CANOTILHO Estado de Direito

Fazer download em docx, pdf ou txt
Fazer download em docx, pdf ou txt
Você está na página 1de 9

CANOTILHO, Joaquim José Gomes. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.

Disponível em: http://www.geocities.ws/b2centaurus/livros/c/Canotilhopdf.pdf

ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE NÃO DIREITO

Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estadual cuja actividade é


determinada e limitada pelo direito. «Estado de não direito» será, pelo contrário, aquele em
que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos
indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito.

«Estado de não direito». Três ideias bastam para o caracterizar: (I) é um Estado que decreta
leis arbitrárias, cruéis ou desumanas; (2) é um Estado em que o direito se identifica com a
«razão do Estado» imposta e iluminada por «chefes»; (3) é um Estado pautado por radical
injustiça e desigualdade na aplicação do direito.

A «razão de Estado» ─ com este ou com outros nomes, como, por exemplo, «amizade do
povo», «bem da nação», «imperativos da revolução», «iteresses superiores do Estado» ─
justificou campos de concentração, pavilhões psiquiátricos e mesmo genocídios colectivos para
os adversários políticos ou para os povos a que estes pertencem.

De uma forma quase intuitiva, o leitor sabe o que não é um Estado de direito. É aquele ─
repita-se ─ em que as leis valem apenas por serem leis do poder e têm à sua mão força para se
fazerem obedecer. É aquele que identifica direito e força, fazendo crer que são direito mesmo
as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais desumanas. É aquele em que o capricho dos
déspotas, a vontade dos chefes, a ordem do partido e os interesses de classe se impõem com
violência aos cidadãos. É aquele em que se negam a pessoas ou grupos de pessoas os direitos
inalienáveis dos indivíduos e dos povos.

Perguntar-se-á: a partir de que limite as leis e medidas injustas transportam maldade


suficientemente intensa para que sejam legítimas as suspeitas de um Estado de não direito?

Atingir-se-á o «ponto do não direito» quando a contradição entre as leis e medidas jurídicas do
Estado e os princípios de justiça (igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana) se revele
de tal modo insuportável (critério de insuportabilidade) que outro remédio não há senão o de
considerar tais leis e medidas como injustas, celeradas e arbitrárias e, por isso, legitimadoras
da última razão ou do último recurso ao dispor das mulheres e homens empenhados na luta
pelos direitos humanos, a justiça e o direito ─ o direito de resistência. individual e colectivo.

DIREITO E NÃO DIREITO NAS INSTITUIÇÕES TOTALITÁRIAS

O primeiro momento de negação do Estado de direito encontra-se nos regimes nazifascistas.


Embora pareça paradoxal4 , alguns autores chegaram a falar de «Estado de direito fascista»
para significar que também neste Estado havia uma ordem jurídica, um «Estado legal», uma
«segurança jurídica». O Estado fascista é, porém, uma institucionalização totalitária diferente
do Estado de direito. Em primeiro lugar, o Estado não é um esquema organizatório limitado
pelo direito. É, sim, uma realidade transcendente, uma realidade suprema. Perante ele, os
direitos individuais assentes na dignidade da pessoa humana cedem porque em primeiro lugar
estão os interesses do Estado. O Estado de direito pressupõe uma certa distância e uma
inequívoca separação da sociedade civil perante o Estado. O Estado fascista elimina a distância
e a separação, incluindo na realidade estatocrática o indivíduo e os grupos sociais. Por último,
o Estado fascista é um Estado de não direito porque, como realidade que se justifica a si
própria, não carece de legitimação. Foge da legitimação democrática.

ESTADO DE DIREITO: UMA CRIAÇÃO DA CULTURA POLÍTICA OCIDENTAL

Onde e como se desenvolveram estas categorias (estado de direito e de não direito)?

Uma resposta a esta pergunta é muitas vezes dada recortando o Estado de direito como uma
forma de organização jurídica e política circunscrita aos Estados em que progressivamente se
foi sedimentando um determinado paradigma jurídico, político, cultural e económico. O Estado
de direito perfilar-se-ia, assim, como um paradigma jurídico-político da cultura ocidental e do
Estado liberal do Ocidente. Foi no «meio ambiente natural» do Ocidente o local da forja de
uma arquitectónica de Estado baseada no consenso sobre princípios e valores que, no seu
conjunto, formam a chamada juridicidade estatal7 . Avancemos já as dimensões fundamentais
desta juridicidade: governo de leis (e não de homens!) gerais e racionais, organização do poder
segundo o princípio da divisão de poderes, primado do legislador, garantia de tribunais
independentes, reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, pluralismo político,
funcionamento do sistema organizatório estadual subordinado aos princípios da
responsabilidade e do controlo, exercício do poder estadual através de instrumentos jurídicos
constitucionalmente determinados.

