CANOTILHO Estado de Direito
CANOTILHO Estado de Direito
CANOTILHO Estado de Direito
«Estado de não direito». Três ideias bastam para o caracterizar: (I) é um Estado que decreta
leis arbitrárias, cruéis ou desumanas; (2) é um Estado em que o direito se identifica com a
«razão do Estado» imposta e iluminada por «chefes»; (3) é um Estado pautado por radical
injustiça e desigualdade na aplicação do direito.
A «razão de Estado» ─ com este ou com outros nomes, como, por exemplo, «amizade do
povo», «bem da nação», «imperativos da revolução», «iteresses superiores do Estado» ─
justificou campos de concentração, pavilhões psiquiátricos e mesmo genocídios colectivos para
os adversários políticos ou para os povos a que estes pertencem.
De uma forma quase intuitiva, o leitor sabe o que não é um Estado de direito. É aquele ─
repita-se ─ em que as leis valem apenas por serem leis do poder e têm à sua mão força para se
fazerem obedecer. É aquele que identifica direito e força, fazendo crer que são direito mesmo
as leis mais arbitrárias, mais cruéis e mais desumanas. É aquele em que o capricho dos
déspotas, a vontade dos chefes, a ordem do partido e os interesses de classe se impõem com
violência aos cidadãos. É aquele em que se negam a pessoas ou grupos de pessoas os direitos
inalienáveis dos indivíduos e dos povos.
Atingir-se-á o «ponto do não direito» quando a contradição entre as leis e medidas jurídicas do
Estado e os princípios de justiça (igualdade, liberdade, dignidade da pessoa humana) se revele
de tal modo insuportável (critério de insuportabilidade) que outro remédio não há senão o de
considerar tais leis e medidas como injustas, celeradas e arbitrárias e, por isso, legitimadoras
da última razão ou do último recurso ao dispor das mulheres e homens empenhados na luta
pelos direitos humanos, a justiça e o direito ─ o direito de resistência. individual e colectivo.
Uma resposta a esta pergunta é muitas vezes dada recortando o Estado de direito como uma
forma de organização jurídica e política circunscrita aos Estados em que progressivamente se
foi sedimentando um determinado paradigma jurídico, político, cultural e económico. O Estado
de direito perfilar-se-ia, assim, como um paradigma jurídico-político da cultura ocidental e do
Estado liberal do Ocidente. Foi no «meio ambiente natural» do Ocidente o local da forja de
uma arquitectónica de Estado baseada no consenso sobre princípios e valores que, no seu
conjunto, formam a chamada juridicidade estatal7 . Avancemos já as dimensões fundamentais
desta juridicidade: governo de leis (e não de homens!) gerais e racionais, organização do poder
segundo o princípio da divisão de poderes, primado do legislador, garantia de tribunais
independentes, reconhecimento de direitos, liberdades e garantias, pluralismo político,
funcionamento do sistema organizatório estadual subordinado aos princípios da
responsabilidade e do controlo, exercício do poder estadual através de instrumentos jurídicos
constitucionalmente determinados.
Aqui, como noutros campos da organização social e política, devem evitar-se radicalizações
dicotómicas e simplificações ideológicas. Falar, por exemplo. de um «Ocidente» ─ o do Estado
de direito ─ e de um «Oriente» ─ o do despotismo ─ significa esquecer que no ambiente
europeu do Estado de direito se gerou o «fenómeno Hitler» e dos campos de concentração e
se desenvolveram formas «não ocidentais» de organização política, como foram o «Estado
Novo» português, o «Estado falangista» espanhol e o «Estado fascista» italiano. Por outro
lado, desdenhar dos esquemas políticos racionais e razoáveis do Estado de direito, reduzindo-
os a meras formas de domínio da «classe burguesa», acabou por justificar esquemas
«soviéticos» de Estado-partido sem limites jurídicos efectivos do poder, do Estado e do
partido.
A proposta de leitura que se avançará neste livro partirá do seguinte tópico: o Estado de
direito transporta princípios e valores materiais razoáveis para uma ordem humana de justiça
e de paz. São eles: a liberdade do indivíduo, a segurança individual e colectiva, a
responsabilidade e responsabilização dos titulares do poder, a igualdade de todos os cidadãos
e a proibição de discriminação de indivíduos e de grupos. Para tomar efectivos estes princípios
e estes valores o Estado de direito carece de instituições, de procedimentos de acção e de
formas de revelação dos poderes e competências que permitam falar de um poder
democrático, de uma soberania popular, de uma representação política, de uma separação de
poderes, de fins e tarefas do Estado. A forma que na nossa contemporaneidade se revela como
uma das mais adequadas para colher esses princípios e valores de um Estado subordinado ao
direito é a do Estado constitucional de direito democrático e social ambientalmente
sustentado. Está, assim, traçado o roteiro para aprofundarmos o Estado de direito. Trata-se:
( 1) de um Estado de direito; (2) de um Estado constitucional; (3) de um Estado democrático;
(4) de um Estado social; (5) de um Estado ambiental, ou melhor, de um Estado comprometido
com a sustentabilidade ambiental.
