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Resumo
Por muitos anos vigeu a idéia de que somente os Estados são sujeitos de
Direito internacional. Atualmente é inegável a existência de outros sujeitos,
dentre os quais a pessoa humana. Este artigo trata do movimento que consagra
o ser humano como sujeito de direitos e analisa o principal instrumento
declarativo desses direitos da sociedade internacional: a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948). Trata-se de documento incomparável na História
da Humanidade, porque é um documento revolucionário que provoca mudanças
profundas de mentalidade e de atitude no mundo.
1
A versão original do presente texto foi publicada na Revista: Verba Juris: Anuário da Pós-
Graduação em Direito, João Pessoa, ano 7, n. 7, p. 9-34, jan./dez. 2008. A versão atual está aumentada
e corrigida. Confesso, caro leitor, que mudei de posição em relação a vários pontos do texto original.
Assim, por exemplo, não me parece mais que a Declaração seja realmente “universal” nem que haja
direitos inatos (são todos históricos). Leituras posteriores contribuíram para tal mudança (destaco,
dentre outros, apenas dois autores: Ernst Bloch, com respeito aos direitos inatos; François Jullien, no
que se refere à universalidade).
2
([email protected]). Mestre em Direito Internacional e Doutor em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo. Atual Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal
da Paraíba. Professor Titular da UFPB (Departamento de Direito Público). Obras destacadas: Sorto,
Fredys Orlando (Org.). O pensamento jurídico entre Europa e América: estudos em homenagem ao
Professor Mario G. Losano. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2018. Guerra civil contemporânea:
a ONU e o caso salvadorenho. Porto Alegre, 2001; “La compleja noción de solidaridad como
valor y como derecho. La conducta de Brasil en relación a ciertos Estados menos favorecidos”. In:
Solidaridad y derechos humanos en tiempos de crisis. Madrid: Dykinson, 2011. pp. 97-124; “The
Freedom of the Seas” (“Mare Liberum” by Hugo Grotius): “Importance and topicality”. In: América
Latina y el derecho del mar. Valencia: Tirant lo Blanch, 2018. pp. 35-50.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
Segundo semestre de 2018. Pp. 209-232. ISSN 1575-6823 e-ISSN 2340-2199 doi: 10.12795/araucaria.2018.i40.09
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Abstract
The idea that only the State is subject to International Law lingered for
many years. At present it is undeniable the existence of other subjects, among
which, the human being. This article deals with the movement which acclaims
the human being as subject to rights and analyses the main declarative instrument
of these rights in the international society: The Universal Declaration of Human
Rights (1948). It is an incomparable document in the History of Mankind, for
it is a revolutionary document that causes profound changes of mentality and
attitude in the world.
Introdução
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
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autoridade, significado e natureza jurídica
4
A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969) estabelece (Art. 53) a nulidade do
tratado que violar norma imperativa de direito internacional. [Art. 53. Tratado em conflito com uma
norma imperativa de direito internacional geral (ius cogens): “É nulo o tratado que, no momento
de sua conclusão, conflita com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os fins
da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceita
e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como norma da qual
nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional
geral da mesma natureza”].
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5
A Declaração de Direitos da Virgínia data de 12 de Junho de 1776. Note-se o teor do artigo
primeiro dessa Declaração em relação ao jusnaturalismo e à autoridade que exerce na Declaração
de Independência: “Artigo 1° - Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm
direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar
sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir
propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”. [“Article 1. That all men are by nature
equally free and independent, and have certain inherent rights, of which, when they enter into a state
of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of
life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining
happiness and safety”].
6
O 2.º Congresso Continental aprovou, em 4 de julho de 1776, a Declaração de Independência
dos Estados Unidos da América, que foi redigida na sua maior parte por Thomas Jefferson. Desde
1781 Os Artigos da Confederação serviram de instrumento jurídico no governo das 13 Colônias
independentes. A Constituição foi elaborada somente em 1787, sem a participação de Rhode Island,
entrando em vigor no ano seguinte em substituição aos Artigos da Confederação.
