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Declaração Universal dos Direitos

Humanos: autoridade, significado e


natureza jurídica1

The Universal Declaration of Human Rights:


Authority, Meaning and Legal Nature

Fredys Orlando Sorto 2


Universidade Federal da Paraíba (Brasil)
Recibido: 27-07-18
Aprobado: 24-08-18

Resumo
Por muitos anos vigeu a idéia de que somente os Estados são sujeitos de
Direito internacional. Atualmente é inegável a existência de outros sujeitos,
dentre os quais a pessoa humana. Este artigo trata do movimento que consagra
o ser humano como sujeito de direitos e analisa o principal instrumento
declarativo desses direitos da sociedade internacional: a Declaração Universal
dos Direitos Humanos (1948). Trata-se de documento incomparável na História
da Humanidade, porque é um documento revolucionário que provoca mudanças
profundas de mentalidade e de atitude no mundo.

Palavras-chave: Declaração de Direitos. Declaração Universal dos Direitos


Humanos.

1 
A versão original do presente texto foi publicada na Revista: Verba Juris: Anuário da Pós-
Graduação em Direito, João Pessoa, ano 7, n. 7, p. 9-34, jan./dez. 2008. A versão atual está aumentada
e corrigida. Confesso, caro leitor, que mudei de posição em relação a vários pontos do texto original.
Assim, por exemplo, não me parece mais que a Declaração seja realmente “universal” nem que haja
direitos inatos (são todos históricos). Leituras posteriores contribuíram para tal mudança (destaco,
dentre outros, apenas dois autores: Ernst Bloch, com respeito aos direitos inatos; François Jullien, no
que se refere à universalidade).
2 
([email protected]). Mestre em Direito Internacional e Doutor em Ciência Política pela
Universidade de São Paulo. Atual Diretor do Centro de Ciências Jurídicas da Universidade Federal
da Paraíba. Professor Titular da UFPB (Departamento de Direito Público). Obras destacadas: Sorto,
Fredys Orlando (Org.). O pensamento jurídico entre Europa e América: estudos em homenagem ao
Professor Mario G. Losano. Porto Alegre: Sergio Antonio Fabris, 2018. Guerra civil contemporânea:
a ONU e o caso salvadorenho. Porto Alegre, 2001; “La compleja noción de solidaridad como
valor y como derecho. La conducta de Brasil en relación a ciertos Estados menos favorecidos”. In:
Solidaridad y derechos humanos en tiempos de crisis. Madrid: Dykinson, 2011. pp. 97-124; “The
Freedom of the Seas” (“Mare Liberum” by Hugo Grotius): “Importance and topicality”. In: América
Latina y el derecho del mar. Valencia: Tirant lo Blanch, 2018. pp. 35-50.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
Segundo semestre de 2018. Pp. 209-232. ISSN 1575-6823 e-ISSN 2340-2199 doi: 10.12795/araucaria.2018.i40.09
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Abstract
The idea that only the State is subject to International Law lingered for
many years. At present it is undeniable the existence of other subjects, among
which, the human being. This article deals with the movement which acclaims
the human being as subject to rights and analyses the main declarative instrument
of these rights in the international society: The Universal Declaration of Human
Rights (1948). It is an incomparable document in the History of Mankind, for
it is a revolutionary document that causes profound changes of mentality and
attitude in the world.

Key-words: Declaration of Rights. Universal Declaration of Human Rights.

Termos do Problema: Qual a natureza jurídica, o valor ético e o


efetivo alcance protetor em matéria de Direitos Humanos desse instrumento
internacional tão invocado, citado e reverenciado que atende pela denominação
de Declaração Universal dos Direitos Humanos?

Introdução

Kwame Appiah inicia o seu livro Cosmopolitismo: a ética em um mundo


de estranhos asseverando que “Faz muito tempo que nossos antepassados são
seres humanos”. Realmente, faz milênios. Contudo, o fato de as pessoas terem
esses caracteres herdados de há muito não é suficiente de per se para torná-las
portadoras de direitos em todos os lugares e tempos. A maioria das pessoas
seguramente passou pela vida sem gozar essa humanidade; outros viveram e
lutaram com dignidade, trata-se dos visionários da liberdade e dos destemidos,
que desafiaram a escravidão, dos que entregaram as suas vidas em benefício
da causa de tornar a pessoa humana titular de direitos, primeiro dentro da
comunidade política particular, depois no mundo. Embora a declaração seja
intitulada de “universal”. Mas essa universalização de direitos, que não é aceita
por todos, é fato bastante recente.
Reputo lícito, desde logo, esclarecer a questão do âmbito espacial de
aplicação da Declaração Universal dos Direitos Humanos. Poder-se-ia dizer,
com propriedade, que a Declaração se aplica realmente em todo o universo?
Claro está que no passado o geocentrismo era incontestável. Quem ousaria na
Antiguidade se opor, por exemplo, à autoridade de Aristóteles ou ao “Almagesto”
de Ptolemeu? O fato é que a teoria do universo geocêntrico perpassa a Idade
Média praticamente incólume. Somente na Modernidade essa falsa teoria, tão
conveniente à Igreja Católica e a muitos governantes, é submetida a prova,
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restando demonstrada enfim a sua falsidade científica. Considere-se ainda


o seguinte: supondo que realmente haja seres humanos fora da Terra, como
legislar em seu nome sem que eles tenham delegado poderes específicos para
representá-los? Vista assim a questão, o universalismo não faz sentido. Trata-
se de erro notável tomar a Terra pelo Universo, ressalvadas, naturalmente,
certas licenças poéticas. Se a Declaração não se aplica no Universo inteiro
então, obviamente, não é universal. Trata-se, na verdade, de documento
imprescindível de Direito internacional dos Direitos Humanos aplicável tão
somente aos habitantes do planeta Terra.
Retornando à asserção de Appiah, poder-se-ia ir mais longe e afirmar
que embora os seres humanos sejam dotados de natureza humana há bastante
tempo, eles estão realmente juntos há cerca de pouco mais de quinhentos anos,
desde o descobrimento do Novo Mundo. É nesse breve espaço temporal que se
dão os grandes fatos que negam e afirmam simultaneamente direitos. Negam-se
quando se constróem sistemas socioeconômicos baseados na escravização de
pessoas, quando se tortura em nome da fé e por quaisquer outros motivos cruéis,
quando se pune sem observar o devido processo legal; negam-se, especialmente,
quando não se respeita a vida, quando o ser humano pode ser descartado, como
nos eventos históricos marcados pelos totalitarismos (nazismo e stalinismo).
Por outro lado, afirmam-se os direitos humanos quando eles são positivados em
instrumentos aceitos juridicamente como vinculantes pelos Estados, quando
essa codificação é acompanhada dos devidos mecanismos de conscientização,
fiscalização e garantia; quando se estabelecem políticas preventivas visando à
remoção das causas que motivam violações.
Noutro trecho da referida obra, Appiah3 diz que “O desafio é, então, pegar
a mente e o coração formados ao longo dos milênios em que convivemos em
pequenas comunidades, e equipá-los com ideias e instituições que nos permitam
viver juntos como na tribo global na qual nos tornamos”. Com efeito, a vida
humana em comum é realmente incontornável. Mas é preciso lembrar que,
mesmo considerando essa inevitabilidade da convivência, não faz tanto tempo
assim que os seres humanos estão juntos nesse espaço global. Efetivamente,
cinco séculos atrás havia muito menos pessoas, a sociedade de então era menos
complexa. O Novo Mundo recém-descoberto tinha seres cuja alma, direitos de
propriedade, e condição humana eram ainda discutíveis para alguns. Mas é o
descobrimento do outro, do diferente, que alarga e generaliza a ideia de mundo
e de indispensabilidade da convivência. Claro está que para chegar a isso se
passou pelo genocídio de milhões de pessoas quer no Novo Mundo, mediante o
aniquilamento de civilizações, quer na “Europa civilizada”, promotora de duas
guerras mundiais atrozes no século passado. Não bastasse isso, a história da
construção dos direitos humanos da sociedade política internacional passou, e
3 
Appiah, Kwame Anthony: Cosmopolitismo: la ética en un mundo de extraños. 2007. p. 15.
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ainda passa, pela intolerância religiosa, econômica e cultural. É difícil pensar


