes citados. Entende-se que há
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 113

uma limitação de direitos sobre a transexualidade, ainda que esses estejam


garantidos formalmente.
Na capital, Cuiabá, não são feitos boletins de ocorrências e medidas
protetivas de urgência próprias da violência doméstica. O atendimento
lhes é negado. As mulheres são encaminhadas para outra unidade de de-
legacia para depois terem acesso ao sistema de justiça. Não é possível obter
a ajuda de equipe multidisciplinar, atenção especial e da especialidade
das/os profissionais que são preparados para os casos de agressão à mu-
lher nas delegacia de defesa da mulher. A realidade no município, para
além da subnotificação, é a revitimização da mulher transexual durante a
investigação.
As duas cidades do interior do estado, embora recebam nas Delega-
cias da Mulher vítimas transexuais, não são preparadas quanto ao restante
das proposituras disponíveis às mulheres cisgênero. As inovações presen-
tes nas delegacias, tanto em Várzea Grande, quanto em Barra do Garças,
estão sendo substanciais para o progresso do enfretamento à violência e à
misoginia, mas não conseguem atingir, tampouco dialogar, ainda, com a
camada LGBTQIA+.
Entendendo que a eficiência das DEAMs e das redes de atenção não
se compara ao disponível a uma mulher ‘cis’ vítima de violência, medidas
como a capacitação das/os agentes das Polícias Civil e Militar e dos demais
servidores envolvidos na acolhida das mulheres podem proporcionar mu-
dança significativa na maneira com que estas cidadãs estão sendo
recebidas. Contudo, é preciso se perguntar se capacitações são suficientes
para mudar toda uma consciência social que fora construída durante mui-
tos séculos.
Outrossim, a Lei regente em Mato Grosso precisa começar a ser in-
terpretada conforme a Constituição Federal, para que sua alteração não se
torne dependente, apesar de necessária. Mas, mesmo com entendimento
114 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

de acordo com a Constituição Federal e a obrigatoriedade de capacitação


permanente dos servidores e servidoras, não haverá garantia ‘a forceps’
de uma mudança estrutural, que seria o único meio para se começar a
atender com efetividade as vítimas transgênero.
O Direito, ciência que se constitui em um dos variados mecanismos
de poder que perpassam a sociedade hodierna, é parte de algo externo, que
controla, reduz, incita e molda e, assim, se manifesta, para Foucault: a bi-
opolítica da populações. Os indivíduos experimentam suas vidas através
de números e classificações que os impõem a ‘normalidade’, nos moldes
do dispositivo da sexualidade. Este, por sua vez, intensifica as relações de
poder no que tange ao sexo, e nos faz sermos reconhecidos por ele. As
mulheres transexuais e travestis possuem, em suas vivências, a necessi-
dade de prontamente identificar seu gênero e suas interpessoalidades
para, daí, conseguirem a garantia de direitos. São tratadas, primeira-
mente, como diferentes.
O atendimento nas Delegacias Especializadas de Defesa da Mulher de
Mato Grosso demonstra a obsolescência de um sistema que incita o dis-
curso, mas controla as ações. Ser ‘trans’ e enfrentar o sistema de justiça é
‘trans’gredir o que foi imposto a nós.

Referências

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ATENDIMENTOS NA DELEGACIA ESPECIALIZADA DE DEFESA DA MULHER.
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de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal,
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Capítulo 5

O provimento 73/2018 do CNJ e


os desafios para a efetivação dos direitos da
personalidade das pessoas transexuais

Lucas Morais Queiroz Amaral 1


Douglas Santos Mezacasa 2

1 Introdução

As várias mudanças no ordenamento jurídico brasileiro, provenien-


tes da promulgação da Constituição da República Federativa de 1988,
juntamente com o Código Civil de 2002, trouxeram uma nova forma de
pensamento para o sistema legislativo acerca dos direitos fundamentais,
focada principalmente na pessoa humana e nos direitos da personalidade,
movimento esse que ficou conhecida como “repersonalização do direito
civil”. A partir dessa nova perspectiva as questões relacionadas ao “ser”
foram postas acima do “ter”.
Com os novos preceitos sobre personalidade, entram em evidência
questões relacionadas à sexualidade e ao gênero, como, por exemplo, as
pessoas transexuais, que, historicamente e, até nos dias atuais, são consi-
derados grupos marginalizados e não possuem a efetivação de seus
direitos em sua plenitude (BENTO, 2018). Embora, o Estado Democrático
de Direito não reconheça distinção de qualquer natureza por parte dos in-
divíduos, na prática, a tutela dos direitos das pessoas transexuais não

1
Graduando em direito UFMT campus Araguaia, membro do grupo de pesquisa Gênero, Poder e Direito da Univer-
sidade Federal do Mato Grosso – CUA.
2
Coordenador e professor efetivo do curso de Direito da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e pelo Centro Uni-
versitário do Vale do Araguia (UNIVAR); Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Maringá (UniCesumar);
Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Estadual de Londrina; Bacharel em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Estado do Paraná (PUCPR); Pesquisador Associado pela Universidade Federal do Mato
Grosso (UFMT); Advogado.
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 119

ocorrem de maneira integral, especialmente quando tratam-se da identi-


dade e do nome desses indivíduos, tendo em vista que muitas vezes são
obrigados a responder por um nome que não se sentem identificados, le-
vando-os à situações que deveriam ser abarcadas pelos direitos da
personalidade.
Por essas razões, a proposta abordada no presente texto desenvolve-
se por meio das questões diretamente ligadas às pessoas transexuais e à
tutela plena do direito personalíssimo do uso de um nome digno para esses
indivíduos. Dito isso, a pesquisa apresenta caráter qualitativo bibliográ-
fico, através de análises fundadas nos direitos da personalidade com
enfoque ao nome e ao gênero das pessoas trans, correlacionando esses di-
reitos ao processo de formação da identidade e inserção dessas pessoas
com o nome na sociedade.
O objetivo geral da pesquisa deu-se no sentido de averiguar o proce-
dimento estipulado pelo Provimento 73/2018 do CNJ, problematizando os
desafios enfrentados pelas pessoas trans no momento de alteração do
nome e gênero nos cartórios e os enfrentamentos para efetivar os direitos
da personalidade. Para atender às questões levantadas, o artigo propõe no
primeiro capítulo um levantamento das características dos direitos da per-
sonalidade, em especial, o nome, interligando a repersonalização do
Código Civil de 2002.
No segundo momento, o artigo buscou ressaltar o percurso das con-
quistas de direitos das pessoas trans até a decisão do STF ao julgar a ADI
4.275 que reconheceu a possiblidade de alteração de nome e gênero das
pessoas trans diretamente em cartório, dispensando a judicialização e o
tratamento hormonal. E por fim, no terceiro capítulo, buscou analisar os
desafios enfrentados após a regulamentação do Provimento 73/2018 DO
CNJ. Após todo o percurso metodológico, chegou-se à conclusão de que,
embora haja a possibilidade de alteração do nome e do gênero pela via
120 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

extrajudicial com a auto declaração da pessoa, ainda há muitos desafios a


serem enfrentados para concretizar os direitos fundamentais, tais como, o
consentimento do cônjuge e dos descendentes na retificação dos documen-
tos, o desconhecimento por partes dos cartórios e o preconceito.

2 O nome como direito da personalidade e a tutela do direito brasileiro

Para que a tutela dos direitos da personalidade alcançasse os avanços


protetivos que lhe cabem no atual cenário jurídico, foi necessário um pro-
cesso longo de lutas, de mudanças de paradigmas e de conquistas através
dos anos da história do Direito. Nota-se muitos vestígios desses direitos
nas leis utilizadas por sociedades e grupo no passado. Em Roma, por
exemplo, já foi possível observar uma singela preocupação com a tutela de
aspectos relacionados à personalidade. Contudo, o assunto não era tratado
com a mesma intensidade e com as mesmas práticas da atualidade, devido
ao fato da estrutura e organização social daquela sociedade (FARIAS;
ROSENVALD, 2015). Um exemplo da diferença dos direitos da personali-
dade nessa época com relação aos dias atuais é a escravidão. O escravo
existia, mas não possuía nenhum direito e era tratado como objeto
(FARIAS; ROSENVALD, 2015).
No Cristianismo uma pequena ideia ligada à dignidade humana sur-
giu, quando foi reconhecido um vínculo entre o ser humano e um Deus,
acima da política, onde, em Roma, era o que definia o conceito “status” de
pessoa. Desse modo, na Idade Média nasce uma semente do conceito atual
de pessoa humana, que tinha como pressuposto a valorização do indivíduo
como pessoa e de sua dignidade (CAMPOS, 1995). Logo após esse período,
o surgimento do Iluminismo trouxe a teoria dos direitos subjetivos, que
engloba a proteção de direitos fundamentais e intrínsecos à própria pes-
soa. No entanto, a real proteção da pessoa humana surge com a
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 121

consagração de movimentos ingleses, como a Declaração de Independên-


cia das Colônias Inglesas, o Bill of Rights, e também da Revolução Francesa
que trouxe a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão. Após essas
primeiras conquistas, se faz necessário destacar a Declaração Universal
dos Direitos Humanos, pela Assembleia geral da ONU em 1948, após isso,
a base dos direitos da personalidade surge como direitos naturais ou ina-
tos, que eram norteados principalmente pelos direitos humanos, inerentes
a todas as pessoas (SIQUEIRA; ROSELEN, 2015).
A teoria dos direitos da personalidade ganhou maior relevância
quando foi expressada em forma de texto nas constituições de alguns paí-
ses europeus, como, Alemanha, Espanha e Portugal. Chegando ao período
Imperial brasileiro já era possível encontrar manifestações desses direitos
em pequenas práticas, como o sigilo de correspondência e a inviolabilidade
da liberdade (SIQUEIRA; ROSELEN, 2015). Porém, nada comparado com
a positivação dos Direitos da Personalidade na Constituição Federal de
1988, onde esses direitos foram colocados como pertencentes a todas as
pessoas e a dignidade da pessoa humana foi posta como princípio nortea-
dor do direito brasileiro, admitindo especificações como as expressas no
art. 5º, X, que diz:

Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi-
lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pes-
soas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação;

Em consonância com a nova Constituição, o código civil de 2002 de-


dicou uma série de artigos específicos para a tutela de valores referentes
122 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

aos direitos da personalidade (Capítulo II, artigos do 11 ao 21), com esses


valores postos e expressos na legislação, a tutela integral de todos esses
direitos tornou-se mais eficaz e mais fácil de ser aplicada pelos juristas. A
partir da promulgação da constituinte de 1988, chamada de constituição
cidadã, pela inserção dos direitos subjetivos, da personalidade e da digni-
dade da pessoa humana como pilares da ordem jurídica nacional, o Estado
passou a adotar como preceitos a proteção da dignidade da pessoa hu-
mana, igualdade ou isonomia e solidariedade social, tendo como um dos
objetivos o fim da pobreza.
O princípio da dignidade da pessoa humana engloba todos direitos
fundamentais, partindo do pressuposto que o Estado deve propiciar a to-
dos uma vida digna, ou seja, o Estado deve proteger o ser humano,
preservando a identidade, dignidade e integridade. Em várias questões ju-
rídicas esses três aspectos se afloram, devido ao fato de estarem acima de
qualquer outro valor da tutela da pessoa. Esses direitos da personalidade
têm como finalidade tornar a vida de qualquer pessoa digna, nesse sentido,
são o caminho para que cheguemos ao princípio norteador. Nas palavras
de Flavio Tartuce (2005):

Os direitos da personalidade podem ser conceituados como sendo aqueles di-


reitos inerentes à pessoa e à sua dignidade. Surgem cinco ícones principais:
vida/integridade física, honra, imagem, nome e intimidade. Essas cinco ex-
pressões-chaves demonstram muito bem a concepção desses direitos.

No que tange a esses referidos direitos, podemos destacar que o nome


do indivíduo corresponde a uma parte importantíssima da personalidade,
é através do nome que todos somos identificados e conhecidos no meio
social. O código civil de 2002, em seu artigo 16 nos traz o seguinte: “Toda
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 123

pessoa tem direito ao nome, nele compreendidos o prenome e o sobre-


nome.” Com o nome as pessoas exercem a cidadania, têm documentos e
acessam serviços públicos.
Segundo a autora Maria Helena Diniz (2020) “o nome integra a per-
sonalidade por ser sinal exterior pelo qual se designa, se individualiza e se
reconhece a pessoa no seio familiar e da sociedade; daí ser inalienável, im-
prescritível e protegido juridicamente”. O nome carrega toda uma cultura
da sociedade, que começa logo na descoberta do sexo biológico do indiví-
duo. Comumente, a partir da identificação dos órgãos sexuais “masculino
e feminino” são designados os nomes e outras expectativas culturais rela-
cionadas ao gênero, depois passa pelo processo de construção da
identidade do indivíduo por parte da família e culmina na escolha desse
nome. Essa tradição permanece por muito tempo, até os dias de hoje.
Em decorrência da evolução do direito, atualmente tem-se a possibi-
lidade de alteração do nome e de gênero em alguns casos, um deles é a
alteração do nome por conta da mudança de sexo, e gênero das pessoas
transexuais, que tornou possível pessoas que não se identificam com o
sexo de nascimento e, por consequência, com o nome escolhido pela famí-
lia, o alterem. Assim, a justiça reconheceu que o processo de
desenvolvimento da identidade da pessoa independe da tradição de ser de-
signado um sexo e nome para ela no início da vida.

3 O direito à autodeterminação: novo entendimento do STF

No ano de 2018 as pautas relacionadas ao direito do uso do nome


social pelas pessoas transexuais ganharam maior relevância, um fator de-
terminante para isso foi a análise de uma Ação Direta de
Inconstitucionalidade (ADI 4.275) na qual a Procuradoria-Geral da Repú-
blica discutiu a possibilidade de interpretar conforme a Constituição ao
artigo 58 da Lei 6.015/1973 (Lei de Registros Públicos), que versa sobre a
124 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

substituição do prenome da pessoa. Essa Ação buscava a alteração do


nome de pessoas transexuais independente de cirurgia de mudança de
sexo e de autorização judicial.
Em 2017, o Superior Tribunal de Justiça reconhecia o direito das pes-
soas transexuais de alterarem o gênero no registro civil quando reformou,
por meio do Recurso Especial nº 1626739, a decisão do Tribunal de Justiça
do Rio Grande do Sul, que autorizou somente a mudança do prenome da
autora da ação e negou a mudança do sexo masculino para feminino nos
documentos de registro, afirmando no acórdão que “a definição do sexo é
ato médico, e o registro civil de nascimento deve espelhar a verdade bio-
lógica, somente podendo ser corrigido quando se verifica erro” (ConJur,
2016).
Em seu voto, Luis Felipe Salomão, ministro do STJ e relator do refe-
rido Recurso Especial, invocou o princípio da dignidade humana.
“Independentemente da realidade biológica, o registro civil deve retratar a
identidade de gênero psicossocial da pessoa transexual, de quem não se
pode exigir a cirurgia de transgenitalização para o gozo de um direito.”
(MONTEIRO, 2017).
Somente em 2018, através da ADI, a pauta do reconhecimento sem a
necessidade de cirurgia de mudança de sexo foi analisada e aprovada pelo
Supremo Tribunal Federal. O princípio da dignidade humana e da autode-
terminação foram invocados majoritariamente para que os ministros
tomassem a decisão, todos os ministros da corte reconheceram o direito e
para a maioria não há necessidade de autorização judicial para a alteração,
votaram desse modo os ministros Luiz Roberto Barroso, Edson Fachin,
Rosa Weber, Luiz Fux, Celso de Mello e a presidente da Corte, Cármen
Lúcia, tiveram seus votos vencidos os ministros Marco Aurélio, Alexandre
de Moraes, Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes, o ministro Dias Toffoli
esteve impedido de votar. (STF, 2018)
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 125

Durante as discussões o ministro Marco Aurélio enfatizou que “A dig-


nidade da pessoa humana tem sido desprezada em tempos tão estranhos
e deve prevalecer o direito do ser humano de buscar a sua integridade e
apresentar-se à sociedade como de fato se enxerga” (POMPEU, 2018) além
disso, levantou temas como prostituição, depressão e suicídio, como pro-
blemas que podem ser acarretados a essas pessoas quando não possui uma
identidade reconhecida.
O maior debate durante o voto dos ministros foi sobre a necessidade
de uma decisão judicial para que o nome da pessoa seja reconhecido, ca-
beria a um juiz analisar o caso concreto. No entanto, prevaleceu a
necessidade apenas de requisitos mínimos, ou seja, o interessado dirige-se
até o cartório para solicitar a mudança do registro civil (MONTEIRO,
2017). O entendimento tornou o processo para adquirir o novo nome mais
ágil e menos constrangedor para o indivíduo. Como disse o ministro Luís
Roberto Barroso, “O que temos que ter em conta também é que o mundo
do direito é muito simples para nós, que vivemos nele. Mas para muitas
pessoas a necessidade de buscar o Judiciário pode ser um obstáculo insu-
perável ou um novo constrangimento.” (CONJUR, 2018). Essa decisão foi
libertadora para as pessoas transexuais, pois sempre foram um grupo
marginalizado pela sociedade.
Após a aprovação do STF, a pauta chega até o Conselho Nacional de
Justiça para que seja regulamentada. A partir desses ajustes, os critérios
para a alteração do nome ficaram definidos no Provimento 73/2018, com-
posto por dez artigos regulatórios. Segundo o documento, todo o
procedimento deve ser feito baseado na autonomia do requerente, o
mesmo deve declarar a vontade de alteração ao registrador, independente
de autorização judicial ou cirurgia de mudança de sexo.
126 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Além disso, o provimento assegura que as informações sobre a alte-


ração não podem ser divulgadas sem a vontade da pessoa ou da justiça.
Como disposto no art. 5º, Provimento 73/2018:

Art. 5º. A alteração de que trata o presente provimento tem natureza sigilosa,
razão pela qual a informação a seu respeito não pode constar das certidões dos
assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação ju-
dicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo
registral

Esse artigo tem grande importância para que a vida em sociedade da


pessoa que alterou seu registro civil continue da melhor maneira possível
quando o processo chega ao fim, desse modo, a identidade da pessoa tran-
sexual é resguardada. Antes mesmo da regulamentação pelo CNJ alguns
estados já seguiam as novas normas de registros, como Rio Grande do Sul,
São Paulo, Santa Catarina, Goiás, Rio Grande do Norte, Pará, Pernambuco,
Sergipe, Ceará e Maranhão. No estado de São Paulo em maio de 2018 já
era possível solicitar a mudança de nome e sexo no documento apenas
declarando a vontade diante do registrador.
Um ano após o Provimento 73 do CNJ, foi notável o aumento de novos
registros, uma pesquisa realizada pela Arpen Brasil (Associação Nacional
dos Registradores de Pessoas Naturais) mostrou que cerca de 2.000 pes-
soas transexuais mudaram seu nome nos cartórios civis. São Paulo liderou
a estatística com 64% desse total. Nos estados de Amazonas, Amapá, Acre,
Tocantins e Piauí não houve nenhuma alteração de nome no primeiro ano,
como é possível ver no gráfico a seguir:
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 127

(Fonte: Folha de São Paulo, 2019)

Esse aumento nos números está diretamente relacionado à maior ce-


leridade dos trâmites para que ocorra a retificação do nome, o que e
possível observar também é que nas regiões onde existem uma atuação
mais forte de grupos pró LGBT, como nos estados da região Sudeste, o
número de alterações foi maior se comparado a lugares onde as pessoas
transexuais não recebem esse suporte, que é o caso de alguns estados de
regiões mais interiorizadas do país.
128 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

4 Inseguranças e desafios na tutela dos direitos das pessoas transexuais

A regulamentação do CNJ, por meio do Provimento 73/2018, se-


guindo a decisão do STF ao julgar a ADI 4275, trouxe maior eficiência para
as pessoas transexuais, no que diz respeito à possibilidade de alteração de
nome e gênero na certidão de nascimento e documentos pessoais, podendo
ser realizado diretamente nos cartórios de registros civis independente-
mente de cirurgia de transgenitalização ou tratamentos hormonais. O
provimento dispôs sobre “a averbação da alteração do prenome e do gê-
nero nos assentos de nascimento e casamento de pessoa transgênero no
Registro Civil das Pessoas Naturais (RCPN)” (CNJ, 2018). Tal dispositivo
integrou o ordenamento jurídico brasileiro com o caráter sigiloso, onde
vedou-se a possibilidade de constar “no documento que a pessoa é transe-
xual e que houve retificação de nome ou gênero, fator que só ocorrerá em
caso de determinação judicial ou solicitação do próprio indivíduo reque-
rente” (BASTOS, 2019).
Entretanto, embora possa ser visualizado avanços na efetivação dos
direitos da personalidade, ainda existem pontos controversos quanto aos
registros na certidão de nascimento dos descendentes das pessoas trans e
no registro da certidão de casamento. O provimento refere-se à necessi-
dade de anuência do cônjuge e dos descendentes. Conforme determina o
Provimento 73/2018 do CNJ, para os descendentes nascidos antes da re-
qualificação civil da pessoa transexual, é necessária a anuência expressa
dos mesmos, caso estes sejam absolutamente capazes. Contudo, quando
os descendentes forem relativamente/absolutamente incapazes, é neces-
sário o consentimento de ambos os pais. (FIGUEIREDO; SCHUTZ, 2019).
Já no caso de registro da certidão de casamento, a alteração do pre-
nome e gênero no registro, depende da anuência do cônjuge. Segundo
Juliana Rizzo da Rocha Loures Versan e Valéria Silva Galdino Cardin
(2019) essas exigências acerca da anuência são equivocadas:
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 129

Esses requisitos de admissibilidades são, em sua integridade, inconstitucionais


e vão contra os princípios elencados na recente decisão do STF, que tem como
base fundamental o princípio da autonomia e o direito à igualdade. É exata-
mente no universo da problemática geral dos limites dos direitos
fundamentais que se aloca a questão da colisão entre princípios constitucio-
nais, ou colisão de direitos fundamentais, ou tensão constitucional,
terminologias que se destinam a nomear o mesmo fenômeno jurídico.
(VERSAN; CARDIN, 2019).

De acordo com o posicionamento das autoras acima e, segundo o en-


tendimento majoritário dos autores e pesquisadores sobre gênero e
sexualidade na seara jurídica, a prática de requerer o consentimento das
pessoas para que estas autorizem a averbação no documento daquelas,
pode ser visualizado como um dispositivo inconstitucional, pois fere o
princípio da autonomia e o direito de igualdade garantidos pela Constitui-
ção Federal brasileira.
Entre todas essas questões, ainda é notável que são impostas algumas
dificuldades para além da legislação, como também, pelo pensamento ana-
crônico de parte da sociedade atual, como, por exemplo, o caso de Taylor
Brasil Condi, mulher trans, que em 2020 passou meses reunindo docu-
mentos para que o cartório realizasse a retificação do seu nome. Ela
cumpriu rigorosamente todos os requisitos necessários para que a altera-
ção fosse realizada. No entanto, a tabeliã informou que somente poderia
continuar o processo de alteração de nome e de gênero, após algumas con-
firmações pessoais, questionando-a e interrogando-a a fim de requerer
uma “validação” de sua vontade. Assim informou Suene Brasil, mãe de
Taylor, ao colunista Saulo Araujo (2020):

Nós fomos para entrevista, porque imaginávamos que pudesse agilizar nossa
demanda. Mas foi uma conversa extremamente desgastante. A tabeliã só se
130 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

referia à minha filha como ‘ele’ e começou a exigir coisas que são facultativas
ao requerente apresentar, e não obrigatórias, como receituário do hormônio
que ela toma e exames psicológicos[...].
Era para ser um momento de felicidade, mas minha filha saiu de lá extrema-
mente abalada. Só retornaremos acompanhada de um advogado” para que o
processo continuasse foi necessário marcar outra entrevista envolvendo o ta-
belião-chefe do cartório e com a companhia dos advogados (ARAUJO, 2020).

Taylor afirma ter se sentido julgada no cartório do 5º Ofício de Notas


do Guará - DF, onde ocorreu a situação, afirmando ainda que “percebi que
eles queriam que eu provasse que sou trans, queriam uma espécie de va-
lidação. Fiquei muito mal e sem entender, então, decidi não ir para uma
segunda entrevista sem um profissional do direito me acompanhando”
(ARAUJO, 2020). Essas exigências vão contra as regulamentações para al-
teração do registro das pessoas transexuais e criam mais insegurança
jurídica para outras pessoas que queiram realizar a alteração, especial-
mente pelo despreparo por parte dos profissionais que lidam com
atendimento das pessoas transexuais interessadas na mudança do nome e
de gênero.
Pode-se observar, ainda nos dias atuais, a existência de uma oposição
por parte da sociedade, no que se refere às conquistas de direitos para as
pessoas transexuais (PASSOS; ROCHA, 2012). Esses pensamentos são car-
regados de conservadorismo, de religiosidade, de cisgeneridade, de
heteronormatidade e de patriarcalismo que acarretam no retrocesso na
luta pelos direitos das minorias sexuais. Tais práticas também podem ser
observadas pelo cenário político atual. No Brasil, mesmo com a laicidade
do Estado, não pode ser observado uma quebra entre o pensamento reli-
giosa e a política, devido ao fato de tais ideias estarem ligados a religião,
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 131

que avança cada vez mais nas classes políticas do poder, promovendo ata-
ques aos direitos fundamentais não só das pessoas transexuais, mas sim
de todas as minorias sociais.

Esses/as parlamentares fundamentalistas, que fazem parte do movimento


conservador que propõe a adesão irrestrita a princípios teológicos, e seus ali-
ados acreditam serem os detentores da verdade absoluta e imutável e, por isso,
acabam por forjar a criação de dicotomias e a eleição de inimigos numa batalha
entre o bem e o mal (PASSOS; ROCHA, 2012).

Para essa bancada, a existência desses direitos significa a arrefeci-


mento imediato dos direitos das pessoas cujas identidades não pertençam
a esses grupos minoritários e, por isso, acreditam que os direitos para
LGBTI devem ser combatidos, o que acaba por promover a demonização
de travestis e transexuais e utilizam argumentos infundados sobre ano-
malias ou distúrbios mentais para barrar direitos que já foram
assegurados (REIS; EGGERT, 2017). Esses argumentos são reproduzidos
por parte da sociedade, como podemos notar no comentário de um leitor
em uma matéria sobre alteração de nome e gênero para pessoas sem ci-
rurgia.

Onde foi parar o bom-senso e a racionalidade? Sob a ditadura da toga, eis que
o direito se torna veículo dos delírios e disparates individuais. Na era da inse-
minação artificial, das aeronaves e de todos demais portentos da ciência e da
tecnologia, eis que o ser-humano endoideceu e não sabe mais o que é homem
e o que é mulher. (POMPEU, 2018).

Um exemplo da tentativa destes parlamentares para cessar direitos


às pessoas transexuais foi a proposta de revogar o Decreto presidencial nº
8.727, de 28 de abril de 2016, que permitiu o uso do nome social e o reco-
nhecimento da identidade de gênero de travestis e transexuais.
132 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

O Estado brasileiro está constrangendo a maioria da sociedade a entregar pri-


vilégios a uma minoria por uma suposta culpa social. Garante-se o acesso a
banheiros e vestiários de acordo com a identidade de gênero, certamente sob
a alegação de se evitar constrangimento e discriminação aos beneficiários da
medida. Ninguém, contudo, consultou a maioria de mulheres e os homens,
inclusive, para saber se eles não se sentirão constrangidos com a presença de
alguém de sexo oposto em um ambiente de privacidade. Ou será que a prote-
ção é apenas ao interesse da minoria?! (ERON, 2015).

A proposta de revogação do decreto presidencial, ocorreu de uma


tentativa orquestrada pelos fundamentalistas religiosos, em cortar avan-
ços referentes ao uso do nome social pelas pessoas transexuais. Devido a
esse fato, é comum encontrar na sociedade posturas favoráveis ao pensa-
mento conservador. Para o restante da sociedade, a política conservadora
aparece como uma “salvação da pátria”, instituindo um sentimento de um
ser “menos patriota” caso não se defenda instituições como a família tra-
dicional brasileira e a religião. É por meio desse cenário político que
governantes ganham maior espaço e voz, apresentando-os como o defen-
sor do conservadorismo e levando a população a refletir que algo deve ser
feito rapidamente para que a supremacia cisgênera não corra perigo.

Conclusão

O STF ao julgar a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI


4275/DF) em 2018, acabou por conceder a possibilidade de se alterar o
nome e o gênero das pessoas transexuais na via extrajudicial, sem a neces-
sidade de realizar a cirurgia de transgenitalização e tratamento hormonal.
Para tanto, o objetivo geral da pesquisa deu-se no sentido de averiguar o
procedimento estipulado pelo Provimento 73/2018 do Conselho Nacional
de Justiça, no intuito de problematizar os desafios enfrentados pelas pes-
soas trans no momento de alteração do nome e gênero nos cartórios e
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 133

refletir os enfrentamentos para a efetivação dos direitos da personalidade.


