O Cortiço: Aluísio Azevedo

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O Cortiço

A l u í s i o A z e v e d o

P r e f á cio d e M aur ício Silv a

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câmara
Câmara dos Deputados Academia Brasileira de Letras
56ª Legislatura | 2019-2023 Diretoria

Presidente Presidente
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4º Suplente
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Secretário-Geral da Mesa
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Diretor-Geral
Sergio Sampaio Contreiras de Almeida
Câmara dos
Deputados

Série Prazer de Ler

O Cortiço
Aluísio Azevedo

Prefácio de Maurício Silva

2ª edição

edições câmara
Câmara dos Deputados
Diretoria Legislativa: Afrísio de Souza Vieira Lima Filho
Centro de Documentação e Informação: André Freire da Silva
Coordenação Edições Câmara dos Deputados: Ana Lígia Mendes
Secretaria de Comunicação Social: Fabio Schiochet
Diretoria Executiva de Comunicação Social: David Miranda
Centro Cultural Câmara dos Deputados: Isabel Martins Flecha de Lima
Editores: Maria Amélia Elói e Wellington Brandão
Revisão: Francisco Diniz e Sandra Gomes Serra
Projeto gráfico: Giselle Sousa e Thiago de Lima Gualberto
Capa e ilustrações: Diego Moscardini
Diagramação: Giselle Sousa
2018, 1ª edição; 2019, 2ª edição.
Linha Cidadania, Série Prazer de Ler.

Série Prazer de Ler


n. 12 papel
Dados Internacionais de Catalogação-na-publicação (CIP)
Coordenação de Biblioteca. Seção de Catalogação.
Mariangela Barbosa Lopes – CRB: 1731

Azevedo, Aluísio, 1857-1913.


O cortiço [recurso eletrônico] / Aluísio Azevedo ; prefácio de Maurício Silva. – 2. ed. – Brasília :
Câmara dos Deputados, Edições Câmara, 2019. – (Série prazer de ler ; n. 12 e-book).

Versão e-book.
Modo de acesso: livraria.camara.leg.br
Disponível, também, em formato impresso.
ISBN 978-85-402-0791-2

1. Literatura, Brasil. I. Título. II. Série.

CDU 869.0(81)

ISBN 978-85-402-0790-5 (papel) | ISBN 978-85-402-0791-2 (e-book)

Direitos reservados e protegidos pela Lei nº 9.610, de 19/2/1998.


Nenhuma parte desta publicação pode ser reproduzida por qualquer meio, sem prévia
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livraria.camara.leg.br
Apresentação
O clássico é inevitável, algo que não podemos conhecer apenas de
ouvir falar. Mesmo quando não nos identificamos com ele, a experiência de
conhecê-lo é válida e serve como referencial até mesmo para o posiciona-
mento contrário.
Quando se trata de livros, nada pode esgotar ou substituir os clássicos.
Eles são indispensáveis para a construção da identidade nacional: por meio
deles é possível conhecer a herança cultural e a alma coletiva de uma sociedade.
Segundo Monteiro Lobato, “um país se faz com homens e livros”.
Podemos extrapolar e dizer que os sonhos de uma nação se tecem em sua
literatura. A cada nova leitura dessas obras, os sentidos ali registrados se
renovam, iluminando o passado, contrastando-se com o presente e enrique-
cendo as aspirações para o futuro. Assim, mais que a história, a literatura é o
testemunho palpitante de um povo.
É por esta razão que a Série Prazer de Ler traz os grandes clássicos dis-
poníveis em domínio público. Nela, são contemplados os principais títulos
dos maiores autores brasileiros. A Edições Câmara busca, dessa forma, con-
tribuir com o desenvolvimento da cultura nacional, compartilhando o nosso
patrimônio literário com uma roupagem moderna para leitores de todas as
faixas etárias.
Os títulos da série estão disponíveis na Livraria da Câmara
(livraria.camara.leg.br), onde é possível comprar a obra impressa ou fazer
download gratuito do seu formato digital. Além disso, essas publicações podem
ser baixadas nas lojas dos aplicativos Google Play Livros, iBooks e Kobo.
Boa leitura!

Edições Câmara

ALUÍSIO AZEVEDO •5•


O cortiço: retrato da vida em ruínas
As duas últimas décadas do século XIX foram, no Brasil, pródigas em
produção literária, seguindo uma tendência já consolidada nos principais
países europeus. Por aqui, nos anos imediatamente anteriores e imedia-
tamente posteriores à Abolição da Escravatura (1888) e à Proclamação
da República (1889), surgiram alguns de nossos principais romancistas e
poetas, produzindo, os primeiros, dentro dos princípios das estéticas realista
e naturalista e, os segundos, das estéticas parnasiana e simbolista. Falando
mais especificamente, a tendência literária a que se convencionou chamar
de Realismo-Naturalismo estende-se, entre nós, de 1881, data da publicação
tanto de O mulato (de Aluísio Azevedo) quanto de Memórias Póstumas de Brás
Cubas (de Machado de Assis), ambos os principais nomes do período, até
1902, com a inauguração da tendência chamada de Pré-Modernismo.
Esteticamente, o Realismo-Naturalismo nasce na França, particular-
mente com as obras de Flaubert (Madame Bovary, 1856) e Zola (Thérèse
Raquin, 1867). Trata-se de uma escola literária que tinha como fundamento
ideológico uma série de teorias (filosóficas, científicas, sociológicas, etc.),
as quais surgem na segunda metade do século XIX, todas elas baseadas
num ideário “cientificista”: o Positivismo, com Comte (Curso de filosofia
positiva, 1830-1842), o Socialismo, com Proudhon (Filosofia do progresso,
1835), o Determinismo Ambiental, com Taine (Filosofia da arte, 1865-1869),
o Determinismo Biológico, com Darwin (A origem das espécies, 1859), o
Experimentalismo Científico, com Bernard (Introdução ao estudo da medicina
experimental, 1865) e o Determinismo Social, com Spencer (Princípios de
sociologia, 1877-1886). Todas essas teorias acabaram influenciando, direta
ou indiretamente, o modo de produção literária dos realistas-naturalistas,
que adotaram os princípios expostos por esses pensadores (cientificismo,
progresso, socialismo, experimentalismo, determinismo) e incorporaram-nos
em suas obras, estabelecendo um vínculo entre arte e ciência.
Nesse sentido, a estética realista-naturalista privilegiava – contraria-
mente à romântica – a objetividade (em oposição à subjetividade), o cienti-
ficismo (em oposição ao idealismo), a exterioridade (em oposição à interiori-
dade), o racionalismo (em oposição ao sentimentalismo), a inteligência (em

ALUÍSIO AZEVEDO •7•


oposição à emoção), o materialismo (em oposição ao espiritualismo). Como
afirmou Émile Zola, num dos principais tratados teóricos sobre o Naturalismo:

[...] ao estudo do homem abstrato, do homem metafísico, [o Naturalismo]


opõe o estudo do homem natural, submetido às leis físico-químicas e de-
terminado pelas influências do meio. O romance experimental é, em uma
palavra, a literatura de nossa idade científica, como a literatura clássica e
romântica correspondeu a uma idade de escolástica e de teologia.1

O ser humano, desse modo, torna-se um verdadeiro componente –


materializado – da engrenagem da mecânica universal, ao contrário do
homem romântico, excessivamente autocentrado e autossuficiente. A arte,
portanto, passa a ser “engajada”, contendo nítidos apelos sociais, e anti-
burguesa, retratando a dissolução moral da burguesia, por meio de casos
patológicos. É ainda Zola quem melhor define essa peculiaridade da estética
realista-naturalista, a afirmar os objetivos do romance experimental:

[...] possuir o mecanismo dos fenômenos do homem, mostrar a engre-


nagem das manifestações intelectuais e sensuais, tal qual a Fisiologia
no-las explicará, sob as influências da hereditariedade e das circunstân-
cias-ambiente, e depois mostrar o homem vivendo no meio social que ele
mesmo produziu, que modifica todos os dias, e no seio do qual experi-
menta por sua vez uma transformação contínua.2

Natural de São Luís, capital do Maranhão, Aluísio Azevedo (1857-1913)


foi, sem dúvida alguma, nosso principal autor realista-naturalista. Escritor
prolífico, publicou sua primeira obra em 1880 (Uma lágrima de mulher), mas
tornou-se nacionalmente conhecido com o polêmico romance O cortiço
(1890). Nesse e em outros romances de sua safra – como O mulato (1881),
Casa de pensão (1884), Livro de uma sogra (1895) e outros – notabilizou-se
pelo tratamento de temas bastante controversos, sobretudo para a época
em que foram publicados, como a denúncia do preconceito racial e o com-
bate a preceitos religiosos. Adepto de um estilo límpido e fluente, aplicado
em proveito do descritivismo e do detalhismo, Aluísio Azevedo logrou criar
uma obra em que a exposição da vida cotidiana do homem comum não pres-
cindia de incursões no mundo da psicologia humana, com o que obtinha

1  ZOLA, Émile. “O Romance Experimental”. O romance experimental e o Naturalismo no teatro.


São Paulo, Perspectiva, s.d., p. 46.
2  Id., ibid., p. 43.

•8• O CORTIÇO
êxito na fixação de grupos sociais distintos, sempre fiel aos princípios dos
determinismos biológico, social e ambiental.
Influenciado por Zola e por outros escritores realistas-naturalistas,
sobretudo franceses e portugueses, Aluísio Azevedo produziu uma vasta
obra literária, marcada, como sugerimos antes, pela denúncia e combate
às distorções sociais. Embora tenha se destacado como um dos principais
nomes de nosso Realismo-Naturalismo – em razão das características que
acabamos de assinalar, mas, em especial, pelo registro das distorções sociais
e pessoais próprias de uma sociedade urbana “degenerada”, como era parte
da sociedade urbana brasileira da segunda metade do século XIX –, Aluísio
Azevedo foi também autor de romances que podem ser considerados típicos
exemplos do romantismo literário. São os seus chamados “romances folhe-
tinescos”, que Alfredo Bosi3 definiu como romances de extração romântica:
Uma lágrima de mulher (1880), Memórias de um condenado ou A Condessa
Vésper (1881), Mistério da Tijuca ou Girândola de amores (1882), Filomena
Borges (1884), O Coruja (1890) e A mortalha de Alzira (1894). Como nos
explica Raimundo de Menezes,4 um de seus biógrafos, parte dessa produção,
distinta da tendência realista-naturalista, foi publicada em folhetins de jor-
nais da época, como aliás costumava acontecer com uma parcela da ficção
romântica brasileira e europeia.
Pode-se dizer que é com O Coruja – obra em que procura mesclar
aspectos do romance romântico e características estéticas realistas – que o
escritor maranhense marca definitivamente sua transição para o Realismo-
Naturalismo, embora já tivesse publicado, antes, O mulato e Casa de pensão,
dois romances já assumidamente realista-naturalistas. É que, como sugere
João Pacheco,5 com O Coruja, Aluísio apresenta a primeira tentativa sólida de
criar personagens com um perfil psicológico mais bem cuidado, sem perder
aquele traço determinista que marcaria a melhor parte de sua produção
ficcional.
De qualquer maneira, seria exagero enquadrar Aluísio Azevedo entre
nossos românticos tardios, já que sua principal contribuição ficcional encon-
tra-se mesmo nos limites da estética realista-naturalista, sendo Émile Zola

3  BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. São Paulo, Cultrix, 1988.
4  MENEZES, Raimundo de. Aluísio Azevedo. Uma vida de romance. São Paulo, Martins, 1958.
5  PACHECO, João. O realismo. São Paulo, Cultrix, 1972.

ALUÍSIO AZEVEDO •9•


– como dissemos antes – sua principal referência. É certo que essa aproxi-
mação com o célebre escritor francês resultou, entre outras coisas, na acu-
sação de que Aluísio teria plagiado o autor de Germinal: não foram poucos,
por exemplo, os que viram em seu O cortiço uma suspeita “semelhança”
com L’Assommoir, de Zola, equívoco desfeito pelo célebre estudo de Antônio
Cândido.6
Mas o que dizer de seu principal romance: O cortiço? Publicado em 1890,
a instigante história de João Romão, Bertoleza, Miranda, Pombinha, Jerônimo
e muitas outras personagens apresenta algumas características que não
passam despercebidas nem pelo mais desatento dos leitores, o que faz dele
uma de nossas mais importantes obras literárias de todos os tempos.
Assim, como um autêntico e fiel retrato dos vícios humanos, apresenta
a sociedade tomada por patologias sociais crônicas, que têm como base
tanto a imoralidade (no âmbito dos costumes) quanto a luxúria (no âmbito
da sexualidade). A perversão sexual é, aliás, um dos motivos literários mais
recorrentes nesse romance escrito sob o influxo do condicionamento bio-
lógico, o que, aliás, era bastante comum nos romances de nossos princi-
pais realistas-naturalistas, como A carne (de Júlio Ribeiro), O bom-crioulo (de
Adolfo Caminha) ou Luiza-Homem (de Domingos Olympio).
Em O cortiço identificamos facilmente a valorização de alguns ele-
mentos estruturais da prosa de ficção, em particular o espaço romanesco (o
próprio cortiço, representando a classe popular, ou o sobrado, simbolizando
a burguesia ascendente), mas também a construção de personagens típicas,
ora caricaturizadas, ora antropomorfizadas. Assumidamente determinista,
trata-se de um romance em que não apenas o ambiente exerce influência
sobre a constituição das personagens, mas também aspectos de natureza
biológica e social: por isso mesmo, a mensagem subliminar que o romance
transmite ao leitor – evidentemente equivocada, do ponto de vista socio-
lógico – é a de que cada um está, necessariamente, predestinado a ser o
resultado imediato, categórico e irrefutável – portanto, previamente “deter-
minado” – de condições sociais, ambientais e raciais. Daí o fato de o autor
apresentar-nos ou personagens degradados, ou que se degradam ao longo
da trama romanesca, “vítimas” incoercíveis do próprio cortiço onde viviam...

6  CÂNDIDO, Antonio. “De cortiço a cortiço”. Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, No. 30: 111-129,
jul. 1991.

• 10 • O CORTIÇO
Com suas frases curtas e seus períodos entrecortados, O cortiço, con-
tudo, não deixa de ser um romance “moderno”, no sentido de estar em sin-
tonia com sua época e exprimir suas principais contradições, levando o leitor
a uma verdadeira reflexão acerca das condições ontológica e social do ser
humano. Como disse, acertadamente, Milton Marques Júnior:

[...] reescrevendo-se e trabalhando a linguagem, incansavelmente de


1879 a 1895, quando produziu onze romances e um livro de contos [...]
Aluísio Azevedo chegou a O cortiço, em 1890, produzindo um romance es-
sencialmente moderno, antecipador, no Brasil, do predomínio da força do
capital nas relações de trabalho, e das transformações do mundo urbano
exigida pela nova ordem que se estabelecia: a sociedade burguesa dos
carros, da eletricidade, das avenidas e dos bulevares.7

Nesse sentido, foi também um de nossos mais exímios retratistas do


cotidiano das grandes cidades da segunda metade do século XIX, apresen-
tando ao leitor, por meio de um amplo painel humano, como era a “vida em
ruínas” daqueles que vivam uma das mais contrastantes realidades sociais
do Brasil republicano.

Maurício Silva8

7  MARQUES JÚNIOR, Milton. Da Ilha de São Luís aos Refolhos de Botafogo: a Trajetória
Literária de Aluísio Azevedo da Província à Corte. João Pessoa, Universidade Federal da
Paraíba, 1995 (tese de doutorado), p. 228.
8  Maurício Silva é graduado em letras-português pela Universidade de São Paulo (USP).
Possui mestrado, doutorado e pós-doutorado em literatura brasileira pela USP. É professor
e pesquisador do Programa de Mestrado e Doutorado em Educação da Universidade Nove de
Julho, além de líder do grupo de pesquisa Literatura e Razões Literárias, certificado pelo CNPq.
Possui experiência na área de letras, com ênfase em literatura brasileira. Publicou vários livros
e artigos no Brasil e no exterior.

ALUÍSIO AZEVEDO • 11 •
I
João Romão foi, dos treze aos vinte e cinco anos, empregado de um
vendeiro que enriqueceu entre as quatro paredes de uma suja e obscura
taverna nos refolhos do bairro do Botafogo; e tanto economizou do pouco
que ganhara nessa dúzia de anos, que, ao retirar-se o patrão para a terra, lhe
deixou, em pagamento de ordenados vencidos, nem só a venda com o que
estava dentro, como ainda um conto e quinhentos em dinheiro.
Proprietário e estabelecido por sua conta, o rapaz atirou-se à labutação
ainda com mais ardor, possuindo-se de tal delírio de enriquecer, que afron-
tava resignado as mais duras privações. Dormia sobre o balcão da própria
venda, em cima de uma esteira, fazendo travesseiro de um saco de estopa
cheio de palha. A comida arranjava-lha, mediante quatrocentos réis por dia,
uma quitandeira sua vizinha, a Bertoleza, crioula trintona, escrava de um
velho cego residente em Juiz de Fora e amigada com um português que tinha
uma carroça de mão e fazia fretes na cidade.
Bertoleza também trabalhava forte; a sua quitanda era a mais bem afre-
guesada do bairro. De manhã vendia angu, e à noite peixe frito e iscas de
fígado; pagava de jornal a seu dono vinte mil-réis por mês, e, apesar disso,
tinha de parte quase que o necessário para a alforria. Um dia, porém, o seu
homem, depois de correr meia légua, puxando uma carga superior às suas
forças, caiu morto na rua, ao lado da carroça, estrompado como uma besta.
João Romão mostrou grande interesse por esta desgraça, fez-se até
participante direto dos sofrimentos da vizinha, e com tamanho empenho a

ALUÍSIO AZEVEDO • 13 •
lamentou, que a boa mulher o escolheu para confidente das suas desven-
turas. Abriu-se com ele, contou-lhe a sua vida de amofinações e dificuldades.
“Seu senhor comia-lhe a pele do corpo! Não era brinquedo para uma pobre
mulher ter de escarrar pr’ali, todos os meses, vinte mil-réis em dinheiro!”
E segredou-lhe então o que tinha juntado para a sua liberdade e acabou
pedindo ao vendeiro que lhe guardasse as economias, porque já de certa vez
fora roubada por gatunos que lhe entraram na quitanda pelos fundos.
Daí em diante, João Romão tornou-se o caixa, o procurador e o conse-
lheiro da crioula. No fim de pouco tempo era ele quem tomava conta de tudo
que ela produzia e era também quem punha e dispunha dos seus pecúlios, e
quem se encarregava de remeter ao senhor os vinte mil-réis mensais. Abriu-lhe
logo uma conta corrente, e a quitandeira, quando precisava de dinheiro para
qualquer coisa, dava um pulo até à venda e recebia-o das mãos do vendeiro, de
“Seu João”, como ela dizia. Seu João debitava metodicamente essas pequenas
quantias num caderninho, em cuja capa de papel pardo lia-se, mal escrito e em
letras cortadas de jornal: “Ativo e passivo de Bertoleza”.
E por tal forma foi o taverneiro ganhando confiança no espírito da
mulher, que esta afinal nada mais resolvia só por si, e aceitava dele, cega-
mente, todo e qualquer arbítrio. Por último, se alguém precisava tratar com
ela qualquer negócio, nem mais se dava ao trabalho de procurá-la, ia logo
direito a João Romão.
Quando deram fé estavam amigados.
Ele propôs-lhe morarem juntos e ela concordou de braços abertos,
feliz em meter-se de novo com um português, porque, como toda a cafuza,
Bertoleza não queria sujeitar-se a negros e procurava instintivamente o
homem numa raça superior à sua.
João Romão comprou então, com as economias da amiga, alguns palmos
de terreno ao lado esquerdo da venda, e levantou uma casinha de duas portas,
dividida ao meio paralelamente à rua, sendo a parte da frente destinada à
quitanda e a do fundo para um dormitório que se arranjou com os cacarecos
de Bertoleza. Havia, além da cama, uma cômoda de jacarandá muito velha
com maçanetas de metal amarelo já mareadas, um oratório cheio de santos
e forrado de papel de cor, um baú grande de couro cru tacheado, dois ban-
quinhos de pau feitos de uma só peça e um formidável cabide de pregar na
parede, com a sua competente coberta de retalhos de chita.

• 14 • O CORTIÇO
O vendeiro nunca tivera tanta mobília.
— Agora, disse ele à crioula, as coisas vão correr melhor para você. Você
vai ficar forra; eu entro com o que falta.
Nesse dia ele saiu muito à rua, e uma semana depois apareceu com uma
folha de papel toda escrita, que leu em voz alta à companheira.
— Você agora não tem mais senhor! declarou em seguida à leitura, que
ela ouviu entre lágrimas agradecidas. Agora está livre. Doravante o que você
fizer é só seu e mais de seus filhos, se os tiver. Acabou-se o cativeiro de pagar
os vinte mil-réis à peste do cego!
— Coitado! A gente se queixa é da sorte! Ele, como meu senhor, exigia
o jornal, exigia o que era seu!
— Seu ou não seu, acabou-se! E vida nova!
Contra todo o costume, abriu-se nesse dia uma garrafa de vinho do Porto,
e os dois beberam-na em honra ao grande acontecimento. Entretanto, a tal
carta de liberdade era obra do próprio João Romão, e nem mesmo o selo, que
ele entendeu de pespegar-lhe em cima, para dar à burla maior formalidade,
representava despesa porque o esperto aproveitara uma estampilha já ser-
vida. O senhor de Bertoleza não teve sequer conhecimento do fato; o que lhe
constou, sim, foi que a sua escrava lhe havia fugido para a Bahia depois da
morte do amigo.
— O cego que venha buscá-la aqui, se for capaz... desafiou o vendeiro de
si para si. Ele que caia nessa e verá se tem ou não pra peras!
Não obstante, só ficou tranquilo de todo daí a três meses, quando lhe
constou a morte do velho. A escrava passara naturalmente em herança a
qualquer dos filhos do morto; mas, por estes, nada havia que recear: dois
pândegos de marca maior que, empolgada a legítima, cuidariam de tudo,
menos de atirar-se na pista de uma crioula a quem não viam de muitos anos
àquela parte. “Ora! Bastava já, e não era pouco, o que lhe tinham sugado
durante tanto tempo!”
Bertoleza representava agora ao lado de João Romão o papel tríplice
de caixeiro, de criada e de amante. Mourejava a valer, mas de cara alegre; às
quatro da madrugada estava já na faina de todos os dias, aviando o café para
os fregueses e depois preparando o almoço para os trabalhadores de uma
pedreira que havia para além de um grande capinzal aos fundos da venda.
Varria a casa, cozinhava, vendia ao balcão na taverna, quando o amigo

ALUÍSIO AZEVEDO • 15 •
andava ocupado lá por fora; fazia a sua quitanda durante o dia no intervalo
de outros serviços, e à noite passava-se para a porta da venda, e, defronte
de um fogareiro de barro, fritava fígado e frigia sardinhas, que Romão ia
pela manhã, em mangas de camisa, de tamancos e sem meias, comprar à
praia do Peixe. E o demônio da mulher ainda encontrava tempo para lavar
e consertar, além da sua, a roupa do seu homem, que esta, valha a verdade,
não era tanta e nunca passava em todo o mês de alguns pares de calças de
zuarte e outras tantas camisas de riscado.
João Romão não saía nunca a passeio, nem ia à missa aos domingos;
tudo que rendia a sua venda e mais a quitanda seguia direitinho para a caixa
econômica e daí então para o banco. Tanto assim que, um ano depois da
aquisição da crioula, indo em hasta pública algumas braças de terra situadas
ao fundo da taverna, arrematou-as logo e tratou, sem perda de tempo, de
construir três casinhas de porta e janela.
Que milagres de esperteza e de economia não realizou ele nessa cons-
trução! Servia de pedreiro, amassava e carregava barro, quebrava pedra;
pedra, que o velhaco, fora de horas, junto com a amiga, furtavam à pedreira
do fundo, da mesma forma que subtraiam o material das casas em obra que
havia por ali perto.
Estes furtos eram feitos com todas as cautelas e sempre coroados do
melhor sucesso, graças à circunstância de que nesse tempo a polícia não
se mostrava muito por aquelas alturas. João Romão observava durante o
dia quais as obras em que ficava material para o dia seguinte, e à noite lá
estava ele rente, mais a Bertoleza, a removerem tábuas, tijolos, telhas,
sacos de cal, para o meio da rua, com tamanha habilidade que se não ouvia
vislumbre de rumor. Depois, um tomava uma carga e partia para casa,
enquanto o outro ficava de alcateia ao lado do resto, pronto a dar sinal, em
caso de perigo; e, quando o que tinha ido voltava, seguia então o compa-
nheiro, carregado por sua vez.
Nada lhes escapava, nem mesmo as escadas dos pedreiros, os cavalos
de pau, o banco ou a ferramenta dos marceneiros.
E o fato é que aquelas três casinhas, tão engenhosamente construídas,
foram o ponto de partida do grande cortiço de São Romão.
Hoje quatro braças de terra, amanhã seis, depois mais outras, ia o ven-
deiro conquistando todo o terreno que se estendia pelos fundos da sua

• 16 • O CORTIÇO
bodega; e, à proporção que o conquistava, reproduziam-se os quartos e o
número de moradores.
Sempre em mangas de camisa, sem domingo nem dia santo, não per-
dendo nunca a ocasião de assenhorear-se do alheio, deixando de pagar todas
as vezes que podia e nunca deixando de receber, enganando os fregueses,
roubando nos pesos e nas medidas, comprando por dez réis de mel coado
o que os escravos furtavam da casa dos seus senhores, apertando cada vez
mais as próprias despesas, empilhando privações sobre privações, traba-
lhando e mais a amiga como uma junta de bois, João Romão veio afinal a
comprar uma boa parte da bela pedreira, que ele, todos os dias, ao cair da
tarde, assentado um instante à porta da venda, contemplava de longe com
um resignado olhar de cobiça.
Pôs lá seis homens a quebrarem pedra e outros seis a fazerem lajedos e
paralelepípedos, e então principiou a ganhar em grosso, tão em grosso que,
dentro de ano e meio, arrematava já todo o espaço compreendido entre as
suas casinhas e a pedreira, isto é, umas oitenta braças de fundo sobre vinte
de frente em plano enxuto e magnífico para construir.
Justamente por essa ocasião vendeu-se também um sobrado que ficava
à direita da venda, separado desta apenas por aquelas vinte braças; de sorte
que todo o flanco esquerdo do prédio, coisa de uns vinte e tantos metros,
despejava para o terreno do vendeiro as suas nove janelas de peitoril.
Comprou-o um tal Miranda, negociante português, estabelecido na Rua do
Hospício com uma loja de fazendas por atacado. Corrida uma limpeza geral
no casarão, mudar-se-ia ele para lá com a família, pois que a mulher, Dona
Estela, senhora pretensiosa e com fumaças de nobreza, já não podia suportar
a residência no centro da cidade, como também sua menina, a Zulmirinha,
crescia muito pálida e precisava de largueza para enrijar e tomar corpo.
Isto foi o que disse o Miranda aos colegas, porém a verdadeira causa
da mudança estava na necessidade, que ele reconhecia urgente, de afastar
Dona Estela do alcance dos seus caixeiros. Dona Estela era uma mulherzinha
levada da breca: achava-se casada havia treze anos e durante esse tempo
dera ao marido toda sorte de desgostos. Ainda antes de terminar o segundo
ano de matrimônio, o Miranda pilhou-a em flagrante delito de adultério;
ficou furioso e o seu primeiro impulso foi de mandá-la para o diabo junto
com o cúmplice; mas a sua casa comercial garantia-se com o dote que ela

ALUÍSIO AZEVEDO • 17 •
trouxera, uns oitenta contos em prédios e ações da dívida pública, de que
se utilizava o desgraçado tanto quanto lhe permitia o regime dotal. Além
de que, um rompimento brusco seria obra para escândalo, e, segundo a sua
opinião, qualquer escândalo doméstico ficava muito mal a um negociante de
certa ordem. Prezava, acima de tudo, a sua posição social e tremia só com
a ideia de ver-se novamente pobre, sem recursos e sem coragem para reco-
meçar a vida, depois de se haver habituado a umas tantas regalias e afeito à
hombridade de português rico que já não tem pátria na Europa.
Acovardado defronte destes raciocínios, contentou-se com uma simples
separação de leitos, e os dois passaram a dormir em quartos separados. Não
comiam juntos, e mal trocavam entre si uma ou outra palavra constrangida,
quando qualquer inesperado acaso os reunia a contragosto.
Odiavam-se. Cada qual sentia pelo outro um profundo desprezo, que
pouco a pouco se foi transformando em repugnância completa. O nasci-
mento de Zulmira veio agravar ainda mais a situação; a pobre criança, em
vez de servir de elo aos dois infelizes, foi antes um novo isolador que se
estabeleceu entre eles. Estela amava-a menos do que lhe pedia o instinto
materno por supô-la filha do marido, e este a detestava porque tinha con-
vicção de não ser seu pai.
Uma bela noite, porém, o Miranda, que era homem de sangue esperto
e orçava então pelos seus trinta e cinco anos, sentiu-se em insuportável
estado de lubricidade. Era tarde já e não havia em casa alguma criada que
lhe pudesse valer. Lembrou-se da mulher, mas repeliu logo esta ideia com
escrupulosa repugnância. Continuava a odiá-la. Entretanto este mesmo fato
de obrigação em que ele se colocou de não servir-se dela, a responsabili-
dade de desprezá-la, como que ainda mais lhe assanhava o desejo da carne,
fazendo da esposa infiel um fruto proibido. Afinal, coisa singular, posto
que moralmente nada diminuísse a sua repugnância pela perjura, foi ter ao
quarto dela.
A mulher dormia a sono solto. Miranda entrou pé ante pé e aproximou-se
da cama. “Devia voltar!... pensou. Não lhe ficava bem aquilo!...” Mas o
sangue latejava-lhe, reclamando-a. Ainda hesitou um instante, imóvel, a
contemplá-la no seu desejo.
Estela, como se o olhar do marido lhe apalpasse o corpo, torceu-se
sobre o quadril da esquerda, repuxando com as coxas o lençol para a

• 18 • O CORTIÇO
frente e patenteando uma nesga de nudez estofada e branca. O Miranda
não pôde resistir, atirou-se contra ela, que, num pequeno sobressalto, mais
de surpresa que de revolta, desviou-se, tornando logo e enfrentando com
o marido. E deixou-se empolgar pelos rins, de olhos fechados, fingindo que
continuava a dormir, sem a menor consciência de tudo aquilo.
Ah! Ela contava como certo que o esposo, desde que não teve coragem
de separar-se de casa, havia, mais cedo ou mais tarde, de procurá-la de
novo. Conhecia-lhe o temperamento, forte para desejar e fraco para resistir
ao desejo.
Consumado o delito, o honrado negociante sentiu-se tolhido de
vergonha e arrependimento. Não teve ânimo de dar palavra, e retirou-se
tristonho e murcho para o seu quarto de desquitado.
Oh! Como lhe doía agora o que acabava de praticar na cegueira da sua
sensualidade.
— Que cabeçada!... dizia ele agitado. Que formidável cabeçada!...
No dia seguinte, os dois viram-se e evitaram-se em silêncio, como se
nada de extraordinário houvera entre eles acontecido na véspera. Dir-se-ia
até que, depois daquela ocorrência, o Miranda sentia crescer o seu ódio
contra a esposa. E, à noite desse mesmo dia, quando se achou sozinho na
sua cama estreita, jurou mil vezes aos seus brios nunca mais, nunca mais,
praticar semelhante loucura.
Mas, daí a um mês, o pobre homem, acometido de um novo acesso de
luxúria, voltou ao quarto da mulher.
Estela recebeu-o desta vez como da primeira, fingindo que não acordava;
na ocasião, porém, em que ele se apoderava dela febrilmente, a leviana, sem se
poder conter, soltou-lhe em cheio contra o rosto uma gargalhada que a custo
sopeava. O pobre-diabo desnorteou, deveras escandalizado, soerguendo-se,
brusco, num estremunhamento de sonâmbulo acordado com violência.
A mulher percebeu a situação e não lhe deu tempo para fugir; passou-lhe
rápido as pernas por cima e, grudando-se-lhe ao corpo, cegou-o com uma
metralhada de beijos.
Não se falaram.
Miranda nunca a tivera, nem nunca a vira, assim tão violenta no prazer.
Estranhou-a. Afigurou-se-lhe estar nos braços de uma amante apaixonada:
descobriu nela o capitoso encanto com que nos embebedam as cortesãs

ALUÍSIO AZEVEDO • 19 •
amestradas na ciência do gozo venéreo. Descobriu-lhe no cheiro da pele
e no cheiro dos cabelos perfumes que nunca lhe sentira; notou-lhe outro
hálito, outro som nos gemidos e nos suspiros. E gozou-a, gozou-a louca-
mente, com delírio, com verdadeira satisfação de animal no cio.
E ela também, ela também gozou, estimulada por aquela circuns-
tância picante do ressentimento que os desunia; gozou a desonestidade
daquele ato que a ambos acanalhava aos olhos um do outro; estorceu-se
toda, rangendo os dentes, grunhindo, debaixo daquele seu inimigo odiado,
achando-o também agora, como homem, melhor que nunca, sufocando-o
nos seus braços nus, metendo-lhe pela boca a língua úmida e em brasa.
Depois, um arranco de corpo inteiro, com um soluço gutural e estrangu-
lado, arquejante e convulsa, estatelou-se num abandono de pernas e braços
abertos, a cabeça para o lado, os olhos moribundos e chorosos, toda ela
agonizante, como se a tivessem crucificado na cama.
A partir dessa noite, da qual só pela manhã o Miranda se retirou do
quarto da mulher, estabeleceu-se entre eles o hábito de uma felicidade
sexual, tão completa como ainda não a tinham desfrutado, posto que no
íntimo de cada um persistisse contra o outro a mesma repugnância moral
em nada enfraquecida.
Durante dez anos viveram muito bem casados; agora, porém, tanto
tempo depois da primeira infidelidade conjugal, e agora que o negociante já
não era acometido tão frequentemente por aquelas crises que o arrojavam
fora de horas ao dormitório de Dona Estela; agora, eis que a leviana parecia
disposta a reincidir na culpa, dando corda aos caixeiros do marido, na oca-
sião em que estes subiam para almoçar ou jantar.
Foi por isso que o Miranda comprou o prédio vizinho a João Romão.
A casa era boa; seu único defeito estava na escassez do quintal; mas
para isso havia remédio: com muito pouco compravam-se umas dez braças
daquele terreno do fundo que ia até à pedreira, e mais uns dez ou quinze
palmos do lado em que ficava a venda.
Miranda foi logo entender-se com o Romão e propôs-lhe negócio. O taver-
neiro recusou formalmente. Miranda insistiu.
— O senhor perde seu tempo e seu latim! retrucou o amigo de Bertoleza.
Nem só não cedo uma polegada do meu terreno, como ainda lhe compro, se
mo quiser vender, aquele pedaço que lhe fica ao fundo da casa!

• 20 • O CORTIÇO
— O quintal?
— É exato.
— Pois você quer que eu fique sem chácara, sem jardim, sem nada?
— Para mim era de vantagem...
— Ora, deixe-se disso, homem, e diga lá quanto quer pelo que lhe
propus.
— Já disse o que tinha a dizer.
— Ceda-me então ao menos as dez braças do fundo.
— Nem meio palmo!
— Isso é maldade de sua parte, sabe? Eu, se faço tamanho empenho,
é pela minha pequena, que precisa, coitada, de um pouco de espaço para
alargar-se.
— E eu não cedo, porque preciso do meu terreno!
— Ora qual! Que diabo pode lá você fazer ali? Uma porcaria de um
pedaço de terreno quase grudado ao morro e aos fundos de minha casa!
Quando você, aliás, dispõe de tanto espaço ainda!
— Hei de lhe mostrar se tenho ou não o que fazer ali!
— É que você é teimoso! Olhe, se me cedesse as dez braças do fundo, a
sua parte ficaria cortada em linha reta até à pedreira, e escusava eu de ficar
com uma aba de terreno alheio a meter-se pelo meu. Quer saber? Não amuro
o quintal sem você decidir-se!
— Então ficará com o quintal para sempre sem muro, porque o que tinha
a dizer já disse!
— Mas, homem de Deus, que diabo! Pense um pouco! Você ali não
pode construir nada! Ou pensará que lhe deixarei abrir janelas sobre o meu
quintal!...
— Não preciso abrir janelas sobre o quintal de ninguém!
— Nem tampouco lhe deixarei levantar parede, tapando-me as janelas
da esquerda!
— Não preciso levantar parede desse lado...
— Então que diabo vai você fazer de todo este terreno?...
— Ah! Isso agora é cá comigo!... O que for soará!
— Pois creia que se arrepende de não me ceder o terreno!...
— Se me arrepender, paciência! Só lhe digo é que muito mal se sairá
quem quiser meter-se cá com a minha vida!

ALUÍSIO AZEVEDO • 21 •
— Passe bem!
— Adeus!
Travou-se então uma luta renhida e surda entre o português negociante
de fazendas por atacado e o português negociante de secos e molhados.
Aquele não se resolvia a fazer o muro do quintal, sem ter alcançado o
pedaço de terreno que o separava do morro; e o outro, por seu lado, não
perdia a esperança de apanhar-lhe ainda, pelo menos, duas ou três braças
aos fundos da casa; parte esta que, conforme os seus cálculos, valeria ouro,
uma vez realizado o grande projeto que ultimamente o trazia preocupado
— a criação de uma estalagem em ponto enorme, uma estalagem monstro,
sem exemplo, destinada a matar toda aquela miuçalha de cortiços que alas-
travam por Botafogo.
Era este o seu ideal. Havia muito que João Romão vivia exclusivamente
para essa ideia; sonhava com ela todas as noites; comparecia a todos os
leilões de materiais de construção; arrematava madeiramentos já servidos;
comprava telha em segunda mão; fazia pechinchas de cal e tijolos; o que era
tudo depositado no seu extenso chão vazio, cujo aspecto tomava em breve
o caráter estranho de uma enorme barricada, tal era a variedade dos objetos
que ali se apinhavam acumulados: tábuas e sarrafos, troncos de árvore,
mastros de navio, caibros, restos de carroças, chaminés de barro e de ferro,
fogões desmantelados, pilhas e pilhas de tijolos de todos os feitios, bar-
ricas de cimento, montes de areia e terra vermelha, aglomerações de telhas
velhas, escadas partidas, depósitos de cal, o diabo enfim; ao que ele, que
sabia perfeitamente como essas coisas se furtavam, resguardava, soltando à
noite um formidável cão de fila.
Este cão era pretexto de eternas rezingas com a gente do Miranda, a
cujo quintal ninguém de casa podia descer, depois das dez horas da noite,
sem correr o risco de ser assaltado pela fera.
— É fazer o muro! dizia o João Romão, sacudindo os ombros.
— Não faço! replicava o outro. Se ele é questão de capricho eu também
tenho capricho!
Em compensação, não caía no quintal do Miranda galinha ou frango,
fugidos do cercado do vendeiro, que não levasse imediato sumiço. João
Romão protestava contra o roubo em termos violentos, jurando vinganças
terríveis, falando em dar tiros.

• 22 • O CORTIÇO
— Pois é fazer um muro no galinheiro! repontava o marido de Estela.
Daí a alguns meses, João Romão, depois de tentar um derradeiro esforço
para conseguir algumas braças do quintal do vizinho, resolveu principiar as
obras da estalagem.
— Deixa estar, conversava ele na cama com a Bertoleza; deixa estar que
ainda lhe hei de entrar pelos fundos da casa, se é que não lhe entre pela
frente! Mais cedo ou mais tarde como-lhe, não duas braças, mas seis, oito,
todo o quintal e até o próprio sobrado talvez!
E dizia isto com uma convicção de quem tudo pode e tudo espera da sua
perseverança, do seu esforço inquebrantável e da fecundidade prodigiosa
do seu dinheiro, dinheiro que só lhe saía das unhas para voltar multiplicado.
Desde que a febre de possuir se apoderou dele totalmente, todos os seus
atos, todos, fosse o mais simples, visavam um interesse pecuniário. Só tinha
uma preocupação: aumentar os bens. Das suas hortas recolhia para si e para
a companheira os piores legumes, aqueles que, por maus, ninguém com-
praria; as suas galinhas produziam muito e ele não comia um ovo, do que
no entanto gostava imenso; vendia-os todos e contentava-se com os restos
da comida dos trabalhadores. Aquilo já não era ambição, era uma moléstia
nervosa, uma loucura, um desespero de acumular; de reduzir tudo a moeda.
E seu tipo baixote, socado, de cabelos à escovinha, a barba sempre por fazer,
ia e vinha da pedreira para a venda, da venda às hortas e ao capinzal, sempre
em mangas de camisa, de tamancos, sem meias, olhando para todos os lados,
com o seu eterno ar de cobiça, apoderando-se, com os olhos, de tudo aquilo
de que ele não podia apoderar-se logo com as unhas.
Entretanto, a rua lá fora povoava-se de um modo admirável. Construía-se
mal, porém muito; surgiam chalés e casinhas da noite para o dia; subiam os
aluguéis; as propriedades dobravam de valor. Montara-se uma fábrica de
massas italianas e outra de velas, e os trabalhadores passavam de manhã
e às Ave-Marias, e a maior parte deles ia comer à casa de pasto que João
Romão arranjara aos fundos da sua varanda. Abriram-se novas tavernas;
nenhuma, porém, conseguia ser tão afreguesada como a dele. Nunca o seu
negócio fora tão bem, nunca o finório vendera tanto; vendia mais agora,
muito mais, que nos anos anteriores. Teve até de admitir caixeiros. As mer-
cadorias não lhe paravam nas prateleiras; o balcão estava cada vez mais
lustroso, mais gasto. E o dinheiro a pingar, vintém por vintém, dentro da

ALUÍSIO AZEVEDO • 23 •
gaveta, e a escorrer da gaveta para a burra, aos cinquenta e aos cem mil-réis,
e da burra para o banco, aos contos e aos contos.
Afinal, já lhe não bastava sortir o seu estabelecimento nos armazéns
fornecedores; começou a receber alguns gêneros diretamente da Europa: o
vinho, por exemplo, que ele dantes comprava aos quintos nas casas de ata-
cado, vinha-lhe agora de Portugal às pipas, e de cada uma fazia três com água
e cachaça; e despachava faturas de barris de manteiga, de caixas de conserva,
caixões de fósforos, azeite, queijos, louça e muitas outras mercadorias.
Criou armazéns para depósito, aboliu a quitanda e transferiu o dormi-
tório, aproveitando o espaço para ampliar a venda, que dobrou de tamanho
e ganhou mais duas portas.
Já não era uma simples taverna, era um bazar em que se encontrava de
tudo, objetos de armarinho, ferragens, porcelanas, utensílios de escritório,
roupa de riscado para os trabalhadores, fazenda para roupa de mulher, cha-
péus de palha próprios para o serviço ao sol, perfumarias baratas, pentes de
chifre, lenços com versos de amor, e anéis e brincos de metal ordinário.
E toda a gentalha daquelas redondezas ia cair lá, ou então ali ao lado, na
casa de pasto, onde os operários das fábricas e os trabalhadores da pedreira
se reuniam depois do serviço, e ficavam bebendo e conversando até às dez
horas da noite, entre o espesso fumo dos cachimbos, do peixe frito em azeite
e dos lampiões de querosene.
Era João Romão quem lhes fornecia tudo, tudo, até dinheiro adiantado,
quando algum precisava. Por ali não se encontrava jornaleiro cujo ordenado
não fosse inteirinho parar às mãos do velhaco. E sobre este cobre, quase
sempre emprestado aos tostões, cobrava juros de oito por cento ao mês, um
pouco mais do que levava aos que garantiam a dívida com penhores de ouro
ou prata.
Não obstante, as casinhas do cortiço, à proporção que se atamancavam,
enchiam-se logo, sem mesmo dar tempo a que as tintas secassem. Havia
grande avidez em alugá-las; aquele era o melhor ponto do bairro para a
gente do trabalho. Os empregados da pedreira preferiam todos morar lá,
porque ficavam a dois passos da obrigação.
O Miranda rebentava de raiva.

• 24 • O CORTIÇO
— Um cortiço! exclamava ele, possesso. Um cortiço! Maldito seja aquele
vendeiro de todos os diabos! Fazer-me um cortiço debaixo das janelas!...
Estragou-me a casa, o malvado!
E vomitava pragas, jurando que havia de vingar-se, e protestando aos
berros contra o pó que lhe invadia em ondas as salas, e contra o infernal
barulho dos pedreiros e carpinteiros que levavam a martelar de sol a sol.
O que aliás não impediu que as casinhas continuassem a surgir, uma
após outra, e fossem logo se enchendo, a estenderem-se unidas por ali a
fora, desde a venda até quase ao morro, e depois dobrassem para o lado
do Miranda e avançassem sobre o quintal deste, que parecia ameaçado por
aquela serpente de pedra e cal.
O Miranda mandou logo levantar o muro.
Nada! Aquele demônio era capaz de invadir-lhe a casa até a sala de
visitas!
E os quartos do cortiço pararam enfim de encontro ao muro do nego-
ciante, formando com a continuação da casa deste um grande quadrilongo,
espécie de pátio de quartel, onde podia formar um batalhão.
Noventa e cinco casinhas comportou a imensa estalagem.
Prontas, João Romão mandou levantar na frente, nas vinte braças que
separavam a venda do sobrado do Miranda, um grosso muro de dez palmos
de altura, coroado de cacos de vidro e fundos de garrafa, e com um grande
portão no centro, onde se dependurou uma lanterna de vidraças vermelhas,
por cima de uma tabuleta amarela, em que se lia o seguinte, escrito a tinta
encarnada e sem ortografia:
“Estalagem de São Romão. Alugam-se casinhas e tinas para lavadeiras”.
As casinhas eram alugadas por mês e as tinas por dia; tudo pago adian-
tado. O preço de cada tina, metendo a água, quinhentos réis; sabão à parte.
As moradoras do cortiço tinham preferência e não pagavam nada para lavar.
Graças à abundância da água que lá havia, como em nenhuma outra
parte, e graças ao muito espaço de que se dispunha no cortiço para estender
a roupa, a concorrência às tinas não se fez esperar; acudiram lavadeiras de
todos os pontos da cidade, entre elas algumas vindas de bem longe. E, mal
vagava uma das casinhas, ou um quarto, um canto onde coubesse um col-
chão, surgia uma nuvem de pretendentes a disputá-los.

ALUÍSIO AZEVEDO • 25 •
E aquilo se foi constituindo numa grande lavanderia, agitada e baru-
lhenta, com as suas cercas de varas, as suas hortaliças verdejantes e os seus
jardinzinhos de três e quatro palmos, que apareciam como manchas ale-
gres por entre a negrura das limosas tinas transbordantes e o revérbero das
claras barracas de algodão cru, armadas sobre os lustrosos bancos de lavar.
E os gotejantes jiraus, cobertos de roupa molhada, cintilavam ao sol, que
nem lagos de metal branco.
E naquela terra encharcada e fumegante, naquela umidade quente e
lodosa, começou a minhocar, a esfervilhar, a crescer, um mundo, uma coisa
viva, uma geração, que parecia brotar espontânea, ali mesmo, daquele
lameiro, e multiplicar-se como larvas no esterco.

II
Durante dois anos o cortiço prosperou de dia para dia, ganhando forças,
socando-se de gente. E ao lado o Miranda assustava-se, inquieto com aquela
exuberância brutal de vida, aterrado defronte daquela floresta implacável
que lhe crescia junto da casa, por debaixo das janelas, e cujas raízes, piores
e mais grossas do que serpentes, minavam por toda a parte, ameaçando
rebentar o chão em torno dela, rachando o solo e abalando tudo.
Posto que lá na Rua do Hospício os seus negócios não corressem mal,
custava-lhe a sofrer a escandalosa fortuna do vendeiro “aquele tipo! Um mise-
rável, um sujo, que não pusera nunca um paletó, e que vivia de cama e mesa
com uma negra!”.
À noite e aos domingos ainda mais recrudescia o seu azedume, quando
ele, recolhendo-se fatigado do serviço, deixava-se ficar estendido numa pre-
guiçosa, junto à mesa da sala de jantar, e ouvia, a contragosto, o grosseiro
rumor que vinha da estalagem numa exalação forte de animais cansados.
Não podia chegar à janela sem receber no rosto aquele bafo, quente e sen-
sual, que o embebedava com o seu fartum de bestas no coito.
E depois, fechado no quarto de dormir, indiferente e habituado às tor-
pezas carnais da mulher, isento já dos primitivos sobressaltos que lhe faziam,
a ele, ferver o sangue e perder a tramontana, era ainda a prosperidade do

• 26 • O CORTIÇO
vizinho o que lhe obsedava o espírito, enegrecendo-lhe a alma com um feio
ressentimento de despeito.
Tinha inveja do outro, daquele outro português que fizera fortuna, sem
precisar roer nenhum chifre; daquele outro que, para ser mais rico três vezes
do que ele, não teve de casar com a filha do patrão ou com a bastarda de
algum fazendeiro freguês da casa!
Mas então, ele Miranda, que se supunha a última expressão da
ladinagem e da esperteza; ele, que, logo depois do seu casamento,
respondendo para Portugal a um ex-colega que o felicitava, dissera que
o Brasil era uma cavalgadura carregada de dinheiro, cujas rédeas um
homem fino empolgava facilmente; ele, que se tinha na conta de inven-
cível matreiro, não passava afinal de um pedaço de asno comparado com
o seu vizinho! Pensara fazer-se senhor do Brasil e fizera-se escravo de
uma brasileira mal-educada e sem escrúpulos de virtude! Imaginara-se
talhado para grandes conquistas, e não passava de uma vítima ridícula e
sofredora!... Sim! No fim de contas qual fora a sua África?... Enriquecera
um pouco, é verdade, mas como? A que preço? Hipotecando-se a um diabo,
que lhe trouxera oitenta contos de réis, mas incalculáveis milhões de des-
gostos e vergonhas! Arranjara a vida, sim, mas teve de aturar eternamente
uma mulher que ele odiava! E do que afinal lhe aproveitar tudo isso? Qual
era afinal a sua grande existência? Do inferno da casa para o purgatório do
trabalho e vice-versa! Invejável sorte, não havia dúvida!
Na dolorosa incerteza de que Zulmira fosse sua filha, o desgraçado nem
sequer gozava o prazer de ser pai. Se ela, em vez de nascer de Estela, fora
uma enjeitadinha recolhida por ele, é natural que a amasse e então a vida
lhe correria de outro modo; mas naquelas condições, a pobre criança nada
mais representava que o documento vivo do ludíbrio materno, e o Miranda
estendia até à inocentezinha o ódio que sustentava contra a esposa.
Uma espiga a tal da sua vida!
— Fui uma besta! resumiu ele, em voz alta, apeando-se da cama, onde
se havia recolhido inutilmente.
E pôs-se a passear no quarto sem vontade de dormir, sentindo que a
febre daquela inveja lhe estorricava os miolos.
Feliz e esperto era o João Romão! Esse, sim, senhor! Para esse é que
havia de ser a vida!... Filho da mãe, que estava hoje tão livre e desembaraçado

ALUÍSIO AZEVEDO • 27 •
como no dia em que chegou da terra sem um vintém de seu! Esse, sim, que
era moço e podia ainda gozar muito, porque quando mesmo viesse a casar e
a mulher lhe saísse uma outra Estela era só mandá-la para o diabo com um
pontapé! Podia fazê-lo! Para esse é que era o Brasil!
— Fui uma besta! repisava ele sem conseguir conformar-se com a felici-
dade do vendeiro. Uma grandíssima! No fim de contas que diabo possuo eu?...
Uma casa de negócio, da qual não posso separar-me sem comprometer o que
lá está enterrado! Um capital metido numa rede de transações que não se
liquidam nunca, e cada vez mais se complicam e mais me grudam ao estupor
desta terra, onde deixarei a casca! Que tenho de meu, se a alma do meu
crédito é o dote, que me trouxe aquela sem-vergonha e que a ela me prende
como a peste da casa comercial me prende a esta Costa d’África?
Foi da supuração fétida destas ideias que se formou no coração vazio do
Miranda um novo ideal — o título. Faltando-lhe temperamento próprio para
os vícios fortes que enchem a vida de um homem; sem família a quem amar e
sem imaginação para poder gozar com as prostitutas, o náufrago agarrou-se
àquela tábua, como um agonizante, consciente da morte, que se apega à
esperança de uma vida futura. A vaidade de Estela, que a princípio lhe tirava
dos lábios incrédulos sorrisos de mofa, agora lhe comprazia à farta. Procurou
capacitar-se de que ela com efeito herdara sangue nobre, que ele, por sua vez,
se não o tinha herdado, trouxera-o por natureza própria, o que devia valer
mais ainda; e desde então principiou a sonhar com um baronato, fazendo disso
o objeto querido da sua existência, muito satisfeito no íntimo por ter afinal
descoberto uma coisa em que podia empregar dinheiro, sem ter, nunca mais,
de restituí-lo à mulher, nem ter de deixá-lo a pessoa alguma. Semelhante
preocupação modificou-o em extremo. Deu logo para fingir-se escravo das
conveniências, afetando escrúpulos sociais, empertigando-se quanto podia e
disfarçando a sua inveja pelo vizinho com um desdenhoso ar de superioridade
condescendente. Ao passar-lhe todos os dias pela venda, cumprimentava-o
com proteção, sorrindo sem rir e fechando logo a cara em seguida, muito sério.
Dados os primeiros passos para a compra do título abriu a casa e deu
festas. A mulher, posto que lhe apontassem já os cabelos brancos, rejubilou
com isso.
Zulmira tinha então doze para treze anos e era o tipo acabado da flu-
minense; pálida, magrinha, com pequeninas manchas roxas nas mucosas do

• 28 • O CORTIÇO
nariz, das pálpebras e dos lábios, faces levemente pintalgadas de sardas.
Respirava o tom úmido das flores noturnas, uma brancura fria de magnólia;
cabelos castanho-claros, mãos quase transparentes, unhas moles e curtas,
como as da mãe, dentes pouco mais claros do que a cútis do rosto, pés peque-
ninos, quadril estreito mas os olhos grandes, negros, vivos e maliciosos.
Por essa época, justamente, chegava de Minas, recomendado ao pai dela,
o filho de um fazendeiro importantíssimo que dava belos lucros à casa comer-
cial de Miranda e que era talvez o melhor freguês que este possuía no interior.
O rapaz chamava-se Henrique, tinha quinze anos e vinha terminar na
corte alguns preparatórios que lhe faltavam para entrar na Academia de
Medicina. Miranda hospedou-o no seu sobrado da Rua do Hospício mas o
estudante queixou-se, no fim de alguns dias, de que aí ficava mal acomo-
dado, e o negociante, a quem não convinha desagradar-lhe, carregou com
ele para a sua residência particular de Botafogo.
Henrique era bonitinho, cheio de acanhamentos, com umas delicadezas
de menina. Parecia muito cuidadoso dos seus estudos e tão pouco extrava-
gante e gastador, que não despendia um vintém fora das necessidades de
primeira urgência. De resto, a não ser de manhã para as aulas, que ia sempre
com o Miranda, não arredava pé de casa senão em companhia da família
deste. Dona Estela, no cabo de pouco tempo, mostrou por ele estima quase
maternal e encarregou-se de tomar conta da sua mesada, mesada posta pelo
negociante, visto que o Henriquinho tinha ordem franca do pai.
Nunca pedia dinheiro; quando precisava de qualquer coisa, reclamava-a
de Dona Estela, que por sua vez encarregava o marido de comprá-la, sendo
o objeto lançado na conta do fazendeiro com uma comissão de usurário.
Sua hospedagem custava duzentos e cinquenta mil-réis por mês, do que
ele todavia não tinha conhecimento, nem queria ter. Nada lhe faltava, e os
criados da casa o respeitavam como a um filho do próprio senhor.
À noite, às vezes, quando o tempo estava bom, Dona Estela saía com ele,
a filha e um moleque, o Valentim, a darem uma volta até à praia e, em tendo
convite para qualquer festa em casa das amigas, levava-o em sua companhia.
A criadagem da família do Miranda compunha-se de Isaura, mulata
ainda moça, moleirona e tola, que gastava todo o vintenzinho que pilhava
em comprar capilé na venda de João Romão; uma negrinha virgem, chamada
Leonor, muito ligeira e viva, lisa e seca como um moleque, conhecendo

ALUÍSIO AZEVEDO • 29 •
de orelha, sem lhe faltar um termo, a vasta tecnologia da obscenidade, e
dizendo, sempre que os caixeiros ou os fregueses da taverna, só para mexer
com ela, lhe davam atracações: “Óia, que eu me queixo ao juiz de orfe!”, e
finalmente o tal Valentim, filho de uma escrava que foi de Dona Estela e a
quem esta havia alforriado.
A mulher do Miranda tinha por este moleque uma afeição sem limites:
dava-lhe toda a liberdade, dinheiro, presentes, levava-o consigo a passeio,
trazia-o bem vestido e muita vez chegou a fazer ciúmes à filha, de tão solí-
cita que se mostrava com ele. Pois se a caprichosa senhora ralhava com
Zulmira por causa do negrinho! Pois, se quando se queixavam os dois, um
contra o outro, ela nunca dava razão à filha! Pois se o que havia de melhor
na casa era para o Valentim! Pois, se quando foi este atacado de bexigas e
o Miranda, apesar das súplicas e dos protestos da esposa, mandou-o para
um hospital, Dona Estela chorava todos os dias e durante a ausência dele
não tocou piano, nem cantou, nem mostrou os dentes a ninguém? E o pobre
Miranda, se não queria sofrer impertinências da mulher e ouvir sensabo-
rias defronte dos criados, tinha de dar ao moleque toda a consideração e
fazer-lhe humildemente todas as vontades.
Havia ainda, sob as telhas do negociante, um outro hóspede além do
Henrique, o velho Botelho. Este, porém, na qualidade de parasita.
Era um pobre-diabo caminhando para os setenta anos, antipático,
cabelo branco, curto e duro, como escova, barba e bigode do mesmo teor;
muito macilento, com uns óculos redondos que lhe aumentavam o tamanho
da pupila e davam-lhe à cara uma expressão de abutre, perfeitamente de
acordo com o seu nariz adunco e com a sua boca sem lábios: viam-se-lhe
ainda todos os dentes, mas, tão gastos, que pareciam limados até ao meio.
Andava sempre de preto, com um guarda-chuva debaixo do braço e um
chapéu de Braga enterrado nas orelhas. Fora em seu tempo empregado do
comércio, depois corretor de escravos; contava mesmo que estivera mais de
uma vez na África negociando negros por sua conta. Atirou-se muito às espe-
culações; durante a guerra do Paraguai ainda ganhara forte, chegando a ser
bem rico; mas a roda desandou e, de malogro em malogro, foi-lhe escapando
tudo por entre as suas garras de ave de rapina. E agora, coitado, já velho,
comido de desilusões, cheio de hemorroidas, via-se totalmente sem recursos
e vegetava à sombra do Miranda, com quem por muitos anos trabalhou em

• 30 • O CORTIÇO
rapaz, sob as ordens do mesmo patrão, e de quem se conservara amigo, a
princípio por acaso e mais tarde por necessidade.
Devorava-o, noite e dia, uma implacável amargura, uma surda tristeza
de vencido, um desespero impotente, contra tudo e contra todos, por não
lhe ter sido possível empolgar o mundo com as suas mãos hoje inúteis e
trêmulas. E, como o seu atual estado de miséria não lhe permitia abrir contra
ninguém o bico, desabafava vituperando as ideias da época.
Assim, eram às vezes muito quentes as sobremesas do Miranda, quando,
entre outros assuntos palpitantes, vinha à discussão o movimento abolicio-
nista que principiava a formar-se em torno da lei Rio Branco. Então o Botelho
ficava possesso e vomitava frases terríveis, para a direita e para a esquerda,
como quem dispara tiros sem fazer alvo, e vociferava imprecações, aprovei-
tando aquela válvula para desafogar o velho ódio acumulado dentro dele.
— Bandidos! berrava apoplético. Cáfila de salteadores!
E o seu rancor irradiava-lhe dos olhos em setas envenenadas, procu-
rando cravar-se em todas as brancuras e em todas as claridades. A virtude, a
beleza, o talento, a mocidade, a força, a saúde, e principalmente a fortuna,
eis o que ele não perdoava a ninguém, amaldiçoando todo aquele que conse-
guia o que ele não obtivera; que gozava o que ele não desfrutara; que sabia o
que ele não aprendera. E, para individualizar o objeto do seu ódio, voltava-se
contra o Brasil, essa terra que, na sua opinião, só tinha uma serventia: enri-
quecer os portugueses, e que, no entanto, o deixara, a ele, na penúria.
Seus dias eram consumidos do seguinte modo: acordava às oito da
manhã, lavava-se mesmo no quarto com uma toalha molhada em espírito
de vinho; depois ia ler os jornais para a sala de jantar, à espera do almoço;
almoçava e saía, tomava o bonde e ia direitinho para uma charutaria da Rua
do Ouvidor, onde costumava ficar assentado até às horas do jantar, entre-
tido a dizer mal das pessoas que passavam lá fora, defronte dele. Tinha a
pretensão de conhecer todo o Rio de Janeiro e os podres de cada um em
particular. Às vezes, poucas, Dona Estela encarregava-o de fazer pequenas
compras de armarinho, o que o Botelho desempenhava melhor que nin-
guém. Mas a sua grande paixão, o seu fraco, era a farda, adorava tudo que
dissesse respeito a militarismo, posto que tivera sempre invencível medo às
armas de qualquer espécie, mormente às de fogo. Não podia ouvir disparar
perto de si uma espingarda, entusiasmava-se porém com tudo que cheirasse

ALUÍSIO AZEVEDO • 31 •
a guerra; a presença de um oficial em grande uniforme tirava-lhe lágrimas
de comoção; conhecia na ponta da língua o que se referia à vida de quartel;
distinguia ao primeiro lance de olhos o posto e o corpo a que pertencia qual-
quer soldado e, apesar dos seus achaques, era ouvir tocar na rua a corneta
ou o tambor conduzindo o batalhão, ficava logo no ar, e, muita vez, quando
dava por si, fazia parte dos que acompanhavam a tropa. Então, não tornava
para casa enquanto os militares não se recolhessem. Quase sempre voltava
dessa loucura às seis da tarde, moído a fazer dó, sem poder ter-se nas pernas,
estrompado de marchar horas e horas ao som da música de pancadaria. E o
mais interessante é que ele, ao vir-lhe a reação, revoltava-se furioso contra o
maldito comandante que o obrigava àquela estopada, levando o batalhão por
uma infinidade de ruas e fazendo de propósito o caminho mais longo.
— Só parece, lamentava-se ele, que a intenção daquele malvado era
dar-me cabo da pele! Ora vejam! Três horas de marche-marche por uma soa-
lheira de todos os diabos!
Uma das birras mais cômicas do Botelho era o seu ódio pelo Valentim.
O moleque causava-lhe febre com as suas petulâncias de mimalho, e,
velhaco, percebendo quanto elas o irritavam, ainda mais abusava, seguro na
proteção de Dona Estela. O parasita de muito que o teria estrangulado, se
não fora a necessidade de agradar à dona da casa.
Botelho conhecia as faltas de Estela como as palmas da própria mão.
O Miranda mesmo, que o via em conta de amigo fiel, muitas e muitas vezes
lhas confiara em ocasiões desesperadas de desabafo, declarando franca-
mente o quanto no íntimo a desprezava e a razão por que não a punha na
rua aos pontapés. E o Botelho dava-lhe toda a razão; entendia também que
os sérios interesses comerciais estavam acima de tudo.
— Uma mulher naquelas condições, dizia ele convicto, representa nada
menos que o capital, e um capital em caso nenhum a gente despreza! Agora,
você o que devia era nunca chegar-se para ela...
— Ora! explicava o marido. Eu me sirvo dela como quem se serve de
uma escarradeira!
O parasita, feliz por ver quanto o amigo aviltava a mulher, concordava
em tudo plenamente, dando-lhe um carinhoso abraço de admiração. Mas por
outro lado, quando ouvia Estela falar do marido, com infinito desdém e até
com asco, ainda mais resplandecia de contente.

• 32 • O CORTIÇO
— Você quer saber? afirmava ela, eu bem percebo quanto aquele traste
do senhor meu marido me detesta, mas isso tanto se me dá como a primeira
camisa que vesti! Desgraçadamente para nós, mulheres de sociedade, não
podemos viver sem esposo, quando somos casadas; de forma que tenho de
aturar o que me caiu em sorte, quer goste dele quer não goste! Juro-lhe,
porém, que, se consinto que o Miranda se chegue às vezes para mim, é
porque entendo que paga mais à pena ceder do que puxar discussão com
uma besta daquela ordem!
O Botelho, com a sua encanecida experiência do mundo, nunca trans-
mitia a nenhum dos dois o que cada qual lhe dizia contra o outro; tanto assim
que, certa ocasião, recolhendo-se à casa incomodado, em hora que não era do
seu costume, ouviu, ao passar pelo quintal, sussurros de vozes abafadas que
pareciam vir de um canto afogado de verdura, onde em geral não ia ninguém.
Encaminhou-se para lá em bicos de pés e, sem ser percebido, descobriu
Estela entalada entre o muro e o Henrique. Deixou-se ficar espiando, sem
tugir nem mugir, e, só quando os dois se separaram, foi que ele se mostrou.
A senhora soltou um pequeno grito, e o rapaz, de vermelho que estava,
fez-se cor de cera; mas o Botelho procurou tranquilizá-los, dizendo em voz
amiga e misteriosa:
— Isso é uma imprudência o que vocês estão fazendo!... Estas coisas não
é deste modo que se arranjam! Assim como fui eu, podia ser outra pessoa...
Pois numa casa em que há tantos quartos, é lá preciso vir meterem-se neste
canto do quintal?...
— Nós não estávamos fazendo nada! disse Estela, recuperando o
sangue-frio.
— Ah! tornou o velho, aparentando sumo respeito: então desculpe,
pensei que estivessem... E olhe que, se assim fosse, para mim seria o mesmo,
porque acho isso a coisa mais natural do mundo e entendo que desta vida
a gente só leva o que come!... Se vi, creia, foi como se nada visse, porque
nada tenho a cheirar com a vida de cada um!... A senhora está moça, está
na força dos anos; seu marido não a satisfaz, é justo que o substitua por
outro! Ah! Isto é o mundo, e, se é torto, não fomos nós que o fizemos torto!...
Até certa idade todos temos dentro um bichinho-carpinteiro, que é preciso
matar, antes que ele nos mate! Não lhes doam as mãos!... Apenas acho que,
para outra vez, devem ter um pouquinho mais de cuidado e...

