1 Entrevista Com Patricia Hill Collins
1 Entrevista Com Patricia Hill Collins
1 Entrevista Com Patricia Hill Collins
1. Transcrição e tradução do inglês ao português: Louisa Acciari (phd lse, Pesquisadora e codiretora
do Centre for Gender and Disastre, University College London, ucl/uk). Revisão: Nadya Araujo
Guimarães (usp, Brasil). Agradecemos o suporte concedido por diferentes instituições, as quais tor-
naram possível a visita acadêmica de Patricia Hill Collins ao Brasil em outubro de 2019; foram elas: a
Universidade de São Paulo / Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a Universidade Federal
de São Carlos / Departamento de Ciências Humanas e Educação, a anped – Associação Nacional de
Pós-Graduação e Pesquisa em Educação, a sof – Sempre Viva Organização Feminista, a Ação Educa-
tiva, o Cebrap – Centro Brasileiro de Análise e Planejamento e a Boitempo Editorial.
* Universidade de São Paulo, São Paulo, Brasil.
Entrevista com Patricia Hill Collins, pp. 287-322
Maria Carla Corrochano: Tal como formulado em vários dos seus artigos, o conceito
de interseccionalidade engloba outras desigualdades além de sexo, raça e classe. Você
poderia nos falar um pouco mais sobre a importância e as formas de incluir categorias
como idade e geração na análise interseccional, particularmente considerando o contexto
presente, claramente marcado pelas relevantes diferenças entre gerações?
Patricia Hill Collins: Adorei sua pergunta pois ela dialoga com meu projeto atual,
a saber, como a idade enquanto categoria de análise poderia ajudar a explicar como
e por que os jovens resistem à opressão. O meu livro Black feminist thought (bft,
Collins, [1990] 2000) faz uma análise extensa do conhecimento resistente das
mulheres negras. Mais recentemente, eu expandi esse argumento no capítulo 3 de
iacst, intitulado “Intersectionality and resistant knowledge projects” (Collins,
2019). Nesse momento, estou interessada em entender como as experiências que
os jovens vivem em momentos cruciais de suas vidas moldam a sua consciência
política. Estou ancorando minha análise nas vidas dos jovens negros nos Estados
Unidos, apoiando-me na interseccionalidade como quadro interpretativo, com a
idade como categoria central. Se o racismo antinegro continua tomando formas que
são específicas para a juventude negra, por que pressupor que esses jovens negros e
negras não estariam cientes das formas de racismo que lhes são direcionadas? Por
que pressupor que jovens negros e negras não têm a capacidade de entender e resistir
à sua própria opressão?
Penso que podemos afirmar de modo contundente que uma análise geracional
desempenha um papel importante na formação da consciência política dos jovens
(Mannheim, [1927/28] 1952). Conceber a idade como categoria analítica, ao invés
de definir a idade como uma categoria descritiva de análise para fins estatísticos,
aponta para a utilidade da análise geracional como forma de pensar a idade. Como
Flavia Matheus Rios: No seu prefácio à edição brasileira do seu livro Black Feminist
Thought, publicado pela Boitempo (Collins, 2019a), você afirma que, apesar de suas
reflexões estarem ancoradas unicamente na experiência das mulheres negras americanas,
as ideias ali contidas poderiam valer para outras realidades. Como isso é possível? Você
acha que as mulheres do Norte e do Sul das Américas poderiam compartilhar valores
e experiências?
Patricia Hill Collins: Acho que mulheres negras do Norte e do Sul já comparti-
lham mais do que imaginamos. O que precisamos são diálogos que transponham
as fronteiras nacionais que nos separam. Quando escrevi a primeira edição de
bft (Collins, [1990] 2000), senti que aquela era uma perspectiva parcial, dentre
muitas, sobre o que o pensamento feminista negro era e poderia ser. Até mesmo o
termo “pensamento feminista negro” era provisório, porque eu sabia ser impossível
estabelecer um pensamento unificado sem um processo democrático e inclusivo em
torno de quem pode decidir o que conta como saber legítimo. Encarei a redação
de bft como um desafio epistemológico – seu conhecimento seria provisório até
que a comunidade interpretativa fosse expandida. Uma comunidade global de
mulheres negras não é apenas algo a ser descoberto – tais comunidades precisam,
antes, ser construídas.
A pergunta atual é como construir comunidades de mulheres negras para além das
fronteiras nacionais, que participem desse projeto coletivo. Os desafios que enfrentei
para desenvolver meu entendimento sobre as experiências e ideias das mulheres negras
na diáspora africana foram particulares, muito embora tenham implicações gerais.
Entender o feminismo negro no Brasil foi um processo particularmente desafiador.
Como eu não sabia ler o português, tive que me apoiar em fontes secundárias sobre
o povo negro no Brasil, bem como em traduções de fontes primárias escritas por
mulheres afro-brasileiras. Os filtros, as práticas de controle, eram enormes. Tive,
então, que driblar esses variados empecilhos que modelam como somos incentivados
a nos perceber, uns aos outros, nos diferentes contextos nacionais.