Aqui, como noutros campos da organização social e política, devem evitar-se radicalizações
dicotómicas e simplificações ideológicas. Falar, por exemplo. de um «Ocidente» ─ o do Estado
de direito ─ e de um «Oriente» ─ o do despotismo ─ significa esquecer que no ambiente
europeu do Estado de direito se gerou o «fenómeno Hitler» e dos campos de concentração e
se desenvolveram formas «não ocidentais» de organização política, como foram o «Estado
Novo» português, o «Estado falangista» espanhol e o «Estado fascista» italiano. Por outro
lado, desdenhar dos esquemas políticos racionais e razoáveis do Estado de direito, reduzindo-
os a meras formas de domínio da «classe burguesa», acabou por justificar esquemas
«soviéticos» de Estado-partido sem limites jurídicos efectivos do poder, do Estado e do
partido.

A proposta de leitura que se avançará neste livro partirá do seguinte tópico: o Estado de
direito transporta princípios e valores materiais razoáveis para uma ordem humana de justiça
e de paz. São eles: a liberdade do indivíduo, a segurança individual e colectiva, a
responsabilidade e responsabilização dos titulares do poder, a igualdade de todos os cidadãos
e a proibição de discriminação de indivíduos e de grupos. Para tomar efectivos estes princípios
e estes valores o Estado de direito carece de instituições, de procedimentos de acção e de
formas de revelação dos poderes e competências que permitam falar de um poder
democrático, de uma soberania popular, de uma representação política, de uma separação de
poderes, de fins e tarefas do Estado. A forma que na nossa contemporaneidade se revela como
uma das mais adequadas para colher esses princípios e valores de um Estado subordinado ao
direito é a do Estado constitucional de direito democrático e social ambientalmente
sustentado. Está, assim, traçado o roteiro para aprofundarmos o Estado de direito. Trata-se:
( 1) de um Estado de direito; (2) de um Estado constitucional; (3) de um Estado democrático;
(4) de um Estado social; (5) de um Estado ambiental, ou melhor, de um Estado comprometido
com a sustentabilidade ambiental.

AS DIMENSÕES DO ESTADO DE DIREITO: JURIDICIDADE, DEMOCRACIA, SOCIALIDADE E


SUSTENTABILIDADE AMBIENTAL
Poucos terão hoje a ousadia de defender abertamente um Estado de não direito. As
declarações internacionais de direitos do homem, os grandes pactos internacionais sobre
direitos e liberdades, civis, políticas e sociais, a estruturação de novos espaços político-
económicos com base no respeito e realização dos direitos fundamentais, pouca folga darão
aos novos pretendentes do despotismo. Ninguém pode ficar fora da comunidade
internacional, ou, como hoje se dirá num mundo anglicizado, a ninguém é reconhecido o
direito de opting out da comunidade internacional. Para se estar dentro dela impõe-se a
observância das regras e princípios progressivamente acolhidos pelos Estados de direito.

ESTADO DE DIREITO

A ideia de um Estado domesticado pelo direito alicerçou-se paulatinamente nos Estados


ocidentais de acordo com as circunstâncias e condições concretas existentes nos vários países
da Europa e, depois, no continente americano. Na Inglaterra sedimentou-se a ideia de rule of
law ( «regra do direito» ou «império do direito» ). Na França emergiu a exigência do Estado de
legalidade (État légal). Dos Estados Unidos chegou-nos a exigência do Estado constitucional, ou
seja, o Estado sujeito a uma constituição. Na Alemanha construiu-se o princípio do Estado de
direito (Rechtsstaat), isto é, um Estado subordinado ao direito. De uma forma acessível,
procurar-se-á condensar a mensagem jurídica e política de todas estas ideias.

