Perfeito para o Papel - Jewel E. Ann
Perfeito para o Papel - Jewel E. Ann
Perfeito para o Papel - Jewel E. Ann
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei 9.610 de 19/02/1998. Nenhuma parte
deste livro, sem autorização prévia por escrito da editora, poderá ser reproduzida ou
transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos,
gravação ou quaisquer outros. Os direitos morais do autor foram declarados.
Esta obra literária é ficção. Qualquer nome, lugares, personagens e incidentes são produto
da imaginação do autor. Qualquer semelhança com pessoas reais, vivas ou mortas, eventos
ou estabelecimentos é mera coincidência.
A62p
1.ed
Ann, Jewel E.
Perfeito para o papel [recurso eletrônico] / Jewel E. Ann ; tradução Débora
Isidoro. - 1. ed. - Rio de Janeiro : Allbook, 2020.
Esta não é uma história sobre autismo. Esta é uma história sobre vida. E na
vida existem crianças com autismo e pais percorrendo um território
desconhecido, sem mapa, para dar a essas crianças uma voz e um futuro.
Toda criança é única. Toda jornada requer um mapa diferente. Esta é uma
história. Uma jornada. Harrison foi inspirado nas crianças que tive o prazer
de conhecer pessoalmente e amar.
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Dedicatória
Nota da Autora
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Epílogo
Agradecimentos
AllBook
eidi me deu um filho, e depois eu a matei. Sorte do filho da mãe que
H aprende as lições da vida quando escapa por pouco de alguma
desgraça. Eu invejo esses filhos da mãe que têm sorte.
— Não bebe hoje à noite. Quero que faça outro bebê em mim — minha
esposa sussurrou enquanto deslizava a mão por minha perna embaixo da
mesa, em torno da qual se reuniam doze dos nossos amigos mais próximos e
familiares. Heidi havia escolhido minha churrascaria favorita em Omaha e
reservado uma sala de festas para o meu dia especial. Eu nem imaginava, até
todo mundo gritar “surpresa”.
Amava aquela mulher mais do que podia explicar com palavras.
— E para o aniversariante? — A garçonete morena piscou para mim,
segurando a caneta sobre o bloquinho de papel em sua mão.
— Uísque puro.
Heidi franziu a testa.
Segurei a mão dela e a coloquei sobre minha ereção.
— Não vou ter nenhuma dificuldade para atender ao seu pedido.
— Veremos. — A resposta curta não transmitia muita confiança.
Meus pais vieram de carro de Denver para me surpreender, mas Harrison,
meu filho de dois anos, roubava a cena. A mãe de Heidi e eles se revezavam
para mimá-lo. Eu não esperava ser pai antes de terminar a faculdade; também
não esperava conhecer a mulher sem a qual não podia viver no momento
exato em que mais precisaria dela.
Ela era estudante de enfermagem no hospital para onde me mandaram no
dia em que uma lesão no ligamento cruzado acabou com minha carreira no
futebol. Eu a chamava de anjo. Heidi insistia em dizer que eram os
analgésicos.
— Monaghan disse que você vai ser agente dele no profissional. — Meu
pai me encarou, curioso.
— Monaghan inventa muita coisa. Nenhum time com um mínimo de bom
senso vai recrutar o Menino Bonito. Ele vai ser professor. Isso mostra que é
bunda mole demais para ter uma chance de verdade na NFL.
O jovem quarterback do Cornhusker’s olhou para mim do outro lado da
mesa e riu. Nós dois sabíamos que ele seria um profissional, mas eu não ia
inflar seu ego no meu aniversário.
— Cuidado com a boca, Hopkins — Heidi avisou.
Quando ela me chamou pelo sobrenome, eu me ajeitei na cadeira. Isso
sempre anunciava uma punição na sequência, e todos os castigos dela eram
aplicados no quarto.
Eu a amava mais do que podia explicar com palavras.
A noite progrediu de um jeito perfeito.
Jantar. Amigos. Família. Comida. Bebida.
Minha esposa se superou. Ela tornava o dia todo perfeito. E também me
fazia sentir irresponsável por beber. Toda vez que a garçonete punha um copo
na minha frente, Heidi comprimia os lábios com ar desaprovador.
Deixei passar sem discutir. Antes de morrer, o pai dela bebia muito e era
abusivo. Quando nos conhecemos, ela achou que eu não bebia. Na época,
isso era verdade. Minha vida era o futebol. Eu tratava meu corpo como um
templo. Mas depois da lesão, passei a ter uma vida em que meu corpo não era
mais um templo, e beber de vez em quando era o que eu precisava para
aliviar a dor dos sonhos perdidos.
Heidi acreditava que todo homem que bebia era um alcoólatra abusivo. Eu
me encarregava de mostrar que ela estava errada, pois assim, um dia, talvez,
ela relaxasse um pouco e bebesse alguma coisa em ocasiões especiais.
— Feliz aniversário, Flint. Cuide dos meus bebês. — Sandy, minha sogra,
me abraçou quando todos se despediam e me davam parabéns pela última
vez.
— Isso significa que é hora de dar a chave do carro para sua esposa. —
Heidi me cutucou com um sorriso brincalhão que eu sabia que não tinha nada
de brincadeira.
Sandy apertou minhas bochechas e olhou nos meus olhos.
— Acho que ele está bem, querida. Não chega nem perto do que era seu
pai, dá um tempo para ele.
Olhei para Heidi com cara de “eu falei”. A mãe dela me amava. Eu era
tudo que o pai dela não foi. Heidi odiava o fato de Sandy me tratar como se
eu não pudesse errar, mas eu adorava isso. O excesso de confiança trouxe um
orgulho perigoso.
Depois de acomodar Harrison na cadeirinha de segurança, Heidi estendeu
a mão aberta.
— Estou bem. — Abri a porta do lado do motorista.
— Não está. Você bebeu demais.
— Eu sou muito pesado.
— Flint.
Sentei diante do volante.
— Me chama de Hopkins, gata. Gosto de como isso acaba.
— Flint, estou falando sério. Nosso filho está no banco de trás.
Ela parou entre mim e a porta, me impedindo de fechá-la.
— Quero comemorar meu aniversário com você. Entra, vamos pôr o
Harrison na cama.
Ela cruzou os braços. Cabelos negros voavam para todos os lados, olhos
azuis pareciam me penetrar.
— Estou. Bem.
Heidi deu de ombros.
— Ótimo. Então não banca o machista. E me deixa dirigir.
Um trovão retumbou ao longe, e algumas gotas de chuva começaram a
cair do céu escuro.
— Você vai se molhar.
Ela bufou e se dirigiu ao outro lado do carro com passos pesados.
— Babaca teimoso — resmungou enquanto prendia o cinto de segurança.
— Olha a boca, mamãe.
Dei risada e liguei o motor.
— Vai ter um lugar especial para você no inferno, Flint Hopkins, se matar
a gente ou outra pessoa por dirigir bêbado.
Engatei a marcha e segurei sua nuca, puxando sua testa de encontro à
minha antes de soltar o freio.
— Você é meu mundo. Eu nunca te faria mal. Te amo mais do que
consigo explicar com palavras.
— Caramba, Flint... — ela sussurrou. — Que bafo de uísque. Estou
implorando. Me deixa dirigir.
Eu me afastei dela e soltei o freio. Por mais que amasse minha esposa,
também amava ser homem. E um homem forte conhece seus limites e não
precisa de ninguém para dizer o que ele pode ou não pode fazer.
AMANDA: Fala sério!!! Caramba, tenho muita roupa suja para lavar em casa. Obrigada!
Lembrete: Nunca mais contratar uma mulher para ser minha secretária.
EU: Não é sério. Manda a mulher entrar e pega aquela pesquisa que eu pedi há três dias.
AMANDA: Eu mando. E deixei a pesquisa na estante atrás da sua mesa há dois dias. :)
— Mulheres — resmungo.
— Oi. — A mulher que se interessou em alugar o espaço em cima do meu
escritório se aproxima de mim com a mão estendida. — Sou Ellen Rodgers.
Peço desculpas pelo atraso.
Levanto da cadeira e aperto sua mão. A mulher não é o que eu esperava. É
alegre – do tipo que precisa de um rótulo informativo. Deixo seu entusiasmo
pela vida passar dessa vez porque ela é bonita.
— Flint Hopkins. E tudo bem. — Olho por cima do ombro dela para nossa
plateia de uma pessoa só. Amanda sorri, acanhada. Estreito os olhos e espero
até ela virar de costas. — Por favor, sente-se. — Aponto a cadeira diante da
minha mesa.
Ellen deixa a bolsa no chão com um barulho deselegante. Deve viver do
que carrega na bolsa.
Noto suas mãos trêmulas desabotoando o casaco de lã cinza, que é um
exagero para um dia de 15 graus.
— Peço desculpas por minha aparência. Almocei com uma menina de
quatro anos que tem alguns probleminhas de coordenação.
Irônico. Ela também parece ter alguns.
Se fosse um pouco mais longo, o cabelo castanho cobriria a mancha
vermelha no suéter branco e justo.
Meus olhos se movem rapidamente procurando os dela, depois que me dou
conta de que estou analisando a mancha, que se localiza exatamente em cima
de um seio.
— Pegou o contrato com Amanda no dia em que ela te levou para
conhecer o espaço?
— Sim. Obrigada! — Ellen deixa o casaco no encosto da cadeira e se
senta.
— Tem alguma dúvida sobre ele?
— Não. Parece padronizado. Adoro essa área, mas é impossível encontrar
imóveis vagos por aqui. Por isso fiquei tão animada quando vi o anúncio no
mesmo dia em que você o postou.
Reli suas informações, embora já as tivesse lido umas dez vezes.
— Você é musicoterapeuta?
— Sim.
— Música é considerada terapia?
Ellen ri baixinho. É infantil. O rosto dela também é infantil. Devem ser as
sardas e os olhos azuis.
— Sim. É uma terapia alternativa. Mas é um trabalho legítimo. Tenho um
diploma na minha especialidade, como qualquer outro profissional de saúde.
— Ela aponta minhas mãos cruzadas sobre a mesa. — Gostei das
abotoaduras.
Olho para elas e ajeito uma de cada vez.
— Obrigado.
Ela morde o lábio como se quisesse rir, mas algo lá dentro vetasse a ideia.
— Desculpa. Isso foi meio sem noção. Estou um pouco nervosa.
— Por quê? — pergunto enquanto abro o e-mail de um cliente.
Ela está cantarolando. Por que está cantarolando?
— Porque quero o espaço.
— Referências?
— Ah, sim. Mandei para a sua secretária.
Aperto o botão do interfone.
— Amanda, preciso das referências.
— Na estante, ao lado da pesquisa que você pediu — ela responde de sua
mesa. Depois o interfone vibra. — De nada, Sr. Hopkins.
Ellen sufoca a risada, enquanto eu respiro fundo para não perder o
controle.
— Bom, é isso. Vou verificar suas referências.
— Já verifiquei — Amanda avisa sem usar o interfone.
— Está demitida.
Amanda fica em pé e pendura a bolsa no ombro.
— Eu pego a documentação para o seguro-desemprego amanhã de manhã.
— Tenha uma boa tarde — resmungo, e olho para ela de um jeito especial,
talvez daquele jeito que ela descreveu.
— Boa noite, Flint. — Ela pisca.
Quando escuto a trava da porta, volto a estudar os olhos azuis, que nem
piscam. Até as bochechas, que eram meio rosadas quando ela chegou, agora
estão pálidas, coloridas apenas pelas sardas.
— Eu a demito todos os dias. Ela não respeita autoridade.
Ellen permanece imóvel, movendo apenas os olhos, que estudam os meus.
Viro e pego as referências na estante atrás de mim. Vejo que são todas
muito boas. Não há nenhum motivo para não alugar o espaço, exceto minha
obsessão por colocar pingos em mais is do que há no documento. Controle
absoluto é minha vida.
Um sorriso cauteloso surge no rosto dela.
— Você é um homem difícil de ler, Sr. Hopkins.
Uma leitura sombria.
— E você é minha mais nova inquilina. Seja bem-vinda. Vou precisar de
sua assinatura nesses papéis e o equivalente a dois meses do aluguel. —
Empurro na direção dela o contrato que Amanda anexou às referências com
um clipe e ofereço uma caneta.
Sinto uma certa inveja dela. Não consigo lembrar a última vez que alguma
coisa me fez sorrir daquele jeito. E ela está radiante como uma noite de verão
por uma coisa insignificante, um espaço no segundo andar de um imóvel
perto do centro de Minneapolis.
— Obrigada! Você fez meu dia. Caramba, você fez minha semana. — Ela
assina o nome e rabisca suas iniciais em todos os lugares marcados por uma
seta adesiva, obra de Amanda, e preenche um cheque que tem notas musicais
desenhadas.
— Por nada. — Destranco a gaveta da mesinha lateral e pego as chaves.
— Aqui estão os dois jogos de chaves. Um é do prédio, o outro é do seu
escritório. A segurança inclui um sistema de alarme, vou te mostrar como
cadastrar sua senha. Entre seis da noite e sete da manhã, as portas principais
do prédio ficam trancadas. Se receber clientes nesse horário, vai precisar
acompanhá-los na entrada e na saída do prédio. Se tiver algum problema,
procure a Amanda primeiro, depois pode ligar para mim, se ela não estiver
disponível.
— Amanda? A mulher que acabou de demitir?
Levanto, visto e abotoo o paletó e ajeito a gravata. Ellen continua sorrindo,
como se esperasse minha resposta para o comentário.
— Sim.
Conciso. Isso é tudo que ela vai ter de mim.
Amanda demorou cinco anos para entrar na minha vida a ponto de se
tornar necessária — e só profissionalmente. Ela poderia mijar no meu café, e
nem assim eu a demitiria, porque ela é a mulher por trás de um dos melhores
advogados de Minneapolis — eu. E a única coisa que me deixa mais feliz do
que ela antecipando todos os meus movimentos vinte e quatro horas por dia é
a família dela, o marido e os três filhos. Eu sou o emprego dela. Ponto final.
— Vem comigo. — Passo por Ellen me esquivando das ondas de
felicidade que emanam de seu sorriso eufórico demais.
— Parece que está bem frio lá fora. Não estava tão frio nesta época há um
ano. — Ellen esfrega e sopra as mãos quando entramos no elevador.
Olho para ela com os olhos meio fechados.
— Quinze graus? Isso não é frio em Minnesota. O ano passado foi mais
quente que de costume. Agora está normal.
— Eu me mudei da Califórnia. — Ela dá de ombros e sopra as mãos mais
uma vez.
— Eu sei. — A porta do elevador abre, e indico a saída com um aceno de
cabeça.
— É claro. — Ela sorri e sai do elevador. — Minhas referências.
Aproveito para dar uma olhada nela por trás. Por mais que não queira
notar as curvas suaves e a bunda empinada, não tenho opção.
— E aí? Você não vem? — Ela olha para mim por cima de um ombro de
um jeito provocante.
Não acho que esteja flertando. Ela só quer ser mais próxima. Era como
minha esposa costumava olhar para mim.
— Sim. — Paro de pensar nisso e a levo até a segunda porta à esquerda.
— Quatro escritórios no total, certo?
Uso minha chave para abrir a porta e desligar o alarme.
— Sim. O meu, o de um oftalmologista na frente do meu, no térreo, e uma
firma de contabilidade na frente do seu. Aqui... — Dou um passo para o
lado... — O teclado está pronto para você digitar uma senha de seis dígitos.
Ela digita dois números, para e olha para mim.
— Está olhando que senha vou digitar?
— Minha senha é a central. Posso entrar em todos os escritórios. Não vai
me impedir de entrar.
— Eu utilizo a mesma senha em vários lugares. — Ela comprime os lábios
num sorriso tenso.
Suspiro e viro de costas.
— Obrigada. — O teclado apita mais quatro vezes.
Viro novamente e aperto a tecla de jogo da velha.
— Essa senha também serve para você entrar no prédio.
Ela assente e anda pela sala vazia, que por ora só tem um banheiro no
canto mais afastado. Um som familiar invade o espaço. Ela está cantarolando
You are My Sunshine. Conheço a canção, porque Heidi a cantou para
Harrison um milhão de vezes. Por que ela está cantarolando essa música?
— Adoro ter uma parede cheia de janelas.
Depois de me pegar olhando para ela com muita atenção novamente,
pigarreio.
— Mais alguma pergunta antes de eu ir embora?
Ela se vira e volta a cantarolar. Olho pela janela por cima de seu ombro,
porque não consigo olhar para ela sem encarar. Alguma coisa nessa mulher
desencadeou algo em mim, abalou meu controle. Abro e fecho as mãos
algumas vezes, depois olho para o relógio de pulso. Talvez consiga passar na
academia antes de ir buscar o Harrison na aula de robótica.
— Não, tudo bem. Vou trazer minhas coisas no fim de semana, se não
tiver nenhuma objeção.
— O espaço agora é seu. Não precisa da minha permissão.
— E para pintar?
— Fique à vontade.
— Obrigada. — Ela sorri e gira várias vezes.
Que porra é essa?
— Adoro! — Ela para e junta as mãos sobre o peito, os olhos azuis cheios
de gratidão, como se eu tivesse lhe dado um carro novo ou algo mais
excitante que cinquenta metros quadrados de espaço, pelos quais ela vai
pagar um aluguel caro.
— Tudo bem, então. — Eu me aproximo da porta lentamente. — Tem o
telefone da Amanda, não tem? Estamos acertados? — Essa é a senha para
“não preciso te ver de novo, a menos que haja uma emergência catastrófica”.
— Completamente acertados. — Ela une polegar e indicador naquele
gesto clássico de “ok”.
A parte mais difícil de tirar a vida de outra pessoa é saber que nada pode
consertar o que foi feito.
Nem um milhão de “desculpas”.
Nem a cola mais forte.
Nem uma infinidade de boas ações.
Na maior parte dos dias, consigo me convencer de que meu filho é um
presente e eu sou digno de criá-lo. Mas em dias de total clareza, vejo que tê-
lo e amá-lo é meu maior castigo. Quando ele tiver idade suficiente para
entender por completo o que aconteceu com sua mãe, vai me odiar, quase
tanto quanto eu me odeio.
— Sou o único garoto que come essas coisas esquisitas no almoço.
Harrison bebe um gole da vitamina sem lactose ao lado da bancada,
enquanto preparo seu almoço livre de alergênicos.
— Gastei muito dinheiro para fazer todos os testes de alergia. Sem
mencionar as intermináveis horas de pesquisa. Seu rendimento na escola
melhorou, e nosso relacionamento também. Portanto, não ligo se você é o
único garoto que almoça coisas saudáveis.
— Os meninos debocham de mim.
— Meninos são idiotas.
— Eu sou um menino.
— Você é a exceção. Por isso eles debocham de você.
— Eles têm inveja de mim porque não sou idiota?
— Exatamente. — Coloquei uma bolsa de gelo na lancheira com o
almoço.
Ele revirou os olhos. O garoto é esperto demais para o próprio bem.
— Sua professora de Ciências mandou em e-mail. Ela disse que você não
entregou o trabalho de pesquisa.
Harrison veste o casaco de inverno e pega a lancheira de cima da bancada.
— Isso é idiota.
— Por quê?
Fecho a pasta executiva e verifico se as luzes estão apagadas antes de
sairmos de casa para começar mais uma semana.