ALUÍSIO AZEVEDO • 33 •
— Está bom! Basta! ordenou Estela.
— Perdão! Eu, se digo isto, é para deixá-los bem tranquilos a meu res-
peito. Não quero, nem por sombra, que se persuadam de que...
O Henrique atalhou, com a voz ainda comovida:
— Mas, acredite, seu Botelho, que...
O velho interrompeu-o também por sua vez, passando-lhe a mão no
ombro e afastando-o consigo:
— Não tenha receio, que não o comprometerei, menino!
E, como já estivessem distantes de Estela, segredou-lhe em tom
protetor:
— Não torne a fazer isto assim, que você se estraga... Olhe como lhe
tremem as pernas!
Dona Estela acompanhou-os a distância, vagarosamente, afetando
preocupação em compor um ramalhete, cujas flores ela ia colhendo com
muita graça, ora toda vergada sobre as plantas rasteiras, ora pondo-se na
pontinha dos pés para alcançar os heliotrópios e os manacás.
Henrique seguiu o Botelho até ao quarto deste, conversando sem mudar
de assunto.
— Você então não fala nisto, hein? Jura? perguntou-lhe.
O velho tinha já declarado, a rir, que os pilhara em flagrante e que ficara
bom tempo à espreita.
— Falar o quê, seu tolo?... Pois então quem pensa você que eu sou?...
Só abrirei o bico se você me der motivo para isso, mas estou convencido
que não dará... Quer saber? Eu até simpatizo muito com você, Henrique!
Acho que você é um excelente menino, uma flor! E digo-lhe mais: hei de
proteger os seus negócios com Dona Estela...
Falando assim, tinha-lhe tomado as mãos e afagava-as.
— Olhe, continuou, acariciando-o sempre; não se meta com donzelas,
entende?... São o diabo! Por dá cá aquela palha fica um homem em apuros!
Agora quanto às outras, papo com elas! Não mande nenhuma ao vigário,
nem lhe doa a cabeça, porque, no fim de contas, nas circunstâncias de Dona
Estela, é até um grande serviço que você lhe faz! Meu rico amiguinho, quando
uma mulher já passou dos trinta e pilha a jeito um rapazito da sua idade, é
como se descobrisse ouro em pó! Sabe-lhe a gaitas! Fique então sabendo de
que não é só a ela que você faz o obséquio, mas também ao marido: quanto

• 34 • O CORTIÇO
mais escovar-lhe você a mulher, melhor ela ficará de gênio, e por conse-
guinte melhor será para o pobre homem, coitado! Que tem já bastante com
que se aborrecer lá por baixo, com os seus negócios, e precisa de um pouco
de descanso quando volta do serviço e mete-se em casa! Escove-a, escove-a!
Que a porá macia que nem veludo! O que é preciso é muito juizinho, per-
cebe? Não faça outra criançada como a de hoje e continue para diante, não
só com ela, mas com todas as que lhe caírem debaixo da asa! Vá passando!
Menos as de casa aberta, que isso é perigoso por causa das moléstias; nem
tampouco donzelas! Não se meta com a Zulmira! E creia que lhe falo assim,
porque sou seu amigo, porque o acho simpático, porque o acho bonito!
E acarinhou-o tão vivamente dessa vez, que o estudante, fugindo-lhe
das mãos, afastou-se com um gesto de repugnância e desprezo, enquanto o
velho lhe dizia em voz comprimida:
— Olha! Espera! Vem cá! Você é desconfiado!...

III
Eram cinco horas da manhã e o cortiço acordava, abrindo, não os olhos,
mas a sua infinidade de portas e janelas alinhadas.
Um acordar alegre e farto de quem dormiu de uma assentada sete
horas de chumbo. Como que se sentiam ainda na indolência de neblina as
derradeiras notas da última guitarra da noite antecedente, dissolvendo-se
à luz loura e tenra da aurora, que nem um suspiro de saudade perdido em
terra alheia.

ALUÍSIO AZEVEDO • 35 •
A roupa lavada, que ficara de véspera nos coradouros, umedecia o ar e
punha-lhe um farto acre de sabão ordinário. As pedras do chão, esbranquiçadas
no lugar da lavagem e em alguns pontos azuladas pelo anil, mostravam uma
palidez grisalha e triste, feita de acumulações de espumas secas.
Entretanto, das portas surgiam cabeças congestionadas de sono;
ouviam-se amplos bocejos, fortes como o marulhar das ondas; pigarreava-se
grosso por toda a parte; começavam as xícaras a tilintar; o cheiro quente do
café aquecia, suplantando todos os outros; trocavam-se de janela para janela
as primeiras palavras, os bons-dias; reatavam-se conversas interrompidas
à noite; a pequenada cá fora traquinava já, e lá dentro das casas vinham
choros abafados de crianças que ainda não andam. No confuso rumor que se
formava, destacavam-se risos, sons de vozes que altercavam, sem se saber
onde, grasnar de marrecos, cantar de galos, cacarejar de galinhas. De alguns
quartos saíam mulheres que vinham pendurar cá fora, na parede, a gaiola do
papagaio, e os louros, à semelhança dos donos, cumprimentavam-se ruido-
samente, espanejando-se à luz nova do dia.
Daí a pouco, em volta das bicas era um zunzum crescente; uma aglo-
meração tumultuosa de machos e fêmeas. Uns, após outros, lavavam a
cara, incomodamente, debaixo do fio de água que escorria da altura de uns
cinco palmos. O chão inundava-se. As mulheres precisavam já prender as
saias entre as coxas para não as molhar; via-se-lhes a tostada nudez dos
braços e do pescoço, que elas despiam, suspendendo o cabelo todo para
o alto do casco; os homens, esses não se preocupavam em não molhar o
pelo, ao contrário metiam a cabeça bem debaixo da água e esfregavam
com força as ventas e as barbas, fossando e fungando contra as palmas
da mão. As portas das latrinas não descansavam, era um abrir e fechar de
cada instante, um entrar e sair sem tréguas. Não se demoravam lá dentro e
vinham ainda amarrando as calças ou as saias; as crianças não se davam ao
trabalho de lá ir, despachavam-se ali mesmo, no capinzal dos fundos, por
detrás da estalagem ou no recanto das hortas.
O rumor crescia, condensando-se; o zunzum de todos os dias
acentuava-se; já se não destacavam vozes dispersas, mas um só ruído com-
pacto que enchia todo o cortiço. Começavam a fazer compras na venda;
ensarilhavam-se discussões e rezingas; ouviam-se gargalhadas e pragas; já
se não falava, gritava-se. Sentia-se naquela fermentação sanguínea, naquela

• 36 • O CORTIÇO
gula viçosa de plantas rasteiras que mergulham os pés vigorosos na lama
preta e nutriente da vida, o prazer animal de existir, a triunfante satisfação
de respirar sobre a terra.
Da porta da venda que dava para o cortiço iam e vinham como formigas;
fazendo compras.
Duas janelas do Miranda abriram-se. Apareceu numa a Isaura, que se
dispunha a começar a limpeza da casa.
— Nhá Dunga! gritou ela para baixo, a sacudir um pano de mesa; se você
tem cuscuz de milho hoje, bata na porta, ouviu?
A Leonor surgiu logo também, enfiando curiosa a carapinha por entre o
pescoço e o ombro da mulata.
O padeiro entrou na estalagem, com a sua grande cesta à cabeça e o seu
banco de pau fechado debaixo do braço, e foi estacionar em meio do pátio,
à espera dos fregueses, pousando a canastra sobre o cavalete que ele armou
prontamente. Em breve estava cercado por uma nuvem de gente. As crianças
adulavam-no, e, à proporção que cada mulher ou cada homem recebia o pão,
disparava para casa com este abraçado contra o peito. Uma vaca, seguida
por um bezerro amordaçado, ia, tilintando tristemente o seu chocalho, de
porta em porta, guiada por um homem carregado de vasilhame de folha.
O zunzum chegava ao seu apogeu. A fábrica de massas italianas, ali
mesmo da vizinhança, começou a trabalhar, engrossando o barulho com o seu
arfar monótono de máquina a vapor. As corridas até à venda reproduziam-se,
transformando-se num verminar constante de formigueiro assanhado. Agora,
no lugar das bicas apinhavam-se latas de todos os feitios, sobressaindo as de
querosene com um braço de madeira em cima; sentia-se o trapejar da água
caindo na folha. Algumas lavadeiras enchiam já as suas tinas; outras esten-
diam nos coradouros a roupa que ficara de molho. Principiava o trabalho.
Rompiam das gargantas os fados portugueses e as modinhas brasileiras.
Um carroção de lixo entrou com grande barulho de rodas na pedra, seguido
de uma algazarra medonha algaraviada pelo carroceiro contra o burro.
E, durante muito tempo, fez-se um vaivém de mercadores. Apareceram
os tabuleiros de carne fresca e outros de tripas e fatos de boi; só não vinham
hortaliças, porque havia muitas hortas no cortiço. Vieram os ruidosos mas-
cates, com as suas latas de quinquilharia, com as suas caixas de candeeiros
e objetos de vidro e com o seu fornecimento de caçarolas e chocolateiras,

ALUÍSIO AZEVEDO • 37 •
de folha de flandres. Cada vendedor tinha o seu modo especial de apregoar,
destacando-se o homem das sardinhas, com as cestas do peixe dependu-
radas, à moda de balança, de um pau que ele trazia ao ombro. Nada mais
foi preciso do que o seu primeiro guincho estridente e gutural para surgirem
logo, como por encanto, uma enorme variedade de gatos, que vieram cor-
rendo acercar-se dele com grande familiaridade, roçando-se-lhe nas pernas
arregaçadas e miando suplicantemente. O sardinheiro os afastava com o pé,
enquanto vendia o seu peixe à porta das casinhas, mas os bichanos não
desistiam e continuavam a implorar, arranhando os cestos que o homem cui-
dadosamente tapava mal servia ao freguês. Para ver-se livre por um instante
dos importunos era necessário atirar para bem longe um punhado de sardi-
nhas, sobre o qual se precipitava logo, aos pulos, o grupo dos pedinchões.
A primeira que se pôs a lavar foi a Leandra, por alcunha a “Machona”,
portuguesa feroz, berradora, pulsos cabeludos e grossos, anca de animal
do campo. Tinha duas filhas, uma casada e separada do marido, Ana das
Dores, a quem só chamavam a “das Dores” e outra donzela ainda, a Neném,
e mais um filho, o Agostinho, menino levado dos diabos, que gritava tanto
ou melhor que a mãe. A das Dores morava em sua casinha à parte, mas toda
a família habitava no cortiço.
Ninguém ali sabia ao certo se a Machona era viúva ou desquitada;
os filhos não se pareciam uns com os outros. A das Dores, sim, afirmavam
que fora casada e que largara o marido para meter-se com um homem do
comércio; e que este, retirando-se para a terra e não querendo soltá-la ao
desamparo, deixara o sócio em seu lugar. Teria vinte e cinco anos.
Neném dezessete. Espigada, franzina e forte, com uma proazinha de
orgulho da sua virgindade, escapando como enguia por entre os dedos dos
rapazes que a queriam sem ser para casar. Engomava bem e sabia fazer
roupa branca de homem com muita perfeição.
Ao lado da Leandra foi colocar-se à sua tina a Augusta Carne-Mole, bra-
sileira, branca, mulher de Alexandre, um mulato de quarenta anos, soldado
de polícia, pernóstico, de grande bigode preto, queixo sempre escanhoado
e um luxo de calças brancas engomadas e botões limpos na farda, quando
estava de serviço. Também tinham filhos, mas ainda pequenos, um dos
quais, a Juju, vivia na cidade com a madrinha que se encarregava dela. Esta

• 38 • O CORTIÇO
madrinha era uma cocote de trinta mil-réis para cima, a Léonie, com sobrado
na cidade. Procedência francesa.
Alexandre, em casa, à hora de descanso, nos seus chinelos e na sua
camisa desabotoada, era muito chão com os companheiros de estalagem,
conversava, ria e brincava, mas envergando o uniforme, encerando o bigode e
empunhando a sua chibata, com que tinha o costume de fustigar as calças de
brim, ninguém mais lhe via os dentes e então a todos falava teso e por cima
do ombro. A mulher, a quem ele só dava tu quando não estava fardado, era
de uma honestidade proverbial no cortiço, honestidade sem mérito, porque
vinha da indolência do seu temperamento e não do arbítrio do seu caráter.
Junto dela pôs-se a trabalhar a Leocádia, mulher de um ferreiro cha-
mado Bruno, portuguesa pequena e socada, de carnes duras, com uma fama
terrível de leviana entre as suas vizinhas.
Seguia-se a Paula, uma cabocla velha, meio idiota, a quem respeitavam
todos pelas virtudes de que só ela dispunha para benzer erisipelas e cortar
febres por meio de rezas e feitiçarias. Era extremamente feia, grossa, triste,
com olhos desvairados, dentes cortados à navalha, formando ponta, como
dentes de cão, cabelos lisos, escorridos e ainda retintos apesar da idade.
Chamavam-lhe “Bruxa”.
Depois seguiam-se a Marciana e mais a sua filha Florinda. A primeira,
mulata antiga, muito séria e asseada em exagero: a sua casa estava sempre
úmida das consecutivas lavagens. Em lhe apanhando o mau humor punha-se
logo a espanar, a varrer febrilmente, e, quando a raiva era grande, corria
a buscar um balde de água e descarregava-o com fúria pelo chão da sala.
A filha tinha quinze anos, a pele de um moreno quente, beiços sensuais,
bonitos dentes, olhos luxuriosos de macaca. Toda ela estava a pedir homem,
mas sustentava ainda a sua virgindade e não cedia, nem à mão de Deus
Padre, aos rogos de João Romão, que a desejava apanhar a troco de pequenas
concessões na medida e no peso das compras que Florinda fazia diariamente
à venda.
Depois via-se a velha Isabel, isto é, Dona Isabel, porque ali na esta-
lagem lhes dispensavam todos certa consideração, privilegiada pelas suas
maneiras graves de pessoa que já teve tratamento: uma pobre mulher
comida de desgostos. Fora casada com o dono de uma casa de chapéus, que
quebrou e suicidou-se, deixando-lhe uma filha muito doentinha e fraca, a

ALUÍSIO AZEVEDO • 39 •
quem Isabel sacrificou tudo para educar, dando-lhe mestre até de francês.
Tinha uma cara macilenta de velha portuguesa devota, que já foi gorda,
bochechas moles de pelancas rechupadas, que lhe pendiam dos cantos da
boca como saquinhos vazios; fios negros no queixo, olhos castanhos, sempre
chorosos engolidos pelas pálpebras. Puxava em bandós sobre as fontes o
escasso cabelo grisalho untado de óleo de amêndoas doces. Quando saía
à rua punha um eterno vestido de seda preta, achamalotada, cuja saia não
fazia rugas, e um xale encarnado que lhe dava a todo o corpo um feitio pira-
midal. Da sua passada grandeza só lhe ficara uma caixa de rapé de ouro, na
qual a inconsolável senhora pitadeava agora, suspirando a cada pitada.
A filha era a flor do cortiço. Chamavam-lhe Pombinha. Bonita, posto que
enfermiça e nervosa ao último ponto; loura, muito pálida, com uns modos de
menina de boa família. A mãe não lhe permitia lavar, nem engomar, mesmo
porque o médico a proibira expressamente.
Tinha o seu noivo, o João da Costa, moço do comércio, estimado do
patrão e dos colegas, com muito futuro, e que a adorava e conhecia desde
pequenita; mas Dona Isabel não queria que o casamento se fizesse já. É que
Pombinha, orçando aliás pelos dezoito anos, não tinha ainda pago à natu-
reza o cruento tributo da puberdade, apesar do zelo da velha e dos sacrifícios
que esta fazia para cumprir à risca as prescrições do médico e não faltar à
filha o menor desvelo. No entanto, coitadas! Daquele casamento dependia
a felicidade de ambas, porque o Costa, bem empregado como se achava em
casa de um tio seu, de quem mais tarde havia de ser sócio, tencionava, logo
que mudasse de estado, restituí-las ao seu primitivo círculo social. A pobre
velha desesperava-se com o fato e pedia a Deus, todas as noites, antes de
dormir, que as protegesse e conferisse à filha uma graça tão simples que
ele fazia, sem distinção de merecimento, a quantas raparigas havia pelo
mundo; mas, a despeito de tamanho empenho, por coisa nenhuma desta
vida consentiria que a sua pequena casasse antes de “ser mulher”, como dizia
ela. E “que deixassem lá falar o doutor, entendia que não era decente, nem
tinha jeito, dar homem a uma moça que ainda não fora visitada pelas regras!
Não! Antes vê-la solteira toda a vida e ficarem ambas curtindo para sempre
aquele inferno da estalagem!”

• 40 • O CORTIÇO
Lá no cortiço estavam todos a par desta história; não era segredo para
ninguém. E não se passava um dia que não interrogassem duas e três vezes
a velha com estas frases:
— Então? Já veio?
— Por que não tenta os banhos de mar?
— Por que não chama outro médico?
— Eu, se fosse a senhora, casava-os assim mesmo!
A velha respondia dizendo que a felicidade não se fizera para ela. E sus-
pirava resignada.
Quando o Costa aparecia depois da sua obrigação para visitar a noiva,
os moradores da estalagem cumprimentavam-no em silêncio com um
respeitoso ar de lástima e piedade, empenhados tacitamente por aquele cai-
porismo, contra o qual não valiam nem mesmo as virtudes da Bruxa.
Pombinha era muito querida por toda aquela gente. Era quem lhe
escrevia as cartas; quem em geral fazia o rol para as lavadeiras; quem tirava
as contas; quem lia o jornal para os que quisessem ouvir. Prezavam-na com
muito respeito e davam-lhe presentes, o que lhe permitia certo luxo relativo.
Andava sempre de botinhas ou sapatinhos com meias de cor, seu vestido de
chita engomado; tinha as suas joiazinhas para sair à rua, e, aos domingos,
quem a encontrasse à missa na igreja de São João Batista, não seria capaz de
desconfiar que ela morava em cortiço.
Fechava a fila das primeiras lavadeiras, o Albino, um sujeito afeminado,
fraco, cor de espargo cozido e com um cabelinho castanho, deslavado e pobre,
que lhe caía, numa só linha, até ao pescocinho mole e fino. Era lavadeiro e
vivia sempre entre as mulheres, com quem já estava tão familiarizado que elas
o tratavam como a uma pessoa do mesmo sexo; em presença dele falavam de
coisas que não exporiam em presença de outro homem; faziam-no até con-
fidente dos seus amores e das suas infidelidades, com uma franqueza que
o não revoltava, nem comovia. Quando um casal brigava ou duas amigas se
disputavam, era sempre Albino quem tratava de reconciliá-los, exortando as
mulheres à concórdia. Dantes encarregava-se de cobrar o rol das colegas, por
amabilidade; mas uma vez, indo a uma república de estudantes, deram-lhe lá,
ninguém sabia por quê, uma dúzia de bolos, e o pobre-diabo jurou então, entre
lágrimas e soluços, que nunca mais se incumbiria de receber os róis.

ALUÍSIO AZEVEDO • 41 •
E daí em diante, com efeito, não arredava os pezinhos do cortiço, a não
ser nos dias de carnaval, em que ia, vestido de dançarina, passear à tarde
pelas ruas e à noite dançar nos bailes dos teatros. Tinha verdadeira paixão
por esse divertimento; ajuntava dinheiro durante o ano para gastar todo com
a mascarada. E ninguém o encontrava, domingo ou dia de semana, lavando
ou descansando, que não estivesse com a sua calça branca engomada, a sua
camisa limpa, um lenço ao pescoço, e, amarrado à cinta, um avental que lhe
caía sobre as pernas como uma saia. Não fumava, não bebia espíritos e trazia
sempre as mãos geladas e úmidas.
Naquela manhã levantara-se ainda um pouco mais lânguido que do
costume, porque passara mal a noite. A velha Isabel, que lhe ficava ao lado
esquerdo, ouvindo-o suspirar com insistência, perguntou-lhe o que tinha.
Ah! Muita moleza de corpo e uma pontada do vazio que o não deixava!
A velha receitou diversos remédios, e ficaram os dois, no meio de toda
aquela vida, a falar tristemente sobre moléstias.
E, enquanto, no resto da fileira, a Machona, a Augusta, a Leocádia, a
Bruxa, a Marciana e sua filha conversavam de tina a tina, berrando e quase
sem se ouvirem, a voz um tanto cansada já pelo serviço, defronte delas,
separado pelos jiraus, formava-se um novo renque de lavadeiras, que
acudiam de fora, carregadas de trouxas, e iam ruidosamente tomando lugar
ao lado umas das outras, entre uma agitação sem tréguas, onde se não
distinguia o que era galhofa e o que era briga. Uma a uma ocupavam-se
todas as tinas. E de todos os casulos do cortiço saíam homens para as suas
obrigações. Por uma porta que havia ao fundo da estalagem desapare-
ciam os trabalhadores da pedreira, donde vinha agora o retinir dos alviões
e das picaretas. O Miranda, de calças de brim, chapéu alto e sobrecasaca
preta, passou lá fora, em caminho para o armazém, acompanhado pelo
Henrique que ia para as aulas. O Alexandre, que estivera de serviço essa
madrugada, entrou solene, atravessou o pátio, sem falar a ninguém, nem
mesmo à mulher, e recolheu-se à casa, para dormir. Um grupo de mascates,
o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa, armado cada qual com a
sua grande caixa de bugigangas, saiu para a peregrinação de todos os dias,
altercando e praguejando em italiano.
Um rapazito de paletó entrou da rua e foi perguntar à Machona pela
Nhá Rita.

• 42 • O CORTIÇO
— A Rita Baiana? Sei cá! Faz amanhã oito dias que ela arribou!
A Leocádia explicou logo que a mulata estava com certeza de pândega
com o Firmo.
— Que Firmo? interrogou Augusta.
— Aquele cabravasco que se metia às vezes aí com ela. Diz que é torneiro.
— Ela mudou-se? perguntou o pequeno.
— Não, disse a Machona; o quarto está fechado, mas a mulata tem
coisas lá. Você o que queria?
— Vinha buscar uma roupa que está com ela.
— Não sei, filho, pergunta na venda ao João Romão, que talvez te possa
dizer alguma coisa.
— Ali?
— Sim, pequeno, naquela porta, onde a preta do tabuleiro está ven-
dendo! Ó diabo! olha que pisas a boneca de anil! Já se viu que sorte? Parece
que não vê onde pisa este raio de criança!
E, notando que o filho, o Agostinho, se aproximava para tomar o lugar
do outro que já se ia:
— Sai daí, tu também, peste! Já principias na reinação de todos os dias?
Vem para cá, que levas! Mas, é verdade, que fazes tu que não vais regar a
horta do Comendador?
— Ele disse ontem que eu agora fosse à tarde, que era melhor.
— Ah! E amanhã, não te esqueças, recebe os dois mil-réis, que é fim do
mês. Olha! Vai lá dentro e diz a Neném que te entregue a roupa que veio
ontem à noite.
O pequeno afastou-se de carreira, e ela lhe gritou na pista:
— E que não ponha o refogado no fogo sem eu ter lá ido!
Uma conversa cerrada travara-se no resto da fila de lavadeiras a res-
peito da Rita Baiana.
— É doida mesmo!... censurava Augusta. Meter-se na pândega sem dar
conta da roupa que lhe entregaram... Assim há de ficar sem um freguês...
— Aquela não endireita mais!... Cada vez fica até mais assanhada!... Parece
que tem fogo no rabo! Pode haver o serviço que houver, aparecendo pagode,
vai tudo pro lado! Olha o que saiu o ano passado com a festa da Penha!...

ALUÍSIO AZEVEDO • 43 •
— Então agora, com este mulato, o Firmo, é uma pouca-vergonha! Est’ro
dia, pois você não viu? Levaram aí numa bebedeira, a dançar e cantar à viola,
que nem sei o que parecia! Deus te livre!
— Para tudo há horas e há dias!...
— Para a Rita todos os dias são dias santos! A questão é aparecer quem
puxe por ela!
— Ainda assim não é má criatura... Tirante o defeito da vadiagem...
— Bom coração tem ela, até demais, que não guarda um vintém pro dia
de amanhã. Parece que o dinheiro lhe faz comichão no corpo!
— Depois é que são elas!... O João Romão já lhe não fia!
— Pois olhe que a Rita lhe tem enchido bem as mãos; quando ela tem
dinheiro é porque o gasta mesmo!
E as lavadeiras não se calavam, sempre a esfregar, e a bater, e a torcer
camisas e ceroulas, esfogueadas já pelo exercício. Ao passo que, em torno da
sua tagarelice, o cortiço se embandeirava todo de roupa molhada, de onde o
sol tirava cintilações de prata.
Estavam em dezembro e o dia era ardente. A grama dos coradouros
tinha reflexos esmeraldinos; as paredes que davam frente ao nascente, caia-
dinhas de novo, reverberavam iluminadas, ofuscando a vista. Em uma das
janelas da sala de jantar do Miranda, Dona Estela e Zulmira, ambas vestidas
de claro e ambas a limarem as unhas, conversavam em voz surda, indife-
rentes à agitação que ia lá embaixo, muito esquecidas na sua tranquilidade
de entes felizes.
Entretanto, agora o maior movimento era na venda à entrada da esta-
lagem. Davam nove horas e os operários das fábricas chegavam-se para o
almoço. Ao balcão o Domingos e o Manuel não tinham mãos a medir com a
criadagem da vizinhança; os embrulhos de papel amarelo sucediam-se, e o
dinheiro pingava sem intermitência dentro da gaveta.
— Meio quilo de arroz!
— Um tostão de açúcar!
— Uma garrafa de vinagre!
— Dois martelos de vinho!
— Dois vinténs de fumo!
— Quatro de sabão!
E os gritos confundiam-se numa mistura de vozes de todos os tons.

• 44 • O CORTIÇO
Ouviam-se protestos entre os compradores:
— Me avie, seu Domingos! Eu deixei a comida no fogo!
— Ó peste! Dá cá as batatas, que eu tenho mais o que fazer!
— Seu Manuel, não me demore essa manteiga!
Ao lado, na casinha de pasto, a Bertoleza, de saias arrepanhadas no qua-
dril, o cachaço grosso e negro, reluzindo de suor, ia e vinha de uma panela à
outra, fazendo pratos, que João Romão levava de carreira aos trabalhadores
assentados num compartimento junto. Admitira-se um novo caixeiro, só para
o frege, e o rapaz, a cada comensal que ia chegando, recitava, em tom can-
tado e estridente, a sua interminável lista das comidas que havia. Um cheiro
forte de azeite frito predominava. O parati circulava por todas as mesas,
e cada caneca de café, de louça espessa, erguia um vulcão de fumo tre-
sandando a milho queimado. Uma algazarra medonha, em que ninguém se
entendia! Cruzavam-se conversas em todas as direções, discutia-se a berros,
com valentes punhadas sobre as mesas. E sempre a sair, e sempre a entrar
gente, e os que saíam, depois daquela comezaina grossa, iam radiantes de
contentamento, com a barriga bem cheia, a arrotar.
Num banco de pau tosco, que existia do lado de fora, junto à parede e
perto da venda, um homem, de calça e camisa de zuarte, chinelos de couro
cru, esperava, havia já uma boa hora, para falar com o vendeiro.
Era um português de seus trinta e cinco a quarenta anos, alto, espa-
daúdo, barbas ásperas, cabelos pretos e maltratados caindo-lhe sobre a
testa, por debaixo de um chapéu de feltro ordinário: pescoço de touro e cara
de Hércules, na qual os olhos todavia, humildes como os olhos de um boi de
canga, exprimiam tranquila bondade.
— Então ainda não se pode falar ao homem? perguntou ele, indo ao
balcão entender-se com o Domingos.
— O patrão está agora muito ocupado. Espere!
— Mas são quase dez horas e estou com um gole de café no estômago!
— Volte logo!
— Moro na cidade nova. É um estirão daqui!
O caixeiro gritou então para a cozinha, sem interromper o que fazia:
— O homem que aí está, seu João, diz que se vai embora!
— Ele que espere um pouco, que já lhe falo! respondeu o vendeiro no
meio de uma carreira. Diga-lhe que não vá!

ALUÍSIO AZEVEDO • 45 •
— Mas é que ainda não almocei e estou aqui a tinir!... observou o
Hércules com a sua voz grossa e sonora.
— Ó filho, almoce aí mesmo! Aqui o que não falta é de comer. Já podia
estar aviado!
— Pois vá lá! resolveu o homenzarrão, saindo da venda para entrar
na casa de pasto, onde os que lá se achavam o receberam com ar curioso,
medindo-o da cabeça aos pés, como faziam sempre com todos os que aí se
apresentavam pela primeira vez.
E assentou-se a uma das mesinhas, vindo logo o caixeiro cantar-lhe a
lista dos pratos.
— Traga lá o pescado com batatas e veja um martelo de vinho.
— Quer verde ou virgem?
— Venha o verde; mas anda com isso, filho, que já não vem sem tempo!

IV
Meia hora depois, quando João Romão se viu menos ocupado, foi ter com
o sujeito que o procurava e assentou-se defronte dele, caindo de fadiga, mas
sem se queixar, nem se lhe trair a fisionomia o menor sintoma de cansaço.
— Você vem da parte do Machucas? perguntou-lhe. Ele falou-me de um
homem que sabe calçar pedra, lascar fogo e fazer lajedo.
— Sou eu.
— Estava empregado em outra pedreira?
— Estava e estou. Na de São Diogo, mas desgostei-me dela e quero
passar adiante.
— Quanto lhe dão lá?
— Setenta mil-réis.
— Oh! Isso é um disparate!
— Não trabalho por menos...
— Eu, o maior ordenado que faço é de cinquenta.
— Cinquenta ganha um macaqueiro...
— Ora! Tenho aí muitos trabalhadores de lajedo por esse preço!

• 46 • O CORTIÇO
— Duvido que prestem! Aposto a mão direita em como o senhor não
encontra por cinquenta mil-réis quem dirija a broca, pese a pólvora e lasque
fogo, sem lhe estragar a pedra e sem fazer desastres!
— Sim, mas setenta mil-réis é um ordenado impossível!
— Nesse caso vou como vim... Fica o dito por não dito!
— Setenta mil-réis é muito dinheiro!...
— Cá por mim, entendo que vale a pena pagar mais um pouco a um
trabalhador bom, do que estar a sofrer desastres, como o que sofreu sua
pedreira a semana passada! Não falando na vida do pobre de Cristo que ficou
debaixo da pedra!
— Ah! O Machucas falou-lhe no desastre?
— Contou-mo, sim senhor, e o desastre não aconteceria se o homem
soubesse fazer o serviço!
— Mas setenta mil-réis é impossível. Desça um pouco!
— Por menos não me serve... E escusamos de gastar palavras!
— Você conhece a pedreira?
— Nunca a vi de perto, mas quis me parecer que é boa. De longe
cheirou-me a granito.
— Espere um instante.
João Romão deu um pulo à venda, deixou algumas ordens, enterrou um
chapéu na cabeça e voltou a ter com o outro.
— Ande a ver! gritou-lhe da porta do frege, que a pouco e pouco se
esvaziara de todo.
O cavouqueiro pagou doze vinténs pelo seu almoço e acompanhou-o
em silêncio.
Atravessaram o cortiço.
A labutação continuava. As lavadeiras tinham já ido almoçar e tinham
voltado de novo para o trabalho. Agora estavam todas de chapéu de palha,
apesar das toldas que se armaram. Um calor de cáustico mordia-lhes os tou-
tiços em brasa e cintilantes de suor. Um estado febril apoderava-se delas
naquele rescaldo; aquela digestão feita ao sol fermentava-lhes o sangue.
A Machona altercava com uma preta que fora reclamar um par de meias e
destrocar uma camisa; a Augusta, muito mole sobre a sua tábua de lavar,
parecia derreter-se como sebo; a Leocádia largava de vez em quando a roupa
e o sabão para coçar as comichões do quadril e das virilhas, assanhadas pelo

ALUÍSIO AZEVEDO • 47 •
mormaço; a Bruxa monologava, resmungando numa insistência de idiota,
ao lado da Marciana que, com o seu tipo de mulata velha, um cachimbo ao
canto da boca, cantava toadas monótonas do sertão:

“Maricas tá marimbando,
Maricas tá marimbando,
Na passage do riacho
Maricas tá marimbando.”

A Florinda, alegre, perfeitamente bem com o rigor do sol, a rebolar sem


fadigas, assoviava os chorados e lundus que se tocavam na estalagem, e
junto dela, a melancólica senhora Dona Isabel suspirava, esfregando a sua
roupa dentro da tina, automaticamente, como um condenado a trabalhar
no presídio; ao passo que o Albino, saracoteando os seus quadris pobres de
homem linfático, batia na tábua um par de calças, no ritmo cadenciado e
miúdo de um cozinheiro a bater bifes. O corpo tremia-lhe todo, e ele, de vez
em quando, suspendia o lenço do pescoço para enxugar a fronte, e então um
gemido suspirado subia-lhe aos lábios.
Da casinha número 8 vinha um falsete agudo, mas afinado. Era a das
Dores que principiava o seu serviço; não sabia engomar sem cantar. No número
7 Neném cantarolava em tom muito mais baixo; e de um dos quartos do fundo
da estalagem saía de espaço a espaço uma nota áspera de trombone.
O vendeiro, ao passar por detrás de Florinda, que no momento apa-
nhava roupa do chão, ferrou-lhe uma palmada na parte do corpo então mais
em evidência.
— Não bula, hein?!... gritou ela, rápido, erguendo-se tesa. E, dando com
João Romão:
Eu logo vi. Leva implicando aqui com a gente e depois, vai-se comprar
na venda, o safado rouba no peso!
Diabo do galego! Eu não te quero, sabe?
O vendeiro soltou-lhe nova palmada com mais força e fugiu, porque ela
se armara com um regador cheio de água.
— Vem pra cá, se és capaz! Diabo da peste!
João Romão já se havia afastado com o cavouqueiro.
— O senhor tem aqui muita gente!... observou-lhe este.

• 48 • O CORTIÇO
— Oh! fez o outro, sacudindo os ombros, e disse depois com empáfia:
— Houvesse mais cem quartos que estariam cheios! Mas é tudo gente séria!
Não há chinfrins nesta estalagem; se aparece uma rusga, eu chego, e tudo
acaba logo! Nunca nos entrou cá a polícia, nem nunca a deixaremos entrar!
E olhe que se divertem bem com as suas violas! Tudo gente muita boa!
Tinham chegado ao fim do pátio do cortiço e, depois de transporem uma
porta que se fechava com um peso amarrado a uma corda, acharam-se no
capinzal que havia antes da pedreira.
— Vamos por aqui mesmo que é mais perto, aconselhou o vendeiro.
E os dois, em vez de procurarem a estrada, atravessaram o capim quente
e trescalante.
Meio-dia em ponto. O sol estava a pino; tudo reverberava a luz irrecon-
ciliável de dezembro, num dia sem nuvens. A pedreira, em que ela batia de
chapa em cima, cegava olhada de frente. Era preciso martirizar a vista para
descobrir as nuanças da pedra; nada mais que uma grande mancha branca
e luminosa, terminando pela parte de baixo no chão coberto de cascalho
miúdo, que ao longe produzia o efeito de um betume cinzento, e pela parte
de cima na espessura compacta do arvoredo, onde se não distinguiam outros
tons mais do que nódoas negras, bem negras, sobre o verde-escuro.
À proporção que os dois se aproximavam da imponente pedreira, o ter-
reno ia-se tornando mais e mais cascalhudo; os sapatos enfarinhavam-se
de uma poeira clara. Mais adiante, por aqui e por ali, havia muitas carroças,
algumas em movimento, puxadas a burro e cheias de calhaus partidos;
outras já prontas para seguir, à espera do animal, e outras enfim com os
braços para o ar, como se acabassem de ser despejadas naquele instante.
Homens labutavam.
À esquerda, por cima de um vestígio de rio, que parecia ter sido bebido
de um trago por aquele sol sedento, havia uma ponte de tábuas, onde três
pequenos, quase nus, conversavam assentados, sem fazer sombra, ilumi-
nados a prumo pelo sol do meio-dia. Para adiante, na mesma direção, corria
um vasto telheiro, velho e sujo, firmado sobre colunas de pedra tosca; aí
muitos portugueses trabalhavam de canteiro, ao barulho metálico do picão
que feria o granito. Logo em seguida, surgia uma oficina de ferreiro, toda
atravancada de destroços e objetos quebrados, entre os quais avultavam
rodas de carro; em volta da bigorna dois homens, de corpo nu, banhados de

ALUÍSIO AZEVEDO • 49 •
suor e alumiados de vermelho como dois diabos, martelavam cadenciosa-
mente sobre um pedaço de ferro em brasa; e ali mesmo, perto deles, a forja
escancarava uma goela infernal, de onde saíam pequenas línguas de fogo,
irrequietas e gulosas.
João Romão parou à entrada da oficina e gritou para um dos ferreiros:
— Ó Bruno! Não se esqueça do varal da lanterna do portão!
Os dois homens suspenderam por um instante o trabalho.
— Já lá fui ver, respondeu o Bruno. Não vale a pena consertá-lo; está
todo comido de ferragem! Faz-se-lhe um novo, que é melhor!
— Pois veja lá isso, que a lanterna está a cair!
E o vendeiro seguiu adiante com o outro, enquanto atrás recomeçava o
martelar sobre a bigorna.
Em seguida via-se uma miserável estrebaria, cheia de capim seco e
excremento de bestas, com lugar para meia dúzia de animais. Estava deserta,
mas, no vivo fartum exalado de lá, sentia-se que fora habitada ainda aquela
noite. Havia depois um depósito de madeiras, servindo ao mesmo tempo de
oficina de carpinteiro, tendo à porta troncos de árvore, alguns já serrados,
muitas tábuas empilhadas, restos de cavernas e mastros de navio.
Daí à pedreira restavam apenas uns cinquenta passos e o chão era já
todo coberto por uma farinha de pedra moída que sujava como a cal.
Aqui, ali, por toda a parte, encontravam-se trabalhadores, uns ao
sol, outros debaixo de pequenas barracas feitas de lona ou de folhas de
palmeira. De um lado cunhavam pedra cantando; de outro a quebravam a
picareta; de outro afeiçoavam lajedos a ponta de picão; mais adiante faziam
paralelepípedos a escopro e macete. E todo aquele retintim de ferramentas,
e o martelar da forja, e o coro dos que lá em cima brocavam a rocha para
lançar-lhe fogo, e a surda zoada ao longe, que vinha do cortiço, como de uma
aldeia alarmada; tudo dava a ideia de uma atividade feroz, de uma luta de
vingança e de ódio. Aqueles homens gotejantes de suor, bêbados de calor,
desvairados de insolação, a quebrarem, a espicaçarem, a torturarem a pedra,
pareciam um punhado de demônios revoltados na sua impotência contra
o impassível gigante que os contemplava com desprezo, imperturbável a
todos os golpes e a todos os tiros que lhe desfechavam no dorso, deixando
sem um gemido que lhe abrissem as entranhas de granito. O membrudo

• 50 • O CORTIÇO
cavouqueiro havia chegado à fralda do orgulhoso monstro de pedra; tinha-o
cara a cara, mediu-o de alto a baixo, arrogante, num desafio surdo.
A pedreira mostrava nesse ponto de vista o seu lado mais imponente.
Descomposta, com o escalavrado flanco exposto ao sol, erguia-se altaneira
e desassombrada, afrontando o céu, muito íngreme, lisa, escaldante e cheia
de cordas que mesquinhamente lhe escorriam pela ciclópica nudez com um
efeito de teias de aranha. Em certos lugares, muito alto do chão, lhe haviam
espetado alfinetes de ferro, amparando, sobre um precipício, miseráveis
tábuas que, vistas cá de baixo, pareciam palitos, mas em cima das quais uns
atrevidos pigmeus de forma humana equilibravam-se, desfechando golpes
de picareta contra o gigante.
O cavouqueiro meneou a cabeça com ar de lástima. O seu gesto desa-
provava todo aquele serviço.
— Veja lá! disse ele, apontando para certo ponto da rocha. Olhe para
aquilo! Sua gente tem ido às cegas no trabalho desta pedreira. Deviam
atacá-la justamente por aquele outro lado, para não contrariar os veios da
pedra. Esta parte aqui é toda granito, é a melhor! Pois olhe só o que eles têm
tirado de lá — umas lascas, uns calhaus que não servem para nada! É uma
dor de coração ver estragar assim uma peça tão boa! Agora o que hão de
fazer dessa cascalhada que aí está senão macacos? E brada aos céus, creia!
Ter pedra desta ordem para empregá-la em macacos!
O vendeiro escutava-o em silêncio, apertando os beiços, aborrecido com
a ideia daquele prejuízo.
— Uma porcaria de serviço! continuou o outro. Ali onde está aquele
homem é que deviam ter feito a broca, porque a explosão punha abaixo toda
esta aba que é separada por um veio. Mas quem tem aí o senhor capaz de
fazer isso? Ninguém; porque é preciso um empregado que saiba o que faz;
que, se a pólvora não for muito bem medida, nem só não se abre o veio,
como ainda sucede ao trabalhador o mesmo que sucedeu ao outro! É preciso
conhecer muito bem o trabalho para se poder tirar partido vantajoso desta
pedreira! Boa é ela, mas não nas mãos em que está! É muito perigosa nas
explosões; é muito em pé! Quem lhe lascar fogo não pode fugir senão para
cima pela corda, e se o sujeito não for fino leva-o o demo! Sou eu quem o diz!
E depois de uma pausa, acrescentou, tomando na sua mão, grossa como
o próprio cascalho, um paralelepípedo que estava no chão:

ALUÍSIO AZEVEDO • 51 •
— Que digo eu?! Cá está! Macacos de granito! Isto até é uma coisa que
estes burros deviam esconder por vergonha!
Acompanhando a pedreira pelo lado direito e seguindo-a na volta que
ela dava depois, formando um ângulo obtuso, é que se via quanto era grande.
Suava-se bem antes de chegar ao seu limite com a mata.
— Que mina de dinheiro!... dizia o homenzarrão, parando entusiasmado
defronte do novo pano de rocha viva que se desdobrava na presença dele.
— Toda esta parte que se segue agora, declarou João Romão, ainda não
é minha. E continuaram a andar para diante.
Deste lado multiplicavam-se as barraquinhas; os macaqueiros traba-
lhavam à sombra delas, indiferentes àqueles dois. Viam-se panelas ao fogo,
sobre quatro pedras, ao ar livre, e rapazitos tratando do jantar dos pais.
De mulher nem sinal. De vez em quando, na penumbra de um ensombro
de lona, dava-se com um grupo de homens, comendo de cócoras defronte
uns dos outros, uma sardinha na mão esquerda, um pão na direita, ao lado
de uma garrafa de água.
— Sempre o mesmo serviço malfeito e mal dirigido!... resmungou o
cavouqueiro.
Entretanto, a mesma atividade parecia reinar por toda a parte. Mas, lá
no fim, debaixo dos bambus que marcavam o limite da pedreira, alguns tra-
balhadores dormiam à sombra, de papo para o ar, a barba espetando para o
alto, o pescoço intumescido de cordoveias grossas como enxárcias de navio,
a boca aberta, a respiração forte e tranquila de animal sadio, num feliz e
pletórico resfolgar de besta cansada.
— Que relaxamento! resmungou de novo o cavouqueiro. Tudo isto está
a reclamar um homem teso que olhe a sério para o serviço!
— Eu nada tenho que ver com este lado! observou Romão.
— Mas lá da sua banda hão de fazer o mesmo! Olará!
— Abusam, porque tenho de olhar pelo negócio lá fora...
— Comigo aqui é que eles não fariam cera. Isso juro eu! Entendo que
o empregado deve ser bem pago, ter para a sua comida à farta, o seu gole
de vinho, mas que deve fazer serviço que se veja, ou, então, rua! Rua, que
não falta por aí quem queira ganhar dinheiro! Autorize-me a olhar por eles
e verá!
— O diabo é que você quer setenta mil-réis... suspirou João Romão.

• 52 • O CORTIÇO
— Ah! Nem menos um real!... Mas comigo aqui há de ver o que lhe faço
entrar para algibeira! Temos cá muita gente que não precisa estar. Para que
tanto macaqueiro, por exemplo? Aquilo é serviço para descanso; é serviço
de criança! Em vez de todas aquelas lesmas, pagas talvez a trinta mil-réis...
— É justamente quanto lhes dou.
—... melhor seria tomar dois bons trabalhadores de cinquenta, que
fazem o dobro do que fazem aqueles monos e que podem servir para outras
coisas! Parece que nunca trabalharam! Olhe, é já a terceira vez que aquele
que ali está deixa cair o escopro! Com efeito!
João Romão ficou calado, a cismar, enquanto voltavam. Vinham ambos
pensativos.
— E você, se eu o tomar, disse depois o vendeiro, muda-se cá para a
estalagem?...
— Naturalmente! Não hei de ficar lá na cidade nova, tendo o serviço
aqui!...
— E a comida, forneço-a eu?...
— Isso é que a mulher é quem a faz; mas as compras saem-lhe da venda...
— Pois está fechado o negócio! deliberou João Romão, convencido de
que não podia, por economia, dispensar um homem daqueles. E pensou lá
de si para si: “Os meus setenta mil-réis voltar-me-ão à gaveta. Tudo me fica
em casa!”
— Então estamos entendidos?...
— Estamos entendidos!
— Posso amanhã fazer a mudança?
— Hoje mesmo, se quiser; tenho um cômodo que lhe há de calhar. É o
número 35. Vou mostrar-lho.
E aligeirando o passo, penetraram na estrada do capinzal com direção
ao fundo do cortiço.
— Ah! É verdade! Como você se chama?
— Jerônimo, para o servir.
— Servir a Deus. Sua mulher lava?
— É lavadeira, sim senhor.
— Bem, precisamos ver-lhe uma tina.

ALUÍSIO AZEVEDO • 53 •
E o vendeiro empurrou a porta do fundo da estalagem, de onde escapou,
como de uma panela fervendo que se destapa, uma baforada quente, vozeria
tresandante à fermentação de suores e roupa ensaboada secando ao sol.

V
No dia seguinte, com efeito, ali pelas sete da manhã, quando o cor-
tiço fervia já na costumada labutação, Jerônimo apresentou-se junto com a
mulher, para tomarem conta da casinha alugada na véspera.
A mulher chamava-se Piedade de Jesus; teria trinta anos, boa esta-
tura, carne ampla e rija, cabelos fortes de um castanho fulvo, dentes pouco
alvos, mas sólidos e perfeitos, cara cheia, fisionomia aberta; um todo de
bonomia toleirona, desabotoando-lhe pelos olhos e pela boca numa simpá-
tica expressão de honestidade simples e natural.
Vieram ambos à boleia da andorinha que lhes carregou os trens. Ela trazia
uma saia de sarja roxa, cabeção branco de paninho de algodão e na cabeça um
lenço vermelho de alcobaça; o marido a mesma roupa do dia anterior.
E os dois apearam-se muito atrapalhados com os objetos que não con-
fiaram dos homens da carroça; Jerônimo abraçado a duas formidáveis mangas
de vidro, das primitivas, dessas em que se podia à vontade enfiar uma perna; e
a Piedade atracada com um velho relógio de parede e com uma grande trouxa
de santos e palmas bentas. E assim atravessaram o pátio da estalagem, entre
os comentários e os olhares curiosos dos antigos moradores, que nunca viam
sem uma pontinha de desconfiança os inquilinos novos que surgiam.
— O que será este pedaço de homem? indagou a Machona da sua vizinha
de tina, a Augusta Carne-Mole.
— A modos, respondeu esta, que vem para trabalhar na pedreira. Ele
ontem andou por lá um ror de tempo com o João Romão.
— Aquela mulher que entrou junto será casada com ele?
— É de crer.
— Ela me parece gente das ilhas.
— Eles o que têm é muito bons trastes de seu! interveio a Leocádia. Uma
cama que deve ser um regalo e um toucador com um espelho maior do que
aquela peneira!

• 54 • O CORTIÇO
— E a cômoda, você viu, Nhá Leocádia? perguntou Florinda, gritando para
ser ouvida, porque entre ela e a outra estavam a Bruxa e a velha Marciana.
— Vi. Rico traste!
— E o oratório, então? Muito bonito!...
— Vi também. É obra de capricho. Não! Eles sejam lá quem for, são
gente arranjada... Isso não se lhes pode negar!
— Se são bons ou maus só com o tempo se saberá!... arriscou Dona Isabel.
— Quem vê cara não vê corações... sentenciou o triste Albino, suspirando.
— Mas o número 35 não estava ocupado por aquele homem muito ama-
relo que fazia charutos?... inquiriu Augusta.
— Estava, confirmou a mulher do ferreiro, a Leocádia, porém creio que
arribou, devendo não sei quanto, e o João Romão então esvaziou-lhe ontem
a casa e tomou conta do que era dele.
— É! acudiu a Machona; ontem, pelo cair das duas da tarde, o Romão andava
aí às voltas com os cacarecos do charuteiro. Quem sabe, se o pobre homem não
levou a breca, como sucedeu àquele outro que trabalhava de ourives?
— Não! Este creio que está vivo...
— O que lhe digo é que aquele número 35 tem mau agouro! Eu cá por
mim não o queria nem de graça! Foi lá que morreu a Maricas do Farjão!
Três horas depois, Jerônimo e Piedade achavam-se instalados e
dispunham-se a comer o almoço, que a mulher preparara o melhor e o mais
depressa que pôde. Ele contava aviar até a noite uma infinidade de coisas,
para poder começar a trabalhar logo no dia seguinte.
Era tão metódico e tão bom como trabalhador quanto o era como homem.
Jerônimo viera da terra, com a mulher e uma filhinha ainda pequena,
tentar a vida no Brasil, na qualidade de colono de um fazendeiro, em cuja
fazenda mourejou durante dois anos, sem nunca levantar a cabeça, e de onde
afinal se retirou de mãos vazias e uma grande birra pela lavoura brasileira.
Para continuar a servir na roça tinha que sujeitar-se a emparelhar com os
negros escravos e viver com eles no mesmo meio degradante, encurralado
como uma besta, sem aspirações, nem futuro, trabalhando eternamente
para outro.
Não quis. Resolveu abandonar de vez semelhante estupor de vida e
atirar-se para a Corte, onde, diziam-lhe patrícios, todo o homem bem dis-
posto encontrava furo. E, com efeito, mal chegou, devorado de necessidades e

ALUÍSIO AZEVEDO • 55 •
privações, meteu-se a quebrar pedra em uma pedreira, mediante um miserável
salário. A sua existência continuava dura e precária; a mulher já então lavava
e engomava, mas com pequena freguesia e mal paga. O que os dois faziam
chegava-lhes apenas para não morrer de fome e pagar o quarto da estalagem.
Jerônimo, porém, era perseverante, observador e dotado de certa habili-
dade. Em poucos meses se apoderava do seu novo ofício e, de quebrador de
pedra, passou logo a fazer paralelepípedos; e depois foi-se ajeitando com o
prumo e com a esquadria e meteu-se a fazer lajedos; e finalmente, à força de
dedicação pelo serviço, tornou-se tão bom como os melhores trabalhadores
de pedreira e a ter salário igual ao deles. Dentro de dois anos, distinguia-se
tanto entre os companheiros, que o patrão o converteu numa espécie de
contramestre e elevou-lhe o ordenado a setenta mil-réis.
Mas não foram só o seu zelo e a sua habilidade o que o pôs assim para a
frente; duas outras coisas contribuíram muito para isso: a força de touro que
o tornava respeitado e temido por todo o pessoal dos trabalhadores, como
ainda, e, talvez, principalmente, a grande seriedade do seu caráter e a pureza
austera dos seus costumes. Era homem de uma honestidade a toda prova e
de uma primitiva simplicidade no seu modo de viver. Saía de casa para o ser-
viço e do serviço para casa, onde nunca ninguém o vira com a mulher senão
em boa paz; traziam a filhinha sempre limpa e bem alimentada, e, tanto um
como o outro, eram sempre os primeiros à hora do trabalho. Aos domingos
iam às vezes à missa ou, à tarde, ao Passeio Público; nessas ocasiões, ele
punha uma camisa engomada, calçava sapatos e enfiava um paletó; ela o
seu vestido de ver a Deus, os seus ouros trazidos da terra, que nunca tinham
ido ao monte de socorro, malgrado as dificuldades com que os dois lutaram
a princípio no Brasil.
Piedade merecia bem o seu homem, muito diligente, sadia, honesta,
forte, bem acomodada com tudo e com todos, trabalhando de sol a sol e
dando sempre tão boas contas da obrigação, que os seus fregueses de roupa,
apesar daquela mudança para Botafogo, não a deixaram quase todos.
Jerônimo, ainda na cidade nova, logo que principiara a ganhar melhor,
fizera-se irmão de uma ordem terceira e tratara de ir pondo alguma coisinha
de parte. Meteu a filha em um colégio, “que a queria com outro saber que
não ele, a quem os pais não mandaram ensinar nada”. Por último, no cortiço
em que então moravam, a sua casinha era a mais decente, a mais respeitada

• 56 • O CORTIÇO
e a mais confortável; porém, com a morte do seu patrão e com uma reforma
estúpida que os sucessores dele realizaram em todo o serviço da pedreira, o
colono desgostou-se dela e resolveu passar para outra.
Foi então que lhe indicaram a do João Romão, que, depois do desastre
do seu melhor empregado, andava justamente à procura de um homem nas
condições de Jerônimo.
Tomou conta da direção de todo o serviço, e em boa hora o fez, porque
dia a dia a sua influência se foi sentindo no progresso do trabalho. Com o seu
exemplo os companheiros tornavam-se igualmente sérios e zelosos. Ele não
admitia relaxamentos, nem podia consentir que um preguiçoso se demorasse
ali tomando o lugar de quem precisava ganhar o pão. E alterou o pessoal da
pedreira, despediu alguns trabalhadores, admitiu novos, aumentou o orde-
nado dos que ficaram, estabelecendo-lhes novas obrigações e reformando
tudo para melhor. No fim de dois meses já o vendeiro esfregava as mãos de
contente e via, radiante, quanto lucrara com a aquisição de Jerônimo; tanto
assim que estava disposto a aumentar-lhe o ordenado para conservá-lo
em sua companhia. “Valia a pena! Aquele homem era um achado precioso!
Abençoado fosse o Machucas que lho enviara!” E começou a distingui-lo e
respeitá-lo como não fazia a ninguém.
O prestígio e a consideração de que Jerônimo gozava entre os moradores
da outra estalagem donde vinha, foi a pouco e pouco se reproduzindo entre
os seus novos companheiros de cortiço. Ao cabo de algum tempo era consul-
tado e ouvido, quando qualquer questão difícil os preocupava. Descobriam-se
defronte dele, como defronte de um superior, até o próprio Alexandre abria
uma exceção nos seus hábitos e fazia-lhe uma ligeira continência com a
mão no boné, ao atravessar o pátio, todo fardado, por ocasião de vir ou ir
para o serviço. Os dois caixeiros da venda, o Domingos e o Manuel, tinham
entusiasmo por ele. “Aquele é que devia ser o patrão, diziam. É um homem
sério e destemido! Com aquele ninguém brinca!” E, sempre que a Piedade de
Jesus ia lá à taverna fazer as suas compras, a fazenda que lhe davam era bem
escolhida, bem medida ou bem pesada. Muitas lavadeiras tomavam inveja
dela, mas Piedade era de natural tão bom e benfazejo que não dava por isso
e a maledicência murchava antes de amadurecer.
Jerônimo acordava todos os dias às quatro horas da manhã, fazia
antes dos outros a sua lavagem à bica do pátio, socava-se depois com uma

ALUÍSIO AZEVEDO • 57 •
boa palangana de caldo de unto, acompanhada de um pão de quatro; e,
em mangas de camisa de riscado, a cabeça ao vento, os grossos pés sem
meias metidos em um formidável par de chinelos de couro cru, seguia para
a pedreira.
A sua picareta era para os companheiros o toque de reunir. Aquela
ferramenta movida por um pulso de Hércules valia bem os clarins de um
regimento tocando alvorada. Ao seu retinir vibrante surgiam do caos opa-
lino das neblinas vultos cor de cinza, que lá iam, como sombras, galgando
a montanha, para cavar na pedra o pão nosso de cada dia. E, quando o sol
desfechava sobre o píncaro da rocha os seus primeiros raios, já encontrava
de pé, a bater-se contra o gigante de granito, aquele mísero grupo de obs-
curos batalhadores.
Jerônimo só voltava a casa ao descair da tarde, morto de fome e de
fadiga. A mulher preparava-lhe sempre para o jantar alguma das comidas da
terra deles. E ali, naquela estreita salinha, sossegada e humilde, gozavam os
dois, ao lado um do outro, a paz feliz dos simples, o voluptuoso prazer do
descanso após um dia inteiro de canseiras ao sol. E, defronte do candeeiro de
querosene, conversavam sobre a sua vida e sobre a sua Marianita, a filhinha
que estava no colégio e que só os visitava aos domingos e dias santos.
Depois, até às horas de dormir, que nunca passavam das nove, ele
tomava a sua guitarra e ia para defronte da porta, junto com a mulher, dedi-
lhar os fados da sua terra. Era nesses momentos que dava plena expansão às
saudades da pátria, com aquelas cantigas melancólicas em que a sua alma
de desterrado voava das zonas abrasadas da América para as aldeias tristes
da sua infância.
E o canto daquela guitarra estrangeira era um lamento choroso e dolo-
rido, eram vozes magoadas, mais tristes do que uma oração em alto-mar,
quando a tempestade agita as negras asas homicidas, e as gaivotas doidejam
assanhadas, cortando a treva com os seus gemidos pressagos, tontas como
se estivessem fechadas dentro de uma abóbada de chumbo.

• 58 • O CORTIÇO
VI
Amanhecera um domingo alegre no cortiço, um bom dia de abril. Muita
luz e pouco calor.
As tinas estavam abandonadas; os coradouros despidos. Tabuleiros e
tabuleiros de roupa engomada saíam das casinhas, carregados na maior
parte pelos filhos das próprias lavadeiras que se mostravam agora quase
todas de fato limpo; os casaquinhos brancos avultavam por cima das saias
de chita de cor. Desprezavam-se os grandes chapéus de palha e os aven-
tais de aniagem; agora as portuguesas tinham na cabeça um lenço novo de
ramagens vistosas e as brasileiras haviam penteado o cabelo e pregado nos
cachos negros um ramalhete de dois vinténs; aquelas trancavam no ombro
xales de lã vermelha, e estas de crochê, de um amarelo desbotado. Viam-se
homens de corpo nu, jogando a placa, com grande algazarra. Um grupo
de italianos, assentado debaixo de uma árvore, conversava ruidosamente,
fumando cachimbo. Mulheres ensaboavam os filhos pequenos debaixo da
bica, muito zangadas, a darem-lhes murros, a praguejar, e as crianças ber-
ravam, de olhos fechados, esperneando. A casa da Machona estava num
rebuliço, porque a família ia sair a passeio; a velha gritava, gritava Neném,
gritava o Agostinho. De muitas outras saíam cantos ou sons de instrumentos;
ouviam-se harmônicas e ouviam-se guitarras, cuja discreta melodia era de
vez em quando interrompida por um ronco forte de trombone.
Os papagaios pareciam também mais alegres com o domingo e lan-
çavam das gaiolas frases inteiras, entre gargalhadas e assobios. À porta de

ALUÍSIO AZEVEDO • 59 •
diversos cômodos, trabalhadores descansavam, de calça limpa e camisa de
meia lavada, assentados em cadeira, lendo e soletrando jornais ou livros;
um declamava em voz alta versos de “Os Lusíadas”, com um empenho feroz,
que o punha rouco. Transparecia neles o prazer da roupa mudada depois de
uma semana no corpo. As casinhas fumegavam um cheiro bom de refogados
de carne fresca fervendo ao fogo. Do sobrado do Miranda só as duas últimas
janelas já estavam abertas e, pela escada que descia para o quintal, passava
uma criada carregando baldes de águas servidas. Sentia-se naquela quie-
tação de dia inútil a falta do resfolegar aflito das máquinas da vizinhança,
com que todos estavam habituados. Para além do solitário capinzal do fundo
a pedreira parecia dormir em paz o seu sono de pedra; mas, em compensação,
o movimento era agora extraordinário à frente da estalagem e à entrada da
venda. Muitas lavadeiras tinham ido para o portão, olhar quem passava; ao
lado delas o Albino, vestido de branco, com o seu lenço engomado ao pes-
coço, entretinha-se a chupar balas de açúcar, que comprara ali mesmo ao
tabuleiro de um baleiro freguês do cortiço.
Dentro da taverna, os martelos de vinho branco, os copos de cerveja
nacional e os dois vinténs de parati ou laranjinha sucediam-se por cima do
balcão, passando das mãos do Domingos e do Manuel para as mãos ávidas
dos operários e dos trabalhadores, que os recebiam com estrondosas excla-
mações de pândega. A Isaura, que fora num pulo tomar o seu primeiro capilé,
via-se tonta com os apalpões que lhe davam. Leonor não tinha um instante
de sossego, saltando de um lado para outro, com uma agilidade de mono,
a fugir dos punhos calosos dos cavouqueiros que, entre risadas, tentavam
agarrá-la; e insistia na sua ameaça do costume: “que se queixava ao juiz de
orfe!”, mas não se ia embora, porque defronte da venda viera estacionar um
homem que tocava cinco instrumentos ao mesmo tempo, com um acompa-
nhamento desafinado de bombo, pratos e guizos.
Eram apenas oito horas e já muita gente comia e palavreava na casa de
pasto ao lado da venda. João Romão, de roupa mudada como os outros, mas
sempre em mangas de camisa, aparecia de espaço em espaço, servindo os
comensais; e a Bertoleza, sempre suja e tisnada, sempre sem domingo nem
dia santo, lá estava ao fogão, mexendo as panelas e enchendo os pratos.
Um acontecimento, porém, veio revolucionar alegremente toda aquela
confederação da estalagem. Foi a chegada da Rita Baiana, que voltava depois

• 60 • O CORTIÇO
de uma ausência de meses, durante a qual só dera notícias suas nas ocasiões
de pagar o aluguel do cômodo.
Vinha acompanhada por um moleque, que trazia na cabeça um enorme
samburá carregado de compras feitas no mercado; um grande peixe espiava
por entre folhas de alface com o seu olhar embaciado e triste, contrastando
com as risonhas cores dos rabanetes, das cenouras e das talhadas de abó-
bora vermelha.
— Põe isso tudo aí nessa porta. Aí no número 9, pequeno! gritou ela ao
moleque, indicando-lhe a sua casa, e depois pagou-lhe o carreto. — Podes ir
embora, carapeta!
Desde que do portão a bisparam na rua, levantou-se logo um coro de
saudações.
— Olha! Quem aí vem!
— Olé! Bravo! É a Rita Baiana!
— Já te fazíamos morta e enterrada!
— E não é que o demo da mulata está cada vez mais sacudida?...
— Então, coisa-ruim! Por onde andaste atirando esses quartos?
— Desta vez a coisa foi de esticar, hein?!
Rita havia parado em meio do pátio.
Cercavam-na homens, mulheres e crianças; todos queriam novas dela.
Não vinha em traje de domingo; trazia casaquinho branco, uma saia que lhe
deixava ver o pé sem meia num chinelo de polimento com enfeites de mar-
roquim de diversas cores. No seu farto cabelo, crespo e reluzente, puxado
sobre a nuca, havia um molho de manjericão e um pedaço de baunilha espe-
tado por um gancho. E toda ela respirava o asseio das brasileiras e um odor
sensual de trevos e plantas aromáticas. Irrequieta, saracoteando o atrevido
e rijo quadril baiano, respondia para a direita e para a esquerda, pondo à
mostra um fio de dentes claros e brilhantes que enriqueciam a sua fisio-
nomia com um realce fascinador.
Acudiu quase todo o cortiço para recebê-la. Choveram abraços e as
chufas do bom acolhimento. Por onde andara aquele diabo, que não aparecia
para mais de três meses?
— Ora, nem me fales, coração! Sabe? Pagode de roça! Que hei de fazer?
É a minha cachaça velha!...
— Mas onde estiveste tu enterrada tanto tempo, criatura?

ALUÍSIO AZEVEDO • 61 •
— Em Jacarepaguá.
— Com quem?
— Com o Firmo...
— Oh! Ainda dura isso?
— Cala a boca! A coisa agora é séria!
— Qual! Quem mesmo? Tu? Passa fora!
— Paixões da Rita! exclamou o Bruno com uma risada. Uma por ano!
Não contando as miúdas!
— Não! Isso é que não! Quando estou com um homem não olho pra
outro!
Leocádia, que era perdida pela mulata, saltara-lhe ao pescoço ao pri-
meiro encontro, e agora, defronte dela, com as mãos nas cadeiras, os olhos
úmidos de comoção, rindo, sem se fartar de vê-la, fazia-lhe perguntas
sobre perguntas:
— Mas por que não te metes tu logo por uma vez com o Firmo? Por que
não te casas com ele?
— Casar? protestou a Rita. Nessa não cai a filha de meu pai! Casar? Livra!
Para quê? Para arranjar cativeiro? Um marido é pior que o diabo; pensa logo
que a gente é escrava! Nada! Qual! Deus te livre! Não há como viver cada um
senhor e dono do que é seu!
E sacudiu todo o corpo num movimento de desdém que lhe era peculiar.
— Olha só que peste! considerou Augusta, rindo, muito mole, na sua
honestidade preguiçosa.
Esta também achava infinita graça na Rita Baiana e seria capaz de levar
um dia inteiro a vê-la dançar o chorado.
Florinda ajudava a mãe a preparar o almoço, quando lhe cheirou que
chegara a mulata, e veio logo correndo, a rir-se desde longe, cair-lhe nos
braços. A própria Marciana, de seu natural sempre triste e metida consigo,
apareceu à janela, para saudá-la. A das Dores, com as saias arrepanhadas
no quadril e uma toalha por cima amarrada pela parte de trás e servindo
de avental, o cabelo ainda por pentear, mas entrouxado no alto da cabeça,
abandonou a limpeza que fazia em casa e veio ter com a Rita, para dar-lhe
uma palmada e gritar-lhe no nariz:
— Desta vez tomaste um fartão, hein, mulata assanhada?...