no sucesso da vida em comum quando se valoriza o que é diferente e se esquece
o que é comum, quando não se considera o que é essencial e se enfatiza o que é
particular. De fato, o que importa é, realmente, o que é comum e essencial aos
seres humanos.
O reconhecimento dessa natureza humana dotada de direitos não tem sido
fácil. O esforço pela legitimação de direitos percorre a história das ideias e dos
fatos, das afirmações e das negações. Passa-se primeiro pelo reconhecimento
de que certos direitos são inerentes à pessoa humana, principalmente o da
vida e o da liberdade. Trata-se de prerrogativas que já nascem com a pessoa,
conforme certas correntes jusnaturalistas, cujas elaborações teóricas vão desde
a versão estoica à iluminista, esta nitidamente revolucionária e afirmadora de
direitos “cosmopolitas” no plano interno. A par dessa afirmação de princípios
racionais (cujo inatismo Ernst Bloch demonstra ser falso), acham-se os
direitos decorrentes de conquistas históricas. Estes se dão no Estado moderno,
especialmente, com as revoluções liberais francesa e estadunidense, que
promovem os direitos individuais (civis e políticos). Ademais da revolução
industrial, que ajuda a estabelecer em grande medida os direitos sociais.
O Estado que emerge na modernidade é fulminado por essas ondas
revolucionárias, que pouco a pouco formam os catálogos de direitos que
aparecem em todas as Constituições contemporâneas. Se de um lado esse
espaço estatal abre a possibilidade do diálogo permanente entre os pares da
comunidade política; de outro, nega-se a muitos a fruição de direitos essenciais
como a liberdade e a igualdade. Deste lado estão negros escravizados, pobres
excluídos da política e da vida digna, mulheres privadas de todos os direitos.
Não se pode dizer, por conseguinte, que a sociedade internacional sempre
reconhecera o ser humano como detentor de direitos e obrigações. Reconhece-o
como tal somente depois das tragédias bélicas do século XX. Aparece desta
sorte a primeira declaração de Direitos da Humanidade, que é a Declaração
Universal dos Direitos Humanos, e só depois da II Guerra Mundial. Assim,
a assertiva de que o ‘homem’ tem direitos é mesmo anterior à formação da
sociedade estatal. Mas, a asserção de que a pessoa humana tem certos direitos e
obrigações, com reconhecimento internacional, é bem posterior.
A recognição das referidas prerrogativas assegura no papel a condição
de sujeito de direito da pessoa humana no marco internacional. Contudo,
mesmo com a codificação de muitos direitos, outros, porém, ainda continuam
negados na prática. Não é preciso ir longe para verificar isso, basta lembrar os
problemas decorrentes da pobreza extrema na África e na América Latina, da
intensa imigração de pobres para os países ricos, do subdesenvolvimento, dos
deslocamentos forçados, da intolerância racial e religiosa. Além do mais, há
problemas culturais presentes que decorrem da visão de mundo de determinadas

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sociedades, que enfatizam o relativo em detrimento do que é comum. De fato,


aprofundou-se o relativismo cultural, que é a especificidade, em prejuízo do
que é geral.
Não se deve subestimar o tema do multiculturalismo, porque ele mantém
intensa vinculação com a problemática acima enunciada. No caso da DUDH
alega-se que ela também padece do mal do relativismo, pois é fruto das tradições
culturais ocidentais que não correspondem às de outros povos, notadamente os
que violam de modo contumaz os direitos humanos. O ponto é que há valores
que de fato são particulares, razão pela qual devem ser respeitados, desde que
eles, naturalmente, não conflitem com os valores que são “universais”, isto é,
os que constituem o núcleo duro dos direitos humanos. Volta-se, assim, à tese
da necessidade de afirmar o que é comum em benefício da humanidade, em vez
de sancionar o que é particular, relativo e temporário, ou antes, o que interessa
a alguns por diversas motivações, dentre as quais as que tratam da manutenção
do poder em Estados governados por regimes políticos autoritários. É óbvio
que não se devem tolerar violações de direitos já consagrados como normas
de ius cogens (imperativas) na sociedade internacional4, dado que os direitos
com dignidade maior devem prevalecer sobre os de menor valor. Assim,
por exemplo, dentre outros, o de liberdade deve ter primazia em relação ao
de propriedade (vedando a escravidão). Na superação dessa problemática
certamente a Educação e o desenvolvimento têm papéis de grande importância.
A referência não é a qualquer tipo de educação, mas à Educação que forma
cidadãos comprometidos com a comunidade política à qual pertencem e
igualmente comprometidos com os valores comuns da Humanidade.
É indiscutível que a cada dia a sociedade internacional parece menor, o
mundo torna-se mais homogêneo e próximo em hábitos e em valores. Não parece
por consequência impossível a adoção de determinada ética internacional, ou
“cosmopolita”, com o que há de comum entre os povos, com o que há de valioso
e geral na espécie humana. Nesse sentido a Declaração Universal dos Direitos
Humanos representa, apesar das críticas, o passo mais avançado no caminho
da compreensão do que é convergente. A Declaração significa um gigantesco
passo adiante, deixando para trás as estupidezes que enlutaram gerações de
seres humanos. A verdade é que a pessoa humana não tem outra saída a não ser
procurar formas inteligentes e éticas de bem viver em comum.

4 
A Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados (1969) estabelece (Art. 53) a nulidade do
tratado que violar norma imperativa de direito internacional. [Art. 53. Tratado em conflito com uma
norma imperativa de direito internacional geral (ius cogens): “É nulo o tratado que, no momento
de sua conclusão, conflita com uma norma imperativa de direito internacional geral. Para os fins
da presente Convenção, uma norma imperativa de direito internacional geral é uma norma aceita
e reconhecida pela comunidade internacional dos Estados no seu conjunto, como norma da qual
nenhuma derrogação é permitida e que só pode ser modificada por nova norma de direito internacional
geral da mesma natureza”].
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1. Processo de construção e desconstrução dos direitos humanos

A construção afirma-se pelo reconhecimento da personalidade jurídica


do ser humano, pela limitação do papel do Estado nesta matéria. Dá-
se a desconstrução pela negação do ser humano como sujeito, pela sua
descartabilidade como a ocorrida nos regimes totalitários e ditatoriais.
O reconhecimento da personalidade internacional do ser humano pelo
Direito das Gentes constituiu realmente grande progresso na sociedade
internacional, porque de súdito (do Estado, do qual recebe proteção diplomática)
ele se transforma em sujeito de direitos (cidadão do mundo, protegido pelo
Direito internacional). Por consequência, a pessoa humana passa a contar com
sistema subsidiário de proteção situado além das fronteiras estatais. Esse longo
processo de desenvolvimento da personalidade e da dignidade humana dá-se
pela articulação de ações afirmativas de recognição internas e internacionais.
Nesse percurso, certificador de direitos, importa lembrar que a DUDH
teve precedentes históricos significativos no Direito interno. De fato, no século
XVIII surgem as primeiras declarações de direitos humanos. Em 1776, a
Declaração de Virgínia (claramente iluminista)5 e principalmente a Declaração
de Independência dos Estados Unidos (1776)6. Esta afirma como verdades
evidentes por si mesmas “[...] que todos os homens são criados iguais, dotados
pelo Criador de certos direitos inalienáveis, que entre estes estão a vida, a
liberdade e a procura da felicidade”. O documento revela pontos expressivos,
tais como o da essencialidade intemporal do direito à vida e à liberdade, o da
“universalidade” dos direitos humanos, a progênie jusnaturalista de direitos
inatos e inalienáveis, o da limitação dos poderes do Estado, o direito de
resistência7. Trata-se, como se vê, de ponto de partida na construção dos direitos