O que entendem os Britânicos por rule of law ? Fundamentalmente, a «regra do direito»


significa quatro coisas. Em primeiro lugar, significa a obrigatoriedade da adopção de um
processo justo legalmente regulado quando se torna necessário julgar e punir os cidadãos,
privando-os da sua liberdade ou propriedade. Em segundo lugar, a regra do direito impõe a
prevalência das leis e costumes do país perante a discricionariedade do poder real. A sujeição
de todos os actos do poder executivo à soberania dos representantes do povo (parlamento)
recorta-se como a terceira ideia da regra do direito. Finalmente, a regra do direito significa
direito e igualdade de acesso aos tribunais por parte de qualquer indivíduo a fim de aí
defender os seus direitos segundo os princípios do direito comum e perante qualquer entidade
(pública ou privada).

Os Estados Unidos acrescentaram mais alguma coisa a este conjunto de regras. O Estado
constitucional pressupõe, desde logo, o poder constituinte do povo, ou seja, o direito de o
povo fazer uma lei superior (constituição) da qual constem os esquemas essenciais do governo
e respectivos limites. Os direitos e liberdades dos cidadãos histórica e juridicamente gerados
na república assumiam-se como elemento central do Estado. Além de um governo regulado
pela constituição e limitado pelos direitos e liberdades, entendiase que o poder também
carecia de uma justificação, de uma legitimação. Não bastaria invocar que o «governo» era
representativo. Impunha-se tornar claras as razões do governo, ou, dito de outro modo, as
razões públicas demonstrativas do consentimento do povo em ser governado sob
determinadas condições. Deste modo, o «governo que se aceita» ou «está justificado» será
apenas o governo subordinado a leis transportadoras de princípios e regras do direito, de
natureza duradoura e vinculativa, explicitados na constituição. Por último, deve fazer-se uma
menção particular aos tribunais. Estes exercem a justiça em nome do povo. E exercer a justiça
em nome do povo implica que os juízes sejam considerados agentes do povo nos quais este
deposita a confiança de preservação dos princípios de justiça radicados na consclencia Jundíca
geral e consagrados na lei constitucional superior. Se necessário for, os juízes farão uso do seu
direito de acesso à constituição, desaplicando e considerando nulas as más leis editadas pelos
órgãos do governo da nação (fiscalização judicial da constitucionalidade das leis).
A França revolucionária deixou-nos um legado decisivo para a compreensão do Estado de
direito. Não há Estado de direito onde não houver uma constituição feita pela nação (entenda-
se: pelos representantes da nação). E uma sociedade cuja lei constitucional superior não
contenha uma declaração ou catálogo de direitos e uma organização do poder político
segundo o princípio da divisão de poderes não tem verdadeiramente constituição. Doravante,
as ideias de direitos fundamentais consagrados na constituição e de divisão de poderes
assumem-se como núcleo essencial de qualquer Estado constitucional.

A expressão Estado de direito é considerada uma fórmula alemã (Rechtsstaat). Ela aponta para
algumas das ideias fundamentais já agitadas na Inglaterra, Estados Unidos e França.
Acrescenta-lhes, porém, outras dimenões. O Estado domesticado pelo direito é um Estado
juridicamente vinculado em nome da autonomia individual ou, se se preferir, em nome da
autodeterminação da pessoa. É a autonomia individual que explica alguns dos postulados
nucleares do Estado de direito de inspiração germânica. Desde logo, o Estado de direito, para o
ser verdadeiramente, tem de assumir-se como um Estado liberal de direito. Contra a ideia de
um Estado de polícia que tudo regula a ponto de assumir como tarefa própria a felicidade dos
súbditos, o Estado de direito perfila-se como um Estado de limites, restringindo a sua acção à
defesa da ordem e segurança públicas. Por sua vez, os direitos fundamentais liberais ─ a
liberdade e a propriedade ─ decorriam do respeito de uma esfera de liberdade individual e não
de uma declaração de limites fixada pela vontade política da nação. Compreende-se, assim,
que qualquer intervenção autoritária sobre os dois direitos básicos ─ liberdade e propriedade ─
estivesse submetida à existência de uma lei do parlamento.

O ESTADO DE DIREITO DEMOCRÁTICO

O Estado constitucional responde ainda a outras exigências não integralmente satisfeitas na


concepção liberal-formal de Estado de direito. Tem de estruturar-se como Estado de direito
democrático, isto é, como uma ordem de domínio legitimada pelo povo. A articulação do
«direito» e do «poder» no Estado constitucional9 significa, assim, que o poder do Estado deve
organizar-se e exercer-se em termos democráticos. Há quem não veja com bons olhos a
associação de Estado de direito e democracia e não falta mesmo quem considere antinómicos
os valores e princípios transportados pelo Estado de direito e os valores e princípios
conformadores da democracia. Vale a pena reconstruir esta discussão.