7
O trecho completo da declaração em que se afirma o poder do povo para restringir os poderes
estatais é este: “We hold these Truths to be self-evident, that all Men are created equal, that they are
endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty, and the
pursuit of Happiness—That to secure these Rights, Governments are instituted among Men, deriving
their just Powers from the Consent of the Governed, that whenever any Form of Government becomes
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autoridade, significado e natureza jurídica
humanos atuais. Por isso, o instituto da igualdade, que é o mais frágil nessa
relação, será “aperfeiçoado” gradualmente. Atos posteriores, notadamente as
emendas à Constituição dos Estados Unidos, comprovam essa construção por
graus8 de “igualdade”.
O segundo documento iluminista afirmativo dos direitos humanos
individuais e coletivos é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, 1789). Trata-se de prestigioso
instrumento interno, de categórica repercussão mundial. Ele se inspira
claramente na Declaração de Independência dos Estados Unidos, aquela, como
se sabe, exerceu grande autoridade na posterior Declaração Universal das
Nações Unidas de 1948. No preâmbulo da Declaração francesa, a Assembleia
Nacional considera que “[...] a ignorância, a negligência ou o desprezo dos
direitos humanos são as únicas causas das calamidades públicas e da corrupção
dos governos”, razão por que “[...] resolveram expor numa declaração solene
os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem [sic]”. Pode-se dizer que
os três primeiros dispositivos da Declaração em pauta constituem o seu núcleo
doutrinário. No primeiro artigo, afirma-se que “Os homens nascem e são livres
e iguais em direitos”; em seguida, diz-se que a finalidade de toda a organização
política “[...] é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.
Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à
opressão”. O terceiro dispositivo assegura que o princípio de toda a soberania
reside no povo, princípio claramente sancionado pelo Estado democrático de
direito. Se bem não mencionado nessa relação essencial, o direito à vida deduz-
se que esteja implícito; já o direito à propriedade, embora explícito, carece de
essencialidade, sobejando9, portanto. Dado que se pode, perfeitamente, viver
sem propriedade, mas não se pode viver dignamente sem liberdade.
A proteção efetiva dos direitos humanos, é interessante notar, desenvolve-
se de modo simultâneo com o processo de criação das organizações
internacionais do século XX. A Sociedade das Nações (1919-1939), antecessora
das Nações Unidas, foi a primeira organização internacional, acontecimento
que representou grande avanço no campo dos direitos humanos. Mas, a bem
da verdade, diga-se que a Liga das Nações não resolveu os graves problemas
destructive of these Ends, it is the Right of the People to alter or abolish it, and to institute a new
Government, laying its Foundation on such Principles, and organizing its Powers in such Form, as to
them shall seem most likely to effect their Safety and Happiness”.
8
Devem-se lembrar nessa direção: a) as dez primeiras Emendas à Constituição (1791), b) a 13.ª
Emenda que aboliu a escravidão (1865), c) a 15.ª Emenda que permite o voto das pessoas negras
(1870), d) a 19.ª Emenda que instituiu o voto feminino (1920).
9
Os três artigos mencionados são estes: “1). Les hommes naissent et demeurent libres et égaux
en droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune. 2) Le but de
toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l’Homme.
Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté et la résistance à l’oppression. 3) Le principe de toute
Souveraineté réside essentiellement dans la Nation. Nul corps, nul individu ne peut exercer d’autorité
qui n’en émane expressément”.
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10
A Carta do Atlântico, Declaração de Princípios feita pelo Presidente dos Estados Unidos, Franklin
Roosevelt, e pelo Primeiro Ministro britânico, Winston Churchill, em 14 de Agosto de 1941, é o primeiro
documento internacional, de peso, anterior à instituição das Nações Unidas. O art. 6 da Declaração reza
que “Depois da destruição completa da tirania nazista, esperam que se estabeleça a paz que proporcione
a todos os Estados os meios de viver em segurança dentro de suas próprias fronteiras, e aos homens
em todas as terras a garantia de existências livres de temor e de privações”. Ferreira de Mello diz que o
principal objetivo de Churchill nesse encontro era o de convencer os Estados Unidos a declarar guerra
à Alemanha. O Brasil aderiu aos seus princípios em 1943. Por sinal, o documento não foi assinado, mas
enviado via telégrafo para aprovação dos respectivos governos. Cf. Mello, Rubens Ferreira de. Textos de
direito internacional e de história diplomática de 1815 a 1949. 1950. p. 592.