— Os livros são ultrapassados. Tudo que eles ensinam é ultrapassado.
Temos uma lista de fontes obrigatórias, e não podemos usar informação de
fontes externas. Basicamente, ela quer que eu escreva sobre ciência incorreta
citando fontes de pesquisa antiquadas. É um desperdício do meu tempo.
Gesticulo para que ele saia de casa e vá para o carro.
— Você tem doze anos. Não trabalha. Não tem grandes responsabilidades.
Tem todo o tempo do mundo. Já falei um milhão de vezes, precisa pensar na
escola como se fosse seu emprego.
Ele prende o cinto de segurança enquanto tiro o carro da garagem
— Legal. Eu tenho tempo. Mas não vou fazer o trabalho porque ele é um
insulto à minha inteligência.
Tenho um filho autista leve. Os médicos parecem não saber nada sobre a
epidemia que devorou essa geração de crianças. Não existe um jeito claro de
fazer o diagnóstico. Ou uma vacina que impeça o quadro. Ou um comprimido
para mascarar os sintomas.
Harrison é viciado em informação. É raro vê-lo sem os fones enfiados nas
orelhas, ouvindo podcasts sobre tudo, de arte moderna a teoria da evolução.
Ele tem dificuldades para controlar as emoções, suas interações sociais são
um pouco ríspidas, e ele tem um senso de humor estranho, o que é
interessante, porque ele raramente entende o humor de outras pessoas. Fora
isso, ele é um menino de doze anos bem “normal” e ajustado.
— Faz o jogo, Harrison.
— É um jogo idiota. — E ele enfia os fones de ouvido, encerrando nossa
conversa.
— Ela vai te reprovar, se não fizer o trabalho. Acho que esse é um insulto
bem maior à sua inteligência.
Olho para ele. Harrison desligou.
Flint
Vejo a bunda dela acenar se despedindo e imagino sua calcinha caindo.
— Você precisa trepar — resmungo, afivelando o cinto de segurança e
batendo a porta do carro.
Não que tenha me mantido celibatário desde a morte de Heidi; só não levei
nenhuma mulher à minha casa desde que recuperei a guarda de Harrison. O
pai do Simon se divorciou da esposa que o traía. Eu matei Heidi porque era
um alcoólatra. Em termos sexuais, talvez isso não devesse ter importância,
mas tem.
Mulher, para mim, é só por uma noite. Hotéis. A casa delas. Mas nunca na
minha. Não as apresento ao Harrison. Não me relaciono além do sexo. E não
faço sexo com tanta frequência. Só quando ele está na casa de um amigo, na
casa da mãe da Heidi, ou quando meus pais vêm nos visitar. Sim, eu tenho
pais que entendem minhas necessidades.
Faz tempo que não fico com uma mulher. Ellen Rodgers invadindo minha
vida não é uma coisa boa. Ellen Rodgers praticamente me pedindo para trepar
com ela é um desastre.
Como se meu pai soubesse que preciso dele, seu nome aparece na tela no
painel. Aperto o botão de atender no volante.
— Oi, pai.
— Como vai o meu garoto?
— Difícil dizer. Está falando de mim ou do Harrison?
Ele ri.
— De quem acha que é?
— Harrison está bem.
— E meu outro garoto?
— Sobrevivendo.
— Vou dar uma amenizada nisso quando sua mãe perguntar.
— Boa ideia. Estou indo para casa agora. Quando você e a mamãe vêm
para cá?
— Na verdade, sua mãe tem uma passagem de cortesia com direito a
acompanhante que vai vencer em breve. Ela fez reservas para nós daqui a
duas semanas. É um bom momento para vocês?
— É claro que sim. Harrison vai adorar. Bom... do jeito dele.
— Vai sair enquanto estivermos aí? — E com “sair” ele se refere a transar.
Meu pai jogou futebol na faculdade e durante dois anos na NFL, antes de
uma lesão acabar com a carreira dele, como aconteceu comigo. Ele também
teve um problema de dependência. Não tem nada que não possamos
conversar. Ele me entende.
— Espero que sim. Eu contei que aluguei o escritório no segundo andar
para uma professora de música. Lembra?
— Peitos lindos?
Dou risada. Os homens da família Hopkins têm pensamentos singulares.
— Isso.
— Acha que transar com a inquilina é uma boa ideia?
— Não. É uma péssima ideia. Não era isso que eu ia dizer. — É uma
péssima ideia, mas é uma ideia, uma ideia que não sai da minha cabeça, onde
ela vai morrer. — Ela é irritante. Fisicamente irritante. Meu pescoço coça
quando estou perto dela. Mas é por causa dela que preciso passar uma noite
fora. Tentei despejá-la, mas ela está usando o amor de Harrison pela música
para me manipular. Ele está aprendendo a tocar violão com ela. E hoje ele
levou para casa um rato de estimação. Um rato de estimação. Quem tem uma
porra de um rato como animal de estimação? Ellen Rodgers. Ela tem.
Meu pai dá risada.
— Ela está mexendo com você. Transar com a inquilina pode ser
exatamente o que você precisa fazer. Quando ela perceber que você é do tipo
que não vai além de uma noite, vai pedir para deixar o imóvel, em vez de ser
despejada. Mulheres não gostam de conviver com homens que se afastam
depois de uma noite.
— Conselho sábio, vindo do homem que se casou com a namorada do
ensino médio e casou virgem.
— Ei, eu pego carona na sua vida agitada.
— Ah, coitado. — Dou risada.
— Sabe... — O tom dele fica mais sério... — Já faz dez anos. Acho que
uma década é tempo demais. Heidi ia querer que você superasse.
— Heidi ia querer que eu queimasse no inferno por ter acabado com a vida
dela... deixado Harrison sem mãe. Penso nisso toda vez que sinto algum tipo
de felicidade ou prazer. Tenho que desligar. — Não consigo falar sobre isso.
Talvez nunca seja capaz de ter essa conversa. Uma década... isso não é nada.
Matei a Heidi. Escapei impune de um assassinato. Devia ter passado o resto
da vida apodrecendo na cadeia.
— Amo você, Flint. Sua mãe também te ama. E o Harrison também. E nós
te perdoamos.
Paro na garagem e desengato a marcha do carro, inclino a cabeça para trás
e fecho os olhos. Não mereço perdão. Fiz o imperdoável. Estou aqui pelo
Harrison. É isso. Criá-lo é a dívida que tenho. Não mereço viver um dia além
do aniversário dele de dezoito anos. E ele só me ama porque não sabe a
verdade.
— Vejo vocês em duas semanas. Manda os detalhes do voo, vou mandar
alguém ao aeroporto, se não puder ir pessoalmente.
— Boa noite, filho.
Desligo.
Faço o jantar.
Ponho a roupa na máquina de lavar.
Arranco o mato do quintal e cuido do jardim.
Fico acordado até tarde estudando o caso que será julgado na próxima
semana.
Acordo e me preparo para fazer tudo de novo, porque pessoas como eu
não merecem mais que monotonia.
omo apaixonada por música, seria natural a audição ser meu sentido
C mais valorizado. Mas Beethoven continuou compondo e, de certa
forma, ouvindo música, muito tempo depois de ter perdido a audição. Vou
amar a música para sempre e nunca vou deixar de me encantar pelas vidas
que ela salva, mas sei, sem dúvida nenhuma, que o tato é o sentido sem o
qual eu não poderia viver. E sei disso porque passei dois anos tentando deixar
morrer essa necessidade, essa sensação que só se tem com outro ser humano.
No nível mais básico, humanos precisam de contato físico para seguir
florescendo.
— Está disponível hoje à tarde? — Dra. Hamilton pergunta quando pego
um café na cantina do hospital. — Queria que conhecesse uma paciente.
Vítima de estupro.
— Se for antes das duas horas, tudo bem. Depois disso, estou no
consultório. — Franzo a testa enquanto adoço o café. — Se ainda tiver um. O
dono do imóvel está tentando me despejar.
Ela guarda o celular no bolso do jaleco e sorri.
— Eu te conheço há quase um ano. Você é capaz de encantar uma cobra.
Todo mundo te ama. Por que vai ser despejada? Problemas com o aluguel?
Ponho a tampa no copo descartável e balanço a cabeça.
— Problemas com o barulho. — Faço uma careta em meio ao vapor que
escapa pela abertura na tampa do copo. — O dono do imóvel não entendeu
bem as características da minha profissão.
— Deve ser um idiota. Você devia contratar um advogado para resolver
essa história. Conheço um muito bom.
Dou risada.
— Engraçado... o dono do imóvel é advogado.
— Ah... — Ela bebe um gole de café. — Bom, mais uma razão para ter o
seu.
— É complicado. Estou dando aulas de violão para o filho dele. O garoto é
incrível. Mostro alguma coisa uma vez, ele entende e constrói outra a partir
dela sem minha orientação. É um dom, ele tem um dom verdadeiro. E eu
gosto dele, e acho que ele gosta de mim.
— O pai te contratou para dar aula de violão para o filho dele, mas vai te
despejar?
Balanço a cabeça quando entramos no elevador.
— Eu me ofereci para dar as aulas de graça... mais ou menos. O Gostoso
de Terno não ficou muito satisfeito com isso.
— Gostoso de Terno? — A Dra. Hamilton ri.
Bebo um gole do café e dou de ombros.
— É. Gostoso de Terno. Alto, sério e bonito. A fantasia de toda mulher.
Todos os itens. Os gostosos sempre são canalhas ou gays.
— Talvez ele seja gay.
A porta do elevador abre no meu andar.
— Os olhos dele passeiam demais. Ele não é gay, é só canalha.
— Entendi. Ei...
Viro quando ela aperta o botão para manter a porta do elevador aberta.
— Recebeu o convite para a degustação de vinho na minha casa hoje à
noite?
— Recebi. Desculpa, esqueci de responder.
— Tudo bem. Apareça, se puder.
— Obrigada.
— Oi, Elle.
— Harry, como foi seu dia? — pergunto, fechando o laptop e me
encostando na cadeira enquanto ele pega o violão. Não sei bem como isso
aconteceu, como minha oferta para ensinar a ele alguns acordes se
transformou em uma coisa regular. Não sou professora de música, mas não
posso rejeitar esse garoto, mesmo que o pai dele seja o maior canalha do
mundo. Tenho certeza de que gosto mais de Harrison que de Flint, mas ele
também é o motivo pelo eu gosto do Flint. É complicado.
— Teve uma simulação de incêndio na escola. Acho que o alarme
estridente perfurou meus tímpanos.
— Espero que não. Comeu um pedaço do bolo de aniversário do seu pai?
— Comi, achei seco.
Estava mesmo. Sorrio.
— O que vão fazer hoje à noite para comemorar?
— A mesma coisa que fazemos todos os anos. Ver os vídeos da família
antes da minha mãe morrer.
— Ah. Isso é... — Deprimente?
Ele senta no chão e dedilha as cordas algumas vezes.
— Sim. Ela morreu no aniversário dele.
O chão desaparece embaixo dos meus pés, as palavras dele sugam todo o
oxigênio da sala. Eu sou horrível. Como é que eu vou consertar isso?
— Vai fazendo o aquecimento. Já volto.
Desço a escada, porque meu corpo se nega a ficar parado esperando o
elevador. Flint continua sentado atrás da mesa. É difícil andar com o rabo
entre as pernas. Tenho vontade de me encolher quando vejo os balões
estourados.
Ele levanta a cabeça quando me esgueiro para dentro do escritório. Dou
passos calculados na direção da mesa, e os olhos dele se estreitam, enquanto
os meus mantêm o contato visual o tempo todo. O que vou dizer/O que posso
dizer? Quando passo por ele raspando o traseiro na beirada da mesa, ele
afasta a cadeira até eu estar entre suas pernas.
Depois de mais alguns segundos de silêncio, ele levanta a mão e segura
meu braço com delicadeza, passando o polegar sobre o corte protegido pelo
curativo.
— Ele te contou.
Confirmo com um movimento e cabeça e uma careta.
— Estourei seus balões no aniversário de morte da sua esposa. E falei que
massagear seu pau tinha sido meu presente. Talvez eu seja a pior de todas as
pessoas.
Ele olha para o meu braço, franze a testa e continua movendo o polegar,
acompanhando o corte.
— Eu sou a pior de todas as pessoas, pode ficar tranquila.
— Como assim? — Quero abraçá-lo, beijar seu rosto até apagar aquela
ruga na testa. Tocá-lo de um jeito que remova a dor. Mas... isso não é certo.
Nem as circunstâncias. Nem o lugar. Nem o dia. Tudo errado. Por isso, deixo
isso para lá.
Solto o braço que ele está segurando, passando os dedos de leve na palma
da mão dele pouco antes de puxar o braço para perto do corpo.
— Sinto muito pelo que eu disse e por sua dor.
Flint assente uma vez sem desviar os olhos do meu braço.
uase duas semanas passam sem nenhuma menção à contagem
Q regressiva para o meu despejo. Tenho procurado outros lugares, mas
não consigo encontrar nada adequado, por isso me sinto grata por cada dia
que consigo encerrar sem Flint tocar nesse assunto. Ele tem estado distante,
mas cortês. Não sei se é o aniversário de morte da esposa, minha
disponibilidade para passar um tempo com Harry sem pedir nenhuma
compensação ou gratificação, ou se ele ainda pensa no que quase aconteceu.
Hoje deveria ser um dia livre de angústia, já que é fim de semana, meu
momento favorito para estar no escritório, sem ninguém nas outras salas e
sem culpa por causa do barulho. Às seis e meia, pego minha bolsa e
acompanho a última cliente até a saída do edifício protegido pelo sistema de
segurança.
— Elle!
Olho para trás e vejo Harry acenando, correndo em minha direção, com
Flint alguns passos atrás dele.
— Até a semana que vem — falo para a cliente, que já tira as chaves da
bolsa e se dirige ao carro.
— Meus avós estão no carro. A gente pode tocar uma música para eles? —
Harry pede.
— Harrison, não vê que a Srta. Rodgers já está indo embora? — Flint
força um sorriso falso.
— Por favor. Não vou demorar.
Olho para Flint.
— Fiz reservas em um restaurante. Talvez outra hora. Só preciso pegar uns
arquivos que deixei aqui. Volta para o carro.
As palavras estão na ponta da língua, mas não sei se devo falar. Tenho a
sensação de que Flint não quer minha opinião.
— Quero tocar. Não vai ter outra hora antes de eles irem embora.
— Harrison...
— Pai! Eu quero tocar. — Ele começa a perder a calma.
Flint fica tenso, a frustração transparece em seu rosto.
— Não vai levar mais de cinco minutos para tocar uma canção. — Dou de
ombros. — Se tiver cinco minutos?
Flint franze a testa.
— Vai ajeitando tudo, eu subo com eles. Mas é só uma canção, Harrison.
Só isso.
Ele passa por mim correndo e puxa a porta do prédio.
— Pai, abre a droga da porta.
Introduzo a chave na fechadura e digito minha senha.
— Desculpa...
Interrompo o pedido de desculpas de Flint.
— Tudo bem. Vamos esperar você lá em cima. Estou ansiosa para
conhecer seus pais. — Mordo o lábio para conter um sorriso.
Flint faz uma careta pouco antes de virar e voltar ao estacionamento. Ele
não parece tão animado com a perspectiva de me apresentar a eles.
Pegamos os violões e fazemos um aquecimento enquanto esperando Flint
e os pais dele.
— Onde seus avós moram?
— Colorado.
— Em que lugar do Colorado?
Harry presta atenção aos dedos nas cordas do violão.
— Não sei.
Sorrio. É claro que ele não sabe. Não por não ter sido informado, mas
porque não considera a informação digna de sua memória.
— Por que demoraram tanto? — Harry revira os olhos quando Flint e os
pais entram na sala. — Um. Dois. Três. Vai. — Ele não espera as
apresentações, nem um oi rápido. Sigo sua marcação e olho rapidamente para
Flint e os pais dele, que sorriem, apesar da expressão séria de Flint.
Quando terminamos, todos aplaudem, inclusive Flint.
— Foi incrível, Harrison! — A avó o abraça, e ele aceita, meio tenso.
— Ellen, estes são meus pais, Gene e Camilla. Essa é Ellen Rodgers.
Os dois apertam minha mão.
— Harrison não para de falar de você — Camilla conta, sorridente.
— Ah, essa é a inquilina que você disse ter belos... — Gene olha para Flint
e ri, como se compartilhassem uma piada interna — dentes.
Flint encara o pai com um olhar de advertência. Não estou entendendo
nada.
Sorrio mostrando os dentes.
Os dois Hopkins mais velhos trocam outro olhar. Eles não estavam falando
sobre meus dentes.
— Bem, os cinco minutos acabaram, Harrison. Precisamos ir jantar.
— Eu sei, eu sei... — Ele guarda o violão no estojo. — Temos que ir jantar
para que eu vá para casa com o vovô e a vovó, enquanto você vai namorar.
As costas de Flint parecem ter sido alinhadas por uma estaca, e ele olha
algumas vezes para os pais e para Harrison.
Camilla sorri.
— É bobagem ficar se escondendo. Na última vez que viemos, expliquei
para ele que você é um homem adulto e precisa...
— De companhia feminina — Harrison conclui com tom neutro. — Tudo
bem. Entendi. Vamos logo. Tchau, Elle.
— Foi um prazer conhecer você. — Gene e Camilla se despedem com um
aceno educado e seguem Harrison para o elevador.
— Já vou descer — Flint avisa sem desviar os olhos de mim.
— Garoto esperto. — Fecho a boca e levanto uma sobrancelha.
— Não levo mulheres à minha casa. Não sei como lidar com essa parte da
vida de pai solteiro.
— Não é da minha conta, Flint. — Guardo meu violão no estojo. — Acho
que já estabelecemos que você não me deve nada. Muito menos explicações
sobre os comos e porquês de onde encontra mulheres e o que faz com elas.
— Obrigado por não ter falado nada ao Harrison ou aos meus pais sobre...
Inclino a cabeça de lado e abro bem os olhos.
— Sobre o quê? Meu braço? — Uma risada escapa na forma de uma breve
explosão de ar pelo nariz. — Tudo bem. Sou madura o bastante para guardar
um segredo. Não tenho doze anos.
— Estourou os balões do meu aniversário. — Sua expressão é a que mais
se aproxima de um sorriso nas últimas semanas.
Sim, é verdade.
— Não fez uma reserva? Não tem um encontro. Companhia feminina te
esperando?
— Ellen...
Ponho uma das mãos na cintura, olho para o chão e balanço a cabeça.
— Eu gostei. — Levanto a cabeça. — Do seu toque. De te tocar. Gostei.
Foi importante para mim, mas... não como você pensa. Não tem a ver com
amor. Nem com compromisso. A experiência física foi importante para mim.
Não quero estragar tudo com palavras. Quando eu for embora, não quero
lembrar o que falei para você ou o que você falou para mim. Só quero
lembrar seu toque naquele momento.
É. Confundi o cara. Ele franze a testa.
Dou risada.
— Vai. Estão te esperando. Não se preocupa com isso. Não deixa o que
aconteceu outro dia estragar seus planos para depois do jantar. Está tudo bem.
Nunca houve nenhuma obrigação, mas se você se sentiu obrigado a alguma
coisa, sinta-se livre.
Ele assente várias vezes, depois se vira e caminha em direção ao elevador
com aquele ar pensativo de sempre. Apago as luzes e fecho a porta da sala.
