1 Entrevista Com Patricia Hill Collins

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Entrevista com Patricia Hill Collins1

Por Nadya Araujo Guimarães (coordenação)*


https://orcid.org/0000-0002-6871-1920

No dia 29 de outubro de 2019, um grupo de intelectuais se reuniu no Departamen-


to de Sociologia da usp, sob iniciativa do editor da Tempo Social, para entrevistar
Patricia Hill Collins, intelectual norte-americana internacionalmente reconhecida,
que abriu novas perspectivas para o pensamento feminista negro como teoria social
crítica. O ponto de partida foi o novo livro de Collins, intitulado Intersectionality
as Critical Social Theory (Interseccionalidade como Teoria Social Crítica), em que ela
explora os paralelos entre os desafios enfrentados pelos ativistas intelectuais que
criaram o conceito de interseccionalidade e os que estão colocados pelo presente.
Durante a conversa, outros temas surgiram, explorando a agenda de pesquisa da
Autora e seus livros anteriores, assim como os novos desafios para os estudos sobre
relações raciais e a militância antirracista.

1. Transcrição e tradução do inglês ao português: Louisa Acciari (phd lse, Pesquisadora e codiretora
do Centre for Gender and Disastre, University College London, ucl/uk). Revisão: Nadya Araujo
Guimarães (usp, Brasil). Agradecemos o suporte concedido por diferentes instituições, as quais tor-
naram possível a visita acadêmica de Patricia Hill Collins ao Brasil em outubro de 2019; foram elas: a
Universidade de São Paulo / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a Universidade Federal
de São Carlos / Departamento de Ciências Humanas e Educação, a anped – Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, a sof – Sempre Viva Organização Feminista, a Ação Educa-
tiva, o Cebrap – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e a Boitempo Editorial.
* Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
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Helena Hirata: De acordo com sua perspectiva, a interseccionalidade é ao mesmo tempo


“um projeto de conhecimento” e uma “arma política” (Collins, 2015; Collins & Bilge,
2020). Isso significaria dizer, tal como colocado pela pesquisadora francesa Amélie
Le Renard (2018, p. 180), que a interseccionalidade é uma ferramenta analítica
útil somente quando se trata de estudar os grupos subalternos? A interseccionalidade
teria valor unicamente para grupos oprimidos e dominados, e careceria de utilidade
quando se trata de estudar os grupos dominantes? Assim, como poderíamos abordar,
por exemplo, o caso dos professores negros, ao mesmo tempo dominantes pela sua posição
social, mas sofrendo a opressão racial (à qual se associa a opressão de sexo, no caso das
mulheres professoras)?

Patricia Hill Collins: É importante reconhecer que o quadro de referência teórico


da interseccionalidade foi inicialmente concebido por mulheres negras, latinas,
pobres, e por membros de grupos igualmente subordinados. Isso de modo algum
significa dizer que esse quadro de referência deva limitar-se ao estudo dos indivíduos
marginalizados ou dos grupos oprimidos. Um dos motivos pelos quais a perspecti-
va da interseccionalidade pode ser ameaçadora para grupos da elite advém do seu
entendimento de que dominação e subordinação estão interconectadas. Os privilé-
gios de raça, classe, gênero e sexualidade, tanto quanto a marginalização associada
a essas mesmas categorias, não são entidades separadas, mas refletem relações de
poder interconectadas, de sorte que o meu privilégio está intimamente ligado à sua
desvantagem e vice-versa. Dado que esse quadro relacional é interseccional, inexiste
escapatória possível. Não há uma análise puramente racial ou puramente de gênero.
Ao contrário, estamos todos situados numa teia de relações que simultaneamente
nos privilegia ou penaliza, a depender da posição social de cada pessoa.
Tratar a interseccionalidade como um quadro de referência que diz respeito
primeira ou unicamente à experiência das mulheres de cor, das pessoas negras, das
minorias sexuais, dos pobres, jovens e politicamente excluídos é a expressão de uma
perspectiva que costuma representar esse tipo de conhecimento como particularista
e não universal, ou que reconhece a sua utilidade apenas quando trata das preocupa-
ções preexistentes da elite. Uma tal perspectiva teórica confere utilidade às culturas e
experiências desses grupos apenas quando provêm dados para as teorias formuladas
por grupos da elite, ou quando tais teorias se atêm às particularidades da subordi-
nação. As duas presunções deixam subteorizados a dominação e o privilégio, assim
como as hierarquias de poder em que se sustenta o próprio conhecimento ocidental.
Como eu argumento em meu livro Intersectionality as Critical Social Theory,
iacst (Collins 2019), a interseccionalidade não é um campo que pretenda explicar
ou manter a ordem social; ao contrário, almeja criticá-la e transformá-la, haja vista

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que o racismo, o sexismo e correlatos são fundamentalmente injustos. Ao reivindicar


o conhecimento sobre – mas também o conhecimento produzido por – aquelas
populações que estão na base da estrutura, a interseccionalidade examina como as
experiências particulares e os pontos de vista por elas gerados proporcionam cami-
nhos múltiplos para abordar questões que são universais, tais como as da igualdade
e da justiça. Obviamente, nem todo mundo tem interesse em mudar o statu quo.
Quando indagamos se uma análise interseccional pode ser aplicada aos grupos pri-
vilegiados, estamos basicamente demandando da interseccionalidade que se ponha
à prova através dos próprios modelos epistemológicos que a catalisaram, os quais
a interseccionalidade se dispôs a criticar e desconstruir. Acadêmicos perfeitamente
razoáveis, que estão dispostos a se afastar de sua área de expertise para estudar ques-
tões difíceis – por exemplo, todos os que estão dedicados a analisar as obras de um
Shakespeare que de há muito nos deixou –, parecem incapazes de fazer o esforço no
sentido de ler as obras de acadêmicos que contribuíram para a interseccionalidade.
Imbuídos da crença no valor das obras de Shakespeare, eles lutam com a misteriosa
linguagem do inglês shakespeariano e levam suas ideias a sério. Em contraste, as
complexas questões propostas pela interseccionalidade a estudiosos privilegiados
com frequência encontram, da parte dos mesmos, a resposta de que esse é um tra-
balho muito difícil, ou muito fácil, ou mesmo que não vale o esforço de se tentar.
No capítulo 4, intitulado “Intersectionality and epistemic resistance” (iacst,
Collins, 2019), eu examino como a interseccionalidade nos incentiva a desafiar as
hierarquias de poder existentes, que moldam nossa própria capacidade de fazer um
trabalho intelectual. Podemos começar pelas experiências particulares, múltiplas em
sua tessitura, provindas de uma ampla gama de grupos, de modo a analisar um tema
comum através de lentes heterogêneas. Por exemplo, a identidade individual, para
pessoas usando quadro de referência interseccional, oferece um ponto de partida
para a análise. Mas, como a interseccionalidade está sempre em movimento, temos
que ir além das particularidades das nossas próprias vidas individuais. Em vez de
nos aprofundarmos em como se afiguram as experiências de docentes negros com
múltiplas categorias de identidade (essa questão foi respondida pelo grupo), gostaria
de confrontar questões novas e assemelhadas: como podemos abordar o caso dos
professores homens brancos, que são ao mesmo tempo dominantes por sua posição
social, mas que acumulam o privilégio racial? Essa pergunta identifica rapidamente
as múltiplas formas através das quais a masculinidade branca é estruturada através das
mesmas categorias, por exemplo, o professor homem branco gay, o professor branco
em mobilidade social ascendente que ainda lembra como era ser pobre, o professor
homem branco que sofreu violência sexual quando era menino, ou o professor ho-
mem branco que continua perseguido pelo estupro de sua mãe.

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A interseccionalidade levanta questões complexas, tais como essas. E não o


faz como uma bandeira para defender uma política de identidade retrógrada (por
exemplo, o caso preocupante do populismo de extrema direita abraçar uma política
de identidade romantizada de masculinidade branca), mas, antes, como um modo
de avançar no exame das vidas interconectadas que estamos efetivamente vivendo.
A interseccionalidade aponta para a heterogeneidade dentro de qualquer categoria
aparentemente universal. Para mim, a interseccionalidade como campo de pesquisa
e como práxis deve ampliar sua comunidade interpretativa, não por levar os grupos
subordinados a esmolar o seu reconhecimento pelos atores sociais mais poderosos,
mas pela construção de comunidades interpretativas que vão além de diferenças em
termos de poder. Resta saber se a interseccionalidade será bem-sucedida em fazê-lo.

Maria Carla Corrochano: Tal como formulado em vários dos seus artigos, o conceito
de interseccionalidade engloba outras desigualdades além de sexo, raça e classe. Você
poderia nos falar um pouco mais sobre a importância e as formas de incluir categorias
como idade e geração na análise interseccional, particularmente considerando o contexto
presente, claramente marcado pelas relevantes diferenças entre gerações?

Patricia Hill Collins: Adorei sua pergunta pois ela dialoga com meu projeto atual,
a saber, como a idade enquanto categoria de análise poderia ajudar a explicar como
e por que os jovens resistem à opressão. O meu livro Black feminist thought (bft,
Collins, [1990] 2000) faz uma análise extensa do conhecimento resistente das
mulheres negras. Mais recentemente, eu expandi esse argumento no capítulo 3 de
iacst, intitulado “Intersectionality and resistant knowledge projects” (Collins,
2019). Nesse momento, estou interessada em entender como as experiências que
os jovens vivem em momentos cruciais de suas vidas moldam a sua consciência
política. Estou ancorando minha análise nas vidas dos jovens negros nos Estados
Unidos, apoiando-me na interseccionalidade como quadro interpretativo, com a
idade como categoria central. Se o racismo antinegro continua tomando formas que
são específicas para a juventude negra, por que pressupor que esses jovens negros e
negras não estariam cientes das formas de racismo que lhes são direcionadas? Por
que pressupor que jovens negros e negras não têm a capacidade de entender e resistir
à sua própria opressão?
Penso que podemos afirmar de modo contundente que uma análise geracional
desempenha um papel importante na formação da consciência política dos jovens
(Mannheim, [1927/28] 1952). Conceber a idade como categoria analítica, ao invés
de definir a idade como uma categoria descritiva de análise para fins estatísticos,
aponta para a utilidade da análise geracional como forma de pensar a idade. Como

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a idade poderia ser uma categoria de análise importante para a interseccionalidade e


por que poderia ser particularmente importante agora? Seria a idade um sistema de
poder? E, se for um sistema de poder, que tipo de sistema de poder? Fundamentar
meu trabalho nas necessidades de um grupo social específico, no caso, a juventude
negra nos Estados Unidos, destaca a relevância de se pensar de modo mais amplo
sobre a idade e a sua relação com a interseccionalidade.
Nesse sentido, distintas gerações de jovens afro-americanos entraram na idade
adulta durante distintos períodos; alguns em meio a protestos políticos, outros
defrontando-se com momentos de inércia política. Quais são as implicações políticas
de viver um conjunto comum de experiências políticas quando se tem dez, vinte ou
cinquenta anos? Tomemos, por exemplo, as grandes mudanças dos últimos anos e seus
efeitos sobre todos nós: nos Estados Unidos, estamos vivenciando os efeitos de uma
presidência de oito anos do Obama dedicada à inclusão, seguida por quatro anos do
presidente sucessor, voltado para desfazer as políticas da administração Obama; uma
pandemia de saúde global que revelou as desigualdades raciais gritantes na saúde; e
o poder de permanência e os contornos cada vez mais globais do movimento “Black
Lives Matter” (“Vidas Negras Importam”) como uma resposta à injustiça social.
Como esses eventos têm afetado crianças negras, jovens adultos, adultos maduros e
pessoas negras idosas? Uma lente monocategorial reduz a complexidade que eleva
a raça à condição de categoria mestra da análise. Mas, e quanto à idade?
Você coloca uma pergunta importante sobre como os jovens negros estão situados
dentro do ativismo negro intergeracional. As relações intergeracionais entre negros
nos Estados Unidos são um fértil terreno para se examinar a consciência política
tanto dentro como entre gerações. Penso que os jovens negros de há muito enfren-
tam desafios similares, que tomaram formas diferentes, mas que permaneceram
constantes ao longo do tempo. O policiamento diferenciado para jovens negros e a
falta de preocupação com as vidas da juventude negra não são temas novos. Muito
pelo contrário. Gerações diferentes experimentam-no de forma diferente, a depender
de onde você é jovem; e jovens são alvos desse tipo de comportamento. Qual é a
sabedoria intergeracional ou o conhecimento intergeracional para resistir a esse tipo
de tratamento? Como esse saber é compartilhado, transmitido e revitalizado a cada
geração? Atualmente, estou focalizando meu interesse na consciência geracional das
experiências da juventude negra, tendo o cuidado de conceituar a juventude negra
por meio de um quadro de referência interseccional. Mas estou particularmente
interessada em um conjunto mais amplo de questões que dizem da política da cons-
ciência geracional, que dialoga com os mecanismos institucionais que as diferentes
gerações usam para conversar umas com as outras sobre temas comuns.

