B - Luciana Loponte - Desafios Da Arte Contemporanea para A Educação
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Resumo: O presente artigo apresenta discussões em torno dos desafios que as artes podem
trazer ao campo da educação, problematizando especialmente os modos pelos quais as
produções contemporâneas podem instigar processos de formação menos lineares e mais
abertos, menos rígidos e mais flexíveis, menos racionais e mais poéticos, capazes de produzir
um pensamento que nos ajude a enfrentar a complexidade que é educar em nosso tempo. A
relação e tensão entre arte e educação são exploradas no texto, além de seus possíveis efeitos
em práticas e políticas educacionais mais amplas. Como principal companhia teórica,
utilizam-se os aportes filosóficos de Friedrich Nietzsche, teóricos das artes tais como Arthur
Danto, além da discussão a partir da produção de três artistas contemporâneas.
Palavras-chaves: arte contemporânea, formação, educação, práticas e políticas educacionais,
Brasil
complex task of educating in our times. This text also explores the connection and the
tension between art and education, in addition to their possible effects on broader
educational policies and practices. As theoretical basis, we use philosophical inputs from
Friedrich Nietzsche, art theorists such as Arthur Danto, and the discussion triggered by
works from three contemporary artists.
Keywords: contemporary art, training, education, educational policies and practices, Brazil
1 Este artigo é uma versão modificada de texto apresentado na mesa-redonda “Quando a arte desafia
a educação”, no âmbito do 4º SBECE – Seminário Brasileiro de Estudos Culturais e Educação,
realizado na Universidade Luterana do Brasil – ULBRA, em Canoas, Rio Grande do Sul, Brasil, de 23
a 25 de maio de 2011.
Arquivos Analíticos de Políticas Educativas Vol. 20, No. 42 3
que diferenças, a almejar um conhecimento puro e desconfiar dos hibridismos (Silva, 2000;
Veiga-Neto, 2002; Mosé, 2011).
Voltemos, pois, aos centauros do filósofo. Figura mitológica grega, o centauro traz
em si a contradição entre animal e humano, entre modos de subjetividade, entre naturezas,
entre visões de mundo. Precisaríamos mesmo definir quanto há de humano e de animal em
uma figura como essa? O quanto de verdadeiro ou de pura ficção? A quem interessaria?
Sereias, centauros, quimeras, dragões: o indefinível, o inominável, o impuro, o trágico. De
alguma forma, o convite é que todos nós, na companhia de Nietzsche, sejamos capazes de
conceber centauros e pensar além da obviedade das disciplinas.
É assim, elegida uma das principais companhias teóricas desse texto e ao lado de
centauros, que procuro responder à indagação: quando a arte desafia a educação? Ou, indo
mais além, quando a arte contemporânea, esta desnorteante produção artística de nosso
tempo, pode desafiar nossos modos de pensar a educação, suas práticas e políticas? Há que
se falar um pouco da relação entre esses dois saberes, ou entre o mundo da arte e o mundo
da educação. Olham-se desconfiados, duvidando da capacidade um do outro, fazendo a
crucial pergunta: o que isso tem a ver comigo? Realidades paralelas, mundos distintos, por
vezes promovem encontros tímidos. As artes adentram a escola, em parte, com contornos
românticos e instintos domesticados, disfarçadas de personagens tais como coelho da
páscoa, cartões festivos, objetos artesanais utilitários ou, ainda, de forma mais sofisticada, na
pele de “artistas famosos” e suas indefectíveis reproduções e “releituras-cópias”2. O mundo
da educação flerta com o mundo da arte por meio de ações educativas e mediações em
exposições de arte, muitas vezes na tentativa de controlar e “didatizar” obras nem um pouco
controláveis; ou, ainda, como uma concessão quase supérflua dos projetos curatoriais
interessados em garantir seu público (e, por conseguinte, patrocínios e financiamentos). Na
verdade, não se trata de uma relação fácil e cordial entre esses mundos, é preciso admitir. O
que a educação pode aprender com a arte? O que a arte pode aprender com a educação? Ou,