Tenho, agora, uma compreensão mais sofisticada acerca dessas práticas de fil-
tragem, que ocorrem na mídia e na academia, tanto nos Estados Unidos como no
Brasil. Vige, em ambas, um entendimento do tipo “porque controlamos o que conta
como verdade, essas são as percepções sobre o Brasil que você deve aceitar”. Quando
se trata da mídia americana, a cobertura americano-centrada de eventos globais é
emblemática. Apesar de seu tamanho e importância, a cobertura sobre o Brasil é irre-
gular e concentrada em temas de interesse para as elites. Historicamente, a academia
seguiu um rumo similar. Veja, por exemplo, a longevidade com que prevaleceram, na
produção acadêmica sobre raça, as descrições do Brasil como sendo uma democracia
racial. Ou a ideia de que o Brasil não teria um problema racial porque inexistem
raças, apenas uma identidade nacional. Ou mesmo de que a eliminação do racismo
no Brasil, graças à sua democracia racial, seria uma situação a ser replicada nos Esta-
dos Unidos. Percepções midiáticas e acadêmicas reforçam-se reciprocamente. Por
exemplo, as representações sobre o Carnaval brasileiro rotineiramente o destacam
como um festival que celebra a harmonia racial do Brasil. Eu questionei essas prá-
ticas de controle porque há muito suspeitava que existia muito mais no Brasil e nas
mulheres negras no Brasil do que dançarinas de samba seminuas. Viajar ao Brasil,
apesar do meu português deficiente, foi um modo de ter acesso a outros pontos de
vista. Se falo das minhas próprias dificuldades é porque tive o tempo e os recursos
para tentar. Muitas mulheres negras na diáspora não os têm.
Existe uma ampla, jovem e vibrante energia nas mulheres negras do Brasil, que se
mobilizam por mudança nas mais diversas localidades. Encontrei inúmeras intelec-
tuais jovens negras brasileiras que estão produzindo um trabalho inovador, muitas
sob circunstâncias difíceis; e suas experiências eram familiares para mim. Creio que
o momento é adequado para continuarmos a entabular conversações entre mulheres
negras no Norte e no Sul, para além das fronteiras nacionais.
Enfim, sendo clara, quando escrevi bft, nunca pensei que as perspectivas ali
apresentadas com respeito às mulheres negras americanas seriam verdadeiras para
todas as mulheres negras. Tinha plena consciência do viés da mídia e da academia
americanas sobre as mulheres negras da diáspora africana, mas fiz uma aposta ao
escrever esse livro, acreditando que outras pessoas poderiam considerá-lo útil. E
foi exatamente isso o que aconteceu. bft tem criado espaço para discussão, e estou
aberta a conversações que tratem das particularidades das experiências das mulheres
negras no Brasil, na África do Sul, no Reino Unido e no Canadá, mas também que
se esforcem para ultrapassar barreiras nacionais. Ofereço as ideias de bft para a
próxima geração de intelectuais feministas negras. A elas caberá decidir abraçar esse
vocabulário e aprofundar seu significado ou, quem sabe, criticá-lo e modificá-lo. De
toda forma, ele está aqui para elas.
Edna Roland: No seu livro fundador, bft, finalmente traduzido para o português,
você explica como, nos Estados Unidos, foi feito um trabalho aprofundado no sentido de
pesquisar e coletar ideias e textos de mulheres afro-americanas, de modo a contradizer
as imagens negativas da feminidade negra, revelando a riqueza da tradição intelectual
feminina negra. No Brasil, ainda há muito a ser feito nesse sentido. Entretanto, temos
uma rica epistemologia africana que nos chegou pela via das várias tradições religiosas
da África Ocidental, e que oferece arquétipos femininos fortes e positivos, distantes da
lógica binária do bem e do mal, doutrinariamente estabelecida na tradição cristã. Eu
Patricia Hill Collins: Acredito que existam mais dessas memórias africanas entre
as mulheres afro-americanas do que imaginamos. Ironicamente, encontrar com
mulheres negras fora do contexto americano aguçou minha compreensão acerca
dessas sobrevivências. É como se o Brasil, a África do Sul, Cuba e Haiti segurassem
um espelho no qual as mulheres afro-americanas podem visualizar as suas âncoras
africanas. Uma coisa é imaginar esses laços; outra é sentir tais conexões. Esta é minha
resposta curta.
Entretanto, explorar o argumento de como as ricas ideias de uma epistemolo-
gia africana teriam penetrado as tradições religiosas afro-americanas é um projeto
intelectual desafiador numa academia assentada em pressupostos laicos. O com-
portamento das mulheres negras reflete os arquétipos femininos positivos e fortes
que você descreve, mas, ironicamente, o árduo trabalho de escavar essas influências
africanas ainda não foi realizado pelo feminismo negro americano. Minha sensação
é que investigar a riqueza e a importância política dessa herança cultural tem sido
muito mais difícil nos Estados Unidos do que no Brasil. Mesmo que o passado
africano seja algo que todos podemos imaginar, nós o fazemos de forma diferente,
nos Estados Unidos e no Brasil, através dos distintos enquadramentos nacionais,
característicos de nossos respectivos países.
Meu uso inicial do termo Afrocentrismo na edição de 1990 de bft lançava mão
dessa perspectiva, a saber, de como africanos escravizados nos Estados Unidos usavam
epistemologias africanas (Collins, [1990] 2000). Meu argumento mais desafiador era
o de que as maneiras pelas quais essas ideias foram refeitas no contexto da opressão
racial eram essenciais para a sobrevivência dos negros. Contudo, um tal argumento era
difícil de ser veiculado na literatura convencional. Antes de publicar bft, submeti um
artigo a uma reconhecida revista feminista no qual defendia a tese de que a concep-
ção de maternidade nas famílias afro-americanas e entre as mulheres negras era uma
reação ao racismo, mas que reminiscências africanas das concepções de feminidade
negra também poderiam estar ali presentes. Meu argumento se baseava na ideia de
que as mulheres negras expressavam uma capacidade de agência que demonstraria a
importância das epistemologias africanas no seu esforço para sobreviver ao racismo.