O Estado de direito cumpria e cumpre bem as exigências que o constitucionalismo salientou


relativamente à limitação do poder político. O Estado constitucional é, assim, e em primeiro
lugar, o Estado com uma consti tuição lirnitadora do poder através do império do direito. As
ideias do «governo de leis e não de homens», de «Estado submetido ao direito», de
«constituição como vinculação jurídica do poder», foram, como vimos, tendencialmente
realizadas por instituições como as de rule of law, due process of law, Rechtsstaat, principe de
Ia légalité. No entanto, alguma coisa faltava ao Estado de direito constitucional ─ a legitimação
democrática do poder.

O que significam, no fundo, estas persistentes angústias perante a simbiose de Estado de


direito e Estado democrático no Estado constitucional? Respondem alguns que Estado de
direito e democracia correspondem a dois modos de ver a liberdade. No Estado de direito
concebe-se a liberdade como liberdade negativa, ou seja, uma «liberdade de defesa» ou de
«distanciação» perante o Estado. É uma liberdade liberal que «curva» o poder. Ao Estado
democrático seria inerente a liberdade positiva, isto é, a liberdade assente no exercício
democrático do poder. É a liberdade democrática que legitima o poder.
O Estado constitucional carece da legitimidade do poder político e da legitimação desse
mesmo poder. O elemento democrático não foi apenas introduzido para «travar» o poder (to
check the power); foi também reclamado pela necessidade de legitimação do mesmo poder.
Se quisermos um Estado constitucional assente em fundamentos não metafísicos, temos de
distinguir claramente duas coisas: (I) uma é a legitimidade do direito, dos direitos
fundamentais e do processo de legislação no Estado de direito; (2) outra é a legitimidade de
uma ordem de domínio e da legitimação do exercício do poder político10 no Estado
democrático.

O Estado «impoIítico» do Estado de direito não dá resposta a este último problema: donde
vem o poder. Só o princípio da soberania popular, segundo o qual «todo o poder vem do
povo», assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade
popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos
juridicamente regulados serve de «charneira» entre o «Estado de direito» e o «Estado
democrático», possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito
democrático.

A articulação das dimensões de Estado de direito e de Estado democrático no moderno Estado


constitucional democrático de direito permite-nos concluir que, no fundo, a proclamada
tensão entre «constitucionalistas» e «democratas», entre Estado de direito e democracia, é
um dos mitos do pensamento político moderno. Saber se o «governo de leis» é melhor do que
o «governo de homens», ou vice-versa, é, pois, uma questão mal posta: o governo dos homens
é sempre um governo sob leis e através de leis. É, basicamente, um governo de mulheres e de
homens segundo a lei constitucional, ela própria imperativamente informada pelos princípios
jurídicos radicados na consciência jurídica geral. A teorização do Estado de direito democrático
centrou-se até aqui em duas ideias básicas: o Estado limitado pelo direito e o poder político
estatal legitimado pelo povo. O direito é o direito interno do Estado; o poder democrático é o
poder do povo que reside no território do Estado ou está sujeito à soberania do Estado.

ESTADO DE DIREITO E ESTADO SOCIAL

As tentativas para recriar um «Estado absentista» ou um «Estado subsidiário» numa época de


«agressividade social» e de globalitarismo ideológico escondem a razoabilidade e justiça do
Estado social de direito. Como escreveu recentemente um ilustre constitucionalista italiano12,
este tipo de Estado é a tentativa qualitativa para tornar compatível o desenvolvimento
económico com uma ordem social justa na qual se definam antecipadamente as dimensões
constitucionais e essenciais dessa ordem, em vez de se acreditar nos acertos resultantes da
mera concorrência de forças económicas.

ESTADO DE DIREITO E ESTADO DE JUSTIÇA

Muitas vezes o Estado de direito é identificado com as leis postas e impostas pelo Estado e
com os direitos regulados nos termos da lei. Tratase de uma visão formal do Estado de direito
ao qual bastaria a existência de uma hierarquia de normas jurídicas regularmente editadas
pelos detentores de poderes legislativos. Neste sentido, pode haver um Estado de direito
formal, mas não há um Estado de justiça.

