200 - Corpo, Gênero e Relações de Poder
200 - Corpo, Gênero e Relações de Poder
200 - Corpo, Gênero e Relações de Poder
Estudos sociojurídicos
Organizador
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Diagramação: Marcelo A. S. Alves
Capa: Carole Kümmecke - https://www.conceptualeditora.com/
Arte de capa: AGSANDREW - https://www.shutterstock.com/g/agsandrew
Corpo, gênero e relações de poder: estudos sociojurídicos [recurso eletrônico] / Thiago Augusto Galeão de Azevedo (Org.) -
- Porto Alegre, RS: Editora Fi, 2021.
258 p.
ISBN - 978-65-5917-200-9
DOI - 10.22350/9786559172009
CDD: 340
Índices para catálogo sistemático:
1. Direito 340
Sumário
Apresentação 9
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Capítulo 1 12
No limiar do homo sacer: as vidas matáveis da população LGBTQI+
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Gabriel Alberto Souza de Moraes
Capítulo 2 49
O silenciamento dentro e fora dos muros do cárcere: uma análise sócio-jurídica do
encarceramento feminino
Geovana Ferreira Faria Alvarenga
Victor Hugo Neves Silva
Lorena Araújo Matos
Capítulo 3 67
A legitimidade da transfobia no âmbito hospitalar: uma análise sobre a eficácia do
direito à saúde sexual e reprodutiva
Júlia Gabrielly Gomes da Silva
Myllene Borges Barbosa
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Capítulo 4 90
O acolhimento das mulheres transgênero nas delegacias especializadas no
atendimento à mulher de Cuiabá, Várzea Grande e Barra do Garças: uma análise do
controle sobre os corpos diversos
Gabriella Leite de Barros
Camyla Galeão de Azevedo
Capítulo 5 118
O provimento 73/2018 do CNJ e os desafios para a efetivação dos direitos da
personalidade das pessoas transexuais
Lucas Morais Queiroz Amaral
Douglas Santos Mezacasa
Capítulo 6 137
Divisão sexual do trabalho sob uma perspectiva crítica de gênero
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Camyla Galeão de Azevedo
Capítulo 7 161
Ala Arco-Íris: uma análise dos direitos da população LGBTQI+ privada de liberdade
Camila Versalli Ferreira
Julia Sebastiana Costa dos Santos
Lorena Araújo Matos
Capítulo 8 184
A significação da mulher dentro do feminismo: uma análise das discussões do
movimento feminista radical e feminismo transgênero
Camila Rezende Campos de Araújo
Clarice Victoria Moreira Soares
Lorena Araújo Matos
Capítulo 9 207
A quebra da restrição da doação de sangue pela comunidade LGBTQIA + diante de
uma calamidade pública: Covid-19
Fernanda Burghardt Silva
Matheus Yuma Shimazaki
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Capítulo 10 233
Direito e relações de poder: controle de corpos sob a ótica do cárcere feminino
Thiago Augusto Galeão de Azevedo
Lorena Araújo Matos
Apresentação
1
Coordenador do Projeto de Pesquisa “Corpo, Gênero e Relações de Poder, em uma interface com o Direito”. Orga-
nizador da Obra. Pós-doutorando em Direito – UNB. Doutor em Direito – UNB. Professor da Universidade Federal
de Mato Grosso – campus Araguaia.
10 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
Referências
LAQUEUR, Thomas. Inventando o sexo: corpo e gênero dos gregos a Freud. Trad. Vera
Whately. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 2001.
Capítulo 1
1 Introdução
1
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
2
Discente do 4° período do curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará (CESUPA). Membro do Projeto
de Pesquisa "Corpo, Gênero, Relações de Poder, em uma interface com o Direito" (CGPD) da Universidade Federal
do Mato Grosso (UFMT).
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 13
3
Progressismo Neoliberal é um conceito trabalhado por Nancy Fraser no livro que faz alusão um excerto conhecido
de Gramsci, o qual o torna interlocutor da crise, “O velho está morrendo e o novo não pode nascer”. O conceito
acomoda uma ressignificação ante ao modelo neoliberal estadunidense antes da política trumpista vigente, como um
26 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
novo escopo para o neoliberalismo em crise que havia se saturado com o discurso economista puro, buscando numa
nova roupagem que trajasse novas aspirações emancipatórias a fim de, suspeitamente, liberar o mercado. FRASER,
Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução de Gabriel Landi Fazzio. São Paulo: Autonomia
Literária, 2020.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 27
4
Foucault traz o sintagma do Homo Oeconomicus num dos cursos ministrados no Collège de France, muito embora
implícito, no “Nascimento da biopolítica”, Foucault se atenta ao fenômeno neoliberal americano que se estende a
nichos não somente restritos a coletividade, mas para pessoa a pessoa, indivíduos que têm vários nichos abarcados
pelo empreendimento de si mesmo, seja a natalidade, família e etc. Desse modo, este seria o novo paradigma de
sujeito a atender a governamentalidade liberal uma vez explorada. FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do
Collège de France (1970-1982). 1. ed. Rio de Janeiro: Editora Zahar, 1997.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 29
5
Giorgio Agamben em Signatura Rerum, um dos livros da compilação Homo Sacer, projeto de vida do autor que se
dedica desde o final do século 20, esboça perfeitamente a reflexão sobre paradigma que comporta a metodologia
agambeniana em comparar dois elementos e buscar, entre eles, uma zona de intersecção.
30 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
la? (AGAMBEN, 2015, p. 17). Nesse ínterim, a forma de vida que se tornou
dominante foi, irrefreavelmente, a vida nua, a qual outrora ocultamente
exerceu seu manifesto na soberania, mas que, atualmente, entranha-se
dominantemente pelo sistema de vida como um todo.
Assim, com as considerações de um Estado Neoliberal em que o bio-
poder impera e (re)produz homo oeconomicus, apenas a vida no estado de
exceção normalizado é a vida nua que reinventa e (des)figura os âmbitos
das formas de vida da sua coesão de forma-de-vida. Tal qual a cisão mar-
xiana entre homem e cidadão, equipara-se ao extirpar a vida nua detentora
da soberania e as múltiplas formas de vidas abstratas recodificadas em
pessoas jurídico-sociais.
Esse processo de desfiguração e ressignificação negativa das formas
de vida é o ineditismo que as políticas neoliberais deixaram, nas sombras,
ascender paralelamente – isso se é possível pensar que não fazem parte de
um projeto de governo. E que, evidentemente, teve seu início com a der-
rocada do Estado Democrático de Direito e o repasse a um novo agente
que opera o centro de todo o modo de vida na política decidindo não só
sobre o utilitarismo nas políticas públicas para a população minoritária
LGBTQI+, mas sobre o utilitarismo destas formas de vida: tais corpos são
dignos de vida? O novo advento desse tipo de tecnologia de poder na so-
berania reinventa o fazer viver e deixar morrer pela díade de fazer morrer
e deixar viver.
Tal molde tempestivo e sombrio que se toma como último argumento
dessa toada apresentada como um pessimista presságio do realismo polí-
tico do ocidente que tende a se tornar e uma vez se tornou verdade,
obstina-se como parâmetro para entender, de certo modo, a dimensão on-
tológica que as vidas LGBTQI+ de fato possuem: não homo oeconomicus,
mas homo sacer. Vida matável, insacrificável, em desvalor e vida nua,
aquela cuja qual suspendeu-se o valor sacrificial pela hegemonia soberana
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 31
Não é um acaso, então, que um trecho da Política situe o lugar próprio da polis
na passagem da voz à linguagem. O nexo entre vida nua e política é o mesmo
que a definição metafísica do homem como ‘vivente que possui a linguagem’
32 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
busca na articulação entre phoné e logos: ‘Só o homem entre os viventes pos-
sui a linguagem. A voz, de fato, é sinal da dor e do prazer e, por isto, ela
pertence também aos outros viventes (a natureza deles, de fato, chegou até a
sensação da dor e do prazer e a representá-los entre si), mas a linguagem serve
para manifestar o conveniente e o inconveniente, assim como também o justo
e o injusto; isto é próprio do homem com relação aos outros viventes, somente
ele tem o sentimento do bem e do mal, do justo e do injusto e das outras coisas
do mesmo gênero, e a comunidade destas coisas faz a habitação e a cidade’
(1253a, 10-18). [...] O vivente possui o logos tolhendo e conservando nele a
própria voz, assim como ele habita a polis deixando excluir dela a própria vida
nua. (AGAMBEN, 2002, p.15-16).
pois é intocável – e a vida matável – aquela que, uma vez isolada em sua
zoé, torna-se vida pura, passível de sacrifício.