• 62 • O CORTIÇO
E, ambas a caírem de riso, abraçaram-se em intimidade de amigas, que
não têm segredos de amor uma para a outra.
A Bruxa veio em silêncio apertar a mão de Rita e retirou-se logo.
— Olha a feiticeira! bradou esta última, batendo no ombro da idiota.
Que diabo você tanto reza, tia Paula? Eu quero que você me dê um feitiço
para prender meu homem!
E tinha uma frase para cada um que se aproximasse. Ao ver Dona Isabel,
que apareceu toda cerimoniosa na sua saia da missa e com o seu velho
xale de Macau, abraçou-a e pediu-lhe uma pitada, que a senhora recusou,
resmungando:
— Sai daí, diabo!
— Cadê Pombinha? perguntou a mulata.
Mas, nessa ocasião, Pombinha acabava justamente de sair de casa,
muito bonita e asseada com um vestido novo de cetineta. As mãos ocupadas
com o livro de rezas, o lenço e a sombrinha.
— Ah! Como está chique! exclamou a Rita, meneando a cabeça. É mesmo
uma flor! — e logo que Pombinha se pôs ao seu alcance, abraçou-lhe a cin-
tura e deu-lhe um beijo. — O João Costa se não te fizer feliz como os anjos
sou capaz de abrir-lhe o casco com o salto do chinelo! Juro pelos cabelos do
meu homem! — E depois, tornando-se séria, perguntou muito em voz baixa
a Dona Isabel: — Já veio?... ao que a velha respondeu negativamente com um
desconsolado e mudo abanar de orelhas.
O circunspecto Alexandre, sem querer declinar da sua gravidade, pois
que estava fardado e pronto para sair, contentou-se em fazer com a mão um
cumprimento à mulata, ao qual retrucou esta com uma continência militar e
uma gargalhada que o desconcertaram.
Iam fazer comentários sobre o caso, mas a Rita, voltando-se para o
outro lado, gritou:
— Olha o velho Libório! Como está cada vez mais duro!... Não se entrega
por nada o demônio do judeu!
E correu para o lugar, onde estava, aquecendo-se ao belo sol de abril,
um octogenário, seco, que parecia mumificado pela idade, a fumar num resto
de cachimbo, cujo pipo desaparecia na sua boca já sem lábios.
— Êh! Êh! fez ele, quando a mulata se aproximou.

ALUÍSIO AZEVEDO • 63 •
— Então? perguntou Rita, abaixando-se para tocar-lhe no ombro.
Quando é o nosso negócio?... Mas você há de deixar-me primeiro abrir o
bauzinho de folha!...
Libório riu-se com as gengivas, tentando apalpar as coxas da Baiana,
por caçoada, afetando luxúria.
Todos acharam graça nesta pantomimice do velhinho, e então, a mulata,
para completar a brincadeira, deu uma volta entufando as saias e sacudiu-as
depois sobre a cabeça dele, que se fingiu indignado, a fungar exageradamente.
E entre a alegria levantada pela sua reaparição no cortiço, a Rita
deu conta de que pintara na sua ausência; disse o muito que festou em
Jacarepaguá; o entrudo que fizera pelo carnaval. Três meses de folia! E, afinal
abaixando a voz, segredou às companheiras que à noite teriam um pago-
dinho de violão. Podiam contar como certo!
Esta última notícia causou verdadeiro júbilo no auditório. As patuscadas
da Rita Baiana eram sempre as melhores da estalagem. Ninguém como o
diabo da mulata para armar uma função que ia pelas tantas da madrugada,
sem saber a gente como foi que a noite se passou tão depressa. Além de
que “era aquela franqueza! Enquanto houvesse dinheiro ou crédito, ninguém
morria com a tripa marcha ou com a goela seca!”
— Diz-me cá, ó Leocadinha! Quem são aqueles jururus que estão agora
no 35? indagou ela, vendo o Jerônimo à porta da casa com a mulher.
— Ah! explicou a interrogada, é o Jeromo e mais a Piedade, um casal
que inda não conheces. Entrou ao depois que arribaste. Boa gente, coitados!
Rita carregou para dentro do seu cômodo as provisões que trouxera;
abriu logo a janela e pôs-se a cantar. Sua presença enchia de alegria a esta-
lagem toda.
O Firmo, o mulato com quem ela agora vivia metida, o demônio que a
desencabeçara para aquela maluqueira, de Jacarepaguá, ia lá jantar esse dia
com um amigo. Rita declarava isto às companheiras, amolando uma faquinha
no tijolo da sua porta, para escamar o peixe; enquanto os gatos, aqueles
mesmos que perseguiam o sardinheiro, vinham, um a um, chegando-se todos
só com o ruído da afiação do ferro.
Ao lado direito da casinha da mulata, no número 8, a das Dores
preparava-se também para receber nesse dia o seu amigo e dispunha-se a
fazer uma limpeza geral nas paredes, nos tetos, no chão e nos móveis, antes

• 64 • O CORTIÇO
de meter-se na cozinha. Descalça, com a saia levantada até ao joelho, uma
toalha na cabeça, os braços arregaçados, viam-na passar de carreira, de casa
para a bica e da bica outra vez para casa, carregando pesados baldes cheios
de água. E daí a pouco apareciam ajudantes gratuitos para os arranjos do
jantar, tanto do lado da das Dores, como do lado da Rita Baiana. O Albino
encarregou-se de varrer e arrumar a casa desta, entretanto que a mulata ia
para o fogão preparar os seus quitutes do Norte. E veio a Florinda, e veio a
Leocádia, e veio a Augusta, impacientes todas elas pelo pagode que havia de
sair à noite, depois do jantar. Pombinha não apareceu durante o dia, porque
estava muito ocupada, aviando a correspondência dos trabalhadores e das
lavadeiras: serviço este que ela deixava para os domingos.
Numa pequena mesa, coberta por um pedaço de chita, com o tinteiro ao
lado da caixinha de papel, a menina escrevia, enquanto o dono ou dona da
carta ditava em voz alta o que queria mandar dizer à família ou a algum mau
devedor de roupa lavada. E ia lançando tudo no papel, apenas com algumas
ligeiras modificações, para melhor, no modo de exprimir a ideia. Pronta uma
carta, sobrescritava-a, entregava-a ao dono e chamava por outro, ficando
a sós com um de cada vez, pois que nenhum deles queria dar o seu recado
em presença de mais ninguém senão de Pombinha. De sorte que a pobre
rapariga ia acumulando no seu coração de donzela toda a súmula daquelas
paixões e daqueles ressentimentos, às vezes mais fétidos do que a evapo-
ração de um lameiro em dias de grande calor.
— Escreva lá, Nhã Pombinha! disse junto dela um cavouqueiro, coçando
a cabeça; mas faça letra grande, que é pra mulher entender! Diga-lhe que
não mando desta feita o dinheiro que me pediu, porque agora não o tenho e
estou muito acossado de apertos; mas que lho prometo pro mês. Ela que se
vá arranjando por lá, que eu cá sabe Deus como me coço; e que, se o Luís,
o irmão, resolver de vir, que mo mande dizer com tempo, para ver se se lhe
dá furo à vida por aqui; que isto de vir sem inda ter p’ronde, é fraco negócio,
porque as coisas por cá não correm lá para que digamos!
E depois que a Pombinha escreveu, acrescentou:
— Que eu tenho sentido muito a sua falta dela; mas também sou o
mesmo e não me meto em porcarias e relaxamento; e que tenciono mandar
buscá-la, logo que Deus me ajude, e a Virgem! Que ela não tem de que se
arreliar por mor do dinheiro não ir desta; que, como lá diz o outro: quando não

ALUÍSIO AZEVEDO • 65 •
há el-rei o perde! Ah! (ia esquecendo!) Quanto à Libânia, é tirar daí o juízo!
Que a Libânia se atirou aos cães e faz hoje má vida na Rua de São Jorge; que
se esqueça dela por vez e perca o amor às duas coroas que lhe emprestou!
E a menina escrevia tudo, tudo, apenas interrompendo o seu trabalho
para fitar, com a mão no queixo, o cavouqueiro, à espera de nova frase.

VII
E assim ia correndo o domingo no cortiço até às três da tarde, horas em
que chegou mestre Firmo, acompanhado pelo seu amigo Porfiro, trazendo
aquele o violão e o outro o cavaquinho.
Firmo, o atual amante de Rita Baiana, era um mulato pachola, delgado
de corpo e ágil como um cabrito; capadócio de marca, pernóstico, só de
maçadas, e todo ele se quebrando nos seus movimentos de capoeira. Teria
seus trinta e tantos anos, mas não parecia ter mais de vinte e poucos. Pernas
e braços finos, pescoço estreito, porém forte; não tinha músculos, tinha
nervos. A respeito de barba, nada mais que um bigodinho crespo, petulante,
onde reluzia cheirosa a brilhantina do barbeiro; grande cabeleira encara-
colada, negra, e bem negra, dividida ao meio da cabeça, escondendo parte
da testa e estufando em grande gaforina por debaixo da aba do chapéu de
palha, que ele punha de banda, derreado sobre a orelha esquerda.
Vestia, como de costume, um paletó de lustrina preta já bastante usado,
calças apertadas nos joelhos, mas tão largas na bainha que lhe engoliam os
pezinhos secos e ligeiros. Não trazia gravata, nem colete, sim uma camisa
de chita nova e ao pescoço, resguardando o colarinho, um lenço alvo e per-
fumado; à boca um enorme charuto de dois vinténs e na mão um grosso
porrete de Petrópolis, que nunca sossegava, tantas voltas lhe dava ele a um
tempo por entre os dedos magros e nervosos.
Era oficial de torneiro, oficial perito e vadio; ganhava uma semana para
gastar num dia; às vezes, porém, os dados ou a roleta multiplicavam-lhe o
dinheiro, e então ele fazia como naqueles últimos três meses: afogava-se
numa boa pândega com a Rita Baiana. A Rita ou outra. “O que não faltava
por aí eram saias para ajudar um homem a cuspir o cobre na boca do diabo!”
Nascera no Rio de Janeiro, na Corte; militara dos doze aos vinte anos em

• 66 • O CORTIÇO
diversas maltas de capoeiras; chegara a decidir eleições nos tempos do voto
indireto. Deixou nome em várias freguesias e mereceu abraços, presentes e
palavras de gratidão de alguns importantes chefes de partido. Chamava a
isso a sua época de paixão política; mas depois desgostou-se com o sistema
de governo e renunciou às lutas eleitorais, pois não conseguira nunca o lugar
de contínuo numa repartição pública — o seu ideal! —Setenta mil-réis men-
sais: trabalho das nove às três.
Aquela amigação com a Rita Baiana era uma coisa muito complicada
e vinha de longe; vinha do tempo em que ela ainda estava chegadinha de
fresco da Bahia, em companhia da mãe, uma cafuza dura, capaz de arrancar
as tripas ao Manduca da Praia. A cafuza morreu e o Firmo tomou conta da
mulata; mas pouco depois se separaram por ciúmes, o que aliás não impediu
que se tornassem a unir mais tarde, e que de novo brigassem e de novo se
procurassem. Ele tinha “paixa” pela Rita, e ela, apesar de volúvel como toda
a mestiça, não podia esquecê-lo por uma vez; metia-se com outros, é certo,
de quando em quando, e o Firmo então pintava o caneco, dava por paus e
por pedras, enchia-a de bofetadas, mas, afinal, ia procurá-la, ou ela a ele, e
ferravam-se de novo, cada vez mais ardentes, como se aquelas turras cons-
tantes reforçassem o combustível dos seus amores.
O amigo que Firmo trazia aquele domingo em sua companhia, o Porfiro,
era mais velho do que ele e mais escuro. Tinha o cabelo encarapinhado.
Tipógrafo. Afinavam-se muito os dois tipos com as suas calças de boca larga
e com os seus chapéus ao lado; mas o Porfiro tinha outra linha: não dispen-
sava a sua gravata de cor saltando em laço frouxo sobre o peito da camisa;
fazia questão da sua bengalinha com cabeça de prata e da sua piteira de
âmbar e espuma, em que ele equilibrava um cigarro de palha.
Desde a entrada dos dois, a casa de Rita esquentou. Ambos tiraram os
paletós e mandaram vir parati, “a abrideira para muqueca baiana”. E não
tardou que se ouvissem gemer o cavaquinho e o violão.
Ao lado chegava também o homem da das Dores, com um companheiro
do comércio; vinham vestidos de fraque e chapéu alto. A Machona, Neném
e o Agostinho, já de volta do seu passeio à cidade, lá estavam ajudando.
Ficariam para o rega-bofe.
Um rumor quente, de dia de festa, ia-se formando naquele ponto da
estalagem.

ALUÍSIO AZEVEDO • 67 •
Tanto numa casa, como na outra, o jantar seria às cinco horas. Rita
“botou” vestido branco, de cambraia, encanudado a ferro. Leocádia, Augusta,
o Bruno, o Alexandre e o Albino jantariam com ela no número 9; e no
número 8, com a das Dores, ficariam, além dos parentes desta, Dona Isabel,
Pombinha, Marciana e Florinda.
Jerônimo e sua mulher foram convidados para ambas as mesas, mas não
aceitaram o convite para nenhuma, dispostos a passar a tarde ao lado um
do outro, tranquilamente como sempre, comendo em boa paz o seu cozido à
moda da terra e bebendo o seu quartilho de verde pela mesma infusa.
Entretanto, os dois jantares vizinhos principiaram ruidosos logo desde a
sopa e assanharam-se progressivamente.
Meia hora depois vinha das duas casas uma algazarra infernal. Falavam
e riam todos ao mesmo tempo; tilintavam os talheres e os copos. Cá de fora
sentia-se perfeitamente o prazer que aquela gente punha em comer e beber
à farta, com a boca cheia, os beiços envernizados de molho gordo. Alguns
cães rosnavam à porta, roendo os ossos que traziam lá de dentro. De vez em
quando, da janela de uma das casas aparecia uma das moradoras, chamando
a vizinha, para entregar um prato cheio, permutando as duas entre si os qui-
tutes e as petisqueiras em que eram mais peritas.
— Olha! gritava a das Dores para o número 9, diz à Rita que prove deste
zorô, pra ver que tal o acha, e que o vatapá estava muito gostoso! Se ela tem
pimentas, que me mande algumas!
Do meio para o fim do jantar o barulho em ambas as casas era medonho.
No número 8 berravam-se brindes e cantos desafinados. O português amigo
da das Dores, já desengravatado e com os braços à mostra, vermelho, lus-
troso de suor, intumescido de vinho virgem e leitão de forno, repotreava-se
na sua cadeira, a rir forte, sem calar a boca, com a camisa a espipar-lhe pela
braguilha aberta. O sujeito que a acompanhara fazia fosquinhas a Neném,
protegido no seu namoro por toda a roda, desde a respeitável Machona
até ao endemoninhado Agostinho, que não ficava quieto um instante, nem
deixava sossegar a mãe, gritando um contra o outro como dois possessos.
Florinda, sempre muito risonha e esperta, divertia-se a valer e, de vez em
quando, levantava-se da mesa, para ir de carreira levar lá fora ao número 12
um prato de comida à sua velha que, à última hora, vindo-lhe o aborreci-
mento, resolvera não ir ao jantar. À sobremesa o esfogueado amigo da dona

• 68 • O CORTIÇO
da casa exigiu que a amante se lhe assentasse nas coxas e dava-lhe beijos
em presença de toda a companhia, o que fez com que Dona Isabel, impa-
ciente por afastar a filha daquele inferno, declarasse que sentia muito calor
e que ia lá para a porta esperar mais à fresca o café.
Em casa de Rita Baiana a animação era inda maior. Firmo e Porfiro
faziam o diabo, cantando, tocando bestialógicos, arremedando a fala dos
pretos cassanges. Aquele não largava a cintura da mulata e só bebia no
mesmo copo com ela; o outro divertia-se a perseguir o Albino, galanteando-o
afetadamente, para fazer rir à sociedade. O lavadeiro indignava-se, dava o
cavaco. Leocádia, a quem o vinho produzira delírios de hilaridade, torcia-se
em gargalhadas, tão fortes e sacudidas que desconjuntavam a cadeira em
que ela estava; e, muito lubrificada pela bebedeira, punha os pesados pés
sobre os de Porfiro, roçando as pernas contra as dele e deixando-se apalpar
pelo capadócio. O Bruno, defronte dela, rubro e suado como se estivesse a
trabalhar na forja, falava e gesticulava sem se levantar, praguejando nin-
guém sabia contra quem. O Alexandre, à paisana, assentado ao lado da
mulher, conservava quase toda a sua seriedade e pedia que não fizessem
tanto barulho porque podiam ouvir da rua. E notou, em voz misteriosa, que o
Miranda tinha vindo já espiar por várias vezes da janela do sobrado.
— Que espie as vezes que quiser! bradou a Rita. Pois então a gente
não é senhora de estar um domingo em casa a seu gosto e com os amigos
que entender?!... Que vá pro diabo que o lixe! Eu não como nem bebo do
que é dele!
Os dois mulatos e o Bruno também eram da mesma opinião. “Pois então!
Desde que se não ofendia, nem prejudicava a safardana nenhum com aquele
divertimento, não havia de que falar!”
— E que não entiquem muito, ameaçou o Firmo, que comigo é nove!
E o trunfo é paus!
O Porfiro exclamou:
— Se se incomodam com a gente... Os incomodados são os que se
mudam! Ora pistolas!
— O domingo fez-se pra gozar!... resmungou o Bruno, deixando cair a
cabeça nos braços cruzados sobre a mesa.
Mas ergueu-se logo, cambaleando, e acrescentou, despindo o braço
direito até o ombro:

ALUÍSIO AZEVEDO • 69 •
— Eles que se façam finos, que os racho!
O Alexandre procurou acalmá-lo, dando-lhe um charuto.
Em uma outra casinha do cortiço acabava de estalar uma nova sobre-
mesa, engrossando o barulho geral: era o jantar de um grupo de italianos
mascates, onde o Delporto, o Pompeo, o Francesco e o Andréa represen-
tavam as principais figuras. Todos eles cantavam em coro, mais afinados que
nas outras duas casas; quase, porém, que se lhes não podia ouvir as vozes,
tantas e tão estrondosas eram as pragas que soltavam ao mesmo tempo.
De quando em quando, de entre o grosso e macho vozear dos homens,
esguichava um falsete feminino, tão estridente que provocava réplica aos
papagaios e aos perus da vizinhança. E, daqui e dali, iam rebentando novas
algazarras em grupos formados cá e lá pela estalagem. Havia nos operários
e nos trabalhadores decidida disposição para pandegar, para aproveitar bem,
até ao fim, aquele dia de folga. A casa de pasto fermentava revolucionada,
como um estômago de bêbedo depois de grande bródio, e arrotava sobre o
pátio uma baforada quente e ruidosa que entontecia.
O Miranda apareceu furioso à janela, com o seu tipo de comendador, a
barriga empinada para a frente, de paletó branco, um guardanapo ao pes-
coço e um trinchante empunhado na destra, como uma espada.
— Vão gritar pra o inferno, com um milhão de raios! berrou ele, amea-
çando para baixo. Isto também já é demais! Se não se calam, vou daqui
direito chamar a polícia! Súcia de brutos!
Com os berros do Miranda muita gente chegou à porta de casa, e o coro
de gargalhadas, que ninguém podia conter naquele momento de alegria,
ainda mais o pôs fora de si.
— Ah, canalhas! O que eu devia fazer era atirar-lhes daqui, como a cães
danados!
Uma vaia uníssona ecoou em todo o pátio da estalagem, enquanto em
volta do negociante surgiam várias pessoas, puxando-o para dentro de casa.
— Que é isso, Miranda! Então! Estás agora a dar palha?...
— O que eles querem é que encordoes!...
— Saia daí, papai!
— Olhe alguma pedrada, esta gente é capaz de tudo!
E via-se de relance Dona Estela, com a sua palidez de flor meia fanada, e
Zulmira, lívida, um ar de fastio a fazê-la feia, e o Henriquinho, cada vez mais

• 70 • O CORTIÇO
bonito, e o velho Botelho, indiferente, a olhar para toda esta porcaria do
mundo com o profundo desprezo dos que já não esperam nada dos outros,
nem de si próprios.
— Canalhas! repisava o Miranda.
O Alexandre, que fora de carreira enfiar a sua farda, apresentou-se
então e disse ao negociante que não era prudente atirar insultos cá pra
baixo. Ninguém o tinha provocado! Se os moradores da estalagem jantavam
em companhia de amigos, lá em cima o Miranda também estava comendo
com os seus convidados! Era mau insultar, porque palavra puxa palavra, e,
em caso de ter de depor na polícia, ele, Alexandre, deporia a favor de quem
tivesse razão!...
— Fomente-se! respondeu o negociante, voltando-lhe as costas.
— Já se viu chubregas mais atrevido?! exclamou Firmo, que até aí estivera
calado, à porta da Rita, com as mãos nas cadeiras, a fitar provocadoramente
o Miranda.
E gritando mais alto, para ser bem ouvido:
— Facilita muito, meu boi manso, que te escorvo os galhos na primeira
ocasião!
O Miranda foi arrancado com violência da janela, e esta fechada logo
em seguida com estrondo.
— Deixa lá esse labrego! resmungou Porfiro, tomando o amigo pelo
braço e fazendo-o recolher-se à casa da mulata. Vamos ao café, é o que é,
antes que esfrie!
Defronte da porta de Rita tinham vindo postar-se diversos moradores
do cortiço, jornaleiros de baixo salário, pobre gente miserável, que mal
podia matar a fome com o que ganhava. Ainda assim não havia entre eles
um só triste. A mulata convidou-os logo a comer um bocado e beber um
trago. A proposta foi aceita alegremente.
E a casa dela nunca se esvaziava.
Anoitecia já.
O velho Libório, que jamais ninguém sabia ao certo onde almoçava ou
jantava, surgiu do seu buraco, que nem jabuti quando vê chuva.
Um tipão, o velho Libório! Ocupava o pior canto do cortiço e andava
sempre a fariscar os sobejos alheios, filando aqui, filando ali, pedindo a um
e a outro, como um mendigo, chorando misérias eternamente, apanhando

ALUÍSIO AZEVEDO • 71 •
pontas de cigarro para fumar no cachimbo, cachimbo que o sumítico roubara
de um pobre cego decrépito. Na estalagem diziam todavia que Libório tinha
dinheiro aferrolhado, contra o que ele protestava ressentido, jurando a sua
extrema penúria. E era tão feroz o demônio naquela fome de cão sem dono,
que as mães recomendavam às suas crianças todo o cuidado com ele, porque
o diabo do velho, quando via algum pequeno desacompanhado, punha-se
logo a rondá-lo, a cercá-lo de festas e a fazer-lhe ratices para o engabelar,
até conseguir furtar-lhe o doce ou o vintenzinho que o pobrezito trazia
fechado na mão.
Rita fê-lo entrar e deu-lhe de comer e de beber; mas sob condição de
que o esfomeado não se socasse demais, para não rebentar ali mesmo.
Se queria estourar, fosse estourar para longe!
Ele pôs-se logo a devorar, sofregamente, olhando inquieto para os
lados, como se temesse que alguém lhe roubasse a comida da boca. Engolia
sem mastigar, empurrando os bocados com os dedos, agarrando-se ao prato
e escondendo nas algibeiras o que não podia de uma só vez meter para
dentro do corpo.
Causava terror aquela sua implacável mandíbula, assanhada e devo-
radora; aquele enorme queixo, ávido, ossudo e sem um dente, que parecia
ir engolir tudo, tudo, principiando pela própria cara, desde a imensa batata
vermelha que ameaçava já entrar-lhe na boca, até as duas bochechinhas
engelhadas, os olhos, as orelhas, a cabeça inteira, inclusive a sua grande
calva, lisa como um queijo e guarnecida em redor por uns pelos puídos e
ralos como farripas de coco.
Firmo propôs embebedá-lo, só para ver a sorte que ele daria. O Alexandre
e a mulher opuseram-se, mas rindo muito; nem se podia deixar de rir, apesar
do espanto, vendo aquele resto de gente, aquele esqueleto velho, coberto
por uma pele seca, a devorar, a devorar sem tréguas, como se quisesse fazer
provisão para uma outra vida.
De repente, um pedaço de carne, grande demais para ser ingerido de
uma vez, engasgou-o seriamente. Libório começou a tossir, aflito, com os
olhos sumidos, a cara tingida de uma vermelhidão apoplética. A Leocádia,
que era quem lhe ficava mais perto, soltou-lhe um murro nas costas.
O glutão arremessou sobre a toalha da mesa o bocado de carne já meio
triturado.

• 72 • O CORTIÇO
Foi um nojo geral.
— Porco! gritou Rita, arredando-se.
— Pois se o bruto quer socar tudo ao mesmo tempo! disse Porfiro. Parece
que nunca viu comida, este animal!
E notando que ele continuava ainda mais sôfrego por ter perdido um
instante:
— Espere um pouco, lobo! Que diabo! A comida não foge! Há muito aí
com que te fartares por uma vez! Com efeito!
— Beba água, tio Libório! aconselhou Augusta.
E, boa, foi buscar um copo de água e levou-lho à boca.
O velho bebeu, sem despregar os olhos do prato.
Arre diabo! resmungou Porfiro, cuspindo para o lado. Este é mesmo
capaz de comer-nos a todos nós, sem achar espinhas!
Albino, esse, coitado! É que não comia quase nada e o pouco que conse-
guia meter no estômago fazia-lhe mal.
Rita, para bolir com ele, disse que semelhante fastio era gravidez com
certeza.
— Você já começa, hein?... balbuciou o pobre moço, esgueirando-se com
a sua xícara de café.
— Olha, cuidado! gritou-lhe a mulata. Pouco café, que faz mal ao leite,
e a criança pode sair trigueira!
O Albino voltou para dizer muito sério à Rita que não gostava dessas
brincadeiras.
Alexandre, que havia acendido um charuto, depois de oferecer outros,
galantemente, aos companheiros, arriscou, para também fazer a sua pilhéria,
que o sonso do Albino fora pilhado às voltas com a Bruxa no capinzal dos
fundos da estalagem, debaixo das mangueiras.
Só a Leocádia achou graça nisto e riu a bandeiras despregadas. Albino
declarou, quase chorando, que ele não mexia com pessoa alguma, e que
ninguém, por conseguinte, devia mexer com ele.
— Mas afinal, perguntou Porfiro, é mesmo exato que este pamonha não
conhece mulher?...
— Ele é quem pode responder! acudiu a mulata. E esta história vai ficar
hoje liquidada! Vamos lá, ó Albino! Confessa-nos tudo, ou mal te terás de
haver com a gente!

ALUÍSIO AZEVEDO • 73 •
— Se eu soubesse que era para isto que me chamaram não tinha vindo
cá, sabe? gaguejou o lavadeiro, amuado. Eu não sirvo de palito!
E ter-se-ia retirado chorando, se a Rita não lhe cortasse a saída, dizendo,
como se falasse a uma criatura do seu sexo, mais fraca do que ela:
— Ora não sejas tolo! Deixa-te ficar aí! Se deres o cavaco é pior!
Albino limpou as lágrimas e foi sentar-se de novo.
Entretanto, a noite fechava-se, refrescando a tarde com o sudoeste.
Bruno roncava no lugar em que tinha jantado. A Leocádia passara livremente
a perna para cima da de Porfiro, que a abraçava, bebendo parati aos cálices.
Mas o Firmo lembrou que seria melhor irem lá para fora; e todos, menos
o Bruno, dispuseram-se a deixar a sala, enquanto o velho Libório pedia a
Alexandre um cigarro para despejar no cachimbo. Servido, o filante desa-
pareceu logo, correndo ao faro de outros jantares. Rita, Augusta e Albino
ficaram lavando a louça e arrumando a casa.
Lá fora o coro dos italianos se prolongava numa cadência monótona
e arrastada, em que havia muito peso de embriaguez. Junto à porta de
várias casas faziam-se grupos de pessoas assentadas em cadeiras ou no
chão; mas a roda da Rita Baiana era a maior, porque fora engrossada pelos
convivas da das Dores. O fumo dos cachimbos e dos charutos elevava-se
de toda a parte. Decrescera o ruído geral; fazia-se a digestão; já ninguém
discutia e todos conversavam.
Acendeu-se o lampião do pátio. Iluminaram-se diversas janelas das
casinhas.
Agora, no sobrado do Miranda é que era o maior barulho. Saia de lá
uma terrível gritaria de hipes e hurras, virgulada pelo desarrolhar de gar-
rafas de champanha.
— Como eles atacam!... observou Alexandre, já de novo sem farda.
— E, no entanto, reprovam que a gente coma o que é seu com um pouco
mais de alegria! comentou a Rita. Uma súcia!
Falou-se então largamente a respeito da família do Miranda, princi-
palmente de Dona Estela e do Henrique. A Leocádia afiançou que, numa
ocasião, espiando por cima do muro, trepada num montão de garrafas vazias
que havia no pátio do cortiço, vira a sirigaita com a cara agarrada à do estu-
dante, aos beijos e aos abraços, que era obra; e assim que os dois deram fé
que ela os espreitava, deitaram a fugir que nem cães apedrejados.

• 74 • O CORTIÇO
A Augusta Carne-Mole benzeu-se, com uma invocação à Virgem
Santíssima, e o companheiro do amigo da das Dores, que insistia no seu
namoro com a Neném, mostrou-se muito admirado com a notícia, “supunha
Dona Estela um modelo de seriedade”.
— Qual! negou Alexandre. Isso por aí é tudo uma pouca-vergonha, que
faz descrer um homem de si mesmo! Eu também já vi de uma feita bem
boas coisas pela sombra dela na parede; mas não era com o estudante, era
com um sujeito que lá ia às vezes, um barbado, careca e comido de bexigas.
E a pequena vai pelo mesmo conseguinte...
Esta novidade produziu grande surpresa no grupo inteiro. Quiseram os
pormenores e o Alexandre não se fez de rogado: o namoro da Zulmira era
com um rapazola magro, de lunetas, bigode louro, bem vestido, que lhe ron-
dava a casa à noite e às vezes de madrugada. Parecia estudante!
— O que eles têm feito? inquiriu a das Dores.
— Por enquanto a coisa não passa de namorico da janela para a rua.
Conversam sempre naquela última do lado de lá de fora. Já os tenho apre-
ciado quando estou de serviço. Ele fala muito em casamento e a pequena o
quer; mas, pelo jeito, o velho é que lhe corta as asas.
— Ele não tem entrada na casa?
— Não! Pois isso é que eu acho feio...! Se ele quer casar com a menina,
devia entender-se com a família e não estar agora daqui debaixo a fazer-lhe
fosquinhas!
— Sim, intrometeu-se o Firmo; mas não vê que aquele mesmo, o
Miranda, vai dar a filha a um estudante! Guarda-a para um dos seus... Quem
sabe até se o bruto não tem já de olho por aí algum cafezista pé de boi!...
Eu sei o que é essa gente!
— Por isso é que se vê tanta porcaria por esse mundo de Cristo! disse
a Augusta. Filha minha só se casará com quem ela bem quiser; que isto
de casamentos empurrados à força acabam sempre desgraçando tanto a
mulher como o homem! Meu marido é pobre e é de cor, mas eu sou feliz,
porque casei por meu gosto!
— Ora! Mais vale um gosto que quatro vinténs!
Nisto começou a gemer à porta do 35 uma guitarra; era de Jerônimo.
Depois da ruidosa alegria e do bom humor, em que palpitara àquela tarde

ALUÍSIO AZEVEDO • 75 •
toda a república do cortiço, ela parecia ainda mais triste e mais saudosa do
que nunca:

“Minha vida tem desgostos,


Que só eu sei compreender...
Quando me lembro da terra
Parece que vou morrer...”

E, com o exemplo da primeira, novas guitarras foram acordando. E, por


fim, a monótona cantiga dos portugueses enchia de uma alma desconsolada
o vasto arraial da estalagem, contrastando com a barulhenta alacridade que
vinha lá de cima, do sobrado do Miranda.

“Terra minha, que te adoro,


Quando é que eu te torno a ver?
Leva-me deste desterro;
Basta já de padecer.”

Abatidos pelo fadinho harmonioso e nostálgico dos desterrados, iam


todos, até mesmo os brasileiros, se concentrando e caindo em tristeza; mas,
de repente, o cavaquinho do Porfiro, acompanhado pelo violão do Firmo,
romperam vibrantemente com um chorado baiano. Nada mais que os pri-
meiros acordes da música crioula para que o sangue de toda aquela gente
despertasse logo, como se alguém lhe fustigasse o corpo com urtigas bravas.
E seguiram-se outras notas, e outras, cada vez mais ardentes e mais deli-
rantes. Já não eram dois instrumentos que soavam, eram lúbricos gemidos
e suspiros soltos em torrente, a correrem serpenteando, como cobras numa
floresta incendiada; eram ais convulsos, chorados em frenesi de amor;
música feita de beijos e soluços gostosos; carícia de fera, carícia de doer,
fazendo estalar de gozo.
E aquela música de fogo doidejava no ar como um aroma quente de
plantas brasileiras, em torno das quais se nutrem, girando, moscardos sen-
suais e besouros venenosos, freneticamente, bêbedos do delicioso perfume
que os mata de volúpia.
E à viva crepitação da música baiana calaram-se as melancólicas toadas
dos de além-mar. Assim à refulgente luz dos trópicos amortece a fresca

• 76 • O CORTIÇO
e doce claridade dos céus da Europa, como se o próprio sol americano,
vermelho e esbraseado, viesse, na sua luxúria de sultão, beber a lágrima
medrosa da decaída rainha dos mares velhos.
Jerônimo alheou-se de sua guitarra e ficou com as mãos esquecidas
sobre as cordas, todo atento para aquela música estranha, que vinha dentro
dele continuar uma revolução começada desde a primeira vez em que lhe
bateu em cheio no rosto, como uma bofetada de desafio, a luz deste sol orgu-
lhoso e selvagem, e lhe cantou no ouvido o estribilho da primeira cigarra,
e lhe acidulou a garganta o suco da primeira fruta provada nestas terras de
brasa, e lhe entonteceu a alma o aroma do primeiro bogari, e lhe transtornou
o sangue o cheiro animal da primeira mulher, da primeira mestiça, que junto
dele sacudiu as saias e os cabelos.
— Que tens tu, Jeromo?... perguntou-lhe a companheira, estranhando-o.
— Espera, respondeu ele, em voz baixa: deixa ouvir!
Firmo principiava a cantar o chorado, seguido por um acompanhamento
de palmas.
Jerônimo levantou-se, quase que maquinalmente, e seguido por
Piedade, aproximou-se da grande roda que se formara em torno dos dois
mulatos. Aí, de queixo grudado às costas das mãos contra uma cerca de
jardim, permaneceu, sem tugir nem mugir, entregue de corpo e alma àquela
cantiga sedutora e voluptuosa que o enleava e tolhia, como à robusta game-
leira brava o cipó flexível, carinhoso e traiçoeiro.
E viu a Rita Baiana, que fora trocar o vestido por uma saia, surgir de ombros
e braços nus, para dançar. A lua destoldara-se nesse momento, envolvendo-a
na sua coma de prata, a cujo refulgir os meneios da mestiça melhor se acen-
tuavam, cheios de uma graça irresistível, simples, primitiva, feita toda de
pecado, toda de paraíso, com muito de serpente e muito de mulher.
Ela saltou em meio da roda, com os braços na cintura, rebolando as
ilhargas e bamboleando a cabeça, ora para a esquerda, ora para a direita,
como numa sofreguidão de gozo carnal, num requebrado luxurioso que a
punha ofegante; já correndo de barriga empinada; já recuando de braços
estendidos, a tremer toda, como se se fosse afundando num prazer grosso
que nem azeite, em que se não toma pé e nunca se encontra fundo. Depois,
como se voltasse à vida, soltava um gemido prolongado, estalando os dedos
no ar e vergando as pernas, descendo, subindo, sem nunca parar com os

ALUÍSIO AZEVEDO • 77 •
quadris, e em seguida sapateava, miúdo e cerrado, freneticamente, erguendo
e abaixando os braços, que dobrava, ora um, ora outro, sobre a nuca,
enquanto a carne lhe fervia toda, fibra por fibra, titilando.
Em torno o entusiasmo tocava ao delírio; um grito de aplausos
explodia de vez em quando, rubro e quente como deve ser um grito saído
do sangue. E as palmas insistiam, cadentes, certas, num ritmo nervoso, numa
persistência de loucura. E, arrastado por ela, pulou à arena o Firmo, ágil,
de borracha, a fazer coisas fantásticas com as pernas, a derreter-se todo, a
sumir-se no chão, a ressurgir inteiro com um pulo, os pés no espaço, batendo
os calcanhares, os braços a querer fugirem-lhe dos ombros, a cabeça a querer
saltar-lhe. E depois, surgiu também a Florinda, e logo o Albino e até, quem
diria! o grave e circunspecto Alexandre.
O chorado arrastava-os a todos, despoticamente, desesperando aos que
não sabiam dançar. Mas, ninguém como a Rita; só ela, só aquele demônio,
tinha o mágico segredo daqueles movimentos de cobra amaldiçoada; aqueles
requebros que não podiam ser sem o cheiro que a mulata soltava de si e sem
aquela voz doce, quebrada, harmoniosa, arrogante, meiga e suplicante.
E Jerônimo via e escutava, sentindo ir-se-lhe toda a alma pelos olhos
enamorados.
Naquela mulata estava o grande mistério, a síntese das impressões
que ele recebeu chegando aqui: ela era a luz ardente do meio-dia; ela era
o calor vermelho das sestas da fazenda; era o aroma quente dos trevos e
das baunilhas, que o atordoara nas matas brasileiras; era a palmeira vir-
ginal e esquiva que se não torce a nenhuma outra planta; era o veneno e
era o açúcar gostoso; era o sapoti mais doce que o mel e era a castanha
do caju, que abre feridas com o seu azeite de fogo; ela era a cobra verde e
traiçoeira, a lagarta viscosa, a muriçoca doida, que esvoaçava havia muito
tempo em torno do corpo dele, assanhando-lhe os desejos, acordando-lhe
as fibras embambecidas pela saudade da terra, picando-lhe as artérias, para
lhe cuspir dentro do sangue uma centelha daquele amor setentrional, uma
nota daquela música feita de gemidos de prazer, uma larva daquela nuvem
de cantáridas que zumbiam em torno da Rita Baiana e espalhavam-se pelo
ar numa fosforescência afrodisíaca.
Isto era o que Jerônimo sentia, mas o que o tonto não podia conceber.
De todas as impressões daquele resto de domingo só lhe ficou no espírito

• 78 • O CORTIÇO
o entorpecimento de uma desconhecida embriaguez, não de vinho, mas de
mel chuchurreado no cálice de flores americanas, dessas muito alvas, chei-
rosas e úmidas, que ele na fazenda via debruçadas confidencialmente sobre
os limosos pântanos sombrios, onde as oiticicas trescalam um aroma que
entristece de saudade.
E deixava-se ficar, olhando. Outras raparigas dançaram, mas o portu-
guês só via a mulata, mesmo quando, prostrada, fora cair nos braços do
amigo. Piedade, a cabecear de sono, chamara-o várias vezes para se reco-
lherem; ele respondeu com um resmungo e não deu pela retirada da mulher.
Passaram-se horas, e ele também não deu pelas horas que fugiram.
O círculo do pagode aumentou: vieram de lá defronte a Isaura e a Leonor,
o João Romão e a Bertoleza, desembaraçados da sua faina, quiseram dar fé
da patuscada um instante antes de caírem na cama; a família do Miranda
pusera-se à janela, divertindo-se com a gentalha da estalagem; reunira povo
lá fora na rua; mas Jerônimo nada vira de tudo isso; nada vira senão uma
coisa, que lhe persistia no espírito: a mulata ofegante a resvalar voluptuosa-
mente nos braços do Firmo.
Só deu por si, quando, já pela madrugada, se calaram de todo os instru-
mentos e cada um dos folgadores se recolheu à casa.
E viu a Rita levada para o quarto pelo seu homem, que a arrastava pela
cintura.
Jerônimo ficou sozinho no meio da estalagem. A lua, agora inteira-
mente livre das nuvens que a perseguiam, lá ia caminhando em silêncio na
sua viagem misteriosa. As janelas do Miranda fecharam-se. A pedreira, ao
longe, por detrás da última parede do cortiço, erguia-se como um monstro
iluminado na sua paz. Uma quietação densa pairava já sobre tudo; só se dis-
tinguiam o bruxulear dos pirilampos na sombra das hortas e dos jardins, e os
murmúrios das árvores que sonhavam.
Mas Jerônimo nada mais sentia, nem ouvia, do que aquela música
embalsamada de baunilha, que lhe entontecera a alma; e compreendeu per-
feitamente que dentro dele aqueles cabelos crespos, brilhantes e cheirosos,
da mulata, principiavam a formar um ninho de cobras negras e venenosas,
que lhe iam devorar o coração.

ALUÍSIO AZEVEDO • 79 •
E, erguendo a cabeça, notou no mesmo céu, que ele nunca vira senão
depois de sete horas de sono, que era já quase ocasião de entrar para o seu
serviço, e resolveu não dormir, porque valia a pena esperar de pé.

VIII
No dia seguinte, Jerônimo largou o trabalho à hora de almoçar e, em
vez de comer lá mesmo na pedreira com os companheiros, foi para casa.
Mal tocou no que a mulher lhe apresentou à mesa e meteu-se logo depois
na cama, ordenando-lhe que fosse ter com João Romão e lhe dissesse que
ele estava incomodado e ficava de descanso aquele dia.
— Que tens tu, Jeromo?...
— Morrinhento, filha... Vai, anda!
— Mas sentes-te mal?
— Ó mulher! Vai fazer o que te disse e ao depois então darás à língua!
— Valha-me a Virgem! Não sei se haverá chá preto na venda!
E ela saiu, aflita. Qualquer novidade no marido, por menor que fosse,
punha-a doida. “Pois um homem rijo, que nunca caía doente? Seria a febre
amarela?... Jesus, Santo Filho de Maria, que nem pensar nisso era bom! Credo!”
A notícia espalhou-se logo ali entre as lavadeiras.
— Foi da friagem da noite, afirmou a Bruxa, e deu um pulo à casa do
trabalhador para receitar.
O doente repeliu-a, pedindo-lhe que o deixasse em paz; que ele do
que precisava era de dormir. Mas não o conseguiu: atrás da Bruxa correu

• 80 • O CORTIÇO
a segunda mulher, e a terceira, e a quarta; e, afinal, fez-se durante muito
tempo em sua casa um entrar e sair de saias. Jerônimo perdeu a paciência
e ia protestar brutalmente contra semelhante invasão, quando, pelo cheiro,
sentiu que a Rita se aproximava também.
— Ah!
E desfranziu-se-lhe o rosto.
— Bons dias! Então que é isso, vizinho? Você caiu doente com a minha
chegada? Se tal soubera não vinha! Ele riu-se. E era a primeira vez que ria
desde a véspera.
A mulata aproximou-se da cama.
Como principiara a trabalhar esse dia, tinha as saias apanhadas na cin-
tura e os braços completamente nus e frios da lavagem. O seu casaquinho
branco abria-lhe no pescoço, mostrando parte do peito cor de canela.
Jerônimo apertou-lhe a mão.
— Gostei de vê-la ontem dançar, disse, muito mais animado.
— Já tomou algum remédio?...
— A mulher falou aí em chá preto...
— Chá! Que asneira! Chá é água morna! Isso que você tem é uma res-
friagem. Vou-lhe fazer uma xícara de café bem forte para você beber com
um gole de parati, e me dirá se sua ou não, e fica depois fino e pronto para
outra! Espera aí!
E saiu logo, deixando todo quarto impregnado dela.
Jerônimo, só com respirar aquele almíscar, parecia melhor. Quando
Piedade tornou, pesada, triste, resmungando consigo mesma, ele sentiu que
principiava a enfará-lo; e, quando a infeliz se aproximou do marido, este, fora
do costume, notou-lhe o cheiro azedo do corpo. Voltou-lhe então o mal-estar
e desapareceu o último vestígio do sorriso que ele tivera havia pouco.
— Mas que sentes tu, Jeromo?... Fala, homem! Não me dizes nada! Assim
m’assustas... Que tens, diz’-lo!
— Não cozas o chá. Vou tomar outra coisa...
— Não queres o chá? Mas é o remédio, filhinho de Deus!
— Já te disse que tomo outra mezinha. Oh!
Piedade não insistiu.
— Queres tu um escalda-pés?...
— Toma-lo tu!

ALUÍSIO AZEVEDO • 81 •
Ela calou-se. Ia a dizer que nunca o vira assim tão áspero e seco, mas
receou importuná-lo. “Era naturalmente a moléstia que o punha rezinguento.”
Jerônimo fechara os olhos, para a não ver, e ter-se-ia, se pudesse, fechado
por dentro, para a não sentir. Ela, porém, coitada! fora assentar-se à beira da
cama, humilde e solícita, a suspirar, vivendo naquele instante, pura e exclu-
sivamente, para o seu homem, fazendo-se muito escrava dele, sem vontade
própria, acompanhando-lhe os menores gestos com o olhar, inquieta, que
nem um cão que, ao lado do dono, procura adivinhar-lhe as intenções.
— ‘Stá bem, filha, não vais tratar do teu serviço?...
— Não te dê isso cuidado! Não parou o trabalho! Pedi à Leocádia que me
esfregasse a roupa. Ela hoje tinha pouco que fazer e...
— Andaste mal...
— Ora! Não há três dias que fiz outro tanto por ela... E demais, não foi
que tivesse o homem doente, era a calaçaria do capinzal!
— Bom, bom, filha! Não digas mal da vida alheia! Melhor seria que esti-
vesses à tua tina em vez de ficar aí a murmurar do próximo... Anda! Vai tomar
conta das tuas obrigações.
— Mas estou-te a dizer que não há transtorno!...
— Transtorno já é estar eu parado; e o pior será pararem os dois!
— Eu queria ficar a teu lado, Jeromo!
— E eu acho que isso é tolice! Vai! Anda!
Ela ia retirar-se, como um animal enxotado, quando deu com a Rita,
que entrava muito ligeira e sacudida, trazendo na mão a fumegante palan-
gana de café com parati e no ombro um cobertor grosso para dar um
suadouro ao doente.
— Ah! fez Piedade, sem encontrar uma palavra para a mulata. E deixou-se
ficar.
Rita, despreocupadamente, alegre e benfazeja como sempre, pousou a
vasilha sobre a cômoda do oratório e abriu o cobertor.
— Isso é que o vai pôr fino! disse. Vocês também, seus portugueses, por
qualquer coisinha ficam logo pra morrer, com uma cara da última hora! E ai,
ai, Jesus, meu Deus! Ora esperte-se! Não me seja maricas!
Ele riu-se assentando-se na cama.

• 82 • O CORTIÇO
— Pois não é assim mesmo? perguntou ela a Piedade, apontando para o
carão barbado de Jerônimo. Olhe só pr’aquela cara e diga-me se não está a
pedir que o enterrem!
A portuguesa não dizia nada, sorria contrafeita, no íntimo, ressentida
contra aquela invasão de uma estranha nos cuidados pelo seu homem. Não
era a inteligência nem a razão o que lhe apontava o perigo, mas o instinto,
o faro sutil e desconfiado de toda a fêmea pelas outras, quando sente o seu
ninho exposto.
— Está-me a parecer que agora te achas melhor, hein?... desembuchou
afinal, procurando o olhar do marido, sem conseguir disfarçar de todo o seu
descontentamento.
— Só com o cheiro! reforçou a mulata, apresentando o café ao doente.
Beba, ande! Beba tudo e abafe-se! Quero, quando voltar logo, encontrá-lo
pronto, ouviu? — E acrescentou, falando à Piedade, em tom mais baixo e
pousando-lhe a mão no ombro carnudo: — Ele daqui a nada deve estar enso-
pado de suor; mude-lhe toda a roupa e dê-lhe dois dedos de parati, logo que
peça água. Cuidado com o vento!
E saiu expedida, agitando as saias, de onde se evolavam eflúvios de
manjerona.
Piedade chegou-se então para o cavouqueiro, que já tinha sobre as
pernas o cobertor oferecido pela Rita, e, ajudando-o a levar a tigela à boca,
resmungou:
— Deus queira que isto não te vá fazer mal em vez de bem!... Nunca
tomas café, nem gostas!...
— Isto não é por gosto, filha, é remédio!
Ele com efeito nunca entrara com o café e ainda menos com a cachaça;
mas engoliu de uma assentada o conteúdo da tigela, puxando em seguida o
cobertor até às ventas.
A mulher tratou de abafar-lhe bem os pés e foi buscar um xale para lhe
cobrir a cabeça.
— Trata de sossegar! Não te mexas!
E dispôs-se a ficar junto da cama, a vigiá-lo, só andando na ponta dos pés,
abafando a respiração, correndo a cada instante à porta de casa para pedir
que não fizessem tanta bulha lá fora; toda ela desassossegada, numa aflição

ALUÍSIO AZEVEDO • 83 •
quase supersticiosa por aquele incômodo de seu homem. Mas Jerônimo não
levou muito que a não chamasse para lhe mudar a roupa. O suor inundava-o.
— Ainda bem! exclamou ela, radiante.
E, depois de fechar hermeticamente a porta do quarto e meter um
punhado de roupa suja numa fresta que havia numa das paredes, sacou-lhe
fora a camisa molhada, enfiando-lhe logo outra pela cabeça; em seguida
tirou-lhe as ceroulas e começou, munida de uma toalha, a enxugar-lhe todo
o corpo, principiando pelas costas, passando depois ao peito e aos sovacos,
descendo logo às nádegas, ao ventre e às pernas, e esfregando sempre com
tamanho vigor de pulso, que era antes uma massagem que lhe dava; e tanto
assim que o sangue do cavouqueiro se revolucionou.
E a mulher, a rir-se, lisonjeada, ralhava:
— Tem juízo! Acomoda-te! Não vês que estás doente?...
Ele não insistiu. Agasalhou-se de novo e pediu água. Piedade foi buscar
o parati.
— Bebe isto, não bebas a água agora.
— Isto é cachaça!
— Foi a Rita que disse para te dar...
Jerônimo não precisou de mais nada para beber de um trago os dois
dedos de restilo que havia no copo.
Sóbrio como era, e depois daquele dispêndio de suor, o álcool
produziu-lhe logo de pronto o efeito voluptuoso e agradável da embriaguez
nos que não são bêbedos: um delicioso desfalecer de todo o corpo; alguma
coisa do longo espreguiçamento que antecede à satisfação dos sexos,
quando a mulher, tendo feito esperar por ela algum tempo, aproxima-se
afinal de nós, numa avidez gulosa de beijos. Agora, no conforto da sua cama,
na doce penumbra do quarto, com a roupa fresca sobre a pele, Jerônimo
sentia-se bem, feliz por ver-se longe da pedreira ardente e do sol cáustico;
ouvindo, de olhos fechados, o ronrom monótono da máquina de massas,
arfando ao longe, e o zunzum das lavadeiras a trabalharem, e, mais distante,
um interminável cantar de galos à porfia, enquanto um dobre de sinos rolava
no ar, tristemente, anunciando um defunto da paróquia.
Quando Piedade chegou lá fora, dando parte do bom resultado do
remédio, a Rita correu de novo ao quarto do doente.
— Então, que me diz agora? Sente-se ou não melhorzinho?

• 84 • O CORTIÇO
Ele voltou para a rapariga o seu olhar de animal prostrado e, por única
resposta, passou-lhe o braço esquerdo na cintura e procurou com a mão
direita segurar a dela. Queria com isto traduzir o seu reconhecimento, e a
mulata assim o entendeu, tanto que consentiu: mal, porém, a sua carne lhe
tocou na carne, um desejo ardente apossou-se dele; uma vontade desenso-
frida de senhorear-se no mesmo instante daquela mulher e possuí-la inteira,
devorá-la num só hausto de luxúria, trincá-la como um caju.
Rita, ao sentir-se empolgar pelo cavouqueiro, escapou-lhe das garras
com um pulo.
— Olhe que peste! Faça-se de tolo, que digo à sua mulher, hein? Ora
vamos lá!
Mas, como a Piedade entrava na salinha ao lado, disfarçou logo, acres-
centando noutro tom:
— Agora é tratar de dormir e mudar de roupa, se suar outra vez. Até
logo! E saiu.
Jerônimo ouviu as suas últimas palavras já de olhos fechados e, quando
Piedade entrou no quarto, parecia sucumbido de fraqueza. A lavadeira
aproximou-se da cama do marido em ponta de pés, puxou-lhe o lençol
mais para cima do peito e afastou-se de novo, abafando os passos. À porta
da entrada a Augusta, que fora fazer uma visita ao enfermo, perguntou-lhe
por este com um gesto interrogativo; Piedade respondeu sem falar, pondo
a mão no rosto e vergando desse lado a cabeça, para exprimir que ele
agora estava dormindo.
As duas saíram para falar à vontade; mas, nessa ocasião, lá fora no pátio
da estalagem, acabava de armar-se um escândalo medonho. Era o caso que
o Henriquinho da casa do Miranda ficava às vezes à janela do sobrado, nas
horas de preguiça, entre o almoço e o jantar, entretido a ver a Leocádia
lavar, seguindo-lhe os movimentos uniformes do grosso quadril e o tremular
das redondas tetas à larga dentro do cabeção de chita. E, quando a pilhava
sozinha, fazia-lhe sinais brejeiros, piscava-lhe o olho, batendo com a mão
direita aberta sobre a mão esquerda fechada. Ela respondia, indicando com o
polegar o interior do sobrado, como se dissesse que fosse procurar a mulher
do dono da casa.
Naquele dia, porém, o estudante apareceu à janela, trazendo nos braços
um coelhinho todo branco, que ele na véspera arrematara num leilão de

ALUÍSIO AZEVEDO • 85 •
festa. Leocádia cobiçou o bichinho e, correndo para o depósito de garrafas
vazias, que ficava por debaixo do sobrado, pediu com muito empenho ao
Henrique que lho desse. Este, sempre com seu sistema de conversar por
mímica, declarou com um gesto qual era a condição da dádiva.
Ela meneou a cabeça afirmativamente, e ele fez-lhe sinal de que o espe-
rasse por detrás do cortiço, no capinzal dos fundos.
A família do Miranda havia saído. Henrique, mesmo com a roupa de
andar em casa e sem chapéu, desceu à rua, ganhou um terreno que existia à
esquerda do sobrado e, com o seu coelho debaixo do braço, atirou-se para o
capinzal. Leocádia esperava por ele debaixo das mangueiras.
— Aqui não! disse ela, logo que o viu chegar. Aqui agora podem dar com
a gente!...
— Então onde?
— Vem cá!
E tomou à sua direita, andando ligeira e meio vergada por entre as
plantas. Henrique seguiu-a no mesmo passo, sempre com o coelho sobra-
çado. O calor fazia-o suar e esfogueava-lhe as faces. Ouvia-se o martelar dos
ferreiros e dos trabalhadores da pedreira.
Depois de alguns minutos, ela parou num lugar plantado de bambus e
bananeiras, onde havia o resto de um telheiro em ruínas.
— Aqui!
E Leocádia olhou para os lados, assegurando-se de que estavam a sós.
Henrique, sem largar o coelho, atirou-se sobre ela, que o conteve:
— Espera! Preciso tirar a saia; está encharcada!
— Não faz mal! segredou ele, impaciente no seu desejo.
— Pode-me vir um corrimento!
E sacou fora a saia de lã grossa, deixando ver duas pernas, que a camisa
a custo só cobria até o joelho, grossas, maciças, de uma brancura levemente
rósea e toda marcada de mordeduras de pulgas e mosquitos.
— Avia-te! Anda! apressou ela, lançando-se de costas ao chão e arrega-
çando a fralda até a cintura; as coxas abertas.
O estudante atirou-se, sôfrego, sentindo-lhe a frescura da sua carne de
lavadeira, mas sem largar as pernas do coelho.
Passou-se um instante de silêncio entre os dois, em que as folhas secas
do chão rangeram e farfalharam.

• 86 • O CORTIÇO
— Olha! pediu ela, faz-me um filho, que eu preciso alugar-me de ama
de leite... Agora estão pagando muito bem as amas! A Augusta Carne-Mole,
nesta última barriga, tomou conta de um pequeno aí na casa de uma família
de tratamento, que lhe dava setenta mil-réis por mês!... E muito bom
passadio!... Sua garrafa de vinho todos os dias!... Se me arranjares um filho
dou-te outra vez o coelho!
E o pobre brutinho, cujas pernas o estudante não largava, começou a
queixar-se dos repelões que recebia cada vez mais acelerados.
— Olha que matas o bichinho! reclamou a lavadeira. Não batas assim
com ele! Mas não o soltes, hein!
Ia dizer ainda alguma coisa, mas acudiu-lhe o espasmo e ela fechou
os olhos e pôs-se a dar com a cabeça de um lado para o outro, rilhando
os dentes.
Nisto, passos rápidos fizeram-se sentir galgando as plantas, na direção
em que os dois estavam; e Henrique, antes de ser visto, lobrigou a certa dis-
tância a insociável figura do Bruno.
Não lhe deu tempo a que se aproximasse; de um salto galgou por
detrás das bananeiras e desapareceu por entre o matagal de bambus, tão
rápido como o coelho que, vendo-se livre, ganhara pela outra banda o
caminho do capinzal.
Quando o ferreiro, logo em seguida, chegou perto da mulher, esta ainda
não tinha acabado de vestir a saia molhada.
— Com quem te esfregavas tu, sua vaca?! bradou ele, a botar os bofes
pela boca. E, antes que ela respondesse, já uma formidável punhada a fazia
rolar por terra.
Leocádia abriu num berreiro. E foi debaixo de uma chuva de bofetadas
e pontapés que acabou de amarrar a roupa.
— Agora eu vi! Sabes! Nega se fores capaz!
— Vá à pata que o pôs! exclamou ela, com a cara que era um tomate.
Já lhe disse que não quero saber de você pra nada, seu bêbedo!
E, vendo que ele ia recomeçar a dança, abaixou-se depressa, segurou
com ambas as mãos um matacão de granito que encontrou a seus pés, e
gritou, erguendo-o sobre a cabeça:
— Chega-te pra cá e verás se te abro aqui mesmo ou não o casco!

ALUÍSIO AZEVEDO • 87 •
O ferreiro compreendeu que ela era capaz de fazer o que dizia e estacou
lívido e ofegante.
— Arme a trouxa e rua! Sabe?
— Olha a desgraça! Tinha de muito assentado de ir! Queria era uma
ocasião! Nem preciso de você pra nada, fique sabendo!
E, para meter-lhe mais raiva, acrescentou, empinando a barriga:
— Já cá está dentro com que hei de ganhar a vida! Alugo-me de ama!
Ou pensará que todos são como você, que nem para fazer um filho serve,
diabo do sem-préstimo?
— Mas não me hás de levar nada de casa! Isso te juro eu, biraia!
— Ah, descanse! Que não levarei nada do que é seu, nem preciso!
— Põe essa pedra no chão!
— Um corno! Eu arrumo-ta na cabeça se te chegas pra cá!
— Sim, sim, sim, contanto que te musques por uma vez!
— Pois então despache o beco!
Ele virou-lhe as costas e tornou lentamente por onde viera, de cabeça
pendida, as mãos nas algibeiras das calças, aparentando agora um soberano
desprezo pelo que se passava.
Só então foi que ela se lembrou do coelho.
— Ora gaitas! disse, endireitando-se e tomando direção contrária à do
marido.
Este fora aí direito ao cortiço narrar, a quem quisesse ouvir, o que se
acabava de dar. O escândalo assanhou a estalagem inteira, como um jato de
água quente sobre um formigueiro. “Ora, aquilo tinha de acontecer mais hoje
mais amanhã! — Um belo dia a casa vinha abaixo! — A Leocádia parecia não
desejar senão isso mesmo!” Mas ninguém atinava com quem diabo pilhara o
Bruno a mulher no capinzal. Fizeram-se mil hipóteses; lembrando-se nomes
e nomes, sem se chegar a nenhum resultado satisfatório. O Albino tentou
logo arranjar a reconciliação do casal, jurando que o Bruno estava enganado
com certeza e que vira mal. “Leocádia era uma excelente rapariga, incapaz
de tamanha safadagem!” O ferreiro tapou-lhe a boca com uma bolacha, e
ninguém mais se meteu a congraçá-los.
Entretanto, o Bruno entrara em casa e lançava pela janela cá para
fora tudo o que ia encontrando pertencente à mulher. Uma cadeira fez-se
pedaços contra as pedras, depois veio um candeeiro de querosene, uma

• 88 • O CORTIÇO
trouxa de roupas, saias e casaquinhos de chita, caixas de chapéus cheias de
trapos, uma gaiola de pássaros, uma chaleira; e tudo era arremessado com
fúria ao meio da área, entre o silêncio comovido dos que assistiam ao des-
pejo. Um chim, que entrara para vender camarões e parara distraído perto
da janela do ferreiro, levou na cabeça com uma bilha da Bahia e berrava
como criança que acaba de ser esbordoada. A Machona, que não podia ouvir
ninguém gritar mais alto do que ela, caiu-lhe em cima aos murros e o pôs
fora do portão com tremenda descompostura. “Era o que faltava que viesse
também aquele salamaleque do inferno para azoinar uma criatura mais do
que já estava!” Dona Isabel, com as mãos cruzadas sobre o ventre, tinha para
aquela destruição um profundo olhar de lástima. Augusta meneava a cabeça
tristemente sem conceber como havia mulheres que procuravam homem,
tendo um que lhes pertencia. A Bruxa, indiferente, não interrompera sequer
o seu trabalho; ao passo que a das Dores, de mãos nas cadeiras, a saia pelo
meio das canelas, um cigarro no canto da boca, encarava desdenhosa a
sanha daquele marido, tão brutal como o dela o fora.
— Sempre os mesmos pedaços de asno!... comentava franzindo o nariz.
Se a tola da mulher só lhes procura agradar e fazer-lhes o gosto, ficam
enjoados, e, se ela não toma a sério a borracheira do casamento, dão por
paus e por pedras, como esta besta! Uma súcia, todos eles!
Florinda ria, como de tudo, e a velha Marciana queixava-se de que lhe
respingaram querosene na roupa estendida ao sol. Nessa ocasião justa-
mente, um saco de café, cheio de borra, deu duas voltas no ar e espalhou
o seu conteúdo, pintalgando de pontos negros os coradouros. Fez-se logo
um alarido entre as lavadeiras. “Aquilo não tinha jeito, que diabo! Armavam
lá as suas turras e os outros é que haviam de aturar?!... Sebo! Que os mais
não estavam dispostos a suportar as fúrias de cada um! Quem parira Mateus
que o embalasse! Se agora, todas as vezes que a Leocádia se fosse espojar
no capinzal, o bruto do marido tinha de sujar daquele modo o trabalho da
gente, ninguém mais poderia ganhar ali a sua vida! Que espiga!” Pombinha
chegara à porta do número 15, dando fé do barulho, com uma costura na
mão, e Neném, toda afogueada do ferro de engomar, perguntava, com um
frouxo riso, se o Bruno ia reformar a mobília da casa. A Rita fingia não ligar
importância ao fato e continuava a lavar à sua tina. “Não faziam tanta festa
ao tal casamento? Pois que aguentassem! Ela estava bem livre de sofrer

ALUÍSIO AZEVEDO • 89 •
uma daquelas!” O velho Libório chegara-se para ver se, no meio da confusão,
apanhava alguma coisa do despejo, e a Machona, notando que o Agostinho
fazia o mesmo, berrou-lhe do lugar em que se achava:
— Sai daí, safado! Toca lá no quer que seja, que te arranco a pele do rabo!
Um irmão do santíssimo entrara na estalagem, com a sua capa encar-
nada, a sua vara de prata em uma das mãos, na outra a salva do dinheiro,
e parara em meio do pátio, suplicando muito fanhoso: “Uma esmola para a
cera do Sacramento!” As mulheres abandonaram por um instante as tinas e
foram beijar devotamente a colombina imagem do Espírito Santo. Pingaram
na salva moedinhas de vintém.
Todavia, o Bruno acabava de despejar o que era da mulher e saía de
novo de casa, dando uma volta feroz à fechadura. Atravessou por entre o
murmurante grupo dos curiosos que permaneciam defronte de sua porta,
mudo, com a cara fechada, jogando os braços, como quem, apesar de ter
feito muito, não satisfizera ainda completamente a sua cólera.
Leocádia apareceu pouco depois e, vendo por terra tudo que era seu,
partido e inutilizado, apoderou-se de fúria e avançou sobre a porta, que
o marido acabava de fechar, arremetendo com as nádegas contra as duas
folhas, que cederam logo, indo ela cair lá dentro de barriga para cima.
Mas ergueu-se, sem fazer caso das risadas que rebentaram cá fora e,
escancarando a janela com arremesso, começou por sua vez a arrasar e a
destruir tudo que ainda encontrara em casa.
Então principiou a verdadeira devastação. E a cada objeto que ela varria
para o pátio, gritava sempre: “Upa! Toma, diabo!”
— Aí vai o relógio! Upa! Toma, diabo!
E o relógio espatifou-se na calçada.
— Aí vai o alguidar!
— Aí vai o jarro!
— Aí vão os copos!
— O cabide!
— O garrafão!
— O bacio!
Um riso geral, comunicativo, absoluto, abafava o barulho da louça
quebrando-se contra as pedras. E Leocádia já não precisava acompanhar os

• 90 • O CORTIÇO
objetos com a sua frase de imprecação, porque cada um deles era recebido
cá fora com um coro que berrava:
— Upa! Toma, diabo!
E a limpeza prosseguia. João Romão acudiu de carreira, mas ninguém se
incomodou com a presença dele. Já defronte da porta do Bruno havia uma
montanha de cacos acumulados; e o destroço continuava ainda, quando o
ferreiro reapareceu, vermelho como malagueta, e foi galgando a casa, com
um raio de roda de carro na mão direita.
Os circunstantes o seguiram, atropeladamente, num clamor.
— Não dá!
— Não pode!
— Prende!
— Não deixa bater!
— Larga o pau!
— Segura!
— Aguenta!
— Cerca!
— Toma o porrete!
E Leocádia escapou afinal das pauladas do marido, a quem o povaréu
desarmara num fecha-fecha.
— Ordem! Ordem! Vá de rumor! exclamava o vendeiro, a quem, aprovei-
tando a confusão, haviam já ferrado um pontapé por detrás.
O Alexandre, que vinha chegando do serviço nesse momento,
apressou-se a correr para o lugar do conflito e cheio de autoridade intimou
o Bruno a que se contivesse e deixasse a mulher em paz, sob pena de seguir
para a estação no mesmo instante.
— Pois você não vê esta galinha, que apanhei hoje com a boca na botija,
não me vem ainda por cima dar cabo de tudo?!... interrogou o Bruno, espu-
mando de raiva e quase sem fôlego para falar.
— Porque você pôs em cacos o que é meu! gritou Leocádia.
— Está bom! Está bom! disse o polícia, procurando dar à voz inflexões
autoritárias e reconciliadoras. Fale cada um por sua vez! Seu marido... acres-
centou ele, voltando-se para a acusada, diz que a senhora...
— É mentira! interrompeu ela.
— Mentira?! É boa! Tinhas a saia despida e um homem por cima!

