Julio Cortázar - Do Conto Breve e Seus Arredores

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DO CONTO BREVE E SEUS ARREDORES

JULIO CORTÁZAR

Certa vez Horacio Quiroga tentou um decálogo do perfeito


contista, que desde o título vale já como uma piscada de olho para o
leitor. Se nove dos preceitos são consideravelmente prescindíveis, o
último parece-me de uma lucidez impecável:
“Conta como se a narrativa não tivesse interesse senão para o
pequeno ambiente de tuas personagens, das quais pudeste ter sido
uma. Não há outro modo para obter a vida no conto”.
A noção de pequeno ambiente dá um sentido mais profundo ao
conselho, ao definir a forma fechada do conto, o que já noutra
ocasião chamei de esfericidade; mas a essa noção se soma outra
igualmente significativa, a de que o narrador poderia ter sido uma
das personagens, vale dizer que a situação narrativa em si deve
nascer e dar-se dentro da esfera, trabalhando do interior para o
exterior, sem que os limites da narrativa se vejam traçados como
quem modela uma esfera de argila. Dito de outro modo, o sentimento
da esfera deve preexistir de alguma maneira ao ato de escrever o
conto, como se o narrador, submetido pela forma que assume, se
movesse implicitamente nela e a levasse à sua extrema tensão, o que
faz precisamente a perfeição da forma esférica.
Estou falando do conto contemporâneo, digamos o que nasce com
Edgar Allan Poe, e que se propõe como máquina infalível destinada a
cumprir sua missão narrativa com a máxima economia de meios;
precisamente, a diferença entre o conto e o que os franceses
chamam nouvelle e os anglo-saxões long short story se baseia na
implacável corrida contra o relógio que é um conto plenamente
realizado: basta pensar em The Cask of Amontillado, Bliss, Las ruínas
circulares e The Killers (Poe, Katherine Mansfield, Jorge Luís Borges e
Ernest Hemingway). Isto não quer dizer que contos mais extensos
não possam ser igualmente perfeitos, mas me parece óbvio que as
narrações arquetípicas dos últimos cem anos nasceram de uma
impiedosa eliminação de todos os elementos privativos da nouvelle e
do romance, os exórdios, os circunlóquios, desenvolvimentos e
demais recursos narrativos; se um conto longo de Henry James ou D.
H. Lawrence pode ser considerado tão genial como aqueles, será
preciso convir que estes autores trabalharam com uma abertura
temática e lingüística que de algum modo lhes facilitava o trabalho,
enquanto que o sempre assombroso dos contos contra o relógio está
no fato de potenciarem vertiginosamente um mínimo de elementos,
provando que certas situações ou terrenos narrativos privilegiados
podem ser traduzidos numa narrativa de projeções tão vastas como a
mais elaborada das nouvelles.
O que segue se baseia parcialmente em experiências pessoais cuja
descrição mostrará talvez, digamos a partir do exterior da esfera,
algumas das constantes que gravitam num conto deste tipo. Volto ao
irmão Quiroga para lembrar que diz: “Conta como se a narrativa não
tivesse interesse senão para o pequeno ambiente de tuas
personagens, das quais pudeste ser uma. A noção de ser uma das
personagens se traduz em geral na narrativa em primeira pessoa,
que nos situa de roldão num plano interno. Faz muitos anos, em
Buenos Aires, Ana María Barrenechea me censurou amistosamente
um excesso no uso da primeira pessoa, creio que com relação às
narrativas de Las Armas Secretas, embora talvez se tratasse das
do Final del juego. Quando lhe fiz ver que havia várias em terceira
pessoa, insistiu que não era assim e tive de prová-lo com o livro na
mão. Chegamos à hipótese de que talvez a terceira atuasse como
uma primeira pessoa disfarçada, e que por isso a memória tendia a
homogeneizar monotonamente a série de narrativas do livro.
