Crimes Contra A Liberdade e A Autodeterminação Sexual Dos Menores

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CRIMES CONTRA A LIBERDADE

E A AUTODETERMINAÇÃO SEXUAL DOS MENORES1

MARIA JOÃO ANTUNES2

Sumário: A evolução legislativa em matéria de crimes contra a liberdade e a autodetermi-


nação sexual dos menores. Evolução marcada por um direito penal nacional condicionado por ins-
trumentos europeus e internacionais e por opções “político-criminalmente correctas”.

1. Se olharmos para o passado, a conclusão só pode ser a de que


foram dados passos de gigante invocando a protecção penal da liberdade e
da autodeterminação sexual dos menores.
O princípio complementar da universalidade, em matéria de regras de apli-
cação da lei penal no espaço, estendeu-se a crimes que atentam contra a liber-
dade e a autodeterminação sexual dos menores (artigo 5.º, n.º 1, alíneas c)
e d), do Código Penal [CP]). Passou a admitir-se, nesta matéria, a respon-
sabilidade criminal das pessoas colectivas e entidades equiparadas, com
excepção do Estado, de outras pessoas colectivas públicas e de organizações
internacionais de direito público (artigo 11.º, n.º 2, do CP). Nos crimes con-
tra a liberdade e autodeterminação sexual de menores, o procedimento criminal
deixou de se extinguir, por efeito de prescrição, antes de o ofendido perfazer
23 anos (artigo 118.º, n.º 5, do CP). A regra da natureza semi-pública dos
crimes sexuais contra menores foi limitada através da possibilidade dada ao
Ministério Público de dar início ao procedimento se o interessa da vítima
menor o impusesse, acabando mesmo por ser substituída pela regra da natu-
reza pública dos mesmos (artigo 178.º do CP, na redacção do Decreto-Lei
n.º 48/95, de 15 de Março, e das Leis n.os 65/98, de 2 de Setembro, e 99/2001,
de 25 de Agosto, e na redacção vigente). Passou a prever-se, expressa-

1 O texto corresponde, no essencial, à intervenção nas Jornadas de Direito Penal — Crimes no


seio da família e sobre menores, que tiveram lugar em Ponta Delgada nos dias 7 e 8 de Maio
de 2010.
Felicito o Governo Regional dos Açores, a Associação Sindical do Juízes Portugueses e os
Organizadores, Senhores Drs. Moreira das Neves e Pedro Soares de Albergaria, a quem
saúdo de forma particular por terem saído do gabinete e da sala de audiências.
2 Professora da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra e Juíza Conselheira do Tri-
bunal Constitucional.

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mente, a pena acessória de proibição do exercício de profissão, função ou acti-


vidade que impliquem ter menores sob responsabilidade, educação, trata-
mento ou vigilância e aumentou-se o limite máximo de duração da pena aces-
sória de inibição do poder paternal (artigo 179.º do CP).
No processo penal, os crimes contra a liberdade e a autodeterminação
sexual de menores passaram a ter tratamento específico em matéria de decla-
rações para memória futura e de suspensão provisória do processo (arti-
gos 271.º, n.º 2, e 281.º, n.º 7, do Código de Processo Penal [CPP]), apli-
cando-se-lhes as especificidades processuais dos crimes contra a liberdade e
a autodeterminação sexual, em matéria de publicidade do processo e de
declarações para memória futura (artigos 87.º, n.º 3, 88.º, n.º 2, alínea c),
271.º e 294.º do CPP). E passaram a beneficiar da circunstância de as dele-
gações e os gabinetes médico-legais do Instituto Nacional de Medicina Legal
poderem receber denúncias de crimes, no âmbito da actividade pericial que
desenvolvam (artigo 4.º da Lei n.º 45/2004, de 19 de Agosto).