Usei o termo “afrocêntrico” para descrever essa linha de pensamento. Meu artigo foi
rejeitado. Um parecerista sugeriu, para parafrasear: “não estamos convencidos de que
exista algo como o afrocentrismo. Não acreditamos que existam tradições filosóficas afri-
canas; e se tais tradições existissem, a autora deveria provar a existência de persistências
africanas no Novo Mundo”. Mas, como eu poderia comprová-lo, se tanto as religiões
Marcos Nobre: Minhas perguntas se referem ao seu livro mais recente, Intersectio-
nality as Critical Social Theory (iacst), e mais especificamente ao horizonte da
interseccionalidade como teoria em formação, e sua relação com outras perspectivas
críticas orientadas por e para a práxis (isto é, o estatuto teórico da interseccionalidade
como teoria social crítica e seu alcance). No capítulo 2 do livro você discute teorias que
têm alguma semelhança com a sua própria teoria, no sentido de que são orientadas por
e para a práxis…
Marcos Nobre: Nem todas, você tem razão, eu estava tentando introduzir uma questão
sobre a relação de sua teoria com as da Teoria Crítica da Escola de Frankfurt.
Patricia Hill Collins: Na verdade, a Escola de Frankfurt retoma, com razão, o termo
Patricia Hill Collins: Quando você sugere que a interseccionalidade estaria buscando
uma linguagem comum para a colaboração interdisciplinar, creio que você aponta
para uma das aspirações fundamentais da interseccionalidade. A relacionalidade
está no cerne da interseccionalidade e de iacst. A interseccionalidade é mais ampla
do que as disciplinas acadêmicas, pois nem todos os projetos de conhecimento se
organizam dessa maneira. No livro, tentei abordar a questão “o que é a intersec-
cionalidade?”. Como indivíduo, eu poderia imaginar o que é e o que poderia ser a
interseccionalidade, e o modelo do pesquisador solitário foi certamente atraente em
vários momentos no meu processo de escrita. Mas escolhi mapear o campo, exami-
nando como as pessoas usavam a interseccionalidade. Erguer um espelho de modo
a refletir as ideias e práticas heterogêneas que acompanham a interseccionalidade,
tentando mapear as várias maneiras como as pessoas a estão utilizando.
A resposta se apresentava à medida que eu escrevia. Quando comecei, concebia
a teoria social crítica enquanto um sistema acabado de ideias. Houve momentos
reconfortantes em que pude ver os contornos dos meus conceitos e como eles se
articulavam. Por exemplo, quando, no capítulo 1, finalmente pude distinguir os
conceitos fundamentais da interseccionalidade dos seus princípios orientadores, eu
a imaginei como uma coisa. Para mim, ela era uma teoria social crítica, tal como a
crítica marxista da economia política; uma filosofia em que a relação entre as ideias
era o verdadeiro teste de validade da teoria. Não havia necessidade de validar empi-
ricamente a interseccionalidade, vez que ela não almejava prever. Mas o processo de
escrever o livro tornou problemática essa conclusão prematura. Com o tempo, crescia
o meu senso da distinção entre teoria social crítica e teorização social crítica. Minhas
perguntas iniciais tornaram-se mais complexas – “como as pessoas que afirmam a
existência da interseccionalidade a entendem? Como tais entendimentos moldam
sua práxis? E como essa práxis molda compreensões da interseccionalidade?”. Parecia
que eu estava me acercando da interseccionalidade como processo no fazer de um
trabalho crítico. Ou como uma metodologia.
Entrei nesse projeto com a compreensão típica da ciência social sobre metodo-
logia, enquanto uma forma de testar hipóteses teóricas. Contudo, minha visão da
relação entre teoria e método se transformou radicalmente no curso do mesmo. Um
momento crucial aconteceu na Nova Zelândia quando eu expunha a respeito do
capitalismo numa Conferência sobre Estudos Culturais. Minha anfitriã casualmente
me disse: “[…] interseccionalidade, uma teoria? Eu achava que era uma metodo-
logia”. Nunca me ocorrera que alguém pudesse pensar sobre interseccionalidade
de um modo tão diferente do meu. Tive o tempo de um longo voo de volta aos
Estados Unidos para considerar as implicações daquela que parecia ter sido apenas
uma conversa casual. Será que isso significava que a interseccionalidade, como teo-
ria social crítica, se formara por via de sua metodologia, do processo de fazer um
trabalho interseccional? Nesse caso, como poderia conceber a interseccionalidade
enquanto processo, como uma metodologia em aberto que catalisaria uma teoria
social crítica igualmente aberta? Como você teoriza sabendo como será o final? Ou
mesmo se existe um fim? Como você sabe que está fazendo um trabalho melhor ao
desenvolver a interseccionalidade do jeito que você o faz? Essas perguntas cruciais
estão no cerne da interseccionalidade.
A essa altura, para mim, a práxis está no cerne do discurso crítico, ou de uma
visão crítica do mundo, que se alicerça em uma práxis metodológica crítica e é aten-
ta a ela. Como o conteúdo da interseccionalidade examina as conexões entre esses
sistemas de poder, sua metodologia ou práxis deve também atender à questão das
relações de poder que produzem seu próprio conhecimento. Teorizar sobre a inter-
seção das relações de poder requer desenvolver novas relações de poder dentro de
nossas metodologias. O quadro teórico de Linda Tuhiwai Smith para descolonizar
a metodologia desenvolve o tipo de práxis intelectual e política que é necessário à
interseccionalidade (Smith, 1999).
já que a sua conversa com Marcos flui para minha pergunta, pois eu também pensava
no seu livro mais recente… desculpe!
Patricia Hill Collins: Nada a desculpar! Estou honrada por você estar lendo iacst,
realmente estou. Recebi meu exemplar do livro há apenas dois meses e pensei que
ele demoraria muito mais para circular. Imagine minha surpresa quando cheguei ao
Brasil e encontrei pessoas esperando por mim com perguntas. Eu claramente subes-
timei o alcance global do Kindle. Até agora, pessoas em Israel, no Reino Unido, na
Espanha e em outros países fora dos Estados Unidos entraram em contato comigo,
compartilhando ideias sobre o livro. Esse livro foi um trabalho de amor. Levei anos
para conceituar, pesquisar e escrever. É muito gratificante saber que as pessoas o
estão lendo. Obrigada!