Posto isso, na envergadura da reflexão ontológica sobre a figura do
homo sacer, Agamben parafraseando Kerényi, importa que o homo sacer
não poderia ser objeto de sacrifício propriamente dito, de um sacrificium
(por mais que teológica, traria a ideia de valor), pois aquilo que é sacer já
está sob posse dos deuses, e é originariamente e de modo particular pro-
priedade dos deuses ínferos, portanto não haveria necessidade de torna-lo
tal com uma nova ação (AGAMBEN, 2002, p. 81).
Não obstante, há a presença de um oxímoro denotado, pois o termo
“sagrado” induz ao pensamento de que aquela vida é protegida e intocável,
divina e onipotente, porém, no sentido atribuído por Agamben (2002) im-
porta em dizer curiosamente o oposto: o sagrado é aquele que pode ser
morto sem que haja qualquer tipo de punibilidade. Dessa forma, o autor
considera que:
6
Equívoco é, apesar de literal sentido pela experiência da história, pensar que os campos em que Agamben confabula
são unicamente os utilizados no regime nazista na contenção das vidas nuas. O argumento de Agamben é mais
profundo, teratológico e cirúrgico, ponderando que, na realidade, tais campos são oriundos de paradigmas que se
encontram na historicidade subvertida do direito em punir e segregar aqueles com o intuito de extermínio. Nessa
senda, os campos são um paradigma para a modernidade recorrente e não um acontecimento isolado.
36 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
estão sendo massacradas por uma minoria odiosa que acha que pode de-
cidir quem deve morrer e quem deve viver”. Esse ímpeto de decisão sobre
um destino mórbido sustado pela morte é a realidade do cotidiano e fazem
jus ao que a não-pessoa do muçulmano no campo remonta.
Na verdade, Auschwitz ensina pelo inenarrável que “é exatamente o
lugar em que o estado de exceção coincide, de maneira perfeita, com a
regra, e a situação extrema converte-se no próprio paradigma cotidiano”
(AGAMBEN, 2008, p. 57). Longe de um equívoco, a grande lição é que,
pelas palavras de Benjamin, o estado de exceção7 é a realidade histórica
que estamos vivendo e quiçá Agamben em dizer que é uma constante nas
democracias ocidentais.
O estado de exceção adjunto ao campo que são expelidos pelas cama-
das mais abissais da ordem jurídica da governamentalidade vigente são
responsáveis por esse processo de despersonificação fatídico, pois o campo
em situação extrema permite a discernibilidade entre o que é um humano
e animalesco, homem e muçulmano (AGAMBEN, 2008, p. 56); e se, de fato
vulneráveis as vidas LGBTQI+ estão aos altos índices de mortalidade ur-
bana, o campo da cidade já oficializou e as reduziu à vida nua do
muselmann. Quiçá confabular se esse tipo de vida se enquadra, ao menos,
na vida biológica.
Longe disso. Para Antelme, segundo Agamben (2008), o que estava
em jogo nos campos era uma reinvindicação “quase biológica” de pertença
7
A expressão “estado de exceção” é trazida pela primeira vez em “Homo Sacer I: o poder soberano e vida nua” por
Agamben (2002), muito embora ele paute e fundamente o termo no livro “Estado de exceção”, cujo qual propõe-se
a uma análise sistemática, ontológica e genealógica da figura do estado de exceção. A figura dessa forma de governo
aparece ante a uma emergência constitucional de salvaguarda da democracia sendo o sacrifício de perde-la, tempo-
rariamente, a melhor forma de protege-la com medidas excepcionais que incluem pela exclusão com força de lei
certas condutas em sociedade que sob um estado de normalidade seriam vexatórias, mas que a suspensão da lei nesse
caso é o melhor estigma para uma emergência. Agamben não só é crédulo que o estado de exceção surge excepcio-
nalmente, mas que é uma constante nas democracias modernas, oculto e entranhado no sistema. AGAMBEN, Giorgio.
Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 39
momento que ingressam nessa zona, são extirpados de todas as suas ga-
rantias que uma vez pertenceram – alusão referente às leis marciais que a
SS se prontificou em exercer sobre os judeus ao nulificar qualquer digni-
dade. Tudo se trata, não de uma dignidade da vida, mas primeiramente,
da morte.
Nesse entendimento, se o campo que se (re)configura na moderni-
dade não é um espaço que produz morte, nas observações agambenianas,
o mais provável é que se trate de uma “fábrica de cadáveres”. O remontar
do termo explorado por Hannah Arendt numa entrevista concedida Gun-
ter Gaus em 1964 nas lentes agambenianas é capaz de situar a grande
letalidade e condenação que as vidas nuas são subjugadas no campo, como
um evento que jamais deveria ter acontecido. Diz-se:
Em todo caso, a expressão “fabricação de cadáveres” implica que aqui
já não se possa propriamente falar de morte, que não era morte aquela dos
campos, mas algo mais ultrajante que a morte. Em Auschwitz não se mor-
ria: produziam-se cadáveres. Cadáveres sem morte, não-homens cujo
falecimento foi rebaixado à produção em série (AGAMBEN, 2008, p. 78).
Esse tipo de designação que nada soa condolente, friamente expõe a
conditio inhunana dos campos. Pois, sobretudo, indivíduos que sequer
passam pelo processo de reconhecimento da dignidade pela morte transi-
tam aquele espaço e, do momento que ingressam nessa zona cinzenta,
estão despidos de qualquer forma de identificação que pudessem fornecer
a eles um testemunho, pois, não eram ninguém.
Com a topologia do campo em relação ao muselmann, esclarecidas
foram as devidas considerações sobre essa forma de vida como a mais apli-
cada no grande espaço urbano, periférico, da margem, que a modernidade
se tornou. Campo esse em que as vidas LGBTQI+ tornam-se vida nua,
homo sacer, muselmann, sentenciados a um tipo de política de extermínio
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Gabriel Alberto Souza de Moraes | 41
Não há comparação entre o peso dado pela opinião pública e mesmo pela ci-
ência ao lugar concedido à homossexualidade masculina nesse caso, em
relação aos não contaminados pela via sexual, hemofílicos e usuários de drogas
injetáveis. A contaminação pela via sexual inflacionou de moralismo a própria
ciência. (2020).
Considerações finais
o que Michel Foucault uma vez falara sobre Resistência. É necessário que,
em tempos tão obscuros de (bio)política neoliberal da morte em que todos
sejamos vidas nuas, homo sacer e mulsemman, sejamos insurgentes atu-
ando resistentemente por meio de ações micropolíticas com efeitos macro.
Nessa empreitada, somente agindo, nas palavras de Agamben, pela
potência de não fazer como Bartleby, o escrivão, que poderemos nos
emancipar e parar o funcionamento do maquinário biopolítico que sub-
juga as formas de vida e as isola em vida matável, e depondo com eficácia
a ordem opressora que nos codifica em vida nua. Somente desse jeito, se
configurando em resistência ante ao poder soberano, que será possível
pensar numa forma em que o Direito não esteja contaminado e que uma
nova ordem seja pensada em meio aos devaneios de exílio que os grupos
LGBTQI+ tem passado ao tentar resgatar sua principal essência desde o
momento que suas narrativas foram silenciadas.
Referências
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer I: O poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora
UFMG, 2002.
AGAMBEN, Giorgio. Meios sem fim: Notas sobre a política. Tradução de Davi Pessoa. Belo
Horizonte: Autêntica, 2015.
CHAVES, Ernani. A indesejada das gentes: entre o HIV e o COVID. N-1. Disponível em:
https://aterraeredonda.com.br/a-indesejada-das-gentes/. Acesso em 15 jan. 2021
FRASER, Nancy. O velho está morrendo e o novo não pode nascer. Tradução de Gabriel
Landi Fazzio. São Paulo: Autonomia Literária, 2020.
FOUCAULT, Michel. Resumo dos Cursos do Collège de France (1970-1982). 1. ed. Rio de
Janeiro: Editora Zahar, 1997.
1 Introdução
1
Acadêmica do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Campus Univer-
sitário do Araguaia; Integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Gênero e Poder.
2
Acadêmico do Curso de Bacharelado em Direito da Universidade Federal de Mato Grosso – UFMT, Campus Univer-
sitário do Araguaia; Integrante do Grupo de Pesquisa Corpo, Gênero e Poder.
3
Mestra em Direito Constitucional (IDP); Especialista em Direito Penal e Processo Penal (Damásio); Pós-Graduanda
em Direito Homoafetivo e de Gênero (UNISANTA); Professora Universitária e Advogada.
50 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
A Constituição Federal prevê em seu art. 5º, caput e inciso I, que “To-
dos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza [...]. I -
homens e mulheres são iguais em direitos e obrigações, nos termos desta
Constituição” (BRASIL, 1988).
Porém, o contexto fático se difere do que versa a legislação, principal-
mente quando esse olhar é voltado para o cenário do cárcere, onde a
maioria masculina se destaca em meio a minoria feminina, desde o mo-
mento em que é cometido o crime até a ressocialização desses indivíduos
em sociedade, momento o qual será analisado nesse artigo.