mais especificamente, chegando mais perto das questões que pretendo desenvolver neste
texto: de que modo a arte contemporânea pode instigar processos de formação, e mais
especificamente a formação docente, menos lineares e mais abertos, menos rígidos e mais
flexíveis, menos racionais e mais poéticos, capazes de produzir um pensamento
contemporâneo capaz de enfrentar a complexidade que é educar no nosso tempo?3
A relação entre arte e educação tem sido objeto de reflexão e estudo há muito
4
tempo , e, dentre tantas possibilidades e demandas de pesquisa, o que interessa aqui não é
2 No Brasil, o ensino de arte é obrigatório nos diversos níveis da Educação Básica principalmente
desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB 9394, aprovada em 1996. No
entanto, a conquista da presença da arte nas escolas brasileiras através da legislação, ainda não
significa exatamente melhor qualidade desse ensino. Embora seja possível perceber mudanças
importantes nesse cenário, encontramos com certa facilidade nas escolas práticas consideradas
ultrapassadas e traduções apressadas de abordagens metodológicas contemporâneas sobre ensino de
arte, derivadas em parte pela falta de formação específica ou formação precária dos professores que
atuam neste ensino. Para uma análise mais detalhada dessas situações, ver Loponte (2004; 2005;
2010), Barbosa (1989; 2002), Sardelich (2001).
3 Estas indagações estão sendo discutidas no projeto de pesquisa em andamento (com início em
2010) “Arte contemporânea e formação estética docente”, sob minha coordenação e com
financiamento do CNPq.
4 A produção acadêmica em torno da arte e educação no Brasil é relativamente recente, iniciando-se
em meados dos anos 70 e fortalecendo-se principalmente nos últimos 20 anos, com a formação de
novos mestres e doutores na área a partir de linhas de pesquisa específicas tanto em Programas de
Pós-Graduação em Artes quanto em Educação. Uma das entidades educacionais mais importantes
Desafios da arte contemporânea para a educação 4
de arte e educação no mundo inteiro, principalmente a partir do lançamento do livro Educação através
da arte, publicado originalmente em 1943, com várias reedições e revisões posteriores. No Brasil, foi
publicado pela primeira vez em 1982, pela Editora Martins Fontes. A tese principal do autor é
apresentada já na primeira página: “a arte deve ser a base da educação”.
6 Diz Eisner (2008, p.11): “abrir-se à incerteza não é uma qualidade penetrante do nosso ambiente
educacional corrente. Eu acredito que ela precisa estar entre os valores que nós amamos. A incerteza
precisa de ter o seu próprio lugar nos tipos de escola que nós criamos”.
Arquivos Analíticos de Políticas Educativas Vol. 20, No. 42 5
que deveríamos fazer, as formas de ser que deveríamos adotar ou que rumo tomar a
partir de tais interferências. Creio que o campo da pedagogia tem coisas a aprender
com esse modo de fazer arte (Farina, 2008, p. 103).
A autora faz algumas perguntas cruciais para quem se pretende arriscar em criar
novos encontros entre arte e educação: “como conciliar a fluidez e a instabilidade que a
experiência desata com o desejo da pedagogia de orientar e custodiar?”. Ou ainda, de que
modo “assumir e atuar conscientemente tanto com o poder que irrompe na forma, como
com o poder da vontade de forma nos processos de formação”? (Farina, 2008, p. 103-104).
Explorando a tensão entre os encontros e desencontros da arte na educação, e contaminada
pela atitude artística, poética e trágica diante da vida que emerge da produção
contemporânea nas artes, podemos pensar, tal como nos adverte Favaretto (2010), na
necessidade da arte na escola e na educação, no “horizonte das transformações
contemporâneas, da crítica das ilusões da modernidade, da reorientação de seus
pressupostos” (Favaretto, 2010, p. 229). Este pensamento implica necessariamente uma
revisão em nossas crenças e justificativas em torno da presença da arte na escola, indo além
das respostas mais óbvias: de que arte mesmo estamos falando? Que tipo de formação
através da arte buscamos alcançar?
