Perversão e Neurose Obsessiva Notas Comparativas 2
Perversão e Neurose Obsessiva Notas Comparativas 2
Perversão e Neurose Obsessiva Notas Comparativas 2
Em 1905, nos Três Ensaios sobre a preender a lógica dos métodos utiliza-
Teoria da Sexualidade, Freud fez uma dos pelos inquisidores da Idade Média.
afirmação que viria a se tornar clássica E confessava estar sonhando com uma
na psicanálise: as neuroses são, por as- religião demoníaca primitiva, com ritos
sim dizer, o negativo das perversões praticados em segredo (p.228). Ao pro-
(p.168). Partindo deste axioma, o foco ceder assim, seu intento teórico era
do presente trabalho será a comparação mostrar que, nas perversões, estamos
de certos aspectos da neurose obsessiva diante de algo como um remanescente
com a perversão, procurando desenvol- de um culto sexual primitivo, semelhan-
ver uma linha de raciocínio proposta se- te ao que acontecia outrora numa reli-
paradamente por Guy Rosolato (1967) gião do Oriente semita (Moloch e
e Janine Chasseguet-Smirgel (1984). Astarte). Foi esta idéia, que precedia
Na carta de 24 de janeiro de 1897 a toda a sistematização teórica sobre a
Fliess (Masson, 1986), Freud mostrava perversão em sua obra, que veio a inspi-
interesse pelo simbolismo das bruxas, rar Rosolato (1967) e Chasseguet-
especialmente em sua ligação com o Smirgel na caracterização que fizeram da
universo anal. Dizia estar interessado em perversão e, para além disso, na sua com-
ler o Malleus Maleficarum1 a fim de com- paração com a neurose obsessiva.
Antes de prosseguirmos nos detalhes
1 O Malleus Maleficarum (Martelo das bruxas), escrito por dessa comparação, todavia, convém
Kramer & Sprenger e publicado em 1484, tornou-se uma
obra célebre da doutrina demonista. Serviu de instrumento lembrar ainda mais uma passagem de
para a orientação dos inquisidores, ensinando-lhes a Freud. Em 1907, no texto Atos Obses-
detectar os possuídos pelo demônio ou quem com ele
compactuava (Pessotti, 1994). sivos e Práticas Religiosas, ele deixou
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Perversão e neurose obsessiva: notas comparativas
uma outra afirmação axiomática, emiti- a gnose assim como a neurose obsessiva está
da em estilo metafórico, e que talvez só para uma religião de tradição ritualizada
não tenha se tornado tão célebre quan- (p.39). A segunda, da autoria de Janine
to a primeira por ser uma fórmula me- Chasseguet-Smirgel (1984) diz o seguin-
nos abrangente, aplicável apenas a uma te: Se a neurose obsessiva é uma religião
das ramificações nosográficas das psico- privada, a perversão é, então, o equiva-
neuroses. Ele dizia que a neurose obses- lente de uma religião do Diabo (p.216).
siva parece uma caricatura, ao mesmo tem- Ambos os autores, retomando
po cômica e triste, de uma religião particu- Freud, comparam a neurose obsessiva a
lar (p.123). Ou, como foi dito de modo uma religião e fazem da perversão, nes-
mais explicativo e abrangente no mes- se sentido, seu oposto. Rosolato confron-
mo trabalho, podemos atrever-nos a con- ta essas duas categorias explorando a
siderar a neurose obsessiva como o correlato oposição entre religião e gnose. Já
patológico da formação de uma religião, Chasseguet-Smirgel busca, para falar da
descrevendo a neurose como uma religiosi- mesma oposição entre perversão e neu-
dade individual e a religião como uma neu- rose obsessiva, a antítese entre religião
rose obsessiva universal (p.130). do Diabo alusão que, de certo modo,
Essa comparação da neurose obses- pode endereçar-se também à gnose e
siva com a religião se fazia em razão do a religião propriamente dita, suposta-
cerimonial que se verifica tanto na mente de Deus.
sintomatologia daqueles que sofrem de A história das religiões mostra como
afecções nervosas como nas práticas foi difícil para o cristianismo impor-se
pelas quais o crente expressa sua devo- perante as seitas gnósticas que rema-
ção (p.121). Em ambos os casos os ce- nesciam da tradição grega, entre outras.