5 
A Declaração de Direitos da Virgínia data de 12 de Junho de 1776. Note-se o teor do artigo
primeiro dessa Declaração em relação ao jusnaturalismo e à autoridade que exerce na Declaração
de Independência: “Artigo 1° - Todos os homens nascem igualmente livres e independentes, têm
direitos certos, essenciais e naturais dos quais não podem, por nenhum contrato, privar nem despojar
sua posteridade: tais são o direito de gozar a vida e a liberdade com os meios de adquirir e possuir
propriedades, de procurar obter a felicidade e a segurança”. [“Article 1. That all men are by nature
equally free and independent, and have certain inherent rights, of which, when they enter into a state
of society, they cannot, by any compact, deprive or divest their posterity; namely, the enjoyment of
life and liberty, with the means of acquiring and possessing property, and pursuing and obtaining
happiness and safety”].
6 
O 2.º Congresso Continental aprovou, em 4 de julho de 1776, a Declaração de Independência
dos Estados Unidos da América, que foi redigida na sua maior parte por Thomas Jefferson. Desde
1781 Os Artigos da Confederação serviram de instrumento jurídico no governo das 13 Colônias
independentes. A Constituição foi elaborada somente em 1787, sem a participação de Rhode Island,
entrando em vigor no ano seguinte em substituição aos Artigos da Confederação.
7 
O trecho completo da declaração em que se afirma o poder do povo para restringir os poderes
estatais é este: “We hold these Truths to be self-evident, that all Men are created equal, that they are
endowed by their Creator with certain unalienable Rights, that among these are Life, Liberty, and the
pursuit of Happiness—That to secure these Rights, Governments are instituted among Men, deriving
their just Powers from the Consent of the Governed, that whenever any Form of Government becomes
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humanos atuais. Por isso, o instituto da igualdade, que é o mais frágil nessa
relação, será “aperfeiçoado” gradualmente. Atos posteriores, notadamente as
emendas à Constituição dos Estados Unidos, comprovam essa construção por
graus8 de “igualdade”.
O segundo documento iluminista afirmativo dos direitos humanos
individuais e coletivos é a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão
(Déclaration des droits de l’homme et du citoyen, 1789). Trata-se de prestigioso
instrumento interno, de categórica repercussão mundial. Ele se inspira
claramente na Declaração de Independência dos Estados Unidos, aquela, como
se sabe, exerceu grande autoridade na posterior Declaração Universal das
Nações Unidas de 1948. No preâmbulo da Declaração francesa, a Assembleia
Nacional considera que “[...] a ignorância, a negligência ou o desprezo dos
direitos humanos são as únicas causas das calamidades públicas e da corrupção
dos governos”, razão por que “[...] resolveram expor numa declaração solene
os direitos naturais, inalienáveis e sagrados do homem [sic]”. Pode-se dizer que
os três primeiros dispositivos da Declaração em pauta constituem o seu núcleo
doutrinário. No primeiro artigo, afirma-se que “Os homens nascem e são livres
e iguais em direitos”; em seguida, diz-se que a finalidade de toda a organização
política “[...] é a conservação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem.
Esses direitos são a liberdade, a propriedade, a segurança e a resistência à
opressão”. O terceiro dispositivo assegura que o princípio de toda a soberania
reside no povo, princípio claramente sancionado pelo Estado democrático de
direito. Se bem não mencionado nessa relação essencial, o direito à vida deduz-
se que esteja implícito; já o direito à propriedade, embora explícito, carece de
essencialidade, sobejando9, portanto. Dado que se pode, perfeitamente, viver
sem propriedade, mas não se pode viver dignamente sem liberdade.
A proteção efetiva dos direitos humanos, é interessante notar, desenvolve-
se de modo simultâneo com o processo de criação das organizações
internacionais do século XX. A Sociedade das Nações (1919-1939), antecessora
das Nações Unidas, foi a primeira organização internacional, acontecimento
que representou grande avanço no campo dos direitos humanos. Mas, a bem
da verdade, diga-se que a Liga das Nações não resolveu os graves problemas

destructive of these Ends, it is the Right of the People to alter or abolish it, and to institute a new
Government, laying its Foundation on such Principles, and organizing its Powers in such Form, as to
them shall seem most likely to effect their Safety and Happiness”.
8 
Devem-se lembrar nessa direção: a) as dez primeiras Emendas à Constituição (1791), b) a 13.ª
Emenda que aboliu a escravidão (1865), c) a 15.ª Emenda que permite o voto das pessoas negras
(1870), d) a 19.ª Emenda que instituiu o voto feminino (1920).
9 
Os três artigos mencionados são estes: “1). Les hommes naissent et demeurent libres et égaux
en droits. Les distinctions sociales ne peuvent être fondées que sur l’utilité commune. 2) Le but de
toute association politique est la conservation des droits naturels et imprescriptibles de l’Homme.
Ces droits sont la liberté, la propriété, la sûreté et la résistance à l’oppression. 3) Le principe de toute
Souveraineté réside essentiellement dans la Nation. Nul corps, nul individu ne peut exercer d’autorité
qui n’en émane expressément”.
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da manutenção da paz e da segurança internacionais, nem por consequência


o do respeito à pessoa humana. Por isso sucumbiu, em 1939, vítima também
da própria guerra, cuja missão era evitar. Claro que não foi apenas a guerra
que a aniquilou. Pesa no seu declínio, do mesmo modo, o fato de ela não ser
propriamente mundial, visto que os Estados Unidos não figuravam na realidade
como membros. Ainda que o Presidente Woodrow Wilson (1913-1921) dos
Estados Unidos tenha incentivado a criação da Liga das Nações, a qual foi
inspirada em grande medida nos chamados “Quatorze pontos” do Presidente
Wilson, esse Estado não ratificou a convenção porque o Congresso não aprovou
a convenção.
Pouco tempo depois, ainda em plena Segunda Guerra Mundial, os Estados
Unidos e o Reino Unido tornam pública a precursora Declaração de Princípios
conhecida como Carta do Atlântico10. Na mesma linha de instrumentos
precursores acha-se a Declaração das “Nações Unidas” de 1942, que reafirma
no Preâmbulo os princípios da Carta do Atlântico, além de usar pela primeira
vez a autodenominação Nações Unidas, por sugestão do Presidente dos Estados
Unidos. Este documento é, na verdade, o ponto de partida para a criação das
Nações Unidas11. De fato, na Conferência de Dumbarton Oaks (Washington,
D. C.), em 7 de outubro de 1944, propõe-se a criação de uma organização
internacional, que se denominaria Nações Unidas.
Com efeito, a Carta das Nações Unidas é sem dúvida o grande documento
de defesa da paz e dos direitos humanos12, cuja declaração de direitos é
materializada mais tarde com a aprovação da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, como se verá a seguir.

10 
A Carta do Atlântico, Declaração de Princípios feita pelo Presidente dos Estados Unidos, Franklin
Roosevelt, e pelo Primeiro Ministro britânico, Winston Churchill, em 14 de Agosto de 1941, é o primeiro
documento internacional, de peso, anterior à instituição das Nações Unidas. O art. 6 da Declaração reza
que “Depois da destruição completa da tirania nazista, esperam que se estabeleça a paz que proporcione
a todos os Estados os meios de viver em segurança dentro de suas próprias fronteiras, e aos homens
em todas as terras a garantia de existências livres de temor e de privações”. Ferreira de Mello diz que o
principal objetivo de Churchill nesse encontro era o de convencer os Estados Unidos a declarar guerra
à Alemanha. O Brasil aderiu aos seus princípios em 1943. Por sinal, o documento não foi assinado, mas
enviado via telégrafo para aprovação dos respectivos governos. Cf. Mello, Rubens Ferreira de. Textos de
direito internacional e de história diplomática de 1815 a 1949. 1950. p. 592.
11 
No Preâmbulo da Declaração os signatários afirmam “[...] defender a vida, a liberdade, a
independência e a liberdade de culto, assim como para preservar a justiça e os direitos humanos
nos seus respectivos países e em outros”. Abranches diz que “Pela primeira vez, uma declaração
internacional consagrou o princípio de que os Estados devem preservar os direitos humanos, não só nos
respectivos territórios, como nos dos outros”. Abranches, C. A. Dunshee de. Proteção internacional
dos direitos humanos. 1964. p. 49.
A Declaração foi assinada inicialmente por 26 países. Em 1945 contava com mais 19 “adesões”,
dentre elas, a do Brasil, feita em 8 de fevereiro de 1943.
12 
A Carta das Nações Unidas foi elaborada durante a Conferência de São Francisco, fato ocorrido
entre 25 de abril e 26 de junho de 1945. Foi assinada em 26 de junho de 1945, entrando em vigor em
24 de outubro do mesmo ano. A Carta, como se sabe, criou a Organização das Nações Unidas, cuja
função principal é a manutenção da paz, da segurança internacionais e o respeito aos direitos humanos.
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De acordo com Abranches, a Carta da ONU nasce impregnada da “[...]


mística do respeito aos direitos humanos por todos os Estados, como eixo das
relações internacionais no mundo do após-guerra”13. A Carta não deixa dúvidas
quanto à preocupação com o respeito aos direitos humanos, visto que o assunto
está presente ao longo do texto do referido acordo internacional. Ela evidencia,
desde o preâmbulo, qual é a posição que o ser humano passa a ter a partir da sua
instituição. As palavras preambulares da Carta são concludentes:

Nós, os povos das Nações Unidas, resolvidos a preservar as gerações


vindouras do flagelo da guerra, que por duas vezes, no espaço da nossa vida,
trouxe sofrimentos indizíveis à humanidade, e a reafirmar a fé nos direitos
fundamentais do homem, na dignidade e no valor do ser humano, na igualdade
de direito dos homens e das mulheres.

