Homossexuais em Transito Representacoes
Homossexuais em Transito Representacoes
Homossexuais em Transito Representacoes
HOMOSSEXUAIS EM TRÂNSITO:
REPRESENTAÇÕES, MILITÂNCIA E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA
HOMOSSEXUAL NA BAHIA, 1978-1988
Salvador/Bahia
2017
2
HOMOSSEXUAIS EM TRÂNSITO:
REPRESENTAÇÕES, MILITÂNCIA E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA
HOMOSSEXUAL NA BAHIA, 1978-1988
Salvador/Bahia
2017
3
________________________________________________________________
Carneiro, Ailton José dos Santos
Homossexuais em Trânsito: Representações, Militância e Organização Política
Homossexual na Bahia, 1978-1988. / Ailton José dos Santos Carneiro. – Salvador 2017.
150 f.:il.
________________________________________________________________
4
HOMOSSEXUAIS EM TRÂNSITO:
REPRESENTAÇÕES, MILITÂNCIA E ORGANIZAÇÃO POLÍTICA
HOMOSSEXUAL NA BAHIA, 1978-1988
_________________________________________________
Professor Doutor Marcelo Pereira Lima
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
(Orientador)
_________________________________________________
Professora Doutora Lígia Bellini
Universidade Federal da Bahia (UFBA)
(Examinadora)
_________________________________________________
Professor Doutor Elias Ferreira Veras
Universidade do Estadual do Ceará (UECE)
(Examinador)
DATA DA APROVAÇÃO
Salvador, ______ de ______________ de 2017.
______________________________________________________________
Ailton José dos Santos Carneiro
Universidade Federal da Bahia
Faculdade de F;ilosofia e Ciemcjas Humanas.
PROGRAMA DE POS-GRADUACAO EM HISTORIA
214121662 Mestrado
Homossexuais em transito: representa90es, militancia e organiza9ao poHtica homossexual na Bahia, 1974·1988
EXAMINADORES CPF
er.qep.~ b!gi9~~m~.i(v.E~AL __ __ _ _ .
...Pr9.f:.Pr:.~. li9~_E.~r.r~!r9y~r.?~
(V.~~~!.bif!l9.~ir.9.ggNq~~).
..Prqf:Pr: M.9.r.~~lq
P~r.~ir.9bi~.9{VE.~A,_.Qri.~.~.~9gqr.)
. 3
ATA
Aos trinta e um dias do mes de mar~o do ana de 2017 nas dependencias da Faculdade de Filosofia e Ciencias Humanas
da Universidade Federal da Bahia (UFBA), foi instalada a sessao publica para julgamento do trabalho final elaborado por
Ailton Jose dos Santos Carneiro do curso de mestrado do Programa de P6s-gradua~ao em Hist6ria. Ap6s a abertura
da sessao, 0 professor doutor Marcelo Pereira Lima, orientador e presidente da banca julgadora, deu seguimento aos
trabalhos, apresentando os demais examinadores. Foi dada a palavra ao autor, Cluefez sua exposi~ao e, em seguida,
ouviu a leitura dos respectivos pareceres dos integrantes da banca. Terminada a leitura, procedeu-se a argui~ao e
respostas do(a) examinando(a). Ao final, a banca, reunida em separado, resolveu ~-~ 0
aluno. Nada mais havendo a tratar, foi encerrada a sessao e lavrada a presente ata que sera assinada por quem de
direito.
PARECER GERAL
A todos aqueles que têm consciência para ter coragem, que têm a força de saber que existem,
e que no centro da própria engrenagem inventam a contra-mola que resiste.
6
“Diadorim, que eu tinha falado, permaneceu em mim. Me abracei com ele. Mel se sente é
todo lambente – ‘Diadorim, meu amor...’ Como era que eu podia dizer aquilo?
...E como é que o amor desponta?
...Coração cresce de todo lado. Coração vige feito riacho colominhando por entre serras e
varjas, matas e campinas. Coração mistura amores. Tudo que cabe.
...E eu – como é que posso explicar ao senhor o poder de amor que eu criei? Minha vida o
diga. Se amor? Diadorim tomou conta de mim.
... Diadorim deixou de ser nome. Virou sentimento meu”.
João Guimarães Rosa.
"A uma civilização que elimina as diferenças, a história deve restituir o senso das
particularidades". Philipe Aries.
7
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.......................................................................................................................20
CONCLUSÃO.......................................................................................................................138
FONTES.................................................................................................................................143
REFERÊNCIAS....................................................................................................................145
14
trêmulo devido ao medo de ser a qualquer instante arrolado no debate por qualquer
“engraçadinho”, estava acontecendo em mim, uma verdadeira revolução. Foi a partir daí que
passei a compreender a homossexualidade como uma representação e que eu não estava
determinado, por ter um desejo sexual desviante da norma, a me comportar como um
“anormal”. Para um adolescente sem muitas referências e preso em seus medos, essa descoberta
foi libertadora. Foi neste dia também que descobri o quanto o conhecimento do passado pode
ser subversivo e emancipatório. Neste sentido, a minha primeira percepção dessencializada da
homossexualidade já veio acompanhada da noção de potência de um saber histórico.
O meu ingresso no curso de História da Universidade do Estado da Bahia, no Campus
II, no final do ano de 2006, marcou o início de uma nova etapa da minha vida. Foi sob o efeito
do sobe e desce da famosa “escada” da instituição que eu fui amadurecendo a cada degrau. Foi
neste momento também que encontrei pessoas que estavam pouco preocupadas para onde eu
direcionava o meu apetite sexual. Esta aparente indiferença desse grupo de colegas, que mais
tarde se tornaram amigos, aliado a um afeto e uma solidariedade, foi crucial para despertar em
mim um interesse, ou até mesmo uma necessidade existencial, de se falar sobre a minha
pretensa sexualidade. É óbvio que esse processo catártico também foi influenciado por outras
experiências pessoais. Não obstante, essa confraria formada no contexto da universidade
desempenhou um papel fundamental no que tange a saída da temática da homossexualidade de
uma esfera íntima da minha existência para se tornar objeto de estudo acadêmico.
Vale salientar que antes de me debruçar na história dos amantes do mesmo sexo, tive
minha iniciação científica num outro campo da historiografia. Ainda no final do segundo
semestre da graduação em História fui selecionado para participar de um projeto de pesquisa
liderado pela professora Maria das Graças Leal que discutia a organização de trabalhadores
urbanos em Alagoinhas-Bahia. Embora tivesse na ocasião um grande interesse pela memória
dos ferroviários alagoinhenses, e o Campus II da UNEB tenha tradição na linha de História do
Trabalho, optei por me enveredar num campo totalmente inexplorado e quase que infértil
naquele cenário acadêmico. Sentia a necessidade de discutir algo que tivesse mais intimamente
ligado a minha autopercepção existencial e política. Foi a partir daí que eu assumi uma
“coragem da verdade”, como na acepção dada por Foucault, e a homossexualidade se
apresentou como tema de pesquisa dentro das exigências do componente curricular “Pesquisa
Histórica I”.
Com o tema selecionado restava então delimitar um problema. Primeiramente, pensei
em discutir uma possível repressão aos homossexuais na Ditadura Militar. Esta ideia surgiu
porque tinha feito uma viagem para João Pessoa e lá encontrei num sebo o livro do jornalista
16
Agassiz de Almeida, intitulado “A Ditadura dos Generais”, no qual ele comparava a Ditadura
Militar na América Latina com o Nazismo na Alemanha. Sem entrar agora no mérito desta
discussão, a partir da leitura dessa obra comecei a criar hipóteses sobre uma possível
perseguição homossexual por parte dos governos militares no Brasil. No entanto, quando
procurei um dos professores especializados no estudo do Golpe Civil-militar de 1964, este
descartou qualquer preocupação dos militares com os praticantes de sexo entre iguais no Brasil,
deixando-me sem argumentos na ocasião para contestá-lo. Ocorreu então que numa das minhas
conversas com o professor e antropólogo Arivaldo Lima, ele me sugeriu analisar a trajetória do
Grupo Gay da Bahia. Acatei a sugestão de imediato e o convidei para ser o orientador do meu
trabalho de conclusão de curso. A partir desse dia passei a coletar o máximo de dados possíveis
acerca do GGB e do movimento homossexual no Brasil e no mundo.
No transcorrer da pesquisa sobre o Grupo Gay da Bahia tive que mudar de orientador
devido a uma solicitação de licença por parte do professor Arivaldo, passando então a ser
orientado pelo professor sociólogo Iuri Ramos que deu importantes acréscimos, sobretudo, no
que se refere as técnicas utilizadas para a pesquisa. Com isso, apresentei a monografia intitulada
“A Politização da Homossexualidade na Bahia nos Anos 1980 – A Atuação do Grupo Gay da
Bahia (GGB)”, em 23 agosto de 2012, obtendo a aprovação com nota dez. Cumpria-se assim a
primeira etapa deste projeto de pesquisa.
Graduado, passei então a investir na preparação para o ingresso em algum programa
de mestrado em História como uma forma de dar continuidade aos meus estudos.
Concomitantemente, concorri a seleção de vagas residuais da Universidade Federal da Bahia
(UFBA) para o curso de Direito, sendo aprovado em setembro de 2013. A partir daí passei a
concentrar as minhas forças no objetivo de garantir meu ingresso no Programa de Pós-
graduação em História da UFBA, o que ocorreu no início do ano de 2014.
A Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFBA, situada no místico bairro de
São Lázaro e ostentando um charmoso casarão antigo, sempre exerceu um fascínio sobre mim.
Embora tivesse também a expectativa de ingressar em outros programas de pós-graduação em
história do país, ter sido aceito pelo PPGH-UFBA, foi um feito que muito me orgulhou. Este
mestrado representava também a oportunidade de avançar nos estudos sobre o movimento
homossexual no Brasil, focando, mais especificamente, na formação de uma militância
homossexual na Bahia.
Logo no primeiro semestre do mestrado, cursei a disciplina obrigatória “Teoria da
História Social”, ministrada pelo professor Marcelo Pereira Lima, que é também o meu
orientador na produção da minha dissertação de mestrado, e tive a oportunidade de revisar e
17
entrar em contato com muitos pensadores do campo da História e das outras Ciências Sociais.
Nesta disciplina, além de participar dos profícuos debates e das apresentações de textos em sala,
produzi também uma resenha sobre o livro “Ditadura e Homossexualidades”, organizado por
James N. Green e Renan Quinalha, recém-publicado na época, e escrevi a primeira versão no
formato de artigo do texto “Salvador dos Homossexuais”. A outra disciplina obrigatória cursada
foi “Metodologia da Pesquisa”, centrada na linha de “Cultura e Sociedade” e oferecida pelo
professor Antonio Luigi Negro. Neste componente curricular, além de discutir em turma o
projeto de acesso ao mestrado e revisá-lo, fomos de imediato impelidos a premeditar a
qualificação. No que tange ao meu projeto de pesquisa, o professor Antonio Luigi deu
importantes contribuições, sobretudo, no que diz respeito às ciladas epistemológicas e teóricas
das quais ao se discutir um tema tão transversal como o da homossexualidade estamos sempre
estamos sujeitos. Ainda neste semestre, cursei a disciplina optativa “História, Política, Cultura
e Memória”, ministrada pela professora Lucileide Cardoso. Neste curso, além de ter absorvido
discussões sobre memória e narrativas de si, entrei em contato também, ainda que
preliminarmente, com o pensamento do filósofo italiano Giorgio Agamben que, posteriormente,
a partir de outras leituras de suas obras, passou a balizar muitas das minhas análises nesta atual
etapa da pesquisa.
Para integralizar os créditos cursei mais dois componentes curriculares optativos em
outros Programas de Pós-graduação da UFBA. Tomei essa decisão por entender que a temática
da homossexualidade é disputada por diversos campos de saber, exigindo, assim, um esforço
interdisciplinar por parte de quem a estuda. Outra motivação foi o fato de no segundo semestre
do mestrado o PPGH-UFBA não oferecer nenhuma disciplina que privilegiasse as investigações
da linha de Cultura e Sociedade. Sendo assim, optei pela disciplina “Gênero e Poder”, oferecida
pelo Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher (NEIM) e ministrada pela professora
Salete Maria da Silva, e por cursar o componente curricular “Cultura, Modernidade e a Cidade”,
ofertado pela professora Maria Gabriela Hita no Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais (PPGCS). No NEIM, tive contato com teorias e histórias de vida de mulheres feministas
que ampliaram a minha discussão de gênero. No entanto, no que diz respeito a questão do poder,
o curso focou exclusivamente nas questões da representação política e do acesso das mulheres
ao poder institucional, deixando a discussão sobre as outras relações de poder de lado. Já no
PPGCS, tive a oportunidade de estudar os principais teóricos da Sociologia Urbana e
Antropologia Urbana, despertando assim, em mim, novos olhares no estudo das cidades,
sobretudo, de uma Salvador experimentada pelos homossexuais pelos idos de 1970 e de 1980.
No terceiro semestre do mestrado realizei o estágio docente. Por compreender que lido
18
INTRODUÇÃO
1
Sobre o conceito de “sexualidades dissidentes” ver COLLING, Leandro (org.). Dissidências sexuais e de gênero.
Salvador-Ba: Edufba, 2016.
21
aprofundada como é que se constrói na Bahia, notadamente em Salvador, devido a uma maior
visibilidade de homossexuais, no período anterior a fundação do Grupo Gay da Bahia, uma
subjetividade política e uma identidade coletiva focalizada numa maior emancipação do
homossexual. Neste sentido, torna-se importante também cartografar os sujeitos esparsos que,
mesmo ainda não organizados, já formavam um grupo, por fazerem uso de uma representação
coletiva para reivindicar direitos para os amantes do mesmo sexo. Assim como, perceber
também a formação de outros grupos homossexuais no estado, como foi o caso do “Adé Dudu
– Grupo de Negros Homossexuais”.
Percebe-se então que a iniciativa de Mott serviu muito mais para conglomerar sujeitos
que já lutavam pelos direitos civis dos homossexuais na Bahia, ainda que de forma não
organizada. Dessa forma, embora possamos estabelecer um continuum entre a militância do
grupo Somos/SP e atuação do GGB, é imprescindível perceber também as descontinuidades.
Tal percepção nos conduz a uma série de inquietações que podem ser expressas pelos seguintes
questionamentos: De que forma ocorreu a transição de representações homossexuais singulares
para as identificações homossexuais coletivas na Bahia da década de 1970? Qual era a cultura
política homossexual desses sujeitos? Quais eram as tensões sociais e disputas políticas
desveladas a partir das interações entre os amantes do mesmo sexo na cidade de Salvador?
Como se deu a adesão dos membros e formação do Grupo Gay da Bahia e do Grupo Adé Dudu?
E, de que forma ocorreu o processo de politização da homossexualidade na Bahia e no Brasil
engendrado pelo GGB nos anos de 1980?
Tendo em vista esta problemática, este trabalho tem como escopo discutir como se deu
o processo de agitação político-cultural e formação de um movimento homossexual organizado
em Salvador no período de abertura política e redemocratização do Estado brasileiro, de 1974
a 1988, dando-se grande ênfase à atuação do Grupo Gay da Bahia (GGB). Para tanto, faz-se
uso de uma revisão bibliográfica acerca da temática, de uma análise de documentos – estatutos,
boletins informativos, livros e folhetos produzidos pelos militantes homossexuais, jornais da
época – que compõem a narrativa sobre esse passado, e de fontes orais de cunho memorialístico
que, através da análise de discursos, reverberam toda a gama de representações, práticas e
tensões envolvendo esses agentes históricos.
A historiografia cada vez mais tem atentado para muitas temáticas que antes eram
consideradas irrelevantes ou além dos domínios da lente do historiador. Dessa forma, para
temas antes negligenciados como o amor, o gênero, a sexualidade, o corpo, a loucura, entre
outros, foram lhes atribuídos caráter histórico. É neste sentido que as sexualidades
“disparatadas” se apresenta como mais um novo campo de investigação. Mais do que uma
22
2
Cf. RAGO, Margareth. A “Nova” Historiografia Brasileira. Anos 90. Porto Alegre, n. 11, julho de 1999.
3
Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979.
4
Cf. ENGEL, Magali. História e Sexualidade. IN: CARDOSO, Ciro Flamarion e VAINFAS, Ronaldo (orgs.).
Domínios da História: Ensaios de Teoria e Metodologia. 3° ed. Rio de Janeiro: Campus, 1997.
23
sexualidade”, estudos acerca dos comportamentos e dos vários usos do corpo pelos diferentes
sujeitos.
Para consubstanciar esta investigação tomo como referências estudos elaborados
acerca da homossexualidade e dos movimentos homossexuais, e a inserção desses temas no
universo historiográfico, da teoria dos movimentos sociais, e da questão da identidade, com os
quais é estabelecido um diálogo no sentido de fundamentar teoricamente esta análise. Para me
guiar nesse emaranhado epistemológico, faço uso ainda do conceito de “representações”, de
Roger Chartier, da “hipótese repressiva sobre o sexo” e das considerações acerca do “poder
disciplinar” e da “biopolítica”, formuladas por Michel Foucault, das noções de “diferença” e
“repetição”, de Gilles Deleuze, assim como da utilização dos conceitos de “produção
secundária”, de “lugar praticado” e de “estratégia” e “tática”, emprestados por Michel de
Certeau. Além, dos estudos de outros autores que fornecem ao trabalho subsídios conceituais e
coesão de ideias.
Antes de qualquer coisa, é salutar também adiantar alguns esclarecimentos teórico-
conceituais que norteiam essa discussão. Trata-se, acima de tudo, de uma história da luta
homossexual na Bahia, mais especificamente da atuação de homossexuais masculinos, uma vez
que as ações nos espaços públicos, historicamente, foi um privilégio concedido aos homens,
mesmo para aqueles que desviavam das normas da masculinidade, enquanto que às mulheres
cabia os espaços privados.
Um outro motivo é que os grupos homossexuais baianos eram formados, em seus
primeiros anos, basicamente por homens. Uma outra demarcação diz respeito ao problema da
nomeação da prática sexual entre iguais. Neste caso, termos como “homoafetividade” ou
“homoerotismo” não contemplam o objetivo dessa análise, tendo em vista que a agitação
político cultural e a organização de uma militância se deu sobre e sob o conceito de
homossexualidade, compreendido aqui, a partir das ideias de Foucault, como sendo uma
categoria discursiva produzida pela vontade de verdade e relações de poder para capturar
sujeitos e suas pulsões sexuais vistas como desviantes pela norma médico-legal. Já por
homoafetividade, conceito formulado por Maria Berenice Dias, entende-se uma relação afetiva
entre pessoas do mesmo sexo com um forte vínculo amoroso, baseado em um convívio familiar.