Por meio do método qualitativo bibliográfico chegou-se a algumas conclu-
sões quanto aos procedimentos adotados pelos cartórios.
Ao tratar-se do procedimento de alteração do nome e do gênero nos
documentos pessoais do indivíduo e dos familiares, conclui-se que o pro-
cedimento que visa a obrigatoriedade da anuência do cônjuge e dos filhos
para a alterar os documentos é inconstitucional tendo em vista ferir os
princípios da permeiam a Constituição Federal de 1988, quais sejam, o
princípio da autonomia, princípio da igualdade e o princípio da dignidade
da pessoa humana, uma vez que, em relação à alteração de nome de pes-
soas cisgêneros não seja necessário tais requisitos.
Conclui-se, também, que após a entrada em vigor do Provimento
73/2018 do CNJ, parlamentares tentaram suspender os procedimentos es-
tipulados pelo provimento realçando seus princípios e ideais
conservadores, suscitando o afrontamento dos bons costumes em nome
das as instituições familiares e religiosas. Tentativas como essas demons-
tram que as instituições políticas, por meio de relações de poder, ainda
carregam práticas tradicionais, cisgêneras e patriarcais, onde tentam en-
fraquecer a lutas dessas minorias, criando barreiras a serem enfrentadas
pelas pessoas transexuais. O que resulta na tentativa de impedimento da
efetivação dos direitos personalíssimos e da universalidade do princípio da
dignidade da pessoa humana.

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Capítulo 6

Divisão sexual do trabalho sob uma


perspectiva crítica de gênero

Thiago Augusto Galeão de Azevedo 1


Camyla Galeão de Azevedo 2

1 Introdução

O presente artigo tem como objeto de estudo a lógica de poder que


constrói espaços profissionais, atividades, baseado no gênero de cada in-
divíduo. Trata-se da divisão sexual do trabalho, relacionado ao Estado
como seu agente reprodutor. Analisa-se o citado objeto a partir de uma
perspectiva crítica de gênero.
Trata-se de um estudo multidisciplinar, que objetiva realizar uma
análise crítica sobre a divisão sexual do trabalho, buscando-se desnatura-
lizar a lógica de papéis profissionais naturalmente de um gênero ou de
outro. A partir de uma construção teórica crítica, pretende-se denunciar
uma lógica de submissão das atividades consideradas eminentemente fe-
mininas em relação às masculinas. Submissão esta que é naturalizada e
que não é desvelada como um instrumento de poder, originada da inferi-
orização criada do gênero feminino em relação ao masculino.
Para tanto, em um primeiro momento, expor-se-á os elementos fun-
dantes da teoria da dominação masculina, de Pierre Bourdieu, com o
objetivo de fornecer o substrato teórico para o entendimento dos conceitos

1
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
2
Doutoranda em Direito - UFMG. Mestra em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional – CESUPA. Pós-
graduanda em Direito Civil – PUC MG. Assessora Jurídica. Advogada.
138 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

de mão esquerda e mão direita do Estado, que são fundamentais para o


entendimento da análise do fenômeno de subordinação da esfera social à
fiscal, à luz da teoria da dominação masculina.
A partir da construção do referido substrato teórico, analisar-se-á a
relação da divisão sexual do trabalho à luz da lógica de poder reproduzida
pelo Estado, sob os pilares da esfera social e fiscal. Ademais, correlaciona-
se a divisão sexual do trabalho, como um fenômeno de relações de poder,
para com a posição de classe e raça das mulheres.

2 A teoria da dominação masculina e o seu poder simbólico: mão esquerda


e mão direita do Estado

Pierre Bourdieu, em sua obra A Dominação Masculina - a condição


feminina e a violência simbólica realiza uma experiência similar a de um
laboratório ao analisar, especificamente, uma sociedade histórica, Cabília,
marcada pela sua tradição mediterrânea.
De acordo com o referido autor, a divisão entre os sexos aparece
como se fosse pertencente à “ordem das coisas”, como algo natural, nor-
mal e inevitável. Estando presente em estado objetivado, nas coisas, e em
estado incorporado, nos corpos e nos habitus dos agentes. Entretanto, a
divisão em sexos é analisada, pelo autor, como socialmente construída, a
partir de uma arbitrária divisão, que ganha o escopo de natural, o que pro-
porciona a sua legitimação.
A sociedade aparece como o principal instrumento legitimador dessa
lógica de divisão sexual, o que a confere um sentido natural, que na visão
do autor é falso, artificial. A divisão sexual do trabalho e a existência de
atividades típicas dos homens e das mulheres são os principais exemplos
de como a sociedade ratifica e perpetua essa lógica artificial.
Para o presente artigo, a ideia de criação de atividades sexualizadas
é fundamental. Trata-se de atividades que foram objeto de uma divisão
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 139

pautada na sexualidade, como o poder de decisão pertencente aos homens


em assembléias e o dever de cuidar da casa, reservado às mulheres. Assim,
a ordem social acaba por legitimar essa dominação masculina, incorpo-
rando tal influência nos institutos intrínsecos a esta ordem.
É o mundo social que constrói essa concepção sexuada do corpo,
aplicando divisões sexualizadas. Destaca-se que é ele que constrói a dife-
rença entre os sexos biológicos, enraizada na dominação dos homens
sobre as mulheres. A diferença biológica entre homens e mulheres, em
específico anatomicamente entre os órgãos sexuais, é a justificativa natural
da diferença construída socialmente entre gêneros, consequentemente na
divisão social do trabalho.
Trata-se de uma reprodução social, uma dominação masculina que
é reproduzida através de uma violência simbólica. É justamente neste sen-
tido que se afirma o poder simbólico da dominação masculina, tendo em
vista que esta é reproduzida simbolicamente, ou seja, pelo conhecimento,
pela comunicação, pelo inconsciente, representado pelo desconhecimento;
pelo reconhecimento ou mesmo pelo sentimento. Destaca-se que não se
refere a uma violência física, mas sim a um tipo de violência espiritual.
Neste contexto, é nítida a existência de um círculo vicioso. A visão
social constrói a diferença anatômica entre homem e mulher, esta tida
como aparentemente natural. Tal naturalidade alicerça a visão social que
fundamenta a própria naturalidade. Desta feita, há uma circularidade que
se auto-alimenta.
Bourdieu ressalta que quando os pensamentos e as percepções dos
dominados estão em conformidade com as estruturas de dominação, que
lhes é imposta, são transformados em atos de reconhecimento de submis-
são. Ou seja, quando os pensamentos dos dominados estão pautados,
contaminados, pelos instrumentos de dominação, irão perpetuar tal su-
bordinação, justamente porque estão contaminados pela estrutura
140 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

dominadora. Entretanto o autor destaca que sempre há uma possibilidade


de “luta cognitiva” com relação ao valor das coisas do mundo, dentre elas
a realidade sexual. Assim há uma possibilidade de resistência a tal imposi-
ção simbólica.
O corpo possui suas partes, nitidamente, estigmatizadas com relação
ao sexo. Através dessa divisão sexual do corpo, que se estabelece a relação
entre o falo e o lógos (razão). A parte alta do corpo representada pela face,
olhos e boca, chamados pelo autor de “órgãos nobres de apresentação”, é
masculinizada, justamente pelo caráter público, de fazer frente a manifes-
tações, a tomar a palavra publicamente. Diferente do contexto feminino,
que está afastado do caráter público, de manifestações públicas, fazendo
com que estas renunciem do uso público da parte superior de seus corpos,
o que influi no andar de cabeça baixa, com o olhar voltado para os pés,
hábito marcante na Cabília.
Assim, pode-se perceber que atividades típicas de homens e mulhe-
res são decorrentes dessa divisão sexual do corpo. O homem sendo o
responsável pelas funções públicas, relacionadas com os “órgãos nobres
de apresentação”, que são marcados por manifestações públicas, direção e
poder de decisão. Enquanto que cabe às mulheres a renúncia do uso pú-
blico de seu próprio rosto e de sua palavra, que foram monopolizadas pelos
homens.
A divisão sexual do trabalho, na Cabília, é originada através de um
mito, que vai ocasionar uma divisão não apenas no âmbito do trabalho,
mas também na ordem social. O autor destaca que tal influência é tão forte,
que ultrapassa a ordem social, referindo-se à ordem cósmica, como algo
que se tornasse intrínseco à figura do homem e da mulher.
Ao referido mito, deu-se o nome de mito fundador. A história começa
em uma fonte, em que uma mulher esperava para aparar um pouco de
água, quando chegou um homem e a empurrou. Sendo o primeiro contato
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 141

entre um homem e uma mulher. No ato da queda, o homem observou as


coxas da mulher e ficou encantando, percebendo que eram diferentes das
suas. Foi quando a mulher se propôs a ensinar para o homem o que era
prazer sexual, acariciando o seu pênis, até ficar ereto e atingir o prazer
maior. A partir daí, o homem passou a seguir a mulher, pois esta sabia
mais coisas que ele. Entretanto, em certo dia, o homem resolveu mostrar
também à mulher o que sabia fazer, foi quando se deitou sobre ela e sentiu
o mesmo prazer, dizendo que na fonte era a mulher que mandava, entre-
tanto em casa ele quem dava as ordens.
O autor destaca que tal mito fundador institui a chamada “oposição
constituinte” entre a natureza e a cultura. A sexualidade da natureza se
exerce na fonte, lugar eminentemente feminino. À tal sexualidade se opõe
a sexualidade da cultura, representado pelo ato de domesticação da mu-
lher pelo homem, executado por exigência deste, realizado na casa (“lugar
da natureza cultivada”). Desta forma, tal mito influencia na origem da cul-
tura, que pode ser entendida como ordem social.
A partir do referido mito, a ordem social foi influenciada pela idéia
de subordinação da natureza pelo homem, pela ordem das coisas, que re-
presenta a subordinação da mulher pelo homem, como se fosse algo que
necessariamente devesse ser contido, controlado, domesticado. Na con-
cepção masculina, o propósito do controle sobre a casa sempre prevalece
sobre o controle da mulher relacionado à fonte, fazendo-se relação sobre
o fato de no mito o homem declarar que na fonte quem manda é a mulher,
mas na casa quem manda é o homem. Casa sendo representada como “lu-
gar da natureza cultivada”, como se a mulher representasse a natureza,
sendo necessário o seu cultivo.
Pode-se perceber, portanto, conforme levantado pelo autor, que
existe uma clara relação entre a sexualidade e o poder, baseada no princí-
pio de divisão fundamental entre o masculino (ativo) e o feminino
142 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

(passivo). A mulher assume este papel de passividade, enquanto o homem


o de atividade.
Bourdieu destaca que a sociodiceia masculina possui sua força pau-
tada numa visão androcêntrica dos corpos. É a visão do mundo construída,
uma visão masculinizada dos corpos, instituidora das diferenças entre os
sexos. Essa visão permite uma relação de dominação do masculino sobre
o feminino, tendo em vista que institui os gêneros construídos como duas
essências sociais hierarquizadas. Tal relação de dominação é mascarada a
partir de uma ideia de natureza biológica, que é uma construção social
naturalizada.
Esse trabalho de construção simbólica estará realizado quando gerar
uma “transformação profunda e duradoura dos corpos (e dos cérebros)”
(Bourdieu, 2014, p. 40), justamente porque este trabalho de dominação
visa, simbolicamente, impor um viés de pensamento, de representação do
corpo, uma visão masculinizada, com a proposta de naturalizar esta linha
de pensamento através de uma máscara de naturalização biológica.
A partir de tal dominação, tudo o que pertencer a outro gênero será
excluído do mundo do pensável e factível, o que influencia na ideia de per-
versidade do polimorfo. Desta forma, há dois produtos reflexos de tal
dominação, que devem ser seguidos e quem não os seguir será excluído,
considerado anormal. São eles: homem viril e mulher feminina. Percebe-
se, ao final, que estes dois padrões, produtos da dominação, não são deri-
vados da lei natural, mas sim da somatização das relações sociais de
dominação.
Bourdieu tentará, ao longo de sua obra, provar que as estruturas de
dominação são “produto de um trabalho incessante (e, como tal, histórico)
de reprodução, para o qual contribuem agentes específicos (entre os quais
os homens, com suas armas como a violência física e a violência simbólica)
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 143

e instituições, famílias, Igrejas, Escola, Estado.” (grifo nosso, Bourdieu,


2014, p. 56).
Neste sentido, Bourdieu destaca que o Estado é um dos agentes re-
produtores da lógica de dominação masculina. Este ponto é de suma
importância para o presente artigo, que visa, como já foi anteriormente
dito, analisar de que forma, ou mesmo se, há uma relação entre a figura
do corpo e a construção de uma divisão sexual do trabalho.
Para Bourdieu, conforme já citado, o Estado acaba sendo um agente
perpetuador da dominação masculina, para isso ele cita duas perspectivas
estatais, a ideia de mão direita e mão esquerda do Estado.
Pierre Bourdieu sustenta que o Estado é um dos agentes reproduto-
res da estrutura de dominação simbólica. Neste âmbito, o autor afirma que
o Estado possui duas mãos, destaca-se a relação com o corpo, chamadas
de mão direita e mão esquerda.
A mão direita do Estado é definida, pelo autor, como a esfera respon-
sável pelos ministérios financeiros e administrativos. Trata-se da esfera
detentora de poder. De acordo com o autor, é paternalista, familiarista e
protetora. Mas o principal atributo desta esfera, de suma importância para
o presente artigo, é a sua perspectiva masculinizada.
A masculinização desta esfera estatal possui relação direta com a
ideia de “orgãos nobres de apresentação”, já tratados no presente artigo,
que foram reservados, unicamente, aos homens, justamente porque a par-
tir da estigma sexual do corpo, cabia somente a estes o caráter público, o
discurso público, o que faz do rosto, olhos e boca, partes exclusivas do ho-
mem. Trata-se justamente do caráter destacado na mão direita do Estado,
quando é necessário o poder de direção, gerenciamento, decisão e discurso
que são incompatíveis com a “natureza”, no sentido de natureza que ne-
cessita ser controlada pelo homem, referindo-se ao feminino, a partir do
exposto com relação ao “mito fundador”.
144 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

A mão esquerda do Estado, entretanto, é definida, por Bourdieu,


como a esfera voltada para o social, trata-se do Estado social, marcado por
atividades assistencialistas. À esta esfera do Estado é atribuída uma pers-
pectiva feminina.
Desta forma, há uma feminização da mão esquerda do Estado, que
de acordo com o autor, possui como responsáveis as mulheres, entretanto
estas também configuram como as principais beneficiárias desta esfera so-
cial. Em relação ao tema, Bourdieu (2014, p. 131) se manifesta da seguinte
forma:

Os homens continuam a dominar o espaço público e a área de poder (sobre-


tudo econômica, sobre a produção), ao passo que as mulheres ficam
destinadas (predominantemente) ao espaço privado (doméstico, lugar da re-
produção) em que se perpetua a lógica da economia de bens simbólicos, ou a
essas espécies de extensões deste espaço, que são os serviços sociais (sobre-
tudo hospitalares) e educativos, ou ainda aos universos da produção simbólica
(áreas literária e artística, jornalismo etc.).

Nota-se que o autor destaca os serviços sociais como uma extensão


dos serviços domésticos, como o ensino, o cuidado hospitalar ou mesmo
áreas literárias, artísticas e jornalísticas; que estão situados em uma esfera
privada. Assim, para Bourdieu, as mulheres foram excluídas, predominan-
temente, dos assuntos sérios, públicos. Restando à estas funções na esfera
privada, relacionadas à esfera doméstica.
É importante ressaltar, entretanto, que o autor não generaliza no
sentido de que todas as mulheres não possuem oportunidades na mão di-
reita do Estado, mas sim fala em termos de maioria. Todavia, Bourdieu
(2014, p. 147-148) ressalta que as mulheres que possuem altos cargos, um
papel na mão masculinizada, têm que arcar com as reações adversas do
seu sucesso profissional, como o insucesso na área doméstica:
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 145

A verdade das relações estruturais de dominação sexual se deixa realmente


entrever a partir do momento em que observamos, por exemplo, que as mu-
lheres que atingiram os mais altos cargos (chefe, diretora em um ministério
etc.) têm que ‘pagar’, de certo modo, por este sucesso profissional com um
menor ‘sucesso’ na ordem doméstica (divórcio, casamento tardio, celibato, di-
ficuldades ou fracassos com os filhos etc.) e na economia de bens simbólicos;
ou, ao contrário, que o sucesso na empresa doméstica tem muitas vezes por
contrapartida uma renúncia parcial ou total a maior sucesso profissional (atra-
vés, sobretudo, da aceitação de ‘vantagens’ que não são muito facilmente
dadas às mulheres, a não ser quando as põem fora da corrida pelo poder: meio
expediente ou ‘quatro quintos’).

A feminização da referida esfera social possui relação com a estigma


sexual das partes do corpo, que cercearam as mulheres do uso dos “órgãos
nobres de apresentação”, conforme já destacado, característicos da ativi-
dade pública, do poder, próprios da mão direita do Estado. Tais conceitos
são fundamentais para o presente artigo, pois fornecem uma base intelec-
tual e conceptual necessária para a análise da relação entre a mão direita
e a mão esquerda do Estado, fazendo-se um estudo comparado com a es-
fera fiscal e social do Estado fiscal contemporâneo.
Com a conceituação e análise da mão esquerda e mão direita do Es-
tado, pode-se perceber que há uma associação entres estas e a esfera social
e fiscal. Na verdade, as referidas esferas estão inseridas nestes conceitos
corporais de Estado, criados por Bourdieu. Conforme já ressaltado, a mão
direita do Estado representa o setor de poder, de decisão, administração
estatal. Trata-se do setor do discurso público, da decisão pública, em que
os agentes precisarão usar da fala e da sua imagem para desenvolver suas
funções. Como já destacado, tais elementos são típicos da figura mascu-
lina.
146 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Trata-se de um conceito amplo, no qual a figura da esfera fiscal está,


nitidamente, inserida. Pois a citada esfera consiste na concretização de ati-
vidades de gerência, arrecadação e dispêndio dos recursos públicos,
provenientes da via tributária. Neste sentido, pode-se relacionar a esfera
fiscal à mão direita do Estado.
Da mesma forma, a mão esquerda do Estado representa as ativida-
des sociais desempenhadas por este, voltados para o cunho assistencial,
relacionadas a questões domésticas e educacionais, principalmente. São
atividades exercidas no âmbito privado.
Pode-se inferir, também, que a esfera social pode ser certamente re-
lacionada à referida mão esquerda do Estado, tendo em vista que abarca
atividades de cunho assistencial, que visam, de uma forma geral, a redução
das desigualdades sociais. Desta forma, pode-se fazer as referidas relações
entre mão direita do Estado e esfera fiscal, assim como mão esquerda do
Estado e esfera social.

3 A divisão sexual do trabalho e a inferiorização das atividades profissionais


consideradas femininas

Para Pierre Bourdieu, há agentes específicos que contribuem com a


reprodução da estrutura de dominação, entre eles os homens, tendo como
armas a violência física e simbólica; as famílias, a Igreja, a Escola e o Es-
tado. Desta forma, o Estado é um dos agentes reprodutores da dominação
masculina, podendo-se sustentar que os seus conceitos de mão direita e
mão esquerda são elementos constitutivos de tal dominação.
A mão esquerda e a mão direita do Estado constituem esta estrutura
de dominação, que se reflete em várias perspectivas componentes do refe-
rido fenômeno colonizador. Dentre estas se pode destacar o instituto da
divisão sexual do trabalho, existente, reproduzida e alimentada tanto na
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 147

mão direita como na mão esquerda do Estado; assim como a subordinação


da mão esquerda à mão direita do Estado.
Destarte, deve-se analisar os elementos que consubstanciam a ideia
de que a subordinação da mão esquerda, relacionada à esfera social; à mão
direita do Estado, relacionada à esfera fiscal, possui uma relação direta
com a estrutura de dominação que é constituída e reproduzida pelo Es-
tado. Para isso, é necessário destacar três elementos típicos da teoria da
dominação masculina, que são refletidos na referida subordinação.
O primeiro destes elementos é a vedação da concessão de poder à
mulher. Autoridade e poder não são característicos da natureza feminina,
sendo-lhes reservada apenas a esfera privada, a beneficência, os trabalhos
domésticos. Entretanto, o aspecto mais importante do referido elemento é
o de que a mulher não pode ter autoridade, poder, direção, sobre o ho-
mem. A respeito deste elemento, Bourdieu (2014, p.132, grifo nosso)
ressalta que:

Se as estruturas antigas da divisão sexual parecem ainda determinar a direção


e a forma das mudanças, é porque, além de estarem objetivadas nos níveis,
nas carreiras, nos cargos mais ou menos fortemente sexuados, elas atuam
através de três princípios práticos que não só as mulheres, mas também seu
próprio ambiente, põem em ação em suas escolhas: de acordo com o primeiro
destes princípios, as funções que convêm às mulheres se situam no prolonga-
mento das funções domésticas: ensino, cuidados, serviço; segundo, que uma
mulher não pode ter autoridade sobre homens, e tem, portanto, todas as
possibilidades de, sendo todas as coisas iguais em tudo, ver-se preterida por
um homem para uma posição de autoridade ou de ser relegada a funções su-
bordinadas de assistente; o terceiro confere ao homem o monopólio da
manutenção dos objetos técnicos e das máquinas.

O autor destaca que a impossibilidade de a mulher ter autoridade


sobre um homem é um princípio prático, que contamina as suas escolhas,
148 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

independente de sua vontade, tendo em vista que não basta a mulher re-
produzir este princípio inconscientemente, através do poder simbólico,
mas sim que o ambiente em que ela está inserida também contribua para
tal contaminação, pois igualmente está pautado no referido princípio prá-
tico.
A referida vedação de concessão de autoridade à mulher, em relação
ao homem, é um elemento da estrutura de dominação, que nitidamente
está refletido na relação entre a mão direita e a mão esquerda do Estado.
A mão esquerda, associada à esfera social, conforme já destacado an-
teriormente, é feminizada, enquanto a mão direita do Estado, associada à
esfera fiscal, é masculinizada. Por isso, pode-se perceber, na relação entre
estas, o reflexo da referida vedação de autoridade, tendo em vista que a
mão esquerda não possui autoridade em relação à mão direita, muito pelo
contrário está subjugada ao poder de decisão desta.
A sua associação à mulher, faz com que a mão esquerda do Estado
assuma um papel de subordinação, de que dificilmente poderá ter um pa-
pel de autoridade sobre a mão masculina, sobre a esfera fiscal. Assim, a
função da mão esquerda do Estado será o de mera assistente, subordinada
e limitada ao poder de decisão e gerência da mão direita, à luz da máxima
da esgotabilidade dos recursos públicos, fazendo com que o Estado seja
um agente reprodutor da estrutura de dominação, como sustenta Bour-
dieu.
O segundo elemento está relacionado à desvalorização do trabalho
doméstico, atribuído à mulher. Conforme já analisado anteriormente, às
mulheres são reservadas atividades na esfera privada, como assistência
social, educação e atividades literárias. O fato destas atividades não possu-
írem uma retribuição pecuniária, fazendo relação com a sociedade Cabília,
analisada por Bourdieu; contribui para que estas sejam desvalorizadas e
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 149

consideradas sem importância. Sob este elemento, destaca Bourdieu


(2014, p. 137):

[...] o fato que o trabalho doméstico da mulher não tenha uma retribuição em
dinheiro contribui realmente para desvalorizá-lo, inclusive a seus próprios
olhos, como se este tempo, não tendo valor de mercado, fosse sem importância
e pudesse ser dado sem contrapartida, e sem limites, primeiro aos membros
da família, e sobretudo às crianças (já foi comentado que o tempo materno
pode ser mais facilmente interrompido), mas também externamente, em ta-
refas de beneficência, sobretudo para a Igreja, em instituições de caridade ou,
cada vez mais, em associações ou partidos. Não raro confinadas nessas ativi-
dades não remuneradas, e pouco inclinadas, por isso, a pensar em termos de
equivalência entre o trabalho e o dinheiro, as mulheres estão, muito mais que
os homens, dispostas à beneficência, sobretudo religiosa ou de caridade.

Neste sentido, a desvalorização do trabalho doméstico atribuído à


mulher é um elemento típico da teoria da dominação masculina, que se
reflete, também, na relação de subordinação da mão esquerda à mão di-
reita do Estado.
Uma vez desvalorizadas, as atividades desenvolvidas pela mão es-
querda do Estado são consideradas menos importantes, o que influi em
dois aspectos. O primeiro consiste no fato de que se as atividades desen-
volvidas por um setor são consideradas secundárias, o próprio setor
assume este papel secundário. Assim acontece com a mão esquerda do Es-
tado, se as atividades sociais realizadas por ela não são consideradas
importantes, ela própria assumirá um papel auxiliar na composição do Es-
tado.
Este papel auxiliar da mão esquerda visto pela ótica da mão direita é
destacado por Bourdieu (2012, p.218): “Vivem as contradições de um Es-
tado cuja mão direita já não sabe, ou pior, não quer o que faz a mão
esquerda [...]”. Tal citação representa de forma clara o papel secundário
150 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

da mão esquerda, visto sob a perspectiva da mão direita do Estado, que


não sabe ou mesmo não que saber das atividades sociais, típico do seu pa-
pel auxiliar nas atribuições do Estado.
O segundo aspecto, decorrente do referido elemento, consiste na
ideia de que já que as atividades sociais assumem um papel desvalorizado,
menos importantes, estas podem ser restringidas, fazendo-se com o corte
de recursos públicos para a referida área, diante da esgotabilidade dos
mesmos.
Devido a esse papel secundário, desvalorizado, atribuído às ativida-
des sociais, Bourdieu (2012, p.218) destaca que os profissionais desta
esfera se sentem abandonados:

Compreendemos que os funcionários dos escalões inferiores e, muito especi-


almente os policiais e magistrados subalternos, assistentes sociais, educadores
e até mesmo, cada vez mais professores de todos os graus de ensino que estão
encarregados de exercer as funções ditas “sociais” – isto é, compensar, sem
dispor de todos os meios necessários, os efeitos e carência mais intoleráveis da
lógica do mercado – tenham o sentimento de estar abandonados, até mesmo
desacreditados, nos esforços despendidos para enfrentar a miséria material e
moral que é a única conseqüência certa da Realpolitik economicamente legiti-
mada.

Desta forma, o referido autor destaca a situação de abandono da es-


fera social, das funções ditas sociais, em relação a uma lógica de mercado,
que justamente está pautada na ideia de esgotabilidade dos recursos pú-
blicos e na limitação das atividades sociais. Parafraseando Bourdieu (2014,
p.219), a solidariedade é reduzida a uma simples alocação financeira.
Percebe-se que o elemento da desvalorização do trabalho atribuído
às mulheres é típico da estrutura dominante. Elemento este que se reflete,
nitidamente, na relação de subordinação da mão esquerda à mão direita
do Estado.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 151

O terceiro elemento típico da estrutura de dominação, que repercute


na referida relação de subordinação, consiste na comparação da mulher à
natureza, realizada através do, já citado, mito fundador, que estabelece a
premissa de que a mulher está associada à ideia de natureza, aquilo que
precisa ser controlado, domesticado pela cultura, instituindo a chamada
“oposição constituinte” entre natureza e cultura.
A sexualidade da cultura consiste no ato de domesticação da natu-
reza, da mulher. Tal domesticação ocorre em casa (“lugar da natureza
cultivada”), por isso o mito fundador faz referência à ideia de que a mulher
manda na fonte, enquanto o homem manda em casa, justamente porque
a fonte é o lugar eminentemente feminino e natural, enquanto a casa re-
presenta o lugar onde a mulher será domesticada pelo homem, onde a
natureza é controlada por ele. A partir do referido mito, a ordem social foi
influenciada pela ideia de subordinação da natureza pelo homem, da mu-
lher pelo homem, como se fosse um controle obrigatório.
Trata-se de uma subordinação realizada pelo homem contra a mu-
lher, que é um elemento típico da teoria da dominação masculina.
Elemento este, nitidamente, refletido na relação de subordinação da mão
esquerda à mão direita do Estado.
A natureza está associada ao feminino e este, por sua vez, associado
à mão esquerda do Estado. Enquanto a cultura está associada à figura do
homem, este relacionado à mão direita do Estado. Desta forma, percebe-
se que a referida necessidade de controle da natureza pela cultura, pelo
homem, reflete-se na relação entre a mão esquerda e a mão direita do Es-
tado.
A mão direita do Estado reproduz a necessidade de controle da mão
feminina. Ou seja, as atividades sociais devem ser controladas pela esfera
fiscal, pautando-se na esgotabilidade dos recursos públicos. Tal controle é
152 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

justificado pela ideia de que a ausência dele conduziria o Estado a um de-


sequilíbrio financeiro, tendo em vista a relação de soma zero entre receita
e despesa pública.
Diante da comparação da referida esfera social à natureza, a ausência
do seu controle levaria a gastos desenfreados em atividades assistenciais,
que conduziriam ao citado desequilíbrio financeiro do Estado. Justamente
por este desregramento, que esta natureza, a partir da concepção da es-
trutura de dominação, precisa ser podada, cultivada, pelo controle da
esfera fiscal, que representa o controle masculino sobre o elemento natu-
reza atribuído às mulheres.
Desta forma, percebe-se que a ideia de domesticação da natureza, a
partir do mito fundador, representa um elemento típico da estrutura de
dominação, que se reflete na relação de subordinação da esfera social à
esfera fiscal do Estado Democrático e Social Fiscal.
Por todo o exposto, percebe-se que o Estado é um agente reprodutor
das estruturas de dominação sobre o corpo, sendo que ele e as suas mãos
são elementos constitutivos da referida dominação. Dominação esta que
se reflete em várias perspectivas, entre elas a subordinação da mão es-
querda à mão direita do Estado.
Pode-se perceber que a subordinação das atividades sociais ao poder,
à burocracia, ao gerenciamento, próprios da esfera fiscal são causados por
um fenômeno dominador maior, que possui como um de seus elementos
constitutivos e reprodutores o Estado, através de suas mãos. A partir de
uma análise formal do termo mão direita e mão esquerda do Estado, pode-
se perceber que Pierre Bourdieu, intencionalmente, associou as atribuições
do Estado à ideia de corpo, quando intitulou de, destaca-se, mão esquerda
atividades relacionadas ao campo social e, destaca-se, mão direita ativida-
des financeiras e de administração. Logo, nominalmente o referido autor
já relaciona o elemento corpo às atribuições do Estado.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 153

Depreende-se, portanto, uma divisão sexual do trabalho que é cons-


truída a partir de uma lógica de poder misógina e machista, que projeta às
mulheres papéis profissionais secundários em relação aos construídos
como naturalmente masculinos. Trata-se de uma construção social hierar-
quizadora que, à luz de Bourdieu, pode ser identificada como um elemento
que é reproduzido pelo Estado.
A divisão sexual do trabalho representa a ideia de que existem traba-
lhos de mulheres e trabalhos de homens. Competência da mulher, lugar
de mulher. Há uma verdadeira categorização e uma divisão do que seja
trabalho de homem e trabalho de mulher (BIROLI, 2018). Definindo o con-
ceito de divisão sexual do trabalho, as autoras Hirata e Kergoat nos dizem:

A divisão sexual do trabalho é a forma de divisão do trabalho social decorrente


das relações sociais entre os sexos; mais do que isso, é um fator prioritário
para a sobrevivência da relação social entre os sexos. Essa forma é modulada
histórica e socialmente. Tem como características a designação prioritária dos
homens à esfera produtiva e das mulheres à esfera reprodutiva e, simultane-
amente, a apropriação pelos homens das funções com maior valor social
adicionado (políticos, religiosos, militares etc.) (HIRATA; KERGOAT, 2007, p.
599).