Flint me espera para entrar no elevador. Alguns segundos, quando saímos
dele, toco seu pulso. Ele olha para minha mão, depois para mim.
Eu o solto e ajeito sua gravata.
— Gosto desse terno. Nada supera o clássico preto com gravata de seda
vermelha. — Aliso a gravata embaixo do paletó.
— Está cantarolando.
— Hummm... — Levanto o olhar e sorrio. — Vai alegrar o dia de alguma
mulher de sorte. Só não a deixe cair como eu caí. — Viro e não olho para
trás.
FLINT: Obrigado.
Não sei dizer o que dói mais, as pernas ou os pulmões. Heidi me odiaria
por deixar uma mulher deitar na minha cama com nosso filho do outro lado
do corredor. Heidi me odiaria por pensar que tenho direito a um segundo de
prazer. E ela estaria certa.
— Bom dia. Como foi a corrida? — minha mãe pergunta quando entro
pela porta do fundo e pego o suco verde na geladeira.
Harrison permanece de cabeça baixa, olhando para a tigela de frutas com
os fones bloqueando o resto do mundo, enquanto meu pai sorri com ar
cúmplice por cima do jornal em suas mãos.
— Foi boa.
— Ellen encontrou o casaco? — meu pai pergunta.
Olho para ele com os olhos meio fechados.
— Eu pendurei o casaco dela no mancebo. — Minha mãe me oferece uma
xícara de café.
Recuso com um movimento de cabeça.
— Foi o que eu pensei... — Meu pai volta a ler o jornal, mas continua
falando. — Mas ela e Flint estavam procurando no armário de casacos.
— Gosto dela. — Minha mãe bebe um pouco de café.
— Também gosto. — Meu pai abaixa um lado do jornal para pegar a
xícara. — O que acha dela, Flint?
Acho que Ellen Rodgers é problema.
— Legal.
Ele levanta o queixo e olha para mim por cima do óculos, com a xícara
parada a centímetros da boca.
— Em uma escala de um a dez, quanto acha que ela é legal?
— Você está estranho, Gene. Tomou o remédio errado ontem à noite? —
Minha mãe olha para ele com sinceridade.
— Eu estou bem, Camilla. Responde, filho.
Coço o queixo com o dedo do meio.
— Sete.
— Só sete, é?
Jogo a embalagem de suco na lata de lixo reciclável.
— Sim, sete.
— Ela é mais que sete, benzinho. Você não ficou para conversar com ela
depois do jantar — minha mãe interfere.
— Exatamente — meu pai concorda. — Vimos um lado dela que você não
viu, provavelmente. Talvez deva conhecê-la melhor.
Eu queria estrangulá-lo.
— E ela é tão bonita, Flint. Puxa... o cabelo avermelhado destaca os olhos
azuis. Parece uma boneca. Eu não conseguia parar de olhar para ela. Quero
olhar para ela na próxima encarnação. Ela é estonteante.
— Estonteante. — Meu pai tosse e disfarça a risada cobrindo a boca com a
mão. Engraçadinho.
— Vou tomar banho.
FLINT: Estou terminando uma papelada aqui embaixo. Mande-o descer, se precisar ir
embora ou tiver outras coisas para fazer. Obrigado.
Bato na porta. São quase dez horas. Isso não é uma boa ideia. Um
momento de fraqueza. Ela não atende. Viro para ir embora.
— Vai desistir assim, tão depressa?
Viro para trás e a vejo com um short pequenino, uma camiseta larga
caindo de cima de um ombro e meias felpudas. O cabelo é uma confusão de
ondas... lindo.
— Eu estava bêbado. — Engulo em seco. Nunca disse isso para mais
ninguém, nem para as pessoas que conheço. Nem meus pais. Nem a mãe de
Heidi. Nem Harrison. Nem para as centenas de pessoas que conheci nas
reuniões do AA.
Ellen assente, devagar.
— Eu sei — murmura.
Tusso para limpar a garganta.
— Sinto que é... imperdoável.
Ela balança a cabeça de novo. Espero que me diga que nada é
imperdoável. Espero que me diga que preciso me perdoar. Espero que me
diga que Heidi me perdoaria. Espero, espero, mas ela só sorri para mim de
um jeito triste, como se não houvesse nada a ser dito depois da minha
confissão. E a verdade é que... não há.
Matei minha esposa.
Isso é imperdoável.
Mas estou vivo. E essa mulher na minha frente é muito melhor que ratos.
Ela dá um passo em minha direção e segura minha gravata, me puxando
para dentro do apartamento. Depois fecha a porta e me empurra contra ela.
Meus lábios se distendem num sorrisinho quando ela puxa minha gravata de
um lado para o outro, afrouxando-a antes de abrir os botões da camisa.
— Ele não deixava você tocar nele?
Ela solta o último botão, e os olhos azuis encontram os meus. Vejo neles
poças brilhantes de lágrimas.
Ela tira minha gravata e a solta no chão, depois tira minha camisa e beija
meu peito.
Passo os dedos entre as mechas de cabelo brilhante e puxo sua cabeça.
— Porque ele não podia te tocar.
Ela pisca, e lágrimas gordas escorrem pelo rosto. Eu as pego com o
polegar e abaixo a cabeça, roçando a boca na sua e absorvendo o calor de sua
respiração.
— Posso te tocar? — sussurro um segundo antes de beijá-la.
Ellen deixa escapar um soluço abafado antes de corresponder ao beijo.
Nossas línguas procuram alguma coisa mais profunda, as mãos dela deslizam
por minhas costas, os dedos agarram minha pele como se ela nunca houvesse
precisado de outra coisa como precisa desse beijo.
Meu coração parece prestes a se partir em um milhão de pedaços, porque
nesse exato instante sinto que mereço isso, e não me sinto merecedor de nada
há uma década.
Eu a conduzo para o quarto.
— Ratos? — murmuro com a boca em seu pescoço, enquanto levanto sua
blusa.
Ela ergueu os braços para me deixar despi-la e sorri, ainda com os cílios
molhados de emoção. Vulnerabilidade nunca foi tão estonteante.
— Na gaiola, já foram dormir.
Agarro sua bunda e a beijo quando a tiro do chão. Ela envolve minha
cintura com as pernas, se esfregando em minha ereção.
— Camisinha? — pergunta entre um beijo e outro.
— No bolso.
Ela ri sem afastar a boca da minha.
— Isso foi planejado?
Fecho a porta do quarto com o pé, ainda não me sinto muito confiante
sobre os ratos estarem na gaiola.
— Srta. Rodgers...
Sinto o sorriso em minha pele quando a língua desliza na área mais funda
entre o pescoço e meu ombro.
— Posso ter planejado o sexo... mas com certeza nunca planejei você. —
Eu a ponho no chão, e ela senta na beirada da cama e desabotoa minha calça
com muito mais paciência do que eu tenho no momento. Minhas mãos estão
em todos os lugares, tirando as roupas que sobraram nela enquanto a beijo de
novo, pressiono o corpo contra as curvas suaves e mornas de seu corpo.
Ela tem sabor de perdão e provoca em mim uma sensação de liberdade. E
tem o som de uma prece cantarolando em minha boca – não um gemido, mas
uma canção que não reconheço. Os olhos se fecham, as costas arqueiam e os
lábios se abrem. Ela vira a cabeça para um lado, e eu mergulho nela.
Desde que minha esposa morreu, nunca consegui fazer sexo com uma
mulher sem fechar os olhos e fingir que era Heidi. Mas agora, não consigo
parar de olhar para Ellen Rodgers se contorcendo embaixo de mim,
cantarolando, sorrindo e abrindo os olhos azuis para olhar para mim com
inconfundível desejo – necessidade. Só consigo pensar em como ela é
indescritível.
— Flint... — Ela projeta o quadril contra o meu.
Abaixo a cabeça para sentir seu gosto.
— Elle... — Sussurro antes de minha língua encontrar a dela.
Ela sorri.
— Elle... — Suspira. — Isso significa que somos amigos?
Entrelaço os dedos nos dela, empurro sua mão contra o colchão acima da
cabeça e tento uma penetração mais profunda, porque ela é deliciosa.
— É, acho que somos oficialmente amigos.
Por mais que eu queria fazer isso durar a noite toda, não consigo parar.
Não consigo ir mais devagar. E quando ela cruza os tornozelos nas minhas
costas e sussurra “isso” algumas vezes, eu perco o controle.
A expressão relaxada e o sorriso sexy me recebem quando abro os olhos.
— Não chora — ela murmura.
Balanço a cabeça.
— Fecha essa sua boca linda.
— Ou...?
Solto as mãos dela, seguro a cabeça e mordo sua boca como um pato.
— Ai!
Deito de costas e dou risada. Esse momento sem reservas de riso autêntico
é estranho para mim.
— Mordida? Sério? Se é assim que você quer brincar... — Ela morde meu
bíceps.
Viro de lado.
Ela morde minha escápula.
Dou risada de novo.
Então, ela cola à boca às minhas costas por alguns segundos, e colo o
corpo ao meu.
— Obrigada — sussurra.
Viro para ela, e meu sorriso desaparece diante da expressão solene.
— Por quê?
Os dedos flutuam sobre meu abdome, um de cada vez, acompanhando o V
abaixo do umbigo antes de fazerem o caminho de volta, subindo pelo peito,
pelo pescoço e pelo queixo.
— Por me deixar tocar em você... e me tocar.
Seguro as mãos dela entre as minhas.
— Não posso ficar.
— Eu sei. — Ela olha para nossas mãos.
— Harrison tem aula, e vou ter que levar meus pais ao aeroporto.
Ela olha para mim e estica o pescoço para beijar o meu até chegar no
queixo.
— Não deixa a camisinha no chão, meus bebês ratos podem pegar.
— Estava pensando em como você é sexy enrolada nos lençóis ao meu
lado e como vai ser difícil sair da sua cama. Mas aí você falou em “bebês
ratos”, e minha ereção sumiu.
— Harry fica alegre perto dos meus ratos. Devia dar alguns para ele.
Sorrio para ela. Escolho você. Isso é o que passa por minha cabeça.
Escolho ficar com a garota em vez dos ratos. Mas, com toda honestidade,
não sei o que isso significa. Não posso pôr outra mulher em nossa vida
enquanto não contar ao Harrison a verdade sobre a mãe dele. O problema é
que não sei se ele é maduro o bastante para entender. E não é só o Asperger*,
é que ele tem doze anos, e a razão ainda não está completamente implantada
em sua cabeça.
— Conheço uma mulher que gosta de tocar violão e tem ratos. Em vez de
dar alguns para ele, posso ver se ela aceita receber a visita do Harrison,
quando ele precisar da dose de ratos.
Ellen deita em cima de mim, monta na minha cintura e levanta o tronco. A
vista é simplesmente espetacular.
— Acho que conheço essa mulher. Existe uma boa chance de ela estar
disposta a negociar com você.
— Negociar, é? Sexo?
Ela revira os olhos.
— Não é tão fácil.
— Não? — Levanto uma sobrancelha.
— Ela precisa de uma ajuda legal.
— Ah, é?
— É. — As mãos dela cobrem as minhas. — O dono do imóvel que ela
aluga quer despegá-la, mas ela quer ficar.
— Tenho certeza de que ele tem um bom motivo para o despejo, e se ele
encontrar um lugar bom para ela alugar, todo mundo sai ganhando.
Acho que ela está de queixo caído. Não tenho certeza, porque estou
olhando para a curva dos seios.
— Estou montada em você pelada! Como pode me pôr para fora?
— Não vou te pôr para fora, é uma relocação. — Sento e colo o rosto ao
pescoço dela, pensando que devia ter trazido mais que uma camisinha. — É
comercial, não...
— Se usar esse discurso comigo mais uma vez, arranco seu pinto.
Dou risada e mordo seu pescoço, enquanto as mãos exploram seu corpo.
— Você é muito barulhenta. Desculpa. É só um fato. Tenho que trabalhar.
Vou arrumar um lugar igualmente bom, ou melhor.
— Ah! — Ela me empurra e levanta da cama, me deixando com uma
camisinha suja e uma nova ereção. Enquanto veste o robe, ela olha para mim
com cara de desconfiança. — Você demite Amanda todos os dias, mas ela
continua lá. — A voz fica abafada quando ela desaparece além da porta. —
Não pode me despejar sem me obrigar a deixar o prédio?
Olho em volto e balanço a cabeça. Ela é uma criatura bagunçada. Pilhas de
livros no chão, roupas jogadas e caindo de gavetas meio abertas, um violão
no canto ao lado de um cesto com outros instrumentos, como os que ela tem
no consultório, e uma vitrola antiga em uma mesa igualmente antiga em outro
canto. Talvez eu tenha dado um passo maior que a perna.
— Você não respondeu. — Ela entra carregando metade do meu guarda-
roupa que foi ficando pelo caminho entre o quarto e a porta de entrada.
Levanto da cama e pego a cueca a caminho do banheiro.
— Amanda é irritante, às vezes, mas não me impede de trabalhar.
Ellen me entrega a calça quando volto ao quarto. Eu a visto, depois ponho
a camisa. Os dedos dela manuseiam os botões. Como um homem é capaz de
reusar esse toque?
Quando coloca a gravata no meu pescoço, ela sorri.
— É o barulho, ou sou eu?
Não preciso pôr a gravata para voltar pra casa a essa hora da noite, mas
não falo nada, porque a quero bem perto, me tocando, fazendo algo tão
simples quanto abotoar um colarinho e dar um nó na gravata parecer um
gesto lento de sedução. Tenho vontade de tirar a roupa só para ela me vestir
de novo.
— Por que tenho a sensação de que já deu muito nó em gravata?
Ela dá de ombros.
— Na verdade, não. Mas vi meu pai fazer isso um milhão de vezes. Sem
saber, ele me ensinou muitas coisas. — Ela segura o paletó para me ajudar a
vesti-lo e depois puxa as lapelas, aproximando o peito do meu. — Flint
Hopkins, você é perfeito para o papel.
Entrelaço os dedos no cabelo dela e abaixo a cabeça, beijando o pescoço
logo abaixo da orelha, onde posso sentir sua pulsação.
— Que papel é esse?
Ela se inclina para receber o beijo e respira fundo. Não preciso olhar para
ela para saber que os olhos transbordam vulnerabilidade, como o oceano
subindo na maré cheia.
— Ainda não sei — ela sussurra.
Saboreando cada centímetro de pele, beijo o queixo, o rosto, e paro com a
boca bem perto da dela.
— Não?
Ellen balança a cabeça.
— Me avisa quando descobrir.
Ela se levanta na ponta dos pés e nossos lábios se tocam. Eu a beijo como
se merecesse. Como se meu passado não existisse. Beijo até a realidade se
impor.
— Boa noite.
Ela assente e sussurra.
— Boa noite.
Para minha decepção, a luz da cozinha está acesa quando chego em casa
pouco depois da meia-noite.
— Dormiria melhor se bebesse café de manhã, não à meia-noite — digo
ao meu pai enquanto afrouxo a gravata.
— Ah, a porta do seu quarto estava fechada, mas eu tinha um palpite de
que você havia saído. Mas aqui entre nós, de homem para homem, estou
decepcionado por já ter voltado para casa. Ela te mandou embora? Bom, com
essa história do despejo... eu também daria um pé na sua bunda.
Encho um copo com água e sento na frente dele à mesa da cozinha.
— Seu cabelo está horrível. Ou ela te arrastou até a rua, ou te despenteou
por outros motivos. — E ri.
— Se continuar com essas afirmações investigativas, vou te chamar de
“mãe”.
Ele bebe um pouco de café e olha para mim com cara de “eu avisei”.
— Sua mãe e eu gostamos dela.
Concordo balançando a cabeça.
— Harrison gosta dela.
Repito o gesto.
— Você gosta dela, é óbvio... ou seu cabelo gosta, pelo menos.
Olho para ele com minha melhor cara de “vai se foder”.
— Então, qual é o problema?
— Não contei a verdade ao Harrison.
— Conta.
— Ele tem doze anos.
— Ele é esperto.
Balanço a cabeça.
— Ele não é capaz de entender racionalmente. Para ele, tudo é preto e
branco. Harrison não vai me perdoar, e eu vou ter que passar os próximos
seis anos criando um adolescente que me odeia. Nas circunstâncias atuais, em
alguns dias já é bem difícil evitar que a gente se mate.
Meu pai se levanta da cadeira com a elegância de quem puxa uma carroça
velha ladeira acima.
— Talvez Ellen espere uma década, até Harrison atingir a idade da razão.
O sarcasmo dele não ajuda. Quando estou com ela, é fácil fingir que a
mereço. É fácil imaginar que a aceito em minha vida porque Harrison gosta
dela. É por esse motivo que parece tão errado. Se não der certo, ele a perde.
Tirei uma mulher da vida dele. Não posso fazer isso de novo.
— Para de pensar tanto. — Ele despeja o resto do café na pia e descansa a
mão paternal em meu ombro. — Liga o foda-se e vê o que acontece. Amanhã
qualquer um de nós pode estar morto, agradeça ao cara lá em cima por uma
mulher sexy ter passado a mão no seu cabelo hoje.
Depois que o último degrau range sob o peso dele, fecho os olhos e me
pergunto se as pessoas que vivem no meu inferno especial têm direito a um
vale-foda-se na vida.
* Desde 2013, a Síndrome de Asperger passou a fazer parte do espectro autista e sua nomenclatura oficial se tornou
“autismo leve”, ou seja, o autismo que normalmente não possui atrasos cognitivos, intelectuais e/ou de fala. Porém, o
termo Asperger se tornou uma espécie de apelido entre autistas e familiares de autistas para se referir ao autismo leve
em contraposição com o moderado e o severo. Há quem se chame de “Aspie”, inclusive, no lugar de “autista leve”.
— V ocê está linda, alegre. Como vai o braço? — A Dra. Hamilton
sorri quando as portas do elevador fecham.
— Curado. E eu estou sempre alegre. — Olho para o visor digital onde os
números vão aumentando. Sinto os olhos dela em mim.
— Está cantarolando um pouco mais alto que de costume.
Olho para ela.
— Você me ouve cantarolar?
Ela ri.
— Todo mundo ouve. Resmungamos o dia todo, você cantarola. Precisa
me contar o que coloca no seu café da manhã. Estou precisando.
Hoje de manhã tomei uma dose de Flint com o café, mas não sei se quero
contar isso para ela.
— Esse sorriso não sai mais do seu rosto. Tem alguma coisa a ver com
aquele meu vizinho?
A porta do elevador abre, e eu saio dele.
— Você nunca vai saber.
Quando estou a caminho da minha primeira consulta, um paciente de
câncer que está fazendo quimioterapia, envio uma mensagem para Flint.
EU: Obrigada.
FLINT: De nada.
Esse sorriso só sai do meu rosto hoje se alguém arrancar com um martelo e
um formão.
— Oi.
Levanto os olhos do chão coberto de partituras musicais que estou
organizando depois da saída do último cliente.
— Harry, como vai?
— Bem, acho. — Ele anda devagar como o Ió.
Sorrio.
Ele suspira e senta no chão à minha frente com a mochila e o estojo do
violão.
— Mas meu pai anda esquisito.
Empilho as partituras para separar mais tarde, pego meu violão e passo a
alça por cima da cabeça.
— Por que ele está esquisito?
Ele dedilha as cordas olhando para os dedos.