Ao traçar o perfil da mulher encarcerada no Brasil, temos que a maior
parte é composta por jovens, mães, de cor/etnia pretas e pardas e com
baixa escolaridade. Esse perfil está diretamente interligado com a taxa de
Geovana Ferreira Faria Alvarenga; Victor Hugo Neves Silva; Lorena Araújo Matos | 51
quantidade, como observa Vergara (1998): “(...) a mulher atua muito mais
como coadjuvante, sendo que o protagonista nessa situação geralmente é
do sexo masculino e sempre estão ligados por laços de afetividade, como
irmãos, parceiros, parentes”.
Constantemente, as mulheres se encontram em posição de chefe de
família, onde devem promover o sustento dos filhos, porém sem oportu-
nidades de emprego sobretudo devido à falta de profissionalização, além
de enfrentar preconceitos de gênero, posição social e cor. Assim, essas mu-
lheres são tentadas a cometer pequenos delitos visando o retorno
financeiro, a fim de complementar a renda. Como relata Queiroz (2017)
em seu livro “Presos que menstruam”:
celas e alas feitas especialmente para esse grupo de pessoas, essa ala possui
o nome de “ala arco-íris”, elas contam com horários e uma maior possibi-
lidade de visitas intimas, os agentes são instruídos a chamarem as detentas
pelo nome social, o que garante um sentimento de dignidade e respeito
Já em pensamento pós cumprimento de pena temos um lado mais
cruel e discriminatório, vemos indivíduos sem uma promessa de melhora,
já que por sua vez, as penitenciárias não cumprem seu papel de reeducar
os indivíduos transgêneros e não oferecem uma capacidade laborativa
para que eles exerçam quando saírem da prisão. Um clico vicioso se forma,
os indivíduos quando voltam para a sociedade não conseguem trabalho e,
por isso, precisam voltar para o tráfico ou à prostituição, ao optarem pelo
tráfico cedo ou tarde voltarão às penitenciárias, optando pela prostituição
ficarão sempre expostas a perigos, abusos e risco a vida, como é exposto
pela Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), “Até pouco
tempo, não se via pessoas trans à luz do dia, só nas esquinas escuras du-
rante a noite”
A realidade principal é que o sistema de justiça criminal brasileiro
não está preparado e muito menos interessado nesses indivíduos, já que o
Brasil ainda segue um pensamento machista, misógino e transfóbico, in-
clusive, o tratamento que as mulheres recebem durante sua permanência
nas penitenciarias é totalmente criado e efetivado com preceitos masculi-
nos. Diante desse importante aspecto, entende-se a importância de se
tratar a musculinização sofrida pelas mulheres nas penitenciarias e ca-
deias brasileiras.
Considerações finais
Referências
ANDRADE, Bruna Soares Angotti Batista de. Entre as leis da ciência, do Estado e de Deus:
o surgimento dos presídios femininos no Brasil. 2011. Dissertação (Mestrado em
Antropologia) – Universidade de São Paulo, São Paulo, 2011.
BARBIÉRI, Luiz Felipe; PALMA, Gabriel. Levantamento indica que 3% das cadeias do país
têm alas exclusivas para LGBTs. G1. Brasília, 14 fev. 2020. Disponível em:
https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/02/14/so-3percent-das-cadeias-
brasileiras-tem-alas-exclusivas-para-lgbts-diz-infopen.ghtml. Acesso em: 22 jan.
2021
BRASIL. MARCOS VINÍCIUS MOURA SILVA. (org.). INFOPEN Mulheres: relatório temático
sobre mulheres privadas de liberdade. Brasília: Governo Federal, Departamento
Penitenciário Nacional, 2017. Disponível em: <https://www.gov.br/depen/pt-
br/sisdepen/mais-informacoes/relatorios-infopen/relatorios-sinteticos/info
penmulheres-junho2017.pdf>. Acesso em: 22 jan. 2021.
DORNELLES, Tatiana Almeida de Andrade. Qual a política prisional correta para homens
biológicos que se autoidentificam como mulheres? [Entrevista concedida a] André
Borges Uliano. Gazeta do Povo. Disponível em <https://www.gazetadopovo.
com.br/instituto-politeia/politica-carceraria-homens-mulheres/#:~:text=N%C3%
A3o%20importa%20o%20g%C3%AAnero%20subjetivo,sua%20seguran%C3%
A7a%20e%20bem%2Destar.> Acesso em 22 jan. 2021.
66 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
IBGE. PNAD Contínua 2019. Brasil: Agência Ibge, 2019. Disponível em:
<https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-sala-de-imprensa/2013-agencia-
de-noticias/releases/27594-pnad-continua-2019-rendimento-do-1-que-ganha-
mais-equivale-a-33-7-vezes-o-da-metade-da-populacao-que-ganha-menos>. Acesso
em: 22 jan. 2021.
LEMOS BRITTO, José Gabriel de. Os Systemas Penitenciários do Brasil. Rio de Janeiro:
Imprensa Oficial, 1924. VOLUME I e II.
NAÍSA, Letícia. Mundo dentro do mundo, cadeia feminina é tema de Flores do Cárcere. 2019.
Disponível em: https://www.bol.uol.com.br/entretenimento/2019/10/26/flores-
do-carcere-mostra-realidade-de-ex-presidiarias-de-santos.htm. Acesso em: 28 jan.
2021.
QUEIROZ, Nana. Presos que menstruam. 8ª ed. Rio de Janeiro: Record, 2017.
TAXA de desemprego bate 17% para mulheres e 16% para negros, diz IBGE. Brasil
Econômico, 23 de out. de 2020. Disponível em <https://economia.ig.com.br/2020-
10-23/taxa-de-desemprego-bate-17-para-mulheres-e-16-para-negros-diz-
ibge.html>. Acesso em 22 de jan. de 2021.
1 Introdução
Este artigo faz uma análise das dificuldades enfrentadas por travestis
e transexuais para desfrutar de seus direitos e busca responder a seguinte
pergunta-problema: em que medida os direitos humanos, sexuais e repro-
dutivos de uma pessoa identificada como transgênera são garantidos
nacionalmente?
Para responder tal questionamento, tomou-se como diretriz o mé-
todo pesquisa bibliográfica, de forma que as obras e os artigos estudados
possibilitassem uma análise solidificada, operacionalizando a resposta à
pergunta elencada.
Considerando o objetivo geral da presente pesquisa, que é compre-
ender o nível de garantia dos direitos humanos, sexuais e reprodutivos de
pessoas transgêneras na sociedade brasileira contemporânea, passa-se a
expor a estrutura do presente estudo.
Em um primeiro momento, explica-se de forma breve a diferença en-
tre orientação sexual, identidade de gênero e as nomenclaturas usadas
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso.
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso.
3
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
68 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
4
FTM: é uma terminologia transgênero para aqueles que transicionam do corpo feminino ao corpo masculino.
5
MTF: é uma terminologia transgênero para aqueles que transicionam do corpo masculino ao corpo feminino.
72 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
6
Programa de Ação do Cairo, capítulo VII, parágrafo 7.2
74 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
7
IST: Infecções Sexualmente Transmissíveis. Este termo é recomendado pela OMS desde 2016 uma vez que deve-se
pressupor e incluir situações assintomáticas.
8
PrTr: sigla utilizada para indicar Processo Transexualizador.
76 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
crachás visíveis, legíveis e/ou por outras formas de identificação de fácil per-
cepção; III - nas consultas, nos procedimentos diagnósticos, preventivos,
cirúrgicos, terapêuticos e internações, o seguinte: a) a integridade física; b) a
privacidade e ao conforto; c) a individualidade; d) aos seus valores éticos, cul-
turais e religiosos; e) a confidencialidade de toda e qualquer informação
pessoal; f) a segurança do procedimento; g) o bem-estar psíquico e emocional;
[...]
9
Trans Murder Monitoring.
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 79
a intenção de que o indivíduo exerça seus direitos civis e realize suas pró-
prias escolhas e projetos de vida, a Declaração Universal dos Direitos
Humanos no artigo 1º determina: “Todos os seres humanos nascem livres
e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência,
devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade.”
Desse modo, compreendendo a dignidade da pessoa humana e o di-
reito à liberdade, toda a sociedade tem autonomia para constituir outros
modelos de entidade familiar sem a interferência dos demais. Porém, ape-
sar de a lei ter como um dos seus pilares, a igualdade entre os seres
humanos, seria a dignidade do casal transgênero também respeitada e
compreendida socialmente?