Segundo Helena Hirata e Danièle Kergoat (2007), o conceito divisão


sexual do trabalho surgiu na França, no início dos anos 1970, sob o impulso
do movimento feminista, a partir de uma onda de trabalhos que rapida-
mente formou as bases teóricas desse conceito.
Foi com o reconhecimento da “opressão” que o movimento das mu-
lheres teve início. Esse reconhecimento foi acompanhado pela constatação
de que uma enorme massa de trabalho é efetuada de forma gratuita pelas
mulheres, de maneira invisível, para outras pessoas, pautado na obrigação
154 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

advinda da própria natureza, do amor e do dever materno. O trabalho do-


méstico era feito, visto, mas não reconhecido.
A divisão sexual do trabalho é uma forma de divisão do trabalho pau-
tada nas relações sociais dos sexos. Por característica basilar, tem-se a
destinação dos homens à esfera produtiva e as mulheres à esfera reprodu-
tiva. Por conseguinte, os homens acabam por se apropriar de funções de
forte valor social, como questões envolvendo a política, a religião e o tra-
balho. Essas atribuições acabam por repercutir, fortemente, nas funções e
nos cargos públicos ocupados por mulheres e, consequentemente, em seus
rendimentos, já que naturalmente são destinadas às competências e tare-
fas que são menos valorizadas na sociedade (HIRATA; KERGOAT, 2007).
Além disso, as autoras Hirata e Kergoat (2007) entendem que nessa
estrutura de divisão predominam dois princípios: o princípio da separação
e o princípio hierárquico. O princípio da separação estipula que há traba-
lhos distintos para o homem e para a mulher, ou seja, trabalhos de homem
e trabalhos de mulher. O princípio hierárquico nos diz que o trabalho do
homem vale mais do que o trabalho da mulher. A divisão do trabalho e a
categorização dos gêneros, “rebaixa o gênero ao sexo biológico, reduz as
práticas a ‘papéis sociais’ sexuados que remetem ao destino natural da es-
pécie” (HIRATA, KERGOAT, 2007, p. 599).
Segundo a autora Flávia Biroli (2018), as hierarquias de gênero, de
classe e de raça não são explicáveis sem que se considere a divisão e cate-
gorização que a divisão sexual do trabalho produz. Muitas das percepções
do mundo, e consequentemente, do nosso lugar nele, são decorrentes de
pré-conceitos relacionados à divisão sexual do trabalho.
Apesar da constante subordinação e categorização da mulher em de-
terminadas áreas, verificou-se que a partir do século XX, o perfil de acesso
das mulheres à educação e ao trabalho remunerado se alterou significati-
vamente. Entre 1970 e o início do século seguinte, verificou-se que o
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 155

percentual de mulheres economicamente ativas aumentou de 18,5% para


55%, alcançando um teto de 59% em 2005 no Brasil. O aumento desses
dados pôde se dar em virtude do aumento de participação das mulheres
no mercado de trabalho. Além do aumento da porcentagem com relação
ao número de mulheres economicamente ativas, verifica-se também, que
o percentual com relação ao acesso à educação aumentou significativa-
mente. Hoje, em média, as mulheres possuem mais tempo de educação
formal do que os homens, passando a serem a maioria entre as pessoas
matriculadas no ensino superior (BIROLI, 2018, p. 21).
Apesar da alta participação das mulheres na educação, bem como o
aumento de mulheres economicamente ativas, a diferença do rendimento
médio entre homens e mulheres chega em torno de 25%. Esse percentual
evidencia que, mesmo com a profissionalização e o acesso à educação, as
mulheres não possuem acesso igualitário aos homens com relação às dife-
rentes ocupações (PINHEIRO, 2016, p. 3-28). Ressalta-se também que o
percentual de diferença salarial de 25% entre homens e mulheres varia de
acordo com a classe social, com o gênero e com a raça.
Apesar de o percentual geral no Brasil demonstrar que as mulheres
cresceram economicamente de forma ativa, vislumbra-se também que
esse crescimento é relativo para com cada região no Brasil. Isto é, a in-
fluência local e a cultura tornam os dados instáveis, se relacionados com
cada região do país. No norte do país, em 2014, a diferença entre homens
e mulheres com relação a economia ativa chegou em torno de 26,13%,
sendo os homens 81,7% economicamente ativos contra 55,04% de mu-
lheres economicamente ativas. Em contraposição, no sul do país, região
mais desenvolvida, os homens representavam 80,12% e as mulheres
60,81%, com uma diferença de 19,31% entre eles. Neste sentido, afirma-
se que o percentual de pessoas economicamente ativas no Brasil é muito
156 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

heterogêneo, não se podendo, portanto, afirmar que há igualdade de gê-


nero em nenhuma das regiões (SOUSA, GUEDES, 2016).

Tabela 1 – Pessoas economicamente ativas, de acordo com o gênero

2004 2014
Região Masculino Feminino Diferença Masculino Feminino Diferença
Sul 60,31% 93,48% 33,17% 61,39% 91,51% 30,12%
Sudeste 45,53% 90,75% 45,22% 52,26% 88,97% 36,71%
Nordeste 40,49% 91,77% 51,28% 43,47% 89,69% 46,22%
Centro-Oeste 48,19% 91,38% 43,19% 52,15% 90,76% 38,61%
Norte 47,16% 92,84% 45,68% 51,84% 91,50% 39,66%
Média 48,34% 92,04% 43,71% 52,22% 90,49% 38,26%
Fonte: Sousa e Guedes (2016, p. 134), com base nos dados da Pnad 2004 e 2014.

Além de se apresentarem de maneira distinta para as regiões do país,


as consequências da divisão sexual do trabalho se apresentam de maneira
distinta para mulheres brancas e negras, assim como para com as suas
classes sociais. As mulheres brancas estão mais próximas de padrões e
oportunidades concedidas aos homens brancos, apresentando-se então,
em vantagem com relação aos homens negros. As mulheres negras e po-
bres são as que mais sofrem, pois integram a faixa mais pauperizada da
população (BIROLI, 2018).
A hierarquização de gênero, provocada pela divisão sexual do traba-
lho, provoca nitidamente a opressão das mulheres. Entretanto, a divisão
sexual não provoca apenas a hierarquização de gêneros sobre as mulheres,
mas também sobre homens negros. Neste contexto, não é possível pressu-
por que os privilégios estão sempre nas mãos dos homens e a opressão e
desvantagens com as mulheres. Há na verdade, uma relação cruzada, pois
as mulheres brancas não dominam os homens brancos, mas dominam os
homens negros.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 157

Além do gênero, é uma relação de hierarquização que envolve raça e


classe social, pois como Saffioti (2013) menciona, as mulheres de uma
classe dominante, seja ela a raça branca, nunca puderam, ao longo da his-
tória, dominar os homens de sua classe: os homens brancos. Entretanto,
as mulheres brancas puderam, ao logo da história, dominar a classe “infe-
rior” à ela, a classe dominada, qual seja, os homens negros: “se as
mulheres da classe dominante nunca puderam dominar os homens de sua
classe, puderam, por outro lado, dispor concreta e livremente da força de
trabalho dos homens e mulheres da classe dominada” (SAFFITOI, 2013, p.
133). Desta forma, afirma-se que os aspectos gênero, raça e classe sociais
unem-se como um nó, interligando-se um ao outro simultaneamente
(SAFFIOTI, 2015).
Verifica-se, então, que as mulheres negras estão em maior desvanta-
gem. Elas representam 39% das pessoas que exercem trabalhos precários,
seguidas por homens negros, que representam 31,6%, seguido das mulhe-
res brancas com 27 % e, por fim, homens brancos 20,6% (BIROLI, 2018,
p. 22).
A divisão sexual do trabalho é “a base fundamental sobre a qual se
assentam hierarquias de gênero nas sociedades contemporâneas, ativando
restrições e desvantagens que modulam as trajetórias das mulheres”
(BIROLI, 2018, p. 23). Por sua vez, a divisão sexual do trabalho ao catego-
rizar trabalhos masculinos, trabalhos femininos, trabalhos de branco e
trabalhos de negros, acaba por imputar um encargo ou um privilégio. Isto
pode ser verificado quando se atribui um trabalho bem remunerado para
um homem branco e quando imputam um trabalho precário e degradante
para uma mulher negra, puramente em virtude de sua raça e de seu gê-
nero. A divisão sexual impõe privilégios para os privilegiados, homens
brancos, e desvantagens para os desprivilegiados, mulher branca e negra.
158 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Assim, pode-se que afirmar a hierarquia de gêneros assume formas dife-


renciadas segundo a posição de classe e raça das mulheres. Entretanto, ela
impacta também as mulheres privilegiadas, mas de uma maneira dife-
rente.

Considerações finais

A partir da exposição de uma perspectiva crítica de gênero, pôde-se


perceber que a subordinação do feminino ao masculino possui nítida cor-
relação com uma estrutura de poder, de dominação, que incide sobre o
corpo. Originada do citado mito fundador, que possui um forte poder de
persuasão, de formação de atos e ideias, que ultrapassa a ordem social,
alcançando um patamar de uma ordem cósmica, ou seja, torna-se intrín-
seco à figura do homem e da mulher. Uma lógica priorizadora do homem
em desfavor da mulher.
São atitudes, concepções e pensamentos que são moldados, constru-
ídos por esta lógica dominadora, que é reproduzida por certos agentes,
dentre eles o Estado. Assim, este é considerado, por Bourdieu, como um
dos agentes reprodutores dessa estrutura de dominação, destacando-se a
submissão da mão esquerda à mão direita do Estado. Tal submissão é um
elemento constitutivo da estrutura de dominação reproduzida pelo pró-
prio Estado.
Neste contexto, sustentou-se três elementos típicos da teoria da do-
minação masculina, que são refletidos na referida subordinação: vedação
de poder à mulher, no sentido de que esta não pode ter poder, direção
sobre o homem, que se reflete na subordinação da esfera social à fiscal;
desvalorização do trabalho doméstico atribuído à mulher, o que influi na
secundarização da esfera social e na abertura para a limitação desta, diante
da ausência de sua importância; comparação da mulher à natureza, como
um elemento que tem que ser controlado, domesticado, o que influi na
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 159

necessidade de controle da esfera social, a fim de evitar um desequilíbrio


financeiro.
Identificou-se uma estrutura de poder que constrói uma lógica biná-
ria profissional, servindo à sociedade papéis profissionais de gênero. Cada
indivíduo deve reproduzir este papel, senão estará sujeito a uma sanção,
diante do caráter coercitivo dessa construção moral. Cada indivíduo a de-
pender do seu gênero tem um leque de escolhas profissionais, escolhas que
não são escolhas, porque estas já foram selecionadas anteriormente e re-
passadas, posteriormente, como possibilidades seletivas.
Por fim, faz-se nítida a correlação da divisão sexual do trabalho, esta
como um fenômeno de relações de poder, para com a posição de classe e
raça das mulheres, podendo-se observar como o citado fenômeno atinge a
vida de mulheres de formas e em intensidades distintas, a considerar os
privilégios e exclusões em sociedade.
Pretendeu-se, portanto, através do presente artigo, realizar uma
análise das funções profissionais que são destinadas a homens e mulheres
em nossa sociedade, divisão sexual do trabalho. Identificando-se, assim,
uma lógica de poder que é reproduzida pelo Estado, a partir da construção
e reprodução de esferas sociais e fiscais de atividades, que são revestidas
de perspectivas de gênero hierarquizantes.

Referências

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article/view/119119>. Acesso em: 02 dezembro 2020.
Capítulo 7

Ala Arco-Íris: uma análise dos direitos da população


LGBTQI+ privada de liberdade

Camila Versalli Ferreira 1


Julia Sebastiana Costa dos Santos 2
Lorena Araújo Matos 3

1 Introdução

A presente pesquisa tem como objetivo analisar os direitos de pessoas


pertencentes a comunidade LGBTQI+ privadas de liberdade, com foco nas
transexuais, e o seu direito ao encarceramento em alas específicas, eviden-
ciando sua invisibilidade para o Estado.
Durante muitos séculos a força do patriarcado na sociedade tentou
suprimir por diversos meios a existência de pessoas com manifestações
sexuais distintas daquelas tidas como padrão, a transexualidade é um
exemplo disso. Considerada uma patologia até o ano de 2019, as pessoas
transexuais são a classe mais vulnerável no corpo social.
Essa vulnerabilidade está refletida na omissão do ordenamento jurí-
dico, que não possui normas obrigatórias que protejam esse grupo em
todos os campos, inclusive no sistema carcerário. A falta de dados, infor-
mações e bibliografias concernentes à referida questão também é um
reflexo da ausência de interesse pela manutenção da qualidade de vida
dessas pessoas, seja no cárcere ou não.

1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso/CUA. Técnica em secretariado pelo Instituto Fe-
deral de Mato Grosso.
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso/CUA.
3
Mestra em Direito Constitucional (IDP); Especialista em Direito Penal e Processo Penal (Damásio); Pós-Graduanda
em Direito Homoafetivo e de Gênero (UNISANTA); Professora Universitária e Advogada.
162 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Assim, buscar-se-á responder à seguinte pergunta-problema: Em que


medida estão sendo garantidos os direitos de membros da população
LGBTQI+ no Centro de Ressocialização de Cuiabá - CRC/Ala Arco-Íris?
Nesta perspectiva, é notória a importância de estudos e análises sobre
o respectivo tema com o objetivo de dar voz a pessoas invisíveis para a
sociedade bem como cooperar para que sejam garantidos direitos mínimos
a todos sem distinção, sendo validados os princípios fundamentais expres-
sos na Constituição Federal Brasileira, com foco na dignidade da pessoa
humana.
Para melhor abordar o tema que se pretende neste artigo inicial-
mente serão conceituados os termos sexo, gênero e identidade de gênero
para com isso ser explicado o que é uma pessoa transexual. Ademais, será
abordada a história da criação das penitenciárias femininas no Brasil, as-
sociando-as à criação das alas específicas para membros da comunidade
LGBTQI+. E, por fim, será proposta a análise da ala específica no centro
de ressocialização de Cuiabá, chamada Ala Arco-Íris, para esclarecer se os
direitos desta população estão sendo garantidos.
A metodologia utilizada foi a pesquisa bibliográfica feita por meio de
uma pesquisa de campo (ou também chamada de documentação direta),
através de uma entrevista semi-estruturada.

2 Identidade de gênero e a transexualidade

Primeiramente é importante que se faça a conceituação de sexo, gê-


nero e identidade de gênero, evidenciando suas diferenças.
O termo sexo é objetivo, se trata somente sobre a condição biológica,
ou seja, a caracterização genética e anátomo-fisiológica dos seres huma-
nos, sendo exemplificado pelos termos macho e fêmea.
Esse tipo de pensamento baseado no binarismo é constantemente an-
tagonizado pela existência de anomalias genéticas, como a monossomia
Camila Versalli Ferreira; Julia Sebastiana Costa dos Santos; Lorena Araújo Matos | 163

(Síndrome de Turner) e a trissomia (Síndrome do triplo X). E também de


indivíduos intersexuais, que de acordo com a literatura médica, são indi-
víduos que nascem com genitália ambígua – ou expressam condições
físicas similares – antigamente denominados de hermafroditas (SANTOS,
2008).
Judith Butler também problematiza esse tipo de raciocínio, a autora
explica que a ideia de sexo homem/mulher se trata de uma condição for-
çada que foi materializada através do tempo devido ao sistema regulador
da heterossexualidade e condições jurídicas impostas aos indivíduos, que
dificulta a possibilidade da mistura de sexos em um só corpo (BUTLER,
2002, p.18).
Já o gênero transpassa a definição de sexo, ele diz respeito ao desen-
volvimento das noções homem/mulher, masculino/feminino e suas
práticas cotidianas (GOMEZ, 2017, p.25). É uma construção social, ou seja,
se relaciona com representações sociais e culturais e não apenas com as
características biológicas que o indivíduo possui.
Segundo Judith Butler (2003, p.29), “Como fenômeno inconsciente e
contextual, o gênero não denota um ser substantivo: mas um ponto rela-
tivo de convergência entre conjuntos específicos de relações, cultural e
historicamente convergentes.” (apud CARDIN e GOMES)
Gênero não se refere somente a um conceito, mas às funções e ativi-
dades cotidianas esperadas do indivíduo com base no seu sexo. Não
expressa a realidade biológica básica, mas por meio de construções sociais
cria a percepção desta realidade.
Ademais, ele fundamenta a política do Estado, pois assuntos relacio-
nados à população são tratados conforme a concepção homem/mulher e
masculino/feminino. Desse modo, dá centralidade ao gênero na composi-
ção de suas políticas, visto que para ter um Estado, é necessário ter uma
“população” que o corresponda. (BENTO, 2014)
164 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Identidade de gênero é a forma que o indivíduo se sente e mostra


para si e para os outros como feminino, masculino ou dentro das variadas
possibilidades de ser. Desse modo, trata-se de uma experiência pessoal que
define como o indivíduo se identifica.
É como o ser se reconhece e deseja ser reconhecido, considerando a
sua maneira de vestir, andar e falar. No entanto, esses comportamentos
podem ou não corresponderem ao sexo biológico, tornando a identidade
de gênero independente do sexo biológico.
De acordo com os princípios de Yogyakarta:

Compreendemos identidade de gênero a profundamente sentida experiência


interna e individual do gênero de cada pessoa, que pode ou não corresponder
ao sexo atribuído no nascimento, incluindo o senso pessoal do corpo (que pode
envolver, por livre escolha, modificação da aparência ou função corporal por
meios médicos, cirúrgicos ou outros) e outras expressões de gênero, inclusive
vestimenta, modo de falar e maneirismos.

No entanto, a identidade de gênero é também naturalmente imposta


pela sociedade, considerando e transformando o indivíduo conforme a di-
visão binária de gêneros (GOMEZ, 2017, p.25). Esses comportamentos são
criados e supervisionados por instituições como a família, a igreja e a es-
cola.
Essa obrigação de ser conforme foi imposto, faz com que indivíduos
que não se compreendam nessa estrutura sejam tratados como diferentes
e marginalizados. Por consequência, diversas possibilidades do ser e for-
mas de vivência são excluídas ou negadas.
Portanto, cada ser é excepcional e suas originalidades não devem ser
escondidas ou censuradas em uma estrutura já estabelecida, elas devem
ser vivenciadas, pois é nisso que consiste a identidade de gênero.
Camila Versalli Ferreira; Julia Sebastiana Costa dos Santos; Lorena Araújo Matos | 165

De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (An-


tra), transexuais são pessoas que apresentam uma Identidade de Gênero
diferente da que foi designada no nascimento. Ou seja, uma mulher tran-
sexual nasce com órgãos e características genéticas correspondentes ao
sexo masculino, porém com uma identidade de gênero feminina, enquanto
um homem transexual nasce com órgãos e características genéticas cor-
respondentes ao sexo feminino, mas possui identidade de gênero
masculino.
É importante ressaltar que a submissão a procedimentos médicos in-
vasivos e mutiladores, por exemplo, cirurgia de redesignação sexual não é
um pré-requisito para o reconhecimento jurídico da identidade transexual.
Jaqueline Gomes de Jesus, em sua obra “Orientações sobre identidade
de gênero: conceitos e termos”, discute a importância da compreensão dos
termos relacionados à comunidade LGBTQI+ com o objetivo de minimizar
preconceitos. Sobre isso explica que:

Pessoas transexuais geralmente sentem que seu corpo não está adequado à
forma como pensam e se sentem, e querem “corrigir” isso adequando seu
corpo à imagem de gênero que têm de si. Isso pode se dar de várias formas,
desde uso de roupas, passando por tratamentos hormonais e até procedimen-
tos cirúrgicos. Para a pessoa transexual, é imprescindível viver integralmente,
exteriormente, como ela é por dentro, seja na aceitação social e profissional do
nome pelo qual ela se identifica ou no uso do banheiro correspondente à sua
identidade de gênero, entre outros aspectos. (JESUS, 2012, p.14).

Com isso, pode-se perceber que o reconhecimento da pessoa transe-


xual pela sociedade independente de que sejam feitos procedimentos
cirúrgicos é de extrema importância para a inclusão destas na sociedade.
Entretanto, sabe-se que isso está longe de ser uma realidade.
166 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Muitas pessoas transexuais não sentem repulsa à sua aparência ou as


suas gônadas de nascença, entretanto, realizam modificações corporais,
devido às pressões sociais na expectativa de ter uma vida menos violenta
e ser reconhecida socialmente.

Ainda no campo da consciência, um indivíduo que tem noção das normas rí-
gidas de gênero e adere às mesmas por conta da sanção social que o ameaça,
não realiza uma escolha. Realiza-se a hormonioterapia, por exemplo, não
porque se quer, por espontânea vontade, e sim diante dos obstáculos de
socialização, de reconhecimento, apresentados cotidianamente. O indiví-
duo se vê colocado em uma situação em que opta entre a sua morte e uma
tentativa de sobrevivência. Morte em variados sentidos. (AZEVEDO, 2020, p.
184, grifo da autora).

A Organização Mundial da Saúde (OMS) retirou oficialmente a tran-


sexualidade da 11º versão da Classificação Estatística Internacional de
Doenças e Problemas de Saúde (CID), apenas em 2019, anteriormente era
considerada como “transtorno mental”, atualmente é classificada como
“incongruência de gênero”.
O Brasil é o país que mais mata transexuais no mundo. Segundo o
boletim nº 5 da ANTRA, o país chega a 151 assassinatos de pessoas trans
nos dez primeiros meses de 2020. Nesse mesmo período alcançou 22%
mais mortes do que o ano de 2019 inteiro, onde houve 124 assassinatos.
Apenas em 2018, o Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu a
possibilidade de alteração de registro civil sem mudança de sexo, um di-
reito básico. A expectativa de vida de transexuais é de apenas 35 anos,
enquanto a média nacional, segundo dados do IBGE é de 75,5 anos, de
acordo com a Agência Senado.
Camila Versalli Ferreira; Julia Sebastiana Costa dos Santos; Lorena Araújo Matos | 167

3 Origem das penitenciárias femininas e alas específicas no Brasil

A prisão trata-se de um controle social punitivo institucionalizado


que atua desde a ocorrência (ou suspeita de ocorrência) de um delito até a
execução da pena. (ZAFFARONI; PIERANGELI, 2011, p. 69, apud
MAGLIONI, 2011).
No Brasil, a prisão como pena teve um surgimento tardio, sendo pre-
vista na Constituição de 1824, artigo 79, inciso IX. Em seguida, no decorrer
dos anos, surgiram várias materializações relacionadas ao estabelecimento
prisional e seus aspectos.
Somente em 1977, com a Lei 6.416, de 24 de maio, houve uma mu-
dança considerável no processo penal e no Código Penal, porém, não havia
ainda um código para regular as execuções penais, o que só aconteceu em
1984, com a publicação da Lei 7.210/1984 (Lei de Execuções Penais - LEP).
Logo, a partir deste processo lento de construção, é visível que a situação
prisional sempre fora tratada com descaso pelo poder público. (GOMEZ,
2017, p.16)
Dentro do sistema penitenciário, a divisão dos indivíduos se dá pelo
critério binário, ou seja, o sexo biológico, sendo prevista pela Lei 9460/97,
que altera o artigo 82 parágrafo primeiro da lei 7.210/84, Lei de Execução
Penal: “A mulher e o maior de sessenta anos, separadamente, serão reco-
lhidos a estabelecimento próprio e adequado à sua condição pessoal.”
No entanto, as instituições prisionais foram construídas e pensadas
por homens e para homens. Dessa forma, mesmo com as alterações na lei,
não foram consideradas questões primordiais para a vida da mulher, for-
çando-as a lidar com dificuldades, cabendo destacar a falta de recursos
básicos. (GOMEZ, 2017, p.22)
Portanto, se as pessoas aprisionadas já são invisíveis diante da socie-
dade, para a mulher a situação é ainda pior, visto que na sociedade
patriarcal ela está em uma maior situação de vulnerabilidade em todas as
168 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

esferas sociais, inclusive, no sistema carcerário. As penitenciárias femini-


nas não foram criadas com o objetivo de garantir às mulheres maior
segurança, e sim para garantir a tranquilidade dos homens, pois “a pre-
sença de mulheres nas carceragens perturbavam os presos do sexo
masculino” (HELPES, 2014, p. 71, apud ZANINELLI, 2015).
Os primeiros estabelecimentos prisionais no Brasil eram ligados à re-
ligião, e as mulheres “criminosas” eram levadas a estes locais para serem
“purificadas” e domesticadas. O papel social da mulher é se tornar uma
boa mãe/esposa e cuidar de sua família e a partir do momento em que ela
foge desse padrão, perde seus mínimos direitos apenas pelo fato de ser
uma mulher.
O fato de uma mulher ser “criminosa” em uma sociedade patriarcal
faz com que ela sofra punições mais severas. O trecho de “Mulheres e cri-
anças encarceradas: um estudo jurídico-social sobre a experiência da
maternidade no sistema prisional do Rio de Janeiro”, explica:

A questão das mulheres encarceradas, especialmente aquelas que experimen-


tam a gravidez e o nascimento dos seus filhos na prisão, constitui um dos
aspectos mais perversos da opção por uma política criminal repressiva, com
foco preferencial na pena privativa de liberdade. Se a situação das mulheres
presas configuram uma dupla sanção, por ser ela considerada como ‘crimi-
nosa’ e ainda mais pelo estigma de ‘mulher criminosa’, que ousou violar a
lei dos homens numa sociedade patriarcal, no caso das grávidas e de mães
de filhos pequenos estas ainda recebem mais uma punição: são também pri-
vadas da convivência com seus filhos, com todas as consequências sociais que
decorrem desse distanciamento. (BOITEUX, FERNANDES e PANCIERI, 2015,
grifo da autora).