Nadya Araujo Guimarães: Logo no início do livro, seu argumento conduz o leitor da
ideia de interseccionalidade como sendo uma metáfora, à de que seria um instrumento
de pesquisa, e em seguida a trata como um paradigma. À primeira vista, pareceria
existir uma razão cumulativa subjacente ao modo de formular o argumento, já que a
perspectiva se torna mais densa e, passo a passo, mais profunda. Mas logo percebemos
que não é bem assim. A metáfora implica um raciocínio mais profundo, já que antecipa
o valor heurístico do conceito; e o paradigma não é o resultado, está em aberto. Assim
sendo, a minha pergunta é: você explora uma perspectiva tríplice sobre a intersecciona-
lidade – como uma metáfora, como uma heurística e como um paradigma. Como essas
perspectivas se relacionam?
Patricia Hill Collins: O primeiro capítulo costuma ser um dos mais difíceis de se
escrever em qualquer livro; e iacst não foi uma exceção. Gostei da sua pergunta
porque ela reconhece um dos riscos epistemológicos que eu assumi neste livro, a
saber, o de evitar enquadrar a interseccionalidade por meio de uma narrativa histó-
rica do progresso pela qual se assume que expressões atuais da interseccionalidade
seriam mais avançadas e, por consequência, melhores do que versões anteriores. As
tradições narrativas pelas quais se contam histórias seguem um caminho aparen-
temente sinuoso, em que o narrador é instado a “ir direto ao ponto”. Conquanto
muitas vezes acusados de circularidade, raciocínios recursivos que avançam e retro-
cedem ao ponto comum, apesar de não lineares, podem aprofundar o argumento.
Felizmente, percebi, logo no início ao escrever o iacst, que convinha aderir às
convenções lineares da teoria social ocidental para escrever iacst (embora não ao
conceber os argumentos), para garantir que o livro fosse reconhecido como teoria.
Mas eu também segui um processo diferente ao apresentar a análise feita no livro,
Antonio Sergio Alfredo Guimarães: Minha pergunta tem a ver com a política an-
tirracista. Você sugere que, depois da Segunda Guerra Mundial na Europa, o racismo
científico como ciência dominante caiu em desuso na academia. E ainda hoje a maioria
das pessoas não aceita que “raça” fez parte da modernização e da modernidade. De
muitas maneiras, eles concebem o antirracismo como uma negação da raça. Eles igno-
ram a tradição afro-americana que, desde o início do século xx, reconstruiu a raça de
uma forma muito mais positiva, como autoidentidade. Esse é o cerne da “teoria racial
crítica”, mas as pessoas na Alemanha ou na França não se sentiam confortáveis com a
teoria racial crítica. Mesmo hoje, a maioria das pessoas, feministas por exemplo, reage
melhor à interseccionalidade do que à teoria racial crítica. Minha pergunta é: pode a
interseccionalidade erguer pontes entre essas diferentes tradições antirracistas na Europa
e na América?
2018). Essa geração teve acesso à teoria racial crítica, aprimorada dentro das realida-
des das tradições intelectuais afro-americanas, assim como ao feminismo negro que
tem sido central para o desenvolvimento da interseccionalidade. Esse sentimento
emergente de negritude política, especialmente em resposta a uma política de iden-
tidade branca de extrema direita, está informado pela interseccionalidade. Não sem
razão, as mulheres negras têm sido centrais para esse antirracismo que se recusa a
abandonar um foco na negritude, que agora é entendido pelo prisma da interseccio-
nalidade. Na sua construção da negritude, mulheres negras não estão interessadas
em restabelecer estratégias antirracistas pretéritas, nas quais os homens negros eram
a cara da negritude e da política negra. Esse movimento social também propõe uma
visão da comunidade como baseada na democracia participativa, mais um tema
recorrente da interseccionalidade. Minha sensação é que em muitos movimentos
sociais em que jovens estão tendo um papel proeminente, evidencia-se algum tipo
de engajamento com a interseccionalidade. O movimento “Black Lives Matter” não
é o ponto de chegada, mas um ponto de entrada em uma política antirracista, que
testa a interseccionalidade ao usá-la.
Alexandre Massella: Na sua opinião, como levar a cabo, entre os filósofos, o debate
acadêmico sobre a epistemologia feminista, uma vez que eles parecem especialmente re-
sistentes (preconceituosos?) a aceitar as contribuições dessa abordagem? Terá a academia
desenvolvido um conceito de conhecimento tributário do pensamento feminista negro?
Marcia Lima: Tanto os Estados Unidos quanto o Brasil têm testemunhado episódios
de extrema violência contra negros, particularmente contra homens negros. Tenho
exercitado o uso do seu poderoso conceito de “imagem de controle” para aplicá-lo especial-
mente a instituições sociais que reproduzem tais imagens, e gostaria de lhe propor duas
perguntas a esse respeito. Primeira: você acha que esse conceito é útil para entendermos
a situação dos homens negros (sua desumanização, objetificação e estereótipos sobre seu
comportamento violento)? Segunda: você considera que a ausência de um debate maior
sobre gênero, quando se trata de pensar a situação dos homens negros, torna essa imagem
mais eficiente, em particular no caso da violência? Intelectuais negros se posicionam
enquanto homens negros? Nós não costumamos nos referir à sua condição de gênero…
que afetam muitos outros grupos. Qual é o papel das imagens de controle na incor-
poração de meninos brancos a seus lugares predefinidos enquanto homens brancos?