2. Merece, porém, um especial destaque, sem qualquer dúvida, a alte-


ração no sentido de o menor ofendido — ele próprio — ter passado a ser visto
como o titular dos interesses que a lei especialmente quis proteger com as incri-
minações, à qual correspondeu uma nova inserção sistemática dos deno-
minados “crimes sexuais” e uma nova terminologia na descrição típica dos
mesmos.
Estes crimes deixaram de estar inseridos nos Crimes contra os funda-
mentos ético-sociais da vida social (nos Crimes contra valores e interesses da
vida em sociedade). E mais longinquamente nos Crimes contra a honestidade.
Passaram a integrar os crimes contra as pessoas, especificamente enquanto
crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual, autonomizando-se a
criança, o menor, enquanto vítima destes crimes, abrindo-se o direito penal do
bem jurídico da liberdade e da autodeterminação sexual a opções político-cri-
minais neocriminalizadoras em áreas como, por exemplo, a da pornografia
infantil. Deixando de constar da descrição típica expressões como “mulher
honesta”, “mulher virgem”, “viúva honesta”, “fim desonesto”, “paixões lasci-
vas”, “promessa séria de casamento”, “atentado ao pudor”, “sentimentos gerais
de moralidade sexual”, “capacidade para avaliar o sentido moral da cópula” e,
a não menos significativa, “desencaminhar menor”3.
O direito penal sexual evoluiu no sentido de deixar de ser “um direito tute-
lar da ‘honestidade’, dos ‘costumes’ ou dos ‘bons costumes’ — e onde por isso
caberia a punibilidade de práticas sexuais que, à luz dos ‘sentimentos gerais
de moralidade sexual’, devessem ser consideradas ‘desviadas’, ‘anormais’,

3 Sobre esta evolução, com referências bibliográficas, MARIA JOÃO ANTUNES, “Crimes contra
menores: incriminações para além da liberdade e da autodeterminação sexual”, Boletim da
Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, vol. LXXXI, 2005, pp. 57 e ss. Mais
recentemente, cf. ANA RITA ALFAIATE, A Relevância Penal da Sexualidade dos Menores, Coim-
bra Editora, 2009, pp. 26 e ss.

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‘viciosas’ ou ‘contra a natureza’: numa palavra ‘imorais’ (a homossexualidade


e a prostituição incluídas) —, para se tornar num direito tutelar de um bem jurí-
dico perfeitamente definido e que reentra, de pleno direito, no capítulo contra
as pessoas: o bem jurídico da liberdade e autodeterminação da pessoa na
esfera sexual”. Afirmando-se, consequentemente, a proposição político-criminal
segundo a qual “em caso algum constitui crime a actividade sexual levada a
cabo em privado por adultos que nela consentem”4.
Esta evolução conheceu em 1995 o momento mais significativo, mas
não deixou de se sentir depois desta data. Disso mesmo é expressão a
supressão, no âmbito do crime de lenocínio de menores, das modalidades de
acção de fomentar, favorecer ou facilitar a prática de actos sexuais de relevo
por parte de menor entre 14 e 16 anos de idade, bem como a eliminação do
tipo legal de crime de Actos homossexuais com adolescentes, exigindo-se
consequentemente o abuso da inexperiência da vítima com mais de 14 anos
e menos de 16 anos de idade, relativamente à prática quer de actos sexuais
de relevo heterossexuais quer de actos sexuais de relevo homossexuais (arti-
gos 175.º e 173.º do CP, na redacção da Lei n.º 59/2007, de 4 de Setembro)5.

3. Na evolução legislativa em matéria de “crimes sexuais” contra meno-


res mostram-se, de forma privilegiada, as tendências actuais do direito penal.