O planejamento familiar é fundado nos princípios da dignidade da
pessoa humana. O art. 2 da lei nº 9.263/96 regulamentou o mesmo como
“o conjunto de ações de regulação da fecundidade que garanta direitos
iguais de constituição, limitação ou aumento da prole pela mulher, pelo
homem ou pelo casal”. É por meio dessa lei que são garantidos os acessos
igualitários à informações e meios para ser exercida a parentalidade res-
ponsável.
É fato que ser trans não é uma escolha e ao se assumir, a pessoa está
apenas exteriorizando a sua verdadeira identidade. Desse modo, a partir
do momento em que o corpo masculino engravida, as normas da socie-
dade, as quais estão habituadas a associarem o corpo grávido à imagem
feminina, são desafiadas. Diante disso, mesmo o respeito à dignidade e à
liberdade serem assegurados a todos, de nada adianta enquanto ainda
houver segmentos alvos da exclusão social e de um tratamento desiguali-
tário (DIAS, 2007), uma vez que, em uma sociedade hetero cisnormativa,
grande parte da população acredita que essas pessoas não são capazes de
cuidar de uma criança e irão influenciá-las a não seguirem o modelo hete-
rossexual.
82 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
10
Texto parcial da palestra apresentada durante o 7º Seminário Internacional de Bibliotecas Públicas e Comunitárias
em novembro de 2014.
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 83
Eu tinha vergonha de sair, tinha vergonha de pedir ajuda. Como entrar numa
delegacia pra registrar o estupro? Eu, com um corpo de homem, mas com uma
vagina. Eles iam rir da minha cara. Não fui à Polícia, não fiz exame de corpo-
delito, não fui a um médico. [...] Não tinha a quem recorrer, me sentia com-
pletamente só. Precisava interromper aquela gravidez, e não via uma saída
[...] Fui salvo por uma rede de apoio a lésbicas e mulheres bissexuais. Consegui
tomar um remédio abortivo e dei fim àquele sofrimento. [...] Penso em quem
11
Relato de autoria desconhecida fornecido pela Revista AzMina, em 22 de setembro de 2017.
84 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
não conseguiu ajuda como eu. Em quem morre em clínicas clandestinas, san-
grando, em quem sofre na mão de bandidos que vendem remédios falsificados,
em quem não consegue interromper uma gravidez indesejada. Os que vocife-
ram contra a legalização do aborto jogam pesado. Mas essa é uma guerra sem
vencedores.
Considerações finais
Colorir
Faltará tinta
No dia que o céu for livre
Pra todos serem o que são
Cobertos pelo sol, sem nenhum tipo de opressão
Faltará nomes
Pra descrever o mundo sem as misérias
O que sentimos, o que nos tornamos
O novo ser sem medo de viver
Faltará a falta que nos entristece
Que hoje enche o peito de vazio e fumaça
Não faltará amor, não faltará sonhos
O novo mundo se abrirá para o futuro
Onde o presente dominará o passado
Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 85
Referências
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à saúde da população Trans, de 28 de janeiro de 2016. Brasília, 2016.
DE CARVALHO PEREIRA, Lourenço Barros; CHAZAN, Ana Cláudia Santos. O Acesso das
Pessoas Transexuais e Travestis à Atenção Primária à Saúde: uma revisão
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p. 1795-1795, 2019.
e Saúde. Uberlândia, ano 6 - volume VI, ISSN 2316 5073, p. 6-11, dezembro de 2019.
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pet-odonto-ciencia-e-saude-ano-6-volume-vi-dezembro-de-2019> Acesso em: 19 de
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setembro de 2017. Disponível em: <https://azmina.com.br/colunas/eu-fiz-um-
aborto-sou-trans-e-engravidei-depois-de-ser-estuprado/> Acesso em: 19 de jan.
2021.
GOMES, Bianca; FAHEINA, Caio; KER, João. No ensino superior, o espelho da exclusão de
pessoas trans. Estadão. Disponível em: <https://arte.estadao.com.br/
focas/capitu/materia/no-ensino-superior-o-espelho-da-exclusao-de-pessoas-
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mundo. Exame,19 de nov. de 2020. Disponível em:
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LIMA, Antonio Henrique Maia; DORSA, Arlinda Cantero; BORGES, Pedro Pereira. “NÃO
BATO PONTO PORQUE EU QUERO. NÃO BATO PONTO PORQUE EU GOSTO”:
CONTROLE SOCIAL E PROSTITUIÇÃO DE TRANSEXUAIS E TRAVESTIS EM
CAMPO GRANDE–MS. Composição Revista de Ciências Sociais da UFMS, n. 18,
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MISKOLCI, Richard. A Teoria Queer e a Questão das Diferenças: por uma analítica da
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ROCON, Pablo Cardozo et al. Dificuldades vividas por pessoas trans no acesso ao Sistema
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Júlia Gabrielly Gomes da Silva; Myllene Borges Barbosa; Thiago Augusto G. de Azevedo | 89
VENCATO, Anna Paula. Diferenças na Escola In: MISKOLCI, Richard, LEITE JR, Jorge.
Diferenças na Educação: outros aprendizados, v. 1, p. 19-56
VIANA, Luana. Como funciona o sus para pessoas transexuais. Portal Drauzio Varella.
Disponível em: <https://drauziovarella.uol.com.br/reportagens/como-funciona-o-
sus-para-pessoas-transexuais/> Acesso em: 16 de nov. 2020.
Capítulo 4
1 Introdução
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso. Integrante dos Projetos de Pesquisa Gênero,
Identidade e Sexualidade; e Corpo, Gênero e Relações de poder, em uma interface com o Direito.
2
Doutoranda em Direito pela UFMG; Mestra em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional – CESUPA.
Pós-graduanda em Direito Civil pela PUC-MG. Advogada. Assessora Jurídica.
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 91
Uma das grandes novidades nas técnicas de poder, no século XVIII, foi o sur-
gimento da ‘população’ como um sistema econômico e político: população-
riqueza, população de mão de obra ou capacidade de trabalho, população em
equilíbrio entre seu crescimento próprio e as fontes de que dispõe. Os gover-
nos percebem que não têm de lidar simplesmente com sujeitos, nem mesmo
com um ‘povo’, mas com uma ‘população’, com seus fenômenos específicos e
suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança de vida, fecundi-
dade, estado de saúde, incidência das doenças, forma de alimentação e de
habitat (FOUCAULT, 2019, p. 28).
gerenciamento dos desvios sexuais efetivado pela criação das identidades se-
xuais desviantes. Aquilo que é anormal deve ser identificado e nomeado, por
ser administrado, controlado (GALEÃO DE AZEVEDO, 2016, p. 168).
Cuiabá é uma capital que conta com ampla estrutura para o amparo
às mulheres vítimas das mais variadas violências cotidianas. A rede de en-
fretamento multidisciplinar está à disposição das mulheres com Casa
Abrigo, atendimento psicossocial, Núcleo de Defesa da Mulher da Defen-
soria Pública, Secretaria Municipal da Mulher, Conselho Municipal dos
Direitos da Mulher, dentre outras entidades.
A Lei Maria da Penha, em seu artigo 5°, foi a primeira norma da fe-
deração a reconhecer uniões homoafetivas como legítimas para fins de lide
processual, estabelecendo relações de orientação sexual e gênero como de-
terminantes e importantes na sociedade. Por essa e outras razões,
mencionada lei foi classificada pela Organização das Nações Unidas (2009)
como uma das três legislações mais avançadas do mundo no que diz res-
peito ao enfrentamento da violência contra as mulheres.
Na mesma norma, cuida-se dos procedimentos necessários para aco-
lher mulheres vítimas de violência nas Delegacias Especializadas de
Atendimento à Mulher, consoante, sempre, com a utilização da Lei Maria
da Penha como diretriz para o funcionamento da instituição.
Diante dessa disposição, uma análise qualitativa de conteúdo para in-
terpretar o fenômeno se mostra necessária, já que tem-se que tomar nota
102 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
3
Art. 3 – A Delegacia Especializada de Defesa da Mulher cabe a investigação e apuração dos delitos de autoria conhe-
cida, incerta ou não sabida, contra a pessoa do sexo feminino, previstos na Parte Especial, Título I, Capítulo II e Seção
I e Título VI do Código Penal Brasileiro, ocorrido no Município da Capital, concorrentemente com as Delegacias
Municipais e Distritais.
104 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
Então, a gente também precisa ressaltar que as pessoas ‘trans’ também são
vulneráveis à violência, por serem né, por carregarem todo o estereótipo do
machismo, do feminino, do cuidado, da delicadeza. Então elas tem os seus
companheiros que violam, que agridem dentro de casa (...) todo o ciclo de vi-
olência é igual ao de uma mulher cisgênero né. É igual o casamento, a briga, o
ciúmes, a agressão física, a separação, aí o arrependimento do companheiro,
aí vem a lua de mel novamente, e mais uma vez a reincidência de violência.