De acordo com dados do Infopen (2017), a população carcerária geral


brasileira corresponde a 726.354 pessoas. A população feminina corres-
ponde a apenas 5,2% deste número, totalizando 37.828 mulheres. Os três
Camila Versalli Ferreira; Julia Sebastiana Costa dos Santos; Lorena Araújo Matos | 169

principais tipos de regime e natureza de prisões femininas são: presas sem


condenação (37,67%), medida de segurança - internação (36,21%) e pre-
sas sentenciadas em regime semiaberto (16,87%).
A primeira legislação brasileira que determinou a separação de ho-
mens e mulheres em presídios se deu apenas em 1940, período ditatorial
liderado por Getúlio Vargas, o Código Penal deste ano em seu artigo 29,
parágrafo 2°, dizia: “As mulheres cumprem pena em estabelecimento es-
pecial, ou, à falta, em secção adequada de penitenciária ou prisão comum,
ficando sujeitas a trabalho interno.”
O primeiro presídio para mulheres brasileiro se inaugurou em 21 de
abril de 1942, em São Paulo, sob a administração das freiras da Congrega-
ção do Bom Pastor D’Angers, elas que realizavam o trato direto com as
detentas, e mesmo que sua administração legal fosse submetida à peniten-
ciária do Estado, não havia agentes penitenciários, nem agentes policiais.
O prédio não fora construído inicialmente para função prisional-penal, e
sim residencial, após adaptações recebeu o título de “Presídio de Mulhe-
res”. (ARTUR, 2009, p.3).
O número de mulheres presas nessa época já era muito reduzido, as-
sim como os dados atuais. O “Presídio de Mulheres” em seu ano de
inauguração recebeu apenas 7 sentenciadas e no decorrer de 10 anos abri-
gou apenas 212 sentenciadas: “[...] recebendo 07 (sete) sentenciadas:
05(cinco) por homicídio, 01 (uma) por aborto provocado por terceiros e
01(uma) por estelionato [...] de julho de 1942 a julho de 1952, passaram
pelo “Presídio de Mulheres” 212 sentenciadas”. (SILVA, 1992, p.6, apud,
ARTUR, 2009).
Posto isso, é importante observar a divergência dos presídios femini-
nos e masculinos desde sua criação que, realizada em um período de
concentração do Poder Executivo, com o fortalecimento de regimes de
controle e maior repressão, teve os poderes relativos à prisões de mulheres
170 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

transmitido à uma instituição religiosa, retornando aos primeiros ideais


de purificação e domesticação de mulheres em sociedade.
Conforme os dados do Infopen (2017), no Brasil 37.828 mulheres es-
tão privadas de liberdade e no Estado de Mato Grosso 523 mulheres,
equivalente a 1,38% deste quantitativo. Em relação a distribuição das mu-
lheres privadas de liberdade segundo o tipo penal e o regime ao qual está
submetida, no Brasil percebe-se que o crime de tráfico de drogas é o prin-
cipal responsável pelas prisões, com total de 59,95%, o mesmo ocorre em
MT com o total de 70,3%. Ademais, em Mato Grosso 53,92% das detentas
estão em regime provisório, 40,54% estão em regime fechado e 5,54% em
regime aberto.
No que se refere ao perfil socioeconômico das mulheres presas, no
Brasil 25,22% possuem entre 18 a 24 anos, 48,04% são de cor/etnia
parda, 44,42% tem o ensino fundamental incompleto, 58,4% são solteiras
e 28,9% possuem um filho. No Estado de Mato Grosso 33,71% têm entre
18 e 24 anos, 61,22% são de etnia/cor parda, 41,29% possuem o ensino
fundamental incompleto e 56,28% são solteiras.
Houve um crescimento de mais de 400% no número de mulheres
privadas de liberdade entre 2000 a 2016. Em 2017 houve uma simbólica
redução de 7,67%, porém não se pode afirmar que esse número continuou
a reduzir porque não há dados atualizados.
A minoria, segundo Louis Wirth, é um grupo de pessoas que, por suas
características físicas ou culturais serem diferentes dos outros na socie-
dade, recebem um tratamento desigual, e, portanto são considerados
como objetos de discriminação coletiva. (apud SIQUEIRA e ANDRECIOLI,
2019, p.47).
Essa discriminação e invisibilidade sofrida por trans na sociedade é
refletida no cárcere. Dessa forma, é enfrentada de duas formas, primeiro
Camila Versalli Ferreira; Julia Sebastiana Costa dos Santos; Lorena Araújo Matos | 171

como presa e mulher, devido ao seu pequeno número parecem ser esque-
cidas pelo Estado, segundo pela diferença de gênero, inferiorizadas por
uma sociedade machista. (GOMEZ, 2017, p.11).
No que diz respeito ao levantamento de informações sobre a comu-
nidade trans, nota-se que no Brasil há uma ausência em todos os aspectos,
incluindo o cárcere, há poucos dados, pesquisas, estatísticas e, principal-
mente, faltam políticas públicas voltadas para essa população. Essa
ausência de informações, demonstra o descaso das instituições públicas e
do estado com essa causa. (SIQUEIRA e ANDRECIOLI, 2019, p.55-56).
Infelizmente, toda essa situação de preconceito culmina em manifes-
tações através de agressões e ações transfóbicas. E na prisão não é
diferente, Luciana Nascimento (2016, p.44), expõe em sua monografia re-
latos de violências transfóbicas vivenciadas no cárcere, como agressões,
ofensas verbais e estupro. (apud NASCIMENTO, 2020, p.39).
Como citado anteriormente, o Brasil é o país que mais mata transe-
xuais no mundo e sua expectativa de vida é de apenas 35 anos, ou seja, não
é um país que se preocupa em proteger essa população vulnerável em ne-
nhum espaço, inclusive em penitenciárias. A Resolução Conjunta que
estabelece parâmetros de acolhimentos de LGBTQI+ privados de liberdade
no Brasil surgiu apenas em 2014 e possui caráter consultivo, cabendo a
cada estado aderir ou não.
Rafael Damaceno de Assis explica em seu artigo sobre a realidade
atual do sistema penitenciário brasileiro de maneira geral como o Direito
atua sobre o contingente carcerário:

(...) “o Direito Penal, assim como as prisões, estariam servindo de instrumento


para conter aqueles “não adequados” às exigências do modelo econômico ne-
oliberal excludente, os miseráveis, que acabam não resistindo à pobreza e
sucumbindo às tentações do crime, tornando-se delinqüentes. Dentro dessa
lógica, tanto a lei penal como as prisões estariam materializando a doutrina de
172 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Karl Marx, segundo a qual o Direito nada mais é do que instrumento que ser-
viria à manutenção do domínio pelas classes dominantes. Assim, o sistema
penal e, conseqüentemente, o sistema prisional, não obstante sejam apresen-
tados como sendo de natureza igualitária, visando atingir indistintamente as
pessoas em função de suas condutas, têm na verdade um caráter eminente-
mente seletivo, estando estatística e estruturalmente direcionados às camadas
menos favorecidas da sociedade.” (ASSIS, 2007, p.4)

Além dessas violações convencionais carcerárias, os membros da po-


pulação LGBTQI+ sofrem abusos que vão desde o confisco de seus
adereços, que são necessários para que vivam de acordo com seu gênero,
até seu cumprimento de pena com os demais internos, sofrendo violências
sexuais e obrigados a realizar trabalhos forçados de limpeza. Ademais, o
direito à visita íntima também é totalmente violado, com horário e fre-
quência reduzidos a praticamente nada, comparado aos demais presos
tidos como heterossexuais, simplesmente por possuírem uma identidade
de gênero ou orientação sexual diferente do que a sociedade define como
“normal”. (NASCIMENTO; SILVA, 2012, p.6)
A criação de alas específicas para essa comunidade veio para minimi-
zar esses acontecimentos e garantir direitos previstos na Constituição
Federal Brasileira. No próximo tópico será explicado como funciona a Ala
Arco-Íris, situada no Centro de Ressocialização de Cuiabá em Mato Grosso,
uma ala específica criada para reeducandos pertencentes à população
LGBTQI+.

4 Análise e funcionamento da ala específica - Arco-Íris

O curso de Direito da Universidade Federal de Mato Grosso (Campus


Araguaia/Barra do Garças), incentiva a formação dos seus discentes por
meio de pesquisas e cursos de extensão, além do ensino em sala de aula.
Tal fato promove o desenvolvimento de diversos estudos, como o projeto
Camila Versalli Ferreira; Julia Sebastiana Costa dos Santos; Lorena Araújo Matos | 173

de pesquisa intitulado “Corpo, Gênero e Relações de Poder em uma inter-


face com o Direito", coordenado pelo professor Dr. Thiago Galeão.
O Projeto de pesquisa mencionado possui como objetivo geral com-
preender a configuração da estrutura de poder incidente sobre o corpo e o
gênero, e a posição do Direito em sua sustentação e reprodução. Sua pri-
meira fase ocorreu por meio de debates acerca do tema geral e a produção
de uma coletânea de artigos científicos consoantes às ramificações do as-
sunto.
Diante disso, o tema escolhido foi o direito de pessoas transexuais
privadas de liberdade no centro de ressocialização de Cuiabá - CRC/Ala
Arco-Íris. Como exposto anteriormente, a população trans é totalmente
invisível para o Estado. Após exaustivas pesquisas sobre o perfil e quanti-
dade de reeducandas pertencentes ao grupo, não foram encontrados dados
específicos, sendo necessária solicitação de entrevista ao diretor do presí-
dio, com o objetivo de obter informações concretas.
Em virtude do atual cenário mundial, a pandemia de COVID-19, foi
realizada apenas uma entrevista de forma remota sendo respeitadas as
normas de distanciamento social estabelecidas pela OMS. Realizada no dia
14 de dezembro de 2020, participaram da conferência as aprendizes-pes-
quisadoras Camila Versalli Ferreira e Julia Sebastiana Costa dos Santos, a
orientadora Lorena Matos, o Coordenador Thiago Galeão e o diretor da
instituição.
Foram obtidas informações sobre o funcionamento da ala específica,
nomeada Arco-Íris, que acolhe reeducandos(as) pertencentes à população
LGBTQI+. Essa ala foi inaugurada no ano de 2012, contudo, a legislação
que regulamenta seu funcionamento foi publicada apenas em 2017
(INSTRUÇÃO NORMATIVA N.º 001/2017/GAB-SEJUDH).
De acordo com o art. 3°, § 3º desta instrução, fica regulamentado que
os espaços de vivência devem ser implementados em cada polo regional
174 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

do Estado, abrangendo detentas não só da cidade em que a penitenciária


está situada, mas de todos os municípios da região:

Art.3° § 3º. Os espaços de convivência da população LGBT, dentro do Sistema


Penitenciário de Mato Grosso, deverão ser implementados nos polos regionais
do Estado, contribuindo para que a pessoa tenha acesso ao direito de cumprir
a pena em local próximo ao município de seus familiares.

Segundo o diretor do Centro de Ressocialização de Cuiabá - CRC, a


medida de implementação é garantida, possuindo hoje espaços de convi-
vência nas penitenciárias de todos os polos regionais do Estado, situadas
em Cuiabá (ala Arco-Íris - Centro de Custódia de Cuiabá), em Rondonópo-
lis (ala Aquarela - Penitenciária Major PM Eldo Sá Correa), além das
unidades em Sinop e Água Boa. No entanto, a presente pesquisa, refere-se
a ala Arco-Íris situada no polo de Cuiabá.
A unidade em Cuiabá foi a primeira inaugurada em Mato Grosso e a
segunda no Brasil. Situada no presídio masculino, inicialmente, a ala era
localizada em um contêiner no mesmo corredor juntamente com as de-
mais reeducandas. Após o crescimento da ala, foi criada uma unidade
maior, que hoje compreende 9 celas e em cada cela possui 4 camas, totali-
zando 36 vagas. Estão sendo ocupadas atualmente 23 vagas, sendo 20
homossexuais e 3 travestis, segundo o diretor, o número de reeducandas
já chegou a 30, entretanto, nunca houve lotação.
Conforme é estabelecido na instrução normativa, é assegurado à po-
pulação LGBTQI+
em privação de liberdade, atenção integral à sua saúde (artigo 8°) e
a sua educação (artigo 11° e 12°). No que se refere à assistência à saúde, as
detentas possuem tratamento psicológico, com o psicólogo pioneiro do
projeto Arco-Íris, criado em 2012, ele é responsável por toda a logística,
fazendo triagens, entrevistas e acompanhamentos tanto com as detentas
Camila Versalli Ferreira; Julia Sebastiana Costa dos Santos; Lorena Araújo Matos | 175

quanto com seus cônjuges. Cabe ressaltar que o direito à visita íntima,
previsto no artigo 7° da instrução normativa citada anteriormente, é asse-
gurado a todas as reeducandas, segundo o diretor da instituição.
Ademais, são amparados na manutenção de seus tratamentos hor-
monais, conforme sua necessidade e regulamentação médica, esse
trabalho é realizado pela unidade penitenciária em conjunto com o hospi-
tal universitário Júlio Müller. O direito à manutenção do tratamento
hormonal está previsto no art.8°, parágrafo único da Instrução Normativa
N.º 001/2017/GAB-SEJUDH: “À pessoa travesti, mulher ou homem tran-
sexual em privação de liberdade, serão garantidos a manutenção do seu
tratamento hormonal e o acompanhamento de saúde, específico em con-
sonância com o Sistema Único de Saúde - SUS.”
Com relação à assistência educacional, os reeducandas possuem
acesso à educação para jovens e adultos – EJA, no qual podem completar
o ensino fundamental e médio. São oferecidos especificamente para eles
cursos de capacitação, como de cabeleireiro e manicure. O diretor da pe-
nitenciária alega que os cursos de moda e design são os mais solicitados e
que eles realizam esse trabalho buscando conceder uma profissão e rein-
tegrá-los.
As reeducandas também têm direito a uma ou duas vagas nos demais
cursos, junto aos outros presos, no entanto, não se sabe se a relação entre
eles é harmônica ou não, mas o diretor alega que o psicólogo os reúne e
faz acompanhamento com todos para evitar qualquer tipo de situação.
Ainda assim, cabe questionar se a segurança da população LGBTQI+ é re-
almente assegurada quando reunidas com os demais presos ou se o
psicólogo realmente está presente fazendo o acompanhamento em todos
os momentos necessários.
176 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

De acordo com o diretor, todas as detentas são chamadas da forma


que preferem, no caso dos homossexuais pelo seu nome biológico e as tra-
vestis/transexuais pelo seu nome social. Em junho do ano de 2019, a
direção da penitenciária junto com a POLITEC, realizou um trabalho para
reconhecer suas identidades de gênero, com a inclusão de seu nome social
em suas carteiras de identidade.
Ele também informou que o CRC foi a primeira penitenciária no Bra-
sil que teve o nome social implementado no RG e que todas são
identificadas pelo nome social seguindo a regulamentação do artigo 2° da
Instrução Normativa N.º 001/2017/GAB-SEJUDH: “A pessoa travesti ou
transexual em privação de liberdade tem o direito de ser chamada e iden-
tificada pelo seu nome social, de acordo com o seu gênero.”
Em concordância com o artigo 6° dessa mesma Instrução Normativa,
é permitido utilizar maquiagem, pintar e manter os cabelos compridos e
utilizar roupas conforme o gênero, garantindo seus caracteres secundários
de acordo com sua identidade de gênero. No entanto, roupas na cor preta
não são permitidas para as reeducandas, pois são específicas dos policiais
penais, a fim de buscar uma distinção, essa instrução não é somente do
Estado de Mato Grosso, mas de todo país.
Sobre as transferências de reeducandas para a ala específica, devido
a pandemia de COVID-19, está sendo realizada uma triagem no local cha-
mado Capão Grande. Essa triagem é realizada com todas as reeducandas,
não somente o público da ala Arco-Íris, todos permanecem no local por 14
dias para garantir que não haja a proliferação do vírus na penitenciária.
Segundo o parágrafo 2° do artigo 3° da Instrução Normativa N.º
001/2017/GAB-SEJUDH “A transferência da pessoa privada de liberdade
para o espaço de convivência específico ficará condicionada à sua expressa
manifestação de vontade”, ou seja, após a triagem a pessoa deve manifes-
tar interesse para que seja designada à ala para uma segunda triagem que
Camila Versalli Ferreira; Julia Sebastiana Costa dos Santos; Lorena Araújo Matos | 177

agora é realizada por meio de entrevista com o psicólogo, para garantir


que ela de fato pertence ao grupo LGBTQI+.
O diretor relatou um caso de um homem cis hétero, tentar se passar
por homossexual para poder cumprir sua pena na ala destinada ao público
LGBTQI+. Por meio da entrevista com o psicólogo e sua confissão, foi com-
provado que ele apenas queria uma oportunidade para ir para a ala e que,
na verdade, não era homossexual. Ele teve sua transferência imediata para
a ala masculina.
Em relação às pessoas LGBTQI+ que não querem ser transferidas
para a ala Arco-Íris, o diretor afirma que em seus 8 anos de atuação houve
apenas um caso em que a pessoa descobriu que seu ex-namorado estava
em outra ala e solicitou transferência para ela. No entanto, foi descoberto
o motivo da transferência pela administração e, ao final, os dois foram di-
recionados à ala específica.
Quanto a permanência de homens trans na ala, só é possível caso ele
já tenha realizado a troca de nome em seu registro civil, caso contrário ele
deverá ser transferido para a penitenciária feminina. O diretor relata que
já houve um caso em que o transferido vindo de outro município, após
expressa manifestação de vontade e a triagem com o psicólogo não pôde
permanecer na ala, pois ainda não havia feito a alteração de nome em seu
registro civil.
Esse requisito de mudança do registro realizado anteriormente à sua
prisão vai contrário aos princípios de criação da ala específica que consiste
em proteger sua integridade sem atos discriminatórios. Também há uma
discordância com o projeto em conjunto com a POLITEC, visto que ele teve
de ser implantado justamente pelo fato de pessoas transexuais terem difi-
culdades acerca da troca de nome, além de que essa troca não é um “pré-
requisito” para que uma pessoa seja de fato transexual.
178 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Foi questionado acerca das verbas disponibilizadas pelo governo para


o funcionamento da unidade, entretanto não houve resposta. Por fim, o
diretor ressalta que além dos cursos de capacitação, a penitenciária busca
colocar as detentas para trabalhar, tanto internamente quanto externa-
mente, sendo destacados serviços na prefeitura. Além disso, relata que já
houve um casamento com dois casais dentro da ala arco-íris e que já leva-
ram algumas reeducandas para participarem da parada gay, com a
finalidade de integrar e atender as necessidades da população LGBTQI+
privada de liberdade.

Conclusão

Neste artigo, abordamos sobre o direito de pessoas pertencentes a


comunidade LGBTQI+ privadas de liberdade, com foco nas transexuais,
no Centro de Ressocialização de Cuiabá – CRC, Ala Arco-íris, buscando
avaliar a implementação da Instrução Normativa N.º 001/2017/GAB-
SEJUDH que estabelece parâmetros de acolhimento e atendimento à po-
pulação LGBTQI+, privada de liberdade no Sistema Penitenciário do
Estado de Mato Grosso e se os direitos da pessoa trans estão sendo garan-
tidos no CRC.
Para isso, a fim de uma contextualização apresentamos no artigo,
conceituações de sexo, gênero, identidade de gênero e uma pessoa transe-
xual e relatamos a história da criação das prisões femininas no Brasil,
associando à criação da ala especifica. Por último, fizemos uma análise so-
bre o funcionamento da ala arco-íris, através de informações adquiridas
por meio de entrevista com diretor da instituição
Esse caminho nos levou a concluir que por meio da implementação
da Instrução Normativa N.º 001/2017/GAB-SEJUDH, os direitos à popula-
ção LGBTQI+ são em sua maioria garantidos. No entanto, ainda há
algumas questões a serem resolvidas, para assegurar tais direitos de forma
Camila Versalli Ferreira; Julia Sebastiana Costa dos Santos; Lorena Araújo Matos | 179

mais eficaz, como parar de ofertar a essa população cursos de capacitação,


em sua maioria tipicamente femininos, e retirar a exigência de troca de
nome para a permanência do homem trans na ala específica ou oferecer o
processo de troca de nome logo ao chegar na penitenciária, assegurando o
direito de permanência na ala durante tal processo.
Dessa forma, o direito à saúde, à educação, a ser chamado pelo seu
nome social e de poder se vestir conforme seu gênero e os demais direitos
estabelecidos à população LGBTQI+ em privação de liberdade no Sistema
Penitenciário do Estado de Mato Grosso são implementados e garantidos
no Centro de Ressocialização de Cuiabá – CRC, ala Arco-íris.
Cumprimos com os objetivos da pesquisa de avaliar se o direito das
pessoas trans estão sendo garantidos no CRC - ala arco-íris, demonstrar
as dificuldades enfrentadas por elas dentro do sistema penitenciário e
como esses procedimentos penitenciários fragilizam ainda mais questões
de gênero e sexo já enfrentadas em sociedade, e ainda analisar a imple-
mentação da Instrução Normativa N.º 001/2017/GAB.
Por fim, cabe ressaltar que a fim de responder ao tema-problema
proposto e cumprir os objetivos, devido a pandemia de COVID-19, foi rea-
lizada apenas uma entrevista de forma remota, respeitando as normas de
distanciamento social e por isso a entrevista foi realizada com o diretor da
instituição e não com as reeducandas em si. Deste modo, após a pandemia,
planejamos para um estudo futuro entrevistar as detentas, a fim de com-
plementar e comparar todas as informações, buscando uma conclusão
mais eficaz baseada no discurso das próprias detentas.

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dissertacoes-defendidas-1/6854-giovana-zaninelli/file>. Acesso 12 Jan 2021.
Capítulo 8

A significação da mulher dentro do feminismo:


uma análise das discussões do movimento
feminista radical e feminismo transgênero

Camila Rezende Campos de Araújo 1


Clarice Victoria Moreira Soares 2
Lorena Araújo Matos 3

1. Introdução

O movimento feminista tem abarcado o questionamento referente à


experiência como um fator comum capaz de unificar as mulheres. A expe-
riência social vivenciada igualmente por elas teria como base a experiência
corporal consubstanciada na origem biológica; logo, qualquer opressão es-
truturada socialmente é vista sob a mesma perspectiva.
A narrativa compartilhada da sujeitabilidade feminina mostrou-se
problemática com as novas demandas de interesses e pautas - raça, classe,
gênero, sexualidade-, interpretadas à luz da interseccionalidade de opres-
sões.
Entretanto, a preponderância da noção de corpo e sexo biológicos se
depara com limites difíceis de serem superados, como por exemplo, o afas-
tamento de qualquer possibilidade de articulação entre a experiência
transgênera e o discurso feminista, inclusive, o radical. Trata-se de uma
reafirmação de julgamentos de diferenças ao passo que a experiência

1
Acadêmica do Curso de Direito do Campus do Araguaia, da Universidade Federal de Mato Grosso - CUA/UFMT.
Voluntária de Iniciação Científica UFMT/CNPq. Membra do Grupo de Pesquisa Corpo, gênero e relações de poder,
em uma interface com o Direito – CGPD - UFMT/CUA. [email protected]
2
Acadêmica do Curso de Direito do Campus do Araguaia, da Universidade Federal de Mato Grosso - CUA/UFMT.
Voluntária de Iniciação Científica UFMT/CNPq Membra do Grupo de Pesquisa Corpo, gênero e relações de poder,
em uma interface com o Direito – CGPD - UFMT/CUA. [email protected]
3
Mestra em Direito Constitucional. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Pós-Graduanda em Direito Ho-
moafetivo e de Gênero. Professora Universitária e Advogada.
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 185

transgênera é reduzida ao gênero e não ao sexo, posto que não sofreriam


a mesma opressão sexual de feminilidade com o corpo.
Os estudos transgêneros têm se desvinculado dos fundamentos mé-
dicos e adotado outros meios teóricos, como a Teoria Queer de Judith
Butler e os posicionamentos de feministas que compactuam com a pauta
reivindicatória trans desde os anos 70. Ao falar sobre transexualidade,
Stryker (2006 apud BAGAGLI, 2019, p.11) enuncia como uma “condição
pós-moderna emergente” tendo em vista a necessidade de reconheci-
mento identitário de gênero na sociedade e a complexidade dos discursos
binários no qual se ancoram.
A ampliação da experiência “ser mulher” conflita com os discursos
das feministas radicais em que a identidade de gênero trans reforçaria a
naturalização do gênero-binário ao invés de propagar o fim dessas catego-
rias, questionando assim, a legitimidade do seu reconhecimento. Na
tentativa de serem aceitas -ainda que minimamente-, muitas pessoas trans
recorrem a explicações de base natural como forma de garantir o acesso à
saúde (cirurgias de alteração corporal, tratamento com hormônios). Isso
em virtude da falta de esclarecimentos definitivos acerca das diferenças.
“Uma das tensões em potencial entre ativismo transgênero e femi-
nismo se expressa nas diversas ocasiões em que os interesses e direitos da
população transgênera e de mulheres cisgêneras são vistos como mutua-
mente excludentes, antagônicos ou irreconciliáveis [...].” (MAYEDA, 2005
apud BAGAGLI, 2019, p. 12).
Ao invalidar as identidades trans através de argumentos críticos ou
hostis em relação à sua inclusão no feminismo, as feministas radicais, por
sua vez, trans-excludentes, reforçam a marginalidade, em específico, de
mulheres que vivem em desacordo com as normas hegemônicas de gênero
e sexualidade. O Feminismo se reconhece como branco, cisnormativo, he-
terossexual e medioclassista.
186 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

A reivindicação de reconhecimento pelo transfeminismo se ancora na


ideia da identidade como relacional, não se restringindo apenas as deman-
das feministas, mas como uma condição que afeta toda a sociedade. As
situações cotidianas que decorrem da negação da identidade e da subjeti-
vidade da pessoa transexual devem ser levantadas para que haja uma
mudança no ambiente epistemológico.
Ao defender as suas singularidades, as transfeministas atentam para
a contribuição da introdução de suas demandas às pautas do Feminismo,
seja pela materialização da multiplicidade do sujeito feminista abrangendo
todas as pluralidades de opressões naturalizadas, seja servindo de resis-
tência conjunta. Diante disto, não se inferioriza um grupo sob outro, muito
menos por meio de discursos contestados pelo próprio viés de luta política.
Ainda que as mulheres trans saibam da dificuldade de englobar a todos no
interior do feminismo, não desconsidera o potencial de reivindicação como
um todo. A intenção é somar e não excluir.
Sendo assim, ativistas trans têm se movimentado nos ambientes vir-
tuais, nos quais as mediações de massa são em menor proporção,
construindo um espaço de luta política amplo. A visibilidade trans on-line
têm a finalidade de romper com a naturalização das categorias jurídicas,
desconstruindo discursos normatizadores e essencialistas de gênero de
forma clara e simples.
Partindo destas premissas, este trabalho tem como objetivo demons-
trar a influência dos discursos feministas radicais (trans-excludentes)
sobre o reconhecimento identitário trans à luz da concepção de identidade
de gênero como vetor interseccional. Por se tratar de uma retórica que
reforça o essencialismo de gênero e, consequentemente, a categorização
da mulher, é notório a importância de se analisar de forma crítica os dis-
cursos contrários ao movimento transgênero, tendo em vista a
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 187

necessidade de se desvelar destes instrumentos, frutos de relações de po-


der, duramente criticados pelo Feminismo.
Para tanto, ao início, será exposto no capítulo “Concepções teóricas
do movimento feminista radical” os discursos reproduzidos desde os anos
70, bem como os novos interesses do ativismo na contemporaneidade;
tendo como objetivo fornecer embasamento teórico para uma melhor aná-
lise sobre a influência na validação da identidade trans.
Em seguida, em “Transexualidade, identidade de gênero e teoria
queer” será apresentado os conceitos básicos vinculado ao gênero, com in-
tuito de tornar mais claro o entendimento destas noções e, sobretudo,
facilitar a comparação dos discursos feministas radicais e transfeministas
à luz de abordagens teóricas contemporâneas como a Teoria Queer –resis-
tência às estruturas sociais hegemônicas-.
Ao final, é discutido no tópico “Reconhecimento identitário, visibili-
dade e a influência do movimento feminista radical no reconhecimento
identitário trans ” acerca da inteligibilidade da identidade trans e os efeitos
decorrentes do seu não reconhecimento, contribuindo para a perpetuação
do sofrimento violento, opressor e transfóbico de vidas transgêneras.
Posto isto, busca-se responder o seguinte problema: Em que medida
a concepção teórica sustentada pelo movimento feminista radical afeta o
reconhecimento trans?. Sendo assim, para resolver o problema de pes-
quisa valer-se-á da metodologia de pesquisa bibliográfica, através do
levantamento de artigos para a formação de posições teóricas necessárias
à reflexão crítica sobre o contexto transfeminista e os discursos antagôni-
cos.

2. Concepção teórica do movimento feminista radical

As concepções de gênero se introduziram nos anos 70 ao movimento


feminista e, a partir daí, vem sendo concebida de modos diferentes pelas
188 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

suas várias vertentes ideológicas. Trata-se de uma pluralidade teórica de


“Feminismos”, que visam, em teorias gerais, o reconhecimento da condi-
ção subordinada da mulher dentro da sociedade enquanto causa social,
questionando os papéis de gênero oriundos de um determinismo biológico
do corpo e incorporando uma consciência coletiva contra as formas de do-
minação.
É neste cenário de tendências ideológicas plurais que se identifica o
feminismo interseccional, referindo-se à noção de gênero e raça como pro-
dutores de hierarquias e desigualdades. A diversidade é central para o
debate, articulando a luta feminista ao combate à outras formas de opres-
são, tendo como enfoque as diferenças entre as mulheres. (RIBEIRO;
O’DWYER; HEILBORN, 2018, p. 84)
No final da década de 70, com a segunda onda do movimento –aqui,
o termo “ondas” se refere ao momento histórico e as novas pautas, priori-
dades e metodologias-, o feminismo radical ganha força com a propagação
dos debates acerca das igualdades e diferenças sociais, a integração das
mulheres no mundo capitalista e a luta contra as formas de supremacia
masculina. (PULEO, 2005 apud SOUZA, 2017)
O movimento feminista “radical”, como o próprio nome diz, corres-
ponde a uma radicalidade no ideal feminista, principalmente no aspecto
subversivo de se contrapor à subordinação masculina das mulheres, isto
é, contra o patriarcado. Além disso, alega que é na diferenciação sexual
entre homens e mulheres que o patriarcado consolida suas raízes primá-
rias de manutenção da opressão feminina. Para Silva (2008), a opressão
das mulheres deriva da estrutura social e não apenas pela noção de um
determinismo biológico. Analisa-se as relações de poder por um viés his-
tórico, político, social e racial.
Os pressupostos teóricos do feminismo radical encontram-se nas
obras “A dialética do Sexo” (Shulamith Firestone), “Política Sexual” (Kate
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 189

Millet) e “O segundo sexo” (Simone de Beauvoir). Não obstante, existem


autoras feministas radicais com abordagens teóricas diversas, como
Monique Wittig, Susan Brownmiller, Adrienne Rich que trazem como
críticas a:

[...] utilização do conceito de patriarcado como dominação universal; uma no-


ção de poder e de política mais ampliada; a utilização da categoria gênero como
forma de distinguir os aspectos sócio culturais dos aspectos biológicos e como
elemento crítico para desarticular as relações de poder; uma análise da sexu-
alidade que irá realizar críticas à heterossexualidade como compulsória; a
denúncia da violência patriarcal e a crítica ao androcentrismo em todos os âm-
bitos da vida. (SOUZA, 2017, p.42).