Embora sua definição possa contemplar relações entre iguais em diferentes tempos e espaços,
em sua formulação, o conceito é um tanto atual demais para dar conta das subjetividades
produzidas e demandas suscitadas pelo movimento político que se formou em torno da
24
homossexualidade no Brasil nas décadas de 1970 e 1980.5 O termo homoerótico, cunhado pelo
psicanalista Jurandir Freire Costa, surgiu para explicar que o desejo sexual pelo mesmo sexo é
apenas uma das diversas possibilidades eróticas do indivíduo. Malgrado seu uso, nesta
abordagem, seja adotado em momentos circunscritos que se referem aos engates sexuais de
pessoas do mesmo sexo, nos conduz a discrepâncias bem maiores, que vão além do
anacronismo, seu uso generalizado também seria um equívoco conceitual e epistemológico.6
Sobre o uso do termo “homossociabilidade”, ele é agenciado para designar a prática de
sociabilidade entre os homossexuais. 7 Da mesma forma, não se pretende ainda, neste trabalho,
travar um debate em torno das “origens” do desejo sexual pelo mesmo sexo, postulando se tratar
de pulsões inatas, como preconiza a corrente do “essencialismo”, ou produzidas nas relações
sociais, como defende o “construtivismo”. 8
Todavia, essa preocupação com os “nomes” não nos direciona para uma história das
ideias ou uma análise meramente discursiva, pelo contrário, é através da separação das forças
que atuam no conceito da homossexualidade que se podem identificar as formas pelas quais os
sujeitos, ditos homossexuais, constroem suas identidades individual e coletiva e concebem sua
atuação cultural e sociopolítica. Neste sentido, verdade, poder, produções, significantes,
significados, representações e práticas estão em jogo e movimentam essa história.
Neste processo de investigação se fez necessário ainda uma seleção criteriosa de uma
bibliografia que fornecesse um arcabouço teórico-metodológico sobre essa discussão. Com esse
mesmo objetivo, também foi feito um mapeamento da fortuna crítica – teses, dissertações e
artigos científicos – acerca da temática dos movimentos homossexuais no Brasil. Em seguida,
iniciei as visitas à sede do Grupo Gay da Bahia e ao Centro de Documentação de Luiz Mott,
onde foram pesquisados documentos – estatuto do GGB, boletins informativos, livros e folhetos
produzidos pelo grupo, jornais da época – que compunham a narrativa sobre esse passado.
Para dar conta de uma “Salvador dos Homossexuais” selecionei matérias de jornais
que evidenciavam a atuação dos amantes do mesmo sexo em Salvador na década de 1970. Com
isso, as publicações da imprensa alternativa no período ditatorial e as da grande mídia foram
5
Cf. DIAS, Maria Berenice. Homoafetividade e o Direito à Diferença. Disponível em:
https://www.google.com.br/url?sa=t&rct=j&q=&esrc=s&source=web&cd=2&cad=rja&uact=8&ved=0ahUKEwi
Ri8ikwp3TAhVBi5AKHUzlC4IQFggsMAE&url=https%3A%2F%2Ffanyv88.com%3A443%2Fhttp%2Fwww.mariaberenice.com.br%2Fmanager%
2Farq%2F(cod2_633)26__homoafetividade_e_o_direito_a_diferenca.pdf&usg=AFQjCNHXDntDMG0ab0gF2E
QFRIDcNnWvqA&sig2=UiVtIr0SoX27pRpfAoUTKg&bvm=bv.152180690,d.Y2I. Acesso em 14 de marcço de
2017.
6
Cf. COSTA, Jurandir Freire. A Inocência e o Vício: estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-
Dumará, 1992.
7
Cf. MARSIAJ, Juan P. Pereira. Gays Ricos e Bichas Pobres: Desenvolvimento, Desigualdade Socioeconômica e
Homossexualidade no Brasil. Cadernos AEL. Vol. 10. Nº 18/19. 2003.
8
Cf. NAPHY, William. Born To Be Gay: História da Homossexualidade. Lisboa: Edições 70, 2006.
25
outras importantes fontes nesta abordagem. Neste sentido, foram analisadas matérias das
edições do “Jornal Lampião da Esquina”, publicadas entre abril de 1978 e julho de 1981; as
discussões acerca da sexualidade presentes nas páginas do jornal anarquista baiano “O Inimigo
do Rei”; e as representação da homossexualidade presentes nos grandes jornais, como o “A
Tarde”, “Correio da Bahia”, “Tribuna da Bahia”, “Folha de São Paulo”, entre outros. No
entanto, foi crucial atentar também, como nos alerta Espig, para o que está por trás dessas
publicações, pois estas não estão isentas de interesses e manipulações.9 Tratam-se, com efeito,
de opiniões ou leituras da realidade que devem ser confrontadas com outras fontes históricas.
Nesta mesma linha, também procurei fazer uso de fontes orais que, por meio da análise
dos discursos, revelaram toda a gama de representações, práticas e tensões envolvendo esses
agentes históricos. A utilização dos depoimentos orais nesta proposta de pesquisa é orientada a
partir da perspectiva da “história de experiência”, de Verena Alberti, que, na perspectiva dos
seus formuladores, permite uma maior ampliação interpretativa, possibilitando também
compreender como estes sujeitos analisados experimentaram esse passado. 10 É por meio da
história oral também que podemos estabelecer a relação entre memória e identidade, extraindo
dessa simbiose elementos de uma práxis social e política desses sujeitos. A memória nesta
abordagem se configura como uma fonte e o seu uso está totalmente submetido aos interesses
historiográficos da pesquisa, através de um roteiro de entrevista previamente elaborado. Assim,
foram realizadas entrevistas com o atual presidente do GGB, Marcelo Cerqueira, e com os
membros-fundadores Luiz Mott, Davi Aranha, Ricardo Líper e Antônio Pacheco. Sobre a vida
e produção artística do estilista baiano Waldeilton di Paula, realizei entrevista com Carlos
Borges, seu amigo e ex-produtor na “TV Itapoan”. Toda essa variedade de dados e informações
implicou em um maior cuidado na estruturação e confecção do trabalho.
Diante desse arcabouço teórico-metodológico, e por meio da problemática levantada,
supôs-se que a agitação político-cultural homossexual na Bahia na década de 1970 e a formação
de grupos homossexuais organizados nos anos 1980, especialmente o Grupo Gay da Bahia,
representou o início de uma nova fase do movimento político em torno da homossexualidade
no Brasil, marcada por uma nova forma de intervenção política focada numa cidadania plena
9
Para Espig: “O jornal possui uma série de qualidades peculiares, extremamente úteis para a pesquisa histórica.
Uma delas é a periodicidade: os jornais constituem-se em verdadeiros “arquivos do cotidiano”, nos quais podemos
acompanhar a memória do dia a dia e estabelecer a cronologia dos fatos. Outra é a disposição espacial da
informação, que nos permite a inserção do acontecimento histórico de um contexto mais amplo”. Cf. ESPIG,
Márcia Janete. O uso da fonte jornalística no trabalho historiográfico: o caso do Contestado. Estudos Ibero-
Americanos, Porto Alegre, v. 24, n. 2, dez. 1998, p. 274.
10
Cf. ALBERTI, Verena. Histórias dentro da História. In: PINSKY, Carla B. (org.). Fontes Históricas. 2ª ed., São
Paulo: Contexto, 2008.
26
dos homossexuais, através de uma ação política diversificada e criativa, tanto no interior da
sociedade civil quanto junto ao Estado. Da mesma forma, procurou-se perceber como esses
militantes homossexuais baianos, por meio de sua atuação, provocou um trânsito de
significantes e significados, bem como de representações, que atribuíam à homossexualidade
as marcas do pecado, do crime e da doença. Com isso, o Grupo Gay da Bahia teria sido o
principal sustentáculo do movimento homossexual brasileiro neste período, servindo de modelo
para outros grupos homossexuais organizados que foram surgindo nesta época. Neste sentido,
a atuação política dos homossexuais baianos seria a que melhor sintetizaria as transformações
ocorridas na militância homossexual brasileira do início dos anos 1980 até os dias atuais.
Por essa perspectiva, a dissertação está dividida em quatro capítulos. No primeiro, por
meio de uma análise teórico-conceitual e de uma contextualização histórica, buscou-se analisar
a construção de uma identidade homossexual coletiva e os seus efeitos para constituição de um
movimento homossexual no Brasil, no final da década de 1970, em plena Ditadura Militar. Ao
se ocupar das ações sociais e políticas de um movimento que se organiza em torno de uma
identidade homossexual para reivindicar os direitos civis dos amantes do mesmo sexo, foi
necessário delinear um tempo e espaço em que se pudessem separar as linhas de força
responsáveis pela “fabricação” do conceito de homossexualidade, no século XIX.
No segundo capítulo, procuramos discutir como se deu em Salvador, no final dos anos
1970 e início dos anos 1980, um processo de agitação político cultural em torno da
homossexualidade e, consequentemente, como se formou na capital baiana um movimento
homossexual nos moldes de uma ação consciente e coletiva, sobretudo, a partir da fundação de
grupos organizados de homossexuais, como o Grupo Gay da Bahia e o Grupo Adé Dudu.
No terceiro e no quarto capítulo, a discussão se deu em torno da atuação do Grupo Gay
da Bahia na década de 1980. Dessa forma, na terceira sessão do trabalho, a discussão se voltou
para as ações do GGB por uma maior conscientização política dos homossexuais,
reconhecimento dos seus direitos civis e pela conquista da cidadania plena por parte desses
sujeitos na Bahia e no Brasil, na primeira metade do decênio de 1980, analisando desde a
fundação do grupo, em 1980, até a vitória na luta pela retirada do parágrafo 302.0 do Código
de Saúde do INAMPS, em 1985. Já no último capítulo, a análise se concentrou mais na atuação
do Grupo Gay da Bahia no combate à discriminação homossexual e nas relações do grupo junto
ao Estado no intervalo entre 1985 e 1988.
Ademais, trata-se de mais uma tentativa de inserir a problemática da
homossexualidade na historiografia numa prospectiva de luta contra as práticas e discursos
heteronormativos dominantes na sociedade.
27
CAPÍTULO I
A CONSTITUIÇÃO DE UM MOVIMENTO HOMOSSEXUAL NO
BRASIL: “INTERROGANDO A IDENTIDADE”11
11
Expressão utilizada por Homi K. Bhabha como título de um dos capítulos da sua obra “O Local da Cultura”. Cf.
BHABHA, Homi K., O Local da Cultura. Tradução de Myrian Ávila, Eliane Lourenço de Lima Reis, Gláucia
Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998.
12
Cf. LANDES, Ruth. Matriarcado cultual e Homossexualidade masculina. In: A Cidade das Mulheres. 2ª ed. Rio
de Janeiro: Editora UFRJ, 2002, 320 e 330.
13
Cf. LANDES, Ruth. Op. Cit., p. 319.
28
contrapôs-se a ela outras “representações”14 da homossexualidade. É assim que surge, nos anos
de 1960, o “gay”15 e o “entendido”,16 como veremos detalhadamente mais à frente. No
momento, importa destacar que essas novas imagens e discursos produzidos acerca da
homossexualidade masculina ressignificaram e produziram significados positivos sobre o ser
homossexual e, consequentemente, contribuíram, juntamente com outros fatores, para uma
maior identificação e uso do conceito de homossexualidade por parte daqueles que desfrutavam
dos prazeres com o mesmo sexo. Este processo foi crucial para a constituição de um movimento
homossexual brasileiro no final da década de 1970.
O presente capítulo analisa, justamente, a formação de uma identidade homossexual
coletiva e de um movimento homossexual no Brasil. Neste objetivo, antes de tomar a
homossexualidade como um conceito transcendental, torna-se forçoso escrutiná-lo, ir até onde
o conceito não existia, separar as linhas de força que estão condensadas em seu invólucro, para
somente assim poder extrair sua historicidade. Aqui, este exercício é guiado pelas ideias de
Michel Foucault. Da mesma forma, torna-se necessário também interrogar acerca dos usos de
uma identidade homossexual por parte dos amantes do mesmo sexo, suas limitações e suas
potências.
Com isso, por meio de uma discussão teórico-conceitual e de uma contextualização
histórica, intrinsecamente conectadas, este capítulo discorre desde a invenção do conceito de
homossexualidade na modernidade, perpassando pelas primeiras mobilizações coletivas
homossexuais na Europa ocidental, na segunda metade do século XIX, até a emergência de
identidades homossexuais coletivas e de um movimento homossexual no Brasil, nos anos 1970,
e as implicações do seu aparecimento no contexto sócio-político da Ditadura Militar brasileira.
Para tanto, foram utilizadas fontes teóricas e historiográficas que fornecem e colmatam
14
De acordo com Chartier: “Nas definições antigas (por exemplo, a do Dicionário universal de Furetière em sua
edição de 1727), as acepções correspondentes à palavra ‘representação’ atestam duas famílias de sentido
aparentemente contraditórias: por um lado, a representação faz ver uma ausência, o que supõe uma distinção clara
entre o que representa e o que é representado; de outro, é a apresentação de uma presença, a apresentação pública
de uma coisa ou de uma pessoa”. Cf. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, 11
(5), 1991, p. 184.
15
Dos anos 1950 em diante, o termo “gay” passaria a ser crescentemente usado para se referir a qualquer homem
que tivesse experiências sexuais com outros homens, independentemente da afeminação ou do papel
desempenhado no ato sexual, levando à gradual eliminação da categoria “trade” [“homem de verdade”] e ao
estabelecimento de uma oposição entre “gays” e “straights”, homo e heterossexuais. Cf. SIMÕES, Júlio Assis e
FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação
Perseu Abramo, 2009, p. 44.
16
“O ‘entendido’ é definido como um personagem que tem certa liberdade no que diz respeito ao seu papel de
gênero e à sua ‘atividade’ ou ‘passividade’. (...) O mundo masculino deixa de se dividir entre homens másculos e
homens efeminados como no primeiro sistema [homem/bicha], e se divide entre ‘heterossexuais’ e ‘homossexuais’,
entre ‘homens’ e ‘entendidos’. Cf. FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de
Janeiro: Zahar Editores, 1982, p. 93 e 94.
29
informações acerca desse passado, bem como fez-se uso de fontes documentais, mais
especificamente, de matérias publicadas no jornal “Lampião da Esquina”.
17
Segundo Foucault, é necessário: “marcar a singularidade dos acontecimentos, longe de toda finalidade
monótona; espreita-los lá onde menos se os esperava e naquilo que é tido como não possuindo história − os
sentimentos, o amor, a consciência, os instintos; apreender seu retorno não para traçar a curva lenta de uma
evolução, mas para reencontrar as diferentes cenas onde eles desempenharam papéis distintos; e até definir o ponto
de sua lacuna, o momento em que eles não aconteceram”. Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder.
Organização e Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 15.
18
Cf. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: Curso no Collége de France (1975-1976). Tradução Maria
Ermantina Galvão. 1ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, pp. 215-218.
30
O Importante, creio, é que a verdade não existe fora do poder ou sem poder (...). Por
“verdade”, entender um conjunto de procedimentos regulados para a produção, a lei,
a repartição, a circulação e o funcionamento dos enunciados. (...) A “verdade” está
circularmente ligada a sistemas de poder, que a produzem e apoiam, e efeitos de poder
que ela induz e que a reproduzem. “Regime” da verdade.21
Assim, conforme Foucault, a verdade tão perseguida pela racionalidade moderna não
é um instrumento de aniquilação do poder, pelo contrário, ela é o próprio exercício do poder.
Para ele, trata-se de um poder que produz, “poder disciplinar”, refutando desse modo a
exagerada e exclusiva ênfase que é dada a sua função repressora. Esses poderes não estão
centrados exclusivamente nas mãos do Estado moderno, porque “ninguém é, propriamente
falando, seu titular; e, no entanto, ele sempre se exerce em determinada direção, com uns de um
19
De acordo com o geógrafo David Harvey: “A ideia era usar o acúmulo de conhecimento gerado por muitas
pessoas trabalhando livre e criativamente em busca da emancipação humana e do enriquecimento da vida diária.
O domínio científico da natureza prometia liberdade da escassez, da necessidade e da arbitrariedade das
calamidades naturais. O desenvolvimento das formas racionais de organização social e de modos racionais de
pensamento prometia a libertação das irracionalidades do mito, da religião, da superstição, liberação do uso
arbitrário do poder, bem como do lado sombrio da nossa própria natureza humana. Somente por meio de tal projeto
poderiam as qualidades universais, eternas e imutáveis de toda a humanidade ser reveladas. Cf. HARVEY, David.
A Condição pós-moderna: uma pesquisa sobre as origens da mudança cultural. São Paulo: Edições Loyola, 1992,
p. 23 e 24.
20
Cf. AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua I. Tradução de Henrique Burigo. 1ª Ed.
Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002, p. 18.
21
Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, p. 12 e 14.
31
lado e outros do outro; não se sabe quem o detém; mas se sabe quem não o possui”. 22 Como
também tais poderes não são pertencentes a uma classe, ainda que, de acordo com Foucault,
seja exercido para manter a exploração capitalista, ou seja, para o interesse burguês, eles não
são instrumentos nas mãos da burguesia, já que ela também sofre a ação deles. Essa “concepção
não-jurídica do poder” identifica-o em todos os lugares, como algo dissolvido capilarmente no
interior das instituições sociais, realizando movimentos centrífugos e centrípetos. 23
Segundo o filósofo francês, os mecanismos de poder não são uma invenção dos séculos
XVII e XVIII. No entanto, é nessa época que a burguesia desenvolve toda uma nova tecnologia
dos poderes que tem como alvo não mais a terra e seus produtos, mas o indivíduo, não apenas
sua mente, mas, sobretudo, seu corpo e o uso que se faz dele. Trata-se de uma tentativa de
extrair seu máximo desempenho produtivo. Aqui se fala em produção no sentido mais amplo,
uma vez que o corpo que trabalha também é o corpo que fala, produz saber. É sobre o corpo
que se instaura um “‘regime’ de verdade” e um exercício de poder. É a partir desse período que
se torna necessário vigiá-lo e discipliná-lo, numa tentativa de adequá-lo aos “riscos” da
modernidade.24
Esse corpo que carece de proteção, continua Foucault, é o corpo social – a população.