Nesse momento, ou mais tarde, encontrei uma espécie de explicação
pela via contrária, sabendo que quando escrevo um conto busco
instintivamente que ele seja de algum modo alheio a mim enquanto
demiurgo, que se ponha a viver com uma vida independente, e que o
leitor tenha ou possa ter a sensação de que de certo modo está lendo
algo que nasceu por si mesmo, em si mesmo e até de si mesmo, em
todo caso com a mediação mas jamais com a presença manifesta do
demiurgo. Lembrei que sempre me irritaram as narrativas onde as
personagens têm de ficar como que à margem, enquanto o narrador
explica por sua conta (embora essa conta seja a mera explicação e
não suponha interferência demiúrgica) detalhes ou passagens de uma
situação a outra. O indício de um grande conto está para mim no que
poderíamos chamar a sua autarquia, o fato de que a narrativa se
tenha desprendido do autor como uma bolha de sabão do pito de
gesso. Embora pareça paradoxal, a narração em primeira pessoa
constitui a mais fácil e talvez melhor solução do problema,
porque narração e ação são aí uma coisa só. Inclusiva quando se fala
de terceiros, quem o faz é parte da ação, está na borbulha e não no
pito. Talvez por isso, nas minhas narrativas em terceira pessoa,
procurei quase sempre não sair de uma narração stricto sensu, sem
essas tomadas de distância que equivalem a um juízo sob, e o que
está acontecendo. Parece-me uma vaidade querer intervir num conto
com algo mais que com o conto em si.
Isto leva necessariamente à questão da técnica narrativa,
entendendo por isto o especial enlace em que se situam o narrador e
o narrado. Pessoalmente sempre considerei esse enlace como uma
polarização, isto é, se existe a óbvia ponte de uma linguagem indo e
de uma vontade de expressão à própria expressão, ao mesmo tempo
essa ponte me separa, como escritor, do conto como coisa escrita, a
ponto de a narrativa ficar sempre, após a última palavra, na margem
oposta. Um verso admirável de Pablo Neruda: Mis criaturas nacen
de um largo rechazo [Minhas criaturas nascem de um longo
rechaço] parece-me a melhor definição de um processo em que o
escrever é de algum modo exorcizar, repelir criaturas invasoras,
projetando-as a uma condição que paradoxalmente lhes dá existência
universal ao mesmo tempo que as situa no outro extremo da ponte,
onde já não está o narrador que soltou a bolha do seu pito de gesso.
Talvez seja um exagero afirmar que todo conto breve plenamente
realizado, e em especial os contos fantásticos, são produtos
neuróticos, pesadelos ou alucinações neutralizadas mediante a
objetivação e a transladação a um meio exterior ao terreno
neurótico; de toda forma, em qualquer conto breve memorável se
percebe essa polarização, como se o autor tivesse querido
desprender-se o quanto antes possível e da maneira mais absoluta da
sua criatura, exorcizando-a do único modo que lhe é dado fazê-lo:
escrevendo-a.
Este traço comum não seria conseguido sem as condições e a
atmosfera que acompanha o exorcismo. Pretender livrar-se de
criaturas obsedantes à base de mera técnica narrativa pode talvez
dar um conto, mas faltando a polarização essencial, a rejeição
catártica, o resultado literário será precisamente isso, literário: faltará
ao conto a atmosfera que nenhuma análise estilística conseguiria
explicar, a aura que pervive na narrativa e possuirá o leitor como
havia possuído, no outro extremo da ponte, o autor. Um contista
eficaz pode escrever narrativas literariamente válidas, mas se alguma
vez tiver passado pela experiência de se livrar de um conto como
quem tira de cima de si um bicho, saberá a diferença que há entre
possessão e cozinha literária, e por sua vez um bom leitor de contos
distinguirá infalivelmente o que vem de um território indefinível e
ominoso, e o produto de um mero métier. Talvez o traço diferencial
mais marcante — já o assinalei em outro lugar — seja a tensão
interna da trama narrativa. De um modo que nenhuma técnica
narrativa poderia ensinar ou prover, o grande conto breve condensa a
obsessão do bicho, é uma presença alucinante que se instala desde
as primeiras frases para fascinar o leitor, fazê-lo perder contato com
a desbotada realidade que o rodeia, arrasá-lo numa submersão mais
intensa e avassaladora. De um conto assim se sai como de um ato de
amor, esgotado e fora do mundo circundante, ao qual se volta pouco
a pouco com um olhar de surpresa, de lento reconhecimento, muitas
vezes de alívio e tantas outras de resignação. O homem que escreveu
esse conto passou por uma experiência ainda mais extenuante,
porque de sua capacidade de transvasar a obsessão dependia o
regresso a condições mais toleráveis; e a tensão do conto nasceu
dessa eliminação fulgurante de idéias intermédias, de etapas
preparatórias, de toda a retórica literária deliberada, uma vez que
estava em jogo uma operação de algum modo fatal que não tolerava
perda de tempo; estava ali, e só um tapa podia arrancá-la do pescoço
ou da cara. Em todo caso assim me tocou escrever muitos de meus
contos; inclusive em alguns, relativamente longos, como Las armas
secretas, a angústia onipresente ao longo de um dia todo me obrigou
a trabalhar obstinadamente até terminar a narrativa e só então, sem
cuidar de relê-lo, descer à rua e caminhar por mim mesmo, sem ser
já Pierre, sem ser já Michèle.
