Subsídios À Históri A D O Pequeno Comércio N O Brasil

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SUBSÍDIOS À HISTÓRI A D O PEQUENO

COMÉRCIO N O BRASIL .

LUIZ R. B. MOTT
do Departamento de Ciências Sociais da Universidade
Estadual de Campinas

"Dizei, Senhores de bem,


Nesta feira que vendeis?
Esta feira tudo tem,
Vede vós o que quereis..."
Gil Vicente, AUTO DA FEIRA, 1527 (*).

Embora possamos descobrir inúmeras semelhanças na organiza-


ção e estrutura dos atuais mercados e feiras dos diferentes paises da
América Latina, no que se refere a sua origem, podemos agrupa-los
em duas categorias bem diversas. Em primeiro lugar, aqueles paises
que já possuíam praças de mercado antes da chegada dos conquista-
dores europeus. Entre estes, o México e a Guatemala, que possuíram
os mais famosos e movimentados mercados pré-hispânicos de que se
tem conhecimento. Quando Fernan Cortez chegou à cidade de Teno-
chtitlán, a capital do Império Asteca, encontrou aí um mercado que
se realizava diariamente e que, segundo os cronistas, congregava por
volta de 60.000 comerciantes (1) .

(*). — Agradeço à Fundação C. Gulbenkian a bolsa de estudos que


tornou possível a pesquisa em Portugal.
, Abreviaturas:
A H M F Arquivo Histórico do Ministério das Finanças (Lisboa).
AHU Arquivo Histórico Ultramarino (Lisboa).
A N T T Arquivo Nacional da Torre do Tombo (Lisboa) .
APEB Arquivo Público do Estado da Bahia (Salvador).
APES Arquivo Público do Estado de Sergipe (Aracajú).
BNL Biblioteca Nacional de Lisboa.
(1). — Wolf (Eric), Sons of the Shaking Earth, Chicago, Chicago Uni-
versity Press, 1959, p . 40 .
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O Brasil e a maioria dos demais países latino-americanos, perten-


cem ao segundo tipo: as feiras constituiam uma inovação que era des-
conhecida da população nativa.
Segundo as informações dos primeiros cronistas, os indios do
Brasil, e especificamente os tupinambá, possuíam uma economia do
tipo de subsistência. As atividades econômicas limitavam-se à satis-
fação de um número bastante limitado de necessidades biológicas e
sociais. A caça e a pesca eram realizadas mais para alimentar-se e dis-
trair-se do que para juntar riquezas. O excedente de produção era
bastante reduzido (2). O comércio intertribal se limitava à troca si-
lenciosa de alguns bens raros ou de luxo, tais como certas pedras ver-
des e plumas de aves destinadas ao adorno corporal.
Quanto à forma como se realizava tal comércio, dispomos apenas
de uma referência: Jean de Léry (1557) nos diz que os tupinambá
ao comerciarem com os guaitacá postavam-se a uma distância de mais
ou menos uns 100 metros uns dos outros. Mostravam de longe os
objetos que queriam permutar e deixavam-nos por cima de uma pedra
ou pedaço de pau a meio caminho entre os dois grupos. Vinham os
guaitacá, examinavam os objetos ofertados, deixavam suas pedras e
penas e levavam em troca as coisas deixadas pelos outros. Feita porem
a troca, rompia-se a trégua entre os dois grupos e apenas ultrapassados
os limites do lugar fixado para a permuta, procurava cada qual alcan-
çar o outro a fim de arrebatar-lhe a mercadoria (3).
Baseando-se nos relatos deste cronista, Lévi-Strauss comenta:
"(Este negócio) se efetua sem regateios, sem nenhuma ten-
tativa para valorizar o artigo , o u a o contrário , par a deprecia-l o
por parte do cliente e sem manifestações de desacordo entre as
partes". E o mesmo autor continua: "A guerra e o comércio
constituem atividades que dificilmente se conseguirá estudar iso-
ladamente. As trocas comerciais representam guerras potenciais,
pacificamente resolvidas; e as guerras são o resultado de transa-
ções mal sucedidas" (4).

Apesar da simplicidade das tradições comerciais destes indígenas,


o certo é que tão logo os portugueses aportaram nas praias do Brasil,
(2). — Abeville (ClaudeD'), História da Missão dos Padres Capuchi-
nhos na Ilha do Maranhão e Terras Circunvizinhas.. . (1614), São Paulo,
Livraria Martins, 1945, p. 236.
(3). —Léry (Jean), Viagem à Terra do Brasil (1578), São Paulo,
Livraria Martins, 1941, p. 98.
(4). — Léví-Strauss (Claude), "Guerra e Comércio entre os Índios
da América do Sul", Revista do Arquivo Municipal de São Paulo, vol. 87,
s/d, p. 131-146.
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os tupinambá foram incentivados a comerciar com o homem branco,


fornecendo para os europeus, inicialmente certos produtos exóticos
(papagaios, enfeites de pluma, macacos), passando em seguida a for-
necer sistematicamente certas mercadorias mais significativas (pau-
-brasil, farinha de mandioca, algodão) (5) . Tais produtos eram tra-
zidos pelos silvícolas até a praia e entregues nas mãos de particulares
ou nas feitorias, a fim de serem embarcados para o Reino quando da
chegada das naus (6). Devido à inexperiência comercial dos nativos
e à sua boa fé, os portugueses desde cedo começaram a fazer frequen-
tes investidas às aldeias, resgatando não apenas aqueles produtos desti-
nados ao comércio d'alem-mar, mas aprisionando inclusive os próprios
nativos:

"Resgatavam muitos índios e salteavam quantos queriam sem


ninguem lhes ir à mão...",

dizia Gandavo (7).


Tal liberdade comercial (na maioria dos casos, simples saque e
extorsão) recebeu cedo uma legislação: já em 1534, o Rei de Portugal,
D. Manuel I enviava a seguinte ordem ao Capitão Mor de Pernambuco:
"Todas as pessoas assim de meus reinos e senhorios, como
de fora deles, que à dita capitania forem, não poderão tratar,
nem comprar, nem vender cou:a alguma com os gentíos da terra,
e tratarão somente com o Capitão e povoadores dela, comprando,
vendendo e resgatando com eles tudo o que puder haver. E quem
o contrário fizer, hei por bem que perca em dobro toda a mer-
cadoria" (8).

A primeira referência às feiras no Brasil traz a data 1548. É D.


João III que no Regimento confiado ao 1o Governador Geral do
Brasil, assim determinava:
"Ordenareis que nas ditas vilas e povoações (da Bahia) se
faça em um dia de cada semana, ou mais, se vos parecerem ne-
cessários, feira a que os gentíos possam vir vender o que tiverem
e quiserem, e comprar o que houverem mister, e assim ordenareis

( 5 ) . — T h e v e t ( A n d r é ) , Les Singularités de la France Antarctique,


(1558), Paris, Maisonneuve, 1878, p. 238-243.
(6). — Marchant (Alexander), Do Escambo à Escravidão: As Rela-
ções Econômicas de Portugueses e Índios na Colonização do Brasil, 1500-
1580, São Paulo, Brasiliana, n° 225, 1943.
(7). —Gandavo (Pero Magalhães), T r a t a d o d a T e r r a d o B r a s i l ,
(1576), Sã o Paulo, Editora Obelisco, 1964, p. 92.
(8). — AHU, Carta Foral da Capitania de Pernambuco, de 24/9/1534.
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que os eritãos não vão às aldeias dos gentíos a tratar com eles...
(9).