Segundo ele, no cerne dessas preocupações político-econômicas populacionais, como analisar
a taxa de natalidade, a idade do casamento, os nascimentos legítimos e ilegítimos, a
precocidade, as frequências das relações sexuais e as incidências de práticas contraceptivas,
está o sexo, que passa a ocupar um locus privilegiado no mundo moderno. É nesta perspectiva
que Foucault percebe o aparecimento de uma nova técnica de poder no século XIX – a
“biopolítica”. Diferentemente da teoria da soberania clássica que legitimava o direito do
soberano “de fazer morrer ou deixar viver”, esta nova tecnologia introduz o “direito de fazer
viver e deixar morrer”. Trata-se de uma maquinaria de poder que se volta para a multiplicidade
dos homens, tornando-se um instrumento nas mãos do Estado de regulamentação da vida. Mas,
antes que pareça uma substituição do poder disciplinar, complementa-o.25 Dessa forma, fica
fácil entender por que o sexo se tornou um alvo estratégico de controle disciplinar e dos arranjos
22
Cf. FOUCAULT, Michel, o Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, p. 75.
23
Para Foucault: “a questão do poder fica empobrecida quando é colocada unicamente em termos de legislação,
de Constituição, ou somente em termos de Estado ou de aparelho de Estado. O poder é mais complicado, muito
mais denso e difuso que um conjunto de leis ou um aparelho de estado.” Cf. FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p.
221.
24
Cf. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: Curso no Collége de France (1975-1976). Tradução Maria
Ermantina Galvão. 1ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 42.
25
Para mais informações sobre o conceito de biopolítica em Michel Foucault, ver FOUCAULT, Michel. Em Defesa
da Sociedade: Curso no Collége de France (1975-1976). Tradução Maria Ermantina Galvão. 1ªed. São Paulo:
Martins Fontes, 1999, p. 286-312.
32
do biopoder, pois é o elo entre corpo e população. Assim, “entre o Estado e o indivíduo o sexo
tornou-se objeto de disputa e disputa pública; toda uma teia de discursos, de saberes, de análise
e de injunções o investiam”. 26
Com isso, Foucault (1988) recusa a “tese do sexo reprimido” a partir do século XVII.
Para ele, nunca se falou ou produziu tanto sobre o sexo como na modernidade. Sobre o sexo, se
criou toda uma rede colaboracionista para inquiri-lo, incitá-lo e sujeitá-lo ao novo projeto de
sociedade. Essa função que na Idade Média cabia somente ao cristianismo ou às instituições
cristãs, seculares ou eclesiásticas, na Era Moderna passou a ser exercida de uma outra forma e
de maneira mais clara e amplamente por uma distinta articulação entre família, medicina,
psiquiatria, psicanálise, escola, instituições religiosas, justiça, entre outros. Essa solidariedade
entre as instituições produz discursos científicos sobre o sexo, pois inventa-se um saber – a
sexualidade. Sobre isto, assinala Foucault,
26
Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 17° Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 33.
27
Cf. FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 43 e 44.
28
Partindo da formulação da noção de dispositivo cunhada por Michel Foucault ao longo das suas obras, Giorgio
Agamben compreende este conceito como sendo “qualquer coisa que tenha de algum modo a capacidade de
capturar, orientar, determinar, interceptar, modelar, controlar e assegurar gestos, as condutas, as opiniões e os
discursos dos seres viventes” Cf. AGAMBEN, Giorgio. O que é o Contemporâneo? E outros ensaios. Tradução
de Vinícius Nicastro Honesko. Chapecó-Santa Catarina: Argos, 2009, p. 40.
29
Foucault situa o nascimento de uma nova psiquiatria entre os anos de 1850 e 1870. Para ele: “O nascimento de
uma psiquiatria que é outra coisa que não a velha medicina dos alienistas (a simbolizada por Pinel e Esquirol)
teremos de ver que essa nova psiquiatria passa, apesar de tudo, por cima de algo que até então havia constituído o
essencial da justificação da medicina mental. Ela simplesmente passa por cima da doença. A psiquiatria deixa
então de ser uma técnica e um saber da doença ou é só secundariamente que ela pode se tornar – e como que no
limite – técnica e saber da doença. A psiquiatria, nos anos 1850, abandonou ao mesmo tempo o delírio, a alienação
mental, a referência a verdade e, enfim, a doença. O que ela assume agora é o comportamento, são seus desvios,
suas anomalias; ela toma sua referência num desenvolvimento normativo.” Cf. FOUCAULT, Michel. Os
Anormais: Curso no Collège de France (1974-1975). Tradução de Eduardo Brandão. São Paulo: Martins Fontes,
2001, p. 392 e 393.
33
proposições filosóficas e morais, com um objetivo de fazer com que o indivíduo confesse sua
sexualidade. “Por confissão entendo todos estes procedimentos pelos quais se incita o sujeito a
produzir sobre sua sexualidade um discurso de verdade que é capaz de ter efeitos sobre o próprio
sujeito”.30
Com isso, nos séculos XVIII e XIX, a atenção que antes era devotada para o sexo na
relação matrimonial, volta-se para as “sexualidades periféricas”: “a sexualidade das crianças, a
dos loucos, dos criminosos, os devaneios, as obsessões e o prazer dos que não amam o outro
sexo”.31 Fica claro, portanto, que é nesse momento que surge o homossexual na história. Não
se trata simplesmente das práticas ou discursos daqueles e sobre aqueles que fazem sexo com
o mesmo. A coisa não é tão simples e universal. Trata-se de uma criação, uma invenção ou
construção desse saber-poder. Ele, assim como qualquer outro “anormal”, carregaria a marca
“da ‘loucura moral’, da ‘neurose genital’, da ‘aberração do sentido genésico’, da
‘degenerescência’ ou do ‘desequilíbrio psíquico’.32 Mais do que um comportamento externo e
eventual, o homossexual é um novo sujeito naturalizado com dimensões ou configurações
internas e externas bem marcadas que incluem e ultrapassam o seu ser. Demonstrando uma
espécie de subjetivação do sujeito, de acordo com Foucault,
30
Cf. FOUCAULT, Michel, o Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, p. 264.
31
Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa
Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque. 17° Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 46.
32
Cf. FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 47.
33
Cf. FOUCAULT, Michel. Op. Cit., p. 50.
34
O sexo entre os gregos antigos, por exemplo, não era uma forma de classificar o indivíduo, não havia a classe
dos sodomitas, “o homem que preferia os paidika [rapazes] não se experimentava como ‘outro’ face àqueles que
buscavam as mulheres”. Cf. FOUCAULT, Michel. História da Sexualidade 2: O uso dos prazeres. Tradução de
Maria Thereza da Costa Albuquerque. 12° Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1984, p. 170. Neste sentido,
compreende-se o porquê não se pode falar em homossexualidade na Grécia Antiga ou em qualquer outro espaço e
tempo antes dos séculos XVIII e XIX. As relações de poder e produção de verdade que se estabeleciam na
34
antiguidade não criavam um interdito para o amor entre aqueles do mesmo sexo, pelo contrário, era através das
instituições – lugar reservado para o exercício de poder e produção de saber – que essas práticas encontravam sua
principal base de sustentação social. Entretanto, cabe ressaltar, que mesmo não havendo linhas de forças na Grécia
Antiga que separassem os amantes do mesmo sexo dos que amavam o sexo diferente, o amor não era tão livre,
como poderia aparentar, entre os gregos. Em consonância com Foucault (1984), o ato sexual “privilegiado” pela
moral grega entre dois homens era aquele que envolvia um parceiro mais velho, com sua formação completa e
supostamente na posição de ativo no ato sexual, com um mais jovem, ainda em formação e sem status definido na
sociedade. Um outro tipo de relação sexual que envolvesse dois homens maduros poderia levantar suspeita acerca
das posições sexuais, supostamente presumiriam que um deles seria passivo. Desse modo, a antiguidade grega
também possuía seus desviantes, visto que “onde há poder, há resistência” Cf. FOUCAULT, Michel. História da
Sexualidade I: A vontade de saber. Tradução de Maria Thereza da Costa Albuquerque e J. A. Guilhon Albuquerque.
17° Ed. Rio de Janeiro: Edições Graal, 1988, p. 105.
35
De acordo com Júlio Assis Simões e Regina Facchini, Karl-Maria Benkert depois mudou o seu nome para Károli
Maria Kertbeny. Cf. SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento
homossexual ao LGBT. São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 38.
36
Conforme Katz, numa tentativa de defender o amor entre os iguais, em 1862, na Alemanha, o escritor Karl
Heinrich Ulrichs cunhou os nomes Urning ou Uranie, em português “uranista”, para designar os homens que
amavam outros homens e Dioning para designar os homens que amavam mulheres. Posteriormente, criou também
o termo Urninde para se referir às mulheres que amavam mulheres. Essas terminologias derivaram do nome da
deusa Urânia que, segundo a mitologia romana, é a divindade representante do amor entre o mesmo sexo. Logo
em seguida, essas expressões foram suplantadas pelo termo homossexual. Para mais informações, ver KATZ,
Jonathan Ned. A Invenção da Heterossexualidade. Tradução Clara Fernandes. Rio de Janeiro: Ediouro, 1996, p.
62.
37
A reprodução do termo como elaborado no século XIX, fazendo uso do sufixo “ismo” como indicativo de
doença, é mais uma evidência do comprometimento do termo “homossexual” com o contexto médico-legal,
psiquiátrico, sexológico e higienista. Para mais informações, ver COSTA, Jurandir Freire. A Inocência e o Vício:
estudos sobre o homoerotismo. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1992, passim.
35
desejo sexual torna-se sua bandeira, inscreve-se em sua testa uma marca. Tudo que ele é não
escapa ao seu sexo. “Pois, o essencial é que, a partir do cristianismo, o Ocidente não parou de
dizer “Para saber quem és, conheças teu sexo”.38
Essa gama de “espécies sexualis” é essencialmente rotulada e direcionada a ocupar
um lugar na sociedade. A modernidade, além de produzir limites epistemológicos, garantiu para
os indivíduos um novo sentimento de si, um locus de pertencimento. Esse sujeito que emerge
nos séculos XVIII e XIX passa a experimentar o tempo e o espaço a partir do lugar que ocupa
nessa sociedade. Dessa forma, essa sexualidade permeada por “verdades” é responsável
também pela produção de subjetividades e de novas lógicas intersubjetivas. O corolário desses
intercâmbios é a produção de identidades e posições políticas. A identidade é o que cria cortes
no indivíduo em seu interior e em relação ao outro. Sobre isto, Homi K. Bhabha, ao analisar a
constituição de sujeitos culturais híbridos no mundo pós-colonial, afirma:
38
Cf. FOUCAULT, Michel, o Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, p. 229.
39
Cf. BHABHA, Homi K., O Local da Cultura. Tradução de Myrian Ávila, Eliane Lourenço de Lima Reis, Gláucia
Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 19.
36
Pois, esta identidade, bastante fraca contudo, que nós tentamos assegurar e reunir sob
uma máscara, é apenas uma paródia: o plural a habita, almas inumeráveis nela
disputam: os sistemas se entrecruzam e se dominam uns aos outros. Quando
estudamos a história nos sentimos ‘felizes, ao contrário dos metafísicos, de abrigar
em si não uma alma imortal mas muitas almas mortais’.43
40
Cf. HALL, Stuart. Identidade Cultural na Pós-modernidade. 11° Ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2006.
41
Cf. CASTELLS, Emanuel. A Era da Informação: Economia, Sociedade e Cultura. Vol. 2: O. Poder da
Identidade. Paz e Terra, 1998, p. 22.
42
HALL, Stuart, Op. Cit., p. 12.
43
Cf. FOUCAULT, Michel, o Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, p 34.
44
Cf. GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografia do desejo. 7ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2005, p. 85.
45
Segundo Chartier: “As representações do mundo social, assim construídas, embora aspirem a universalidade de
um diagnóstico fundado na razão, são sempre determinadas pelos interesses de grupo que as forjam. Daí, para cada
caso, o necessário relacionamento dos discursos proferidos com a posição de quem os utiliza”. Cf. CHARTIER,
37
direções, mas sempre visando gerar posições dentro da hierarquia da estruturação social.
Segundo ele:
Uma dupla via abre-se assim: uma que pensa a construção das identidades sociais
como resultando sempre de uma relação de força entre as representações impostas
pelos que detêm o poder de classificar e de nomear e a definição, de aceitação ou de
resistência, que cada comunidade produz de si mesma; outra que considera o recorte
social objetivado como a tradução do crédito conferido à representação que cada
grupo dá de si mesmo, logo a sua capacidade de fazer reconhecer sua existência a
partir de uma demonstração de unidade.46
Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro:
Bertrand Brasil, 1990, p. 17.
46
Cf. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, 11 (5), 1991, p. 183.
47
Termo utilizado por Bhabha. Cf. BHABHA, Homi K., O Local da Cultura. Tradução de Myrian Ávila, Eliane
Lourenço de Lima Reis, Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, p. 29.
48
De acordo com o sociólogo alemão Klaus Eder: “As identidades coletivas proporcionam um princípio de
integração social. Outro princípio é constituído pelos interesses. Há uma complementaridade teórica espe
cífica a ser identificada na relação entre identidades e interesses. As identidades definem fronteiras em relação ao
mundo exterior; excluem os outros. (...) As identidades definem as fronteiras de um espaço em que se incluirão os
interesses”. Cf. EDER, Klaus. Identidade Coletiva e Mobilização de Identidades. Revista Brasileira de Ciências
Sociais. Vol. 18, nº. 53, outubro/2003, p. 7.
38
É nesta perspectiva que para Foucault, numa entrevista publicada no jornal Gai Pied,
intitulada “Da Amizade como Modo de Vida”, “a homossexualidade não é uma forma de
desejo, mas algo de desejável”50, um vir-a-ser que requer uma ascética própria, um “cuidado de
si”. 51
A partir daí, podemos compreender que a própria metanóia homossexual já exige um
movimento real, um deslocamento. Utilizando a navegação como um tropo, Foucault 52
apresenta quatro elementos da arte de navegar: a ideia de trajeto, a necessidade de traçar uma
meta, a busca por segurança e a produção de uma técnica ou saber. Desse modo, o homossexual
se apresenta na modernidade, ainda que capturado pela linguagem e pelo discurso científico,
como um enviesado, em constante trânsito. De acordo com o filósofo Gilles Deleuze, este
deslocamento ocorre porque embora a racionalidade moderna esteja fundada na determinação
49
Cf. FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: Curso dado no Collège de France (1981-1982). Tradução
de Márcio Alves de Fonseca e Salma Annus Muchail. 3ª ed. São Paulo: Editora Martins Fontes, 2010, p. 374.
50
FOUCAULT, Michel, Da Amizade como modo de vida. Entrevista de Michel Foucault a R. de Ceccaty, J. Danet
e J. le Bitoux, publicada no jornal Gai Pied, nº 25, abril de 1981, p. 38.
51
Foucault depreende o conceito de “cuidado de si” (epimeléia heatoû) das práticas culturais da sociedade
helenística e romana, compreendendo-o como: “primeiramente, o tema de uma atitude geral, um certo modo de
encarar as coisas, de estar no mundo, de praticar ações, de ter relações com o outro. (...) Em segundo lugar, a
epimeléia hetoû é também uma certa forma de atenção, (...) converter o olhar, do exterior, dos outros, do mundo,
etc., para “si mesmo”. (...) Em terceiro lugar, a noção de epimeléia (...) também designa sempre algumas ações,
ações que são exercidas de si para consigo, ações pela quais nos assumimos, nos modificamos, nos purificamos,
nos transformamos e nos transfiguramos. Cf. FOUCAULT, Michel. A Hermenêutica do Sujeito: Curso dado no
Collège de France (1981-1982). Tradução de Márcio Alves de Fonseca e Salma Annus Muchail. 3ª ed. São Paulo:
Editora WMF Martins Fontes, 2010, p. 11 e 12.
52
FOUCAULT, Michel, Op. Cit., p. 222.
39
Sendo assim, a astúcia que já era uma característica marcante dos sodomitas na era
não-moderna torna-se a marca registrada dos homossexuais na modernidade. Seus modos de
proceder na arena pública foram adicionados à sua identidade. Numa análise mais próxima, o
historiador estadunidense James N. Green examina a construção de uma identidade
homossexual masculina no Brasil no final do século XIX e início do século XX. Segundo
Green, os homossexuais já eram presença marcante nos parques do Rio de Janeiro, São Paulo
e outras grandes cidades brasileiras nesse período. De acordo com o autor, o uso da palavra
“homossexualismo” no Brasil ocorreu pela primeira vez em 1896, citada no romance “O Bom-
Crioulo” de Adolfo Caminha. Para ele, o empréstimo do termo cunhado por Benkert por uma
literatura homoerótica nacional revela o interesse dos escritores brasileiros com o que era
produzido sobre a homossexualidade na Europa. Dessa forma, médicos, advogados, jornalistas,
literatos, chargistas, entre outros, transmitiram para os leitores nacionais uma certa visão acerca
da homossexualidade. Isso, de acordo com Green, sem perder de vista idiossincrasias
“tupiniquins”, como a grande confusão entre gênero e orientação sexual e a ênfase exacerbada
no binarismo ativo/passivo, tendo como modelo privilegiado a díade “bicha/bofe”. Com isso,
53
Como descreve Gilles Deleuze: “de acordo com um princípio de razão suficiente, há sempre um conceito por
cada coisa particular. De acordo com a recíproca, princípio dos indiscerníveis, há uma coisa e apenas uma por
conceito.” Cf. DELEUZE, Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. 1ª ed.
Lisboa: Editora Relógio D´Água, 2000, p. 21.
54
Cf. AGAMBEN, Giorgio, O que é o Contemporâneo? E outros ensaios. Tradução de Vinícius Nicastro Honesko.
Chapecó-Santa Catarina: Argos, 200, p. 45.
55
Cf. CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 16º
Ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009, p. 39.
40
essa “homossexualidade à brasileira” era negociada e muitas vezes restrita àqueles que
assumiam uma performance efeminada na sociedade e passiva sexualmente.
Esta caracterização do homossexual brasileiro pode ser observada na obra
“Homossexualismo (a libertinagem no Rio de Janeiro): estudo sobre as perversões e inversões
do instinto genital”, do médico brasileiro José Ricardo Pires de Almeida, publicada em 1906.
Embora Pires de Almeida não distinga o “pederasta ativo” do “pederasta passivo”, ambos
compreendidos por ele como “degenerados”, sobre o primeiro não pesa a perda da virilidade,
atributo inerente ao homem, enquanto sobre o segundo recai o diagnóstico da efeminação. Para
os produtores de linguagem, esses últimos que eram os “verdadeiros homossexuais”.56 Esta
concepção de Pires de Almeida fica mais clara em sua descrição de “Traviata”, indivíduo
identificado por ele como sendo homossexual.