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Flavia Matheus Rios: No seu prefácio à edição brasileira do seu livro Black Feminist
Thought, publicado pela Boitempo (Collins, 2019a), você afirma que, apesar de suas
reflexões estarem ancoradas unicamente na experiência das mulheres negras americanas,
as ideias ali contidas poderiam valer para outras realidades. Como isso é possível? Você
acha que as mulheres do Norte e do Sul das Américas poderiam compartilhar valores
e experiências?

Patricia Hill Collins: Acho que mulheres negras do Norte e do Sul já comparti-
lham mais do que imaginamos. O que precisamos são diálogos que transponham
as fronteiras nacionais que nos separam. Quando escrevi a primeira edição de
bft (Collins, [1990] 2000), senti que aquela era uma perspectiva parcial, dentre
muitas, sobre o que o pensamento feminista negro era e poderia ser. Até mesmo o
termo “pensamento feminista negro” era provisório, porque eu sabia ser impossível
estabelecer um pensamento unificado sem um processo democrático e inclusivo em
torno de quem pode decidir o que conta como saber legítimo. Encarei a redação
de bft como um desafio epistemológico – seu conhecimento seria provisório até
que a comunidade interpretativa fosse expandida. Uma comunidade global de
mulheres negras não é apenas algo a ser descoberto – tais comunidades precisam,
antes, ser construídas.
A pergunta atual é como construir comunidades de mulheres negras para além das
fronteiras nacionais, que participem desse projeto coletivo. Os desafios que enfrentei
para desenvolver meu entendimento sobre as experiências e ideias das mulheres negras
na diáspora africana foram particulares, muito embora tenham implicações gerais.
Entender o feminismo negro no Brasil foi um processo particularmente desafiador.
Como eu não sabia ler o português, tive que me apoiar em fontes secundárias sobre
o povo negro no Brasil, bem como em traduções de fontes primárias escritas por
mulheres afro-brasileiras. Os filtros, as práticas de controle, eram enormes. Tive,
então, que driblar esses variados empecilhos que modelam como somos incentivados
a nos perceber, uns aos outros, nos diferentes contextos nacionais.
Tenho, agora, uma compreensão mais sofisticada acerca dessas práticas de fil-
tragem, que ocorrem na mídia e na academia, tanto nos Estados Unidos como no
Brasil. Vige, em ambas, um entendimento do tipo “porque controlamos o que conta
como verdade, essas são as percepções sobre o Brasil que você deve aceitar”. Quando
se trata da mídia americana, a cobertura americano-centrada de eventos globais é
emblemática. Apesar de seu tamanho e importância, a cobertura sobre o Brasil é irre-
gular e concentrada em temas de interesse para as elites. Historicamente, a academia
seguiu um rumo similar. Veja, por exemplo, a longevidade com que prevaleceram, na
produção acadêmica sobre raça, as descrições do Brasil como sendo uma democracia

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racial. Ou a ideia de que o Brasil não teria um problema racial porque inexistem
raças, apenas uma identidade nacional. Ou mesmo de que a eliminação do racismo
no Brasil, graças à sua democracia racial, seria uma situação a ser replicada nos Esta-
dos Unidos. Percepções midiáticas e acadêmicas reforçam-se reciprocamente. Por
exemplo, as representações sobre o Carnaval brasileiro rotineiramente o destacam
como um festival que celebra a harmonia racial do Brasil. Eu questionei essas prá-
ticas de controle porque há muito suspeitava que existia muito mais no Brasil e nas
mulheres negras no Brasil do que dançarinas de samba seminuas. Viajar ao Brasil,
apesar do meu português deficiente, foi um modo de ter acesso a outros pontos de
vista. Se falo das minhas próprias dificuldades é porque tive o tempo e os recursos
para tentar. Muitas mulheres negras na diáspora não os têm.
Existe uma ampla, jovem e vibrante energia nas mulheres negras do Brasil, que se
mobilizam por mudança nas mais diversas localidades. Encontrei inúmeras intelec-
tuais jovens negras brasileiras que estão produzindo um trabalho inovador, muitas
sob circunstâncias difíceis; e suas experiências eram familiares para mim. Creio que
o momento é adequado para continuarmos a entabular conversações entre mulheres
negras no Norte e no Sul, para além das fronteiras nacionais.
Enfim, sendo clara, quando escrevi bft, nunca pensei que as perspectivas ali
apresentadas com respeito às mulheres negras americanas seriam verdadeiras para
todas as mulheres negras. Tinha plena consciência do viés da mídia e da academia
americanas sobre as mulheres negras da diáspora africana, mas fiz uma aposta ao
escrever esse livro, acreditando que outras pessoas poderiam considerá-lo útil. E
foi exatamente isso o que aconteceu. bft tem criado espaço para discussão, e estou
aberta a conversações que tratem das particularidades das experiências das mulheres
negras no Brasil, na África do Sul, no Reino Unido e no Canadá, mas também que
se esforcem para ultrapassar barreiras nacionais. Ofereço as ideias de bft para a
próxima geração de intelectuais feministas negras. A elas caberá decidir abraçar esse
vocabulário e aprofundar seu significado ou, quem sabe, criticá-lo e modificá-lo. De
toda forma, ele está aqui para elas.

Edna Roland: No seu livro fundador, bft, finalmente traduzido para o português,
você explica como, nos Estados Unidos, foi feito um trabalho aprofundado no sentido de
pesquisar e coletar ideias e textos de mulheres afro-americanas, de modo a contradizer
as imagens negativas da feminidade negra, revelando a riqueza da tradição intelectual
feminina negra. No Brasil, ainda há muito a ser feito nesse sentido. Entretanto, temos
uma rica epistemologia africana que nos chegou pela via das várias tradições religiosas
da África Ocidental, e que oferece arquétipos femininos fortes e positivos, distantes da
lógica binária do bem e do mal, doutrinariamente estabelecida na tradição cristã. Eu

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me pergunto quantos elementos da epistemologia africana sobreviveram e foram refor-


mulados pelo feminismo negro desenvolvido nos Estados Unidos.

Patricia Hill Collins: Acredito que existam mais dessas memórias africanas entre
as mulheres afro-americanas do que imaginamos. Ironicamente, encontrar com
mulheres negras fora do contexto americano aguçou minha compreensão acerca
dessas sobrevivências. É como se o Brasil, a África do Sul, Cuba e Haiti segurassem
um espelho no qual as mulheres afro-americanas podem visualizar as suas âncoras
africanas. Uma coisa é imaginar esses laços; outra é sentir tais conexões. Esta é minha
resposta curta.
Entretanto, explorar o argumento de como as ricas ideias de uma epistemolo-
gia africana teriam penetrado as tradições religiosas afro-americanas é um projeto
intelectual desafiador numa academia assentada em pressupostos laicos. O com-
portamento das mulheres negras reflete os arquétipos femininos positivos e fortes
que você descreve, mas, ironicamente, o árduo trabalho de escavar essas influências
africanas ainda não foi realizado pelo feminismo negro americano. Minha sensação
é que investigar a riqueza e a importância política dessa herança cultural tem sido
muito mais difícil nos Estados Unidos do que no Brasil. Mesmo que o passado
africano seja algo que todos podemos imaginar, nós o fazemos de forma diferente,
nos Estados Unidos e no Brasil, através dos distintos enquadramentos nacionais,
característicos de nossos respectivos países.
Meu uso inicial do termo Afrocentrismo na edição de 1990 de bft lançava mão
dessa perspectiva, a saber, de como africanos escravizados nos Estados Unidos usavam
epistemologias africanas (Collins, [1990] 2000). Meu argumento mais desafiador era
o de que as maneiras pelas quais essas ideias foram refeitas no contexto da opressão
racial eram essenciais para a sobrevivência dos negros. Contudo, um tal argumento era
difícil de ser veiculado na literatura convencional. Antes de publicar bft, submeti um
artigo a uma reconhecida revista feminista no qual defendia a tese de que a concep-
ção de maternidade nas famílias afro-americanas e entre as mulheres negras era uma
reação ao racismo, mas que reminiscências africanas das concepções de feminidade
negra também poderiam estar ali presentes. Meu argumento se baseava na ideia de
que as mulheres negras expressavam uma capacidade de agência que demonstraria a
importância das epistemologias africanas no seu esforço para sobreviver ao racismo.
Usei o termo “afrocêntrico” para descrever essa linha de pensamento. Meu artigo foi
rejeitado. Um parecerista sugeriu, para parafrasear: “não estamos convencidos de que
exista algo como o afrocentrismo. Não acreditamos que existam tradições filosóficas afri-
canas; e se tais tradições existissem, a autora deveria provar a existência de persistências
africanas no Novo Mundo”. Mas, como eu poderia comprová-lo, se tanto as religiões

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ocidentais quanto a cultura popular postulavam a inferioridade negra? O parecerista


se sentia perfeitamente à vontade para afirmar que a sociedade ocidental contem-
porânea estava de alguma forma conectada a uma Grécia imaginária, esquecendo
(de modo conveniente) os 1500 anos de história europeia transcorridos; entretanto,
nem de longe acalentava a ideia de que tais conexões poderiam ser verdadeiras num
período bem mais curto de tempo (quinhentos anos). Eu jamais seria vitoriosa
enviando artigos que defendessem tal argumento. Decidi, então, escrever livros. O
resultado foi a visão de mundo do “feminismo afrocêntrico” presente no bft (1990).
Carecemos de estudo cuidadoso sobre como as epistemologias africanas in-
formaram tanto as sociedades africanas continentais, quanto a ampla gama de
experiências ao interior da diáspora negra. Minha impressão é que o Brasil manteve
laços ricos com esse passado por meio dos legados do candomblé e dos quilombos.
Já nos Estados Unidos há sensibilidades similares, mas bem menos compreensão do
significado das ideias africanas para as nossas experiências vividas. Não sabemos os
nomes das mulheres afro-americanas anônimas das comunidades que foram centrais
para a construção e a continuidade das comunidades negras. Há boas razões para
essas diferenças. As mulheres afro-americanas também tiveram arquétipos fortes
de mulheres negras para, através delas, confrontar o padrão ocidental de ideologias
de gênero. Contudo, por ser tão poderoso, esse arquétipo da mulher negra forte foi
justamente o alvo a ser atacado e estereotipado. Quando se trata de resistir à opres-
são, ter acesso a ideias alternativas é vital. Para as afro-americanas, bem como para as
mulheres negras que querem fazer avançar o feminismo negro, é essencial considerar
o que está fora dos quadros intelectuais ocidentais dominantes.

Marcos Nobre: Minhas perguntas se referem ao seu livro mais recente, Intersectio-
nality as Critical Social Theory (iacst), e mais especificamente ao horizonte da
interseccionalidade como teoria em formação, e sua relação com outras perspectivas
críticas orientadas por e para a práxis (isto é, o estatuto teórico da interseccionalidade
como teoria social crítica e seu alcance). No capítulo 2 do livro você discute teorias que
têm alguma semelhança com a sua própria teoria, no sentido de que são orientadas por
e para a práxis…

Patricia Hill Collins: Nem todas!

Marcos Nobre: Nem todas, você tem razão, eu estava tentando introduzir uma questão
sobre a relação de sua teoria com as da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.