Ao ser afirmado que a mulher está sob o abrigo da Lei, sem distinguir sua
orientação sexual, assegura proteção tanto às lésbicas, como às travestis, às
transexuais, às transgêneros de identidade feminina que mantêm relação ín-
tima de afeto em ambiente familiar ou de convívio. A Lei busca a preservação
plena da dignidade da pessoa humana, fazendo valer o gênero alegado pela
pessoa vitimada. Todos esses relacionamentos, quando ocorrem situações de
violência justificam a especial proteção da Lei Maria da Penha (DIAS, 2013, p.
54).
4
Dados retirados do Manual Rede de Frente: uma construção coletiva (2018)
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 111
Considerações finais
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: fatos e mitos. Volume 1, 3° Edição. Nova Fronteira,
Rio de Janeiro, 2016.
BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo: a experiência vivida. Volume 2, 3° Edição. Nova
Fronteira, Rio de Janeiro, 2016.
BRASIL. Planalto Federal. Lei n° 11.340, de 7 de agosto de 2006. Cria mecanismos para
coibir a violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos do § 8º do art.
226 da Constituição Federal, da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação contra as Mulheres e da Convenção Interamericana para Prevenir,
Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher; dispõe sobre a criação dos Juizados de
Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher; altera o Código de Processo Penal,
o Código Penal e a Lei de Execução Penal; e dá outras providências. Brasília, 7 de
agosto de 2006.
DIAS, Maria Berenice. A Lei Maria da Penha na justiça: a efetividade da Lei 11.340/2006 de
combate à violência doméstica e familiar contra a mulher. 3° Edição. Revista dos
Tribunais, São Paulo, 2013.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber. Paz & Terra, Rio de
Janeiro, São Paulo, 2019.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 13° Edição. Saraiva, São Paulo, 2009.
MATO GROSSO. Lei nº 4.965, de 26 de dezembro de 1985 – D.O. 26.12.85. Cria a Delegacia
Especializada de Polícia, define competências, modifica a redação do § 1º artigo 33,
da Lei nº 4.163, de 20 de dezembro de 1979, e dá outras providências. Assembleia
Legislativa de Mato Grosso. Cuiabá, 26 de dezembro de 1985.
Gabriella Leite de Barros; Camyla Galeão de Azevedo | 117
1 Introdução
1
Graduando em direito UFMT campus Araguaia, membro do grupo de pesquisa Gênero, Poder e Direito da Univer-
sidade Federal do Mato Grosso – CUA.
2
Coordenador e professor efetivo do curso de Direito da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e pelo Centro Uni-
versitário do Vale do Araguia (UNIVAR); Mestre em Direito pelo Centro Universitário de Maringá (UniCesumar);
Especialista em Direito Previdenciário pela Universidade Estadual de Londrina; Bacharel em Direito pela Pontifícia
Universidade Católica do Estado do Paraná (PUCPR); Pesquisador Associado pela Universidade Federal do Mato
Grosso (UFMT); Advogado.
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 119
Art. 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabi-
lidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade,
nos termos seguintes:
X - são invioláveis a intimidade, a vida privada, a honra e a imagem das pes-
soas, assegurado o direito à indenização pelo dano material ou moral
decorrente de sua violação;
Art. 5º. A alteração de que trata o presente provimento tem natureza sigilosa,
razão pela qual a informação a seu respeito não pode constar das certidões dos
assentos, salvo por solicitação da pessoa requerente ou por determinação ju-
dicial, hipóteses em que a certidão deverá dispor sobre todo o conteúdo
registral
Nós fomos para entrevista, porque imaginávamos que pudesse agilizar nossa
demanda. Mas foi uma conversa extremamente desgastante. A tabeliã só se
130 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
referia à minha filha como ‘ele’ e começou a exigir coisas que são facultativas
ao requerente apresentar, e não obrigatórias, como receituário do hormônio
que ela toma e exames psicológicos[...].
Era para ser um momento de felicidade, mas minha filha saiu de lá extrema-
mente abalada. Só retornaremos acompanhada de um advogado” para que o
processo continuasse foi necessário marcar outra entrevista envolvendo o ta-
belião-chefe do cartório e com a companhia dos advogados (ARAUJO, 2020).
que avança cada vez mais nas classes políticas do poder, promovendo ata-
ques aos direitos fundamentais não só das pessoas transexuais, mas sim
de todas as minorias sociais.
Onde foi parar o bom-senso e a racionalidade? Sob a ditadura da toga, eis que
o direito se torna veículo dos delírios e disparates individuais. Na era da inse-
minação artificial, das aeronaves e de todos demais portentos da ciência e da
tecnologia, eis que o ser-humano endoideceu e não sabe mais o que é homem
e o que é mulher. (POMPEU, 2018).
Conclusão
Referências
ARAUJO, Saulo. Mulher trans não consegue mudar nome e acusa cartório do DF. 2020.
Disponível em: https://www.metropoles.com/distrito-federal/sem-conseguir-
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134 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
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LINDB, v. 1. Ed.13. São Paulo: Atlas, 2015.
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MEDEIROS, Góis Teixeira. Nome social para pessoas trans: avanços e desafios. Sociedade
em Debate, v.26, n.1, 2020.
Lucas Morais Queiroz Amaral; Douglas Santos Mezacasa | 135
JUSTO, Gabriel. Pelo 12º ano consecutivo, Brasil é país que mais mata transexuais no
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2021.
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RIZZO DA ROCHA LOURES VERSAN, Juliana; SILVA GALDINO CARDIN, Valéria. Dos
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perspectiva civil-constitucional: a normatividade da dignidade da pessoa humana e
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136 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
VIEIRA, Tereza Rodrigues; CARDIN, Valéria Silva Galdino. O afeto como fundamento da
família multiespécie. In: VIEIRA, Tereza Rodrigues; CARDIN, Valéria Silva Galdino;
BRUNINI, Barbara Cossettin Costa Beber. (Orgs.). Famílias, Psicologia e Direito.
2.ed. Brasília: Zakawicz, 2018.
Capítulo 6
1 Introdução
1
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
2
Doutoranda em Direito - UFMG. Mestra em Direito, Políticas Públicas e Desenvolvimento Regional – CESUPA. Pós-
graduanda em Direito Civil – PUC MG. Assessora Jurídica. Advogada.
138 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
independente de sua vontade, tendo em vista que não basta a mulher re-
produzir este princípio inconscientemente, através do poder simbólico,
mas sim que o ambiente em que ela está inserida também contribua para
tal contaminação, pois igualmente está pautado no referido princípio prá-
tico.
A referida vedação de concessão de autoridade à mulher, em relação
ao homem, é um elemento da estrutura de dominação, que nitidamente
está refletido na relação entre a mão direita e a mão esquerda do Estado.
A mão esquerda, associada à esfera social, conforme já destacado an-
teriormente, é feminizada, enquanto a mão direita do Estado, associada à
esfera fiscal, é masculinizada. Por isso, pode-se perceber, na relação entre
estas, o reflexo da referida vedação de autoridade, tendo em vista que a
mão esquerda não possui autoridade em relação à mão direita, muito pelo
contrário está subjugada ao poder de decisão desta.
A sua associação à mulher, faz com que a mão esquerda do Estado
assuma um papel de subordinação, de que dificilmente poderá ter um pa-
pel de autoridade sobre a mão masculina, sobre a esfera fiscal. Assim, a
função da mão esquerda do Estado será o de mera assistente, subordinada
e limitada ao poder de decisão e gerência da mão direita, à luz da máxima
da esgotabilidade dos recursos públicos, fazendo com que o Estado seja
um agente reprodutor da estrutura de dominação, como sustenta Bour-
dieu.
O segundo elemento está relacionado à desvalorização do trabalho
doméstico, atribuído à mulher. Conforme já analisado anteriormente, às
mulheres são reservadas atividades na esfera privada, como assistência
social, educação e atividades literárias. O fato destas atividades não possu-
írem uma retribuição pecuniária, fazendo relação com a sociedade Cabília,
analisada por Bourdieu; contribui para que estas sejam desvalorizadas e
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Camyla Galeão de Azevedo | 149
[...] o fato que o trabalho doméstico da mulher não tenha uma retribuição em
dinheiro contribui realmente para desvalorizá-lo, inclusive a seus próprios
olhos, como se este tempo, não tendo valor de mercado, fosse sem importância
e pudesse ser dado sem contrapartida, e sem limites, primeiro aos membros
da família, e sobretudo às crianças (já foi comentado que o tempo materno
pode ser mais facilmente interrompido), mas também externamente, em ta-
refas de beneficência, sobretudo para a Igreja, em instituições de caridade ou,
cada vez mais, em associações ou partidos. Não raro confinadas nessas ativi-
dades não remuneradas, e pouco inclinadas, por isso, a pensar em termos de
equivalência entre o trabalho e o dinheiro, as mulheres estão, muito mais que
os homens, dispostas à beneficência, sobretudo religiosa ou de caridade.