A Carta estabelece na parte dispositiva (art. 2, § 3) que é propósito da


Organização conseguir, mediante a cooperação internacional, “[...] promover
e estimular o respeito aos direitos humanos e às liberdades fundamentais para
todos, sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. Essa referência eleva os
Direitos humanos do plano doméstico ao internacional, negando ao Estado a
partir de então o espaço de reserva nesta matéria, que é de interesse e competência
da sociedade internacional e do seu direito14. Naturalmente, o trato do assunto
Direitos humanos na Carta recebeu críticas, as quais são resumidas em três por
Abranches15: a) indefinição dos direitos e das liberdades, b) “[...] falta de normas
reguladoras das medidas de execução”, c) a falta de um tribunal internacional
para processar as violações dos Direitos humanos16. Contudo, não resta dúvida

13 
Abranches, C. A. Dunshee de. Op. Cit. p. 57.
14 
A Carta cuida dos Direitos Humanos também no art. 13 “1. A Assembléia Geral iniciará
estudos e fará recomendações, destinados a: b) [...] favorecer o pleno gozo dos direitos humanos
e das liberdades fundamentais, por parte de todos os povos, sem distinção de raça, sexo, língua
ou religião”. No art. 55 reafirma o direito de autodeterminação dos povos: “Com o fim de criar
condições de estabilidade e bem-estar, necessárias às relações pacíficas e amistosas entre as Nações,
baseadas no respeito ao princípio da igualdade de direitos e da autodeterminação dos povos, as
Nações Unidas favorecerão: [...] c) o respeito universal e efetivo dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais para todos sem distinção de raça, sexo, língua ou religião”. O parágrafo
segundo do art. 62 estabelece que o Conselho Econômico e Social “Poderá, igualmente, fazer
recomendações destinadas a promover o respeito e a observância dos direitos humanos e das
liberdades fundamentais para todos”. Ainda em referência ao Conselho Econômico e Social, diz
o art. 68 que esse órgão “Criará comissões para os assuntos econômicos e sociais e a proteção
dos direitos humanos”. Na parte referente ao sistema internacional de tutela, o art. 76 preceitua
que são objetivos básicos do sistema de tutela “c) Estimular o respeito aos direitos humanos e às
liberdades fundamentais para todos, sem distinção de raça, sexo língua ou religião e favorecer o
reconhecimento da interdependência de todos os povos”.
15 
Abranches, C. A. Dunshee de. Proteção internacional dos direitos humanos. Op. cit., p. 68.
16 
Deve-se recordar que a Austrália propôs na Comissão do Conselho Econômico e Social,
que discutiu o Projeto da Declaração Universal dos Direitos Humanos, a criação de um tribunal
internacional com jurisdição universal (que ainda falta), com vistas à aplicação de sanções nos casos
de violação dos Direitos humanos.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
Segundo semestre de 2018. Pp. 209-232. ISSN 1575-6823 e-ISSN 2340-2199 doi: 10.12795/araucaria.2018.i40.09
218 Fredys Orlando Sorto

de que a partir da instituição da Carta das Nações Unidas os Direitos humanos


passam a gozar de novo status no mundo, passando desde então a ter dignidade
sem precedentes na sociedade internacional. Por essa via, a Declaração se
transformou, a despeito das críticas, em Declaração de Direitos da Humanidade.
Convém, antes de ingressar propriamente no exame da DUDH, versar
sobre outro documento de notável importância, e anterior à DUDH, a saber, a
Declaração Americana de Direitos Humanos. Esse documento foi oficialmente
aprovado, em 2 de maio de 1948, como Declaração Americana dos Direitos
e Deveres do Homem pela Resolução XXX, na IX Conferência Internacional
Americana, em Bogotá (Colômbia), precedendo, portanto, a Declaração
Universal em pouco mais de sete meses.
O documento americano registra, de modo lapidar, as contribuições
iluministas marcadas nos mencionados instrumentos liberais. Afirma-se quanto
à liberdade e à igualdade a “universalidade” dos direitos humanos, bem como a
reciprocidade entre direitos e deveres no exercício da cidadania.

Todos os homens nascem livres e iguais em dignidade e direitos e, como são


dotados pela natureza de razão e consciência, devem proceder fraternalmente
uns para com os outros. O cumprimento do dever de cada um é exigência do
direito de todos. Direitos e deveres integram-se correlativamente em toda a
atividade social e política do homem. Se os direitos exaltam a liberdade
individual, os deveres exprimem a dignidade dessa liberdade.

De fato, quanto à estrutura, a pioneira Declaração Americana dos direitos


humanos divide-se em dois capítulos que tratam respectivamente dos Direitos
(arts. 1 a 27) e dos Deveres (arts. 29 a 38) da pessoa humana. A Declaração
estabelece que todo ser humano tem direito, dentre outros, à vida, à liberdade
(religiosa, de expressão etc.,) à segurança e integridade da pessoa, à igualdade
perante a lei, ao sufrágio e à participação no governo, à educação, à saúde, ao
trabalho, à justiça, à propriedade, à nacionalidade.
A parte relativa aos deveres da Declaração Americana é de considerável
importância no campo dos Direitos humanos, especialmente no que concerne aos
direitos de cidadania, porquanto às vezes as afirmações contundentes de direitos
conduzem ao despropósito de esquecer as obrigações, com nefandas consequências
para a comunidade. A simples afirmação de direitos, sem os devidos deveres,
mostra apenas um lado dos direitos de cidadania, os quais estão no coração dos
direitos humanos. Sem o conteúdo da cidadania, os direitos humanos perdem a
sua essência, porque não há comunidade política sem os direitos de cidadania.
Neste particular, a Declaração Americana é irretocável. Porque traz não apenas o
enunciado de direitos, mas também a completude da cidadania ao tratar dos seus
dois elementos essenciais. Por isso e por outros méritos, ela é, com toda a justiça, o
mais insigne precedente da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948.

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Segundo semestre de 2018. Pp. 209-232. ISSN 1575-6823 e-ISSN 2340-2199 doi: 10.12795/araucaria.2018.i40.09
Declaração Universal dos Direitos Humanos: 219
autoridade, significado e natureza jurídica

Tanto assim que a Declaração registra, logo depois dos direitos, os


principais deveres, dentre os quais estão o de convivência social de toda a
pessoa em relação às outras; o dever dos pais de auxiliar, de alimentar e de
educar os filhos menores, bem como os deveres destes em relação aos genitores
(honrar, sempre; auxiliar, alimentar, amparar, quando necessário). É importante
assinalar que certos deveres individuais estão intimamente relacionados aos
direitos sociais. Assim, ao direito ao trabalho corresponde o dever de trabalhar
para a obtenção dos meios necessários à subsistência; do mesmo modo, ao
direito à educação corresponde o dever de educar-se, isto é, de a pessoa adquirir
pelo menos a instrução primária. Poder-se-ia dizer então que o analfabetismo é
fruto da carência do direito à educação e/ou do incumprimento do dever cidadão
de instruir-se? Trata-se, como sabido, de direito/dever de notável significado na
hora do exercício dos direitos políticos, sendo que este é também outro dever,
visto que toda a pessoa tem de votar nas eleições populares, mas somente a
educação proporciona o discernimento adequado na hora das decisões políticas.
Além desses deveres, a Declaração Americana menciona os seguintes: o de
obediência à lei, o de prestar os serviços civis e militares necessários à defesa e
à conservação do Estado, o de cooperar com a assistência e previdência sociais,
o de pagar impostos destinados à manutenção dos serviços públicos.

2. Declaração Universal de Direitos Humanos (1948)

A efetiva internacionalização da proteção dos Direitos humanos só é factível


a partir da Carta das Nações Unidas, de 1945, cujo ápice modelar é a Declaração
de 1948. Esse documento é, por várias razões, um marco fundamental na história
dos direitos humanos. Acima de tudo porque tem o condão de devolver o ser
humano ao seu devido lugar, isto é, ao centro do processo normativo e protetor,
dando-lhe a titularidade e a subjetividade no plano internacional.
A Declaração Universal dos Direitos Humanos foi aprovada pela Resolução
217-A, na 3.ª Sessão Ordinária da Assembléia Geral das Nações Unidas, em
Paris, em 10 de dezembro de 194817. Logo, se não é tratado, é supérfluo dizer
que ela carece de índole convencional, razão por que não vincula juridicamente
os signatários.

17 
A Organização das Nações Unidas tinha, em 1948, apenas 58 membros. Destes, 48 votaram a
favor da Resolução 217-A (Afeganistão, Argentina, Austrália, Bélgica, Birmânia, Bolívia, Brasil,
Canadá, Chile, China (Taiwan), Colômbia, Costa Rica, Cuba, Dinamarca, República Dominicana,
Equador, Egito, El Salvador, Estados Unidos, Etiópia, Filipinas, França, Grécia, Guatemala, Haiti,
Holanda, Índia, Iraque, Irã, Islândia, Líbano, Libéria, Luxemburgo, México, Nova Zelândia, Nicarágua,
Noruega, Paquistão, Panamá, Paraguai, Peru, Reino Unido, Síria, Suécia, Tailândia, Turquia , Uruguai
e Venezuela.), 8 se abstiveram (Arábia Saudita, Bielorússia, Iugoslávia, Polônia, Tchecoslováquia,
Ucrânia, União Soviética, União Sul-Africana). Houve 2 ausências (Honduras e Iêmen). Nenhum voto
contra.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
Segundo semestre de 2018. Pp. 209-232. ISSN 1575-6823 e-ISSN 2340-2199 doi: 10.12795/araucaria.2018.i40.09
220 Fredys Orlando Sorto