Como explicar a criação tão prematura de uma instituição econô-


mica tão sofisticada, numa região tão pouco povoada, considerando
que os nativos desconheciam o princípio do mercado?
Quando o Brasil foi descoberto, já de longa data que os portu-
gueses estavam acostumados com o comércio nas feiras e mercados.
Segundo Virgínia Rau, a feira mais antiga de Portugal de que se tem
notícia data de 1125. Desta data até os meados do século XV, de-
viam existir no Reino por volta de 95 feiras (10) .
Não era só na Metrópole que os lusitanos tinham tal instituição
(11): eles estavam habituados aos suqs da África do Norte, notada-
mente da praça de Ceuta, e às feiras do sertão de Angola (12) . Des -
tarte, seguramente as feiras deviam aparecer aos olhos dos conquista-
dores como instituições bastante eficientes e que mereceriam ser re-
produzidas na Colônia recem-descoberta. Acreditamos que ao deter-
minar a instalação das feiras no Brasil, logo após seu descobrimento,
o Soberano Portugues tinha em mente muito mais provocar a concen-
tração de mercadorias nativas a serem exportadas para a Metrópole,
do que a satisfação das necessidades de subsistência imediata dos ha-
bitantes dos pequenos núcleos populacionais da Bahia, e muito menos
ainda, da população indígena. Em outros termos, aspirava o Rei que
se criassem no Brasil, feiras não apenas como as que existiam em
Portugal, destinadas ao abastecimento dos moradores da circunvizi-
nhança, mas principalmente, como as feiras de Angola, cuja funçã o
era reunir a produção dos nativos (marfim, cera, metais) a fim de
exporta-la para a Europa (13).
No Brasil, dado o pequeno valor das mercadorias que os indíge-
nas podiam de pronto oferecer — diferentemente do que ocorreu em
outras colônias, como nos enclaves da Índia, Ceilão e mesmo da África,
onde os nativos possuiam bens de muito valor e de facil transporte
(9). — AHU, Códice 112, Regimento do Governador Geral do Bra-
sil, Tomé de Sousa, de 17/12/1548, f. 4, v°.
(10). — Rau (Virgínia), Subsídios para o Estudo das Feiras Medie-
vais Portuguesas, Lisboa, Tese de Licenciatura, 1943, p. 146.
(11). — Mott (Luiz R. B.), "A Feira da Ladra no Século XVI e na
Actualidade", Ocidente, Revista Portuguesa de Cultura, n° 148, fevereiro
1973, p. 1-47.
(12). — Dias (Manoel Nunes), O Capitalismo Monárquico Português,
1415-1549, Cap. V: "As Feiras dos Sertões e a Penetração Comercial",
Coimbra, 1963.
(13). — Arquivos de Angola, vol. V e VI, março 1936, Bando sobre
as feiras que devem haver nos sertões de Benguela e Caconda, de 23 de se-
tembro de 1768.
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para a Europa — tudo faz crer que a ordem real determinando a


criação de feiras não foi imediatamente posta em prática. Desde os
primeiros contatos com os nativos, os europeus incentivaram que os
mesmos trouxessem para perto da praia os produtos que lhes interes-
savam, de modo que não foi preciso criar feiras a fim de forçar a
acumulação dos produtos destinados à Metrópole. O pau-brasil ia
diretamente das matas para a costa; em seguida, o açucar, dos enge-
nhos para os portos de embarque, sem precisão de que os mesmos
fossem anteriormente reunidos em praça pública. Assim, 40 anos
após o primeiro Regimento, um segundo é enviado aos governadores
da Bahia:
"Sabereis se há alguns dias ordenados em que nas povoações
das ditas Capitanias se faça feira a que os gentíos possam vir
vender o que tiverem e comprar o que houverem mister. E não
se fazendo as ditas feiras, ordenareis que se façam um dia ou
mais cada semana" (14).

Não dispomos de nenhum documento que nos informe quando


foi criada a primeira feira no Brasil. Provavelmente a primeira, senão
uma das primeiras feiras a serem instituidas na colônia foi a de Ca-
poame, situada na parte norte do Recôncavo Baiano. Felisbelo Frei-
re (15) aponta o século XVI para sua criação; Borge de Barros loca-
liza-a em 1614 (16). Infelizmente, nenhum destes autores transcre-
veu ou localizou os documentos que provariam suas asserções. Em
vista disto, tais datas não deixam de ser meramente conjecturais. Pes-
soalmente, discordamos de tais datas, pois ainda em 1677, no "Regi-
mento que trouxe o Mestre de Campo General do Brasil", D. Afonso
IV determinava exatamente como seus antecessores do século XVI,
que se criassem feiras em que os gentíos pudessem ir vender. E no
mesmo documento, como observação, le-se:

"Nesta Capitania nunca se fizeram feiras para os gentíos


venderem o que trazem, ou comprarem o que lhes for necessá-
rio, e por isso não tem lugar a disposição deste capítulo, o que
seria mais aplicado à Capitania do Pará, aonde há sem compara-
ção muito maior número de índios" (17).

(14). — AHU, Regim ento do Governador Geral do Brasil, de 8/3/1588.


(15). — Freire (Felisbelo), História Territorial do Brasil, Rio de Janeiro,
1906, I, p. 272.
(16). — Barros (F. Borges), "O Castelo da Torre de Garcia d'Ávila",
Annaes do Archivo Público da Bahia, vol. 24, 1935, p. 45-47.
(17). — Documentos Históricos da Biblioteca Nacional do Rio de
Janeiro, 1633-1677, Correspondência dos Governadores Gerais, Cap. 8.
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Não se refere tampouco tal documento à existência de qualquer
outra feira realizada na Capitania da Bahia.
Consultando os documentos oficiais da Colônia e igualmente os
relatos dos viajantes e cronistas que passaram pela Bahia nos séculos
XVI e XVII, não encontramos referência alguma à existência de
feiras. Deste modo, podemos adiantar uma hipótese: embora a idéia
das feiras se enraize nos primórdios da vida brasileira, sua emergên-
cia provavelmente só se consubstanciará mais tarde, quando do maior
desenvolvimento demográfico e da diversificação econômica da Co-
lônia (18).
Como se fazia então o pequeno comércio durante estes dois pri-
meiros séculos da história do Brasil?
Podemos perceber dois polos principais na organização sócio-eco-
nômica da Colônia: os inúmeros engenhos de cana-de-açucar, espa-
lhados por vasta área do litoral e da zona da mata e algumas poucas
vilas e cidades que serviam sobretudo de armazem e porto de embar-
que da produção açucareira. Os engenhos, via de regra, são auto-sufi-
cientes no que se refere à subsistência tanto da família do proprietário,
como da escravaria. Os poucos produtos que não podem ser obtidos no
interior dos latifúndios (ferramentas, utensílios domésticos, tecidos,
artigos de luxo) são importados diretamente da Metrópole, comprados
na cidade mais próxima ou trazidos por algum mascate, dos muitos
que percorriam o interior à busca deste mercado disperso (19).
Nas cidades, o problema do abastecimento foi quase sempre dra-
mático: a falta de gêneros básicos, como a carne e a farinha de man-
dioca, era bastante comum. Considerava-se um nonsense desviar da
lavoura mai s rendos a — a can a — capitai s e braço s par a cuida r d a
policultura destinada ao abastecimento urbano. Po r isso, segundo Caio
Prado Jr., a insuficiência alimentar se tornou quase sempre a regra e
o abasteciment o do s núcleo s d e povoament o mai s dens o constitui a
um do s problema s mai s sério s qu e a populaçã o colonia l tev e d e en -
frentar (20) .

(18). — Costa Porto : Nos Tempos do Visitador, Recife , Universidad e


Federal d e Pernambuco , 1968 , p . 129 , diz :
"Na Capitani a d e Pernambuc o nã o havi a mercad o regular , faltand o
população e rareand o o consumidor" .
Frei Antôni o d o Rosário , po r su a vez , declarav a e m 1691 :
"Se c á houverã o feira s com o e m Portugal , melho r armav a c á a feir a d a
vaidade..." Cf . A Feira Mística de Lisboa, Lisboa , 1691 , p . 91 .
(19). — Goulart (Jos é Alípio), O Mascate no Brasil, Ri o d e Janeiro ,
Conquista, 1967.
(20). — Prad o (Caio) , História Econômica do Brasil, Sã o Paulo , Edi -
tora Brasiliense , 1956 , p . 41-43 .
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Não obstante tais dificuldades, vamos encontrar na maioria das


vilas e cidades coloniais, algumas agências que se encarregavam do
pequeno comércio: lojas, vendas, tavernas, boticas, estalagens, açou-
gues, casas de pasto, tendas, casas de negócio, quitandas. Os proprietá-
rios de tais estabelecimentos aparecem referidos nos documentos da
época, sob diferentes denominações: taverneiros, marchantes, vendi-
lhões, mercadores, mercadores a miudo ou a retalho, caixeiros, comis-
sários volantes, negociantes, lojistas.
Na capital da Colônia, por volta de 1587, alem de diversas "lo-
geas de mercadores", diz-nos um Cronista que
"tudo vêm vender à praça desta cidade: muitos mantimen-
tos, frutas, hortaliças, do que se remedia toda a gente da cida-
de" (21).

