Cap. 2-2 - Livro - Elementos para o Uso Transgressor Do DT

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2.

2 Estado e Direito: a ideologia na sociedade de trocas


“Prepara o teu documento
Carimba o teu coração
Não perde nem um momento
Perde a razão
Pode esquecer a mulata
Pode esquecer o bilhar
Pode apertar a gravata
Vai te enforcar
Vai te entregar
Vai te estragar
Vai trabalhar”
(Vai trabalhar, Vagabundo – Chico Buarque de Holanda)

A alteração da racionalidade mítica medieval para uma racionalidade


moderna e a construção histórica da noção de liberdade como a capacidade de
ser proprietário para alienar e adquirir ocorrem no âmbito do discurso. Trata-se de
uma ideologia própria, que reivindica para si a característica de não-ideológica.

Antes de buscarmos conhece-la faz-se necessário um esclarecimento.


A ideologia foi um aspecto do materialismo francês do século XVIII, sua
significação original era a de ciência das ideias ou “investigação da origem das
ideias”. Com o advento da modernidade, a ideologia foi acusada, por Napoleão,
de constituir uma abstração da realidade, o estudo de um mundo especulativo109 .

Nesse mesmo sentido, Francis Bacon apontava a ideologia como um


discurso recheado de pré-juízos e defendia que a “marca da modernidade” era
justamente a “ideologia da neutralidade quanto a valores com que se pretendeu
construir o Estado moderno”110. A ideologia passou a ser compreendida como
algo ligado à tradição, à velha ordem feudal, por isso era preciso rejeitá-la.

Assim, o conceito de ideologia encontrou novo conteúdo no discurso


burguês: um conteúdo negativo. A noção pretensamente “não ideológica” da
109
Eagleton refere que o livro Eléments d’Ideologie, escrito em 1801 por Destutt de Tracy, é o
primeiro a tematizar a questão da ideologia, relacionando-a à zoologia, ao estudo científico das
ideia. EAGLETON, Terry. Ideologia: uma introdução. São Paulo: Universidade Estadual Paulista:
Boitempo, 1997, p. 15.
110
Bacon aponta quatro “idola” que impediriam o homem de chegar à essência das coisas, por
criar “pré-juízos”. Trata-se de obra destinada a ressaltar a importância do indivíduo e do
pensamento racional, livre da tradição. “A luta contra a tradição – compreendida como sendo a
cultura medieval, que a modernidade esforçava-se por destruir – levada ao extremo, como depois
se viu com Descartes, tornou-se a precondição para que o indivíduo, descontextualizado de seu
meio cultural, valendo-se do poder da razão, se tornasse o alicerce do liberalismo”. BAPTISTA DA
SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de Janeiro: Forense,
2004, p. 6-9.
47
modernidade era reflexo da necessidade de se desprender de todos os dogmas e
também da tradição representada pelas verdades medievais, para que pudesse
ser construído um mundo efetivamente novo. Essa linguagem revolucionária
tornou-se conservadora, entretanto, no momento exato em que a ordem burguesa
começou a ser questionada. A partir de então, mais do que romper com o
conceito tradicional de ideologia, era necessário naturalizar a realidade moderna
como uma realidade não-histórica, imutável. Sob essa perspectiva, a ideologia
aparece como algo a ser destruído pela lógica da modernidade. Tudo o que for
contrário ao discurso do progresso moderno aparece como ideológico, mas em
sentido negativo. Ao desqualificar a ideologia como um conjunto de ideias (pré)
conceituosas, que nega a evolução científica e tecnológica da sociedade, a
modernidade cria o discurso no qual ela mesma figura como argumento de
autoridade: tudo o que não é moderno é “ideológico”.

A marca do pensamento conservador passa a ser justamente essa


“naturalização da realidade que ele próprio elabora”, de tal modo que todo aquele
que procurar questioná-la se tornará “a seus olhos, ideológico”. Isso tem inúmeras
decorrências, dentre as quais interessa destacar o fato de que é justamente
porque a realidade do capital é naturalizada que “o juiz consegue a tranquilidade
de consciência, que lhe permite a ilusão de manter-se irresponsável”111. É dessa
naturalização que decorre também a ideia de fim da ideologia, que nada mais é
do que o reforço da ideologia burguesa112. O pensamento crítico é autorizado
apenas a partir da realidade do sistema, como se essa realidade fosse, por si
mesma, intransponível113.

111
BAPTISTA DA SILVA, Ovídio A. Processo e Ideologia. O Paradigma Racionalista. Rio de
Janeiro: Forense, 2004, p. 16.
112
Daniel Bell, autor da obra chamada O Fim da Ideologia, refere textualmente que a ideologia
tem hoje sua função esgotada. Depois de ser compreendida como uma forma de traduzir ideias
em ação, passou a ser crítica, forjando-se num processo histórico de desencantamento
progressivo. A ideologia converte ideias em “alavancas” sociais, transformando não apenas as
ideias, mas também as pessoas. Seu objetivo passa a ser simplificar ideias; dizer a verdade e
exigir um compromisso com a ação. Para Bell, diante da inevitabilidade do progresso, as
ideologias passam a se vincular aos valores da ciência. Hoje, “essas ideologias estão exauridas”.
As “calamidades como os Processos de Moscou, o pacto nazi-soviético, os campos de
concentração, a supressão do movimento dos trabalhadores húngaros” e, bem assim, as
“mudanças sociais como as modificações do capitalismo” e com o surgimento do Estado
assistencial, determinam a ausência de necessidade de ideologia na contemporaneidade. BELL,
Daniel. O fim da Ideologia. Brasília: UnB, 1980, p. 53-61.
113
No discurso de Bell, por exemplo, transparece a defesa de que os ideólogos são “terríveis
simplificadores”, já que a ideologia faz com que as pessoas deixem de enfrentar problemas
48
É de fácil compreensão que esse discurso pretensamente neutro é em
realidade uma forma de ideologia, enquanto reprodução sistemática de uma
“visão de mundo” que naturaliza as relações de troca e impede que se perceba o
artifício pelo qual a vontade individual (referida como suprema e capaz de
autodeterminar-se) é anulada. Esse artifício molda-se na linguagem, sobretudo,
na criação da figura do sujeito de direitos, livre para contratar, inclusive seu
próprio tempo de vida.

Esse é um ponto preliminar de grande importância, porque a análise


crítica do discurso jurídico do capital só é alcançada quando desmascaramos a
pretensa (falsa) neutralidade que nele se esconde. Tal desvelamento é proposto
por Marx, em sua crítica à filosofia alemã, quando afirma que tal filosofia “desce
do céu para a terra”, criando “sublimações” da realidade que resultam
“necessariamente do processo de sua vida material que podemos constatar
empiricamente e que repousa em bases materiais”114 . Distancia-se, portanto, da
realidade da vida, para criar abstrações que justifiquem, inclusive, as injustiças.

No prefácio à Contribuição à Crítica da Economia Política, Marx afirma


que “não é a consciência dos homens que determina o seu ser; ao contrário, é o
seu ser social que determina sua consciência”115 . Isso porque em sua vida
material coletiva, os homens ingressam em relações sociais independentemente
de sua vontade. A “totalidade dessas relações de produção constitui a estrutura
econômica da sociedade”, a base a que correspondem “formas sociais
determinadas de consciência”. Formas “ideológicas, sob as quais os homens
adquirem consciência” do conflito ínsito às relações sociais de que participam.
Tais formas, afirma Marx, são jurídicas, políticas, religiosas, artísticas e
filosóficas116.

específicos, e de “examiná-los à luz dos méritos individuais”. Em várias passagens de sua obra,
revela a compreensão de que a ideologia está necessariamente atrelada a um discurso
transformador e, por isso mesmo, ultrapassada. Ou seja, não há outra realidade a ser perseguida.
Logo, não há mais necessidade de ideologias. BELL, Daniel. O fim da Ideologia. Brasília: UnB,
1980.
114
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p.
19.
115
MARX, Karl. Contribuição à crítica da economia política. São Paulo: Martins Fontes, 1977,
p. 49.
116
Idem, p. 50.
49
Por fim, apenas para trazer mais uma referência da noção marxiana de
ideologia, o autor afirma em outra obra que “são os homens que fazem sua
própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob circunstâncias
de sua escolha e sim sob aquelas com que se defrontam diretamente ligadas e
transmitidas pelo passado”. E conclui que a “tradição dos mortos oprime como um
pesadelo o cérebro dos vivos”117.

A par de todas as discussões que daí seguem, acerca do conceito


(positivo, negativo ou dialético) da ideologia e de suas características, importa
para esse estudo ressaltar a contribuição de Marx para a compreensão de que a
modernidade inaugura uma linguagem que ultrapassa o sujeito e suas
determinações, porque se inscreve nas relações sociais de que ele
necessariamente participa. Uma linguagem que normaliza a opressão, disfarça a
exploração e, com isso, perpetua uma forma específica (histórica) de organização
social.