Libidinoso e efeminado até o extremo, a sua voz era dulçurosa, sibilante, sua frase
curta e ameigada, seus requebros petulantes, constituindo-se no todo o pederasta mais
convidativo e cínico. (...) O Traviata tinha o andar típico dos uranistas, tal como o
encontramos descrito nos especialistas: requebra-se todo nas cadeiras, caminhava
derreado, com as nádegas estufadas para trás; de vez em quando dava uns saltinhos,
que ele fazia preceder de alguns passos mais curtos, em que os joelhos ficavam
exageradamente curvados, semelhando assim perfeitamente o caminhar da mulher.57
Assim como o pai de santo João, exposto por Ruth Landes, Traviata é apresentado por
Pires de Almeida enquanto um “pederasta” preso degeneradamente ao seu sexo. Sua
performance é o que ele é, num vir-a-ser considerado completamente ilegítimo e disposto em
escalas entre as configurações masculinas e femininas. Sua presença é “inscrita na forma do
desejo”.58
O uso do termo “uranista” por parte de Pires de Almeida revela ainda o seu contato
com as ideias do reformador Ulrichs que, em sua luta a criminalização do amor pelo mesmo
56
“O indivíduo que se entrega à pederastia deve, em geral, ser considerado um degenerado e digo – um degenerado
– porque o instinto sexual não o impele, como nos casos normais, para o sexo oposto, mas para o que ele mesmo
pertence. Nestas circunstâncias, ele só encontra excitações, não na contemplação dos órgãos pudendos da mulher,
mas na dos homens. E isto quer se trate de um pederasta ativo ou passivo. Há, porém, um modo de ser diverso,
que distingue um do outro; embora suas excitações sejam produzidas pelas mesmas cenas, suas aptidões sexuais
são inteiramente diversas. No pederasta ativo, embora ele seja indiferente às exibições femininas que por ele
passam como os quadros mais insignificantes da natureza, o alvo é chegar a qualquer ato sexual por contato com
outro homem. Não perdem, pois, as características de seu sexo, apenas desviam-nas para aplicações contrárias às
leis da natureza. No pederasta passivo, porém, embora essas mesmas causas despertem em maior escala as
apetências venéreas, ele como que perdeu as qualidades de seu sexo; seus gestos, suas tendências, seus ademanes,
são todos os do sexo feminino”. Cf. ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Homossexualismo (a libertinagem no Rio
de Janeiro): estudo sobre as perversões e inversões do instinto genital. Rio de Janeiro: Laemmert, 1906, p. 164-
165.
57
Cf. ALMEIDA, José Ricardo Pires de. Op. Cit., p. 361.
58
Cf. FOUCAULT, Michel. Os Anormais: Curso no Collège de France (1974-1975). Tradução de Eduardo
Brandão. São Paulo: Martins Fontes, 2001, p. 25.
41
sexo na Alemanha, ironicamente, atribuiu uma “natureza” feminina aos amantes do mesmo
sexo, classificando-os como uma espécie de “terceiro sexo”59. Nesta perspectiva, ser
homossexual no Brasil da transição dos séculos XIX e XX era sinônimo de efeminado, de
“prostituto” ou “puto”, e o lugar reservado para eles na sociedade eram os destinados ao
feminino. Tendo em vista que esses sujeitos na escala da hierarquia social não chegavam a se
constituir como uma “mulher de verdade”, esse essencialismo uranista os condenava a uma
posição social ainda mais vil e subalterna na sociedade brasileira.
Para Green, estas determinações produzidas acerca da homossexualidade abria uma
fenda, uma verdadeira lacuna entre representações e práticas, pois muitos homens que
desfrutavam das experiências sexuais com outros homens não se viam representados por essas
produções, sendo assim, não eram e nem se consideravam homossexuais. Estas disputas de
representações em torno do conceito de homossexualidade travestiam uma repetição tomada de
forma nua pelos intelectuais brasileiros e revelavam os “simulacros”,60 as disputas e as
desindexações. A fabricação do conceito de homossexualidade transformou o que era uma
“questão” individual e psicológica, privada, em um problema social e político, por conseguinte,
público. A construção de uma identidade homossexual masculina no final do período
oitocentista e início do século XX, no Brasil, já evidenciava esse componente político presente
na performance desses sujeitos. Cabe, então, analisar de que forma se dava o consumo dessa
imagem pelos “homossexuais de verdade”, ou seja, por aqueles que se encaixavam nessa
classificação.
Alguns passaram a usar roupas e estilos que serviam de indicativos de suas predileções
sexuais e projetavam imagens efeminadas a fim de veicular sua disponibilidade para
interações sexuais e sociais com outros homens. Embora a persona e os traços físicos
generizados de alguns desses homens derivassem das noções comumente aceitas
sobre o comportamento e desempenho femininos, sua auto-representação não
significava, necessariamente, que adotavam comportamentos sexuais passivos em
geral associados aos homens efeminados. Outros retinham uma imagem masculina,
mas isso não quer dizer que se conformavam exclusivamente ao papel socialmente
atribuído de penetrador nas relações sexuais. Entre alguns, os papéis sexuais eram
bastante fluídos, e os usos que faziam do corpo para fins prazerosos não podem ser
rigidamente classificados. (...) As roupas, costumes e códigos desses homens indicam
59
Para mais informações, ver POLLAK, Michael, La Homosexualidad Masculina o: ¿La Felicidad en el Ghetto?,
In: Sexualidades Occidentales, Philippe, Ariès, A. Béjin, M. Foucault y otros. Editorial Paidós, Buenos Aires,
Argentina, 1987, p. 71-102.
60
Segundo Deleuze: “O sistema do simulacro afirma a divergência e o descentramento; a única unidade, a única
convergência de todas as séries é um caos informal que compreende todas elas. Nenhuma série goza de um
privilégio sobre a outra, nenhuma possui a identidade de um modelo, nenhuma possui a semelhança de uma cópia.
Nenhuma se opõe a uma outra nem lhe é análoga. Cada uma é constituída de diferenças e se comunica com as
outras por meio de diferenças de diferenças. As anarquias coroadas substituem as hierarquias da representação; as
distribuições nômades substituem as distribuições sedentárias da representação.” Cf. DELEUZE, Gilles. Diferença
e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. Lisboa: Editora Relógio D´Água, 1ª ed. 2000, p. 261.
42
que haviam construído uma identidade social comum ligada ao seu comportamento
sexual. Alvo de desprezo pelos profissionais de saúde e pela sociedade de forma geral,
ainda assim demonstravam uma resistência surpreendente ao manter múltiplas formas
de se socializarem, enquanto desafiavam o comportamento normativo da sociedade
brasileira.61
61
GREEN, James N. Além do Carnaval: A Homossexualidade Masculina no Brasil do século XX. São Paulo:
Editora Unesp, 2000, p. 106.
62
Termo utilizado por Michel de Certeau para designar as combinações feitas pelos usuários seguindo seus
interesses próprios e suas próprias regras. Trata-se de uma alternativa criativa para se fazer uso de uma cultura
imposta pelas “elites” produtoras de linguagem. Cf. CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de
Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 16º Ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009, p. 40.
63
Cf. CERTEAU, Michel de, Op, Cit., p. 41.
64
Cf. PRADO, Marco Aurélio Máximo e MACHADO, Frederico Viana. Preconceito contra Homossexualidade;
A Hierarquia da Invisibilidade. São Paulo: Cortez, 2008, p. 23.
65
Cf. GUATTARI, Félix & ROLNIK, Suely. Micropolítica: Cartografia do desejo. 7ª Ed. Petrópolis, RJ: Vozes,
2005, op. cit., p. 85.
43
adversários de alguém”.66
Essa constituição de uma identidade coletiva pode ocorrer de forma silenciosa ou
acordada, mas sempre orientada por uma narrativa integradora. Para Marcel Mauss, citado por
Chartier, essas identificações coletivas e suas representações “só tem existência na medida em
que comandam atos”.67 Nota-se, portanto, que sua expressão cultural está totalmente atrelada a
sua atuação política na sociedade. Ainda sobre isto, assinala Certeau:
A relação dos procedimentos com os campos de força onde intervêm deve, portanto,
introduzir uma análise polemológica da cultura. Como o direito (que é um modelo de
cultura), a cultura articula conflitos e volta e meia legitima, desloca ou controla a razão
do mais forte. Ela se desenvolve no elemento de tensões, e muitas vezes de violências,
a quem fornece equilíbrios simbólicos, contratos de compatibilidade e compromissos
mais ou menos temporários. As táticas do consumo, engenhosidade do fraco para tirar
partido do forte, vão desembocar então em uma politização das práticas cotidianas. 68
66
Cf. FOUCAULT, Michel. Em Defesa da Sociedade: Curso no Collège de France (1975-1976). Tradução Maria
Ermantina Galvão. 1ªed. São Paulo: Martins Fontes, 1999, p. 37.
67
Cf. CHARTIER, Roger. O mundo como representação. Estudos Avançados, 11 (5), 1991, p. 183.
68
Cf. CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 16º
Ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009, p. 44.
69
Nas palavras de Certeau: “Chamo de ‘estratégia’ o cálculo das relações de forças que se torna possível a partir
do momento em que um sujeito de querer e poder é isolável de um ‘ambiente’. Ela postula um lugar capaz de ser
circunscrito como um próprio e portanto capaz de servir de base a uma gestão de sua relação com uma exterioridade
distinta. (...) Denomino, ao contrário, ‘tática’ um cálculo que não pode contar com um próprio, nem portanto com
uma fronteira que distingue o outro como totalidade visível. Ela não dispõe de base onde capitalizar seus proveitos,
preparar suas expansões e assegurar uma independência em face das circunstâncias. (...) tem constantemente que
jogar com os acontecimentos para transformar em “ocasiões”. Cf. CERTEAU, Michel, Op. Cit., p. 45.
44
mais uma tentativa de historicizá-las, ou seja, estranhar o que foi normatizado pela
modernidade, além de revelar a frágil aparência dessas representações. Desse modo, o
movimento que emergiu lá no século XVIII teve como seu principal inimigo a moral sexual
vigente naquele período.70
A primeira fase de mobilizações coletivas em torno do amor pelo mesmo sexo foi
marcada por acontecimentos isolados e pelo surgimento de diversas organizações e
personalidades europeias na luta contra as instituições e o Estado que criminalizava e punia os
amantes do mesmo sexo. Estes grupos de “sodomitas” obtiveram alguns avanços na démarche
pela legalização da sua sexualidade. A França foi o primeiro país a descriminalizar a prática de
sodomia, em 1791. Para Prado e Machado, esse pioneirismo francês foi resultado da grande
propagação dos ideais de liberdade, igualdade e fraternidade que permearam a Revolução
Francesa e contagiaram toda a população.71 Já na Inglaterra, devido as severas leis anti-
homossexuais que puniam inclusive com a pena de morte até o ano de 1967, as contestações
ficaram por conta da literatura underground repleta de temas homoeróticos, entre estes literatos
se destacam Coward-Mccann, Walt Whitman, Edward Carpenter e Oscar Wilde, que foi levado
a três julgamentos por praticar o “amor que não se ousa dizer o nome”. 72 A legislação contra a
prática homossexual somente foi extinta na Inglaterra em 1967.
Mas foi na Alemanha que se desenvolveu o ativismo mais marcante, como destacam
Peter Fry e Edward MacRae, no livro “O que é Homossexualidade”. Segundo os autores, os
ativistas alemães mobilizaram toda a sociedade numa grande campanha pela remoção do artigo
175 do código penal que previa a condenação de sodomitas. Não obstante, apesar de obterem
êxito, esse processo de descriminalização da homossexualidade na Alemanha foi o responsável
por convalidar uma “inferioridade” da prática homossexual diante daqueles que amavam o sexo
diferente.73 Para Pollak74 e Katz75, trata-se de uma grande ironia da história, pois numa tentativa
estratégica de demonstrar que os praticantes de sexo com iguais não eram criminosos, nem
pecadores, os reformadores sexuais alemães, Ulrichs e Benkert, já citados como responsáveis
pelo termo “homossexual” e “uranista”, essencializaram o desejo pelo mesmo sexo atribuindo-
70
Cf. KATZ, Jonathan Ned. A Invenção da Heterossexualidade. Tradução Clara Fernandes. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1996.
71
PRADO, Marco Aurélio Máximo e MACHADO, Frederico Viana, op. cit.
72
Para mais informações sobre o ativismo homossexual na Inglaterra no século XIX, ver LAURITSEN, John e
THORSTAD, David. Los Primeros Movimientos em favor de los derechos homosexuales (1864-1935). 1 Ed.
Barcelona: Tusquets Editor, 1977, pp. 64-72.
73
Cf. FRY, Peter e MACRAE, Edward. O Que é Homossexualidade. São Paulo: Brasiliense, 1985.
74
Cf. Para mais informações, ver POLLAK, Michael, La Homosexualidad Masculina o: ¿La Felicidad en el
Ghetto?, In: ARIÈS, Philippe [et. al.]. Sexualidades Occidentales. Editorial Paidós, Buenos Aires, Argentina, 1987.
75
Cf. KATZ, Jonathan Ned. A Invenção da Heterossexualidade. Tradução Clara Fernandes. Rio de Janeiro:
Ediouro, 1996.
45
lhe um caráter patológico, uma pulsão inata e invertida, por conseguinte, não passível de
punição, mas de tratamento médico. O principal líder dessa campanha foi Magnus Hirschfeld
que partilhava dessa mesma ideia. Suas ações visavam ainda mudanças na legislação e
campanhas educativas, gerando aliança com outros movimentos, como os trabalhistas e
socialistas e grupos libertários. Ele fundou o “Comitê Científico Humanitário”, em 1897, e
passou a publicar o “Anuário de Intermediários Sexuais”, uma revista anual dedicada à luta por
direitos civis dos homossexuais. 76 Foi desse grupo também que saiu Adolf Brand que se
destacou por se contrapor aos outros reformadores, pois desconfiava do inatismo da
homossexualidade e não aceitava que a considerasse doença 77.
Na segunda fase, de acordo com Prado e Machado, houve uma maior organização do
ativismo homossexual e suas ações estão inscritas nos acontecimentos da década de 1940.78
Essas organizações formaram-se na Europa e Estados Unidos e suas publicações se voltavam
para a descriminalização da homossexualidade. Segundo Fry e MacRae, esse retorno à
repressão homossexual no continente europeu fazia parte das medidas tomadas pelo stalinismo
e nazismo que identificavam esse comportamento como uma ameaça à família; ambos
associavam tal “degeneração” com as inovações políticas engendradas pelo bloco oposto. Em
tempos de guerra, esse movimento ficou conhecido como “homófilo”, pois enfatizava o amor
entre as pessoas do mesmo sexo em detrimento de meras práticas sexuais. Surgiram grupos na
Holanda, Dinamarca, França, Suécia, Reino Unido e Estados Unidos. O movimento homófilo
estadunidense foi o que mais se destacou por ter adotado uma perspectiva marxista na luta por
uma aceitação pública da homossexualidade que fosse mais “digna”. 79 Segundo Prado e
Machado, isso ocorreu porque a maioria dos seus fundadores eram comunistas e radicais de
esquerda.80 Além disso, em 1948, teve grande repercussão a publicação do primeiro relatório
sobre o comportamento homossexual – “Relatório Kinsey” – formulado por Alfred Kinsey. De
acordo com Simões e Facchini, seus resultados apontaram que a prática homossexual era bem
frequente e não estava restrita apenas a um grupo de indivíduos. Nesse mesmo ano, foi fundado
um dos principais grupos, o Mattachine Society, considerado por muitos como o precursor do
76
De acordo com Lauritsen e Thorstad, este comitê tinha como principais finalidades: “(1) ganarse a los cuerpos
legislativos para que apoyen la petición de abolir el párrafo anti-homosexual del código penal alemán, el parráfo
175; (2) sacar a la luz pública la verdade sobre la homosexualidad: (3) ‘interessar a los próprios homosexuales en
la lucha em favor de sus derechos’.” Cf. LAURITSEN, John e THORSTAD, David. Los Primeros Movimientos
em favor de los derechos homosexuales (1864-1935). 1 Ed. Barcelona: Tusquets Editor, 1977, p. 27.
77
Ver: LAURITSEN, John e THORSTAD, David. Op. Cit., pp. 19-38.
78
PRADO, Marco Aurélio Máximo e MACHADO, Frederico Viana, op. cit.
79
FRY, Peter e MACRAE, Edward, op. cit.
80
PRADO, Marco Aurélio Máximo e MACHADO, Frederico Viana, op. cit.
46
81
Cf. SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009.
82
SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina, op. cit.
47
83
De acordo com João Silverio Trevisan, “desbunde” ou “desbum” era um termo muito utilizado nas décadas de
1960 e 1970 para designar uma liberação individual, um descompromisso com partidarismo político, uma negação
da “caretice”. Muitas vezes também estava associado ao uso de drogas e práticas homossexuais. Cf. TREVISAN,
João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 7º ed. Rio de Janeiro:
Record, 2007, p. 284.
84
Para uma compreensão mais didática sobre política, adota-se, neste trabalho, a concepção de Gramsci, que
compreende dois grandes planos superestruturais: “o que pode ser chamado de ‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto
de organismos designados vulgarmente como ‘privados’) e o da ‘sociedade política ou Estado’, planos que
correspondem, respectivamente, à função de ‘hegemonia’ que o grupo dominante exerce em toda a sociedade e
àquela do ‘domínio direto’ ou comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico’.” Cf. GRAMSCI,
Antônio. Cadernos do Cárcere, vol. 2: Os intelectuais. O princípio educativo. Jornalismo. Edição e tradução de
Carlos Nelson Coutinho. 4º Edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006, 20 e 21.
85
Para mais informações sobre os impactos do golpe de 1964 para a democracia brasileira, ver TOLEDO. Caio
Navarro. 1964: O golpe contra as reformas e a democracia. Revista Brasileira de História. Revista Brasileira de
48
contra as instituições democráticas do país, pois também foi responsável por desencadear um
clima de terror e pânico na população. Em nome da “segurança nacional”, os governos militares
censuravam e torturavam opositores ao seu regime ditatorial. Essa situação atingiu seu
paroxismo em 1969, com a chegada do General Emílio Gastarrazu Médici a presidência da
república e com a implantação de um terrorismo de Estado, que estava pautado no “estado de
exceção” iniciado com a promulgação do Ato Institucional nº 5 (AI-5), promulgado ainda no
governo de Arthur da Costa e Silva (1967-69). Já na virada para a década de 1970, a resistência
dos estudantes a um governo autoritário e a reorganização da classe trabalhadora, em muito,
impulsionada pela ala progressista da Igreja Católica e várias correntes de esquerda, gerou uma
onda contestatória que agitou diversos setores sociais.