— Não sei. Tem me perguntado umas coisas estranhas.
— Como assim?
— Ele falou sobre garotas, e nós nunca falamos sobre garotas.
Meus dedos imitam os dele nas cordas.
— Você tem namorada?
— Não, mas acho que ele está procurando uma.
Meus dedos tropeçam nas cordas.
— Por quê?
— Ele perguntou como eu me sentiria, se ele conhecesse uma mulher de
quem gostasse e quisesse levar à nossa casa.
Meu coração dá um pulinho.
— E o que você disse?
Ele dá de ombros.
— Falei que tanto faz. — E torce o nariz como se provasse alguma coisa
amarga. — Bom, desde que não seja uma das minhas professoras, ou você.
Meu coração para completamente, e eu rio de nervoso.
— Ele convidou alguma professora sua para sair?
— Espero que não. O pai do Simon passa “tempo de adulto” com algumas
mulheres, e uma vez foi com uma professora do Simon. Ela ficou brava com
o pai do Simon e deu um D para o Simon em um trabalho de arte, o que é
maluco, porque Simon ganhou o prêmio de melhor projeto de cerâmica
naquele ano. Simon disse que o D foi para o pai dele, não para o trabalho. Sei
o que isso significa.
— Bom, eu não te dou nota, então... — Não sei onde espero chegar com
isso. E daí? Quero autorização para sair com o pai dele?
— É, mas você é legal demais para ele.
Dou risada.
— É verdade. Mas seu pai também é legal. Ele é advogado. Jogou futebol
na faculdade.
É incrivelmente sexy, e não consigo parar de pensar nele.
— O trabalho dele é chato, e ele se machucou jogando futebol, não devia
ser tão bom assim.
Mudo de música e espero Harry reconhecer a melodia e acompanhá-la. Ele
para, olha para as minhas mãos e balança a cabeça algumas vezes, depois me
acompanha. O garoto tem um dom indiscutível.
— Sabe, Harry, todo muito tem alguma coisa muito boa. Até o chato do
seu pai.
Ouço alguém tossir na porta, levanto a cabeça e vejo Flint ali parado de
braços cruzados. Meu coração volta a bater descompassado.
Sorrio.
— Oi.
— Não quero atrapalhar. Sou só o pai chato.
Meu sorriso fica maior.
— Shhh! — Harry olha feio para Flint.
— Dez minutos, Harrison.
— Shhh!
Mordo o lábio quando Flint balança a cabeça e sai da sala. Pego meu
celular e abro um aplicativo que toca acompanhamentos para violão.
— Encontra alguma coisa boa para isso.
Ele olha desconfiado para o celular, e um segundo depois balança a cabeça
e começa a produzir os acordes perfeitos.
— Já volto para ouvir o que você criou.
Ele assente, ou acompanha o ritmo, não sei bem. Desço a escada para ir ao
escritório de Flint. Ele está na porta de entrada do prédio, falando com
alguém. Acho que o oftalmologista que tem consultório na frente do
escritório dele.
Sorrio para o homem mais velho. Flint me examina rapidamente quando
entro no escritório dele.
— Elle, vou sair para jantar e beber alguma coisa, meu marido vai levar as
crianças a uma festa de aniversário. Vou encontrar algumas amigas no
restaurante. Devia vir também. — Amanda veste a jaqueta vermelha.
Flint se aproxima de mim por trás, e Amanda se abaixa para pegar a bolsa
de uma gaveta na parte inferior da mesa. Um arrepio percorre meu braço
quando ele toca minha mão a caminho de sua sala.
— Srta. Rodgers. — O homem quase me leva ao orgasmo só falando meu
nome.
Fico vermelha de vermelha.
Amanda vira, levanta uma sobrancelha para Flint, depois para mim.
— Está quente aqui.
— Boa noite, Amanda — Flint fala da sala dele.
Ela sorri.
— Boa noite, chefe.
Olho para ela.
— Seria correto deduzir que tem outros planos para hoje à noite?
Não olho para Flint, isso nos delataria, mas tenho certeza de que é tarde
demais para tentar ser discreta.
— Não tenho, na verdade.
— Não? — Ela me encara por alguns segundos, antes de olhar para Flint.
Ele está de cabeça baixa, concentrado no computador. — Quer ir com a
gente, então?
— Hum... é claro. Preciso terminar umas coisas.
— Fantástico. Eu mando o endereço por mensagem em uma hora, mais ou
menos, assim que souber onde vai ser o encontro.
— Combinado. — Espero até ouvir o estalo da fechadura da porta do
prédio, e então me movo. — As flores são lindas. — Ando devagar para a
sala dele.
Olhos escuros acompanham meus movimentos, e ele se reclina na cadeira,
entrelaçando as mãos sobre o abdome.
— Que bom que gostou. São da minha estufa.
Paro onde estou. Acho que meu coração também para. Ele não deu um
telefonema para ditar o número do cartão de crédito. Cortou cada flor e as
arranjou em um vaso... para mim.
A realidade é terrível. Não somos jovens livres usando o mundo como
playground. Passamos dos 30 anos, temos empregos, responsabilidades,
passado e uma criança que não nos quer juntos.
Sorrio, o que é doloroso, quando passo por ele a caminho da janela. As
últimas folhas caem das árvores com um vento mais forte.
— Harry contou que vocês tiveram uma conversa sobre garotas. Ele
parece não se incomodar com a possibilidade de você ter uma namorada,
desde que não seja uma das professoras dele... — Viro e apoio no peitoril da
janela. — Ou eu.
Ele passa os dedos pelo lábio inferior e, olhando para um ponto fixo
qualquer entre nós, assente devagar.
— É o que parece. Mas ele tem doze anos.
— E Asperger.
— Um caso leve.
— Graças a você?
— Não sei. Eu pesquiso muito. Ele está muito melhor do que estava
alguns anos atrás. Talvez seja a alimentação... a dieta severa, as ervas, a
rotina que impus a ele. Talvez seja sorte, e esse pouco controle que penso ter
é só uma ilusão. De qualquer maneira, vou continuar fazendo o que faço,
porque os dias bons superam de longe os ruins, e houve um tempo em que
tive certeza de que os dias ruins acabariam comigo.
— Você é um pai maravilhoso.
Ele franze a testa ao olhar para mim, como se também quisesse acreditar
nisso.
— É sério. Já vi de tudo. Não tem a ver com quem faz tudo melhor, tem a
ver com quem sobrevive. Você está melhorando a vida dele, e está se saindo
muito bem.
Flint dá de ombros.
— Eu devo isso a ele.
— Sua dívida não é maior que a de nenhum outro pai com seus filhos.
Ele ri baixinho.
— É muito maior. Eu tirei tudo dele. Quem tira tudo de um filho?
— Você está aqui. Não tirou tudo.
— Devia ter sido eu.
— Provavelmente.
Ele olha para mim, surpreso. Não me arrependo, nem diante da dor em seu
rosto. Ponho as mãos nos bolsos frontais da calça preta e olho para a ponta do
sapato no meu pé direito.
— Você bebeu. E foi dirigir. Bateu o carro. Sua esposa morreu por causa
disso. Não conheço todos os detalhes, mas se o carma estivesse a favor dela
naquele dia, você teria morrido, não sua esposa.
— Por favor, seja direta.
— Vou ser. Isso é causa e efeito. Você bebeu acidentalmente? Dirigiu
acidentalmente? Não pode usar essa linha de defesa. Não tem como distorcer
os fatos. E todo mundo pode te perdoar, inclusive você mesmo, mas isso não
resolve nada. E isso é horrível. Mas você pode seguir em frente e ser uma boa
pessoa que luta pelas boas coisas. É muito difícil reconhecer nossas
imperfeições, especialmente quando eles causam algo tão arrasador... mas
você é como todo mundo, na verdade. É humano, Flint.
— Elle, estou velho... quero saber o que tem nessa caixa antes de morrer.
Se eu contar o que tem na caixa, ele morre.
— Um relógio.
— Você usa relógio?
— Às vezes.
— Acha que é caro?
— Não muito.
— Ah, isso é bom. Nunca é uma boa ideia comprar presentes caros logo
no começo do relacionamento.
Mordo o lábio para segurar a risada.
— Eu... ah... acho que é tamanho único.
— Gravado?
Meu corpo vibra com o esforço para não rir, meus olhos se enchem de
lágrimas.
— Não... — consigo dizer.
— Ah, por favor... uma joalheria de luxo que não faz gravação gratuita?
Se é isso, os caras acham que o cliente é cuzão.
Ai, meu Deus. Não consigo respirar. Meu estômago dói com o esforço que
faço para não rir. Aperto o mute no telefone e solto o riso. A gargalhada ecoa
no apartamento.
— Devia ensinar ao seu novo homem como exigir um bom serviço, como
eu te ensinei. Nunca deixe ninguém te foder desse jeito.
Vou fazer xixi na calça. Junto as pernas para tentar segurar. Respiro fundo
algumas vezes e aperto de novo o mute.
— E aí, como você está, pai?
— Bem. Duro nas juntas, mole no meio. Mas bem.
Estou me afogando em pensamentos indecentes. Preciso me concentrar.
— Estou com saudade.
— Entra no avião e vem me ver.
— Pai...
— Viva a vida, minha menina adorável. Corra riscos, siga um novo
caminho e encontre a felicidade. Sem medo.
Balanço a cabeça concordando. Ele dá seriedade ao momento.
— Pode deixar.
— Você vem me ver?
— Vou.
— Quando?
Sorrio.
— Logo.
— Logo no feriado?
— Logo.
— Ah... tudo bem. Te amo. Fala para esse seu homem procurar um lugar
melhor para comprar joia.
— Eu falo, pai.
É um pouco tarde para um corte cirúrgico, mas volto para casa, pego
algumas caixas e uso meu carro para ir ao consultório em busca de alguma
coisa que se assemelhe a um encerramento. O estacionamento está vazio
nessa tarde de domingo, e eu paro bem na frente da porta, assim fica mais
fácil levar as coisas para o carro.
Depois de encher as caixas e desmontar minha mesa, telefono para os
clientes agendados para aquela semana e remarco as consultas, informando
que vou entrar em contato assim que tiver um novo endereço. Se não
encontrar outro lugar até o fim da semana, posso fazer atendimento
domiciliar. Meu pai vai ficar orgulhoso.
Meu telefone toca. Não reconheço o número; é de outra área.
— Ellen Rodgers — falo ao atender.
— Ellen, é Lori Willet, vizinha do seu pai.
— Oi. — Fecho a última caixa com fita adesiva.
— Forest encontrou seu pai desacordado no quintal. Ele acabou de ser
levado pela ambulância. Estamos a caminho do hospital. Eu mando mais
notícias assim que chegar lá.
Lágrimas inundam meus olhos, e cubro a boca com a mão.
— Meu bem, está ouvindo?
— Des... desacordado, ou...?
— Respirando, mas não respondia a estímulos.
— Ok... Eu chego aí o mais depressa que puder. Liga para mim quando
tiver mais notícias.
— Ligo. Boa viagem. Estamos orando por ele.
O celular cai da minha mão trêmula. Eu o pego e enxugo as lágrimas
enquanto procuro o número de Abigail Hamilton nos meus contatos.
— Alô?
— Abigail... — Tusso uma vez e engulo a enxurrada de emoções. — É
Ellen. Preciso de um grande favor.
— Que foi, querida?
— Meu pai foi levado para um hospital. — Meu corpo é sacudido por
soluços silenciosos.
— Sinto muito. O que aconteceu?
— Não sei. O vizinho o encontrou inconsciente no quintal. Preciso pegar
um avião.
— Quer que eu providencie a passagem?
Belisco o nariz entre os olhos.
— Não, eu... preciso tomar alguma coisa para conseguir entrar no avião.
— Não ent... Ah, querida, tem medo de voar?
Mordo a boca e assinto.
— Ellen?
— Sim... — cochicho, apesar do nó na garganta. — Minha mãe... —
Ainda dói muito. — Ela... hum... morreu em um desastre aéreo.
— Ellen, eu não sabia. Eu... eu vou... onde você está?
— No consultório. Eu vim de carro.
— Fica aí. Vamos te buscar. Não quero nem que tente voltar para casa
dirigindo. Fica aí. Ok?
Balanço a cabeça para dizer que sim, sem conseguir falar mais nada antes
de desligar.
— M inhas costas doem só de olhar para você. — Martin Hamilton ri
apoiado na cerca entre meu quintal e o dele.
Quando voltei do encontro desastroso, troquei de roupa e fui trabalhar na
poda das plantas para o inverno. Qualquer coisa para evitar as perguntas que
sabia que Harrison faria, assim que desviasse os olhos do celular por tempo
suficiente para perceber que eu estava em casa. Eu não tinha passado nem
uma hora fora. Devia ser um novo recorde de encontro mais rápido.
— Ainda não me incomodo com isso. Talvez incomode em alguns anos.
— Não, você ainda é jovem. Tenho certeza de que ainda vai passar muitos
anos trabalhando duro sem arrebentar as costas.
— Martin? — Abigail grita correndo em direção à cerca.
— Ai, céus... — ele lamenta. — Devo estar encrencado por algum motivo.
— Martin, você precisa me levar até o prédio do escritório do Flint.
Sento sobre os calcanhares e limpo a terra das pernas.
— Não tem ninguém lá aos domingos — aviso, sem esconder que estou
um pouco confuso.
Ela balança a cabeça.
— Ellen está lá. Não quero que ela volte para casa dirigindo. O pai dela foi
para o hospital. Preciso tentar colocá-la em um avião.
— Comprar a passagem? Eu cuido disso, tenho... — Martin começa.
— Não. — Abigail balança a cabeça, e uma ruga sofrida surge em seu
rosto. — A mãe dela morreu em um desastre de avião. Vou ter que receitar
alguma coisa bem forte para ela conseguir embarcar.
Porra.
Tiro as luvas.
— Abby, não pode sedar a garota e colocá-la em um voo comercial. Você
vai com ela? — pergunta Martin.
— Estou de plantão. Vou pensar em alguma coisa, por enquanto, só
preciso ir encontrá-la.
— Eu cuido disso. — Fico em pé.
— Você cuida do quê? — Abigail pergunta.
— De tudo. — Viro para entrar em casa.
Eles não falam nada, porque sabem que, quando digo que vou resolver
alguma coisa, eu resolvo. Sem perguntas. Sem hesitação.
— Chefe. — Amanda atende o celular no primeiro toque.
— Preciso de dois dias. E você precisa vir buscar o Harry. Vou falar para
ele arrumar a mochila.
— O que...?
— E não faça perguntas.
— Chego em uma hora.
A caminho da escada, arranco o celular da mão de Harry.
— Ei! — Ele corre atrás de mim escada acima.
— Preciso de sessenta segundos de sua total atenção. — Continuo
andando para o quarto para jogar algumas roupas na mala.
— Tudo bem. O que é? — Ele se joga na minha cama.
— O pai da Ellen está no hospital. Vou levá-la para vê-lo. Vou passar dois
dias fora. Amanda vem te buscar. Pegue suas coisas para dois dias. Não
esquece de pegar cuecas limpas.
Ele sabe como agir. Já passamos por isso antes, quando tive outras
emergências.
— Ele vai morrer?
— Não sei.
— Por que vai levar a Ellen?
— Porque tenho conexões, e ela precisa de uma ajuda especial para chegar
lá. — Devolvo o celular dele, o seguro pela nunca e beijo sua testa. — Seja
bonzinho. Te amo.
EU: Vou sair para tomar um banho e comer. Cadê você? Se está voltando para Minnesota,
obrigada de novo.
Depois de duas horas na estufa e mais uma ajudando Harrison com a lição
de casa, tomo um banho e vou trabalhar mais um pouco no meu escritório.
EU: Estou.
EU: No meio.
ELLEN: Quê? Ninguém dorme no meio.
ELLEN: É tudo normal, devemos/podemos ver grandes progressos nas próximas semanas.
Cognição, fala e aspectos emocionais podem ter uma recuperação mais demorada.
ELLEN: Bem, meus avós estão aqui dando apoio emocional, mas são idosos e lentos, e eu
amo os dois. Mas eles trouxeram o poodle, Bungie, e ele faz xixi em tudo! E eles demoram
vinte minutos para pegar papel toalha e secar o xixi, então eu tenho cuidado disso, e não
estou animada com a ideia de cuidar do meu pai E do Bungie.
Dou risada.
EU: Organizado.
EU: Harrison quer saber o nome daquele aplicativo de música que você mostrou para ele.
EU: Está. Ele queria ligar ou mandar mensagem para você mais cedo para pedir, eu não
deixei.
ELLEN: Ele pode ligar ou mandar mensagem a QUALQUER HORA, mas eu mesma vou
dar o nome e o aplicativo para ele, para não ter perigo de você repetir o nome errado ;)
Cifrada.
FLINT: Eu topo.
Sorrio. Essa pode ser a maior crueldade que já fiz comigo. Vai doer muito
quando eu for embora, em uma semana, mas vou me arrepender se não viver
esse momento, por mais que ele possa passar depressa.
A porta é aberta. Entro tremendo. Flint usa só uma cueca preta e uma ruga
na testa. Adoro essa cara fechada. Ela é sempre um desafio silencioso. Vou
conseguir mudar sua expressão? Vou conseguir ver o sorriso por trás dela?
Eu mereço isso?
Depois de tirar o casaco e pendurá-lo no mancebo, apoio as mãos frias no
peito quente dele. Flint nem se mexe. Vejo confusão em seu rosto e
apreensão em seus olhos.
— Para de franzir a testa, Sr. Hopkins. Vou realizar todas as suas fantasias
sexuais nos próximos sete dias.
Um canto de sua boca se ergue em um esboço de sorriso.
Eu.
Ele sorri para mim.
Eu o faço feliz.
Outra maravilha do mundo que é ignorada: provocar a completa e
inebriante felicidade de alguém. Fico na ponta dos pés e beijo aquela boca
carnuda. Ele me levanta, acomoda minhas pernas em torno da cintura e me
leva para cima.
— Shhh... — diz, aproximando os lábios da minha orelha enquanto me
carrega para o quarto. — Se não parar de cantarolar, vou ter que te
amordaçar. Tem uma criança na casa.
Beijo o pescoço dele.
— Estou sentindo o sorriso no meu pescoço — ele cochicha, e tranca a
porta do quarto depois que entramos.
— Você me ama. — Sorrio quando ele me põe no chão.
— E isso não me serve para nada.
Tiro o lenço do pescoço e jogo no chão.
— Nunca se arrependa de amar alguém. Ame por você, não pela pessoa.
Seu olhar me devora centímetro a centímetro. E lá está... o movimento
lento da língua pelo lábio inferior. É muito sexy. Ele é muito sexy.
Dou um passo para trás, deixando ele ver melhor quando tiro a blusa,
revelando meu sutiã de renda favorito.
— Se quer fazer alguma coisa pela pessoa que ama... — Tiro a legging. —
Abra seu coração para deixá-la retribuir esse amor. — Seguro a mão dele.
Ele se deixa levar para a cama.
— Senta — murmuro.
Depois de um olhar demorado para o conjunto sexy de calcinha e sutiã,
Flint senta na beirada da cama. Avanço um passo para me colocar entre suas
pernas. As mãos dele sobem pela parte de trás das minhas, se movem bem
devagar, decorando a curva da bunda. Seguro o rosto dele entre as mãos,
passo o polegar sobre sua boca.
