Rodrigo Marzano La Cienaga

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

ESCOLA DE COMUNICAÇÕES E ARTES


CURSO SUPERIOR DE AUDIOVISUAL
Disciplina CTR 0813 – Som I
Prof. Dr. João Baptista Godoy de Souza

ANÁLISE DA TRILHA SONORA


“LA CIÉNAGA” (2001), DE LUCRECIA MARTEL

Rodrigo Fausto Marzano


N. USP 4264854
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“LA CIÉNAGA” (“O Pântano”, ARG/ESP/FRA, 2001)

FICHA TÉCNICA SONORA:

SOM DIRETO
Guido Berenblum
Adrian de Michele

DIREÇÃO DE SOM
Herve Guyaer

MIXAGEM DE SOM
Emmanuel Croset

TEMAS MUSICAIS:

“El niño y el Canario” - Jorge Cafrune

“Mala Mujer” - Luis y sus colombianos

“Salud Amigo” - Luis y sus colombianos

“Deudas” - Los varoniles lírios salteños

“Lágrimas heladas” - Los varoniles lírios salteños

“Amor Divino” - Los varoniles lírios salteños


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“La Ciénaga” (“O Pântano”, ARG/ESP/FRA, 2001), de Lucrecia Martel


Análise da trilha sonora

Na leitura do roteiro deste que é o primeiro longa de Lucrecia Martel fica


evidente a importância dada aos elementos sonoros. O som entra no trabalho dela desde
a escrita do roteiro, onde há diversos apontamentos sonoros. Percebe-se então que o
filme foi pensado com um conceito sonoro geral antecipado. O que se confirma ao
assisti-lo e constatar sua clara e admirável ideia sonora. Na trama, a imagem é
impregnada por uma dimensão sinestésica por conta da maneira que o som é associado
a ela. A utilização de ruídos com um volume bem superior ao naturalista, o
preenchimento dos espaços, a preocupação com o sensitivo e com a criação de tensão
através de elementos sonoros são características bem marcantes na obra.
A diretora muitas vezes privilegia o som como elemento mais forte que a própria
imagem e faz da voz humana e dos barulhos do ambiente as marcas estéticas do filme.
Propõe, assim, uma estética sonora em detrimento de uma estética puramente visual. A
utilização do áudio, por vezes dissociado da imagem, funciona como um mecanismo de
adensamento de uma tensão, de um sentimento. Os personagens veem e sentem coisas
que não aparecem na tela, obrigando o espectador a imaginar. Ela pontua essas
ausências com sons, em grande parte dos casos. Assim o som não é só um complemento
estético, mas fornece novas formas de se narrar e enriquecer as cenas. Transgride toda
uma estética convencional em relação à intensidade dos sons e, em especial, dos ruídos
e das paisagens sonoras. A comunicação que a diretora consegue através desse recurso
do uso do som é de tal forma marcante que acaba por construir um corpo material
sonoro quase táctil na obra.
Em duas sequências iniciais de apresentação, existem ruídos usados com uma
intensidade nada naturalista. Na cena à borda de uma piscina, escutam-se os ruídos de
cadeiras de metal arrastadas contra um chão áspero. Paralelamente, em um quarto,
ruídos de molas de cama são escutados em primeiro plano, quando duas personagens
deitadas se viram de um lado para o outro. A amplitude empregada também não é
convencional. Nas duas situações, estes sons ​in passam uma estranheza pela excessiva
intensidade empregada. À medida que o filme avança, essa presença desmedida dos
ruídos funciona não só como preenchimento na ausência de comunicação entre as
personagens, mas ocupam e criam uma nova relação com o espaço, entre o que é visto e
o que é escutado. O som passa a ter um valor de voz, comunicando alguma coisa além
do que se ouve e se vê. É como se o som ganhasse uma nova perspectiva, novos pontos
de vista, novos significantes.
O som demorado dos trovões, junto a uma sinfonia de insetos e frequentes
revoadas de pássaros, intensifica a sensação de mormaço e ar pesado típico dos
momentos anteriores a uma chuva de verão. Assim como o zumbido das moscas que
invadem os interiores, esses sons vão percorrer todo o filme e manter o calor que sufoca
e imobiliza aos personagens. O filme vai se desenvolvendo como que casualmente, mas
a trilha sonora é toda muito precisa em sua massa, em sua dinâmica. Martel deixa os