Neste sentido, o grande marco do feminismo radical da década de 70


diz respeito a busca pela valorização dos direitos sexuais e reprodutivos
das mulheres, a conscientização das mulheres sobre o próprio corpo e a
problematização da estrutura masculinista/machista e, sobretudo, a ideia
de que as opressões vêm das dimensões políticas dos corpos das mulheres.
(SILVA, 2008 apud SOUZA, 2017, p.43).
Ao analisar os discursos preservados desde as origens do Feminismo
Radical, é importante ressaltar que, ainda que existam teóricas com ideais
similares, o surgimento de novas demandas fez com que as pautas con-
temporâneas incluíssem novos campos discursivos reivindicatórios,
podendo caracterizar a seu modo, em uma nova categoria de feministas
radicais ou ainda, na quarta onda do feminismo. (RIBEIRO; O’DWYER;
HEILBORN, 2018)
Neste contexto, cria-se uma sub-categorização no interior do discurso
feminista radical em que as pautas de reivindicação se estabelecem nos
posicionamentos críticos ou hostis à inclusão das pautas de pessoas
190 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

transgêneras4 dentro do Feminismo (BAGAGLI, 2019, p.24). Tais


reivindicações políticas se propagam através do ciberativismo, sendo
conhecidas como a nova geração de feministas radicais Radfem e/ou
Terfs.5
A resistência da inclusão da demanda trans no arcabouço teórico e
político do movimento feminista compactua para a perspectiva trans-ex-
cludente. Logo, ainda que infinitas as possibilidades de pautas feministas,
Souza (2017) questiona como as novas gerações de feministas brasileiras
que fazem uso dos discursos acerca da diversidade e pluralidade, encon-
tram respaldo para um feminismo radical contrário às pautas trans. Mas,
é através das redes sociais que as pessoas trans debatem, criticam e tensi-
onam inclusive, o feminismo radical.
Os argumentos antagônicos do feminismo instigam uma rearticula-
ção do conceito de identidade, visto que tem como fundamento o fato de
serem “mulheres nascidas de mulheres”, “mulheres de corpo feminino”.
(HALBERSTAM, 2017 apud BAGAGLI, 2019, p.25) Trata-se de um retro-
cesso pois tais argumentos têm sua raiz nos discursos biológicos e
essencialistas.

A argumentação que recusa a entrada de mulheres trans em contextos femi-


nistas tem como base três noções principais: a de que essas mulheres
passaram por uma socialização masculina que lhes dá privilégios que não po-
dem ser relativizados; a de que tais mulheres não teriam experiências
femininas essenciais tais como a menstruação e a maternidade; e, por fim, a
de que mulheres trans estariam reproduzindo estereótipos de feminilidade

4
A expressão é suada para identificação de todas as identidades não cisgêneras: transexuais, travestis, não binários
5
A sigla Terf, Trans exclusionary radical feminists, é utilizada para categorizar a corrente ideológica contrária à
inclusão de mulheres trans dentro do Feminismo sob a justificativa de que se submeteram a uma socialização mas-
culina e, portanto, devem ser tratadas como homens, havendo negação de sua identidade. Ativistas dessa vertente
são nominadas como “feministas radicais trans-excludentes” ou “feministas radicais”. (RIBEIRO; O’DWYER;
HEILBORN, 2018, p. 91)
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 191

que o movimento feminista vem tentando desconstruir. (RIBEIRO; O’DWYER;


HEILBORN, 2018, p. 91)

Em sua defesa, as mulheres trans ou Transfeministas argumentam


que nem todas as mulheres, sejam elas cis6 ou trans, possuem útero ou
tenham tido a experiência de maternidade. Além disto, ao se referir à re-
produção de estereótipos, ambas o fazem. De todo modo, a invalidação da
identidade trans é fruto do dispositivo de cisgeneridade7 e dos papéis se-
xuais atribuídos aos homens e as mulheres.
A hostilidade desencadeada pelo feminismo radical tem ligação direta
com as formulações de Janice G. Raymond, considerada de forte influência
no imaginário feminista radical, inclusive por integrar o movimento “mu-
lheres nascida mulheres”. Na sua concepção teórica, a condição de mulher
trans deve ser eliminada, pois é parte do próprio sistema patriarcal, repro-
duzindo estereótipos e servindo como uma invasão masculina aos espaços
e corpos femininos. (HALBERSTAM, 2017 apud BAGAGLI, 2019, p. 29).
Vale mencionar o poder deste tipo de pensamento para outros grupos não
feministas (ex. conservadores, religiosos) como forma de justificar a ex-
clusão trans.
Um dos posicionamentos marcantes das Radfem pode ser encontrado
em Sheila Jeffreys ao elencar que os ativistas trans utilizam o gênero de
modo a amenizar a dominação masculina, valendo-se da identidade de gê-
nero como “algo que se prefere” e não como um mecanismo de opressão.

6
A expressão cis faz referência aos indivíduos cuja identidade de gênero está em “coerência” com o sexo biológico
atribuído socialmente no seu nascimento. Daí o uso derivado de “cisnorma”, “cissexismo”, “cisgeneridade” como
termos políticos para vislumbrar esta posição privilegiada em relação à população transgênera.
7
A cisgeneridade representa as estratégias de naturalização/normalização por meio dos discursos heteronormativos
em sociedade. Tais formas estratégicas operam em conjunto com o determinismo biológico criando paradigmas nor-
mativos de gênero.
192 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

[...] ativistas transgêneros essencializam o gênero ao tratá-lo como uma iden-


tidade, pois isso desconsideraria os usos do conceito de gênero que criticam as
violências que mulheres enfrentam ou estão expostas em uma sociedade pa-
triarcal. [...] mulheres seriam oprimidas em virtude do sexo ao invés da
identidade de gênero e que ativistas trans e teóricos queer fazem uso da cate-
goria de gênero no lugar daquilo que deveria ser designado como “papéis
sexuais”. (BAGAGLI apud JEFFREYS, 2019, p. 34)

Dessa forma, é evidente que para Jeffreys, a identidade trans só é re-


conhecível se adotada numa perspectiva essencialista, ou seja, por servir
de controle do comportamento social, estimula as expectativas já projeta-
das sobre o sexo feminino. Além disto, problematiza a categorização do
sujeito como transgênero haja vista o ato de “categorizar” ser fruto do sis-
tema político de dominação masculina. (LAMARÃO, 2015 apud BAGAGLI,
2019, p. 40).
O resultado dessa categorização teria reflexo nos casos de insatisfação
da cirurgia de redesignação sexual, pois as demandas por alterações de-
correriam de uma internalização dos padrões de gênero e, se não existisse
a opressão, não haveria a necessidade de intervenções cirúrgicas.

A busca por intervenções corporais [...] é vista como incompatível com uma
perspectiva feminista crítica em relação às normas sociais de gênero [...]: ou
se defende a transformação da sociedade a partir da crítica feminista às nor-
mas de gênero ou se demanda alterações corporais que estariam em
conformidade com estas normas de gênero; altera-se a sociedade para se man-
ter intactos os corpos, alteram-se os corpos para se manter intacta a sociedade.
(RAYMOND, 1979 apud BAGAGLI, 2019, p. 45-46)

A estratégia argumentativa8 de que as intervenções médicas refor-


çam os papéis de gênero recai diretamente na negação da autenticidade

8
Billings e Urban (apud BAGAGLI, 2019, p.45) consentem quanto ao entendimento influente das autoras Raymond
e Jeffreys, em especial, de que o “[...] transexualismo é uma realidade socialmente construída que só existe através
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 193

das pessoas trans, atribuindo a culpa por sustentarem este sistema. No


entanto, tal visão desconsidera a quantidade ínfima de médicos que aten-
dam a tais demandas, e que, antes mesmo da existência de cirurgias de
redesignação, já havia indicativos de discursos transexuais. Não obstante,
ignora a realidade pós-operatória marcada pela discriminação, assédio e
violência resultando em crimes de ódio.
Do ponto de vista das transgeneridades enquanto “presos no corpo
errado9” interligado com o discurso médico, Wilton (2000 apud BAGAGLI,
2019, p. 37) alerta para os efeitos representativos nos debates políticos de
gênero e sexualidade. Isto pois, há a convicção de que a transexualidade
desalinha corpo e identidade de gênero por tratar como natural tanto o
gênero quanto o sexo ao utilizar as expressões “mulheres presas em cor-
pos de homens”; “homens presos em corpos de mulher”.
Desta forma, as concepções trans-excludentes reforçam o determi-
nismo biológico entre os sexos e a sua experiência social condicionante
(“socialização de gênero10”), ao passo que a subjetividade feminina da mu-
lher cis se constrói socialmente e sem escolhas, já as mulheres trans optam
por escolhê-la. Não há uma vivência opressora, se auto qualificam. À vista
disso torna-se impossível a possibilidade de existir uma autenticidade
digna de corpos trans passível de ser reivindicada pelo Transfeminismo
como luta coletiva.

da prática médica, além de refletir e ampliar a lógica capitalista da reificação e mercantilização que simultaneamente
reafirma os papéis tradicionais de gênero”.
9
Outras expressões são exteriorizadas dentro dos discursos trans-excludentes: “Transexualismo como um abuso
médico e mutilação”- quanto às intervenções cirúrgicas; “Insatisfação de gênero”- como condição política instituída
pela dominação masculina na sociedade; “Transexuais estupram os corpos das mulheres”- no sentido de apropriação
do corpo feminino para si próprios, pelo ato de enganar as pessoas com quem se relacionam, logo “sedutores, vio-
lentadores de mulheres lésbicas”; “Feminista lésbico transexualmente construído” – noção de socialização de gênero
e não de identidade trans; dentre outros. (BAGAGLI, 2019)
10
Os estereótipos de gênero são entendidos como “socialmente construídos” na formação teórica feminista radical e
internalizados subjetivamente (ou prescritos) a partir de um processo que pode ser designado como “socialização de
gênero”. (JEFFREYS apud BAGAGLI, 2019, p. 70). Ao se identificarem como homens ou mulheres subtende-se que
os sujeitos passam por essa socialização.
194 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Quanto aos padrões estereotipados de gênero, é notório a discordân-


cia de identidades, visto que o transexual, rotineiramente, necessita
comprovar a sua condição – o que é irrefutável ao sujeito cis-, além de ser
acusado por fortalecer o binarismo sexual dentro da sociedade (cultural-
mente biológica e patriarcal).
Portanto, as críticas das Radfem simbolizam o ressurgimento de uma
luta histórica no Feminismo, referente a recusa do essencialismo da cate-
goria “mulher” e às questões entre igualdade e diferença. Assim, sendo o
transfeminismo remetido à uma adversidade política por desconstruir a
homogeneidade do sujeito e a formação de identidades essenciais, favo-
rece, gradativamente, as relações de subordinação. A associação aos
padrões hegemônicos sociais inclina-se a um reducionismo a respeito das
identidades trans, excluindo as peculiaridades da vida de cada indivíduo
no decorrer do tempo.

3. Transexualidade, identidade de gênero e teoria queer

Nos diversos âmbitos da nossa sociedade o entendimento da transe-


xualidade ainda é perpassado por discursos que tomam como base
argumentos biológicos e médicos tendenciosos a patologizar, estigmatizar,
marginalizar e excluir a transexualidade.
A emergência de uma movimentação a respeito da despatologização
da população trans e a formulação de novas estratégias discursivas propôs
a reconsideração do imaginário social, visto que este é ligado à noção de
uma divisão morfológica rígida e imutável entre sexo e gênero servindo
como um fator de opressão por regular corpos não conformes a norma
binária homem/pênis e mulher/vagina.
No que se refere às mulheres trans e travestis é comum o apareci-
mento de críticas que utilizam desse mesmo discurso para reproduzirem
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 195

o preconceito e, essencialmente, a transfobia. Não é raro a ideia que mu-


lheres trans e travestis não são mulheres por causa da genitália.
Entretanto, um dos perigos da utilização de argumentos biológicos e mé-
dicos para justificar a segregação e exclusão é repetir e, ao mesmo tempo,
sustentar um dos principais e mais fortes pensamentos que contribuíram
para a diminuição e a supressão das mulheres ao longo da história.
O sexismo que alude e direciona discursos biologizantes ou que bus-
cam a naturalização/essencialização da mulher -como “para ser mulher
tem que ter vagina, útero e ovário”- prejudica não apenas a população
transgênero, mas todo e qualquer ser humano que não se enquadre em tal
modelo. A exemplo de mulheres histerectomizadas11 e/ou mastectomiza-
das12 e homens orquiectomizados13 e/ou “emasculados”14 por motivos de
saúde, como o câncer. Até mesmo práticas sexuais são estigmatizadas pelo
aspecto sexista, pela penetração em um homem por uma mulher, ato con-
siderado como uma “inversão” nos papéis sexuais tradicionais de gênero,
todavia, comum entre casais heterossexuais.
“Desde o nascimento, comportamentos padronizados de um mundo
bipartido em masculino e feminino são transmitidos às crianças, sem que
seja oportunizado qualquer questionamento, bem como não há uma edu-
cação sexual apropriada. ” (CARDIN; GOMES, 2013, p.2). Definindo como
padrão e verdade o binarismo característico da heteronormatividade, clas-
sificando o que se encontra fora desta ordem, ilícito ou imoral.
As anatomias genitais, tradicionalmente, eram entendidas como fe-
minina (vagina) ou masculina (pênis), generalizando suas concepções de
mundo com base na crença de que o sexo seria algo universal (todos os

11
Intervenção cirúrgica que consiste na extirpação do útero.
12
Retirada de mamas.
13
Extirpação de testículos.
14
Termo só representativo da visão cissexista ou dimórfica sobre os corpos, que se refere à retirada da genitália
externa masculina
196 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

seres vivos teriam sexo), binário (macho e fêmea) e globalizante das iden-
tidades e dos papéis sociais.
No entanto, segundo Cardin e Gomes (2013), o sexo corresponde ape-
nas “às características biológicas que são os aparelhos reprodutores, seu
funcionamento e às características decorrentes dos hormônios”. Neste
sentido, nem sempre as expectativas sociais relacionadas às pessoas nas-
cidas com determinadas configurações biológicas (femininas ou
masculinas) redundarão na identificação com certo gênero (homem ou
mulher).
A orientação afetiva sexual é um desejo e uma manifestação de von-
tade afetiva de um indivíduo pelo outro. A falta desta ou a pluralidade de
desejo caracteriza apenas uma das variantes das orientações sexuais, como
por exemplo, a bissexualidade. E é conceituada por Jesus (2012, p. 15)
como a “atração afetivo-sexual por alguém. Sexualidade. Diferente do
senso pessoal de pertencer a algum gênero. ”
No que tange ao conceito de gênero, relaciona-se a um conjunto de
representações sociais, culturais, econômicas e até mesmo religiosas, cons-
truídas a partir da diferença biológica dos sexos. Na sua construção é
adotado o desenvolvimento da noção de “masculino” e “feminino” en-
quanto construção social. Deste modo, a identidade de gênero consiste na
imposição da sociedade para transformar o ser nascido com vagina em
mulher, ou pênis em homem. As instituições sociais possuem o papel de
realizar e fiscalizar essa construção ao longo do desenvolvimento da cri-
ança como, por exemplo, a família, a igreja e a escola.
A construção social aliada à imposição de uma normatividade desen-
cadeia a marginilização dos indivíduos que não se compreendem nessa
dicotomia, entre sexo e gênero enquanto harmônicos, sujeitando-os a tra-
tamentos diferentes e exclusivos perante a sociedade.
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 197

Segundo Jesus (2012b), o termo “cisgênero” seria um conceito


“guarda-chuva” que abarca as pessoas que se identificam com o gênero
que lhes foi determinado em seu nascimento, ou seja, as pessoas não-
transgênero. Em contrapartida, a criação e a utilização de um termo que
designe as pessoas consideradas “normais” pela expressão “cisgênero” -
pessoas não-trans- corrobora com a ideia “mulher/homem biológico” ou
“mulher/homem normal”. As pessoas trans, por sua vez, são inseridas em
categorias de anomalia e tratadas de forma desumanizada. Com efeito, so-
brevém o termo Cissexismo para atribuir os discursos e expressões usados
para excluir e invalidar, mesmo que indiretamente, as identidades de pes-
soas trans.
“A construção do gênero se dá pelo estabelecimento de discursos que
naturalizam a divisão sexual e binária das composições biológicas dos cor-
pos. ” A partir do legado de Foucault, e tendo com precursora Judith Butler,
constituiu-se uma nova abordagem da construção de gênero pós-estrutu-
ralista, nominada Teoria Queer, utilizando-se do ”discurso inverso” o qual
preconiza a defesa de seus interesses pelos homossexuais por meio do uso
das categorias e terminologias usadas para marginalizá-los (FOUCAULT,
1979 apud FONSECA, SANTANA, p.6). Queer é todo corpo anormal, todo
corpo esquisito e que escapa da norma padronizante acerca da sexuali-
dade.
A teoria reforça a ideia de que a sexualidade não é fundada na natu-
reza, e sim por relações produtivas de poder, pensando no surgimento de
novas identidades sexuais e suas reivindicações oponentes ao binarismo.
Desta desnaturalização do sexo biológico, permite-se a discussão e o ques-
tionamento da divisão sexual binária.
Segundo Fonseca e Santana, “não é a natureza o fator a definir a se-
xualidade e sim os discursos de saber e as técnicas de poder que amansam
o corpo a moldar os padrões aceitos de sexualidade”. Assim, a identidade
198 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

de gênero do indivíduo não nasceria com o aparelho sexual biológico, mas


se consolidaria como produto do discurso que o qualifica e enuncia como
sexuado.
Partindo desta perspectiva, o feminismo dialoga com Foucault,
quando da discussão política sobre o corpo assujeitado, objeto de prazer e
de uso alheio, submetido às políticas morais ou demográficas de Estado,
prisioneiro de uma sexualidade normativa e heterossexual. Em outros ter-
mos, há uma politização da sexualidade e com isso a regulação dos corpos
em sua manifestação sexual. Os corpos que fogem ao padrão são submeti-
dos a mecanismos de desqualificação, assim como corpos que não se
comportam dentro do desenho estabelecido como o “normal e próprio” de
cada gênero também acabam por sofrer discriminação.
Esse é um dos emblemas de uma das linhas feministas que questio-
nam o papel desenhado para a mulher dentro de uma cultura
heteronormativa. Não existe apenas um binarismo biológico, assim como
também não há outro para as imagens de cada gênero, basta atentar-se às
propagandas para perceber que a mulher é ligada à sensibilidade e o ho-
mem à força e competitividade.
Desta forma, Judith Butler (1990) diz que não há gêneros fora da ex-
pressão de gênero, ou seja, é o social, com seus sentidos, valores e escolhas
que define o sexo como prioritário nas expressões do humano. Assim, vem
a pensar especificamente a identidade de gênero para pensá-la em termos
de performatividade.
A performatividade de gêneros, isto é, a reiteração performativa do
gênero produz o nosso ser sexuado. O gênero deriva dos regulamentos da
nossa vida, culturais, morais e sociais e que o corpo sexuado assume, como
tal, assimilando o gênero por uma repetição de atos considerados perfor-
mativos. Logo, o gênero atua como uma norma reguladora do corpo, pois
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 199

o gênero é que constrói o sexo, invertendo a proposição tradicional do


sexo/gênero adotada de forma inconsciente pela sociedade.
A proliferação de novas identidades sexuais é resultado das reivindi-
cações de identidades contrárias à ordem heternormativa imposta pela
sociedade. Sendo assim, a perspectiva queer no que diz respeito aos pro-
cessos sociais normalizadores ressignificou as subjetivações de cada
indivíduo, abrangendo pluralidade de vivências da sexualidade e sendo re-
sistência à categorização que amolda os sujeitos e as identidades como
correntes e regulares.

4. Reconhecimento identitário, visibilidade e a influência do movimento


feminista radical no reconhecimento identitário trans

A insurgência de novas categorias dentro de movimentos específicos


está relacionada com as mudanças das representações sociais. Tais repre-
sentações perpassam pela noção de visibilidade e reconhecimento
identitário de cada grupo e suas especificidades. O Transfeminismo en-
quanto movimento social, luta pela legitimidade, reconhecimento e a
inserção de mulheres trans no interior do Feminismo, tendo em vista o
âmbito de reivindicação pautado na solidariedade participativa.
A construção da ideia de sujeito possui ligação intrínseca com a inte-
ligibilidade uma vez que a condição de existência se dá pela subjetivação.
Na formação dos sujeitos há a necessidade de identificação com os padrões
normativos de gênero onde a matriz heterossexual norteia a possibilidade
de aceitação ou negação de identidades. O abjeto neste caso, são corpos
excluídos, sem legitimidade e reconhecimento em sociedade. É neste ce-
nário que o movimento transfeminista se inclui.
Neste sentido, a subjetividade transgênera pressupõe uma auto-iden-
tificação e a não aderência aos regimes de verdade, ou seja, encontra-se
fora do próprio mecanismo que a produz. Todavia, Butler (BAGAGLI,
200 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

2019, p. 138) demonstra que, por mais que se apresentem com caráter
negatório, não se deve considerar as identidades trans para além de um
domínio de verdade. O ato de se posicionar na busca por reconhecimento
não significa se exteriorizar daquilo que lhe é inerente.
Bettcher (apud BAGAGLI, 2019, p. 133) denomina a auto-identifica-
ção como uma voluntariedade de gênero, isto é, as demandas pelo
reconhecimento trans são pautadas na livre escolha da expressão de gê-
nero marcando a evasão das estruturas normativas. Em contrapartida,
esta concepção não vislumbra a opressão de gênero decorrente das rela-
ções de poder. Logo, uma abordagem transfeminista deve versar sobre as
experiências e opressões socialmente estruturadas, a fim de configurar
desde o início como resistência a categoria mulher.
Ao falar sobre reconhecimento identitário, é frequentemente utili-
zado a identidade de gênero para se referir às mulheres trans, e o gênero
apenas para as mulheres cis. A inteligibilidade dos corpos trans é questio-
nada, sendo necessário identificar-se para assegurar uma existência
legítima. Isto implica na ruptura da cisgeneridade enquanto representação
da identidade de gênero. A reivindicação se volta à não designação de uma
identidade transexual (BUENO apud BAGAGLI, 2019, p. 142), mas não se
exclui a afirmação das diferenças, uma vez que abrange as vulnerabilida-
des de cada luta afirmativa.

A necessidade do reconhecimento implica a própria vulnerabilidade do sujeito


na medida em que pressupõe a imprevisibilidade contida na possibilidade da
falta de reconhecimento, mas assinala, ao mesmo tempo, o caráter irremedia-
velmente relacional do sujeito. (BAGAGLI, 2019, p. 143)

Se, por um lado, o discurso feminista radical segundo o qual a afir-


mação identitárias trans reitera os estereótipos de gênero (eliminando
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 201

qualquer possibilidade de influência cis), por outro, ignora-se as vulnera-


bilidades da condição de existência destas pessoas. A necessidade de se
reivindicar uma identidade de gênero como forma de garantir o seu reco-
nhecimento e visibilidade social, caracteriza a posição de vulnerabilidade,
dado que o seu corpo não lhe dá base para afirmar sua própria identidade.
Diante disto, é perceptível que a existência e identidade dos sujeitos
trans é, a todo momento, marcada pela incompletude, fruto de uma cisge-
neridade compulsória. Qualquer articulação de pertencimento está fadada
ao fracasso, reforçando o estigma e a invisibilidade trans. Por consequên-
cia, ao falarem de si, o fazem por meio de uma visão essencialista15
internalizada como estratégia de aceitação em uma sociedade de violências
e preconceitos, mas sem a intenção de essencializar identidades.
A marginalização e a discriminação social são reflexos das pressões
vivenciadas pelas populações que vivem em desacordo com a matriz nor-
mativa de gênero e sexualidade. Homens e mulheres trans são oprimidos
a ocultarem os sinais de masculinidade/feminilidade desembocando na
chamada passabilidade cisgênera16, haja vista o receio de sofrer rejeições
em suas relações sociais (família, amigos, colegas, mercado de trabalho,
etc). Nesta lógica, Bagagli (2019) argumenta que:

Existem razões objetivas, que decorrem do fato de vivermos numa sociedade


estruturada pela transfobia, que levam pessoas trans a terem que lançar mão
do essencialismo ou da conformidade de gênero como uma estratégia de so-
brevivência. Não se trata de meros caprichos subjetivos ou de falta de uma

15
Pessoas trans afirmam que “não escolheram serem assim” ou que “sempre se sentiram homens ou mulheres”
como tentativa de serem aceitas- ainda que de forma mínima- pela sociedade. Seja para não serem expulsas de casa,
da escola ou de qualquer outra instituição normalizadora, bem como para garantir o acesso à saúde (cirurgias de
redesignação, em particular) e, sobretudo, para lutar por sua existência, reconhecimento e visibilidade.
16
A “passabilidade cisgênera” representa a pressão do enquadramento das pessoas transgêneras nas expectativas
normativas do gênero com o qual se identificam. (BAGAGLI, 2019, p. 148). Ou seja, o indivíduo trans “passa” como
seu gênero de identificação, ninguém percebe que ele é trans, as pessoas o enxergam com cis. Neste sentido, a pas-
sabilidade cisgênera vêm sendo utilizada como uma espécie de vantagem-necessária- para uma convivência social.
Todavia, questiona-se: Tal passabilidade é ser você mesmo ou o que a sociedade espera de você para que seja aceita?
202 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

perspectiva crítica como costumam interpretar algumas correntes feministas


radicais.

Sendo assim, a não conformação de gênero implica na visibilidade


daqueles que não se amoldam aos ideais sexistas da sociedade- em especí-
fico, os transexuais.
As manifestações das RadFem contra o Transfeminismo são, inevita-
velmente, uma forma de inviabilizar a sua inclusão a partir de argumentos
que são contestados pelo próprio movimento feminista, sendo imprescin-
dível a construção de um olhar crítico à complexidade da categoria mulher
como representação de luta política.
Atualmente, é através das redes on-line que as mulheres trans encon-
tram espaço para disseminar os diálogos e discussões de forma pedagógica
e inclusiva, e se defender das mais variadas formas de preconceitos, inclu-
sive, das feministas radicais. O ciberativismo representa um ambiente
“livre” e mais amplo na luta por afirmação, reconhecimento e visibilidade
sobre as lutas políticas de movimentos sociais.
Posto isso, o alicerce teórico construído sob o prisma trans-exclu-
dente do feminismo radical interfere justamente na desconstrução dos
regimes de verdade socialmente incorporados e fortalecedores da manu-
tenção do ideal hegemônico de gênero. Assim, além de dificultar o
reconhecimento identitário e a visibilidade do movimento trans, persiste
na continuidade de uma visão limitada, sexista, heteronormativa, cisgê-
nera e, sobretudo, transfóbica.