Não há respostas fáceis, e a educação e o discurso em torno dela vive em busca
dessas saídas mágicas: seria uma metodologia, seria uma premiação, um investimento
financeiro, seriam novos exames balizadores que dariam conta dos problemas da educação e
da formação docente? Nossos problemas em educação são muito mais complexos e
intrincados do que qualquer resposta pronta seria capaz de prometer e, enquanto estamos
pensando ou mergulhados no embate diário das práticas educativas, vemos repetidamente
surgir um discurso na mídia que tende a encontrar, em uma análise economicista ou em uma
análise de estatísticas e de índices, um diagnóstico mais preciso sobre o que acontece em
educação no contexto brasileiro7.
Nesse sentido, chama a atenção o movimento realizado por algumas grandes
exposições de artes visuais realizadas no Brasil nos últimos anos, tais como a Bienal do
Mercosul, em Porto Alegre (RS), ou a Bienal de São Paulo, ao instituírem a figura do
“curador pedagógico”8. Os projetos pedagógicos dessas exposições têm apresentado
discussões mais ousadas em relação à aproximação entre arte e educação, além do lugar
acessório que tradicionalmente ocupam na busca de captação de público9.
7 A este respeito, conferir a importância atribuída à divulgação dos resultados do IDEB 2011 (Índice
de Desenvolvimento da Educação Básica) e o seu impacto em novas políticas educacionais. O
referido índice é obtido através de provas realizadas em todo o território nacional, apenas com as
disciplinas consideradas “essenciais”, Português e Matemática. Ver os sites:
http://ideb.inep.gov.br/resultado/ e
http://download.inep.gov.br/educacao_basica/portal_ideb/o_que_e_o_ideb/nota_informativa_ide
b_2011.pdf
8 Sobre essas exposições e seus projetos educativos, conferir os sites
http://www.fundacaobienal.art.br/ e http://www.bienal.org.br/FBSP/pt/Paginas/home.aspx
9 A esse respeito ver, por exemplo, as afirmações de Camnitzer (2009), curador pedagógico da 6ª
Bienal do Mercosul, realizada em 2007: “O fato é que é necessário introduzir a arte na educação
como uma metodologia pedagógica e como uma metodologia para adquirir conhecimentos. O fato é
que é necessário introduzir noções pedagógicas na arte para afinar o rigor da criação e para melhorar
a comunicação com o público ao qual o artista quer se dirigir. O fato é que não há verdadeira
educação sem arte nem verdadeira arte sem educação” (Camnitzer, 2009, p. 21); e ainda as
considerações de Pablo Helguera, curador pedagógico da 8ª Bienal do Mercosul (realizada em 2011),
Desafios da arte contemporânea para a educação 6
qual são disponibilizados vários documentos com argumentos sobre a importância da arte na
educação e na formação de crianças e jovens, tal como “Arts education: creating student sucess in
school, work and life” (“Arte educação: criando estudantes de sucesso na escola, no trabalho e na
vida”). Este documento, assinado por mais de vinte entidades internacionais ligadas às artes, é
endereçado diretamente aos legisladores de vários países, comunicando e argumentando a respeito
dos benefícios da arte na educação.
Arquivos Analíticos de Políticas Educativas Vol. 20, No. 42 7
Revendo criticamente mais tarde muitas de suas posições, inclusive suas filiações estéticas,
Nietzsche vai além: por que não poderíamos fazer de nós mesmos tal fenômeno estético?11.
Fugindo a qualquer comparação direta ou paralelismo enganador, não poderíamos
pensar em cintilações desse espírito trágico nietzscheano, nas provocações estéticas
desequilibrantes e dissonantes que as artes visuais contemporâneas têm trazido para pensar
sobre nós mesmos, e a vida que levamos neste conturbado século XXI, (malgrado a distância
que o grande público e, por consequência, a escola, mantém desse tipo de produção)?
11 Para mais detalhes sobre estas questões na obra de Nietzsche ver Dias (2005; 2006), Machado
(2002; 2005), Loponte (2003). Muitos anos mais tarde, Michel Foucault, fascinado com as práticas
ético-estéticas da Antigüidade, diz em entrevista, a respeito da ética que seria possível construir hoje
em dia: “(...) não poderia a vida de todos se transformar em uma obra de arte? Por que deveria uma
lâmpada ou uma casa ser objeto de arte, e não a nossa vida?” (Foucault, 1995, p. 261).