Salvo erro, esta é a primeira referência (assim mesmo não muito explí-
cita), da realização de feiras ou mercados numa cidade do Brasil.
Este documento deixa claro dois pontos de muita importância:
que certos produtos
"que levam destes Reinos a vender ordinariamente na Bahia,
como vinhos da Ilha da Madeira e das Canárias, muitas sedas,
panos de toda sorte, drogas e todas as mais mercadorias acostu-
madas, mantimentos da Espanha", eram vendidos "em várias
ruas muito formosas ocupadas com logeas dos mercadores". Os
demais "mantimentos vindos das roças que ficam a uma ou duas
léguas ao redor da cidade", eram vendidos "à praça desta cidade".

Em outros termos, de um lado, o comércio estabelecido das lojas


dos mercadores, de outro, a venda ao ar livre na praça. Os primeiros
manipulando mercadorias importadas, coisas mais caras e nobres, o
segundo, especializando-se nos frutos da terra. Subsidiário a este, ha-
via ainda o comércio ambulante das chamadas "negras de taboleiro",
referidas desde 1591 (22) e que ocuparão no século XVIII, lugar de
destaque na vida das cidades e vilas coloniais. Pelo visto, esta divisão
étnica entre comércio estabelecido, privilégio dos portugueses e luso-
-brasileiros e o comércio ambulante, manipulado por gentes de cor,
foi um padrão que se desenvolveu nas cidades de norte a sul do país.
Em São Paulo, no século XIX, encontramos realidade parecida:

(21). — ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro 50, de 1/3/1587, "Ca-


pítulo que trata de como corre a cidade do Salvador da Sé para diante".
(22). — ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro 16, de 1591, I ° Livro das
Denunciações na Visitação do Santo Ofício, Bahia.
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"Os legumes e as mercadorias de consumo imediato são
vendidos por negras que se mantem acocoradas na rua, que por
motivo de tal comércio, tomou o nome de rua da Quitanda.
Quanto aos comestíveis indispensáveis, tais como farinha, tou-
cinho, arroz, milho, carne seca, os mercadores que os vendem,
estão em sua maior parte estabelecidos numa única rua denomi-
nada rua das Casinhas, porque efetivamente, cada venda forma
uma pequena casa isolada" (23).

Quanto à s feiras rurais — e sã o esta s qu e no s interessa m parti -


cularmente — o mais antigo documento que encontramos, traz a data
de 1732 : é a já citada Feira de Capoame.
"No sítio do Capoame, distrito de Santo Amaro de Ipitan-
ga, termo da cidade da Bahia, distante dela 5 léguas, se faz em
todas as semanas, nas quartas feiras, uma feira de gado vacum
que vem dos sertões vender na dita feira" (24).

Inúmeros documentos atestam que esta feira foi, durante o sé-


culo XVIII, o principal centro de comércio das boiadas que vinham
do sertão com destino à cidade da Bahia e ao seu recôncavo. Para se
avaliar a real importância de Capoame, diga-se que entre 1770 e
1788, foram enviadas a ela, apenas saindo das antigas fazendas dos
Jesuitas do Piauí, nada menos de 106 boiadas, perfazendo um total
de 33.710 reses, mais ou menos, entre vacas e bois. Lembremo-nos,
no entretanto, que tal cifra deve representar apenas uma pequena per-
centagem do total de animais que eram aí negociados (25).
Eis outra referência à uma feira do século XVIII, igualmente na
capitania da Bahia:
'A freguesia da Mata de São João contem em si mais de
300 fogos unidos e no seu terreno se faz a grande feira dos ga-
dos, que entram semariamente para a sustentação de toda esta
cidade e seu recôncavo, e deste importantíssimo ramo de negócio

(23). — Sait-Hilaire (Auguste), Viagem à Província de São Paulo,


São Paulo, Livraria Martins, 1972, p. 163.
(24). — AHU, Bahia, Caixa 46, de 23/7/1732.
(25). —AHU, Piauí, Caixa 4, de 20/7/1789, Relação das Boiadas
Saídas das Fazendas Confiscadas aos Regulares da Cia. de Jesus, Enviadas
à Feira de Capoame.
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procede o serem inumeráveis as pessoas que concorrem a ela


e habitam na sua vizinhança" (26) .

Não muito distante da Mata de São João, na vila de Nazareth,


"acima do rio Iguaripe, se faz uma feira aos sábados, em
que se vendem 10 a 12 mil alqueires de farinha ..." (27).

Dispomos ainda de outra informação a respeito de uma feira se-


tecentista que se realizava em Pernambuco, no distrito de Goiana, no
lugar denominado Cruz das Almas (28).
Em Sergipe, igualmente, houve uma importante feira durante o
século XVIII. O documento que será transcrito a seguir é um Ofício
do Ouvidor da dita Comarca a D. Rodrigo de Souza Coutinho:

"Na povoação das Laranjeiras se faz um mercado de longo


tempo, todos os sábados, e havendo S. Alteza por bem fazer gra-
ça de duas vezes no ano fazer-se uma feira franca, de três dias,
de gado vacum, cavalar e de cabelo, a primeira em setembro em
que os engenhos de fazer açucar se botam à moagem, a segunda
em abril do ano seguinte, em que se pejam os engenhos e acaba
a safra..." (29).

Este documento é particularmente interessante, pois nos ensina que


naquela época havia dois tipos diferentes de feira. A feira-mercado,
realizando-se todos os sábados, com uma área de dominância mais
restrita, destinada sobretudo ao abastecimento alimentar da população
circunsvizinha e a feira-franca, anual ou bi-anual, reunindo compra-
dores e vendedores especialistas provenientes de regiões mais distantes,
que comerciavam certos bens regionais, como o gado, por exemplo.
Cumpre notar que atualmente no Brasil, não mais existem estas feiras
francas de antanho. Em Portugal, no entanto, elas continuam a de-
sempenhar importante papel notadamente na zona rural: em 1971, de

(26). — AHU, Bahia, in Eduardo de Almeida Castro, I n v e n t á r i o d o s


Documentos Relativos ao Brasil existentes no Arquivo Histórico Ultrama-
rino, Rio de Janeiro, 1914, n° 12.085, Ofício do Ouvidor da Comarca da
Bahia para o Governador da Capitania, de 4/9/1785.
(27). — AHU, Bahia, Idem, ibidem, n° 10.907, Carta do Advogado da
Bahia, José da Silva Lisboa, para o Dr. Domingos Vandelli, Diretor do
Real Jardim Botânico de Lisboa, de 18/10/1781.
(28). —AHU, Pernambuco, Caixa 28, de 20/7/1786.
(29). — AHU, Bahia, in Eduardo de Almeida Castro, op. cit., n° 20.795,
Ofício do Ouvidor da Comarca de Sergipe d'El Rei, para D. Rodrigo S.
Coutinho, de 6/8/1800.
– 90 –
um total de 1.444 feiras que se realizavam naquele país, 784 perten-
ciam à categoria de feiras anual (30).
Os documentos referentes às feiras do século XIX são bem mais
numerosos. Eis, v.g., a descrição de uma feira, tal qual a viu o via-
jante norte-americano Kidder, na segunda metade do século passado:

("Em Itabaianinha, Pernambuco), há uma feira de gado que


atraia grande número de curiosos. Parecia fazer parte da feira
semanal que se realizava em Pedras de Fogo, localidade situada
sete léguas alem de Goiana. Neste lugar havia grande afluência
de povo às quartas e quintas feiras, para comprar, vender e
barganhar mercadorias que vinham do sertão ou para lá se des-
tinavam. Para se avaliar a quantidade de gente que aí se reunia,
basta dizer que segundo nos informaram, é comum abaterem 60
ou 70 bois para¡ o seu sustento" (31).

Através deste outro documento, uma petição dos moradores ao


sul do rio Itapicurú, ficamos sabendo mais alguns detalhes a respeito
das feiras baianas do século XIX:

"Dizem os habitantes moradores ao sul do rio Itapicurú, do


município da vila do Conde, todos proprietários, negociantes, la-
vradores, e mais pessoas de diferentes classes, que achando-se os
suplicantes na posse e fruição de uma feira em dias de sábado,
sita no lugar denominado Ribeira, com proporções muito vanta-
josas, e isto há seis anos, e com aprovação da Câmara respecti-
va... pelo cômodo e bem estar tanto dos moradores vizinhos,
como dos que de mais longe a ela concorrem com as suas mer-
cadorias e outros na compra e demanda destas, e ainda mais por
ser muito favoravel o Porto de embarque, já para os moradores
do centro, e já para os mesmos residentes na vila e beira mar.. .
que traziam a ela seus efeitos, como sejam peixes, frutas, mariscos,
cocos, sal, e outros gêneros do país..." (32).