11
No Preâmbulo da Declaração os signatários afirmam “[...] defender a vida, a liberdade, a
independência e a liberdade de culto, assim como para preservar a justiça e os direitos humanos
nos seus respectivos países e em outros”. Abranches diz que “Pela primeira vez, uma declaração
internacional consagrou o princípio de que os Estados devem preservar os direitos humanos, não só nos
respectivos territórios, como nos dos outros”. Abranches, C. A. Dunshee de. Proteção internacional
dos direitos humanos. 1964. p. 49.
A Declaração foi assinada inicialmente por 26 países. Em 1945 contava com mais 19 “adesões”,
dentre elas, a do Brasil, feita em 8 de fevereiro de 1943.
12
A Carta das Nações Unidas foi elaborada durante a Conferência de São Francisco, fato ocorrido
entre 25 de abril e 26 de junho de 1945. Foi assinada em 26 de junho de 1945, entrando em vigor em
24 de outubro do mesmo ano. A Carta, como se sabe, criou a Organização das Nações Unidas, cuja
função principal é a manutenção da paz, da segurança internacionais e o respeito aos direitos humanos.
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autoridade, significado e natureza jurídica
13
Abranches, C. A. Dunshee de. Op. Cit. p. 57.
14
A Carta cuida dos Direitos Humanos também no art. 13 “1. A Assembléia Geral iniciará
estudos e fará recomendações, destinados a: b) [...] favorecer o pleno gozo dos direitos humanos
e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua
ou religião”. No art. 55 reafirma o direito de autodeterminação dos povos: “Com o fim de criar
condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações,
baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as
Nações Unidas favorecerão: [...] c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais para todos sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. O parágrafo
segundo do art. 62 estabelece que o Conselho Econômico e Social “Poderá, igualmente, fazer
recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais para todos”. Ainda em referência ao Conselho Econômico e Social, diz
o art. 68 que esse órgão “Criará comissões para os assuntos econômicos e sociais e a proteção
dos direitos humanos”. Na parte referente ao sistema internacional de tutela, o art. 76 preceitua
que são objetivos básicos do sistema de tutela “c) Estimular o respeito aos direitos humanos e às
liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo língua ou religião e favorecer o
reconhecimento da interdependência de todos os povos”.
15
Abranches, C. A. Dunshee de. Proteção internacional dos direitos humanos. Op. cit., p. 68.
16
Deve-se recordar que a Austrália propôs na Comissão do Conselho Econômico e Social,
que discutiu o Projeto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a criação de um tribunal
internacional com jurisdição universal (que ainda falta), com vistas à aplicação de sanções nos casos
de violação dos Direitos humanos.
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17
A Organização das Nações Unidas tinha, em 1948, apenas 58 membros. Destes, 48 votaram a
favor da Resolução 217-A (Afeganistão, Argentina, Austrália, Bélgica, Birmânia, Bolívia, Brasil,
Canadá, Chile, China (Taiwan), Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dinamarca, República Dominicana,
Equador, Egito, El Salvador, Estados Unidos, Etiópia, Filipinas, França, Grécia, Guatemala, Haiti,
Holanda, Índia, Iraque, Irã, Islândia, Líbano, Libéria, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Nicarágua,
Noruega, Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Reino Unido, Síria, Suécia, Tailândia, Turquia , Uruguai
e Venezuela.), 8 se abstiveram (Arábia Saudita, Bielorússia, Iugoslávia, Polônia, Tchecoslováquia,
Ucrânia, União Soviética, União Sul-Africana). Houve 2 ausências (Honduras e Iêmen). Nenhum voto
contra.
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Não há como nominar o autor da DUDH18. Por certo é obra coletiva que
recolhe as idéias dominantes e as tradições ocidentais. Contudo, é preciso
registrar que determinadas personagens tiveram participação decisiva, dentre
elas, John Humphrey (Canadá) Diretor da Divisão de Direitos Humanos,
responsável pela redação do primeiro rascunho da Declaração; René Cassin
(França) sob cuja responsabilidade ficou a versão final do texto aprovado;
Eleanor Roosevelt (EUA) que presidiu o Comitê que redigiu a Declaração.
A Declaração aprovou-se nos moldes das declarações de direitos dos
Estados (plano interno), mas é realmente a primeira declaração internacional
de direitos humanos. A sua autoridade, como é notório, não advém de norma
superior ao ordenamento do Estado nem mesmo do voluntarismo estatal. O
seu fundamento de autoridade é moral e advém da própria dignidade da pessoa
humana, que é comum a todos os seres em qualquer parte. O que realmente
importa é a condição de pessoa humana.