Patricia Hill Collins: Na verdade, a Escola de Frankfurt retoma, com razão, o termo

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“Teoria Crítica” e incorpora a práxis em sua abordagem. Meu argumento é que o


interesse pela práxis também reaparece em outras tradições dominantes como, por
exemplo, nos Estudos Culturais Britânicos, bem assim em tradições do conhecimento
de resistência, como a Teoria Racial Crítica, os Feminismos Negros e Latinos e os
Estudos Decoloniais. “Práxis” é um desses termos que precisamos destrinchar. Minha
seleção de teorias críticas foi deliberada e dialogava justamente com esse aspecto.

Marcos Nobre: Os diferentes usos da crítica, se bem entendi...

Patricia Hill Collins: Isso.

Marcos Nobre: Ao mesmo tempo, me parece que a sua proposta de interseccionalidade


como teoria social crítica tem por objetivo juntar vários usos da crítica social. Você tam-
bém insiste que deve ser uma teoria social crítica que está em construção, uma teoria em
formação. Minha pergunta, então, é a seguinte: o que seria o cerne de tal projeto senão
produzir um espaço teórico e prático capaz de abraçar várias práticas críticas numa só
construção? Esse é um outro modo de lhe perguntar sobre o alcance da interseccionali-
dade. Você diria, por exemplo, que ela poderia ser uma espécie de idioma comum para
a colaboração interdisciplinar, e nesse sentido, teria ela um papel comparável ao que foi
desempenhado, no marxismo, pela crítica da economia política?

Patricia Hill Collins: Quando você sugere que a interseccionalidade estaria buscando
uma linguagem comum para a colaboração interdisciplinar, creio que você aponta
para uma das aspirações fundamentais da interseccionalidade. A relacionalidade
está no cerne da interseccionalidade e de iacst. A interseccionalidade é mais ampla
do que as disciplinas acadêmicas, pois nem todos os projetos de conhecimento se
organizam dessa maneira. No livro, tentei abordar a questão “o que é a intersec-
cionalidade?”. Como indivíduo, eu poderia imaginar o que é e o que poderia ser a
interseccionalidade, e o modelo do pesquisador solitário foi certamente atraente em
vários momentos no meu processo de escrita. Mas escolhi mapear o campo, exami-
nando como as pessoas usavam a interseccionalidade. Erguer um espelho de modo
a refletir as ideias e práticas heterogêneas que acompanham a interseccionalidade,
tentando mapear as várias maneiras como as pessoas a estão utilizando.
A resposta se apresentava à medida que eu escrevia. Quando comecei, concebia
a teoria social crítica enquanto um sistema acabado de ideias. Houve momentos
reconfortantes em que pude ver os contornos dos meus conceitos e como eles se
articulavam. Por exemplo, quando, no capítulo 1, finalmente pude distinguir os
conceitos fundamentais da interseccionalidade dos seus princípios orientadores, eu

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a imaginei como uma coisa. Para mim, ela era uma teoria social crítica, tal como a
crítica marxista da economia política; uma filosofia em que a relação entre as ideias
era o verdadeiro teste de validade da teoria. Não havia necessidade de validar empi-
ricamente a interseccionalidade, vez que ela não almejava prever. Mas o processo de
escrever o livro tornou problemática essa conclusão prematura. Com o tempo, crescia
o meu senso da distinção entre teoria social crítica e teorização social crítica. Minhas
perguntas iniciais tornaram-se mais complexas – “como as pessoas que afirmam a
existência da interseccionalidade a entendem? Como tais entendimentos moldam
sua práxis? E como essa práxis molda compreensões da interseccionalidade?”. Parecia
que eu estava me acercando da interseccionalidade como processo no fazer de um
trabalho crítico. Ou como uma metodologia.
Entrei nesse projeto com a compreensão típica da ciência social sobre metodo-
logia, enquanto uma forma de testar hipóteses teóricas. Contudo, minha visão da
relação entre teoria e método se transformou radicalmente no curso do mesmo. Um
momento crucial aconteceu na Nova Zelândia quando eu expunha a respeito do
capitalismo numa Conferência sobre Estudos Culturais. Minha anfitriã casualmente
me disse: “[…] interseccionalidade, uma teoria? Eu achava que era uma metodo-
logia”. Nunca me ocorrera que alguém pudesse pensar sobre interseccionalidade
de um modo tão diferente do meu. Tive o tempo de um longo voo de volta aos
Estados Unidos para considerar as implicações daquela que parecia ter sido apenas
uma conversa casual. Será que isso significava que a interseccionalidade, como teo-
ria social crítica, se formara por via de sua metodologia, do processo de fazer um
trabalho interseccional? Nesse caso, como poderia conceber a interseccionalidade
enquanto processo, como uma metodologia em aberto que catalisaria uma teoria
social crítica igualmente aberta? Como você teoriza sabendo como será o final? Ou
mesmo se existe um fim? Como você sabe que está fazendo um trabalho melhor ao
desenvolver a interseccionalidade do jeito que você o faz? Essas perguntas cruciais
estão no cerne da interseccionalidade.
A essa altura, para mim, a práxis está no cerne do discurso crítico, ou de uma
visão crítica do mundo, que se alicerça em uma práxis metodológica crítica e é aten-
ta a ela. Como o conteúdo da interseccionalidade examina as conexões entre esses
sistemas de poder, sua metodologia ou práxis deve também atender à questão das
relações de poder que produzem seu próprio conhecimento. Teorizar sobre a inter-
seção das relações de poder requer desenvolver novas relações de poder dentro de
nossas metodologias. O quadro teórico de Linda Tuhiwai Smith para descolonizar
a metodologia desenvolve o tipo de práxis intelectual e política que é necessário à
interseccionalidade (Smith, 1999).

Nadya Araujo Guimarães: Talvez pudéssemos mudar a sequência inicialmente prevista,


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já que a sua conversa com Marcos flui para minha pergunta, pois eu também pensava
no seu livro mais recente… desculpe!

Patricia Hill Collins: Nada a desculpar! Estou honrada por você estar lendo iacst,
realmente estou. Recebi meu exemplar do livro há apenas dois meses e pensei que
ele demoraria muito mais para circular. Imagine minha surpresa quando cheguei ao
Brasil e encontrei pessoas esperando por mim com perguntas. Eu claramente subes-
timei o alcance global do Kindle. Até agora, pessoas em Israel, no Reino Unido, na
Espanha e em outros países fora dos Estados Unidos entraram em contato comigo,
compartilhando ideias sobre o livro. Esse livro foi um trabalho de amor. Levei anos
para conceituar, pesquisar e escrever. É muito gratificante saber que as pessoas o
estão lendo. Obrigada!

Nadya Araujo Guimarães: Logo no início do livro, seu argumento conduz o leitor da
ideia de interseccionalidade como sendo uma metáfora, à de que seria um instrumento
de pesquisa, e em seguida a trata como um paradigma. À primeira vista, pareceria
existir uma razão cumulativa subjacente ao modo de formular o argumento, já que a
perspectiva se torna mais densa e, passo a passo, mais profunda. Mas logo percebemos
que não é bem assim. A metáfora implica um raciocínio mais profundo, já que antecipa
o valor heurístico do conceito; e o paradigma não é o resultado, está em aberto. Assim
sendo, a minha pergunta é: você explora uma perspectiva tríplice sobre a intersecciona-
lidade – como uma metáfora, como uma heurística e como um paradigma. Como essas
perspectivas se relacionam?

Patricia Hill Collins: O primeiro capítulo costuma ser um dos mais difíceis de se
escrever em qualquer livro; e iacst não foi uma exceção. Gostei da sua pergunta
porque ela reconhece um dos riscos epistemológicos que eu assumi neste livro, a
saber, o de evitar enquadrar a interseccionalidade por meio de uma narrativa histó-
rica do progresso pela qual se assume que expressões atuais da interseccionalidade
seriam mais avançadas e, por consequência, melhores do que versões anteriores. As
tradições narrativas pelas quais se contam histórias seguem um caminho aparen-
temente sinuoso, em que o narrador é instado a “ir direto ao ponto”. Conquanto
muitas vezes acusados de circularidade, raciocínios recursivos que avançam e retro-
cedem ao ponto comum, apesar de não lineares, podem aprofundar o argumento.
Felizmente, percebi, logo no início ao escrever o iacst, que convinha aderir às
convenções lineares da teoria social ocidental para escrever iacst (embora não ao
conceber os argumentos), para garantir que o livro fosse reconhecido como teoria.
Mas eu também segui um processo diferente ao apresentar a análise feita no livro,

298 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

que modelou, sem contradizer, os seus principais argumentos. Basicamente, essa


tensão – de colocar um raciocínio evolutivo recursivo numa caixa linear – fortaleceu
a substância dos argumentos do livro.
No capítulo 1, as conexões entre o uso da interseccionalidade como metáfora,
como instrumento heurístico ou como paradigma não são lineares. Ao tratar a rela-
cionalidade dentro da interseccionalidade como aditiva, articulada e coformadora,
uso uma estratégia similar à do capítulo 7. Ambos os capítulos implicitamente des-
fazem o pensamento linear, que tem sido central às noções ocidentais de progresso,
que saturam a teoria social no Ocidente. Porque eles não pressupõem uma relação
de dominância, conceituar a interseccionalidade como metáfora, como um dispo-
sitivo heurístico ou como um paradigma, tanto quanto conceituar a relacionalidade
dentro da interseccionalidade como aditiva, articulada e coformadora, fornecem
um vocabulário para o diálogo, para uma conversação inclusiva entre atores sociais.
Modelos lineares excluem pessoas, modelos recursivos incluem.
Ambos os capítulos resistem aos esforços de usar o binário teoria/aplicação, que
privilegia projetos interseccionais aparentemente mais teóricos frente a projetos mais
práticos. Por exemplo, alguns autores defendem que, nos seus primórdios, a intersec-
cionalidade era aditiva, algo que foi corrigido quando a interseccionalidade se definiu
como inerentemente coformativa. Se você ler o capítulo 7 com atenção, verá que
rejeito a ideia de que a interseccionalidade seria baseada em relações de coformação
simplesmente porque atores sociais poderosos disseram que assim seria. Ao contrário,
eu apoio a ideia de que um amplo arco de atores sociais – mulheres negras, mulheres
brancas pobres, latinas e pessoas queer –, ao trabalharem a interseccionalidade como
um projeto complexo, a partir de seus lugares sociais, enquanto intersecções de raça,
classe, gênero, sexualidade e nação, “apropriam-se” da interseccionalidade.
Fundar a interseccionalidade numa forma mais democrática e participativa de
produzir conhecimento pode enriquecer o campo. Quando mais pessoas participam
de uma comunidade interpretativa, melhores são as perguntas, as interpretações
tornam-se mais incisivas e maior é o alcance a comunidades interpretativas e po-
líticas diversas. Esse processo participativo é particularmente importante para a
interseccionalidade. Por que deveríamos usar as mesmas práticas para produzir a
interseccionalidade como teoria social mais efetiva para manter a ordem social?
Essa finalidade contradiz o seu espírito. Meu objetivo era propor um vocabulário
comum provisório (que pudesse ser objeto de disputa entre as pessoas), de maneira
a fundamentar conversas que promovessem a complexidade dentro da interseccio-
nalidade. A teoria social tradicional, não importa quão crítica ela seja, raramente
procede dessa forma.

Jan.-Apr. 2021 299


Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

Antonio Sergio Alfredo Guimarães: Minha pergunta tem a ver com a política an-
tirracista. Você sugere que, depois da Segunda Guerra Mundial na Europa, o racismo
científico como ciência dominante caiu em desuso na academia. E ainda hoje a maioria
das pessoas não aceita que “raça” fez parte da modernização e da modernidade. De
muitas maneiras, eles concebem o antirracismo como uma negação da raça. Eles igno-
ram a tradição afro-americana que, desde o início do século xx, reconstruiu a raça de
uma forma muito mais positiva, como autoidentidade. Esse é o cerne da “teoria racial
crítica”, mas as pessoas na Alemanha ou na França não se sentiam confortáveis com a
teoria racial crítica. Mesmo hoje, a maioria das pessoas, feministas por exemplo, reage
melhor à interseccionalidade do que à teoria racial crítica. Minha pergunta é: pode a
interseccionalidade erguer pontes entre essas diferentes tradições antirracistas na Europa
e na América?