Esse é importante domínio de análise. Que tipo de análise produzimos ao observar
situações em que homens negros tentam resolver problemas nas comunidades negras
tornando-se mais parecidos com os homens brancos?
As mulheres negras de há muito têm observado como as imagens de controle da
feminidade negra, que refletem intersecções de gênero, raça e sexualidade, causam
um poderoso efeito negativo sobre as suas vidas. Mas muitas das discussões sobre a
violência de gênero contra as mulheres negras têm como alvo as práticas sociais mais
amplas, por exemplo, uma cultura do estupro na qual homens brancos atacavam
sexualmente mulheres negras na maior impunidade; outras vezes, minimizavam a
violência cometida pelos seus parceiros íntimos, filhos, pastores e membros da comu-
nidade. A imagem de controle da mulher negra forte aconselha as mulheres negras a
negligenciar a violência cometida pelos homens negros, em nome de protegê-los do
racismo. Mas será que isso é suficiente? Ou será um modo de eludir a difícil questão
de que lidar com a violência requer examinar o modo pelo qual todas as partes en-
volvidas reproduzem e são afetadas pelas imagens de controle?
Helena Hirata: Arlie Hochschild atribui a causas materiais o sucesso de seu conceito
de “trabalho emocional” (Hochschild, 2017, p. 8). Segundo Hochschild, “a verdadeira
causa de seu sucesso” tem a ver com “o imenso desenvolvimento” do setor dos serviços.
É possível identificar um tipo de explicação semelhante para o sucesso do conceito de
“interseccionalidade”? No seu ponto de vista, o que explica a ampla aceitação desse
conceito, tanto na academia quanto nos movimentos sociais?
menos aceita na academia do que se pensa. Ela pode ser tornada visível de maneiras
vantajosas para a academia. Na medida em que fornece uma amplo guarda-chuva
para a inclusão, eximindo as universidades de mudanças substanciais, incorporar a
interseccionalidade ajuda as performances institucionais do trabalho de cuidado.
Quando se trata de atender às necessidades de trabalho emocional nas uni-
versidades, a interseccionalidade tem sido cada vez mais assumida por setores de
serviços dentro das mesmas, por exemplo, os serviços estudantis, o recrutamento
de professores e outros similares. Mas o modo como ela tem sido usada remete ao
tema do trabalho emocional. Considere-se, por exemplo, como as ideias da inter-
seccionalidade foram diluídas num vocabulário em constante mudança, aplicado às
soluções contra injustiças de raça e gênero. As universidades fizeram uma mudança
cosmética, atentas ao mantra da diversidade, equidade e inclusão, ao tempo em que
evitavam qualquer transformação institucional substantiva. Em outras palavras, a
interseccionalidade está sendo crescentemente modificada por meio de um discurso
que apoia o trabalho institucional de cuidado e o trabalho emocional que isso acar-
reta, ao invés de se tornar um campo de estudo por direito próprio. Seu uso deixa
de ser analítico e crítico para se tornar um serviço a ser provido. Essa foi uma das
minhas principais preocupações em iacst, a saber, como a interseccionalidade pode
aguçar as suas possibilidades analíticas e críticas num contexto de uma academia
aparentemente inclusiva.
Marcos Nobre: Eu ficaria muito grato se você pudesse elaborar um pouco mais sobre a
constelação das noções de dominação, resistência e emancipação. Formulei minhas dú-
vidas a esse respeito em duas perguntas interligadas. Se a entendi bem, o principal ponto
normativo da abordagem interseccional no seu livro mais recente é o da “resistência”,
que me parece ser a noção que dá sentido ao termo “crítico”, presente no seu projeto de
“teoria social crítica”. A primeira questão seria: há uma única contrapartida conceitual
para “resistência”, ou elas seriam muitas? E, no mesmo sentido, a segunda questão: a
que se resiste? À dominação? Ao capitalismo?
Patricia Hill Collins: Eu realmente gostei desta pergunta porque ela toca o cerne
de quais termos são os melhores portadores da substância de meus argumentos. Eu
discuti comigo mesma sobre cada termo individual, bem como sobre as conexões
entre eles. Examinar as conexões entre resistência e trabalho intelectual está no centro
da minha produção (ver, por exemplo, On intellectual activism, Collins, 2012). Mas
entender como estou concebendo resistência tem sido uma preocupação constante
para mim. Teorizar a resistência, tanto quanto estimulá-la, tem sido fundamental
para minha reflexão. Preciso conhecer as maneiras específicas pelas quais minha
concepção de resistência informa meus argumentos sobre a interseccionalidade como
teoria social crítica. Você pergunta: “Haveria uma única contrapartida conceitual
para ‘resistência’, ou elas são várias?”. Ainda não tenho certeza, mas posso lhe dizer
um pouco sobre onde estou agora ao pensar por meio da resistência. Aqui, suas duas
perguntas complementares são especialmente úteis. Deixe-me responder uma de
cada vez. Primeiro, você pergunta: A que se está resistindo? A tarefa central de iacst
consiste em abordar essa questão da resistência a que e a centralidade das ideias para
tal resistência. Há algum tempo, tenho buscado criar um sentido de ação política
que não resida nem no terreno da teoria nem da prática. Em outras palavras, a resis-
tência política é mais do que ideias, mas depende de ideias. A interseccionalidade
aprofunda a compreensão da resistência às injustiças sociais existentes por meio da
forma como funcionam os sistemas de poder. Capitalismo, racismo, colonialismo,
heteropatriarcado, nacionalismo e sistemas semelhantes de poder podem ser vistos
como sistemas de relações de poder injustas. A característica comum aqui é que todos
esses são sistemas por meio dos quais a dominação assume uma forma específica tanto
em cada sistema, como nas interseções entre eles. Por exemplo, a dominação pode
ocorrer por meio de relações interpessoais íntimas ou pode servir para animar uma
guerra em larga escala. As injustiças sociais podem ser percebidas no cotidiano, nos
grupos, nas formas como as organizações são construídas, nas políticas das institui-
ções sociais, tanto quanto nos discursos que defendem esses arranjos.