É consenso na doutrina que a DUDH constitui o ponto de partida do
movimento contemporâneo de defesa dos direitos humanos. Pode-se licitamente
discordar disso. Pois, como já foi dito, o grande monumento jurídico dos
direitos humanos começa com a Carta da ONU. Esta, sim, é a que constitui
o verdadeiro ponto de partida, sendo, no entanto, a DUDH a tradução mais
afortunada desse espírito protetor da Carta das Nações Unidas19.
Não há negar que a Declaração é fruto das tradições jurídicas, políticas
e filosóficas ocidentais. A Declaração é censurada, malgrado, desse defeito
de origem, espécie de pecado original que acompanha a Declaração desde o
seu nascimento. A este respeito, sustenta Wilde que ela realmente se baseia na
história e nas tradições de certo grupo de países ocidentais. “Contudo, ela foi
expressa de forma aberta e inteligível para povos com outras histórias e nas
tradições, que agora compõem o movimento global de direitos humanos20”.
Não é a Declaração, contudo, um documento que parta do zero, do nada, do ponto
de vista fatual e instrumental. De efeito, de um lado está a maior tragédia da história
da Humanidade, provocada pela insanidade de lideres que promoveram a partir dos
seus Estados, alavancados por um positivismo jurídico perverso, a banalização do ser
18
Eleanor Roosevelt (Estados Unidos) presidiu o Comitê que elaborou a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Os outros membros do Comitê foram: René Cassin (França), Charles Malik (Líbano),
Peng Chun Chang (China), Hernán Cordero Santa Cruz (Chile), Alexandre Bogomolov e Alexei Pavlov
(URSS), Lord Dukeston e Geoffrey Wilson (Reino Unido) e William Hodgson (Austrália).
19
As lições de Cançado Trindade são também nessa direção: “Em nada surpreende que a Declaração
Universal viesse logo a ser tida como uma interpretação autêntica e elaboração da própria Carta das
Nações Unidas (no tocante em particular a suas disposições sobre direitos humanos), dando assim
conteúdo a algumas de suas normas. A autoridade da Declaração de 1948, nesse sentido, fortaleceu-se,
ao ser reconhecida como refletindo normas de direito internacional consuetudinário [há controvérsias];
seus princípios passaram a ser vistos como correspondendo a princípios gerais do direito”. Trindade,
Antonio A. Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. 1999. p. 22.
20
Wilde, Ralph. Uma visão geral da Declaração Universal dos Direitos Humanos. In: Direitos
humanos: referências essenciais. 2007. p. 106.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
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autoridade, significado e natureza jurídica
21
Cabe repetir que esses documentos são especialmente estes: a Magna Carta de 1215 (Magna
Charta Libertatum). [cf. Wilde, p. 88]; Declaração de Direitos elaborada pelo Parlamento da
Inglaterra em 1689 (Bill of Rights of 1689); a Declaração de Direitos da Virgínia (1776); as 10
Emendas à Constituição dos Estados Unidos (1789); a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão (Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen) da Revolução Francesa (1789).
22
A Conferência Internacional de Direitos Humanos realizada em Teerã, de 22 de abril a 13 de
maio de 1968, com o propósito de examinar os progressos alcançados nos vinte anos de vigência
da DUDH. O segundo parágrafo da Proclamação de Teerã diz: “A Declaração Universal de Direitos
Humanos enuncia uma concepção comum a todos os povos de direitos iguais e inalienáveis de todos os
membros da família humana e a declara obrigatória para a comunidade internacional”. É interessante
notar que a sede desta Conferência tenha sido em um Estado islâmico (Irã), não ocidental, portanto.