— Vai abrir seu coração para mim?
Ele move as mãos para abrir meu sutiã, mas não desvia os olhos dos meus.
— Sim.
— Que bom. — Beijo sua testa, o nariz, um lado do rosto. — Porque vou
te amar tanto, que o tempo não vai ter nenhuma importância. — Beijo um
lado de sua boca quando ele tira meu sutiã. — A distância não vai ter
importância. — Beijo o outro lado da boca. — Cada vez que respirar, você só
vai sentir... — Meus lábios roçam os dele. — Meu amor.
Passamos o resto da noite nessa homenagem mútua, física, emocional e
espiritual. Eu me recuso a parar antes de minhas mãos e boca terem tocado
cada pedacinho dele, e as deles terem se apoderado de cada parte de mim.
Memorizo sua expressão no exato instante em que ele se perde em mim. As
costas dele arqueiam. Minha mão toca os músculos firmes de seu abdome;
meus dedos agarram carne dura como se eu me apossasse dele. De cada
pedacinho.
É sensual.
É vulnerável.
É bonito.
É meu. Quero que essa expressão seja minha, só minha, para sempre.
Quero ser sua maior força... e sua maior fraqueza.
Quero estar onde ele esconde suas mentiras e encontra sua verdade.
— V ocê tem que ir. — Contrariado, tento vestir a mulher nua
esparramada em minha cama.
Tem roupa de cama por todos os lados – travesseiros metade na cama,
metade sobre o criado-mudo, o edredom está no chão ao pé da cama, os
cobertores estão embolados ao lado dela, o lençol de elástico se soltou em
dois cantos do colchão, e o lençol de cima enrola a mulher que está deitada
de bruços, dormindo. Suor, sexo e seu shampoo frutado disputam a primazia
dos cheiros no quarto.
— Elle... — Puxo o lençol, mas ela está enrolada nele. Como isso
aconteceu? Sorrio. Eu sei como aconteceu.
Ela solta os braços e os estende sobre o colchão, como se fizesse um
alongamento caprichado. Mas, em vez de relaxar, os dedos agarram o
colchão como se ela estivesse pendurada na beirada do telhado de um prédio
alto.
— Elle?
— Não vou me mexer — ela resmunga com o rosto sobre o colchão.
— Não pode ficar.
— Que horas são? — Ainda não se mexe.
— Quatro.
Ela geme.
— Me acorda em duas horas.
Suspiro e passo a mão na cabeça, no cabelo que foi puxado e acariciado
nas últimas quatro horas.
— Harry acorda às seis.
— Ótimo, eu faço café para todo mundo.
Suspiro frustrado.
— Eu falei para ele que não teria sexo.
— Que pena para você. — O corpo sexy treme quando ela ri em silêncio.
Quero cravar os dentes na curva sexy da bunda exposta e foder essa
mulher até ela perder os sentidos, para deixar de ser teimosa e dar risada da
minha situação. Chego um pouco mais perto. Parece que meus dentes já
deixaram marcas naquela bunda. Ela merece.
— Ellen...
— Estou ficando com frio. — Ela vira a cabeça para o lado e abre um
olho. — Pega um cobertor e vem me esquentar com esse seu corpo quente e
sem roupa.
— Vai ter que sair escondida pela escada dos fundos às seis em ponto. —
Pego um cobertor do chão e começo a puxá-lo para a cama.
— Aham... calor do corpo pelado. — Ela sorri.
Tiro a cueca e nos cubro com o cobertor. Ela se livra do lençol e me
abraça com o corpo inteiro. Depois de calar aquele cantarolar persistente três
vezes, desisto e aceito o ruído como uma canção de ninar.
Quero essa vida. Arrumar a mesa do jantar para três. Ver a cara dele
quando aviso que vamos ver o filme novo do Homem Aranha depois do
jantar.
Comemos. Harry faz o dever de casa, enquanto Flint e eu arrumamos a
cozinha, trocamos beijos, olhares provocantes e sorrisos... Eu me afogo em
cada sorriso dele.
Quero essa vida.
No cinema, Harry decide sentar entre nós dois. Flint revira os olhos. Eu
dou risada. No caminho de volta, ele recapitula todos os pontos altos,
oferecendo um relatório detalhado dos efeitos especiais.
— Para a cama — Flint decide assim que entramos em casa.
— Mas...
— Sem mas, Harrison. Cama.
— Ellen vai ficar?
Não consigo ler a intenção. É uma pergunta curiosa, ou um desafio?
— Não. — Sorrio. — Preciso ir cuidar dos meus bebês e encaixotar
algumas coisas.
— Então amanhã não tem cookies?
Flint balança a cabeça, e não consigo ver seu rosto, mas tenho certeza de
que ele revira os olhos para acompanhar o gesto.
— Sobraram seis cookies.
Harry franze a testa. Exatamente igual ao Flint.
— Estou indo — aviso, rindo. Os garotos Hopkins podem resolver suas
diferenças e caretas sem minha presença. — Boa noite, Harry. — Eu o abraço
e sinto seu corpo enrijecer, depois relaxar.
— Boa noite — ele resmunga.
Flint aponta para a escada.
— Cama.
— Ok... ok...
Abro a porta, e Flint me segue lá para fora segurando minha mão. Ele me
prende contra a porta do motorista do meu carro e me abraça. Não fala nada,
nem eu. O que poderíamos dizer? Minha vida tem sido feita de momentos
inesperados e transformadores. A familiaridade não alivia a dor, mas aprendi
que, mesmo quando mais dói, alguma coisa ou alguém aparece para remover
essa dor.
— Você era bom quando jogava futebol?
Ele ri e me abraça mais forte.
— Sim.
— Eu sabia.
— De quantos aviões você pulou de paraquedas?
— Vinte e três.
Ele recua e me encara, intrigado.
— É verdade. A sensação é indescritível — digo.
— Mas agora se recusa a viajar de avião.
Balanço a cabeça.
— Os vinte e três saltos aconteceram antes do avião da minha mãe cair.
Flint assente devagar e franze a testa.
— Vou cuidar dos meus bebês.
— Ratos.
— Sim, meus bebês ratos.
As mãos dele tocam meu pescoço; são fortes, mas o toque é terno quando
ele as desliza até meu rosto, fazendo uma pausa breve para olhar nos meus
olhos antes de me beijar.
Eu... quero... essa... vida...
— Você é linda — Flint sussurra com a boca encostada à minha. — Quero
ser egoísta com você... — E me beija de leve.
Agarro seu casaco para me equilibrar.
— Eu... — Ele fecha os olhos como se a dor fosse insuportável. — Não
mereço isso. — Os lábios passeiam por meu rosto, descem até o queixo e
deslizam em direção à orelha. — Mas quero muito.
Fico quieta e deixo o destino assumir o comando.
Desejo.
Necessidade.
Eles alimentam a dor. Abastecem a raiva. E nos fortalecem quando somos
obrigados a desistir deles.
igo para saber notícias do meu pai, depois passo o resto do dia
L arrumando a mudança, enquanto Rod Stuart canta sobre corações
partidos e querer alguém para amar. Bem apropriado.
— Você vai gostar de Cape Cod. — Afago Mozart, que atravessa a
bagunça no chão do meu quarto e sobe no meu colo. — Menos do Bungie.
Não sei como isso vai ser.
Meu celular apita.
Preciso beber alguma coisa. Dez anos é muito tempo de dor sem alguma
coisa para anestesiar. Dissemos tudo que havia para ser dito? Em uma vida
inteira, diremos tudo que há para ser dito?
— Não vou dizer adeus. E não vou embora. Mas... vou te ver partir.
Seus olhos azuis se enchem de lágrimas.
— Jantar. Eu ligo para você. — Saio e vou trabalhar, porque se ficar para
ver as lágrimas caindo, vou perder a cabeça. Assim eu entro no carro, bato
com a mão aberta no volante.
— Porra! — Inclino a cabeça para trás e fecho os olhos.
Depois de alguns minutos, telefono para Amanda e peço para ela remarcar
todos os compromissos e encontro uma reunião. É a primeira em cinco anos.
É difícil entender por que quero tanto justamente o que matou Heidi enquanto
me preparo para perder a mulher que amo no presente.
Lágrimas.
Flint Hopkins está chorando por mim. Os músculos da mandíbula pulsam,
e os olhos estão vermelhos por trás do transbordamento de emoções. Minha
mão toca seu rosto; meus dedos tocam a umidade das lágrimas como se eu
precisasse de prova de que elas são reais.
Alex nunca chorou por mim, não que eu tenha visto, pelo menos. Nem
quando minha mãe morreu. Nem quando eu chorei a perda do amigo e das
mãos dele. Nem quando ele pôs fim ao nosso casamento.
Esfrego a ponta dos dedos e sinto a umidade, mas ainda não acredito que
sou tão importante para um homem que não seja meu pai.
— Quero essa vida — sussurro. — Quero você. — Cada parte do que me
dá vida parece estar morrendo lentamente.
— Mas... — Ele se inclina até descansar um lado do rosto sobre minha
cabeça.
Apoio as mãos em seu peito.
— Mas... — Fecho os olhos.
Mas os humanos têm muitas formas de amar, e nesse momento meu pai
precisa do amor da única filha, como Harrison precisa do amor do pai dele.
Não é nossa hora, simplesmente.
Mas eu não consigo enfiar essa lógica no meu coração ou no de Flint. Dói.
Quando nossos olhares se encontram, não precisamos falar nada.
Ele sabe.
Eu sei.
A despedida se estende por algumas horas. É minha oportunidade perdida
mais dolorosa. É como tentar respirar e não haver oxigênio. Vou levar para
sempre seu toque em minha pele como um lembrete da vida que eu quero.
No começo da manhã, quando a respiração dele acalma e os braços
relaxam em torno do meu corpo, saio da cama antes do nascer do sol e antes
de Harrison acordar, em silêncio e no escuro, como se eu nunca tivesse
estado ali.
— Amo você — falo da porta do quarto enquanto Flint dorme, mas não
emito nenhum som, apenas movo os lábios. — Adeus.
Vou embora sem que ele veja minha partida, sem que escute meu adeus.
Horas mais tarde, quando o sol já trouxe um novo dia, ainda não recebi
nenhum telefonema ou mensagem. Ele está me deixando partir, como se
tivesse escolha. Quando o caminhão da mudança chega, dou todas as
instruções e entrego a chave ao proprietário. Meus ratos e eu pegamos a
estrada para Cape Cod antes das dez da manhã.
Um dia vou poder viver meu felizes para sempre. Sem mudança, sem
pegar a estrada para longe do homem que amo. Todo mundo tem sua hora. A
minha vai chegar.
ue cara horrível — Amanda fala ao me ver.
— Q
— Obrigado.
— Faltam quatro dias para o Natal. Pensei que já tivesse encontrado o
espírito das festas.
Tiro o casaco e o penduro no mancebo em um canto do escritório.
— Não.
— Cage ligou hoje de manhã. Disse que você não responde aos recados.
Ele está preocupado com você. Eu também estou. Quando começa a ignorar
seu único amigo, a coisa é séria.
Resmungo alguma coisa, sento e ligo o computador.
— Por que todo mundo acha que Cage é meu único amigo? E o que me faz
parecer especialmente horrível hoje?
Amanda vira de costas mim e começa a digitar.
— As bolsas embaixo dos olhos e as linhas mais fundas na testa. Você tem
bebido?
— Amanda. — Meu tom é mais ríspido do que eu pretendia.
Ela dá de ombros, ainda de costas.
— Um amigo me pediu para perguntar. E não é piada. Seu amigo pediu
mesmo. Ah... e seus pais chegam amanhã. Eles também telefonaram. Perdeu
o celular? Ah, e sua mãe disse que vai convidar a Sandy, já que sabe que
você não vai fazer isso.
Meus pais e minha sogra. Que beleza de fim de ano.
— Posso falar uma coisa como amiga? — Ela vira a cadeira.
— Como pode ser minha amiga, se só tenho um amigo?
— Por que não liga para ela ou vai lá visitá-la?
— Não sei de quem está falando.
— Aposto que Elle ia adorar te ver. Leva o Harrison para passar o Ano
Novo em Nova York ou Boston, depois passa por lá para vê-la.
— Para quê?
— Para espalhar a alegria das festas.
Ellen foi embora uma semana antes do feriado de Ação de Graças. Desde
então, não tivemos nenhum contato. Corte cirúrgico. Tinha que ser assim. É
como marcar os dias em um calendário da sobriedade pós-Ellen. Não posso
vê-la e começar a porra do processo todo de novo.
— Acho que já vou estar bem ocupado espalhando a alegria das festas
aqui mesmo.
Ela deixa escapar uma risada sarcástica.
— Ok, chefe.
Meu pai olha para mim como se me questionasse. Ele ainda tem
dificuldade para falar, por isso me baseio em olhares e expressões e no
quadro branco para entendê-lo. Nas últimas duas semanas, o controle motor
sobre a mão direita melhorou o suficiente para ele escrever bilhetinhos.
Sorrio quando ele estende a mão para o quadro branco.
— Era o Harrison. Ele recebeu hoje o cartão que eu mandei.
E o pai dele?
Você o ama?
Você o ama?
— Não vou embora. Não vou te deixar em uma clínica. Você não vai
melhorar em uma instituição. As pessoas idosas vão para esses lugares para
esperar a morte. Você não tem nem sessenta anos.
Ele me mostra o quadro de novo.
Suspiro outra vez.
— Sim, eu amo o Flint. E amo você, meus bebês ratos e chocolate. Tenho
muito amor para dar. Sabe o que mais eu amo? Tacos. Vou fazer tacos para o
jantar.
— El... len...
Paro a caminho da cozinha. Tentar falar ainda é muito frustrante para ele.
A sessão de fonoaudiologia é a parte do dia de que ele menos gosta, por isso
sei que, quando ele tenta falar, o assunto é muito importante.
Volto, ajoelho ao lado da cadeira e presto atenção ao que ele escreve.
Não posso pedir ao Flint para me esperar indefinidamente. Não vou dar
falsas esperanças a ele.
— Sei que vai melhorar. Fiz questão de escolher os melhores terapeutas
para te ajudar. Mas não vai melhorar se eu te abandonar. Se for para eu ficar
com o Flint, então... — Dou de ombros.
Então o quê?
— E desde quando virou fã do Flint? Pensei que ainda alimentasse aquele
sonho de me ver com o Alex de novo.
Ele apaga o quadro e tira a tampa do marcador.
— Sim, Alex disse coisas que não foram legais. Eu sabia que era reflexo
da dor e da revolta, mas... não vi nenhuma perspectiva de melhora, e ele
queria que eu fosse embora. Queria o divórcio.
— Mereço.
Dou risada.
— Quando você não precisar mais desse quadro e subir a escada sem
ajuda e sem cair, voltamos a conversar sobre minha vida amorosa. Sou jovem
e linda, como minha mãe era. — Pisco para ele, e meu pai ri. — Então não
preciso marcar um homem com uma etiqueta para não perder. Se ele ainda
estiver por perto quando eu me sentir pronta, é porque tem que ser. Se não for
assim, vou encontrar outra pessoa.
Meu pai franze a testa de novo, mas não ligo para cara feia. Uma careta
mobiliza mais músculos faciais que um sorriso, o exercício vai fazer bem aos
nervos lesionados.
Ele desenha uma árvore de Natal.
Dou risada.
— É verdade. Não dá para negar.
— R atos! — Harrison tira a fita vermelha e o cobertor branco da
gaiola.
— Mas o que...? — Sandy, a mãe de Heidi, cobre a boca com uma das
mãos.
— São ratos. Como os da Ellen.
— Quem é Ellen?
— Já te contei, ela me deu um violão e pulou de paraquedas. Também fez
sexo com meu pai e faz o melhor cookie de gotas de chocolate que já comi.
Meus pais ficam calados enquanto Harrison recita fatos aleatórios sobre
Ellen, como se divulgasse seu currículo. Sandy não parece muito contente.
Tenho a impressão de que Harrison pode ter mencionado o violão e o
paraquedismo, mas o sexo é novidade para ela... e não é uma boa notícia.
— São machos ou fêmeas? — Harrison pergunta.
— Podemos conversar, Flint? — Sandy fica em pé.
— Olha só, amigão. — Meu pai se abaixa perto de Harrison, que está no
chão, para dar as informações sobre os ratos.
Acompanho Sandy até meu escritório.
— Só deixei você ter a custódia do Harrison porque pensei que estivesse
preparado para ser um pai maduro, mas...
— Opa! Deixou? Eu só me formei em Direito para ter meu filho de volta
sem você lavar minha roupa suja em público. Lutei por ele. Você não me deu
nada.
Ela se aproxima com o dedo em riste.
— Eu te fiz lutar por ele para provar que tinha o que era necessário.
Precisava saber que estava disposto a assumir o compromisso. Precisava
saber que não ia desistir do seu filho, que não precisa só de um pai, mas de
alguém que possa ajudá-lo com suas necessidades especiais, como a mãe dele
teria feito.
O maior arrependimento de Sandy sempre foi minha redenção, mesmo que
seja tudo muito complicado. Naquela noite, ela incentivou Heidi a confiar no
meu julgamento. Não devia. Foi sua culpa que me manteve fora da prisão.
Ela poderia ter insistido no exame para verificar o índice de álcool no meu
sangue logo depois do acidente, mas não fez nada. Choque, luto e culpa a
impediram de falar alguma coisa a alguém. Enquanto isso, enquanto os
paramédicos cuidavam da minha esposa e do meu filho, o álcool foi saindo
do meu organismo.
Saí impune do acidente, mas morto por dentro.
Ela pediu a guarda do Harrison depois do enterro de Heidi. Era tarde
demais para provar que meu alcoolismo era a causa do acidente, mas ainda
havia tempo para salvar o neto de mais sofrimento.
Eu nem lutei. Deixei que ela o levasse, porque estava destruído em todos
os sentidos.
— Harrison fala tudo fora de contexto. Você sabe disso.
— Está dizendo que não fez sexo com essa Ellen?
— Minha vida sexual não é da sua conta.
— Talvez não, mas meu neto falando como se vivesse em um bordel
certamente é.
— Bordel? Sério? — Tento não rir.
— Contou a ele que fez sexo com essa mulher, ou ele viu você fazendo
sexo com ela?
Suspiro e massageio a nuca.
— O nome dela é Ellen, não “essa mulher”, e não vou discutir esse assunto
com você. Ele é meu filho. Minha responsabilidade. E vou educá-lo como
achar adequado.
— Está bebendo de novo?
— Sandy, realmente...
— Quando foi a última vez que esteve em uma reunião?
— Que importância tem isso?
— Minha filha morreu. Eu sou a voz dela, goste você ou não. Sendo
assim, ou responde à minha pergunta, ou vou arrumar um advogado.
— Arrume um advogado, então.
— Você a matou. — A voz dela treme.
Eu me calo. Nunca vou desmentir essa acusação.
— Não pode simplesmente substitui-la na vida dele.
— Não estou substituindo.
— Seis anos. Espere só até ele ser adulto. Pode esperar? Pode demonstrar
um pouco de gratidão e fazer isso por ele? Pode deixar que ele seja sua
prioridade? Pode abrir mão das suas necessidades físicas e ser só pai?
As palavras dela são as minhas palavras. Esses têm sido meus
pensamentos de autodepreciação desde que Heidi morreu. Ellen mudou tudo,
mas isso também não importa agora. Ela não faz mais parte do cenário.