Entretanto, conceituar resistência dessa maneira continua a centrar a análise
na opressão, e não na resistência. Uma dimensão do poder hegemônico é que ele
rotineiramente define os termos de todo o debate, inclusive do significado de resis-
tência. Porém, e se virarmos esse relacionamento pelo avesso? Talvez obtenhamos o
tipo de ordem social e dominação que temos agora, não como um reflexo das ações
da elite, mas como resultado da resistência sedimentada à dominação do passado.
As ideias seriam especialmente importantes nessa visão de resistência, que a torna
ordinária, como parte da vida cotidiana. Estratégias de resistência específicas são
parte de uma socialização contínua e por toda a vida, que se recusa a capitular à
normalidade da opressão. Reconheço como é assustador o modo pelo qual as re-
lações interseccionadas de poder oprimem, bem como as miríades de formas pelas
quais a dominação é organizada na sociedade, desde os seus níveis micro aos macro.
Recuso-me a teorizar o poder de uma forma tal que não admita a resistência, ou
a resistência de uma forma tal que a torne um derivado do poder. Como rejeito a
suposição não declarada de que a opressão é inevitável, que informou tantas teorias
sociais críticas, minha abordagem para conceituar a resistência não é niilista. Eu me
torno parte do problema se produzir uma teoria social crítica que não contemple,
em si mesma, as implicações para a resistência. Dizendo-o de outra forma, teorizar
a resistência não somente anima minha teorização social enquanto um objetivo, mas
pensar sobre as implicações de minha teorização para a práxis (resistência) também
serve como uma verificação metodológica do meu próprio decurso.
possui temas centrais recorrentes, mas que não pode ser congelada nos princípios de
uma epistemologia morta. Estou feliz por ter sido capaz de reconhecer, em iacst,
os limites epistemológicos do repensar a resistência com base em epistemologias
ocidentais. Mas isso não é suficiente. Pretendo seguir essas três linhas de investigação
como uma forma de aprimorar minha concepção de resistência.
Nadya Araujo Guimarães: Os “construtos centrais” que você desenvolve no livro (relacio-
nalidade, poder, desigualdade social, contexto social, complexidade e justiça social) são
uma contribuição específica proveniente do paradigma da interseccionalidade? Como
a teoria social contemporânea e a clássica dialogam a esse respeito? Você observou algum
processo de fertilização cruzada?
Devo confessar que, no momento em que pensava nessa questão, minhas memórias
se voltaram para uma descoberta interessante que fiz o ano passado, quando estava
retraçando o impacto, na academia americana, das ideias de uma destacada feminista
branca brasileira, Heleieth Saffioti. No final dos anos 1960, Saffioti escreveu um livro
(A mulher na sociedade de classe), originalmente uma tese, que foi seminal para a so-
ciologia brasileira (Saffioti, 1969). Nesse livro, ela antecipou o argumento das múltiplas
dimensões da opressão, baseada simultaneamente em relações de classe, raça e gênero
(claro, a palavra gênero não estava lá!). Menos de dez anos depois da primeira edição
brasileira, 1978, o livro foi publicado em inglês pela Monthly Review Press (Saffioti,
1978), com uma introdução de Eleanor Leacock, uma conhecida antropóloga marxista,
branca, muito sensível às questões acadêmicas e políticas levantadas pelo movimento
feminista. Ao traçar as marcas da recepção das ideias de Saffioti fora do Brasil, foi uma
alegria perceber que, logo após o lançamento do livro na sua versão em inglês, algumas
resenhas interessantes apareceram em revistas internacionais relevantes. No entanto,
tropecei com uma resenha inesperada, publicada no American Journal of Sociology
(ajs) bem depois, em 2014, nada menos que vinte anos após a edição em inglês (Ce-
larent, 2014). Qual não foi a minha surpresa! Como todas as outras resenhas sobre o
livro de Saffioti, essa também foi assinada por uma mulher, Barbara Celarent, uma
autora cuja existência na área dos estudos de gênero era por mim desconhecida. Para
meu espanto, alguns meses depois, descobri que essa mulher nunca existira. O verdadeiro
autor era Andrew Abbott, o proeminente professor do Departamento de Sociologia da
Universidade de Chicago e ex-editor do ajs. Entre 2009 e 2015, ele publicou nada
menos que trinta e cinco resenhas enfatizando a relevância de vários livros, alguns
deles (como o de Heleieth) quase desconhecidos (ou talvez esquecidos) pelo debate
global contemporâneo. Sob o pseudônimo de Barbara Celarent – uma “Professora de
Particularidade na Universidade de Atlântida”, como ela é referida pela ajs (campo e
instituição obviamente inexistentes), Abbott argumentava que era chegada a hora de
forçar o debate sobre teoria social a se tornar menos Ocidental do que vinha sendo, de
modo que pudéssemos chegar a uma verdadeira teoria social global (Abbott, 2016).
Por isso mesmo, quando você se referiu a “particularidades”, dez minutos atrás, mi-
nhas memórias voaram em direção ao empreendimento de Abbott, e me pego pensando
novamente em por que ele precisou usar um pseudônimo. Além disso, por que Barbara
Celarent, como personagem, foi concebida como ela o foi? E, sobretudo, por que esse
grande conjunto de resenhas só chamou a atenção acadêmica depois de publicado como
um todo, em um livro coassinado/editado com um homem, Andrew Abbott (Celarent
& Abbott, 2016)? Por que ninguém reparou?!