A linguagem do capital se reproduz através da família, da religião, da


escola, do sindicato, da mídia, tornando estranho e mesmo indesejável qualquer
pensamento crítico que contraponha a sua lógica118. Pode ser caracterizada por
alguns de seus pressupostos: a) a equiparação do homem e da natureza, nas
relações de troca, à condição de coisa; b) a necessidade de acúmulo de riqueza;
c) a liberdade como um imperativo necessariamente falacioso (pretensa

117
MARX, Karl. O Dezoito Brumário de Luís Bonaparte. Coleção Os Pensadores. Volume XXXI.
São Paulo: Abril Cultural, 1974, p. 103.
118
A ideologia moderna representa a “relação imaginária dos indivíduos com as suas condições
reais de existência” e apresenta-se nas práticas sociais como existência material. Os indivíduos
constituem estruturas que reproduzem o discurso dominante, ao mesmo tempo em que tais
estruturas se consolidam pelo discurso desses mesmos indivíduos. Essas estruturas são
denominadas por Louis Althusser como aparelhos ideológicos e aparelhos repressores, porque
permitem e estimulam a reprodução do capital: “O aparelho político sujeitando os indivíduos à
ideologia política de Estado, a ideologia democrática; O aparelho da informação embutindo, através
da imprensa, da rádio, da televisão, em todos os cidadãos, doses quotidianas de nacionalismo,
chauvinismo, liberalismo, moralismo; o aparelho cultural (o papel do desporto no chauvinismo é de
primeira ordem); O aparelho religioso lembrando nos sermões e noutras grandes cerimônias do
Nascimento, do Casamento, da Morte, que homem não é mais que cinza, a não ser que saiba
amar os seus irmãos até ao ponto de oferecer a face esquerda a quem já o esbofeteou na direita.
a
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e os Aparelhos Ideológicos de Estado. 3 edição. Lisboa:
Editorial Presença, 1980, p. 63. Em outra obra, Althusser afirma que foram os burgueses que
fizeram com que os homens acreditassem que estavam construindo a história e ao mesmo tempo
esconderam a realidade “sobre a importância decisiva das condições naturais, materiais do
trabalho humano”, porque “são eles que as detém”. E conclui: “Os burgueses não são tolos”.
ALTHUSSER, Louis. Posições – 1. Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 39.
50
supremacia da vontade individual); d) a exclusão (de parte cada vez mais
significativa da população) como uma circunstância indispensável. Ainda assim é
plástico o seu discurso, pois varia conforme interesses mais imediatos na
perpetuação do modelo da sociedade de trocas. Exemplo disso é a alteração do
discurso da igualdade entre capital e trabalho, numa primeira fase de
consolidação do capital, para outro, de necessidade de intervenção na vontade,
com a criação de direitos capazes de tornar boa a vida do trabalhador
assalariado, como forma de enfrentamento das crises do sistema. Do mesmo
modo, o discurso mais recente de consenso, caracterizado pela possibilidade de
instauração de uma ordem democrática inclusiva e satisfatória, altera a forma de
lidar com as questões sociais do capitalismo, sem alterar a base ideológica que o
sustenta119.

Parece evidente a intenção positiva de uma proposta de democracia


assim concebida. Porém, o que revela o compromisso com a forma capital e,
portanto, com a perpetuação de desigualdades e da miséria, é a manutenção do
engodo kantiano de que existe um momento prévio, no qual as pessoas
comprometem-se socialmente a cumprir os pressupostos necessários para que
essa democracia de inclusão se perfectibilize120. Isso é expressão da ideologia do
capital: assim como a liberdade, também a democracia figura apenas como um
estereótipo121 . Um conceito destituído de conteúdo material, que serve para
consolidar e promover a aceitação de valores dominantes. Em outras palavras,
anestesia o “senso comum” para a realidade de que não há verdadeira
democracia sem a participação efetiva das pessoas para as quais a ordem
jurídica pretensamente foi criada.

119
Essa ordem, segundo Habermas, depende de “quatro pressuposições”: de que tem de haver
publicidade e inclusão; de que os direitos devem ser comutativos e iguais; de que devem ser
excluídos todos os enganos e ilusões e, por fim, de que não pode haver coação. HABERMAS,
Jürgen. Agir comunicativo e razão destranscendentalizada. Tradução Lucia Aragão. Rio de
Janeiro: Tempo Brasileiro, 2002, p. 67.
120
Não é difícil perceber a irrealidade da premissa de que todos estariam envolvidos no discurso
social. Ela ignora o fato de que a nossa sociedade é composta por um percentual significativo de
pessoas que não tem o que comer nem onde morar, não trabalham, não constam nas pesquisas
oficiais e, certamente, não participam da consertação da vida pública, como pretende Habermas.
121
Palavra que provoca “os mesmos efeitos de referência e distintos efeitos éticos”, por conter
uma carga emotiva que aproxima o receptor da mensagem, do campo de referências valorativas
do emissor, “encobrindo a atitude valorativa com roupagens descritivas”. WARAT, Luiz Alberto. O
a a
direito e sua linguagem. 2 versão. 2 edição aumentada. Porto Alegre: Sergio Fabris, 1995, p.
69.
51
A noção contemporânea positiva de trabalho se inscreve nessa mesma
lógica de reprodução da ideologia do capital. O trabalho é meio de realização
pessoal, porque atende a necessidade humana de eternizar-se. Freud, por
exemplo, reconhece que é o trabalho que fornece ao homem “um lugar seguro
numa parte da realidade, na comunidade humana”122. Entretanto, nem mesmo a
Freud escapa o fato de que a realidade do capital nega sistematicamente a
realização pelo trabalho123 . O trabalho torna viável a existência, a vida em
comunidade, o convívio com os outros homens124, ou seja, resta sempre algo de
humano na relação de trabalho125. Enquanto houver homem trabalhando, o
caráter do trabalho como forma de ser/estar no mundo estará, em alguma
medida, presente126. É por isso que Marx fala no ser genérico, que se constitui e

122
LUKÁCS, György. Para uma ontologia do ser social I. São Paulo: Boitempo, 2012.
123
A possibilidade que essa técnica (trabalhar) oferece de deslocar uma grande quantidade de
componentes libidinais, sejam eles narcísicos, agressivos ou mesmo eróticos, para o trabalho
profissional, e para os relacionamentos humanos a ele vinculados, empresta-lhe um valor que de
maneira alguma está em segundo plano, quanto ao de que goza como algo indispensável à
preservação e justificação da existência em sociedade. A atividade profissional constitui fonte
de satisfação especial, se for livremente escolhida, isto é, se, por meio de sublimação, tornar
possível o uso de inclinações existentes, de impulsos instintivos persistentes ou
constitucionalmente reforçados. No entanto, como caminho para a felicidade, o trabalho
não é altamente prezado pelos homens. Não se esforçam em relação a ele como o fazem em
relação a outras possibilidades de satisfação. A grande maioria das pessoas só trabalha sob a
pressão da necessidade, e essa natural aversão humana ao trabalho suscita problemas sociais
extremamente difíceis”. (grifos meus) Freud reconheceu, portanto, que somos seres sociais que
se constituem no e através do trabalho, mas negligenciou o fato de que num contexto capitalista,
não há uma escolha efetiva. Muito provavelmente, o fez por não ser este seu objeto de estudo.
Freud não estudou o trabalho humano e suas implicações, mas sim o indivíduo, a fim de
demonstrar que somos formados também por um inconsciente que ao mesmo tempo nos auxilia,
nos delimita e nos condiciona. FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão, O mal-estar na
civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago, 2006, p. 88.
124
Freud observa, no texto O Mal Estar na Civilização, que quando o homem percebe que “estava
literalmente em suas mãos melhorar sua sorte na Terra através do trabalho não lhe pode ter sido
indiferente que outro homem trabalhasse com ele ou contra ele”. FREUD, Sigmund. O futuro de
uma ilusão, O mal-estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). Rio de Janeiro: Imago,
2006, p. 105.
125
Segundo Wandelli, apesar de reconhecer que o capital institui “uma ordem destrutiva de suas
próprias fontes de valor, a natureza e os seres humanos”, sendo por isso mesmo “uma ordem
para a morte”, é possível, dentro do sistema do capital, encontrar um espaço de luta que considere
a dupla ambivalência das normas de proteção ao trabalho. Ao mesmo tempo em que sustentam e
tensionam o sistema do capital, abrem espaço para o “reconhecimento de subjetividades
trabalhadoras que promovam o engajamento eficaz” e, com isso, permitam a realização do homem
(ainda que de forma parcial) pelo trabalho. WANDELLI, Leonardo Vieira. O Direito Humano e
Fundamental ao Trabalho. Fundamentação e exigibilidade. São Paulo: LTr, 2012, p. 196.
126
Decio Saes, ao tratar do período de escravidão no Brasil, bem observa que mesmo ali, numa
sociedade escravista, não havia como eliminar completamente o que de humano há no homem
que trabalha. Anota que revoltas e fugas de escravos ocorreram desde o início do processo de
escravização, e que era inviável ao direito coisificar “integralmente o produtor direto sujeito à
coerção física exercida pelo proprietário dos meios de produção”. SAES, Décio. A formação do
Estado burguês no Brasil (1888-1891). São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 108.
52
se relaciona consigo mesmo (e com os outros) como o gênero vivo127 . Entretanto,
o que é preciso pontuar é justamente o modo como a relação social de trabalho
assujeita o caráter emancipatório do ato de trabalhar. E é isso que a mais bem
intencionada doutrina social parece não enxergar.

Em uma passagem dos seus Manuscritos, Marx refere que na


sociedade do capital:
O trabalhador só sente, por conseguinte e em primeiro lugar, junto a si
quando fora do trabalho e fora de si quando no trabalho. Está em casa
quando não trabalha e, quando trabalha, não está em casa. O seu
trabalho não é, portanto voluntário, mas forçado, trabalho obrigatório. O
trabalho não é por isso a satisfação de uma carência, mas somente um
128
meio para satisfazer necessidades fora dele .

Essa passagem evidencia o fato de que a ideologia do capital aniquila


não o trabalho vivo, mas seu potencial emancipador129. E o faz justamente
porque, ao dar liberdade ao homem que trabalha, elimina sua possibilidade de
escolha.

A sociedade do trabalho, num contexto capitalista, portanto, não é a


sociedade que investe nas condições de emancipação próprias da atividade de
trabalhar, mesmo sob a perspectiva do direito fundamental do trabalho. É
importante ressaltar isso: trabalho é sempre, em alguma medida, espaço de
construção da subjetividade e dos laços sociais. Porém, não é essa característica
inerente ao ato de trabalhar que o capital irá valorizar, nem mesmo quando
estivermos lidando com trabalhos especializados ou em condições muito
favoráveis de realização.