— Sim.
Sandy suspira lentamente.
— Obrigada. — E sai do escritório.
É difícil me ressentir por Ellen ter ido embora. Se ela tivesse ficado, isso
seria um problema sério entre mim e Sandy. Mas sinto falta dela todos os
dias.
— Ellen, olha os meus ratos!
Sandy olha para mim com ar de condenação enquanto Harrison conversa
com Ellen por vídeo, como se eu tivesse algum controle sobre isso. Dou de
ombros e vou para a cozinha para evitar tudo que tem a ver com Sandy e tudo
que tem a ver com Ellen.
— Você agiu bem, filho. — Meu pai dá um tapinha no meu ombro.
— Como assim? — Ponho a louça do café da manhã na pia.
— Os ratos.
— Não comemore antes da hora. Depois de hoje, ele vai ter que entender
que os ratos ficam no quarto dele e não podem ter acesso a nenhum outro
cômodo da casa, ou vão embora.
— É justo. Eles me dão arrepio.
Dou risada.
— Eu falei.
— Tudo bem com a Sandy?
— Sim.
— Não permita que ela te faça sentir culpa por ter uma vida além do
Harrison.
— Eu mesmo me encarrego disso, pai.
— Falou com a Ellen? Ela está linda.
Como sempre.
— Não.
— Devia pegar o menino e ir até lá ver essa garota.
Minha risada é irônica.
— Ótima ideia. Levo o menino que me fez prometer que não íamos nos
mudar. E vou visitar a garota, depois de ter prometido a Sandy que me
manteria celibatário pelos próximos seis anos. Quero ser você quando
crescer, pai. Não pensa. Só faz. Você vive em um mundo “fantástico”.
— Pensar é o que as pessoas fazem quando não estão seguindo seus
sonhos.
— Vou parar de pensar e começar a sonhar daqui a seis anos.
— Até lá, ela vai estar casada e com dois filhos. — Meu pai enche a pia
com água quente e detergente. Minha mãe o treinou bem.
— Para minha sorte, ela não é a última mulher do planeta.
— Sua mãe e eu podemos conversar com Sandy.
Fecho aporta da lava-louça.
— Pai, deixa para lá. A verdade é que foi melhor ela ter ido embora. Por
mais que eu tenha pensado que ela poderia caber na nossa vida, tudo teria
sido muito difícil, e talvez tivesse até acabado em desastre.
— Quer desejar Feliz Natal para a Ellen?
Meu pai e eu olhamos para o iPad na mão de Harrison. Ela ouviu tudo. Dá
para ver pela expressão em seu rosto.
— Feliz Natal, Ellen. — Meu pai sorri para ela. Não imagina com que
nitidez essa coisa capta sons, mas eu sei bem.
Ela força um sorriso que é como uma faca rasgando meu coração.
— Obrigada, Gene.
— Feliz Natal — eu digo.
Ela se limita a responder com um aceno de cabeça e desvia o olhar. A
tecnologia é uma porcaria. E eu sou um idiota.
Harrison se afasta de novo.
Termino de cuidar da louça com meu pai, recolho os papéis de presente
espalhados pela sala e fujo para o escritório em busca de privacidade,
enquanto Harrison brinca com os ratos e outros presentes de Natal. Meus pais
e Sandy vão tirar um cochilo.
Depois de pensar se valia a pena ligar para Ellen e pedir desculpas e
decidir que não, não ia ajudar em nada, telefono para ela mesmo assim,
porque só escuto a voz dela em minha cabeça.
Vou te amar tanto, que o tempo não vai ter nenhuma importância... a
distância não vai ter importância... cada vez que respirar, você só vai
sentir... meu amor.
Ela atende.
— Oi.
— Oi. Eu... ah... queria pedir desculpas pelo que você ouviu.
— Por que acha que ouvi alguma coisa?
— Ellen...
— Não tem importância. Eu sei que aquilo não era para mim. Entendi.
— Eu não queria...
Ela ri. O som sugere dor.
— Queria, sim.
— Só disse que... não queria ser desagradável. Só estava explicando...
— A vida — ela sussurra. — Eu sei.
— Não me arrependo de nada.
— Bom... — Ela ri baixinho. — Veremos.
— Não me arrependo. — Dói saber que ela não acredita em mim.
— Com duas palavras, vou fazer você se arrepender de ter me conhecido.
— Ellen, eu nunca vou me arrepender...
— Estou grávida.
Quê?
Encosto na cadeira, passo a mão no cabelo e puxo com força para ter
certeza de que estou acordado, de que não é um sonho ou uma alucinação.
Ela não disse isso. Só pode ser...
— Nós usamos...
— Nem sempre.
Fecho os olhos, massageio as têmporas. Não usamos camisinha todas as
vezes. Algumas vezes na minha casa, na minha cama, acordei e simplesmente
não resisti, precisava estar dentro dela. Cansada, Ellen abria os olhos e me
beijava. Nunca questionou a ausência de camisinha. Só movia o corpo junto
com o meu.
— Nem sempre... — sussurro.
— Eu não ia contar isso hoje, mas você me ligou, tentou me convencer de
que não se arrepende de nada e... bom, eu não aguentei. Não deixa a notícia
estragar seu dia. Quero dizer... estou vomitando há quarenta e oito horas,
mas, sério, aproveita as festas com sua família, e conversamos sobre isso
depois.
Meu cérebro travou. É difícil processar a informação. Ellen está grávida...
de um filho meu.
— Eu vou resolver isso.
— Resolver? Sério?
Balanço a cabeça.
— Não, estou dizendo que vou pensar em uma solução.
— Ah! Uau... ok, então. Só tem um problema nessa linha de raciocínio.
Não sou um enigma que você vai resolver, nem um problema em que você
vai dar um jeito. Estou grávida. Ponto final.
Endireito as costas e apoio os cotovelos na mesa.
— Volta para cá, vem morar aqui.
— Não vou abandonar meu pai. Vem você morar aqui.
— Não posso. Tenho o escritório, e Harrison não vai aceitar a mudança.
Traz seu pai para cá.
— Sei, nós somos irresponsáveis, e por isso eu tenho que pegar meu pai e
as coisas dele, nas condições em que ele está, e tirá-lo de casa, de perto dos
pais dele, dos médicos, dos terapeutas, da vida dele? É claro, uma solução
bem justa... Ah... não... de novo não...
— Ellen?
Escuto o barulho da ânsia, a tosse, depois a descarga.
— Merda — resmungo.
Água corrente, provavelmente a torneira da pia.
— Preciso ir deitar.
— Ellen...
— Feliz Natal, Flint. — Ela desliga.
FLINT: É sério?
Lágrimas fazem meus olhos arderem. Sim e não. Não era assim que eu
imaginava minha primeira gravidez. Não devia ter mandado mensagem para
ele. Estou tão mal, que não consigo pensar direito. Abro minha playlist
favorita de música clássica e fecho os olhos, torcendo para ter paz, torcendo
para dormir.
— Oi...
Viro a cabeça. É um sonho. Não estou enjoada.
— Oi... Elle... — A voz é distante, mas conhecida. Faz um tempo que não
a escuto em meus sonhos.
A exaustão não saiu do meu corpo, mas abro os olhos mesmo assim.
Pisco. Pisco. Pisco.
— Fiquei sabendo que não está muito bem.
Faço um esforço para sentar na cama.
— Alex... — Percebo as mãos de aparência robótica presas aos antebraços
e aos três dedos restantes.
— Bem legal, não é? — Ele as estende e mexe os dedos robóticos.
Bem legal. Olha os meus dedos novos. Vou te encantar com eles e você
não vai pensar nas coisas horríveis que te falei e em todos os palavrões
horríveis de que te xinguei.
— Alex... — Não sei nem o que dizer.
Ele olha para mim como olhava antes de perder as mãos. É como se
aqueles dois anos de inferno nunca houvessem acontecido. Meu
ressentimento é palpável. É uma parte viva de quem eu sou. E sei que essa
raiva só sobrevive porque ainda o amo. As lembranças que tenho do garoto
por quem me apaixonei há quinze anos não se apagaram. Lembro do amor.
Era real. Nós éramos reais.
O amor.
A vida empolgante.
O sofrimento.
A tragédia.
— Desculpa — ele fala, e toca minha perna. É a primeira vez que me toca
desde que perdeu as mãos.
Ele fez o imperdoável e disse o impensável. Ele me quebrou de dentro
para fora e me deixou sozinha para recolher os pedaços. Não sei nem se tenho
todos os pedaços. Desde aquele dia, passei a me sentir emocionalmente
destruída com feridas que não foram tratadas e alfinetes segurando as
emendas do meu coração dilacerado.
Isso pode ser resolvido com um simples “desculpa”?
— Vou vomitar... — Pulo da cama e corro para o banheiro.
Não tem mais que um fio de bile queimando minha garganta, mas
espasmos secos contraem meu estômago. Até as costelas doem. Sinto alguma
coisa no cabelo e me esquivo. São as mãos de Alex afastando o cabelo do
meu rosto. Tenho a sensação de que passei uma vida esperando por esse
toque. No dia em que ele perdeu parte das mãos, eu soube que o amaria de
qualquer jeito. Soube que acolheria o novo e guardaria para sempre o que
restava do antigo. Mas ele nunca me deu essa chance.
— Virose ou intoxicação alimentar? — ele pergunta, depois senta no chão
ao meu lado e me puxa para o colo. É tão carinhoso. Esse não é o homem que
me chamou de piranha carente e jogou minhas coisas no quintal. Não é o
homem que disse que morremos quando ele perdeu tudo que era importante.
Engraçado... eu achava que era tudo para ele. Perspectiva é uma coisa
sorrateira e cruel.
Suspiro recostada nas curvas conhecidas de seu corpo.
— Sabe guardar segredo?
Alex ri baixinho. Ele costumava me fazer essa pergunta antes de contar
alguma coisa sobre a próxima grande aventura dele ou nossa. Nós dois
sabíamos que eu não sei guardar segredo.
— Sim, acho que sou o único que sei aqui.
Isso não é vingança, não é retaliação, não é nem carma. É só minha
incapacidade de mentir para esse homem. Mesmo quando deveria ter mentido
para me proteger, não menti... não consegui. Ainda não consigo.
— Estou grávida.
Seu corpo enrijece.
— Jesus...
— Pois é. — Eu me afasto, levanto e vou lavar a boca.
Alex fica em pé atrás de mim. Olho para ele pelo espelho do banheiro.
Ainda é bonito, talvez mais do que na última vez que o vi. O cabelo loiro
surfista sempre combinou com ele. Pele bronzeada. Olhos cor de safira. Ele é
bonito.
— E o pai?
Dou de ombros.
— É complicado.
— O que significa que ele não está por perto.
Passo por ele a caminho da escada e balanço a cabeça.
— Não, não significa nada, só que é complicado.
Alex me segura pelo braço.
Viro bruscamente e o encaro, depois olho para a mão em meu braço.
— Solta — sussurro com tom firme.
Ele me solta.
— Não pode mais me tocar. Nunca mais.
Alex levanta as duas mãos.
— Eu não podia te tocar antes. Teria tocado, mas não podia.
— Você não perdeu as mãos inteiras. Não perdeu os braços, as pernas, os
lábios... o pinto. Podia ter me tocado, se quisesse me tocar. Mas não queria. E
tudo bem. Tentei me colocar no seu lugar. Tentei entender como poderia se
sentir menos homem. Mas você não permitia nem que eu te tocasse. E sabe o
que é pior? Mesmo sem as mãos, você me usou como saco de pancada.
Porrada atrás de porrada, até me jogar para fora da nossa casa.
Ele recua.
— Eu não estava bem, mas agora estou melhor. Tentei ligar para você.
Achei que a gente poderia conversar.
Dou risada.
— Que bom para você. Espero que esse seu “melhor agora” te faça bem,
mas não temos nada para conversar. — Viro e começo a descer a escada.
— Ellen. — Ron me abraça. — Fiquei sabendo que não está muito bem,
sinto muito.
— Tudo bem, obrigada. — Recuo e forço um sorriso, apesar de como me
sinto.
Ron olha para Alex.
— Vocês conversaram?
Alex assente e olha para mim, preocupado. Antes ele costumava me dizer:
“Fica tranquila, Ellen, eu seguro sua barra”.
Acho que ele está tentando pensar em um jeito de segurar minha barra.
Mas não é mais o homem que eu quero segurando minha barra. Meus olhos
encontram a boca que beijei tantas vezes, mas agora só consigo pensar no
veneno que transbordou dela. Eu sou a melhor pessoa, como minha mãe
sempre foi a pessoa melhor.
Nos melhores dias, eu me convenço de que perdoei Alex, mas nunca vou
perdoar, por mais que queira apagar da memória cada momento terrível. Eles
estão lá, dolorosamente gravados, como uma marca permanente.
— Ginger ale? — Minha avó me oferece um copinho.
— Obrigada. — Aceito e sento na cadeira ao lado da poltrona do meu pai.
O exame agora é mais atento. Sorrio para dizer a ele que está tudo bem.
Mesmo que não esteja. Preciso acreditar que vai ficar.
— Alex vai voltar a escalar — diz Ron.
Meu pai franze a testa. Afago a mão dele. Ele olha para mim. Adoro o
jeito como ele me protege. É por isso que estou aqui, para protegê-lo, para
garantir que ele tenha cuidado e amor. É assim que deve ser uma família.
— É mesmo? — Meu avô levanta as sobrancelhas grossas. — É possível
com esse tipo de mão?
Alex confirma balançando a cabeça.
— Sim. Na verdade, se for uma competição, elas podem ser consideradas
uma vantagem injusta. Mas não estou competindo. Só faço isso porque é o
que eu amo fazer. — E olha para mim por um momento.
Sorrio. Ele não. A expressão de sofrimento persiste. Ele pode pedir
desculpas e se afogar em arrependimento, e eu posso perdoar, mas estamos
destruídos para sempre.
— Ele tem patrocinadores, a viagem e o equipamento estão garantidos —
Ron acrescenta.
Nesse momento, talvez seja uma bênção meu pai não poder falar muito.
Sinto o conflito nele. Ron é seu amigo, mas ele não consegue superar o que
sabe sobre Alex. Isso me entristece.
Espero nunca ter que lidar com a perda física que Alex enfrentou. Mas se
tiver, espero poder lidar com ela com um pouco mais de amor e compreensão
das pessoas à minha volta. Essa incerteza é o que realmente me impede de
odiá-lo. A destruição da autoestima envenena todos no entorno da pessoa.
Aconteceu com Alex, e acho que aconteceu com Flint, em alguma medida.
Então, mesmo que ainda não consiga dizer as palavras em voz alta, eu quero
perdoar Alex.
Na manhã seguinte, acordo tarde e me sentindo meio morta, muito fraca.
Não consigo nem sair da cama. Tenho medo de ter desidratado. Se precisar
vomitar, vai ter que ser no chão. Talvez seja hora de contar a verdade aos
meus avós e meu pai. Eu deveria ser a cuidadora, mas não posso levar meu
pai às consultas, e não posso pedir para meus avós irem no meu lugar, eles
não podem dirigir, muito menos com toda essa neve.
Café. Eca! Estão fazendo café lá embaixo. O aroma matinal que amei por
tanto tempo agora revira meu estômago. Alguém toca a campainha.
— Maravilha... — Deito de lado e me encolho abraçando o estômago.
Alex disse que hoje viria ver se eu estava melhor, não quero que ele me
veja desse jeito. Não quero ajuda dele. Mas acho que preciso dela. A próxima
coisa que vou engolir é meu orgulho, mas vou ter de engolir porque não sou
mais sozinha. Também sou responsável pelo bebê demônio dentro de mim.
Até a conversa me enjoa. Minha avó ri de alguma coisa, e meu avô fala “lá
em cima”. Passos se aproximam. Cubro a cabeça. Faz dois dias que não tomo
banho, e desisti de escovar os dentes. Estou horrível. Não tem outro jeito de
descrever.
Mas Alex precisava de ajuda para tomar banho e limpar a bunda. Acho
que a troca é justa.
— O cheiro é pior do que realmente me sinto. E eu me sinto péssima —
aviso quando os passos param na porta.
Os passos continuam, e sinto a cama se mover. Isso é muito
constrangedor. Quero ficar escondida embaixo dessas cobertas para sempre.
— Doutor, se precisar de alguma coisa, um termômetro, água, compressas
frias, é só avisar — minha avó fala lá embaixo.
Doutor? Abaixo as cobertas um pouquinho, como se tivesse medo do
bicho-papão, e espio para ver quem é o médico.
— Ai, meu Deus... — sussurro.
— Deus, médico, qualquer coisa, sou o que você precisar que eu seja —
Flint avisa, sorrindo.
Estendo a mão trêmula, como se precisasse ter certeza de que ele é real.
Flint passa um braço por trás das minhas costas e me põe sentada. Eu o
abraço. Se não estivesse tão desidratada, estaria chorando.
— Está cuidando bem do meu bebê e da mãe dele?
Engulo um soluço e o abraço mais forte.
— Não. — É verdade. Ele pode ver que as coisas não estão bem.
Meu bebê e a mãe dele. Meu coração vai explodir.
— Era disso que eu tinha medo. — Ele recua para olhar para mim.
Caramba. A imagem não é boa. Eu sinto.
— O que está fazendo aqui?
Ele sorri e afasta meu cabelo oleoso e desgrenhado do rosto.
— Elle... — Flint beija minha testa e segura minha nuca. — Você sabe o
que estou fazendo aqui.
— Estou fedida.
Com os lábios ainda tocando minha testa, ele sorri.
— Talvez.
— Preciso de um banho, mas estou muito fraca.
— Por isso o Dr. Hopkins está aqui. — Ele fica em pé e tira o paletó.
— Está de terno?
Ele afrouxa a gravata.
— Eu precisava desempenhar bem o papel.
Por pior que me sinta, não consigo evitar um sorriso. Droga! Meus dentes
estão grudando. Que nojo.
— Só preciso de um segundo... — Ele sai do quarto, entra no banheiro e
liga o chuveiro.
Arrasto as pernas para fora da cama, fazendo uma careta ao sentir a
mistura de náusea e tontura.
— Onde pensa que vai? — Flint se ajoelha na minha frente e abre uma
bolsa que parece uma antiga valise de médico.
— Não muito longe — murmuro.
— Abre a boca. — Ele segura um conta-gotas.
Balanço a cabeça.
— Abre — ele repete com mais autoridade.
— Vou vomitar em você.
— Eu corro o risco. Agora abre.
Abro a boca com uma careta.
Eca!
— Horrível!
Ele ri e devolve o conta-gotas ao frasco.
— É mesmo. Agora bebe. — E me dá uma garrafa com um líquido.
Torço o nariz de novo.
Ele suspira.
— Faz o que eu digo, ok?
Não estou vomitando ainda, então bebo o conteúdo da garrafa. Parece
água com sabor. Não é ruim.
Flint puxa a manga da camisa para olhar o relógio.
— Mais um conta-gotas cheio em vinte minutos. — Ele fica em pé e
desabotoa a camisa branca.
Olho para o peito nu.
Ele sorri.
— Viu? Já está melhorando.
Levanto a cabeça para encará-lo. Ele pisca. Babaca arrogante.
Flint deixa a camisa esticada sobre a cama e começa a abrir a calça.