Oportunamente, é neste momento também que a homossexualidade teve uma maior
visibilidade no cenário nacional. De acordo com Green, nas décadas de 1960 e 1970, as grandes
cidades tornaram-se o principal destino para se ingressar numa sociabilidade homoerótica e
expressar coletivamente sua identidade homossexual. Segundo ele, a partir de 1972, houve um
grande investimento em saunas, boates e discotecas voltadas para o público homossexual
masculino, sobretudo, da classe média em expansão.86 Além desses espaços, os cinemas, praias
e praças públicas continuavam sendo importantes pontos de encontro eróticos, principalmente
para os mais pobres e negros. No entanto, como apontam Simões e Facchini, esses grandes
centros tão fascinantes e discretos também tinham seus riscos. Segundo eles, mesmo que o
Código Penal Brasileiro de 1940 não previsse nenhuma punição à homossexualidade,
constantemente homossexuais sofriam agressões sob a alegação de vadiagem ou prática de atos
obscenos em público. Por isso, muitos optassem por formas de socialização mais privativas,
como era o caso das reuniões e festas de grupos de amigos em residências particulares, fã-clubes
de cantoras de rádio, barracões de escolas de samba, entre outros. Mesmo atestando a escassez
de fontes, Simões e Facchini destacam também alguns espaços de concentração de mulheres
homossexuais nos grandes centros urbanos, tais como alguns bares, restaurantes, boates e
pontos de encontros de intelectuais, mas sempre com um cuidado maior em comparação aos
homens no que tange à discrição.87
A contradição que caracterizou essa fase da política e sociedade brasileiras também
reverberou na cena artístico-cultural. Em plenos anos de forte repressão militar, muitos artistas
assumiram uma androginia performática – genderfucker –, fazendo uso de uma moda unissex
como uma forma de negar a “caretice”, protestar contra o Estado autoritário e negar os rígidos
padrões de gênero no Brasil. Em consonância com João Silvério Trevisan, no livro Devassos
no Paraíso, três fenômenos artísticos se destacaram nesse período: o cantor Caetano Veloso, o
grupo musical Secos & Molhados, com seu vocalista Ney Matogrosso, e o grupo teatral “Dzi
Croquettes”, liderado pelo coreógrafo Lennie Dale. Esses atores e cantores eram influenciados
pelo movimento de contracultura que eclodiu na Europa e nos Estados Unidos e se espalhou
por todo o mundo.88 A insólita combinação de maquiagem e pelos no peito evidenciava a
“artificialidade” das performances do sexo e a “farsa” teatral e deliberada das identidades
sexuais. Entretanto, suas atitudes pós-identitárias muitas vezes eram confundidas com o
comportamento homossexual. Na prática, suas performances colocavam a homossexualidade
na pauta dos assuntos do cotidiano nacional.
Toda essa movimentação homossexual, ampliação dos espaços públicos de
sociabilidade e profusão de discursos acerca dessa sexualidade foram responsáveis também por
propagar um novo modo de representar a homossexualidade. Surge assim, o “entendido”. De
acordo com Green, esse termo já circulava no Brasil desde a metade da década de 1940, e seu
uso referia-se aos homossexuais da classe média tradicional, em sua maioria “enrustidos”, mas
se populariza mesmo ao longo dos anos 1960.89 É neste período que sua aplicação passou a ter
um viés político de afirmação homossexual que se distanciava do comportamento sexual
hierárquico baseado na oposição binária entre a “bicha-passiva-feminina” e o “bofe-ativo-
masculino” e introduzia no imaginário social, mesmo que ainda das classes mais elitizadas e
intelectualizadas, um modelo mais igualitário equivalente ao preconizado por uma identidade
gay nos Estados Unidos do pós-Stonewall. Neste sentido, o “entendido” se distinguia da “bicha”
ou “boneca” por sua ênfase no gênero masculino e pelo seu desejo sexual por homens que
compartilhavam dessa mesma identidade. Esse deslocamento político gerado por essas novas
representações identitárias homossexuais afetou também o corpo e as performances desses
indivíduos, que passaram a se afastar cada vez mais de um comportamento feminino e adotar
posturas másculas, criando assim um fosso entre a “bicha-louca” e o “entendido-politizado”.90
88
Cf. TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 7º
ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, pp. 283 - 291.
89
GREEN, James N. Além do Carnaval: A Homossexualidade Masculina no Brasil do século XX. São Paulo:
Editora Unesp, 2000, p. 307.
90
De acordo com Guimarães: “Para os da network [rede de entendidos], porém, ser homossexual tem outro
significado. Parafraseando Bourdieu, não se trata apenas de diferir do comum (a bicha), mas se diferir
diferentemente. A performance, enquanto código de comunicação, é demonstrativa do ethos desses indivíduos e
se expressa nos termos com que se caracteriza este homossexual: o “requinte”, o “nada excessivo”, o “bom gosto”.
No seu conjunto, os sistemas expressivos (a linguagem, o vestuário, o uso do corpo – próprios do habitus de classe)
50
definem e revelam, na situação de confronto público, uma identidade de posição social mais elevada, sem que o
conteúdo semântico (o significado) da comunicação verbal seja relevante ou sequer conhecido. Cf. GUIMARÃES,
Carmen Dora. O Homossexual Visto por Entendidos. Rio de Janeiro: Editora Garamond, 2004, p. 78.
91
Cf. SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 78 e 79.
51
Militar, pois as condições necessárias para o seu surgimento já estavam presentes nos anos
1960.92 É nesta perspectiva que, o historiador estadunidense Benjamim Cowan, analisa a
estratégia biopolítica adotada pelos ideólogos conservadores e planejadores da segurança
nacional durante a Ditadura Militar que relacionava a homossexualidade com a subversão
comunista. Para Cowan, o homossexual, neste período, além de patologizado, passa a ser visto
como uma ameaça degenerativa de dissolução inspirada pelos comunistas. Esta aparelhagem
de poder que combatia ao mesmo tempo tanto a imoralidade sexual e o comunismo foi forjada
nas publicações da Revista Militar Brasileira, nos foros ideológicos da Escola Superior de
Guerra (ESG), e nos informes do Serviço Nacional de Informações (SNI) e da Divisão de
Segurança e Informações (DSI), que passaram a se voltar para a censura dos que os militares
consideravam como sendo uma promoção da homossexualidade na imprensa e na televisão. 93
No entanto, Facchini argumenta que, ao invés de centrarmos nossa observação nos
aspectos repressivos do golpe militar de 1964, é salutar focarmos nas resistências coletivas que
surgem em contraposição ao Estado autoritário. Embora ela destaque que essa profusão de
movimentos sociais tenha ocorrido em tempo de abertura política, toda a sua movimentação em
torno de demandas sociais inicia ainda na fase mais repressiva do regime militar. Destarte, mas,
se a repressão serviu para limitar ou adiar o MHB, ela também viabilizou a emergência de um
conjunto de reações e resistências sociais à Ditadura. 94 Além disso, Trevisan atesta, sem atenuar
a crueldade desse capítulo da nossa história, que o exílio forçado ou voluntário permitiu que
muitos intelectuais homossexuais, como foi o seu caso, tivessem contato com os
acontecimentos e discussões que ocorriam no movimento gay estadunidense e europeu.
Segundo relato dele:
O golpe militar de 1964 tinha em suas entranhas um nem sempre secreto teor
nacionalista/xenofóbico que, aliás, a esquerda daquele período compartilhava com
gosto – não obstante as graves diferenças entre os dois pólos ideológicos.
Paradoxalmente, a compulsória modernização desse período da vida brasileira
ocorreu, no terreno cultural, por força dos próprios militares que, ao provocar o exílio
de inúmeros intelectuais, colocaram-nos em contato brutal com o mundo. Quando
esses personagens começaram a voltar, graças à anistia instaurada em 1979, trouxeram
consigo convivências que haviam absorvido em sua forçada temporada longe do lar.
Foi assim que nos chegou, por exemplo, o eurocomunismo, Assim nos chegaram
também as inquietações ecológicas, feministas e anti-racistas tal como vicejavam,
92
GREEN, James N. Além do Carnaval: A Homossexualidade Masculina no Brasil do século XX. São Paulo:
Editora Unesp, 2000, p. 396.
93
COWAN, Benjamim. Homossexualidade, Ideologia e “subversão” no Regime Militar. In: GREEN, James N. e
QUINALHA, Renan (Orgs.). Ditadura e Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São
Carlos: EDUFSCar, 2014, p. 28 e 29.
94
Cf. FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos
anos 1990. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 93.
52
Trevisan ainda ressalta que esse momento foi propício também para a organização de
mobilizações coletivas em torno de identidades de raça e de gênero no Brasil. Negros e
mulheres também vão às ruas protestarem contra o Estado antidemocrático e reivindicarem
condições sociais mais igualitárias.96
De acordo com Maria da Glória Gohn, esses sujeitos coletivos configuram os
chamados “novos movimentos sociais” com ênfase na afirmação e reconhecimento de
identidades culturais, em oposição aos “movimentos sociais tradicionais” que se baseiam na
luta de classes. Assim, nessa empreitada pela construção de um movimento homossexual
brasileiro, os feminismos e suas críticas ao patriarcado e à desigualdade de gêneros
acrescentaram muito à causa homossexual97.
Além disso, outras importantes transformações colaboraram para uma tomada de
formação política por parte dos homossexuais. Claudio Roberto da Silva sintetiza, em sua
dissertação de mestrado, intitulada “Reinventando o Sonho: História Oral de Vida Política e
Homossexualidade no Brasil Contemporâneo”, os fatores que modificaram a maneira de
conceber o homossexual no Brasil neste período:
95
Cf. TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade. 7º
ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 336.
96
TREVISAN, João Silvério, op. cit, p. 336.
97
Para Gohn: “Um movimento social é sempre uma expressão de uma ação coletiva e decorre de uma luta
sociopolítica, econômica ou cultural. Usualmente ele tem os seguintes elementos constituintes: demandas que
configuram sua identidade; adversários e aliados; bases, lideranças e assessorias – que se organizam em
articuladores e articulações e forma redes de mobilizações; práticas comunicativas diversas que vão da oralidade
direta aos modernos recursos tecnológicos, projetos ou visões de mundo que dão suporte a suas demandas; e
culturas próprias das formas como sustentam e encaminham suas reinvindicações”. Cf. GOHN, Maria da Glória
Marcondes. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 2º ed. São Paulo: Loyola, 2009, p. 14.
98
Cf. SILVA, Cláudio Roberto da. Reinventando o Sonho: história oral de vida política e homossexualidade no
Brasil contemporâneo. Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1998, p. 8.
53
militantes, o marco dessa politização das homossexualidades no país foi a fundação do grupo
Somos, de São Paulo, e a primeira publicação do jornal Lampião da Esquina, nesse mesmo ano.
O surgimento do jornal “Lampião da Esquina” se insere no contexto da explosiva
profusão de discursos sobre a homossexualidade produzidos pelo jornalismo independente da
década de 1970. Porém, este periódico se diferenciou dos demais devido a sua íntima relação
com o emergente movimento homossexual brasileiro, fazendo com que suas publicações se
tornassem uma espécie de baliza para a construção de homossexualidades politizadas em todo
o país, e por ter um maior alcance nacional. De acordo com MacRae, a fundação desse jornal
nos remete à visita do ativista gay estadunidense Winston Leyland, editor da revista “Gay
Sunshine”, que veio ao Brasil em 1977, a pedido do advogado e jornalista gaúcho João Antônio
Mascarenhas.99 Aproveitando o ensejo, conta MacRae, Mascarenhas promoveu um encontro de
Leyland com vários escritores brasileiros como Aguinaldo Silva, Caio Fernando Abreu, João
Carlos Rodrigues, João Silvério Trevisan, Gasparino Damata e Darcy Penteado. Essa reunião
entusiasmou a todos, despertando assim o desejo de criar um jornal brasileiro voltado para o
público homossexual. Nasce, portanto, o jornal “Lampião da Esquina”.100
Segundo MacRae, a escolha do nome do jornal foi feita pelo jornalista pernambucano
Aguinaldo Silva, que sugeriu esse título em homenagem à figura mítica do cangaceiro Lampião,
que, segundo ele, era uma personagem ambígua da nossa história, ao mesmo tempo famoso
pela sua virilidade e por questionamentos acerca da sua heterossexualidade. Para a publicação
dos primeiros números do jornal, os editores recorreram a amigos e apoiadores da causa
homossexual em todo o Brasil, conseguindo um bom financiamento. Com isso, a edição de
número zero do Lampião da Esquina foi publicada em abril de 1978, com circulação restrita.
Nesta edição, destacava-se um editorial chamado “Saindo do Gueto” e a apresentação dos
membros do conselho, além de um ensaio memorialístico de Darcy Penteado. 101 Segue um
fragmento do primeiro editorial do jornal:
99
Cf. MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: Identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”.
Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 71.
100
MACRAE, Edward, op. cit., p. 73 e 74.
101
MACRAE, Edward, op. cit., p. 73 e 74.
54
alguns nos querem impor – que a nossa preferência sexual possa interferir
negativamente em nossa atuação dentro do mundo em que vivemos. 102
102
“Saindo do Gueto”. In: Jornal Lampião Da Esquina. Ano 1. Nº zero, abril de 1978.
103
SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 86.
104
Cf. MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: Identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”.
Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 76.
105
MACRAE, Edward, op. cit., p. 77.
106
SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina, op. cit., p. 88 e 89.
55
107
Cf. MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: Identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”.
Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 91.
108
SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 108.
56
representantes desse grupo foi João Silvério Trevisan, que também integrava a comissão
editorial da publicação carioca. No livro Devassos no Paraíso, obra já mencionada, Trevisan
testemunhou seu desejo de fundar um grupo de discussão sobre a homossexualidade no Brasil
desde 1976, no entanto, suas tentativas não obtiveram nenhum êxito. Segundo ele, naquele
momento, para muitos, a questão homossexual era ainda muito diminuta diante dos graves
problemas enfrentados pelo país.
De acordo com MacRae, esse quadro só foi alterado quando, em abril de 1978, o jornal
Versus, ligado à organização trotskista “Convergência Socialista”, promoveu um amplo debate
político. Um dos temas desse encontro era a atuação da imprensa alternativa, o que despertou
o interesse dos editores do recém-criado jornal “Lampião da Esquina”. Todavia, essa tentativa
de participação dos representantes do “Lampião” desencadeou uma moção de protestos que
resultou numa grande discussão sobre os vínculos entre homossexualidade e política. Segundo
ele, essa foi à primeira vez em que se deu um debate claramente público com alto teor político
acerca da identidade homossexual. A partir daí, os participantes dessa discussão que se
identificavam como homossexuais decidiram se unir e formar um grupo para discutirem
especificamente sua sexualidade. 109 Trevisan era um desses quinze homens, em sua maioria
profissionais liberais, estudantes e atores, que passaram a realizar reuniões semanais para relatar
experiências cotidianas e discutir a possibilidade de formação de um movimento político. Nas
palavras dele: “Queríamos ser plenamente responsáveis por nossa sexualidade, sem ninguém
falando em nosso nome”. 110 Além de Trevisan, destacam-se também nomes como o do
estadunidense James Naylor Green, mais conhecido como Jimmy, Edward MacRae, Glauco
Mattoso, Jean-Claude Bernadet, entre outros.
Conforme relatos de MacRae, logo de início, o grupo adotou o nome de “Núcleo de
Ação pelos Direitos dos Homossexuais”. Foi somente em um debate na USP, em 1979,
promovido pelos estudantes de Ciências Sociais, que o grupo passou a se chamar “Somos –
Grupo de Afirmação Homossexual”, em homenagem a uma publicação da extinta Frente de
Liberácion Homosexual da Argentina. Esse debate propiciou também a formação de outros dois
grupos, o “Eros” e o “Libertos”.111
Nesse mesmo ano, o grupo teve um grande crescimento, como assinalam Simões e
Facchini, sendo que foram incorporados ao Somos dezenas de outros integrantes, fazendo com
109
Cf. MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: Identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”.
Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 97 e 98.
110
Cf. TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade.
7º ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 341.
111
MACRAE, Edward, op. cit., p. 112.
57
112
Cf. SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 98.
113
Cf. MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: Identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”.
Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 122.
114
Em consonância com Júlio Assis Simões e Isadora Lins França, no artigo ‘Do “gueto” ao mercado’, “gueto
homossexual” refere-se a espaços urbanos públicos ou comerciais – parques, praças, calçadas, quarteirões,
estacionamentos, bares, restaurantes, casas noturnas, saunas – onde as pessoas que compartilham uma vivência
homossexual podem se encontrar. (...) O “gueto” não somente amplia a oportunidade de encontrar parceiros e
viver experiências sexuais, mas também pode contribuir decisivamente para reduzir os sentimentos de
desconforto e culpa em relação à própria sexualidade, reforçar a auto-aceitação do desejo e, eventualmente, a
disposição para “assumi-la” em âmbitos menos restritos.” Cf. SIMÕES, Júlio Assis & FRANÇA, Isadora Lins.
Do “gueto” ao mercado. Disponível em:
http://www.pagu.unicamp.br/sites/www.pagu.unicamp.br/files/julio01.pdf. Acessado em: 20 de fevereiro de
2012.
58
Segundo Simões & Facchini, essas divergências resultaram na formação de uma nova
organização denominada de “Outra Coisa”. Aproveitando o embalo, o subgrupo formado por
lésbicas resolveu também se desvincular do Somos e fundar o “Grupo de Ação Lésbica-
Feminista (GALF).” Os autores ainda contam que, mesmo rachado, foi logo após esse
fracionamento que o Somos realizou sua principal ação pública. Segundo eles, na tarde de 13
de junho de 1980, os militantes se reuniram em frente ao Teatro Municipal de São Paulo para
protestar contra a campanha “Operação Limpeza”, promovida pela polícia civil do estado e
comandada pelo delegado José Wilson Richetti, contra os frequentadores noturnos do centro da
115
Cf. TREVISAN, João Silvério. Devassos no paraíso: A homossexualidade no Brasil, da colônia à atualidade.
7º ed. Rio de Janeiro: Record, 2007, p. 355.