127
MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 84.
128
MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 83.
129
A possibilidade real e insuscetível de ser eliminada, que o trabalho tem de realizar o indivíduo é
justamente o que torna mais perversa a cooptação promovida pela/na sociedade do capital. O
trabalho vivo é essa condição de realizar-se como indivíduo e ser social, que o trabalho
proporciona ao homem, mesmo nas condições mais abjetas. “O trabalho vivo é a subjetividade
sem valor, no sentido de que valor implica o considerar de uma mediação para o capital, como já
subsumido na forma de força de trabalho. Por isso, o trabalho vivo tem dignidade, o que indica
essa irredutibilidade frente a todo o processo de subsunção , esse estar sempre mais além dessa
totalidade que a subsume. Trata-se, portanto, de uma exterioridade irredutível à completa
objetivação no capital, direito de resistência”. WANDELLI, Leonardo Vieira. O Direito Humano e
Fundamental ao Trabalho. Fundamentação e exigibilidade. São Paulo: LTr, 2012, p. 54. É
mesmo comum perceber que, inclusive, em trabalhos notadamente coisificantes, como o do
ascensorista, por exemplo, os indivíduos que o realizam conseguem dele extrair positividade,
fazendo amizades, contribuindo para alterar o ambiente em que trabalham, atuando sobre o meio
e as pessoas com as quais convivem.
53
É ingênuo, portanto, lutar pela dignidade no trabalho sem questionar a
relação de trabalho assalariado e, pois, o próprio sistema capitalista de produção.
É nesse sentido a conclusão de Marx e, por isso, ele afirma que o trabalhador
torna-se “servo do seu objeto” e “para que possa existir, em primeiro lugar, como
trabalhador e, em segundo, como sujeito físico” ingressa necessariamente na
relação social de troca que produz o estranhamento 130 .

A Psicanálise, essa "ciência" tipicamente moderna, fruto do mal estar


do ser humano na modernidade, por todos os aspectos que já foram até aqui
ressaltados, percebe a facilidade com que essa ideologia do capital se reproduz
como decorrência de nossa condição de ser-ainda-não131. Temos necessidade de
conviver em comunidade, para disfarçar, esconder, inclusive de nós mesmos, o
horror pela condição de seres finitos. A aquisição de mercadorias aparece, nesse
quadro, como a promessa do gozo que anestesia a falta que nos constitui132.

Enquanto sujeitos capazes de comprar e de vender, estamos reduzidos


à condição de coisa (coisificação ou reificação), algo que, se por um lado nos
alivia da consciência de nossa condição humana, por outro nos deixa
extremamente sós, porque impede a criação de laços sociais133. É exatamente
isso o que torna tão difícil lidar com questões relativas às doenças causadas pelo

130
MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 82.
131
A venda da força de trabalho como mercadoria permite uma espécie de autoengano: o
trabalhador renuncia à condição de Eu, para se tornar sujeito à forma social, que o despe da
necessidade de reconhecer e considerar sua condição humana. É a nossa insuportável consciência
da finitude que facilita a absorção e a naturalização desse engodo. LACAN, Jean-Jacques. O
Seminário. Livro 16. De um outro ao outro. São Paulo: Zahar, 2008, p., p. 42.
132
É interessante observar que, na Filosofia, a discussão acerca do reconhecimento da finitude
humana e de suas implicações para a racionalidade construída e disseminada em cada período
histórico ocupa lugar central. Em livro recente, Ernildo Stein discute essa temática, ao investigar as
imbricações da metafísica e da fenomenologia. Ele define como metafísica ontoteológica, a que se
forma a partir do conceito de motor imóvel, de Aristóteles, cuja vinculação a um “ser supremo” é
condição que decorre da necessidade humana de compreender-se a partir de sua própria finitude.
Por sua vez, a fenomenologia iniciada por Heidegger é proposta, por Stein, como outra forma de
metafísica, que também encontra origem em Aristóteles, na sua ideia de “ciência procurada”. A
grande questão filosófica é deslocada, da facticidade para a finitude, “comprometendo a questão
do ser com o problema do ser humano”. O tema é sempre a compreensão do mundo em que o
homem vive. O que a fenomenologia percebe é que este homem está no mundo e, portanto,
discutir a existência de Deus ou a morte (a finitude) implica necessariamente discutir a condição de
ser-no-mundo, da qual não podemos nos afastar e com a qual estamos, desde sempre,
implicados. STEIN, Ernildo. Às voltas com a metafísica e a fenomenologia. Ijuí: Unijuí, 2014.
133
“O sistema do capital se baseia na alienação do controle dos produtores. Neste processo de
alienação, o capital degrada o trabalho, sujeito real da reprodução social, à condição de
objetividade reificada – mero fator material de produção e com isso derruba, não somente na
teoria, mas na prática social palpável, o verdadeiro relacionamento entre sujeito e objeto”.
MÉSZÁROS, István. Para Além do Capital. São Paulo: Boitempo Editorial, 2006, p. 126.
54
trabalho ou excesso de jornada. As inúmeras decisões em que um juiz, para
negar o direito à indenização por dano existencial decorrente de jornadas
exaustivas, justifica-se com o fato de que ele próprio trabalha mais de doze horas
por dia, são apenas expressões disso134 .

A alienação da força de trabalho como motor da forma de organização


social que adotamos, e o estranhamento que tal circunstância traz consigo, é
determinante para que os seres humanos, para os quais está supostamente
destinada a condição de sujeito e objeto de relações de poder, criem
subjetividades cooptadas pelo discurso dominante, e passem a reproduzi-lo,
inclusive contra seu interesse mais imediato135. Foucault observa que o Direito é
uma das principais formas de veiculação dessas “relações de dominação”,
exatamente porque tem por função estabelecer e cobrar a observância da
disciplina que permite a perpetuação dessas características do capital136.

134
Evidentemente, argumentos dessa espécie partem de pressupostos falaciosos, cuja
perversidade por vezes sequer é percebida pelo intérprete aplicador da legislação trabalhista que,
invocando circunstâncias pessoais, nega direitos duramente conquistados. O juiz, que parte de
uma realidade econômica, de organização e de autonomia no trabalho em tudo diversa daquela
fruída pelo operário cujo processo irá examinar, ao valer-se dessa espécie de raciocínio,
institucionaliza a exceção. Trata-se de justificar um equívoco com outro, como se os erros se
compensassem, em lugar de somarem. Na dura realidade das relações de trabalho, da grande
maioria dos trabalhadores brasileiros, o desrespeito aos direitos trabalhistas não pode ser
comparado às situações experimentadas pelos juízes. Daí a validade do exemplo, que revela
claramente o processo de cooptação da subjetividade, que age de forma sutil, transformando a
todos em agentes de perpetuação da lógica do capital.
135
“O homem se torna ao mesmo tempo sujeito e objeto do conhecimento, se reduplica naquilo
que há de empírico e no que há de transcendental, é quem produz a representação e deve
desmascarar a ideologia pela ciência”. (...) Portanto, para Foucault, as ciências humanas tentam
definir o modo de ser do homem (vida, trabalho, linguagem) fora do campo que lhe é próprio. (...).
O que para Hegel é a possibilidade mesmo da consciência enquanto duplicação na ‘consciência
de si’, para Foucault é a armadilha que transforma o homem em ‘representação’. O ‘Homem’ não
pode mais se autoproclamar o locus da verdade porque é centro da razão. Sua razão, ou sua
consciência esclarecida, nada mais é que expressão de um inevitável particularismo, uma
pretensão de verdade... um discurso. O problema da consciência está, também, ligado
diretamente à questão da identidade. (...) uma espécie de mito do eterno regresso a uma origem
na qual o homem se reencontraria com sua essência”. IASI, MAURO. O Dilema de Hamlet. O Ser
e o não ser da Consciência. São Paulo: Viramundo, 2014, p. 144-5.
136
O autor refere que “em qualquer sociedade, existem relações de poder múltiplas que
atravessam, caracterizam e constituem o corpo social e que essas relações de poder não podem
se dissociar, se estabelecer nem funcionar, sem uma produção, uma acumulação, uma circulação
e um funcionamento do discurso. Não há possibilidade de exercício do poder sem certa economia
dos discursos de verdade que funcione segundo essa dupla exigência e a partir dela”. “O poder
não para de nos interrogar, de indagar, registrar e institucionalizar a busca da verdade,
profissionaliza-a e recompensa-a. No fundo, temos que produzir a verdade como temos que
produzir riquezas”. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 2ª edição. São Paulo - Rio de
Janeiro: Paz e Terra, 2015, p. 279.
55
Esse encontro da Psicanálise com a percepção marxiana da cooptação
de subjetividades é interessante porque permite a visualização mais ampla do
“quadro” em que necessariamente nos inserimos na sociedade do capital. E,
portanto, do que aqui se compreende como ideologia do capital. Da perspectiva
do “ser genérico” ou do ser social, a ideologia burguesa constrói a noção de
liberdade como exercício da propriedade privada, cria a figura mítica do sujeito de
direitos e reproduz, de forma complexa, o discurso da autonomia que se funda,
exatamente, na ausência real de autonomia. Do perspectiva do indivíduo,
trabalhada pela Psicanálise, essa ideologia promove o abandono do homem às
suas próprias convicções, promovendo uma “cisão pela qual o ser humano passa
a possuir uma “dupla existência””, na qual sua “vida genérica” aparentemente
opõe-se a sua “vida egoísta”, e pela qual o ser humano “transforma os outros
seres humanos em um meio e acaba por degradar a si mesmo como mero meio,
transformando-se em ‘joguete de poderes estranhos’”137.

A cooptação da subjetividade, cujo melhor retrato social encontra-se na


cultura da mercantilização de tudo, também se expressa, ainda de acordo com
Foucault, no controle/ invasão da esfera privada138 .