sons ocuparem lugar e tempo para que possam ser escutados e apreciados. É impossível
não percebê-los. O tratamento é feito como que para revelar de que materiais são feitas
as coisas. Cria-se uma corporeidade por meio do invisível som.
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Esta sequência inicial em que vários adultos bebem ao redor da piscina termina
com um acidente, sem que esse ato seja mostrado em imagem visual. O tilintar que vem
do vidro faz com que as taças pareçam delicadas, aumentando a sensação de
instabilidade e de que em algum momento algo acontecerá a elas. Há toda uma
preparação para o incidente, com o uso de uma cuidadosa seleção de sons. Os novos
significantes que surgem desses sons aliados a essas imagens não se destacam apenas
pela evidência colocada no uso de intensidade desmedida, mas principalmente pelas
qualidades e características desses sons. A antecipação do acidente com os copos
quebrados brota da qualidade dos materiais: chão duro e áspero contra vidro fino e
delicado. Os ruídos, que habitualmente são sons pontuais dentro de um ambiente,
transformam-se na própria cenografia sonora na narrativa e também em personagens. A
quebra de comunicação e de identificação com os outros, a impossibilidade de
relacionar-se com o real, a falta de compreensão e de interesse de uns pelos outros são
potencializadas por estes espaços/personagens sonoros, que também subjugam as
pessoas representadas nele.
O som nos deixa em alerta. Os ruídos preenchem o espaço, substituindo uma
falta de comunicação entre os personagens – ou, por vezes, atrapalhando o diálogo entre
eles, já que constantemente o som invade os ambientes com violência. Os sons são
retirados pela autora de uma posição naturalista e utilizados de forma abstrata – fortes e
determinados, ao contrário dos personagens. Hiper-realistas, os sons chamam nossa
atenção ou nos incomodam por distorcerem nossa percepção do real (sem afastar-se dele
por completo), buscando um impacto sensorial. Há também situações em que um frágil
silêncio deve ser mantido, como quando as meninas não querem acordar o irmão mais
velho ao colocarem-no na cama, porém forte estrondo de um objeto derrubado provoca
um sobressalto e sustenta a sensação de constante desassossego que atravessa o filme.
Os sons diversos da água estão presentes em muitos momentos, tornando-a outro
personagem importante. Na chuva, nos chuveiros, nas “bombinhas” de bexiga ou gelo.
A densidade atmosférica proporcionada pelos ruídos de trovão e pelos chiados de
insetos é intensificada com essa presença constante da água, que também goteja como
num compasso, ou escorre, em todos os quartos e banheiros da casa de campo,
reforçando o aspecto precário do lugar, como se fosse possível sentir a umidade dos
cômodos, um ar viscoso e um cheiro de mofo. Ou de podridão, quando a garota pula na
piscina pantanosa, e após o mergulho só há o som das bolhas sob a superfície da água,
gerando uma ansiedade para o reaparecimento dela.
O som ​off volta a atuar como principal gerador de suspense na sequência em que
os meninos caçam no morro e o mais novo aproxima-se da vaca. Ele coloca-se entre o
animal e a mira das armas, e os meninos lhe pedem que saia da linha de tiro e
engatilham as armas, o que chama a atenção do garotinho, que olha para trás. Logo
depois num plano geral do morro, quando se ouve o estampido de dois tiros, carrega o
momento de tensão, devido ao fato de desconhecermos se Luciano manteve-se ou não
na linha de tiro dos garotos. O som ​off dos latidos do cachorro da casa vizinha instiga
Luciano. Em quase todos os momentos em que Luchi está em cena, o cachorro está
latindo, como se o garotinho estivesse constantemente em perigo. Da mesma forma, o
ruído irritante do telefone persegue Mecha. Ela é sempre perturbada pelos toques dos
vários aparelhos de telefone espalhados pela casa, o que contribui para o seu
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ininterrupto estado nervoso. A televisão em um alto volume, atrapalhando as conversas