Dentre as feiras nordestinas da atualidade, talvez a mais proemi-


nente seja a de Feira de Santana, situada a meio caminho entre o lito-
ral e o sertão. Segundo o historiador desta cidade,
(30). — Mott (Luiz R. B.), "Feiras e Mercados de Portugal: biblio-
grafia comentada", Revista de Etnografía do Porto (no prelo).
(31). — Kidder (Daniel), Reminiscências de Viagens e Permanência no
Brasil, São Paulo, Livraria Martins, II° volume, 1972, p. 129.
(32). — APEB, Presidência da Província, Agricultura-Indústria-Comér-
cio, (Abastecimento, Feiras Públicas), 1835-1888, Carta do Procurador Antô-
nio Cosme Bahiense, à Comissão de Comércio de Salvador, de 25/1/1835.
"Feira de Santana foi escolhida para a feira de gado por
três razões importantes. Primeiro porque estava situada no ca-
minho mais direto entre o recôncavo e as imensas pastagens do
Mundo Novo, Jacobina e do Médio São Francisco. Em segundo
lugar, porque o povoado estava rodeado de excelentes pastagens
naturais. A terceira razão, de vital importância para uma zona
sujeita a secas periódicas, é que a região era atravessada por
dois rios e por numerosos riachos ... Em 1828 a feira de gado
de Feira de Santana firmara-se como a mais importante da Pro-
víncia. Em volume de negócios era ainda superada pela Concei-
ção da Feira, que se especializara em produtos agrícolas, tal co-
mo a feira de Nazaré" (33).

Em Sergipe, temos notícia da criação de feiras no século XIX


"onde se vendem gêneros em certos e determinados dias
em uma praça ou rua larga designada pela Câmara" (34).

em diversas vilas e cidades: Capela (antes de 1843), Rosário (1843),


Propriá (antes de 1844), Lagarto (antes de 1847), Socorro (1849),
Arauá (antes de 1874), Aquidabã (1877), Nossa Senhora das Dores
(antes de 1875), Itabaianinha (antes de 1879), etc. (35).
No sul do país, o panorama do pequeno comércio se configurava
diverso deste que apresentamos para o Nordeste. Com exceção dos
mercados de gêneros alimentícios das maiores cidades da Colônia, e
entre eles, no Rio de Janeiro, o famigerado Mercado do Peixe, imor-
talizado numa tela de Debret (36), a única feira de que temos notícia
é a que se realizava em Sorocaba, no interior da Capitania de São
Paulo. Tal feira, cognominada por uns como "Feira de Burros" e por
outros, como "Feira das Mulas" (37), foi durante o século XVIII o
principal centro abastecedor de muares para a região das Minas, con-
tinuando durante a primeira metade do século XIX a fornecer animais
para as novas fazendas de café que proliferavam pela mesma Capita-

(33). — Poppino (Rollie), Feira de Santana, Bahia, Editora Itapuã,


1968, p. 57.
(34). — Biblioteca Pública de Aracajú, Relatórios da Salubridade Pública
à Cargo do Dr. Pedro Autran da Matta e Albuquerque Jr., Inspetor da Saude
Pública no Governo do Dr. João Dabney Brotero, de 31/7/1859.
(35). — Leis Provinciais de Sergipe, Resoluções n° 102, 107, 132, 199,
245, 972, 1051, 1091, 1110.
(36). — Debret (Jean Baptiste), Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil,
São Paulo, Livraria Martins, 1972, vol. II, prancha 35, p. 229.
(37). — Medeiros (F. L. d'Abreu), "A Feira de Burros de Sorocaba",
Boletim Paulista de Geografia, n° 1, março de 1949, p. 40-44.
– 92 –
nia. Salvo erro, esta foi a principal e talvez a única feira regional que
existiu ao sul da Bahia.
Na cidade de São Paulo, como já vimos (cf. nota 23), o costume
era, segundo observou St. Hilaire,
"a gente do campo ir vender suas mercadorias aos comer-
ciantes, em cujas mãos (nas casinhas) os consumidores vão
adquiri-las".

Aliás, percorrendo todo o interior desta Província Meridional, o


mesmo naturalista não se refere uma vez sequer ter encontrado feiras. O
que relata com certa frequência, é ter encontrado a miude, as tais "ca-
sinhas" e um sem número de vendas, lojas, tavernas, ranchos de beira
de estrada: na Penha, em Mogí Mirim, em Itú, em Sorocaba, etc.
Passando por Vitória, capital da Província do Espírito Santo, St. Hi-
laire declara explicitamente:
"II n'y a à Villa de Victoria aucun marché public" (38).

No extremo norte do país, assim como no centro-oeste, regiões


de precaríssimas vias de comunicação e com uma densidade demográ-
fica extremamente baixa, não temos conhecimento, nem através da
correspondência oficial dos Governadores e demais homens públicos e
muito menos através dos vários viajantes e naturalistas que percorreram
esta região, da realização de feiras nos séculos passados (39). Ne-
nhum dos viajantes (Kidder, Spix & Martius, Baena, João Barbosa
Rodrigues) encontraram feiras nestas Províncias, nem tampouco os
estudiosos desta área a elas se referem. Pelo visto, a forma mais co-
mum de se comerciar pelo interior, era através das monções e dos re-
gatões (40). H. W. Bates, naturalista inglês que permaneceu na Ama-
zônia sete anos, a partir de 1848, descreve sumariamente o barco de
um regatão:

"A canoa estava muito carregada, pois transportava em seu


bojo um variado sortimento de artigos mais procurados pelos ha-
bitantes semicivilizados ou selvagens do alto Rio Negro" (41).

(38). — Saint-Hilaire (Auguste), Voyage dans te District des Diamants


et sur Littoral du Brésil, Paris , 1833 , Libréri e Gide , p . 247 .
(39). — Lapa (J. R. do Amaral), Economia Colonial, Sã o Paulo , Edi -
tora Perspectiva, 1973, p. 15-110.
(4Q). — Goulart (José Alípio), O Regatão, Ri o d e Janeiro , Editor a
Conquista, 1968.
(41). — Bates (Henry), O Naturalista no rio Amazonas, Brasiliana , n°
237, p. 239.
– 93 –

Tambem nas cidade s setentrionais , vamo s encontra r o pequen o


comércio manipulado em grande parte pelas negras. Est e mesmo via-
jante encontrou em Belem
"grande número de negrotas bizarramente vestidas, que fica-
vam no caminho que leva às portas da igreja, com tabuleiros de
licores, doces e cigarros que vendem aos que estão do lado de
fora" (42).

Através da leitura dos documentos referentes aos séculos passados,


pudemos detecta r certo s aspecto s d a polític a econômic a d o governo ,
assim com o algun s do s problema s mai s significativo s qu e enfrentav a
o pequeno comércio no seu dia a dia. Relembramo s que a documenta-
ção referent e a tai s assunto s é extremament e escass a e fragmentária .
O Governo Central estava evidentemente muito mais interessado e ha-
bituado a legislar a respeito do grande comércio, a respeito das Com -
panhias Gerai s d e Comérci o e Navegação , a propósito do s Tratado s
comerciais, etc , d e mod o qu e apena s acidentalment e é qu e a Coro a
se manifestav a e ist o a contragosto , sobr e tai s negócio s d e pequen o
vulto. Apó s termos sumariamente reconstituido o quadro institucional
da emergência das feiras no Brasil, passamos a seguir a analisar alguns
aspectos da dinâmica deste comércio.
Um dos traços mais relevantes da ideologia econômica da adminis-
tração colonial, no que tange ao comércio a varejo, parece ter sido sua
política de defesa do consumidor. A idéia de controlar os preços dos
gêneros de primeira necessidade aparece logo no início da nossa colo-
nização, no mesmo documento em que se ordenava a criação das feiras:
"Hei por bem que com os ditos Capitães e oficiais assenteis
os preços que vos parecerem que honestamente podem valer as
mercadorias que na terra trouxer, e assim as que vão do Reino,
e de quaisquer outras partes, para terem seus preços certos e
honestos conforme a qualidade de cada terra, e por eles se vende-
rem, trocarem e escambarem" (43).