Não há como nominar o autor da DUDH18. Por certo é obra coletiva que
recolhe as idéias dominantes e as tradições ocidentais. Contudo, é preciso
registrar que determinadas personagens tiveram participação decisiva, dentre
elas, John Humphrey (Canadá) Diretor da Divisão de Direitos Humanos,
responsável pela redação do primeiro rascunho da Declaração; René Cassin
(França) sob cuja responsabilidade ficou a versão final do texto aprovado;
Eleanor Roosevelt (EUA) que presidiu o Comitê que redigiu a Declaração.
A Declaração aprovou-se nos moldes das declarações de direitos dos
Estados (plano interno), mas é realmente a primeira declaração internacional
de direitos humanos. A sua autoridade, como é notório, não advém de norma
superior ao ordenamento do Estado nem mesmo do voluntarismo estatal. O
seu fundamento de autoridade é moral e advém da própria dignidade da pessoa
humana, que é comum a todos os seres em qualquer parte. O que realmente
importa é a condição de pessoa humana.
É consenso na doutrina que a DUDH constitui o ponto de partida do
movimento contemporâneo de defesa dos direitos humanos. Pode-se licitamente
discordar disso. Pois, como já foi dito, o grande monumento jurídico dos
direitos humanos começa com a Carta da ONU. Esta, sim, é a que constitui
o verdadeiro ponto de partida, sendo, no entanto, a DUDH a tradução mais
afortunada desse espírito protetor da Carta das Nações Unidas19.
Não há negar que a Declaração é fruto das tradições jurídicas, políticas
e filosóficas ocidentais. A Declaração é censurada, malgrado, desse defeito
de origem, espécie de pecado original que acompanha a Declaração desde o
seu nascimento. A este respeito, sustenta Wilde que ela realmente se baseia na
história e nas tradições de certo grupo de países ocidentais. “Contudo, ela foi
expressa de forma aberta e inteligível para povos com outras histórias e nas
tradições, que agora compõem o movimento global de direitos humanos20”.
Não é a Declaração, contudo, um documento que parta do zero, do nada, do ponto
de vista fatual e instrumental. De efeito, de um lado está a maior tragédia da história
da Humanidade, provocada pela insanidade de lideres que promoveram a partir dos
seus Estados, alavancados por um positivismo jurídico perverso, a banalização do ser

18 
Eleanor Roosevelt (Estados Unidos) presidiu o Comitê que elaborou a Declaração Universal dos
Direitos Humanos. Os outros membros do Comitê foram: René Cassin (França), Charles Malik (Líbano),
Peng Chun Chang (China), Hernán Cordero Santa Cruz (Chile), Alexandre Bogomolov e Alexei Pavlov
(URSS), Lord Dukeston e Geoffrey Wilson (Reino Unido) e William Hodgson (Austrália).
19 
As lições de Cançado Trindade são também nessa direção: “Em nada surpreende que a Declaração
Universal viesse logo a ser tida como uma interpretação autêntica e elaboração da própria Carta das
Nações Unidas (no tocante em particular a suas disposições sobre direitos humanos), dando assim
conteúdo a algumas de suas normas. A autoridade da Declaração de 1948, nesse sentido, fortaleceu-se,
ao ser reconhecida como refletindo normas de direito internacional consuetudinário [há controvérsias];
seus princípios passaram a ser vistos como correspondendo a princípios gerais do direito”. Trindade,
Antonio A. Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. 1999. p. 22.
20 
Wilde, Ralph. Uma visão geral da Declaração Universal dos Direitos Humanos. In: Direitos
humanos: referências essenciais. 2007. p. 106.
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Segundo semestre de 2018. Pp. 209-232. ISSN 1575-6823 e-ISSN 2340-2199 doi: 10.12795/araucaria.2018.i40.09
Declaração Universal dos Direitos Humanos: 221
autoridade, significado e natureza jurídica

humano, revelando-se, além disso, totalmente possível a destruição da espécie a partir


dos ensaios apocalípticos de Nagasaki e Hiroshima; de outro lado está o progressivo
acúmulo de documentos originários do Direito interno ocidental consagrando direitos
fundamentais, limitadores do poder absoluto de governantes21.
A Declaração é o primeiro documento internacional dos direitos humanos que
busca integrar, de modo simples e inteligível, todos os direitos humanos em um bloco
indivisível. O seu caráter holístico é traço fundamental, posteriormente corroborado
por outros documentos jurídicos. Essa natureza totalizante da Declaração é confirmada
na I Conferência Mundial de Direitos Humanos das Nações Unidas, celebrada em
Teerã, em 196822, cuja Proclamação diz que “Os direitos humanos e as liberdades
fundamentais são indivisíveis”, logo “[...] a realização dos direitos civis e políticos sem
o gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais resulta impossível”. Na segunda
Conferência Mundial de Direitos Humanos (Viena, 1993) reafirma-se na Declaração
e Programa de Ação, da mesma forma, a “universalidade”, indivisibilidade e a
interdependência dos Direitos Humanos. Assim sendo, não cabem na matéria em
pauta nem séries infindáveis de gerações históricas de direitos nem muito menos de
dimensões mensuráveis que nada significam. A Declaração ou qualquer instrumento
internacional de direitos humanos nada tem a ver com a famigerada teoria geracional
dos direitos, cuja invencionice remonta a 1979 (cf. Karel Vasak)23. A Declaração de
Viena é taxativa quanto à unicidade dos direitos humanos:

21 
Cabe repetir que esses documentos são especialmente estes: a Magna Carta de 1215 (Magna
Charta Libertatum). [cf. Wilde, p. 88]; Declaração de Direitos elaborada pelo Parlamento da
Inglaterra em 1689 (Bill of Rights of 1689); a Declaração de Direitos da Virgínia (1776); as 10
Emendas à Constituição dos Estados Unidos (1789); a Declaração de Direitos do Homem e do
Cidadão (Déclaration des Droits de l’Homme et du Citoyen) da Revolução Francesa (1789).
22 
A Conferência Internacional de Direitos Humanos realizada em Teerã, de 22 de abril a 13 de
maio de 1968, com o propósito de examinar os progressos alcançados nos vinte anos de vigência
da DUDH. O segundo parágrafo da Proclamação de Teerã diz: “A Declaração Universal de Direitos
Humanos enuncia uma concepção comum a todos os povos de direitos iguais e inalienáveis de todos os
membros da família humana e a declara obrigatória para a comunidade internacional”. É interessante
notar que a sede desta Conferência tenha sido em um Estado islâmico (Irã), não ocidental, portanto.
23 
Em relação a essa tese geracional dos direitos humanos, a argumentação de Cançado Trindade
é demolidora. Ele diz que rejeita essa teoria porque considera que o direito à vida pertence a todas
as gerações. Eis o que ele diz in verbis: “Eu não aceito de forma alguma a concepção de Norberto
Bobbio das teorias de Direito. Primeiro, porque não são dele. Quem formulou a tese das gerações de
direito foi o Karel Vasak, em conferência ministrada em 1979, no Instituto Internacional de Direitos
Humanos, em Estrasburgo. Pela primeira vez, ele falou em gerações de direitos, inspirado na bandeira
francesa: liberté, egalité, fraternité. A primeira geração, liberté: os direitos de liberdade e os direitos
individuais. A segunda geração, egaIité: os direitos de igualdade e econômico-sociais. A terceira
geração diz respeito a solidarité: os direitos de solidariedade. E assim por diante. Em primeiro lugar,
essa tese das gerações de direitos não tem nenhum fundamento jurídico, nem na realidade. Essa
teoria é fragmentadora, atomista e toma os direitos de maneira absolutamente dividida, o que não
corresponde à realidade. Eu conversei com Karel Vasak e perguntei: “Por que você formulou essa tese
em 1979?”. Ele respondeu: “Ah, eu não tinha tempo de preparar uma exposição, então me ocorreu
fazer alguma reflexão, e eu me lembrei da – bandeira francesa” – ele nasceu na velha Tchecoslováquia.
Ele mesmo não levou essa tese muita a sério, mas, como tudo que é palavra “chavão”, pegou. Aí
Norberto Bobbio começou a construir gerações de direitos etc”. Trindade, Antonio Augusto Cançado.
A Tese de “Gerações de Direitos Humanos” de Norberto Bobbio. 2018.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
Segundo semestre de 2018. Pp. 209-232. ISSN 1575-6823 e-ISSN 2340-2199 doi: 10.12795/araucaria.2018.i40.09
222 Fredys Orlando Sorto

Todos os Direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e


inter-relacionados. A comunidade internacional deve considerar os Direitos de
forma global, justa, equitativa e com igual ênfase. Embora se devam ter sempre
presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os antecedentes
históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos
seus sistemas político, econômico e cultural, promover e proteger todos os
Direitos do homem e liberdades fundamentais.