Olho para a porta.
— O que está fazendo?
— Tirando a roupa. Não vou te levar para o banho vestido com um terno
de lã.
— A porta está aberta, o que você...
— Não vou me preocupar com os dois idosos lá embaixo, eles demoram
quinze minutos para abrir a porta, e seu pai está fisicamente prejudicado. Ele
é muito legal, aliás. Já elogiou meu terno.
— Ele escreveu um elogio no quadro branco?
— Não. — Ele tira a cueca.
— Ai, droga...
— Ele disse “belo terno”. Foi um pouco enrolado, mas ele falou. — Flint
segura a barra da minha camiseta e a tira de mim. — Segura no meu pescoço,
baby.
Baby?
Passo os braços em torno do pescoço dele. Ele levanta meu quadril só o
suficiente para tirar a calça do pijama e a calcinha. Sem dificuldade, ele me
carrega para o banheiro e fecha a porta com o pé.
— Quer usar o vaso?
Balanço a cabeça.
Ele me põe em pé e olha para mim com ar preocupado.
— Você desidratou muito.
Assinto.
Flint desliga o chuveiro e entra na banheira. Depois me ajuda a entrar,
antes de sentar e me colocar entre as pernas, de costas para seu peito. Sem
perder tempo, começa a lavar meu cabelo. É incrível sentir os dedos
massageando minha cabeça. Tenho certeza de que cantarolo uma sinfonia
inteira.
Depois de me lavar com cuidado da cabeça aos pés, ele se recosta e me
abraça com a mão direita espalmada sobre minha barriga.
— Eu quero você. — Ele beija minha cabeça.
Abro os olhos, mas não respondo.
— E quero esse bebê. — Mais um beijo na minha cabeça.
Ponho a mão sobre a dela e entrelaço nossos dedos. Não sei como isso
pode dar certo sem imensos sacrifícios, mas não vou me preocupar com isso
nesse momento, um momento que parecia perfeito, até alguém abrir a porta
do banheiro.
— Ellen? Oh! — Minha avó se sobressalta e leva a mão ao peito.
Espero que o coração dela não pare.
— Dr. Hopkins... bem, eu... só queria ver como estavam as coisas.
Mordo o lábio inferior, mas Flint nem se abala, não move um músculo.
— Estamos terminando uma sessão de hidroterapia. Vamos sair em alguns
minutos. Se não se importa, Ellen precisa se alimentar, talvez um caldo, se
tiver.
— Hidroterapia... — Ela assente. — Um caldo... sim, eu posso fazer.
— Obrigado.
Minha avó fecha a porta.
Solto a mão dele e afundo completamente na água, porque... Alguém me
mata. Agora. Ele segura meus braços, me puxa para cima e me dá uma toalha
para enxugar o rosto.
— O momento mais constrangedor da minha vida.
Flint ri.
— Acho que acabou bem.
cho que escovar os dentes três vezes é suficiente.
— A
Apoiado no batente da porta do banheiro, vejo Ellen cuspir espuma e
ameaçar vomitar. Alguma coisa me diz que posso esquecer sexo oral por um
bom tempo. É patético pensar nisso agora, mas penso.
— Nunca subestime o poder de dentes limpos. — Ela deixa a escova de
dentes na pia e olha para mim. — Estou fraca, mas não quero mais vomitar.
Isso é bom, não é?
Sorrio e a abraço.
— Nunca subestime o poder das ervas. Mas você precisa se alimentar.
Vamos começar com um caldo.
Ela segura minha gravata quando ameaço me mover. Senti falta disso.
— E o Harrison?
— Em Nova York com meus pais. Eles vão ver a bola cair hoje à noite.
Ela se anima, ainda pálida como um fantasma, mas vejo um brilho em seus
olhos.
— Eles sabem?
— Não. Ainda não consegui pensar na logística disso tudo. Estou tentando
entender como encaixar outro filho em minha vida sem sacrificar o
relacionamento com o filho que já tenho.
Ela fica séria, como se a culpa da gravidez fosse dela.
— E está tentando pensar em como eliminar a distância de quase dois mil
e quinhentos quilômetros entre seus dois filhos.
Seguro seu rosto e beijo sua boca de leve, inalando o hálito de menta.
— Estou tentando achar um jeito de diminuir essa distância entre nós.
— Falando em nós... como foi lá embaixo?
— Eles gostam de mim. Todos eles. Seu avô disse que é raro encontrar
médicos que façam consultas domiciliares hoje em dia, e seu pai sorriu. Acho
que causei boa impressão, não só pelo terno, mas pelo comportamento de
cavalheiro.
— Cavalheiro? Você me mandou uma embalagem de lubrificante. Meu
pai acha que é um relógio. Ele ficou furioso por não ter mandado gravar o
relógio!
Eu rio. Meu Deus, amo essa mulher! E aí está: a verdade. Amo essa
mulher e dói muito não saber como estar com ela. Sorrio para disfarçar a
preocupação.
— Que desperdício foi essa compra. Quando exploramos esse território,
você estava mais que lubrificada por conta própria.
O queixo dela cai.
Belisco suas bochechas.
— Essa é minha menina. Finalmente, um pouco de cor nesse rosto. Vamos
comer?
Como eu esperava, vovó olha para mim desconfiada. O clima mudou. Não
sou mais o médico herói que faz consulta domiciliar. Agora me sinto como o
professor que foi pego com a mão embaixo da saia da aluna.
— Como foi a hidroterapia, meu bem? — A avó de Ellen põe uma tigela
de caldo na mesa e senta ao lado dela.
Ellen sorri e lança um olhar rápido em minha direção.
— Vó, o Dr. Hopkins não é médico. O nome dele é Flint. Eu contei sobre
ele e o filho, o Harry, lembra?
Vovó olha para mim. Sentado diante de Ellen, pisco para ela.
— Por que disse que era médico?
— Eu não disse. Falei que vim para cuidar da Ellen. Vocês inferiram que
eu era médico. Eu não desmenti.
Ellen toma o caldo e limpa a boca com um guardanapo.
— Flint é advogado. Ele sabe manipular as palavras. — E sorri antes de
tomar mais um pouco de caldo.
— Samuel, ele não é médico. — O tom da vovó sugere que ela quer que os
vizinhos também saibam.
— O quê? — Samuel tem problemas de audição, ou precisa abaixar a TV.
Está muito alta.
— El... len — o pai dela chama.
Ela se levanta da mesa e vai sentar no braço da poltrona dele.
— Fl-int?
— Sim. O homem de quem eu falei.
— Ama... ele...
Meus olhos azuis favoritos encontram os meus, e ela assente, antes de
olhar novamente para o pai.
— Sim. Eu amo.
Quero bater no peito. A última vez que me senti desse jeito foi no dia em
que Harrison nasceu.
O pai dela pega um quadro branco da mesinha lateral e escreve alguma
coisa. Ela lê e sorri para mim de novo.
— Os pais dele estão em Nova York com o Harrison. Flint veio passar a
véspera de Ano Novo comigo.
Acho que a notícia do bebê ainda é segredo. Isso é um alívio, já que não
sei bem o que estou fazendo aqui, além de cuidar de uma mulher doente e de
um bebê que ainda não nasceu. Ainda não sei como explicar isso ao Harrison
sem destruir seu mundo.
Harrison não gosta quando troco os lençóis da cama dele ou mudo os
móveis da sala de lugar. Um bebê e uma possível mudança de endereço
podem ser demais para ele. Cage tem razão, eu o protejo demais. Mas ter
matado a mãe dele me obriga a dar mais proteção que a média. Matei a mãe
dele, isso significa que devo a ele uma vida que não envolva virar seu mundo
de pernas para o ar.
— Estou melhor, pai. Flint não é médico, mas sabe muito sobre ervas. Na
verdade, depois que você sofreu o derrame, ele usou ervas para me colocar no
avião. Quando não é completamente desagradável, ele é fantástico.
Olho para ela e aperto os olhos. Fantástico.
Fico com Aria até não conseguir mais manter os olhos abertos. As
enfermeiras me levam de volta ao quarto, mas não vejo Flint. Ele disse que
ficaria com a nossa bebê. Onde ele está? A enfermeira promete que vai
mandar uma mensagem e pedir para ele vir me ver, mas durmo antes que ele
chegue ao quarto.
Durante a noite, acordo várias vezes com alguém me examinando. Flint
não aparece nenhuma vez. Na manhã seguinte, acordo cedo e me sentindo
péssima. Meu corpo inteiro dói, mas nada é mais doloroso que a vontade de
ter Aria em meus braços. Depois de examinarem o corte e o sangramento,
como alguma coisa e eles me levam à UTI.
Nada do Flint.
Por que ele abandonou a bebê? Onde ele está?
— Bom dia — cochicha a enfermeira da UTI. — Quer tentar amamentar
de novo?
Assinto e sorrio para minha menininha, apesar da dor no peito causada
pelo sumiço do pai dela. Tento amamentá-la, tiro leite com a bomba e a
alimento com a mamadeira até ser levada de volta ao quarto, onde o médico
me examina. Parece que está tudo bem. Eles querem que eu tente andar um
pouco. Pensar no esforço me deixa exausta.
— Quanto mais a circulação voltar a todas as partes do corpo, mais
depressa você vai se recuperar, e Aria precisa de você forte e saudável. — A
enfermeira me incentiva com um sorriso.
Suspiro e movo os pés para fora da cama.
— Isso é jogo sujo — comento, brincando com a tentativa de usar Aria
para me motivar.
— Não precisa correr uma maratona nem fazer musculação, mas
movimentos suaves vão te fazer bem.
Ando até o banheiro, faço xixi e retorno sem desmaiar, mas quando volto
para a cama, estou exausta.
— Toc, toc.
— Pai. — Sorrio. — E Sr. Harrison. — Espero, olhando para a porta. —
Cadê seu pai?
Harry sacode os ombros.
— Eu levei o Harrison para casa ontem à noite. Flint ficou. Talvez
tenhamos nos cruzado no caminho agora de manhã. Ele deve ter ido tomar
um banho. — Meu pai olha para o celular. — Vou mandar uma mensagem.
— Não o vi. Acho que ele não estava aqui ontem à noite.
— Ele estava distraído quando fomos embora. Era tarde. O dia foi longo.
— Meu pai guarda o telefone no bolso e senta perto de mim na cama,
afagando minha mão. — Estou muito feliz por você e Aria estarem bem.
— O motorista morreu — diz Harry.
— Quê?
Meu pai franze a testa.
— O homem que bateu no seu carro. Morreu no local.
— Motorista bêbado. — Harry olha para os monitores sobre a cama.
— O quê? — sussurro.
— Ele mereceu morrer — Harry acrescenta sem nenhuma emoção.
Tenho a sensação de que meu coração é espremido.
— Flint sabe disso?
Meu pai confirma balançando a cabeça.
— Eu... tenho que voltar à UTI. Acha o Flint para mim, pai, o mais
depressa possível.
— Talvez ele tenha ido ao aeroporto. Os pais dele estão chegando.
— Talvez. Mas continua tentando falar com ele, ok?
— Ok.
Seguro o braço de Harry. Ele dá um pulinho, como sempre, depois aceita o
contato.
— Quer conhecer sua irmãzinha?
Ele dá de ombros. Interpreto a ausência de um não decidido como um sim,
ou um talvez, pelo menos. Aceito qualquer coisa para não pensar que Flint
sumiu. Sei que isso tem a ver com a causa do acidente.
Passado e presente se encontram. O filho dele não demonstra empatia —
nem perdão. É o pesadelo do qual Flint foge há mais de dez anos.
az quatro dias. Nada do Flint, apesar de meu pai ter procurado em
F todos os lugares.
O médico me deu alta hoje de manhã, mas não vou sair sem a Aria. E tem
o Harry... ele parte meu coração. Dá para ver que está começando a ficar
preocupado com o pai. O que ele vai fazer quando descobrir que Flint está
fugindo dele? Da verdade. De dez anos andando nos portais do inferno.
— Ela gosta disso — a enfermeira sussurra quando cantarolo uma das
muitas canções de ninar que cantava para Aria no meu útero.
Sorrio e concordo enquanto amamento Aria. Canto e cantarolo para ela o
tempo todo, de olho nos monitores para garantir que ela nunca seja
superestimulada.
Depois que ela acaba de mamar, deixo a enfermeira examiná-la enquanto
uso o banheiro. Quando saio, outra enfermeira me aborda.
— Seu marido está melhor? — ela pergunta.
Mordo a língua para não dizer que não é meu marido.
— Como assim, melhor?
— É muito triste vê-lo à noite olhando você e Aria pela janela. — E
aponta a janela do outro lado de onde estou segurando a bebê. — Falei para
ele entrar, mas ele disse que está resfriado.
— Quando o viu pela última vez?
— Ontem à noite. Ele vem todas as noites. Fica lá parado durante horas.
Assinto, mordendo o lábio. Lágrimas inundam meus olhos. É claro que ele
está cuidando de nós. Está sempre lá observando... protegendo. Meu super-
herói lutando contra a própria mortalidade.
— Elle.
Eu me viro.
— Camilla. — Sorrio para ela.
Ela me mostra o celular.
FLINT: Estou bem. Não se preocupe. Diz para Elle que sinto muito.
Mais lágrimas.
— Cadê o Harry?
— Gene queria um café. Daqui a pouco eles chegam.
— Já chegamos. — Gene mostra o corpo de café enquanto caminha em
nossa direção.
Pisco para me livrar das lágrimas e encontro o sorriso perfeito para Harry.
— Pronto para ser o musicoterapeuta da Aria hoje?
— Não sou musicoterapeuta. Você só falou para eu trazer o violão. — Ele
mostra o estojo.
Aponto a entrada.
— Vamos tocar uma canção de ninar para ela. Deixa os dedos sussurrarem
nas cordas.
Ele olha para mim sem expressão.
— Tudo... bem.
Eu a seguro contra o peito, deixando meu coração determinar o ritmo da
música.
— Qual é sua canção de ninar favorita, Harry? — sussurro. — Toca essa.
Ele balança a cabeça.
— Não posso.
— Pode. Deixa os dedos traduzirem o que tem na sua cabeça. — Ele
consegue. Tem todo esse talento. E o mais incrível é que ainda não percebe.
Sua testa se contrai. Alguns segundos depois, os dedos fazem exatamente
o que disse... sussurram para as cordas. Ele toca You Are My Sunshine.
É minha vez de salvar Flint. Vou colar os pedaços de seu mundo. Ele só
precisa aguentar firme. Precisa me dar uma chance, a única coisa que Alex
nunca fez.
Depois da mamada de Aria, peço a Camilla para ficar com ela enquanto
levo Harry para almoçar na cantina.
— Você anda muito devagar.
Dou risada quando entramos no elevador.
— Ainda estou dolorida do acidente, e tenho um corte na barriga da
cesárea. Dói tudo quando eu me mexo, por isso me mexo devagar.
— Eles cortaram você para ela sair?
— Isso.
— Minha mãe me empurrou para fora. Meu pai tem um vídeo. Ele me fez
ver uma vez. É bem nojento.
Pegamos alguma coisa para comer. Harry escolhe só uma salada de frutas.
Ele parece perdido quando Flint não está por perto para dizer o que é seguro
comer.
— Depois que sua mãe morreu, você morou com sua avó. Nunca quis
saber onde estava seu pai?
Harry mastiga um pedaço de melão antes de responder:
— Ele estava doente.
— Foi isso que ela disse?
Ele balança a cabeça para dizer que sim.
— Mas você acabou indo morar com seu pai de novo.
— Ele melhorou.
— Alguém já te contou o que ele tinha? — Sopro a sopa quente.
— Como assim?
— Existem muitas doenças diferentes: câncer, diabetes, coração...
— Não. Minha avó só falou que ele estava doente, e que talvez eu pudesse
vê-lo quando ele melhorasse.
Olho para a sopa. Deve ter sido difícil explicar isso para uma criança
pequena.
— Bom, a verdade é que a maioria das doenças pode ser prevenida por
meio de escolhas melhores. Dieta, exercício, evitar drogas e álcool. Mas
muitas dessas coisas viciam. Você deve saber que tabaco, como o dos
cigarros, é viciante, mas algumas comidas também são. Muita gordura pode
causar doença cardíaca. Muito açúcar pode levar a obesidade e diabetes. E
quanto mais ingerimos esses alimentos, mais o corpo clama por eles. Comida
pode ser tão viciante e prejudicial quanto qualquer droga.
— Meu pai acha que sou viciado em açúcar. Por isso limita quanto eu
como.
Sorrio.
— Mas você gosta de açúcar, não é?
Ele responde que sim balançando a cabeça.
— Quando tem um prato e cookies na sua frente, é difícil resistir à vontade
de comer tudo?
— É.
— É porque a sensação que você tem quando come os cookies é uma
droga. Como alguém que inala a nicotina do cigarro. Os biscoitos provocam
essa sensação boa no corpo. Mas é uma sensação temporária, e para mantê-la
viva, precisamos de mais e mais. Mais açúcar. Mais nicotina. Mais gordura.
Mais guloseimas salgadas.
— Não vai mais fazer cookies?
Dou risada.
— Eu faço os cookies, se você conseguir controlar a quantidade que come.
Mas se começar a ficar mal-humorado e trêmulo, ou se começar a engordar
muito, vou ter que parar de fazer cookies.
Respiro fundo e continuo:
— Você sabe que seu pai não bebe nada que tenha álcool, não sabe?
— Sei. Ele diz que não é saudável. É obcecado por saúde.
— Ah, muitos obcecados por saúde são viciados em recuperação. Talvez
quase tenham morrido de uma doença cardíaca. Talvez tenham desenvolvido
diabetes depois de engordar muito. E tiveram que escolher entre continuar
vivos ou deixar o vício acabar com eles. E, há muitos anos, seu pai foi
viciado em álcool.
— Quê?
— Essa doença que ele teve quando você morava com sua avó? O nome
dela é alcoolismo. Ele não conseguia beber só uma dose. Perdia o controle
com álcool.
— Não é uma doença de verdade.
— É, sim, Harry. E muita gente tem essa doença. Muitas pessoas morrem
por causa dela.
— Mas meu pai não morreu. Ele se curou.
— Isso. Mas muita gente não desiste do vício até morrer ou alguma coisa
crucial acontecer. Normalmente, uma experiência de quase morte, como
alguém que muda a dieta depois que sobrevive a um infarto que poderia ter
sido fatal. Algumas pessoas chamam esse momento de encontro com Jesus.
— Não acredito em Deus. Não existe prova real.
— É o que dizem. Uma coisa ruim acontece, e sua vida muda para sempre.
Seu pai teve um desses momentos, e foi isso que o fez parar de beber.
— Não entendi.
— Seu pai não acreditava que era alcoólatra, até que alguma coisa ruim
aconteceu por ele ter bebido demais.
— O que aconteceu?
Estou aqui. Percorri todo esse caminho. Talvez Flint tenha andando tudo
isso antes. Até o limite. O momento da verdade. Mas ela fica presa na
garganta, me estrangula, porque sei que eu se eu falar, tudo vai mudar. Não
quero que Harry odeie o pai. Não quero que Flint me odeie. Mas essa nossa
família está rachada e vulnerável por causa desse segredo.
Talvez tudo precise quebrar para poder ser consertado de verdade.
— Na noite em que sua mãe morreu no acidente de carro, seu pai estava
dirigindo.