2004 2014
Região Masculino Feminino Diferença Masculino Feminino Diferença
Sul 60,31% 93,48% 33,17% 61,39% 91,51% 30,12%
Sudeste 45,53% 90,75% 45,22% 52,26% 88,97% 36,71%
Nordeste 40,49% 91,77% 51,28% 43,47% 89,69% 46,22%
Centro-Oeste 48,19% 91,38% 43,19% 52,15% 90,76% 38,61%
Norte 47,16% 92,84% 45,68% 51,84% 91,50% 39,66%
Média 48,34% 92,04% 43,71% 52,22% 90,49% 38,26%
Fonte: Sousa e Guedes (2016, p. 134), com base nos dados da Pnad 2004 e 2014.
Considerações finais
Referências
BEAUVOIR, Simone de. O Segundo Sexo: a experiência vivida. Vol. 2. 3 ed. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 2016.
SOUSA, Luana Passos de. GUEDES, Dyego Rocha. A Divisão Sexual do Trabalho: um olhar
sobre a última década. Estudos Avançados, São Paulo, v. 30, n. 87, p. 123-139, aug.
2016. ISSN 1806-9592. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/eav/
article/view/119119>. Acesso em: 02 dezembro 2020.
Capítulo 7
1 Introdução
1
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso/CUA. Técnica em secretariado pelo Instituto Fe-
deral de Mato Grosso.
2
Graduanda em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso/CUA.
3
Mestra em Direito Constitucional (IDP); Especialista em Direito Penal e Processo Penal (Damásio); Pós-Graduanda
em Direito Homoafetivo e de Gênero (UNISANTA); Professora Universitária e Advogada.
162 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
Pessoas transexuais geralmente sentem que seu corpo não está adequado à
forma como pensam e se sentem, e querem “corrigir” isso adequando seu
corpo à imagem de gênero que têm de si. Isso pode se dar de várias formas,
desde uso de roupas, passando por tratamentos hormonais e até procedimen-
tos cirúrgicos. Para a pessoa transexual, é imprescindível viver integralmente,
exteriormente, como ela é por dentro, seja na aceitação social e profissional do
nome pelo qual ela se identifica ou no uso do banheiro correspondente à sua
identidade de gênero, entre outros aspectos. (JESUS, 2012, p.14).
Ainda no campo da consciência, um indivíduo que tem noção das normas rí-
gidas de gênero e adere às mesmas por conta da sanção social que o ameaça,
não realiza uma escolha. Realiza-se a hormonioterapia, por exemplo, não
porque se quer, por espontânea vontade, e sim diante dos obstáculos de
socialização, de reconhecimento, apresentados cotidianamente. O indiví-
duo se vê colocado em uma situação em que opta entre a sua morte e uma
tentativa de sobrevivência. Morte em variados sentidos. (AZEVEDO, 2020, p.
184, grifo da autora).
como presa e mulher, devido ao seu pequeno número parecem ser esque-
cidas pelo Estado, segundo pela diferença de gênero, inferiorizadas por
uma sociedade machista. (GOMEZ, 2017, p.11).
No que diz respeito ao levantamento de informações sobre a comu-
nidade trans, nota-se que no Brasil há uma ausência em todos os aspectos,
incluindo o cárcere, há poucos dados, pesquisas, estatísticas e, principal-
mente, faltam políticas públicas voltadas para essa população. Essa
ausência de informações, demonstra o descaso das instituições públicas e
do estado com essa causa. (SIQUEIRA e ANDRECIOLI, 2019, p.55-56).
Infelizmente, toda essa situação de preconceito culmina em manifes-
tações através de agressões e ações transfóbicas. E na prisão não é
diferente, Luciana Nascimento (2016, p.44), expõe em sua monografia re-
latos de violências transfóbicas vivenciadas no cárcere, como agressões,
ofensas verbais e estupro. (apud NASCIMENTO, 2020, p.39).
Como citado anteriormente, o Brasil é o país que mais mata transe-
xuais no mundo e sua expectativa de vida é de apenas 35 anos, ou seja, não
é um país que se preocupa em proteger essa população vulnerável em ne-
nhum espaço, inclusive em penitenciárias. A Resolução Conjunta que
estabelece parâmetros de acolhimentos de LGBTQI+ privados de liberdade
no Brasil surgiu apenas em 2014 e possui caráter consultivo, cabendo a
cada estado aderir ou não.
Rafael Damaceno de Assis explica em seu artigo sobre a realidade
atual do sistema penitenciário brasileiro de maneira geral como o Direito
atua sobre o contingente carcerário:
Karl Marx, segundo a qual o Direito nada mais é do que instrumento que ser-
viria à manutenção do domínio pelas classes dominantes. Assim, o sistema
penal e, conseqüentemente, o sistema prisional, não obstante sejam apresen-
tados como sendo de natureza igualitária, visando atingir indistintamente as
pessoas em função de suas condutas, têm na verdade um caráter eminente-
mente seletivo, estando estatística e estruturalmente direcionados às camadas
menos favorecidas da sociedade.” (ASSIS, 2007, p.4)
quanto com seus cônjuges. Cabe ressaltar que o direito à visita íntima,
previsto no artigo 7° da instrução normativa citada anteriormente, é asse-
gurado a todas as reeducandas, segundo o diretor da instituição.
Ademais, são amparados na manutenção de seus tratamentos hor-
monais, conforme sua necessidade e regulamentação médica, esse
trabalho é realizado pela unidade penitenciária em conjunto com o hospi-
tal universitário Júlio Müller. O direito à manutenção do tratamento
hormonal está previsto no art.8°, parágrafo único da Instrução Normativa
N.º 001/2017/GAB-SEJUDH: “À pessoa travesti, mulher ou homem tran-
sexual em privação de liberdade, serão garantidos a manutenção do seu
tratamento hormonal e o acompanhamento de saúde, específico em con-
sonância com o Sistema Único de Saúde - SUS.”
Com relação à assistência educacional, os reeducandas possuem
acesso à educação para jovens e adultos – EJA, no qual podem completar
o ensino fundamental e médio. São oferecidos especificamente para eles
cursos de capacitação, como de cabeleireiro e manicure. O diretor da pe-
nitenciária alega que os cursos de moda e design são os mais solicitados e
que eles realizam esse trabalho buscando conceder uma profissão e rein-
tegrá-los.
As reeducandas também têm direito a uma ou duas vagas nos demais
cursos, junto aos outros presos, no entanto, não se sabe se a relação entre
eles é harmônica ou não, mas o diretor alega que o psicólogo os reúne e
faz acompanhamento com todos para evitar qualquer tipo de situação.
Ainda assim, cabe questionar se a segurança da população LGBTQI+ é re-
almente assegurada quando reunidas com os demais presos ou se o
psicólogo realmente está presente fazendo o acompanhamento em todos
os momentos necessários.
176 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
Conclusão
Referências
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SISTEMA PENITENCIÁRIO BRASILEIRO D I R E I TO P RO C ESS UAL P E NAL. [s.l.:
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Notícias STF :: STF - Supremo Tribunal Federal. 2018. Stf.jus.br. Disponível em:
<http://www.stf.jus.br/portal/cms/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=371085#:
~:text=O%20Supremo%20Tribunal%20Federal%20>. Acesso em: 12 Dez. 2020.
SANTOS, Moara de Medeiros Rocha; ARAUJO, Tereza Cristina Cavalcanti Ferreira. Estudos
e pesquisas sobre a intersexualidade: uma análise sistemática da literatura
especializada. Psicologia: Reflexão e Crítica, v. 21, n. 2, p. 267–274, 2008. Disponível
em: <https://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S0102-797220080
00200012>. Acesso em: 30 Dec. 2020.
SILVA, Marcos Vínicius Moura. Relatório temático sobre mulheres privadas de liberdade-
junho de 2017. DEPEN - departamento penitenciário nacional, 2017. Disponível em:
<http://antigo.depen.gov.br/DEPEN/depen/sisdepen/infopen-mulheres/copy_
of_Infopenmulheresjunho2017.pdf>. Acesso em: 14 Jan.2020.
Transexualidade não é transtorno mental, oficializa OMS - CFP. CFP. 2019. Disponível em:
<https://site.cfp.org.br/transexualidade-nao-e-transtorno-mental-oficializa-
oms/>. Acesso em: 12 Dez. 2020.
1. Introdução
1
Acadêmica do Curso de Direito do Campus do Araguaia, da Universidade Federal de Mato Grosso - CUA/UFMT.
Voluntária de Iniciação Científica UFMT/CNPq. Membra do Grupo de Pesquisa Corpo, gênero e relações de poder,
em uma interface com o Direito – CGPD - UFMT/CUA. [email protected]
2
Acadêmica do Curso de Direito do Campus do Araguaia, da Universidade Federal de Mato Grosso - CUA/UFMT.