Como houvera violação sistemática dos direitos declarados nos Estados,


ficou então demonstrada a necessidade de transferir ao Direito internacional a
proteção dos Direitos humanos, mesmo a sabendas de que as normas instituídas
na matéria ficam sob a responsabilidade dos interessados pelo seu cumprimento.
Ao lado disso, criaram-se instâncias de fiscalização e de jurisdição regionais
limitadoras do poder de soberania estatal.
René Cassin diz, com muita propriedade, que o domínio do Estado não
é absoluto em matéria de Direitos humanos. Se de um lado o Estado exerce
de forma exclusiva a competência na promoção e na proteção dos direitos
humanos; do outro “[...] ninguém nega na situação atual da sociedade
internacional que a comunidade de Estados possui direito de intervenção na
referida matéria24”. Pastor Ridruejo, dentre outros doutrinadores, valida a
assertiva de que o respeito aos Direitos humanos não é da responsabilidade
exclusiva dos Estados, essa responsabilidade é compartilhada porque é “[...]
princípio do Direito internacional contemporâneo segundo o qual o respeito
aos direitos humanos já não é assunto da jurisdição interna dos Estados no
sentido do § 2.º do art. 7.º da Carta das Nações Unidas25”.
Quanto à natureza jurídica da Declaração, de 1948, sabe-se que ela não
vincula juridicamente os Estados. Contudo, neste ponto importa muito reconhecer
que o conteúdo da DUDH já se encontra em vigor em outros textos, quer de
Direito internacional dos Direitos humanos (Pactos), bem como em instrumentos
de Direito interno. Celso Mello diz que há consenso em considerar a Declaração
como instrumento internacional obrigatório26. O grande defeito da Declaração,
afirma esse autor, é que ela só cuida dos direitos civis e políticos de tradição liberal
ocidental, tratando os direitos econômicos e sociais apenas marginalmente.
24 
Cassin, René. Protección nacional e internacional de los derechos humanos. 1994. p. 388.
Cassin reafirma a tese de que em matéria de Direitos humanos o Estado não tem mais domínio
reservado: “Mas as gravíssimas violações à dignidade da pessoa humana – leia-se: nazismo e fascismo
–, causas diretas da Segunda Guerra Mundial e os horrores causados por ela têm servido para convencer
os Estados da necessidade que intervenha a comunidade internacional a fim de fiscalizar o respeito aos
direitos humanos fundamentais” (p. 406). O citado autor diz ainda que “Não se deve esquecer que os
pactos internacionais aprovados pelas Nações Unidas em dezembro de 1966 convertem em obrigações
jurídicas os enunciados e princípios da Declaração Universal, consequentemente, consideramos que
o estabelecido no Pacto Internacional mencionado não constitui um progresso decisivo” (p. 404).
25 
Pastor Ridruejo, José Antonio. La protección internacional de los derechos humanos y la
cooperación para el desarrollo. 1992. p. 5.
26 
Mello, Celso D. de Albuquerque. Curso de direito internacional público. 2004. p. 870.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
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Declaração Universal dos Direitos Humanos: 223
autoridade, significado e natureza jurídica

Na doutrina, há autores que põem as Declarações em geral como


responsáveis pela formação do costume internacional, pois consideram que elas
ajudam a consolidar o costume internacional. A esse respeito, Celso Mello diz
que a doutrina considera a maioria dos princípios consagrados pela Declaração
como princípios gerais do direito ou como direito costumeiro27.
Cabe recordar que se denomina Carta Internacional dos Direitos humanos
o conjunto de documentos formado pela Declaração Universal e pelos dois
pactos de 1966: o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e
Culturais e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. A despeito
disso, fica evidente a enorme dificuldade na subordinação dos Estados às
normas de direito internacional. A tese de que os pactos compreendem
normas de aplicação imediata (direitos civis e políticos) e mediata (direitos
econômicos, sociais e culturais) não justifica a divisão de tais direitos em dois
documentos. O problema, certamente, passa pelo ônus trazido para o Estado
pelos direitos sociais ou coletivos, enquanto os direitos individuais (civis e
políticos) demandam apenas a abstenção do Estado. Por essa lógica dissonante
seria também necessário dividir a Declaração “Universal” de 1948.
Quanto ao tema da moralidade da Declaração, é óbvio que a moral em
geral encerra valores que norteiam e regulam a conduta humana, mas eles não
se confundem com os valores e princípios jurídicos. De acordo com Ferreira
da Luz, embora o Direito das Gentes não recepcione as normas morais, “[...]
há entre o direito e a moral uma conexão necessária”28. Aguilar Navarro diz
que “A ordem internacional necessita que a moral lhe subministre um espírito,
e este deve estar impregnado destas notas: boa-fé, lealdade, justiça, confiança
e sinceridade”. Esse é também o entendimento de Celso Mello, que vê na
Declaração apenas valor meramente moral. Mello afirma que “Ela indica as
diretrizes a serem seguidas neste assunto pelos Estados29”.
A Declaração obriga por meio de outros textos em vigor, como já foi
mencionado, pois muitas das suas disposições estão codificadas em pactos
relativos à matéria. Ela em si não tem autoridade jurídica para obrigar, embora
lhe sobre autoridade moral. A Declaração vincula, pois, por via ‘oblíqua’, quer
dizer, por intermédio de outros textos legais obrigatórios. Além de ajudar a
formar e consolidar o costume internacional. Convém repetir que há autores
(Mello) que consideram as disposições da Declaração princípios gerais do
Direito ou como direito internacional consuetudinário30.

27 
Mello, Celso D. de Albuquerque. Ibidem p. 870.
28 
Luz, Nelson Ferreira da. Introdução ao direito internacional público. 1963. p. 22.
29 
Mello, Celso D. de Albuquerque. Op. Cit. p. 870.
30 
Trindade, Antonio A. Cançado. Tratado de direito internacional dos direitos humanos. 1999.
p. 22.
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224 Fredys Orlando Sorto

3. Comentários à Declaração Universal dos Direitos Humanos

Quanto à estrutura, a Declaração é composta de um preâmbulo e da


parte dispositiva, que é formada por trinta artigos, sendo o primeiro deles
verdadeira declaração de princípios, cujo princípio de igualdade, no que tange
ao seu alcance, é versado no dispositivo seguinte (art. 2). Na referida seção
articulada contemplam-se os direitos individuais, os coletivos, as obrigações
e as condições de exercício dos direitos. De efeito, o documento cuida
pormenorizadamente dos direitos civis, que contêm as liberdades fundamentais
(arts. 3-20), dos políticos, que são os de soberania (art. 21); dos econômicos,
sociais e culturais, que são os direitos coletivos (arts. 22-27). As condições
e os limites de exercício dos direitos são tratados nos dispositivos finais do
documento (art. 28-30). Ademais, a Declaração estabelece também que ao lado
dos direitos há deveres em relação à comunidade política (art. 29). Finalmente,
é escusado dizer, o documento em discussão carece de fecho porque não se
trata de matéria convencional.
A Declaração registra no Preâmbulo pontos fundamentais do então
passado recente, atualmente esses registros ecoam fazendo lembrar que o ser
humano não apreende de fato certas coisas, que não se corrige nem mesmo
diante da repetição estúpida da banalização da vida dos outros. Esses tantos que
perambulam pelo mundo vítimas da miséria, dos que não têm pão, nem teto,
nem pátria. Veja-se a atualidade do texto:

[...] o desprezo e o desrespeito pelos direitos humanos resultaram em atos


bárbaros que ultrajaram a consciência da Humanidade e que o advento de um
mundo em que todos gozem de liberdade de palavra, de crença e da liberdade
de viverem a salvo do temor e da necessidade foi proclamado como a mais alta
aspiração do ser humano comum. (Grifo do pesquisador).

No trecho acima, formalmente, estão consagradas também as Quatro


Liberdades enunciadas pelo presidente dos Estados Unidos, Franklin D.
Roosevelt, no seu discurso perante o Congresso (Estado da União), em 6 de
janeiro de 194131. Que significam essas liberdades? Significariam muito se