Isso me permite voltar ao meu ponto: em seu novo livro, você também está lidando
com um conjunto de conceitos que são cruciais para a teoria social ocidental; e você
também está tentando reformular, integrar, embalá-los como categorias “centrais” para
sua perspectiva. Você poderia refletir um pouco mais sobre isso?
Patricia Hill Collins: Achei que você fosse me perguntar outra coisa, mas agora que
você descreveu como Andrew Abbott – um proeminente teórico social branco do
sexo masculino – publicou resenhas de livros que gostaria de ver revisados no ajs,
mas que ele mesmo escreveu sob pseudônimo, quero refletir sobre esse caso. Estou
especulando aqui (e baseio meus pensamentos apenas em sua narrativa do caso)
sobre o que sei acerca do ajs, uma revista de ponta na sociologia americana cuja
influência no campo é significativa, bem como no meu conhecimento profissional
sobre a produção de Andrew Abbott. Eu adotei o livro Chaos of disciplines, de au-
toria de Abbott (Abbott, 2010), em meu curso de teoria social na graduação; bem
assim, considerei útil o seu livro Methods of discovery: Heuristics for the social sciences
(Abbott, 2004) ao formular meu argumento sobre o uso heurístico de interseccio-
nalidade (ver iacst, capítulo 1). No entanto, como dar sentido à criação de Abbott/
Celarent, uma identidade híbrida de gênero na qual Abbott e Celarent trocam de
lugar, como atores sociais, no palco e nos bastidores?
Uma leitura benevolente dos motivos de Abbott/Celarent sugeriria que ele/ela
percebeu, com razão, que não conseguiria encontrar pareceristas para textos como
o Woman in class society, de Saffioti, que fossem suficientemente qualificados para
atender às suas exigências, haja vista o que são as revisões rigorosas do ajs. Ao lhes
conceder o apoio anônimo de um patrono poderoso, como ele, talvez ela/ele tivesse
imaginado que estaria apoiando estudiosos que não eram brancos, não eram homens,
não eram ocidentais e não teriam o privilégio de promover seus livros. Num cená-
rio marcado pelo gênero, Abbott pôde se sentir autossatisfeito em termos morais,
politicamente protegido de críticas, porque ele não escreveu os comentários; ela o
fez. Ao tempo em que se divertia, de algum modo, com as travessuras de Celarent.
Por mais bem-intencionado que Abbott/Celarent possa ter sido, esse caso é um
exemplo original de como editores de revistas, financiadores e similares podem
exorbitar no desempenho de seus papéis nos bastidores, modelando o que conta
como sociologia legítima.
No entanto, uma leitura menos positiva dessa situação de pseudônimo a con-
sideraria o pior tipo de ação afirmativa, pois pressupõe que grupos marginalizados
que conseguem chegar à academia são menos qualificados e, portanto, só podem
ter sucesso se formarem alianças com aliados mais poderosos, normalmente ho-
mens brancos proeminentes, avançados na sua carreira e de elite. Como discuto
em “Intersectionality and epistemic resistance” (iacst, capítulo 4), o desafio de
construir comunidades interpretativas em meio às diferenças de poder existentes
na academia – neste caso, o acesso à teoria social – tem dimensões epistemológicas
que estruturam as relações de poder. Abbott tinha outras opções além de se tornar
um ventríloquo, manipulando Celarent, uma boneca imaginária que falava por
ele, sem ter que assumir a responsabilidade por seus argumentos (nesta entrevista
tenho que assumir a responsabilidade por minhas ideias porque sou visível), ou até
mesmo falar. Por exemplo, eu me pergunto: por que Abbott falhou em usar o poder
que a sua posição, como editor da ajs, lhe daria para recrutar e expandir o grupo de
pareceristas para os livros que Celarent avaliou? Esse tipo de manipulação anônima
das próprias regras, mesmo quando feita em nome da promoção de “novas” ideias,
é controlada por elites que, no fundo, distorcem os processos de criação de conhe-
cimento sem serem reconhecidas como atores sociais. Compare o comportamento
editorial de Abbott/Celarent com o de minha colega Margaret Andersen quando
era editora de Gender and Society. Tal como Abbott/Celarent, ela reconheceu a
importância do novo trabalho de mulheres, pessoas de cor e estudiosos globais do
gênero, e atuou decididamente para estimular jovens acadêmicos no sentido de que
enviassem artigos para um número especial sobre “Race, Class, and Gender”. Muitas
pessoas não o teriam feito se não fosse o tom da chamada de trabalhos veiculada pela
Revista, que consideraram acolhedora. O número de artigos recebidos excedeu em
muito a capacidade de um número especial. A decisão de Andersen moldou, dali
por diante, o perfil dessa revista. A brincadeira privada de Abbott, escrevendo sob
um pseudônimo que preservou seu anonimato, deixa um legado duvidoso para o
engajamento com a sociologia e para o ajs. Em contraste, a posição pública de An-
dersen de apoiar os estudos de raça, classe e gênero ajudou a cultivar uma comunidade
interpretativa de estudiosos de raça, classe e gênero, cujo trabalho continua a ter um
grande impacto no campo.