Patricia Hill Collins: Quando se trata de interseccionalidade e política antirracista,


novamente, creio que focalizar em um grupo específico de pessoas e nos desafios
que enfrentam fundamenta a análise racial crítica de maneiras importantes. Se eu
baseasse minhas análises nas experiências de latino/as indocumentado/as vivendo
nos Estados Unidos, aprofundaria a lente sobre o antirracismo e suas conexões com
a interseccionalidade. Já os brasileiros ricos que vivem em São Paulo podem ter um
ângulo de visão diferente sobre essas questões. Para mim, situar o trabalho no ativismo
político afro-americano em resposta ao racismo antinegro foi de valor inestimável.
Tal como discuto em “Social blackness, honorary whiteness, and all points in
between: color-blind racism as a system of power” (Collins, 2009, pp. 40-81), raça
e negritude não são a mesma coisa. Negro é uma categoria política que pode ter
sido criada em conjunção com a escravidão, o colonialismo e os discursos ocidentais
sobre ambos, mas que adquiriu, hoje, vida própria. A revalorização do termo negro
através de movimentos de consciência negra nos Estados Unidos, na África do Sul e
no Brasil, entre outros, reivindica a negritude como categoria política (em oposição
a um fenômeno biológico ou cultural) e valoriza a identidade negra como identidade
política. O apoio crescente dos afro-americanos ao movimento “Black Lives Matter”,
especialmente da juventude negra, se baseia numa velha tradição de recuperar negri-
tude sem pejo. Isso está longe de ser tanto uma fugaz estratégia política de protesto,
quanto uma identidade momentânea que visa a restaurar a autoestima de uma psique
negra danificada. É fundamentalmente uma luta política que visa à justiça racial.
Quando comparada à política antirracista proposta pelos negros, a interseccio-
nalidade pode ser ao mesmo tempo cúmplice e rejeitar a forma como o racismo tem
sido organizado, aplicado e confrontado. O racismo tem, nas diferentes tradições
nacionais, os seus próprios padrões de antirracismo. As tradições pós-Segunda Guerra

300 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

Mundial na Alemanha e na França, por exemplo, negam a realidade da “raça”, mas


o fazem em resposta aos seus contextos históricos específicos. A derrota nacional
e a subsequente censura global às políticas raciais da Alemanha durante a Segunda
Guerra Mundial levaram a uma rejeição de tudo o que fosse racial. Tal rejeição por
si só sinalizou a ruptura da Alemanha com seu passado racial de antissemitismo e
eugenia. Em contraste, a França nunca reconheceu a existência de “raça” ou de ra-
cismo, em suas colônias ou dentro de suas fronteiras nacionais; em vez disso, optou
por contornar o racismo por meio de uma identidade nacional, o ser “francês”. A
existência do racismo e sua centralidade no colonialismo foram disfarçadas em um
discurso assentado no entendimento de que, como a “raça” não era real, tampouco
o “racismo” o seria. Já os Estados Unidos seguiram um caminho diferente. A evi-
dência da realidade do racismo na política americana é abundante. Apesar disso,
um resultado do movimento pelos direitos civis, e seu aparente fim com a eleição de
Barack Obama, foi convencer o público americano de que o racismo seria coisa do
passado. Isso facilitou a emergência de um racismo cego à cor em que, como entre
seus homólogos europeus, falar de raça era cultivar o racismo.
Onde a interseccionalidade se encaixa no discurso antirracista? Por um lado, a
interseccionalidade oferece um grande guarda-chuva para uma série de projetos de
justiça social, aí compreendido o antirracismo. Por outro lado, definições de raça e de
racismo dentro da interseccionalidade podem, ironicamente, enfraquecer a política
antirracista. Como o termo raça circula amplamente dentro do mantra interseccional
“raça, gênero e classe”, muitas pessoas presumem que, se usarem a interseccionalidade,
estão automaticamente promovendo políticas antirracistas. O termo raça pode até
ser mencionado dentro de projetos interseccionais, e, não obstante, um compromisso
com a análise do racismo através de uma lente interseccional e com o antirracismo
como uma estratégia importante pode ser minimizado. Falar gratuitamente, da boca
para fora, sobre a raça dentro da interseccionalidade pode torná-la, e ao racismo,
mais palatáveis para os praticantes da interseccionalidade; entretanto, pode também
sabotar o potencial crítico de uma política antirracista. Esta tem sido uma das críti-
cas à interseccionalidade, a saber, que ela pode se prestar a ser um substitutivo que
atenuaria um trabalho mais contundente no que tange ao racismo e ao antirracismo,
visto que muitos outros eixos de poder competem pela atenção.
Contudo, buscar políticas antirracistas apenas no interior das fronteiras da
interseccionalidade pode ser uma estratégia frágil. Repito: teorizar a partir das
experiências, a partir do que as pessoas fazem, pode ser útil para impulsionar a in-
terseccionalidade. Participantes do movimento “Black Lives Matter” e seus aliados,
que recuperam sem pejo a plena humanidade dos negros, estão levantando novas
questões que fomentam uma nova política antirracista (ver, por exemplo, Ransby,

Jan.-Apr. 2021 301


Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

2018). Essa geração teve acesso à teoria racial crítica, aprimorada dentro das realida-
des das tradições intelectuais afro-americanas, assim como ao feminismo negro que
tem sido central para o desenvolvimento da interseccionalidade. Esse sentimento
emergente de negritude política, especialmente em resposta a uma política de iden-
tidade branca de extrema direita, está informado pela interseccionalidade. Não sem
razão, as mulheres negras têm sido centrais para esse antirracismo que se recusa a
abandonar um foco na negritude, que agora é entendido pelo prisma da interseccio-
nalidade. Na sua construção da negritude, mulheres negras não estão interessadas
em restabelecer estratégias antirracistas pretéritas, nas quais os homens negros eram
a cara da negritude e da política negra. Esse movimento social também propõe uma
visão da comunidade como baseada na democracia participativa, mais um tema
recorrente da interseccionalidade. Minha sensação é que em muitos movimentos
sociais em que jovens estão tendo um papel proeminente, evidencia-se algum tipo
de engajamento com a interseccionalidade. O movimento “Black Lives Matter” não
é o ponto de chegada, mas um ponto de entrada em uma política antirracista, que
testa a interseccionalidade ao usá-la.

Alexandre Massella: Na sua opinião, como levar a cabo, entre os filósofos, o debate
acadêmico sobre a epistemologia feminista, uma vez que eles parecem especialmente re-
sistentes (preconceituosos?) a aceitar as contribuições dessa abordagem? Terá a academia
desenvolvido um conceito de conhecimento tributário do pensamento feminista negro?

Patricia Hill Collins: Honestamente, ignoro o quanto o pensamento feminista


negro é lido dentro da filosofia convencional. Essa não é a minha batalha, e uma
nova geração de filósofos negros e latinos está liderando o caminho nessa direção
(Davidson, Gines & Marcano, 2010). Entretanto, no que concerne ao modo como
as pessoas podem receber meu trabalho intelectual, sigo a observação de Frederick
Douglass de que “o poder não concede nada sem que seja pedido”. Nascido sob a
escravidão, Douglass trabalhou incansavelmente pela abolição da escravidão e, em
seguida, pelos direitos civis dos homens e das mulheres afro-americanos. Existem
tantos arquétipos na política negra de homens e mulheres que lutaram por mudanças,
as quais nunca puderam experimentar no curso das suas próprias vidas. A mudança
raramente advém apenas de ideias bem articuladas em debates filosóficos. O longo
arco da história em direção à justiça social quase nunca é linear.
Isso posto, há muito em jogo quando se pedem mudanças na filosofia ocidental,
em particular na filosofia analítica. A filosofia está no cerne dos projetos de conhe-
cimento no Ocidente, e uma mudança no cerne do pensamento ocidental repercute
em todas as suas disciplinas. Quando as filósofas feministas criticaram a filosofia

302 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

a partir do seu campo, os efeitos de seus esforços propagaram-se pelos estudos de


gênero em múltiplas disciplinas. Meu próprio trabalho em muito se beneficiou do
trabalho pioneiro de Sandra Harding (1991), Iris Young (1990) e outras filósofas
feministas afins que questionaram as perspectivas epistemológicas que sustavam o
patriarcado. Elas questionaram o aparente universalismo do conhecimento ocidental,
mostrando como este se coadunava com os pressupostos da heteronormatividade. Elas
criticaram o quanto os fundamentos do conhecimento ocidental eram politizados
e implicitamente legitimadores do colonialismo e do imperialismo. A questão não
era incluir o pensamento feminista negro nas verdades pré-existentes, mas ampliar
os termos de como a verdade é determinada.
Eu me baseio nessas tradições em “Intersectionality and the question of freedom”
(capítulo 5 de iacst), através de uma leitura atenta da obra de Simone de Beauvoir
([1948] 1977; [1949] 2011), uma importante filósofa feminista, cujo trabalho está
sendo redescoberto por uma nova geração de filósofos. Eu respeito o trabalho de
Beauvoir e tento oferecer uma leitura cuidadosa e detalhada de como seus argumentos
sobre gênero, juntamente com raça, classe, sexualidade, idade e etnicidade, moldaram
a sua análise da liberdade. Eu justaponho as análises de Beauvoir às de Pauli Murray
(1987), um intelectual afro-americano pouco conhecido, que estabelece um diálogo
com as mesmas categorias centrais da interseccionalidade, mas chega a uma visão
bastante diferente da liberdade (Bell-Scott, 2016). Meu objetivo não era criticar
Beauvoir para abrir espaço aos meus próprios argumentos, mas, antes, capturar as
suas ideias como uma forma de impulsionar as minhas.
Para retornar à sua pergunta, talvez o tempo seja mais bem utilizado em defesa
do feminismo negro se continuarmos o diálogo entre as pessoas que a ele afluem,
em vez de tentar convencer filósofos recalcitrantes, que permanecem indiferentes às
suas ideias. A mudança institucional leva tempo, mas os que foram marginalizados
nas instituições ocidentais não vão esperar para sempre. Se o poder não for com-
partilhado com os de baixo, as demandas por mudança persistirão. As concessões
que poderiam ser feitas em resposta às demandas do feminismo negro e de outros
projetos de saberes resistentes ainda estão por serem vistas.