O Estado de direito aproximar-se-á de um Estado de justiça se incorporar princípios e valores


materiais que permitam aferir do carácter justo ou injusto das leis, da natureza justa ou injusta
das instituições e do valor ou desvalor de certos comportamentos.
O Estado de justiça compreende-se hoje como Estado de direito social. Podemos inverter a
formulação: o Estado de direito só é Estado de direito se for um Estado de justiça social. Já
deixámos entrever este sentido quando atrás se caracterizou o Estado social de direito. Neste
contexto, e qualquer que seja a formulação e justificação teórica e económica das
desigualdades, parece indiscutível que um Estado de justiça tem de encarar a exclusão social
como um défice humano que corrói o próprio Estado de justiça.

ESTADO DE DIREITO: O IMPÉRIO DO DIREITO

Vamos sugerir uma aproximação à pergunta central deste pequeno livro: quais são as
dimensões essenciais de um Estado de direito? Um Estado pode considerar-se Estado de
direito quando: (1) está sujeito ao direito; (2) actua através do direito; (3) positiva normas
jurídicas informadas pela ideia de direito.

O Estado de direito é informado e conformado por princípios radicados na consciência jurídica


geral e dotados de valor ou bondade intrínsecos. Não basta, para estarmos sob o império do
direito, que o Estado observe as normas que ele ditou e actue através de formas jurídicas
legalmente positivadas. As leis podem ser más, as formas de actuação revelar-se arbitrárias, o
conteúdo das medidas estatais surgir aos olhos do particular como «mau direito», como
direito injusto. É aqui que muitos autores agitam a ideia de direito, devendo o Estado pautar-
se pela ideia de direito.

Merece a qualificação de Estado de direito o Estado ─ e só esse! ─ que em todos os seus actos
jurídicos, em todos os seus esquemas organizatórios, em todos os seus procedimentos,
incorpore os princípios jurídicos que, de forma indisponível por qualquer poder, dão validade
ou legitimidade a uma ordem jurídica. Em síntese: que o torem intrinsecamente um Estado de
direito. Neste sentido falam os autores de Estado material de direito.

ESTADO DE DIREITO É UM ESTADO DE DIREITOS FUNDAMENTAIS

O Estado de direito é um Estado de direitos fundamentais. O leitor ficará, porventura, e uma


vez mais, intrigado. Não será óbvio que um Estado de direito tem no sistema de direitos
fundamentais o seu próprio coração? Acontece, neste domínio, aquilo que se verificou durante
muitos anos com a democracia e que levou um autor inglês à conhecida ironia relativamente
ao Estado de direito continental: eles ─ os «continentais» ─ pensam ser possível um Estado de
direito sem democracia! Do mesmo modo, gerações e gerações de juristas glosaram o tema do
direito no Estado de direito sem nunca terem encontrado os direitos fundamentais.

O ESTADO DE DIREITO OBSERVA O PRINCÍPIO DA JUSTA MEDIDA

O Estado de direito é um Estado de justa medida porque se estrutura em tomo de um princípio


material vulgarmente chamado princípio da proibição do excesso. É discutida a história deste
princípio, ou seja, saber quando e como ele se transformou em princípio orientador de todas
as actividades dos poderes estaduais. Aqui basta reter esta ideia básica: através do recurso a
princípios como os da proibição do excesso, da proporcionalidade, da adequação, da
razoabilidade, da necessidade, pretendeu-se colocar os poderes públicos ─ desde o clássico
«poder agressor», identificado com o executivo e a administração, até aos poderes legislativo
e judiciário ─ num plano mais humano e menos sobranceiro em relação aos cidadãos. Visava-
se sobretudo acentuar as dimensões das garantias individuais e da protecção dos direitos
adquiridos contra medidas excessivamente «agressivas». «restritivas» ou «coactivas» dos
poderes públicos na esfera jurídico-pessoal e jurídico-patrimonial dos indivíduos.
Em primeiro lugar. está vinculado ao princípio da proibição do excesso o próprio legislador.

O princípio de proibição do excesso, como regra de razoabilidade, de proporcionalidade e de


necessidade, tem um campo de aplicação privilegiado em sede do exercício de poderes
públicos administrativos.

No âmbito da aplicação do direito pelos tribunais há muito que a medida da pena e a adopção
de outras medidas judiciais têm presente o princípio da razoabilidade, proporcionalidade e
necessidade.