ESTADO DE DIREITO
Os Estados Unidos acrescentaram mais alguma coisa a este conjunto de regras. O Estado
constitucional pressupõe, desde logo, o poder constituinte do povo, ou seja, o direito de o
povo fazer uma lei superior (constituição) da qual constem os esquemas essenciais do governo
e respectivos limites. Os direitos e liberdades dos cidadãos histórica e juridicamente gerados
na república assumiam-se como elemento central do Estado. Além de um governo regulado
pela constituição e limitado pelos direitos e liberdades, entendiase que o poder também
carecia de uma justificação, de uma legitimação. Não bastaria invocar que o «governo» era
representativo. Impunha-se tornar claras as razões do governo, ou, dito de outro modo, as
razões públicas demonstrativas do consentimento do povo em ser governado sob
determinadas condições. Deste modo, o «governo que se aceita» ou «está justificado» será
apenas o governo subordinado a leis transportadoras de princípios e regras do direito, de
natureza duradoura e vinculativa, explicitados na constituição. Por último, deve fazer-se uma
menção particular aos tribunais. Estes exercem a justiça em nome do povo. E exercer a justiça
em nome do povo implica que os juízes sejam considerados agentes do povo nos quais este
deposita a confiança de preservação dos princípios de justiça radicados na consclencia Jundíca
geral e consagrados na lei constitucional superior. Se necessário for, os juízes farão uso do seu
direito de acesso à constituição, desaplicando e considerando nulas as más leis editadas pelos
órgãos do governo da nação (fiscalização judicial da constitucionalidade das leis).
A França revolucionária deixou-nos um legado decisivo para a compreensão do Estado de
direito. Não há Estado de direito onde não houver uma constituição feita pela nação (entenda-
se: pelos representantes da nação). E uma sociedade cuja lei constitucional superior não
contenha uma declaração ou catálogo de direitos e uma organização do poder político
segundo o princípio da divisão de poderes não tem verdadeiramente constituição. Doravante,
as ideias de direitos fundamentais consagrados na constituição e de divisão de poderes
assumem-se como núcleo essencial de qualquer Estado constitucional.
A expressão Estado de direito é considerada uma fórmula alemã (Rechtsstaat). Ela aponta para
algumas das ideias fundamentais já agitadas na Inglaterra, Estados Unidos e França.
Acrescenta-lhes, porém, outras dimenões. O Estado domesticado pelo direito é um Estado
juridicamente vinculado em nome da autonomia individual ou, se se preferir, em nome da
autodeterminação da pessoa. É a autonomia individual que explica alguns dos postulados
nucleares do Estado de direito de inspiração germânica. Desde logo, o Estado de direito, para o
ser verdadeiramente, tem de assumir-se como um Estado liberal de direito. Contra a ideia de
um Estado de polícia que tudo regula a ponto de assumir como tarefa própria a felicidade dos
súbditos, o Estado de direito perfila-se como um Estado de limites, restringindo a sua acção à
defesa da ordem e segurança públicas. Por sua vez, os direitos fundamentais liberais ─ a
liberdade e a propriedade ─ decorriam do respeito de uma esfera de liberdade individual e não
de uma declaração de limites fixada pela vontade política da nação. Compreende-se, assim,
que qualquer intervenção autoritária sobre os dois direitos básicos ─ liberdade e propriedade ─
estivesse submetida à existência de uma lei do parlamento.
O Estado «impoIítico» do Estado de direito não dá resposta a este último problema: donde
vem o poder. Só o princípio da soberania popular, segundo o qual «todo o poder vem do
povo», assegura e garante o direito à igual participação na formação democrática da vontade
popular. Assim, o princípio da soberania popular concretizado segundo procedimentos
juridicamente regulados serve de «charneira» entre o «Estado de direito» e o «Estado
democrático», possibilitando a compreensão da moderna fórmula Estado de direito
democrático.
Muitas vezes o Estado de direito é identificado com as leis postas e impostas pelo Estado e
com os direitos regulados nos termos da lei. Tratase de uma visão formal do Estado de direito
ao qual bastaria a existência de uma hierarquia de normas jurídicas regularmente editadas
pelos detentores de poderes legislativos. Neste sentido, pode haver um Estado de direito
formal, mas não há um Estado de justiça.