— Não sei. Nunca perguntei se estava chovendo. Talvez estivesse. Não faz
diferença.
— Mas ninguém te contou que seu pai tinha bebido naquela noite.
Ninguém contou que ele estava intoxicado, e que foi isso que provocou o
acidente. Porque é difícil para um adulto entender e aceitar uma coisa tão
trágica, mas é inimaginável esperar que uma criança entenda.
— Odeio quando servem melancia que só tem a parte branca. Olha, não
tem cor. Não tem sabor.
Ai, Harry...
— Seu pai não está perto de nós porque ele sabe que você acha que o
homem que causou meu acidente merece morrer... porque estava bêbado. E
eu estou te contando isso para você saber. Ele precisa que você saiba. Mas
não acredito que ele espere seu perdão. Não seria justo te pedir isso.
— Meu avô achou um lugar que tem donut sem glúten e sem lactose, mas
não posso contar para o meu pai.
Empurro a tigela de sopa para o lado e junto as mãos sobre a mesa.
— Lembra da foto que eu tinha daquele cara, Alex, pulando de um avião?
O que eu te contei que escalou o Everest?
Ele levanta a cabeça.
— Lembro.
— Ele ficou soterrado em uma avalanche, e quando o resgataram, as mãos
dele tinham sido congeladas. Tiveram que remover as mãos dele. Alex era
meu marido. Mas depois que perdeu as mãos, ele começou a me tratar mal.
As coisas que disse e fez comigo eram imperdoáveis, de certa forma. Eu me
divorciei dele. Mas continuei falando para mim mesma que tinha perdoado.
Eu achava que, se você ama alguém de verdade, nada deve ser imperdoável.
Pisco várias vezes para não chorar.
— Mas, para ser honesta, não sei se algum dia vou conseguir perdoar
completamente o Alex. Vou amá-lo para sempre. As emoções são nossas.
São íntimas e pessoais. E não devem ser certas ou erradas. Ninguém deve
dizer a você o que sentir, quem amar ou como viver. — Cubro a mão dele
com a minha sobre a mesa.
Ele fecha a mão, mas não a remove.
— Seu pai só precisa que você saiba. Só isso. E agora você sabe. —
Levanto e pego a bandeja.
— Se Aria morresse, você perdoaria o motorista que bateu no seu carro?
— Harrison olha nos meus olhos.
Sofro muito por ele nesse momento. É claro que Flint não contou. Quem
vira o mundo do filho de pernas para o ar de propósito?
— Não — murmuro. — Mas aquele homem não era meu pai.
ocê é um homem difícil de encontrar.
— V
Levanto o olhar da mesa, enquanto o saxofonista relata minha dor em
forma de canção.
— Quem te ajudou?
Meu pai olha para a garrafa de uísque ao lado do meu copo de água meio
vazio. A preocupação aprofunda as linhas em sua testa.
— Cage.
— Hum.
Ele senta na minha frente, olhando para o copo.
— Jameson?
— Monkey Shoulder.
— Bem adequado. — Ri. — Faz uma semana. Aria vai para casa em dois
dias. Ela está engordando e mantendo a temperatura corporal.
Assinto.
— Já segurou sua filha?
Engulo em seco e balanço a cabeça.
— Eu já. Ela é um pequeno milagre.
Minha mandíbula trava. Sei que ela é um milagre. Sei a que horas ela
costuma acordar à noite. Sei por quanto tempo ela mama e sei que prefere o
seio direito.
— É sua vida, Flint. Entra no jogo ou desiste, mas não fica no banco
assistindo a todos à sua volta vivendo seu sonho.
Não olho para ele, não reajo à sua presença, e ele fica em pé e toca a borda
da garrafa de uísque.
— Não preciso perguntar se bebeu. Sei que homem você é hoje.
Ele vira a garrafa de lado, derramando o líquido dourado pela beirada da
mesa.
— E Harrison sabe sobre a Heidi. Ellen contou para ele. — Ele me entrega
um pedaço de papel dobrado. — Ela me pediu para te dar isto.
Olho para o papel por alguns segundos antes de pegá-lo. Meu pai se vira e
caminha para a porta.
Quando Ellen acorda um pouco antes das sete da manhã para amamentar
Aria de novo, saio e vou para casa cuidar do que ainda precisa ser resolvido.
Meu pai me recebe com o bule de café na cozinha.
— Entrando no jogo?
Fecho a porta e deixo a valise no chão.
— Se o treinador me deixar jogar.
Ele acena com a cabeça indicando a escada.
— O treinador está lá em cima alimentando os ratos.
Caminho para lá.
— Filho?
— Sim? — Olho para trás.
— Já percebeu que tem oito ratos morando na sua casa?
Dou risada.
— Não contei recentemente, mas acho que é isso.
Dou um passo de cada vez, me preparando para o inesperado.
— Oi... — Entro no quarto de Harrison e fecho a porta. Apoio as costas
nela e ponho as mãos nos bolsos da frente da calça jeans.
— Oi — ele responde sem olhar para mim.
— Como vai o bando?
— Chama eles de bando porque não se importa o suficiente para decorar
os nomes — ele resmunga.
— Wolfgang Amadeus Mozart, Johann Sebastian Bach, Ludwig Van
Beethoven, Frédérick Chopin, Stefani Joanne Angelina Germanotta, ou Lady
Gaga, e seus três guitarristas, Jimi Hendrix, John Frusciante e Carlos Santana.
— Chutou e deu sorte.
Sorrio.
— Provavelmente.
— Quer saber o que pode fazer para melhorar as coisas depois de ter
matado a minha mãe. Não é isso?
Eu me encolho por dentro. Aí vem uma tonelada de inesperado. Tento me
preparar para o impacto, mas faço minha oferta de paz primeiro. Ele precisa
saber algumas coisas.
— Nada pode melhorar essa situação. Nem um milhão de pedidos de
desculpa, nem todo o dinheiro do mundo, nem todos os cookies da sua
confeitaria favorita.
— Talvez uma guitarra elétrica. Nova. A melhor que puder comprar.
— Harrison, acabei de dizer...
— Qual é? — ele me interrompe com tom tenso enquanto conduz os ratos
para dentro da gaiola e fecha a porta. — Uma guitarra nova é mais do que
quer me dar em troca de perdão? — Ele fica em pé e chuta uma pilha de
roupa suja no chão, cruza os braços e fica andando de um lado para o outro
na frente da janela.
— Não estou pedindo perdão. Só quero que você saiba que sinto muito de
verdade, e que não tem um dia em que eu não lamente que não tenha sido eu
o morto naquele acidente.
— Que bom. Legal. Tanto faz.
— Harrison...
— Se não vai comprar a porra da guitarra, então sai daqui!
— Harrison, pode parar.
— Quê? Você mata uma pessoa, mas eu não posso falar porra? — Ele
cerra os punhos, os braços tremem. — Porra! Porra! Porra! Porra! Poooorra!!
Respiro fundo para me controlar.
— Vou te dar um tempo.
— Que bom. Mais tempo sozinho. Talvez a gente veja mais vídeos da
minha mãe. Talvez me dê mais fotos dela em porta-retratos. — Ele pega o
que fica em cima do criado-mudo, com a foto de Heidi atravessando a linha
de jogada, e arremessa na minha direção, mas erra por quase um metro. O
porta-retrato se espatifa na parede. — E depois? Toda essa porra de tempo
que passamos no passado, como se a porra da sua preocupação fosse a porra
da possibilidade de eu esquecer dela! Novidade! Eu não lembro dela, porra!
— Ele puxa os cabelos. Quando abre os olhos, estão vermelhos e cheios de
lágrimas.
Não lembro da última vez que vi Harrison chorar. E quando pisco para dar
vazão às minhas emoções, me pergunto se ele está pensando a mesma coisa
sobre mim.
Ele se ajoelha no chão, ainda puxando os cabelos, e sua voz é frágil como
o vidro quebrado.
— Não lembro d... dela — soluça.
Passo por cima da bagunça no chão para chegar ao outro lado da cama.
Abaixo na frente dele e o abraço, caindo para trás sob seu peso quando ele se
rende. E durante os minutos seguintes, abraço meu filho e o embalo com
ternura, sentindo sua dor e sangrando mais por causa da minha dor.
Ele não sabe como me perdoar por ter tirado dele alguma coisa, alguém
que não existe em sua cabeça. Eu entendo. Finalmente entendo, porra.
— A coisa foi meio barulhenta — meu pai comenta quando volto à
cozinha.
— Flint. — Minha mãe me abraça. É a primeira vez que ela me vê desde
que chegou, na semana passada. — Que bom que está bem.
— Obrigado, mãe.
Ela pega um café para mim, e me sento à mesa com a xícara.
— O garoto gosta de falar porra. — Meu pai olha para mim e bebe um
pouco de café.
— E usa a palavra com precisão surpreendente.
— Vocês dois são terríveis. — Minha mãe balança a cabeça.
Passo a mão no rosto e solto o ar em um longo suspiro.
— Preciso encontrar um pouco de humor na situação, antes que ela acabe
com nós dois.
— Ele não lembra da Heidi. — Minha mãe parece preocupada.
— Não. Eu sempre imaginei. Inferno, acho que Sandy sempre imaginou.
— Acho que devíamos pedir ajuda. Talvez um psiquiatra.
— Talvez — concordo com minha mãe.
— E você também precisa de ajuda.
— Provavelmente.
— O que ele está fazendo?
— Tocando violão. Não quer mais conversar. E se Elle estivesse aqui, ela
diria para deixarmos o Harrison em paz. Então...
— Vamos deixar — meus pais concordam em uníssono.
— Cadê o Jon?
— Foi tomar café com o Martin, e depois eles vão ao hospital — meu pai
informa.
— Preciso voltar para lá. — Levanto e levo minha xícara para a pia.
Meu pai pigarreia.
— A mulher, a ruiva animada?
— O que tem ela?
— Sei que deu só um sete para ela, mas você não é mais um garoto. Devia
perguntar o que ela acha de usar seu sobrenome.
Dou risada e concordo balançando a cabeça.
2 dias depois...
— Onde estão seus pais e meu pai? — Ellen pergunta quando Harrison e
eu entramos na UTI levando a cadeirinha do carro para Aria.
Depois da ameaça de surto, não falamos mais nada. Segui a indicação dele
de fingir que nada havia acontecido. Ele conhece meu segredo, e eu, o dele.
Não posso trazer Heidi de volta, e Harrison não consegue encontrar as
lembranças dela. Então... deixamos isso para lá.
— Eles acharam melhor que levássemos a bebê para casa só nós três. —
Beijo Ellen, depois beijo a cabecinha de Aria.
— Para casa. — Ellen suspira e sorri. — Que maravilha. — E põe Aria na
cadeirinha.
— Acho que ela é pequena demais para a cadeira — Harrison comenta,
sério.
— É um amendoinzinho — Elle fala com aquela voz de mãe.
Levo a cadeirinha com Aria para o carro estacionado na entrada, enquanto
Elle e Harrison vão andando na nossa frente.
Elle cantarola.
Harrison balança a cabeça.
Ela cutuca seu braço.
Ele balança a cabeça de novo.
Ela passa um braço sobre seus ombros.
Ele não resiste.
Ela beija um lado de sua cabeça.
Eu me apaixono mais por ela.
Ela cochicha para ele:
— Te amo.
Ele responde no mesmo tom:
— Também te amo.
E pela primeira vez em uma década, sei que vamos ficar bem.
— Vou no banco de trás com ela — Ellen avisa Harrison depois que
prendo a cadeirinha na base.
— Não. Eu quero ir atrás com ela.
Elle se surpreende, mas sorri.
— Você quer, é?
Ele dá de ombros.
— É... tanto faz. Tudo bem.
— Ok.
Harrison senta ao lado da cadeirinha de Aria, e eu fecho a porta. Depois
abro a porta da frente para Ellen.
— Vamos para casa. — Antes que ela entre, eu a abraço e beijo sua testa.
— Amo você, Flint Hopkins — ela sussurra.
Assinto sem afastar os lábios de sua testa, sufocado demais pelas emoções
para dizer alguma coisa.
Entramos no carro, afivelamos os cintos, e eu levo a porra do meu mundo
para casa.
Sóbrio.
Com as duas mãos no volante.
Dirigindo como uma senhora.
— Quando vai dar o anel para ela? — Harrison pergunta.
— Quem vai ganhar um anel? — Ellen pergunta.
— Você — Harrison responde.
— Que anel? — Ela olha para mim.
Continuo olhando para frente.
— O de diamante, ele pôs no bolso antes de sair de casa.
— Merdinha — resmungo.
— Anel de diamante, é? Quantos quilates? Sete?
Eu a ignoro. Ignoro os dois.
Vários minutos mais tarde, o Sr. Resposta Atrasada diz:
— Ah! Essa foi boa. Sete. Ela disse isso porque você deu nota sete.
Setenta por cento. Deu um D para a Elle, lembra?
Elle cobre a boca para segurar a risada.
— Eu lembro. Obrigado, Harrison.
— Pede logo.
Elle apoia a mão atrás da minha cabeça e acaricia minha nuca.
— É, pede.
— Muito bem. Quer casar comigo?
— O que acha, Harry? Aceito, ou não?
Reviro os olhos. Eles estão debochando do meu pedido de casamento.
— Aceita. Ele gastou um dinheirão no anel. É bem grande.
Elle dá de ombros.
— Tudo bem. Eu caso com você.
Tento não sorrir, mas o esforço é inútil.
A dois quarteirões de casa, Harry debruça sobre a cadeirinha de Aria e
cantarola You Are My Sunshine.
— Ele gosta dessa música — Ellen cochicha. — Você cantava quando ele
era pequeno?
Balanço a cabeça. Olho pelo espelho retrovisor e encontro o olhar de
Harrison.
Os olhos da Heidi. O nariz da Heidi. O sorriso da Heidi.
Ele se lembra da canção que a mãe cantava para ele. Lembra dela, embora
não perceba.
Meu amor por ele é maior do que as palavras podem descrever.
inco anos, dezenas de cookies, um novo irmãozinho e treze ratos mais
C tarde...
— Eu devia ter trazido o Harrison sozinho... — Suspiro, carregando uma
criança adormecida de cinco anos e cabelo vermelho e desgrenhado pelo
campus. Estou suando. Ela é pesada e quente demais para um dia de agosto.
— Isso é importante. Todos nós queremos estar aqui. — Ellen anda com
um balanço exagerado nos passos, porque Isaac, nove meses, começa a ficar
agitado.
Ele quer engatinhar. A viagem foi longa. Todas as nossas viagens são
longas, já que vamos de carro a todos os lugares. Ainda não perdi a
esperança de fazê-la entrar em um avião sem dopá-la com as minhas
misturas.
Um dia. Espero.
— Não precisam subir comigo — Harrison avisa quando nos
aproximamos da entrada.
É claro. Vinte e uma horas de estrada nesse calor, só para falar “Tchau, a
gente se vê no dia de Ação de Graças”.
— Telefona. Estuda bastante. Encontra uma garota legal, mas não antes do
último ano. E não esquece, você está aqui para aprender, mas nesse caminho,
muitos alunos também vão aprender com você. Seja legal. Seja generoso.
Seja feliz. — Elle abraça Harrison.
Ele corresponde sem hesitar.
— Tchau, amigão. — Ele abraça Isaac também.
— Telefona a cada duas semanas. Estuda mais do que acha que precisa.
Não estou pagando para você ser reprovado. Encontre uma garota legal para
perder a virgindade e poder se concentrar nos estudos, não nas bolas duras.
Não esquece, você está aqui para ter bons resultados, e outros alunos vão se
sentir ameaçados por você. Ignora todo mundo. Seja forte. Seja legal. Seja
responsável e use camisinha. — Abraço Harrison, que revira os olhos.
— Harry... — Aria acorda e esfrega os olhos.
— Oi, Raio de Sol. — Ele a pega de mim.
— Graças a Deus!
— Vou sentir saudade de você. Mas fica longe do meu quarto.
Ela assente, olhando para ele como se fosse seu ídolo.
— Tchau. — Aria faz biquinho.
Ele torce o nariz e beija sua bochecha. E como sempre, ela dá um jeito de
transformar o beijo em selinho. Harrison limpa a boca.
Ela ri.
Ele a põe no chão e pendura bolsas e violão nos ombros.
— O resto das suas coisas deve chegar hoje à tarde — aviso. — E não
esquece de ligar para sua avó Sandy. Ela está esperando para saber se já se
acomodou no dormitório.
Ele balança a cabeça, concordando.
— Tchau.
Assim que ele se vira, uma senhora com um crachá de identificação
pendurado em um cordão sorri para ele.
— Bem-vindo a Julliard. Precisa de ajuda para encontrar seu quarto?
Almoçamos e terminamos as quatro horas de viagem, que acabam virando
cinco, para Cape Cod.
— Barco! Papai! Quero andar de barco. — Aria pula do carro e corre para
Jon, que está subindo a encosta do píer.
Ele abre os braços, sempre encantado com a neta favorita. A única pessoa
que ela domina com mais facilidade que eu.
— Duas semanas. — Ellen sorri, esfregando o nariz na bochecha gorda de
Isaac. — Duas semanas inteiras em Cape Cod. Mamãe vai fazer massagem e
pedicure. Oba!
Olho para trás para ter certeza de que Jon e Aria não podem me ouvir.
— Papai vai dar uma. Várias. Enquanto o vovô e a namorada mais nova
levam Aria e Isaac à praia. Oba!
Ellen revira os olhos.
— Está calor aqui. Vamos entrar. Cora fez limonada e chá gelado.
— Como ela está? — Ellen pergunta, tentando não parecer invasiva.
Quando contratou Cora para fazer o trabalho da casa para Jon depois que
os pais dele faleceram, ela não esperava que a jovem também esquentasse a
cama para ele, principalmente por ela ser apenas cinco anos mais velha que
Ellen.
— Ah, tudo bem. Ela me mantém jovem.
Elle olha para mim com a testa franzida quando o seguimos para dentro da
casa.
— E você diz que eu faço cara feia. Devia estar feliz por ele.
— Você é homem.
Sou. E Cora é falsa demais para o meu gosto. Quando falo falsa, eu me
refiro principalmente aos seios grandes e empinados. Mas se Jon tiver um
infarto e morrer com a cara enfiada neles, vamos ter que acreditar que ele
morreu feliz.
— Elle! Flint! — Cora se aproxima balançando os peitos grandes demais.
Elle abraça Isaac para evitar o choque. Depois o entrega rapidamente para
mim, antes que ela me abrace.
Boa jogada, garota.
Elle sorri.
— Dá ele aqui. — Cora pega Isaac dos meus braços e a sacola de fraldas
do ombro de Elle. — Vou trocar a fralda dele e dar um lanche saudável para
Aria. Vocês dois, subam e se acomodem. Aproveitem um pouco antes do
jantar. — Ela pisca.
Gosto de Cora. Não sei qual é o problema da Elle com ela.
— Não. Eles vão sair. — Jon pisca para Cora.
— Ah! É verdade, vamos cuidar das crianças, e vocês podem passar a
noite fora.
— Sozinhos? — Levanto uma sobrancelha. — Como assim?
Elle não consegue disfarçar o sorriso. Ela sabe que é verdade.
— Flint, vem comigo. — Meu pai o leva para a suíte master.
— E você, vem comigo. — Cora segura o braço de Ellen e a leva escada
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