O princípio de proibição do excesso, além de ser um princípio que «limita» em termos


preventivos os poderes públicos, sobretudo quando estes adoptam medidas sancionatórias ou
medidas restritivas de direitos, liberdades e garantias, é também um princípio de controlo.
Recorrendo à ideia de razoabilidade, adequação, proporcionalidade e necessidade, os tribunais
─ e agora tam- bém o Tribunal de Justiça das Comunidades ─ podem fiscalizar o uso dos
poderes e a justiça das medidas adoptadas por estes poderes, contribuindo para um Estado de
direito mais amigo de justiça e dos direitos fundamentais.

O ESTADO DE DIREITO GARANTE O PRINCÍPIO DA LEGALIDADE DA ADMINISTRAÇÃO

Impõe-se, por isso, um breve aceno ao princípio da legalidade como princípio básico do Estado
de direito.

A lei ocupa ainda um lugar privilegiado na estrutura do Estado de direito porque ela
permanece como expressão da vontade comunitária veiculada através de órgãos
representativos dotados de legitimação democrática directa. Por outras palavras: a lei
emanada dos órgãos da sociedade ─ os parlamentos ─ converte-se ela própria em esquema
político revelador das propostas de conformação jurídico-política aprovadas
democraticamente por assembleias representativas democráticas. Quem não entender este
significado da prevalência da lei pode fazer glosas sobre o Estado de direito, mas não sabe o
que é um Estado de direito democrático.

A lei serve de fundamento ao exercício de outros poderes do Estado: «a administração deve


obedecer à lei», «os tribunais estão sujeitos à lei». Neste sentido se afirma que o «poder vem
da lei» e que não há exercício legítimo do poder público sem fundamento na lei. A refracção
desta ideia no que respeita à administração do Estado e dos poderes regionais e locais
consubstancia-se vulgarmente no princípio da legalidade da administração. Em termos
meramente aproximativos, diz-se que toda a administração deve obedecer à lei, proibindo-se
qualquer actividade «livre» ou juridicamente desvinculada. Consequentemente, quaisquer
actividades administrativas contra a lei violam o princípio da legalidade inerente a qualquer
Estado de direito. Mas mais do que isso: a lei dá fundamento aos chamados poderes
administrativos. Ilustremos esta ideia através do recorte de três poderes administrativos
fundamentais: o poder regulamentar, o poder de polícia e o poder expropriatório. Não é
qualquer autoridade que tem o poder de fazer regulamentos. Dos regulamentos urbanísticos
aos regulamentos de serviço, passando pelos regulamentos de polícia, todo o poder
regulamentar tem de estar baseado directamente na lei fundamental (a constituição) ou numa
lei editada nos termos constitucionais. Do mesmo modo, não é qualquer órgão da
administração que, a pretexto da salvaguarda da ordem e da tranquilidade públicas, pode
arrogar-se o poder de polícia. Este vem da lei que define quem tem poderes de polícia e
individualiza as medidas de polícia. Finalmente, o poder de expropriar bens ou requisitar bens
ou serviços perfilar-se-á como poder abusivo se não existir uma ou várias leis a regular o
poder, a forma e os requisitos da expropriação ou da requisição.

O ESTADO DE DIREITO RESPONDE PELOS SEUS ACTOS

O Estado (em sentido amplo) é civilmente responsável por danos incidentes na esfera jurídica
dos particulares. Não se exige sequer aprova de uma culpa pessoal dos titulares de órgãos, dos
funcionários ou agentes.

O ESTADO DE DIREITO E A GARANTIA DA VIA JUDICIÁRIA

Num Estado de direito pertence aos tribunais, através de juízes independentes, dizer o direito.
Num Estado de direito democrático cabe aos magistrados judiciais dizer o direito em nome do
povo. O apelo ao juiz pode revestir várias formas de processo ─ queixa, acção, recurso, querela
─, mas a mensagem subjacente a este apelo parte sempre da ideia de que é necessário um
terceiro independente, um árbitro imparcial, para fazer justiça através de uma decisão judicial.

A defesa dos direitos repousa sobre um conjunto de garantias processuais e procedimentais


que fazem delas uma das manifestações mais conhecidas do Estado de direito.