4 Cf. FIGUEIREDO DIAS, Direito Penal. Parte Geral. Questões Fundamentais. A Doutrina Geral
do Crime, Coimbra Editora, 2004, p. 118, e Comentário Conimbricense do Código Penal.
Parte Especial, tomo I, Coimbra Editora, 1999, Nótula antes do artigo 163.º, § 3. Sobre o
objecto de protecção do direito penal sexual, nomeadamente atenta toda a discussão doutrinal
gerada em torno de documentos como o Wolfenden Report inglês, de 1957, o Model Penal
Code americano, de 1962, o Projecto Governamental alemão, de 1962, e o Projecto Alternativo
alemão, de 1968, cf. KARL PRELHAZ NATSCHERADETZ, O direito penal sexual: conteúdo e limi-
tes, Almedina, 1985, pp. 89 e ss. e, especialmente, pp. 22 e ss. e 123 e ss.
5 A incriminação vinha sendo criticada pela doutrina: MOURAZ LOPES, “Os Crimes Contra a
Liberdade e Autodeterminação Sexual no Código Penal, após a Revisão de 1995, Coimbra
Editora, 1995, p. 67, TERESA PIZARRO BELEZA, “A revisão da Parte especial na reforma do
Código Penal: legitimação, reequilíbrio, privatização, «individualismo»”, Jornadas Sobre a
Revisão do Código Penal, Associação Académica da Faculdade de Direito de Lisboa, 1998,
pp. 91 e s., e “Sem Sombra de Pecado. O Repensar dos Crimes Sexuais na Revisão do
Código Penal”, Jornadas de Direito Criminal. Revisão do Código Penal I, Centro de Estudos
Judiciários, Lisboa 1996, p. 181, JORGE DIAS DUARTE, “Homossexualidade com menores.
Artigo 175.º do Código Penal”, Revista do Ministério Público, Ano 20, n.º 78, 1999, pp. 106
e s., e MARIA JOÃO ANTUNES, Comentário Conimbricense do Código Penal. Parte Especial,
tomo I, Coimbra Editora, 1999, artigo 175.º, §§ 4 e s. Deve também salientar-se que o
Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 247/2005 julgou inconstitucional, por violação dos arti-
gos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição, a norma do artigo 175.º do Código Penal, na
parte em que pune a prática de actos homossexuais com adolescentes mesmo que se não
verifique, por parte do agente, abuso da inexperiência da vítima (Diário da República, II Série,
27 de Outubro de 2005); e que o Acórdão n.º 351/2005 do mesmo Tribunal julgou inconsti-
tucional, por violação dos artigos 13.º, n.º 2, e 26.º, n.º 1, da Constituição, a norma do
artigo 175.º do Código Penal, na parte em que pune a prática de actos homossexuais com
adolescentes mesmo que se não verifique, por parte do agente, abuso da inexperiência da
vítima e na parte em que na categoria de actos homossexuais de relevo se incluem actos
sexuais que não são punidos nos termos do artigo 174.º do mesmo Código (Diário da Repú-
blica, II Série, 20 de Outubro de 2005).

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Nomeadamente de um direito penal nacional que em opções político-criminais


fundamentais é determinado (condicionado) por compromissos assumidos ao
nível europeu e internacional.
Por um lado, a União Europeia passou a intervir em matéria penal atra-
vés de decisões-quadro do Conselho. Através de um instrumento normativo
que confronta as jurisdições nacionais com a jurisdição da União de uma
forma até então estranha à administração da justiça penal, criando interroga-
ções novas. Por exemplo, em matéria de validade jurídico-europeia da deci-
são-quadro, de conformidade jurídico-europeia da lei de transposição, por
referência à decisão-quadro, e em matéria de conformidade constitucional da
lei de transposição. Bem se podendo afirmar que “o novo n.º 4 do art. 8.º,
introduzido pela LC n.º 1/2004 (6.ª Revisão Constitucional), é uma das mais
importantes alterações alguma vez introduzidas no sistema das fontes de
direito do ordenamento jurídico-constitucional português e, mesmo, uma das
mais importantes alterações constitucionais desde a origem da CRP”6.
Por outro lado, passou a haver um certo aproveitamento político — alheio
a considerações político-criminais — dos instrumentos de direito europeu e inter-
nacional. Tais instrumentos acabam mesmo por ser “úteis” ao legislador
nacional e por servir propósitos neo-criminalizadores nacionais, indo além da
vinculação mínima do Estado ou indo mesmo além da vinculação máxima. Os
exemplos, que nos permitem recusar a inevitabilidade de algumas alterações
legislativas mais recentes, são vários:
Por referência ao artigo 176.º do CP, saliente-se que o artigo 3.º, n.º 2,
alíneas a), b) e c), da Decisão-Quadro relativa à luta contra a exploração
sexual de crianças e a pornografia infantil, de Dezembro de 2003, prevê
expressamente que os Estados-Membros podem isentar de responsabilidade
criminal os comportamentos associados à pornografia infantil que envolvam pes-
soas reais com aspecto de criança, no caso de a pessoa que parece ser
uma criança ter efectivamente 18 anos ou mais na altura em que a imagem
foi fixada; que envolvam crianças reais ou pessoas reais com aspecto de
crianças, tratando-se de produção e posse de imagens unicamente para uso
pessoal, quando as crianças tenham alcançado a maioridade sexual, se essas
imagens forem produzidas e possuídas com o consentimento das crianças; que
envolvam imagens realistas de crianças não existentes, se se provar que o pro-
dutor produz e possui o material pornográfico unicamente para seu uso pes-
soal. Ainda por referência ao mesmo artigo 176.º, note-se que a Convenção
sobre o Cibercrime, foi aprovada por Resolução da Assembleia da República
de 15 de Setembro de 2009 e ratificada por Decreto do Presidente da Repú-
blica da mesma data, sem que fosse formulada qualquer reserva ao artigo