ALUÍSIO AZEVEDO • 91 •
— Quem era? — Quem foi? — Quem era o homem? interrogaram todos
a um só tempo.
— Quem era ele, no fim de contas? inquiriu também Alexandre.
— Não lhe pude ver as fuças!... respondeu o ferreiro; mas, se o apanho,
arrancava-lhe o sangue pelas costas!
Houve um coro de gargalhadas.
— É mentira! repetiu Leocádia, agora sucumbida por uma reação de
lágrimas. Há muito tempo que este malvado anda caçando pretexto para
romper comigo e, como eu não lho dou...
Uma explosão de soluços a interrompeu.
Desta vez não riram, mas um bichanar de cochichos formou-se em torno
do seu pranto.
— Agora... continuou ela, enxugando os olhos na costa da mão; não sei
o que será de mim, porque este homem, além de tudo, escangalhou-me até
o que eu trouxe quando me casei com ele!...
— Não disseste que já tinhas aí dentro com que ganhar a vida?... É andar!
— É falso! soluçou Leocádia.
— Bem, interveio Alexandre, embainhando o seu refle; está tudo termi-
nado! Seu marido vai recebê-la em boa paz...
— Eu?! esfuziou o ferreiro. Você não me conhece!
— Nem eu queria! retorquiu a mulher. Prefiro meter-me com um cavalo
de tílburi a ter de aturar este bruto!
E, catando em casa alguma coisa sua que ainda havia, e recolhendo do
montão dos cacos o que lhe pareceu aproveitável, fez de tudo uma grande
trouxa e foi chamar um carregador.
A Rita saiu-lhe ao encontro.
— Para onde vais tu?... perguntou-lhe em voz baixa.
— Não sei, filha, por aí!... Hei de encontrar um furo!... Os cães não
vivem?...
— Espere um instante... disse a mulata. Olha, empurra a trouxa aí para
dentro do meu cômodo. — E correndo ao Albino, que lavava: — Passa-me no
sabão aquela roupa, ouviste? E, quando Firmo acordar, diz-lhe que precisei
ir à rua.
Depois, deu um pulo ao quarto, mudou a saia molhada, atirou nos ombros
o seu xale de crochê e, batendo nas costas da companheira, segredou-lhe:

• 92 • O CORTIÇO
— Anda cá comigo! Não ficarás à toa!
E as duas saíram, ambas sacudidas, deixando atrás de si suspensa a
curiosidade do cortiço inteiro.

IX
Passaram-se semanas. Jerônimo tomava agora, todas as manhãs, uma
xícara de café bem grosso, à moda da Ritinha, e tragava dois dedos de parati
“pra cortar a friagem”.
Uma transformação, lenta e profunda, operava-se nele, dia a dia,
hora a hora, reviscerando-lhe o corpo e alando-lhe os sentidos, num tra-
balho misterioso e surdo de crisálida. A sua energia afrouxava lentamente:
fazia-se contemplativo e amoroso. A vida americana e a natureza do Brasil
patenteavam-lhe agora aspectos imprevistos e sedutores que o comoviam;
esquecia-se dos seus primitivos sonhos de ambição; para idealizar felici-
dades novas, picantes e violentas; tornava-se liberal, imprevidente e franco,
mais amigo de gastar que de guardar; adquiria desejos, tomava gosto aos
prazeres, e volvia-se preguiçoso resignando-se, vencido, às imposições do
sol e do calor, muralha de fogo com que o espírito eternamente revoltado do
último tamoio entrincheirou a pátria contra os conquistadores aventureiros.
E assim, pouco a pouco, se foram reformando todos os seus hábitos
singelos de aldeão português: e Jerônimo abrasileirou-se. A sua casa perdeu
aquele ar sombrio e concentrado que a entristecia; já apareciam por lá alguns
companheiros de estalagem, para dar dois dedos de palestra nas horas de
descanso, e aos domingos reunia-se gente para o jantar. A revolução afinal
foi completa: a aguardente de cana substituiu o vinho; a farinha de man-
dioca sucedeu à broa; a carne-seca e o feijão-preto ao bacalhau com batatas
e cebolas cozidas; a pimenta-malagueta e a pimenta-de-cheiro invadiram
vitoriosamente a sua mesa; o caldo verde, a açorda e o caldo de unto foram
repelidos pelos ruivos e gostosos quitutes baianos, pela muqueca, pelo
vatapá e pelo caruru; a couve à mineira destronou a couve à portuguesa; o
pirão de fubá ao pão de rala, e, desde que o café encheu a casa com o seu
aroma quente, Jerônimo principiou a achar graça no cheiro do fumo e não
tardou a fumar também com os amigos.

ALUÍSIO AZEVEDO • 93 •
E o curioso é que quanto mais ia ele caindo nos usos e costumes brasi-
leiros, tanto mais os seus sentidos se apuravam, posto que em detrimento
das suas forças físicas. Tinha agora o ouvido menos grosseiro para a música,
compreendia até as intenções poéticas dos sertanejos, quando cantam à viola
os seus amores infelizes; seus olhos, dantes só voltados para a esperança de
tornar à terra, agora, como os olhos de um marujo, que se habituaram aos
largos horizontes de céu e mar, já se não revoltavam com a turbulenta luz,
selvagem e alegre, do Brasil, e abriam-se amplamente defronte dos mara-
vilhosos despenhadeiros ilimitados e das cordilheiras sem fim, donde, de
espaço a espaço, surge um monarca gigante, que o sol veste de ouro e ricas
pedrarias refulgentes e as nuvens tocam de alvos turbantes de cambraia,
num luxo oriental de arábicos príncipes voluptuosos.
Ao passo que com a mulher, a S’ora Piedade de Jesus, o caso mudava
muito de figura. Essa, feita de um só bloco, compacta, inteiriça e tapada,
recebia a influência do meio só por fora, na maneira de viver, conservando-se
inalterável quanto ao moral, sem conseguir, à semelhança do esposo, afinar
a sua alma pela alma da nova pátria que adotaram. Cedia passivamente nos
hábitos de existência, mas no íntimo continuava a ser a mesma colona sau-
dosa e desconsolada, tão fiel às suas tradições como a seu marido. Agora
estava até mais triste; triste porque Jerônimo fazia-se outro; triste porque
não se passava um dia que lhe não notasse uma nova transformação; triste,
porque chegava a estranhá-lo, a desconhecê-lo, afigurando-se-lhe até que
cometia um adultério, quando à noite acordava assustada ao lado daquele
homem que não parecia o dela, aquele homem que se lavava todos os dias,
aquele homem que aos domingos punha perfumes na barba e nos cabelos
e tinha a boca cheirando a fumo. Que pesado desgosto não lhe apertou o
coração a primeira vez em que o cavouqueiro, repelindo o caldo que ela lhe
apresentava ao jantar, disse-lhe:
— Ó filha! Por que não experimentas tu fazer uns pitéus à moda de cá?...
— Mas é que não sei... balbuciou a pobre mulher.
— Pede então à Rita que to ensine... Aquilo não terá muito que aprender!
Vê se me fazes por arranjar uns camarões, como ela preparou aqueles doutro
dia. Souberam-me tão bem!
Este resvalamento do Jerônimo para as coisas do Brasil penalizava
profundamente a infeliz criatura. Era ainda o instinto feminil que lhe fazia

• 94 • O CORTIÇO
prever que o marido, quando estivesse de todo brasileiro, não a queria para
mais nada e havia de reformar a cama, assim como reformou a mesa.
Jerônimo, com efeito, pertencia-lhe muito menos agora do que dantes.
Mal se chegava para ela; os seus carinhos eram frios e distraídos, dados como
por condescendência; já lhe não afagava os rins, quando os dois ficavam a
sós, malucando na sua vida comum; agora nunca era ele que a procurava
para o matrimônio, nunca; se ela sentia necessidade do marido, tinha de
provocá-lo. E, uma noite, Piedade ficou com o coração ainda mais apertado,
porque ele, a pretexto de que no quarto fazia muito calor, abandonou a cama
e foi deitar-se no sofá da salinha. Desde esse dia não dormiram mais ao lado
um do outro. O cavouqueiro arranjou uma rede e armou-a defronte da porta
de entrada, tal qual como havia em casa da Rita.
Uma outra noite a coisa ainda foi pior. Piedade, certa de que o marido
não se chegava, foi ter com ele; Jerônimo fingiu-se indisposto, negou-se, e
terminou por dizer-lhe, repelindo-a brandamente:
— Não te queria falar, mas... sabes? Deves tomar banho todos os dias e...
mudar de roupa... Isto aqui não é como lá! Isto aqui sua-se muito! É preciso
trazer o corpo sempre lavado, que, ao se não, cheira-se mal!... Tem paciência!
Ela desatou a soluçar. Foi uma explosão de ressentimentos e desgostos
que se tinham acumulado no seu coração. Todas as suas mágoas rebentaram
naquele momento.
— Agora estás tu a chorar! Ora, filha, deixa-te disso!
Ela continuou a soluçar, sem fôlego, dando arfadas com todo o corpo.
O cavouqueiro acrescentou no fim de um intervalo:
— Então, que é isto, mulher? Pões-te agora a fazer tamanho escarcéu,
nem que se cuidasse de coisa séria!
Piedade desabafou:
— É que já não me queres! Já não és o mesmo homem para mim! Dantes
não me achavas que pôr, e agora até já te cheiro mal!
E os soluços recrudesciam.
— Não digas asnices, filha!
— Ah! Eu bem sei o que isto é!...
— E bobagem tua, é o que é!
— Maldita hora em que viemos dar ao raio desta estalagem! Antes me
tivera caído um calhau na cabeça!

ALUÍSIO AZEVEDO • 95 •
— Estás a queixar-te da sorte sem razão! Que Deus te não castigue.
Esta rezinga chamou outras que, com o correr do tempo, se foram amiu-
dando. Ah! Já não havia dúvida que mestre Jerônimo andava meio caído para
o lado da Rita Baiana; não passava pelo número 9, sempre que vinha à esta-
lagem durante o dia, que não parasse à porta um instante, para perguntar-lhe
pela “saudinha”. O fato de haver a mulata lhe oferecido o remédio, quando
ele esteve incomodado, foi pretexto para lhe fazer presentes amáveis; pôr
os seus préstimos à disposição dela e obsequiá-la em extremo todas as
vezes que a visitava. Tinha sempre qualquer coisa para saber da sua boca,
a respeito da Leocádia, por exemplo; pois, desde que a Rita se arvorara em
protetora da mulher do ferreiro, Jerônimo afetava grande interesse pela
“pobrezinha de Cristo”.
— Fez bem, Nhá Rita, fez bem!... A se’ora mostrou com isso que tem bom
coração...
— Ah, meu amigo, neste mundo hoje por mim, amanhã por ti!...
Rita havia aboletado a amiga, a princípio em casa de umas engoma-
deiras do Catete, muito suas camaradas, depois passou-a para uma família, a
quem Leocádia se alagou como ama-seca; e agora sabia que ela acabava de
descobrir um bom arranjo num colégio de meninas.
— Muito bem! Muito bem! aplaudia Jerônimo.
— Ora, o quê! O mundo é largo! sentenciou a baiana. Há lugar pro gordo
e há lugar pro magro! Bem tolo é quem se mata!
Em uma das vezes em que o cavouqueiro perguntou-lhe, como de cos-
tume, pela pobrezinha de Cristo, a mulata disse que Leocádia estava grávida.
— Grávida? Mas então não é do marido!...
— Pode bem ser que sim. Barriga de quatro meses...
— Ah! Mas ela não foi há mais tempo do que isso?...
— Não. Vai fazer agora pelo São João quatro meses justamente.
Jerônimo já nunca pegava na guitarra senão para procurar acertar
com as modinhas que a Rita cantava. Em noites de samba era o primeiro a
chegar-se e o último a ir embora; e durante o pagode ficava de queixo bambo,
a ver dançar a mulata, abstrato, pateta, esquecido de tudo; babão. E ela,
consciente do feitiço, que lhe punha, ainda mais se requebrava e remexia,
dando-lhe embigadas ou fingindo que lhe limpava a baba no queixo com a
barra da saia.

• 96 • O CORTIÇO
E riam-se.
Não! Definitivamente estava caído!
Piedade agarrou-se com a Bruxa para lhe arranjar um remédio que lhe
restituísse o seu homem. A cabocla velha fechou-se com ela no quarto,
acendeu velas de cera, queimou ervas aromáticas e tirou sorte nas cartas.
E depois de um jogo complicado de reis, valetes e damas, que ela dis-
punha sobre a mesa caprichosamente, a resmungar a cada figura que saía do
baralho uma frase cabalística, declarou convicta, muito calma, sem tirar os
olhos das suas cartas:
— Ele tem a cabeça virada por uma mulher trigueira.
— É o diacho da Rita Baiana! exclamou a outra. Bem cá me palpitava por
dentro! Ai, o meu rico homem!
E a chorar, limpando, aflita, as lágrimas no avental de cânhamo,
suplicou à Bruxa, pelas alminhas do purgatório, que lhe remediasse tamanha
desgraça.
— Ai, se perco aquela criatura, S’ora Paula, lamuriou a infeliz entre
soluços; nem sei que virá a ser de mim neste mundo de Cristo!... Ensine-me
alguma coisa que me puxe o Jeromo!
A cabocla disse-lhe que se banhasse todos os dias e desse a beber ao
seu homem, no café pela manhã, algumas gotas das águas da lavagem; e, se
no fim de algum tempo, este regime não produzisse o desejado efeito, então
cortasse um pouco dos cabelos do corpo, torrasse-os até os reduzir a pó e
lhos ministrasse depois na comida.
Piedade ouviu a receita com um silêncio respeitoso e atento, o ar com-
pungido de quem recebe do médico uma sentença dolorosa para um doente
que estimamos. Em seguida, meteu na mão da feiticeira uma moeda de prata,
prometendo dar-lhe coisa melhor se o remédio tivesse bons resultados.
Mas não era só a portuguesa quem se mordia com o descaimento
do Jerônimo para a mulata, era também o Firmo. Havia muito já que este
andava com a pulga atrás da orelha e, quando passava perto do cavouqueiro,
olhava-o atravessado.
O capadócio ia dormir todas as noites com a Rita, mas não morava
na estalagem; tinha o seu cômodo na oficina em que trabalhava. Só pelos
domingos é que ficavam juntos durante o dia e então não relaxavam o seu
jantar de pândega. Uma vez em que ele gazeara o serviço, o que não era

ALUÍSIO AZEVEDO • 97 •
raro, foi vê-la fora das horas do costume e encontrou-a a conversar junto
à tina com o português. Passou sem dizer palavra e recolheu-se ao número
9, onde ela foi logo ter de carreira. Firmo não lhe disse nada a respeito
das suas apreensões, mas também não escondeu o seu mau humor; esteve
impertinente e rezingueiro toda a tarde. Jantou de cara amarrada e durante
o parati, depois do café, só falou em rolos, em dar cabeçadas e navalhadas,
pintando-se terrível, recordando façanhas de capoeiragem, nas quais san-
grara tais e tais tipos de fama; “não contando dois galegos que mandara pras
minhocas, porque isso para ele não era gente! — Com um par de cocadas
boas ficavam de pés unidos para sempre!” Rita percebeu os ciúmes do amigo
e fez que não dera por coisa alguma.
No dia seguinte, às seis horas da manhã, quando ele saía da casa dela,
encontrou-se com o português, que ia para o trabalho, e o olhar que os dois
trocaram entre si era já um cartel de desafio. Entretanto, cada qual seguiu
em silêncio para o seu lado.
Rita deliberou prevenir Jerônimo de que se acautelasse. Conhecia bem o
amante e sabia de quanto era ele capaz sob a influência dos ciúmes; mas, na
ocasião em que o cavouqueiro desceu para almoçar, um novo escândalo acabava
de explodir, agora no número 12, entre a velha Marciana e sua filha Florinda.
Marciana andava já desconfiada com a pequena, porque o fluxo mensal
desta se desregrara havia três meses, quando, nesse dia, não tendo as duas
acabado ainda o almoço, Florinda se levantou da mesa e foi de carreira para
o quarto. A velha seguiu-a. A rapariga fora vomitar ao bacio.
— Que é isto?... perguntou-lhe a mãe, apalpando-a toda com um olhar
inquiridor.
— Não sei, mamãe...
— Que sentes tu?...
— Nada...
— Nada, e estás lançando?... Hein?!
— Não sinto nada, não senhora!...
A mulata velha aproximou-se, desatou-lhe violentamente o vestido,
levantou-lhe as saias e examinou-lhe todo o corpo, tateando-lhe o ventre,
já zangada. Sem obter nenhum resultado das suas diligências, correu a
chamar a Bruxa, que era mais que entendida no assunto. A cabocla, sem se
alterar, largou o serviço, enxugou os braços no avental, e foi ao número 12;

• 98 • O CORTIÇO
tenteou de novo a mulatinha, fez-lhe várias perguntas e mais à mãe, e
depois disse friamente:
— Está de barriga.
E afastou-se, sem um gesto de surpresa, nem de censura.
Marciana, trêmula de raiva, fechou a porta da casa, guardou a chave no
seio e, furiosa, caiu aos murros em cima da filha. Esta, embalde tentando
escapar-lhe, berrava como uma louca.
Abandonaram-se logo todas as tinas do pátio e algumas das mesas do
frege, e o populacho, curioso e alvoroçado, precipitou-se para o número 12,
batendo na porta e ameaçando entrar pela janela.
Lá dentro, a velha escarranchada sobre a rapariga que se debatia no
chão, perguntava-lhe gritando e repetindo:
— Quem foi?! Quem foi?!
E de cada vez desfechava-lhe um sopapo pelas ventas.
— Quem foi?!
A pequena berrava, mas não respondia.
— Ah! Não queres dizer por bem? Ora espera!
E a velha ergueu-se para apanhar a vassoura no canto da sala.
Florinda, vendo iminente o cacete, levantou-se de um pulo, ganhou a
janela e caiu de um salto lá fora, entre o povo amotinado. Coisa de uns nove
palmos de altura.
As lavadeiras a apanharam, cuidando em defendê-la da mãe, que surgiu
logo à porta, ameaçando para o grupo, terrível e armada de pau.
Todos procuraram chamá-la à razão:
— Então que é isso, tia Marciana?! Então que é isso?!
— Que é isto?! É que esta assanhada está de barriga! Está aí o que é!
Para tanto não lhe faltou jeito, nem foi preciso que a gente andasse atrás
dela se matando, como sucede sempre que há um pouco mais de serviço e é
necessário puxar pelo corpo! Ora está aí o que é!
— Bem, disse a Augusta, mas não lhe bata agora, coitada! Assim você
lhe dá cabo da pele!
— Não! Eu quero saber quem lhe encheu o bandulho! E ela há de dizer
quem foi ou quebro-lhe os ossos!
— Então, Florinda, diz logo quem foi... É melhor! aconselhou a das
Dores. Fez-se em torno da rapariga um silêncio ávido, cheio de curiosidade.

ALUÍSIO AZEVEDO • 99 •
— Estão vendo?... exclamou a mãe. Não responde, este diabo! Mas
esperem, que eu lhes mostro se ela fala, ou não!
E as lavadeiras tiveram de agarrar-lhe os braços e tirar-lhe o cacete,
porque a velha queria crescer de novo para a filha.
Ao redor desta a curiosidade assanhava-se cada vez mais. Estalavam
todos por saber quem a tinha emprenhado. “Quem foi?! Quem foi?!” esta
frase apertava-a num torniquete. Afinal, não houve outro remédio:
— Foi seu Domingos... disse ela, chorando e cobrindo o rosto com a
fralda do vestido, rasgado na luta.
— O Domingos!...
— O caixeiro da venda!...
— Ah! Foi aquele cara de nabo? gritou Marciana. Vem cá!
E, agarrando a filha pela mão, arrastou-a até à venda.
Os circunstantes acompanharam-na ruidosamente e de carreira.
A taverna, como a casa de pasto, fervia de concorrência.
Ao balcão daquela, o Domingos e o Manuel aviavam os fregueses, numa
roda-viva. Havia muitos negros e negras. O barulho era enorme. A Leonor
lá estava, sempre aos pulos, mexendo com um, mexendo com outro, mos-
trando a dupla fila de dentes brancos e grandes, e levando apalpões rudes
de mãos de couro nas suas magras e escorridas nádegas de negrinha virgem.
Três marujos ingleses bebiam gengibirra, cantando, ébrios, na sua língua e
mascando tabaco.
Marciana na frente do grande grupo e sem largar o braço da filha, que
a seguia como um animal puxado pela coleira, ao chegar à porta lateral da
venda, berrou:
— Ó seu João Romão!
— Que temos lá? perguntou de dentro o vendeiro, atrapalhado de
serviço.
Bertoleza, com uma grande colher de zinco gotejante de gordura, apa-
receu à porta, muito ensebada e suja de tisna; e, ao ver tanta gente reunida,
gritou para seu homem:
— Corre aqui, seu João, que não sei o que houve!
Ele veio afinal.
Que diabo era aquilo?

• 100 • O CORTIÇO
— Venho entregar-lhe esta perdida! Seu caixeiro a cobriu, deve tomar
conta dela!
João Romão ficou perplexo.
— Hein! Que é lá isso?!
— Foi o Domingos! disseram muitas vozes.
— O seu Domingos!
O caixeiro respondeu: “Senhor...” com uma voz de delinquente.
— Chegue cá!
E o criminoso apresentou-se, lívido de morte.
— Que fez você com esta pequena?
— Não fiz nada, não senhor!...
— Foi ele, sim! desmentiu-o a Florinda. — O caixeiro desviou os olhos,
para a não encarar. — Um dia de manhãzinha, às quatro horas, no capinzal,
debaixo das mangueiras...
O mulherio em massa recebeu estas palavras com um coro de
gargalhadas.
— Então o senhor anda-me aqui a fazer conquistas, hein?!... disse o
patrão, meneando a cabeça. Muito bem! Pois agora é tomar conta da fazenda
e, como não gosto de caixeiros amigados, pode procurar arranjo noutra
parte!...
Domingos não respondeu patavina; abaixou o rosto e retirou-se
lentamente.
O grupo das lavadeiras e dos curiosos derramou-se então pela venda,
pelo portão da estalagem, pelo frege, por todos os lados, repartindo-se em
pequenos magotes que discutiam o fato. Principiaram os comentários, os
juízos pró e contra o caixeiro; fizeram-se profecias.
Entretanto, Marciana, sem largar a filha, invadira a casa de João Romão
e perseguia o Domingos que preparava já a sua trouxa.
— Então? perguntou-lhe. Que tenciona fazer?
Ele não deu resposta.
— Vamos! Vamos! Fale! Desembuche!
— Ora lixe-se! resmungou o caixeiro, agora muito vermelho de cólera.
— Lixe-se, não!... Mais devagar com o andor! Você há de casar: ela é
menor!
Domingos soltou uma palavrada, que enfureceu a velha.

ALUÍSIO AZEVEDO • 101 •


— Ah, sim?! bradou esta. Pois veremos!
E despejou da venda, gritando para todos:
— Sabe? O cara de nabo diz que não casa!
Esta frase produziu o efeito de um grito de guerra entre as lavadeiras,
que se reuniram de novo, agitadas por uma grande indignação.
— Como, não casa?!...
— Era só o que faltava!
— Tinha graça!
— Então mais ninguém pode contar com a honra de sua filha?
— Se não queria casar pra que fez mal?
— Quem não pode com o tempo não inventa modas!
— Ou ele casa ou sai daqui com os ossos em sopa!
— Quem não quer ser lobo não lhe vista a pele!
A mais empenhada naquela reparação era a Machona, e a mais indignada
com o fato era a Dona Isabel. A primeira correra à frente da venda, disposta
a segurar o culpado, se este tentasse fugir. Com o seu exemplo não tardou
que em cada porta, onde era possível uma escapula, se postassem as outras
de sentinela, formando grupos de três e quatro. E, no meio de crescente
algazarra, ouviam-se pragas ferozes e ameaças:
— Das Dores! Toma cuidado, que o patife não espirre por aí!
— Ó seu João Romão, se o homem não casa, mande-no-lo pra cá! Temos
ainda algumas pequenas que lhe convêm!
— Mas onde está esse ordinário?!
— Saia o canalha!
— Está fazendo a trouxa!
— Quer escapar!
— Não deixe sair!
— Chame a polícia!
— Onde está o Alexandre?
E ninguém mais se entendia. À vista daquela agitação, o vendeiro foi ter
com o Domingos.
— Não saia agora, ordenou-lhe. Deixe-se ficar por enquanto. Logo mais
lhe direi o que deve fazer.
E chegando a uma das portas que davam para a estalagem, gritou:
— Vá de rumor! Não quero isto aqui! É safar!

• 102 • O CORTIÇO
— Pois então o homem que case! responderam.
— Ou dê-nos pra cá o patife!
— Fugir é que não!
— Não foge! Não deixa fugir!
— Ninguém se arrede!
E, como a Marciana lhe lançasse uma injúria mais forte, ameaçando-o
com o punho fechado, o taverneiro jurou que, se ela insistisse com desa-
foros, a mandaria jogar lá fora, junto com a filha, por um urbano.
— Vamos! Vamos! Volte cada uma para a sua obrigação, que eu não
posso perder tempo!
— Ponha-nos então pra cá o homem! exigiu a mulata velha.
— Venha o homem! acompanhou o coro.
— É preciso dar-lhe uma lição!
— O rapaz casa! disse o vendeiro com ar sisudo. Já lhe falei... Está
perfeitamente disposto! E, se não casar, a pequena terá o seu dote! Vão
descansados; respondo por ele ou pelo dinheiro!
Estas palavras apaziguaram os ânimos; o grupo das lavadeiras afrouxou;
João Romão recolheu-se: chamou de parte o Domingos e disse-lhe que não
arredasse pé de casa antes de noite fechada.
— No mais... acrescentou, pode tratar de vida nova! Nada o prende aqui.
Estamos quites.
— Como? Se o senhor ainda não me fez as contas?!...
— Contas? Que contas? O seu saldo não chega para pagar o dote da
rapariga!...
— Então eu tenho de pagar um dote?!...
— Ou casar... Ah, meu amigo, este negócio de três vinténs é assim! Custa
dinheiro! Agora, se você quiser, vá queixar-se à polícia... Está no seu direito!
Eu me explicarei em juízo!...
— Com que, não recebo nada?...
E não principie com muita coisa, que lhe fecho a porta e deixo-o ficar
às turras lá fora com esses danados! Você bem viu como estão todos a seu
respeito! E, se há pouco não lhe arrancaram os fígados, agradeça-o a mim!
Foi preciso prometer dinheiro e tenho de cair com ele, decerto! Mas não é
justo, nem eu admito, que saia da minha algibeira porque não estou disposto
a pagar os caprichos de ninguém, e muito menos dos meus caixeiros!

ALUÍSIO AZEVEDO • 103 •


— Mas...
— Basta! Se quiser, por muito favor, ficar aqui até à noite, há de ficar
calado; ao contrário — rua!
E afastou-se.
Marciana resolveu não ir ao subdelegado, sem saber que providências
tomaria o vendeiro. Esperaria até ao dia seguinte “para ver só!” O que nesse
ela fez foi dar uma boa lavagem na casa e arrumá-la muitas vezes, como
costumava, sempre que tinha lá as suas zangas.
O escândalo não deixou de ser, durante o dia, discutido um só ins-
tante. Não se falava noutra coisa; tanto que, quando, já à noite, Augusta
e Alexandre receberam uma visita da comadre, a Léonie, era ainda esse o
principal assunto das conversas.
Léonie, com as suas roupas exageradas e barulhentas de cocote à fran-
cesa, levantava rumor quando lá ia e punha expressões de assombro em
todas as caras. O seu vestido de seda cor de aço, enfeitado de encarnado
sangue de boi, curto, petulante, mostrando uns sapatinhos à moda com um
salto de quatro dedos de altura; as suas luvas de vinte botões que lhe che-
gavam até aos sovacos; a sua sombrinha vermelha, sumida numa nuvem de
rendas cor-de-rosa e com grande cabo cheio de arabescos extravagantes; o
seu pantafaçudo chapéu de imensas abas forradas de veludo escarlate, com
um pássaro inteiro grudado à copa; as suas joias caprichosas, cintilantes de
pedras finas; os seus lábios pintados de carmim; suas pálpebras tingidas de
violeta; o seu cabelo artificialmente louro; tudo isto contrastava tanto com
as vestimentas, os costumes e as maneiras daquela pobre gente, que de
todos os lados surgiam olhos curiosos a espreitá-la pela porta da casinha de
Alexandre; Augusta, ao ver a sua pequena, a Juju, como vinha tão embone-
cada e catita, ficou com os dela arrasados de água.
Léonie trazia sempre muito bem calçada e vestida a afilhada, levando o
capricho ao ponto de lhe mandar talhar a roupa da mesma fazenda com que
fazia as suas e pela mesma costureira; arranjava-lhe chapéus escandalosos
como os dela e dava-lhe joias. Mas, naquele dia, a grande novidade que
Juju apresentava era estar de cabelos louros, quando os tinha castanhos por
natureza. Foi caso para uma revolução na estalagem; a notícia correu logo
de número a número, e muitos moradores se abalaram do cômodo para ver
a filhita da Augusta “com cabelos de francesa”.

• 104 • O CORTIÇO
Tal sucesso pôs Léonie radiante de alegria. Aquela afilhada era o seu
luxo, a sua originalidade, a coisa boa da sua vida de cansaços depravados; era
o que aos seus próprios olhos a resgatava das abjeções do ofício. Prostituta
de casa aberta, prezava todavia com admiração e respeito a honestidade
vulgar da comadre; sentia-se honrada com a sua estima; cobria-a de obsé-
quios de toda a espécie. Nos instantes que estava ali, entre aqueles seus
amigos simplórios, que a matariam de ridículo em qualquer outro lugar, nem
ela parecia a mesma, pois até os olhos lhe mudavam de expressão. E não
queria preferências: assentava-se no primeiro banco, bebia água pela caneca
de folha, tomava ao colo o pequenito da comadre e, às vezes, descalçava os
sapatos para enfiar os chinelos velhos que encontrasse debaixo da cama.
Não obstante, o acatamento que lhe votavam Alexandre e a mulher não
tinha limites; pareciam capazes dos maiores sacrifícios por ela. Adoravam-na.
Achavam-na boa de coração como um anjo, e muito linda nas suas roupas
de espavento, com o seu rostinho redondo, malicioso e petulante, onde relu-
ziam dentes mais alvos que um marfim.
Juju, com um embrulho de balas em cada mão, era carregada de casa em
casa, passando de braço a braço e levada de boca em boca, como um ídolo
milagroso, que todos queriam beijar.
E os elogios não cessavam:
— Rica pequena!...
— É um enlevo olhar a gente pro demoninho!
— É mesmo uma lindeza de criança!
— Uma criaturinha dos anjos!
— Uma boneca francesa!
— Uma menina Jesus!
O pai acompanhava-a comovido, mas solene sempre, parando a todo
momento, como em procissão, à espera que cada qual desafogasse por sua
vez o entusiasmo pela criança. Silenciosamente risonho, com os olhos úmidos,
patenteada em todo o seu carão mulato, de bigode que parecia postiço, um ar
condolente e estúpido de um profundo reconhecimento por aquela fortuna,
que Deus lhe dera à filha, enviando-lhe dos céus o ideal das madrinhas.
E, enquanto Juju percorria a estalagem, conduzida em triunfo, Léonie
na casa da comadre, cercada por uma roda de lavadeiras e crianças, discre-
teava sobre assuntos sérios, falando compassadamente, cheia de inflexões

ALUÍSIO AZEVEDO • 105 •


de pessoa prática e ajuizada, condenando maus atos e desvarios, aplaudindo
a moral e a virtude. E aquelas mulheres, aliás tão alegres e vivazes, não se
animavam, defronte dela, a rir nem levantar a voz, e conversavam a medo
cochichando, a tapar a boca com a mão, tolhidas de respeito pela cocote,
que as dominava na sua sobranceria de mulher loura vestida de seda e
coberta de brilhantes. A das Dores sentiu-se orgulhosa, quando Léonie lhe
pousou no ombro a mãozinha enluvada e recendente, para lhe perguntar
pelo seu homem. E não se fartavam de olhar para ela, de admirá-la; che-
gavam a examinar-lhe a roupa, revistar-lhe as saias, apalpar-lhe as meias,
levantando-lhe o vestido, com exclamações de assombro à vista de tanto
luxo de rendas e bordados. A visita sorria, por sua vez comovida. Piedade
declarou que a roupa branca da madama era rica nem como a da Nossa
Senhora da Penha. E Neném, no seu entusiasmo, disse que a invejava do
fundo do coração, ao que a mãe lhe observou que não fosse besta. O Albino
contemplava-a em êxtase, de mão no queixo, o cotovelo no ar. A Rita Baiana
levara-lhe um ramalhete de rosas. Esta não se iludia com a posição da
loureira, mas dava-lhe apreço talvez por isso mesmo e, em parte, porque
a achava deveras bonita. “Ora! Era preciso ser bem esperta e valer muito
para arrancar assim da pele dos homens ricos aquela porção de joias e todo
aquele luxo de roupa por dentro e por fora!”
— Não sei, filha! pregava depois a mulata, no pátio, a uma companheira;
seja assim ou assado, a verdade é que ela passa muito bem de boca e nada lhe
falta: sua boa casa; seu bom carro para passear à tarde; teatro toda a noite;
bailes quando quer e, aos domingos, corridas, regatas, pagodes fora da cidade
e dinheirama grossa para gastar à farta! Enfim, só o que afianço é que esta
não está sujeita, como a Leocádia e outras, a pontapés e cachações de um
bruto de marido! É dona das suas ações! Livre como o lindo amor! Senhora do
seu corpinho, que ela só entrega a quem muito bem lhe der na veneta!
— E Pombinha?... perguntou a visita. Não me apareceu ainda!...
— Ah! esclareceu Augusta. Não está aí, foi à sociedade de dança com
a mãe.
E, como a outra mostrasse na cara não ter compreendido, explicou que
a filha de Dona Isabel ia todas as terças, quintas e sábados, mediante dois
mil-réis por noite, servir de dama numa sociedade em que os caixeiros do
comércio aprendiam a dançar.

• 106 • O CORTIÇO
— Foi lá que ela conheceu o Costa... acrescentou.
— Que Costa?
— O noivo! Então a Pombinha já não foi pedida?
— Ah! Sei...
E a cocote perguntou depois, abafando a voz:
— E aquilo?... Já veio afinal?...
— Qual! Não é por falta de boa vontade da parte delas, coitadas! Agora
mesmo a velha fez uma nova promessa a Nossa Senhora da Anunciação...
Mas não há meio!
Daí a pouco, Augusta apresentou-lhe uma xícara de café, que Léonie
recusou por não poder beber. “Estava em uso de remédios...” Não disse,
porém, quais eram estes, nem para que moléstia os tomava.
— Prefiro um copo de cerveja, declarou ela.
E, sem dar tempo a que se opusessem, tirou da carteira uma nota de
dez mil-réis, que deu a Agostinho para ir buscar três garrafas de Carls Berg.
À vista dos copos, liberalmente cheios, formou-se um silêncio enterne-
cido. A cocote distribuiu-os por sua própria mão aos circunstantes, reservando
um para si. Não chegavam. Quis mandar buscar mais; não lho permitiram,
objetando que duas e três pessoas podiam beber juntas.
— Para que gastar tanto?... Que alma grande!
O troco ficou esquecido, de propósito, sobre a cômoda, entre uma infi-
nita quinquilharia de coisas velhas e bem tratadas.
— Quando você, comadre, agora me aparece por lá?... quis saber Léonie.
— Pra semana, sem falta; levo-lhe toda a roupa. Agora, se a comadre
tem precisão de alguma... pode-se aprontar com mais pressa...
— Então é bom mandar-me toalhas e lençóis... Camisas de dormir, é
verdade! Também tenho poucas.
— Depois d’amanhã está tudo lá.
E a noite ia-se passando. Deram dez horas. Léonie, impaciente já pelo
rapaz que ficara de ir buscá-la, mandou ver se ele por acaso estaria no
portão, à espera.
— É aquele mesmo que veio da outra vez com a comadre?...
— Não. É um mais alto. De cartola branca.
Correu muita gente até à rua. O rapaz não tinha chegado ainda. Léonie
ficou contrariada.

ALUÍSIO AZEVEDO • 107 •


— Imprestável!... resmungou. Faz-me ir sozinha por aí ou incomodar
alguém que me acompanhe!
— Por que a comadre não dorme aqui?... lembrou Augusta. Se quiser,
arranja-se tudo! Não passará bem como em sua casa, mas uma noite corre
depressa!...
Não! Não era possível Precisava estar em casa essa noite: no dia seguinte
pela manhã iriam procurá-la muito cedo. Nisto chegou Pombinha com Dona
Isabel. Disseram-lhes logo à entrada que Léonie estava em casa do Alexandre,
e a menina deixou a mãe um instante no número 15 e seguiu sozinha para ali,
radiante de alegria. Gostavam-se muito uma da outra. A cocote recebeu-a com
exclamações de agrado e beijou-a nos dentes e nos olhos repetidas vezes.
— Então, minha flor, como está essa lindeza? perguntou-lhe, mirando-a
toda.
— Saudades suas... respondeu a moça, rindo bonito na sua boca ainda
pura.
E uma conversa amiga, cheia de interesse para ambas, estabeleceu-se,
isolando-as de todas as outras. Léonie entregou à Pombinha uma medalha
de prata que lhe trouxera; uma teteia que valia só pela esquisitice, repre-
sentando uma fatia de queijo com um camundongo em cima. Correu logo de
mão em mão, levantando espantos e gargalhadas.
— Por um pouco que não me apanhas... continuou a cocote na sua con-
versa com a menina. Se a pessoa que me vem buscar tivesse chegado já, eu
estaria longe. — E mudando de tom, a acarinhar-lhe os cabelos: — Por que
não me apareces!... Não tens que recear: minha casa é muito sossegada...
Já lá têm ido famílias!...
— Nunca vou à cidade... É raro! suspirou Pombinha.
— Vai amanhã com tua mãe; jantam as duas comigo...
— Se mamãe deixar... Olha! Ela aí vem. Peça.
Dona Isabel prometeu ir, não no dia seguinte, mas no outro imediato, que
era domingo. E a palestra durou animada até que chegou, daí a um quarto
de hora, o rapaz por quem esperava Léonie. Era um moço de vinte e poucos
anos, sem emprego e sem fortuna, mas vestido com esmero e muito bem
apessoado. A cocote, logo que o viu aproximar-se, disse baixinho à menina:
— Não é preciso que ele saiba que vais lá domingo, ouviste?
Juju dormia. Resolveram não acordá-la; iria no dia seguinte.

• 108 • O CORTIÇO
Na ocasião em que Léonie partia pelo braço do amante, acompanhada
até o portão por um séquito de lavadeiras, a Rita, no pátio, beliscou a coxa
de Jerônimo e soprou-lhe à meia voz:
— Não lhe caia o queixo!...
O cavouqueiro teve um desdenhoso sacudir d’ombros.
— Aquela pra cá nem pintada!
E, para deixar bem patente as suas preferências, virou o pé do lado e
bateu com o tamanco na canela da mulata.
— Olha o bruto!... queixou-se esta, levando a mão ao lugar da pancada.
Sempre há de mostrar que é galego!

X
No outro dia a casa do Miranda estava em preparos de festa. Lia-se no
“Jornal do Comércio” que Sua Excelência fora agraciado pelo governo portu-
guês com o título de Barão do Freixal; e como os seus amigos se achassem
prevenidos para ir cumprimentá-lo no domingo, o negociante dispunha-se a
recebê-los condignamente.
Do cortiço, onde esta novidade causou sensação, via-se nas janelas do
sobrado, abertas de par em par, surgir de vez em quando Leonor ou Isaura, a
sacudirem tapetes e capachos, batendo-lhes em cima com um pau, os olhos
fechados, a cabeça torcida para dentro por causa da poeira que a cada pan-
cada se levantava, como fumaça de um tiro de peça. Chamaram-se novos
criados para aqueles dias. No salão da frente, pretos lavavam o soalho, e
na cozinha havia rebuliço. Dona Estela, de penteador de cambraia enfeitado
de laços cor-de-rosa, era lobrigada de relance, ora de um lado, ora de outro,
a dar as suas ordens, abanando-se com um grande leque; ou aparecia no
patamar da escada do fundo, preocupada em soerguer as saias contra as
águas sujas da lavagem, que escorriam para o quintal. Zulmira também ia e
vinha, com a sua palidez fria e úmida de menina sem sangue. Henrique, de
paletó branco, ajudava o Botelho nos arranjos da casa e, de instante a ins-
tante, chegava à janela, para namoriscar Pombinha, que fingia não dar por
isso, toda embebida na sua costura, à porta do número 15, numa cadeira de
vime, uma perna dobrada sobre a outra, mostrando a meia de seda azul e um

ALUÍSIO AZEVEDO • 109 •


sapatinho preto de entrada baixa; só de longo em longo espaço, ela desviava
os olhos do serviço e erguia-os para o sobrado. Entretanto, a figura gorda e
encanecida do novo Barão, sobrecasacado, com o chapéu alto derreado para
trás na cabeça e sem largar o guarda-chuva, entrava da rua e atravessava
a sala de jantar, seguia até a despensa, diligente esbaforido, indagando se
já tinha vindo isto e mais aquilo, provando dos vinhos que chegavam em
garrafões, examinando tudo, voltando-se para a direita e para a esquerda,
dando ordens, ralhando, exigindo atividade, e depois tornava a sair, sempre
apressado, e metia-se no carro que o esperava à porta da rua.
— Toca! Toca! Vamos ver se o fogueteiro aprontou os fogos!
E viam-se chegar, quase sem intermitência, homens carregados de
gigos de champanha, caixas de Porto e Bordéus, barricas de cerveja, cestos
e cestos de mantimentos, latas e latas de conserva; e outros traziam perus
e leitões, canastras d’ovos, quartos de carneiro e de porco. E as janelas do
sobrado iam-se enchendo de compoteiras de doce ainda quente, saído do
fogo, e travessões, de barro e de ferro, com grandes peças de carne em
vinha d’alhos, prontos para entrar no forno. À porta da cozinha penduraram
pelo pescoço um cabrito esfolado, que tinha as pernas abertas, lembrando
sinistramente uma criança a quem enforcassem depois de tirar-lhe a pele.
Todavia, cá embaixo, um caso palpitante agitava a estalagem: Domingos,
o sedutor da Florinda, desaparecera durante a noite e um novo caixeiro o
substituía ao balcão.
O vendeiro retorquia atravessado a quem lhe perguntava pelo evadido:
— Sei cá! Creio que não podia trazê-lo pendurado ao pescoço!...
— Mas você disse que respondia por ele! repontou Marciana, que parecia
ter envelhecido dez anos naquelas últimas vinte e quatro horas.
— De acordo, mas o tratante cegou-me! Que havemos de fazer?... É ter
paciência!
— Pois então ande com o dote!
— Que dote? Você está bêbeda?
— Bêbeda, hein? Ah, corja! Tão bom é um como o outro! Mas eu hei de
mostrar!
— Ora, não me amole!
E João Romão virou-lhe as costas, para falar à Bertoleza que se chegara.

• 110 • O CORTIÇO
— Deixa estar, malvado, que Deus é quem há de punir por mim e por
minha filha! exclamou a desgraçada.
Mas o vendeiro afastou-se, indiferente às frases que uma ou outra lava-
deira imprecava contra ele. Elas, porém, já se não mostravam tão indignadas
como na véspera; uma só noite rolada por cima do escândalo bastava para
tirar-lhe o mérito de novidade.
Marciana foi com a pequena à procura do subdelegado e voltou aborre-
cida, porque lhe disseram que nada se poderia fazer enquanto não aparecesse
o delinquente. Mãe e filha passaram todo esse sábado na rua, numa roda-viva,
da secretaria e das estações de polícia para o escritório de advogados que, um
por um, lhes perguntavam de quanto dispunham para gastar com o processo,
despachando-as, sem mais considerações, logo que se inteiravam da escassez
de recursos de ambas as partes.
Quando as duas, prostradas de cansaço, esbraseadas de calor, tornaram
à tarde para a estalagem, na hora em que os homens do mercado, que ali
moravam, recolhiam-se já com os balaios vazios ou com o resto da fruta que
não conseguiram vender na cidade, Marciana vinha tão furiosa que, sem dar
palavra à filha e com os braços moídos de esbordoá-la, abriu toda a casa e
correu a buscar água para baldear o chão. Estava possessa.
— Vê a vassoura! Anda! Lava! Lava, que está isto uma porcaria! Parece
que nunca se limpa o diabo desta casa! É deixá-la fechada uma hora e
morre-se de fedor! Apre! Isto faz peste!
E notando que a pequena chorava:
— Agora deste para chorar, hein? Mas na ocasião do relaxamento havias
de estar bem disposta!
A filha soluçou.
— Cala-te, coisa-ruim! Não ouviste?
Florinda soluçou mais forte.
— Ah! Choras sem motivo?... Espera, que te faço chorar com razão.
E precipitou-se sobre ela com uma acha de lenha.
Mas a mulatinha, de um salto, pinchou pela porta e atravessou de uma
só carreira o pátio da estalagem, fugindo em desfilada pela rua.
Ninguém teve tempo de apanhá-la, e um clamor de galinheiro assus-
tado levantou-se entre as lavadeiras.

ALUÍSIO AZEVEDO • 111 •


Marciana foi até o portão, como uma doida e, compreendendo que
a filha a abandonava, desatou por sua vez a soluçar, de braços abertos,
olhando para o espaço. As lágrimas saltavam-lhe pelas rugas da cara. E logo,
sem transição, disparou da cólera, que a convulsionava desde a manhã da
véspera, para cair numa dor humilde enternecida de mãe que perdeu o filho.
— Para onde iria ela, meu pai do céu?
— Pois você desd’ontem que bate na rapariga!... disse-lhe a Rita.
Fugiu-lhe, é bem feito! Que diabo! Ela é de carne, não é de ferro!
— Minha filha!
— É bem feito! Agora chore na cama que é lugar quente!
— Minha filha! Minha filha! Minha filha!
Ninguém quis tomar o partido da infeliz, à exceção da cabocla velha,
que foi colocar-se perto dela, fitando-a imóvel, com o seu desvairado olhar
de bruxa feiticeira.
Marciana arrancou-se da abstração plangente em que caíra, para
arvorar-se terrível defronte da venda, apostrofando com a mão no ar e a
carapinha desgrenhada:
— Este galego é que teve a culpa de tudo! Maldito sejas tu, ladrão!
Se não me deres conta de minha filha, malvado, pego-te fogo na casa.
A bruxa sorriu sinistramente ao ouvir estas últimas palavras.
O vendeiro chegou à porta e ordenou em tom seco à Marciana que des-
pejasse o número 12.
— É andar! É andar! Não quero esta berraria aqui! Bico, ou chamo um
urbano! Dou-lhe uma noite! Amanhã pela manhã — rua!
Ah! Ele esse dia estava intolerante com tudo e com todos; por mais
de uma vez mandara Bertoleza à coisa mais imunda, apenas porque esta
lhe fizera algumas perguntas concernentes ao serviço. Nunca o tinha visto
assim, tão fora de si, tão cheio de repelões; nem parecia aquele mesmo
homem inalterável, sempre calmo e metódico.
E ninguém seria capaz de acreditar que a causa de tudo isso era o fato
de ter sido o Miranda agraciado com o título de Barão.
Sim, senhor! Aquele taverneiro, na aparência tão humilde e tão mise-
rável; aquele sovina que nunca saíra dos seus tamancos e da sua camisa de
riscadinho de Angola; aquele animal que se alimentava pior que os cães, para
pôr de parte tudo, tudo, que ganhava ou extorquia; aquele ente atrofiado

• 112 • O CORTIÇO
pela cobiça e que parecia ter abdicado dos seus privilégios e sentimentos
de homem; aquele desgraçado, que nunca jamais amara senão o dinheiro,
invejava agora o Miranda, invejava-o deveras, com dobrada amargura do
que sofrera o marido de Dona Estela, quando, por sua vez, o invejara a ele.
Acompanhara-o desde que o Miranda viera habitar o sobrado com a família;
vira-o nas felizes ocasiões da vida, cheio de importância, cercado de amigos
e rodeado de aduladores; vira-o dar festas e receber em sua casa as figuras
mais salientes da praça e da política; vira-o luzir, como um grosso pião de
ouro, girando por entre damas da melhor e mais fina sociedade fluminense;
vira-o meter-se em altas especulações comerciais e sair-se bem; vira seu
nome figurar em várias corporações de gente escolhida e em subscrições,
assinando belas quantias; vira-o fazer parte de festas de caridade e festas de
regozijo nacional; vira-o elogiado pela imprensa e aclamado como homem
de vistas largas e grande talento financeiro; vira-o enfim em todas as suas
prosperidades, e nunca lhe tivera inveja. Mas agora, estranho deslumbra-
mento! Quando o vendeiro leu no “Jornal do Comércio” que o vizinho estava
barão — Barão! — sentiu tamanho calafrio em todo o corpo, que a vista por
um instante se lhe apagou dos olhos.
— Barão!
E durante todo o santo dia não pensou noutra coisa. “Barão!... Com
esta é que ele não contava!...” E, defronte da sua preocupação, tudo se con-
vertia em comendas e crachás; até os modestos dois vinténs de manteiga,
que media sobre um pedaço de papel de embrulho para dar ao freguês,
transformava-se, de simples mancha amarela, em opulenta insígnia de ouro
cravejada de brilhantes.
À noite, quando se estirou na cama, ao lado da Bertoleza, para dormir,
não pôde conciliar o sono. Por toda a miséria daquele quarto sórdido; pelas
paredes imundas, pelo chão enlameado de poeira e sebo, nos tetos funebre-
mente velados pelas teias de aranha, estrelavam pontos luminosos que se
iam transformando em grã-cruzes, em hábitos e veneras de toda a ordem e
espécie. E em volta do seu espírito, pela primeira vez alucinado, um turbi-
lhão de grandezas que ele mal conhecia e mal podia imaginar, perpassou
vertiginosamente, em ondas de seda e rendas, velado e pérolas, colos e
braços de mulheres seminuas, num fremir de risos e espumar aljofrado de
vinhos cor-de-ouro. E nuvens de caudas de vestidos e abas de casaca lá iam,

ALUÍSIO AZEVEDO • 113 •


rodando deliciosamente, ao som de langorosas valsas e à luz de candelabros
de mil velas de todas as cores. E carruagens desfilavam reluzentes, com uma
coroa à portinhola, o cocheiro teso, de libré, sopeando parelhas de cavalos
grandes. E intermináveis mesas estendiam-se, serpenteando a perder de
vista, acumuladas de iguarias, numa encantadora confusão de flores, luzes,
baixelas e cristais, cercadas de um e de outro lado por luxuoso renque de
convivas, de taça em punho, brindando o anfitrião.
E, porque nada disso o vendeiro conhecia de perto, mas apenas pelo
ruído namorador e fátuo, ficava deslumbrado com o seu próprio sonho. Tudo
aquilo, que agora lhe deparava o delírio, até aí só lhe passara pelos olhos
ou lhe chegara aos ouvidos como o eco e reflexo de um mundo inatingível
e longínquo; um mundo habitado por seres superiores; um paraíso de gozos
excelentes e delicados, que os seus grosseiros sentidos repeliam; um con-
junto harmonioso e discreto de sons e cores mal definidas e vaporosas;
um quadro de manchas pálidas, sussurrantes, sem firmezas de tintas, nem
contornos, em que se não determinava o que era pétala de rosa ou asa de
borboleta, murmúrio de brisa ou ciciar de beijos.
Não obstante, ao lado dele a crioula roncava, de papo para o ar, gorda,
estrompada de serviço, tresandando a uma mistura de suor com cebola crua
e gordura podre.
Mas João Romão nem dava por ela; só o que ele via e sentia era todo
aquele voluptuoso mundo inacessível vir descendo para a terra, chegando-se
para o seu alcance, lentamente, acentuando-se. E as dúbias sombras
tomavam forma, e as vozes duvidosas e confusas transformavam-se em falas
distintas, e as linhas desenhavam-se nítidas, e tudo se ia esclarecendo e tudo
se aclarava, num reviver de natureza ao raiar do sol. Os tênues murmúrios
suspirosos desdobravam-se em orquestra de baile, onde se distinguiam
instrumentos, e os surdos rumores indefinidos eram já animadas conversas,
em que damas e cavalheiros discutiam política, artes, literatura e ciência.
E uma vida inteira, completa, real, descortinou-se amplamente defronte dos
seus olhos fascinados; uma vida fidalga, de muito luxo, de muito dinheiro;
uma vida de palácio, entre mobílias preciosas e objetos esplêndidos, onde
ele se via cercado de titulares milionários, e homens de farda bordada, a
quem tratava por tu, de igual para igual, pondo-lhes a mão no ombro. E ali
ele não era, nunca fora, o dono de um cortiço, de tamancos e em mangas

• 114 • O CORTIÇO
de camisa; ali era o Sr. Barão! O Barão do ouro! O Barão das grandezas!
O Barão dos milhões! Vendeiro! Qual! Era o famoso, o enorme capitalista!
O proprietário sem igual! O incomparável banqueiro, em cujos capitais
se equilibrava a terra, como imenso globo em cima de colunas feitas de
moedas de ouro. E viu-se logo montado a cavaleiras sobre o mundo, pre-
tendendo abarcá-lo com as suas pernas curtas; na cabeça uma coroa de rei
e na mão um cetro. E logo, de todos os cantos do quarto, começaram a
jorrar cascatas de libras esterlinas, e a seus pés principiou a formar-se um
formigueiro de pigmeus em grande movimento comercial; e navios descar-
regavam pilhas e pilhas de fardos e caixões marcados com as iniciais do
seu nome; e telegramas faiscavam eletricamente em volta da sua cabeça;
e paquetes de todas as nacionalidades giravam vertiginosamente em torno
do seu corpo de colosso, arfando e apitando sem trégua; e rápidos comboios
a vapor atravessam-no todo, de um lado a outro, como se o cosessem com
uma cadeia de vagões.
Mas, de repente, tudo desapareceu com a seguinte frase:
— Acorda, seu João, para ir à praia. São horas!
Bertoleza chamava-o aquele domingo, como todas as manhãs, para
ir buscar o peixe, que ela tinha de preparar para os seus fregueses. João
Romão, com medo de ser iludido, não confiava nunca aos empregados a
menor compra a dinheiro; nesse dia, porém, não se achou com ânimo de
deixar a cama e disse à amiga que mandasse o Manuel.
Seriam quatro da madrugada. Ele conseguiu então passar pelo sono.
Às seis estava de pé. Defronte, a casa do Miranda resplandecia já.
Içaram-se bandeiras nas janelas da frente; mudaram-se as cortinas,
armaram-se florões de murta à entrada e recamaram-se de folhas de man-
gueira o corredor e a calçada. Dona Estela mandou soltar foguetes e queimar
bombas ao romper da alvorada. Uma banda de música, em frente à porta do
sobrado, tocava desde essa hora. O Barão madrugara com a família; todo de
branco, com uma gravata de rendas, brilhantes no peito da camisa, chegava
de vez em quando a uma das janelas, ao lado da mulher ou da filha, agrade-
cendo para a rua; e limpava a testa com o lenço; acendia charutos, risonho,
feliz, resplandecente.
João Romão via tudo isto com o coração moído. Certas dúvidas abor-
recidas entravam-lhe agora a roer por dentro: qual seria o melhor e o

ALUÍSIO AZEVEDO • 115 •


mais acertado: — ter vivido como ele vivera até ali, curtindo privações, em
tamancos e mangas de camisa; ou ter feito como o Miranda, comendo boas
coisas e gozando à farta?... Estaria ele, João Romão, habilitado a possuir e
desfrutar tratamento igual ao do vizinho?... Dinheiro não lhe faltava para
isso... Sim, de acordo! Mas teria ânimo de gastá-lo assim, sem mais nem
menos?... Sacrificar uma boa porção de contos de réis, tão penosamente acu-
mulados, em troca de uma teteia para o peito?... Teria ânimo de dividir o
que era seu, tomando esposa, fazendo família; e cercando-se de amigos?...
Teria ânimo de encher de finas iguarias e vinhos preciosos a barriga dos
outros, quando até ali fora tão pouco condescendente para com a própria?...
E, caso resolvesse mudar de vida radicalmente, unir-se a uma senhora bem-
-educada e distinta de maneiras, montar um sobrado como o do Miranda e
volver-se titular, estaria apto para o fazer?... Poderia dar conta do recado?...
Dependeria tudo isso somente da sua vontade?... “Sem nunca ter vestido um
paletó, como vestiria uma casaca?... Com aqueles pés, deformados pelo diabo
dos tamancos, criados à solta, sem meias, como calçaria sapatos de baile?... E
suas mãos, calosas e maltratadas, duras como as de um cavouqueiro, como
se ajeitariam com a luva?... E isso ainda não era tudo! O mais difícil seria o
que tivesse de dizer aos seus convidados!... Como deveria tratar as damas
e cavalheiros, em meio de um grande salão cheio de espelhos e cadeiras
douradas?... Como se arranjaria para conversar, sem dizer barbaridades?...”
E um desgosto negro e profundo assoberbou-lhe o coração, um desejo
forte de querer saltar e um medo invencível de cair e quebrar as pernas.
Afinal, a dolorosa desconfiança de si mesmo e a terrível convicção da sua
impotência para pretender outra coisa que não fosse ajuntar dinheiro, e
mais dinheiro, e mais ainda, sem saber para que e com que fim, acabaram
azedando-lhe de todo a alma e tingindo de fel a sua ambição e despolindo
o seu ouro.
“Fora uma besta!... pensou de si próprio, amargurado: Uma grande
besta!... Pois não! Por que em tempo não tratara de habituar-se logo a
certo modo de viver, como faziam tantos outros seus patrícios e colegas de
profissão?... Por que, como eles, não aprendera a dançar? E não frequentar
sociedades carnavalescas? E não fora de vez em quando à Rua do Ouvidor e
aos teatros e bailes, e corridas e a passeios?... Por que se não habituara com
as roupas finas, e com o calçado justo, e com a bengala, e com o lenço, e com

• 116 • O CORTIÇO
o charuto, e com o chapéu, e com a cerveja, e com tudo que os outros usavam
naturalmente, sem precisar de privilégio para isso?... Maldita economia!”
— Teria gasto mais, é verdade!... Não estaria tão bem!... Mas, ora adeus!
Estaria habilitado a fazer do meu dinheiro o que bem quisesse!... Seria um
homem civilizado!...
— Você deu hoje para conversar com as almas, seu João?... perguntou-lhe
Bertoleza, notando que ele falava sozinho, distraído do serviço.
— Deixe! Não me amole você também. Não estou bom hoje!
— Ó gentes! Não falei por mal!... Credo!
— ‘Stá bem! Basta!
E o seu mau humor agravou-se pelo correr do dia. Começou a implicar
com tudo. Arranjou logo uma pega, à entrada da venda, com o fiscal da rua:
“Pois ele era lá algum parvo, que tivesse medo de ameaças de multas?...
Se o bolas do fiscal esperava comê-lo por uma perna, como costumava
fazer com os outros, que experimentasse, para ver só quanto lhe custaria
a festa!... E que lhe não rosnasse muito, que ele não gostava de cães à
porta!... Era andar!” Pegou-se depois com a Machona, por causa de um gato
desta, que, a semana passada, lhe fora ao tabuleiro do peixe frito. Parava
defronte das tinas vazias, encolerizado, procurando pretextos para ralhar.
Mandava, com um berro, saírem as crianças de seu caminho: “Que praga de
piolhos! Arre, demônio! Nunca vira gente tão danada para parir! Pareciam
ratas!” Deu um encontrão no velho Libório.
— Sai tu também do caminho, fona de uma figa! Não sei que diabo fica
fazendo cá no mundo um caco velho como este, que já não presta pra nada!
Protestou contra os galos de um alfaiate, que se divertia a fazê-los
brigar, no meio de grande roda entusiasmada e barulhenta. Vituperou os
italianos, porque estes, na alegre independência do domingo, tinham à porta
da casa uma esterqueira de cascas de melancia e laranja, que eles comiam
tagarelando, assentados sobre a janela e a calçada.
— Quero isto limpo! bramava furioso. Está pior que um chiqueiro de
porcos! Apre! Tomara que a febre amarela os lamba a todos! Maldita raça de
carcamanos! Hão de trazer-me isto asseado ou vai tudo para o olho da rua!
Aqui mando eu!
Com a pobre velha Marciana, que não tratara de despejar o número 12,
conforme a intimação da véspera, a sua fúria tocou ao delírio. A infeliz, desde

ALUÍSIO AZEVEDO • 117 •


que Florinda lhe fugira, levava a choramingar e maldizer-se, monologando
com persistência maníaca. Não pregou olho durante toda a noite; saíra e
entrara na estalagem mais de vinte vezes, irrequieta, ululando, como uma
cadela a quem roubaram o cachorrinho.
Estava apatetada; não respondia às perguntas que lhe dirigiam. João
Romão falou-lhe; ela nem sequer se voltou para ouvir. E o vendeiro, cada
vez mais excitado, foi buscar dois homens e ordenou que esvaziassem o
número 12.
— Os tarecos fora! E já! Aqui mando eu! Aqui sou eu o monarca! E tinha
gestos inflexíveis de déspota.
Principiou o despejo.
— Não! Aqui dentro não! Tudo lá fora! Na rua! gritou ele, quando os car-
regadores quiseram depor no pátio os trens de Marciana. Lá fora do portão!
Lá fora do portão!
E a mísera, sem opor uma palavra, assistia ao despejo acocorada
na rua, com os joelhos juntos, as mãos cruzadas sobre as canelas, res-
mungando. Transeuntes paravam a olhá-la. Formava-se já um grupo de
curiosos. Mas ninguém entendia o que ela rosnava; era um rabujar confuso,
interminável, acompanhado de um único gesto de cabeça, triste e automático.
Ali perto, o colchão velho, já roto e destripado, os móveis desconjuntados e
sem verniz, as trouxas de molambos úteis, as louças ordinárias e sujas do uso,
tinham, tudo amontoado e sem ordem, um ar indecoroso de interior de quarto
de dormir, devassado em flagrante intimidade. E veio o homem dos cinco ins-
trumentos, que, aos domingos, aparecia sempre; e fez-se o entra e sai dos
mercadores; e lavadeiras ganharam a rua em trajos de passeio, e os tabuleiros
de roupa engomada, que saíam, cruzaram-se com os sacos de roupa suja, que
entravam; e Marciana não se movia do seu lugar, monologando. João Romão
percorreu o número 12, escancarando as portas, a dar arres e empurrando para
fora, com o pé, algum trapo ou algum frasco vazio que lá ficara abandonado;
e a enxotada, indiferente a tudo, continuava a sussurrar funebremente. Já não
chorava, mas os olhos tinha-os ainda relentados na sua muda fixidez. Algumas
mulheres da estalagem iam ter com ela de vez em quando, agora de novo
compungidas, e faziam-lhe oferecimentos, Marciana não respondia. Quiseram
obrigá-la a comer; não houve meio. A desgraçada não prestava atenção a
coisa alguma, parecia não dar pela presença de ninguém. Chamaram-na pelo

• 118 • O CORTIÇO
nome repetidas vezes; ela persistia no seu ininteligível monólogo, sem tirar
a vista de um ponto.
— Cruzes! Parece que lhe deu alguma!
A Augusta chegara-se também.
— Teria ensandecido?... perguntou à Rita, que, a seu lado, olhava para a
infeliz, com um prato de comida na mão. Coitada!
— Tia Marciana! dizia a mulata. Não fique assim! Levante-se! Meta os
seus trens pra dentro! Vá lá pra casa até encontrar arrumação!...
Nada! O monólogo continuava.
— Olhe que vai chover! Não tarda a cair água! Já senti dois pingos na
cara. Qual!
A Bruxa, a certa distância, fitava-a com estranheza, igualmente imóvel,
como um efeito de sugestão.
Rita afastou-se, porque acabava de chegar o Firmo, acompanhado pelo
Porfiro, trazendo ambos embrulhos para o jantar. O amigo da das Dores
também veio. Deram três horas da tarde. A casa do Miranda continuava em
festa animada cada vez mais cheia de visitas; lá dentro a música quase que
não tomava fôlego, enfiando quadrilhas e valsas; moças e meninas dan-
çavam na sala da frente, com muito riso; desarrolhavam-se garrafas a todo
instante; os criados iam e vinham, de carreira, da sala de jantar à despensa
e à cozinha, carregados de copos em salvas; Henrique, suado e vermelho,
aparecia de quando em quando à janela, impaciente por não ver Pombinha,
que estava esse dia de passeio com a mãe em casa de Léonie.
João Romão, depois de serrazinar na venda com os caixeiros e com a
Bertoleza, tornou ao pátio da estalagem queixando-se de que tudo ali ia
muito mal. Censurou os trabalhadores da pedreira, nomeando o próprio
Jerônimo, cuja força física aliás o intimidara sempre. “Era um relaxamento
aquela porcaria de serviço! Havia três semanas que estava com uma broca
à toa, sem atar, nem desatar; afinal aí chegara o domingo e não se havia
ainda lascado fogo! Uma verdadeira calaçaria! O tal seu Jerônimo, dantes
tão apurado, era agora o primeiro a dar o mau exemplo! Perdia noites no
samba! Não largava os rastros da Rita Baiana e parecia embeiçado por ela!
Não tinha jeito!” Piedade, ouvindo o vendeiro dizer mal do seu homem,
saltou em defesa deste com duas pedras na mão, e uma contenda travou-se,
assanhando todos os ânimos. Felizmente, a chuva, caindo em cheio, veio

ALUÍSIO AZEVEDO • 119 •


dispersar o ajuntamento que se tornava sério. Cada um correu para o seu
buraco, num alvoroço exagerado; as crianças despiram-se e vieram cá fora
tomar banho debaixo das goteiras, por pagode, gritando, rindo, saltando e
atirando-se ao chão, a espernearem; fingindo que nadavam. E lá defronte, no
sobrado, ferviam brindes, enquanto a água jorrava copiosamente, alagando
o pátio.
Quando João Romão entrou na venda, recolhendo-se da chuva, um cai-
xeiro entregou-lhe um cartão de Miranda.
Era um convite para lá ir à noite tomar uma chávena de chá.
O vendeiro, a princípio, ficou lisonjeado com o obséquio, primeiro desse
gênero que em sua vida recebia; mas logo depois voltou-lhe a cólera com
mais ímpeto ainda. Aquele convite irritava-o como um ultraje, uma provo-
cação. “Por que o pulha o convidara, devendo saber que ele decerto lá não
ia?... Para que, se não para o enfrenesiar ainda mais do que já estava?!...
Seu Miranda que fosse à tábua com a sua festa e com os seus títulos!”
— Não preciso dele para nada!... exclamou o vendeiro. Não preciso, nem
dependo de nenhum safardana! Se gostasse de festas, dava-as eu!
No entanto, começou a imaginar como seria, no caso que estivesse pre-
venido de roupa e aceitasse o convite: figurou-se bem vestido, de pano fino,
com uma boa cadeia de relógio, uma gravata com alfinete de brilhantes; e
viu-se lá em cima, no meio da sala, a sorrir para os lados, prestando atenção
a um, prestando atenção a outro, discretamente silencioso e afável, sentindo
que o citavam dos lados em voz mortiça e respeitosa como um homem rico,
cheio de independência. E adivinhava os olhares aprobativos das pessoas
sérias; os óculos curiosos das velhas assestados sobre ele, procurando ver se
estaria ali um bom arranjo para uma das filhas de menor cotação.
Nesse dia serviu mal e porcamente aos fregueses; tratou aos repelões a
Bertoleza e, quando, já às cinco horas, deu com a Marciana, que uns negros
por compaixão haviam arrastado para dentro da venda, disparatou:
— Ora bolas! Pra que diabo me metem em casa este estupor?! Gosto
de ver tais caridades com o que é dos outros! Isto aqui não é acoito de
vagabundos!...
E, como um polícia, todo encharcado de chuva, entrasse para beber um
gole de parati, João Romão voltou-se para ele e disse-lhe:

• 120 • O CORTIÇO
— Camarada, esta mulher é gira! Não tem domicílio, e eu não hei de,
quando fechar a porta, ficar com ela aqui dentro da venda!
O soldado saiu e, daí a coisa de uma hora, Marciana era carregada para
o xadrez, sem o menor protesto e sem interromper o seu monólogo de
demente. Os cacaréus foram recolhidos ao depósito público por ordem do
inspetor do quarteirão. E a Bruxa era a única que parecia deveras impressio-
nada com tudo aquilo.
Entretanto, a chuva cessou completamente, o sol reapareceu, como
para despedir-se: andorinhas esgaivotaram no ar; e o cortiço palpitou inteiro
na trêfega alegria do domingo. Nas salas do barão a festa engrossava, cada
vez mais estrepitosa; de vez em quando vinha de lá uma taça quebrar-se no
pátio da estalagem, levantando protestos e surriadas.
A noite chegou muito bonita, com um belo luar de lua cheia, que começou
ainda com o crepúsculo; e o samba rompeu mais forte e mais cedo que de
costume, incitado pela grande animação que havia em casa do Miranda.
Foi um forrobodó valente. A Rita Baiana essa noite estava de veia
para a coisa; estava inspirada; divina! Nunca dançara com tanta graça e
tamanha lubricidade!
Também cantou. E cada verso que vinha da sua boca de mulata era um
arrulhar choroso de pomba no cio. E o Firmo, bêbedo de volúpia, enroscava-se
todo ao violão; e o violão e ele gemiam com o mesmo gosto, grunhindo,
ganindo, miando, com todas as vozes de bichos sensuais, num desespero de
luxúria que penetrava até ao tutano com línguas finíssimas de cobra.
Jerônimo não pôde conter-se: no momento em que a baiana, ofe-
gante de cansaço, caiu exausta, assentando-se ao lado dele, o português
segredou-lhe com a voz estrangulada de paixão:
— Meu bem! Se você quiser estar comigo, dou uma perna ao demo!
O mulato não ouviu, mas notou o cochicho e ficou, de má cara, a rondar
disfarçadamente o rival.
O canto e a dança continuavam todavia, sem afrouxar. Entrou a das
Dores. Neném, mais uma amiga sua, que fora passar o dia com ela, rodavam
de mãos nas cadeiras, rebolando em meio de uma volta de palmas caden-
ciadas, no acompanhamento do ritmo requebrado da música.
Quando o marido de Piedade disse um segundo cochicho à Rita, Firmo
precisou empregar grande esforço para não ir logo às do cabo.