Isto permite assegurar que certa gama de contos nasce de um
estado de transe, anormal para os cânones da normalidade corrente,
e que o autor os escreve enquanto está no que os franceses chamam
um état seconde. Que Poe tenha realizado suas melhores narrativas
nesse estado — paradoxalmente reserva a frieza racional para a
poesia, pelo menos na intenção — prova-o aquém de toda evidência
testemunhal o efeito traumático, contagioso e para alguns diabólico
de O Coração delator ou de Berenice. Não faltará quem julgue que
exagero esta noção de um estado ex-orbitado como o único terreno
onde possa nascer um grande conto breve; farei ver que me refiro a
narrativas onde o próprio tema contém a “anormalidade”, como os
citados de Poe, e que me baseio em minha própria experiência toda
vez que me vi obrigado a escrever um conto para evitar algo muito
pior. Como descrever a atmosfera que antecede e envolve o ato de
escrevê-lo? Se Poe tivesse tido ocasião de falar disso, estas páginas
não seriam tentadas, mas ele calou esse círculo do seu inferno e se
limitou a convertê-lo em O gato preto ou em Ligéia. Não sei de outros
testemunhos que possam ajudar a compreender o processo
desencadeador e condicionador de um conto breve digno de
lembrança; apelo então para a minha própria situação de contista e
vejo um homem relativamente feliz e cotidiano, envolto nas mesmas
insignificâncias e dentistas de todo habitante de cidade grande, que
lê o jornal e se enamora e vai ao teatro e que de repente,
instantaneamente, numa viagem de metrô, num café, num sonho, no
escritório enquanto revisa uma tradução duvidosa acerca do
analfabetismo na Tanzânia, deixa de ser ele-e-sua-circunstância e
sem razão alguma, sem aviso prévio, sem a aura dos epilépticos, sem
a crispação que precede as grandes enxaquecas, sem nada que lhe
dê tempo para apertar os dentes e respirar fundo, é um conto, uma
massa informe sem palavras nem rostos, nem princípio nem fim, mas
já um conto, algo que somente pode ser um conto e, além disso, em
seguida, imediatamente, Tanzânia pode ir para o diabo porque este
homem porá uma folha de papel na máquina e começará a escrever,
embora seus chefes e as Nações Unidas em cheio lhe caiam nos
ouvidos, embora a sua mulher chame porque a sopa está esfriando,
embora ocorram coisas tremendas no mundo e seja preciso escutar
as estações de rádio ou tomar banho ou telefonar para os amigos.
Lembro-me de uma citação curiosa, creio que de Roger Fry; um
menino precocemente dotado para o desenho explicava seu método
de composição dizendo: First I think then I draw a line round my
think (sic) [primeiro eu penso depois eu desenho uma linha em volta
do meu penso (sic)]. No caso destes contos sucede exatamente o
contrário: a linha verbal que os desenhará começa sem
nenhum think prévio, há como que um enorme coágulo, um bloco
total que já é o conto, isso é claríssimo embora nada possa parecer
mais obscuro, e precisamente nisso reside a espécie de analogia
onírica de signo inverso que há na composição de tais contos, visto
que todos nós sonhamos coisas meridianamente claras que, uma vez
despertos, eram um coágulo informe, uma massa sem sentido.