entre as pessoas, também é um ruído irritante que percorre o filme. A televisão também
está presente na casa de Tali, porém não de maneira tão enérgica. Se junta a falação das
crianças, o ventilador ligado, o cachorro do vizinho, e o triciclo entrecruzando o diálogo
e propiciando um caos. Em outra situação onde o casal discute, ela também se distancia
e ouve-se em ​off uma pequena explosão de uma lâmpada, uma representação da
frustração que ela tem que reprimir.
Na sequência do baile de carnaval a cena começa com uma música de volume
altíssimo, a qual impossibilita a audição de qualquer coisa que não seja a massa de
ruídos que provoca a algazarra do local, e um plano carregado pela movimentação da
multidão. É impossível ouvir a conversa dos personagens. Pouco antes da confusão que
envolve José e Perro, um ruído dissonante surge por debaixo da cumbia. Esse ruído
desagradável antecipa a situação hostil que se desenrolará, intensificando a excitação da
cena. Lucrecia não se preocupa em manter a voz dos personagens sempre em evidência,
colocando-as como secundárias e dificultando a compreensão dos diálogos,
configurando-se assim seu grande interesse pelas sonoridades do que pela palavra
propriamente dita. Os diálogos se sobrepõem uns sobre os outros, assim como a
composição dos enquadramentos, e é sempre difícil discernir qual é a ação principal.
Essa escolha está presente não somente na cena do baile, onde a música ambiente
suspende quase completamente a possibilidade de ouvir o que os personagens falam,
mas também na sequências que se passam no morro, enquanto os meninos caçam, a
latição dos cachorros, os mugidos da vaca, as plantas que se mexem com o vento ou
com o movimento dos garotos, impedem que saibamos com clareza o que eles falam
entre si. Há ainda a sequência na qual Tali e Rafael conversam sobre o problema nos
dentes de Luciano, e perto deles está uma solda barulhenta que dificulta tanto a
comunicação entre os dois quanto a nossa compreensão.
As voz das personagens é um elemento sonoro muito trabalhado também. Nas
primeiras sequências em que está presente, Momi sussurra ao lado de Isabel, enquanto
as duas estão deitadas. As palavras de Momi são tão baixas que é quase impossível
entender seu significado, principalmente porque ela encosta os lábios, por vezes, na
roupa da empregada. Logo depois, Momi deita-se ao lado de Vero, e também cochicha
com ela, com voz chorosa. Mecha tem uma voz muito marcante, com sua rouquidão
bem característica. Mulher de poucas palavras, quando fala o faz com suficiente
contundência e claridade para demonstrar a insatisfação que lhe provoca o entorno. São
raros os momentos em que ela não está gritando, e nessas situações é que se pode dar
conta de sua fragilidade. Já Tali é o oposto de Mecha: ela está sempre falando - ao
telefone, sozinha, com as crianças, com a tartaruga, com Rafael, com Mecha, em uma
incontinência verbal que não traz nada de importante. Ela se contradiz, duvida, e todos
praticamente ignoram suas palavras, escutando-a sem prestar realmente atenção. Nesta
voz que sempre rodeia os ambientes, como um zumbido que não para, nota-se a
incapacidade e a submissão de Tali, que quando enfrenta o marido evita projetar sua voz
e move pouco os lábios. Já o marido dá à voz um caráter de poder – Tali deve
obedecê-lo, é ele quem manda, quem dá as ordens através de sua voz. Ainda na casa de
Tali, é impossível não perceber as duas meninas, Marianita e Verito, cujas presenças se
notam através de suas vozes. Todas as vezes em que estão presentes elas falam muito
alto, gritam, suas vozes são superpostas e o significado de suas palavras é indiferente, já
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que o importante é a algazarra feita e não o que querem dizer. Além disso, há a cena em
que elas cantam na frente do ventilador, provocando uma reverberação em suas vozes,
que adquirem um timbre automatizado.
Um dos poucos momentos do filme no qual se pode denotar alguma alegria e
plenitude aos personagens é a sequência na qual Vero liga o toca-fitas. José começa a
dançar com as mulheres do quarto, que por um instante se enche de vitalidade. Essa
ocasião fugaz e encantadora tenta repetir-se quando Tali e Mariana procuram ouvir uma
melodia, no fim do filme. O som está distante, aparenta vir da casa vizinha. Enquanto
isso, Luciano sai do quarto com o triciclo e vai em direção ao quintal. Escuta novamente
o latido do cachorro vizinho e decide subir pela escada até o topo do muro que divide as
casas, movido pela curiosidade. O último degrau se solta, ele cai e escuta-se a forte
batida no chão. A morte de Luchi vinha sendo anunciada no decorrer do filme. Ele
suspende a respiração diversas vezes, coloca-se na mira das armas dos garotos,
machuca-se frequentemente, durante as brincadeiras é acuado pelas meninas e declarado
morto. Seguem três planos da casa desabitada e silenciosa, como que atestando a morte
do menino, representando o vazio e silêncio na falta da criança, sem ruído, movimento
ou aparição surpresa.
Nos créditos finais, sob uma imagem negra estão os sons que permearam todo o
filme: os trovões, a água, as cigarras, os passarinhos, os tiros de caça. Surge o som de
um carro que se aproxima e com ele uma música como que do rádio do veículo. O
mesmo tipo de construção diegética que dos outros temas musicais do filme (a canção
do toca-fitas, a do bar, a da loja de roupas e a do baile de carnaval), pois não há
presença de música incidental.
Em suma, Lucrecia Martel utiliza a ideia de imersão como conceito de
construção do seu filme. É como um mergulho em que imagem e som parece ser um
lugar antes a ser habitado que observado. A larga utilização do som ​off​, aliada à
sobreposição e fragmentação dos corpos na ​mise en scène proposta, proporciona uma
profundidade à imagem e a criação de uma atmosfera pesada na qual potencializa-se a
antecipação de certas situações, como que um prenúncio da tragédia. A sucessão de
pequenos acidentes e de situações de risco nunca modifica o comportamento dos
personagens. A alternância entre perigo e apatia, na qual logo após um momento
inquietante, cada um recupera sua natural letargia, produz uma acumulação conflituosa.
Assim há um crescimento da tensão dramática que só pode resolver-se em uma
catástrofe. Além de prestar atenção à materialidade dos objetos através dos sons, dando
ao filme um caráter sensitivo e perturbador.

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