Vamos sugerir uma aproximação à pergunta central deste pequeno livro: quais são as
dimensões essenciais de um Estado de direito? Um Estado pode considerar-se Estado de
direito quando: (1) está sujeito ao direito; (2) actua através do direito; (3) positiva normas
jurídicas informadas pela ideia de direito.
Merece a qualificação de Estado de direito o Estado ─ e só esse! ─ que em todos os seus actos
jurídicos, em todos os seus esquemas organizatórios, em todos os seus procedimentos,
incorpore os princípios jurídicos que, de forma indisponível por qualquer poder, dão validade
ou legitimidade a uma ordem jurídica. Em síntese: que o torem intrinsecamente um Estado de
direito. Neste sentido falam os autores de Estado material de direito.
No âmbito da aplicação do direito pelos tribunais há muito que a medida da pena e a adopção
de outras medidas judiciais têm presente o princípio da razoabilidade, proporcionalidade e
necessidade.
Impõe-se, por isso, um breve aceno ao princípio da legalidade como princípio básico do Estado
de direito.
A lei ocupa ainda um lugar privilegiado na estrutura do Estado de direito porque ela
permanece como expressão da vontade comunitária veiculada através de órgãos
representativos dotados de legitimação democrática directa. Por outras palavras: a lei
emanada dos órgãos da sociedade ─ os parlamentos ─ converte-se ela própria em esquema
político revelador das propostas de conformação jurídico-política aprovadas
democraticamente por assembleias representativas democráticas. Quem não entender este
significado da prevalência da lei pode fazer glosas sobre o Estado de direito, mas não sabe o
que é um Estado de direito democrático.
O Estado (em sentido amplo) é civilmente responsável por danos incidentes na esfera jurídica
dos particulares. Não se exige sequer aprova de uma culpa pessoal dos titulares de órgãos, dos
funcionários ou agentes.
Num Estado de direito pertence aos tribunais, através de juízes independentes, dizer o direito.
Num Estado de direito democrático cabe aos magistrados judiciais dizer o direito em nome do
povo. O apelo ao juiz pode revestir várias formas de processo ─ queixa, acção, recurso, querela
─, mas a mensagem subjacente a este apelo parte sempre da ideia de que é necessário um
terceiro independente, um árbitro imparcial, para fazer justiça através de uma decisão judicial.
A GUISA DE CONCLUSÃO
Os juristas (os filósofos e os políticos) não deixaram de intuir o significado de princípios formais
indiferentes ao conteúdo e forma de Estado. A segurança, a confiança e a separação de
poderes, entendidas como valores em si e sobranceiramente desconfiadas das agitações
políticas e sociais, transformaram-se em casca vazia, em odre aberto a conteúdos variáveis,
que podiam ir do Estado de direito autoritário do «chanceler de ferro» (Bismarck) aos Estados
de direito fascistas ou de legalidade socialista. Estas razões afiguram-se suficientemente
poderosas para rejeitarmos uma abordagem do Estado de direito divorciada dos problemas da
democracia, da justiça e da socialidade. Poderemos afirmar que o Estado de direito ou é
Estado de direito democrático e social ou será um Estado de legalidade reduzido a um
esqueleto constituído por princípios e regras formais. Todavia, como se teve oportunidade de
salientar, os chamados princípios formais do Estado de direito não são apenas «normas
formalísticas» dos cultores do direito. Servem para tornar seguro o caminho de outros ideais.
Valem por si. Valem em nome do Estado de direito. Mas, como ironicamente escreveu Rorty,
se a democracia é mais importante do que a filosofia, também a bem pouco se resumirá o
Estado de direito se os esquemas políticos de organização do Estado não assentarem na
separação e interdependência de poderes, antes privilegiarem o centralismo democrático, a
transcendência do Estado e o envolvimento fundamentalista religioso da sociedade. O Estado
de direito pode pouco em situações de fraqueza ou ausência do Estado. A soberania do
Estado, queira-se ou não, garante alguma ordem e paz no plano interno, a ordem e paz
indispensáveis à aplicação e observância das regras do Estado de direito. Daqui não se segue a
indispensabilidade da forma de Estado e da sua soberania para se estruturar uma comunidade
de direito. A edificação da União Europeia aí está a demonstrar a possibilidade de uma
comunidade de direito que não é Estado nem assenta nos princípios clássicos organizatórios
do Estado. O problema que fica por demonstrar é o de saber se ela se pode edificar sem
Estados de direito, autónomos e independentes.