Marcia Lima: Tanto os Estados Unidos quanto o Brasil têm testemunhado episódios
de extrema violência contra negros, particularmente contra homens negros. Tenho
exercitado o uso do seu poderoso conceito de “imagem de controle” para aplicá-lo especial-
mente a instituições sociais que reproduzem tais imagens, e gostaria de lhe propor duas
perguntas a esse respeito. Primeira: você acha que esse conceito é útil para entendermos
a situação dos homens negros (sua desumanização, objetificação e estereótipos sobre seu
comportamento violento)? Segunda: você considera que a ausência de um debate maior

Jan.-Apr. 2021 303


Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

sobre gênero, quando se trata de pensar a situação dos homens negros, torna essa imagem
mais eficiente, em particular no caso da violência? Intelectuais negros se posicionam
enquanto homens negros? Nós não costumamos nos referir à sua condição de gênero…

Patricia Hill Collins: Eu examinei essa noção de imagens de controle em vários


lugares em minha produção (ver, por exemplo, Collins, 2018), inclusive tratei da
sua aplicação à masculinidade negra. A ideia de imagens de controle se aplica aos
homens negros. Em Black sexual politics, por exemplo, há dois capítulos sobre gênero
e sexualidade, um sobre masculinidade negra e outro sobre feminidade negra (Col-
lins, 2004). Em ambos, a estruturação parte das imagens de controle, argumentando
que tais imagens são específicas a cada grupo e dão sustentação a uma ideologia de
gênero negra que subordina de maneira diferente negros e negras. Dizendo-o de
outra maneira, a manipulação do gênero e da sexualidade foi e continua sendo fun-
damental à forma pela qual o racismo é organizado e opera. A imagem de controle
da mulher negra forte tem como contrapartida a imagem de controle do homem
negro fraco. Essas imagens de controle gêmeas permeiam tanto a literatura, quanto
as políticas públicas.
Sua segunda pergunta diz respeito à centralidade da violência nas imagens de
controle de homens e mulheres negras. A violência tem sido central para as imagens
de controle da masculinidade negra, que emerge no contexto do pós-escravidão nos
Estados Unidos enquanto uma “fera negra violenta”, que já não poderia mais ser
domesticada por ter deixado de estar escravizada. Esse tropo recorrente dos homens
negros como sendo inerentemente violentos persiste como uma justificativa para
lhes subtrair os direitos de cidadania e o respeito humano básico. Mas quando se
trata da violência, como exatamente essas imagens “controlam” os homens negros?
Como as imagens de controle da masculinidade negra moldam a compreensão que
os homens negros têm da violência que eles experimentam por parte dos agentes
do Estado, que eles dirigem uns contra os outros e que eles infligem às meninas e
mulheres em suas vidas?
Fundamentalmente, essas e outras imagens de controle têm por efeito mascarar
formas de violência sistêmica que caracterizam relações interseccionadas de poder
(Collins, 2018). Pode ser desafiador ver como as imagens de controle podem ser
aplicadas a toda uma gama interseccional de identidades sociais; entretanto, a vio-
lência abre uma janela para uma compreensão mais ampla de como as imagens de
controle são fundamentais para as relações de poder. Por exemplo, as imagens de
controle que caracterizam a masculinidade branca heterossexual, particularmente
entre os homens brancos de classe média, são uniformemente positivas. No entanto,
esse grupo é desproporcionalmente responsável por formas de violência sistêmica

304 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

que afetam muitos outros grupos. Qual é o papel das imagens de controle na incor-
poração de meninos brancos a seus lugares predefinidos enquanto homens brancos?
Esse é importante domínio de análise. Que tipo de análise produzimos ao observar
situações em que homens negros tentam resolver problemas nas comunidades negras
tornando-se mais parecidos com os homens brancos?
As mulheres negras de há muito têm observado como as imagens de controle da
feminidade negra, que refletem intersecções de gênero, raça e sexualidade, causam
um poderoso efeito negativo sobre as suas vidas. Mas muitas das discussões sobre a
violência de gênero contra as mulheres negras têm como alvo as práticas sociais mais
amplas, por exemplo, uma cultura do estupro na qual homens brancos atacavam
sexualmente mulheres negras na maior impunidade; outras vezes, minimizavam a
violência cometida pelos seus parceiros íntimos, filhos, pastores e membros da comu-
nidade. A imagem de controle da mulher negra forte aconselha as mulheres negras a
negligenciar a violência cometida pelos homens negros, em nome de protegê-los do
racismo. Mas será que isso é suficiente? Ou será um modo de eludir a difícil questão
de que lidar com a violência requer examinar o modo pelo qual todas as partes en-
volvidas reproduzem e são afetadas pelas imagens de controle?

Helena Hirata: Arlie Hochschild atribui a causas materiais o sucesso de seu conceito
de “trabalho emocional” (Hochschild, 2017, p. 8). Segundo Hochschild, “a verdadeira
causa de seu sucesso” tem a ver com “o imenso desenvolvimento” do setor dos serviços.
É possível identificar um tipo de explicação semelhante para o sucesso do conceito de
“interseccionalidade”? No seu ponto de vista, o que explica a ampla aceitação desse
conceito, tanto na academia quanto nos movimentos sociais?

Patricia Hill Collins: A análise de Arlie Hochschild sobre o trabalho emocional


certamente influenciou minha formulação sobre o trabalho nos serviços como um
espaço de relações de poder interseccionadas. As experiências das trabalhadoras
domésticas negras que trabalham em residências ilustram como os empregadores
brancos agregavam o trabalho emocional de suas empregadas. Apesar de alegarem que
as mulheres negras eram como “um membro da família”, ou talvez por isso mesmo,
elas eram sempre sub-remuneradas e expostas à violência sexual ao tempo em que
realizavam o trabalho de cuidado nessas casas de brancos. A imagem de controle da
“Mammy” sorridente, a cuidar de seus filhos brancos como se seus fossem, obscurece
o descuido a que estão sujeitos os seus filhos negros enquanto ela tem que deixá-los
para ir trabalhar. A marca do bom serviço é o cuidado prestado, ou seja, exprimir
emoções de forma a convencer seu ou sua superior de que realmente o/a ama. Mas
o trabalho emocional no exercício do cuidado traz também embutido um elemento

Jan.-Apr. 2021 305


Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

de resistência – é o sorriso que desaparece no rosto da garçonete quando, ao fim do


jantar, o cliente deixa uma gorjeta insignificante; ou as histórias que as trabalhadoras
domésticas negras compartilham sobre seus empregadores quando estão em suas
próprias cozinhas.
O estudo de Hochschild foi pioneiro porque situou o trabalho emocional no
contexto de um florescente setor de serviços. Sua análise sobre como as aeromoças
eram treinadas mostrou o quão importante era o desempenho convincente do
trabalho de cuidado para o crescimento e a lucratividade do setor de serviços. Essa
noção de trabalho emocional pode perfeitamente transladar-se para as universidades
e instituições acadêmicas; como são parte do setor de serviços, dos professores e dos
assistentes na pós-graduação também se espera, crescentemente, que desempenhem
de modo convincente o trabalho de cuidado institucional a que estão obrigados.
Num tal contexto, o trabalho emocional adquire uma posição especial, algo que não
passa despercebido às mulheres e às pessoas de cor, majoritariamente responsáveis
por efetuar tal trabalho acadêmico de cuidado. Quais são os custos impostos a quem
realiza um trabalho emocional que é ordinariamente sub-remunerado? Numa relação
capitalista de troca, as emoções e o cuidado tornam-se mercadorias.
Acho desafiadora essa sua pergunta sobre como essas formulações sobre o trabalho
emocional poderiam ajudar a explicar as maneiras pelas quais a interseccionalidade
foi incorporada na academia. A interseccionalidade é certamente notada, comentada
e reconhecida. Mas, daí a afirmar que esse reconhecimento sinalizaria uma aceitação
genuína vai uma grande distância. Será que essa aparente aceitação da interseccio-
nalidade pelas estruturas neoliberais da academia se deveria, em alguma medida, à
percepção do seu valor enquanto um trabalho de cuidado realizado ao interior dessas
instituições? De que maneira essas normas invisíveis de cuidado, caso existentes,
estariam influindo no modo pelo qual os discursos são percebidos e divulgados?
Mais especificamente, estará a interseccionalidade sendo percebida como um pro-
jeto crítico mais amigável, mais cuidadoso, e por isso mesmo menos ameaçador, do
que outras teorias sociais tidas como mais desafiadoras, como o feminismo, a teoria
racial crítica ou a teoria social marxista? Dentro das teorias sociais aparentemente
apolíticas na academia, será que a interseccioalidade funcionaria como um proxy
para um discurso multicultural mais palatável sobre a diferença?
A interseccionalidade pode ser o discurso certo, no momento certo, por razões
erradas. Ela foi incorporada, mas em que termos e para que fins? É importante não
confundir visibilidade e aceitação. Um pequeno rol de pessoas pode estar associado à
interseccionalidade, mas quanto dessas ideias e discursos foi realmente incorporado
por especialistas aos diferentes campos de estudo ou por professores e pesquisa-
dores em qualquer instituição? Minha sensação é que a interseccionalidade é bem

306 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

menos aceita na academia do que se pensa. Ela pode ser tornada visível de maneiras
vantajosas para a academia. Na medida em que fornece uma amplo guarda-chuva
para a inclusão, eximindo as universidades de mudanças substanciais, incorporar a
interseccionalidade ajuda as performances institucionais do trabalho de cuidado.
Quando se trata de atender às necessidades de trabalho emocional nas uni-
versidades, a interseccionalidade tem sido cada vez mais assumida por setores de
serviços dentro das mesmas, por exemplo, os serviços estudantis, o recrutamento
de professores e outros similares. Mas o modo como ela tem sido usada remete ao
tema do trabalho emocional. Considere-se, por exemplo, como as ideias da inter-
seccionalidade foram diluídas num vocabulário em constante mudança, aplicado às
soluções contra injustiças de raça e gênero. As universidades fizeram uma mudança
cosmética, atentas ao mantra da diversidade, equidade e inclusão, ao tempo em que
evitavam qualquer transformação institucional substantiva. Em outras palavras, a
interseccionalidade está sendo crescentemente modificada por meio de um discurso
que apoia o trabalho institucional de cuidado e o trabalho emocional que isso acar-
reta, ao invés de se tornar um campo de estudo por direito próprio. Seu uso deixa
de ser analítico e crítico para se tornar um serviço a ser provido. Essa foi uma das
minhas principais preocupações em iacst, a saber, como a interseccionalidade pode
aguçar as suas possibilidades analíticas e críticas num contexto de uma academia
aparentemente inclusiva.

Flavia Matheus Rios: O pensamento feminista latino-americano tem sido, de al-


guma forma, relevante para o (ou considerado pelo) pensamento feminista negro
nos Estados Unidos? Você teve algum contato com as ideias das feministas negras
latino-americanas?

Patricia Hill Collins: Meus contatos com os feminismos negros latino-americanos


são indiretos, mediados pelo feminismo chicano, porto-riquenho, americano-cubano
e pelos feminismos das latinas nos Estados Unidos, que têm laços distintos com a
América Latina. Tais laços transfronteiriços, e no caso das mulheres porto-riquenhas,
relações coloniais internas, foram essenciais para o crescimento do feminismo das
“mulheres de cor” nos Estados Unidos, assim como para a interseccionalidade. No
trabalho intelectual, há o reconhecimento de que as latinas, negras e afro-latinas, que
devem corresponder a uns 25% das latinas nos Estados Unidos, trazem perspectivas
distintas aos projetos interseccionais que decorrem de variadas experiências com o
colonialismo, a escravidão, a indigeneidade e a imigração. Os diálogos entre mulheres
de cor, informados por ativistas e intelectuais latinas, oferecem importantes perspec-
tivas sobre as intersecções de gênero, sexualidade, religião e cidadania. Por exemplo,

Jan.-Apr. 2021 307


Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

o trabalho de Gloria Anzaldua sobre o pensamento fronteiriço e a consciência


mestiça forneceu uma âncora filosófica para o feminismo das mulheres de cor nos
Estados Unidos (Anzaldua, 1987). Mas isso não é suficiente. É essencial aprender
mais sobre os feminismos específicos de diferentes países e como esses feminismos
se influenciaram mutualmente.
Para ser franca, eu gostaria de saber bem mais sobre a relação entre o feminismo
latino-americano e o feminismo negro norte-americano. O feminismo negro é um
projeto colaborativo e em constante evolução. Laços existem, mas ainda precisamos
de um trabalho empírico constante e sério sobre as interconexões entre variantes do
feminismo. Como cada uma de nós tem limites quanto ao que sabe e pode fazer,
temos que nos apoiar umas às outras, para completar as peças que faltam às nossas
próprias perguntas. Você faz o que pode, e espera que outros possam ajudar. Essa
é a promessa colaborativa da interseccionalidade. Reconhecendo que cada uma de
nós tem somente uma perspectiva parcial sobre dominação e resistência, em vez de
continuarmos a enquadrar nossas perguntas pelo viés intelectual ocidental, como
por exemplo o da filosofia ocidental, os grupos marginalizados deveriam buscar uns
aos outros, de modo a aprender uns com os outros.

Marcos Nobre: Eu ficaria muito grato se você pudesse elaborar um pouco mais sobre a
constelação das noções de dominação, resistência e emancipação. Formulei minhas dú-
vidas a esse respeito em duas perguntas interligadas. Se a entendi bem, o principal ponto
normativo da abordagem interseccional no seu livro mais recente é o da “resistência”,
que me parece ser a noção que dá sentido ao termo “crítico”, presente no seu projeto de
“teoria social crítica”. A primeira questão seria: há uma única contrapartida conceitual
para “resistência”, ou elas seriam muitas?  E, no mesmo sentido, a segunda questão: a
que se resiste? À dominação? Ao capitalismo?