Sonhamos despertos ao escrever um conto breve? Os limites entre o
sonho e a vigília já sabemos: basta perguntar ao filósofo chinês ou à
borboleta[1]. De qualquer maneira, se a analogia é evidente, a
relação é de signo inverso pelo menos no meu caso, visto que parto
do bloco informe e escrevo algo que só então se converte num conto
coerente e válido per se. A memória, traumatizada sem dúvida por
uma experiência vertiginosa, guarda em detalhes as sensações
desses momentos, escrever um conto assim é simultaneamente
terrível e maravilhoso, há um desespero exaltante, uma exaltação
desesperada; é agora ou nunca, e o temor de que possa ser nunca
exacerba o agora, torna-o máquina de escrever correndo a todo o
teclado, esquecimento da circunstância, abolição do circundante. E
então a massa negra se aclara à medida em que se avança,
incrivelmente as coisas são de uma extrema facilidade, como se o
conto já estivesse escrito com uma tinta simpática e a gente
passasse por cima o pincelzinho que o desperta. Escrever um conto
assim não dá nenhum trabalho, absolutamente nenhum; tudo
ocorreu antes e esse antes, que aconteceu num plano onde “a
sinfonia se agita na profundeza” para dizê-lo com Rimbaud, é o que
provocou a obsessão, o coágulo abominável que era preciso arrancar
em tiras de palavras. E pó isso, porque tudo está decidido numa
região que diuturnamente me é alheia, nem sequer o remate do
conto apresenta problemas, sei que posso escrever sem me deter,
vendo apresentar-se e suceder-se os episódios, e que o desenlace
está tão incluído no coágolo inicial como o ponto de partida. Lembro-
me da manhã que me caiu em cima Una flor amarilla : o bloco
amorfo era a noção do homem que encontra um garoto que se
parece com ele e tem a deslumbradora intuição de que somos
imortais. Escrevi as primeiras cenas sem a menor vacilação, mas não
sabia o que ia ocorrer, ignorava o desenlace da história. Se nesse
momento alguém me tivesse interrompido para me dizer: “No final o
protagonista vai envenenar Luc”, mas isso chegou como todo o
anterior, como a meada que se desnovela à medida que puxamos; a
verdade é que em meus contos não há o menor mérito literário, o
menor esforço. Se alguns se salvam do esquecimento é porque fui
capaz de receber e transmitir sem demasiadas perdas essas latências
de uma psique profunda, e o resto é uma certa veteranice para não
falsear o mistério, conservá-lo o mais perto possível da sua fonte,
com seu tremor original, seu balbucio arquetípico.
O que precede terá posto o leitor na pista: não há diferença genética
entre este tipo de contos e a poesia como a entendemos a partir de
Baudelaire. Mas se o ato poético me parece uma espécie de magia de
segundo grau, tentativa de posse antológica e não já física como na
magia propriamente dita, o conto não tem intenções essenciais, não
indaga nem transmite um conhecimento ou uma “mensagem”. A
gênese do conto e do poema é, contudo, a mesma, nasce de um
repentino estranhamento de um deslocar-se que altera o regime
“normal” da consciência; num tempo em que as etiquetas e os
gêneros cedem a uma estrepitosa bancarrota, não é inútil insistir
nessa afinidade que muitos acharão fantasiosa. Minha experiência me
diz que, de algum modo, um conto breve como os que procurei
caracterizar não tem estrutura de prosa. Cada vez que me tocou
revisar a tradução de uma de minhas narrativas (ou de tentar a de
outros autores, como alguma vez com Poe) senti até que ponto a
eficácia e o sentido do conto dependiam desses valores que dão um
caráter específico ao poema e também ao jazz: a tensão;o ritmo; a
pulsação interna; o imprevisto dentro de parâmetros ptré-
vistos… essa liberdade fatal que não admite alteração sem uma
perda irreparável. Os contos dessa espécie incorporam-se como
cicatrizes indeléveis em todo leitor que os mereça: são criaturas
vivas, organismos completos, ciclos fechados, e
respiram. Eles respiram, não o narrador, à semelhança dos poemas
perduráveis e à diferença de toda prosa encaminhada para transmitir
a respiração do narrador, para comunicá-la à maneira de um telefone
de palavras. E se perguntarem: Mas então, não há comunicação entre
o poeta (contista) e o leitor?, a resposta será óbvia: A comunicação
se opera a partir do poema ou do contista, não por meio deles. E
essa comunicação é a que tenta o prosador, de telefone a telefone; o
poeta e o narrador urdem criaturas autônomas, objetos de conduta
imprevisível, e suas conseqüências ocasionais nos leitores não se
diferenciam essencialmente das que têm para o autor, o primeiro a se
surpreender com a sua criação, leitor sobressaltado de si mesmo.