O ESTADO DE DIREITO DÁ SEGURANÇA E CONFIANÇA ÀS PESSOAS

Retenhamos a ideia de fecho do número anterior: o Estado de direito garante a segurança e a


liberdade. É isso. Através de um conjunto de princípios jurídicos procura-se estruturar a ordem
jurídica de forma a dar segurança e confiança às pessoas. A experiência comum revela que as
pessoas exigem fiabilidade, clareza, racionalidade e transparência aos actos dos poderes
públicos, de forma a poderem orientar a sua vida de forma segura, previsível e calculável. Das
regras da experiência derivou-se um princípio geral da segurança jurídica cujo conteúdo é
aproximadamente este: as pessoas ─ os indivíduos e as pessoas colectivgs ─ têm o direito de
poder confiar que aos seus actos ou às decisões públicas incidentes sobre os seus direitos,
posições ou relações jurídicas alicerçadas em normas jurídicas vigentes e válidas ou em actos
jurídicos editados pelas autoridades com base nessas normas se ligam os efeitos jurídicos
previstos e prescritos no ordenamento jurídico. Os corolários mais importantes extraídos deste
princípio também não são estranhos à experiência jurídica comum. As pessoas reagem a
normas retroactivas, isto é, normas que pretendem ligar novos efeitos jurídicos a factos
inteiramente constituídos no passado, sobretudo quando essas normas restringem direitos e
liberdades, alteram incriminações e punições de condutas, manipulam
desproporcionadamente o regime dos impostos. Há muito tempo que se radicou na
consciência jurídica a ideia de que os processos judiciais têm de ter um fim. Esgotados os
recursos e transitada em julgado uma sentença, compreende-se que só nos casos extremos de
erro judiciário se questione a segurança jurídica garantida pelo caso julgado. Aos próprios
actos da administração é reconhecida uma determinada força (a força de caso decidido),
limitando-se a sua anulação e revogação, a fim de se dar solidez à segurança, confiança e
direitos dos administrados. Estes princípios têm de ser entendidos como base do complexo
edifício do Estado de direito. Podem não ser a «essência» da justiça e confundir-se muitas
vezes com a defesa de privilégios económicos e sociais. A segurança e a confiança recortam-se,
apesar de tudo, como dimensões indeclináveis da paz jurídica. Quem os quiser transmutar em
princípios revolucionários estará a exigir o que eles não podem dar e terá, por conseguinte, de
fazer a revolução por outros modos.

A GUISA DE CONCLUSÃO
Os juristas (os filósofos e os políticos) não deixaram de intuir o significado de princípios formais
indiferentes ao conteúdo e forma de Estado. A segurança, a confiança e a separação de
poderes, entendidas como valores em si e sobranceiramente desconfiadas das agitações
políticas e sociais, transformaram-se em casca vazia, em odre aberto a conteúdos variáveis,
que podiam ir do Estado de direito autoritário do «chanceler de ferro» (Bismarck) aos Estados
de direito fascistas ou de legalidade socialista. Estas razões afiguram-se suficientemente
poderosas para rejeitarmos uma abordagem do Estado de direito divorciada dos problemas da
democracia, da justiça e da socialidade. Poderemos afirmar que o Estado de direito ou é
Estado de direito democrático e social ou será um Estado de legalidade reduzido a um
esqueleto constituído por princípios e regras formais. Todavia, como se teve oportunidade de
salientar, os chamados princípios formais do Estado de direito não são apenas «normas
formalísticas» dos cultores do direito. Servem para tornar seguro o caminho de outros ideais.
Valem por si. Valem em nome do Estado de direito. Mas, como ironicamente escreveu Rorty,
se a democracia é mais importante do que a filosofia, também a bem pouco se resumirá o
Estado de direito se os esquemas políticos de organização do Estado não assentarem na
separação e interdependência de poderes, antes privilegiarem o centralismo democrático, a
transcendência do Estado e o envolvimento fundamentalista religioso da sociedade. O Estado
de direito pode pouco em situações de fraqueza ou ausência do Estado. A soberania do
Estado, queira-se ou não, garante alguma ordem e paz no plano interno, a ordem e paz
indispensáveis à aplicação e observância das regras do Estado de direito. Daqui não se segue a
indispensabilidade da forma de Estado e da sua soberania para se estruturar uma comunidade
de direito. A edificação da União Europeia aí está a demonstrar a possibilidade de uma
comunidade de direito que não é Estado nem assenta nos princípios clássicos organizatórios
do Estado. O problema que fica por demonstrar é o de saber se ela se pode edificar sem
Estados de direito, autónomos e independentes.

Você também pode gostar