31 
Eis o trecho do discurso que trata das referidas liberdades: “No futuro, que procuramos garantir,
idealizamos um mundo fundado em quatro liberdades humanas essenciais: A primeira é a liberdade
de palavra e de expressão, em qualquer parte do mundo; A segunda é a liberdade de cada um adorar
a Deus à sua maneira, em qualquer parte do mundo; A terceira é a liberdade de viver ao abrigo da
necessidade, a qual, traduzida em linguagem corrente, significa uma compreensão econômica, que
assegure aos habitantes de cada Estado uma vida sã e pacífica, em qualquer parte do mundo; A quarta
é a liberdade de viver sem temor, a qual, traduzida em linguagem corrente, significa a redução mundial
de armamentos, a tal ponto e de tal maneira que nenhum Estado tenha condições de cometer atos de
agressão física contra qualquer vizinho, em qualquer parte do mundo”. Trata-se, naturalmente, de
outro Presidente dos Estados Unidos e de outra realidade. Na atualidade o discurso é outro. Vale o que
interessa ao mercado, o que convém à política de um governo sem dignidade humana.
Araucaria. Revista Iberoamericana de Filosofía, Política, Humanidades y Relaciones Internacionales, año 20, nº 40.
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Declaração Universal dos Direitos Humanos: 225
autoridade, significado e natureza jurídica

saíssem do papel e ganhassem o mundo. São peremptoriamente as liberdades


(de expressão, de culto, de não sentir medo; e de não passar necessidade) que
sintetizam as condições imprescindíveis e necessárias à existência digna do
ser humano. A Declaração recolhe essa contribuição, bem como as carências
de um mundo traumatizado pelo flagelo da guerra que retoma o resgate da
dignidade humana a partir da Carta. A Declaração resume o espírito de um
movimento de transformação, de renovação e de crença na Humanidade. Pena
que esse espírito da Declaração esteja hoje tão longe da realidade, tão distante
dos imigrantes que estão à deriva pelos mares do mundo, tão afastado das
famílias de imigrantes cujos filhos menores estão separados dos seus pais por
determinação do atual governo dos Estados Unidos.
No Preâmbulo da Declaração Universal se reconhece que a pessoa humana
tem dignidade32 e direitos, os quais fundamentam a liberdade, a justiça e a paz
na sociedade internacional. Abre-se o documento, pois, com o asserto cabal
de que o ser humano é o centro do processo, o sujeito principal dessa e de
toda e qualquer sociedade. Considera-se por tal razão que o desconhecimento
e o menosprezo dos direitos humanos originam atos bárbaros, como o foram
os perpetrados durante a Segunda Guerra Mundial e como o são a miséria,
a fome, e o degradante fenômeno migratório no presente. Proclama-se então
como a mais alta aspiração do ser humano o advento de um mundo provido
de liberdades civis e de dignidade; um espaço, portanto, livre do temor e da
miséria no qual todos usufruam da liberdade de palavra e de crença.
Ainda no Preâmbulo, considera-se essencial a vigência do Estado
democrático de direito na proteção da pessoa humana; caso contrário,
considera-se legítima a resistência contra a tirania e a opressão. Reputa-se
essencial também a promoção do desenvolvimento de relações amistosas entre
as “Nações”33.

32 
Além da Declaração Universal dos Direitos Humanos (1948), a dignidade da pessoa humana
aparece como garantia objetiva em muitos instrumentos internacionais: 1) Pacto de Direitos Civis e
Políticos (1966): preâmbulo e art. 10-1.º; 2); Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais (1966):
preâmbulo e art. 10-1.º; 3) Declaração e Programa de Ação de Viena (1993): diz que “[...] todos os
direitos humanos têm sua origem na dignidade e no valor da pessoa humana”. Quanto à dignidade
como fundamento dos Direitos humanos, Peces-Barba (2003, p. 13) afirma que: “A modernidade
considera-se desde o humanismo, isto é, a partir da idéia do homem como centro do mundo e que
se distingue dos demais animais com certos traços que implicam a marca da sua dignidade. [...] a
dignidade humana é o fundamento da ética pública laica, que se vai construindo durante séculos, a
partir do século XVI [cf. Maquiavel], com especial relevância para o modelo de grande contribuição
da Ilustração. Kant reunirá bem essa dupla vertente ao responder à pergunta Que é a Ilustração? na
qual vincula o homem (sendo que para ele o homem é um fim em si mesmo e não tem preço) à idéia
de autonomia no sentido de que não necessita de andador e pode caminhar por si mesmo”.
33 
Por negligência no domínio da tecnologia jurídica do Direito das Gentes designam-se as
“Nações” como sujeitos, mas a referência aqui, e noutras partes da Declaração, é apropriadamente
aos Estados, que são os verdadeiros sujeitos de Direito internacional. As “Nações” nesse caso, como
bem o sabem os juristas, não são sujeitos. Aliás, a “Nação” é conceito antropológico ou cultural, não
jurídico. De modo que um Estado pode ser formado por várias nacionalidades.
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[...] os povos das Nações Unidas reafirmaram, na Carta, sua fé nos direitos
humanos fundamentais, na dignidade e no valor do ser humano e na igualdade
de direitos entre homens e mulheres [...]. A Assembléia Geral proclama a
presente Declaração Universal dos Direitos Humanos como o ideal comum a
ser atingido por todos os povos e todas as Nações [sic], com o objetivo de
que cada indivíduo e cada órgão da sociedade, tendo sempre em mente esta
Declaração, se esforce, através do ensino e da educação, por promover o
respeito a esses direitos e liberdades.

Quanto à parte dispositiva da Declaração, o artigo primeiro destaca-


se pelo seu ingente significado no documento em discussão. Tal preceito
estabelece ipsissima verba que “Todos os seres humanos nascem livres e
iguais em dignidade e direitos. São dotados de razão e consciência e devem
agir em relação uns aos outros com espírito de fraternidade”. (Grifo nosso).
Do ponto de vista da mais alta aspiração humana, este é o artigo medular da
Declaração de direitos, pela afirmação de que os seres humanos nascem livres,
iguais, dotados de dignidade humana, sendo detentores de direitos que devem
ser exercidos com espírito de fraternidade, em virtude da sua natureza racional.
Nada obstante, propósito e realidade não se confundem. Cortina leciona a
respeito da imposição de certa ética utilitarista como base da Declaração, diz
ela que “A dignidade humana é o fundamento desses direitos, não a utilidade
que deles pode derivar. Os direitos são exigências da dignidade, não recursos,
instrumentos dos que se extrai utilidade”34.
Refere-se o documento, portanto, a declaração fundamental de princípios,
de cunho iluminista, que toma a razão e a consciência35 como condições
determinantes da espécie humana. Por que a racionalidade deveria ser
determinante de humanidade? Por esse prisma um doente mental estaria
excluído da espécie humana, do contrato social (contratualismo) e dos direitos
humanos?
Todos os seres humanos têm, portanto, direitos pelo fato de pertencerem
ao gênero humano, sejam eles racionais ou não. Dentre esses direitos estão,
segundo a Declaração, a liberdade e a igualdade, que não são de forma
alguma direitos inatos. São direitos reconhecidos internacionalmente como
inevitáveis na luta pela paz, pela convivência pacífica entre os Estados e pelo
desenvolvimento integral da pessoa humana. Além deles está, obviamente, o
espírito de fraternidade.

34 
Cortina, Adela. Las fronteras de la persona: el valor de los animales, la dignidad de los
humanos. 2009. p. 39.
35 
Conta Wide (2007, p. 106) que “Originalmente foi escrito ‘sendo dotados pela natureza de razão
e consciência, dando à palavra ‘natureza’ o sentido de natureza humana (a característica essencial do
homem) ou de Deus. Os redatores rejeitaram a ‘natureza’, para que a Declaração não abrigasse uma
definição particularmente rígida da base dos direitos humanos”.
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autoridade, significado e natureza jurídica

Evidentemente, essa Declaração de 1948 é incompatível com a bestialidade


e a desumanidade dos atos que foram perpetradas durante a Segunda Guerra
Mundial e dos que continuam sendo praticados ainda hoje. A Declaração
reafirma a racionalidade e a consciência dos seres humanos – descontado,
naturalmente, o que foi dito acima em relação à condição de racionalidade –
dando conta que somente o ser humano é capaz de perceber o que é moralmente
certo ou errado quando age em relação aos outros.
O direito de igualdade, afirmado acima, vem disciplinado no parágrafo
primeiro, do artigo 2 da Declaração, que reafirma a capacidade de toda a
pessoa humana de “[...] gozar os direitos e as liberdades estabelecidos nesta
Declaração, sem distinção de qualquer espécie, seja de raça, cor, sexo, idioma,
religião, opinião política ou de outra natureza, origem nacional ou social,
riqueza, nascimento, ou qualquer outra condição”. Como se vê, o artigo em
apreço determina o alcance do direito à igualdade, enunciado no dispositivo
anterior. No papel, tal direito alcançaria, sem distinção, de qualquer natureza,
todos os seres humanos em qualquer parte do mundo, inclusive os apátridas
que se acham à toa, ao deus-dará pelos mares do mundo e que se lhes nega,
sistematicamente, um porto de chegada ou uma mão estendida em sinal de
socorro. Se o que importa é o ser humano, como tanto se declara e se positiva,
então há um incompreensível e profundo abismo entre o que está positivado e
a realidade.
O direito à igualdade é inerente à pessoa humana, independente da sua
condição diferenciada a pessoa tem, segundo o texto, igual valor ou qualidade.
Para ser fiel à realidade, o propósito da Declaração fica apenas na humanidade
de papel, como ficou a Declaração francesa. Diz-se, contudo, que essa paridade
se reflete bem na denominada igualdade de oportunidades, que está na base do
regime democrático no Estado de direito. O artigo estabelece lista não exaustiva
de distinções vedadas pela Declaração.
A par do direito à liberdade, estabelecido no dispositivo inicial, os preceitos
seguintes estabelecem o núcleo comum dos direitos humanos, pois somente
podem ser ditos internacionais os direitos imprescindíveis, sem os quais a
pessoa perde a condição de humanidade. Esses direitos, além da liberdade, são
estes: a) o direito à vida, a qual deve ser digna e dotada de personalidade jurídica
em todo o lugar (arts. 3 e 6)36; b) o direito a não ser mantido à escravidão nem
torturado (arts. 4 e 5)37; c) o direito ao devido processo legal (arts. 8 a 11)38.
36 
Como se pode verificar no dispositivo seguinte, o direito à vida vem acompanhado do direito à
liberdade: “Art. 3. Todo ser humano tem direito à vida, à liberdade e à segurança pessoal. Art. 6. Todo
ser humano tem o direito de ser, em todos os lugares, reconhecido como pessoa perante a lei”.
37 
Os artigos que tratam da escravidão e da tortura são, além de mais amplos, proibitivos: “Art. 4.
Ninguém será mantido em escravidão ou servidão; a escravidão e o tráfico de escravos serão proibidos
em todas as suas formas. Art. 5. Ninguém será submetido à tortura nem a tratamento ou castigo cruel,
desumano ou degradante”.
38 
A Declaração garante a prestação jurisdicional efetiva da ordem jurídica vigente contra
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O resto da seção relativa às liberdades fundamentais, que vai até o artigo