Continuo empenhada em promover diálogos entre estudiosos da teoria social
contemporânea, da teoria social clássica e da teoria social crítica. Ainda assim, his-
social, um conceito sobre o qual há uma ampla literatura nos domínios dos direitos
humanos e da legislação dos direitos civis, tanto quanto da filosofia. Inexiste uma
definição estabelecida para justiça social. Significativamente, muitos profissionais
especializados na interseccionalidade presumem que os outros compartilham suas
definições, com frequência idiossincráticas, sobre o que seja justiça social e que es-
tão igualmente comprometidos com ela. Mas, como discuto em “Intersectionality
without social justice?” (iacst, capítulo 8), qualquer compreensão de justiça social
para a interseccionalidade deve ser construída e não presumida. Relacionalidade,
enquanto um conceito, enfrenta um desafio semelhante, decorrente de sua crescente
popularidade nos diversos campos de estudo no Ocidente. Porém, estará a relacio-
nalidade se tornando, cada vez mais, um termo vazio que nutre um estilo carente de
substância? Estará esse conceito condenado a ver drenado o seu potencial crítico? O
capítulo “Relationality within intersectionality” (iacst, capítulo 7) foi, para mim,
um dos mais difíceis de escrever, visto que o termo relacionalidade é amplamente
usado, tanto dentro quanto fora da interseccionalidade.
Patricia Hill Collins: Não tanto quanto eu gostaria. Certamente, tive conversas in-
dividuais substantivas com feministas africanas, mas nunca estudei sistematicamente
o feminismo africano. Dada a amplitude do termo, o importante para construir um
feminismo africano é que ele responda às necessidades das mulheres na África conti-
nental. Minha sensação é que as feministas africanas estão trabalhando em contextos
nacionais específicos que, por sua vez, as colocam em uma posição para diálogos
que abordam as necessidades específicas das mulheres dentro e entre os cinquenta e
quatro países soberanos da África continental. Incluo uma discussão provisória do
feminismo africano em bft que reflete as preocupações das feministas africanas em
analisar o discurso de gênero produzido no Ocidente. Esses debates começam a se
aprofundar e a se expandir para abranger as questões mais amplas da decolonialidade.
O livro da socióloga Sylvia Tamale, de Uganda, Decolonization and afro-feminism
(Tamale, 2020) abre novos caminhos a esse respeito dentro do feminismo africano.
Ampliar essa lente para abranger as mulheres na diáspora africana e suas relações com
o feminismo negro agrega camadas adicionais de complexidade e de possibilidade.
Meu foco nos últimos anos tem sido o feminismo negro no Brasil, um impor-
tante local do feminismo diaspórico africano que, por não se originar nos Estados
Unidos, oferece uma âncora importante para o feminismo negro diaspórico. O Brasil
se constitui num importante ponto de referência, entre o feminismo africano e o
feminismo negro nos Estados Unidos. Para mim, o feminismo negro no Brasil é um
projeto que tem uma energia que deriva dessa herança africana, mas que também
se baseia na necessidade. Enquanto as necessidades das mulheres negras no Brasil
permanecerem não atendidas, a necessidade do feminismo negro persistirá. Tive a
sorte de passar um tempo com uma incrível variedade de mulheres negras no Brasil
que afirmam sem pejo a negritude e o feminismo. Além disso, é impressionante o
alcance do feminismo negro para ultrapassar as fronteiras do ensino superior, das
políticas públicas, das artes e do ativismo popular. Existe aqui uma sinergia intelec-
tual e uma energia que faltam nos Estados Unidos. Esse é o tipo de compromisso a
que me referi anteriormente, e está profundamente organizado nos diferentes locais,
mas também entre gerações. Enquanto as necessidades das mulheres negras no Brasil
permanecerem não atendidas, a necessidade do feminismo negro persistirá.
No que concerne a meus laços diretos com o feminismo africano, continuei a
tentar aprender o máximo que pude através de trabalhos publicados por feminis-
tas africanas, entretanto não diria que tenho cultivado o tipo de rede social com
feministas africanas que tenho conseguido no Brasil. Mas estou trabalhando nisso.
Edna Roland: Tenho tido acesso a informações muito interessantes sobre as jovens
feministas de Angola, sobre a forma como elas estão discutindo o patriarcado!! ...
Patricia Hill Collins: Agradeço seus comentários sobre as mulheres jovens e o ativis-
mo feminista na África continental. Para ser franca, meu foco no Brasil aumentou
minha consciência do feminismo africano, especialmente na diáspora portuguesa. Em
novembro de 2018, participei do encontro internacional sobre mulher e feminismo
(“Nós Tantas Outras”) organizado pelo Sesc São Paulo. Foi revigorante participar de
um evento no Sul Global, que foi organizado e que ocorreu fora dos locais feministas
dos Estados Unidos. Em vez de nos reunirmos em um campus universitário ou em
um hotel de alto padrão, nossas sessões foram realizadas em diversos locais do Sesc.
Passamos um tempo considerável na van, viajando para locais de conferências e
discutindo nossos respectivos projetos nas artes, no ativismo, na academia e nas po-
líticas públicas. Fiquei especialmente motivada por minhas conversas informais com
mulheres vindas de Moçambique e da Guiné-Bissau. O crescimento do feminismo
entre as mulheres jovens não foi um tema destacado na agenda da conferência, mas
estimulou algumas conversas de van fascinantes e várias conversas informais. Muitas
das participantes descreveram o surgimento do feminismo entre as mulheres jovens
e as diferentes maneiras que encontravam para formular essa mensagem feminista
em culturas bastante diferentes. Por exemplo, uma mulher apresentou como as
mulheres jovens, na China, protestaram contra o assédio nas ruas; não por meio de
marchas, petições e manifestações, mas por meio do uso criativo do teatro de rua
silencioso. Sem usar palavras, elas comunicaram uma mensagem que condenava o
assédio nas ruas de uma forma que dificultava a censura das autoridades. Em nossas
conversas, compartilhamos informações sobre como meninas e mulheres jovens
estão apresentando respostas criativas às coisas que estão afetando suas vidas. Todas
nós precisávamos ouvir umas das outras. Sou muito grata por ter podido participar
dessa reunião e agradeço, igualmente, o seu convite para esta entrevista.
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