Conclusão

No entrecruzamento dos discursos antagônicos a respeito da signifi-


cação da mulher dentro do Feminismo, seja pelo movimento das RadFem
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 203

ou pelo Transfeminismo, verifica-se a urgência de uma mudança no am-


biente epistemológico referente ao “ser mulher” em sociedade. Não apenas
para englobar as narrativas plurais dos grupos sociais, mas para trazer à
tona o olhar para as vivências cotidianas que, muitas vezes, resultam em
morte.
Quando o feminismo radical apresenta argumentos excludentes e
marginalizadores sobre a população trans ao movimento feminista, não só
desconsideram as suas pautas como também reforçam o seu não reconhe-
cimento contribuindo para a opressão esmagadora e violenta imposta
socialmente. Aqui a ideia de reconhecimento é remetida a condições dignas
de existência enquanto ser humano, suprindo as necessidades básicas e
essenciais a todos, incluindo ainda, a perspectiva da aceitação social. Esta
última, têm importância no campo social, mas, fundamentalmente, no
campo psicológico.
Levando em conta a influência do Transfeminismo enquanto movi-
mento político integrador das novas representações sociais e o quanto a
inclusão de suas demandas contribuiria para a visibilidade da luta trans, a
postura crítica e hostil das RadFem acaba por invalidar suas identidades.
No plano teórico, como demonstrado nos discursos das feministas
radicais é perceptível a margem de influência direta nas relações sociais,
pois, de fato, não há aceitação social. Isto pode ser observado na falta de
inserção de pessoas trans no mercado de trabalho, seja pela “insegurança”
social, preconceito, ignorância intelectual, etc. Trata-se de um dos mais
variados desafios cotidianos enfrentados pela população trans: viver em
uma sociedade transfóbica que oferece oportunidades extremamente limi-
tadas de emprego formal a pessoas trans.
Outro desafio, em especial, para mulheres trans, diz respeito àquelas
que recorrem à prostituição como única opção de sobrevivência (princi-
palmente financeira, tendo em vista a falta de empregabilidade, e quando
204 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

ofertada, extremamente informal) expondo e reforçando sua vulnerabili-


dade a violências sexuais, físicas, psicológicas; de forma que,
constantemente, se veem presas à estigmatização social, sendo esta um
dos maiores obstáculos para os transgêneros no Brasil.
Assim, na tentativa de serem aceitas, muitas pessoas trans recorrem
a alterações físicas e estéticas -a exemplo da cirurgia de redesignação se-
xual e o tratamento com hormônios- tendo em vista a “cobrança” social
(muitas vezes compulsória, pelos mecanismos de exclusão ceifador de vi-
das trans) para se enquadrar como sujeito ideal (heterossexual, cisgênero,
branco, medioclassista, sexista).
Todos estes fatores incidem na alta taxa de suicídios entre a comuni-
dade trans, como consequência da somatória de situações de extrema
violência a que são expostos, composta por agressões, físicas e psicológi-
cas, não apenas nas ruas, mas dentro de casa, pelos próprios familiares.
Desta forma, a partir de toda a retórica apresentada neste artigo, sus-
tenta-se a extrema necessidade de se romper com a matriz excludente
binária de gênero e sexo, a começar pela supressão da atribuição de certa
intencionalidade à identificação trans, pois sustenta a lógica de culpabili-
zação da vítima. Assim, partindo de uma posição favorável ao movimento
transfeminista, propomos a mudança no campo epistemológico no intuito
de agregar nas pautas feministas as contribuições transgêneras, fortifi-
cando a luta política e a desconstrução da categorização do “ser mulher”
não só no Feminismo, mas na sociedade como um todo.

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Acesso em 10 nov 2020.
Capítulo 9

A quebra da restrição da doação de


sangue pela comunidade LGBTQIA + diante
de uma calamidade pública: Covid-19

Fernanda Burghardt Silva 1


Matheus Yuma Shimazaki 2
Thiago Augusto Galeão de Azevedo 3

1 Introdução

O presente artigo científico tem por finalidade propor uma discussão


referente a recente quebra da restrição da doação de sangue pela comuni-
dade LGBTQIA +, diante de uma calamidade pública gerada pela pandemia
do coronavírus (COVID-19).
Antes de adentrarmos ao tema escolhido, faz-se impreterível discor-
rer sobre a comunidade LGBTQIA +. Em 2008, foi realizada a Primeira
Conferência Nacional de Políticas Públicas para GLBT e, neste mesmo ano,
mudou-se a sigla para LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Tran-
sexuais) e a partir disso foram adicionadas mais letras no decorrer do
tempo para agregar mais pessoas e suas designadas identificações.
Desse modo, em relação às letras definidas em 2008, as três primei-
ras letras são referentes à orientação sexual e a última letra é relacionada
à identidade de gênero. Logo, o movimento LGBTQIA + é político e social
em que se defende a diversidade e busca mais representatividade e direitos

1
Graduanda em Direito pela UFMT. Voluntária no Projeto de Pesquisa: Corpo, Gênero e Relações de Poder, em uma
interface com o Direito. E-mail: [email protected].
2
Graduando em Direito pela UFMT. Voluntário no Projeto de Pesquisa: Corpo, Gênero e Relações de Poder, em uma
interface com o Direito. E-mail: [email protected].
3
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
208 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

para a comunidade com o intuito de extinguir a repressão e ódio contra a


mesma.
Diante da explanação, o intuito do tema escolhido é problematizar a
restrição contida no art. 64, inciso IV da Portaria 158/2016 e o art. 25, XXX,
“d” da Resolução da Diretoria Colegiada nº 34/2014, visto que ambos ar-
tigos dizem respeito à privação da doação de sangue por homens
homossexuais e demais vertentes da comunidade LGBTQIA +.
Segundo a Portaria 158/2016 em seu art. 64, inciso IV, que detém a
finalidade de regulamentar de forma técnica os procedimentos hemoterá-
picos:

Art. 64. Considerar-se-á inapto temporário por 12 (doze) meses o candidato


que tenha sido exposto a qualquer uma das situações abaixo:
IV - Homens que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parcei-
ras sexuais destes.

E precedentemente a Resolução da Diretoria Colegiada nº 34/2014


em seu art. 25, XXX, “d”, que tem por objetivo dispor sobre as boas práticas
no ciclo do sangue:

Art. 25. O serviço de hemoterapia deve cumprir os parâmetros para seleção de


doadores estabelecidos pelo Ministério da Saúde, em legislação vigente, vi-
sando tanto à proteção do doador quanto a do receptor, bem como para a
qualidade dos produtos, baseados nos seguintes requisitos:
XXX - os contatos sexuais que envolvam riscos de contrair infecções transmis-
síveis pelo sangue devem ser avaliados e os candidatos nestas condições devem
ser considerados inaptos temporariamente por um período de 12 (doze) meses
após a prática sexual de risco, incluindo-se:
d) indivíduos do sexo masculino que tiveram relações sexuais com outros in-
divíduos do mesmo sexo e/ou as parceiras sexuais destes.
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 209

Diante das normativas acima explanadas iremos adentrar ao estudo


teórico do tema proposto. Primeiramente, iremos discorrer acerca das re-
lações de poder, categorização sexual e a produção do anormal. No
primeiro momento, trabalharemos as relações de poder sob a visão de Pi-
erre Bourdieu, seguido de uma discussão sobre categorização sexual à luz
das teorias de Michel Foucault, e, por fim, finalizaremos o primeiro tópico
com Judith Butler, discorrendo acerca da produção do anormal.
Em um segundo momento, partiremos do contexto anterior da pro-
dução de um sujeito sexual, de vidas reduzidas a uma identificação sexual,
para a análise de uma temática em específico – a proibição da doação de
sangue por pessoas LGBTIQIA + - buscando compreender em que medida
tal proibição é uma materialização de relações históricas de poder exerci-
das sobre corpos construídos como anormais em sociedade. Explanação
em que apreciaremos o contexto histórico que permeia a doação de san-
gue, a associação histórica do surgimento e contágio da AIDS entre
homens homossexuais e os reflexos atuais dessa correlação para com as
pessoas da comunidade LGBTQIA +, e, infelizmente, sobre a vinculação da
doença, que se tornou tão enraizada a ponto de refletir diretamente em
proibições legais, considerando homens homossexuais “inaptos” para re-
alizarem doações de sangue somente por exercerem livremente sua
sexualidade.
No terceiro e último momento iremos discorrer sobre a marcação de
anormalidades, segundo o pensamento de Pierre Bourdieu acerca da vio-
lência simbólica e da dominação masculina, adentrando em discussões
como, a incorporação da posição de dominador e dominado, a divisão ex-
plícita entre os sexos, a dominação masculina diretamente ligada ao corpo
feminino, e, por fim, a associação de como a relação sexual entre pessoas
também é uma forma de reforçar a relação social de dominação.
210 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Em suma, o artigo será desenvolvido e apresentado a partir de três


seções, com a pretensão de explanarmos o tema proposto e gerar proble-
matizações acerca das recentes leis revogadas, e buscar através do saber
teórico a compreensão e a origem de determinadas proibições direciona-
das para homens homossexuais e consequentemente para a comunidade
LGBTQIA +.
O método utilizado no presente artigo foi o dedutivo, partindo-se da
análise geral das disposições legais apresentadas, passando pela história
da comunidade LGBTQIA + e da doação de sangue. A técnica de pesquisa
do presente trabalho consiste na pesquisa bibliográfica, por meio da utili-
zação de portarias, resoluções, obras, entre outros materiais pertinentes.

2 Relações de poder, categorização sexual e a produção do anormal

Pierre Bourdieu, em sua obra O Poder Simbólico, destaca o referido


poder como aquele que se espalha, que está presente em toda parte. Trata-
se de um poder invisível, que só pode ser exercido com a aderência dos
seus assujeitados, ou seja, com a cumplicidade daqueles que ignoram a sua
sujeição a tal poder ou mesmo o fato de que perpetuam o referido. Trata-
se de um poder de construção da realidade (BOURDIEU, 2001).
O referido poder simbólico exerce uma dominação que não funciona
através da lógica pura das consciências cognoscentes, e sim através dos
esquemas de percepção, avaliação e ação, constitutivos do habitus os quais
são transmitidos corporalmente, de corpo a corpo. São marcados por ati-
vidades inconscientes, aquém dos discursos.
Portanto, majoritariamente, os habitus ficam isentos do controle
consciente, das correções e transformações. Como exemplo de tal isenção,
Bourdieu destaca a defasagem entre as declarações e as práticas, citando
os homens que se dizem a favor da igualdade entre os sexos, mas que não
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 211

participam mais dos trabalhos domésticos do que aqueles que não são fa-
voráveis a tal igualdade.
Bourdieu comenta que o poder simbólico é exercido sobre os corpos
de forma direta e, como que por um passe de mágica, sem qualquer tipo
de coação física. Entretanto, para tal magia funcionar ela precisa estar ba-
seada em predisposições inseridas em profundidade nos corpos. O referido
autor compara tais predisposições a “molas propulsoras”, ao ilustrar a
força exercida pelo poder simbólico como um “macaco mecânico”, ou seja,
com um gasto pequeno de energia. O poder simbólico estaria fundamen-
tado em predisposições intrínsecas aos indivíduos, ou seja, disposições
ensejadas por todo um trabalho de inculcação e incorporação realizado nos
sujeitos que, em virtude dos referidos trabalhos, foram capturados pelo
poder simbólico.
Nos moldes do poder simbólico, a violência simbólica é exercida de
forma invisível, sutil, insensível, às suas vítimas, através de vias simbólicas
de conhecimento e comunicação, ou melhor, do desconhecimento, reco-
nhecimento e sentimento. Quanto ao conceito de violência simbólica,
Bourdieu faz uma ressalva no sentido de que esta é entendida, suposta-
mente, como oposta à violência física, real, efetiva; supondo-se que
violência simbólica, consequentemente, seria uma violência “espiritual”,
desprovida de efeitos reais.
O referido autor comenta que tal distinção é demasiadamente sim-
plista e apresenta impropriedades, uma vez que a referida violência é
objetivada nas coisas e incorporada nos corpos e nos habitus dos agentes,
portanto o atributo “espiritual” não é suficiente para representá-la.
A violência simbólica é marcada, também, pela aderência dos domi-
nados aos dominantes, proporcionada pela falta de disposição para refletir
sobre a dominação, tampouco sobre a relação dominante – dominado,
uma vez que não possuem instrumentos de conhecimento que não estejam
212 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

mergulhados na realidade criada pela dominação, o que os fazem achá-la


natural, dotada de naturalidade.
Percebe-se, desta forma, que a referida dominação afeta o indivíduo
em sua profundidade, ao ponto que este não consegue refletir, pensar, fora
do campo de dominação a ele imposto. O trabalho de construção simbólica
estará completo e realizado quando ocasionar uma “transformação pro-
funda e duradoura dos corpos (e dos cérebros) ” (Bourdieu, 2014, p. 40).
Percebe-se que a referida construção simbólica tem como objetivo impor
uma forma de pensamento, de percepção do corpo, uma visão marcada
pela superioridade masculina, visando naturalizar esse viés de pensa-
mento através de uma máscara, a naturalização biológica.
A referida transformação profunda e duradoura realizada sobre os
corpos e sobre os cérebros do corpo social tende a excluir do pensável e do
factível tudo aquilo que possua características de pertencer a outro gênero,
a fim de produzir dois modelos: homem viril e mulher feminina, que não
são provenientes da natureza, mas da soma das relações sociais próprias
da dominação. Trata-se de dois padrões produzidos a serem seguidos,
sendo que aquele que não os seguir será excluído, considerado anormal.
Neste sentido, a heterossexualidade é construída e constituída na so-
ciedade como padrão de uma prática sexual “normal”, compatível com a
natureza, enquanto as demais seriam consideradas antinaturais, ou anor-
mais. Neste contexto, pode-se destacar a figura do perverso polimorfo, que
tende a ser excluído do pensável e do factível, por fugir da lógica heteros-
sexual sustentada pela referida visão masculinizada. Pergunta-se, desde já,
em que medida a proibição de doença de sangue pautada na orientação
sexual é uma marca da anormalidade despejada sobre corpos?
A partir destas concepções, pode-se sustentar que a dominação mas-
culina se exerce por meio de uma violência simbólica, que limita as
atividades de subversão por parte dos dominados. Bourdieu destaca que
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 213

as estratégias simbólicas utilizadas pelas mulheres contra os homens per-


manecem dominadas, uma vez que estão pautadas na concepção
androcêntrica. Trata-se de estratégias insuficientes para subverter a refe-
rida estrutura de dominação masculina, acabando por ratificar a situação
de inferioridade imposta às mulheres.
O preconceito contra o feminino é incorporado nos corpos e objeti-
vado nas coisas, o que faz com que as mulheres ratifiquem tal preconceito,
ou seja, que estas cometam atos de reconhecimento, de adesão à doxa.
Trata-se de uma crença impensada, que constrói a violência simbólica so-
frida por elas próprias. Assim, pode-se perceber que os dominados, neste
contexto as mulheres, acabam por legitimar uma lógica de dominação,
tendo em vista que esta está incorporada em seus corpos e objetivada nos
objetos, fazendo com que os dominados não consigam pensar, refletir so-
bre tal dominação, uma vez que os elementos que os referidos possuem
para tanto estão contaminados, inseridos na referida lógica de dominação.
Diante da dificuldade de reflexão sobre a relação entre dominados e
dominantes, e até mesmo em relação à dominação masculina, os atos sub-
versivos dos dominados estão subjugados a esta lógica de dominação,
justamente porque a referida reflexão é prejudicada por não haver ele-
mentos suficientes para esclarecer a visão do sujeito, o que faz com que
seus atos subversivos sejam insuficientes, fracos, dominados, por utiliza-
rem-se de instrumentos, de categorias criadas para si, criadas por uma
estrutura de dominação, criadas pela dominação masculina.
Adotar uma categoria sexual como instrumento político corresponde,
assim, a uma ratificação do mecanismo do poder e da verdade construídos
sobre o sexo e sexualidade, que criam, produzem as sexualidades múlti-
plas, as sexualidades periféricas, com o intuito de gerenciar, controlar as
vidas sexuais dos indivíduos, que destoam da lógica heteronormativa.
Trata-se de uma castração de formas de vida.
214 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Bourdieu (2014) comenta que os homossexuais são atravessados por


uma estigmatização, imposta por atos coletivos de categorização, que en-
sejam segregações, marcadas por uma negatividade. Tem-se, desta forma,
a formação de grupos, de categorias estigmatizadas. Esta estigmatização
só fica clara quando um movimento político identificado através de tais
categorias reivindica visibilidade, quando o movimento político luta pelo
seu reconhecimento, pela legitimidade dos seus interesses comuns.
Os corpos e as mentes dos indivíduos, em profundidade, são atraves-
sados por uma violência simbólica, ao ponto de que estes não conseguem
refletir sobre o ato de dominação exercido sobre eles ou mesmo a relação
deles com os dominantes. O indivíduo dominado tende a ratificar a pers-
pectiva do dominante sobre si próprio. Por um ato não voluntário, o
indivíduo é forçado a aceitar as categorias de percepção dominante
(BOURDIEU, 2014).
Os indivíduos classificados como homossexuais mesmo sendo domi-
nados, assim como as mulheres, não raramente, aplicam a si próprios os
princípios dominantes. Bourdieu cita como exemplo a necessidade de em
uma relação identificada como homossexual se ter uma divisão de papéis,
o ativo e o passivo, o masculinizado e o feminizado. Para o filósofo, trata-
se de uma das “mais trágicas antinomias de dominação simbólica” (2014,
p. 167), qual seja: a tentativa de subversão às estruturas sociais e cogniti-
vas através de categorias dominantes.
A antinomia está no fato de que a revolta tem como objeto de reivin-
dicação a imposição de categorias, entretanto o manifesto político é
exercido através das próprias categorias que se pretende resistir, ratifi-
cando-se, desta forma, as classificações e limitações próprias do
dispositivo de sexualidade. Identifica-se uma dupla incoerência. Primeiro,
um movimento dito subversivo se pautar em uma “categoria realizada”,
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 215

imposta externamente. E segundo, o fato de que ao se categorizar, ex-


cluem-se outras múltiplas práticas sexuais, não abarcadas pelo catálogo de
identidades sexuais oferecido, essenciais para a própria força social do mo-
vimento, força esta capacitada para reverter a lógica simbólica dominante
e fortificar o movimento subversivo.
Michel Foucault, por sua vez, tratando sobre o chamado dispositivo
de sexualidade, denuncia a criação do sexo e, também, das categorias se-
xuais. O dispositivo de sexualidade como o elemento criador de um sujeito
sexual, um sujeito identificado a partir de sua sexualidade. Quem você é?
Não. Passa-se a perguntar “Que ser sexual é você? ”.
Nas palavras de Foucault, “Contra o dispositivo de sexualidade, o
ponto de apoio de contra-ataque não deve ser o sexo desejo, mas os corpos
e os prazeres” (2014, p. 171). Destaca-se a incitação ao discurso sobre o
sexo, a interrogação do mesmo, a fim de se procurar uma verdade em um
elemento criado. Finge-se resgatar a sexualidade de uma obscuridade,
através dos discursos, hábitos, instituições, regulamentos e saberes da so-
ciedade ocidental. Desobscurecer uma sexualidade que tudo “trazia à plena
luz e refletia com estrépito. ” (2014, p. 172).
O sexo como um elemento natural, um elemento biológico, uma con-
dição biológica do indivíduo. A sexualidade sendo apenas uma
consequência do mesmo. O sexo como um elemento inserido em uma ló-
gica biológica coerente, que prega que o indivíduo já nasce com um sexo
pré-determinado (BUTLER, 2008).
Sobre o sexo como um elemento pré-discursivo, natural, Judith Bu-
tler comenta (2014, p.25) que “Na conjuntura atual, já está claro que
colocar a dualidade do sexo num domínio pré-discursivo é uma das ma-
neiras pelas quais a estabilidade interna e a estrutura binária do sexo são
216 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

eficazmente asseguradas”. Trata-se, portanto, de uma lógica heterosse-


xual. O sexo é construído em um discurso que prega a sua naturalidade e
a sua relação consequencial com a sexualidade.
Uma lógica heterossexual, marcada por dois produtos: macho e fê-
mea. Estes são os coerentes, tudo o que estiver fora disso é considerado
anormal, incompleto, incoerente; devendo ser objeto de controle. Os per-
versos sexuais se tornaram objeto da Medicina, que criou uma patologia
orgânica intrínseca às práticas sexuais que não se amoldavam à lógica he-
terossexual. Estas eram consideradas incompletas, dotadas de uma
anormalidade.
Como efeito, a Medicina catalogou todas as formas de prazer que des-
toavam das que eram praticadas através da penetração falocêntrica. O
conhecimento e o mapeamento destas eram necessários para que o con-
trole pudesse ser exercido de forma efetiva e total. Classificou-se todas as
sexualidades destoantes da lógica dominante heterossexual.
Para tanto, aplicou-se questionários médicos. Precisava-se ter o co-
nhecimento de tudo, o maior número de informações. Um poder exercido
através de investigação, de escutas, de instigação e revelação. O dizer se-
xual era necessário, era incitado e anotado. Um poder que desvela um
prazer no investigado. O prazer sexual é provocado, incitado, manifestado
e, posteriormente, anotado.
Trata-se do duplo efeito do poder, este incita o prazer, a sua manifes-
tação, para que através dele possa exercer um controle. O prazer sexual é
seduzido a se manifestar, para ser capturado, posteriormente. O objetivo
não era condenar as sexualidades periféricas, e sim geri-las, gerenciá-las.
O dizer sexual assume o papel de fornecedor do material interpretativo
para o controle.
O controle das sexualidades, através do mapeamento das sexualida-
des ilegítimas. As diversas formas de sexualidade são expostas, detalhadas
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 217

e atravessadas pelo poder. Para a realização do referido controle eram ne-


cessários dados para o conhecimento do objeto, material este fornecido
pelo dizer sexual, pela incitação da fala sobre o sexo. Entretanto, o conhe-
cimento sobre o objeto não bastava, para este ser controlado era
necessário especificar, mapear, catalogar as múltiplas sexualidades.
Assim, destaca-se que as sexualidades múltiplas foram construídas a
partir de uma estrutura de poder e verdade, qual seja: o dispositivo de
sexualidade, responsável pela criação da ideia de sexo, sustentando-o
como um elemento natural, biológico e coerente, conforme analisado an-
teriormente. Trata-se da inversão realizada por Foucault, a partir da qual,
infere-se que o sexo é um elemento criado, produzido, atravessado pelo
poder.
Precisava-se controlar a anormalidade, a patologia. Era necessário
identificar aqueles que não se amoldavam à lógica heterossexual. Estes
precisavam ser especificados, catalogados, para serem controlados. Desta
forma, criou-se as sexualidades periféricas, múltiplas. Estas são produtos
do mecanismo de poder incidente sobre a vida.
A categorização sexual, a partir da criação e especificação das sexua-
lidades periféricas, das perversões; como um instrumento de controle, de
redução de formas de vidas sexuais. O produto factual do dizer sexual do
indivíduo, quando semelhante ao de outro, é emoldurado em uma sexua-
lidade. O indivíduo e sua vida sexual estão petrificados em uma definição
externa, em uma definição do incomensurável.
Há, portanto, uma redução de singularidades. A vida do indivíduo é
encaixada, emoldurada, moldada em um padrão de sexualidade, ou me-
lhor, na própria sexualidade. Trata-se de um nítido apagamento de formas
de vidas. O indivíduo deve ser encaixar em uma gaveta pré-fabricada.
O dispositivo de sexualidade toma os corpos como seu objeto e ins-
trumento de poder. Investe os corpos com a ideia de sexo, como elemento
218 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

biológico, imutável. Assim, produz corpos sob a égide da lógica que prega
a coerência sexual, a integridade heterossexual. Produz corpos sexualiza-
dos, identificados através de sua sexualidade. Nas palavras de Butler
(2008, p. 98): “[...] a sexualidade toma corpos como seu instrumento e
objeto, o lugar em que ela consolida, enreda e estende seu poder.”.
As sexualidades múltiplas, perversões, são incitadas, criadas e fixadas
nos indivíduos, em seus corpos. Há uma fixação da categoria sexual criada
no corpo do indivíduo. A partir desta, o indivíduo passa a ser identificado
através de sua sexualidade. O indivíduo passa a ter uma identidade sexual,
criada para medir a sua vida. Não pode ser livre, não! Precisa se amoldar,
ser categorizado, especificado, para que o seu perigo possa ser mantido em
controle, para que o poder próprio à sexualidade o controle de forma mais
fácil, útil e eficaz. Assim como o sexo, criam-se as sexualidades periféricas.
Trata-se de uma das características do mecanismo de poder vigente,
que atua através da criação do objeto que pretende regular. Produz-se as
sexualidades múltiplas, as perversões, com fins de controle, de regulação,
gerenciamento.
Destaca-se, portanto, que o dispositivo de sexualidade para controlar
as sexualidades múltiplas, as sexualidades que não se amoldam à lógica
heterossexual, criou-as, especificou-as e as nomeou. Foi necessário produ-
zir sexualidades periféricas, pautadas em um padrão também produzido,
qual seja: o sexo em aspectos biológicos, heterossexuais. Identifica-se, as-
sim, uma dupla criação atinente às categorias sexuais. Primeiro, a criação
do sexo pelo dispositivo de sexualidade. O sexo na concepção biológica,
imutável, como pré-condição para a sexualidade. Um sexo dotado de na-
turalidade, o qual origina a heterossexualidade, também considerada
natural.
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 219

Segundo, a criação das sexualidades periféricas pautadas na primeira


criação. Tais sexualidades foram criadas tendo como base a concepção bi-
ológica do sexo, a concepção que prega como normal o casal dito
heterossexual, a relação marcada pela penetração falocêntrica. Aquilo que
fugir a esta lógica deve ser identificado, controlado, regulado.
Infere-se, portanto, que as sexualidades periféricas possuem como
fundamento o sexo, em sua concepção biológica construída. Este é consi-
derado o paradigma para a identificação e classificação de formas de vidas
sexuais dissidentes com a lógica dominante. As sexualidades múltiplas,
perversões, são incitadas, criadas e fixadas nos indivíduos, em seus corpos.
Há uma fixação da categoria sexual criada no corpo do indivíduo. O indi-
víduo passa a ser identificado através de sua sexualidade. Conforme citado
anteriormente, para se conhecer o indivíduo, pergunta-se: que ser sexual
é você?
Partindo-se do referido contexto de produção de um sujeito sexual,
de vidas reduzidas a uma identificação sexual, parte-se para a análise de
uma temática em específico – a proibição da doação de sangue por pessoas
LGBTIQIA + - buscando-se compreender em que medida tal proibição é
uma materialização de relações históricas de poder exercidas sobre corpos
construídos como anormais em sociedade.