6 Cf. GOMES CANOTILHO/VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, volume I,


Coimbra Editora, 2007, anotação ao artigo 8.º, pontos XIV e ss. Sobre isto, também PEDRO
CAEIRO, Fundamento, conteúdo e limites da jurisdição penal do Estado: o caso português, dis-
sertação para doutoramento pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, 2007,
Parte I, 2.º Capítulo, § 3.

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sobre infracções relativas à pornografia infantil (artigo 9.º). Designadamente,


o Estado português enquanto Parte não se reservou quer o direito de não apli-
car as disposições de acordo com as quais devem ser classificadas como
infracções penais as condutas que consistam na obtenção para si ou para outra
pessoa de pornografia infantil através de um sistema informático ou na posse
de pornografia infantil num sistema informático ou num dispositivo de arma-
zenamento de dados informáticos, quer o direito de não aplicar os preceitos
segundo os quais a expressão “pornografia infantil” deverá abranger todo o
material pornográfico que represente visualmente uma pessoa com aspecto de
menor envolvida em comportamentos sexualmente explícitos e imagens rea-
listas de um menor envolvido em comportamentos sexualmente explícitos.
Tão-pouco o Estado português impôs um limite de idade inferior a 18 anos,
não obstante tal ser expressamente admissível até aos 16 anos (artigo 9.º,
n.º 3).
Por referência aos tipos incriminadores que passaram a abranger meno-
res até aos 18 anos (artigos 174.º, 175.º e 176.º do CP), note-se, ainda, que
é a própria Decisão-Quadro relativa à luta contra a exploração sexual de
crianças e a pornografia infantil que aponta no sentido de uma ponderação de
diferentes graus do desenvolvimento da personalidade do menor no que se
refere à esfera sexual, ao apelar ao critério da “maioridade sexual nos termos
do direito nacional” (cf. alínea b) do n.º 2 do artigo 3.º e alíneas b) e c) do n.º 2
do artigo 5.º), não obstante definir “criança” como qualquer pessoa com menos
de 18 anos de idade (alínea a) do artigo 1.º).

4. Na evolução legislativa em matéria de “crimes sexuais” contra meno-


res mostra-se também a tendência actual de um direito penal do bem jurídico
que é, afinal, permeável a criminalizações alheias ao critério da dignidade
jurídico-penal e da carência (necessidade) de tutela do bem jurídico, servindo
mesmo opções não propriamente político-criminais, mas antes apenas “polí-
tico-criminalmente correctas”.