12 Trata-se de trabalho apresentado durante a 7ª Bienal do Mercosul de Porto Alegre (2009) no qual o
artista teve como proposta trabalhar com objetos de desejo de três comunidade de Porto Alegre.
Objetos tais como instrumentos musicais, camisetas de futebol e um ônibus foram fabricados pelas
pessoas dessas comunidades em madeira e em escala real, com a ajuda e orientação do artista. O
projeto completava-se com a aquisição destes objetos expostos na Bienal por quem quisesse, em
troca dos objetos reais. Até o final da exposição, todos os objetos tinham sido trocados. Para mais
detalhes ver o site: http://www.panoramacritico.com/004/entrevistas_03.php e
http://www.bienalmercosul.art.br/7bienalmercosul/es/nicolas-floch
Desafios da arte contemporânea para a educação 8
que vemos a arte do passado que nos impeça de captar a arte de nosso tempo (Cauquelin,
2005). O modo de narrar que emerge da arte contemporânea exige outras expectativas em
relação às exposições de arte, outra geração de curadores, outros espaços museológicos e,
sem dúvida nenhuma, outra geração de docentes de arte.
E o que a arte contemporânea, esta narrativa que surge em algum momento da
metade do século XX e nos faz a todo instante perguntar, afinal, o que é arte, teria a dizer a
nossas preocupações pedagógicas? Volto a Danto e a uma das frases do texto de
apresentação do seu livro: “A arte contemporânea tem permitido experimentos
extraordinários, imensamente mais ricos do que a desamparada imaginação filosófica poderia
conceber por si só” (Danto, 2010, p. XXIV). Parafraseando a Danto, poderia dizer, de modo
mais enfático, que a arte contemporânea, cada vez mais, tem proporcionado um conjunto de
experiências profundamente intensas e ricas do que nossa vã imaginação pedagógica, tão
afeita à sensatez, seria incapaz de conceber.
Voltando aos principais objetivos deste artigo, que dizem respeito particularmente
aos desafios que a arte contemporânea pode trazer aos nossos modos mais lineares de pensar
a educação e aos processos de formação, convido o leitor a experimentar o estranhamento
provocado pelas produções artísticas de três artistas contemporâneas. De que modo
produções como essas podem instigar nosso pensamento sobre educação?
13Refere-se à expressão utilizada por Foucault em entrevista a Dreyfus e Rabinow, quando fala a
respeito de sua discussão sobre ética a partir do estudo de modos de subjetividade da antigüidade:
“Dentre as invenções culturais da humanidade, há um tesouro de dispositivos, técnicas, idéias,
procedimentos etc., que não pode ser exatamente reativado, mas que, pelo menos, constitui, ou ajuda
a constituir, um certo ponto de vista que pode ser bastante útil como uma ferramenta de análise do
que ocorre hoje em dia – e para mudá-lo” (Foucault, 1995, p. 261).
14 Mais informações sobre a artista e suas obras podem ser encontradas nas seguintes fontes: a
http://www.29bienal.org.br/FBSP/pt/29bienal/participantes/Paginas/participante.aspx?p=130;
artigo sobre suas obras: http://www.egodesign.ca/en/article.php?article_id=428&page=1, e
entrevista com a artista: http://www.foto8.com/new/online/blog/967-sophie-ristelhueber-
interviewed
15 Sobre a artista ver o site http://www.rosangelarenno.com.br
Desafios da arte contemporânea para a educação 10
Permanece uma questão: a arte também traz a luz muito do que é feio, duro,
questionável da vida – ela não parece com isso tirar a paixão pela vida? [...] Mas isso
– já o dei a entender – é ótica do pessimista e ‘mau olhado’ – devemos recorrer aos
próprios artistas. Que comunica de si o artista trágico? Não mostra ele justamente o
estado sem temor ante o que é temível e questionável? (Nietzsche, 2006, p. 77-78).