Uma série de medidas do Governo ordenando a constante fisca-


lização dos pesos e medidas daqueles que vendiam a retalho, pode ser
vista sob dois prismas: como uma tentativa de evitar que os compra-
dores fossem ludibriados pelos lavradores ou comerciantes desonestos
e tambem, um recurso que as Câmaras utilizavam a fim de aumentar

(42). — Idem, p . 218 .


(43). — AHU, Códice 112, Regimento do Governador Geral do Bra-
sil, Tomé de Sousa, de 17/12/1548, fl. 4, v°.
– 94 –
sua arrecadação, pois cada vez que os oficiais ou almotacés aferiam os
pesos e medidas, cobravam certa taxa, que era parte destinada aos
funcionários e parte aos cofres públicos. Eis um exemplo de uma
Ordem relativa à aferição de pesos e medidas, enviada à Capitania
do Piauí:
"Devem em primeiro lugar mandar fazer padrões de toda
sorte de medidas e pesos miudos e grossos, desde quarta até arro-
ba, e medidas para vinho, azeite e vinagre, de vinte até quartilho,
e de quarta e alqueire para que todos possam ser providos de
remédiono que necessitarem segundo a possibilidade de cada um,
e a ocasião o permitir, do que me lembrei antes de tudo porque
não deixou de vir já à minha presença queixa de que sem me-
didas vendiam algumas pessoas, dizendo as não tinham nem ha-
viam para emprego de quantia limitada. Devem tambem todas as
pessoas de qualquer condição ou estado que sejam, que costu-
marem vender por si, seus caixeiros ou escravos, tenham loja ou
vendam em roça, ter cada uma das medidas e pesos respectivos ao
seu trato e comércio, que afilaram em cada um ano por todo o
mês de janeiro, e pelo (mês) de São João, serão obrigados a
trazerem à revista os mesmos pesos e medidas, cujas diligências se
encaminha a que não estejam falsificadas até o ano seguinte,
advertindo porem que as pessoas que não costumarem vender e
quiserem ter medidas e pesos, as afilarão uma só vez e todas
pelo padrão do Conselho, porque muitas vezes costumam delas
usar os vizinhos que não deixam de vender, e ainda as pessoas
que por ofício não vendem, como os demais, e na mesma forma,
sendo-lhes achados pesos falsificados, com diminuição ou aumento,
segundo a sua qualidade, o que se não entenderá quando forem vo-
luntariamente afilar no mês de janeiro..." (44).
A aferição das medidas, como dissemos, era função quer dos
Oficiais da Câmara, quer dos Almotacés. Estes últimos tinham como
obrigação
"executar as disposições da Câmara relativas à abundância de
comestíveis, cujos preços diariamente regulam, assistindo à venda
e repartição da carne nos açougues públicos, correndo as tavernas,
examinando a qualidade e o peso do pão cozido, ultimamente vi-
giando sobre a limpeza das terras e sobre os danos feitos com os
gados nos campos..." (45).

(44). — AHU, Piauí, Caixa 1, Provimentos de Francisco Marcelino de


Gouveia à Câmara da Capitania do Piauí, de 19/3/1759.
(45). — BNL, Secção de Reservados, Fundo Geral 6936, Governo civil
das Províncias, s/d.
– 95 –

Provavelmente, a primeira cidade a possuir Almotacés no Brasil


foi Salvador. Eis a carta que a Câmara desta cidade escreveu à Corte
solicitando a criação deste cargo:
"Pareceu à Câmara... que se elegessem dois homens bons
que costumam andar nos pelouros, dois almotacés da limpeza,
para atenderem somente nesta diligência, e bem assim nos currais
do gado que se mata, para que seja bom e de receber, e que (o
gado) muito magro se retire a pastos de fora, porquanto é
sempre muito ruim carne a que se corta, por falta deles no arre-
dor desta cidade, onde logo se danifica depois da chegada do ser-
tão..." (46).
Outra medida do governo com vistas a defender o consumidor foi
a sua luta constante contra os atravessadores. No Reino, a fim de se
evitar que intermediários comprassem o pão a fim de revende-lo mais
caro aos consumidores, tratando-se tal alimento de uma das bases do
cardápio da maioria da população, havia uma lei proibindo a existên-
cia de atravessadores do pão. No Brasil, "sendo a farinha de mandioca
o pão da terra" e havendo pessoas que a atravessavam, enviou a Câ-
mara de Pernambuco uma carta a Lisboa denunciando tal irregula-
ridade:
"Considerando o dano que neste Reino faziam ao bem pú-
blico as pessoas que negociando compravam pão para tornar a
vender, fora V.M. servido resolver por seu decreto que alem das
penas que pelas leis estão impostas aos que cometem este crime,
estivesse sempre contra eles uma devassa em aberto para se ti-
rar todas as vezes que houvessem informação de que se cometia,
não passando carta de seguro aos culpados nela. E que como
naquela Capitania (de Pernambuco) suposto se não produzia
pão algum, substivera inteiramente a farinha da terra com cuja
falta de que V.M. já fora informado, padeciam grave dano os
moradores; porque suposto venha a ter efeito a planta dela na
forma que S.M. fora servido ordenar ao Governador daquela
Capitania, atravessando-a muitas pessoas, como continuamente fa-
zem antes de ir à praça, quando se possa conseguir abudância,
fica esta sem efeito, continuando a mesma carestía... Que Sua
Majestade seja servido mande declarar-se na dita travessia da fari-
nha da terra há de proceder como na do pão, tanto nas devassas
gerais de março, como em outra que para este efeito esteja con-
tinuamente aberta..." (47).

(46). — AHU, Bahia, Caixa 1670-1673, Petição dos Oficiais da Câmara


da Bahia ao Conselheiro do Reino, de 4/3/1673.
(47). _ AHU, Pernambuco, Caixa 11, de 1/8/1704.
– 96 –

Sensível a tais reclamações, a 2 de outubro de 1704, o Rei de


Portugal baixa uma lei que
"em todo Estado do Brasil se pratique como no Reino, sobre
os atravessadores do pão, a respeito da farinha de pau" (48).

Alem da farinha de mandioca, a Administração Colonial esteve


sempre atenta a que não houvesse falta ou que não se majorassem os
preços da carne de gado em consequência de possíveis monopólios.
Eis o que escrevia o Presidente aos Oficiais da Câmara de Olinda, no
último ano dos setecentos:
"Sendo presentes a este Governo os abusos que muitas pes-
soas, e principalmente mulheres, têm introduzido, de sacarem dos
açougues toda a melhor e mais gorda carne, que podem, por
empenhos de pessoas poderosas ou por peitas, para depois de
seca ou assada, debaixo do pretexto de ser para doentes, a tor-
narem a vender por altíssimo preço em prejuízo público, que
vendo-se sem a carne fresca necessária para a sua sustentação se
vê na necessidade de ir a comprar assada ou seca a estas mesmas
mulheres atravessadoras, pelo arbitrário preço que elas lhes
querem dar... Proibimos semelhante negociação, e que V.
Mercês não dêm licença para tais vendas, nem ainda debaixo do
nome de carne seca ou assada para doentes. E aqueles que o
contrário fizerem serão castigados com as penas impostas pelos
alvarás que proibem as vendas das carnes fora dos açougues pú-
blicos" (49).

Sempre junto com a proibição dos atravessadores, outra constante


na legislação do Governo referente ao pequeno comércio, era a oposi-
ção aos monopólios. É com tal fim que o Governo estabeleceu con-
tratos conferindo a particulares idôneos, por um tempo determinado,
mediante pagamento de certa quantia à Coroa, o privilégio de comer-
ciar certos gêneros (carne, sal, aguardentes, fumo, etc). Tal atitude
se explicava, tudo faz crer, pelo desejo da Coroa de tornar mais siste-
mático e garantido o abastecimento de certos gêneros básicos à popu-
lação . As constantes Ordens proibindo e condenando a venda de carne
fora dos açougues públicos pode ser interpretada nesta linha:
"Eu El Rey.. . sendo informado que na cidade da Bahia
se vende publicamente carne nos currais, fora dos açougues pú-

(48). — ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro 26, de 2/10/1704.