Patricia Hill Collins: Eu realmente gostei desta pergunta porque ela toca o cerne
de quais termos são os melhores portadores da substância de meus argumentos. Eu
discuti comigo mesma sobre cada termo individual, bem como sobre as conexões
entre eles. Examinar as conexões entre resistência e trabalho intelectual está no centro
da minha produção (ver, por exemplo, On intellectual activism, Collins, 2012). Mas
entender como estou concebendo resistência tem sido uma preocupação constante
para mim. Teorizar a resistência, tanto quanto estimulá-la, tem sido fundamental
para minha reflexão. Preciso conhecer as maneiras específicas pelas quais minha
concepção de resistência informa meus argumentos sobre a interseccionalidade como
teoria social crítica. Você pergunta: “Haveria uma única contrapartida conceitual
para ‘resistência’, ou elas são várias?”. Ainda não tenho certeza, mas posso lhe dizer

308 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

um pouco sobre onde estou agora ao pensar por meio da resistência. Aqui, suas duas
perguntas complementares são especialmente úteis. Deixe-me responder uma de
cada vez. Primeiro, você pergunta: A que se está resistindo? A tarefa central de iacst
consiste em abordar essa questão da resistência a que e a centralidade das ideias para
tal resistência. Há algum tempo, tenho buscado criar um sentido de ação política
que não resida nem no terreno da teoria nem da prática. Em outras palavras, a resis-
tência política é mais do que ideias, mas depende de ideias. A interseccionalidade
aprofunda a compreensão da resistência às injustiças sociais existentes por meio da
forma como funcionam os sistemas de poder. Capitalismo, racismo, colonialismo,
heteropatriarcado, nacionalismo e sistemas semelhantes de poder podem ser vistos
como sistemas de relações de poder injustas. A característica comum aqui é que todos
esses são sistemas por meio dos quais a dominação assume uma forma específica tanto
em cada sistema, como nas interseções entre eles. Por exemplo, a dominação pode
ocorrer por meio de relações interpessoais íntimas ou pode servir para animar uma
guerra em larga escala. As injustiças sociais podem ser percebidas no cotidiano, nos
grupos, nas formas como as organizações são construídas, nas políticas das institui-
ções sociais, tanto quanto nos discursos que defendem esses arranjos.
Entretanto, conceituar resistência dessa maneira continua a centrar a análise
na opressão, e não na resistência. Uma dimensão do poder hegemônico é que ele
rotineiramente define os termos de todo o debate, inclusive do significado de resis-
tência. Porém, e se virarmos esse relacionamento pelo avesso? Talvez obtenhamos o
tipo de ordem social e dominação que temos agora, não como um reflexo das ações
da elite, mas como resultado da resistência sedimentada à dominação do passado.
As ideias seriam especialmente importantes nessa visão de resistência, que a torna
ordinária, como parte da vida cotidiana. Estratégias de resistência específicas são
parte de uma socialização contínua e por toda a vida, que se recusa a capitular à
normalidade da opressão. Reconheço como é assustador o modo pelo qual as re-
lações interseccionadas de poder oprimem, bem como as miríades de formas pelas
quais a dominação é organizada na sociedade, desde os seus níveis micro aos macro.
Recuso-me a teorizar o poder de uma forma tal que não admita a resistência, ou
a resistência de uma forma tal que a torne um derivado do poder. Como rejeito a
suposição não declarada de que a opressão é inevitável, que informou tantas teorias
sociais críticas, minha abordagem para conceituar a resistência não é niilista. Eu me
torno parte do problema se produzir uma teoria social crítica que não contemple,
em si mesma, as implicações para a resistência. Dizendo-o de outra forma, teorizar
a resistência não somente anima minha teorização social enquanto um objetivo, mas
pensar sobre as implicações de minha teorização para a práxis (resistência) também
serve como uma verificação metodológica do meu próprio decurso.

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Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

A segunda pergunta é mais difícil, porque requer análise e imaginação. É muito


mais fácil analisar contra o que é a resistência, do que imaginar para que serve a
resistência. O que está além da resistência? Como você sabe quando a resistência é
bem-sucedida? Visará a resistência a algum objetivo maior, teoricamente possível,
embora politicamente impraticável, como, por exemplo, emancipação, justiça social,
liberdade? Como o mundo parecerá diferente se a resistência e a dominação que ele
engendra não forem centrais ao comportamento humano? Será isso possível?
Essas podem ser questões existenciais amplas, mas tiveram implicações práticas;
isso porque eu sabia que não poderia me alongar em teorizar a resistência se quisesse
terminar o iacst. Contudo, essa questão da resistência permaneceu enquanto eu
terminava o livro, mas eu sabia que não poderia respondê-la naquele momento. Agora
que o iacst foi publicado, espero ter uma noção melhor de como aprofundar o tema
da resistência que, com toda a razão, você aponta como um princípio organizador
central do iacst, bem como o corpus do meu trabalho até agora.
Ainda não tenho respostas definitivas, mas posso compartilhar algumas indica-
ções acadêmicas intrigantes sobre como as pessoas imaginam a libertação da domi-
nação. As análises de resistência em que os pensadores visam a sair da teoria social
ocidental a fim de imaginar novas possibilidades para relações de conhecimento/
poder são especialmente intrigantes (ver, por exemplo, On decoloniality, Mignolo e
Walsh, 2018, ou Afrotopia, Sarr, 2019). Deixe-me mencionar brevemente duas delas.
Em primeiro lugar, o interesse renovado por ficção especulativa, ficção científica e
Afrofuturismo provê um vislumbre fascinante sobre como intelectuais negros, entre
outros, imaginam a vida fora da dominação, como uma forma de resistir-lhe. Esse
esforço mobiliza as categorias de tempo e espaço como uma forma tanto de criticar
a relação de poder existente, quanto de imaginar a vida para além do aqui e do agora.
Os romances de Octavia E. Butler anteciparam as preocupações contemporâneas com
a resistência e a liberdade. Sua obra clássica, Parable of the sower, não apenas fornece
uma base para se conceituar a resistência, mas também um gênero importante para
o trabalho criativo (Butler, 1993).
Em segundo lugar, os trabalhos de acadêmicos e ativistas indígenas em distintos
contextos nacionais fornecem, de longe, a literatura mais ampla e profunda para se teo-
rizar a resistência. Além de usar uma variedade de estratégias (ficção, memória, ensaio
analítico, estudos históricos e análise de ciências sociais), a atenção aos conhecimentos
e epistemologias indígenas é inestimável. Eu gostaria de ter tido acesso a essa literatura
quando estava escrevendo o iacst. No capítulo 7, apresento uma pequena história de
um grupo indígena no Canadá como um ponto de entrada para as vastas literaturas
e experiências de povos indígenas que existiram fora das epistemologias ocidentais.
Essas tradições narrativas identificam uma epistemologia ricamente matizada que

310 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

possui temas centrais recorrentes, mas que não pode ser congelada nos princípios de
uma epistemologia morta. Estou feliz por ter sido capaz de reconhecer, em iacst,
os limites epistemológicos do repensar a resistência com base em epistemologias
ocidentais. Mas isso não é suficiente. Pretendo seguir essas três linhas de investigação
como uma forma de aprimorar minha concepção de resistência.

Nadya Araujo Guimarães: Os “construtos centrais” que você desenvolve no livro (relacio-
nalidade, poder, desigualdade social, contexto social, complexidade e justiça social) são
uma contribuição específica proveniente do paradigma da interseccionalidade? Como
a teoria social contemporânea e a clássica dialogam a esse respeito? Você observou algum
processo de fertilização cruzada?
Devo confessar que, no momento em que pensava nessa questão, minhas memórias
se voltaram para uma descoberta interessante que fiz o ano passado, quando estava
retraçando o impacto, na academia americana, das ideias de uma destacada feminista
branca brasileira, Heleieth Saffioti. No final dos anos 1960, Saffioti escreveu um livro
(A mulher na sociedade de classe), originalmente uma tese, que foi seminal para a so-
ciologia brasileira (Saffioti, 1969). Nesse livro, ela antecipou o argumento das múltiplas
dimensões da opressão, baseada simultaneamente em relações de classe, raça e gênero
(claro, a palavra gênero não estava lá!). Menos de dez anos depois da primeira edição
brasileira, 1978, o livro foi publicado em inglês pela Monthly Review Press (Saffioti,
1978), com uma introdução de Eleanor Leacock, uma conhecida antropóloga marxista,
branca, muito sensível às questões acadêmicas e políticas levantadas pelo movimento
feminista. Ao traçar as marcas da recepção das ideias de Saffioti fora do Brasil, foi uma
alegria perceber que, logo após o lançamento do livro na sua versão em inglês, algumas
resenhas interessantes apareceram em revistas internacionais relevantes. No entanto,
tropecei com uma resenha inesperada, publicada no American Journal of Sociology
(ajs) bem depois, em 2014, nada menos que vinte anos após a edição em inglês (Ce-
larent, 2014). Qual não foi a minha surpresa! Como todas as outras resenhas sobre o
livro de Saffioti, essa também foi assinada por uma mulher, Barbara Celarent, uma
autora cuja existência na área dos estudos de gênero era por mim desconhecida. Para
meu espanto, alguns meses depois, descobri que essa mulher nunca existira. O verdadeiro
autor era Andrew Abbott, o proeminente professor do Departamento de Sociologia da
Universidade de Chicago e ex-editor do ajs. Entre 2009 e 2015, ele publicou nada
menos que trinta e cinco resenhas enfatizando a relevância de vários livros, alguns
deles (como o de Heleieth) quase desconhecidos (ou talvez esquecidos) pelo debate
global contemporâneo. Sob o pseudônimo de Barbara Celarent – uma “Professora de
Particularidade na Universidade de Atlântida”, como ela é referida pela ajs (campo e
instituição obviamente inexistentes), Abbott argumentava que era chegada a hora de

Jan.-Apr. 2021 311


Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

forçar o debate sobre teoria social a se tornar menos Ocidental do que vinha sendo, de
modo que pudéssemos chegar a uma verdadeira teoria social global (Abbott, 2016).
Por isso mesmo, quando você se referiu a “particularidades”, dez minutos atrás, mi-
nhas memórias voaram em direção ao empreendimento de Abbott, e me pego pensando
novamente em por que ele precisou usar um pseudônimo. Além disso, por que Barbara
Celarent, como personagem, foi concebida como ela o foi? E, sobretudo, por que esse
grande conjunto de resenhas só chamou a atenção acadêmica depois de publicado como
um todo, em um livro coassinado/editado com um homem, Andrew Abbott (Celarent
& Abbott, 2016)? Por que ninguém reparou?!
Isso me permite voltar ao meu ponto: em seu novo livro, você também está lidando
com um conjunto de conceitos que são cruciais para a teoria social ocidental; e você
também está tentando reformular, integrar, embalá-los como categorias “centrais” para
sua perspectiva. Você poderia refletir um pouco mais sobre isso?