A arte contemporânea, trazida para esse texto e traduzida no olhar de três “artistas
trágicas”, pode despertar um estado artístico de estranhamento, este estado sem temor diante
do que atemoriza, um verdadeiro estado de criação, dependendo do modo como lidamos
com ela16. E é justamente a possibilidade aberta por essas produções artísticas de
desencadear experiências estéticas, que fogem às expectativas mais românticas e
consoladoras em torno da arte, o que carrega o seu principal potencial “pedagógico” (no
sentido mais expandido que essa palavra pode ter): “a experiência do estranho e até mesmo
do horror, vivenciada pela experiência estética, põe em jogo o outro de nós mesmos, numa
condição privilegiada de manejo com a alteridade” (Hermann, 2010, p. 133). Provocações,
deslocamentos em relação a si mesmo e aos outros, em relação às práticas e poéticas
pedagógicas mais arraigadas: estaríamos preparados? “Estar receptivo à arte é reviver a
experiência do criar” (Dias, 2006, p. 202). O que isso pode dizer para a educação, a escola e a
formação docente?
Está lá a escola, mais do que desafiada, acuada diante dos acontecimentos trazidos
pela universalização do ensino, pela falta de comunicação entre professores e alunos, pelas
condições precárias para o exercício do pensamento e da subjetividade de todos os
envolvidos com o espaço escolar. Ainda vemos a prevalência do modelo da “sensatez
pedagógica escolarizada” (Jódar; Gómez, 2004, p. 141). É ainda a escola, “o cenário de uma
máquina conservadora de repetições e recorrências”, uma “máquina produtora de sensatez
mais do que sensibilidades” ou produtora de uma sensibilidade que “fabrica juízes mais do que
fazer possível a criação de artistas” (Obregón, 2007, 74-75). O que há para fazer nesse
cenário?
Talvez qualquer resposta esteja em estranhar o cenário, em olhá-lo de uma “artística
distância”, em procurar o estranhamento do olhar em outros cenários. Podemos sim
aprender, com a arte de modo geral e com as metáforas da arte contemporânea17, certa
conversão de olhar, ou um estado artístico que nos instiga a desconfiar das verdades,
matéria-prima tão privilegiada do universo escolar, em direção a um saber que não nos faz
apenas “reencontrar” uma determinada essência de conhecimento que estaria perdida, mas
16 É importante ressaltar que, apesar de este texto lançar um foco especial sobre a relação entre arte
contemporânea e educação, o “estado artístico de estranhamento” não é uma potencialidade
exclusiva a ser despertada apenas por tal tipo de produção, mas característica presente na arte
realizada em diferentes épocas, espaços e lugares.
17 A esse respeito, compartilho inquietações semelhantes (embora com alguns caminhos distintos)
das pesquisas realizadas por Farina (2010, p.3): “(...) o que implica para os processos de formação de
professores de Arte uma relação direta com obras e propostas de arte contemporânea? Quais seriam
os diferenciais de qualidade ou graus de intensidade na percepção desses professores quando seu
corpo está implicado em experiências estéticas com propostas de arte contemporânea? Como levar
essas diferenças ou graus de alteração da percepção pela experiência estética até a formação reflexiva
com sua prática docente?”.
Arquivos Analíticos de Políticas Educativas Vol. 20, No. 42 11
um saber que também é capaz de cortar, ir além dos trilhos já traçados e dos caminhos que já
conhecemos18.
É preciso lembrar, no entanto, que não falamos aqui daquela narrativa de arte de
contornos românticos e consoladores, da arte colada ao adjetivo “belo” ou da arte que quer
confortar mais do que fazer pensar. É preciso, antes de tudo, despirmos nosso olhar da
busca desenfreada de certa “verdade” na arte, no reencontro apaziguador do que já sabemos
nas imagens que os artistas contemporâneos nos apresentam. É assim que talvez consigamos
ver a atividade poética de encontrar cicatrizes de guerra em territórios de conflito, inventar
destinos impensados para fotografias e câmeras fotográficas analógicas, fazer explodir
vísceras de azulejos barrocos. “A verdade é feia: nós temos a arte a fim de que a verdade não
nos mate” (Nietzsche, apud Machado, 2002, p. 86). Se a verdade é, ao fim e ao cabo, pura
ficção, se a existência humana é pura dissonância e contradição, por que a arte não seria o
cenário mais do que propício para expormos o quanto temos de humano, sem disfarçar ou
esconder tanto a beleza e a feiúra de ser o que somos?