137
IASI, Mauro Luis. Ensaios sobre a consciência e emancipação. 2ª edição. São Paulo:
Expressão Popular, 2011, p. 51.
138
Um de seus elementos de controle da vida privada, segundo Foucault, é exatamente o
“panoptismo”. Refere-se ao Panopticon de Bentham, um edifício em forma de anel que poderia
servir tanto como prisão, quanto uma escola ou uma fábrica. Pequenas celas, todas voltadas para
o centro do prédio, em que haveria uma torre “de controle”. O olhar do vigilante da torre poderia
então “atravessar toda a cela”, na qual não deveria haver “nenhum ponto de sombra”. O vigilante
poderia ver tudo, sem que ninguém pudesse vê-lo. O autor demonstra que as revoluções
burguesas, ao promoverem uma radical alteração na forma de produção, dando materialidade para
a riqueza, criaram a necessidade desse controle. As leis foram então feitas para serem
obedecidas pelos “pobres”, aqueles potencialmente capazes de “saquear” a fortuna dos ricos: “O
que está na origem do processo que procurarei analisar é a materialidade da riqueza. Na verdade,
o que surge na Inglaterra do fim do século XVIII, muito mais, aliás, do que na França, é o fato da
fortuna, da riqueza se investir cada vez mais no interior de um capital que não é mais pura e
simplesmente monetário. (...) Ora, essa fortuna constituída de estoques, matérias-primas, objetos
importados, máquinas, oficinas, etc, está diretamente exposta à depredação. Toda essa população
de gente pobre, de desempregados, de pessoas que procuram trabalho tem agora uma espécie de
contato direto, físico, com a fortuna, com a riqueza. (...) O grande problema do poder na Inglaterra
nesta época é o de instaurar mecanismos de controle que permitam a proteção dessa nova forma
material de fortuna. (...) A polícia de Londres nasceu da necessidade de proteger as docas,
entrepostos, armazéns, estoques, etc. (...) A segunda razão é que, tanto na França, quanto na
Inglaterra, a propriedade de terras vai mudar igualmente de forma, com a multiplicação da
pequena propriedade, a divisão e delimitação das propriedades. (...) E, sobretudo entre os
franceses, haverá essa perpétua ideia fixa da pilhagem camponesa, da pilhagem da terra.(...) Foi,
portanto, essa nova distribuição espacial e social da riqueza industrial e agrícola que tornou
necessários novos controles sociais no fim do século XVIII”FOUCAULT, Michel. A verdade e as
a
formas jurídicas. 4 edição. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2013, p. 88-101.
56
A vigilância contínua, aliada à punição e a recompensa, constitui –
nesse contexto - não apenas a ideologia da convivência na sociedade do capital,
mas também, e justamente por isso, a ideologia do Direito, sobretudo no âmbito
penal. Mesmo o ambiente de trabalho foi e ainda é claramente orientado por essa
“necessidade” de segurança. A prática de “fábrica-prisão” era comum na Europa
do início do Século XIX, mas logo se tornou insustentável economicamente139.
Entretanto, as fábricas conservaram “certas funções que elas desempenhavam”,
a partir de técnicas de construção de “cidades operárias” e de vigilância constante
e cooptação integral do tempo no ambiente de trabalho140.

O que resta desse controle panóptico no século XXI é bem visível.


Fábricas, escolas e prisões reproduzem uma mesma racionalidade de controle e
formatação dos indivíduos. Como aparelhos de reprodução da ideologia do
capital, “se encarregam de toda a dimensão temporal da vida” desses sujeitos.
Foucault chega a nominar esse fenômeno de “rede institucional de sequestro”,
relacionando, inclusive, a existência cada vez mais expressiva de escolas
públicas com a necessidade burguesa de controle e vigilância141.

As escolas, com seus currículos tantas vezes irreais e com sua rígida
disciplina, formatam seres humanos para que pensem conforme a maioria, para
que se ajustem, de tal modo a merecer a declaração de Rubem Alves, no sentido
de que “é preciso que se faça algo para proteger a inteligência dos jovens”142 . As
prisões revelam-se como formas de assujeitamento e mesmo aniquilação do que
há de criativo e humano naqueles que para ali são enviados143 .

139
No mesmo texto, Foucault traz o exemplo de uma fábrica de mulheres na França de 1840, com
400 operárias, na qual havia um regulamento dispondo sobre a rotina. As mulheres tinham de
acordar às cinco horas da manhã, trabalhavam das 6h às 20h15min. Depois, jantavam e faziam a
oração coletiva. Descansavam apenas no domingo, considerado dia sagrado, no qual tinham de
fazer exercícios de leitura, escrita e recreação, além de cumprir o “dever religioso”. Não tinham
contato algum com o “mundo exterior” nem recebiam salário. O valor global correspondente ao
trabalho era pago apenas no momento em que saíam. FOUCAULT, Michel. A verdade e as
a
formas jurídicas. 4 edição. Rio de Janeiro: NAU Editora, 2013, pp. 107-8.
140
Idem, p. 111.
141 a
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 4 edição. Rio de Janeiro: NAU Editora,
2013, p. 114.
142
Em toda a sua obra, Rubem Alves insistentemente denunciou esse caráter ideológico do
ensino, que no Brasil conduziu ao caos na educação em escolas públicas. ALVES, Rubem. Lições
do velho professor. São Paulo: Papirus, 2013.
143
Como afirma Foucault, “a burguesia não se importa absolutamente com os delinquentes nem
com sua punição ou reinserção social, que não tem muita importância do ponto de vista
econômico, mas se interessa pelo conjunto de mecanismos que controlam, seguem, punem e
57
Nas famílias, nas prisões, nos hospitais, assim como nas fábricas ou
lojas, o culto à disciplina promove a reprodução de um saber específico e
perpetua relações de poder que tornam palatável a realidade (desigual e injusta)
do capital144. As relações privadas são regidas por regras inflexíveis, todas elas
destinadas a mostrar que em determinado ambiente existe um dominador e um
dominado, identificando relações de poder, nas quais, como afirma Foucault,
muitas vezes não se sabe quem detem esse poder, mas é possível identificar
claramente quem a ele se sujeita145.

A sociedade da disciplina, como denomina Foucault, foi engendrada


através de uma série de pequenos mecanismos de reprodução da ordem social,
direcionados ao controle do indivíduo146. O objetivo principal é coibir ameaças à
circulação e especialmente à manutenção da propriedade e da riqueza. A
disciplina, ao mesmo tempo em que aumenta as forças úteis do corpo, diminui
suas forças políticas, disseminando a necessidade de obediência147. Com isso,
também facilita as condições para a aceitação de um discurso que é radicalmente
diverso daquele que sustenta a própria realidade de trocas.

Essa “rede institucional” de captura da subjetividade alcança o tempo


de trabalho e o tempo de descanso, criando um “novo e curioso tipo de poder”.

reformam o delinquente”. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 2ª edição. São Paulo - Rio
de Janeiro: Paz e Terra, 2015, p. 288.
144
Segundo Foucault: “A aceitação de uma disciplina pode ser subscrita por meio de contrato; a
maneira como ela é imposta, os mecanismos que faz funcionar, a subordinação não reversível de
uns em relação aos outros, o mais-poder que é sempre fixado do mesmo lado, a desigualdade de
posição dos diversos parceiros em relação ao regulamento comum opõem o laço disciplinar e o
laço contratual, e permitem sistematicamente falsear este último a partir do momento em que tem
por conteúdo um mecanismo de disciplina. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro:
Vozes, 1997, p. 210.
145
“As disciplinas são portadoras de um discurso que não pode ser o do direito; o discurso da
disciplina é alheio ao da lei e da regra enquanto efeito da vontade soberana. As disciplinas
veicularão um discurso que será o da regra, não da regra jurídica derivada da soberania, mas o da
regra ‘natural’, quer dizer, da norma; definirão um código que não será o da lei, mas o da
normalização”. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. 2ª edição. São Paulo - Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 2015, pp. 138 e 293.
146
O controle panóptico, mediante o qual o dominado permanece visível, atomizado (separado de
seus pares) e vigiado constantemente, reforça a separação entre os membros de uma mesma
classe, evitando a possibilidade de insurgência contra o poder. Foucault afirma textualmente “se
são operários, não há roubos, nem conluios, nada dessas distrações que atrasam o trabalho,
tornam-no menos perfeito ou provocam acidentes”. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de
Janeiro: Vozes, 1997, p. 190.
147
“Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção
disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação
acentuada”. FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir. Rio de Janeiro: Vozes, 1997, p.133-134.
58
Um poder que, segundo Foucault, é ao mesmo tempo econômico, político,
judiciário e epistemológico. Tanto na escola, quanto no quartel ou no ambiente de
trabalho, o “patrão” ou diretor legitima-se politicamente como uma autoridade
interna e faz prevalecer sua vontade através de mecanismos de punição e
recompensa (judiciais), bem como de fórmulas de extração e controle do “saber”
de seus “subordinados” (epistemológicas)148 .

O conjunto de técnicas de poder e de reprodução desse “saber


direcionado” faz do tempo de vida e do próprio corpo humano, respectivamente,
tempo de trabalho e força de trabalho149. E torna admissível a convivência de
discursos contrários, que ao fim e ao cabo fundamentam-se numa mesma
premissa: a de que a forma capital é atemporal e insuperável. Atinge a
subjetividade do trabalhador, mas também a do tomador do trabalho150. Perverte
a todos, de modo que sequer é possível identificar nessa história quem figura o
papel do mal. O homem burguês se “satisfaz com sua própria alienação”, que se
opera, socialmente, a partir de pelo menos quatro aspectos151 .

Em primeiro lugar, o capital impõe a mediação nas relações humanas.


O trabalho, modo de constituição do sujeito e condição do ser-no-mundo, torna-
se, na sociedade do capital, trabalho útil, necessário à sobrevivência física e ao
acúmulo de mercadorias e, pois, trabalho estranhado. Disso decorre que, se o ser
humano precisa fazer-se mercadoria, uma vez que possui somente a si próprio
para oferecer no mercado, não há como pressupor que esse ser tornado
mercadoria, receba na tessitura social o mesmo respeito, as mesmas condições
igualitárias de bem viver, de que fruem aqueles poucos homens dotados das
condições de compra152 . O terceiro aspecto também está diretamente relacionado

148 a
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 4 edição. Rio de Janeiro: NAU Editora,
2013, pp. 117-9.
149 a
FOUCAULT, Michel. A verdade e as formas jurídicas. 4 edição. Rio de Janeiro: NAU Editora,
2013, p. 120.
150
Por isso, Marx afirma que “o homem se torna cada vez mais pobre” porque “carece cada vez
mais de dinheiro para se apoderar do ser hostil”. E, então, “cresce sua penúria à medida que
aumenta o poder do dinheiro”. MARX, Karl. Manuscritos econômico-filosóficos. São Paulo:
Boitempo, 2004, p. 139.
151
ALVES, Giovanni. Dimensões da precarização do trabalho. Ensaios de sociologia do
trabalho. Bauru-SP: Canal 6 Editora, 2013, p. 132.
152
MARX já se referia a uma sociedade de compradores e vendedores, em que alguns têm
apenas a própria pele a oferecer em troca do valor necessário à subsistência. Evidenciava,
portanto, a circunstância de que o modo de organização social baseado na troca é geneticamente
excludente; não é pra todos. Necessariamente separa os seres humanos em dois tipos
59
aos anteriores. O capitalista precisa negligenciar (não ver) a coisificação que se
opera nas relações de trabalho, para poder agir como tal e obter lucro mediante a
utilização do outro como meio. Em quarto aspecto, por fim, se a sociedade se
organiza a partir da troca, da compra e venda de mercadorias, é pressuposto
indispensável que nem todos tenham acesso a essas mercadorias. Trata-se da lei
da oferta e da procura153 . Quanto melhor, mais cobiçado e menos acessível for o
produto, mais valorizado será, seja ele um objeto, um homem, um animal ou uma
árvore. Se os bens, mesmo os de consumo necessário, não são para todos, então
a existência de um contingente de pessoas à margem do sistema é da natureza
mesma do capital.