4.1. É o ocorre com incriminações em que se perde a referência ao


bem jurídico individual da liberdade e da autodeterminação sexual dos meno-
res. Concretamente as que se referem a actos sexuais de relevo com ado-
lescentes, ao recurso à prostituição de menores, ao lenocínio de menores
não agravado e à pornografia de menores (artigos 173.º, 174.º, 175.º e 176.º
do CP).
Genericamente, na medida em que tais incriminações abrangem meno-
res com idade superior a 14 ou 16 anos. Especificamente: no que se refere
à incriminação de actos sexuais de relevo com adolescentes, pelo menos
quando estes actos não consistam em cópula, coito oral, coito anal ou intro-
dução vaginal ou anal de partes do corpo ou objectos; em relação ao recurso
à prostituição de menores entre 14 e 18 anos de idade, na medida em que
se vai além da tutela assegurada pela incriminação do abuso sexual de crian-
ças, do abuso sexual de menores dependentes e dos actos sexuais com

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adolescentes (artigos 171.º, 172.º e 173.º do CP); relativamente à pornogra-


fia de menores, face a certas modalidades de acção deste crime, como por
exemplo, a mera detenção de fotografia, filme ou gravação pornográficos e a
produção, distribuição, importação, exportação, divulgação, exibição ou cedên-
cia, a qualquer título ou por qualquer meio, de fotografia, filme ou gravação
pornográficos com representação realista de menor (artigo 176.º, n.os 3 e 4,
do CP).
Quanto a estas incriminações a questão que, em definitivo, cumpre escla-
recer é a de saber se ainda estamos perante comportamentos com digni-
dade jurídico-penal e carecidos de tutela penal. Ainda que o bem jurídico seja
então um bem jurídico supraindividual — por exemplo, o bem jurídico emer-
gente da infância e da juventude7 —, o que, de todo o modo, não deixa de
nos fazer duvidar da bondade da inserção sistemática das incriminações.
Ou se estamos antes perante incriminações que não respeitam o crité-
rio da dignidade jurídico-penal e da carência de tutela do bem jurídico. Com
a certeza de que a legitimidade da intervenção penal num Estado de direito
democrático não pode alicerçar-se no bem “pouco laico” da moralidade pública
ou dos bons costumes ou ter como alvo um determinado tipo-de-autor, ao qual
seja “declarada guerra”. Nem tão-pouco pode fundar-se directamente na dig-
nidade da pessoa humana8. Como chama a atenção Figueiredo Dias, “o pior
serviço que pode prestar-se ao primeiro e mais elevado princípio de toda a
ordem jurídica democrática — o do respeito intocável pela eminente digni-
dade da pessoa — é, em matéria penal, invocá-lo como princípio prescritivo
dotado de um conteúdo fixo, imutável e apto à subsunção e como tal ime-
diatamente aplicável a concretas situações da vida. Não é essa a natureza
do princípio, como não é essa a função de que surge investido em matéria
penal; antes sim a de se erguer como um veto inultrapassável a qualquer
actividade do Estado que não respeite aquela dignidade e, deste modo, antes
que como fundamento, como limite absoluto da intervenção estadual”9.
A desconsideração do bem jurídico individual da liberdade e da autode-
terminação sexual revela-se também na natureza pública dos crimes pratica-
dos contra menores. A anterior natureza semi-pública permitia uma selecção,
por parte do ofendido ou de outras pessoas, dos casos que comportavam, de

7 Assim, ANA RITA ALFAIATE, ob. cit., pp. 88 e ss., relativamente a certos comportamentos, por
referência aos artigos 69.º e 70.º da Constituição da República Portuguesa.
8 Sobre isto, GIOVANNI COCCO, “Puo costituire reato la detenzione di pornografia minorile?”,
Rivista Italiana di Diritto e Procedura Penale, 2006, pp. 862 e ss., e ALBERTO CADOPPI, Com-
mentario delle norme contro la violenza sessuale e contro la pedofilia, CEDAM, 2006, pp. 41
e ss. Entre nós, COSTA ANDRADE, “Bruscamente no Verão Passado”, a reforma do Código de
Processo Penal. Observações críticas sobre uma Lei que podia e devia ter sido diferente,
Coimbra Editora, 2009, p. 34, MARIA JOÃO ANTUNES, “Crimes contra a liberdade e a autode-
terminação sexual de menores”, Revista do CEJ, 1.º semestre 2008, número 8 (especial),
pp. 208 e ss.
9 “O «direito penal do bem jurídico» como princípio jurídico-constitucional. Da doutrina penal,
da jurisprudência constitucional portuguesa e das suas relações”, XXV Anos de Jurispru-
dência Constitucional Portuguesa, Coimbra Editora, 2009, p. 41.