20, cuida de garantir, dentre outros, os direitos à privacidade, à liberdade de
locomoção (de pensamento, de expressão, de religião, de reunião), à residência,
à propriedade, ao asilo político, à nacionalidade estatal, a constituir família.
Com a inserção da nacionalidade, como direito humano, a Declaração tem
por fito combater a apatridia, já a família é considerada “o núcleo natural e
fundamental da sociedade”.
No que se refere aos direitos políticos, (os quais são direitos históricos,
segundo Marshall, porque formados somente no decorrer do século XIX39), a
Declaração os trata em um único dispositivo (art. 20). Os direitos políticos são
os de soberania, que incluem a participação efetiva no processo decisório da
sociedade política. O parágrafo terceiro do artigo 21 se refere com propriedade
a esse processo decisório, destacando o povo como fonte originária do poder:
“A vontade do povo será a base da autoridade do governo; esta vontade será
expressa em eleições periódicas e legítimas, por sufrágio universal, por voto
secreto ou processo equivalente que assegure a liberdade de voto”.
No tocante aos direitos coletivos, a Declaração reafirma a prerrogativa de
todo o ser humano gozar, de acordo com as possibilidades de cada Estado, dos
direitos econômicos, sociais e culturais indispensáveis à sua dignidade. Esses
direitos são, como é sabido, de formação tardia na história estatal moderna,
mas os primeiros que ingressam na seara internacional em virtude da criação
da Organização Internacional do Trabalho, a mesma primazia vale para a
inserção deles no Brasil, pois ingressam antes de os direitos políticos40, embora

as violações dos direitos fundamentais, vedando-se a prisão arbitrária. Mas se porventura houver
infração da lei, nessa hipótese toda a pessoa humana tem direito a julgamento por parte de um tribunal
independente e imparcial. No art. 11 garantem-se a presunção de inocência, bem como os princípios
da reserva legal e da anterioridade da lei:. Diz o citado artigo: “1. Todo ser humano acusado de
um ato delituoso tem o direito de ser presumido inocente até que a sua culpabilidade tenha sido
provada, de acordo com a lei, em julgamento público no qual lhe tenham sido asseguradas todas as
garantias necessárias à sua defesa. 2. Ninguém poderá ser culpado por qualquer ação ou omissão que,
no momento, não constituíam delito perante o direito nacional ou internacional. Também não será
imposta pena mais forte do que aquela que, no momento da prática, era aplicável ao ato delituoso”.
39 
No ensaio Citizenship and Social Class (1950) Marshall aborda o tema da cidadania britânica
à luz das mudanças ocorridas durante o século XIX. Nesse ensaio, Marshall, considerando apenas a
sociedade britânica, elabora uma teoria geral da cidadania. Ele afirma que a cidadania se desenvolve
historicamente nos séculos XVIII (Direitos civis); XIX (Direitos políticos) e XX (Direitos sociais). No
ensaio, ele examina de modo original as relações entre cidadania e classe social a partir da perspectiva
histórica e comparada. Marshall nesse ensaio introduz o conceito de Direitos sociais. A respeito
dos direitos políticos, ele diz que: “Tanto por su carácter como por su cronología, la historia de los
derechos políticos es diferente. Como ya apunté, el período de formación empezó en los albores del
siglo XIX, cuando los derechos civiles asociados al status de libertad habían adquirido la sustancia
que nos permite hablar de un status general de ciudadanía”. Cf. Marshall, T. H.; Bottomore, Tom.
Ciudadanía y clase social. 2005. p. 29.
40 
No Brasil, a primeira experiência democrática é a de 1948-1964, período no qual se inserem,
em parte, os direitos políticos, que são logo destruídos pelo regime autoritário que se estabelece a
partir de 1964. O fim do regime militar e a redemocratização possibilitam o restabelecimento e o
alargamento dos direitos políticos, que ainda estão em expansão por causa da inserção de formas
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autoridade, significado e natureza jurídica

instrumentalizados politicamente. Eles incluem, dentre outros, o direito à


educação, à saúde, ao trabalho, ao salário justo, ao lazer, à participação na vida
cultural da comunidade (Cf. arts. 22 a 27 da Declaração).
Reafirme-se que, em condições ideais, a todo o direito, seja ele individual
ou coletivo, corresponde exatamente um dever do cidadão em relação à
sociedade. Tome-se de um lado, verbi gratia, o caro direito à Educação, que é
um direito social fundamental, do outro lado deve estar o dever de instrução,
que é obrigação individual. Porque de não ser assim, nenhum catálogo de
prerrogativas seria capaz de sobreviver, se do outro lado não houvesse a
respectiva declaração de deveres a serem cumpridos pelas pessoas.
Em última instância, a Declaração Universal é Carta de princípios na qual
se estabelecem direitos essenciais à pessoa humana (individuais e coletivos),
fundamentados na dignidade humana, que devem ser observados por todos.

Considerações finais

A Declaração Universal dos Direitos Humanos é invocada em todo o


mundo pelo reconhecimento da sua incontestável autoridade moral. Além de ser
pioneira no que se refere à instituição do catálogo de direitos no mundo, de ser
representativa da condição humana; de ser, quem sabe, a única possível neste
mundo tão complexo, tão cheio de contrastes e de relativismos. É a primeira
a elevar a dignidade da pessoa humana ao ápice (fundamento), a sobrepor-se
porque declara direitos essencialíssimos ao ser humano de maneira simples e
integral.
Embora o texto não seja juridicamente vinculante para os Estados, visto
que é mera Declaração, ele representa o que deveria vincular, o que os Estados
deveriam ter convertido em tratado, o que deveria ser lei interna e internacional,
porque diz respeito a todos os seres humanos (racionais ou não), estejam eles
dentro dos seus Estados ou fora deles. É a Declaração de direitos da pessoa
humana em todas as situações e lugares, do cidadão do mundo com direito à
hospitalidade, como diria Kant, pois ela abraça a completude dos direitos de
cidadania.
A DUDH é o paradigma “irrepetível” de um momento histórico particular
da consciência humana, é o tratado que deveria ser e não foi, é a declaração

diretas e inovadoras de participação popular. Em rigor, pode-se dizer que os direitos políticos no Brasil
Império eram embustes, fraudes mesmo. Assevera-se isso com base em dados objetivos, como o de
que 85% do povo era formado por analfabetos; que o votante era influenciado na hora de votar; que
no processo eleitoral se firmaram figuras estrambólicas, especialistas em burlar as eleições. De fato,
nesse período surgem personagens como a do ‘cabalista’, que fornecia a prova da renda do votante
e garantia o voto dos alistados, e a do ‘fósforo’. “Se o alistado não podia votar por qualquer razão,
inclusive por ter morrido, comparecia o fósforo, isto é, uma pessoa que se fazia passar pelo verdadeiro
votante”. Cf. Carvalho, Jose Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 2005. p. 34.
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que deveria ser escrita na Constituição Mundial que não existe ainda, é o mais
luminoso documento internacional do movimento que começa com a Carta das
Nações Unidas, cujo brilho fulgurante ilumina todos os recantos onde os direitos
são violados. Se a Declaração fosse um tratado internacional, não seria o que
ela é atualmente, não representaria para a Humanidade o que representa. Se a
Declaração fosse um tratado já teria sido desrespeitada, transgredida, violada.
Mas, por fortuna, a Declaração não é norma convencional vinculante. Por essa
razão não pode ser violada, nem ferida, nem tem o destino das leis caducas. Seu
destino é o da imortalidade em razão da sua essencialidade histórica e da sua
relevância moral e metajurídica.

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