Voluntária de Iniciação Científica UFMT/CNPq Membra do Grupo de Pesquisa Corpo, gênero e relações de poder,
em uma interface com o Direito – CGPD - UFMT/CUA. [email protected]
3
Mestra em Direito Constitucional. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Pós-Graduanda em Direito Ho-
moafetivo e de Gênero. Professora Universitária e Advogada.
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 185
4
A expressão é suada para identificação de todas as identidades não cisgêneras: transexuais, travestis, não binários
5
A sigla Terf, Trans exclusionary radical feminists, é utilizada para categorizar a corrente ideológica contrária à
inclusão de mulheres trans dentro do Feminismo sob a justificativa de que se submeteram a uma socialização mas-
culina e, portanto, devem ser tratadas como homens, havendo negação de sua identidade. Ativistas dessa vertente
são nominadas como “feministas radicais trans-excludentes” ou “feministas radicais”. (RIBEIRO; O’DWYER;
HEILBORN, 2018, p. 91)
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 191
6
A expressão cis faz referência aos indivíduos cuja identidade de gênero está em “coerência” com o sexo biológico
atribuído socialmente no seu nascimento. Daí o uso derivado de “cisnorma”, “cissexismo”, “cisgeneridade” como
termos políticos para vislumbrar esta posição privilegiada em relação à população transgênera.
7
A cisgeneridade representa as estratégias de naturalização/normalização por meio dos discursos heteronormativos
em sociedade. Tais formas estratégicas operam em conjunto com o determinismo biológico criando paradigmas nor-
mativos de gênero.
192 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
A busca por intervenções corporais [...] é vista como incompatível com uma
perspectiva feminista crítica em relação às normas sociais de gênero [...]: ou
se defende a transformação da sociedade a partir da crítica feminista às nor-
mas de gênero ou se demanda alterações corporais que estariam em
conformidade com estas normas de gênero; altera-se a sociedade para se man-
ter intactos os corpos, alteram-se os corpos para se manter intacta a sociedade.
(RAYMOND, 1979 apud BAGAGLI, 2019, p. 45-46)
8
Billings e Urban (apud BAGAGLI, 2019, p.45) consentem quanto ao entendimento influente das autoras Raymond
e Jeffreys, em especial, de que o “[...] transexualismo é uma realidade socialmente construída que só existe através
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 193
da prática médica, além de refletir e ampliar a lógica capitalista da reificação e mercantilização que simultaneamente
reafirma os papéis tradicionais de gênero”.
9
Outras expressões são exteriorizadas dentro dos discursos trans-excludentes: “Transexualismo como um abuso
médico e mutilação”- quanto às intervenções cirúrgicas; “Insatisfação de gênero”- como condição política instituída
pela dominação masculina na sociedade; “Transexuais estupram os corpos das mulheres”- no sentido de apropriação
do corpo feminino para si próprios, pelo ato de enganar as pessoas com quem se relacionam, logo “sedutores, vio-
lentadores de mulheres lésbicas”; “Feminista lésbico transexualmente construído” – noção de socialização de gênero
e não de identidade trans; dentre outros. (BAGAGLI, 2019)
10
Os estereótipos de gênero são entendidos como “socialmente construídos” na formação teórica feminista radical e
internalizados subjetivamente (ou prescritos) a partir de um processo que pode ser designado como “socialização de
gênero”. (JEFFREYS apud BAGAGLI, 2019, p. 70). Ao se identificarem como homens ou mulheres subtende-se que
os sujeitos passam por essa socialização.
194 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
11
Intervenção cirúrgica que consiste na extirpação do útero.
12
Retirada de mamas.
13
Extirpação de testículos.
14
Termo só representativo da visão cissexista ou dimórfica sobre os corpos, que se refere à retirada da genitália
externa masculina
196 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
seres vivos teriam sexo), binário (macho e fêmea) e globalizante das iden-
tidades e dos papéis sociais.
No entanto, segundo Cardin e Gomes (2013), o sexo corresponde ape-
nas “às características biológicas que são os aparelhos reprodutores, seu
funcionamento e às características decorrentes dos hormônios”. Neste
sentido, nem sempre as expectativas sociais relacionadas às pessoas nas-
cidas com determinadas configurações biológicas (femininas ou
masculinas) redundarão na identificação com certo gênero (homem ou
mulher).
A orientação afetiva sexual é um desejo e uma manifestação de von-
tade afetiva de um indivíduo pelo outro. A falta desta ou a pluralidade de
desejo caracteriza apenas uma das variantes das orientações sexuais, como
por exemplo, a bissexualidade. E é conceituada por Jesus (2012, p. 15)
como a “atração afetivo-sexual por alguém. Sexualidade. Diferente do
senso pessoal de pertencer a algum gênero. ”
No que tange ao conceito de gênero, relaciona-se a um conjunto de
representações sociais, culturais, econômicas e até mesmo religiosas, cons-
truídas a partir da diferença biológica dos sexos. Na sua construção é
adotado o desenvolvimento da noção de “masculino” e “feminino” en-
quanto construção social. Deste modo, a identidade de gênero consiste na
imposição da sociedade para transformar o ser nascido com vagina em
mulher, ou pênis em homem. As instituições sociais possuem o papel de
realizar e fiscalizar essa construção ao longo do desenvolvimento da cri-
ança como, por exemplo, a família, a igreja e a escola.
A construção social aliada à imposição de uma normatividade desen-
cadeia a marginilização dos indivíduos que não se compreendem nessa
dicotomia, entre sexo e gênero enquanto harmônicos, sujeitando-os a tra-
tamentos diferentes e exclusivos perante a sociedade.
Camila Rezende Campos de Araújo; Clarice Victoria Moreira Soares; Lorena Araújo Matos | 197
2019, p. 138) demonstra que, por mais que se apresentem com caráter
negatório, não se deve considerar as identidades trans para além de um
domínio de verdade. O ato de se posicionar na busca por reconhecimento
não significa se exteriorizar daquilo que lhe é inerente.
Bettcher (apud BAGAGLI, 2019, p. 133) denomina a auto-identifica-
ção como uma voluntariedade de gênero, isto é, as demandas pelo
reconhecimento trans são pautadas na livre escolha da expressão de gê-
nero marcando a evasão das estruturas normativas. Em contrapartida,
esta concepção não vislumbra a opressão de gênero decorrente das rela-
ções de poder. Logo, uma abordagem transfeminista deve versar sobre as
experiências e opressões socialmente estruturadas, a fim de configurar
desde o início como resistência a categoria mulher.
Ao falar sobre reconhecimento identitário, é frequentemente utili-
zado a identidade de gênero para se referir às mulheres trans, e o gênero
apenas para as mulheres cis. A inteligibilidade dos corpos trans é questio-
nada, sendo necessário identificar-se para assegurar uma existência
legítima. Isto implica na ruptura da cisgeneridade enquanto representação
da identidade de gênero. A reivindicação se volta à não designação de uma
identidade transexual (BUENO apud BAGAGLI, 2019, p. 142), mas não se
exclui a afirmação das diferenças, uma vez que abrange as vulnerabilida-
des de cada luta afirmativa.
15
Pessoas trans afirmam que “não escolheram serem assim” ou que “sempre se sentiram homens ou mulheres”
como tentativa de serem aceitas- ainda que de forma mínima- pela sociedade. Seja para não serem expulsas de casa,
da escola ou de qualquer outra instituição normalizadora, bem como para garantir o acesso à saúde (cirurgias de
redesignação, em particular) e, sobretudo, para lutar por sua existência, reconhecimento e visibilidade.
16
A “passabilidade cisgênera” representa a pressão do enquadramento das pessoas transgêneras nas expectativas
normativas do gênero com o qual se identificam. (BAGAGLI, 2019, p. 148). Ou seja, o indivíduo trans “passa” como
seu gênero de identificação, ninguém percebe que ele é trans, as pessoas o enxergam com cis. Neste sentido, a pas-
sabilidade cisgênera vêm sendo utilizada como uma espécie de vantagem-necessária- para uma convivência social.
Todavia, questiona-se: Tal passabilidade é ser você mesmo ou o que a sociedade espera de você para que seja aceita?
202 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
Conclusão
Referências
BUTLER, J. Gender trouble: feminism and the Subversion of Identity. New York:
Routeledge, 1990.
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206 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
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Disponível em: https://repositorio.ufsc.br/handle/123456789/185483?show=full.
Acesso em 10 nov 2020.
Capítulo 9
1 Introdução
1
Graduanda em Direito pela UFMT. Voluntária no Projeto de Pesquisa: Corpo, Gênero e Relações de Poder, em uma
interface com o Direito. E-mail: [email protected].