59
cidade, em sua maioria gays e travestis. No entanto, passado esse acontecimento, o grupo sofreu
mais dissenções, dissolvendo-se de vez no ano de 1982. 116
Para alguns militantes e pesquisadores que vivenciaram esse período, a dissolução do
Somos, juntamente com o fechamento do jornal “Lampião da Esquina”, em junho de 1981,
representou um declínio do movimento homossexual brasileiro. No entanto, para alguns
estudiosos e ativistas contemporâneos, o fim do grupo representou, na verdade, o início de uma
segunda fase do MHB com a emergência de novos grupos organizados e a presença de novos
personagens marcantes na cena política homossexual. 117 É nesse período que surgem, em
Salvador, o Grupo Gay da Bahia, fundado sob a liderança de Luís Mott, e o grupo Adé Dudu, a
primeira organização homossexual de negros no país. A trajetória política desses coletivos
baianos é de extrema importância para se compreender as diversas formas de luta e de
resistências na defesa da liberdade de existir e de ter direitos por parte dos homossexuais no
Brasil.
Entretanto, antes que essa narrativa se apresente como um ensaio causal e linear acerca
da trajetória dos movimentos homossexuais no Brasil, é imperativo analisar de forma mais
aprofundada como é que se constrói na Bahia, notadamente em Salvador, devido a uma maior
visibilidade de homossexuais, no período anterior a fundação do Grupo Gay da Bahia, uma
identidade coletiva e uma subjetividade política focada numa maior emancipação do
homossexual. Nesta descontinuidade, torna-se importante também observar o trânsito de
significantes e significados operados sobre o signo da homossexualidade que se inscrevem
como novidades no real e que deslocam as suas representações118.
116
Cf. SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 114.
117
Para Simões e Facchini, o movimento político em torno da homossexualidade no Brasil pode ser dividido em
três “ondas” ou fases: a “primeira onda”, focalizada no período que corresponde a “abertura política”, de 1978 em
diante, quando surge o grupo Somos e o jornal Lampião da Esquina; a “segunda onda”, da qual o Grupo Gay da
Bahia faz parte, marcada pelo processo de redemocratização do país, nos anos 1980, e pelas mobilizações em torno
da Assembleia Constituinte e no combate à epidemia do HIV-AIDS; e a “terceira onda”, iniciada a partir de meados
da década de 1990, caracterizada pela parceria entre Estado e grupos homossexuais organizados, pela adoção da
designação LGBT para identificar o movimento e a consagração das “Paradas do Orgulho LGBT” em todo o país.
SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina, op. cit., p. 14.
118
Diferentemente do sistema estruturalista formulado pelo linguista Ferdinand Saussure, Jacques Derrida
elaborou a “teoria da desconstrução”, na qual o signo em vez de ter um significante (imagem acústica) que sempre
se refere a um significado (conceito), passa a ser compreendido, por meio de seus” rastros”, como contendo uma
cadeia de significantes e significados. “Isto é, sistema no qual o significado central, originário ou transcendental,
nunca está absolutamente presente fora de um sistema de diferenças. A ausência de significado transcendental
amplia indefinidamente o campo e o jogo da significação.” Cf. DERRIDA, Jacques. A Escritura e a Diferença. 2ª
ed. Editora Perspectiva: São Paulo, 1995, p. 232.
60
CAPÍTULO II
SOB O SIGNO DO PECADO: A AGITAÇÃO POLÍTICO-CULTURAL
HOMOSSEXUAL NA BAHIA
119
JORNAL A TARDE, Salvador, 16 de janeiro de 1976, p. 7.
120
Segundo Napolitano e Villaça: “Seus eventos fundadores são localizados em 1967, embora o Tropicalismo,
como movimento assim nomeado, tenha surgido no começo de 1968: na música - sua maior vitrine - através das
inovadoras propostas de Caetano e Gil, no III Festival de Música Popular da TV Record de 1967. No teatro, com
as experiências seminais do Grupo Oficina, ou seja, as montagens d' O Rei da Vela e de Roda Viva. No cinema,
acompanhando a radicalização das teses do Cinema Novo, em torno do lançamento de Terra em Transe, de Glauber
Rocha. Não poderíamos deixar de citar as experiências das artes plásticas, sobretudo as elaboradas por Hélio
Oiticica, área menos reconhecida pelo grande público, apesar de ter sido o campo onde a palavra Tropicália ganhou
significado inicial, adquirindo as feições gerais que mais tarde a consagrariam. (...) Apesar do seu hiper-criticismo,
a Tropicália será a face positiva, prospectiva e culturalmente inovadora, do processo histórico marcado pelos
"impasses" catalizados pelo golpe militar de 1964”. Cf, NAPOLITANO, Marcos e VILLAÇA, Mariana Martins.
Tropicalismo: As Relíquias do Brasil em Debate. Revista Brasileira de História. Vol. 18, n. 35, São Paulo: 1998.
61
Uma leitora diz que está preocupada com o aparente aumento do número de
homossexuais, depois de lê tanto sobre eles nos jornais e vê-los desfilar na televisão.
Ela pergunta se os homossexuais são loucos ou perigosos e se seu número está
realmente aumentando. O homossexualismo provavelmente tem recebido mais
atenção do que merece na imprensa e na televisão. Não há dúvida de que o interesse
público pelo fenômeno tenderá a diminuir com o tempo. Não há provas científicas de
que o homossexualismo esteja aumentando. O que acontece é que, cada vez mais os
homossexuais são identificados, porque declaram abertamente suas preferências
homossexuais.122
121
AZEVEDO, Thales. Das Normas à Irresponsabilidade. Jornal A Tarde. Salvador, 23 de janeiro de 1976.
122
JORNAL A TARDE. Salvador, 31 de outubro de 1977.
62
anteriores. O que mudou, de fato, foi um maior aparecimento de discursos na grande mídia que
nem criminalizava nem patologizava a homossexualidade. Segundo a historiadora Rita de
Cassia Colaço Rodrigues,123 durante este período de Ditadura Civil-militar no Brasil, os
jornalistas que não abordassem a temática da homossexualidade pela perspectiva
desqualificadora e ridicularizante poderiam ser indiciados pela previsão legal exposta no artigo
17 da Lei no 5.250 (Lei da Imprensa), 124 de 9 de fevereiro de 1967, sob a acusação de ter
ofendido a moral pública e os bons costumes . A punição se estendia ao cárcere por tempo
determinado e ao pagamento de multas pecuniárias, tal era a força disruptiva que tinha
determinados comportamentos sexuais para o tecido social.
Esta violência discursiva se traduzia nas ruas por uma forte repressão policial. Em
Salvador, assim como nas demais grandes cidades brasileiras, regularmente, os policiais
realizavam “rondas” e “batidas” em boates, bares e casas de hospedagem frequentadas
majoritariamente por indivíduos que buscavam sociabilidade e práticas eróticas com pessoas
do mesmo sexo. No ano de 1975, a Delegacia de Jogos e Costumes (DJC), comandada pelo
delegado Armando Campos de Oliveira, deu início a uma ação denominada por ele de
“operação hippie” que tinha como objetivo “limpar” a capital baiana de indivíduos identificados
com a contracultura hippie, prostitutas e homossexuais. 125 Acusados de atentarem contra a
moral e os bons costumes, os homossexuais eram presos como criminosos e expostos a todos
os tipos de humilhação, como se vê na matéria abaixo:
A “batida” contra a hospedaria da Rua Alfredo Brito ocorreu por volta das duas horas
da madrugada, quando agentes da DJC, chefiados pelo comissário Clóvis Bonfim,
vasculharam o local e verificaram a existência de vários casais de homossexuais nos
quartos. O proprietário da hospedagem, Carlos Alberto Oliveira Pereira, foi
imediatamente detido e levado – junto com os frequentadores – para a delegacia.
Várias irregularidades no funcionamento do estabelecimento foram constatadas.126
Fica nítido então que ser homossexual na Bahia dos anos 1970 era ter sua existência
marcada pelos signos combinados do pecado, do crime e da doença. O movimento homossexual
que se organizou em Salvador a partir de 1980, sob a égide do Grupo Gay da Bahia, além de
123
Para mais informações acerca da censura ao tema da homossexualidade nos meios de comunicação durante o
Regime Militar no Brasil, ver COLAÇO, Rita de Cassia Rodrigues. De Denner a Chrysóstomo, a repressão
invisibilizada: as homossexualidades na ditatura. In: GREEN, James N.; QUINALHA, Renan (Orgs.). Ditadura e
Homossexualidades: repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EDUFSCar, 2014.
124
“Art. 17. Ofender a moral pública e os bons costumes: Pena: Detenção, de 3 (três) meses a 1 (um) ano, e multa
de 1 (um) a 20 (vinte) salários-mínimos da região.” Cf. BRASIL. Congresso Nacional, Lei nº 5.250, 9 de fevereiro
de 1967.
125
Informações extraídas de matérias publicadas no Jornal A Tarde. Cf. JORNAL A TARDE, Salvador, 27 de maio
de 1975; e JORNAL A TARDE, Salvador, 3 de junho de 1975.
126
JORNAL A TARDE. Salvador, 10 de outubro de 1978.
63
ter dado continuidade às principais demandas suscitadas na primeira fase do MHB, encampou
uma série de lutas que, em última instância, tinham como meta também desarticular estes
significados negativos atribuídos à homossexualidade. No entanto, para se compreender melhor
esse trânsito de sentidos operados pela militância homossexual baiana na década de 1980, bem
como suas ações, é salutar adentrar um pouco mais nesta “Salvador dos homossexuais” do final
da década de 1970.
Neste sentido, esse capítulo tem como escopo discutir a agitação político-cultural em
torno da homossexualidade em Salvador no final dos anos 1970 e a organização de grupos
homossexuais no estado a partir da década de 1980. Com este intuito, torna-se premente
identificar os espaços urbanos destinados a prática da homossociabilidade e do homoerotismo
na capital baiana, o papel da imprensa alternativa na promoção do amor pelo mesmo sexo, bem
como a movimentação político-cultural de sujeitos esparsos em prol de uma maior visibilidade
homossexual neste período. Igualmente, investiga-se a respeito da formação do primeiro grupo
organizado de homossexuais na Bahia, o Grupo Gay da Bahia, e sobre a fundação do Grupo
Adé Dudu e a sua atuação na luta contra a dupla opressão que recai sobre o homossexual negro.
Apesar de se tratar de uma secção mais centrada na análise de fontes documentais e narrativas
históricas, muitas das questões teóricas discutidas no capítulo anterior estão também
compreendidas nesta análise. Da mesma forma, novos conceitos foram introduzidos, sobretudo,
no que tange à análise dos usos da cidade e da atuação política dos sujeitos no espaço urbano.
Aqui, foram utilizadas fontes, tais como referências bibliográficas; matérias publicadas na
imprensa alternativa, em especial no Jornal “Lampião da Esquina” e no Jornal “Inimigos do
Rei”, e na grande mídia, no Jornal “Tribuna da Bahia” e no Jornal “A Tarde”; boletins
informativos do Grupo Gay da Bahia; estatuto e dossiês elaborados pelo grupo Adé Dudu; e
fontes orais de cunho memorialístico.
mas também como um estilo de vida, uma influência que transpassa os limites do urbano.127 As
grandes capitais brasileiras, densidade demográfica e heterogeneidade, garantiam aos sujeitos
ávidos em desfrutar dos prazeres do mesmo sexo uma espécie de anonimato.
Esta concentração de sujeitos em espaços públicos ou privados, visando uma
sociabilidade homossexual nos anos 1970 e 1980, é o que os sociólogos e antropólogos urbanos
denominam de “gueto homossexual”. Para Júlio Assis Simões e Isadora Lins França, “o ‘gueto’
é importante na medida em que proporciona um ambiente de contatos no qual as pressões da
estigmatização da homossexualidade são momentaneamente afastadas ou atenuadas”.128
Embora Simões e França reconheçam a importância da categoria analítica “gueto”, importada
dos estudos sobre a concentração urbana da comunidade homossexual na cidade estadunidense
de São Francisco, eles alertam que, no caso do Brasil, é preferível utilizar as categorias
“mancha” ou “circuito”.129 No entanto, tratando-se de uma análise historiográfica centrada nos
decênios de 1970 e 1980, período em que o termo “gueto” era ainda muito disseminado no país,
sobretudo, no discurso da militância homossexual, é recomendável o seu uso nesta discussão.
Vale salientar ainda que o lugar destinado aos homossexuais na estruturação social não
fabrica apenas subjetividades, representações e práticas. A materialidade dessas produções se
dá, principalmente, na ocupação do espaço e no uso que se faz dele. Conforme aponta Michel
de Certeau:
Um lugar é a ordem (seja ela qual for) segundo a qual se distribuem elementos nas
relações de coexistência. [...] Um lugar é portanto uma configuração instantânea de
posições. Implica uma indicação de estabilidade. [...] O espaço é um cruzamento de
móveis. É de certo modo animado pelo conjunto de movimentos que aí se
desdobram”.130
127
Segundo Wirth, são três as características básicas da cena urbana: quantidade de população, densidade da
população e heterogeneidade. Desse modo, o sociólogo alemão define as cidades “como um núcleo relativamente
grande, denso e permanente, de indivíduos socialmente heterogêneos”. Cf. WIRTH, Louis. O Urbanismo como
Modo de Vida. In: VELHO, Otavio (org.). O Fenómeno Urbano. Rio de Janeiro: Zahar, 1967, p. 95.
128
Cf. SIMÕES, Júlio Assis e FRANÇA, Isadora Lins. Do “gueto” ao mercado. Disponível em:
http://www.pagu.unicamp.br/sites/www.pagu.unicamp.br/files/julio01.pdf. Acessado em: 20 de fevereiro de 2012.
129
De acordo com José Guilherme Cantor Magnani: “são as manchas, áreas contíguas do espaço urbano dotadas
de equipamentos que marcam seus limites e viabilizam – cada qual com sua especificidade, competindo ou
complementando – uma atividade ou prática predominante.” [...] A noção de circuito se refere ao exercício de uma
prática ou a oferta de determinado serviço por meio de estabelecimentos, equipamentos e espaços que não mantêm
entre si uma relação de contiguidade espacial, sendo reconhecido em seu conjunto pelos usuários habituais: por
exemplo, o circuito gay, o circuito dos cinemas de arte, o circuito neo-esotérico, dos salões de dança e shows black,
do povo-de-santo, dos antiquários, dos clubblers e tantos outros”. Cf. MAGNANI, José Cantor Guilherme. De
perto e de dentro: notas para uma etnografia urbana. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 17, nº 49, 2002,
pp. 22-24.
130
Cf. CERTEAU, Michel. A Invenção do Cotidiano: 1. Artes de Fazer. Tradução de Ephraim Ferreira Alves. 16º
Ed. Petrópolis-RJ: Vozes, 2009, p. 184.
131
CF. CERTEAU, Michel. Op. Cit., p. 184.
65
especificam pelas ações dos sujeitos históricos. É por excelência existencial. Por conseguinte,
são zonas identitárias. Assim, os espaços urbanos de Salvador, recortados pelos amantes do
mesmo sexo no final dos anos 1970 e início dos anos 1980, podem ser perspectivados como
verdadeiros laboratórios de troca de experiências e de produção de novas subjetividades,
identidades e pertencimentos homossexuais.
Não obstante, a existência desses espaços delimitados para a prática do amor pelo
mesmo sexo, por si só, evidenciavam a negação dos direitos civis dos homossexuais. Para
Sandra Jatahy Pesavento, o reverso da cidadania é a exclusão social dos indivíduos, sua
segregação espacial, seu direcionamento para os “maus lugares”. 132 Percebe-se então que a
cidade não é apenas uma arena de disputa. É também o que se disputa. Assim, na mais acabada
tradução do léxico urbano, o que se encontra é o poder, as relações de poder. Para Michel
Foucault, o que delineia um território é sempre um certo tipo de poder que o vigia e o
controla133.
Dentro ainda dessa concepção de uma dimensão política do uso dos espaços urbanos,
o sociólogo brasileiro Rogério Proença Leite distingue dois planos espaciais: o espaço urbano,
faixa territorial urbana, e o espaço público, definido pelas ligações existentes entre as atuações
dos sujeitos numa determinada espacialidade, dando-lhe sentidos de lugar e pertencimento, e a
projeção que este espaço lança sobre eles, funcionando assim como uma espécie de tábula de
cálculo de “estratégias e táticas” que os orienta as suas ações.134 Dessa forma, enquanto que
para Certeau se tem um espaço somente quando um plano geométrico urbanístico é cruzado e
estriado por diversos sujeitos – “lugar praticado” –, Leite percebe uma espacialidade urbana
anterior e fora do sujeito, mas que podem vir a se tornar um espaço público a partir da sua
apropriação enquanto arena política. O sociólogo alarga a abrangência desse conceito quando
estende a noção de espaço público para além do uso das ruas, compreendendo também as
instituições públicas e os estabelecimentos privados de uso comum.
Estes espaços públicos de homossociabilidade em Salvador foram cartografados pelo
“Grupo Gay da Bahia” na primeira edição do “Guia Gay da Bahia”, publicado em 1981. Neste
informativo produzido pelo grupo são listados os principais locais e estabelecimentos de
sociabilidade homossexual na capital baiana no final dos anos 1970 e início da década de 1980,
132
Ver PESAVENTO, Sandra Jatahy. Uma outra cidade: o mundo dos excluídos no final do século XIX. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 2001.
133
FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979. p. 157.
134
LEITE, Rogério Proença. Contra-usos e Espaço Público: notas sobre a construção social dos lugares na
Manguetown. Revista Brasileira de Ciências Sociais. Vol. 17. Nº 49. Junho/2002.
66
alguns deles em funcionamento desde os anos 1940 e 1950. Nesse excurso pelo gueto
homossexual de Salvador, duas regiões da cidade se destacam por atrair grandes agrupamentos
de pessoas amantes do mesmo sexo: o centro e a extensa orla da cidade. 135
Na região central, as áreas de maior concentração eram: a Praça da Sé e o Terreiro de
Jesus, pois muitos dos seus frequentadores residiam no Pelourinho; a Rua da Ajuda, com suas
travessas e becos escuros que permitiam práticas sexuais “mais livres”; a Praça Municipal,
devido à grande circulação de pedestres que utilizavam o Elevador Lacerda; a Praça Castro
Alves, principalmente nos dias de carnaval; a Praça da Piedade; a Rua Carlos Gomes; Largo
dos Aflitos; e a Praça do Campo Grande. Na orla, no roteiro indicado pelo grupo, as principais
áreas de convergência homossexual eram o Porto, o Farol e o Cristo da Barra, principalmente
aos sábados e domingos, a Pituba, a Praia dos Artistas, no bairro da Boca do Rio, e a Praia de
Placaford.136
Neste momento, já se pode perceber também em Salvador a formação de um “mercado
gay” com a presença de bares e boates voltadas ou tendo como principais frequentadores um
público homossexual, em sua maioria das camadas médias, e em alguns casos, travestis e
“michês”.137 Dentre esses estabelecimentos, destacavam-se a sofisticada Boate “Holmes”,
situada no bairro do Gamboa; Boate “Tropical”, na Baixa dos Sapateiros; Boate “Safari”, na
Rua Carlos Gomes, comandado por Waldeilton Di Paula; e os bares “Cactus”, localizado no
“Beco dos Artistas”, no Garcia, “Salum”, no Relógio de São Pedro, e o “Oásis” e o “Braseiro”,
na Carlos Gomes. De acordo com o “mapa homossexual” elaborado pelo GGB, em 1981, as
lésbicas eram predominantes no “Zanzibar” e no “Barzim”.138 Numa carta enviada para o Jornal
“Lampião da Esquina”, o soteropolitano Paulo Emanuel também traça seu roteiro de
homossociabilidade na cidade de Salvador. Segundo seu relato:
A porta do Teatro Castro Alves foi descoberta no verão passado, entre os shows de
Caetano, Simone e outras. Os gueis [sic] invadiram e formaram o “clube da escada”.