As narrativas contemporâneas da arte trazem até nós, caso queiramos ver, uma aguda
visão sobre nós mesmos e o que estamos fazendo do mundo em que vivemos. Não se trata
de um olhar didático ou controlado, como muitas vezes deseja o discurso pedagógico, mas
repleto da desordem e insensatez própria das coisas que pulsam. Muitas vezes, a relação tão
estreita entre arte contemporânea e mesquinharias e pequenezas cotidianas pode confundir
nossas expectativas mais românticas sobre arte. Talvez esteja aí mesmo a maior potência
dessas produções: trazer até nós a vida sem molduras, a arte como forma de ver a vida.
Ressonâncias da arte a que se refere Nietzsche em muitos de seus escritos, como “uma
atividade propriamente criadora, uma força artística presente não somente no homem, mas
em todas as coisas” (Mosé, 2005, p. 79).
Na esteira desse pensamento, me alio à ideia de Favaretto (2010), de que “a
experiência da arte e sua possível função na educação não está na compreensão e nem no
adestramento artístico, formal, perceptivo, embora possa conter tudo isto”. Mais do que isso,
a arte e grande parte das proposições artísticas que emergem de um pensamento
contemporâneo funcionam como “interruptores da percepção, da sensibilidade, do
entendimento; funcionam como um descaminho daquilo que é conhecido” (Favaretto, 2010,
p. 232). Embora o campo mais consolidado (e sóbrio) em que se inserem a educação, suas
práticas e políticas, ainda tenha certa resistência e desconfiança diante do que se faz e se
pensa a partir da arte contemporânea – o que isso afinal tem a ver comigo? –, há movimentos e
pequenos deslocamentos importantes, advindos talvez de onde menos se espera, a partir dos
próprios artistas, como vemos em experiências narradas em algumas publicações relativas a
ações educativas de grandes exposições de arte contemporânea (Camnitzer, 2009; Caro,
2009; Helguera, Hoff, 2011).
Em relação a experiências pedagógicas a partir da perspectiva apontada neste texto,
tenho produzido discussões importantes tanto no âmbito da graduação como da pós-
graduação19. Além disso, pesquisas de orientandos têm buscado essa direção, como as de
Steffens (2011), Kautzmann (2011), Born (2012) e Görgen (2012). Estas pesquisadoras, a
18 “É que o saber não é feito para compreender, ele é feito para cortar” (Foucault, 2001a, p. 28).
19 Além de aulas da área de Didática em cursos de licenciatura diversos, sou supervisora de estágio da
Licenciatura em Artes Visuais da UFRGS (Universidade Federal do Rio Grande do Sul). Como
professora da Linha de Pesquisa Ética, alteridade, linguagem e educação (PPGEDU/UFRGS) tenho
oferecido seminários avançados a respeito desta discussão, como por exemplo, Arte contemporânea,
formação estética e educação (2011/1) e Arte e experiência estética: potencialidades para a formação (2012/1).
Muitos dos debates travados nessas diferentes instâncias foram incorporados ao presente texto.
Desafios da arte contemporânea para a educação 12
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Arquivos Analíticos de Políticas Educativas Vol. 20, No. 42 15
Sobre a Autora
Autor/a: Luciana Gruppelli Loponte
Afiliação: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Programa de Pós-graduação em
Educação
Email: [email protected]
Doutora em Educação, professora adjunta da Faculdade de Educação da UFRGS (Porto
Alegre, Brasil), atua na graduação e na Pós-graduação em Educação, nas áreas de
educação e arte, arte e docência, gênero e artes visuais, formação estética. Foi
coordenadora do GT 24 – Educação e Arte da ANPEd (Associação Nacional de Pós-
Graduação e Pesquisa em Educação) e atualmente é membro do Comitê Científico da
entidade.