ALUÍSIO AZEVEDO • 121 •


Mas, lá pelo meio do pagode, a baiana caíra na imprudência de
derrear-se toda sobre o português e soprar-lhe um segredo, requebrando os
olhos. Firmo, de um salto, aprumou-se então defronte dele, medindo-o de
alto a baixo com um olhar provocador e atrevido. Jerônimo, também posto
de pé, respondeu altivo com um gesto igual. Os instrumentos calaram-se
logo. Fez-se um profundo silêncio. Ninguém se mexeu do lugar em que
estava. E, no meio da grande roda, iluminados amplamente pelo capitoso
luar de abril, os dois homens, perfilados defronte um do outro, olhavam-se
em desafio.
Jerônimo era alto, espadaúdo, construção de touro, pescoço de Hércules,
punho de quebrar um coco com um murro: era a força tranquila, o pulso de
chumbo. O outro, franzino, um palmo mais baixo que o português, pernas
e braços secos, agilidade de maracajá: era a força nervosa; era o arrebata-
mento que tudo desbarata no sobressalto do primeiro instante. Um, sólido e
resistente; o outro, ligeiro e destemido, mas ambos corajosos.
— Senta! Senta!
— Nada de rolo!
— Segue a dança, gritaram em volta.
Piedade erguera-se para arredar o seu homem dali.
O cavouqueiro afastou-a com um empurrão, sem tirar a vista de cima
do mulato.
— Deixa-me ver o que quer de mim este cabra!... rosnou ele.
— Dar-te um banho de fumaça, galego ordinário! respondeu Firmo, frente
a frente; agora avançando e recuando, sempre com um dos pés no ar, e bam-
boleando todo o corpo e meneando os braços, como preparado para agarrá-lo.
Jerônimo, esbravecido pelo insulto, cresceu para o adversário com
um soco armado; o cabra, porém, deixou-se cair de costas, rapidamente,
firmando-se nas mãos o corpo suspenso, a perna direita levantada; e o soco
passou por cima, varando o espaço, enquanto o português apanhava no
ventre um pontapé inesperado.
— Canalha! berrou possesso; e ia precipitar-se em cheio sobre o mulato,
quando uma cabeçada o atirou no chão.
— Levanta-se, que não dou em defuntos! exclamou o Firmo, de pé,
repetindo a sua dança de todo o corpo.

• 122 • O CORTIÇO
O outro erguera-se logo e, mal se tinha equilibrado, já uma rasteira o
tombava para a direita, enquanto da esquerda ele recebia uma tapona na
orelha. Furioso, desferiu novo soco, mas o capoeira deu para trás um salto
de gato e o português sentiu um pontapé nos queixos.
Espirrou-lhe sangue da boca e das ventas. Então fez-se um clamor
medonho. As mulheres quiseram meter-se de permeio, porém o cabra as
emborcava com rasteiras rápidas, cujo movimento de pernas apenas se
percebia. Um horrível sarilho se formava. João Romão fechou às pressas as
portas da venda e trancou o portão da estalagem, correndo depois para o
lugar da briga. O Bruno, os mascates, os trabalhadores da pedreira, e todos
os outros que tentaram segurar o mulato, tinham rolado em torno dele,
formando-se uma roda limpa, no meio da qual o terrível capoeira, fora de si,
doido, reinava, saltando a um tempo para todos os lados, sem consentir que
ninguém se aproximasse. O terror arrancava gritos agudos. Estavam já todos
assustados, menos a Rita que, a certa distância, via, de braços cruzados,
aqueles dois homens a se baterem por causa dela; um ligeiro sorriso encres-
pava-lhe os lábios. A lua escondera-se: mudara o tempo; o céu, de limpo que
estava, fizera-se cor de lousa; sentia-se um vento úmido de chuva. Piedade
berrava reclamando polícia; tinha levado um troca-queixos do marido,
porque insistia em tirá-lo da luta. As janelas do Miranda acumulavam-se de
gente. Ouviam-se apitos, soprados com desespero.
Nisto, ecoou na estalagem um bramido de fera enraivecida: Firmo aca-
bava de receber, sem esperar, uma formidável cacetada na cabeça. É que
Jerônimo havia corrido à casa e armara-se com o seu varapau minhoto.
E então o mulato, com o rosto banhado de sangue, refilando as presas e
espumando de cólera, erguera o braço direito, onde se viu cintilar a lâmina
de uma navalha.
Fez-se uma debandada em volta dos dois adversários, estrepitosa,
cheia de pavor. Mulheres e homens atropelavam-se, caindo uns por cima
dos outros. Albino perdera os sentidos; Piedade clamava, estarrecida e em
soluços, que lhe iam matar o homem; a das Dores soltava censuras e maldi-
ções contra aquela estupidez de se destriparem por causa de entrepernas de
mulher; a Machona, armada com um ferro de engomar, jurava abrir as fuças
a quem lhe desse um segundo coice como acabava ela de receber um nas
ancas; Augusta enfiara pela porta do fundo da estalagem, para atravessar o

ALUÍSIO AZEVEDO • 123 •


capinzal e ir à rua ver se descobria o marido, que talvez estivesse de serviço
no quarteirão. Por esse lado acudiam curiosos e o pátio enchia-se de gente
de fora. Dona Isabel e Pombinha, de volta da casa de Léonie, tiveram dificul-
dade em chegar ao número 15, onde, mal entraram, fecharam-se por dentro,
praguejando a velha contra a desordem e lamentando-se da sorte que as
lançou naquele inferno. Entanto, no meio de uma nova roda, encintada pelo
povo, o português e o brasileiro batiam-se.
Agora a luta era regular: havia igualdade de partidos, porque o cavou-
queiro jogava o pau admiravelmente; jogava-o tão bem quanto o outro jogava
a sua capoeiragem. Embalde Firmo tentava alcançá-lo; Jerônimo, sopesando
ao meio a grossa vara na mão direita, girava-a com tal perícia e ligeireza em
torno do corpo, que parecia embastilhado por uma teia impenetrável e sibi-
lante. Não se lhe via a arma; só se ouvia um zunido do ar simultaneamente
cortado em todas as direções.
E, ao mesmo tempo que se defendia, atacava. O brasileiro tinha já rece-
bido pauladas na testa, no pescoço, nos ombros, nos braços, no peito, nos
rins e nas pernas. O sangue inundava-o inteiro; ele rugia e arfava, iroso e
cansado, investindo ora com os pés, ora com a cabeça, e livrando-se daqui,
livrando-se dali, aos pulos e às cambalhotas.
A vitória pendia para o lado do português. Os espectadores aclamavam-no
já com entusiasmo; mas, de súbito, o capoeira mergulhou, num relance, até as
canelas do adversário e surgiu-lhe rente dos pés, grupado nele, rasgando-lhe
o ventre com uma navalhada.
Jerônimo soltou um mugido e caiu de borco, segurando os intestinos.
— Matou! Matou! Matou! exclamaram todos com assombro.
Os apitos esfuziaram mais assanhados.
Firmo varou pelos fundos do cortiço e desapareceu no capinzal.
— Pega! Pega!
— Ai, o meu rico homem! ululou Piedade, atirando-se de joelhos sobre o
corpo ensanguentado do marido. Rita viera também de carreira lançar-se ao
chão junto dele, para lhe afagar as barbas e os cabelos.
— É preciso o doutor! suplicou aquela, olhando para os lados à procura
de uma alma caridosa que lhe valesse.
Mas nisto um estardalhaço de formidáveis pranchadas estrugiu no
portão da estalagem. O portão abalou com estrondo e gemeu.

• 124 • O CORTIÇO
— Abre! Abre! reclamavam de fora.
João Romão atravessou o pátio, como um general em perigo, gritando
a todos:
— Não entra a polícia! Não deixa entrar! Aguenta! Aguenta!
— Não entra! Não entra! repercutiu a multidão em coro.
E todo o cortiço ferveu que nem uma panela ao fogo.
— Aguenta! Aguenta!
Jerônimo foi carregado para o quarto, a gemer, nos braços da mulher e
da mulata.
— Aguenta! Aguenta!
De cada casulo espipavam homens armados de pau, achas de lenha,
varais de ferro. Um empenho coletivo os agitava agora, a todos, numa soli-
dariedade briosa, como se ficassem desonrados para sempre se a polícia
entrasse ali pela primeira vez. Enquanto se tratava de uma simples luta entre
dois rivais, estava direito! “Jogassem lá as cristas, que o mais homem ficaria
com a mulher!” mas agora tratava-se de defender a estalagem, a comuna,
onde cada um tinha a zelar por alguém ou alguma coisa querida.
— Não entra! Não entra!
E berros atroadores respondiam às pranchadas, que lá fora se repetiam
ferozes.
A polícia era o grande terror daquela gente, porque, sempre que pene-
trava em qualquer estalagem, havia grande estropício; à capa de evitar e
punir o jogo e a bebedeira, os urbanos invadiam os quartos, quebravam o
que lá estava, punham tudo em polvorosa. Era uma questão de ódio velho.
E, enquanto os homens guardavam a entrada do capinzal e sustentavam
de costas o portão da frente, as mulheres, em desordem, rolavam as tinas,
arrancavam jiraus, arrastavam carroças, restos de colchões e sacos de cal,
formando às pressas uma barricada.
As pranchadas multiplicavam-se. O portão rangia, estalava, começava a
abrir-se; ia ceder. Mas a barricada estava feita e todos entrincheirados atrás
dela. Os que entravam de fora por curiosidade não puderam sair e viam-se
metidos no surumbamba. As cercas das hortas voaram. A Machona terrível
fungara as saias e empunhava na mão o seu ferro de engomar. A das Dores,
que ninguém dava nada por ela, era uma das mais duras e que parecia mais
empenhada na defesa.

ALUÍSIO AZEVEDO • 125 •


Afinal o portão lascou; um grande rombo abriu-se logo; caíram tábuas;
e os quatro primeiros urbanos que se precipitaram dentro foram recebidos a
pedradas e garrafas vazias. Seguiram-se outros. Havia uns vinte. Um saco de
cal, despejado sobre eles, desnorteou-os.
Principiou então o salseiro grosso. Os sabres não podiam alcançar nin-
guém por entre a trincheira; ao passo que os projetis, arremessados lá de
dentro, desbaratavam o inimigo. Já o sargento tinha a cabeça partida e duas
praças abandonavam o campo, à falta de ar.
Era impossível invadir aquele baluarte com tão poucos elementos, mas a
polícia teimava, não mais por obrigação que por necessidade pessoal de des-
forço. Semelhante resistência os humilhava. Se tivessem espingardas fariam
fogo. O único deles que conseguiu trepar à barricada rolou de lá abaixo sob
uma carga de pau que teve de ser carregado para a rua pelos companheiros.
O Bruno, todo sujo de sangue, estava agora armado de um refle e o Porfiro,
mestre na capoeiragem, tinha na cabeça uma barretina de urbano.
— Fora os morcegos!
— Fora! Fora!
E, a cada exclamação, tome pedra! Tome lenha! Tome cal! Tome fundo
de garrafa!
Os apitos estridulavam mais e mais fortes.
Nessa ocasião, porém, Neném gritou, correndo na direção da barricada.
— Acudam aqui! Acudam aqui! Há fogo no número 12. Está saindo
fumaça!
— Fogo!
A esse grito um pânico geral apoderou-se dos moradores do cortiço.
Um incêndio lamberia aquelas cem casinhas enquanto o diabo esfrega
um olho!
Fez-se logo medonha confusão. Cada qual pensou em salvar o que
era seu. E os policiais, aproveitando o terror dos adversários, avançaram
com ímpeto, levando na frente o que encontravam e penetrando enfim no
infernal reduto, a dar espadeiradas para a direita e para a esquerda, como
quem destroça uma boiada. A multidão atropelava-se, desembestando num
alarido. Uns fugiam à prisão; outros cuidavam em defender a casa. Mas os
praças, loucos de cólera, metiam dentro as portas e iam invadindo e que-
brando tudo, sequiosos de vingança.

• 126 • O CORTIÇO
Nisto, roncou no espaço a trovoada. O vento do norte zuniu mais estri-
dente e um grande pé-d’água desabou cerrado.

XI
A Bruxa, por influência sugestiva da loucura de Marciana, piorou do
juízo e tentou incendiar o cortiço.
Enquanto os companheiros o defendiam a unhas e dentes, ela, com todo
o disfarce, carregava palha e sarrafos para o número 12 e preparava uma
fogueira. Felizmente acudiram a tempo; mas as consequências foram do
mesmo modo desastrosas, porque muitas outras casinhas, escapando como
aquela ao fogo, não escaparam à devastação da polícia. Algumas ficaram
completamente assoladas. E a coisa seria ainda mais feia, se não viera o
providencial aguaceiro apagar também o outro incêndio ainda pior, que, de
parte a parte, lavrava nos ânimos. A polícia retirou-se sem levar nenhum
preso. “A ir um iriam todos à estação! Deus te livre! Demais, para quê? O que
ela queria fazer, fez! Estava satisfeita!”
Apesar do empenho do João Romão, ninguém conseguiu descobrir o
autor da sinistra tentativa, e só muito tarde cada qual cuidou de pregar olho,
depois de reacomodar, entre plangentes lamentações, o que se salvou do
destroço. O tempo levantou de novo à meia-noite. Ao romper da aurora já
muita gente estava de pé e o vendeiro passava uma revista minuciosa no
pátio, avaliando e carpindo, inconsolável e furioso, o seu prejuízo. De vez
em quando soltava uma praga. Além do que escangalharam os urbanos

ALUÍSIO AZEVEDO • 127 •


dentro das casas, havia muita tina partida, muito jirau quebrado, lampiões
em fanicos, hortas e cercas arrasadas; o portão da frente e a tabuleta foram
reduzidos a lenha. João Romão meditava, para cobrir o dano, carregar um
imposto sobre os moradores da estalagem, aumentando-lhes o aluguel
dos cômodos e o preço dos gêneros. Viu-se numa dobadoura durante o dia
inteiro; desde pela manhã dera logo as providências para que tudo voltasse
aos seus eixos o mais depressa possível: mandou buscar novas tinas; fabricar
novos jiraus e consertar os quebrados; pôs gente a remendar o portão e a
tabuleta. Ao meio-dia teve de comparecer à presença do subdelegado na
secretaria da polícia. Foi mesmo em mangas de camisa e sem meias; muitos
do cortiço o acompanharam, quer por espírito de camaradagem, quer por
simples curiosidade.
Uma verdadeira patuscada esse passeio à cidade! Parecia uma romaria;
algumas mulheres levaram os seus pequenitos ao colo; um magote de italianos
ia à frente, macarroneando, a fumar cachimbo; alguns cantavam. Ninguém
tomou bonde; e por toda a viagem discutiram e altercaram em grande troça,
comentando com gargalhadas e chalaças gordas o que iam encontrando, a
chamar a atenção das ruas por onde desfilava a ruidosa farândola.
A sala da polícia encheu-se.
O interrogatório, exclusivamente dirigido a João Romão, era respondido
por todos a um só tempo, a despeito dos protestos e das ameaças da autori-
dade, que se viu tonta. Nenhum deles nada esclarecia e todos se queixavam
da polícia, exagerando as perdas recebidas na véspera.
A respeito de como se travara o conflito e quem o provocara, o taver-
neiro declarou que nada podia saber ao certo, porque na ocasião se achava
ausente da estalagem. De que tinha certeza era de que as praças lhe inva-
diram a propriedade e puseram em cacos tudo o que encontraram, como se
aquilo lá fosse roupa de francês!
— Bem feito! bradou o subdelegado. Não resistissem!
Um coro de respostas assanhadas levantou-se para justificar a resis-
tência. “Ah! Estavam mais que fartos de ver o que pintavam os morcegos,
quando lhes não saía alguém pela frente! Esbodegavam até à última, só pelo
gostinho de fazer mal! Pois então uma criatura, porque estava a divertir-se
um bocado com os amigos, havia de ser aperreada que nem boi ladrão?...
Tinha lá jeito? Os rolos era sempre a polícia quem os levantava com as suas

• 128 • O CORTIÇO
fúrias! Não se metesse ela na vida de quem vivia sossegado no seu canto, e
não seria tanto barulho!...” Como de costume, o espírito de coletividade, que
unia aquela gente em círculo de ferro, impediu que transpirasse o menor
vislumbre de denúncia. O subdelegado, depois de dirigir-se inutilmente a
um por um, despachou o bando, que fez logo a sua retirada, no meio de uma
alacridade mais quente ainda que a da ida.
Lá no cortiço, de portas adentro, podiam esfaquear-se à vontade, que
nenhum deles, e muito menos a vítima, seria capaz de apontar o criminoso;
tanto que o médico, que, logo depois da invasão da polícia, desceu da casa do
Miranda à estalagem, para socorrer Jerônimo, não conseguiu arrancar deste
o menor esclarecimento sobre o motivo da navalhada. “Não fora nada!... Não
fora de propósito!... Estavam a brincar e sucedera aquilo!... Ninguém tivera a
menor intenção de fazer-lhe mossa!...”
Rita mostrou-se de uma incansável solicitude para com o ferido. Foi
ela quem correu a buscar os remédios, quem serviu de ajudante ao médico
e quem serviu de enfermeira ao doente. Muitos lá iam, demorando-se um
instante, para dar fé; ela, porém, desde que Jerônimo se achou operado, não
lhe abandonou a cabeceira; ao passo que Piedade, aflita e atarantada, não
fazia senão chorar e arreliar-se.
A mulata, essa não chorava; mas a sua fisionomia tinha uma profunda
expressão de mágoa enternecida. Agora toda ela se sentia apegar-se àquele
homem bom e forte; àquele gigante inofensivo, àquele Hércules tranquilo que
mataria o Firmo com uma punhada, mas que, na sua boa-fé, se deixara nava-
lhar pelo facínora. “E tudo por causa dela! Só por ela!” Seu coração de mulher
rendia-se cativo a semelhante dedicação ensanguentada e dolorosa. E ele,
o mísero, interrompia as contrações do rosto para sorrir defronte dos olhos
enamorados da baiana, feliz naquela desgraça que lhe permitia gozar dos seus
carinhos. E tomava-lhe as mãos, e cingia-lhe a cintura, resignado e comovido,
sem uma palavra, sem um gesto, mas a dizer bem claro, na sua dor silenciosa
e quieta de animal ferido, que a amava muito, que a amava loucamente.
Rita afagava-o, já sem a menor sombra de escrúpulo, tratando-o por tu,
ameigando-lhe os cabelos sujos de sangue com a polpa macia da sua mão
feminil. E ali mesmo em presença da mulher, dele, só faltava beijá-lo com a
boca, que com os olhos o devorava de beijos ardentes e sequiosos.

ALUÍSIO AZEVEDO • 129 •


Depois da meia-noite dada, ela e Piedade ficaram sozinhas velando
o enfermo. Deliberou-se que este iria pela manhã para a Ordem de Santo
Antônio, de que era irmão. E, com efeito, no dia imediato, enquanto o ven-
deiro e seu bando andavam lá às voltas com a polícia, e o resto do cortiço
formigava, tagarelando em volta do conserto das tinas e jiraus, Jerônimo, ao
lado da mulher e da Rita, seguia dentro de um carro para o hospital.
As duas só voltaram de lá à noite, caindo de fadiga. De resto, toda a
estalagem estava igualmente prostrada e morrendo pela cama, se bem
que nesse dia as lavadeiras em geral gazeassem o trabalho; as que tinham
roupa com mais pressa foram lavar fora ou arrastaram bacias de banho para
debaixo das bicas, à falta de melhor vasilha para o serviço. Discutiu-se a
campanha da véspera sem variar o assunto. Aqui era um que lembrava as
suas proezas com os urbanos, descrevendo entusiasmado os pormenores da
luta; ali, outro repetia, cheio de empáfia, os desaforos que dissera depois nas
bochechas da autoridade; mais adiante trocavam-se queixas e recriminações;
cada qual, mulheres e homens, sofrera o seu prejuízo ou a sua arranhadura,
e mostravam entre si, numa febre de indignação, os objetos partidos ou a
parte do corpo escoriada.
Mas às nove da noite já não havia viva alma no pátio da estalagem.
A venda fechou-se um pouco mais cedo que de costume. Bertoleza atirou-se
ao colchão, estrompada; João Romão recolheu-se junto dela, porém não con-
seguiu dormir; sentia calafrios e pontadas na cabeça. Chamou pela amiga,
a gemer, e pediu-lhe que lhe desse alguma coisa para suar. Supunha estar
com febre.
A crioula só descansou quando, muitas horas adiante, depois
de mudar-lhe a roupa, o viu pegar no sono; e daí a pouco, às quatro da
madrugada, erguia-se ela, com estalos de juntas, a bocejar, fungando no seu
estremunhamento pesadão, e pigarreando forte. Acordou o caixeiro para ir ao
mercado; gargarejou um pouco d’água à torneira da cozinha e foi fazer fogo
para o café dos trabalhadores, riscando fósforos e acendendo cavacos num
fogareiro, donde começaram a borbotar grossos novelos de fumo espesso.
Lá fora clareava já, e a vida renascia no cortiço. A luta de todos os
dias continuava, como se não houvera interrupção. Principiava o burburinho.
Aquela noite bem dormida punha-os a todos de bom humor.

• 130 • O CORTIÇO
Pombinha, entretanto, nessa manhã acordara abatida e nervosa, sem
ânimo de sair dos lençóis. Pediu café à mãe, bebeu, e tornou a abraçar-se nos
travesseiros, escondendo o rosto.
— Não te sentes melhor hoje, minha filha?... perguntou-lhe Dona Isabel,
apalpando-lhe a testa. Febre não tens.
— Ainda sinto o corpo mole... Mas não é nada... Isto passa!...
— Foi de tanto gelo, que tomaste em casa de madama!... Não te dizia?...
Agora, o melhor é dar-te um escalda-pés!...
— Não, não, por amor de Deus! Daqui a pouco estou em pé!
Às oito horas, com efeito, levantava-se e fazia, indolentemente, o alinho
da cabeça, defronte do seu modesto lavatório de ferro. Dir-se-ia sem forças
para a menor coisa; toda ela transpirava uma contemplativa melancolia de
convalescente; havia uma doce expressão dolorosa na limpidez cristalina
de seus olhos de moça enferma; um pobre sorriso pálido a entreabrir-lhe
as pétalas da boca, sem lhe alegrar os lábios, que pareciam ressequidos à
míngua de beijos de amor; assim delicada planta murcha, languesce e morre,
se carinhosa borboleta não vai sacudir sobre ela as asas prenhes de fecundo
e dourado pólen.
O passeio à casa de Léonie fizera-lhe muito mal. Trouxe de lá impressões
de íntimos vexames, que nunca mais se apagariam por toda a sua vida.
A cocote recebeu-a de braços abertos, radiante com apanhá-la junto
de si, naqueles divãs fofos e traidores, entre todo aquele luxo extravagante
e requintado próprio para os vícios grandes. Ordenou à criada que não dei-
xasse entrar ninguém, ninguém, nem mesmo o Bebê, e assentou-se ao lado
da menina, bem juntinho uma da outra, tomando-lhe as mãos, fazendo-lhe
uma infinidade de perguntas, e pedindo-lhe beijos, que saboreava gemendo,
de olhos fechados.
Dona Isabel suspirava também, mas de outro modo; na sua parva com-
preensão do conforto, aqueles impertinentes espelhos, aqueles móveis
casquilhos e aquelas cortinas escandalosas arrancavam-lhe saudosas recor-
dações do bom tempo e avivavam a sua impaciência por melhor futuro.
Ai! Assim Deus quisesse ajudá-la!...
Às duas da tarde, Léonie, por sua própria mão serviu às visitas um
pequeno lanche de foie-gras, presunto e queijo, acompanhado de cham-
panha, gelo e água de Seltz, e, sem se descuidar um instante da rapariga,

ALUÍSIO AZEVEDO • 131 •


tinha para ela extremas solicitudes de namorado; levava-lhe a comida à
boca, bebia do seu copo, apertava-lhe os dedos por debaixo da mesa.
Depois da refeição, Dona Isabel, que não estava habituada a tomar
vinho, sentiu vontade de descansar o corpo; Léonie franqueou-lhe um bom
quarto, com boa cama, e, mal percebeu que a velha dormia, fechou a porta
pelo lado de fora, para melhor ficar em liberdade com a pequena.
Bem! Agora estavam perfeitamente a sós!
— Vem cá, minha flor!... disse-lhe, puxando-a contra si e deixando-se
cair sobre um divã. Sabes? Eu te quero cada vez mais!... Estou louca por ti!
E devorava-a de beijos violentos, repetidos, quentes, que sufocavam
a menina, enchendo-a de espanto e de um instintivo temor, cuja origem a
pobrezinha, na sua simplicidade, não podia saber qual era.
A cocote percebeu o seu enleio e ergueu-se, sem largar-lhe a mão.
— Descansemos nós também um pouco... propôs, arrastando-a para a
alcova.
Pombinha assentou-se, constrangida, no rebordo da cama e, toda
perplexa, com vontade de afastar-se, mas sem ânimo de protestar, por aca-
nhamento, tentou reatar o fio da conversa, que elas sustentavam um pouco
antes, à mesa, em presença de Dona Isabel. Léonie fingia prestar-lhe atenção
e nada mais fazia do que afagar-lhe a cintura, as coxas e o colo. Depois, como
que distraidamente, começou a desabotoar-lhe o corpinho do vestido.
— Não! Para quê!... Não quero despir-me...
— Mas faz tanto calor... Põe-te a gosto...
— Estou bem assim. Não quero!
— Que tolice a tua...! Não vês que sou mulher, tolinha?... De que tens
medo?... Olha! Vou dar exemplo!
E, num relance, desfez-se da roupa, e prosseguiu na campanha.
A menina, vendo-se descomposta, cruzou os braços sobre o seio, ver-
melha de pudor.
— Deixa! segredou-lhe a outra, com os olhos envesgados, a pupila
trêmula.
E, apesar dos protestos, das súplicas e até das lágrimas da infeliz,
arrancou-lhe a última vestimenta, e precipitou-se contra ela, a beijar-lhe
todo o corpo, a empolgar-lhe com os lábios o róseo bico do peito.

• 132 • O CORTIÇO
— Oh! Oh! Deixa disso! Deixa disso! reclamava Pombinha estorcendo-se
em cócegas, e deixando ver preciosidades de nudez fresca e virginal, que
enlouqueciam a prostituta.
— Que mal faz?... Estamos brincando...
— Não! Não! balbuciou a vítima, repelindo-a.
— Sim! Sim! insistiu Léonie, fechando-a entre os braços, como entre
duas colunas; e pondo em contato com o dela todo o seu corpo nu.
Pombinha arfava, relutando; mas o atrito daquelas duas grossas pomas
irrequietas sobre seu mesquinho peito de donzela impúbere e o roçar vertigi-
noso daqueles cabelos ásperos e crespos nas estações mais sensitivas da sua
feminilidade, acabaram por foguear-lhe a pólvora do sangue, desertando-lhe
a razão ao rebate dos sentidos.
Agora, espolinhava-se toda, cerrando os dentes, fremindo-lhe a carne
em crispações de espasmo; ao passo que a outra, por cima, doida de luxúria,
irracional, feroz, revoluteava, em corcovos de égua, bufando e relinchando.
E metia-lhe a língua tesa pela boca e pelas orelhas, e esmagava-lhe os
olhos debaixo dos seus beijos lubrificados de espuma, e mordia-lhe o lóbulo
dos ombros, e agarrava-lhe convulsivamente o cabelo, como se quisesse
arrancá-lo aos punhados. Até que, com um assomo mais forte, devorou-a num
abraço de todo o corpo, ganindo ligeiros gritos, secos, curtos, muito agudos, e
afinal desabou para o lado, exânime, inerte, os membros atirados num aban-
dono de bêbedo, soltando de instante a instante um soluço estrangulado.
A menina voltara a si e torcera-se logo em sentido contrário à adversária,
cingindo-se rente aos travesseiros e abafando o seu pranto, envergonhada
e corrida.
A impudica, mal orientada ainda e sem conseguir abrir os olhos, pro-
curou animá-la, ameigando-lhe a nuca e as espáduas. Mas Pombinha parecia
inconsolável, e a outra teve de erguer-se a meio e puxá-la como uma criança
para o seu colo, onde ela foi ocultando o rosto, a soluçar baixinho.
— Não chores assim, meu amor!...
Pombinha continuou a soluçar.
— Vamos! Não quero ver-te deste modo!... Estás zangada comigo?...
— Não volto mais aqui! Nunca mais! exclamou por fim a donzela, des-
galgando o leito para vestir-se.

ALUÍSIO AZEVEDO • 133 •


— Vem cá! Não sejas ruim! Ficarei muito triste se estiveres mal com a
tua negrinha!... Anda! Não me feches a cara!...
— Deixe-me!
— Vem cá, Pombinha!
— Não vou! Já disse!
E vestia-se com movimentos de raiva. Léonie saltara para junto dela e
pôs-se a beijar-lhe, à força, os ouvidos e o pescoço, fazendo se muito humilde,
adulando-a, comprometendo-se a ser sua escrava, e obedecer-lhe como um
cachorrinho, contanto que aquela tirana não se fosse assim zangada.
— Faço tudo! Tudo! Mas não fiques mal comigo! Ah! Se soubesses como
eu te adoro!...
— Não sei! Largue-me!...
— Espera!
— Que amolação! Oh!
— Deixa de tolice!... Escuta, por amor de Deus!
Pombinha acabava de encasar o último botão do corpinho, e repu-
xava o pescoço e sacudia os braços, ajustando bem a sua roupa ao corpo.
Mas Léonie caíra-lhe aos pés, enleando-a pelas pernas e beijando-lhe as saias.
— Olha!... Ouve!...
— Deixa-me sair!
— Não! Não hás de ir zangada, ou faço aqui um escândalo dos diabos!
— É que mamãe já acordou com certeza!...
— Que acordasse!
Agora a meretriz defendia a porta da alcova.
— Oh! Meu Deus! Deixe-me sair!
— Não deixo, sem fazermos as pazes...
— Que aborrecimento!
— Dá-me um beijo!
— Não dou!
— Pois então não sais!
— Eu grito!
— Pois grita! Que me importa!
— Arrede-se daí, por favor!...
— Faz as pazes...
— Não estou zangada, creia! Estou é indisposta... Não me sinto boa!

• 134 • O CORTIÇO
— Mas eu faço questão do beijo!
— Pois bem! Está aí!
E beijou-a.
— Não quero assim! Foi dado de má vontade!...
Pombinha deu-lhe outro.
— Ah! Agora bem! Espera um nada! Deixa arranjar-me! É um instante!
Em três tempos, lavou-se ligeiramente no bidê, endireitou o penteado
defronte do espelho, num movimento rápido de dedos, e empoou-se,
perfumou-se, e enfiou camisa, anágua e penteador, tudo com uma expedição
de quem está habituada a vestir-se muitas vezes por dia. E, pronta, correu
uma vista de olhos pela menina, desenrugou-lhe a saia, consertou-lhe
melhor os cabelos e, readquirindo o seu ar tranquilo de mulher ajuizada,
tomou-a pela cintura e levou-a vagarosamente até à sala de jantar, para
tomarem vermute com gasosa.
O jantar foi às seis e meia. Correu frio, não tanto por parte de Pombinha,
que aliás se mostrava bem incomodada, como porque Dona Isabel, dormindo
até o momento de a chamarem para mesa, sentia-se aziada com o foie-gras.
A dona da casa, todavia, não se forrou a desvelos e fez por alegrá-las
rindo e contando anedotas burlescas. Ao café apareceu Juju, que a criada
levara a passear desde logo depois do almoço, e uma afetação de agrados
levantou-se em torno da pequerrucha. Léonie pôs-se a conversar com ela,
falando como criança, dizendo-lhe que mostrasse a Dona Isabel “o seu papa-
tinho novo!”
Mais tarde, no terraço, enquanto fumava um cigarro, tomou a mão
de Pombinha e meteu-lhe no dedo um anel com um diamante cercado de
pérolas. A menina recusou o mimo, formalmente. Foi preciso a intervenção
da velha para que ela consentisse em aceitá-lo.
Às oito horas retiraram-se as visitas, seguindo direitinho para a esta-
lagem. Durante toda a viagem Pombinha parecia preocupada e triste.
— Que tens tu?... perguntou-lhe a mãe duas vezes.
E de ambas a filha respondeu:
— Nada! Aborrecimento...
No pouco que dormiu essa noite, que foi a do baralho com a polícia,
teve sonhos agitados e passou mal todo o dia seguinte, com molezas de
febre e dores no útero. Não arredou pé de casa, nem para ver os destroços do

ALUÍSIO AZEVEDO • 135 •


conflito. A notícia do defloramento e da fuga de Florinda, como a da loucura
da velha Marciana, produziu-lhe grande abalo nos nervos.
Na manhã imediata, a despeito de fazer-se forte, torceu o nariz ao pobre
almoço que Dona Isabel lhe apresentou carinhosa. Persistiam-lhe as dores
uterinas, não vivas, mas constantes. Não teve ânimo de pegar na costura, e
um livro que ela tentou ler, foi por várias vezes repelido.
Às onze para o meio-dia era tal o seu constrangimento e era tal o seu
desassossego entre as apertadas paredes do número 15, que, malgrado os
protestos da velha, saiu a dar uma volta por detrás do cortiço, à sombra dos
bambus e das mangueiras.
Uma irresistível necessidade de estar só, completamente só, uma
aflição de conversar consigo mesma, a apartava no seu estreito quarto sufo-
cante, tão tristonho e tão pouco amigo. Pungia-lhe na brancura da alma
virgem um arrependimento incisivo e negro das torpezas da antevéspera;
mas, lubrificada por essa recordação, toda a sua carne ria e rejubilava-se,
pressentindo delícias que lhe pareciam reservadas para mais tarde, junto de
um homem amado, dentro dela balbuciavam desejos, até aí mudos e ador-
mecidos; e mistérios desvendavam-se no segredo do seu corpo, enchendo-a
de surpresa e mergulhando-a em fundas concentrações de êxtase. Um ine-
fável quebranto afrouxava-lhe a energia e distendia-lhe os músculos com
uma embriaguez de flores traiçoeiras.
Não pôde resistir: assentou-se debaixo das árvores, um cotovelo em
terra, a cabeça reclinada contra a palma da mão.
Na doce tranquilidade daquela sombra morna, ouvia-se retinir dis-
tante a picareta dos homens da pedreira e o martelo dos ferreiros na forja.
E o canto dos trabalhadores ora mais claro, ora mais duvidoso, acompa-
nhando o marulhar dos ventos, ondeava no espaço, melancólico e sentido,
como um coro religioso de penitentes.
O calor tirava do capim um cheiro sensual.
A moça fechou as pálpebras, vencida pelo seu delicioso entorpeci-
mento, e estendeu-se de todo no chão, de barriga para o ar, braços e
pernas abertas.
Adormeceu.
Começou logo a sonhar que em redor ia tudo se fazendo de um cor-de-rosa,
a princípio muito leve e transparente, depois mais carregado, e mais, e mais,

• 136 • O CORTIÇO
até formar-se em torno dela uma floresta vermelha, cor de sangue, onde
largos tinhorões rubros se agitavam lentamente.
E viu-se nua, toda nua, exposta ao céu, sob a tépida luz de um sol
embriagador, que lhe batia de chapa sobre os seios.
Mas, pouco a pouco, seus olhos, posto que bem abertos, nada mais
enxergavam do que uma grande claridade palpitante, onde o sol, feito de
uma só mancha reluzente, oscilava como um pêndulo fantástico.
Entretanto, notava que, em volta da sua nudez alourada pela luz, iam-se
formando ondulantes camadas sanguíneas, que se agitavam, desprendendo
aromas de flor. E, rodando o olhar, percebeu, cheia de encantos, que se
achava deitada entre pétalas gigantescas, no regaço de uma rosa intermi-
nável, em que seu corpo se atufava como em ninho de veludo carmesim,
bordado de ouro, fofo, macio, trescalante e morno.
E suspirando, espreguiçou-se toda num enleio de volúpia ascética.
Lá do alto o sol a fitava obstinadamente, enamorado das suas mimosas
formas de menina.
Ela sorriu para ele, requebrando os olhos, e então o fogoso astro tremeu
e agitou-se, e, desdobrando-se, abriu-se de par em par em duas asas e prin-
cipiou a fremir, atraído e perplexo. Mas de repente, nem que se de improviso
lhe inflamassem os desejos, precipitou-se lá de cima agitando as asas, e
veio, enorme borboleta de fogo, adejar luxuriosamente em torno da imensa
rosa, em cujo regaço a virgem permanecia com os peitos franqueados.
E a donzela, sempre que a borboleta se aproximava da rosa, sentia-se
penetrar de um calor estranho, que lhe acendia, gota a gota, todo o seu
sangue de moça.
E a borboleta, sem parar nunca, doidejava em todas as direções ora
fugindo rápida, ora se chegando lentamente, medrosa de tocar com as suas
antenas de brasa a pele delicada e pura da menina.
Esta, delirante de desejos, ardia por ser alcançada e empinava o colo.
Mas a borboleta fugia.
Uma sofreguidão lúbrica, desensofrida, apoderou-se da moça; queria
a todo custo que a borboleta pousasse nela, ao menos um instante, um só
instante, e a fechasse num rápido abraço dentro das suas asas ardentes.
Mas a borboleta, sempre doida, não conseguia deter-se; mal se adiantava,
fugia logo, irrequieta, desvairada de volúpia.

ALUÍSIO AZEVEDO • 137 •


— Vem! Vem! suplicava a donzela, apresentando o corpo. Pousa um ins-
tante em mim! Queima-me a carne no calor das tuas asas!
E a rosa, que tinha ao colo, é que parecia falar e não ela. De cada vez
que a borboleta se avizinhava com as suas negaças, a flor arregaçava-se
toda, dilatando as pétalas, abrindo o seu pistilo vermelho e ávido daquele
contato com a luz.
— Não fujas! Não fujas! Pousa um instante!
A borboleta não pousou; mas, num delírio, convulsa de amor, sacudiu
as asas com mais ímpeto e uma nuvem de poeira dourada desprendeu-se
sobre a rosa, fazendo a donzela soltar gemidos e suspiros, tonta de gosto sob
aquele eflúvio luminoso e fecundante.
Nisto, Pombinha soltou um ai formidável e despertou sobressaltada,
levando logo ambas as mãos ao meio do corpo. E feliz, e cheia de susto ao
mesmo tempo, a rir e a chorar, sentiu o grito da puberdade sair-lhe afinal das
entranhas, em uma onda vermelha e quente.
A natureza sorriu-se comovida. Um sino, ao longe, batia alegre as doze
badaladas do meio-dia. O sol, vitorioso, estava a pino e, por entre a copagem
negra da mangueira, um dos seus raios descia em fio de ouro sobre o ventre
da rapariga, abençoando a nova mulher que se formava para o mundo.

XII
Pombinha ergueu-se de um pulo e abriu de carreira para casa.
No lugar em que estivera deitada o capim verde ficou matizado de pontos
vermelhos. A mãe lavava à tina, ela chamou-a com instância, enfiando cheia
de alvoroço pelo número 15. E aí, sem uma palavra, ergueu as saias do ves-
tido e expôs a Dona Isabel as suas fraldas ensanguentadas.
— Veio?! perguntou a velha com um grito arrancado do fundo d’alma.
A rapariga meneou a cabeça afirmativamente, sorrindo feliz e
enrubescida.
As lágrimas saltaram dos olhos da lavadeira.
— Bendito e louvado seja Nosso Senhor Jesus Cristo! exclamou ela,
caindo de joelhos defronte da menina e erguendo para Deus o rosto e as
mãos trêmulas.

• 138 • O CORTIÇO
Depois abraçou-se às pernas da filha e, no arrebatamento de sua
comoção, beijou-lhe repetidas vezes a barriga e parecia querer beijar
também aquele sangue abençoado, que lhes abria os horizontes da vida, que
lhes garantia o futuro; aquele sangue bom, que descia do céu, como a chuva
benfazeja sobre uma pobre terra esterilizada pela seca.
Não se pôde conter: enquanto Pombinha mudava de roupa, saiu ela ao
pátio, apregoando aos quatro ventos a linda notícia. E, se não fora a formal
oposição da menina, teria passeado em triunfo a camisa ensanguentada,
para que todos a vissem bem e para que todos a adorassem, entre hinos de
amor, que nem a uma verônica sagrada de um Cristo.
— Minha filha é mulher! Minha filha é mulher!
O fato abalou o coração do cortiço, as duas receberam parabéns e feli-
citações. Dona Isabel acendeu velas de cera à frente do seu oratório, e nesse
dia não pegou mais no trabalho, ficou estonteada, sem saber o que fazia, a
entrar e a sair de casa, radiante de ventura. De cada vez que passava junto
da filha dava-lhe um beijo na cabeça e em segredo recomendava-lhe todo
o cuidado. “Que não apanhasse umidade! Que não bebesse coisas frias!
Que se agasalhasse o melhor possível: e, no caso de sentir o corpo mole,
que se metesse logo na cama! Qualquer imprudência poderia ser fatal!...”
O seu empenho era pôr o João da Costa, no mesmo instante, ao corrente
da grande novidade e pedir-lhe que marcasse logo o dia do casamento; a
menina entendia que não, que era feio, mas a mãe arranjou um portador e
mandou chamar o rapaz com urgência. Ele apareceu à tarde. A velha convi-
dara gente para jantar; matou duas galinhas, comprou garrafas de vinho, e,
à noite, serviu, às nove horas, um chá com biscoitos. Neném e a das Dores
apresentaram-se em trajos de festa; fez-se muita cerimônia; conversou-se
em voz baixa, formando todos em volta de Pombinha uma solícita cadeia de
agrados, uma respeitosa preocupação de bons desejos, a que ela respondia
sorrindo comovida, como que exalando da frescura da sua virgindade um
vitorioso aroma de flor que desabrocha.
E a partir desse dia Dona Isabel mudou completamente. As suas rugas
alegraram-se; ouviam-na cantarolar pela manhã, enquanto varria a casa e
espanava os móveis.
Não obstante, depois do tremendo conflito que acabou em navalhada,
uma tristeza ia minando uma grande parte da estalagem. Já se não faziam as

ALUÍSIO AZEVEDO • 139 •


quentes noitadas de violão e dança ao relento. A Rita andava aborrecida e
concentrada, desde que Jerônimo partiu para a Ordem; Firmo fora intimado
pelo vendeiro a que lhe não pusesse, nunca mais, os pés em casa, sob pena
de ser entregue à polícia; Piedade, que vivia a dar ais, carpindo a ausência do
marido, ainda ficou mais consumida com a primeira visita que lhe fez ao hos-
pital; encontrou-o frio e sem uma palavra de ternura para ela, deixando até
perceber a sua impaciência para ouvir falar da outra, daquela maldita mulata
dos diabos, que, no fim de contas, era a única culpada de tudo aquilo e havia
de ser a sua perdição e mais do seu homem! Quando voltou de lá atirou-se
à cama, a soluçar sem alívio, e nessa noite não pôde pregar olho, senão já
pela madrugada. Um negro desgosto comia-a por dentro, como tubérculos
de tísica, e tirava-lhe a vontade para tudo que não fosse chorar.
Outro que também, coitado! arrastava a vida muito triste, era o Bruno.
A mulher, que a princípio não lhe fizera grande falta, agora o torturava com a
sua distância; um mês depois da separação, o desgraçado já não podia esconder
o seu sofrimento e ralava-se de saudades. A Bruxa, a pedido dele, tirou a sorte
nas cartas e disse-lhe misteriosamente que Leocádia ainda o amava.
Só Dona Isabel e a filha andavam deveras satisfeitas. Essas sim! Nunca
tinham tido uma época tão boa e tão esperançosa. Pombinha abandonara o
curso de dança; o noivo ia agora visitá-la, invariavelmente, todas as noites;
chegava sempre às sete horas e demorava-se até às dez; davam-lhe café
numa xícara especial, de porcelana; às vezes jogavam a bisca, e ele mandava
buscar, de sua algibeira, uma garrafa de cerveja alemã, e ficavam a conversar
os três, cada qual defronte do seu copo, a respeito dos projetos de felici-
dade comum; outras vezes o Costa, sempre muito respeitador, muito bom
rapaz, acendia o seu charuto da Bahia e deixava-se cair numa pasmaceira, a
olhar para a moça, todo embebido nela. Pombinha punha alegrias naqueles
serões com as suas garrulices de pomba que prepara o ninho. Depois do
seu idílio com o sol fazia-se muito amiga da existência, sorvendo a vida em
haustos largos, como quem acaba de sair de uma prisão e saboreia o ar livre.
Volvia-se carnuda e cheia, sazonava que nem uma fruta que nos provoca o
apetite de morder. Dona Isabel, ao lado deles, toscanejava do meio para o
fim da visita, traçando cruzes na boca e afugentando os bocejos com volup-
tuosas pitadas da sua insigne tabaqueira.

• 140 • O CORTIÇO
Fixado o dia do casamento, o assunto inalterável da conversa era o
enxoval da noiva e a casinha que o Costa preparava para a lua-de-mel. Iriam
todos três morar juntos; teriam cozinheiro e uma criada que lavasse e engo-
masse. O rapaz trouxera peças de linho e de algodão, e ali, à luz amarela do
velho candeeiro de querosene, enquanto a mãe talhava camisas e lençóis, a
filha cosia valentemente numa máquina que lhe oferecera o noivo.
Uma vez, eram duas da tarde, ela pregava rendas numa fronha de almo-
fada, quando o Bruno, cheio de hesitações, a coçar os cabelos da nuca, pálido
e mal asseado, disse-lhe, encostando-se à ombreira da porta:
— Ora, Nhã Pombinha... Tinha-lhe um servicinho a pedir... Mas vosme-
cezinha anda agora tão tomada com o seu enxoval e não há de querer dar-se
a maços...
— Que queres tu, Bruno?
— N’é nada, é que precisava que vosmecezinha me fizesse uma carta
p’raquele diabo... Mas já se vê que não tem cabimento... Fica pr’ao depois!
— Uma carta para tua mulher, não é?
— Coitada! É mais doida do que ruim! Pois se a gente até dos brutos tem
pena!...
— Pois estás servido. Queres para já?
— Não vale estorvar! Continue seu servicinho! Eu volto pr’outra vez!...
— Não! Anda cá, entra! O que se tem de fazer, faz-se logo!
— Deus lhe pague! Vosmecezinha é mesmo um anjo! Não sei a quem se
chegue a gente ao depois que já lhe não tivermos cá!...
E continuou a louvar a bondade da rapariga, enquanto esta, toda ser-
viçal, preparava numa mesinha redonda os seus apetrechos de escrita.
— Vamos lá, Bruno! Que queres tu mandar dizer à Leocádia?
— Diga-lhe, antes de mais nada, que aquilo que quebrei dela, que dou
outro! Que ela fez mal em quebrar também o que era meu, mas que fecho
os olhos! Águas passadas não movem moinho! Que sei que ela agora está
desempregada e aos paus; que está a dever para mais de mês na estalagem;
mas que não precisa dar cabeçadas: que me mande cá o senhorio, que me
entendo com ele. Que acho bom que ela deixe a casa da crioula onde come,
porque a mulher já se queixou e já disse, a quem quis ouvir, que aquilo lá não
era ponto de vadios e mulheres de má vida! Que ela, se tivesse um pouco de
tino, nem precisava estar às migalhas dos outros, que eu na forja fazia para a

ALUÍSIO AZEVEDO • 141 •


trazer de barriga cheia e mais aos filhos que Deus mandasse... — Principiava
a tomar calor. — Que a culpada de tudo isto é só ela e mais ninguém! Tivesse
um bocado de juízo e não precisava envergonhar a cara por aí...
— Isso já está dito, Bruno!
— Pois arrume-lhe outra vez a ver se ela toma brio!
— E que mais?
— Que lhe não quero mal, nem lhe rogo pragas, mas que é bem feito
que ela amargue um pouco do pão do diabo, pra ficar sabendo que uma
mulher direita não deve olhar senão pra seu marido; e que, se ela não fosse
tão maluca...
— Já aí vai você repetir inda uma vez a mesma cantiga!...
— Mas diga-lhe sempre, tenha paciência, Nhã Pombinha!... Que ainda
estaria aqui, comigo, como dantes, sem aguentar repelões de estranhos!...
— Adiante, Bruno!
— Diga-lhe...
E interrompeu-se.
Ora, que mais ele tinha a dizer?... Coçou a cabeça.
— Veja, Bruno, você é quem sabe o que precisa escrever a sua mulher...
— Diga-lhe...
Não se animava.
Que...
— Diga-lhe... Não! Não lhe diga mais nada!...
— Posso então fechar a carta?...
— Está bom... resmungou o ferreiro, decidindo-se. Vá lá! Diga-lhe que...
— Que...
Houve um silêncio, no qual o desgraçado parecia arrancar de dentro
uma frase que, no entanto, era a única ideia que o levava a dirigir-se à
mulher. Afinal, depois de coçar mais vivamente a cabeça, gaguejou com a
voz estrangulada de soluços:
— Diga-lhe que... se ela quiser tornar pra minha companhia... que pode
vir... Eu esqueço tudo!
Pombinha, impressionada pela transformação da voz dele, levantou o
rosto e viu que as lágrimas lhe desfilavam duas a duas, três a três, pela
cara, indo afogar-se-lhe na moita cerdosa das barbas. E, coisa estranha,
ela, que escrevera tantas cartas naquelas mesmas condições; que tantas

• 142 • O CORTIÇO
vezes presenciara o choro rude de outros muitos trabalhadores do cortiço,
sobressaltava-se agora com os desalentados soluços do ferreiro.
Porque, só depois que o sol lhe abençoou o ventre; depois que nas suas
entranhas ela sentiu o primeiro grito de sangue de mulher, teve olhos para
essas violentas misérias dolorosas, a que os poetas davam o bonito nome de
amor. A sua intelectualidade, tal como seu corpo, desabrochara inesperada-
mente, atingindo de súbito, em pleno desenvolvimento, uma lucidez que a
deliciava e surpreendia. Não a comovera tanto a revolução física. Como que
naquele instante o mundo inteiro se despia à sua vista, de improviso esclare-
cida, patenteando-lhe todos os segredos das suas paixões. Agora, encarando
as lágrimas do Bruno, ela compreendeu e avaliou a fraqueza dos homens, a
fragilidade desses animais fortes, de músculos valentes, de patas esmaga-
doras, mas que se deixavam encabrestar e conduzir humildes pela soberana
e delicada mão da fêmea.
Aquela pobre flor de cortiço, escapando à estupidez do meio em que
desabotoou, tinha de ser fatalmente vítima da própria inteligência. À míngua
de educação, seu espírito trabalhou à revelia, e atraiçoou-a, obrigando-a a
tirar da substância caprichosa da sua fantasia de moça ignorante e viva a expli-
cação de tudo que lhe não ensinaram a ver e sentir.
Bruno retirou-se com a carta. Pombinha pousou os cotovelos na mesa e
tulipou as mãos contra o rosto, a cismar nos homens.
Que estranho poder era esse, que a mulher exercia sobre eles, a tal
ponto, que os infelizes, carregados de desonra e de ludíbrio, ainda vinham
covardes e suplicantes mendigar-lhe o perdão pelo mal que ela lhes fizera?...
E surgiu-lhe então uma ideia bem clara da sua própria força e do seu
próprio valor.
Sorriu.
E no seu sorriso já havia garras.
Uma aluvião de cenas, que ela jamais tentara explicar e que até aí jaziam
esquecidas nos meandros do seu passado, apresentavam-se agora nítidas e
transparentes. Compreendeu como era que certos velhos respeitáveis, cujas
fotografias Léonie lhe mostrara no dia que passaram juntas, deixavam-se
vilmente cavalgar pela loureira, cativos e submissos, pagando a escravidão
com a honra, os bens, e até com a própria vida, se a prostituta, depois de
os ter esgotado, fechava-lhes o corpo. E continuou a sorrir, desvanecida na

ALUÍSIO AZEVEDO • 143 •


sua superioridade sobre esse outro sexo, vaidoso e fanfarrão, que se julgava
senhor e que no entanto fora posto no mundo simplesmente para servir ao
feminino; escravo ridículo que, para gozar um pouco, precisava tirar da sua
mesma ilusão a substância do seu gozo; ao passo que a mulher, a senhora, a
dona dele, ia tranquilamente desfrutando o seu império, endeusada e que-
rida, prodigalizando martírios que os miseráveis aceitavam contritos, a beijar
os pés que os deprimiam e as implacáveis mãos que os estrangulavam.
— Ah! Homens! Homens!... sussurrou ela de envolta com um suspiro.
E pegou de novo na costura, deixando que o pensamento vadiasse à
solta, enquanto os dedos iam maquinalmente pregando as rendas naquela
almofada, em que a sua cabeça teria de repousar para receber o primeiro
beijo genital.
Num só lance de vista, como quem apanha uma esfera entre as pontas
de um compasso, mediu com as antenas da sua perspicácia mulheril toda
aquela esterqueira, onde ela, depois de se arrastar por muito tempo
como larva, um belo dia acordou borboleta à luz do sol. E sentiu diante
dos olhos aquela massa informe de machos e fêmeas, a comichar, a fremir
concupiscente, sufocando-se uns aos outros. E viu o Firmo e o Jerônimo
atassalharem-se, como dois cães que disputam uma cadela da rua; e viu o
Miranda, ali defronte, subalterno ao lado da esposa infiel, que se divertia a
fazê-lo dançar a seus pés seguro pelos chifres; e viu o Domingos, que fora da
venda, furtando horas ao sono, depois de um trabalho de burro, e perdendo
o seu emprego e as economias ajuntadas com sacrifício, para ter um instante
de luxúria entre as pernas de uma desgraçadinha irresponsável e tola; e
tornou a ver o Bruno a soluçar pela mulher; e outros ferreiros e hortelões, e
cavouqueiros, e trabalhadores de toda a espécie, um exército de bestas sen-
suais, cujos segredos ela possuía, cujas íntimas correspondências escrevera
dia a dia, cujos corações conhecia como as palmas das mãos, porque a sua
escrivaninha era um pequeno confessionário, onde toda a salsugem e todas
as fezes daquela praia de despejo foram arremessadas espumantes de dor e
aljofradas de lágrimas.
E na sua alma enfermiça e aleijada, no seu espírito rebelde de flor
mimosa e peregrina criada num monturo, violeta infeliz, que um estrume
forte demais para ela atrofiara, a moça pressentiu bem claro que nunca
daria de si ao marido que ia ter uma companheira amiga, leal e dedicada;

• 144 • O CORTIÇO
pressentiu que nunca o respeitaria sinceramente como a um ser superior por
quem damos a vida; que nunca lhe votaria entusiasmo, e por conseguinte
nunca lhe teria amor; desse de que ela se sentia capaz de amar alguém, se
na terra houvera homens dignos disso. Ah! Não o amaria decerto, porque o
Costa era como os outros, passivo e resignado, aceitando a existência que
lhe impunham as circunstâncias, sem ideais próprios, sem temeridades de
revolta, sem atrevimentos de ambição, sem vícios trágicos, sem capacidade
para grandes crimes; era mais um animal que viera ao mundo para propagar
a espécie; um pobre-diabo enfim que já a adorava cegamente e que mais
tarde, com ou sem razão, derramaria aquelas mesmas lágrimas, ridículas e
vergonhosas, que ela vira decorrendo em quentes camarinhas pelas ásperas
e maltratadas barbas do marido de Leocádia.
E não obstante, até então, aquele matrimônio era o seu sonho dourado.
Pois agora, nas vésperas de obtê-lo, sentia repugnância em dar-se ao noivo,
e, se não fora a mãe, seria muito capaz de dissolver o ajuste.
Mas, daí a uma semana, a estalagem era toda em rebuliço desde
logo pela manhã. Só se falava em casamento; havia em cada olhar um
sanguíneo reflexo de noites nupciais. Desfolharam-se rosas à porta da
Pombinha. Às onze horas parou um carro à entrada do cortiço com uma
senhora gorda, vestida de seda cor de pérola. Era a madrinha que vinha
buscar a noiva para a igreja de São João Batista. A cerimônia estava marcada
para o meio-dia. Toda esta formalidade embatucava os circunstantes, que se
alinhavam imóveis defronte do número 15, com as mãos cruzadas atrás, o
rosto paralisado por uma comoção respeitosa; alguns sorriam enternecidos;
quase todos tinham os olhos ressumbrados d’água.
Pombinha surgiu à porta de casa, já pronta para desferir o grande voo; de
véu e grinalda, toda de branco, vaporosa, linda. Parecia comovida; despedia-se
dos companheiros atirando-lhes beijos com o seu ramalhete de flores artifi-
ciais. Dona Isabel chorava como criança, abraçando as amigas, uma por uma.
— Deus lhe ponha virtude! exclamou a Machona. E que lhe dê um bom
parto, quando vier a primeira barriga.
A noiva sorria, de olhos baixos. Uma fímbria de desdém toldava-lhe a
rosada candura de seus lábios. Encaminhou-se para o portão, cercada pela
bênção de toda aquela gente, cujas lágrimas rebentaram afinal, feliz cada
um por vê-la feliz e em caminho da posição que lhe competia na sociedade.

ALUÍSIO AZEVEDO • 145 •


— Não! Aquela não nascera para isto!... sentenciou o Alexandre, retor-
cendo o reluzente bigode. Seria lástima se a deixassem ficar aqui!
O velho Libório, cascalhando uma risada decrépita, queixou-se de que o
maganão do Costa lhe passara a perna roubando-lhe a namorada.
Ingrata! Ele que estava disposto a fazer uma asneira!
Neném deu uma corrida até à noiva, na ocasião em que esta chegava
à carruagem e, estalando-lhe um beijo na boca, pediu-lhe com empenho
que se não esquecesse de mandar-lhe um botão da sua grinalda de flores
de laranjeira.
— Diz que é muito bom para quem deseja casar!... E eu tenho tanto
medo de ficar solteira!... É todo o meu susto!

XIII
À proporção que alguns locatários abandonavam a estalagem, muitos
pretendentes surgiam disputando os cômodos desalugados. Delporto e
Pompeo foram varridos pela febre amarela e três outros italianos estiveram
em risco de vida. O número dos hóspedes crescia; os casulos subdividiam-se
em cubículos do tamanho de sepulturas; e as mulheres iam despejando
crianças com uma regularidade de gado procriador. Uma família, composta
de mãe viúva e cinco filhas solteiras, das quais destas a mais velha tinha
trinta anos e a mais moça quinze, veio ocupar a casa que Dona Isabel esva-
ziou poucos dias depois do casamento de Pombinha.
Agora, na mesma rua, germinava outro cortiço ali perto, o
“Cabeça-de-Gato”. Figurava como seu dono um português que também tinha
venda, mas o legítimo proprietário era um abastado conselheiro, homem de
gravata lavada, a quem não convinha, por decoro social, aparecer em seme-
lhante gênero de especulações. E João Romão, estalando de raiva, viu que
aquela nova república da miséria prometia ir adiante e ameaçava fazer-lhe
à sua, perigosa concorrência. Pôs-se logo em campo, disposto à luta, e
começou a perseguir o rival por todos os modos, peitando fiscais e guardas
municipais, para que o não deixassem respirar um instante com multas e
exigências vexatórias; enquanto pela sorrelfa plantava no espírito dos seus
inquilinos um verdadeiro ódio de partido, que os incompatibilizava com a

• 146 • O CORTIÇO
gente do “Cabeça-de-Gato”. Aquele que não estivesse disposto a isso ia direi-
tinho para a rua, “que ali se não admitiam meias medidas a tal respeito! Ali:
ou bem peixe ou bem carne! Nada de embrulho!” É inútil dizer que a parte
contrária lançou mão igualmente de todos os meios para guerrear o ini-
migo, não tardando que entre os moradores das duas estalagens rebentasse
uma tremenda rivalidade, dia a dia agravada por pequenas brigas e rezingas,
em que as lavadeiras se destacavam sempre com questões de freguesia de
roupa. No fim de pouco tempo os dois partidos estavam já perfeitamente
determinados; os habitantes do “Cabeça-de-Gato” tomaram por alcunha o
título do seu cortiço, e os de “São Romão”, tirando o nome do peixe que a
Bertoleza mais vendia à porta da taverna, foram batizados por “Carapicus”.
Quem se desse com um carapicu não podia entreter a mais ligeira amizade
com um cabeça-de-gato; mudar-se alguém de uma estalagem para outra
era renegar ideias e princípios e ficava apontado a dedo; denunciar a um
contrário o que se passava, fosse o que fosse, dentro do círculo oposto, era
cometer traição tamanha, que os companheiros a puniam a pau. Um ven-
dedor de peixe, que caiu na asneira de falar a um cabeça-de-gato a respeito
de uma briga entre a Machona e sua filha, a das Dores, foi encontrado quase
morto perto do cemitério de São João Batista. Alexandre, esse então não
cochilava com os adversários: nas suas partes policiais figurava sempre o
nome de um deles pelo menos, mas entre os próprios polícias havia adeptos
de um e de outro partido; o urbano que entrava na venda do João Romão
tinha escrúpulo de tomar qualquer coisa ao balcão da outra venda. Em meio
do pátio do “Cabeça-de-Gato” arvorara-se uma bandeira amarela; os cara-
picus responderam logo levantando um pavilhão vermelho. E as duas cores
olhavam-se no ar como um desafio de guerra.
A batalha era inevitável. Questão de tempo.
Firmo, assim que se instaurara a nova estalagem, abandonou o quarto
na oficina e meteu-se lá de súcia com o Porfiro, apesar da oposição de Rita,
que mais depressa o deixaria a ele do que aos seus velhos camaradas de
cortiço. Daí nasceu certa ponta de discórdia entre os dois amantes; as suas
entrevistas tornavam-se agora mais raras e mais difíceis. A baiana, por coisa
alguma desta vida, poria os pés no “Cabeça-de-Gato” e o Firmo achava-se,
como nunca, incompatibilizado com os carapicus. Para estarem juntos tinham
encontros misteriosos num caloji de uma velha miserável da Rua de São João

ALUÍSIO AZEVEDO • 147 •


Batista, que lhe cedia a cama mediante esmolas. O capoeira fazia questão de
ficar no “Cabeça-de-Gato”, porque aí se sentia resguardado contra qualquer
perseguição que o seu delito motivasse; de resto, Jerônimo não estava morto
e, uma vez bem curado, podia vir sobre ele com gana. No “Cabeça-de-Gato”,
o Firmo conquistara rápidas simpatias e constituíra-se chefe de malta. Era
querido e venerado; os companheiros tinham entusiasmo pela sua destreza
e pela sua coragem; sabiam-lhe de cor a legenda rica de façanhas e vitórias.
O Porfiro secundava-o sem lhe disputar a primazia, e estes dois, só por si,
impunham respeito aos carapicus, entre os quais, não obstante, havia muito
boa gente para o que desse e viesse.
Mas ao cabo de três meses, João Romão, notando que os seus interesses
nada sofriam com a existência da nova estalagem e, até pelo contrário,
lucravam com o progressivo movimento de povo que se ia fazendo no bairro,
retornou à sua primitiva preocupação com o Miranda, única rivalidade que
verdadeiramente o estimulava.
Desde que o vizinho surgiu com o baronato, o vendeiro transformava-se
por dentro e por fora a causar pasmo. Mandou fazer boas roupas e aos
domingos refestelava-se de casaco branco e de meias, assentado defronte
da venda, a ler jornais. Depois deu para sair a passeio, vestido de casimira,
calçado e de gravata. Deixou de tosquiar o cabelo à escovinha; pôs a barba
abaixo, conservando apenas o bigode, que ele agora tratava com brilhantina
todas as vezes que ia ao barbeiro. Já não era o mesmo lambuzão! E não parou
aí: fez-se sócio de um clube de dança e, duas noites por semana, ia aprender a
dançar; começou a usar relógio e cadeia de ouro; correu uma limpeza no seu
quarto de dormir, mandou soalhá-lo, forrou-o e pintou-o; comprou alguns
móveis em segunda mão; arranjou um chuveiro ao lado da retrete; principiou
a comer com guardanapo e a ter toalha e copos sobre a mesa; entrou a tomar
vinho, não do ordinário que vendia aos trabalhadores, mas de um especial
que guardava para seu gasto. Nos dias de folga atirava-se para o Passeio
Público depois do jantar ou ia ao teatro São Pedro de Alcântara assistir aos
espetáculos da tarde; do “Jornal do Comércio”, que era o único que ele assi-
nava havia já três anos e tanto, passou a receber mais dois outros e a tomar
fascículos de romances franceses traduzidos, que o ambicioso lia de cabo
a rabo, com uma paciência de santo, na doce convicção de que se instruía.