3 Proibição histórica da doação de sangue por pessoas LGBTQIA +

Observada a concepção de Michel Foucault diante da conjuntura do


tema, faz-se necessário detalhar o contexto histórico que permeia a doação
de sangue. Vale ressaltar que o processo de doação é respaldado no art.
199, § 4º da Constituição Federal de 1988, sendo esse artigo referente à
assistência à saúde, no qual se dispõe que a lei facilitará a coleta, processa-
mento, transfusão de sangue e seus derivados.
220 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Posteriormente, em 21 de março de 2001, foi promulgada a Lei nº


10.205 que especificou as etapas do processo de doação de sangue, além
de estabelecer ser imprescindível para a realização dessa atividade o orde-
namento institucional e que a competência para o desenvolvimento de
normas técnicas sobre a doação de sangue é do Ministério da Saúde.
Diante disso, a Portaria nº 158/2016 do Ministério da Saúde se en-
carregou de determinar os indivíduos capazes e incapazes de realizarem a
doação de sangue, procedimento esse que se consiste em avaliar desde ca-
racterísticas corpóreas e físicas até seu histórico de transfusões e doenças,
momento em que se enquadram os incapazes de doações, aqueles (as) que
“tenham antecedente clínico, laboratorial ou história atual de infecção pe-
los agentes HBV, HCV, HIV ou HTLV”, segundo seu art. 54, inciso II.
Logo, como forma de facilitar o processo de “filtro” e assegurar que
estes incapazes não façam parte do processo, o art. 55 desta Portaria con-
templa a utilização de um questionário a todos os possíveis doadores,
referente a condições e condutas que podem vir a ocasionar possíveis con-
taminações por doenças sexualmente transmissíveis. Como é
exemplificado no parágrafo único deste mesmo artigo:

Parágrafo único. A entrevista do doador deve incluir, ainda, perguntas vincu-


ladas aos sintomas e sinais sugestivos de Síndrome de Imunodeficiência
Adquirida (SIDA) como:
a) perda de peso inexplicada;
b) suores noturnos;
c) manchas azuladas ou purpúricas mucocutâneas (sarcoma de Kaposi);
d) aumento de linfonodos com duração superior a 30 (trinta) dias; e) manchas
brancas ou lesões ulceradas não usuais na boca;
f) febre inexplicada por mais de 10 (dez) dias; g) tosse persistente ou dispneia;
e h) diarreia persistente.
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 221

Historicamente, o vírus HIV, responsável pela doença AIDS, revelou-


se amplamente em lugares como os Estados Unidos, África e Haiti, atin-
gindo em grande escala homens adultos homossexuais em meados da
década de 80. Na sequência, a imprensa estadunidense denominou a do-
ença como Gays-Related Imunodeficience, (Imunodeficiência Relacionada
aos Gays) por considerar a doença ser predominante dessa comunidade.
Ademais, com o intuito de conter a doença ainda pouco conhecida, os go-
vernos decidiram controlar os procedimentos homeopáticos, visto que
transfusões de sangue eram um dos principais meios de contágio, consi-
derando que o primeiro caso de transmissão da doença se deu por meio
de transfusão sanguínea em 1982.
Dentre os grupos populacionais mais afetados pela AIDS, estavam os
homossexuais, visto que foram dados muitos diagnósticos positivos a essa
minoria durante a década de 1980. Todavia, diante da falta de conheci-
mento sobre a nova doença que havia surgido, os homossexuais foram
considerados um grupo de altíssimo risco para a infecção, sendo difundida
a errônea ideia de que seria necessário isolar os “pertencentes” aos grupos
de risco, gerando ainda mais preconceito para com a comunidade
LGBTQIA +.
A doença AIDS chegou ao Brasil também nos anos 80 e assim como
a imprensa norte-americana, associou homens homossexuais com a do-
ença, sendo conhecida pela imprensa brasileira e popularmente por
“doença gay”. E, infelizmente, a vinculação se tornou tão enraizada que
refletiu em proibições legais, uma vez que é legalmente admitida no art.
64, inciso IV da Portaria 158/2016 e o art. 25, XXX, “d” da Resolução da
Diretoria Colegiada nº 34/2014, cujas redações constatam que homens
que tiveram relações sexuais com outros homens e/ou as parceiras sexuais
destes devem ser considerados inaptos por 12 (doze) meses a partir do
momento em que foram expostos a tal situação.
222 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Esta constatação se contradiz dentro de sua própria legislação, pois o


art. 130 da Portaria nº 158/2016 já exige a realização de exames laborato-
riais de alta sensibilidade para cada doador (a) com o intuito de detectar
infecções transmissíveis pelo sangue tais como o HIV, entre outras. Por-
tanto, este quadro se trata de discriminação, na qual se segrega esta
comunidade LGBTQIA+, pelo fato de que todas as pessoas, independente
de orientação sexual, podem ser negligentes em relação a sua saúde, en-
tretanto ainda há uma preocupação equivocada sobre esta comunidade.
Em suma, como relata Foucault, por meio de poder foi possível distinguir
a anormalidade e excluí-la, que no caso foi a comunidade LGBTQIA+ que
foi incapacitada de doar sangue através do direito em forma de lei.
Em 2016, em virtude das colocações da Portaria nº 158/2016 e da
Resolução da Diretoria Colegiada nº 34/2014, o ex-Deputado Federal Jean
Wyllys, conhecido pela luta pelos direitos LGBTQIA+, refuta tais posicio-
namentos através do Projeto de Lei nº 6.297/2016, com o intuito de
remover a restrição discriminatória de 12 (doze) meses de abstenção de
relações sexuais para que os homossexuais enfim possam ser doadores ca-
pazes. Este tema ingressou no âmbito do Poder Judiciário, sob julgamento
do Supremo Tribunal Federal através da Ação Direta de Inconstitucionali-
dade nº 5.543 ajuizada em junho de 2016 pelo Partido Socialista Brasileiro
(PSB), começou a ser julgado em outubro de 2017, porém foi suspenso
devido a solicitação de pedido de vista dos autos pelo Ministro Gilmar Men-
des, segundo o andamento dos autos presente no portal eletrônico do
Supremo Tribunal Federal.
Adiante, vale ressaltar que a partir de 2020 a pandemia do corona-
vírus assolou o mundo, sendo o Brasil um dos países mais afetados pelo
COVID-19, os hemocentros do país recorreram a campanhas para arreca-
dação de doações de sangue, visto que estas diminuíram drasticamente
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 223

com o isolamento social, ocasionando uma calamidade pública em decor-


rência do baixo abastecimento das redes de saúde, em virtude de um
mínimo estoque de bolsas de sangue. Segundo o Ministério da Saúde, de-
vido ao receio da doença cujo número de mortes já chegou a mais de 290
mil mortes no país, foi contabilizada uma diminuição da ordem de 15% a
20% no total de doações de sangue em comparação a 2019.
O governo tentou combater este declínio de doações mediante cam-
panhas para conscientização e captação de doadores, além de suspender
cirurgias eletivas e investimentos nessa área. Entretanto, as bolsas de san-
gue não possuem alta longevidade, em virtude de algumas de suas
composições como as plaquetas que só duram 5 (cinco) dias. Ainda não
ocorreu um desabastecimento de bolsas de sangue no país, porém até o
momento do presente artigo ainda é uma preocupação do Estado em como
gerir este cenário.
Em paralelo a isso, a pauta de doações de sangue pela comunidade
LGBTQIA+ retornou à agenda do STF, da qual adveio a decisão de derru-
bar improcedente restrição, considerando-a inconstitucional e
discriminatória. Desse modo, em maio de 2020, por maioria de votos
(7x4), o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF) julgou inconstituci-
onais dispositivos de normas do Ministério da Saúde e da Agência Nacional
de Vigilância Sanitária (Anvisa) que excluíam do rol de habilitados para
doação de sangue os “homens que tiveram relações sexuais com outros
homens e/ou as parceiras sexuais destes nos 12 meses antecedentes".
Em contrapartida, recentemente, a comunidade LGBTQIA+ conse-
guiu conquistar o seu direito constitucional de ser capaz de realizar
doações de sangue, entretanto, mesmo com tal direito obtido deve-se ques-
tionar o porquê desse acontecimento, visto que a pauta de doações de
sangue pela comunidade só voltou a agenda do STF por causa da escassez
de doações devido a momentos de crise. Portanto, devemos questionar se
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estaria o Direito realmente preocupado com a restrição infundada e dis-


criminatória da comunidade LGBTQIA + ou se tratou de somente mais um
método na tentativa de sanar a atual calamidade pública gerada pela pan-
demia do COVID-19.

4 Proibição e marcação de anormalidades: violência simbólica e dominação


simbólica em Pierre Bourdieu

Após a contextualização da historicidade do tema em questão, é per-


tinente abordar como foi desenvolvida a dominação e a violência que
envolvem a comunidade LGBTQIA +. Em vista disso, Pierre Bourdieu, em
sua obra A Dominação Masculina, destaca uma violência que se diferencia
da física, no sentido de não se encontrar no plano corpóreo, mas que não
só é utilizada pelas estruturas de dominação através de suas instituições
(Estado, igreja, família, escola) e seus agentes específicos, mas que tam-
bém contém um caráter dóxico, isto é, uma vez que um conjunto de ideias
ou valores que, por serem acatados por uma maioria, são considerados
naturalizados. Assim sendo denominada Violência Simbólica.
Tal violência é descrita por Bourdieu em uma perspectiva de o mas-
culino oprimir o corpo feminino através de uma construção social
desenvolvida por anos de história, na qual se utiliza de um poder intrinse-
camente instituído nos corpos dos dominados em forma de admiração,
respeito, amor, entre outros. Dessa forma, a violência simbólica perdura
devido a inclusão do dominado, que faz parte como o alvo e também como
praticante, pois este reitera a sua própria opressão acreditando ser o pen-
samento correto, ou seja, por meio da adesão dóxica, o sujeito acata uma
verdade e reproduz a mesma violência.
Ademais, Bourdieu aborda os efeitos desta violência:

O efeito da dominação simbólica (seja ela de etnia, de gênero, de cultura, de


língua etc.) se exerce não na lógica pura das consciências cognoscentes, mas
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 225

através dos esquemas de percepção, de avaliação e de ação que são constituti-


vos dos habitus e que fundamentam, aquém das decisões da consciência e dos
controles da vontade, uma relação de conhecimento profundamente obscura
a ela mesma. (BOURDIEU, 1998, p.49-50).

O poder exercido pela violência simbólica somente pode ser efetuado


por meio da cooperação daqueles que são subordinados, que só se encon-
tram nesta posição pelo fato de construírem este poder por si mesmos, isto
é, o corpo subordinado já controlado pelo poder simbólico prescreve para
outros corpos serem regidos e assim por diante. Portanto para eliminá-la,
ou melhor, romper o vínculo de cumplicidade das vítimas com os opres-
sores, no entendimento de Pierre Bourdieu, não seria necessário somente
um combate no quesito de consciência e vontade em razão desta violência
contaminar corpos em seu cerne, onde são determinados as suas aptidões,
gostos, inclinações. Logo, de acordo com Pierre Bourdieu:

(...) só se pode chegar a uma ruptura da relação de cumplicidade que as vítimas


da dominação simbólica têm com os dominantes com uma transformação ra-
dical das condições sociais de produção das tendências que levam os
dominados a adotar, sobre os dominantes e sobre si mesmos, o próprio ponto
de vista dos dominantes. (BOURDIEU, 1998, p.54).

Bourdieu compreende a violência simbólica como fruto da dita domi-


nação masculina, pois para o autor, a imposição e a vivência dessa
dominação advêm da violência, que é caracterizada por ser suave, insen-
sível e principalmente invisível para as vítimas que acomete, por isso é
denominada por Pierre como simbólica, visto que se exerce de forma es-
sencial por vias de comunicação, desconhecimento, reconhecimento,
sentimento, ou seja, vias simbólicas.
O autor entende a dominação como uma relação social que se exerce
em nome de princípios simbólicos, que habitualmente são conhecidos e
226 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

reconhecidos tanto pelos dominantes quanto pelos dominados, sendo sin-


gelo como uma maneira de falar, de agir ou pensar que ocasiona em uma
efetiva legitimação da relação de dominação.
Para Bourdieu o simples fato de estarmos incluídos como homem ou
mulher já se faz suficiente para nos incorporar na posição de dominador
ou dominado, mesmo que de forma inconsciente, em diversos momentos
iremos reproduzir as estruturas histórias da dita ordem masculina, o que
para o autor são modos de pensamentos produzidos a partir da dominação
masculina.
A divisão entre os sexos feminino e masculino e a posição dominado
e dominador, se torna facilmente visível na ordem das coisas, o autor usa
como exemplo as partes de uma casa e como a sexualização de seus cômo-
dos reflete a representação da dominação masculina sobre o corpo
feminino, “a cozinha”, “a lavanderia” são exemplos de partes da casa se-
xuadas como femininas, como se fossem naturalmente cômodos de
“dominação” exclusivamente ligados ao feminino, já ambientes como “o
quarto”, sexualizado como masculino, reforçam a naturalização da domi-
nação masculina sobre o corpo da mulher. Essas divisões arbitrárias, em
ênfase a divisão socialmente construída entre os sexos, como acima exem-
plificado, são vistas como normais, naturais, evidentes, e principalmente,
são compreendidas como inevitáveis no mundo social, por se tratar de
concepções sexuadas incorporadas nos corpos e nos habitus dos agentes,
funcionando como sistemas de esquemas de percepção, de pensamento e
de ação para cada gênero.
Na concepção de Bourdieu a validação da ordem masculina e sua do-
minação é reforçada pelo simples fato de que dispensa justificação, essa
“força” advém da visão androcêntrica, ou seja, a preferência de homens
em funções sociais ditas superiores, mesmo que as mulheres sejam mais
experientes ou capazes para disputar alguma função ou atividade, sendo
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 227

evidente o reflexo das relações complexas de poder e gênero, visto que


após o androcentrismo ser imposto não há necessidade alguma de discur-
sos que vise legitimá-lo.
Ainda em sua obra, A Dominação Masculina, Pierre Bourdieu realiza
uma associação de como a relação sexual entre pessoas também é uma
forma de reforçar a relação social de dominação, isso porque ocorre erro-
neamente a divisão entre o masculino desempenhando funções ativas e a
figura feminina o passivo.
Essa construção social de divisão entre os sexos feminino e masculino
resulta em criações, expressões e direções do desejo, caracterizando o de-
sejo sexual masculino como posse e dominação sobre o corpo da mulher,
já a visão construída sobre o desejo feminino se baseia como subordinação
erotizada a essa dominação exercida pelo homem.
Na concepção do autor, em relações homossexuais não ocorre previ-
amente essa divisão de funções e desejos sexuais, visto que nesses laços a
reciprocidade entre o casal é claramente possível, ocorrendo troca de po-
sições e papéis assumidos nas relações sexuais, principalmente em relação
as equivocadas funções denominadas de ativos ou passivos.
Importante frisar que o ato da penetração é sobretudo uma das afir-
mações de posse e dominação masculina presentes no ato sexual, nesse
contexto, a posse homossexual seria a manifestação de “potência” mascu-
lina buscando afirmar a superioridade e dominação, em contrapartida, o
corpo masculino a ser possuído por essa penetração estaria sendo “femi-
nizado”, o que causa o entendimento de que a pior humilhação, para um
homem, consiste em ser transformado em mulher, assim como afirma
Bourdieu em sua obra:

Segundo John Boswell, ‘penetração e poder estavam entre as inúmeras prer-


rogativas da elite dirigente masculina; ceder à penetração era uma ab-rogação
228 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

simbólica do poder e da autoridade’. Compreende-se que, sob esse ponto de


vista, que liga sexualidade a poder, a pior humilhação, para um homem, con-
siste em ser transformado em mulher. E poderíamos lembrar aqui os
testemunhos de homens a quem torturas foram deliberadamente infringidas
no sentido de feminilizá-los, sobretudo pela humilhação sexual, com deboches
a respeito de sua virilidade, acusações de homossexualidade ou, simplesmente,
a necessidade de se conduzir com eles como se fossem mulheres, fazendo des-
cobrir ‘o que significa o fato de estar sem cessar consciente de seu corpo, de
estar sempre exposto à humilhação ou ao ridículo e de encontrar um recon-
forto nas tarefas domésticas ou na conversa fiada com os amigos’.
(BOURDIEU, 2012, p.31-32).

Considerações finais

A abordagem da temática neste artigo atuou sobre a questão da doa-


ção de sangue pela comunidade LGBTQIA + diante das adversidades que
a envolvem. Inicialmente foi abordado como se caracteriza a violência que
afeta este cenário, sendo esta sútil e imperceptível, porém, que atinge as
predisposições intrínsecas da vítima. Dessa forma, cria-se uma dominação
que cerca o indivíduo, que não consegue ponderar além do campo de do-
minação a ele imposto, em que se consiste em homem viril e mulher
feminina. Sendo assim, há uma construção da sexualidade e, por conse-
quência, já é definido antes mesmo do nascimento as características dos
indivíduos perante seu sexo e também é estabelecido que a heterossexua-
lidade é o normal. Em suma, é possível definir as categorias sexuais
impostas ao corpo social, como foi criada a anormalidade e como ela é
sustentada pelas relações de poder.
Apresentada como funciona toda essa conjuntura na teoria, passa-
mos para o contexto histórico do tema, no qual se consiste na legislação da
doação de sangue desde seu início, a problemática da proibição da doação
para pessoas LGBTQIA + diante da contextualização da comunidade e o
seu vínculo com a doença AIDS, o STF definindo o fim da proibição de
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 229

doação de sangue desta coletividade e a relação desta sentença com a ca-


lamidade pública causada pelo vírus COVID-19.
É importante salientar que esta produção acadêmica não se trata de
queixar-se sobre a concessão desse direito geral de liberdade à comuni-
dade LGBTQIA +, mas de como este direito somente foi concedido visto a
preocupação gerada pela queda de doações de sangue para os hemocentros
do País, e que consequentemente resultou no retorno do processo refe-
rente à temática na agenda do STF, o qual já se encontrava protocolado
desde 07 de junho de 2016 e somente foi sentenciado diante de todos esses
acontecimentos. Portanto, este direito deve ser considerado como uma
grande conquista para toda a comunidade LGBTQIA +, salientamos que
somente as circunstâncias ao redor da disposição deste direito que não fo-
ram apropriadas.
Logo em seguida, foi realizado um enfoque no conceito de violência
simbólica de Pierre Bourdieu, na qual é plausível associar essa com as vi-
olências compelidas sobre as pessoas LGBTQIA +, bem como a proibição
de doação de sangue. Esta violência revela como esta comunidade é des-
membrada do corpo social como um todo e é taxada como anormal por
meio do dispositivo de sexualidade, como já foi explicado por meio de Mi-
chel Foucault. Assim sendo, a violência simbólica ainda faz com que os
sujeitos subordinados acreditem que esta seja sua realidade e a repassa
como a verdade, em outras palavras, as pessoas LGBTQIA + acreditam que
não são dignas ou capazes de doar sangue, estão em conformidade com tal
fato e transmitem este pensamento aos demais.
Como explanado ao decorrer do presente artigo, a violência simbólica
é fruto da dominação masculina e essa se exerce de forma essencial
mediante vias de comunicação, desconhecimento, reconhecimento,
sentimento, entre outras, e por se tratar de uma violência suave e invisível
230 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

não apresenta facilmente oposição entre as vítimas acometidas, que no


estudo em questão se trata das pessoas envolvidas na comunidade.
Desse modo, faz-se notório que a Portaria 158/2016 em seu art. 64,
inciso IV, e a Resolução da Diretoria Colegiada nº 34/2014 em seu art. 25,
XXX, “d”, exercem o papel de vias de comunicação, pois ambas detém a
função de determinar quais seriam as pessoas aptas ou inaptas para exer-
cer a doação de sangue, e ao categorizarem qualquer homem que tenha
tido contato sexual com outro homem no período de 12 (doze) meses, re-
produz a violência ao reconhecer automaticamente que homens
homossexuais estariam diretamente ligados a transmissão do vírus HIV,
mesmo possuindo o conhecimento de que diversos exames serão realiza-
dos para determinar a qualidade do sangue colhido antes de ser
considerado apto para a transfusão, gerando uma segregação automática
e errônea para com os homens incluídos na comunidade LGBTQIA +, cau-
sando assim uma efetiva legitimação da relação de dominação sobre
homens gays e consequentemente a comunidade.
Em conclusão, a tardia quebra da restrição da doação de sangue pelas
pessoas da comunidade LGBTQIA + apenas foi retirada quando nos vimos
diante da calamidade pública ocasionada pela pandemia do corona-vírus,
onde a violência e consequentemente a dominação exercida indiretamente
sobre esses corpos teve de ser retirada para que os bancos de sangue do
nosso país não entrassem em colapso, visto a queda da frequência de doa-
ções advindas da quarentena, onde diversas pessoas optaram pelo
isolamento social no intuito de frear os índices de contaminação. Sendo
assim, devemos celebrar a queda dessa restrição e vibrar pela comunidade,
entretanto, faz-se necessário abrirmos os olhos e refletir a razão e a moti-
vação de tal decisão ser tardia e reconhecer as diversas formas de
violências e dominações exercidas sobre os corpos LGBTQIA +.
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 231

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Capítulo 10

Direito e relações de poder:


controle de corpos sob a ótica do cárcere feminino

Thiago Augusto Galeão de Azevedo 1


Lorena Araújo Matos 2

1 Introdução

O presente artigo tem como objetivo analisar o Direito e sua relação


de poder, sob uma perspectiva do encarceramento feminino e a materni-
dade, como os corpos estão sendo controlados sob uma ótica de poder,
normatização e invisibilidade.
Entre seus objetivos, visa-se descontruir visões naturalizadas sobre
o Direito, este despido do discurso oficial que o coloca, muitas vezes, em
uma posição de salvador, em detrimento de ferramenta de relações de po-
der. Buscou-se, assim, analisar em que medida o Direito seria um
instrumento de controle de corpos femininos por meio do instituto do cár-
cere?
Para tanto, em um primeiro momento, realizou-se uma análise
teórica sobre a teoria do filósofo Michel Foucault, mapeando-se a
correlação do Direito para com as relações de poder no âmbito do controle
do corpo, por meio das imagens do Direito na obra do citado filósofo,
chegando-se à concepção de direito normalizado-normalizador, termo

1
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
2
Mestra em Direito Constitucional. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Pós-Graduanda em Direito Ho-
moafetivo e de Gênero. Professora Universitária e Advogada.
234 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

utilizado por Márcio Alves da Fonseca, para denominar o fenômeno que


atravessa o Direito, e o faz do mesmo atravessador.
Em um segundo momento, após o fornecimento do citado substrato
teórico, analisar-se-á a incorporação do Direito e as relações de poder sob
a ótica do cárcere feminino e a maternidade, corpos estão sendo controla-
dos no ambiente prisional; mulheres encarceradas sofrem com a dupla
invisibilidade, romperam com os papéis que foram predestinados à elas.
Dessa forma, mecanismos normativos serão analisados, por exem-
plo, a prisão domiciliar, para compreender se há de fato uma vontade de
melhores condições ou é só mais uma forma de controle de corpos homo-
gêneos.
O presente artigo, portanto, possui um viés crítico, tendo como ob-
jetivo gerar a reflexão sobre o cárcere feminino e a sua correlação com
uma estrutura de poder responsável pelo controle do corpo em sociedade.

2 Direito e poder: o direito como instrumento de controle de corpos na


modernidade

Convém ressaltar, inicialmente, que na presente pesquisa se adota


um conceito de Direito em uma perspectiva não essencialista, que seria
compatível com a concepção própria à teoria de Michel Foucault, uma vez
que em sua teoria o Direito não é dotado de uniformidade, assumindo va-
lores diferentes ao longo de sua obra, não havendo um núcleo dotado de
segurança e estabilidade.
Márcio Alves de Fonseca, em seu livro Michel Foucault e o Direito
(2002), destaca esse caráter não essencialista do Direito na obra de Fou-
cault, ressaltando que este pode ser tratado a partir de imagens ao longo
de sua teoria, e não a partir de um núcleo conceitual solidificado e estável.
As citadas imagens do Direito, na obra de Foucault, são construídas
a partir da relação do Direito com a norma, com o poder normativo. A
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 235

norma como um mecanismo construído por meio de diferentes estados e


situações, variável ao contexto em que está inserida. Logo, esta também
não é dotada de uma essência, de uma exatidão.
Feitos os devidos esclarecimentos, partir-se-á para a análise da rela-
ção entre o Direito e o Poder, a fim de compreender a posição do Direito
perante o controle de corpos na modernidade. Inicialmente, destaca-se
uma imagem do Direito formada pela sua oposição em relação à norma.
Trata-se do Direito como lei, como um sistema de leis isento de normali-
zação. Parafraseando Miroslav Milovic, trata-se de um contexto em que os
corpos ficam expostos a uma estrutura do poder soberano, a fim de ser
castigado, suplicado (2017, p. 116).
Este castigo, suplício é instrumentalizado através da aplicação da lei,
esta como a vontade do soberano, que impõe o lícito e o ilícito. Assim, o
valor do Direito aqui pode ser, nitidamente, identificado pela análise do
corpo marcado pelo suplício, representante da aplicação da lei. Nesta ima-
gem, o Direito funciona com sinônimo de lei, associada ao poder soberano,
à morte. A lei como um instrumento do soberano, a lei como vetor da
morte.
Entretanto, esta concepção do Direito como lei não é absoluta, única,
na obra de Michel Foucault. Uma segunda imagem do Direito pode ser
identificada em sua obra, na qual este não é mais um elemento oposto à
norma, mas um vetor de normalização, havendo uma implicação entre o
Direito e a norma.
Trata-se de um processo de transição em que a lei, gradativamente,
passa a funcionar como norma. Descrevendo um novo mecanismo de po-
der, que tem como centro a vida, chamado de Biopoder; Foucault destaca
este processo de transição (2014, p. 156-157, grifo nosso):
236 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Uma outra consequência desse desenvolvimento do biopoder é a importância


crescente assumida pela atuação da norma, à expensas do sistema jurídico da
lei. A lei não pode deixar de ser armada, e sua arma por excelência é a morte;
aos que a transgridem, ela responde, pelo menos como último recurso, com
essa ameaça absoluta. A lei sempre se refere ao gládio. Mas um poder que tem
a tarefa de se encarregar da vida terá necessidade de mecanismos contínuos,
reguladores e corretivos. [...] Não quero dizer que a lei se apague ou que as
instituições de justiça tendem a desaparecer; mas que a lei funciona cada
vez mais como norma, e que a instituição judiciária se integra cada vez
mais num contínuo de aparelhos (médicos, administrativos etc.) cujas
funções são sobretudo reguladoras. [...] Por referência às sociedades que
conhecemos até o século XVIII, nós entramos em uma fase de regressão
jurídica; as Constituições escritas no mundo inteiro a partir da Revolução
Francesa, os códigos redigidos e reformados, toda uma atividade legisla-
tiva permanente e ruidosa não devem iludir-nos: são formas que tornam
aceitável um poder essencialmente normalizador.

Uma transição que marca uma passagem da lei à norma, não no sen-
tido de que a lei seja substituída, deixe de existir, e sim de que a instituição
judiciária se integra gradativamente a aparelhos, instituições reguladoras,
controladoras, causando impactos na primeira imagem destacada.
O Direito, à luz da concepção de que é sinônimo da lei, da morte; não
mais se amolda ao mecanismo de poder incidente sobre a vida. Trata-se
do processo gradativo destacado por Foucault, o Direito é cada vez menos
lei, tornando-se norma. O mecanismo de poder exercido sobre a vida não
mais funciona nos moldes da lei, da repressão. Pelo contrário, esta nova
forma de poder, que tem como objeto a vida, é positiva, empreendedora,
exercendo-se menos pela lei e mais pela norma.
Há uma ressalva de alta relevância a ser feita neste contexto. O Di-
reito não se apaga perante esse novo mecanismo de poder, mas tão
somente a imagem do Direito como lei deixa de suportar essa nova forma
de poder, que não mais se exerce pela repressão, mas pela produção, pela
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 237

norma. Logo, o Direito ainda permanece tendo um papel nessa forma de


poder, que não será através da interdição legal, da repressão da lei.
Não se trata mais de um Direito em oposição à norma, e sim de um
Direito implicado com a norma, um direito normalizado-normalizador,
termo utilizado por Fonseca (2002). Trata-se de uma imagem correspon-
dente à sociedade moderna, contexto no qual Foucault destaca que todo
saber está atravessado por um poder, não existindo um saber isento de
normalização, o que inviabiliza a defesa de um Direito isento da norma.
Entretanto, antes de tratar da posição do Direito neste contexto,
deve-se aprofundar a relação de poder que se está tratando. Conforme já
destacado, suscitou-se que após o período clássico um novo mecanismo de
poder se tornou protagonista, tendo em sua centralidade a vida. E que este
poder se exerce de duas formas: poder disciplinar e biopolítica das popu-
lações. Começar-se-á com a análise do poder disciplinar, para depois
analisar a imagem do Direito correspondente a esta forma de poder e a
sua relação com o controle dos corpos.
Poder disciplinar, um poder que pode ser representado pela ideia de
controle dos corpos, fixando o indivíduo a uma escala de produção capita-
lista. Um contexto de utilidade corporal. Uma lógica de domínio do tempo,
da produção.
Um poder exercente de normalização. Sobre esta, cita-se a aula de
25 de janeiro de 1978 de Michel Foucault, do curso Segurança, Território e
População (2008), na qual o filósofo destaca que a normalização exercida
pelo poder disciplinar funciona a partir da imposição de um modelo a ser
seguido, um molde, um padrão compatível com que é desejado pela estru-
tura de poder.
Sendo a partir da definição do citado modelo, que se passa a classifi-
car aquilo que é normal e anormal na sociedade. Pela imposição prévia de
um padrão do normal, Foucault destaca que o poder disciplinar exerce
238 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

uma normalização, mais especificamente, uma normação, devido ao exer-


cício do poder através da imposição prévia do normal.
O Direito assume um papel no citado exercício do poder disciplinar,
sendo um instrumento de normação. Neste contexto, o Direito está repre-
sentado pela legislação penal, que perde em sua centralidade o controle a
partir do que é lícito e ilícito, passando por um processo de transição em
que o controle das virtualidades dos indivíduos assume o protagonismo.
Trata-se do controle daquilo que os indivíduos são capazes de fazer, cri-
ando-se a noção de periculosidade (FOUCAULT, 2013).
Nesse sentido, vale destacar a relação da mulher com o Direito, mais
especificamente, do Direito Penal. Angela Davis (2018) destaca que sempre
houve tendência a encarar as mulheres que foram punidas publicamente
pelo Estado por seu “mau comportamento” como significativamente mais
“anormais” e muito mais ameaçadoras para a sociedade do que suas nu-
merosas contrapartes masculinas.
De acordo com Thais Faria (2013, p. 191):

As criminalizadas o eram, em geral, pelo seu comportamento não adequado à


figura do feminino e o poder do Estado, através de uma atitude patriarcal,
buscava mecanismos para a “educar” as “desajustadas sociais”. O controle pu-
nitivo ganhou força na primeira metade do século XX com novas teorias sobre
a criminalidade da mulher, quase todas ligadas à “moralidade”, e com a criação
de tipos penais específicos para controlar as que não seguiam ao padrão dese-
jado. Como as mulheres eram consideradas menos evoluídas e mais frágeis, o
cometimento do crime era ligado à educação e não a violência, portanto o tra-
tamento de “criminosas” deveria ser distinto do caso dos homens. Elas
precisavam receber do Estado a formação que não haviam recebido do pai.

Ao se pensar no “Ser Mulher”, comumente, tem-se a imagem cons-


truída a partir da visão de que mulheres têm uma natureza única e que
são possuidoras de uma “bondade ontológica”. Esta concepção acerca das
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 239

mulheres tem como corolário a visão destas como “vítimas do destino”.