Essa perversão se caracteriza, em Marx, sob a forma do fetiche da


mercadoria, condição tal qual o ser humano se apresenta e se relaciona com os
demais, ou seja, como coisa. Quando examina o comportamento “meramente
atomístico dos homens em seu processo social de produção”, Marx observa que o
fato do produto do trabalho assumir universalmente a forma da mercadoria faz
com que as próprias relações de produção se constituam independentemente do
controle e da ação individual consciente. Os seres humanos passam a se
conceber e a se relacionar uns com os outros como mercadorias154.

Na leitura psicanalítica, o fetiche da mercadoria é uma espécie de


perversão. O “perverso” nega e ao mesmo tempo reconhece a lei que o sujeita155.
É o que ocorre na relação de trabalho. O homem sabe sua condição humana, sua
necessidade de realizar-se e realizar a sua humanidade através do trabalho, mas,
ao mesmo tempo, reconhece-se como mercadoria, não porque isso o diverte, mas
porque somente assim operam-se as relações sociais num ambiente
capitalista156 .

absolutamente diversos, sob a ótica do capital. MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo:
Boitempo, 2013, p. 251
153
De que tratam, com muita naturalidade, todos os economistas, e que é salientada por Marx,
quando se refere à relação que torna os vendedores de força de trabalho sujeitos à extrema
desvantagem em relação aos compradores dessa mercadoria. MARX, Karl. O Capital. Livro I. São
Paulo: Boitempo, 2013, p. 839.
154
MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 169.
155
ROUDINESCO, Elisabeth. A parte obscura de nós mesmos. Uma história dos perversos.
São Paulo: Zahar, 2008, p. 49.
156
GOES, Clara de. Psicanálise e Capitalismo. Rio de Janeiro: Garamond, 2008, p. 153.
60
Há um verdadeiro deslocamento do prazer. O gozo, algo de que o ser
humano se utiliza para “impedir que tudo exploda”, para tornar suportável a
existência humana, é deslocado para a realização de um trabalho assalariado ou
para a aquisição de um bem (consumo). O “imperativo do gozo” que comanda a
sociedade atual resulta um “empobrecimento da vida subjetiva”, tornando os
homens incapazes de suportar as perdas e constantemente insatisfeitos. Transita,
portanto, no campo da negação do Eu e daí se extrai sua íntima relação com a
lógica do capital157.

Isso acarreta consequências sociais importantes e sobre elas Marx já


havia alertado. Parodiando a moral bíblica que rejeitava a riqueza (Sermão da
Montanha), propondo sua inversão, Marx sintetiza essa “moral burguesa”:

Quanto menos comeres, beberes, comprares livros, fores ao teatro, ao


baile, ao restaurante, pensares, amares, teorizares, cantares, pintares,
esgrimires, etc, tanto mais tu poupas, tanto maior se tornará o teu
tesouro que nem as traças nem o roubo corroem, teu capital. Quanto
menos tu fores, quanto menos externares a tua vida, tanto mais tens,
tanto maior é a tua vida exteriorizada, tanto mais acumulada tua
essência estranhada. Tudo o que o economista nacional te arranca de
vida e de humanidade, ele te supre em dinheiro e riqueza. E tudo aquilo
que não podes; teu dinheiro pode. (...)
Ao trabalhador só é permitido ter tanto para que queira viver, e só é
158
permitido viver para ter .

Trata-se de um princípio moral justamente porque se inscreve inclusive


na ordem do inconsciente. Não é preciso determinar a alguém que viva de
renúncias para acumular riquezas. Mesmo o mais rico dos homens não para de
desejar. A lógica do capital o fará crer que esse desejo poderá ser saciado pela
compra de mercadorias, ou seja, que o acúmulo substituirá a carência.

A função do Direito, sobretudo com a construção da categoria do


“sujeito de direitos”, é, portanto, obscurecer o “mero, simples, banal, momento

157
Em um artigo sobre a função da norma na sociedade moderna, a socióloga Heloísa Fernandes
observa que o indivíduo excessivo, desmedido, impetuoso, que desafia as normas postas, pode
não constituir um elemento de contestação ao sistema, mas ao contrário a exata resposta, o
sintoma da modernidade. Então, esse descaso com a ordem pode não ser o “enfraquecimento de
um conjunto de valores comuns” e sim o “fortalecimento massivo e crescentemente exclusivo
daqueles valores que construíram a modernidade”. FERNANDES, Heloísa Rodrigues. Um século
à espera de regras. Tempo Social. Revista de Sociologia da USP. São Paulo, 8(1):71-83, maio de
1996.
158
MARX, Karl. Manuscritos econômicos-filosóficos. São Paulo: Boitempo, 2004, p. 142.
61
subjetivo da troca de equivalentes”159 e pressupor uma noção de liberdade que
exalte a autonomia individual, mas ao mesmo tempo permita “tratar os indivíduos
como simples suportes de funções econômicas”, como meros “portadores de
funções permutáveis”160.

O Direito chancela essa “cooptação da subjetividade”, atribuindo


responsabilidade ao próprio indivíduo (explorado). A (falsa) liberdade expressa na
exaltação da autonomia individual e explicitada pela categoria do sujeito de
direitos é o que torna possível a disseminação e a quase impossibilidade de
contestação dessa responsabilidade:

A ideologia interpela os indivíduos como sujeitos. (...) a ideologia sempre


já interpelou os indivíduos como sujeitos, o que nos leva a precisar que
os indivíduos são sempre - já interpelados pela ideologia como sujeitos,
e nos conduz necessariamente a uma última proposição: os indivíduos
161
são abstratos relativamente aos sujeitos que sempre - já são .

O ser humano transformado em sujeito de direitos é o indivíduo


“interpelado como sujeito (livre)”, apenas e tão somente para que “se submeta
livremente às ordens” do mercado. A única opção do sujeito de direitos passa a
ser aceitar livremente a sua condição de sujeito, sua sujeição.

O estereótipo “sujeito de direitos” o desconecta de sua “significação de


base”. Ao ouvirmos a expressão “sujeito de direitos”, imediatamente pensamos
em alguém livre, capaz de negociar, destinatário das normas jurídicas. Entretanto,
trata-se de um sujeito abstrato, que não encontra suporte no trabalhador “de
carne e osso”, mas cuja definição serve para que a “mensagem do capital” – de
que há liberdade onde ela não existe – seja aceita de modo acrítico162 .

159
A ideologia jurídica faz “alusão ao real e ilusão do real, e que portanto não pode ser ‘corrigida’
ou ‘dissolvida’ pela exposição à luz da verdade da razão”. NAVES, Márcio Bilharinho. A questão
do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões, Dobra Universitário, 2014, p. 103-4.
160
Althusser afirma que é “na exploração capitalista que é a luta de classe capitalista fundamental”
que os indivíduos são marcados “de uma maneira irremediável na sua carne e na sua vida”, são
reduzidos a “apêndices da máquina”. É essa categoria jurídica que permite, também, a constituição
de um “gigantesco exército de reserva onde se vai tirar outros suportes anônimos para fazer
pressão sobre os suportes, que tem a chance de ter trabalho”. ALTHUSSER, Louis. Posições – 1.
Rio de Janeiro: Graal, 1978, p. 164.
161 a
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e os Aparelhos Ideológicos de Estado. 3 edição. Lisboa:
Editorial Presença, 1980, p. 102.
162 a a
WARAT, Luiz Alberto. O direito e sua linguagem. 2 versão. 2 edição aumentada. Porto
Alegre: Sergio Fabris, 1995, p. 72.
62
A construção filosófica da noção de sujeito de direitos é encontrada
especialmente em Hegel, como já salientado. Para ele, “o direito é forma” e a
forma direito “é determinada pela forma sujeito de direito” e a forma sujeito de
direito “é necessariamente universal”. É dever da pessoa “dar-se um domínio
exterior para a sua liberdade, a fim de existir como ideia”. A pessoa é, portanto,
“vontade infinita em si e para si” e tudo o mais, que pode constituir “domínio de
sua liberdade, determina-se como o que é imediatamente diferente e separável”.
Então:

O que é imediatamente diferente do espírito livre, e considerado este


como em si, é a extrinsecidade em geral: uma coisa, qualquer coisa de
não livre, sem personalidade e sem direito. A coisa, como a objetividade,
tem duas significações opostas: por um lado, quando se diz ‘é a mesma
coisa, trata-se da coisa e não da pessoa’, isso significa algo substancial;
por outro lado, porém, a coisa aparece em relação à pessoa (não no
sentido de sujeito particular) como o contrário do que é substancial,
como aquilo que por definição é apenas extrinsecidade. O que é
extrínseco para o espírito livre (que se deve distinguir da simples
consciência), o que é de uma maneira absoluta, em si e para si, tal como
a definição conceitual da natureza é a de ser a extrinsecidade em si
163
mesma .

Assim é que Hegel consegue separar o indivíduo livre das “coisas” em


relação às quais ele deve se comportar como proprietário e, ao mesmo tempo,
identificar tais coisas em tudo que é extrínseco “para o espírito livre”, inclusive a
própria força de trabalho164.