• 148 • O CORTIÇO
Admitiu mais três caixeiros; já não se prestava muito a servir pes-
soalmente à negralhada da vizinhança, agora até mal chegava ao balcão.
E em breve o seu tipo começou a ser visto com frequência na Rua Direita,
na praça do comércio e nos bancos, o chapéu alto derreado para a nuca e
o guarda-chuva debaixo do braço. Principiava a meter-se em altas especu-
lações, aceitava ações de companhias de títulos ingleses e só emprestava
dinheiro com garantias de boas hipotecas.
O Miranda tratava-o já de outro modo, tirava-lhe o chapéu, parava
risonho para lhe falar quando se encontravam na rua, e às vezes trocava
com ele dois dedos de palestra à porta da venda. Acabou por oferecer-lhe a
casa e convidá-lo para o dia de anos da mulher, que era daí a pouco tempo.
João Romão agradeceu o obséquio, desfazendo-se em demonstrações de
reconhecimento, mas não foi lá.
Bertoleza é que continuava na cepa torta, sempre a mesma crioula suja,
sempre atrapalhada de serviço, sem domingo nem dia santo; essa, em nada,
em nada absolutamente, participava das novas regalias do amigo; pelo con-
trário, à medida que ele galgava posição social, a desgraçada fazia-se mais
e mais escrava e rasteira. João Romão subia e ela ficava cá embaixo, aban-
donada como uma cavalgadura de que já não precisamos para continuar a
viagem. Começou a cair em tristeza.
O velho Botelho chegava-se também para o vendeiro, e ainda mais do
que o próprio Miranda. O parasita não saía agora depois do almoço para a
sua prosa na charutaria, nem voltava à tarde para o jantar, sem deter-se
um instante à porta do vizinho ou, pelo menos, sem lhe gritar lá de dentro:
“Então, seu João, isso vai ou não vai?...” E tinha sempre uma frase amigável
para lhe atirar cá de fora. Em geral o taverneiro acudia a apertar-lhe a mão,
de cara alegre, e propunha-lhe que bebesse alguma coisa.
Sim, João Romão já convidava para beber alguma coisa. Mas não era à
toa que o fazia, que aquele mesmo não metia prego sem estopa! Tanto assim
que uma vez, em que os dois saíram à tardinha para dar um giro até à praia,
Botelho, depois de falar com o costumado entusiasmo do seu belo amigo
Barão e da virtuosíssima família deste, acrescentou com o olhar fito:
— Aquela pequena é que lhe estava a calhar, seu João!...
— Como? Que pequena?

ALUÍSIO AZEVEDO • 149 •


— Ora morda aqui! Pensa que já não dei pelo namoro?... Maganão! O ven-
deiro quis negar, mas o outro atalhou:
— É um bom partido, é! Excelente menina... Tem um gênio de pomba...
Uma educação de princesa: até o francês sabe! Toca piano como você tem
ouvido... Canta o seu bocado... Aprendeu desenho... Muito boa mão de
agulha!... E...
Abaixou a voz e segredou grosso no ouvido do interlocutor:
— Ali, tudo aquilo é sólido!... Prédios e ações do banco!...
— Você tem certeza disso? Já viu?
— Já! Palavra d’honra!
Calaram-se um instante.
Botelho continuou depois:
— O Miranda é bom homem, coitado! Tem lá as suas fumaças de gran-
deza, mas não o podemos criminar... São coisas pegadas da mulher; no
entanto acho-o com boas disposições a seu respeito... E, se você souber
levá-lo, apanha-lhe a filha...
— Ela talvez não queira...
— Qual o quê! Pois uma menina daquelas, criada a obedecer aos pais,
sabe lá o que é não querer? Tenha você uma pessoa, de intimidade com a
família; que de dentro empurre o negócio e verá se consegue ou não! Eu, por
exemplo!
— Ah! Se você se metesse nisso, que dúvida! Dizem que o Miranda só
faz o que você quer...
— Dizem com razão.
— E você está resolvido a... ?
— A protegê-lo?... Sim, decerto: neste mundo estamos nós para servir
uns aos outros!... Apenas, como não sou rico...
— Ah! Isso é dos livros! Arranje-me você o negócio e não se arrependerá...
— Conforme, conforme...
— Creio que não me supõe um velhaco!...
— Pelo amor de Deus! Sou incapaz de semelhante sacrilégio!
— Então!...
— Sim, sim... Em todo o caso falaremos depois, com mais vagar... Não é
sangria desatada!

• 150 • O CORTIÇO
E desde então, com efeito, sempre que os dois se pilhavam a sós discu-
tiam o seu plano de ataque à filha do Miranda. Botelho queria vinte contos
de réis, e com papel passado a prazo de casamento; o outro oferecia dez.
— Bom! Então não temos nada feito... resumiu o velho. Trate você do
negócio só por si; mas já lhe vou prevenindo de que não conte comigo abso-
lutamente... Compreende?
— Quer dizer que me fará guerra...
— Valha-me Deus, criatura! Não faço guerra a ninguém! Guerra está
você a fazer-me, que não me quer deixar comer uma migalha da bela fatia
que lhe vou meter no papo!... O Miranda hoje tem para mais de mil contos de
réis! Agora, fique sabendo que a coisa não é assim também tão fácil, como
lhe parece talvez...
— Paciência!
— O Barão há de sonhar com um genro de certa ordem!... Aí algum
deputado... Algum homem que faça figura na política aqui da terra!
— Não! Melhor seria um príncipe!...
— E mesmo a pequena tem um doutorzinho de boa família; que lhe
ronda muito a porta... E ela, ao que parece, não lhe faz má cara...
— Ah! Nesse caso é deixá-los lá arranjar a vida!
— É melhor, é! Creio até que com ele será mais fácil qualquer transação...
— Então não falemos mais nisso! Está acabado!
— Pois não falemos!
Mas no dia seguinte voltaram à questão:
— Homem! disse o vendeiro; para decidir, dou-lhe quinze!
— Vinte!
— Vinte, não!
— Por menos não me serve!
— E eu vinte não dou!
— Nem ninguém o obriga... Adeuzinho!
— Até mais ver.
Quando se encontraram de novo, João Romão riu-se para o outro, sem
dizer palavra. O Botelho, em resposta, fez um gesto de quem não quer
intrometer-se com o que não é da sua conta.
— Você é o diabo!... faceteou aquele, dando-lhe no ombro uma palmada
amigável. Então não há meio de chegarmos a um acordo?...

ALUÍSIO AZEVEDO • 151 •


— Vinte!
— E, caso esteja eu pelos vinte, posso contar que...?
— Caso o meu nobre amigo se decida pelos vinte, receberá do Barão
um chamado para lá ir jantar ao primeiro domingo; aceita o convite, vai, e
encontrará o terreno preparado.
— Pois seja lá como você quer! Mais vale um gosto do que quatro
vinténs!
O Botelho não faltou ao prometido: dias depois do contrato selado e
assinado, João Romão recebeu uma carta do vizinho, solicitando-lhe a fineza
de ir jantar com ele mais a família.
Ah! Que revolução não se feriu no espírito do vendeiro! Passou dias a
estudar aquela visita; ensaiou o que tinha que dizer, conversando sozinho
defronte do espelho do seu lavatório; afinal, no dia marcado, banhou-se em
várias águas, areou os dentes até fazê-los bem limpos, perfumou-se todo dos
pés à cabeça, escanhoou-se com esmero, aparou e bruniu as unhas, vestiu-se
de roupa nova em folha, e às quatro e meia da tarde apresentou-se, risonho e
cheio de timidez, no espelhado e pretensioso salão de Sua Excelência.
Aos primeiros passos que dera sobre o tapete, onde seus grandes pés,
afeitos por toda vida à independência do chinelo e do tamanco, se desta-
cavam como um par de tartarugas, sentiu logo o suor dos grandes apuros
inundar-lhe o corpo e correr-lhe em bagada pela fronte e pelo pescoço, nem
que se o desgraçado acabasse de vencer naquele instante uma légua de car-
reira ao sol. As suas mãos vermelhas e redondas gotejavam, e ele não sabia
o que fazer delas, depois que o Barão, muito solícito, lhe tomou o chapéu e
o guarda-chuva.
Arrependia-se já de ter lá ido.
— Fique a gosto, homem! bradou-lhe o dono da casa. Se tem calor venha
antes aqui para a janela. Não faça cerimônia! Ó Leonor! Traz o vermute! Ou
o amigo prefere tomar um copinho de cerveja?
João Romão aceitava tudo, com sorrisos de acanhamento, sem ânimo
de arriscar palavra. A cerveja fê-lo suar ainda mais e, quando apareceram na
sala Dona Estela e a filha, o pobre-diabo chegava a causar dó de tão atra-
palhado que se via. Por duas vezes escorregou, e numa delas foi apoiar-se a
uma cadeira que tinha rodízios; a cadeira afastou-se e ele quase vai ao chão.

• 152 • O CORTIÇO
Zulmira riu-se, mas disfarçou logo a sua hilaridade pondo-se a con-
versar com a mãe em voz baixa. Agora, refeita nos seus dezessete anos,
não parecia tão anêmica e deslavada; vieram-lhe os seios e engrossara-lhe
o quadril. Estava melhor assim. Dona Estela, coitada! é que se precipitava,
a passos de granadeiro, para a velhice, a despeito da resistência com que se
rendia; tinha já dois dentes postiços, pintava o cabelo, e dos cantos da boca
duas rugas serpenteavam-lhe pelo queixo abaixo, desfazendo-lhe a primi-
tiva graça maliciosa dos lábios; ainda assim, porém, conservava o pescoço
branco, liso e grosso, e os seus braços não desmereciam dos antigos créditos.
À mesa, a visita comeu tão pouco e tão pouco bebeu, que os donos da
casa a censuraram jovialmente, fingindo aceitar o fato como prova segura
de que o jantar não prestava; o obsequiado pedia por amor de Deus que não
acreditassem em tal e jurava sob palavra de honra que se sentia satisfeito e
que nunca outra comida lhe soubera tão bem. Botelho lá estava, ao lado de
um velhote fazendeiro, que por essa ocasião hospedava-se com o Miranda.
Henrique, aprovado no seu primeiro ano de Medicina, fora visitar a família
em Minas. Isaura e Leonor serviam aos comensais, rindo ambas à socapa por
verem ali o João da venda engravatado e com piegas de visita.
Depois do jantar apareceu uma família conhecida, trazendo um rancho
de moças; vieram também alguns rapazes; formaram-se jogos de prendas, e
João Romão, pela primeira vez em sua vida, viu-se metido em tais funduras.
Não se saiu mal todavia.
O chá das dez e meia correu sem novidade; e, quando enfim o neó-
fito se pilhou na rua, respirou com independência, remexendo o pescoço
dentro do colarinho engomado e soprando com alívio. Uma alegria de vitória
transbordava-lhe do coração e fazia-o feliz nesse momento. Bebeu o ar
fresco da noite com uma volúpia nova para ele e, muito satisfeito consigo
mesmo, entrou em casa e recolheu-se, rejubilando com a ideia de que ia des-
calçar aquelas botas, desfazer-se de toda aquela roupa e atirar-se à cama,
para pensar mais à vontade no seu futuro, cujos horizontes se rasgavam
agora iluminados de esperança.
Mas a bolha do seu desvanecimento engelhou logo à vista de Bertoleza
que, estendida na cama, roncava, de papo para o ar, com a boca aberta, a
camisa soerguida sobre o ventre, deixando ver o negrume das pernas gordas
e lustrosas.

ALUÍSIO AZEVEDO • 153 •


E tinha de estirar-se ali, ao lado daquela preta fedorenta a cozinha e
bodum de peixe! Pois, tão cheiroso e radiante como se sentia, havia de pôr
a cabeça naquele mesmo travesseiro sujo em que se enterrava a hedionda
carapinha da crioula?...
— Ai! Ai! gemeu o vendeiro, resignando-se. E despiu-se.
Uma vez deitado, sem ânimo de afastar-se da beira da cama, para não
se encostar com a amiga, surgiu-lhe nítida ao espírito a compreensão do
estorvo que o diabo daquela negra seria para o seu casamento.
E ele que até aí não pensara nisso!... Ora o demo!
Não pôde dormir; pôs-se a malucar:
Ainda bem que não tinham filhos! Abençoadas drogas que a Bruxa dera
à Bertoleza nas duas vezes em que esta se sentiu grávida! Mas, afinal, de que
modo se veria livre daquele trambolho? E não se ter lembrado disso há mais
tempo!... Parecia incrível!
João Romão, com efeito, tão ligado vivera com a crioula e tanto se habi-
tuara a vê-la ao seu lado, que nos seus devaneios de ambição pensou em
tudo, menos nela.
E agora?
E malucou no caso até às duas da madrugada, sem achar furo. Só no dia
seguinte, a contemplá-la de cócoras à porta da venda, abrindo e destripando
peixe, foi que, por associação de ideias, lhe acudiu esta hipótese:
E se ela morresse?...

• 154 • O CORTIÇO
XIV
Iam-se assim os dias, e assim mais de três meses se passaram depois
da noite da navalhada. Firmo continuava a encontrar-se com a baiana
na Rua de São João Batista, mas a mulata já não era a mesma para ele:
apresentava-se fria, distraída, às vezes impertinente, puxando questão por
dá cá aquela palha.
— Hum! Hum! Temos mouro na costa! rosnava o capadócio com ciúmes.
Ora queira Deus que eu me engane!
Nas entrevistas apresentava-se ela agora sempre um pouco depois da
hora marcada, e sua primeira frase era para dizer que tinha pressa e não
podia demorar-se.
— Estou muito apertada de serviço! acrescentava à réplica do amante.
Uma roupa de uma família que embarca amanhã para o Norte! Tem de ficar
pronta esta noite! Já ontem fiz serão!
— Agora estás sempre apertada de serviço!... resmungava o Firmo.
— É que é preciso puxar por ele, filho! Ponha-me eu a dormir e quero ver
do que como e com que pago a casa!
Não há de ser com o que levo daqui!
— Or’essa! Tens coragem de dizer que não te dou nada? E quem foi que
te deu esse vestido que tens no corpo?!
— Não disse que nunca me desse nada, mas com o que você me dá não
pago a casa e não ponho a panela no fogo! Também não lhe estou pedindo
coisa alguma! Oh!

ALUÍSIO AZEVEDO • 155 •


Azedavam-se deste modo as suas entrevistas, esfriando as poucas horas
que os dois tinham para o amor. Um domingo, Firmo esperou bastante tempo
e Rita não apareceu. O quarto era acanhado e sombrio, sem janelas, com um
cheiro mau de bafio e umidade. Ele havia levado um embrulho de peixe frito,
pão e vinho, para almoçarem juntos. Deu meio-dia e Firmo esperou ainda,
passeando na estreiteza da miserável alcova, como uma onça enjaulada,
rosnando pragas obscenas; o sobrolho intumescido, os dentes cerrados.
“Se aquela safada lhe aparecesse naquele momento, ele seria capaz de
torcê-la nas mãos!”
À vista do embrulho da comida estourou-lhe a raiva. Deu um pontapé
numa bacia de louça que havia no chão, perto da cama, e soltou um murro
na cabeça.
— Diabo!
Depois assentou-se no leito, esperou ainda algum tempo, fungando
forte, sacudindo as pernas cruzadas, e afinal saiu, atirando para dentro do
quarto uma palavra porca.
Pela rua, durante o caminho, jurava que “aquela caro pagaria a mulata!”
Um sôfrego desejo de castigá-la, no mesmo instante, o atraía ao cortiço de
São Romão, mas não se sentiu com ânimo de lá ir, e contentou-se em rondar a
estalagem. Não conseguiu vê-la; resolveu esperar até à noite para lhe mandar
um recado. E vagou aborrecido pelo bairro, arrastando o seu desgosto por
aquele domingo sem pagode. Às duas horas da tarde entrou no botequim do
Garnisé, uma espelunca, perto da praia, onde ele costumava beber de súcia
com o Porfiro. O amigo não estava lá. Firmo atirou-se numa cadeira, pediu um
martelo de parati e acendeu um charuto, a pensar. Um mulatinho, morador no
“Cabeça-de-Gato”, veio assentar-se na mesma mesa e, sem rodeios, deu-lhe
a notícia de que na véspera o Jerônimo tivera alta do hospital.
Firmo acordou com um sobressalto.
— O Jerônimo?!
— Apresentou-se hoje pela manhã na estalagem.
— Como soubeste?
— Disse-me o Pataca.
— Ora aí está o que é! exclamou o capoeira, soltando um murro na mesa.
— Que é o quê? interrogou o outro.
— Nada! É cá comigo. Toma alguma coisa?

• 156 • O CORTIÇO
Veio novo copo, e Firmo resmungou no fim de uma pausa:
— É! Não há dúvida! Por isto é que a perua ultimamente me anda de
vento mudado!...
E um ciúme doido, um desespero feroz rebentou-lhe por dentro e
cresceu logo como a sede de um ferido. “Oh! Precisava vingar-se dela! Dela e
dele! O amaldiçoado resistiu à primeira, mas não lhe escaparia da segunda!”
— Veja mais um martelo de parati! gritou para o portuguesinho da espe-
lunca. E acrescentou, batendo com toda a força o seu petrópolis no chão:
— E não passa de hoje mesmo!
Com o chapéu à ré, a gaforina mais assanhada que de costume, os olhos
vermelhos, a boca espumando pelos cantos, todo ele respirava uma febre de
vingança e de ódio.
— Olha! disse ao companheiro de mesa. Disto, nem pio lá com os cara-
picus! Se abrires o bico dou-te cabo da pele! Já me conheces!
— Tenho nada que falar! Pra quê?
— Bom!
E ficaram ainda a beber.
Jerônimo, com efeito, tivera alta e tornara aquele domingo ao cor-
tiço, pela primeira vez depois da doença. Vinha magro, pálido, desfigurado,
apoiando-se a um pedaço de bambu. Crescera-lhe a barba e o cabelo, que ele
não queria cortar sem ter cumprido certo juramento feito aos seus brios.
A mulher fora buscá-lo ao hospital e caminhava ao seu lado, igualmente
abatida com a moléstia do marido e com as causas que a determinaram. Os
companheiros receberam-no compungidos, tomados de uma tristeza respei-
tosa; um silêncio fez-se em torno do convalescente; ninguém falava senão a
meia voz; a Rita Baiana tinha os olhos arrasados d’água.
Piedade levou o seu homem para o quarto.
— Queres tomar um caldinho? perguntou-lhe. Creio que ainda não estás
de todo pronto...
— Estou! contrapôs ele. Diz o doutor que preciso é de andar, para ir
chamando força às pernas. Também estive tanto tempo preso à cama! Só de
uma semana pra cá é que encostei os pés no chão!
Deu alguns passos na sua pequena sala e disse depois, tornando junto
da mulher:

ALUÍSIO AZEVEDO • 157 •


— O que me saberia bem agora era uma xicrinha de café, mas queria-o
bom como o faz a Rita... Olha! Pede-lhe que o arranje.
Piedade soltou um suspiro e saiu vagarosamente, para ir pedir o obsé-
quio à mulata. Aquela preferência pelo café da outra doía-lhe duro que nem
uma infidelidade.
— Lá o meu homem quer do seu café e torceu nariz ao de casa... Manda
pedir-lhe que lhe faça uma xícara. Pode ser? perguntou a portuguesa à baiana.
— Não custa nada! respondeu esta. Com poucas está lá!
Mas não foi preciso que o levasse, porque daí a um instante, Jerônimo,
com o seu ar tranquilo e passivo de quem ainda se não refez de todo depois
de uma longa moléstia, surgiu-lhe à porta.
— Não vale a pena estorvar-se em lá ir... Se me dá licença, bebo o cafe-
zinho aqui mesmo...
— Entra, seu Jerônimo.
— Aqui ele sabe melhor...
— Você pega já com partes! Olha, sua mulher anda de pé atrás comigo!
E eu não quero histórias!... Jerônimo sacudiu os ombros com desdém.
— Coitada!... resmungou depois. Muito boa criatura, mas...
— Cala a boca, diabo! Toma o café e deixa de maldizência! É mesmo
vício de Portugal: comendo e dizendo mal!
O português sorveu com delícia um gole de café.
— Não digo mal, mas confesso que não encontro nela umas tantas
coisas que desejava...
E chupou os bigodes.
— Vocês são tudo a mesma súcia! Bem tola é quem vai atrás de lábia de
homem! Eu cá não quero mais saber disso... Ao outro despachei já!
O cavouqueiro teve um tremor de todo o corpo.
— Outro quem?! O Firmo?
Rita arrependeu-se do que dissera, e gaguejou:
— É um coisa-ruim! Não quero saber mais dele!... Um traste!
— Ele ainda vem cá? perguntou o cavouqueiro.
— Aqui? Qual! Nessa não caio! E se vier não lhe abro a porta! Ah! Quando
embirro com uma pessoa é que embirro mesmo!
— Isso é verdade, Rita?

• 158 • O CORTIÇO
— Quê? Que não quero saber mais dele? Esta que aqui está nunca mais
fará vida com semelhante cábula! Juro por esta luz!
— Ele fez-lhe alguma?
— Não sei! Não quero! Acabou-se!
— É que então você tem outro agora...
— Que esperança! Não tenho, nem quero mais ter homem!
— Por quê Rita?
— Ora! Não paga a pena!
— E... se você encontrasse um... que a quisesse deveras... para sempre?...
— Não é com essas!...
— Pois sei de um que a quer como Deus aos seus!...
— Pois diga-lhe que siga outro ofício!
Ela se chegou para recolher a xícara, e ele apalpou-lhe a cintura.
— Olha! Escuta!
Rita fugiu com uma rabanada, e disse rápido, muito a sério:
— Deixa disso. Pode tua mulher ver!
— Vem cá!
— Logo.
— Quando?
— Logo mais.
— Onde?
— Não sei.
— Preciso muito te falar...
— Pois sim, mas aqui fica feio.
— Onde nos encontramos então?
— Sei cá!
E, vendo que Piedade entrava, ela disfarçou, dizendo sem transição:
— Os banhos frios é que são bons para isso. Põem duro o corpo!
A outra, embesourada, atravessou em silêncio a pequena sala, foi ter
com o marido e comunicou-lhe que o Zé Carlos queria falar-lhe, junto com
o Pataca.
— Ah! fez Jerônimo. Já sei o que é. Até logo, Nhá Rita. Obrigado. Quando
quiser qualquer coisa de nós, lá estamos.
Ao sair no pátio, aqueles dois vieram ao seu encontro. O cavouqueiro
levou-os para casa, onde a mulher havia posto já a mesa do almoço, e com

ALUÍSIO AZEVEDO • 159 •


um sinal preveniu-os de que não falassem por enquanto sobre o assunto que
os trouxera ali. Jerônimo comeu às pressas e convidou as visitas a darem um
giro lá fora.
Na rua, perguntou-lhes em tom misterioso:
— Onde poderemos falar à vontade?
O Pataca lembrou a venda do Manuel Pepé, defronte do cemitério.
— Bem achado! confirmou Zé Carlos. Há lá bons fundos para se conversar.
E os três puseram-se a caminho, sem trocar mais palavras até à esquina.
— Então está de pé o que dissemos?... indagou afinal aquele último.
— De pedra e cal! respondeu o cavouqueiro.
— E o que é que se faz?
— Ainda não sei... Preciso antes de tudo saber onde o cabra é encon-
trado à noite.
— No Garnisé, afirmou o Pataca.
— Garnisé?
— Aquele botequim ali ao entrar da Rua da Passagem, onde está um
galo à tabuleta.
— Ah! Defronte da farmácia nova...
— Justo! Ele vai lá agora todas as noites, e lá esteve ontem, que o vi, por
sinal que num gole...
— Muito bêbado, hein?
— Como um gambá! Aquilo foi alguma, que a Rita Baiana lhe pregou de
fresco!
Tinham chegado à venda. Entraram pelos fundos e assentaram-se
sobre caixas de sabão vazias, em volta de uma mesa de pinho. Pediram
parati com açúcar.
— Onde é que eles se encontravam?... informou-se Jerônimo, afetando
que fazia esta pergunta sem interesse especial. Lá mesmo no São Romão?...
— Quem? A Rita mais ele? Ora o quê! Pois se ele agora é todo
cabeça-de-gato!...
— Ela ia lá?
— Duvido! Então logo aquela! Aquela é carapicu até o sabugo das unhas!
— Nem sei como ainda não romperam! interveio Zé Carlos, que conti-
nuou a falar a respeito da mulata, enquanto Jerônimo o escutava abstrato,
sem tirar os olhos de um ponto.

• 160 • O CORTIÇO
O Pataca, como se acompanhasse o pensamento do cavouqueiro, disse-lhe
emborcando o resto do copo:
— Talvez o melhor fosse liquidar a coisa hoje mesmo!...
— Ainda estou muito fraco... observou lastimoso o convalescente.
— Mas o teu pau está forte! E além disso cá estamos nós dois. Tu podes
até ficar em casa, se quiseres...
— Isso é que não! atalhou aquele. Não dou o meu quinhão pelos dentes
da boca!
— Eu cá também vou que o melhor seria pespegar-lhe hoje mesmo a
sova... declarou o outro. Pão de um dia para outro fica duro!
— E eu estou-lhe com uma gana!... acrescentou o Pataca.
— Pois seja hoje mesmo! resolveu Jerônimo. E o dinheiro lá está em
casa, quarenta pra cada um! Em seguida à mela corre logo o cobre! E ao
depois vai a gente tomar uma fartadela de vinho fino!
— A que horas nos juntamos? perguntou Zé Carlos.
— Logo ao cair da noite, aqui mesmo. Está dito?
— E será feito, se Deus quiser!
O Pataca acendeu o cachimbo, e os três puseram-se a cavaquear ani-
madamente sobre o efeito que aquela sova havia de produzir; a cara que o
cabra faria entre três bons cacetes. “Então é que queriam ver até onde ia a
impostura da navalha! Diabo de um calhorda que, por um — vai tu, irei eu —
arrancava logo pelo ferro!...”
Dois trabalhadores, em camisa de meia, entraram na tasca e o
grupo calou-se. Jerônimo fogueou um cigarro no cachimbo do Pataca e
despediu-se, relembrando aos companheiros a hora da entrevista e atirando
sobre a mesa um níquel de duzentos réis.
Foi direito para o cortiço.
— Fazes mal em andar por aí com este sol!... repreendeu Piedade, ao
vê-lo entrar.
— Pois se o doutor me disse que andasse quanto pudesse...
Mas recolheu-se à casa, estirou-se na cama e ferrou logo no sono. A mulher,
que o acompanhara até lá, assim que o viu dormindo, enxotou as moscas de
junto dele, cobriu-lhe a cara com uma cambraia que servia para os tabuleiros de
roupa engomada, e saiu na ponta dos pés, deixando a porta encostada.

ALUÍSIO AZEVEDO • 161 •


Jantaram daí a duas horas. Jerônimo comeu com apetite, bebeu uma
garrafa de vinho, e a tarde passaram-na os dois de palestra, assentados à
frente de casa, formando grupo com a Rita e a gente da Machona. Em torno
deles a liberdade feliz do domingo punha alegrias naquela tarde. Mulheres
amamentavam o filhinho ali mesmo, ao ar livre, mostrando a uberdade
das tetas cheias. Havia muito riso, muito parolar de papagaios; pequenos
travessavam, tão depressa rindo como chorando; os italianos faziam a
ruidosa digestão dos seus jantares de festa; ouviam-se cantigas e pragas
entre gargalhadas. A Augusta, que estava grávida de sete meses, passeava
solenemente o seu bandulho, levando um outro filho ao colo. O Albino, ins-
talado defronte de uma mesinha em frente à sua porta, fazia, à força de
paciência, um quadro, composto de figurinhas de caixa de fósforos, recor-
tadas a tesoura e grudadas em papelão com goma-arábica. E lá em cima,
numa das janelas do Miranda, João Romão, vestido de casimira clara, uma
gravata à moda, já familiarizado com a roupa e com a gente fina, conversava
com Zulmira que, ao lado dele, sorrindo de olhos baixos, atirava migalhas de
pão para as galinhas do cortiço; ao passo que o vendeiro lançava para baixo
olhares de desprezo sobre aquela gentalha sensual, que o enriquecera, e que
continuava a mourejar estupidamente, de sol a sol, sem outro ideal senão
comer, dormir e procriar.
Ao cair da noite, Jerônimo foi, como ficara combinado, à venda do Pepé.
Os outros dois já lá estavam. Infelizmente, havia mais alguém na tasca.
Tomaram juntos, pelo mesmo copo, um martelo de parati e conversaram em
voz surda numa conspiração sombria em que as suas barbas roçavam umas
com as outras.
— Os paus onde estão?... perguntou o cavouqueiro.
— Ali, junto às pipas... segredou o Pataca, apontando com disfarce para
uma esteira velha enrolada. Preparei-os ainda há pouco... Não os quis muito
grandes... Deste tamanho.
E abriu a mão contra a terra no lugar do peito.
— Estiveram de molho até agora... acrescentou, piscando o olho.
— Bom! aprovou Jerônimo, esgotando o copo com um último gole. Agora
onde vamos nós! Parece-me ainda cedo para o Garnisé.
— Ainda! confirmou o Pataca. Deixemo-nos ficar por aqui mais um pouco
e ao depois então seguiremos. Eu entro no botequim e vocês me esperam fora

• 162 • O CORTIÇO
no lugar que marcamos... Se o cabra não estiver lá, volto logo a dizer-lhes,
e, caso esteja, fico... Chego-me para ele, procuro entrar em conversa, puxo
discussão e afinal desafio-o pra rua; ele cai na esparrela, e então vocês dois
surgem e metem-se na dança, como quem não quer a coisa! Que acham?
— Perfeito! aplaudiu Jerônimo, e gritou para dentro: — Olha mais um
martelo de parati!
Em seguida enterrou a mão no bolso da calça e sacou um rolo grosso
de notas.
— Podem enxugar à vontade! disse. Aqui ainda há muito com quê!
E, ordenando as notas, separou oitenta mil-réis, em cédulas de vinte.
— Isto é o do ajuste! Este é sagrado! acrescentou, guardando-as na algi-
beira do lado esquerdo.
Depois separou ainda vinte mil-réis, que atirou sobre a mesa.
— Esse aí é para festejarmos a nossa vitória!
E fazendo do resto do seu dinheiro um bolo, que ele, um pouco ébrio,
apertava nos dedos, agora, claros e quase descalejados, socou-o na algibeira
do lado direito explicando entre dentes que ali ficava ainda bastante para o
que desse e viesse, no caso de algum contratempo.
— Bravo! exclamou Zé Carlos. Isto é o que se chama fazer as coisas à
fidalga! Haja contar comigo pra vida e pra morte!
O Pataca entendia que podiam tomar agora um pouco de cerveja.
— Cá por mim não quero, mas bebam-na vocês, acudiu Jerônimo.
— Preferia um trago de vinho branco, contraveio o terceiro.
— Tudo o que quiserem! franqueou aquele. Eu tomo também um pouco
de vinho. Não! Que o que estamos a beber não é dinheiro de navalhista, foi
ganho ao sol e à chuva com o suor do meu rosto! É entornar pra baixo sem
caretas, que este não pesa na consciência de ninguém!
— Então, à sua! brindou Zé Carlos, logo que veio o novo reforço. Pra que
não torne você a dar que fazer à má casta dos boticários!
— À sua, mestre Jerônimo! concorreu o outro.
Jerônimo agradeceu e disse, depois de mandar encher os copos:
— Aos amigos e patrícios com quem me achei para o meu desforço!
E bebeu.
— À da S’ora Piedade de Jesus! reclamou o Pataca.

ALUÍSIO AZEVEDO • 163 •


— Obrigado! respondeu o cavouqueiro, erguendo-se. Bem! Não nos dei-
xemos agora ficar aqui toda a noite; mãos à obra! São quase oito horas.
Os outros dois esvaziaram de um trago o que ainda havia no fundo dos
copos e levantaram-se também.
— É muito cedo ainda... obtemperou Zé Carlos, cuspindo de esguelha e
limpando o bigode nas costas da mão.
— Mas talvez tenhamos alguma demora pelo caminho, advertiu o com-
panheiro, indo buscar junto às pipas o embrulho dos cacetes.
— Em todo o caso vamos seguindo, resolveu Jerônimo, impaciente, nem
se temesse que a noite lhe fugisse de súbito.
Pagou a despesa, e os três saíram, não cambaleando, mas como que
empurrados por um vento forte, que os fazia de vez em quando dar para
a frente alguns passos mais rápidos. Seguiram pela Rua de Sorocaba e
tomaram depois a direção da praia, conversando em voz baixa, muito exci-
tados. Só pararam perto do Garnisé.
— Vais tu então, não é? perguntou o cavouqueiro ao Pataca.
Este respondeu entregando-lhe o embrulho dos paus e afastando-se
de mãos nas algibeiras, a olhar para os pés, fingindo-se mais bêbedo do que
realmente estava.

XV
O Garnisé tinha bastante gente essa noite. Em volta de umas doze mesi-
nhas toscas, de pau, com uma coberta de folha de flandres pintada de branco
fingindo mármore, viam-se grupos de três e quatro homens, quase todos
em mangas de camisa, fumando e bebendo no meio de grande algazarra.
Fazia-se largo consumo de cerveja nacional, vinho virgem, parati e laran-
jinha. No chão coberto de areia havia cascas de queijo de minas, restos de
iscas de fígado, espinhas de peixe, dando ideia de que ali não só se enxugava
como também se comia. Com efeito, mais para dentro, num engordurado
bufete, junto ao balcão e entre as prateleiras de garrafas cheias e arrolhadas,
estava um travessão de assado com batatas, um osso de presunto e vários
pratos de sardinhas fritas. Dois candeeiros de querosene lumiavam, encar-
voando o teto. E de uma porta ao fundo, que escondia o interior da casa

• 164 • O CORTIÇO
com uma cortina de chita vermelha, vinha de vez em quando uma baforada
de vozes roucas, que parecia morrer em caminho, vencida por aquela densa
atmosfera cor de opala.
O Pataca estacou a entrada, afetando grande bebedeira e procurando,
com disfarce, em todos os grupos, ver se descobria o Firmo. Não o conseguiu;
mas alguém, em certa mesa, lhe chamara a atenção, porque ele se dirigiu
para lá. Era uma mulatinha magra, malvestida, acompanhada por uma velha
quase cega e mais um homem, inteiramente calvo, que sofria de asma e, de
quando em quando, abalava a mesa com um frouxo de tosse, fazendo dançar
os copos.
O Pataca bateu no ombro da rapariga.
— Como vais tu, Florinda?
Ela olhou para ele, rindo; disse que ia bem, e perguntou-lhe como
passava.
— Rola-se, filha. Tu que fim levaste? Há um par de quinze dias que te
não vejo!
— É mesmo. Desde que estou com seu Bento não tenho saído quase.
— Ah! disse o Pataca, estás amigada? Bom!...
— Sempre estive!
E ela então, muito expansiva com a sua folga daquele domingo e com
o seu bocado de cerveja, contou que, no dia em que fugiu da estalagem,
ficou na rua e dormiu numas obras de uma casa em construção na Travessa
da Passagem, e que no seguinte oferecendo-se de porta em porta, para
alugar-se de criada ou de ama-seca, encontrou um velho solteiro e agimbado
que a tomou ao seu serviço e meteu-se com ela.
— Bom! Muito bom! anuiu Pataca.
Mas o diabo do velho era um safado; dava-lhe muita coisa, dinheiro até,
trazia-a sempre limpa e de barriga cheia, sim senhor! Mas queria que ela se
prestasse a tudo! Brigaram. E, como o vendeiro da esquina estava sempre a
chamá-la para casa, um belo dia arribou, levando o que apanhara ao velho.
— Estás então agora com o da venda?
Não! O tratante, a pretexto de que desconfiava dela com o Bento mar-
ceneiro, pô-la na rua, chamando a si o que a pobre de Cristo trouxera da casa
do outro e deixando-a só com a roupa do corpo e ainda por cima doente por
causa de um aborto que tivera logo que se metera com semelhante peste.

ALUÍSIO AZEVEDO • 165 •


O Bento tomara-a então à sua conta, e ela, graças a Deus, por enquanto não
tinha razões de queixa.
O Pataca olhou em torno de si com o ar de quem procura alguém, e
Florinda, supondo que se tratava do seu homem, acrescentou:
— Não está cá, está lá dentro. Ele, quando joga, não gosta que eu fique
perto; diz que encabula.
— E tua mãe?
— Coitada! Foi pro hospício...
E passou logo a falar a respeito da velha Marciana; o Pataca, porém,
já lhe não prestava atenção, porque nesse momento acabava de abrir-se a
cortina vermelha, e Firmo surgia muito ébrio, a dar bordos, contando, sem
conseguir, uma massagada de dinheiro, em notas pequenas, que ele afinal
entrouxou num bolo e recolheu na algibeira das calças.
— Ó Porfiro! Não vens? gritou lá para dentro, arrastando a voz.
E, depois de esperar inutilmente pela resposta, fez alguns passos na
sala.
O Pataca deu à Florinda um “até logo” rápido e, fingindo-se de novo
muito bêbedo, encaminhou-se na direção em que vinha o mulato.
Esbarraram-se.
— Oh! Oh! exclamou o Pataca. Desculpe!
Firmo levantou a cabeça e encarou-o com arrogância; mas desfranziu o
rosto logo que o reconheceu.
— Ah! És tu, seu galego? Como vai isso? A ladroeira corre?
— Ladroeira tinha a avó na cuia! Anda a tomar alguma coisa. Queres?
— Que há de ser?
— Cerveja. Vai?
— Vá lá.
Chegaram-se para o balcão.
— Uma Guarda-Velha, ó pequeno! gritou o Pataca.
Firmo puxou logo dinheiro para pagar.
— Deixa! disse o outro. A lembrança foi minha!
Mas, como Firmo insistisse, consentiu-lhe que fizesse a despesa.
E os níqueis do troco rolaram no chão, fugindo por entre os dedos do
mulato, que os tinha duros na tensão muscular da sua embriaguez.

• 166 • O CORTIÇO
— Que horas são? perguntou Pataca, olhando quase de olhos fechados
o relógio da parede. Oito e meia. Vamos a outra garrafa, mas agora pago eu!
Beberam de novo, e o coadjutor de Jerônimo observou depois:
— Você hoje ferrou-a deveras! Estás que te não podes lamber!
— Desgostos... resmungou o capoeira, sem conseguir lançar da boca a
saliva que se lhe grudava à língua.
— Limpa o queixo que estás cuspido. Desgostos de quê? Negócios de
mulher, aposto!
— A Rita não me apareceu hoje, sabes? Não foi e eu bem calculo por quê!
— Por quê?
— Porque a peste do Jerônimo voltou hoje à estalagem!
— Ahn! Não sabia!... A Rita está então com ele?...
— Não está, nem nunca há de estar, que eu daqui mesmo vou à procura
daquele galego ordinário e ferro-lhe a sardinha no pandulho!
— Vieste armado?
Firmo sacou da camisa uma navalha.
— Esconde! Não deves mostrar isso aqui! Aquela gente ali da outra
mesa já não nos tira os olhos de cima!
— Estou-me ninando pra eles! E que não olhem muito, que lhes dou
uma de amostra!
— Entrou um urbano! Passa-me a navalha!
O capadócio fitou o companheiro, estranhando o pedido.
— É que, explicou aquele, se te prenderem não te encontram ferro...
— Prender a quem? A mim? Ora, vai-te catar!
— E ela é boa? Deixa ver!
— Isto não é coisa que se deixe ver!
— Bem sabes que não me entendo com armas de barbeiro!
— Não sei! Esta é que não me sai das unhas, nem para meu pai, que a
pedisse!
— É porque não tens confiança em mim!
— Confio nos meus dentes, e esses mesmo me mordem a língua!
— Sabes quem vi ainda há pouco? Não és capaz de adivinhar!...
— Quem?
— A Rita.
— Onde?

ALUÍSIO AZEVEDO • 167 •


— Ali na Praia da Saudade.
— Com quem?
— Com um tipo que não conheço...
Firmo levantou-se de improviso e cambaleou para o lado da saída.
— Espera! rosnou o outro, detendo-o. Se queres vou contigo; mas é pre-
ciso ir com jeito, porque, se ela nos bispa, foge!
O mulato não fez caso desta observação e saiu a esbarrar-se por todas
as mesas. Pataca alcançou-o já na rua e passou-lhe o braço na cintura,
amigavelmente.
— Vamos devagar... disse; se não o pássaro se arisca!
A praia estava deserta. Caía um chuvisco. Ventos frios sopravam do mar.
O céu era um fundo negro, de uma só tinta; do lado oposto da bala os lam-
piões pareciam surgir d’água, como algas de fogo, mergulhando bem fundo
as suas trêmulas raízes luminosas.
— Onde está ela? perguntou o Firmo, sem se aguentar nas pernas.
— Ali mais adiante, perto da pedreira. Caminha, que hás de ver!
E continuaram a andar para as bandas do hospício. Mas dois vultos
surdiram da treva; o Pataca reconheceu-os e abraçou-se de improviso ao
mulato.
— Segurem-lhe as pernas! gritou para os outros.
Os dois vultos, pondo o cacete entre os dentes, apoderaram-se de Firmo,
que bracejava seguro pelo tronco.
Deixara-se agarrar — estava perdido.
Quando o Pataca o viu preso pelos sovacos e pela dobra dos joelhos,
sacou-lhe fora a navalha.
— Pronto! Está desarmado!
E tomou também o seu pau.
Soltaram-no então. O capoeira, mal tocou com os pés em terra, des-
feriu um golpe com a cabeça, ao mesmo tempo que a primeira cacetada
lhe abria a nuca. Deu um grito e voltou-se cambaleando. Uma nova paulada
cantou-lhe nos ombros, e outra em seguida nos rins, e outra nas coxas, outra
mais violenta quebrou-lhe a clavícula, enquanto outra logo lhe rachava
a testa e outra lhe apanhava a espinha, e outras, cada vez mais rápidas,
batiam de novo nos pontos já espancados, até que se converteram numa

• 168 • O CORTIÇO
carga contínua de porretadas, a que o infeliz não resistiu, rolando no chão, a
gotejar sangue de todo o corpo.
A chuva engrossava. Ele agora, assim debaixo daquele bate-bate
sem tréguas, parecia muito menor, minguava como se estivesse ao fogo.
Lembrava um rato morrendo a pau. Um ligeiro tremor convulsivo era apenas
o que ainda lhe denunciava um resto de vida. Os outros três não diziam
palavra, arfavam, a bater sempre, tomados de uma irresistível vertigem de
pisar bem a cacete aquela trouxa de carne mole e ensanguentada, que gru-
nhia frouxamente a seus pés. Afinal, quando de todo já não tinham forças
para bater ainda, arrastaram a trouxa até a ribanceira da praia e lançaram-na
ao mar. Depois, arquejantes, deitaram a fugir, à toa, para os lados da cidade.
Chovia agora muito forte. Só pararam no Catete, ao pé de um quiosque;
estavam encharcados; pediram parati e beberam como quem bebe água.
Passava já de onze horas. Desceram pela Praia da Lapa; ao chegarem debaixo
de um lampião, Jerônimo parou suando apesar do aguaceiro que caía.
— Aqui têm vocês, disse, tirando do bolso as quatro notas de vinte
mil-réis. Duas para cada um! E agora vamos tomar qualquer coisa quente em
lugar seco.
— Ali há um botequim, indicou o Pataca, apontando a Rua da Glória.
Subiram por uma das escadinhas que ligam essa rua à praia, e daí a
pouco instalavam-se em volta de uma mesa de ferro. Pediram de comer e de
beber e puseram-se a conversar em voz soturna, muito cansados.
A uma hora da madrugada o dono do café pô-los fora. Felizmente
chovia menos. Os três tomaram de novo a direção de Botafogo; em caminho
Jerônimo perguntou ao Pataca se ainda tinha consigo a navalha do Firmo e
pediu-lha, ao que o companheiro cedeu sem objeção.
— É para conservar uma lembrança daquele bisbórria! explicou o cavou-
queiro, guardando a arma.
Separaram-se defronte da estalagem. Jerônimo entrou sem ruído; foi
até à casa, espiou pelo buraco da fechadura; havia luz no quarto de dormir;
compreendeu que a mulher estava à sua espera, acordada talvez; pensou
sentir, vindo lá de dentro, o bodum azedo que ela punha de si, fez uma
careta de nojo e encaminhou-se resolutamente para a casa da mulata, em
cuja porta bateu devagarinho.

ALUÍSIO AZEVEDO • 169 •


Rita, essa noite, recolhera-se aflita e assustada. Deixara de ir ter com
o amante e mais tarde admirava-se como fizera semelhante imprudência;
como tivera coragem de pôr em prática, justamente no momento mais peri-
goso, uma coisa que ela, até aí, não se sentira com ânimo de praticar. No
íntimo respeitava o capoeira; tinha-lhe medo. Amara-o a princípio por afi-
nidade de temperamento, pela irresistível conexão do instinto luxurioso e
canalha que predominava em ambos, depois continuou a estar com ele por
hábito, por uma espécie de vício que amaldiçoamos sem poder largá-lo; mas
desde que Jerônimo propendeu para ela, fascinando-a com a sua tranquila
seriedade de animal bom e forte, o sangue da mestiça reclamou os seus
direitos de apuração, e Rita preferiu no europeu o macho de raça superior.
O cavouqueiro, pelo seu lado, cedendo às imposições mesológicas, enfarava
a esposa, sua congênere, e queria a mulata, porque a mulata era o prazer,
era a volúpia, era o fruto dourado e acre destes sertões americanos, onde a
alma de Jerônimo aprendeu lascívias de macaco e onde seu corpo porejou o
cheiro sensual dos bodes.
Amavam-se brutalmente, e ambos sabiam disso. Esse amor irracional e
empírico carregara-se muito mais, de parte a parte, com o trágico incidente
da luta, em que o português fora vítima. Jerônimo aureolou-se aos olhos
dela com uma simpatia de mártir sacrificado à mulher que ama; cresceu
com aquela navalhada; iluminou-se com o seu próprio sangue derramado, e,
depois, a ausência no hospital veio a completar a cristalização do seu pres-
tígio, como se o cavouqueiro houvera baixado a uma sepultura, arrastando
atrás de si a saudade dos que o choravam.
Entretanto, o mesmo fenômeno se operava no espírito de Jerônimo com
relação à Rita: arriscar espontaneamente a vida por alguém é aceitar um
compromisso de ternura, em que empenhamos alma e coração; a mulher
por quem fazemos tamanho sacrifício, seja ela quem for assume de um só
voo em nossa fantasia as proporções de um ideal. O desterrado, à primeira
troca de olhares com a baiana, amou-a logo, porque sentiu nela o resumo de
todos os quentes mistérios que os enlearam voluptuosamente nestas terras
da luxúria; amou-a muito mais quando teve ocasião de jogar a existência
por esse amor, e amou-a loucamente durante a triste e dolorosa solidão da
enfermaria, em que os seus gemidos e suspiros eram todos para ela.

• 170 • O CORTIÇO
A mulata bem que o compreendeu, mas não teve ânimo de confessar-lhe
que também morria de amores por ele; receou prejudicá-lo. Agora, com
aquela loucura de faltar à entrevista justamente no dia em que Jerônimo
voltava à estalagem, a situação parecia-lhe muito melindrosa. Firmo, deses-
perado com a ausência dela, embebedava-se naturalmente e vinha ao
cortiço provocar o cavouqueiro; a briga rebentaria de novo, fatal para um
dos dois, se é que não seria para ambos. Do que ela sentira pelo navalhista
persistia agora apenas o medo, não como ele era dantes, indeterminado e
frouxo, mas ao contrário, sobressaltado, nervoso, cheio de apreensões que
a punham aflita. Firmo já não lhe aparecia no espírito como um amante
ciumento e perigoso, mas como um simples facínora, armado de uma velha
navalha desleal e homicida. O seu medo transformava-se em uma mistura de
asco e terror. E sem achar sossego na cama, deixava-se atordoar pelos seus
pressentimentos, quando ouviu bater na porta.
— É ele! disse, com o coração a saltar.
E via já defronte de si o Firmo, bêbado, a reclamar o Jerônimo aos
berros, para esfaqueá-lo ali mesmo. Não respondeu ao primeiro chamado;
ficou escutando.
Depois de uma pausa bateram de novo.
Ela estranhou o modo pelo qual batiam. Não era natural que o fací-
nora procedesse com tanta prudência. Ergueu-se, foi à janela, abriu uma das
folhas e espreitou pelas rótulas.
— Quem está ai?... perguntou a meia voz.
— Sou eu... disse Jerônimo, chegando-se.
Reconheceu-o logo e correu a abrir.
— Como?! É você, Jeromo?
— Chit! fez ele, pondo o dedo na boca. Fala baixo.
Rita começou a tremer: no olhar do português, nas suas mãos encar-
didas de sangue, no seu todo de homem ébrio, encharcado e sujo, havia uma
terrível expressão de crime.
— Donde vens tu?... segredou ela.
— De cuidar da nossa vida... Aí tens a navalha com que fui ferido!
E atirou-lhe sobre a mesa a navalha de Firmo, que a mulata conhecia
como as palmas da mão.
— E ele?

ALUÍSIO AZEVEDO • 171 •


— Está morto.
— Quem o matou?
— Eu.
Calaram-se ambos.
— Agora... acrescentou o cavouqueiro, no fim de um silêncio arquejado
por ambos; estou disposto a tudo para ficar contigo. Sairemos os dois daqui
para onde melhor for... Que dizes tu?
— E tua mulher?...
— Deixo-lhe as minhas economias de muito tempo e continuarei a pagar
o colégio à pequena. Sei que não devia abandoná-la, mas podes ter como
certo que, ainda que não queiras vir comigo, não ficarei com ela! Não sei!
Já não a posso suportar! Um homem enfara-se! Felizmente minha caixa de
roupa está ainda na Ordem e posso ir buscá-la pela manhã.
— E para onde iremos?
— O que não falta é p’r’onde ir! Em qualquer parte estaremos bem.
Tenho aqui sobre mim uns quinhentos mil-réis, para as primeiras despesas.
Posso ficar cá até às cinco horas; são duas e meia; saio sem ser visto por
Piedade; mando-te ao depois dizer o que arranjei, e tu irás ter comigo...
Está dito? Queres?
Rita, em resposta, atirou-se ao pescoço dele e pendurou-se-lhe nos
lábios, devorando-o de beijos.
Aquele novo sacrifício do português; aquela dedicação extrema que o
levava a arremessar para o lado família, dignidade, futuro, tudo, tudo por
ela, entusiasmou-a loucamente. Depois dos sobressaltos desse dia e dessa
noite, seus nervos estavam afiados e toda ela elétrica.
Ah! Não se tinha enganado! Aquele homenzarrão hercúleo, de músculos
de touro, era capaz de todas as meiguices do carinho.
— Então? insistiu ele.
— Sim, sim, meu cativeiro! respondeu a baiana, falando-lhe na boca;
eu quero ir contigo; quero ser a tua mulata, o bem do teu coração! Tu és
os meus feitiços! — E apalpando-lhe o corpo:— Mas como estás ensopado!
Espera! Espera! O que não falta aqui é roupa de homem pra mudar!... Podias
ter uma recaída, cruzes! Tira tudo isso que está alagado! Eu vou acender o
fogareiro e estende-se em cima o que é casimira, para te poderes vestir às
cinco horas. Tira as botas! Olha o chapéu como está! Tudo isto seca! Tudo

• 172 • O CORTIÇO
isto seca! Mira, toma já um gole de parati p’r’atalhar a friagem! Depois passa
em todo o corpo! Eu vou fazer café!
Jerônimo bebeu um bom trago de parati, mudou de roupa e deitou-se
na cama de Rita.
— Vem pra cá... disse, um pouco rouco.
— Espera! Espera! O café está quase pronto!
E ela só foi ter com ele, levando-lhe a chávena fumegante da perfu-
mosa bebida que tinha sido a mensageira dos seus amores; assentou-se ao
rebordo da cama e, segurando com uma das mãos o pires, e com a outra a
xícara, ajudava-o a beber, gole por gole, enquanto seus olhos o acarinhavam,
cintilantes de impaciência no antegozo daquele primeiro enlace.
Depois, atirou fora a saia e, só de camisa, lançou-se contra o seu amado,
num frenesi de desejo doido.
Jerônimo, ao senti-la inteira nos seus braços; ao sentir na sua pele a
carne quente daquela brasileira; ao sentir inundar-lhe o rosto e as espá-
duas, num eflúvio de baunilha e cumaru, a onda negra e fria da cabeleira da
mulata; ao sentir esmagarem-se no seu largo e pelado colo de cavouqueiro
os dois globos túmidos e macios, e nas suas coxas as coxas dela; sua alma
derreteu-se, fervendo e borbulhando como um metal ao fogo, e saiu-lhe
pela boca, pelos olhos, por todos os poros do corpo, escandescente, em
brasa, queimando-lhe as próprias carnes e arrancando-lhe gemidos surdos,
soluços irreprimíveis, que lhe sacudiam os membros, fibra por fibra, numa
agonia extrema, sobrenatural, uma agonia de anjos violentados por diabos,
entre a vermelhidão cruenta das labaredas do inferno.
E com um arranco de besta-fera caíram ambos prostrados, arquejando.
Ela tinha a boca aberta, a língua fora, os braços duros, os dedos inteiriçados,
e o corpo todo a tremer-lhe da cabeça aos pés, continuamente, como se esti-
vesse morrendo; ao passo que ele, de súbito arremessado longe da vida por
aquela explosão inesperada dos seus sentidos, deixava-se mergulhar numa
embriaguez deliciosa, através da qual o mundo inteiro e todo o seu passado
fugiam como sombras fátuas. E, sem consciência de nada que o cercava,
nem memória de si próprio, sem olhos, sem tino, sem ouvidos, apenas con-
servava em todo o seu ser uma impressão bem clara, viva, inextinguível: o
atrito daquela carne quente e palpitante, que ele em delírio apertou contra
o corpo, e que ele ainda sentia latejar-lhe debaixo das mãos, e que ele

ALUÍSIO AZEVEDO • 173 •


continuava a comprimir maquinalmente, como a criança que, já dormindo,
afaga ainda as tetas em que matou ao mesmo tempo a fome e a sede com
que veio ao mundo.

XVI
A essas horas Piedade de Jesus ainda esperava pelo marido.
Ouvira, assentada impaciente à porta de sua casa, darem oito horas,
oito e meia; nove, nove e meia. “Que teria acontecido, Mãe Santíssima?...
Pois o homem ainda não estava pronto de todo e punha-se ao fresco, mal
engolira o jantar, para demorar-se daquele modo?... Ele que nunca fora capaz
de semelhantes tonteiras!...”
— Dez horas! Valha-me Nosso Senhor Jesus Cristo!
Foi até o portão da estalagem, perguntou a conhecidos que passavam
se tinham visto Jerônimo; ninguém dava notícias dele. Saiu, correu à esquina
da rua; um silêncio de cansaço bocejava naquele resto de domingo; às dez
e meia recolheu-se sobressaltada, com o coração a sair-lhe pela garganta, o
ouvido alerta, para que ela acudisse ao primeiro toque na porta; deitou-se
sem tirar a saia, nem apagar de todo o candeeiro. A ceia frugal de leite fer-
vido e queijo assado com açúcar e manteiga ficou intacta sobre a mesa.
Não conseguiu dormir: trabalhava-lhe a cabeça, afastando para longe
o sono. Começou a imaginar perigos, rolos, em que o seu homem recebia
novas navalhadas; Firmo figurava em todas as cenas do delírio; em todas
elas havia sangue. Afinal, quando, depois de muito virar de um para outro
lado do colchão, a infeliz ia caindo em modorra, o mais leve rumor lá fora
a fazia erguer-se de pulo e correr à rótula da janela. Mas não era o cavou-
queiro, da primeira, nem da segunda, nem de nenhuma das vezes.
Quando principiou a chover, Piedade ficou ainda mais aflita; na sua
sobre-excitação afigurava-se-lhe agora que o marido estava sobre as águas
do mar, embarcado, entregue unicamente à proteção da Virgem, em meio
de um temporal medonho. Ajoelhou-se defronte do oratório e rezou com a
voz emaranhada por uma agonia sufocadora. A cada trovão redobrava o seu
sobressalto. E ela, de joelhos, os olhos fitos na imagem de Nossa Senhora, sem
consciência do tempo que corria, arfava soluçando. De repente, ergueu-se,

• 174 • O CORTIÇO
muito admirada de se ver sozinha, como se só naquele instante dera pela
falta do marido a seu lado. Olhou em torno de si, espavorida, com vontade
de chorar, de pedir socorro; as sombras espichadas em volta do candeeiro,
tracejando trêmulas pelas paredes e pelo teto, pareciam querer dizer-lhe
alguma coisa misteriosa. Um par de calças, dependurado à porta do quarto,
com um paletó e um chapéu por cima, representou-lhe de relance o vulto
de um enforcado, a mexer com as pernas. Benzeu-se. Quis saber que horas
eram e não pôde; afigurava-se-lhe terem decorrido já três dias pelo menos
durante aquela aflição. Calculou que não tardaria a amanhecer, se é que
ainda amanheceria: se é que aquela noite infernal não se fosse prolongando
infinitamente, sem nunca mais aparecer o sol! Bebeu um copo d’água, bem
cheio, apesar de haver pouco antes tomado outro, e ficou imóvel, de ouvido
atento, na expectativa de escutar as horas de algum relógio da vizinhança.
A chuva diminuíra e os ventos principiavam a soprar com desespero.
Lá de fora a noite dizia-lhe segredos pelo buraco da fechadura e pelas frin-
chas do telhado e das portas; a cada assobio a mísera julgava ver surgir um
espectro que vinha contar-lhe a morte de Jerônimo. O desejo impaciente
de saber que horas eram punha-a doida: foi à janela, abriu-a; uma rajada
úmida entrou na sala, esfuziando, e apagou a luz. Piedade soltou um grito e
começou a procurar a caixa de fósforos, aos esbarrões, sem conseguir reco-
nhecer os objetos que tateava. Esteve a perder os sentidos; afinal achou os
fósforos, acendeu de novo o candeeiro e fechou a janela. Entrara-lhe um
pouco de chuva em casa; sentiu a roupa molhada no corpo; tomou um novo
copo d’água; um calafrio de febre percorreu-lhe a espinha, e ela atirou-se
para a cama, batendo o queixo, e meteu-se debaixo dos lençóis, a tiritar
de febre. Veio de novo a modorra, fechou os olhos; mas ergueu-se logo,
assentando-se no colchão; parecia-lhe ter ouvido alguém falar lá fora, na rua;
o calafrio voltou; ela, trêmula, procurava escutar. Se se não enganava, dis-
tinguira vozes abafadas, conversando, e as vozes eram de homem; deixou-se
ficar à escuta, concheando a mão atrás da orelha; depois ouviu baterem, não
na sua porta, mas lá muito mais para diante, na casa da das Dores, da Rita,
ou da Augusta. “Devia ser o Alexandre que voltava do serviço...” Quis ir ter
com ele e pedir-lhe notícias de Jerônimo, o calafrio, porém, obrigou-a a ficar
debaixo das cobertas.

ALUÍSIO AZEVEDO • 175 •


Às cinco horas levantou-se de novo com um salto. “Já havia gente lá fora
com certeza!...” Ouvira ranger a primeira porta; abriu a janela, mas ainda estava
tão escuro que se não distinguia patavina. Era uma preguiçosa madrugada de
agosto, nebulosa, úmida; parecia disposta a resistir ao dia. “Ó senhores! Aquela
noite dos diachos não acabaria nunca mais?...” Entretanto, adivinhava-se que
ia amanhecer. Piedade ouviu dentro do pátio, do lado contrário à sua casa,
um zunzum de duas vozes cochichando com interesse. “Virgem do céu! Dir-
se-ia a voz do seu homem! E a outra era voz de mulher, credo! Ilusão sua com
certeza! Ela essa noite estava para ouvir o que não se dava...” Mas aqueles
cochichos dialogados na escuridão causavam-lhe extremo alvoroço. “Não!
Como poderia ser ele?... Que loucura! Se o homem estivesse ali teria sem
dúvida procurado a casa!...” E os cochichos persistiam, enquanto Piedade,
toda ouvidos, estalava de agonia.
— Jeromo! gritou ela.
As vozes calaram-se logo, fazendo o silêncio completo: depois nada
mais se ouviu.
Piedade ficou à janela. As trevas dissolveram-se afinal; uma claridade
triste formou-se no nascente e foi, a pouco e pouco, se derramando pelo
espaço. O céu era uma argamassa cinzenta e gorda. O cortiço acordava com o
remancho das segundas-feiras; ouviam-se os pigarros das ressacas de parati.
As casinhas abriam-se; vultos espreguiçados vinham bocejando fazer a sua
lavagem à bica; as chaminés principiavam a fumegar; recendia o cheiro do
café torrado.
Piedade atirou um xale em cima dos ombros e saiu ao pátio; a Machona,
que acabava de aparecer à porta do número 7 com um berro para acordar a
família de uma só vez, gritou-lhe:
— Bons dias, vizinha! Seu marido como vai? Melhor?
Piedade soltou um suspiro.
— Ai, não mo pergunte, S’ora Leandra!
— Piorou, filha?
— Não veio esta noite pra casa...
— Olha o demo! Como não veio? Onde ficou ele então?
— Cá está quem não lho sabe responder.
— Ora já se viu?!

• 176 • O CORTIÇO
— Estou com o miolo que é água de bacalhau! Não preguei olho durante
a noite! Forte desgraça a minha!
— Teria a ele lhe sucedido alguma?...
Piedade pôs-se a soluçar, enxugando as lágrimas no xale de lã; ao passo
que a outra, com a sua voz rouca e forte, que nem o som de uma trompa
enferrujada, passava adiante a nova de que o Jerônimo não se recolhera
aquela noite à estalagem.
— Talvez voltasse pro hospital... obtemperou Augusta, que lavava junto
a uma tina a gaiola do seu papagaio.
— Mas ele ontem veio de muda... contrapôs Leandra.
— E lá não se entra depois das oito horas da noite, acrescentou outra
lavadeira.
E os comentários multiplicavam-se, palpitando de todos os lados, numa
boa disposição para fazer daquilo o escândalo do dia. Piedade respondia fria-
mente às perguntas curiosas que lhe dirigiam as companheiras; estava triste
e sucumbida; não se lavou, não mudou de roupa, não comeu nada, porque a
comida lhe crescia na boca e não lhe passava da garganta; o que fazia só era
chorar e lamentar-se.
— Forte desgraça a minha! repetia a infeliz a cada instante.
— Se vais assim, filha, estás bem arranjada! exclamou-lhe a Machona,
chegando à porta de sua casa a dar dentadas num pão recheado de man-
teiga. Que diabo, criatura! O homem não te morreu, pra estares agora aí a
carpir desse modo!
— Sei-o eu lá se me morreu?... disse Piedade entre soluços. Vi tanta
coisa esta noite!...
— Ele te apareceu nos sonhos?... perguntou Leandra com assombro.
— Nos sonhos não, que não dormi, mas vi a modos que fantasmas...
E chorava.
— Ai, credo, filha!
— Estou desgraçada!
— Se te apareceram almas, decerto; mas põe a fé em Deus, mulher!
E não te rales desse modo, que a desgraça pode ser maior! O choro puxa
muita coisa!
— Ai, o meu rico homem!