rimoniais obedecem a leis, sejam gerais Freud (1913) diz, em Totem e Tabu,
ou particulares. Quer nos rituais neuró- que quando o cristianismo pela primeira
ticos, quer nos atos sagrados, observam- vez penetrou no mundo antigo, defrontou-
se proibições compulsivas e fortes escrú- se com a competição da religião de Mitras2
pulos de consciência (sentimento de e, durante algum tempo, houve dúvida em
culpa). Além do mais, também em am- relação a qual das duas divindades alcan-
bos os casos, os atos levados a cabo são çaria a vitória (p.182). Sabemos por
prenhes de um sentido simbólico que outras fontes que, de fato, muitas bar-
expressa a experiência psíquica daquele reiras tiveram de ser erguidas contra as
que os realiza. Via de regra, a força da tendências gnósticas. E, grosso modo, seu
pulsão recalcada é vivida como uma ten- correlato no plano ontológico seriam as
tação perigosa, contra a qual o sujeito barreiras contra a sexualidade e a agres-
deve cercar-se de medidas de proteção. Na são que o homem civilizado e, a fortiori,
neurose obsessiva os sintomas ações o neurótico obsessivo teve de erigir.
obsessivas são, assim, uma formação Trata-se das medidas protetoras de que
cujo objetivo é conciliar moções pulsio- Freud (1896) já se dera conta nos No-
nais antagônicas, vividas como forças
que induzem a atos contraditórios.
2 O deus Mitras era representado nas esculturas,
Pois bem, nosso ponto de partida sozinho, matando um touro. Isto chamou a
serão duas afirmações um tanto emble- atenção de Freud (1913), que vinha pensando que
a civilização teria tido início no assassinato do pai
máticas que recuperam, de certa manei- primevo pelo conjunto dos filhos. Freud deduz,
ra, o teor das sentenças freudianas. A então, que aquelas imagens de Mitras deveriam
simbolizar um filho sozinho sacrificando o pai,
primeira delas foi feita por G. Rosolato redimindo assim os irmãos da co-autoria deste
(1967): Parece que a perversão está para assassinato (p.182).
O tocar, que assume um caráter im- tório o pensamento ocupa uma parte do
pulsivo na perversão, é, pois, sujeito a funcionamento humano antes totalizado
inibições e proibições na neurose obses- no ato, assim como na criança parte do
siva. Transforma-se em tabu. Um paci- princípio do prazer cede lugar ao prin-
ente perverso que tive7 contava-me de cípio de realidade. E no neurótico, par-
sua especial predileção pela prática se- ticularmente no obsessivo, completa
xual com mecânicos e borracheiros su- Freud, o pensamento pode se constituir
jos de graxa, com o intuito de ver de- como um substituto completo do ato.
pois, em seu próprio corpo e em sua rou- Por esta razão, talvez seja impreciso, sob
pa, as marcas de sujeira. Estas eram lem- o ponto de vista teórico, designar com o
brança e prova do contanto físico entre mesmo termo o ato e a ação obsessiva.
os corpos8 . Já um outro paciente, que Se o pensamento substitui e se contra-
apresentava aspectos obsessivos bem põe ao ato, o neurótico obsessivo é aque-
claros, sempre que recebia seu carro das le que não atua (acts-out); pelo contrá-
mãos de manobristas, costumava passar rio, ele vive à margem do ato, domina-
uma flanela no volante antes de ali en- do pelo processo do pensamento. Seu
costar suas mãos, pois sentia repulsa pela ato seria, então, um ato psíquico, es-
sujeira que eles ali haviam deixado. O truturalmente diferente do acting-out.
desejo do contato tocar homossexu- Freud (1909) busca caracterizar as es-
al é patente em ambos os casos, mas o truturas obsessivas exatamente pelo
ato dele decorrente assume aspectos pensar obsessivo: elas seriam desejos,
opostos. Freud (1926) associou o meca- tentações, impulsos, reflexões, dúvidas,
nismo defensivo do isolamento, peculiar ordens ou proibições (p.223). Portan-
à neurose obsessiva, ao tabu de tocar, isto to, há que se distinguir o estatuto da
é, entrar em contato corporal seja ação obsessiva do ato perverso.
agressivo ou sensual com o objeto. O ato propriamente dito, que pres-
Como defesa psíquica, o isolamento im- supõe a insuficiência do processo de pen-
pede que idéias se toquem. samento, estaria presente, então, na per-
O tocar é, por excelência, ato. E no versão e nas formas de psicopatologia
princípio foi o ato, diz Freud (1913, afins, em que o caráter impulsivo pre-
p.191) em Totem e Tabu, parodiando domina. Otto Fenichel é um autor que
o livro do Gênesis que diz que no prin- se preocupou com esta distinção, pos-
cípio foi o Verbo. No processo civiliza- tulando uma diferença estrutural entre
o fenômeno da compulsão e o da
impulsão. Apesar de o perverso e o ob-
7 Este caso está narrado tanto em meu livro sessivo sentirem-se compelidos a reali-
Perversão (Ferraz, 2002) quanto no artigo A zar ações, a maneira com que experi-
possível clínica da perversão (Ferraz, 2000).