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facto, uma ofensa à liberdade e autodeterminação sexual dos menores, face


a uma opção político-criminal que protegia de forma absoluta menores de
14 anos de idade (artigo 172.º, na redacção anterior), menores dependentes
entre 14 e 18 anos idade (artigo 173.º, na redacção anterior) e menores
entre 14 e 16 anos de idade relativamente a actos homossexuais de relevo
(artigo 175.º, na redacção anterior).

4.2. O discurso que tem levado à crítica fácil de determinadas normas


penais, por um lado, e à introdução de novas normas, por outro, tem-se ali-
cerçado em opções que são certamente, e tão-só, opções “político-criminal-
mente correctas”, as quais têm eco fácil numa opinião pública que tem sido
chamada a “legislar em matéria penal”10.
São de notar, por exemplo, as críticas dirigidas ao n.º 3 do artigo 30.º
do CP, em matéria de crime continuado, quando o preceito se limitou a dar
letra de lei a determinado entendimento doutrinal e jurisprudencial, sem tocar
nos pressupostos de verificação da figura, nomeadamente o que se refere à
realização plúrima do mesmo tipo de crime ou de vários tipos de crime que
fundamentalmente protejam o mesmo bem jurídico, no quadro da solicitação
de uma mesma situação exterior que diminua consideravelmente a culpa do
agente11.
Inserem-se também no âmbito das opções “político-criminalmente cor-
rectas” as que suportam as disposições legais actualmente vigentes em maté-
ria de prescrição do procedimento criminal por crimes contra a liberdade e a
autodeterminação sexual de menores e de identificação criminal. Bem como
o preceito que estabelece como regra a natureza pública destes crimes quando
praticados contra menor.
O n.º 5 do artigo 118.º do CP preceitua que, nos crimes contra a liber-
dade e autodeterminação sexual de menores, o procedimento criminal não se
extingue, por efeito de prescrição, antes de o ofendido perfazer 23 anos.
Todavia, as razões de natureza jurídico-penal, de natureza substantiva e pro-
cessual, que justificam a prescrição do procedimento criminal, nos prazos e nas

10 Veja-se o exemplo recente da Petição Parem esta Lei (a lei é o Código de Execução de Penas
e Medidas Privativas da Liberdade, aprovado pela Lei n.º 115/2009, de 12 de Outubro, recen-
temente entrado em vigor).
11 Cf. Exposição de Motivos da Proposta de Lei n.º 98/X, que esteve na base da Lei n.º 59/2007.
Com relevo para a discussão em redor do n.º 3 do artigo 30.º do CP, especificamente no que
toca a crimes contra a liberdade e a autodeterminação sexual de um mesmo menor, cf.
Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 5 de Novembro de 2008 (processo 08P2812).
Em geral, MARIA DA CONCEIÇÃO VALDÁGUA, “As alterações ao Código Penal de 1995, relativas
ao crime continuado. Propostas no Anteprojecto de Revisão do Código Penal”, Revista Por-
tuguesa de Ciência Criminal, 2006, pp. 527 e ss.
Já depois das Jornadas terem tido lugar, foi apresentada na Assembleia da República o Pro-
jecto de Lei n.º 277/XI, no sentido da eliminação da parte final do n.º 3 do artigo 30.º, cuja
exposição de motivos é significativa de uma opção que é apenas “político-criminalmente cor-
recta”. Contrariando o que aí se afirma, note-se que o instituto não tem aplicação quando o
circunstancialismo “aumenta o grau de culpa do agente”.