23
Em relação a essa tese geracional dos direitos humanos, a argumentação de Cançado Trindade
é demolidora. Ele diz que rejeita essa teoria porque considera que o direito à vida pertence a todas
as gerações. Eis o que ele diz in verbis: “Eu não aceito de forma alguma a concepção de Norberto
Bobbio das teorias de Direito. Primeiro, porque não são dele. Quem formulou a tese das gerações de
direito foi o Karel Vasak, em conferência ministrada em 1979, no Instituto Internacional de Direitos
Humanos, em Estrasburgo. Pela primeira vez, ele falou em gerações de direitos, inspirado na bandeira
francesa: liberté, egalité, fraternité. A primeira geração, liberté: os direitos de liberdade e os direitos
individuais. A segunda geração, egaIité: os direitos de igualdade e econômico-sociais. A terceira
geração diz respeito a solidarité: os direitos de solidariedade. E assim por diante. Em primeiro lugar,
essa tese das gerações de direitos não tem nenhum fundamento jurídico, nem na realidade. Essa
teoria é fragmentadora, atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividida, o que não
corresponde à realidade. Eu conversei com Karel Vasak e perguntei: “Por que você formulou essa tese
em 1979?”. Ele respondeu: “Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu
fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da – bandeira francesa” – ele nasceu na velha Tchecoslováquia.
Ele mesmo não levou essa tese muita a sério, mas, como tudo que é palavra “chavão”, pegou. Aí
Norberto Bobbio começou a construir gerações de direitos etc”. Trindade, Antonio Augusto Cançado.
A Tese de “Gerações de Direitos Humanos” de Norberto Bobbio. 2018.
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27
Mello, Celso D. de Albuquerque. Ibidem p. 870.
28
Luz, Nelson Ferreira da. Introdução ao direito internacional público. 1963. p. 22.
29
Mello, Celso D. de Albuquerque. Op. Cit. p. 870.
30
Trindade, Antonio A. Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. 1999.
p. 22.
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31
Eis o trecho do discurso que trata das referidas liberdades: “No futuro, que procuramos garantir,
idealizamos um mundo fundado em quatro liberdades humanas essenciais: A primeira é a liberdade
de palavra e de expressão, em qualquer parte do mundo; A segunda é a liberdade de cada um adorar
a Deus à sua maneira, em qualquer parte do mundo; A terceira é a liberdade de viver ao abrigo da
necessidade, a qual, traduzida em linguagem corrente, significa uma compreensão econômica, que
assegure aos habitantes de cada Estado uma vida sã e pacífica, em qualquer parte do mundo; A quarta
é a liberdade de viver sem temor, a qual, traduzida em linguagem corrente, significa a redução mundial
de armamentos, a tal ponto e de tal maneira que nenhum Estado tenha condições de cometer atos de
agressão física contra qualquer vizinho, em qualquer parte do mundo”. Trata-se, naturalmente, de
outro Presidente dos Estados Unidos e de outra realidade. Na atualidade o discurso é outro. Vale o que
interessa ao mercado, o que convém à política de um governo sem dignidade humana.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
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autoridade, significado e natureza jurídica
32
Além da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a dignidade da pessoa humana
aparece como garantia objetiva em muitos instrumentos internacionais: 1) Pacto de Direitos Civis e
Políticos (1966): preâmbulo e art. 10-1.º; 2); Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966):
preâmbulo e art. 10-1.º; 3) Declaração e Programa de Ação de Viena (1993): diz que “[...] todos os
direitos humanos têm sua origem na dignidade e no valor da pessoa humana”. Quanto à dignidade
como fundamento dos Direitos humanos, Peces-Barba (2003, p. 13) afirma que: “A modernidade
considera-se desde o humanismo, isto é, a partir da idéia do homem como centro do mundo e que
se distingue dos demais animais com certos traços que implicam a marca da sua dignidade. [...] a
dignidade humana é o fundamento da ética pública laica, que se vai construindo durante séculos, a
partir do século XVI [cf. Maquiavel], com especial relevância para o modelo de grande contribuição
da Ilustração. Kant reunirá bem essa dupla vertente ao responder à pergunta Que é a Ilustração? na
qual vincula o homem (sendo que para ele o homem é um fim em si mesmo e não tem preço) à idéia
de autonomia no sentido de que não necessita de andador e pode caminhar por si mesmo”.
33
Por negligência no domínio da tecnologia jurídica do Direito das Gentes designam-se as
“Nações” como sujeitos, mas a referência aqui, e noutras partes da Declaração, é apropriadamente
aos Estados, que são os verdadeiros sujeitos de Direito internacional. As “Nações” nesse caso, como
bem o sabem os juristas, não são sujeitos. Aliás, a “Nação” é conceito antropológico ou cultural, não
jurídico. De modo que um Estado pode ser formado por várias nacionalidades.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
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226 Fredys Orlando Sorto
[...] os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos
humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade
de direitos entre homens e mulheres [...]. A Assembléia Geral proclama a
presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a
ser atingido por todos os povos e todas as Nações [sic], com o objetivo de
que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta
Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o
respeito a esses direitos e liberdades.