(49). — AHU, Pernambuco, Caixa 130, Carta do Presidente e mais
Oficiais da Câmara do Recife sobre proibir a venda das carnes em casadas
mulheres, de 5/3/1799.
– 97 –

blicos, e por maior preço do taxado pela Câmara, com grande


excesso e prejuízo do bem público, sendo necessário evitar este
crime tão prejudicial, hei por bem se não conceda carta de se-
guro aos culpados no tal crime tão prejudicial, e da mesma parte
a todos os atravessadores de mantimentos, assim dos naturais
como dos que forem de mar em fora..." (50).

Na Capitania de São Paulo, eram os taverneiros os que mais se


davam às "negociações" monopolistas. É contra eles que se dirige
esta postura do Secretário do Governo:
"Faço saber que me é constante que muitas pessoas, espe-
cialmente taverneiros, atravessam os mantimentos fora da cida-
de, e nas entradas dela, para os revenderem por preços excessivos,
com opressão dos mais moradores, a quem ocultam para afe-
tarem falta dos mesmos mantimentos e aumentarem a carestía.
E porque se devem evitar semelhantes monopólios e transgres-
sões, mando que toda pessoa de qualquer qualidade que seja
se abstenha dos referidos excessos puníveis, sob pena de um
mês de prisão, ou de 20$000 réis pagos na cadeia, pela primeira
vez que forem compreendidos, e de dobro na segunda: a me-
tade para o hospital, e a metade para quem acusar os trans-
gressores. E para de todo evitar as respectivas transgressões
que ocultamente poderiam fazer os taverneiros e traficantes
proibo debaixo das sobreditas penas, que nas tavernas e casas
de traficantes, onde até agora se revendia a farinha, mais se
não possa vender, nem por grosso, nem pelo miudo. E para
que não falte aos pobres a comodidade que tinham de compra-
rem a farinha aos pratos, mando que tanto nas casinhas, como
nas ruas e nas casas dos lavradores se venda tambem aos pra-
tos a quem assim as quiser comprar, sob pena de se proceder
como merecer a impiedade dos que assim não quiserem ven-
der aos mesmos pobres que não podem comprar medidas
maiores" (51).

Uma outra faceta da oposição à ação monopolista no pequeno co-


mércio se manifesta na legislação relativa à jurisdição das Companhias
de Comércio. Assim, por exemplo, no § 28 dos Estatutos da Compa-
nhia Geral do Grão Pará e Maranhão (1755), lemos :

(50). — ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro 26, de 5/4/1706.


(51). — BNL, Fundo Geral 4530, Documentos da Capitania de São
Paulo, Secretário do Governo Thomaz Pinto da Silva, de 5/10/1775.
– 98 –

"Não seria justo que a mesma Companhia prejudicasse


tanto aos negociantes destes Reinos, e daquelas Capitanias, que
vendem por miudo, que não lhes fazendo conta o seu tráfico,
viessem a ser necessitado a larga-lo, faltando-lhes com ele os
meios para sustentarem suas casas e famílias. Não poderá a
sobredita Companhia vender nunca por miudo, mas antes o
fará sempre em grossas partidas per si, e seus feitores. . . fa-
zendo sempre as vendas nos armazens da mesma Companhia, e
nunca em tendas, ou semelhantes casas particulares" (52).

Não obstante a clareza de tais determinações, três anos após a


instituição desta Companhia, parece que a tentação dos monopólios
tinha sido mais forte que as suas proibições. Em Carta Exortatória, a
Junta Administrativa da mesma Companhia assim descrevia a situação:
"A esta Junta chegaram diferentes queixas de que as fa-
zendas de mais util, usual e pronto consumo que leva as carre-
gações desta Cia. Geral, assim molhadas como secas, são nes-
ses armazens reduzidas ao tempo da chegada das Frotas a poucos
mercadores, que as compram e vendem depois como em monopólio
pelos exorbitantes preços que à sua cobiça apetece; eles é facil
desta sorte de conseguir, não só por se acharem as ditas fazendas
entregues a poucas mãos para a venda do público, mas tambem
porque ao mesmo tempo se formam iguais queixas de que nos
armazens a mesma Cia., ou em outros lugares recatados, se es-
condem as fazendas dos mesmos gêneros, a que se não pode dar
saída por aqueles poucos e certos mercadores, para que desta
sorte possam eles fazer os referidos lucros ilícitos com toda a
segurança, não tendo quem com eles concorra nas vendas que
fazem como bem lhes apetece... (Assim) para se dar remédio
a tal prejuízo do serviço de Deus, de S.M., do interesse da
mesma Cia. e do comum benefício da Religião, do Estado e dos
vassalos dele, que nas vendas dos gêneros que chegarem nesta
frota, e em todas as futuras, procedam da maneira seguinte:
sendo absolutamente estranhos do comércio da mesma Cia. o
segredo, e a cautela, que no negócio dos particulares são tão in-
dispensáveis, porque na forma de sua instituição deve vender e
comprar publicamente por preços que a todos sejam comuns e
notórios; e deve ter os seus armazens tambem francos e públicos,
sem a menor reserva para todos os mercadores e tendeiros que
vendem a retalho e por miudo, fazem nas suas vendas a concor-

(52). — AHMF, Coleção de Leis, Tomo I, Instituição daCompanhia


Geral do Grão Pará e Maranhão, de 6/6/1755, § 28.
– 99 –

rência de que aos compradores do Povo se segue o necessário


benefício de acharem por menos nas lojas e tendas dos muitos,
que sempre há necessitados a vender, os mesmos gêneros que os
negociantes opulentos (que sempre são em pequeno número),
querem vender mais caros... Que chegando as frotas ponham
Vossas Mercês públicas as carregações a quem as quiser ver
para por elas fazer os seus provimentos e surtimentos, e man-
dem afixar nas portas da alfândega e nas dos armazens da Cia.
o edital que acompanha esta. Procedendo Vossas Mercês sem-
pre na conformidade do mesmo Edital, levarão nos sábados de
cada semana, ao Governados deste Estado, ou a quem seu cargo
servir, uma exata relação das vendas que houve: em feito dos gê-
neros contidos nas sobreditas carregações, declarando nelas: 1) o
dia da venda; 2) a pessoa a quem fizeram; 3) os gêneros que lhe
venderam; 4) a quantidade que lhe transferiram; 5) os preços por-
que lhe chegaram os mesmos gêneros.. . Caso venha a faltar
algum gênero, pode (a Administração) com tal lista, proceder
contra os que o tiverem ocultando..." (53).

Se por um lado percebemos uma série de medidas oficiais prote-


gendo o consumidor e o pequeno comerciante contra os atravessadores,
contra os monopólios, contra a prepotência interesseira das Compa-
nhias de Comércio, por outro lado, notamos igualmente uma grande
insistência do poder público em restringir e cercear a atividade comer-
cial dos negros e mulatos, forros ou escravos. Conforme dissemos, já
no tempo da Visitação do Santo Ofício, no final do nosso 1o século,
dava-se notíciada existência de "negra taboleira" perambulando pela
cidade de São Salvador. É sobretudo no século XVIII, que vamos en-
contrar diversos alvarás, bandos e decretos proibindo às gentes de cor
o exercício do comércio. Parece ter sido na região das minas que este
comércio mais irritava o poder público. Eis o que dizia El Rei em
1722:

"Faço saber aos que este meu bando virem, que tendo res-
peito a me representar a Câmara desta vila do Carmo, que os
mineiros do distrito delas recebiam grande prejuízo na permissão
que havia para venderem as negras de taboleiros pelas lavras e
faisqueiras, incitando aos escravos a que lhe comprem com ter-
mos escandalosos, e alem de gastarem nesta profissão os jornais
de seus senhores e cometerem várias ofensas contra Deus Nosso
Senhor, e desejando eu dar providência necessária para que se.