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condições previstas no Código, valem integralmente para os crimes contra a


liberdade e a autodeterminação sexual das crianças e jovens. Devendo
mesmo assinalar-se que o risco de estigmatização processual da vítima, asso-
ciado a este tipo de criminalidade, será necessariamente potenciado pelo
decurso do tempo, uma vez que este joga contra o êxito da investigação pro-
cessual penal e da consequente prova dos factos e da autoria dos mesmos.
O artigo 4.º da Lei n.º 113/2009, de 17 de Setembro — diploma que
estabelece medidas de protecção de menores, em cumprimento do artigo 5.º
da Convenção do Conselho da Europa contra a Exploração Sexual e o Abuso
Sexual de Crianças, de 2007 —, demarcando-se da Lei de Identificação Cri-
minal, dispõe que tratando-se de crime contra a liberdade e a autodeterminação
sexual o cancelamento definitivo no registo criminal ocorre 23 anos sobre a
extinção da pena principal ou de substituição, ou da medida de segurança, e
desde que, entretanto, não tenha ocorrido nova condenação por crime. De um
tal preceito só pode mesmo dizer-se que o legislador apostou decididamente
em marcar o agente daquele tipo de crimes com um ferrete tal que é seu pro-
pósito político estigmatizar sem limites um determinado tipo de autor12.
A um tempo, já longínquo, em que, nomeadamente em caso de estupro
e de violação de mulher virgem, o casamento punha termo à acusação da parte
ofendida e à prisão preventiva, prosseguindo a acção pública, à revelia, até
julgamento final e em que se suspendia a pena no caso de condenação,
caducando se, decorridos cinco anos após o casamento, não houvesse divór-
cio ou separação judicial por factos somente imputáveis ao marido, porque se
os houvesse o réu cumpriria a pena (artigo 400.º do CP de 1886), contrapõe-se
hoje, desde 2007, a regra da natureza pública dos crimes contra a liberdade
e a autodeterminação sexual de menores de 18 anos. Com desprezo, porém,
das razões que sempre depuseram a favor da natureza semi-pública destes
crimes, ainda que limitada pela possibilidade de o Ministério Público dar iní-
cio ao procedimento se o interesse da vítima o impusesse. É certo que,
para minimizar o excesso, o legislador prevê o recurso ao instituto da sus-
pensão provisória do processo, tendo em conta o interesse da vítima. Fá-lo,
contudo, enxertando no CP um instituto de natureza processual, cuja justificação
político-criminal é subvertida13.

5. Facilmente se acredita que o reforço da tutela de pessoas parti-


cularmente indefesas passa por disposições legais deste tipo e por uma opção
neocriminalizadora que se aparte da tutela do bem jurídico individual da liber-
dade e da autodeterminação sexual dos menores. Mais dificilmente se com-
preende que o afastamento de princípios jurídico-penais, que são verdadei-

12 A conclusão decorre, desde logo, da comparação com o artigo 5.º da Lei de Identificação Cri-
minal (Lei n.º 57/98, de 26 de Outubro).
13 Cf. o artigo 178.º, n.os 3 e 4, do CP e, com conteúdo algo distinto, o artigo 281.º, n.º 7, do
CPP. Sobre isto, COSTA ANDRADE, ob. cit., pp. 34 e ss., e SÓNIA FIDALGO, Revista Portu-
guesa de Ciência Criminal, 2008, p. 277.

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ramente aquisições civilizacionais, tenha como consequência o descrédito da


lei penal e a sua não aplicação sistemática. Sem que isso signifique, no
entanto, o abandono dos inevitáveis “bodes expiatórios”, acabando por ser
perseguidos com penas “reais” ilícitos penais “virtuais”14.
Termino como comecei. Têm sido dados passos de gigante em nome
da protecção penal da liberdade e da autodeterminação sexual de menores.
Jornadas como estas — estou certa — contribuem para que o caminho do livre
desenvolvimento das crianças e dos jovens seja um caminho de pequenos pas-
sos, que fazem deles homens e mulheres livres e autodeterminados sexual-
mente.

14 A advertência inspira-se em ALBERTO CADOPPI, ob. cit., p. 72.

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