Patricia Hill Collins: Achei que você fosse me perguntar outra coisa, mas agora que
você descreveu como Andrew Abbott – um proeminente teórico social branco do
sexo masculino – publicou resenhas de livros que gostaria de ver revisados no ajs,
mas que ele mesmo escreveu sob pseudônimo, quero refletir sobre esse caso. Estou
especulando aqui (e baseio meus pensamentos apenas em sua narrativa do caso)
sobre o que sei acerca do ajs, uma revista de ponta na sociologia americana cuja
influência no campo é significativa, bem como no meu conhecimento profissional
sobre a produção de Andrew Abbott. Eu adotei o livro Chaos of disciplines, de au-
toria de Abbott (Abbott, 2010), em meu curso de teoria social na graduação; bem
assim, considerei útil o seu livro Methods of discovery: Heuristics for the social sciences
(Abbott, 2004) ao formular meu argumento sobre o uso heurístico de interseccio-
nalidade (ver iacst, capítulo 1). No entanto, como dar sentido à criação de Abbott/
Celarent, uma identidade híbrida de gênero na qual Abbott e Celarent trocam de
lugar, como atores sociais, no palco e nos bastidores?
Uma leitura benevolente dos motivos de Abbott/Celarent sugeriria que ele/ela
percebeu, com razão, que não conseguiria encontrar pareceristas para textos como
o Woman in class society, de Saffioti, que fossem suficientemente qualificados para
atender às suas exigências, haja vista o que são as revisões rigorosas do ajs. Ao lhes
conceder o apoio anônimo de um patrono poderoso, como ele, talvez ela/ele tivesse
imaginado que estaria apoiando estudiosos que não eram brancos, não eram homens,
não eram ocidentais e não teriam o privilégio de promover seus livros. Num cená-
rio marcado pelo gênero, Abbott pôde se sentir autossatisfeito em termos morais,
politicamente protegido de críticas, porque ele não escreveu os comentários; ela o
fez. Ao tempo em que se divertia, de algum modo, com as travessuras de Celarent.

312 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

Por mais bem-intencionado que Abbott/Celarent possa ter sido, esse caso é um
exemplo original de como editores de revistas, financiadores e similares podem
exorbitar no desempenho de seus papéis nos bastidores, modelando o que conta
como sociologia legítima.
No entanto, uma leitura menos positiva dessa situação de pseudônimo a con-
sideraria o pior tipo de ação afirmativa, pois pressupõe que grupos marginalizados
que conseguem chegar à academia são menos qualificados e, portanto, só podem
ter sucesso se formarem alianças com aliados mais poderosos, normalmente ho-
mens brancos proeminentes, avançados na sua carreira e de elite. Como discuto
em “Intersectionality and epistemic resistance” (iacst, capítulo 4), o desafio de
construir comunidades interpretativas em meio às diferenças de poder existentes
na academia – neste caso, o acesso à teoria social – tem dimensões epistemológicas
que estruturam as relações de poder. Abbott tinha outras opções além de se tornar
um ventríloquo, manipulando Celarent, uma boneca imaginária que falava por
ele, sem ter que assumir a responsabilidade por seus argumentos (nesta entrevista
tenho que assumir a responsabilidade por minhas ideias porque sou visível), ou até
mesmo falar. Por exemplo, eu me pergunto: por que Abbott falhou em usar o poder
que a sua posição, como editor da ajs, lhe daria para recrutar e expandir o grupo de
pareceristas para os livros que Celarent avaliou? Esse tipo de manipulação anônima
das próprias regras, mesmo quando feita em nome da promoção de “novas” ideias,
é controlada por elites que, no fundo, distorcem os processos de criação de conhe-
cimento sem serem reconhecidas como atores sociais. Compare o comportamento
editorial de Abbott/Celarent com o de minha colega Margaret Andersen quando
era editora de Gender and Society. Tal como Abbott/Celarent, ela reconheceu a
importância do novo trabalho de mulheres, pessoas de cor e estudiosos globais do
gênero, e atuou decididamente para estimular jovens acadêmicos no sentido de que
enviassem artigos para um número especial sobre “Race, Class, and Gender”. Muitas
pessoas não o teriam feito se não fosse o tom da chamada de trabalhos veiculada pela
Revista, que consideraram acolhedora. O número de artigos recebidos excedeu em
muito a capacidade de um número especial. A decisão de Andersen moldou, dali
por diante, o perfil dessa revista. A brincadeira privada de Abbott, escrevendo sob
um pseudônimo que preservou seu anonimato, deixa um legado duvidoso para o
engajamento com a sociologia e para o ajs. Em contraste, a posição pública de An-
dersen de apoiar os estudos de raça, classe e gênero ajudou a cultivar uma comunidade
interpretativa de estudiosos de raça, classe e gênero, cujo trabalho continua a ter um
grande impacto no campo.
Continuo empenhada em promover diálogos entre estudiosos da teoria social
contemporânea, da teoria social clássica e da teoria social crítica. Ainda assim, his-

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Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

tórias como o caso Abbott/Celarent me fazem desconfiar de como os processos de


fertilização cruzada podem ser realistas se eles não estiverem rigorosamente atentos
à política de construção do conhecimento dentro da teoria social em sentido am-
plo. Meu capítulo sobre “Intersectionality and resistant knowledge projects” visa
a ampliar os referentes que estruturam a reflexão de quem produz novas ideias, e
como estas podem emergir da resistência (iacst, capítulo 3). Como os projetos de
conhecimento resistente, como o feminismo negro, podem ser eficazes se permane-
cem enredados em estruturas de legitimação do conhecimento como as sugeridas
pelo caso Abbott/Celarent? Pelo menos tomamos conhecimento do mesmo. Mas,
no que diz respeito à interseccionalidade, quantas ações anônimas de bastidores
objetivam sabotar esse projeto de conhecimento resistente, ao mesmo tempo que
afirmam defender seus princípios fundamentais?
Isso me leva à outra parte de sua pergunta. De que formas, se for esse o caso, os
princípios básicos que proponho de relacionalidade, poder, desigualdade social,
contexto social, complexidade e justiça social podem prover como um vocabulário
básico para o diálogo? Será que eles ajudam na fertilização cruzada, ou obscurecem
as questões difíceis na medida em que essa linguagem aparentemente compartilhada
sugere que os entendemos da mesma maneira? Formulei o assunto precisamente
nesses termos tanto porque os mesmos são familiares às teorias social clássica, con-
temporânea e crítica, como porque eles transitam através e além dessas localizações.
Significativamente, os atores sociais em locais não acadêmicos também portam outros
entendimentos desses mesmos termos, por vezes na linguagem usada pelos leigos,
ou nos significados a eles conferidos pela linguagem especializada de profissionais.
Reconheço as limitações advindas do uso desses conceitos, mas também reconhe-
ço o desafio teórico central de como tornar nossas ideias claras quando as usamos.
As ideias podem estar perfeitamente claras em sua mente ou em conversas entre
grupos de indivíduos com ideias semelhantes. Entretanto, as conversas perpassadas
por diferenças de poder, como raça, classe, gênero, sexualidade, idade e cidadania,
normalmente revelam as limitações de nossas próprias explicações aparentemente
evidentes acerca do mundo social. Para mim, o significado de cada conceito está
sempre em construção por meio do diálogo (ver, por exemplo, meus comentários
anteriores sobre a interseccionalidade como metodologia). A teoria social oferece
uma compreensão provisória de um conceito, mas o significado de um conceito
decorre do seu uso. Uma advertência: os tipos de diálogos que geram o pensamento
crítico mais forte raramente estão livres de conflitos.
Ao escrever iacst, tive uma série de conversas imaginárias com os campos
mais proeminentes no desenvolvimento de um conceito particular. Por exemplo,
muitos dos profissionais da interseccionalidade estão comprometidos com a justiça

314 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

social, um conceito sobre o qual há uma ampla literatura nos domínios dos direitos
humanos e da legislação dos direitos civis, tanto quanto da filosofia. Inexiste uma
definição estabelecida para justiça social. Significativamente, muitos profissionais
especializados na interseccionalidade presumem que os outros compartilham suas
definições, com frequência idiossincráticas, sobre o que seja justiça social e que es-
tão igualmente comprometidos com ela. Mas, como discuto em “Intersectionality
without social justice?” (iacst, capítulo 8), qualquer compreensão de justiça social
para a interseccionalidade deve ser construída e não presumida. Relacionalidade,
enquanto um conceito, enfrenta um desafio semelhante, decorrente de sua crescente
popularidade nos diversos campos de estudo no Ocidente. Porém, estará a relacio-
nalidade se tornando, cada vez mais, um termo vazio que nutre um estilo carente de
substância? Estará esse conceito condenado a ver drenado o seu potencial crítico? O
capítulo “Relationality within intersectionality” (iacst, capítulo 7) foi, para mim,
um dos mais difíceis de escrever, visto que o termo relacionalidade é amplamente
usado, tanto dentro quanto fora da interseccionalidade.

Antonio Sérgio Alfredo Guimarães: O mestiço na América Latina foi imaginado


por nossas elites intelectuais como uma fusão de três raças, como uma meta-raça que
acabaria por superar as categorias coloniais da subordinação racial e o mito da supe-
rioridade branca. Vimos essa construção ser posteriormente rejeitada por intelectuais
negros brasileiros – como Guerreiro Ramos, Abdias do Nascimento, Lélia Gonzalez e
outros – que perceberam ser a mestiçagem uma forma de obscurecer o racismo contra
negros e afrodescendentes. Recentemente, antropólogos como Kelly Luciani (2016) de-
monstraram a existência de uma postura antimestiço entre os racializados subalternos:
longe de se imaginarem como uma fusão, esses mestiços acreditam ter diferentes raças
dentro de si, o que lhes permite transitar por diferentes mundos raciais.
Atualmente, no Brasil, assistimos à discussão sobre quem pode se beneficiar das cotas.
Temos ouvido o argumento de que algumas pessoas estão fraudando o processo; mas há
também outro entendimento que propõe que não, eles podem estar sendo sinceros, eles
fazem parte do grupo dos beneficiários pois também sofreram algum tipo de discrimina-
ção. Como você vê o desdobramento desse processo? Nos Estados Unidos, diferentemente,
há a ideia de “fazer-se passar por” (“passing”), tida como sempre fraudulenta. Aqui,
entretanto, as pessoas entendem essa atitude como real, elas acham que é possível mover-
-se entre as categorias. Você se lembra dos escritos de Carl Degler (1971) sobre o Brasil:
a seu ver, o mulato brasileiro foi absorvido pelas classes dominante e branca, e dessa
cooptação dos mestiços teria resultado a incapacidade de liderança dos negros brasileiros.
Minha pergunta, então, seria: como essas duas mestiçagens imaginadas afetam a
sua maneira de pensar sobre raça na América Latina?

Jan.-Apr. 2021 315


Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

Patricia Hill Collins: Tenho um conhecimento prático sobre mestiçagem na América


Latina, mas não sou uma especialista. Diante disso, a melhor maneira de abordar sua
questão é extrapolar das relações raciais nos Estados Unidos para pontos de contato
e de divergência entre o Brasil e os Estados Unidos. Ambos os sistemas tentaram
amenizar as falhas em suas democracias, explicando-as pelas interseções entre racismo
e nacionalismo em suas respectivas compreensões acerca da identidade nacional. No
Brasil, a mestiçagem oferece uma identidade nacional imaginada por meio da qual a
lealdade à nação brasileira minimiza, quando não apaga, as diferenças raciais. Essa
filosofia de democracia racial apaga o racismo ao ignorar a realidade da hierarquia ra-
cial. Como você assinala, essa meta-raça – que ostensivamente foi além das categorias
coloniais de subordinação racial e do mito da superioridade branca – foi incorporada
à democracia racial e a sua necessidade de construção da mestiçagem. Em contraste,
a identidade nacional imaginada nos Estados Unidos colapsa a identidade nacional
com a branquitude, uma forma de nacionalismo étnico. Esse nacionalismo étnico
influencia as políticas oficiais de integração racial e de multiculturalismo, segundo
as quais a democracia dos Estados Unidos visa à inclusão.
Os negros no Brasil e nos Estados Unidos denunciaram como essas respectivas
versões da identidade nacional estão na base da supremacia branca. Para o Brasil,
o desafio organizacional era criar consciência entre os sujeitos negros de que sua
negritude ou raça era fundamental para seu status social e tratamento. O racismo
antinegro aparentemente não existiu no Brasil porque o apagamento da negritude
pelo construto da mestiçagem também apagou uma linguagem de crítica às desi-
gualdades raciais no emprego, habitação, educação e saúde. Os negros nos Estados
Unidos enfrentaram uma versão de racismo do tipo apartheid racial que se baseava
na estrita separação de raças, usando critérios biológicos tais como a “regra de
uma gota” (“one drop rule”). Esse sistema relutantemente deu lugar a uma visão de
multiculturalismo, segundo a qual, quando fossem removidas as barreiras para a
assimilação dos afro-americanos, os negros estariam livres para contribuir para uma
América multicultural. Em essência, o objetivo do multiculturalismo era se tornar
um caldeirão que fosse um caminho para uma sociedade em que a cor não importasse
(“colorblind society”). Ironicamente, esse caldeirão multicultural se assemelhava à
mestiçagem brasileira. Ambos propõem uma forma idealizada de democracia racial
que se baseia em um racismo cego à cor, que produz disparidades raciais importantes,
as quais, entretanto, não precisam estar sustentadas em categorias raciais oficiais.
Sinto um pouco mais de dificuldade para desvendar o segundo entendimento
imaginário de mestiçagem. Você identifica “mestiços racializados subalternos” como
promovendo uma “postura antimestiço… que lhes permite transitar por diferentes
mundos raciais”. Acreditando que têm raças diferentes dentro de si, eles rejeitam a