ALUÍSIO AZEVEDO • 177 •


E o mugido lúgubre daquela pobre criatura abandonada antepunha
à rude agitação do cortiço uma nota lamentosa e tristonha de uma vaca
chamando ao longe, perdida ao cair da noite num lugar desconhecido e
agreste. Mas o trabalho aquecia já de uma ponta à outra da estalagem;
ria-se, cantava-se, soltava-se a língua; o formigueiro assanhava-se com as
compras para o almoço; os mercadores entravam e saíam: a máquina de
massas principiava a bufar. E Piedade, assentada à soleira de sua porta,
paciente e ululante como um cão que espera pelo dono, maldizia a hora em
que saíra da sua terra, e parecia disposta a morrer ali mesmo, naquele limiar
de granito, onde ela, tantas vezes, com a cabeça encostada ao ombro do seu
homem, suspirava feliz, ouvindo gemer na guitarra dele os queridos fados
de além-mar.
E Jerônimo não aparecia.
Ela ergueu-se finalmente, foi lá fora ao capinzal, pôs-se a andar agitada,
falando sozinha, a gesticular forte. E nos seus movimentos de desespero,
quando levantava para o céu os punhos fechados, dir-se-ia que não era contra
o marido que se revoltava, mas sim contra aquela amaldiçoada luz alucina-
dora, contra aquele sol crapuloso, que fazia ferver o sangue aos homens e
metia-lhes no corpo luxúrias de bode. Parecia rebelar-se contra aquela natu-
reza alcoviteira, que lhe roubara o seu homem para dá-lo a outra, porque a
outra era gente do seu peito e ela não.
E maldizia soluçando a hora em que saíra da sua terra; essa boa terra
cansada, velha como que enferma; essa boa terra tranquila, sem sobressaltos
nem desvarios de juventude. Sim, lá os campos eram frios e melancólicos, de
um verde alourado e quieto, e não ardentes e esmeraldinos e afogados em
tanto sol e em tanto perfume como o deste inferno, onde em cada folha que
se pisa há debaixo um réptil venenoso, como em cada flor que desabotoa
e em cada moscardo que adeja há um vírus de lascívia. Lá, nos saudosos
campos da sua terra, não se ouvia em noites de lua clara roncar a onça e o
maracajá, nem pela manhã, ao romper do dia, rilhava o bando truculento
das queixadas; lá não varava pelas florestas a anta feia e terrível, quebrando
árvores; lá a sucuruju não chocalhava a sua campainha fúnebre, anunciando
a morte, nem a coral esperava traidora o viajante descuidado para lhe dar o
bote certeiro e decisivo; lá o seu homem não seria anavalhado pelo ciúme
de um capoeira; lá Jerônimo seria ainda o mesmo esposo casto, silencioso

• 178 • O CORTIÇO
e meigo; seria o mesmo lavrador triste e contemplativo, como o gado que à
tarde levanta para o céu de opala o seu olhar humilde, compungido e bíblico.
Maldita a hora em que ela veio! Maldita! Mil vezes maldita!
E tornando à casa, Piedade ainda mais se enraivecia, porque ali defronte,
no número 9, a mulata baiana, a dançadeira de chorado, a cobra assanhada,
cantava alegremente, chegando de vez em quando à janela para vir soprar
fora a cinza da fornalha do seu ferro de engomar, olhando de passagem para
a direita e para a esquerda, a afetar indiferença pelo que não era de sua
conta, e desaparecendo logo, sem interromper a cantiga, muito embebida
no seu serviço. Ah! Essa não fez comentários sobre o estranho procedimento
de mestre Jerônimo, nem mesmo quis ouvir notícias dele; pouco arredou o
pé de dentro de casa e, nesse pouco que saiu, foi às pressas e sem dar trela
a ninguém.
Nada! Que as penas e desgostos não punham a panela no fogo!
Entretanto, ah! Ah! Ela estava bem preocupada. Apesar do alívio que lhe
trouxera ao espírito a morte do Firmo e a despeito do seu contentamento
de passar por uma vez aos braços do cavouqueiro, um sobressalto vago e
opressivo esmagava-lhe o coração e matava-a de impaciência por atirar-se à
procura de notícias sobre as ocorrências da noite; tanto assim que, às onze
horas, mal percebeu que Piedade, depois de esperar em vão pelo marido,
saía aflita em busca dele, disposta a ir ao hospital, à polícia, ao necrotério, ao
diabo, contanto que não voltasse sem algum esclarecimento, ela atirou logo
o trabalho p’ro canto, enfiou uma saia, cruzou o xale no ombro, e ganhou
o mundo, também disposta a não voltar sem saber tintim por tintim o que
havia de novo.
Foi cada uma para seu lado e só voltaram à tarde, quase ao mesmo
tempo, encontrando o cortiço cheio já e assanhado com a notícia da morte
do Firmo e do terrível efeito que esta causara no “Cabeça-de-Gato”, onde o
crime era atribuído aos carapicus, contra os quais juravam-se extremas vin-
ganças de desafronta. Soprava de lá, rosnando, um hálito morno de cólera
malsofrida e sequiosa que crescia com a aproximação da noite e parecia
sacudir no ar, ameaçadoramente, a irrequieta flâmula amarela.
O sol descambava para o ocaso, indefeso, e nu, tingindo o céu de uma
vermelhidão pressaga e sinistra.

ALUÍSIO AZEVEDO • 179 •


Piedade entrou carrancuda na estalagem; não vinha triste, vinha enfure-
cida; soubera na rua a respeito do marido mais do que esperava. Soubera em
primeiro lugar que ele estava vivo, perfeitamente vivo, pois fora visto aquele
mesmo dia, mais de uma vez, no Garnisé e na Praia da Saudade, a vagar
macambúzio; soubera, por intermédio de um rondante amigo de Alexandre,
que Jerônimo surgira de manhãzinha do capinzal perto da pedreira de João
Romão, o que fazia crer viesse ele naquele momento de casa, saindo pelos
fundos do cortiço; soubera ainda que o cavouqueiro fora à Ordem buscar
a sua caixa de roupa e que, na véspera, estivera a beber à farta na venda
do Pepé, de súcia com o Zé Carlos e com o Pataca, e que depois seguiram
para os lados da praia, todos três mais ou menos no gole. Sem a menor
desconfiança do crime, a desgraçada ficou convencida de que o marido não
se recolhera aquela noite à casa, porque ficara em grossa pândega com
os amigos e que, voltando tarde e bêbedo, dera-lhe para meter-se com a
mulata, que o aceitou logo. “Pudera! Pois se havia muito a deslambida não
queria outra coisa!...” Com esta convicção inchou-lhe de súbito por dentro
um novelo de ciúmes, e ela correu incontinente para a estalagem, certa
de que iria encontrar o homem e despejaria contra ele aquela tremenda
tempestade de ressentimentos e despeitos acumulados, que ameaçavam
sufocá-la se não rebentassem de vez. Atravessou o cortiço sem dar palavra
a ninguém e foi direito à casa; contava encontrá-la aberta e a sua decepção
foi cruel ao vê-la fechada como a deixara. Pediu a chave à Machona, que,
ao entregá-la, inquiriu sobre Jerônimo e pespegou-lhe ao mesmo tempo a
notícia do assassinato de Firmo.
Com esta nova é que Piedade não contava. Ficou lívida; um pavoroso
pressentimento varou-lhe o espírito como um raio. Afastou-se logo, com
medo de falar, e foi trêmula e ofegante que abriu a porta e meteu-se no
número 35.
Atirou-se a uma cadeira. Estava morta de cansaço; não tinha comido
nada esse dia e não sentia fome; a cabeça andava-lhe à roda, as pernas
pareciam-lhe de chumbo.
Seria ele?!... interrogou a si própria.
E os raciocínios começaram a surdir-lhe em massa, ensarilhados,
atropelando-lhe a razão. Não conseguia coordená-los; entre todas uma ideia
insubordinava-se com mais teima, a perturbar as outras, ficando superior, como

• 180 • O CORTIÇO
uma carta maior que o resto do baralho: “Se ele matou o Firmo, dormiu na esta-
lagem e não veio ter comigo, é porque então deixou-me de feita pela Rita!”
Tentou fugir a semelhante hipótese; repeliu-a indignada. Não! Não era
possível que o Jerônimo, seu marido de tanto tempo, o pai de sua filha, um
homem a quem ela nunca dera razão de queixa e a quem sempre respeitara
e quisera com o mesmo carinho e com a mesma dedicação, a abandonasse
de um momento para outro; e por quem?! Por uma não sei que diga! Um
diabo de uma mulata assanhada, que tão depressa era de Pedro como de
Paulo! Uma sirigaita, que vivia mais para a folia do que para o trabalho! Uma
peste, que... Não! Qual! Era lá possível?! Mas então por que ele não viera?...
Por que não vinha?... Por que não dava notícias suas?... Por que fora pela
manhã à Ordem buscar a caixa da roupa?...
O Roberto Papa-Defuntos dissera-lhe que o encontrara às duas da tarde
ali perto, ao dobrar da Rua Bambina, e que até pararam um instante para
conversar. Com mais alguns passos teria chegado à casa! Seria possível,
santos do céu! que o seu homem estivesse disposto a nunca mais tornar
para junto dela?
Nisto entrou a outra, acompanhada por um pequeno descalço. Vinha
satisfeita; estivera com Jerônimo, jantaram juntos, numa casa de pasto;
ficara tudo combinado; arranjara-se o ninho. Não se mudaria logo para não
dar que falar na estalagem, mas levaria alguma roupa e os objetos mais
indispensáveis e que não dessem na vista por ocasião do transporte. Voltaria
no dia seguinte ao cortiço, onde continuaria a trabalhar; à noite iria ter com o
novo amante, e, no fim de uma semana — zás! Fazia-se a mudança completa,
e adeus coração! — Por aqui é o caminho! O cavouqueiro, pelo seu lado,
mandaria uma carta a João Romão, despedindo-se do seu serviço, e outra à
mulher, dizendo com boas palavras que, por uma dessas fatalidades de que
nenhuma criatura está livre, deixava de viver em companhia dela, mas que
lhe conservaria a mesma estima e continuaria a pagar o colégio da filha;
e, feito isto, pronto! Entraria em vida nova, senhor da sua mulata, livres e
sozinhos, independentes, vivendo um para o outro, numa eterna embriaguez
de gozos.
Mas, na ocasião em que a baiana, seguida pelo pequeno, passava
defronte da porta de Piedade, esta deu um salto da cadeira e gritou-lhe:
— Faz favor?

ALUÍSIO AZEVEDO • 181 •


— Que é? resmungou Rita, parando sem voltar senão o rosto, e já a dizer
no seu todo de impaciência que não estava disposta a muita conversa.
— Diga-me uma coisa, inquiriu aquela; você muda-se?
A mulata não contava com semelhante pergunta, assim à queima-roupa;
ficou calada sem achar o que responder.
— Muda-se, não é verdade? insistiu a outra, fazendo-se vermelha.
— E o que tem você com isso? Mude-me ou não, não lhe tenho de dar
satisfações! Meta-se com a sua vida! Ora esta!
— Com a minha vida é que te meteste tu, cigana! exclamou a portu-
guesa, sem se conter e avançando para a porta com ímpeto.
— Hein?! Repete, cutruca ordinária! berrou a mulata, dando um passo
em frente.
— Pensas que já não sei de tudo? Maleficiaste-me o homem e agora
carregas-me com ele! Que a má coisa te saiba, cabra do inferno! Mas deixa
estar que hás de amargar o que o diabo não quis! Quem to jura sou eu!
— Pula cá pra fora, perua choca, se és capaz!
Em torno de Rita já o povaréu se reunia alvoroçado; as lavadeiras dei-
xaram logo as tinas e vinham, com os braços nus, cheios de espuma de
sabão, estacionar ali ao pé, formando roda, silenciosas, sem nenhuma delas
querer meter-se no barulho. Os homens riam e atiravam chufas às duas
contendoras, como sucedia sempre quando no cortiço qualquer mulher se
disputava com outra.
— Isca! Isca! gritavam eles.
Ao desafio da mulata, Piedade saltara ao pátio, armada com um dos
seus tamancos. Uma pedrada recebeu-a em caminho, rachando-lhe a pele
do queixo, ao que ela respondeu desfechando contra a adversária uma for-
midável pancada na cabeça.
E pegaram-se logo a unhas e dentes.
Por algum tempo lutaram de pé, engalfinhadas, no meio de grande
algazarra dos circunstantes. João Romão acudiu e quis separá-las; todos
protestaram. A família do Miranda assomou à janela, tomando ainda o café de
depois do jantar, indiferente, já habituada àquelas cenas. Dois partidos todavia
se formavam em torno das lutadoras; quase todos os brasileiros eram pela
Rita e quase todos os portugueses pela outra. Discutia-se com febre a supe-
rioridade de cada qual delas; rebentavam gritos de entusiasmo a cada mossa

• 182 • O CORTIÇO
que qualquer das duas recebia; e estas, sem se desunharem, tinham já arra-
nhões e mordeduras por todo o busto.
Quando menos se esperava, ouviu-se um baque pesado e viu-se
Piedade de bruços no chão e a Rita por cima, escarranchada sobre as suas
largas ancas, a socar-lhe o cachaço de murros contínuos, desgrenhada,
rota, ofegante, os cabelos caídos sobre a cara, gritando vitoriosa, com a
boca correndo sangue:
— Toma pro teu tabaco! Toma, galinha podre! Toma, pra não te meteres
comigo! Toma! Toma, baiacu da praia!
Os portugueses precipitaram-se para tirar Piedade de debaixo da
mulata. Os brasileiros opuseram-se ferozmente.
— Não pode!
— Enche!
— Não deixa!
— Não tira!
— Entra! Entra!
E as palavras “galego” e “cabra” cruzaram-se de todos os pontos, como
bofetadas. Houve um vavau rápido e surdo, e logo em seguida um formidável
rolo, um rolo a valer, não mais de duas mulheres, mas de uns quarenta e
tantos homens de pulso, rebentou como um terremoto. As cercas e os jiraus
desapareceram do chão e estilhaçaram-se no ar, estalando em descarga; ao
passo que numa berraria infernal, num fecha-fecha de formigueiro em guerra,
aquela onda viva ia arrastando o que topava no caminho; barracas e tinas,
baldes, regadores e caixões de planta, tudo rolava entre aquela centena de
pernas confundidas e doidas. Das janelas do Miranda apitava-se com fúria;
da rua, em todo o quarteirão, novos apitos respondiam; dos fundos do cortiço
e pela frente surgia povo e mais povo. O pátio estava quase cheio; ninguém
mais se entendia; todos davam e todos apanhavam; mulheres e crianças
berravam. João Romão, clamando furioso, sentia-se impotente para conter
semelhantes demônios. “Fazer rolo àquela hora, que imprudência!” Não con-
seguiu fechar as portas da venda, nem o portão da estalagem; guardou às
pressas na burra o que havia em dinheiro na gaveta, e, armando-se com uma
tranca de ferro, pôs-se de sentinela às prateleiras, disposto a abrir o casco
ao primeiro que se animasse a saltar-lhe o balcão. Bertoleza, lá dentro na
cozinha, aprontava uma grande chaleira de água quente, para defender com

ALUÍSIO AZEVEDO • 183 •


ela a propriedade do seu homem. E o rolo a ferver lá fora, cada vez mais
inflamado com um terrível sopro de rivalidade nacional. Ouviam-se, num
clamor de pragas e gemidos, vivas a Portugal e vivas ao Brasil. De vez em
quando, o povaréu, que continuava a crescer, afastava-se em massa, rugindo
de medo, mas tornava logo, como a onda no refluxo dos mares. A polícia
apareceu e não se achou com ânimo de entrar, antes de vir um reforço de
praças, que um permanente fora buscar a galope.
E o rolo fervia.
Mas, no melhor da luta, ouvia-se na rua um coro de vozes que se aproxi-
mavam das bandas do “Cabeça-de-Gato”. Era o canto de guerra dos capoeiras
do outro cortiço, que vinham dar batalha aos carapicus, pra vingar com
sangue a morte de Firmo, seu chefe de malta.

XVII
Mal os carapicus sentiram a aproximação dos rivais, um grito de alarma
ecoou por toda a estalagem e o rolo dissolveu-se de improviso, sem que
a desordem cessasse. Cada qual correu à casa, rapidamente, em busca do
ferro, do pau e de tudo que servisse para resistir e para matar. Um só impulso
os impelia a todos; já não havia ali brasileiros e portugueses, havia um só
partido que ia ser atacado pelo partido contrário; os que se batiam ainda
há pouco emprestavam armas uns aos outros, limpando com as costas das
mãos o sangue das feridas. Agostinho, encostado ao lampião do meio do cor-
tiço, cantava em altos berros uma coisa que lhe parecia responder à música

• 184 • O CORTIÇO
bárbara que entoavam lá fora os inimigos; a mãe dera-lhe licença, a pedido
dele, para pôr um cinto de Neném, em que o pequeno enfiou a faca da
cozinha. Um mulatinho franzino, que até aí não fora notado por ninguém no
São Romão, postou-se defronte da entrada, de mãos limpas, à espera dos
invasores; e todos tiveram confiança nele porque o ladrão, além de tudo,
estava rindo.
Os cabeças-de-gato assomaram afinal ao portão. Uns cem homens, em
que se não via a arma que traziam. Porfiro vinha na frente, a dançar, de
braços abertos, bamboleando o corpo e dando rasteiras para que ninguém
lhe estorvasse a entrada. Trazia o chapéu à ré, com um laço de fita amarela
flutuando na copa.
— Aguenta! Aguenta! Faz frente! clamavam de dentro os carapicus.
E os outros, cantando o seu hino de guerra, entraram e aproximaram-se
lentamente, a dançar como selvagens. As navalhas traziam-nas abertas e
escondidas na palma da mão.
Os carapicus enchiam a metade do cortiço. Um silêncio arquejado
sucedia à estrepitosa vozeria do rolo que findara. Sentia-se o hausto impa-
ciente da ferocidade que atirava aqueles dois bandos de capoeiras um contra
o outro. E, no entanto, o sol, único causador de tudo aquilo, desaparecia de
todo nos limbos do horizonte, indiferente, deixando atrás de si as melanco-
lias do crepúsculo, que é a saudade da terra quando ele se ausenta, levando
consigo a alegria da luz e do calor.
Lá na janela do Barão, o Botelho, entusiasmado como sempre por
tudo que lhe cheirava a guerra, soltava gritos de aplauso e dava brados de
comando militar.
E os cabeças-de-gato aproximavam-se cantando, a dançar, rastejando
alguns de costas para o chão, firmados nos pulsos e nos calcanhares.
Dez carapicus saíram em frente; dez cabeças-de-gato se alinharam
defronte deles.
E a batalha principiou, não mais desordenada e cega, porém com
método, sob o comando de Porfiro que, sempre a cantar ou assoviar, saltava
em todas as direções, sem nunca ser alcançado por ninguém.
Desferiram-se navalhas contra navalhas, jogaram-se as cabeçadas e os
voa-pés. Par a par, todos os capoeiras tinham pela frente um adversário de igual
destreza que respondia a cada investida com um salto de gato ou uma queda

ALUÍSIO AZEVEDO • 185 •


repentina que anulava o golpe. De parte a parte esperavam que o cansaço
desequilibrasse as forças, abrindo furo à vitória; mas um fato veio neutralizar
inda uma vez a campanha: imenso rebentão de fogo esgargalhava-se de uma
das casas do fundo, o número 88. E agora o incêndio era a valer.
Houve nas duas maltas um súbito espasmo de terror. Abaixaram-se os
ferros e calou-se o hino de morte. Um clarão tremendo ensanguentou o ar,
que se fechou logo de fumaça fulva.
A Bruxa conseguira afinal realizar o seu sonho de louca: o cortiço ia
arder; não haveria meio de reprimir aquele cruento devorar de labaredas.
Os cabeças-de-gato, leais nas suas justas de partido, abandonaram o campo,
sem voltar o rosto, desdenhosos de aceitar o auxílio de um sinistro e dispostos
até a socorrer o inimigo, se assim fosse preciso. E nenhum dos carapicus os
feriu pelas costas. A luta ficava para outra ocasião. E a cena transformou-se
num relance; os mesmos que barateavam tão facilmente a vida, apressavam-se
agora a salvar os miseráveis bens que possuíam sobre a terra. Fechou-se um
entra e sai de maribondos defronte daquelas cem casinhas ameaçadas pelo
fogo. Homens e mulheres corriam de cá para lá com os tarecos ao ombro,
numa balbúrdia de doidos. O pátio e a rua enchiam-se agora de camas velhas
e colchões espocados. Ninguém se conhecia naquela zumba de gritos sem
nexo, e choro de crianças esmagadas, e pragas arrancadas pela dor e pelo
desespero. Da casa do Barão saíam clamores apopléticos; ouviam-se os guin-
chos de Zulmira que se espolinhava com um ataque. E começou a aparecer
água. Quem a trouxe? Ninguém sabia dizê-lo; mas viam-se baldes e baldes
que se despejavam sobre as chamas.
Os sinos da vizinhança começaram a badalar.
E tudo era um clamor.
A Bruxa surgiu à janela da sua casa, como à boca de uma fornalha acesa.
Estava horrível; nunca fora tão bruxa. O seu moreno trigueiro, de cabocla
velha, reluzia que nem metal em brasa; a sua crina preta, desgrenhada,
escorrida e abundante como as das éguas selvagens, dava-lhe um caráter
fantástico de fúria saída do inferno. E ela ria-se, ébria de satisfação, sem
sentir as queimaduras e as feridas, vitoriosa no meio daquela orgia de fogo,
com que ultimamente vivia a sonhar em segredo a sua alma extravagante
de maluca.

• 186 • O CORTIÇO
Ia atirar-se cá para fora, quando se ouviu estalar o madeiramento da
casa incendiada, que abateu rapidamente, sepultando a louca num montão
de brasas.
Os sinos continuavam a badalar aflitos. Surgiam aguadeiros com as suas
pipas em carroça, alvoroçados, fazendo cada qual maior empenho em chegar
antes dos outros e apanhar os dez mil-réis da gratificação. A polícia defendia
a passagem ao povo que queria entrar. A rua lá fora estava já atravancada
com o despojo de quase toda a estalagem. E as labaredas iam galopando
desembestadas para a direita e para a esquerda do número 88. Um papagaio,
esquecido à parede de uma das casinhas e preso à gaiola, gritava furioso,
como se pedisse socorro.
Dentro de meia hora o cortiço tinha de ficar em cinzas. Mas um fragor
de repiques de campainhas e estridente silvar de válvulas encheu de súbito
todo o quarteirão, anunciando que chegava o corpo dos bombeiros.
E logo em seguida apontaram carros à desfilada, e um bando de demô-
nios de blusa clara, armados uns de archotes e outros de escadilhas de ferro,
apoderaram-se do sinistro, dominando-o incontinente, como uma expedição
mágica, sem uma palavra, sem hesitações e sem atropelos. A um só tempo
viram-se fartas mangas d’água chicoteando o fogo por todos os lados; enquanto,
sem se saber como, homens, mais ágeis que macacos, escalavam os telhados
abrasados por escadas que mal se distinguiam; e outros invadiam o coração
vermelho do incêndio, a dardejar duchas em torno de si, rodando, saltando,
piruetando, até estrangularem as chamas que se atiravam ferozes para cima
deles, como dentro de um inferno; ao passo que outros, cá de fora, imper-
turbáveis, com uma limpeza de máquina moderna, fuzilavam de água toda a
estalagem, número por número, resolvidos a não deixar uma só telha enxuta.
O povo aplaudia-os entusiasmado, já esquecido do desastre e só atenção
para aquele duelo contra o incêndio. Quando um bombeiro, de cima do
telhado, conseguiu sufocar uma ninhada de labaredas, que surgia defronte
dele, rebentou cá debaixo uma roda de palmas, e o herói voltou-se para a
multidão, sorrindo e agradecendo.
Algumas mulheres atiravam-lhe beijos, entre brados de ovação.

ALUÍSIO AZEVEDO • 187 •


XVIII
Por esse tempo, o amigo de Bertoleza, notando que o velho Libório,
depois de escapar de morrer na confusão do incêndio, fugia agoniado para o
seu esconderijo, seguiu-o com disfarce e observou que o miserável, mal deu
luz à candeia, começou a tirar ofegante alguma coisa do seu colchão imundo.
Eram garrafas. Tirou a primeira, a segunda, meia dúzia delas. Depois
puxou às pressas a coberta do catre e fez uma trouxa. Ia de novo ganhar a
saída, mas soltou um gemido surdo e caiu no chão sem força, arrevessando
uma golfada de sangue e cingindo contra o peito o misterioso embrulho.
João Romão apareceu, e ele, assim que o viu, redobrou de aflição e
torceu-se todo sobre as garrafas, defendendo-as com o corpo inteiro, a olhar
aterrado e de esguelha para o seu interventor, como se dera cara a cara
com um bandido. E, a cada passo que o vendeiro adiantava, o tremor e o
sobressalto do velho recresciam, tirando-lhe da garganta grunhidos roucos
de animal batido e assustado. Duas vezes tentou erguer-se; duas vezes rolou
por terra moribundo. João Romão objurgou-lhe que qualquer demora ali seria
morte certa: o incêndio avançava. Quis ajudá-lo a carregar o fardo. Libório,
por única resposta, arregaçou os beiços, mostrando as gengivas sem dentes
e tentando morder a mão que o vendeiro estendia já sobre as garrafas.
Mas, lá de cima, a ponta de uma língua de fogo varou o teto e iluminou
de vermelho a miserável pocilga. Libório tentou ainda um esforço supremo,
e nada pôde, começando a tremer da cabeça aos pés, a tremer, a tremer,
grudando-se cada vez mais à sua trouxa, e já estrebuchava, quando o ven-
deiro lha arrancou das garras com violência. Também era tempo, porque,
depois de insinuar a língua; o fogo mostrou a boca e escancarou afinal a
goela devoradora.
O tratante fugiu de carreira, abraçado à sua presa, enquanto o velho, sem
conseguir pôr-se de pé, rastreava na pista dele, dificultosamente, estrangu-
lado de desespero senil, já sem fala, rosnando uns vagidos de morte, os olhos
turvos, todo ele roxo, os dedos enriçados como as unhas de abutre ferido.
João Romão atravessou o pátio de carreira e meteu-se na sua toca para
esconder o furto. Ao primeiro exame, de relance, reconheceu logo que era
dinheiro em papel o que havia nas garrafas. Enterrou a trouxa na prateleira

• 188 • O CORTIÇO
de um armário velho cheio de frascos e voltou lá fora para acompanhar o
serviço dos bombeiros.
À meia-noite estava já completamente extinto o fogo e quatro sentinelas
rondavam a ruína das trinta e tantas casinhas que arderam. O vendeiro só
pôde voltar à trouxa das garrafas às cinco horas da manhã, quando Bertoleza,
que fizera prodígios contra o incêndio, passava pelo sono, encostada na
cama, com a saia ainda encharcada de água, o corpo cheio de pequenas quei-
maduras. Verificou que as garrafas eram oito e estavam cheias até à boca
de notas de todos os valores, que aí foram metidas, uma a uma, depois de
cuidadosamente enroladas e dobradas à moda de bilhetes de rifa. Receoso,
porém, de que a crioula não estivesse bem adormecida e desse pela coisa,
João Romão resolveu adiar para mais tarde a contagem do dinheiro e guardou
o tesouro noutro lugar mais seguro.
No dia seguinte a polícia averiguou os destroços do incêndio e mandou
proceder logo ao desentulho, para retirar os cadáveres que houvesse.
Rita desaparecera da estalagem durante a confusão da noite; Piedade
caíra de cama, com um febrão de quarenta graus; a Machona tinha uma
orelha rachada e um pé torcido; a das Dores a cabeça partida; o Bruno
levara uma navalhada na coxa; dois trabalhadores da pedreira estavam gra-
vemente feridos; um italiano perdera dois dentes da frente, e uma filhinha
da Augusta Carne-Mole morrera esmagada pelo povo. E todos, todos se
queixavam de danos recebidos e revoltaram-se contra os rigores da sorte.
O dia passou-se inteiro na computação dos prejuízos e a dar-se balanço
no que se salvara do incêndio. Sentia-se um fartum aborrecido de estor-
rilho e cinza molhada. Um duro silêncio de desconsolo embrutecia aquela
pobre gente. Vultos sombrios, de mãos cruzadas atrás, permaneciam horas
esquecidas, a olhar imóveis os esqueletos carbonizados e ainda úmidos das
casinhas queimadas. Os cadáveres da Bruxa e do Libório foram carregados
para o meio do pátio, disformes, horrorosos, e jaziam entre duas velas
acesas, ao relento, à espera do carro da Misericórdia. Entrava gente da rua
para os ver; descobriam-se defronte deles, e alguns curiosos lançavam pie-
dosamente uma moeda de cobre no prato que, aos pés dos dois defuntos,
recebia a esmola para a mortalha. Em casa de Augusta, sobre uma mesa
coberta por uma cerimoniosa toalha de rendas, estava o cadaverzinho da
filha morta, todo enfeitado de flores, com um Cristo de latão à cabeceira

ALUÍSIO AZEVEDO • 189 •


e dois círios que ardiam tristemente. Alexandre, assentado a um canto da
sala, com o rosto escondido nas mãos, chorava, aguardando o pêsame das
visitas; fardara-se, só para isso, com o seu melhor uniforme, coitado!
O enterro da pequenita foi feito à custa de Léonie, que apareceu às três
da tarde, vestida de cetineta cor de creme, num carrinho dirigido por um
cocheiro de calção de flanela branca e libré agaloada de ouro.
O Miranda apresentou-se na estalagem logo pela manhã, o ar compun-
gido, porém superior. Deu um ligeiro abraço em João Romão, falou-lhe em
voz baixa, lamentando aquela catástrofe, mas felicitou-o porque tudo estava
no seguro.
O vendeiro, com efeito, impressionado com a primeira tentativa de
incêndio, tratara de segurar todas as suas propriedades; e, com tamanha
inspiração o fez que, agora, em vez de lhe trazer o fogo prejuízo, até lhe
deixaria lucros.
— Ah, ah, meu caro! Cautela e caldo de galinha nunca fizeram mal a
doente!... segredou o dono do cortiço, a rir. Olhe, aqueles é que com cer-
teza não gostaram da brincadeira! acrescentou, apontando para o lado em
que maior era o grupo dos infelizes que tomavam conta dos restos de seus
tarecos atirados em montão.
— Ah, mas esses, que diabo! Nada têm que perder!... considerou o outro.
E os dois vizinhos foram até o fim do pátio, conversando em voz baixa.
— Vou reedificar tudo isto! declarou João Romão, com um gesto enér-
gico que abrangia toda aquela Babilônia desmantelada.
E expôs o seu projeto: tencionava alargar a estalagem, entrando um
pouco pelo capinzal. Levantaria do lado esquerdo, encostado ao muro do
Miranda, um novo correr de casinhas, aproveitando assim parte do pátio, que
não precisava ser tão grande; sobre as outras levantaria um segundo andar,
com uma longa varanda na frente toda gradeada. Negociozinho para ter ali,
a dar dinheiro, em vez de uma centena de cômodos, nada menos de quatro-
centos a quinhentos, de doze a vinte e cinco mil-réis cada um!
Ah! Ele havia de mostrar como se fazem as coisas bem feitas. O Miranda
escutava-o calado, fitando-o com respeito.
— Você é um homem dos diabos! disse afinal, batendo-lhe no ombro.
E, ao sair de lá, no seu coração vulgar de homem que nunca produziu e
levou a vida, como todo o mercador, a explorar a boa-fé de uns e o trabalho

• 190 • O CORTIÇO
intelectual de outros, trazia uma grande admiração pelo vizinho. O que ainda
lhe restava da primitiva inveja transformou-se nesse instante num entu-
siasmo ilimitado e cego.
— É um filho da mãe! resmungava ele pela rua, em caminho do seu
armazém. É de muita força! Pena é estar metido com a peste daquela crioula!
Nem sei como um homem tão esperto caiu em semelhante asneira!
Só lá pelas dez e tanto da noite foi que João Romão, depois de certificar-se
de que Bertoleza ferrara num sono de pedra, resolveu dar balanço às garrafas
de Libório. O diabo é que ele também quase que não se aguentava nas pernas
e sentia os olhos a fecharem-se-lhe de cansaço. Mas não podia sossegar sem
saber quanto ao certo apanhara do avarento.
Acendeu uma vela, foi buscar a imunda e preciosa trouxa, e carregou
com esta para a casa de pasto ao lado da cozinha.
Depôs tudo sobre uma das mesas, assentou-se, e principiou a tarefa.
Tomou a primeira garrafa, tentou despejá-la, batendo-lhe no fundo; foi-lhe,
porém, necessário extrair as notas, uma por uma, porque estavam muito
socadas e peganhentas de bolor. À proporção que as fisgava, ia logo as
desenrolando e estendendo cuidadosamente em maço, depois de secar-lhes
a umidade no calor das mãos e da vela. E o prazer que ele desfrutava neste
serviço punha-lhe em jogo todos os sentidos e afugentava-lhe o sono e as
fadigas. Mas, ao passar à segunda garrafa, sofreu uma dolorosa decepção:
quase todas as cédulas estavam já prescritas pelo Tesouro; veio-lhe então
o receio de que a melhor parte do bolo se achasse inutilizada: restava-lhe
todavia a esperança de que fosse aquela garrafa a mais antiga de todas e a
pior por conseguinte.
E continuou com mais ardor o seu delicioso trabalho.
Tinha já esvaziado seis, quando notou que a vela, consumida até o fim,
bruxuleava a extinguir-se; foi buscar outra nova e viu ao mesmo tempo que
horas eram. “Oh! Como a noite correra depressa!...” Três e meia da madru-
gada. “Parecia impossível!”
Ao terminar a contagem, as primeiras carroças passavam lá fora na rua.
— Quinze contos, quatrocentos e tantos mil-réis!... disse João Romão
entre dentes, sem se fartar de olhar para as pilhas de cédulas que tinha
defronte dos olhos.

ALUÍSIO AZEVEDO • 191 •


Mas oito contos e seiscentos eram em notas já prescritas. E o vendeiro,
à vista de tão bela soma, assim tão estupidamente comprometida, sentiu a
indignação de um roubado. Amaldiçoou aquele maldito velho Libório por
tamanho relaxamento; amaldiçoou o governo porque limitava, com inten-
ções velhacas, o prazo da circulação dos seus títulos; chegou até a sentir
remorsos por não se ter apoderado do tesouro do avarento, logo que este, um
dos primeiros moradores do cortiço, lhe apareceu com o colchão às costas, a
pedir chorando que lhe dessem de esmola um cantinho onde ele se metesse
com sua miséria. João Romão tivera sempre uma vidente cobiça sobre aquele
dinheiro engarrafado; fariscara-o desde que fitou de perto os olhinhos vivos
e redondos do abutre decrépito, e convenceu-se de todo, notando que o
miserável dava pronto sumiço a qualquer moedinha que lhe caía nas garras.
— Seria um ato de justiça! concluiu João Romão; pelo menos seria
impedir que todo este pobre dinheiro apodrecesse tão barbaramente!
Ora adeus! Mas sete ricos continhos quase inteiros ficavam-lhe nas
unhas. “E depois, que diabo! Os outros assim mesmo haviam de ir com jeito...
Hoje impingiam-se dois mil-réis, amanhã cinco. Não nas compras, mas nos
trocos... Por que não? Alguém reclamaria, mas muitos engoliriam a bucha...
Para isso não faltavam estrangeiros e caipiras!... E demais, não era crime!...
Sim! Se havia nisso ladroeira, queixassem-se do governo! O governo é que
era o ladrão!”
— Em todo caso, rematou ele, guardando o dinheiro bom e mau e
dispondo-se a descansar; isto já serve para principiar as obras! Deixem estar,
que daqui a dias eu lhes mostrarei para quanto presto!

XIX
Daí a dias, com efeito, a estalagem metia-se em obras. À desordem do
desentulho do incêndio sucedia a do trabalho dos pedreiros; martelava-se
ali de pela manhã até à noite, o que aliás não impedia que as lavadeiras
continuassem a bater roupa e as engomadeiras reunissem ao barulho das
ferramentas o choroso falsete das suas eternas cantigas.

• 192 • O CORTIÇO
Os que ficaram sem casa foram aboletados a trouxe e mouxe por
todos os cantos, à espera dos novos cômodos. Ninguém se mudou para o
“Cabeça-de-Gato”.
As obras principiaram pelo lado esquerdo do cortiço, o lado do Miranda;
os antigos moradores tinham preferência e vantagens nos preços. Um dos ita-
lianos feridos morreu na Misericórdia e o outro, também lá, continuava ainda
em risco de vida. Bruno recolhera-se à Ordem de que era irmão, e Leocádia,
que não quis atender àquela carta escrita por Pombinha, resolveu-se a ir
visitar o seu homem no hospital. Que alegrão para o infeliz a volta da mulher,
aquela mulher levada dos diabos, mas de carne dura, a quem ele, apesar de
tudo, queria muito. Com a visita reconciliaram-se, chorando ambos, e Leocádia
decidiu tornar para o São Romão e viver de novo com o marido. Agora fazia-se
muito séria e ameaçava com pancada a quem lhe propunha brejeirices.
Piedade, essa é que se levantou das febres completamente transfor-
mada. Não parecia a mesma depois do abandono de Jerônimo; emagrecera
em extremo, perdera as cores do rosto, ficara feia, triste e resmungona; mas
não se queixava, e ninguém lhe ouvia falar no nome do esposo.
Esses meses, durante as obras, foram uma época especial para a esta-
lagem. O cortiço não dava ideia do seu antigo caráter, tão acentuado e, no
entanto, tão misto: aquilo agora parecia uma grande oficina improvisada, um
arsenal, em cujo fragor a gente só se entende por sinais. As lavadeiras fugiram
para o capinzal dos fundos, porque o pó da terra e da madeira sujava-lhes a
roupa lavada. Mas, dentro de pouco tempo, estava tudo pronto; e, com imenso
pasmo, viram que a venda, a sebosa bodega, onde João Romão se fez gente,
ia também entrar em obras. O vendeiro resolvera aproveitar dela somente
algumas das paredes, que eram de um metro de largura, talhadas à portu-
guesa; abriria as portas em arco, suspenderia o teto e levantaria um sobrado,
mais alto que o do Miranda e, com toda a certeza, mais vistoso. Prédio para
meter o do outro no chinelo; quatro janelas de frente, oito de lado, com um
terraço ao fundo. O lugar em que ele dormia com Bertoleza, a cozinha e a casa
de pasto seriam abobadadas, formando, com a parte de taverna, um grande
armazém, em que o seu comércio iria fortalecer-se e alargar-se.
O Barão e o Botelho apareciam por lá quase todos os dias, ambos
muito interessados pela prosperidade do vizinho; examinavam os materiais
escolhidos para a construção, batiam com a biqueira do chapéu de sol no

ALUÍSIO AZEVEDO • 193 •


pinho-de-riga destinado ao assoalho, e afetando-se bons entendedores,
tomavam na palma da mão e esfarelavam entre os dedos um punhado da
terra e da cal com que os operários faziam barro. Às vezes chegavam a ralhar
com os trabalhadores, quando lhes parecia que não iam bem no serviço!
João Romão, agora sempre de paletó, engravatado, calças brancas, colete e
corrente de relógio, já não parava na venda, e só acompanhava as obras na
folga das ocupações da rua. Principiava a tomar tino no jogo da Bolsa; comia
em hotéis caros e bebia cerveja em larga camaradagem com capitalistas nos
cafés do comércio.
E a crioula? Como havia de ser?
Era isto justamente o que, tanto o Barão como o Botelho, morriam por
que lhe dissessem. Sim, porque aquela boa casa que se estava fazendo, e os
ricos móveis encomendados, e mais as pratas e as porcelanas que haviam de
vir, não seriam decerto para os beiços da negra velha! Conservá-la-ia como
criada? Impossível! Todo Botafogo sabia que eles até aí fizeram vida comum!
Todavia, tanto o Miranda, como o outro, não se animavam a abrir o bico
a esse respeito com o vizinho e contentavam-se em boquejar entre si mis-
teriosamente, palpitando ambos por ver a saída que o vendeiro acharia para
semelhante situação.
Maldita preta dos diabos! Era ela o único defeito, o senão de um homem
tão importante e tão digno.
Agora, não se passava um domingo sem que o amigo de Bertoleza
fosse jantar à casa do Miranda. Iam juntos ao teatro. João Romão dava
o braço à Zulmira, e, procurando galanteá-la e mais ao resto da família,
desfazia-se em obséquios brutais e dispendiosos, com uma franqueza exa-
gerada que não olhava gastos. Se tinham de tomar alguma coisa, ele fazia
vir logo três, quatro garrafas ao mesmo tempo, pedindo sempre o triplo
do necessário e acumulando compras inúteis de doces, flores e tudo o que
aparecia. Nos leilões das festas de arraial era tão feroz a sua febre de obse-
quiar a gente do Miranda, que nunca voltava para casa sem um homem atrás,
carregado com os mimos que o vendeiro arrematava.
E Bertoleza bem que compreendia tudo isso e bem que estranhava
a transformação do amigo. Ele ultimamente mal se chegava para ela e,
quando o fazia, era com tal repugnância, que antes não o fizesse. A desgra-
çada muita vez sentia-lhe cheiro de outras mulheres, perfumes de cocotes

• 194 • O CORTIÇO
estrangeiras e chorava em segredo, sem ânimo de reclamar os seus direitos.
Na sua obscura condição de animal de trabalho, já não era amor o que a
mísera desejava, era somente confiança no amparo da sua velhice quando
de todo lhe faltassem as forças para ganhar a vida. E contentava-se em sus-
pirar no meio de grandes silêncios durante o serviço de todo o dia, covarde
e resignada, como seus pais que a deixaram nascer e crescer no cativeiro.
Escondia-se de todos, mesmo da gentalha do frege e da estalagem, enver-
gonhada de si própria, amaldiçoando-se por ser quem era, triste de sentir-se
a mancha negra, a indecorosa nódoa daquela prosperidade brilhante e clara.
E, no entanto, adorava o amigo, tinha por ele o fanatismo irracional
das caboclas do Amazonas pelo branco a que se escravizam, dessas que
morrem de ciúmes, mas que também são capazes de matar-se para poupar
ao seu ídolo a vergonha do seu amor. O que custava aquele homem con-
sentir que ela, uma vez por outra, se chegasse para junto dele? Todo o
dono, nos momentos de bom humor, afaga o seu cão... Mas qual! O des-
tino de Bertoleza fazia-se cada vez mais estrito e mais sombrio; pouco a
pouco deixara totalmente de ser a amante do vendeiro, para ficar sendo
só uma sua escrava. Como sempre, era a primeira a erguer-se e a última
a deitar-se; de manhã escamando peixe, à noite vendendo-o à porta, para
descansar da trabalheira grossa das horas de sol; sempre sem domingo nem
dia santo, sem tempo para cuidar de si, feia, gasta, imunda, repugnante,
com o coração eternamente emprenhado de desgostos que nunca vinham à
luz. Afinal, convencendo-se de que ela, sem ter ainda morrido, já não vivia
para ninguém, nem tampouco para si, desabou num fundo entorpecimento
apático, estagnado como um charco podre que causa nojo. Fizera-se áspera,
desconfiada, sobrolho carrancudo, uma linha dura de um canto ao outro da
boca. E durante dias inteiros, sem interromper o serviço, que ela fazia agora
automaticamente, por um hábito de muitos anos, gesticulava e mexia com
os lábios, monologando sem pronunciar as palavras. Parecia indiferente a
tudo, a tudo que a cercava.
Não obstante, certo dia em que João Romão conversou muito com
Botelho, as lágrimas saltaram dos olhos da infeliz, e ela teve de abandonar a
obrigação, porque o pranto e os soluços não lhe deixavam fazer nada.
Botelho havia dito ao vendeiro:
— Faça o pedido! É ocasião.

ALUÍSIO AZEVEDO • 195 •


— Hein?
— Pode pedir a mão da pequena. Está tudo pronto!
— O Barão dá-ma?
— Dá.
— Tem certeza disso?
— Ora! Se não tivesse não lho diria deste modo!
— Ele prometeu?
— Falei-lhe; fiz-lhe o pedido em seu nome. Disse que estava autorizado
por você. Fiz mal?
— Mal? Fez muito bem. Creio até que não é preciso mais nada!
— Não, se o Miranda não vier logo ao seu encontro é bom você lhe falar,
compreende?
— Ou escrever.
— Também!
— E a menina?
— Respondo por ela. Você não tem continuado a receber as flores?
— Tenho.
— Pois então não deixe pelo seu lado de ir mandando também as suas
e faça o que lhe disse. Atire-se, seu João, atire-se enquanto o angu está
quente!
Por outro lado, Jerônimo empregara-se na pedreira de São Diogo, onde
trabalhava dantes, e morava agora com a Rita numa estalagem da Cidade
Nova.
Tiveram de fazer muita despesa para se instalarem; foi-lhes preciso
comprar de novo todos os arranjos de casa, porque do São Romão Jerônimo
só levou dinheiro, dinheiro que ele já não sabia poupar. Com o asseio da
mulata a sua casinha ficou, todavia, que era um regalo; tinham cortinado na
cama, lençóis de linho, fronhas de renda, muita roupa branca, para mudar
todos os dias, toalhas de mesa, guardanapos; comiam em pratos de porce-
lana e usavam sabonetes finos. Plantaram à porta uma trepadeira que subia
para o telhado, abrindo pela manhã flores escarlates, de que as abelhas gos-
tavam muito; penduraram gaiolas de passarinho na sala de jantar; sortiram
a despensa de tudo que mais gostavam; compraram galinhas e marrecos e
fizeram um banheiro só para eles, porque o da estalagem repugnou à baiana
que, nesse ponto, era muito escrupulosa.

• 196 • O CORTIÇO
A primeira parte da sua lua de mel foi uma cadeia de delícias contínuas;
tanto ele como ela, pouco ou nada trabalharam; a vida dos dois resumira-se,
quase que exclusivamente, nos oitos palmos de colchão novo, que nunca
chegava a esfriar de todo. Jamais a existência pareceu tão boa e corredia para
o português; aqueles primeiros dias fugiram-lhe como estrofes seguidas de
uma deliciosa canção de amor, apenas espacejada pelo estribilho dos beijos
em dueto; foi um prazer prolongado e amplo, bebido sem respirar, sem abrir
os olhos, naquele colo carnudo e dourado da mulata, a que o cavouqueiro se
abandonara como um bêbedo que adormece abraçado a um garrafão ines-
gotável de vinho gostoso.
Estava completamente mudado. Rita apagara-lhe a última réstia das
recordações da pátria; secou, ao calor dos seus lábios grossos e vermelhos,
a derradeira lágrima de saudade, que o desterrado lançou do coração com o
extremo arpejo que a sua guitarra suspirou!
A guitarra! Substituiu-a ela pelo violão baiano, e deu-lhe a ele uma
rede, um cachimbo, e embebedou-lhe os sonhos de amante prostrado com
as suas cantigas do norte, tristes, deleitosas, em que há caboclinhos curu-
piras, que no sertão vêm pitar à beira das estradas em noites de lua clara, e
querem que todo o viajante que vai passando lhes ceda fumo e cachaça, sem
o que, ai deles! O curupira transforma-os em bicho do mato. E deu-lhe do
seu comer da Bahia, temperado com fogoso azeite de dendê, cor de brasa;
deu-lhe das suas muquecas escandescentes, de fazer chorar, habituou-lhe a
carne ao cheiro sensual daquele seu corpo de cobra, lavado três vezes ao dia
e três vezes perfumado com ervas aromáticas.
O português abrasileirou-se para sempre; fez-se preguiçoso, amigo das
extravagâncias e dos abusos, luxurioso e ciumento; fora-se-lhe de vez o
espírito da economia e da ordem; perdeu a esperança de enriquecer, e deu-se
todo, todo inteiro, à felicidade de possuir a mulata e ser possuído só por ela,
só ela, e mais ninguém.
A morte do Firmo não vinha nunca a toldar-lhes o gozo da vida; quer
ele, quer a amiga, achavam a coisa muito natural. “O facínora matara tanta
gente; fizera tanta maldade; devia, pois, acabar como acabou! Nada mais
justo! Se não fosse Jerônimo, seria outro! Ele assim o quis — bem feito!”
Por esse tempo, Piedade de Jesus, sem se conformar com a ausência do
marido, chorava o seu abandono e ia também agora se transformando de

ALUÍSIO AZEVEDO • 197 •


dia para dia, vencida por um desmazelo de chumbo, uma dura desesperança,
a que nem as lágrimas bastavam para adoçar as agruras. A princípio, ainda
a pobre de Cristo tentou resistir com coragem àquela viuvez pior que essa
outra, em que há, para elemento de resignação, a certeza de que a pessoa
amada nunca mais terá olhos para cobiçar mulheres, nem boca para pedir
amores; mas depois começou a afundar sem resistência na lama do seu des-
gosto, covardemente, sem forças para iludir-se com uma esperança fátua,
abandonando-se ao abandono, desistindo dos seus princípios, do seu próprio
caráter, sem se ter já neste mundo na conta de alguma coisa e continuando
a viver somente porque a vida era teimosa e não queria deixá-la ir apodrecer
lá embaixo, por uma vez. Deu para desleixar-se no serviço; as suas freguesas
de roupa começaram a reclamar; foi-lhe fugindo o trabalho pouco a pouco;
fez-se madraça e moleirona, precisando já empregar grande esforço para
não bulir nas economias que Jerônimo lhe deixara, porque isso devia ser para
a filha, aquela pobrezita orfanada antes da morte dos pais.
Um dia, Piedade levantou-se queixando-se de dores de cabeça, zoada
nos ouvidos e o estômago embrulhado; aconselharam-lhe que tomasse um
trago de parati. Ela aceitou o conselho e passou melhor. No dia seguinte
repetiu a dose; deu-se bem com a perturbação em que a punha o álcool,
esquecia-se um pouco durante algum tempo das amofinações da sua vida; e,
gole a gole, habituara-se a beber todos os dias o seu meio martelo de aguar-
dente, para enganar os pesares.
Agora, que o marido já não estava ali para impedir que a filha pusesse os
pés no cortiço, e agora que Piedade precisava de consolo, a pequena ia passar
os domingos com ela. Saíra uma criança forte e bonita; puxara do pai o vigor
físico e da mãe a expressão bondosa da fisionomia. Já tinha nove anos.
Eram esses agora os únicos bons momentos da pobre mulher, esses que
ela passava ao lado da filha. Os antigos moradores da estalagem principiavam
a distinguir a menina com a mesma predileção com que amavam Pombinha,
porque em toda aquela gente havia uma necessidade moral de eleger para
mimoso da sua ternura um entezinho delicado e superior, a que eles privi-
legiavam respeitosamente, como súditos a um príncipe. Crismaram-na logo
com o cognome de “Senhorinha”.
Piedade, apesar do procedimento do marido, ainda no íntimo se impres-
sionava com a ideia de que não devia contrariá-lo nas suas disposições de

• 198 • O CORTIÇO
pai. “Mas que mal tinha que a pequena fosse ali? Era uma esmola que fazia
à mãe! Lá pelo risco de perder-se... Ora adeus, só se perdia quem mesmo já
nascera para a perdição! A outra não se conservara sã e pura? Não achara
noivo? Não casara e não vivia dignamente com o seu marido? Então?!”
E Senhorinha continuou a ir à estalagem, a princípio nos domingos pela
manhã, para voltar à tarde, depois já de véspera, nos sábados, para só tornar
ao colégio na segunda-feira.
Jerônimo ao saber disto, por intermédio da professora, revoltou-se no
primeiro ímpeto, mas, pensando bem no caso, achou que era justo deixar
à mulher aquele consolo. “Coitada! Devia viver bem aborrecida da sorte!”
Tinha ainda por ela um sentimento compassivo, em que a melhor parte nas-
cera com o remorso. “Era justo, era! Que a pequena aos domingos e dias
santos lhe fizesse companhia!” E então, para ver a filha, tinha que ir ao
colégio nos dias de semana. Quase sempre levava-lhe presentes de doce,
frutas, e perguntava-lhe se precisava de roupa ou de calçado. Mas, um belo
dia, apresentou-se tão ébrio, que a diretora lhe negou a entrada. Desde
essa ocasião, Jerônimo teve vergonha de lá voltar, e as suas visitas à filha
tornaram-se muito raras.
Tempos depois, Senhorinha entregou à mãe uma conta de seis meses da
pensão do colégio, com uma carta em que a diretora negava-se a conservar
a menina, no caso que não liquidassem prontamente a dívida. Piedade levou
as mãos à cabeça: “Pois o homem já nem o ensino da pequena queria dar?!
Que lhe valesse Deus! Onde iria ela fazer dinheiro para educar a filha?!”
Foi à procura do marido; já sabia onde ele morava. Jerônimo recusou-se,
por vexame; mandou dizer que não estava em casa. Ela insistiu; declarou que
não arredaria dali sem lhe falar; disse em voz bem alta que não ia lá por ele,
mas pela filha, que estava arriscada a ser expulsa do colégio; ia para saber
que destino lhe havia de dar, porque agora a pequena estava muito taluda
para ser enjeitada na roda!
Jerônimo apareceu afinal, com um ar triste de vicioso envergonhado
que não tem ânimo de deixar o vício. A mulher, ao vê-lo, perdeu logo toda a
energia com que chegara e comoveu-se tanto, que as lágrimas lhe saltaram
dos olhos às primeiras palavras que lhe dirigiu. E ele abaixou os seus e fez-se
lívido defronte daquela figura avelhantada, de peles vazias, de cabelos sujos
e encanecidos. Não lhe parecia a mesma! Como estava mudada! E tratou-a

ALUÍSIO AZEVEDO • 199 •


com brandura, quase a pedir-lhe perdão, a voz muito espremida no aperto
da garganta.
— Minha pobre velha... balbuciou, pousando-lhe a mão larga na cabeça.
E os dois emudeceram um defronte do outro, arquejantes. Piedade sentiu
ânsias de atirar-se-lhe nos braços, possuída de imprevista ternura com aquele
simples afago do seu homem. Um súbito raio de esperança iluminou-a toda
por dentro, dissolvendo de relance os negrumes acumulados ultimamente
no seu coração. Contava não ouvir ali senão palavras duras e ásperas, ser
talvez repelida grosseiramente, insultada pela outra e coberta de ridículo
pelos novos companheiros do marido; mas, ao encontrá-lo também triste e
desgostoso, sua alma prostrou-se reconhecida; e, assim que Jerônimo, cujas
lágrimas corriam já silenciosamente, deixou que a sua mão fosse descendo
da cabeça ao ombro e depois à cintura da esposa, ela desabou, escondendo
o rosto contra o peito dele, numa explosão de soluços que lhe faziam vibrar
o corpo inteiro.
Por algum tempo choraram ambos abraçados.
— Consola-te! Que queres tu?... São desgraças!... disse o cavouqueiro
afinal, limpando os olhos. Foi como se eu tivesse te morrido... Mas podes
ficar certa de que te estimo e nunca te quis mal!... Volta para casa; eu irei
pagar o colégio de nossa filhinha e hei de olhar por ti. Vai, e pede a Deus
Nosso Senhor que me perdoe os desgostos que te tenho eu dado!
E acompanhou-a até o portão da estalagem.
Ela, sem poder pronunciar palavra, saiu cabisbaixa, a enxugar os olhos
no xale de lã, sacudida ainda de vez em quando por um soluço retardado.
Entretanto, Jerônimo não mandou saldar a conta do colégio, no dia
seguinte, nem no outro, nem durante todo o resto do mês; e ele, coitado!
Bem que se mortificou por isso; mas onde ia buscar dinheiro naquela oca-
sião? O seu trabalho mal lhe dava agora para viver junto com a mulata;
estava já alcançado nos seus ordenados e devia ao padeiro e ao homem da
venda. Rita era desperdiçada e amiga de gastar à larga; não podia passar
sem uns tantos regalos de barriga e gostava de fazer presentes. Ele, receoso
de contrariá-la e quebrar o ovo da sua paz, até aí tão completo com res-
peito à baiana, subordinava-se calado e afetando até satisfação; no íntimo,
porém, o infeliz sofria deveras. A lembrança constante da filha e da mulher
apoquentava-o com pontas de remorso, que dia a dia alastravam na sua

• 200 • O CORTIÇO
consciência, à proporção que esta ia acordando daquela cegueira. O des-
graçado sentia e compreendia perfeitamente todo o mal da sua conduta;
mas só a ideia de separar-se da amante punha-lhe logo o sangue doido e
apagava-se-lhe de novo a luz dos raciocínios. “Não! Não! Tudo que qui-
sessem, menos isso!”
E então, para fugir àquela voz irrefutável, que estava sempre a serrazinar
dentro dele, bebia em camaradagem com os companheiros e habituara-se,
dentro em pouco, à embriaguez. Quando Piedade, quinze dias depois da sua
primeira visita, tornou lá, um domingo, acompanhada pela filha, encontrou-o
bêbedo, numa roda de amigos.
Jerônimo recebeu-as com grande escarcéu de alegria. Fê-las entrar.
Beijou a pequena repetidas vezes e suspendeu-a pela cintura, soltando
exclamações de entusiasmo.
Com um milhão de raios! Que linda estava a sua morgadinha!
Obrigou-as logo a tomar alguma coisa e foi chamar a mulata; queria que
as duas mulheres fizessem as pazes no mesmo instante. Era questão decidida!
Houve uma cena de constrangimentos, quando a portuguesa se viu
defronte da baiana.
— Vamos! Vamos! Abracem-se! Acabem com isso por uma vez! bradava
Jerônimo, a empurrá-las uma contra a outra. Não quero aqui caras fechadas!
As duas trocaram um aperto de mão, sem se fitarem. Piedade estava
escarlate de vergonha.
— Ora muito bem! acrescentou o cavouqueiro. Agora para a coisa ser
completa, hão de jantar conosco!
A portuguesa opôs-se, resmungando desculpas, que o cavouqueiro não
aceitou.
— Não as deixo sair! É boa! Pois hei de deixar ir minha filha sem matar
as saudades?
Piedade assentou-se a um canto, impaciente pela ocasião de entender-se
com o marido sobre o negócio do colégio. Rita, volúvel como toda a mestiça,
não guardava rancores, e, pois, desfez-se em obséquios com a família do
amigo. As outras visitas saíram antes do jantar.
Puseram-se à mesa às quatro horas e principiaram a comer com boa dis-
posição, carregando no virgem logo desde a sopa. Senhorinha destacava-se
do grupo; na sua timidez de menina de colégio parecia, entre aquela gente,

ALUÍSIO AZEVEDO • 201 •


triste e assustada ao mesmo tempo. O pai acabrunhava-a com as suas soli-
citudes brutais e com as suas perguntas sobre os estudos. À exceção dela,
todos os outros estavam, antes da sobremesa, mais ou menos chumbados
pelo vinho. Jerônimo, esse estava de todo. Piedade, instigada por ele, esva-
ziara frequentes vezes o seu copo e, ao fim do jantar, dera para queixar-se
amargamente da vida; foi então que ela, já com azedume na voz, falou na
dívida do colégio e nas ameaças da diretora.
— Ora, filha! disse-lhe o cavouqueiro. Agora estás tu também pr’aí com
essa mastigação! Deixa as tristezas pr’outra vez! Não nos amargures o jantar!
— Triste sorte a minha!
— Ai, ai! Que temos lamúria!
— Como não me hei de queixar, se tudo me corre mal?!
— Sim! Pois se é para isso que aqui vens, melhor será não tornares cá!...
resmungou Jerônimo, franzindo o sobrolho. Que diabo! Com choradeiras
nada se endireita! Tenho eu culpa de que sejas infeliz?... Também o sou e
não me queixo de Deus!
Piedade abriu a soluçar.
— Aí temos! berrou o marido, erguendo-se e dando urna punhada forte
sobre a mesa. E aturem-na! Por mais que um homem se não queira zangar,
há de estourar por força! Ora bolas!
Senhorinha correu para junto do pai, procurando contê-lo.
— Sebo! berrou ele, desviando-a. Sempre a mesma coisa! Pois não estou
disposto a aturar isto! Arre!
— Eu não vim cá por passeio!... prosseguiu Piedade entre lágrimas. Vim
cá para saber da conta do colégio!...
— Pague-a você, que tem lá o dinheiro que lhe deixei! Eu é que não
tenho nenhum!
— Ah! Então com que não pagas?!
— Não! Com um milhão de raios!
— É que és muito pior do que eu supunha!
— Sim, hein?! Pois então deixe-me cá com toda a minha ruindade e des-
pache o beco! Despache-o, antes que eu faça alguma asneira!
— Minha pobre filha! Quem olhará por ela, Senhor dos Aflitos?!
— A pequena já não precisa de colégio! Deixe-a cá comigo, que nada
lhe faltará!

• 202 • O CORTIÇO
— Separar-me de minha filha? A única pessoa que me resta?!
— Ó mulher! Você não está separada dela a semana inteira?... Pois a
pequena, em vez de ficar no colégio, fica aqui, e aos domingos irá vê-la. Ora
aí tem!
— Eu quero antes ficar com minha mãe!... balbuciou a menina,
abraçando-se a Piedade.
— Ah! Também tu, ingrata, já me fazes guerra?! Pois vão com todos os
diabos! E não me tornem cá para me ferver o sangue, que já tenho de sobra
com que arreliar-me!
— Vamos daqui! gritou a portuguesa, travando da filha pelo braço.
Maldita a hora em que vim cá!
E as duas, mãe e filha, desapareceram; enquanto Jerônimo, passeando
de um para outro lado, monologava, furioso sob a fermentação do vinho.
Rita não se metera na contenda, nem se mostrara a favor de nenhuma
das partes. “O homem, se quisesse voltar para junto da mulher, que voltasse!
Ela não o prenderia, porque amor não era obrigado!”
Depois de falar só por muito espaço, o cavouqueiro atirou-se a uma
cadeira, despejou sombrio dois dedos de laranjinha num copo e bebeu-os
de um trago.
— Arre! Assim também não!
A mulata então aproximou-se dele, por detrás; segurou-lhe a cabeça
entre as mãos e beijou-o na boca, arredando com os lábios a espessura
dos bigodes.
Jerônimo voltou-se para a amante, tomou-a pelos quadris e assentou-a
em cheio sobre as suas coxas.
— Não te rales, meu bem! disse ela, afagando-lhe os cabelos. Já passou!
— Tens razão! Besta fui eu em deixá-la pôr pé cá dentro de casa!
E abraçaram-se com ímpeto, como se o breve tempo roubado pelas
visitas fosse uma interrupção nos seus amores.
Lá fora, junto ao portão da estalagem, Piedade, com o rosto escondido
no ombro da filha, esperava que as lágrimas cedessem um pouco, para as
duas seguirem o seu destino de enxotadas.