34
Cortina, Adela. Las fronteras de la persona: el valor de los animales, la dignidad de los
humanos. 2009. p. 39.
35
Conta Wide (2007, p. 106) que “Originalmente foi escrito ‘sendo dotados pela natureza de razão
e consciência, dando à palavra ‘natureza’ o sentido de natureza humana (a característica essencial do
homem) ou de Deus. Os redatores rejeitaram a ‘natureza’, para que a Declaração não abrigasse uma
definição particularmente rígida da base dos direitos humanos”.
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Segundo semestre de 2018. Pp. 209-232. ISSN 1575-6823 e-ISSN 2340-2199 doi: 10.12795/araucaria.2018.i40.09
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as violações dos direitos fundamentais, vedando-se a prisão arbitrária. Mas se porventura houver
infração da lei, nessa hipótese toda a pessoa humana tem direito a julgamento por parte de um tribunal
independente e imparcial. No art. 11 garantem-se a presunção de inocência, bem como os princípios
da reserva legal e da anterioridade da lei:. Diz o citado artigo: “1. Todo ser humano acusado de
um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido
provada, de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as
garantias necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que,
no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será
imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso”.
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No ensaio Citizenship and Social Class (1950) Marshall aborda o tema da cidadania britânica
à luz das mudanças ocorridas durante o século XIX. Nesse ensaio, Marshall, considerando apenas a
sociedade britânica, elabora uma teoria geral da cidadania. Ele afirma que a cidadania se desenvolve
historicamente nos séculos XVIII (Direitos civis); XIX (Direitos políticos) e XX (Direitos sociais). No
ensaio, ele examina de modo original as relações entre cidadania e classe social a partir da perspectiva
histórica e comparada. Marshall nesse ensaio introduz o conceito de Direitos sociais. A respeito
dos direitos políticos, ele diz que: “Tanto por su carácter como por su cronología, la historia de los
derechos políticos es diferente. Como ya apunté, el período de formación empezó en los albores del
siglo XIX, cuando los derechos civiles asociados al status de libertad habían adquirido la sustancia
que nos permite hablar de un status general de ciudadanía”. Cf. Marshall, T. H.; Bottomore, Tom.
Ciudadanía y clase social. 2005. p. 29.
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No Brasil, a primeira experiência democrática é a de 1948-1964, período no qual se inserem,
em parte, os direitos políticos, que são logo destruídos pelo regime autoritário que se estabelece a
partir de 1964. O fim do regime militar e a redemocratização possibilitam o restabelecimento e o
alargamento dos direitos políticos, que ainda estão em expansão por causa da inserção de formas
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autoridade, significado e natureza jurídica
Considerações finais
diretas e inovadoras de participação popular. Em rigor, pode-se dizer que os direitos políticos no Brasil
Império eram embustes, fraudes mesmo. Assevera-se isso com base em dados objetivos, como o de
que 85% do povo era formado por analfabetos; que o votante era influenciado na hora de votar; que
no processo eleitoral se firmaram figuras estrambólicas, especialistas em burlar as eleições. De fato,
nesse período surgem personagens como a do ‘cabalista’, que fornecia a prova da renda do votante
e garantia o voto dos alistados, e a do ‘fósforo’. “Se o alistado não podia votar por qualquer razão,
inclusive por ter morrido, comparecia o fósforo, isto é, uma pessoa que se fazia passar pelo verdadeiro
votante”. Cf. Carvalho, Jose Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 2005. p. 34.
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que deveria ser escrita na Constituição Mundial que não existe ainda, é o mais
luminoso documento internacional do movimento que começa com a Carta das
Nações Unidas, cujo brilho fulgurante ilumina todos os recantos onde os direitos
são violados. Se a Declaração fosse um tratado internacional, não seria o que
ela é atualmente, não representaria para a Humanidade o que representa. Se a
Declaração fosse um tratado já teria sido desrespeitada, transgredida, violada.
Mas, por fortuna, a Declaração não é norma convencional vinculante. Por essa
razão não pode ser violada, nem ferida, nem tem o destino das leis caducas. Seu
destino é o da imortalidade em razão da sua essencialidade histórica e da sua
relevância moral e metajurídica.
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Referências:
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
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