(53). — AHMF, Carta Exortatória e Ordens que a Junta da Companhia


Geral expediu aos seus Administradores daquele Estado, Companhia Geral
do Grão Pará e Maranhão, 1-4, de 29/7/1758.
– 100 –

evitem semelhantes absurdos, sou servido ordenar que nenhu-


ma negra, escrava ou forra, possa sair fora do corpo desta Vila
e arraiais do distrito dela, a vender com tabuleiros, ou sem ele,
cousas comestíveis, ou bebidas, pelo prejuízo que disso resulta...
E toda pessoa que achar qualquer negra de quem quer que for,
fora desta vila, ou dos arraiais do seu distrito, lhe tomará logo
o tabuleiro ou o que trouxer para vender, assim comida como
bebida, e trará a dita negra à cadeia desta vila, e não fazendo,
não somente será castigada, mas pagará a condenação que o
Sr. da mesma negra havia de pagar, ou ela, sendo forra. E tra-
zida assim à cadeia, estará um mês nesta, e antes de sair pagará
seu Senhor ou a mesma negra, sendo forra, 20 oitavas de ouro
que se aplicarão para as obras públicas da câmara desta vila,
e sem satisfazer a condenação não poderá ser solta..." (54).

Este outro bando, de 1743, legisla não só a respeito das negras


ambulantes, mas tambem das que comerciavam em quitandas e ta-
vernas:
"Por me constar a grande fraude que se segue à Fazenda
Real e ao contrato dos diamantes de haver nas terras demarcadas
da Comarca do Serro Frio, negras e mulatas com tabuleiros, e
que de estarem os negros e mulatos em casa deles e nas vendas
cometendo mil desordens, é que provém repetidos insultos e
roubos. Para remédio destes, hei por bem mandar que daqui
por diante, dentro das terras marcadas, não possam andar as
ditas negras ou mulatas com tabuleiros pelas ruas ou lavras, e
só lhes seja permitido os negros venderem comestíveis nos ar-
raiais em parte destinada, chamada geralmente quitanda, como
também proibo, que de dia nem de noite, possa escravo algum,
mulato ou negro forro, entrar dos mostradores das tavernas ou
lojas para dentro, e nem pernoitar nelas..." (55).

É facil entender a intransigência pública contra tais negros e ne-


gras de tabuleiro, na medida em que em troca de suas mercadorias re-
cebiam dos escravos mineradores, ouro em pó, diamantes ou dinheiro,
que por direito deveriam pertencer a seus senhores. Nas cidades, no
entanto, haviam muito maior tolerância em relação ao comércio ambu-
lante das gentes de cor. Mais do que isso, podemos afirmar que sem
as negras vendedeiras das ruas, seria praticamente inviavel viver no
Rio de Janeiro, Salvador e Recife, especialmente durante os séculos
(54). — ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro 26, Vila do Carmo, de
10/1/1722.
(55). — ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro 31, Bando de 1/3/1743.
– 101 –
*
XVIII e XIX. Eis um inventário incompleto de alguns produtos que
os negros e negras vendiam na cidade do Rio de Janeiro na primeira
metade do século passado: flores, refrescos, cestos, aves, palmito, milho,
capim, leite, cavalos, cabras, frutas, bolos, angú, peixe, carvão, cebola,
alho, tripas, linguiça, aluã, manuê, sonhos, ataçaça, café torrado, etc.
(56). Para se aquilatar o quão importante e familiar devia ser para o
habitante do Rio de Janeiro tal comércio negro, nada melhor do que as
palavras desteartista francês, autor de inúmeras pinturas que tiveram
como tema exatamente as tais negras vendeiras:
"Por volta das 6 horas da manhã surgem os carregadores de
água e de leite e as vendedoras de pão-de-ló. De 6 a 7 horas
encaminham-se sossegadamente para o centro da cidade os ne-
gros de ganho; uns preparam durante o caminho folhas de pal-
meiras para a confecção de chapéus, enquanto outros, menos
ativos, acertam sossegadamente o passo ao som da marimba. Na
mesma hora, esto é, de 6 a 8 horas, os mercados situados nas
praias de desembarque e já abastecidos pelas embarcações che-
gadas de madrugada, apresentam um movimento generalizado
de quitandeiras que se encontram o resto do dia nas ruas ou
nos mercados internos da cidade. De 8 horas ao meio dia os
cafés das grandes praças ou das imediações da Alfândega tor-
nam-se o ponto de encontro dos comerciantes vindos do inte-
rior a negócios. De 8 às 11, vêem-se tropas chegadas de São
Paulo e Minas estacionarem na rua Direita, na altura da Igre-
ja da Cruz, descansando da última marcha noturna, depois de
descarregada a mercadoria... Por volta das 4 da tarde tornam
a aparecer nas ruas as vendedoras de pão-de- ló para a hora do
chá. No mesmo momento aparecem tambem as vendedoras de
velas; outras vendem doces, sonhos, etc; estas últimas se dirigem
para o largo do Palácio onde se reunem das 4 às 7 os pequenos
capitalistas e negociantes. De 7 às 10 ou ve-se nas ruas o
pregão dos vendedores de amendoim torrado, de milho assado,
pasteis quentes, pasteis de palmito, pudim quente, manuê, etc,
iguarias todas de grande procura..." (57).

Em São Paulo, segundo St. Hilaire, tambem as negras manipula-


vam o comércio dos legumes, frutas, verduras. Contudo, salienta o Via-
jante,

(56). — Debret (J . B . ) , op. cit., Tomo I e II, Pranchas n° 9, 12, 13,


14; 17, 20, 21, 30, 32, 33, 35, 36.
(57). — Idem, ibidem, p. 288.
– 102 –
"em São Paulo não são encontrados negros a percorrer as
ruas, como no Rio de Janeiro, transportando mercadorias sobre
a cabeça. Os legumes e as mercadorias de consumo imediato
são vendidos por negras, que se mantêm acocoradas na rua, que
por motivo de tal comércio, tomou o nome de rua da Quitan-
da" (58).

No Recife, pelo visto, tais negras manipulavam significativa pro-


porção do comércio, o que levou à reação da classedominante, como
se pode ver através deste documento de 1769:
"Pelas leis de V.M. fidelíssima se observava inviolavel-
mente nesta capitania de Pernambuco não permitir a vender
pelas ruas, pretas cativas todos os gêneros, como muito antes se
praticava, e como é estilo nesta terra o fazer-se pelas ditas (ne-
gras) todas as qualidades de vendagens de frutos, legumes, doces, e
principalmente no cumprimento da premática de 21 de abril de vendendo
1751, vendendo estas tão somente panos brancos, e mais quinqui-
lharias como se vê do Cap. 18 da referida premática. E porque
debaixo daquele título pelo decurso de tempo foram
algumas fitas de seda, fazendas de algodão da índia de cores,
bretanha e aniagem, e não outras fazendas. O que de presente
foi requerido ao Ministro de V. M. para proibir fazer-se a
referida vendagem pelas ditas pretas, e que o dito Ministro jus-
tamente à risca fez observar as ordens de V.M., como nelas de-
clara. E porque se nos requereu para pormos na Real presença
de V.M. e que reconhecemos por certo, haverem muitas casas
de viuvas honestas com filhas donzelas, e outras muitas que
vivem de suas manufaturas, e nestas partes de parvo rendimento,
com o adjutório que percebiam das vendagens dos ditos gêneros
comprados a maior parte destes aos mesmos lojistas, sendo
muitos fiados para lhe ficar algum lucro... e privadas aquelas
pobres miseráveis deste limitado remédio, o único recurso que
há no Brasil, que é o de comprar e vender, e por falta de víveres
nesta, nos move a por, na Real presença de V.M. que serão
tantas as desonras e descréditos nestas famílias obrigadas da
necessidade e miséria, como se tem visto em algumas, por lhe
faltarem os meios de se poderem remediar... (59).

E o mesmo documento conclui salientando que os maridos das


pobres viuvas foram, em sua maioria,

(58). — Saint-Hilaire, op. cit., p. 162-163.


(59). — AHU, Pernambuco, Caixa 37, de 19/8/1769.
– 103 –

"honrados e servidores de V.M.".


É por demais claro quais são os móveis de tal interdição ao comér-
cio das negras: trata-se de proteger a elite comerciante contra a ameaça
da competição das negras e mulatas vendedeiras.
Após termos analisado de maneira sumária, alguns aspectos da
política portuguesa em relação ao pequeno comércio, passamos a se-
guir, à guisa de conclusão, a focalizar dois aspectos muito importantes
que os pequenos comerciantes do período colonial, e mesmo pós-inde-
pendência tiveram que enfrentar: o problema da falta de moeda e o
costume generalizado das compras a crédito.
A falta de moeda se fez sentir desde os primórdios de nossa colo-
nização . Escrevia Gandavo, na segunda metade do século XVI:
"O dinheiro é pouco na terra, e assim vendem e trocam
uma mercadoria por outra em seu justo preço" (60).