8 Exemplifico o tocar, neste caso, como operação mentam seus impulsos é diferente, e a
de profanação, em razão da história do paciente, esta diferença manifesta entre impulsão
que não cabe ser aqui relatada em detalhes. e compulsão deve corresponder uma di-
Apenas gostaria de marcar o fato de que, na
infância, sua mãe o obrigava a vestir-se de branco ferença estrutural entre as duas forma-
quando ele saía para brincar na vila em que ções psicopatológicas. Fenichel (1945)
morava; ela exigia ainda que ele não sujasse sua afirma que enquanto o neurótico obses-
roupa, que permanecesse imaculado. Ao dar
relevo ao caráter de profanação, entretanto, não sivo sente-se forçado a fazer uma coisa
quero negligenciar um nível mais regredido do que não gosta de fazer, ou seja, é compe-
sintoma do paciente perverso, expresso pela lido a usar a sua volição contra os seus
importância da sensorialidade cutânea (Ahumada,
1999) no reasseguramento egóico obtido por meio próprios desejos, o perverso, por sua
do tocar. vez, sente-se obrigado a gostar de uma
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Perversão e neurose obsessiva: notas comparativas
gem, uma restrição para o ego, ele passa lutavelmente à tona. Mas isto não é o
a representar uma satisfação, em razão mesmo que um ato agressivo ou assassi-
da tendência do ego à síntese. É eviden- no desfechado contra o objeto. O sinto-
te, no entanto, que o sintoma é uma rea- ma obsessivo, portanto, aproxima-se da
lização simbólica do desejo, privada do satisfação da hostilidade ou das moções
caráter francamente sexual (de descar- pulsionais sádico-anais apenas de modo
ga) do perverso. Portanto, o resultado assintótico. Seu movimento em direção
final deste processo é um ego extrema- ao ato bem poderia ilustrar o paradoxo
mente restringido, que fica reduzido a pro- de Zenão, segundo o qual há sempre
curar satisfação nos sintomas (p.141). uma outra metade do caminho a ser per-
No ato obsessivo, a semente da corrida... E é precisamente esta lei do
desobediência se oculta sob a defesa. Na funcionamento neurótico, quando jus-
religião de tradição ritualizada este tra- taposta ao funcionamento do perverso,
ço, como lembrança inconsciente de sua que nos dá a medida da diferença estru-
etapa gnóstica, também está presente, tural entre as formações psíquicas de-
na figura da tentação, que, de acordo com
correntes do recalque e aquelas decor-
Chasseguet-Smirgel (1984) é o germe da
rentes da recusa. ϕ
substituição da efusão pela separação, do
sentimento oceânico pela interdição moral
(p.237). Ora, é exatamente a gnose que
Abstract
desenvolve esta tendência à tentação.
Para encerrar, poderíamos nos inda- This paper focuses on the comparison
gar se na neurose obsessiva, afinal, a between certain aspects of obsessive
sexualização da defesa e a vazão da hos- neurosis and perversion. It aims at develo-
tilidade ao objeto verificadas em sua ping a line of thought proposed separately
cronificação nos permitiriam pensar que by Guy Rosolato and Janine Chasseguet-
estaríamos, enfim, diante do ato (acting), Smirgel: the former states that perversion
contrariando a distinção proposta entre relates to gnosis like obsessive neurosis re-
o ato na perversão e a ação obsessiva. lates to a religion of ritualized tradition;
Contudo, penso que não, pois ainda que the latter poses the following comparison:
o sexual e o hostil extravasem no sinto- If obsessive neurosis is a private religion,
ma, sua manifestação não é direta, per- then perversion is equivalent to a Devil
manecendo simbolizada sob o recalque. religion. The conclusion is that the
E, como enfatiza Freud (1926), a vida obsessive symptom, unlike the characteristic
sexual do obsessivo segue restrita, sen- acting of perversion, only approaches the
do o prazer fruído, de um modo prejudi- satisfaction of hostility or the anal-sadistic
cado, pela via do sintoma. drive in an asymptotic way. It is also
Quando o terrível não se insinua- concluded that this law of neurotic opera-
va quase autônomo na oração que o tion, when superimposed on to perverse
Homem dos Ratos fazia, transforman- operation, provides the just measure of the
do o Deus o proteja em Deus não o structural difference between psychic
proteja 9 , a intenção hostil vinha ine- formations resulting from repression and
from disavowal.
9 Freud (1909), no caso do Homem dos Ratos, relata
que seu paciente havia inventado uma complicada
oração, que podia chegar a ter uma hora e meia de
duração, porque em uma certa ocasião julgara que algo
estranho (um não) se inseria em suas preces, dando-
lhes um sentido oposto. Sua intenção inconsciente, que
havia sido reprimida, escapava, portanto, por meio
daquilo que lhe parecia uma intrusão estranha.