(...) Perto daí, no bairro de Fazenda Garcia, logo no começo, há um “beco” onde um
francês inaugurou também pela mesma época do verão, um barzinho e restaurante. O
barzinho era freqüentado pelos do “clube da escada” e por outros gueis, em geral
classes B e A, que desfilavam os seus mais recentes modelos via Paris ou mesmo
lguatemi (shopping center). (...) Para gueis mais “barra pesada” (não há discriminação
no tempo: somos todos iguais na noite, e no dia também), existem bares na Rua Carlos
Gomes (centro) onde se pode encontrar companhia e bebida barata. (...) Nos bairros
135
GRUPO GAY DA BAHIA. Guia Gay Da Bahia, 1981, 16 folhas.
136
GRUPO GAY DA BAHIA. Guia Gay Da Bahia, 1981, 16 folhas.
137
O termo “michê”, nesta acepção, refere-se “aos varões geralmente jovens que se prostituem sem abdicar dos
protótipos gestuais e discursivos da masculinidade em sua apresentação perante o cliente”. Cf. PERLONGHER,
Néstor Osvaldo. O Negócio do Michê: prostituição viril em São Paulo. 1ª ed. São Paulo: Editora Brasiliense, 1987,
p. 17.
138
GRUPO GAY DA BAHIA. Guia Gay Da Bahia, 1981, 16 folhas.
67
da Vitória e Barra há também bares para gueis classe A. (...) No Terreiro, Pelourinho
e adjacências, é fácil a pegação barra pesadíssima, com michês. (...) Na minha
modesta opinião, o clube da escada é o melhor local para quem vem de fora. (...) E
ainda tem o fato de que se encontra aí pessoas de nível cultural alto, com quem se
pode, além de transar um ótimo relacionamento sexual, trocar idéias [sic],
sensibilidades, talentos, vida. (Paulo Emanuel).139
O status socioeconômico, portanto, não definia apenas a classe social dos membros da
comunidade, mas também o grau de marginalização que este sujeito poderia sofrer, podendo
ser classificado como o “gay rico” ou “entendido”, mais palatável numa sociedade considerada
heteronormativa, ou a “bicha pobre”, vulnerável a todos os tipos de discriminações. Com isso,
fica nítido que, mesmo com o aumento dos espaços de homossociabilidade e de práticas
homoeróticas na capital baiana, estes locais ainda eram poucos e restritos a um público seleto,
composto majoritariamente por homens brancos das camadas médias. A “bicha despeitada”
139
JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA. Ano 2. Nº 14, Julho de 1979, p. 4.
140
MARSIAJ, Juan P. Pereira. Gays Ricos e Bichas Pobres: Desenvolvimento, Desigualdade Socioeconômica e
Homossexualidade no Brasil. Cadernos AEL. Vol. 10. Nº 18/19. 2003.
141
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano I. Nº 3. Abril de 1982. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim do
Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, 38.
68
(mal comportada e violenta) e “metida a burguesa” (pobre e fora do seu lugar social) são a
personificação social que funciona claramente como marcador de uma assimetria. Segundo o
boletim, trata-se de uma coexistência transversalmente indesejada. Na própria apresentação do
“Guia Gay da Bahia” de 1981, o GGB expõe uma Salvador para o turista interessado em
desfrutar dos prazeres com mesmo sexo em sua visita, como uma cidade de desempregados,
pobre e violenta, principalmente, se comparada as grandes cidades do sul-sudeste do país.
Diante destas limitações financeiras, muitos baianos ansiosos em praticar sexo entre
iguais buscavam outros pontos de encontro de homossexuais que fossem mais acessíveis, como
era o caso dos cinemas, como o “Cine Astor”, na Rua da Ajuda, o “Bistrol”, no Politeama, e o
“Pax”, na Baixa dos Sapateiros, entre outros, ou até mesmo sanitários públicos, que também
eram utilizados para práticas homoeróticas.
Estes relatos acerca da espacialização da homossexualidade em Salvador no início da
década de 1980, além de demarcar os locais de homossociabilidade e homoerotismo, deixam
escapar ainda uma certa “tipologia” dos amantes do mesmo sexo na cidade. De acordo com a
classificação sistêmica formulada por Luiz Mott (1987), existiam três grandes grupos: gays ou
bichas, “travestis”,142 e homens com práticas homossexuais, como “caçadores”,143 michês e
“bofes”.144 Esses sujeitos eram distribuídos de forma hierárquica dentro de uma escala social
que ia desde “tipos” mais subalternizados, aqueles que mais se aproximavam do papel de gênero
e sexual feminino-passivo, até os “tipos” dominantes, aqueles que mais reproduziam o lugar do
masculino-ativo. Com isso, na prática, esta tipologia servia também para medir o grau de
repressão que cada praticante de sexo entre iguais poderia sofrer a partir da sua posição nesta
hierarquia sexual. Dessa forma, as travestis e os “bichas-loucas”, por performarem
publicamente os registros de gênero atribuídos às mulheres ou ao feminino, eram as mais
vulneráveis a todo tipo de violência, fosse ela simbólica ou física. 145 No interior do gueto
142
“Os travestis formam o grupo que mais se aproxima da aparência do sexo oposto, muito embora nunca seja
supérfluo recordar que travestir-se de mulher, aplicar seios de silicone ou desenvolvê-los à custa de hormônios
femininos, adotar nome e roupas femininas – toda essa parafernália mulheril – não implica obrigatoriamente em
fantasias e práticas sexuais similares à do sexo feminino no que se refere a “ser penetrado” – Há muito travesti que
na cama assume o papel de macho, sendo ativos e inclusive super-dotados”. Cf. MOTT, Luiz. Desviados em
questão: Tipologia dos homossexuais da cidade de Salvador, Bahia. Salvador: Editora Espaço Bleff, 1987, p. 10.
143
“Caçador é o termo mais antigo na Bahia para identificar rapazes que transam com gays em troca de alguma
vantagem material, seja dinheiro, um simples vale-transporte, um acarajé ou de presentes e somas mais valiosas.
Tais rapazes, contudo são “free-lancers”, não vivem desse expediente”. Cf. MOTT, Luiz. A cena gay de Salvador
em tempos de Aids. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2000, p. 60.
144
“O termo “bofe” faz parte do vocabulário dos homossexuais brasileiros ao menos desde a década de 30. (...)
Bofe é sinônimo de homem, ou melhor, do varão que ostenta aparência máscula, e do qual geralmente se espera
que seja sexualmente ativo-penetrador”. Cf. MOTT, Luiz. Desviados em questão: Tipologia dos homossexuais da
cidade de Salvador, Bahia. Salvador: Editora Espaço Bleff, 1987, p. 24.
145
“Compreende-se que, sob esse ponto de vista que liga sexualidade a poder, a pior humilhação, para um homem,
consiste em ser transformado em mulher”. Cf. BOURDIE, Pierre. A Dominação Masculina. Tradução de Maria
69
homossexual, essas agressões poderiam advir dos próprios homens que não se viam enquanto
homossexuais, apesar de frequentarem estes locais em busca de práticas homoeróticas, ou até
mesmo de policiais. Davi Aranha, membro-fundador do GGB, em seu depoimento, narra esta
insegurança vivida pelos amantes do mesmo sexo dentro dos espaços de homossociabilidade e
erotismo em Salvador no final dos anos 1970. Segundo ele:
Todas as noites tinha ronda dentro das boates. A polícia chegava desligava o som,
desligava tudo, e a polícia entrava para olhar lá, não sei o quê. Porque lá só tinha
homens que gostava de homens e música eletrônica. Então não sei, exatamente, o
porquê dessas “batidas”. Porque as “batidas” dentro das boates não acontecia em
boates heterossexuais. Na época, frequentávamos outras boates na cidade, como a
“Zum Zum”, como a “Maria Fumaça”, na Barra, que eram boates frequentadas por
heterossexuais e não tinha as “batidas” policiais dentro dessas unidades. Então foi
também uma forma de discriminar [os homossexuais].146
uma autoafirmação homossexual. Di Paula, em entrevista dada ao antropólogo inglês Peter Fry,
cita pelos menos três dessas turmas em Salvador, a “VlDs (Verv importante Doils)”, a
“Carimbós” e a turma “Os Intocáveis”.150 Esses grupos de homossexuais com suas atividades
lúdicas foi o que permitiu que Di Paula vislumbrasse, já nesse momento, a possibilidade de
mudar os rumos de sua vida, ingressando numa via artística. Num outro depoimento, concedido
ao jornal “A Tarde”, o estilista baiano traça um breve resumo da sua biografia.
Sou da cidade de Alagoinhas e me sinto um sertanejo de alma, pois passei toda a minha
infância em Queimadas. (...) Vim para Salvador, já rapaz, e prestei vestibular para
Direito, na Ufba. Fui aprovado. Mas, por força da vida artística, tive que transferir o
curso para Faculdade de Direito da católica. Cheguei ao terceiro ano, mas já estava
envolvido com o mundo artístico, e atraído pelo consumismo. Ganhava o suficiente e
desfrutava bens, como carro último modelo. Tudo isso proporcionado pelo salário de
bancário que recebia no Banco de Londres, onde trabalhei por 18 anos. Quando eu
conheci Álvaro Guimarães, no auge da carreira teatral e na TV, e o seu produtor Carlos
Borges, a minha vida tomou outro rumo.151
150
FRY, Peter. História da Imprensa Baiana. In: JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA, Ano 1, nº 4, Agosto-
setembro de 1978, p. 4.
151
JORNAL A TARDE. Entrevista com Di Paula: da Advocacia para Televisão. Revista da TV. Salvador, 10 de
junho de 2001, p. 12.
152
A ABIG era dirigida por Anuar Farah, da Turma OK, e por Agildo Guimarães, fundador do jornal Snob. Cf.
LIMA, Marcus Antônio Assis. Da Ditadura à Grande Mídia. Historiografia resumida da imprensa homossexual no
Brasil. In: WOITOWICZ, Karina Janz (org.). Recortes da Mídia Alternativa: Histórias & memórias da
comunicação no Brasil. Ponta Grossa-PR: Editora UEPG, 2009, p. 237.
71
Darling”153 apareceu somente em 1970, diferenciando-se bastante dos seus antecessores. Trazia
em suas edições além das fofocas das turmas, críticas do cinema e do teatro, informações acerca
do estilo de vida homossexual no Brasil e no mundo e outras notícias que compunham o
universo de interesses de Di Paula. Saía com tiragem de cem exemplares. Por ocasião da visita
de Winston Leyland que desaprovou o nome “Little Darling”, por considerá-lo “cafona”, Di
Paula resolveu mudar o título desse jornal para “Ello”, o que, para ele, seria uma forma de
expressar a sensação que muitos homossexuais tinham de não se reconhecer nem como “ele”
nem como “ela”. Esse último periódico publicado por Di Paula, além de um maior
profissionalismo, destacou-se também por ter uma coluna assinada por Anuar Farah, integrante
da “Turma OK”, e por ter dado ênfase às experiências homossexuais de seus leitores na sessão
“A Primeira Vez”.154
A despeito do pioneirismo de Di Paula, seus periódicos também foram alvos de críticas
que partiam de indivíduos inseridos na própria comunidade homossexual. Numa nota publicada
no jornal “Lampião da Esquina”, intitulada “Pauladas na Bixórdia”, José Alcides Ferreira
afirmou que publicações como o “Little Darling”, diferentemente do “Lampião”, não passavam
“de uma camarrilha machista que só consegue se impor através do ridículo, da vulgaridade e
do beautiful people indigesto”.155 Esta declaração de José Alcides gerou uma forte indignação
em Fry que, mesmo admitindo um viés machista nestas publicações, procurou rebater essas
críticas, sustentando que esses “jornaizinhos” eram produtos das limitações impostas aos
homossexuais numa determinada época e que com o tempo eles foram se adequando às novas
concepções sobre a homossexualidade, sendo o Jornal “Lampião da Esquina”, inclusive,
beneficiado por essas primeiras produções jornalísticas que se voltaram para um público
homossexual. Sobre a ausência de uma política homossexual nos periódicos do estilista baiano,
Carlos Borges, amigo e produtor do programa “Na Intimidade” que foi apresentado por Di
Paula, no ano de 1981, fez a seguinte confissão:
153
Peter Fry conta que a escolha do título desse jornal foi uma homenagem de Di Paula a um garoto que ele
namorava nas aulas de inglês e que tinha recebido esse apelido por parte do professor. Cf. FRY, Peter. História da
Imprensa Baiana. In: JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA, Ano 1, nº 4, Agosto-setembro de 1978, p. 4.
154
Estas informações detalhadas acerca dos jornais produzidos por Di Paula, nos anos 1960 e 1970, foram extraídas
da sistematização elaborada por Peter Fry em sua matéria publicada no Jornal Lampião da Esquina, ver FRY, Peter.
História da Imprensa Baiana. In: JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA, Ano 1, nº 4, Agosto-setembro de 1978, p.
4.
155
JORNAL LAMPIÂO DA ESQUINA, Ano 1, nº 2, Junho-junho de 1978, p. 14.
156
Onde tem escrito travestis, leia-se transformistas, ou seja, homens que se montavam com indumentárias e
trejeitos femininos para fazerem shows em boates gays.
72
157
Entrevista concedida por Carlos Borges em 16 de maio de 2016.
158
JORNAL A TARDE. Entrevista com Di Paula: da Advocacia para Televisão. Revista da TV. Salvador, 10 de
junho de 2001, p. 12.
159
Clóvis Bornay foi um museólogo e carnavalesco que constantemente era chamado para ser jurado em programas
de auditório da televisão brasileira na década de 1970.
160
Clodovil Hernandez foi um famoso estilista, apresentador de televisão e político brasileiro.
73
Vale salientar ainda que, no intervalo de 1978 a 1980, a capital baiana experimentava
também uma forte efervescência artístico-cultural, sobretudo, nos campos da música, sob a
influência da vanguarda tropicalista, e do teatro. No que diz respeito à cena teatral, várias peças
que foram montadas ou que passaram por Salvador, neste ínterim, tinham como tema central a
questão da homossexualidade. Dentre esses espetáculos, destacam-se a peça “Terezinha de
Jesus”, de autoria de Ronaldo Ciambrone, que contava a história de um rapaz que foi expulso
de casa por ser homossexual e ao chegar na cidade grande assumiu uma outra identidade
sexual;161 a peça “Os Filhos de Kennedy”, de Roberto Patrick, que tinha como um dos seus
protagonistas um personagem homossexual narrando as suas vivências; 162 a peça “Rapaz de
Aluguel”, de Jurandyr Ferreira, que também trazia a homossexualidade como tema; 163 e a peça
“Gracias a la Vida” que foi produzida pelo grupo “Teatro Livre da Bahia”. 164 Nesta última, a
temática da homossexualidade foi retratada por um viés político em contraposição a uma
concepção “machista, bizarra e folclórica” do homossexual masculino.165 Para João Augusto,
integrante desse grupo teatral e colunista do jornal “A Tarde”, em seu artigo intitulado “Quem
é quem no teatro baiano?”, a relação entre teatro e ação política deveria ser sempre simbiótica.
Sobre isso, ele comenta:
Teatro, além de arte, é caminho – um caminho onde o homem aprende a assumir a sua
verdade. A se respeitar e respeitar o ser humano. Arte não é ornamento há muito
tempo. É uma necessidade do homem, um instrumento de percepção do homem, onde
ele sofre uma ação transformadora de si mesmo e do mundo, onde ele exercita aquela
consciência e liberdade pelas quais somos e nos definimos como seres humanos.166
Por esta ótica, a peça “Gracias la vida” representou um dos primeiros esforços em
direção à construção de identidades homossexuais politizadas na Bahia. Outros impulsos
vieram dos movimentos sociais que começavam a emergir ou se reorganizar em Salvador, neste
ano de 1978. O Movimento Estudantil, o Movimento Feminista e o Movimento Negro
Unificado, de forma dialógica, começaram a problematizar os direitos dos homossexuais na
Bahia. Dentre estes, alguns integrantes do movimento negro, que analisaremos mais à frente, e
alguns estudantes anarquistas passaram a incluir a defesa pelo “amor livre” ou pelo “amor pelo
161
JORNAL A TARDE. Salvador, 16 de novembro de 1978.
162
JORNAL A TARDE. Salvador,19 de novembro de 1978.
163
JORNAL A TARDE. Salvador, 31 de julho de 1978.
164
O Teatro Livre da Bahia foi uma companhia teatral conduzida por Sônia dos Humildes e que teve como um dos
seus principais atores Benvindo Siqueira. Do início da década de 1970 até a sua morte, em 1979, João Augusto
dirigiu várias peças produzidas por esse grupo. Cf. SILVA, Denise Pereira. João Augusto e o Teatro Livre da Bahia:
Artistas, intelectuais e o Estado na Bahia nos anos 1970. In: Anais do XXVI Simpósio Nacional de História –
ANPUH: São Paulo, julho 2011.
165
JORNAL A TARDE. Salvador, 30 de julho de 1978.
166
JORNAL A TARDE. Salvador, 6 de agosto de 1978.
74
Depreende-se, portanto, que para esses anarquistas o amor pelo mesmo sexo era mais
uma das possibilidades de se vivenciar o “amor-livre”. Segundo testemunho de Ricardo Liper,
um dos fundadores do jornal e membro-fundador do Grupo gay da Bahia, era inconcebível,
para ele, alguém se proclamar anarquista e adotar uma perspectiva “tomista” na sociedade.
167
Cf. AVELINO, Nido. Ética e Antologia de Existências. Rio de Janeiro: 2004, p. 87.
168
O Jornal Movimento foi uma das mais importantes publicações da imprensa da esquerda alternativa durante a
Ditadura Militar. Este periódico circulou regularmente entre os anos de 1975 a 1980.