A exigência de “liberação da propriedade” em Hegel é uma “exigência


mais ampla pela erradicação de tudo que resta dos privilégios feudais”165. Tem,
portanto, uma razão histórica precisa: a necessidade de transformar radicalmente
as bases das relações sociais, ultrapassando os paradigmas da filosofia clássica;
construindo uma nova racionalidade e, pois, uma nova ideologia. A plenitude da

163
HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins
Fontes, 1997, p. 46.
164
“A sociedade capitalista efetivamente se apresenta como somatória de átomos, como
sociedade ‘na qual todos valem como cada um’. É, portanto, a efetiva atomização da sociedade
que apresenta esse ‘cada um’ sob a pura forma idêntica do sujeito de direito, como figuração
parcial porque abstratamente desconectada da totalidade à qual pertence. Essa atomização é o
resultado de um longo processo histórico”. KASHIURA JR, Celso Naoto. Sujeito de direito e
capitalismo. São Paulo: Outras Expressões, Dobra Universitário, 2014, p. 89-93.
165
Idem, p. 94.
63
propriedade surge, na obra de Hegel, como decorrência de uma liberdade que se
realiza através da personalidade jurídica:

Tudo aquilo em que a vontade livre se exterioriza há de ser propriedade


do sujeito dessa vontade, uma coisa investida pela vontade do sujeito
não pode ser excluída do direito de propriedade desse sujeito. Ao
mesmo tempo, não pode haver sujeito incapaz de investir as coisas com
166
a sua vontade, de se tornar pleno proprietário .

O que sustenta, da perspectiva filosófica, a noção de sujeito de direitos


é a premissa da separação entre sujeito e objeto, que já animava a Filosofia
clássica. Agora, porém, em lugar de situar o conhecimento na “coisa”, situa-se o
conhecimento no “sujeito”. A “razão pura” kantiana é a primeira expressão desse
movimento em direção à construção do “sujeito de direitos”, exatamente porque
compreende o homem como ser capaz de apreender o mundo167.

A categoria jurídica do sujeito de direitos é emblemática do


compromisso que o Estado (burguês), e as normas jurídicas que ele produz, tem
com o capital. Para que haja a troca é preciso que os agentes da (re)produção da
forma-mercadoria já se apresentem na estrutura social como “sujeitos de direito,
operando relações sociais concretas, quando os Estados os definem formalmente
como tais e lhes dão os contornos peculiares”168 . O Direito é o meio de
conformação dessa realidade capitalista; os sujeitos de direito são seus
reprodutores diretos169 :

A subordinação a um homem como tal, enquanto indivíduo concreto


significa na sociedade de produção mercantil a subordinação a um
arbítrio, uma vez que isso equivale à subordinação de um proprietário de
mercadorias perante o outro. Eis a razão por que também aqui a coação

166
Hegel, ao contrário de Kant, refuta a dicotomia entre direito real e direito pessoal, pois se todo
direito “decorre do sujeito de direito, todo o direito é então um direito de personalidade”.
KASHIURA JR, Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Outras Expressões,
Dobra Universitário, 2014, p., p. 102-3 e 112.
167
HEIDEGGER, Martin. Introdução à Filosofia. Trad. Marco Antônio Casanova. São Paulo:
Martins Fontes, 2008, pp. 306-23.
168
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 60.
169
Para Althusser, a escola é o principal aparelho ideológico de Estado, que desde muito cedo
forja-nos para que exerçamos a função de sujeitos de direito. Exerce papel no “concerto” do
capitalismo, embora “nem sempre se preste muita atenção à sua música”, de “tal maneira
a
silenciosa”. ALTHUSSER, Louis. Ideologia e Aparelhos Ideológicos de Estado. 3 edição.
Lisboa: Editorial Presença, 1980, p. 64.
64
não pode surgir sob a forma não camuflada, como um simples ato de
oportunidade. Ela deve aparecer antes como uma coação proveniente
de uma pessoa coletiva abstrata e que é exercida não no interesse do
indivíduo donde provém, pois numa sociedade de produção mercantil
cada homem é um homem egoísta, porém, no interesse de todos os
membros que participam nas relações jurídicas. O poder de um homem
sobre outro se expressa na realidade como o poder do direito, isto é,
170
como o poder de uma norma objetiva imparcial” .

A categoria do sujeito de direitos valoriza o caráter egoísta da natureza


humana, a que fiz referência anteriormente. O sujeito passa a ser sujeito jurídico
enquanto “proprietário de mercadorias abstrato e transposto para as nuvens”. A
vontade humana, em sua relevância jurídica, “tem o seu fundamento real no
desejo de alienar, na aquisição, e de adquirir, na alienação”. E, para que tal
desejo se realize, torna-se indispensável “que haja mútuo acordo entre os desejos
dos proprietários de mercadorias”171.

Esse mútuo acordo é o contrato, a categoria jurídica que – legitimando


a atuação do indivíduo como sujeito de direitos - complementa a base jurídica da
modernidade. O contrato é definido por Hegel com a seguinte afirmação:

A propriedade, que no que tem de existência e extrinsecidade já não se


limita a uma coisa, mas inclui também o fator de uma vontade (por
172
conseguinte estranha), é estabelecida pelo contrato .

O contrato é produto do livre-arbítrio, expressão de uma “vontade


idêntica” expressada por dois sujeitos livres, cujo objeto é “exterior e particular”,
passível de ser alienado173. Na relação de troca, segue Hegel, o contrato é real,
porque “cada um dos contratantes constitui a totalidade daqueles dois
momentos”, de aquisição e de alienação de propriedade e, portanto, cada
contratante “vem a ser e continua a ser proprietário”174.Logo, é o contrato que

170
PACHUKANIS, E.B. Teoria Geral do Direito e Marxismo. São Paulo: Editora Acadêmica,
1988, p. 98.
171
“Juridicamente esta relação aparece como contrato, ou como acordo, entre vontade
independente”. MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo,
2013, p. 78.
172
HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins
Fontes, 1997, p. 70.
173
Idem, p. 72.
174
HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins
Fontes, 1997, p. 73.
65
revela o sentido da propriedade: “o sujeito, que se apropria das coisas pela
exteriorização da sua vontade, apropria-se para a troca”175.

A relação social que passa a ser sempre uma relação contratual é,


então, relação entre proprietários. E nela “cada um, por sua vontade e pela
vontade do outro, deixa de ser, permanece e torna-se proprietário”176 . Por essa
razão, Hegel critica o caráter contratualista que se atribui ao Estado e mesmo a
doutrina kantiana quanto à natureza contratual do casamento. Para ser contrato, é
preciso que “cada contratante conserve a mesma idêntica propriedade no que
adquire e no que cede”, propriedade que recai sobre “objetos de troca” que nessa
relação social tornam-se universais e, portanto, são iguais apesar de todas as
suas diferenças qualitativas177 .

O terceiro instituto jurídico que está no fundamento da racionalidade


moderna está posto: a propriedade privada, que figura como aquilo que revela o
sentido do sujeito de direito. Esse sujeito “existe para a propriedade, é definido
pela capacidade de ser proprietário”. Assim, a igualdade jurídica está justificada,
mesmo diante da desigualdade real. Além disso, está finalmente viabilizada a
troca de si mesmo: a venda da força de trabalho como um objeto que se separa
do “espírito livre” e se entrega por ato de genuína liberdade. Se a vontade livre “é
o núcleo do sujeito de direitos, isto significa que o sujeito de direito pode
apropriar-se de tudo que não seja ele mesmo”178.

Em um aparente paradoxo, pode Hegel então afirmar que “o sujeito de


direito não pode ser proprietário de si mesmo como sujeito de direito – pode sê-lo,
contudo, na medida em que o núcleo da sua personalidade jurídica pode tomar
como coisas, isto é, como o que é diverso de si, o seu corpo, a sua atividade e a

175
KASHIURA JR, Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Outras Expressões,
Dobra Universitário, 2014, p. 113.
176
Idem, p. 115.
177
Idem, p. 73.
178
“A capacidade de ser proprietário, na qual se inclui a capacidade de ser proprietário de si,
define o sujeito de direito. É, então, uma imediata consequência da elevação do homem a sujeito
de direito a sua redução - ou, como é o caso, a redução de suas ‘capacidades e habilidades’ – à
condição de coisa. A universalização da personalidade jurídica se realiza, ao mesmo tempo, como
universalização da coisificação do homem, da redução de si próprio às determinações da
propriedade”. KASHIURA JR, Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Outras
Expressões, Dobra Universitário, 2014, p. 119-23.
66
sua produção”179 . É assim que a própria capacidade de trabalho assume a forma
jurídica de mercadoria, de uma propriedade do sujeito180.

Por isso, criticando essa racionalidade burguesa, Marx refere de forma


sarcástica que a esfera da circulação (troca de mercadorias) é um verdadeiro
“Éden dos direitos inatos do homem”, reino da liberdade, da igualdade e da
propriedade modernas:

Liberdade, pois os compradores e vendedores de uma mercadoria, por


exemplo, da força de trabalho, são movidos apenas por seu livre-arbítrio.
Eles contratam pessoas livres, dotadas dos mesmos direitos.
O contrato é o resultado, em que suas vontades recebem uma
expressão legal comum a ambas as partes.
Igualdade, pois eles se relacionam um com o outro apenas como
possuidores de mercadorias e trocam equivalente por equivalente.
Propriedade, pois cada um dispõe apenas do que é seu. (...)
O antigo possuidor de dinheiro se apresenta agora como capitalista, e o
possuidor de força de trabalho, como seu trabalhador. O primeiro, com
um ar de importância, confiante e ávido por negócios, o segundo, tímido
e hesitante, como alguém que trouxe sua própria pele ao mercado e,
181
agora, não tem mais nada a esperar além da despela . (grifos meus)

Todos são livres para ter propriedade e iguais para negociá-la no


mercado. Daí a concepção do Direito como um conjunto exato e coerente de
regras capazes de gerar paz social, permitindo a convivência livre e
proporcionando o progresso.