Em carta a El Rei, eis o que dizia o Governador da Bahia em


1678:
"Entre as mais necessidades que padece o povo, é uma pe-
núria da moeda, procedido de que como as drogas e gêneros que
daqui se navegam para esse Reino, responde com tanta perda
aos negociantes, (que) querem levar os cabedais como levam,
antes em moeda do que em fazenda... Estamos já experimen-
tando tão grande dano que se o não atalhamos com prudente
remédio, que de V.A. esperamos, vir-se-á a perder o negócio
do mar, e se impossibilita o trato humano da terra, e buscar no
gênero de moeda com que mancasse nos gastos cotidianos..."
(61).

Vinte anos mais tarde, parece que a situação na Bahia era ainda
mais drástica:
"A moeda que tem esta Praça, é toda estrangeira, e são
selos, meios selos, e quartos. E não é muita, nem da melhor,
tanto no peso como na qualidade da prata. E da moeda portu-
guesa, temos somente tostões e meio tostões antigos, que hoje
valem 240 e 120. E a outra moeda miúda é tão pouca, que se
pode reputar por nenhuma, de que nasce a geral queixa da
pobreza e povo, que nos obriga a que em seu nome apresentemos

(60). — Gandavo (P. M.), op. cit. p. 81.


(61). — AHU, Bahia, Caixa 13, de 16/8/1678.
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a V.M. os discômodos que padece por falta de troco, de que
muito necessitam para as compras miudas e esmolas... Que
se façam moedas de vintém, 2 vintens, meio tostões, 3 e 4 vin-
tens, e tostões..." (62).

Refletindo sobre esta situação de penúria de metal, Costa Porto


conclui:
"O comércio na Colônia não passava de escambo generali-
zado, trocando-se gêneros por gêneros, servindo o dinheiro ape-
nas como critério fixador do valor. Se por exemplo a arroba de
açúcar custava dois cruzados e um boi quatro mil réis, tocava-
se a rês por cinco arrobas de açucar" (63).

Foi com vistas a contornar tal carência, que El Rei permitiu que
na região das minas fosse utilizado o ouro quintado como meio de
circulação (64). Contudo, não satisfeitos com isso, os mineiros pas-
sam a fazer suas transações comerciais utilizando-se do ouro em pó a
fim de pagar aos mercadores. Novo Bando de S. Majestade:
"Quando não se havia ainda cunhado moedas suficientes,
permitiu-se o uso do ouro em pós e em folhetas para o trato e
comércio da Capitania. Mandou El Rei lavrar moedas para evi-
tar o gravíssimo prejuizo que resulta à real Fazenda de correr o
ouro em pó e extrair-se para fora das Minas sem pagar o quin-
to... Determina-se que nenhuma pessoa possa vender, comprar
ou trespassar ouro algum de qualquer qualidade" (65).

Relacionado diretamente ao problema da falta de moeda está o


costume amplamente praticado na Colônia, e que apresenta reflexos
bastante pronunciados ainda em nossos dias, que é o crédito.
"Um recurso para iludir o problema da falta de moeda du-
rante o período colonia!, é o crédito. Ele criou no Brasil colo-
nial o comércio fiado, deplorado em inúmeros documentos dos
primeiros séculos de nossa história, como o maior fator da ruina
dos mercados internos... D. Luiz Antônio de Souza, em carta
ao Marquês de Pombal, apresenta c comércio de São Paulo co-
mo 'insubsistente, pelo demasiado abuso de vender fiado...
nasce daí o costume de se venderem as cousas por exorbitantes

(62). — AHU, Bahia, Caixa 16, de 16/7/1689.


(63). — Costa Porto, op. cit., p. 145.
(64). — AHU, Minas Gerais, Caixa 1, de 1711.
(65). — ANTT, Manuscritos do Brasil, Livro 26, de 8/2/1730.
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preços para que os lucros de umas cubram as perdas nas outras...


Como está em uso fiarem todos, quem não fia não vende!" (66).

Embora aceitemos a correlação existente entre a falta de moeda


e a propagação do fiado no Brasil Colônia, o certo é que tal institui-
ção parece possuir raizes mais profundas, que remontam à própria tra-
dição comercial de Portugal. Não é sem razão que no Livro das Orde-
nações e Leis deste Reino (1603), no § XVIII, encontramos:
"O carniceiro que der carne fiada a alguma pessoa, ou
padeiro pão, ou taverneiro vinho, e demandarem ao juizo seus
devedores a que as ditas cousas fiaram, posto que não tenham
testemunhas porque possam provar as dívidas, havemos por bem
que sejam cridos por seu juramento, contanto que a dívida não
passe de mil réis..." (67).

Pelo visto, o fiado era praticado em todas as Capitânias: em Per-


nambuco, na Bahia, nas Minas Gerais, em São Paulo. No Maranhão,
a situação é assim descrita nos finais do século XVII:
"Negocia-se no Maranhão trocando-se umas fazendas por
outras. Porem, como os moradores não têm fazendas para satis-
fazerem logo as que compram, é necessário que os mercadores
lhas vendam fiadas... Só as drogas comestíveis são vendidas a
dinheiro, o mais vão tambem fiadas..." (68).

Contudo, era na região das Minas, que o fiado constituía o prin-


cipal problema.
"Os moradores destas minas compram fiados: negros, cava-
los, ferramentas, sustento, vestido, enfim: tudo. E por causa
destes empenhos, têm sempre os credores à porta, e assim, quan-
do ouro tiram, entregam logo aos seus credores, por não serem
executados... Nas Minas tudo se compra fiado, e quem assim
compra não regateará, antes, muitas vezes, que vai comprar um
vestido fiado, receia que lho não queiram fiar. E assim, quando
o pede ao mercador, não pergunta quanto custa — diz que o

(66). — Omegna (Nelson), A Cidade Colonial, Rio de Janeiro, Livra-


ria José Olympio Ed., 1961, p. 300 e 393.
(67). — Ordenações e Leis do Reino de Portugal (1603), Livro Quarto,
§XVIII: Quando os Carniceiros, Padeiras ou Taverneiros serão cridos por seu
juramento, no que venderem fiado seus misteres.
(68). — BNL, Fundo Geral 585, João de Moura: Colônia Portuguesa
que contem Três Tratados: O Estado do Maranhão; A Agricultura e as Dro-
gas; Da Arte Militar.
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corte, e que o assente em sua conta, e só sabe por quanto o
comprou quando o paga. E assim sempre o preço é ao arbítrio
de quem vende... É natural a antipatia que têm todos os mo-
radores das minas com os homens de negócio que lá vão vender
os gêneros. Porque tais homens de negócio os executam, os
arrastam e vexam sempre, sendo senhores de seu ouro e dos
bens, porque lhes vendem as cousas por muito mais do que
valem, e depois lhas tomam por pouco mais de nada, de que
vive a maior parte daquele povo escandalizado. Porem, como
não pode viver sem os gêneros que vão de fora, acabam mui-
tas vezes de uma tormenta, e entram logo em outra, mas é
sempre com tédio para os negociantes" (69).

No Discurso sobre o Estado atual das Minas do Brasil, encontra-


mos outra descrição de quão problemático era o fiado naquelas para-
gens:
"Os credores particulares, que pela maior parte se vêem
obrigados a receber de seus devedores uns papeis chamados
créditos de devedores, tão falidos como aqueles que os dão em
pagamentos, sem jamais poderem realizar as suas dívidas. Nas
Minas tudo é vendido a crédito, até a mesma carne do açougue,
na esperança do ouro, que nunca aparece..." (70).

(69). — AHU, Códice 54, Informação de Manuel Soares de Sequeira


sobre o Estado das Minas e arrecadação do Quinto Real do ouro nela extraído,
Capítulos 14-18-68, posterior a 22/9/1734.
(70). — BNL, Fundo Geral 7996, Discurso sobre o Estado Atual das
Minas do Brasil, dividido em duas partes. Na primeira mostra-se que as Mi-
nas de Ouro são prejudiciais a Portugal, não só pelo muito que já hoje o Es-
tado perde nelas, mas tambem pelos muitos braços que elas tiram à Agricultura.
Na Segunda parte apontam-se os meios de se aproveitar a produção e a agri-
cultura no Continente das Minas que aliás (está) perdido para o ano; de José
Joaquim da Cunha Azeredo Coutinho fl. 7.

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