ALUÍSIO AZEVEDO • 203 •


XX
Chegaram a casa às nove horas da noite. Piedade levava o coração
feito em lama; não dera palavra por todo o caminho e logo que recolheu a
pequena, encostou-se à cômoda, soluçando.
Estava tudo acabado! Tudo acabado!
Foi à garrafa de aguardente, bebeu uma boa porção; chorou ainda,
tornou a beber, e depois saiu ao pátio, disposta a parasitar a alegria dos que
se divertiam lá fora.
A das Dores tivera jantar de festa; ouviam-se as risadas dela e a voz avi-
nhada e grossa do seu homem, o tal sujeito do comércio, abafadas de vez em
quando pelos berros da Machona, que ralhava com Agostinho. Em diversos
pontos cantavam e tocavam a viola.
Mas o cortiço já não era o mesmo; estava muito diferente; mal dava ideia
do que fora. O pátio, como João Romão havia prometido, estreitara-se com
as edificações novas; agora parecia uma rua, todo calçado por igual e ilumi-
nado por três lampiões grandes simetricamente dispostos. Fizeram-se seis
latrinas, seis torneiras de água e três banheiros. Desapareceram as pequenas
hortas, os jardins de quatro a oito palmos e os imensos depósitos de garrafas
vazias. À esquerda, até onde acabava o prédio do Miranda, estendia-se um
novo correr de casinhas de porta e janela, e daí por diante, acompanhando
todo o lado do fundo e dobrando depois para a direita até esbarrar no sobrado
de João Romão, erguia-se um segundo andar, fechado em cima do primeiro
por uma estreita e extensa varanda de grades de madeira, para a qual se

• 204 • O CORTIÇO
subia por duas escadas, uma em cada extremidade. De cento e tantos, a
numeração dos cômodos elevou-se a mais de quatrocentos; e tudo caiadinho
e pintado de fresco; paredes brancas, portas verdes e goteiras encarnadas.
Poucos lugares havia desocupados. Alguns moradores puseram plantas
à porta e à janela, em meias tinas serradas ou em vasos de barro. Albino
levou o seu capricho até à cortina de labirinto e chão forrado de esteira.
A casa dele destacava-se das outras; era no andar de baixo, e cá de fora
via-se-lhe o papel vermelho da sala, a mobília muito brunida, jarras de
flores sobre a cômoda, um lavatório com espelho todo cercado de rosas
artificiais, um oratório grande, resplandecente de palmas douradas e pra-
teadas, toalhas de renda por toda a parte, num luxo de igreja, casquilho
e defumado. E ele, o pálido lavadeiro, sempre com o seu lenço cheiroso à
volta do pescocinho, a sua calça branca de boca larga, o seu cabelo mole
caído por detrás das orelhas bambas, preocupava-se muito em arrumar
tudo isso, eternamente, como se esperasse a cada instante a visita de
um estranho. Os companheiros de estalagem elogiavam-lhe aquela ordem
e aquele asseio; pena era que lhe dessem as formigas na cama! Em verdade,
ninguém sabia por que, mas a cama de Albino estava sempre coberta de
formigas. Ele a destruí-las, e o demônio do bichinho a multiplicar-se cada
vez mais e mais todos os dias. Uma campanha desesperadora, que o trazia
triste, aborrecido da vida. Defronte justamente ficava a casa do Bruno e da
mulher, toda mobiliada de novo, com um grande candeeiro de querosene
em frente à entrada, cujo revérbero parecia olhar desconfiado lá de dentro
para quem passava cá no pátio. Agora, entretanto, o casal vivia em santa
paz. Leocádia estava discreta; sabia-se que ela dava ainda muito que fazer
ao corpo sem o concurso do marido, mas ninguém dizia quando, nem onde.
O Alexandre jurava que, ao entrar ou sair fora de horas, nunca a pilhara no
vício; e a esposa, a Augusta Carne-Mole, ia mais longe na defesa, porque
sempre tivera pena de Leocádia, pois entendia que aquele assanhamento
por homem não era maldade dela; era praga de algum boca do diabo que a
quis e a pobrezinha não deixou. — Estava-se vendo disso todos os dias! —
tanto que ultimamente, depois que a criatura pediu a um padre um pouco
de água benta e benzeu-se com esta em certos lugares, o fogo desaparecera
logo, e ela aí vivia direita e séria que não dava que falar a ninguém! Augusta
ficara com a família numa das casinhas do segundo andar, à direita; estava

ALUÍSIO AZEVEDO • 205 •


grávida outra vez; e à noite via-se o Alexandre, sempre muito circunspecto,
a passear ao comprido da varanda, acalentando uma criancinha ao colo,
enquanto a mulher dentro de casa cuidava de outras. A filharada crescia-lhes,
que metia medo. “Era um no papo outro no saco!” Moravam agora também
desse lado os dois cúmplices de Jerônimo, o Pataca e o Zé Carlos, ocupando
juntos o mesmo cômodo; defronte da porta tinham um fogãozinho e um
fogareiro, em que preparavam eles mesmos a sua comida. Logo adiante era
o quarto de um empregado do correio, pessoa muito calada, bem vestida
e pontual no pagamento; saía todas as manhãs e voltava às dez da noite
invariavelmente; aos domingos só ia à rua para comer, e depois fechava-se
em casa e, houvesse o que houvesse no cortiço, não punha mais o nariz
de fora. E, assim como este, notavam-se por último na estalagem muitos
inquilinos novos, que já não eram gente sem gravata e sem meias. A feroz
engrenagem daquela máquina terrível, que nunca parava, ia já lançando os
dentes a uma nova camada social que, pouco a pouco, se deixaria arrastar
inteira lá para dentro. Começavam a vir estudantes pobres, com os seus cha-
péus desabados, o paletó fouveiro, uma pontinha de cigarro a queimar-lhes a
penugem do buço, e as algibeiras muito cheias, mas só de versos e jornais;
surgiram contínuos de repartições públicas, caixeiros de botequim, artistas
de teatro, condutores de bondes, e vendedores de bilhetes de loteria. Do
lado esquerdo, toda a parte em que havia varanda foi monopolizada pelos
italianos; habitavam cinco a cinco, seis a seis no mesmo quarto, e notava-se
que nesse ponto a estalagem estava já muito mais suja que nos outros. Por
melhor que João Romão reclamasse, formava-se aí todos os dias uma ester-
queira de cascas de melancia e laranja. Era uma comuna ruidosa e porca a
dos demônios dos mascates! Quase que se não podia passar lá, tal a acumu-
lação de tabuleiros de louça e objetos de vidro, caixas de quinquilharia,
molhos e molhos de vasilhame de folha-de-flandres, bonecos e castelos de
gesso, realejos, macacos, o diabo! E tudo isso no meio de um fedor nausea-
bundo de coisas podres, que empesteava todo o cortiço. A parte do fundo da
varanda era asseada felizmente e destacava-se pela profusão de pássaros
que lá tinham, entre os quais sobressaía uma arara enorme que, de espaço a
espaço, soltava um formidável sibilo estridente e rouco. Por debaixo ficava a
casa da Machona, cuja porta, como a janela, Neném trazia sempre enfeitada
de tinhorões e begônias. O prédio do Miranda parecia ter recuado alguns

• 206 • O CORTIÇO
passos, perseguido pelo batalhão das casinhas da esquerda, e agora olhava
a medo, por cima dos telhados, para a casa do vendeiro, que lá defronte
erguia-se altiva, desassombrada, o ar sobranceiro e triunfante. João Romão
conseguira meter o sobrado do vizinho no chinelo; o seu era mais alto e
mais nobre, e então com as cortinas e com a mobília nova impunha respeito.
Foi abaixo aquele grosso e velho muro da frente com o seu largo portão de
cocheira, e a entrada da estalagem era agora dez braças mais para dentro,
tendo entre ela e a rua um pequeno jardim com bancos e um modesto repuxo
ao meio, de cimento, imitando pedra. Fora-se a pitoresca lanterna de vidros
vermelhos; foram-se as iscas de fígado e as sardinhas preparadas ali mesmo
à porta da venda sobre as brasas; e na tabuleta nova, muito maior que a
primeira, em vez de “Estalagem de São Romão” lia-se em letras caprichosas:

“AVENIDA SÃO ROMÃO”

O “Cabeça-de-Gato” estava vencido finalmente, vencido para sempre;


nem já ninguém se animava a comparar as duas estalagens. À medida que a
de João Romão prosperava daquele modo, a outra decaía de todo; raro era
o dia em que a polícia não entrava lá e baldeava tudo aquilo a espadeirada
de cego. Uma desmoralização completa! Muitos cabeças-de-gato viraram
casaca, passando-se para os carapicus, entre os quais um homem podia
até arranjar a vida, se soubesse trabalhar com jeito em tempo de eleições.
Exemplos não faltavam!
Depois da partida de Rita, já se não faziam sambas ao relento com o
choradinho da Bahia, e mesmo o cana-verde 35 pouco se dançava e can-
tava; agora o forte eram os forrobodós dentro de casa, com três ou quatro
músicos, ceia de café com pão; muita calça branca e muito vestido engo-
mado. — E toca a enfiar para aí quadrilhas e polcas até romper a manhã!
Mas naquele domingo o cortiço estava banzeiro; havia apenas uns grupos
magros, que se divertiam com a viola à porta de casa. O melhor, ainda assim,
era o da das Dores. Piedade dirigiu-se logo para lá, sombria e cabisbaixa.
— Com o demo! Você anda agora que nem o boi castrado! exclamou-lhe
o Pataca, assentando-se ao lado dela. As tristezas atiram-se para trás das
costas, criatura de Deus! A vida não dá para tanto! O homem deixou-te? Ora
sebo! Mete-se com outro e põe o coração à larga!

ALUÍSIO AZEVEDO • 207 •


Ela suspirou em resposta, ainda triste; porém, a garrafa de parati
correu a roda, de mão em mão, e, à segunda volta, Piedade já parecia outra.
Começou a conversar e a tomar interesse no pagode. Daí a pouco era, de
todos, a mais animada, falando pelos cotovelos, criticando e arremedando
as figuras ratonas da estalagem. O Pataca ria-se, a quebrar a espinha, caindo
por cima dela e passando-lhe o braço na cintura.
— Você ainda é mulher pr’um homem fazer uma asneira!
— Olha pra que lhe deu o ébrio! Solta-me a perna, estupor!
O grupo achava graça nos dois e aplaudia-os com gargalhadas. E o
parati a circular sempre de mão em mão. A das Dores não descansava um
momento; mal vinha de encher a garrafa lá dentro de casa, tinha de voltar
outra vez para enchê-la de novo. “Olha que estafa! Vão beber pro diabo!”
Afinal apareceu com o garrafão e pousou-o no meio da roda.
— Querem saber! Empinem por aí mesmo, que já estou com os quartos
doendo de tanto andar de lá pra cá!
Essa noite, a bebedeira de Piedade foi completa. Quando João Romão
entrou, de volta da casa do Miranda, encontrou-a a dançar ao som de palmas,
gritos e risadas, no meio de uma grande troça, a saia levantada, os olhos
requebrados, a pretender arremedar a Rita no seu choradinho da Bahia. Era a
boba da roda. Batiam-lhe palmadas no traseiro e com o pé embaraçavam-lhe
as pernas, para a ver cair e rebolar-se no chão.
O vendeiro, de fraque e chapéu alto, foi direito ao grupo, então muito
mais reforçado de gente, e intimou a todos que se recolhessem. Aquilo já
não eram horas para semelhante algazarra!
— Vamos! Vamos! Cada um para a sua casa!
Piedade foi a única que protestou, reclamando o seu direito de brincar
um pouco com os amigos. Que diabo! Não estava fazendo mal a ninguém!
— Ora vá mas é pra cama cozer a mona! vituperou-lhe João Romão,
repelindo-a. Você, com uma filha quase mulher, não tem vergonha de estar
aqui a servir de palhaço?! Forte bêbada!
Piedade assomou-se com a descompostura, quis despicar-se, chegou
a arregaçar as mangas e sungar a saia; mas o Pataca meteu-se no meio e
conteve-a, pedindo a João Romão que não levasse aquilo em conta, porque
era tudo cachaça.
— Bom, bom, bom! Mas aviem-se! Aviem-se!

• 208 • O CORTIÇO
E não se retirou sem ver a roda dissolvida, e cada qual procurando a casa.
Recolheram-se todos em silêncio; só o Pataca e Piedade deixaram-se
ficar ainda no pátio, a discutir o ato do vendeiro. O Pataca também estava
bastante tocado. Ambos reconheciam que lhes não convinha demorar-se ali,
porém nenhum dos dois se sentia disposto a meter-se no quarto.
— Você tem lá alguma coisa que beber em casa?... perguntou ele afinal.
Ela não sabia ao certo; foi ver. Havia meia garrafa de parati e um resto
de vinho. Mas era preciso não fazer barulho, por’mor da pequena que estava
dormindo.
Entraram em ponta de pés, a falar surdamente. Piedade deu mais luz ao
candeeiro.
— Olha agora! Vamos ficar às escuras! Acabou-se o gás!
O Pataca saiu, para ir a casa buscar uma vela, e de volta trouxe também
um pedaço de queijo e dois peixes fritos, que levou ao nariz da lavadeira,
sem dizer nada. Piedade, aos bordos, desocupou a mesa do engomado e
serviu dois pratos. O outro reclamou vinagre e pimenta e perguntou se
havia pão.
— Pão há. O vinho é que é pouco!
— Não faz mal! Vai mesmo com a caninha!
E assentaram-se. O cortiço dormia já e só se ouviam, no silêncio da
noite, cães que ladravam lá fora na rua, tristemente. Piedade começou a
queixar-se da vida; veio-lhe uma crise de lágrimas e soluços. Quando pôde
falar contou o que lhe sucedera essa tarde, narrou os pormenores da sua ida
com a filha à procura do marido, o jantar em comum com a peste da mulata,
e afinal a sua humilhação de vir de lá enxovalhada e corrida.
Pataca revoltou-se, não com o procedimento de Jerônimo, mas com o dela.
Rebaixar-se àquele ponto! Com efeito!... Ir procurar o homem lá na casa
da outra!... Oh!
— Ele tratou-me bem, quando lá fui da primeira vez... Hoje é que não sei
o que tinha: só faltou pôr-me na rua aos pontapés!
— Foi bem feito! Ainda acho pouco! Devia ter-lhe metido o pau, para
você não ser tola!
— É mesmo!

ALUÍSIO AZEVEDO • 209 •


— Pois não! O que não falta são homens, filha! O mundo é grande! Para
um pé doente há sempre um chinelo velho! — E ferrou-lhe a mão nas pernas:
— Chega-te para mim, que te esquecerás do outro!
Piedade repeliu-o. Que se deixasse de asneiras!
— Asneiras! É o que se leva desta vida!
A pequena acordara lá no quarto e viera descalça até à porta da sala de
jantar, para espiar o que faziam os dois. Não deram por ela.
E a conversa prosseguiu, esquentando à medida que a garrafa de parati
se esvaziava. Piedade deu de mão aos seus desgostos, pôs-se a papaguear
um pouco; as lágrimas foram-se-lhe; e ela manducou então com apetite,
rindo já das pilhérias do companheiro, que continuava a apalpar-lhe de vez
em quando as coxas.
Aquelas coisas, assim, sem se esperar, é que tinham graça!... dizia ele,
excitado e vermelho, comendo com a mão, a embeber pedaços de peixe no
molho das pimentas. Bem tolo era quem se matava!
Depois lembrou que não viria fora de propósito uma xicrinha de café.
— Não sei se há, vou ver, respondeu a lavadeira, erguendo-se agarrada
à mesa.
E bordejou até à cozinha, a dar esbarrões pela direita e pela esquerda.
— Tento no leme, que o mar está forte! exclamou Pataca, levantando-se
também, para ir ajudá-la. Lá perto do fogão agarrou-a de súbito, como um
galo abafando uma galinha.
— Larga! repreendeu a mulher, sem forças para se defender.
Ele apanhou-lhe as fraldas.
— Espera! Deixa!
— Não quero!
E ria-se por ver a atitude cômica do Pataca vergado defronte dela.
— Que mal faz?.. Deixa!
— Sai daí, diabo!
E, cambaleando, amparados um no outro, foram ambos ao chão.
— Olha que peste! resmungou a desgraçada, quando o adversário con-
seguiu saciar-se nela. Marraios te partam!
E deixou-se ficar por terra. Ele pôs-se de pé e, ao encaminhar-se para a
sala de jantar, sentiu uma ligeira sombra fugir em sua frente. Era a pequena,
que fora espiar à porta da cozinha.

• 210 • O CORTIÇO
Pataca assustara-se.
— Quem anda aqui a correr como gato?... perguntou voltando a ter com
Piedade, que permanecia no mesmo lugar, agora quase adormecida.
Sacudiu-a.
— Olá! Queres ficar aí, ó criatura! Levanta-te! Anda a ver o café!
E, tentando erguê-la, suspendeu-a por debaixo dos braços. Piedade,
mal mudou a posição da cabeça, vomitou sobre o peito e a barriga uma
golfada fétida.
— Olha o demo! resmungou Pataca. Está que se não pode lamber!
E foi preciso arrastá-la até a cama, que nem uma trouxa de roupa suja.
A infeliz não dava acordo de si. Senhorinha acudira, perguntando aflita o que
tinha a mãe.
— Não é nada, filha! explicou o Pataca. Deixe-a dormir, que isso passa!
Olha! Se há limão em casa passa-lhe um pouco atrás da orelha, e verás que
amanhã acorda fina e pronta pra outra!
A menina desatou a soluçar.
E o Pataca retirou-se, a dar encontrões nos trastes, furioso, porque,
afinal, não tomara café.
Sebo!

XXI
Ao mesmo tempo, João Romão, em chinelas e camisola, passeava de um
para outro lado no seu quarto novo. Um aposento largo e forrado de azul
e branco com florinhas amarelas fingindo ouro; havia um tapete aos pés da
cama, e sobre a peniqueira um despertador de níquel, e a mobília toda era
já de casados, porque o esperto não estava para comprar móveis duas vezes.
Parecia muito preocupado; pensava em Bertoleza que, a essas horas,
dormia lá embaixo num vão de escada, aos fundos do armazém, perto da comua.
Mas que diabo havia ele de fazer afinal daquela peste?
E coçava a cabeça, impaciente por descobrir um meio de ver-se livre dela.
É que nessa noite o Miranda lhe falara abertamente sobre o que ouvira
de Botelho, e estava tudo decidido: Zulmira aceitava-o para marido e Dona
Estela ia marcar o dia do casamento.

ALUÍSIO AZEVEDO • 211 •


O diabo era a Bertoleza!...
E o vendeiro ia e vinha no quarto, sem achar uma boa solução para o
problema.
Ora, que raio de dificuldade armara ele próprio para se coser!... Como
poderia agora mandá-la passear assim, de um momento para outro, se o
demônio da crioula o acompanhava já havia tanto tempo e toda a gente na
estalagem sabia disso?
E sentia-se revoltado e impotente defronte daquele tranquilo obstáculo
que lá estava embaixo, a dormir, fazendo-lhe em silêncio um mal horrível,
perturbando-lhe estupidamente o curso da sua felicidade, retardando-lhe,
talvez sem consciência, a chegada desse belo futuro conquistado à força de
tamanhas privações e sacrifícios! Que ferro!
Mas, só com lembrar-se da sua união com aquela brasileirinha fina e
aristocrática, um largo quadro de vitórias rasgava-se defronte da desen-
sofrida avidez da sua vaidade. Em primeiro lugar fazia-se membro de uma
família tradicionalmente orgulhosa, como era, dito por todos, a de Dona
Estela; em segundo lugar aumentava consideravelmente os seus bens com o
dote da noiva, que era rica e, em terceiro, afinal, caber-lhe-ia mais tarde tudo
o que o Miranda possuía, realizando-se deste modo um velho sonho que o
vendeiro afagava desde o nascimento da sua rivalidade com o vizinho.
E via-se já na brilhante posição que o esperava: uma vez de dentro,
associava-se logo com o sogro e iria pouco a pouco, como quem não quer a
coisa, o empurrando para o lado, até empolgar-lhe o lugar e fazer de si um
verdadeiro chefe da colônia portuguesa no Brasil; depois, quando o barco
estivesse navegando ao largo a todo o pano — tome lá alguns pares de
contos de réis e passe-me para cá o título de Visconde!
Sim, sim, Visconde! Por que não? E mais tarde, com certeza, Conde!
Eram favas contadas!
Ah! Ele, posto nunca o dissera a ninguém, sustentava de si para si nos
últimos anos o firme propósito de fazer-se um titular mais graduado que o
Miranda. E, só depois de ter o título nas unhas, é que iria à Europa, de passeio,
sustentando grandeza, metendo invejas, cercado de adulações, liberal, pró-
digo, brasileiro, atordoando o mundo velho com o seu ouro novo americano!
E a Bertoleza? gritava-lhe do interior uma voz impertinente.

• 212 • O CORTIÇO
— É exato! E a Bertoleza?... repetia o infeliz, sem interromper o seu
vaivém ao comprido da alcova.
Diabo! E não poder arredar logo da vida aquele ponto negro; apagá-lo
rapidamente, como quem tira da pele uma nódoa de lama! Que raiva ter de
reunir aos voos mais fulgurosos da sua ambição a ideia mesquinha e ridí-
cula daquela inconfessável concubinagem! E não podia deixar de pensar
no demônio da negra, porque a maldita ali estava perto, a rondá-lo amea-
çadora e sombria; ali estava como o documento vivo das suas misérias, já
passadas mas ainda palpitantes. Bertoleza devia ser esmagada, devia ser
suprimida, porque era tudo que havia de mau na vida dele! Seria um crime
conservá-la a seu lado! Ela era o torpe balcão da primitiva bodega; era o
aladroado vintenzinho de manteiga em papel pardo; era o peixe trazido da
praia e vendido à noite ao lado do fogareiro à porta da taberna; era o frege
imundo e a lista cantada das comezainas à portuguesa; era o sono roncado
num colchão fétido, cheio de bichos; ela era a sua cúmplice e era todo seu
mal — devia, pois, extinguir-se! Devia ceder o lugar à pálida mocinha de
mãos delicadas e cabelos perfumados, que era o bem, porque era o que ria e
alegrava, porque era a vida nova, o romance solfejado ao piano, as flores nas
jarras, as sedas e as rendas, o chá servido em porcelanas caras; era enfim a
doce existência dos ricos, dos felizes e dos fortes, dos que herdaram sem tra-
balho ou dos que, a puro esforço, conseguiram acumular dinheiro, rompendo
e subindo por entre o rebanho dos escrupulosos ou dos fracos. E o vendeiro
tinha defronte dos olhos o namorado sorriso da filha do Miranda, sentia
ainda a leve pressão do braço melindroso que se apoiara ao seu, algumas
horas antes, em passeio pela praia de Botafogo; respirava ainda os perfumes
da menina, suaves, escolhidos e penetrantes como palavras de amor; nos
seus dedos grossos, curtos, ásperos e vermelhos, conservava a impressão da
tépida carícia daquela mãozinha enluvada que, dentro em pouco, nos pra-
zeres garantidos do matrimônio, afagar-lhe-ia as carnes e os cabelos.
Mas, e a Bertoleza?...
Sim! Era preciso acabar com ela! Despachá-la! Sumi-la por uma vez!
Deu meia-noite no relógio do armazém. João Romão tomou uma vela e
desceu aos fundos da casa, onde Bertoleza dormia. Aproximou-se dela, pé
ante pé, como um criminoso que leva uma ideia homicida.

ALUÍSIO AZEVEDO • 213 •


A crioula estava imóvel sobre o enxergão, deitada de lado, com a
cara escondida no braço direito, que ela dobrara por debaixo da cabeça.
Aparecia-lhe uma parte do corpo nua.
João Romão contemplou-a por algum tempo, com asco.
E era aquilo, aquela miserável preta que ali dormia indiferentemente, o
grande estorvo da sua ventura!... Parecia impossível!
— E se ela morresse?...
Esta frase, que ele tivera, quando pensou pela primeira vez naquele
obstáculo à sua felicidade, tornava-lhe agora ao espírito, porém já amadure-
cida e transformada nesta outra:
— E se eu a matasse?
Mas logo um calafrio de pavor correu-lhe por todos os nervos.
Além disso, como?... Sim, como poderia despachá-la, sem deixar sinais
comprometedores do crime?... Envenenando-a?... Dariam logo pela coisa!...
Matá-la a tiro?... Pior! Levá-la a um passeio fora da cidade, bem longe e, no
melhor da festa, atirá-la ao mar ou por um despenhadeiro, onde a morte fosse
infalível?... Mas como arranjar tudo isso, se eles nunca passeavam juntos?...
Diabo!
E o desgraçado ficou a pensar, abstrato, de castiçal na mão, sem des-
pregar os olhos de cima de Bertoleza, que continuava imóvel, com o rosto
escondido no braço.
— E se eu a esganasse aqui mesmo?...
E deu, na ponta dos pés, alguns passos para frente, parando logo, sem
deixar nunca de contemplá-la.
Mas a crioula ergueu de improviso a cabeça e fitou-o com os olhos de
quem não estava dormindo.
— Ah! fez ele.
— Que é, seu João?
— Nada. Vim só ver-te... Cheguei ainda não há muito... Como vais tu?
Passou-te a dor do lado?...
Ela meneou os ombros, sem responder ao certo. Houve um silêncio
entre os dois. João Romão não sabia o que dizer e saiu afinal, escoltado pelo
imperturbável olhar da crioula, que o intimava mesmo pelas costas.
— Teria desconfiado? pensou o miserável, subindo de novo para o
quarto. Qual! Desconfiar de quê?...

• 214 • O CORTIÇO
E meteu-se logo na cama, disposto a não pensar mais nisso e dormir
incontinente. Mas o seu pensamento continuou rebelde a parafusar sobre o
mesmo assunto.
— É preciso despachá-la! É preciso despachá-la quanto antes, seja lá
como for! Ela, até agora, não deu ainda sinal de si; não abriu o bico a res-
peito da questão; mas, Dona Estela está a marcar o dia do casamento; não
levará muito tempo para isso... O Miranda naturalmente comunica a notícia
aos amigos... O fato corre de boca em boca... Chega aos ouvidos da crioula e
esta, vendo-se abandonada, estoura! Estoura com certeza! E agora o verás!
Como deve ser bonito, hein?... Ir tão bem até aqui e esbarrar na oposição
da negra!... E os comentários depois!... O que não dirão os invejosos lá da
praça?... “Ah, ah! Ele tinha em casa uma amiga, uma preta imunda com quem
vivia! Que tipo! Sempre há de mostrar que é gentinha de laia muito baixa!...
E aqui a engazopar-nos com uns ares de capitalista que se trata à vela de
libra! Olha o carapicu pra que havia de dar. Sai sujo!” E, então, a família
da menina, com medo de cair também na boca do mundo, volta atrás e dá
o dito por não dito! Bem sei que ela está a par de tudo; isso, olé, se está!
Mas finge-se desentendida, porque conta, e com razão, que eu não serei tão
parvo que espere o dia do casamento sem ter dado sumiço à negra! Contam
que a coisa correrá sem o menor escândalo! E eu, no entanto, tão besta que
nada fiz! E a peste da crioula está aí senhora do terreiro como dantes, e não
descubro meio de ver-me livre dela!... Ora já se viu como arranjei semelhante
entalação?... Isto contado não se acredita!
E pisava e repisava o caso, sem achar meio de dar-lhe saída!
Diabo!
— Ela há muito que devia estar longe de mim... Fiz mal em não cuidar
logo disso antes de mais nada!... Fui um pedaço d’asno! Se eu a tivesse des-
pachado logo, quando ainda se não falava no meu casamento, ninguém
desconfiaria da história: “Por que diabo iria o pobre homem dar cabo de uma
mulher, com quem vivia na melhor paz e que era até, dentro de casa, o seu
braço direito?...” Mas agora, depois de todas aquelas reformas de vida; depois
da separação das camas, e principalmente depois que corresse a notícia do
casamento, não faltaria decerto quem o acusasse, se a negra aparecesse
morta de repente!
Diabo!

ALUÍSIO AZEVEDO • 215 •


Deram quatro horas, e o desgraçado nada de pregar olho; continuava a
matutar sobre o assunto, virando-se de um para outro lado da sua larga e
rangedora cama de casados. Só pelo abrir da aurora, conseguiu passar pelo
sono; mas, logo às sete da manhã, teve de pôr-se a pé: o cortiço estava todo
alvoroçado com um desastre.
A Machona lavava à sua tina, ralhando e discutindo como sempre,
quando dois trabalhadores, acompanhados de um ruidoso grupo de curiosos,
trouxeram-lhe sobre uma tábua o cadáver ensanguentado do filho. Agostinho
havia ido, segundo o costume, brincar à pedreira com outros dois rapazitos da
estalagem; tinham, cabritando pelas arestas do precipício, subido a uma altura
superior a duzentos metros do chão e, de repente, faltara-lhe o equilíbrio e o
infeliz rolou de lá abaixo, partindo os ossos e atassalhando as carnes.
Todo ele, coitadinho, era uma só massa vermelha; as canelas, quebradas
no joelho, dobravam moles para debaixo das coxas; a cabeça, desarticulada,
abrira no casco e despejava o pirão dos miolos; numa das mãos faltavam-lhe
todos os dedos e no quadril esquerdo via-se-lhe sair uma ponta de osso
ralado pela pedra.
Foi um alarma no pátio quando ele chegou.
Cruzes! Que desgraça!
Albino, que lavava ao lado da Machona, teve uma síncope; Neném
ficou que nem doida, porque ela queria muito àquele irmão; a das Dores
imprecou contra os trabalhadores, que deixavam um filho alheio matar-se
daquele modo em presença deles; a mãe, essa apenas soltou um bramido
de monstro apunhalado no coração e caiu mesquinha junto do cadáver, a
beijá-lo, vagindo como uma criança. Não parecia a mesma!
As mães dos outros dois rapazitos esperavam imóveis e lívidas pela
volta dos filhos, e, mal estes chegaram à estalagem, cada uma se apoderou
logo do seu e caiu-lhe em cima, a sová-los ambos que metia medo.
— Mira-te naquele espelho, tentação do diabo! exclamava uma delas,
com o pequeno seguro entre as pernas a encher-lhe a bunda de chineladas.
Não era aquele que devia ir, eras tu, peste! Aquele, coitado! Ao menos ajudava
a mãe, ganhava dois mil-réis por mês regando as plantas do Comendador, e
tu, coisa-ruim, só serves para me dar consumições! Toma! Toma! Toma!
E o chinelo cantava entre o berreiro feroz dos dois rapazes.

• 216 • O CORTIÇO
João Romão chegou ao terraço de sua casa, ainda em mangas de camisa,
e de lá mesmo tomou conhecimento do que acontecera. Contra todos os
seus hábitos impressionou-se com a morte de Agostinho; lamentou-a no
íntimo, tomado de estranhas condolências.
Pobre pequeno! Tão novo... Tão esperto... E cuja vida não prejudicava
a ninguém, morrer assim, desastradamente!... ao passo que aquele diabo
velho da Bertoleza continuava agarrado à existência, envenenando-lhe a
felicidade, sem se decidir a despachar o beco!
E o demônio da crioula parecia mesmo não estar disposta a ir só com
duas razões; apesar de triste e acabrunhada, mostrava-se forte e rija. Suas
pernas curtas e lustrosas eram duas peças de ferro unidas pela culatra, das
quais ela trazia um par de balas penduradas em saco contra o peito; as róseas
lustrosas do seu cachaço lembravam grossos chouriços de sangue, e na sua
carapinha compacta ainda não havia um fio branco. Aquilo, arre! Tinha vida
para o resto do século!
— Mas deixa estar, que eu te despacho bonito e asseado!... disse o ven-
deiro de si para si, voltando ao quarto para acabar de vestir-se.
Enfiava o colete quando bateram pancadas familiares na porta do corredor.
— Então?! Ainda se está em val de lençóis?...
Era a voz do Botelho.
O vendeiro foi abrir e fê-lo entrar ali mesmo para a alcova.
— Ponha-se a gosto. Como vai você?
— Assim. Não tenho passado lá essas coisas...
João Romão deu-lhe notícia da morte do Agostinho e declarou que estava
com dor de cabeça. Não sabia que diabo tinha ele aquela noite, que não houve
meio de pegar direito no sono.
— Calor... explicou o outro. E prosseguiu depois de uma pausa, acen-
dendo um cigarro: pois eu vinha cá falar-lhe... Você não repare, mas...
João Romão supôs que o parasita ia pedir-lhe dinheiro e preparou-se
para a defesa, queixando-se inopinadamente de que os negócios não lhe
corriam bem; mas calou-se, porque o Botelho acrescentou com o olhar fito
nas unhas:
— Não devia falar nisto... São coisas suas lá particulares, em que a gente
não se mete, mas...

ALUÍSIO AZEVEDO • 217 •


O taberneiro compreendeu logo onde a visita queria chegar e
aproximou-se dele, dizendo confidencialmente:
— Não! Ao contrário! Fale com franqueza... Nada de receios...
— É que... Sim, você sabe que eu tenho tratado do seu casamento com a
Zulmirinha... Lá em casa não se fala agora noutra coisa... Até a própria Dona
Estela já está muito bem disposta a seu favor... Mas...
— Desembuche, homem de Deus!
— É que há um pontinho que é preciso pôr a limpo... Coisa insignificante,
mas...
— Mas, mas! Você não desembuchará por uma vez?... Fale, que diabo!
Um caixeiro do armazém apareceu à porta, prevenindo de que o almoço
estava na mesa.
— Vamos comer, disse João Romão. Você já almoçou?
— Ainda não, mas lá em casa contam comigo...
O vendeiro mandou o seu empregado dizer lá defronte à família do
Barão que seu Botelho não ia ao almoço. E, sem tomar o casaco, passou com
a visita à sala de jantar.
O cheiro ativo dos móveis, polidos ainda de fresco, dava ao aposento um
caráter insociável de lugar desabitado e por alugar. Os trastes, tão nus como
as paredes, entristeciam com a sua fria nitidez de coisa nova.
— Mas vamos lá! Que temos então?... inquiriu o dono da casa, assentando-se
à cabeceira da mesa, enquanto o outro, junto dele, tomava lugar à extremi-
dade de um dos lados.
— É que, respondeu o velho em tom de mistério, você tem cá em sua
companhia uma... uma crioula, que... Eu não creio, note-se, mas...
— Adiante!
— É! Dizem que ela é coisa sua... Lá em casa rosnou!... O Miranda
defende-o, afirma que não... Ah! Aquilo é uma grande alma! Mas Dona Estela,
você sabe o que são as mulheres!... Torce o nariz e... Em uma palavra: receio
que esta história nos traga qualquer embaraço!...
Calou-se, porque acabava de entrar um portuguesinho, trazendo uma
travessa de carne ensopada com batatas.
João Romão não respondeu, mesmo depois que o pequeno saiu; ficou
abstrato, a bater com a faca entre os dentes.

• 218 • O CORTIÇO
— Por que você a não manda embora?... arriscou o Botelho, despejando
vinho no seu e no copo do companheiro.
Ainda desta vez não obteve logo resposta; mas o outro tomando, afinal,
uma resolução, declarou confidencialmente:
— Vou dizer-lhe toda coisa como ela é... E talvez que você até me possa
auxiliar!...
Olhou para os lados, chegou mais a sua cadeira para junto da de Botelho
e acrescentou em voz baixa:
— Esta mulher meteu-se comigo, quando eu principiava minha vida... Então,
confesso... precisava de alguém nos casos dela, que me ajudasse... E ajudou-me
muito, não nego! Devo-lhe isso! Não! Ajudar-me ajudou! Mas...
— E depois?
— Depois, ela foi ficando para aí; foi ficando... e agora...
— Agora é um trambolho que lhe pode escangalhar a igrejinha! É o que é!
— Sim, que dúvida! Pode ser um obstáculo sério ao meu casamento!
Mas, que diabo! Eu também, você compreende, não a posso pôr na rua,
assim, sem mais aquelas!... Seria ingratidão, não lhe parece?...
— Ela já sabe em que pé está o negócio?...
— Deve desconfiar de alguma coisa, que não é tola!... Eu, cá por mim,
não lhe toquei em nada...
— E você ainda faz vida com ela?
— Qual! Há muito tempo que nem sombras disso...
— Pois, então, meu amigo, é arranjar-lhe uma quitanda em outro
bairro; dar-lhe algum dinheiro e... Boa viagem! O dente que já não presta
arranca-se fora!
João Romão ia responder, mas Bertoleza assomou à entrada da sala.
Vinha tão transformada e tão lívida que só com a sua presença intimidou
profundamente os dois. A indignação tirava-lhe faíscas dos olhos e os lábios
tremiam-lhe de raiva. Logo que falou veio-lhe espuma aos cantos da boca.
— Você está muito enganado, seu João, se cuida que se casa e me atira à
toa! exclamou ela. Sou negra, sim, mas tenho sentimentos! Quem me comeu
a carne tem de roer-me os ossos! Então há de uma criatura ver entrar ano
e sair ano, a puxar pelo corpo todo o santo dia que Deus manda ao mundo,
desde pela manhãzinha até pelas tantas da noite, para ao depois ser jogada
no meio da rua, como galinha podre?! Não! Não há de ser assim, seu João!

ALUÍSIO AZEVEDO • 219 •


— Mas, filha de Deus, quem te disse que eu quero atirar-te à toa?... per-
guntou o capitalista.
— Eu escutei o que você conversava, seu João! A mim não me cegam
assim só! Você é fino, mas eu também sou! Você está armando casamento
com a menina de seu Miranda!
— Sim, estou. Um dia havia de cuidar de meu casamento!... Não hei de
ficar solteiro toda a vida, que não nasci para podengo. Mas também não te
sacudo na rua, como disseste; ao contrário agora mesmo tratava aqui com o
seu Botelho de arranjar-te uma quitanda e...
— Não! Com quitanda principiei; não hei de ser quitandeira até morrer!
Preciso de um descanso! Para isso mourejei junto de você enquanto Deus
Nosso Senhor me deu força e saúde!
— Mas afinal que diabo queres tu?!
— Ora essa! Quero ficar a seu lado! Quero desfrutar o que nós dois
ganhamos juntos! Quero a minha parte no que fizemos com o nosso tra-
balho! Quero o meu regalo, como você quer o seu!
— Mas não vês que isso é um disparate?... Tu não te conheces?... Eu te
estimo, filha; mas por ti farei o que for bem entendido e não loucuras!
Descansa que nada te há de faltar!... Tinha graça, com efeito, que ficássemos
vivendo juntos! Não sei como não me propões casamento!
— Ah! Agora não me enxergo! Agora eu não presto para nada! Porém,
quando você precisou de mim não lhe ficava mal servir-se de meu corpo e
aguentar a sua casa com o meu trabalho! Então a negra servia pra um tudo;
agora não presta pra mais nada, e atira-se com ela no monturo do cisco! Não!
Assim também Deus não manda! Pois se aos cães velhos não se enxotam, por
que me hão de pôr fora desta casa, em que meti muito suor do meu rosto?...
Quer casar, espere então que eu feche primeiro os olhos; não seja ingrato!
João Romão perdeu por fim a paciência e retirou-se da sala, atirando à
amante uma palavrada porca.
— Não vale a pena encanzinar-se... segredou-lhe o Botelho,
acompanhando-o até a alcova, onde o vendeiro enterrou com toda a força o
chapéu na cabeça e enfiou o paletó com a mão fechada em murro.
— Arre! Não a posso aturar nem mais um instante! Que vá para o diabo
que a carregue! Em casa é que não me fica!
— Calma, homem de Deus! Calma!

• 220 • O CORTIÇO
— Se não quiser ir por bem, irá por mal! Sou eu quem o diz!
E o vendeiro esfuziou pela escada, levando atrás de si o velhote, que
mal podia acompanhá-lo na carreira. Já na esquina da rua parou e, fitando no
outro o seu olhar flamejante, perguntou-lhe:
— Você viu?!
— É... resmungou o parasita, de cabeça baixa, sem interromper os passos.
E seguiram em silêncio, andando agora mais devagar; ambos
preocupados.
No fim de uma boa pausa, Botelho perguntou se Bertoleza era escrava
quando João Romão tomou conta dela.
Esta pergunta trouxe uma inspiração ao vendeiro. Ia pensando em
metê-la como idiota no Hospício de Pedro II, mas acudia-lhe agora coisa
muito melhor: entregá-la ao seu senhor, restituí-la legalmente à escravidão.
Não seria difícil... considerou ele; era só procurar o dono da escrava,
dizer-lhe onde esta se achava refugiada e aquele ir logo buscá-la com a polícia.
E respondeu ao Botelho:
— Era e é!
— Ah! Ela é escrava? De quem?
— De um tal Freitas de Melo. O primeiro nome não sei. Gente de fora.
Em casa tenho as notas.
— Ora! Então a coisa é simples!... Mande-a p’ro dono!
— E se ela não quiser ir?...
— Como não?! A polícia a obrigará! É boa!
— Ela há de querer comprar a liberdade...
— Pois que a compre, se o dono consentir!... Você com isso nada mais
tem que ver! E se ela voltar à sua procura, despache-a logo; se insistir, vá
então à autoridade e queixe-se! Ah, meu caro, estas coisas, para serem bem
feitas, fazem-se assim ou não se fazem! Olhe que aquele modo com que ela
lhe falou há pouco é o bastante para você ver que semelhante estupor não
lhe convém dentro de casa nem mais um instante! Digo-lhe até: já não só
pelo fato do casamento, mas por tudo! Não seja mole!
João Romão escutava, caminhando calado, sem mais vislumbres de agi-
tação. Tinham chegado à praia.

ALUÍSIO AZEVEDO • 221 •


— Você quer encarregar-se disto? propôs ele ao companheiro, parando
ambos à espera do bonde; se quiser pode tratar, que lhe darei uma gratifi-
cação menos má...
— De quanto?...
— Cem mil-réis!
— Não! Dobre!
— Terás os duzentos!
— Está dito! Eu cá, pra tudo que for pôr cobro a relaxamento de negro,
estou sempre pronto!
— Pois então logo mais à tarde lhe darei, ao certo, o nome do dono, o
lugar em que ele residia quando ela veio para mim e o mais que encontrar
a respeito.
— E o resto fica a meu cuidado! Pode dá-la por despachada!

XXII
Desde esse dia Bertoleza fez-se ainda mais concentrada e resmungona
e só trocava com o amigo um ou outro monossílabo inevitável no serviço
da casa. Entre os dois havia agora desses olhares de desconfiança, que são
abismos de constrangimento entre pessoas que moram juntas. A infeliz
vivia num sobressalto constante; cheia de apreensões, com medo de ser
assassinada; só comia do que ela própria preparava para si e não dormia
senão depois de fechar-se a chave. À noite o mais ligeiro rumor a punha de
pé, olhos arregalados, respiração convulsa, boca aberta e pronta para pedir
socorro ao primeiro assalto.
No entanto, em redor do seu desassossego e do seu mal-estar, tudo ali
prosperava forte em grosso, aos contos de réis, com a mesma febre com que
dantes, em torno da sua atividade de escrava trabalhadeira, os vinténs cho-
viam dentro da gaveta da venda. Durante o dia paravam agora em frente do
armazém carroças e carroças com fardos e caixas trazidos da alfândega, em
que se liam as iniciais de João Romão; e rodavam-se pipas e mais pipas de
vinho e de vinagre, e grandes partidas de barricas de cerveja e de barris de
manteiga e de sacos de pimenta. E o armazém, com as suas portas escanca-
radas sobre o público, engolia tudo de um trago, para depois ir deixando sair

• 222 • O CORTIÇO
de novo, aos poucos, com um lucro lindíssimo, que no fim do ano causava
assombros. João Romão fizera-se o fornecedor de todas as tabernas e arma-
rinhos de Botafogo; o pequeno comércio sortia-se lá para vender a retalho.
A sua casa tinha agora um pessoal complicado de primeiros, segundos e
terceiros caixeiros, além do guarda-livros, do comprador, do despachante e
do caixa; do seu escritório saíam correspondências em várias línguas e, por
dentro das grades de madeira polida, onde havia um bufete sempre ser-
vido com presunto, queijo e cerveja, faziam-se largos contratos comerciais,
transações em que se arriscavam fortunas; e propunham-se negociações de
empresas e privilégios obtidos do governo; e realizavam-se vendas e com-
pras de papéis; e concluíam-se empréstimos de juros fortes sobre hipotecas
de grande valor. E ali ia de tudo: o alto e o baixo negociante; capitalistas
adulados e mercadores falidos; corretores de praça, zangões, cambistas;
empregados públicos, que passavam procuração contra o seu ordenado;
empresários de teatro e fundadores de jornais, em aparos de dinheiro;
viúvas, que negociavam o seu montepio; estudantes, que iam receber a sua
mesada; e capatazes de vários grupos de trabalhadores pagos pela casa; e,
destacando-se de todos, pela quantidade, os advogados e a gente miúda do
foro, sempre inquieta, farisqueira, a meter o nariz em tudo, feia, a papelada
debaixo do braço, a barba por fazer, o cigarro babado e apagado a um canto
da boca.
E, como a casa comercial de João Romão, prosperava igualmente a
sua avenida. Já lá se não admitia assim qualquer pé-rapado: para entrar
era preciso carta de fiança e uma recomendação especial. Os preços dos
cômodos subiam, e muitos dos antigos hóspedes, italianos principalmente,
iam, por economia, desertando para o “Cabeça-de-Gato” e sendo substi-
tuídos por gente mais limpa. Decrescia também o número das lavadeiras,
e a maior parte das casinhas eram ocupadas agora por pequenas famílias
de operários, artistas e praticantes de secretaria. O cortiço aristocratiza-
va-se. Havia um alfaiate logo à entrada, homem sério, de suíças brancas
que cosia na sua máquina entre oficiais, ajudado pela mulher, uma lisboeta
cor de nabo, gorda, velhusca, com um princípio de bigode e cavanhaque,
mas extremamente circunspecta; em seguida um relojoeiro calvo, de óculos,
que parecia mumificado atrás da vidraça em que ele, sem mudar de posição,
trabalhava, da manhã até à tarde; depois um pintor de tetos e tabuletas,

ALUÍSIO AZEVEDO • 223 •


que levou a fantasia artística ao ponto de fazer, a pincel, uma trepadeira em
volta da sua porta, onde se viam pássaros de várias cores e feitios, muito
comprometedores para o crédito profissional do autor; mais adiante insta-
lara-se um cigarreiro, que ocupava nada menos de três números na esta-
lagem e tinha quatro filhas e dois filhos a fabricarem cigarros, e mais três
operárias que preparavam palha de milho e picavam e desfiavam tabaco.
Florinda, metida agora com um despachante de estrada de ferro, voltara
para o São Romão e trazia a sua casinha em muito bonito pé de limpeza e
arranjo. Estava ainda de luto pela mãe, a pobre velha Marciana, que ultima-
mente havia morrido no hospício dos doidos. Aos domingos o despachante
costumava receber alguns camaradas para jantar, e como a rapariga puxava
os feitios da Rita Baiana, as suas noitadas acabavam sempre em pagode de
dança e cantarola, mas tudo de portas adentro, que ali já se não admitiam
sambas e chinfrinadas ao relento. A Machona quebrara um pouco de gênio
depois da morte de Agostinho e era agora visitada por um grupo de moços
do comércio, entre os quais havia um pretendente à mão de Neném, que
se mirrava já de tanto esperar a seco por marido. Alexandre fora promo-
vido a sargento e empertigava-se ainda mais dentro da sua farda nova, de
botões que cegavam; a mulher, sempre indiferentemente fecunda e honesta,
parecia criar bolor na sua moleza úmida e tinha um ar triste de cogumelo; era
vista com frequência a dar de mamar a um pequerrucho de poucos meses,
empinando muito a barriga para a frente, pelo hábito de andar sempre grá-
vida. A sua comadre Léonie continuava a visitá-la de vez em quando, atur-
dindo a atual pacatez daquele cenóbio com as suas roupas gritadoras. Uma
ocasião em que lá fora, um sábado à tarde, produzira grande alvoroço entre
os decanos da estalagem, porque consigo levava Pombinha, que se atirara
ao mundo e vivia agora em companhia dela.
Pobre Pombinha! No fim dos seus primeiros dois anos de casada já
não podia suportar o marido; todavia, a princípio, para conservar-se mulher
honesta, tentou perdoar-lhe a falta de espírito, os gostos rasos e a sua
risonha e fatigante palermice de homem sem ideal; ouviu-lhe, resignada,
as confidências banais nas horas íntimas do matrimônio; atendeu-o nas
suas exigências mesquinhas de ciumento que chora; tratou-o com toda a
solicitude, quando ele esteve a decidir com uma pneumonite aguda; pro-
curou afinar em tudo com o pobre rapaz; não lhe falou nunca em coisas

• 224 • O CORTIÇO
que cheirassem a luxo, a arte, a estética, a originalidade; escondeu a sua
mal-educada e natural intuição pelo que é grande, ou belo, ou arrojado, e
fingiu ligar interesse ao que ele fazia, ao que ele dizia, ao que ele ganhava,
ao que ele pensava e ao que ele conseguia com paciência na sua vida
estreita de negociante rotineiro; mas, de repente, zás! faltou-lhe o equi-
líbrio e a mísera escorregou, caindo nos braços de um boêmio de talento,
libertino e poeta, jogador e capoeira. O marido não deu logo pela coisa, mas
começou a estranhar a mulher, a desconfiar dela e a espreitá-la, até que um
belo dia, seguindo-a na rua sem ser visto, o desgraçado teve a dura certeza
de que era traído pela esposa, não mais com o poeta libertino, mas com um
artista dramático que muitas vezes lhe arrancara, a ele, sinceras lágrimas de
comoção, declamando no teatro em honra da moral triunfante e estigmati-
zando o adultério com a retórica mais veemente e indignada.
Ah! Não pôde iludir-se!... E, a despeito do muito que amava à ingrata,
rompeu com ela e entregou-a à mãe, fugindo em seguida para São Paulo.
Dona Isabel, que sabia já, não desta última falcatrua da filha, mas das
outras primeiras, que bem a mortificaram, coitada! desfez-se em lágrimas,
aconselhou-a a que se arrependesse e mudasse de conduta; em seguida
escreveu ao genro, intercedendo por Pombinha, jurando que agora respondia
por ela e pedindo-lhe que esquecesse o passado e voltasse para junto de sua
mulher. O rapaz não respondeu à carta, e, daí a meses, Pombinha desapa-
receu da casa da mãe. Dona Isabel quase morre de desgosto. Para onde teria
ido a filha?... “Onde está? Onde não está? Procura daqui! Procura daí!” Só a
descobriu semanas depois; estava morando num hotel com Léonie. A ser-
pente vencia afinal: Pombinha foi, pelo seu próprio pé, atraída, meter-se-lhe
na boca. A pobre mãe chorou a filha como morta; mas, visto que os desgostos
não lhe tiraram a vida por uma vez e, como a desgraçada não tinha com que
matar a fome, nem forças para trabalhar, aceitou de cabeça baixa o pri-
meiro dinheiro que Pombinha lhe mandou. E, desde então, aceitou sempre,
constituindo-se a rapariga no seu único amparo da velhice e sustentando-a
com os ganhos da prostituição. Depois, como neste mundo uma criatura a
tudo se acostuma, Dona Isabel mudou-se para a casa da filha. Mas não apa-
recia nunca na sala quando havia gente de fora, escondia-se; e, se algum
dos frequentadores de Pombinha a pilhava de improviso, a infeliz, com ver-
gonha de si mesma, fingia-se criada ou dama de companhia. O que mais a

ALUÍSIO AZEVEDO • 225 •


desgostava, e o que ela não podia tolerar sem apertos de coração, era ver a
pequena endemoninhar-se com champanha depois do jantar e pôr-se a dizer
tolices e a estender-se ali mesmo no colo dos homens. Chorava sempre que
a via entrar ébria, fora de horas, depois de uma orgia; e, de desgosto em des-
gosto, foi-se sentindo enfraquecer e enfermar, até cair de cama e mudar-se
para uma casa de saúde, onde afinal morreu.
Agora, as duas cocotes, amigas inseparáveis, terríveis naquela inque-
brantável solidariedade, que fazia delas uma só cobra de duas cabeças,
dominavam o alto e o baixo Rio de Janeiro. Eram vistas por toda a parte onde
houvesse prazer; à tarde, antes do jantar, atravessavam o Catete em carro
descoberto, com a Juju ao lado; à noite, no teatro, em um camarote de boca
chamavam sobre si os velhos conselheiros desfibrados pela política e ávidos
de sensações extremas, ou arrastavam para os gabinetes particulares dos
hotéis os sensuais e gordos fazendeiros de café, que vinham à corte esbo-
degar o farto produto das safras do ano, trabalhadas pelos seus escravos.
Por cima delas duas passara uma geração inteira de devassos. Pombinha, só
com três meses de cama franca, fizera-se tão perita no ofício como a outra;
a sua infeliz inteligência, nascida e criada no modesto lodo da estalagem,
medrou logo admiravelmente na lama forte dos vícios de largo fôlego; fez
maravilhas na arte; parecia adivinhar todos os segredos daquela vida; seus
lábios não tocavam em ninguém sem tirar sangue; sabia beber, gota a gota,
pela boca do homem mais avarento, todo o dinheiro que a vítima pudesse
dar de si. Entretanto, lá na Avenida São Romão, era, como a mestra, cada
vez mais adorada pelos seus velhos e fiéis companheiros de cortiço; quando
lá iam, acompanhadas por Juju, a porta da Augusta ficava, como dantes,
cheia de gente, que as abençoava com o seu estúpido sorriso de pobreza
hereditária e humilde. Pombinha abria muito a bolsa, principalmente com a
mulher de Jerônimo, a cuja filha, sua protegida predileta, votava agora, por
sua vez, uma simpatia toda especial, idêntica à que noutro tempo inspirara
ela própria à Léonie. A cadeia continuava e continuaria interminavelmente;
o cortiço estava preparando uma nova prostituta naquela pobre menina
desamparada, que se fazia mulher ao lado de uma infeliz mãe ébria.
E era, ainda assim, com essas esmolas de Pombinha, que na casa de
Piedade não faltava de todo o pão, porque já ninguém confiava roupa à des-
graçada, e nem ela podia dar conta de qualquer trabalho.

• 226 • O CORTIÇO
Pobre mulher! Chegara ao extremo dos extremos. Coitada! Já não cau-
sava dó, causava repugnância e nojo. Apagaram-se-lhe os últimos vestígios
do brio; vivia andrajosa, sem nenhum trato e sempre ébria, dessa embria-
guez sombria e mórbida que se não dissipa nunca. O seu quarto era o mais
imundo e o pior de toda a estalagem; homens malvados abusavam dela,
muitos de uma vez, aproveitando-se da quase completa inconsciência da
infeliz. Agora, o menor trago de aguardente a punha logo pronta; acordava
todas as manhãs apatetada, muito triste, sem ânimo para viver esse dia, mas
era só correr à garrafa e voltavam-lhe as risadas frouxas, de boca que já se
não governa. Um empregado de João Romão, que ultimamente fazia as vezes
dele na estalagem, por três vezes a enxotou, e ela, de todas, pediu que lhe
dessem alguns dias de espera, para arranjar casa. Afinal, no dia seguinte ao
último em que Pombinha apareceu por lá com Léonie e deixou-lhe algum
dinheiro, despejaram-lhe os tarecos na rua.
E a mísera, sem chorar, foi refugiar-se, junto com a filha, no
“Cabeça-de-Gato” que, à proporção que o São Romão se engrandecia,
mais e mais ia-se rebaixando acanalhado, fazendo-se cada vez mais torpe,
mais abjeto, mais cortiço, vivendo satisfeito do lixo e da salsugem que o
outro rejeitava, como se todo o seu ideal fosse conservar inalterável, para
sempre, o verdadeiro tipo da estalagem fluminense, a legítima, a legendária;
aquela em que há um samba e um rolo por noite; aquela em que se matam
homens sem a polícia descobrir os assassinos; viveiro de larvas sensuais em
que irmãos dormem misturados com as irmãs na mesma lama; paraíso de
vermes, brejo de lodo quente e fumegante, donde brota a vida brutalmente,
como de uma podridão.

ALUÍSIO AZEVEDO • 227 •


XXIII
À porta de uma confeitaria da Rua do Ouvidor, João Romão, apurado
num fato novo de casimira clara, esperava pela família do Miranda, que
nesse dia andava em compras.
Eram duas horas da tarde e um grande movimento fazia-se ali. O tempo
estava magnífico; sentia-se pouco calor. Gente entrava e saía, a passo frouxo,
da Casa Pascoal. Lá dentro janotas estacionavam de pé, soprando o fumo dos
charutos, à espera que desocupassem uma das mesinhas de mármore preto;
grupos de senhoras, vestidas de seda, faziam lanche com vinho do Porto.
Respirava-se um cheiro agradável de essências e vinagres aromáticos; havia
um rumor quente e garrido, mas bem-educado; namorava-se forte, mas com
disfarce, furtando-se olhares no complicado encontro dos espelhos; homens
bebiam ao balcão e outros conversavam, comendo empadinhas junto às
estufas; algumas pessoas liam já os primeiros jornais da tarde; serventes,
muito atarefados, despachavam compras de doces e biscoitos e faziam, sem
descansar, pacotes de papel de cor, que os compradores levavam pendurados
num dedo. Ao fundo, de um dos lados do salão, aviavam-se grandes enco-
mendas de banquetes para essa noite, traziam-se lá de dentro, já prontas,
torres e castelos de balas e trouxas d’ovos e imponentes peças de cozinha
caprichosamente enfeitadas; criados desciam das prateleiras as enormes
baixelas de metal branco, que os companheiros iam embalando em caixões
com papel fino picado. Os empregados das secretarias públicas vinham
tomar o seu vermute com sifão; repórteres insinuavam-se por entre os

• 228 • O CORTIÇO
grupos dos jornalistas e dos políticos, com o chapéu à ré, ávidos de notí-
cias, uma curiosidade indiscreta nos olhos. João Romão, sem deixar a
porta, apoiado no seu guarda-chuva de cabo de marfim, recebia cumpri-
mentos de quem passava na rua; alguns paravam para lhe falar. Ele tinha
sorrisos e oferecimentos para todos os lados; e consultava o relógio de vez
em quando.
Mas a família do Barão surgiu afinal. Zulmira vinha na frente, com um
vestido cor de palha justo ao corpo, muito elegante no seu tipo de flumi-
nense pálida e nervosa; logo depois Dona Estela, grave, toda de negro, passo
firme e ar severo de quem se orgulha das suas virtudes e do bom cumpri-
mento dos seus deveres. O Miranda acompanhava-as de sobrecasaca, fitinha
ao peito, o colarinho até ao queixo, botas de verniz, chapéu alto e bigode
cuidadosamente raspado. Ao darem com João Romão, ele sorriu e Zulmira
também; só Dona Estela conservou inalterável a sua fria máscara de mulher
que não dá verdadeira importância senão a si mesma.
O ex-taverneiro e futuro visconde foi, todavia, ao encontro deles, cheio
de solicitude, descobrindo-se desde logo e convidando-os com empenho a
que tomassem alguma coisa.
Entraram todos na confeitaria e apoderaram-se da primeira mesa que
se esvaziou. Um criado acudiu logo e João Romão, depois de consultar
Dona Estela, pediu sanduíches, doces e moscatel de Setúbal. Mas Zulmira
reclamou sorvete e licor. E só esta falava; os outros estavam ainda à pro-
cura de um assunto para a conversa; afinal o Miranda que, durante esse
tempo contemplava o teto e as paredes, fez algumas considerações sobre as
reformas e novos adornos do salão da confeitaria. Dona Estela dirigiu, de má,
a João Romão várias perguntas sobre a companhia lírica, o que confundiu por
tal modo ao pobre do homem, que o pôs vermelho e o desnorteou de todo.
Felizmente, nesse instante chegava o Botelho e trazia uma notícia: a morte
de um sargento no quartel; questão entre inferior e superior. O sargento,
insultado por um oficial do seu batalhão, levantara a mão contra ele, e o ofi-
cial então arrancara da espada e atravessara-o de lado a lado. Estava direito!
Ah! Ele era rigoroso em pontos de disciplina militar! Um sargento levantara a
mão para um oficial superior!... Devia ficar estendido ali mesmo, que dúvida!
E faiscavam-lhe os olhos no seu inveterado entusiasmo por tudo que
cheirasse a farda. Vieram logo as anedotas análogas; o Miranda contou

ALUÍSIO AZEVEDO • 229 •


um fato idêntico que se dera vinte anos atrás e Botelho citou uma enfiada
deles interminável.
Quando se levantaram, João Romão deu o braço a Zulmira e o Barão à
mulher, e seguiram todos para o Largo de São Francisco, lentamente, em
andar de passeio, acompanhados pelo parasita. Lá chegados, Miranda queria
que o vizinho aceitasse um lugar no seu carro, mas João Romão tinha ainda
que fazer na cidade e pediu dispensa do obséquio. Botelho também ficou;
e, mal a carruagem partiu, este disse ao ouvido do outro, sem tomar fôlego:
— O homem vai hoje, sabe? Está tudo combinado!
— Ah! Vai? perguntou João Romão com interesse, estacando no meio do
largo. Ora graças! Já não é sem tempo!
— Sem tempo! Pois olhe, meu amigo, que tenho suado o topete! Foi uma
campanha!
— Há que tempo já tratamos disto!...
— Mas que quer você, se o homem não aparecia?... Estava fora! Escrevi-lhe
várias vezes, como sabe, e só agora consegui pilhá-lo. Fui também à polícia
duas vezes e já lá voltei hoje; ficou tudo pronto! Mas você deve estar em casa
para entregar a crioula quando eles lá se apresentarem...
— Isso é que seria bom se se pudesse dispensar... Desejava não estar
presente...
— Ora essa! Então com quem se entendem eles?... Não! Tenha paciência!
É preciso que você lá esteja!
— Você podia fazer as minhas vezes...
— Pior! Assim não arranjamos nada! Qualquer dúvida pode entornar
o caldo! É melhor fazer as coisas bem feitas. Que diabo lhe custa isto?...
Os homenzinhos chegam, reclamam a escrava em nome da lei, e você a
entrega — pronto! Fica livre dela para sempre, e daqui a dias estoura o
champanha do casório! Hein, não lhe parece?
— Mas...
— Ela há de choramingar, fazer lamúrias e coisas, mas você põe-se duro
e deixe-a seguir lá o seu destino!... Bolas! Não foi você que a fez negra!...
— Pois vamos lá! Creio que são horas.
— Que horas são?
— Três e vinte.
— Vamos indo.

• 230 • O CORTIÇO
E desceram de novo a Rua do Ouvidor até ao ponto dos bondes de
Gonçalves Dias.
— O de São Clemente não está agora, observou o velho. Vou tomar um
copo d’água enquanto esperamos.
Entraram no botequim do lugar e, para conversar assentados, pediram
dois cálices de conhaque.
— Olhe, acrescentou o Botelho; você nem precisa dizer palavra... Faça
como coisa que não tem nada com isso, compreende?
— E se o homem quiser os ordenados de todo o tempo em que ela
esteve em minha companhia?...
— Como, filho, se você não a alugou das mãos de ninguém?!... Você não
sabe lá se a mulher é ou era escrava; tinha-a por livre naturalmente; agora
aparece o dono, reclama-a e você a entrega, porque não quer ficar com o que
lhe não pertence! Ela, sim, pode pedir o seu saldo de contas; mas para isso
você lhe dará qualquer coisa...
— Quanto devo dar-lhe?
— Aí uns quinhentos mil-réis, para fazer a coisa à fidalga.
— Pois dou-lhos.
— E feito isso — acabou-se! O próprio Miranda vai logo, logo, ter com
você! Verá!
Iam falar ainda, mas o bonde de São Clemente acabava de chegar, assal-
tado por todos os lados pela gente que o esperava. Os dois só conseguiram
lugar muito separados um do outro, de sorte que não puderam conversar
durante a viagem.
No Largo da Carioca uma vitória passou por eles, a todo o trote.
Botelho vergou-se logo para trás, procurando os olhos do vendeiro, a rir-se
com intenção. Dentro do carro ia Pombinha, coberta de joias, ao lado de
Henrique; ambos muito alegres, em pândega. O estudante, agora no seu
quarto ano de medicina, vivia à solta com outros da mesma idade e pagava
ao Rio de Janeiro o seu tributo de rapazola rico.
Ao chegarem à casa, João Romão pediu ao cúmplice que entrasse e
levou-o para o seu escritório.
— Descanse um pouco... disse-lhe.
— É, se eu soubesse que eles se não demoravam muito ficava para
ajudá-lo.

ALUÍSIO AZEVEDO • 231 •


— Talvez só venham depois do jantar, tornou aquele, assentando-se à
carteira.
Um caixeiro aproximou-se dele respeitosamente e fez-lhe várias per-
guntas relativas ao serviço do armazém, ao que João Romão respondia por
monossílabos de capitalista; interrogou-o por sua vez e, como não havia
novidade, tomou Botelho pelo braço e convidou-o a sair.
— Fique para jantar. São quatro e meia, segredou-lhe na escada.
Já não era preciso prevenir lá defronte porque agora o velho parasita
comia muitas vezes em casa do vizinho.
O jantar correu frio e contrafeito; os dois sentiam-se ligeiramente domi-
nados por um vago sobressalto. João Romão foi pouco além da sopa e quis
logo a sobremesa.
Tomavam café, quando um empregado subiu para dizer que lá embaixo
estava um senhor, acompanhado de duas praças, e que desejava falar ao
dono da casa.
— Vou já, respondeu este. E acrescentou para o Botelho: — São eles!
— Deve ser, confirmou o velho.
E desceram logo.
— Quem me procura?... exclamou João Romão com disfarce, chegando
ao armazém.
Um homem alto, com ar de estroina, adiantou-se e entregou-lhe uma
folha de papel.
João Romão, um pouco trêmulo, abriu-a defronte dos olhos e leu-a
demoradamente. Um silêncio formou-se em torno dele; os caixeiros pararam
em meio do serviço, intimidados por aquela cena em que entrava a polícia.
— Está aqui com efeito... disse afinal o negociante. Pensei que fosse livre...
— É minha escrava, afirmou o outro. Quer entregar-ma?...
— Mas imediatamente.
— Onde está ela?
— Deve estar lá dentro. Tenha a bondade de entrar...
O sujeito fez sinal aos dois urbanos, que o acompanharam logo, e
encaminharam-se todos para o interior da casa.
Botelho, à frente deles, ensinava-lhes o caminho. João Romão ia atrás,
pálido, com as mãos cruzadas nas costas.

• 232 • O CORTIÇO
Atravessaram o armazém, depois um pequeno corredor que dava para
um pátio calçado, chegaram finalmente à cozinha. Bertoleza, que havia já
feito subir o jantar dos caixeiros, estava de cócoras, no chão, escamando
peixe, para a ceia do seu homem, quando viu parar defronte dela aquele
grupo sinistro.
Reconheceu logo o filho mais velho do seu primitivo senhor, e um cala-
frio percorreu-lhe o corpo. Num relance de grande perigo compreendeu a
situação; adivinhou tudo com a lucidez de quem se vê perdido para sempre:
adivinhou que tinha sido enganada; que a sua carta de alforria era uma
mentira, e que o seu amante, não tendo coragem para matá-la, restituía-a
ao cativeiro.
Seu primeiro impulso foi de fugir. Mal, porém, circunvagou os olhos em
torno de si, procurando escapula, o senhor adiantou-se dela e segurou-lhe
o ombro.
— É esta! disse aos soldados que, com um gesto, intimaram a desgra-
çada a segui-los. — Prendam-na! É escrava minha!
A negra, imóvel, cercada de escamas e tripas de peixe, com uma das
mãos espalmada no chão e com a outra segurando a faca de cozinha, olhou
aterrada para eles, sem pestanejar.
Os policiais, vendo que ela se não despachava, desembainharam os
sabres. Bertoleza então, erguendo-se com ímpeto de anta bravia, recuou
de um salto e, antes que alguém conseguisse alcançá-la, já de um só golpe
certeiro e fundo rasgara o ventre de lado a lado.
E depois embarcou para a frente, rugindo e esfocinhando moribunda
numa lameira de sangue.
João Romão fugira até ao canto mais escuro do armazém, tapando o
rosto com as mãos.
Nesse momento parava à porta da rua uma carruagem. Era uma
comissão de abolicionistas que vinha, de casaca! trazer-lhe respeitosamente
o diploma de sócio benemérito.
Ele mandou que os conduzissem para a sala de visitas.

ALUÍSIO AZEVEDO • 233 •


Obra-prima de Aluísio Azevedo, Aluísio Tancredo Gonçalves de
O cortiço (1890) é a principal Azevedo (1857-1913) inaugura o
referência da estética realista- naturalismo na literatura nacional
-naturalista na literatura brasileira. com o lançamento de O mulato
Narrado em terceira pessoa, o (1881), que denuncia o preconceito
romance tem seu enredo montado racial da elite maranhense da
não em função de uma personagem, época. A crítica o consagrou pela
mas em torno do conjunto humano. publicação desse e de mais dois
romances – Casa de pensão (1884) e
O cortiço de São Romão, meio
O cortiço (1890) –, ambos com forte
em que se percebe a luta dos
influência dos escritores Eça de
mais pobres pela sobrevivência
Queiroz e Émile Zola.
e a exploração econômica destes
desvalidos, é o laboratório em que Aluísio Azevedo foi um crítico
as teses cientificistas da época severo da sociedade urbana e das
buscam se comprovar. instituições brasileiras das últimas
décadas do século XIX. Desenhista
Personagens estereotipados, cheios
talentoso, sua criação de caricaturas
de vícios e patologias, comparados
para as folhas políticas do Rio o
a animais e movidos pelo instinto
auxiliou na caracterização crua e
são representados na narrativa
detalhada dos tipos humanos de
como resultado das influências
seus romances.
sociais, históricas e biológicas.
Aluísio também publicou folhetins
Temas como desonestidade,
românticos, contos, crônicas e
avareza, exclusão social, inveja,
poemas em jornais e revistas de
escravismo, violência, prostituição,
São Luís e do Rio de Janeiro –
discriminação sexual e adultério
cidades onde viveu até ingressar
são trabalhados de maneira crua e
na diplomacia, em 1895, quando
explícita, o que distancia a obra da
deixou o Brasil e a carreira literária.
idealização romântica.
Ambientada nos subúrbios do Rio de
Janeiro do século XIX, a história desse
cortiço e da decadência física e moral
de seus moradores se tornou um dos
clássicos da literatura brasileira.
edições câmara
CIDADANIA

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