É nesse sentido a afirmação de Marx, de que enquanto o escravo


romano “estava preso por grilhões ao seu proprietário”, o trabalhador assalariado
“o está por fios invisíveis. Sua aparência de independência é mantida pela
mudança constante dos patrões individuais e pela fictio juris do contrato”182.
Estado e Direito constituem, nesse contexto, estruturas de reprodução da

179
KASHIURA JR, Celso Naoto. Sujeito de direito e capitalismo. São Paulo: Outras Expressões,
Dobra Universitário, 2014, p. 124.
180
A pessoa só existe para as demais como proprietária e “todo direito é direito sobre uma coisa.
Da personalidade decorre todo o direito, mas sobre a personalidade nenhum direito recai”.
HEGEL, Georg. Wilhelm Friedrich. Princípios da Filosofia do Direito. São Paulo: Martins Fontes,
1997, p. 43.
181
MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 251.
182
MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 648.
67
ideologia do capital, alterando-se na quantidade, mas nunca alterando a
qualidade183.

Não é o Direito, portanto, que determina relações sociais baseadas na


troca, transformando a todos em compradores e vendedores de mercadoria.
Antes, é a forma econômica que gera, evidentemente de maneira complexa, as
categorias jurídicas que a sustentam. O Direito é o discurso que normaliza mais
do que normatiza essa realidade:

O direito é esse mecanismo subterrâneo de assujeitamento tão obscuro


e poroso que, mesmo quando nos opomos a ele, é nele e por ele que
existimos. Um mecanismo sem sujeito – embora o ‘sujeito’ seja a sua
categoria principal – inserido na própria estrutura social como um dos
seus elementos fundamentais, e ‘suportado’ pela organização da psique
184
humana, que elabora as condições de sua efetividade” .

Mesmo sob a perspectiva do Direito Social do Trabalho, o contrato de


trabalho continua sendo instrumento para mascarar o fato de que o trabalhador
assalariado foi despojado de seus meios de produção. Embora criado sob a
alegação da necessidade de garantir dignidade, o Direito do Trabalho não altera a
base jurídica em que a relação trabalho x capital se estabelece. Antes, como bem
observa Marx, “a regulamentação da jornada de trabalho se apresenta, na história
da produção capitalista, como uma luta em torno dos limites da jornada de
trabalho”, sem questionar a lógica da compra e venda185 . Por isso mesmo, serve
parar manter e estimular essa troca.

183
Em seu texto sobre a questão judaica, Marx refere que os direitos humanos, originalmente
“pensados” pelos norte-americanos e pelos franceses, nada mais são do que “os direitos do
membro da sociedade burguesa, do homem egoísta, do homem separado do homem e da
comunidade”. Por consequência, a aplicação prática do direito humano à liberdade “equivale ao
direito humano à propriedade privada”, ao direito de desfrutar, sem levar os outros em
consideração. Esse direito à liberdade como exercício egoísta da propriedade privada faz com que
“cada homem veja no outro homem não a realização, mas, ao contrário, a restrição de sua
liberdade”. Do mesmo modo, a igualdade burguesa é “igualdade da liberdade”, de modo que
“cada homem é visto uniformemente como mônada que repousa em si mesma”. Por fim, a
segurança é a “asseguração do egoísmo”, a proteção do proprietário contra todos os demais.
Nesse contexto, o único laço que une os seres humanos passa a ser “a necessidade natural, a
carência e o interesse privado, a conservação da sua propriedade e de sua pessoa egoísta”.
MARX, Karl. Sobre a questão judaica. São Paulo: Boitempo, 2013, pp. 47-51.
184
NAVES, Márcio Bilharinho. A questão do direito em Marx. São Paulo: Outras Expressões,
Dobra Universitário, 2014, p. 102.
185
MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 652-3.
68
Marx aponta como exemplo disso, que a jornada dos homens, fortes e
robustos, no século XVII era a mesma estabelecida como limite legal imposto ao
trabalho das crianças de até 12 anos em Massachusetts, em 1836 e 1858. A
intervenção estatal, mesmo reconhecida como resultado da luta de classes, não
faz mais, portanto, “do que legitimar a ação destruidora do capital”186 .

O Direito (do Trabalho) serve para manter a relação social de trabalho,


tal como ela necessariamente existe na sociedade do capital: como uma relação
de assujeitamento disfarçada por uma ideologia de igualdade e liberdade. A
imposição de normas jurídicas de regulação dessa relação social tem o claro
objetivo de comprimi-la “dentro dos limites favoráveis à produção de mais-valor, a
fim de prolongar a jornada de trabalho e manter o próprio trabalhador num grau
normal de dependência”. Por isso, Marx afirma que a legislação sobre o trabalho
assalariado é “desde sua origem cunhada para a exploração do trabalhador e, à
medida de seu desenvolvimento, sempre hostil a ele”187 .

A compreensão dessa característica fundamental do Estado e do


Direito - servir de forma adequada à reprodução e manutenção do capital - é o
que nos habilita a entender porque a mudança no conteúdo dos conceitos de
liberdade e de igualdade, que transparece nos discursos da segunda metade do

186
Por isso mesmo, as leis fabris na Inglaterra foram generalizadas apenas quando se fez sentir
“a gritaria dos próprios capitalistas por igualdade nas condições de concorrência, isto é, por
limitações iguais à exploração do trabalho” (pp. 343-60). E prossegue: “Se a universalização da
legislação fabril tornou-se inevitável como meio de proteção física e espiritual da classe
trabalhadora (...)ela acelera a concentração do capital e o império exclusivo do regime de fábrica”,
que passa a exercer um “domínio direto, indisfarçado”. (p. 570) “Amadurecendo as condições
materiais e a combinação social do processo de produção, ela também amadurece as contradições
e os antagonismos de sua forma capitalista e, assim, ao mesmo tempo, os elementos criadores de
uma nova sociedade e os fatores que revolucionam a sociedade velha”. MARX, Karl. O Capital.
Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 571.
187
Tratando da evolução da legislação trabalhista, refere que o Statute of Labourers de Eduardo
III, na Inglaterra, proibia, “sob pena de prisão, pagar salários mais altos do que o determinado por
lei” e que “desde o século XIV até 1825” (...) “considerava-se crime grave toda a coalisão de
trabalhadores”. Apenas em 1825, essas leis anticoalisões caíram parcialmente. A “lei parlamentar
de 29 de junho de 1871 pretendeu eliminar os últimos vestígios dessa legislação classista,
reconhecendo legalmente as trade unions. Mas uma lei parlamentar da mesma data restaurou, de
fato, a situação anterior sob nova forma”. Estabeleceu que “os meios a que os trabalhadores
podem recorrer numa greve ou lock-out” seriam “submetidos a uma legislação penal de exceção,
cuja interpretação cabe aos próprios fabricantes, em sua condição de juízes de paz”. Menciona
também o Decreto de 14 de junho de 1871, conhecida como Lei Le Chapelier, que “declarou toda
coalisão de trabalhadores como um atentado à liberdade e à Declaração dos Direitos Humanos,
punível com uma multa de 500 libras e privação, por um ano, dos direitos de cidadania ativa”.
MARX, Karl. O Capital. Livro I. São Paulo: Boitempo, 2013, p. 810-12.
69
século XX, não atinge os problemas reais. Antes, serve como oxigênio para a
sobrevida da forma capital.

No Brasil, as ideias acerca da função de um Estado capitalista não são


criadas na realidade das transformações econômicas, mas importadas como uma
espécie de “pacote” a ser aplicado com vista a naturalizar a lógica de trocas que
já prevalecia durante o período colonial, em que nossa economia sustentava-se
na produção rural e na mercantilização do escravo.

O interessante é perceber que não obstante a “importação” da lógica


do Estado liberal, o Brasil moderno é construído sob a perspectiva de ser colônia,
fundada na exploração escravagista188 e na máxima extração dos recursos
naturais189. Isso determinou a maior preocupação com a criação de estruturas
burocráticas, que atendessem às ordens de Portugal e viabilizassem a remessa
de riquezas190 . Portanto, o tecnicismo, a dificuldade em perceber a realidade por
trás das formas, a insistência em criar instâncias intermediárias que desestimulam
o debate, a crítica ou mesmo a simples reclamação, constituem mecanismos de
manutenção de poder que aqui foram incentivados e reproduzidos desde nossa
colonização191. Ainda assim, estava-se diante de uma estrutura de Estado liberal,

188
SAES, Décio. A formação do Estado burguês no Brasil (1888-1891). São Paulo: Paz e Terra,
1985, p.103. A crueldade no tratamento dos homens escravizados é evidenciada por Galeano, que
noticia como fato comum, no início do século XVIII, matar escravos esmagados entre os tambores
dos trapiches de açúcar, queimá-los vivos ou submetê-los aos suplícios da roda. Relata que o
mesmo ocorria em Cuba: os capatazes chicoteavam as mulheres grávidas, colocando-as, para
isso, num buraco, de costas para cima, para proteger a “peça” (a criança em seu ventre).
a
GALEANO, Eduardo. As Veias Abertas da América Latina. 50 reimpressão. Rio de Janeiro: Paz
e Terra, 2009, p. 114.
189
Os donatários das capitanias aqui instituídas, por exemplo, tinham por objetivo o plantio ou a
extração de minérios que serviriam para fomentar a riqueza e o avanço do capital tanto em
Portugal, quanto na Inglaterra. Nosso “ciclo do ouro”, durante o Século XVIII, serviu em grande
medida para “financiar uma grande expansão demográfica” na Europa, enquanto nosso algodão
era utilizado nas fábricas de tecido que lá já estavam inclusive sendo mecanizadas. Não houve,
portanto, um sistema feudal no Brasil. “Não havia, no sistema brasileiro, nem o feudo nem o
vínculo de vassalagem, triturados ambos pela economia mercantil, derretidos pelo açúcar”.
a
FAORO, Raymundo. Os Donos do Poder. V.I. Formação do Patronato Político Brasileiro. 10
edição. Coleção Grandes Nomes do Pensamento Brasileiro. São Paulo: Globo, Publifolha, 2000, p.
149.
190
O Estado brasileiro surge, portanto, atrelado à estrutura política portuguesa, centralizado
inicialmente em “governos gerais”, cuja função era, sobretudo, administrativa e militar, e em
seguida em “vice-reis”, diretamente ligados à Coroa Portuguesa. O ideal burguês de
desenvolvimento de uma estrutura burocrática capaz de sustentar e reproduzir a economia de
trocas, convivia com o objetivo de servir de fonte de recursos para a riqueza das nações
a
europeias. FURTADO, Celso. Formação Econômica do Brasil. 34 edição. São Paulo:
Companhia das Letras, 2007, p. 57-60.
191 13
MASCARO, Alysson Leandro. Estado e Forma Política. São Paulo: Boitempo, 20 , p. 79.
70
mínimo em relação à proteção ou promoção de direitos, mas que intervinha
quando se tratava de salvaguardar o mercado192.