Desta forma, historicamente, a figura da mulher foi colocada em um pata-
mar de submissão, repressão e/ou vitimização, quando se fala em
situações de violência (SILVA, 2008).
É nessa ideologia que ainda vive o âmbito jurídico: a mulher ainda é
punida duplamente, e não é raro ouvir de leigos e, até mesmo de operado-
res do direito, que a mulher que praticou algum delito “não tem vergonha
na cara”, que “tem que ficar presa para aprender”, tem que perder seus
filhos, a exemplo do que relatou Nana Queiroz (2016) que em visita à Uni-
dade Materno-Infantil de Ananindeua, no Pará, perguntou a cerca de vinte
mães com seus bebês quem já havia sofrido algum tipo de agressão, a me-
tade levantou a mão, sob a justificava de que “bater em grávida é algo
normal para a polícia”. Outra presa relatou que, na hora da detenção, re-
cebeu socos de um policial, que disse “filho de bandida tinha que morrer
antes de nascer” (QUEIROZ, 2016).
Para o exercício deste controle é necessário a complementação de
outras saberes, como a psicologia, psiquiatria, medicina e pedagogia. Não
se trata mais de punir as infrações, mas de uma lógica de correção de vir-
tualidades, compatível ao já estudado período da ortopedia social.
Ressalta-se a intervenção da psiquiatria no âmbito penal, para a
compreensão do controle efetuado pelo Direito a partir da noção de peri-
culosidade. A psiquiatria como a responsável pela criação da chamada
patologia do monstruoso (FOUCAULT, 2004), referindo-se a uma série de
crimes cometidos no início do século XIX, que eram considerados contra a
natureza (contra a família, vizinhança, relacionados a crianças, por exem-
plo), havendo uma marca importante em tais crimes, não se descobriu um
elemento em comum que pudesse justificar a sua realização.
Sem a motivação de tais crimes, criou-se a tese de uma loucura que
se manifesta através do crime, uma espécie de crime patológico. Assim,
240 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

passou-se a não identificar diferenças entre indivíduos transgressores de


lei (chamados de deliquentes por Foucault) e indivíduos acometidos de do-
enças. Tornando a loucura um atributo dotado de periculosidade.
Todavia, posteriormente, a loucura deixa de ser um atributo exclu-
sivo daqueles que cometem crimes considerados contra a natureza,
estendendo-se à sexualidade, aos pequenos delitos, por exemplo. A loucura
não mais estaria relacionada somente com os crimes considerados patoló-
gicos, esta passa a incidir também sobre os afetos e instintos (FOUCAULT,
2004).
Esta transição impacta na teoria jurídica da responsabilidade, no
sentido de que a sanção do direito penal não era mais repressiva, ou seja,
aplicada após a realização do crime. Passou a se tratar de uma lógica de
proteção da sociedade, de protegê-la do perverso, marcado pela loucura
moral. Sobre a temática, destaca-se as palavras de Foucault (2004, p. 22):

O direito penal, ao longo do século passado, não evoluiu de uma moral da li-
berdade a uma ciência do determinismo psíquico; ele antes compreendeu,
organizou, codificou a suspeita e a identificação dos indivíduos perigosos, da
figura rara e monstruosa do monomaníaco àquela, freqüente, cotidiana, do
degenerado, do perverso, do desequilibrado nato, do imaturo etc.

Controla-se o indivíduo não mais pelos seus atos, mas pelas suas vir-
tualidades, por aquilo que o indivíduo é capaz de fazer. Trata-se de uma
lógica de controle, de vigilância, que é exercida pelos mais variados agen-
tes, sobre os corpos dos indivíduos. Um controle que é realizado também
por um novo instrumento, derivado da nova forma de consubstanciação
da riqueza, que passa a ser materializada em objetos, em bens materiais,
ao final do século XVIII. O que desencadeou a concepção de que seria ne-
cessário proteger tais objetos dos indivíduos considerados perversos
(FOUCAULT, 2013).
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 241

Com fins de proteção de mercadorias, de riquezas corporificadas,


aprisiona-se indivíduos, o que representa, para Foucault, simbolicamente
as instituições próprias e compatíveis a um poder exercido sobre os cor-
pos, um poder vigilante, o poder disciplinar. O filósofo, em sua obra Vigiar
e Punir (1999, p. 355), destaca a existência de uma nova forma de poder, o
poder disciplinar, que teria o encarceramento como seu instrumento ba-
silar, o que originou uma nova forma de “lei”, que é constituído por
legalidade e natureza, prescrição e constituição, referindo-se à norma. Da
lei à norma.
A prisão como um instrumento a serviço da norma, a representante
de instituições disciplinares que controlam de forma integral a existência
do indivíduo, seus corpos, suas virtualidades. Assim como outros espaços,
como a escola, a fábrica, os hospitais psiquiátricos.
Ana Flauzina (2006) destaca que as atribuições do sistema penal re-
lacionam-se mais concretamente ao controle e perseguição de
determinados indivíduos do que com a contenção das práticas delituosas.
É fundamental destacar que o Direito não exerce a citada normação
apenas pelo instituto da prisão. A apropriação dos corpos dos indivíduos,
o controle sobre eles, é efetuado por outros instrumentos jurídicos que
conduzem os indivíduos até a instituição de sequestro, uma vez que os
corpos não são sequestrados pelas instituições, mas são conduzidos a elas,
através de procedimentos gerais próprios ao Direito, como, por exemplo,
as regras relativas às medidas de segurança, regras trabalhistas e previ-
denciárias.
Ainda é possível destacar, como consubstanciação do controle de
corpos efetuado pelo Direito, da normação exercida pelo Direito (paralela-
mente ao fato de ser normalizado); os regulamentos das instituições
disciplinares, definindo-se as posições a serem ocupadas, as jornadas de
trabalho, as regras gerais referentes ao funcionamento daquela instituição,
242 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

arquitetada sob a base de um Panopticom, típico do poder disciplinar


(FONSECA, 2002).
É necessário ressalvar, entretanto, que seria ingênuo limitar a atua-
ção de um poder empreendedor sobre a vida, definindo categoricamente
consubstanciações de normalizações instrumentalizadas pelo Direito, do
controle de corpos efetuado pelo Direito. Logo, é fundamental deixar claro
que estes são apenas realizações materiais que puderam ser desnaturali-
zadas, não impedindo a existência de outras, tendo em vista o caráter
empreendedor da estrutura de poder controladora de corpos.
O Direito, neste contexto, não mais seria tão somente a aplicação da
lei, execução de suplícios àqueles que a infringem. Trata-se de outra lógica
de poder, pela qual o Direito é atravessado, normalizado. Uma lógica de
controle de virtualidades. Um poder formador de hábitos, um poder edu-
cador, normalizador, controlador de corpos, que impõe padrões a serem
seguidos e a partir deles classificar os indivíduos em normais e anormais.
Entretanto, o mecanismo de poder exercido sobre a vida não se ma-
nifesta apenas através do poder disciplinar, mas também pela já analisada
biopolítica das populações, uma terceira forma de poder, que exerce uma
normalização, em relação a qual o Direito também é objeto e vetor, a qual
será analisada a partir deste momento.
Trata-se de um novo mecanismo de poder que tem como centro de
seu controle a vida da população. Um poder que pode ser representado
pelas práticas de vacinação contra a epidemia de varíola, ao final do século
XVIII, em vários países europeus. Um controle efetuado por “mecanismos
de segurança”, para os quais é necessário ter informações biológicas de
um grupo de indivíduos, chamado de população. No exemplo da varíola,
precisava-se ter informações relativas a quantidade de contaminados, os
riscos da vacinação, a possibilidade de mortalidade, entre outras
(FOUCAULT, 2014).
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 243

Um poder exercente de normalização, todavia a forma do seu exer-


cício é distinta da exercida pelo Poder disciplinar, que conforme já
destacado se exerce em níveis de normação, ou seja, partia-se de uma
norma e em relação ao controle efetuado por esta que se poderia distinguir
depois o normal do anormal. A lógica nesta nova forma de poder é inversa.
Na biopolítica das populações, Foucault destaca que o sistema de po-
der é exercido através do que ele intitula de normalização em sentido
estrito (2008, p. 83). Não se parte de um padrão, de uma norma, para a
posterior definição do normal e do anormal. Inversamente, nesta forma
de poder, parte-se da identificação do normal e do anormal, e das múlti-
plas curvas de normalidade. A normalização consistirá em fazer com que
as variadas distribuições de normalidade funcionem umas em relação às
outras, no sentido de que as distribuições de normalidade mais desfavorá-
veis sejam conduzidas às mais favoráveis.
Esta normalização em sentido estrito pode ser aplicada aos procedi-
mentos de vacinação, próprios ao século XVIII, que representam essa nova
forma de poder, que está pautada no controle do biológico. Neste contexto,
a doença representa um elemento individual e coletivo. Na esfera coletiva,
o presente mecanismo de poder incidirá, calculando, gerenciando o bioló-
gico, a população. À luz da normalização em sentido estrito, levanta-se os
dados biológicos de um determinado grupo de indivíduos, comparando-o
com o padrão de normalidade estabelecido.
Pode-se sustentar que o Direito assume uma posição em relação à
forma de poder em foco, a biopolítica das populações, completando a ima-
gem Direito normalizado-normalizador (FONSECA, 2002). O Direito
como um instrumento de normalização, nesta incluída a face normação,
conforme já analisado no contexto do poder disciplinar, e a face comple-
mentar normalização em sentido estrito.
244 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Antes de se adentrar na análise da consubstanciação da citada posi-


ção do Direito perante esta forma de poder, é necessário se considerar que
o indivíduo, neste contexto de poder, é visto como membro pertencente a
uma coletividade, uma população, que é gerenciada biologicamente pelo
Estado.
A pergunta que ganha relevo é: como o Direito funciona como um
vetor deste poder, desta normalização em sentido estrito? Nos moldes do
que foi destacado em relação ao poder disciplinar, ressalta-se que a partir
da presente análise não se tem o intuito de esgotar formas de materializa-
ção deste controle, mas de desnaturalizar a própria relação existente entre
o Poder e o Direito, destacando-se consubstanciações, de forma não exa-
ustiva, deste gerenciamento efetuado pelo Direito.
As formas de atuação de leis, de medidas de segurança, de decisões
judiciárias, entre outras, que regulam múltiplas situações ligadas ao con-
trole de um coletivo de indivíduos, a exemplo de questões relacionadas à
saúde pública, a jornadas de trabalho, a acidentes ou morte relacionadas à
vínculos trabalhistas, à seguridade social; representam materializações do
controle efetuado pelo Direito, como um vetor da normalização em sentido
estrito, própria da biopolítica das populações.
François Ewald (1986) destaca que as citadas ferramentas jurídicas
(leis, medidas de segurança, decretos administrativos, decisões judiciárias,
entre outras) representam uma concepção do Direito típico da moderni-
dade, o chamado Direito Social, que estaria marcado por uma essência
discriminatória, pautada em desigualdades. Um Direito fundado na noção
de grupos, coletividade, que são identificados a partir de peculiaridades,
que os tornam desiguais perante outros na sociedade. Trata-se de um Di-
reito marcado pela noção de solidariedade. Fonseca (2002), sobre a
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 245

temática, especifica ramos do Direito que estariam inseridos na citada ca-


tegoria, a exemplo dos diretos difusos e coletivos, previdenciário, do
trabalho e direito ambiental.
Trata-se de formas através das quais o Direito, a partir de múltiplas
ferramentas internas, gerencia, manipula a população em níveis biológi-
cos, compartilhando a lógica de conduzir distribuições de normalidade
mais desfavoráveis às mais favoráveis.
Pôde-se, portanto, perceber que o Direito assume funções na esfera
de controle do corpo e da vida na modernidade, funcionando como um
vetor de normação, no que se refere ao controle de corpos, e de normali-
zação em sentido estrito, no que concerne ao gerenciamento do corpo-
espécie, da população, da vida.
Um Direito implicado com a norma, e não mais oposto a esta. Trata-
se de um processo de transição, da lei à norma, mas que não é marcado
por substituições e sim implicações,“engavetamentos”, termo utilizado por
Fonseca (2002), no sentido de que a lei não deixa de existir em detrimento
da norma.
Foucault, em sua aula de 25 de janeiro de 1978, integrante do curso
Segurança, Território e População (2008), ressalta expressamente que a
normatividade da lei não deve ser de maneira alguma confundida com a
normalização, chamada comumente por Foucault, ao longo de suas obras,
de procedimentos, processos, técnicas de normalização; no sentido de aler-
tar que o problema analisado por ele é alheio à ideia de codificação de
norma pela lei, mas se trata de “mostrar como, a partir e abaixo, nas mar-
gens e talvez até mesmo na contramão de um sistema de lei se
desenvolvem técnicas de normalização.” (2008, p. 74, grifo nosso).
A partir da teoria de Foucault, portanto, pode-se sustentar a possibi-
lidade de implicação entre a lei, dotada de normatividade, e a norma.
Entretanto, trata-se de uma possibilidade, por isso é possível se pensar em
246 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

múltiplas formas de relação, como as de oposição, já destacadas quando


analisada a relação do poder soberano e o Direito.
Considerando o citado processo de transição da lei à norma, desta-
cou-se, portanto, na presente seção imagens do Direito, que são formadas
a partir da relação entre a lei e a norma, podendo-se sustentar um Direito
implicado com a norma. Trata-se, nos termos de Fonseca (2002), de um
Direito normalizado-normalizador, que se configura a partir de sua rela-
ção com a normalização própria do poder disciplinar e da biopolítica das
populações, ensejando um papel de controle de corpos e da vida pelo Di-
reito.

3 Cárcere feminino e maternidade: a opressão atrás das grades

Nessa segunda seção o presente artigo passa a analisar a perspectiva


do controle de corpos e vida pelo Direito no âmbito do encarceramento
feminino e maternidade, destacando a dupla invisibilidade a qual mulhe-
res e crianças são submetidas em um contexto de dominação e exclusão.
Antes de adentrar na questão da invisibilidade, não se pode falar so-
bre encarceramento feminino, sem antes abordar a perspectiva de gênero.
Dessa maneira, a combinação destrutiva de racismo e misoginia, reforça a
atuação seletiva e punitivista do sistema de justiça criminal, mantendo to-
das as suas terríveis consequências nas prisões femininas (DAVIS, 2018).
Compreender a perspectiva de gênero no sistema de justiça é funda-
mental para compreender as necessidades distintas que as mulheres
possuem. Muito se fala sobre a perspectiva de gênero, mas, afinal, o que é
gênero? Para responder a essa pergunta, utiliza-se das concepções de Ela
Wiecko e Carmen Hein de Campos (2018, p. 3), as quais destacam a que
associação sexo-gênero foi explicitada na Recomendação Geral 33 da Con-
venção sobre a eliminação de todas as formas de discriminação contra a
mulher:
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 247

A associação sexo-gênero foi explicitada na Recomendação Geral 33, a qual no


seu item 7 explica que “a discriminação pode ser dirigida contra as mulheres
por motivo de sexo e gênero. Gênero refere-se a identidades, atributos e papéis
socialmente construídos para mulheres e homens e ao significado cultural im-
posto pela sociedade às diferenças biológicas, que se reproduzem
constantemente no sistema de justiça e suas instituições” (CEDAW, 2015).

Camila de Magalhães sustenta que:

Assim, sustento que raça, sexo e gênero são categorias que devem ser exami-
nadas em conjunto porque produzidas em conjunto e não apenas porque
produzem estereótipos ou discriminações diferentes quando observadas em
conjunto na experiência dos sujeitos. Desse modo, ainda que permaneça a dú-
vida sobre se “todas fazemos gênero?”, uma resposta preliminar é que, como
atribuição de sentido aos corpos e suas funções reprodutivas, talvez sim, todas
façamos. Mas que, como distribuição de poder binária hierarquizante, a res-
posta não é única ou rápida e é isso que também nos exige usar o gênero como
categoria de análise decolonial: como forma de investigar o que a colonialidade
do gênero apagou, destruiu ou invisibilizou e como as noções de gênero da
modernidade colonial que hoje discutimos ou combatemos são construções
que usam da raça e do sexo de modo articulado para preencher a oposição
entre humanos e não-humanos (MAGALHÃES, 2018, p. 77).

Sendo assim, diante desse conceito de gênero, não é difícil entender


o papel atribuído às mulheres, pensadas e repensadas em segundo plano,
o gênero estrutura o sistema prisional.
A questão de gênero no Brasil ainda precisa evoluir muito e há de
perpetuar até que se entenda a diferença entre igualdade e justiça. Dispor
as prisões femininas da mesma forma que as masculinas é castigar dupla-
mente um sistema feito e projetado para, na ficção, ressocializar e
reintegrar (ABREU, L; RIBEIRO, L, 2016).
248 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Os dados do Infopen (2018) apontam que a maior parte dos estabe-


lecimentos penais foi projetada para o público masculino. 74% das
unidades prisionais destinam-se aos homens, 7% ao público feminino e
outros 16% são caracterizados como mistos, o que significa que podem
contar com alas/celas específicas para o aprisionamento de mulheres den-
tro de um estabelecimento originalmente masculino (BRASIL, 2018).
A separação por gênero dos estabelecimentos destinados ao cumpri-
mento de penas privativas de liberdade está prevista no artigo 82, §2°, da
Lei de Execução Penal e foi incorporada à Política Nacional de Atenção às
Mulheres em Situação de Privação de Liberdade e Egressas do Sistema Pri-
sional (BRASIL, 2014) como forma de visibilizar a situação de
encarceramento de mulheres em estabelecimentos em que a arquitetura
prisional e os serviços penais foram formulados para o público masculino
e posteriormente adaptados para custódia de mulheres e são, assim, inca-
pazes de observar as especificidades de espaços e serviços destinados às
mulheres (que envolvem, mas não se limitam a, atividades que viabilizam
o aleitamento no ambiente prisional, espaços para os filhos das mulheres
privadas de liberdade, espaços para custódia de mulheres gestantes, equi-
pes multidisciplinares de atenção à saúde da mulher, entre outras
especificidades).
A invisibilidade da mulher no cárcere começa antes mesmo de aden-
trarem nos sistemas prisionais; elas são subjugadas, muitas vezes, no
momento de sua prisão, na presença de policiais e até mesmo no âmbito
judiciário, no qual por vezes são taxadas de “péssimas mães”, de irrespon-
sáveis e uma vergonha para as mulheres.
Sendo assim, é preciso questionar o direito penal androcêntrico, com-
preendendo que nesta hostil estrutura há uma população marginalizada e
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 249

(inacreditavelmente) ainda mais excluída, cujos direitos mais básicos fi-


cam cerceados, renegados como se causa de menor importância fossem
(ABREU; RIBEIRO, 2016.).
Nesse sentido, Wiecko e Hein (2018, p. 12) destacam:

Considera-se que o direito penal é androcêntrico e o sistema penitenciário foi


pensado por e para homens, daí a necessidade de uma revisão com perspectiva
de gênero dos crimes, das penas e das formas como as pessoas que transgri-
dem as normas podem retribuir à sociedade.

Em um contexto de um Estado Democrático de Direito, com a com-


preensão de que há igualdade entre homens e mulheres, as questões de
gênero configuram um aspecto fundamental para a interpretação do Di-
reito.
Ressalta-se que o artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal dispõe
da igualdade entre homens e mulheres, dizendo que homens e mulheres
são iguais em direitos e obrigações, nos termos da Constituição.
Ocorre que a realidade é bem distinta do dispositivo constitucional,
pois há, sim, disparidades entre as vivências do homem e da mulher. O
papel dado à mulher sempre foi de inércia, passividade e obediência ao
homem, enquanto, ao homem, é dado o papel de provedor, conquistador
e desbravador do mundo.
Lilia Ribeiro e Laura Abreu destacam que o cenário é claro – o (pés-
simo) tratamento dado aos presos no Brasil consegue ser ainda pior
quando se trata de mulheres. Este sistema disfuncional não se dá apenas
pelo descaso Estatal, mas perpassa em grande parte pelo sexismo opressor
ainda presente.
Não são raros relatos de mulheres abandonadas no cárcere, bem
como de violação dos direitos mais básicos e inerentes à condição femi-
nina, seja na sua condição biológica e psicológica, afinal a mulher
250 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

engravida e menstrua, condições estas que modificam o viver das presas,


porém não é dada a devida atenção a elas.
Dentre tantas questões que merecem destaque na vida de mulheres
encarceradas, a maternidade é ponto sensível e demanda uma análise pau-
tada nos direitos de mães e filhos encarcerados.
De acordo com a pesquisa intitulada “Dar à luz na sombra: condições
atuais e possibilidades futuras para o exercício da maternidade por mu-
lheres em situação de prisão”, destaca-se a preocupação com as filhas (os)
que nascem no cárcere (BRAGA et al., 2015, p. 16):

Especialmente o aprisionamento feminino traz uma questão importantíssima,


que deve ser preocupação central das gestoras do sistema e idealizadoras de
políticas prisionais: a população invisível que habita o nosso sistema prisional,
as filhas e filhos de presas que vivem nas mais diversas e adversas condições
nas prisões brasileiras. A sobrevivência, com dignidade, de uma criança de-
pende de alimentação, cuidados, assistência material e afetiva. Para tanto, é
necessário, com a máxima urgência, elaborar e implementar políticas que tra-
tem da permanência do bebê com a mãe, que privilegiem o
desencarceramento e, em casos de manutenção da prisão, que esta convivên-
cia se dê em ambiente confortável e salubre para ambas as partes, com
recursos e suporte para a garantia dos direitos dessas mulheres e crianças.

O nascimento de uma criança em um estabelecimento prisional por


si só já causa uma preocupação óbvia; porém, para garantir um nasci-
mento e desenvolvimento digno de uma criança no cárcere é fundamental
compreender as dificuldades e peculiaridades que essa situação exige do
poder público e dos estabelecimentos prisionais compreendam que priva-
ção de liberdade, não significa privação do direito de ser mãe.
Com base na pesquisa acima referida (BRAGA et al., 2015), toda ma-
ternidade no sistema prisional é vulnerável, afirmando que bastaria a
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 251

comprovação de situação de prisão da mulher para a aplicação da modali-


dade domiciliar prevista no inciso IV do artigo 318 do Código de Processo
Penal, mesmo antes do sétimo mês de gestação3.
Sem utilizar de retórica, mas o sistema prisional é cercado de estig-
mas sociais, logo, é evidente que uma maternidade desenvolvida nesse
local gera inúmeras experiências boas e ruins para mães e filhos.
Segundo Bez Birolo (2010, p. 61):

O ambiente prisional em que a detenta vivencia o puerpério é cercado de ex-


periências que podem facilitar ou dificultar a permanência da detenta com seu
filho. Os estudos abordam tanto a defesa da permanência da criança com a
detenta, devido à importância desse afeto para o desenvolvimento do filho,
quanto a defesa do direito da criança de desenvolver-se em ambiente mais
adequado, quando isso é possível, e criar laços afetivos com outras pessoas.

Não é incomum que mães e filhos encarcerados desenvolvam uma


“hiperdependência” emocional e, quando a retirada dos filhos do cárcere
acontece, a sensação de tristeza e abandono fica mais latente (BIROLO,
2010).
Bez Birolo (2010) afirma que as detentas que ficam com os filhos na
prisão criam uma relação familiar matrifocal, “ou seja, aquelas famílias
formadas por mães e filhos e nas quais a presença de um cônjuge-pai tende
a ser temporária e instável”.
Nesse sentido, em que pese haver a relação entre mãe e filhos o que
pode amenizar sofrimentos, é uma maternidade vigiada e controlada dos
corpos de mulheres e crianças em uma situação de extrema vulnerabili-
dade, logo, pergunta-se quais serão os traumas dessa primeira infância no
cárcere?

3
A pesquisa mencionada foi realizada antes da alteração realizada no artigo 318, do Código de Processo Penal, intro-
duzida pela Lei 13.257/2016, inclusive, foi utilizada como fundamentação para a referida alteração legislativa.
252 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

Importante destacar a Lei 13.257/2016, conhecida como Marco Legal


da Primeira Infância, prevê a formulação e implementação de políticas pú-
blicas voltadas para as crianças que estão na “primeira infância” (BRASIL,
2016). Referida lei alterou o Código de Processo Penal, no artigo 318, IV,
modificando a antiga redação para indicar apenas que a prisão domiciliar
para gestante independe do tempo de sua gestação e de sua situação de
saúde.4
Ressalta-se o indulto previsto no Decreto de 12 de abril de 2017, dis-
posto no artigo 1º, incisos I, II, III, alínea a:

Art. 1º O indulto especial será concedido às mulheres presas, nacionais ou


estrangeiras, que, até o dia 14 de maio de 2017, atendam, de forma cumula-
tiva, aos seguintes requisitos:
I - não estejam respondendo ou tenham sido condenadas pela prática de outro
crime cometido mediante violência ou grave ameaça;
II - não tenham sido punidas com a prática de falta grave; e
III - se enquadrem, no mínimo, em uma das seguintes hipóteses:
a) mães condenadas à pena privativa de liberdade por crimes cometidos
sem violência ou grave ameaça, que possuam filhos, nascidos ou não den-
tro do sistema penitenciário brasileiro, de até doze anos de idade ou de
qualquer idade se pessoa com deficiência, nos termos da Lei nº 13.146, de
6 de julho de 2015 - Estatuto da Pessoa com Deficiência, que comprovada-
mente necessite de seus cuidados, desde que cumprido um sexto da pena;
(destacamos).

Em novembro de 2015, as integrantes do Coletivo de Advocacia em


Direitos Humanos (Cadhu) distribuíram entre si a tarefa de refletir e cons-
truir um habeas corpus coletivo em favor de todas as mulheres

4
Art. 318, IV (redação anterior): Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente
for: IV - gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.
Art. 318, IV (redação atual): Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente
for: IV – gestante.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 253

encarceradas no Brasil. O movimento se iniciou antes mesmo da aprova-


ção da Lei 13.257/2016, o Marco Legal da Primeira Infância, e se insere
entre as ações da sociedade civil no enfrentamento da questão carcerária
tal como ela se manifesta no Brasil, em sua tendência de crescimento, em
sua seletividade racial, em sua precariedade e violência (ANGOTTI et al.,
p.13).
Nesse paradoxo de normas, há quem defenda a prisão domiciliar
como alternativa para as mães e filhos do cárcere, seria um instrumento
capaz de amenizar os danos causados.
Luana Tomaz e Anelise de Nazaré destacam:

Além disso, considerando tais características, na hipótese de tais mulheres es-


tejam em prisão preventiva, a prisão domiciliar mostra-se como um
instrumento de minimizar os danos causados às mulheres e crianças, permi-
tindo a manutenção dos vínculos afetivos e a possibilidade de melhor
acompanhamento da fase gestacional. Inclusive, o regime da prisão domiciliar
passou por uma substancial mudança com a promulgação da Lei nº. 13.257 de
8 de março da 2016, também chamada “Marco Legal da Primeira Infância”,
permitindo a conversão da prisão preventiva em domiciliar quando a presa
estiver gestante ou possuir filho com até 12 anos incompletos. Entretanto, pas-
sados dois anos de vigência da referida lei, entidades de defesa dos direitos
humanos das mulheres têm verificado que a prisão domiciliar, mesmo após a
alteração legislativa, ainda é exceção para muitas (TOMAZ; DE NAZARÉ, 2019,
p. 97-98).

Os mecanismos normativos acima tentaram dar voz às mulheres e


seus filhos do cárcere, mas até que ponto? Afinal, como dito no início do
artigo, o Direito exerce uma normação com a prisão, a prisão domiciliar
seria, também, uma maneira de controlar esses corpos homogêneos.
Nesse cenário – positivista e eurocêntrico – para garantir a manuten-
ção do acesso privilegiado aos bens sociais e simbólicos, a construção do
254 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos

eu dominante pressupõe a exclusão e classificação negativa daquele que


não é, do que é estranho, do que falta ou do que deseja negar. Nesse sen-
tido, o Outro passa a corporificar características que justifiquem
moralmente sua subalternização, infantilização e exclusão dos meios ma-
teriais, simbólicos e políticos em disputa (PIRES, 2013).
Flauzina aponta (2006), que as instituições de poder punitivo utili-
zado no Brasil reproduzem as dinâmicas de colonização e escravização do
passado, mantendo a opressão das classes periféricas e o status dominante
das classes elitizadas, assim o questionamento final é de que a prisão do-
miciliar pode ser mais uma maneira de oprimir vidas subalternizadas.

Considerações finais

Por meio do presente artigo, buscou-se evidenciar o papel do Direito


no controle de corpos em sociedade, em uma interface com o cárcere fe-
minino, este como um instrumento jurídico que funciona como uma
ferramenta de controle do corpo da mulher.
A partir de uma reconstrução teórica pautada, principalmente, na te-
oria de Michel Foucault, pôde-se destacar o Direito como um elemento que
não está isento de relações de poder. Pelo contrário, em uma perspectiva
moderna, pode-se identificar um Direito atravessado pelo poder, ao
mesmo tempo que atravessado, este passa a atravessar, contaminar.
Assim, defende-se o Direito como elemento que foi invadido por um
complexo de poder e, uma vez invadido, que passou a ser um agente do
referido complexo, normalizando corpos, formas de vida que não repre-
sentam o padrão valorizado em sociedade.
Na segunda seção do artigo, correlacionou-se o Direito e suas relações
de poder com o encarceramento feminino e a maternidade. Defende-se o
sistema de justiça criminal como um meio de controlar vidas, uma insti-
tuição pautada na opressão.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 255

Encarar o cárcere feminino é perceber uma realidade de dupla puni-


ção, mulheres taxadas de “criminosas” são punidas por violarem papéis
destinados a elas, ao terem filhos em um ambiente tão hostilizado, trans-
gredindo papéis de “uma boa mãe”.
Ainda que hajam normas que, em um primeiro momento, demons-
trem uma tentativa de melhorar a vida dessas mulheres, passa-se a
questionar se não seria só mais uma forma de exercer um poder e controle
de corpos subalternizados e excluídos de uma sociedade punitivista.
Mulheres e crianças encarceradas exercem uma relação de hiper de-
pendência, de complexidades que vão além das grades e muros que os
separam em determinando momento, políticas públicas precisam seguir o
viés da perspectiva de gênero e raça para compreender a invisibilidade
que, por vezes, mata vidas.

Referências

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