Breve coda sobre os contos fantásticos. Primeira observação: o
fantástico como nostalgia. Toda suspension of disbelief [suspensão da
incredulidade] atua como uma trégua no seco, implacável assédio
que o determinismo faz ao homem. Nessa trégua, a nostalgia
introduz uma variante na afirmação de Ortega: há homens que em
algum momento cessam de ser eles e sua circunstância, há uma hora
em que desejamos ser nós mesmos e o inesperado, nós mesmos e o
momento em que a porta que antes e depois dá para o saguão se
abre lentamente para nos deixar ver o prado onde relincha o
unicórnio.
Segunda observação: o fantástico exige um desenvolvimento
temporal ordinário. Sua irrupção altera instantaneamente o presente,
mas a porta que dá para o saguão foi e será a mesma no passado e
no futuro. Só a alteração momentânea dentro da regularidade delata
o fantástico, mas é necessário que o excepcional passe a ser também
a regra sem deslocar as estruturas ordinárias entre as quais se
inseriu. Descobrir numa nuvem o perfil de Beethoven seria
inquietante se durasse dez segundos antes de se desfiar e tornar-se
fragata ou pomba; o caráter fantástico só se afirmaria no caso de ali
continuar o perfil de Beethoven enquanto o resto das nuvens se
conduzisse com sua desintencional desordem sempiterna. Na má
literatura fantástica, os perfis sobrenaturais costumam ser
introduzidos como cunhas instantâneas e efêmeras na sólida massa
do habitual; assim, uma senhora que foi premiada com o ódio
minucioso do leitor é meritoriamente estrangulada no último minuto
graças à mão fantasmal que entra pela chaminé e se vai pela janela
sem maiores rodeios, além do que nesses casos o autor se vê
obrigado a prover uma “explicação” à base de antepassados ou
maléficos malaios. Acrescento que a pior literatura deste gênero é,
contudo, a que opta pelo procedimento inverso, isto é, o
deslocamento do tempo ordinário por uma espécie de full-time do
fantástico, invadindo a quase totalidade do cenário com grande
espalhafato de espetáculo sobrenatural, como no batido modelo da
casa mal-assombrada onde tudo ressumbra manifestações insólitas,
desde que o protagonista faz soar a aldrava das primeiras frases até
a janela do sótão onde culmina espasmodicamente a narrativa. Nos
dois extremos — insuficiente instalação num ambiente comum, e
rejeição quase total deste último — peca-se por impermeabilidade,
trabalha-se com materiais heterogêneos momentaneamente
vinculados, mas nos quais não há osmose, articulação convincente. O
bom leitor sente que nada têm que fazer aí essa mão estranguladora
ou esse cavalheiro que em consequência de uma aposta se instala
para passar a noite numa tétrica morada. Este tipo de contos que
infesta as antologias do gênero lembra a receita de Edward Lear para
fabricar um pastel cujo glorioso nome esqueci: pega-se um porco,
ata-se o bicho a uma estaca e bate-se nele violentamente, enquanto
em outra parte se prepara com diversos ingredientes a massa cujo
cozimento só se interrompe para continuar espancando o porco. Se
ao cabo de três dias não se tiver conseguido que a massa e o porco
formem um todo homogêneo, pode-se considerar que o pastel é um
fracasso, em virtude do que se soltará o porco e se atirará a massa
ao lixo. É precisamente isso que fazemos com os contos em que não
há osmose, onde o fantástico e o habitual se justapõem sem que
nasça o pastel que esperávamos comer estremecidamente.
( CORTÁZAR, Julio. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva,
2006, p. 227-237)

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