Um Estado dissociado das instituições e personalizado pelo monarca.


Mas, ao contrário de neutro, um Estado que sempre desempenhou a função de
aparelho de reprodução da ideologia da classe dominante193. O Estado, portanto,
tal como o descreve Marx:

Pela emancipação da propriedade privada em relação à comunidade, o


Estado adquiriu uma existência particular a par, e fora, da sociedade
civil; mas ele nada mais é do que a forma de organização que os
burgueses se dão, tanto externa quanto internamente, para garantia
mútua da sua propriedade e dos seus interesses (...).
Como o Estado é a forma em que os indivíduos de uma classe
dominante fazem valer seus interesses comuns e condensa toda a
sociedade civil de uma época, segue-se que todas as instituições
comuns que adquirem uma forma política são mediadas pelo Estado.
Daí a ilusão de que a lei assentaria na vontade e, mais ainda, na
vontade dissociada da sua base real, na vontade livre. Do mesmo modo
194
o direito é, por sua vez, reduzido à lei .

É exemplo desse caráter ideológico do Estado, o fato de que na


Constituição de 1824, a escravidão se mantinha ao lado de preceitos liberais
provenientes da Declaração dos Direitos do Homem195 . Garantia-se, embora na
prática isso refletisse muito pouco, a liberdade de trabalho, indústria e comércio,
ao mesmo tempo em que a escravidão era legitimada196 . Essa “convivência” da
escravidão com o liberalismo era possível exatamente porque a escravidão era
uma forma de exploração mercantil, amoldada à realidade do capital e de extrema
utilidade para a “função” atribuída à colônia brasileira: produzir e fornecer

192 a
AVELÃS NUNES, António José. O Estado capitalista e as suas máscaras. 2 edição. Rio de
Janeiro: Lumen Juris, 2013, p. 18.
193
MARX, Karl. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel. 1843. Trad. Rubens Enderle e
Leonardo de Deus. São Paulo: Boitempo, 2005, p. 52.
194
MARX, Karl. ENGELS, Friedrich. A Ideologia Alemã. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p.
111-2.
195
A Constituição de 1824 era inspirada na Constituição francesa de 1814 e, portanto, embebida
dos ideais burgueses. SCHWARZ, Roberto. Ao vencedor as batatas. Forma literária e
a
processo social do romance brasileiro. 6 edição. São Paulo: Editora 34, 2012, p. 12.
196
No mesmo período, o Código Comercial de 1850 disciplinava a compra e venda de trabalho.
MORAES FILHO, Evaristo de. Tratado elementar de direito do trabalho. V. I. São Paulo: Livraria
Freitas Bastos S/A, 1960, p. 307.
71
riquezas197. O comércio de escravos e a exploração dessa força de trabalho eram
as principais atividades econômicas na época198 .

A superação da escravidão mercantil no Brasil e a possibilidade de


abertura democrática, depois de duas amargas experiências de ditadura,
acompanharam o movimento teórico pelo qual o capital, de forma mais artificial do
que real, passou a ser “atrelado” ao conceito de democracia199 . Mesmo nesse
contexto, porém, é possível perceber que a manutenção das categorias jurídicas
que sustentam a forma capital, especialmente da noção de propriedade, contrato
e sujeito de direitos, impede a superação do que realmente importa, exatamente
porque a realidade se mantém obscurecida pela ideologia do capital.

O reconhecimento do caráter social do Direito do Trabalho, por mais


bem intencionado que seja (e útil ao nosso propósito), é articulado, defendido e
realizado sob a ótica do capital200. Então, mesmo quando aparentemente negam
as condições sociais que decorrem da forma-mercadoria, o Estado e o Direito não

197
Por isso mesmo, a abolição da escravatura não se deu em razão de pretensa oposição ao
capitalismo. Os fatores determinantes para o fim da escravidão institucionalizada foram a
escassez de escravos, a necessidade de relacionar-se economicamente com países capitalistas e
o ingresso em guerras e a consequente necessidade de criação de uma lógica burguesa de
burocracia, que permitisse que os escravos servissem ao exército. SAES, Décio. A formação do
Estado burguês no Brasil (1888-1891). São Paulo: Paz e Terra, 1985, p. 174.
198
“O escravo não só constitui uma mercadoria; é a principal mercadoria de uma vasta rede de
negócios. (...) Embora o senhor comprasse o escravo, o que ele queria era a energia humana (...)
como uma modalidade de energia que podia ser concentrada e utilizada intensivamente, através
da organização social do trabalho escravo, como se o organismo humano fosse uma máquina. O
inconveniente de que essa máquina não só se desgastava, mas também perecia durante o
processo de produção apenas intensificava o circuito da circulação, tornando tal rede de negócios
uma inexaurível mina de ouro”. IANNI, Octavio (org). Florestan Fernandes: sociologia crítica e
a
militante. 2 edição. São Paulo: Expressão Popular, 2011, p. 365.
199
A “liberdade contratual funciona apenas em uma área bastante reduzida”, havendo uma
importante “relativização do valor da autonomia privada”. Existem institutos “onde prevalecem os
interesses individuais, embora também estejam presentes interesses da coletividade, e outros
institutos onde predominam os interesses da sociedade, embora funcionalizados à realização dos
interesses existenciais dos cidadãos”. FACCHINI NETO, Eugênio. Reflexões Histórico-Evolutivas
sobre a constitucionalização do direito privado. In SARLET, Ingo Wolfgang (org). Constituição,
a
Direitos fundamentais e Direito Privado. 2 edição. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006, p.
13-62.
200
A criação de fórmulas jurídicas que escondem, obscurecem e procuram modificar os conflitos
inerentes à sociedade do capital, dando-lhes contornos naturais e mitigados, pode ser percebida
através de alguns exemplos claros. O Direito transforma a greve enquanto fato social de
resistência da classe trabalhadora em direito de greve, para, evidentemente, limitá-lo. Transforma
a tensão imposta ao capital pela organização da classe trabalhadora em direito à negociação
coletiva. A liberdade de associação assume a condição de direito sindical . EDELMAN, Bernard. La
légalisation de la classe ouvrière. Tome 1: lentreprise. Paris: Christian Bourgois Editeur, 1978, p.
195-6.
72
conseguem (porque negariam a si mesmos) romper com a lógica da troca e do
conflito que a constitui201.

O que revisitei até aqui, acerca da formação do conteúdo filosófico da


liberdade moderna e de seu disciplinamento através do Direito, sobretudo, com as
figuras do sujeito de direito, da propriedade privada e do contrato, constitui a base
a partir da qual é possível pensar as relações sociais de trabalho no Brasil.

Diante disso e compreendendo que a ideologia está no discurso, tanto


quanto o discurso é necessariamente ideológico, o nosso desafio não deve ser
apenas o de superar, mas o de construir um novo discurso202 . A esperança de
que seja possível perceber a realidade e alterá-la, repousa justamente no
potencial humano identificado por Fromm, quando afirma que é surpreendente
que “a raça humana, a despeito de tudo o que tem sucedido com os homens”
consiga manter e desenvolver “qualidades de dignidade, coragem, decência e
bondade”203 .

Por sua vez, a necessidade de superar a ideologia burguesa forjando


algo novo, baseado numa racionalidade coletiva e solidária, pauta-se, sobretudo,
pela urgência dos efeitos do capital. O resultado da tentativa (sempre incompleta
e em alguma medida fracassada) de reduzir o homem à condição de coisa é o
adoecimento “oculto e silencioso”, a miséria social, a extinção de recursos
naturais, a iminência do caos204.

Compreender a nossa história é um passo fundamental para tentar


alterar esse curso. Revisitando-a, conseguimos perceber com nitidez como o ser
humano inserido no sistema capitalista é disciplinado, desde seu nascimento,

201 a
ALTHUSSER, Louis. Ideologia e os Aparelhos Ideológicos de Estado. 3 edição. Lisboa:
Editorial Presença, 1980, p. 90.
202
Como bem observa Mészáros, pretender o fim da ideologia “é em si uma ideologia
característica, Significa a adoção de uma perspectiva não-conflituosa dos desenvolvimentos
sociais contemporâneos e futuros (...) ou a tentativa de transformar os conflitos reais dos embates
ideológicos na ilusão das práticas intelectuais desorientadoras, que imaginariamente dissolvem as
questões em discussão mediante alguma pretensa descoberta teórica”. MÉSZÁROS, István. O
Poder da Ideologia. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004, p. 109.
203 a
FROMM, Erich. O medo à liberdade. 6 edição. Rio de Janeiro: Zahar, 1968, p. 213.
204
O crescimento assustador dos casos de depressão nesse início de século fez com que a
psicanalista Maria Rita Kehl sustentasse a tese de que “a depressão é sintoma social porque
desfaz, lenta e silenciosamente, a teia de sentidos e de crenças que sustenta e ordena a vida
social desta primeira década do século XXI”. Esse “desmanche” da teia de sentidos que
caracteriza a sociedade moderna ocorre lenta, mas fortemente. KEHL, Maria Rita. O tempo e o
cão: a atualidade das depressões. São Paulo: Boitempo, 2009, p. 22.
73
para atuar como mercadoria e reproduzir a lógica do capital205, num país de
cultura colonial e escravista.

205
LACAN, Jean-Jacques. O Seminário. Livro 16. De um outro ao outro. São Paulo: Zahar,
2008, p. 21 e 31.
74

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