316 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

noção de fusão, por exemplo, o conceito de caldeirão de mestiçagem, em favor de


uma compreensão multicultural da mestiçagem. Quem são essas pessoas e onde elas
se encaixam na história racial do Brasil? O termo “subalterno” pode obscurecer
mais do que revelar. Quando retiradas de seu contexto indiano, de um sistema de
castas intergeracional bem ajustado, eu me pergunto: quais ideias viajam e quais não
em relação ao contexto brasileiro? Quais são os laços desse segmento de “mestiços
racializados”? A contraparte norte-americana seriam os indivíduos birraciais ou
“mixed-race”, que só recentemente se organizaram como “mixed-race”. Esse grupo se
encontra entre brancos e negros, um espaço liminar que faz sentido no contexto da
história racial dos Estados Unidos. Como me faltam maiores detalhes acerca desse
grupo no caso do Brasil, reservarei outros comentários para uma conversa futura.
A meu ver, esses debates dizem da complexidade de tentar remediar os efeitos
contínuos do racismo sistêmico, que reproduz a desvantagem sem que ninguém
assuma a responsabilidade por tal, agora. Essa é a beleza da construção de Eduardo
Bonilla-Silva (2003) acerca do “racismo sem racistas”, a saber, um sistema de racismo
cego à cor, em que os negros podem ser hipervisíveis como sujeitos, ao tempo em
que as dimensões estruturais que levam a que as instituições sociais reproduzam o
privilégio branco e a desvantagem negra permanecem invisíveis para os brancos.
Políticas públicas deficientes visam a reparar danos passados e seus efeitos persis-
tentes, mas eles têm uma árdua batalha junto às pessoas brancas bem-intencionadas
que simplesmente se recusam a acreditar que o racismo seja real. A ação afirmativa
é uma política, entre muitas, que intenta reparar erros passados. “Mestiços racializa-
dos subalternos” e “indivíduos mestiços” certamente farão parte desse esforço para
corrigir o racismo. Mas será que eles podem oferecer o tipo de liderança em torno
dessas questões, nessa nova era de conflito racial na qual eles se tornam as pessoas que
podem transitar por diferentes mundos? Sozinhos, certamente não. Eles precisarão
de aliados. Entretanto, pode ter passado o momento para uma nova categoria de
liderança de pessoas que se considere capaz de negociar as demandas, frequente-
mente conflitantes, de grupos racialmente díspares. Em meio ao transcurso de um
movimento como o “Black Lives Matter”, não nos resta mais que esperar para ver.

Edna Roland: Você já teve algum contato com o feminismo africano?

Patricia Hill Collins: Não tanto quanto eu gostaria. Certamente, tive conversas in-
dividuais substantivas com feministas africanas, mas nunca estudei sistematicamente
o feminismo africano. Dada a amplitude do termo, o importante para construir um
feminismo africano é que ele responda às necessidades das mulheres na África conti-
nental. Minha sensação é que as feministas africanas estão trabalhando em contextos

Jan.-Apr. 2021 317


Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

nacionais específicos que, por sua vez, as colocam em uma posição para diálogos
que abordam as necessidades específicas das mulheres dentro e entre os cinquenta e
quatro países soberanos da África continental. Incluo uma discussão provisória do
feminismo africano em bft que reflete as preocupações das feministas africanas em
analisar o discurso de gênero produzido no Ocidente. Esses debates começam a se
aprofundar e a se expandir para abranger as questões mais amplas da decolonialidade.
O livro da socióloga Sylvia Tamale, de Uganda, Decolonization and afro-feminism
(Tamale, 2020) abre novos caminhos a esse respeito dentro do feminismo africano.
Ampliar essa lente para abranger as mulheres na diáspora africana e suas relações com
o feminismo negro agrega camadas adicionais de complexidade e de possibilidade.
Meu foco nos últimos anos tem sido o feminismo negro no Brasil, um impor-
tante local do feminismo diaspórico africano que, por não se originar nos Estados
Unidos, oferece uma âncora importante para o feminismo negro diaspórico. O Brasil
se constitui num importante ponto de referência, entre o feminismo africano e o
feminismo negro nos Estados Unidos. Para mim, o feminismo negro no Brasil é um
projeto que tem uma energia que deriva dessa herança africana, mas que também
se baseia na necessidade. Enquanto as necessidades das mulheres negras no Brasil
permanecerem não atendidas, a necessidade do feminismo negro persistirá. Tive a
sorte de passar um tempo com uma incrível variedade de mulheres negras no Brasil
que afirmam sem pejo a negritude e o feminismo. Além disso, é impressionante o
alcance do feminismo negro para ultrapassar as fronteiras do ensino superior, das
políticas públicas, das artes e do ativismo popular. Existe aqui uma sinergia intelec-
tual e uma energia que faltam nos Estados Unidos. Esse é o tipo de compromisso a
que me referi anteriormente, e está profundamente organizado nos diferentes locais,
mas também entre gerações. Enquanto as necessidades das mulheres negras no Brasil
permanecerem não atendidas, a necessidade do feminismo negro persistirá.
No que concerne a meus laços diretos com o feminismo africano, continuei a
tentar aprender o máximo que pude através de trabalhos publicados por feminis-
tas africanas, entretanto não diria que tenho cultivado o tipo de rede social com
feministas africanas que tenho conseguido no Brasil. Mas estou trabalhando nisso.

Edna Roland: Tenho tido acesso a informações muito interessantes sobre as jovens
feministas de Angola, sobre a forma como elas estão discutindo o patriarcado!! ...

Patricia Hill Collins: Agradeço seus comentários sobre as mulheres jovens e o ativis-
mo feminista na África continental. Para ser franca, meu foco no Brasil aumentou
minha consciência do feminismo africano, especialmente na diáspora portuguesa. Em
novembro de 2018, participei do encontro internacional sobre mulher e feminismo

318 Tempo Social, revista de sociologia da USP, v. 33, n. 1


Por Nadya Araujo Guimarães (coord.)

(“Nós Tantas Outras”) organizado pelo Sesc São Paulo. Foi revigorante participar de
um evento no Sul Global, que foi organizado e que ocorreu fora dos locais feministas
dos Estados Unidos. Em vez de nos reunirmos em um campus universitário ou em
um hotel de alto padrão, nossas sessões foram realizadas em diversos locais do Sesc.
Passamos um tempo considerável na van, viajando para locais de conferências e
discutindo nossos respectivos projetos nas artes, no ativismo, na academia e nas po-
líticas públicas. Fiquei especialmente motivada por minhas conversas informais com
mulheres vindas de Moçambique e da Guiné-Bissau. O crescimento do feminismo
entre as mulheres jovens não foi um tema destacado na agenda da conferência, mas
estimulou algumas conversas de van fascinantes e várias conversas informais. Muitas
das participantes descreveram o surgimento do feminismo entre as mulheres jovens
e as diferentes maneiras que encontravam para formular essa mensagem feminista
em culturas bastante diferentes. Por exemplo, uma mulher apresentou como as
mulheres jovens, na China, protestaram contra o assédio nas ruas; não por meio de
marchas, petições e manifestações, mas por meio do uso criativo do teatro de rua
silencioso. Sem usar palavras, elas comunicaram uma mensagem que condenava o
assédio nas ruas de uma forma que dificultava a censura das autoridades. Em nossas
conversas, compartilhamos informações sobre como meninas e mulheres jovens
estão apresentando respostas criativas às coisas que estão afetando suas vidas. Todas
nós precisávamos ouvir umas das outras. Sou muito grata por ter podido participar
dessa reunião e agradeço, igualmente, o seu convite para esta entrevista.

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Palavras-chave: Interseccionalidade; Racismo; Teoria Social; Desigualdades.

Texto recebido em 31/8/2020 e aprovado em 11/9/2020.


doi: 10.11606/0103-2070.ts.2021.174340.

Alexandre Massella, https://orcid.org/0000-0001-7876-0235, é professor do Departa-


mento de Sociologia da Universidade de São Paulo, editor da Tempo Social; possui o título de
doutor em Sociologia pela Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].
Antonio Sérgio Alfredo Guimarães, https://orcid.org/0000-0002-4468-6089, é pro-
fessor titular sênior do Departamento de Sociologia da Universidade de São Paulo, pesquisador
do cnpq associado ao Cebrap, ao Programa A Cor da Bahia – ufba, e Visitante (2020-2011)
do llilas da University of Texas em Austin. Possui phd em Sociologia pela Universidade de
Wisconsin, Madison. E-mail: [email protected].
Edna Maria Santos Roland, https://orcid.org/0000-0002-7774-6594, é bacharel em
Psicologia e psicóloga pela Universidade Federal de Minas Gerais, coordenadora do Grupo
Especialistas Eminentes Independentes das Nações Unidas para a Declaração e Programa de
Ação de Durban, e fundadora da “Fala Preta! Organização de Mulheres Negras”. E-mail: edna-
[email protected].

Jan.-Apr. 2021 321


Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322

Flavia Matheus Rios, https://orcid.org/0000-0001-9864-0644, é professora da Universidade


Federal Fluminense, Rio de Janeiro. Possui o doutorado em Sociologia pela Universidade de São
Paulo. E-mail: [email protected].
Helena Hirata, https://orcid.org/0000-0002-0341-4124, é doutora em Sociologia pela
Université Paris 8 Vincennes-Saint-Denis e diretora de pesquisa emérita do Centre National
de la Recherche Scientifique; é pesquisadora colaboradora do Departamento de Sociologia da
Universidade de São Paulo. E-mail: [email protected].
Márcia Lima, https://orcid.org/0000-0003-2923-8445, é professora do Departamento de
Sociologia da Universidade de São Paulo. Doutora em Sociologia pelo ifcs/ufrj. É pesquisadora
sênior do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap), onde coordena o Afro – Núcleo
de Pesquisa sobre Raça, Gênero e Justiça Racial. E-mail: [email protected].
Marcos Nobre, https://orcid.org/0000-0001-6377-0668, é professor de Filosofia da Univer-
sidade Estadual de Campinas (Unicamp), Presidente do Cebrap – Centro Brasileiro de Análise
e Planejamento, codiretor do Mecila – Maria Sibylla Merian Centre Conviviality-Inequality in
Latin America e pesquisador 1A do cnpq. E-mail: [email protected].
Maria Carla Corrochano, https://orcid.org/0000-0001-8030-6461, é doutora em
Educação pela Universidade de São Paulo, e professora associada do Departamento de Ciências
Humanas e Educação e dos Programas de Pós-Graduação em Educação e em Estudos da Condição
Humana da Universidade Federal de São Carlos. É coordenadora do grupo de pesquisa do cnpq
“Gerações, percursos de vida e processos educativos”. E-mail: [email protected].
Nadya Araujo Guimarães, https://orcid.org/0000-0002-6871-1920, é doutora em Socio-
logia pela Universidad Nacional Autónoma de México, e professora titular sênior do Departa-
mento e do Programa de Pós-Graduação em Sociologia da Universidade de São Paulo, além de
pesquisadora 1-A do cnpq associada ao Cebrap (Centro Brasileiro de Análise e Planejamento).
E-mail: [email protected].
Patricia Hill Collins, https://orcid.org/0000-0003-0009-736X, é distinguished university
professor of Sociology na University of Maryland, College Park. Possui o título de PhD em
Sociologia pela Brandeis University. E-mail: [email protected].

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