2
Graduando em Direito pela UFMT. Voluntário no Projeto de Pesquisa: Corpo, Gênero e Relações de Poder, em uma
interface com o Direito. E-mail: [email protected].
3
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
208 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
participam mais dos trabalhos domésticos do que aqueles que não são fa-
voráveis a tal igualdade.
Bourdieu comenta que o poder simbólico é exercido sobre os corpos
de forma direta e, como que por um passe de mágica, sem qualquer tipo
de coação física. Entretanto, para tal magia funcionar ela precisa estar ba-
seada em predisposições inseridas em profundidade nos corpos. O referido
autor compara tais predisposições a “molas propulsoras”, ao ilustrar a
força exercida pelo poder simbólico como um “macaco mecânico”, ou seja,
com um gasto pequeno de energia. O poder simbólico estaria fundamen-
tado em predisposições intrínsecas aos indivíduos, ou seja, disposições
ensejadas por todo um trabalho de inculcação e incorporação realizado nos
sujeitos que, em virtude dos referidos trabalhos, foram capturados pelo
poder simbólico.
Nos moldes do poder simbólico, a violência simbólica é exercida de
forma invisível, sutil, insensível, às suas vítimas, através de vias simbólicas
de conhecimento e comunicação, ou melhor, do desconhecimento, reco-
nhecimento e sentimento. Quanto ao conceito de violência simbólica,
Bourdieu faz uma ressalva no sentido de que esta é entendida, suposta-
mente, como oposta à violência física, real, efetiva; supondo-se que
violência simbólica, consequentemente, seria uma violência “espiritual”,
desprovida de efeitos reais.
O referido autor comenta que tal distinção é demasiadamente sim-
plista e apresenta impropriedades, uma vez que a referida violência é
objetivada nas coisas e incorporada nos corpos e nos habitus dos agentes,
portanto o atributo “espiritual” não é suficiente para representá-la.
A violência simbólica é marcada, também, pela aderência dos domi-
nados aos dominantes, proporcionada pela falta de disposição para refletir
sobre a dominação, tampouco sobre a relação dominante – dominado,
uma vez que não possuem instrumentos de conhecimento que não estejam
212 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
biológico, imutável. Assim, produz corpos sob a égide da lógica que prega
a coerência sexual, a integridade heterossexual. Produz corpos sexualiza-
dos, identificados através de sua sexualidade. Nas palavras de Butler
(2008, p. 98): “[...] a sexualidade toma corpos como seu instrumento e
objeto, o lugar em que ela consolida, enreda e estende seu poder.”.
As sexualidades múltiplas, perversões, são incitadas, criadas e fixadas
nos indivíduos, em seus corpos. Há uma fixação da categoria sexual criada
no corpo do indivíduo. A partir desta, o indivíduo passa a ser identificado
através de sua sexualidade. O indivíduo passa a ter uma identidade sexual,
criada para medir a sua vida. Não pode ser livre, não! Precisa se amoldar,
ser categorizado, especificado, para que o seu perigo possa ser mantido em
controle, para que o poder próprio à sexualidade o controle de forma mais
fácil, útil e eficaz. Assim como o sexo, criam-se as sexualidades periféricas.
Trata-se de uma das características do mecanismo de poder vigente,
que atua através da criação do objeto que pretende regular. Produz-se as
sexualidades múltiplas, as perversões, com fins de controle, de regulação,
gerenciamento.
Destaca-se, portanto, que o dispositivo de sexualidade para controlar
as sexualidades múltiplas, as sexualidades que não se amoldam à lógica
heterossexual, criou-as, especificou-as e as nomeou. Foi necessário produ-
zir sexualidades periféricas, pautadas em um padrão também produzido,
qual seja: o sexo em aspectos biológicos, heterossexuais. Identifica-se, as-
sim, uma dupla criação atinente às categorias sexuais. Primeiro, a criação
do sexo pelo dispositivo de sexualidade. O sexo na concepção biológica,
imutável, como pré-condição para a sexualidade. Um sexo dotado de na-
turalidade, o qual origina a heterossexualidade, também considerada
natural.
Fernanda Burghardt Silva; Matheus Yuma Shimazaki; Thiago Augusto G. de Azevedo | 219
Considerações finais
Referências
BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. 4ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2001.
OLIVEIRA, J. (08 de maio de 2020). Em decisão histórica, STF derruba restrição de doação
de sangue por homossexuais. Fonte: EL PAÍS: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-
05-08/em-decisao-historica-stf-derruba-restricao-de-doacao-de-sangue-por-
homossexuais.html. Acesso em: 10.01.2021.
1 Introdução
1
Professor da Universidade Federal de Mato Grosso; Pós-doutorando em Direito - Universidade de Brasília (UNB);
Doutor em Direito - Universidade de Brasília (UNB); Mestre em Direito - Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA); Especialista em Direito Civil - Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG); Especializando
em Direito Homoafetivo e Gênero - Universidade de Santa Cecília (UNISANTA); Advogado.
2
Mestra em Direito Constitucional. Especialista em Direito Penal e Processo Penal. Pós-Graduanda em Direito Ho-
moafetivo e de Gênero. Professora Universitária e Advogada.
234 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
Uma transição que marca uma passagem da lei à norma, não no sen-
tido de que a lei seja substituída, deixe de existir, e sim de que a instituição
judiciária se integra gradativamente a aparelhos, instituições reguladoras,
controladoras, causando impactos na primeira imagem destacada.
O Direito, à luz da concepção de que é sinônimo da lei, da morte; não
mais se amolda ao mecanismo de poder incidente sobre a vida. Trata-se
do processo gradativo destacado por Foucault, o Direito é cada vez menos
lei, tornando-se norma. O mecanismo de poder exercido sobre a vida não
mais funciona nos moldes da lei, da repressão. Pelo contrário, esta nova
forma de poder, que tem como objeto a vida, é positiva, empreendedora,
exercendo-se menos pela lei e mais pela norma.
Há uma ressalva de alta relevância a ser feita neste contexto. O Di-
reito não se apaga perante esse novo mecanismo de poder, mas tão
somente a imagem do Direito como lei deixa de suportar essa nova forma
de poder, que não mais se exerce pela repressão, mas pela produção, pela
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 237
O direito penal, ao longo do século passado, não evoluiu de uma moral da li-
berdade a uma ciência do determinismo psíquico; ele antes compreendeu,
organizou, codificou a suspeita e a identificação dos indivíduos perigosos, da
figura rara e monstruosa do monomaníaco àquela, freqüente, cotidiana, do
degenerado, do perverso, do desequilibrado nato, do imaturo etc.
Controla-se o indivíduo não mais pelos seus atos, mas pelas suas vir-
tualidades, por aquilo que o indivíduo é capaz de fazer. Trata-se de uma
lógica de controle, de vigilância, que é exercida pelos mais variados agen-
tes, sobre os corpos dos indivíduos. Um controle que é realizado também
por um novo instrumento, derivado da nova forma de consubstanciação
da riqueza, que passa a ser materializada em objetos, em bens materiais,
ao final do século XVIII. O que desencadeou a concepção de que seria ne-
cessário proteger tais objetos dos indivíduos considerados perversos
(FOUCAULT, 2013).
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 241
Assim, sustento que raça, sexo e gênero são categorias que devem ser exami-
nadas em conjunto porque produzidas em conjunto e não apenas porque
produzem estereótipos ou discriminações diferentes quando observadas em
conjunto na experiência dos sujeitos. Desse modo, ainda que permaneça a dú-
vida sobre se “todas fazemos gênero?”, uma resposta preliminar é que, como
atribuição de sentido aos corpos e suas funções reprodutivas, talvez sim, todas
façamos. Mas que, como distribuição de poder binária hierarquizante, a res-
posta não é única ou rápida e é isso que também nos exige usar o gênero como
categoria de análise decolonial: como forma de investigar o que a colonialidade
do gênero apagou, destruiu ou invisibilizou e como as noções de gênero da
modernidade colonial que hoje discutimos ou combatemos são construções
que usam da raça e do sexo de modo articulado para preencher a oposição
entre humanos e não-humanos (MAGALHÃES, 2018, p. 77).
3
A pesquisa mencionada foi realizada antes da alteração realizada no artigo 318, do Código de Processo Penal, intro-
duzida pela Lei 13.257/2016, inclusive, foi utilizada como fundamentação para a referida alteração legislativa.
252 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
4
Art. 318, IV (redação anterior): Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente
for: IV - gestante a partir do 7º (sétimo) mês de gravidez ou sendo esta de alto risco.
Art. 318, IV (redação atual): Art. 318. Poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente
for: IV – gestante.
Thiago Augusto Galeão de Azevedo; Lorena Araújo Matos | 253
Considerações finais
Referências
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256 | Corpo, Gênero e Relações de Poder: estudos sociojurídicos
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