169
JORNAL O INIMIGO DO REI. Ano 2, nº 3, Salvador, outubro de 1978.
170
JORNAL O INIMIGO DO REI. Ano 3, nº 4, Salvador, fevereiro e março de 1979.
75
(...) nós já tínhamos lido aqui o livro de Émile Armand sobre sexualidade, Emma
Goldmam. Já tinha falado de “amor livre”, aí uma “zebra” qualquer daqui do Brasil
(não estou me referindo a ninguém), porque foi criado dentro de uma cultura católica,
misturou o catolicismo sem saber com o anarquismo, aí quis dar um modelo familiar,
heteronormativo. Acha feio se falar de “amor livre”, se falar de liberdade sexual... Aí
é que está! Você obedece quem? Uma “zebra” que pensa de forma “zebrista” ou você
segue a tradição do anarquismo que é polemizar? (...) O anarquismo foi umas das
primeiras teorias a falar abertamente sobre sexualidade e defender o amor livre. Amor
livre, inclusive, de gênero e sexo das pessoas. Daniel Guérin, inclusive, teve uma vida
sexual muito livre. Então, não tinha o porquê a gente ser colonizado, fazer esse grande
mal ao anarquismo, esse “anarcotomismo”, não teria sentido.171
2.2 “Gueis baianos: rodem a baiana, tudo bem, mas deixem de ser alienados...”: a formação
do Grupo Gay da Bahia (GGB)
A partir dos anos 1980, muitas das questões que emperravam o Movimento
Homossexual Brasileiro em sua primeira fase, como as divergências político-ideológicas,
resistências a qualquer forma de burocratização, a ausência de uma identidade homossexual
coletiva consolidada e o afastamento do gueto gay, foram deixadas de lado. Ao invés disso, essa
171
Depoimento de Ricardo Liper presente no vídeo-documentário “O Inimigo do Rei – imprimindo utopias
anarquistas, de 2007, produzido por Carlos Baqueiro e Eliene Nunes.
172
LAMPIÂO DA ESQUINA. Ano 1, nº 5, outubro de 1978.
76
Mott conta em seu depoimento que enviou um anúncio para o Jornal Lampião da
Esquina, ainda em 1979, muito antes da primeira reunião do Grupo Gay da Bahia em 29 de
fevereiro de 1980, convocando os homossexuais baianos para se organizarem em defesa dos
seus direitos. Todavia, mesmo que esta convocatória tenha sido enviada no ano anterior, ela só
foi publicada pelo jornal na edição de março de 1980, ou seja, dias depois da fundação do grupo.
Dessa forma, a mensagem de Mott, na verdade, serviu mais para corroborar uma mobilização
coletiva que já vinha ocorrendo em torno da questão da homossexualidade na Bahia. A
reprodução desse anúncio na íntegra deixa bem claro que esse grupo formado por jornalistas,
estudantes universitários e profissionais liberais, já se reunia para discutir os direitos civis dos
homossexuais antes mesmo desta data, como se pode ver: “E atenção, gueis baianos: rodem a
baiana, tudo bem, mas deixem de ser alienados – Participem de um grupo de discussão sobre
homossexualismo. Para maiores informações, escrevam para Luiz Mott: Rua Milton de
Oliveira, 114, 40000, Salvador, Bahia”. 174
Davi Aranha, um dos membros-fundadores do GGB, ao tratar a respeito da formação
do grupo, em seu depoimento, afirma que antes da chegada de Mott à Salvador e da fundação
do Grupo Gay da Bahia, já existia, no final da década de 1970, um núcleo de indivíduos que se
encontravam no centro da cidade para discutir sobre os direitos dos homossexuais, passando
até mesmo a ser vistos por parte dos demais frequentadores do gueto homossexual
soteropolitano como sendo os “gays ativistas”. Segue um trecho da sua declaração:
Mott, para mim, é um mestre. Nos encontramos em uma dessas reuniões, desses
encontros, e ele me convidou para fazer parte do movimento. Ele me deu um nome
que se chamava “Piu-piu” que era o nome que eu assinava as minhas pichações na
cidade. (...) Mott foi o agregador, foi o líder que reuniu todas essas cabeças, todas
essas pessoas em um só pensamento e buscar uma direção. Mas, a gente já participava
de movimentos sociais na cidade, o movimento negro já existia. Então toda essa
efervescência cultural também existia. Quando Mott chegou só fez agregar e dar valor
ao pensamento em uma linha única, na diretriz dessas buscas desses direitos sociais,
desses direitos políticos, dos homossexuais.175
173
Entrevista concedida por Luiz Mott, em 23 de março de 2016.
174
JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA. Ano 2. Nº 20. Janeiro de 1980, p. 10.
175
Depoimento concedido por Davi Aranha, em 24 de março de 2016.
78
Ricardo Líper, Tony Pacheco e Alex Ferraz, juntamente com outros estudantes da
UFBA, foram os fundadores do jornal “O Inimigo do Rei”. Era por influência dos três que a
defesa do amor pelo mesmo sexo era assunto recorrente nas páginas do jornal. Além dos
anarquistas, dentre esses integrantes era notável também a participação de Wilson Santos que,
desde 1979, já atuava no “Movimento Negro Unificado (MNU)” baiano,177 onde teve contato
com as ideias de Edson Santos Tosta, mais conhecido como “Tosta Passarinho”, que tentava
aliar sua luta por igualdade racial com a defesa da liberdade de amar o mesmo sexo. 178 O
interesse deste por essa questão resultou na fundação do “Adé-Dudu – Grupo de Negros
Homossexuais”, em 14 de março de 1981, formado por ele e mais sete integrantes, como
analisaremos mais adiante.
Com isso, a iniciativa de Mott foi de importante para reunir atores sociais que já
lutavam, ainda que de forma não organizada, pelos direitos civis dos homossexuais. Além disso,
176
Depoimento concedido por Mott a Cláudio Roberto da Silva, em 22 de junho de 1995. Cf. SILVA, Cláudio
Roberto da. Reinventando o Sonho: história oral de vida política e homossexualidade no Brasil contemporâneo.
Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1998, p. 460.
177
O movimento negro contemporâneo na Bahia tem como marco a criação do Bloco Afro Ilê Aiyê, no Curuzu,
bairro da Liberdade, em 1974, sob a liderança de Antônio Carlos dos Santos, o “Vovô”. A partir daí se inicia uma
onda de valorização da cultura africana e afirmação da identidade negra em Salvador. O Movimento Negro
Unificado Bahia, fundado em 1978, foi resultado dessa agitação cultural, bem como de uma série de
acontecimentos que propiciaram a emergência do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial
(MNUCDR) que depois ficou conhecido apenas como MNU, em São Paulo, em 18 de junho de 1978. Para mais
informações, ver MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. 1978 – 1988: 10 anos de luta contra o racismo. São
Paulo: Confraria do Livro, 1988.
178
Estas informações podem ser encontradas na entrevista concedida por Wilson Santos ao blog “Ade Dudu”.
Disponível em: http://adedudu.blogspot.com.br/2011/05/um-pouco-de-historia.html. Acesso em 02 de março de
2012.
79
sua convocação direta e o fato dos demais membros não terem nenhum envolvimento com
partidos políticos de esquerda fizeram com que o grupo se voltasse exclusivamente para as
demandas da homossexualidade, contrapondo-se assim ao grupo “Somos-SP” que, desde a sua
fundação, foi marcado por uma quebra-de-braço interna sobre a questão da participação ou não
na considerada “luta maior” – luta de classes. O que contribuiu, em alguma medida, para a cisão
do grupo.
Outra importante diferença do movimento homossexual baiano em relação à militância
do Grupo “Somos-SP” dizia respeito à construção de uma identidade homossexual coletiva.
Enquanto o “Somos” trazia a necessidade de uma afirmação identitária homossexual no próprio
nome, o GGB já nasce com essa identidade definida e consolidada compondo uma das suas
siglas. Não obstante, antes de isso representar um contraponto entre esses dois grupos, veremos
que se trata mais de um processo de relativa continuidade que possuía um papel legitimador das
vinculações entre grupos com propósitos admitida e aparentemente semelhantes. Com efeito, o
grupo baiano em sua fundação tratou de pôr em prática as ideias sobre homossexualidade que
já estavam sendo discutidas nos outros grupos homossexuais do Brasil e difundidas
nacionalmente pelo Jornal “Lampião de Esquina””. Uma prova disso foi que logo de início o
grupo iria se chamar “Somos/Bahia”. No entanto, intentou-se marcar algumas distinções que
demonstram a movimentação ou transitoriedade identitárias. Por isso, logo depois, por sugestão
de Aroldo Assunção, é que o grupo foi definitivamente batizado de Grupo Gay da Bahia”:
179
Entrevista concedida por Marcelo Cerqueira, atual presidente do Grupo Gay da Bahia, em 27 de fevereiro de
2012. Vale ressaltar que Marcelo Cerqueira só ingressou no Grupo Gay da Bahia em meados da década de 1980,
portanto, os dados cedidos por ele, anteriores a isso, por mais que tenham um caráter memorialístico, trata-se de
uma “memória herdada”, pois foram informações adquiridas no convívio com Luiz Mott e demais membros-
fundadores do grupo. O conceito de “memória herdada” se encontra nas formulações do sociólogo Michael Pollak.
Segundo ele, “se podemos dizer que, em todos os níveis, a memória é um fenômeno construído social e
individualmente, quando se trata da memória herdada, podemos também dizer que há uma ligação fenomenológica
muito estreita entre a memória e o sentimento de identidade. Aqui o sentimento de identidade está sendo tomado
no seu sentido mais superficial, mas que nos basta no momento, que é o sentido da imagem de si, para si e para os
outros. Isto é, a imagem que uma pessoa adquire ao longo da vida referente a ela própria, a imagem que ela constrói
e apresenta aos outros e a si própria, para acreditar na sua própria representação, mas também para ser percebida
da maneira como quer ser percebida pelos outros.” Cf. POLLAK, Michael. Memória e identidade Social. Estudos
Históricos. Rio de Janeiro, vol. 5, n. 10, 1992, p. 5.
80
Muita gente pensa que “gay” é uma invenção da língua inglesa. Engano! Desde o
século XII, na língua catalão-provençal (prima do português), já se utilizava o tremo
“gai” para referir-se a rapazes alegres, trovadores, sodomitas, isto é, homossexuais.
No português, os termos gaiato, gaiatice, gaio, vêm da mesma raiz. Portanto, é com
muito orgulho que usamos “gay” para nos auto-identificar, pois não foi uma expressão
imposta pela medicina (como a palavra homossexual, somente inventada em 1869),
nem é pejorativo como várias expressões-palavrões correntes em nossa sociedade. E
como “gay” é um termo internacional, o GRUPO GAY DA BAHIA pede
encarecidamente aos homossexuais brasileiros que escrevam GAY e não “guei”, pois
GAY está mais próximo das nossas raízes. OK180?
180
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA, Ano VII, nº 14, Abril de 1987. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 149.
81
e Libertos, de São Paulo, GOLS, do ABC paulista, Bando de Cá, de Niterói, Ação Lésbico-
Feminista, também de São Paulo, e os grupos Alegria Alegria, Terra Maria, Fração Gay de
Convergência Socialista e integrantes do Jornal “Lampião da Esquina”. No entanto, devido aos
desentendimentos que ocorreram nesta reunião, o encontro nacional se tornou inviável. 181 Em
seu lugar, foram realizados dois encontros: o Encontro Paulista de Grupos Homossexuais
Organizados e o Encontro de Grupos Organizados do Nordeste (EGHON), realizados em abril
de 1981.
O primeiro EGHON ocorreu entre os dias 17 e 19 de abril de 1981, em Recife, e contou
com a participação de cinco grupos de homossexuais: o GATHO, o GGB, o Nós Também, de
João Pessoa, o Dialogay, de Aracaju, e o Grupo Adé Dudu, fundado em Salvador, em 14 de
março de 1981. Entre as principais deliberações desse encontro, ficou acordada a participação
desse militantes na 33ª Reunião da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC)
que ocorreria em Salvador, neste mesmo ano, a autonomia desses grupos homossexuais perante
os partidos políticos que se reorganizaram ou começaram a surgir com o fim do
bipartidarismo,182 e a criação da “Bichana”, uma revista que visava integrar os grupos
organizados de homossexuais da região. 183 Estas deliberações foram levadas adiante pelo
“Grupo Gay da Bahia”, sendo até cruciais para luta do grupo por conquistas de reconhecimento
e direitos para os homossexuais.
Outra importante iniciativa do GGB, já discutida pelo MHB na prévia do II EGHO,
foi a busca por reconhecimento social e legal e um acesso mais direto ao Estado organizado.
Nesta meta, primeiramente, o grupo tratou de obter uma sede para as suas reuniões e
organização das suas ações. Inicialmente, eles se reuniam aos domingos na casa de Luiz Mott,
logo depois passaram a se reunir na sede do jornal “Inimigo do Rei”, que ficava localizada
próximo ao “Relógio de São Pedro”, centro de Salvador. Com o aumento do número de
participantes e o interesse do grupo por um espaço que permitisse a execução de diversas
atividades voltadas para a comunidade homossexual surgiu, então, a necessidade de se adquirir
181
Segundo relato de Ronaldo Ribondi, publicado no jornal Lampião da Esquina, tendo como título “Notas sobre
o ódio”, a prévia do II EGHO pareceu mais uma disputa de grupos opositores. “O clima de animosidade era
também digno de um coquetel entre forças inimigas. Nunca se olhou tanto pelo rabo do olho nem se falou tanto
pelas entrelinhas. Subitamente senti-me inimigo mortal de uma meia dúzia de pessoas que nunca havia encontrado
antes, algumas que gostaria muito de conhecer e outras que me provocaram delírios maravilhosos, Muito destes
mal-entendidos puderam ser desfeitos ou à noite ou no domingo pela manhã, quando algumas pessoas foram se
refrescar na “Bolsa de Valores”, aquela prainha que a gente ouve falar tanto aqui em Brasília, Voltando ao assunto,
tudo era como se os grupos disputassem a primazia de falar em nome dos homossexuais e quisessem demonstrar
que a curta existência de cada um já lhes houvesse a maneira correta – e única – de conduzir a luta”. Cf. JORNAL
LAMPIÃO DA ESQUINA. Ano 3. Nº 32. Rio de Janeiro, janeiro de 1981, p. 15.
182
Cf. ALVES, Maria Helena Moreira. Estado e oposição no Brasil (1964-1984). 2ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987.
183
JORNAL DA CIDADE. Recife, nº 222, 18 a 24 de abril de 1981.
82
um local que fosse de uso exclusivo. O responsável pela concretização desse projeto foi Luiz
Mott, que adquiriu um imóvel por conta própria para a instalação do grupo. A inauguração
festiva da nova sede do GGB na Escada da Barroquinha, Edifício Derby, ocorreu em 15 de abril
de 1982.
Finalmente o GGB realiza um velho sonho: ter um lugarzinho só seu. Após quase dois
anos nos reunindo na sede do Grupo Anarquista Inimigos do Rei, coordenado por
Ricardo Liper e Toni Pacheco, conseguimos uma sede! Luiz Mott comprou uma
quitinete e nos empresta gratuitamente, com total usufruto e controle do GGB. Embora
pequenina, 40 m2, situa-se em local privilegiado: na escada da Barroquinha, bem em
frente a Praça Castro Alves! (Edifício Derby, nº. 502). A partir de Abril aí estará
funcionando uma série de atividades do GGB: Arquivo e Biblioteca sobre
homossexualismo, ponto de encontro e reuniões para as Gegebetes e simpatizantes.
Logo após a Semana Santa GGB oferecerá aos gays e lésbicas um plantão de
atendimento médico gratuito, assim como uma assessoria jurídica, com dias e horários
a serem brevemente divulgados.184
Inicialmente o GGB assumia uma postura anarquista. Por muito tempo funcionou
dessa maneira, a gente não tinha estatuto, regimento interno, a gente não cobrava ficha
de filiação das pessoas, achávamos que elas deveriam se inserir naturalmente no
processo, não tinha registros de endereço, e nada disso. Então tínhamos esse ideal
anarquista e assim foi por muitos anos. Somente a partir de 1983 o GGB começa a ser
estruturado com estatuto, com CNPJ, como entidade legalizada da sociedade civil. Por
ter essa postura anarquista o grupo não queria de maneira alguma se institucionalizar,
a institucionalização veio por uma pressão de ações mais concretas que requeriam
CNPJ.185
184
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA, Ano I, nº 03, Abril de 1982. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim do
Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 29.
185
Depoimento concedido por Marcelo Cerqueira, em 27 de fevereiro de 2012.
83
As metáforas utilizadas pelos ativistas do GGB, nesse período, sempre fazendo alusão
à guerra, são bem elucidativas acerca do engajamento bélico que se formou em torno do
reconhecimento civil do grupo. Inclusive, conseguiram angariar o apoio de militantes de outras
regiões do país que também se propuseram a lutar o “bom combate”, como foi o caso do
advogado João Antônio Mascarenhas, que cooperou oferecendo consultoria gratuita à
organização. Contra a legalização do grupo, o cartório alegava que essa iniciativa era inédita,
sem precedentes na jurisprudência brasileira, o mais indicado seria apelar a um juiz. Diante
disso, eles contrataram como advogado Augusto Paula que apresentou ao juiz mais de vinte
documentos anexos, justificando que nem a Constituição Federal, nem o Código Penal
impediam que os homossexuais se organizassem legalmente. Perante toda essa mobilização e o
irrefutável amparo legal da petição, o juiz Gudesten Soares, do Fórum Rui Barbosa de Salvador,
proferiu, em 24 de janeiro de 1983, a seguinte sentença:
186
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA, Ano II, nº 05, dezembro de 1982. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 50 e 51.
187
DIÁRIO OFICIAL. Diário de Justiça. Salvador, 4 de fevereiro de 1983.
84
eram estranhas ao Direito, como as noções de pecado, de crime e de doença. Para os militantes
baianos, mais do que uma vitória do grupo, o posicionamento favorável de uma autoridade
pública representou uma vitória para os homossexuais de todo o Brasil. Tal acontecimento foi
noticiado por todo o país, tendo ressonância tanto na grande mídia impressa quanto televisiva.
Não obstante, os objetivos “culturais, científicos e recreativos”, definidos pelo GGB em seu
estatuto, e ressaltados pelo juiz, podem ser lidos como uma tática operada pelo grupo que tinha
como finalidade principal desmontar o forte preconceito institucional contra a
homossexualidade que imperava na justiça brasileira e a velada repressão à luta homossexual
por parte do Estado ditatorial. Neste sentido, foi necessário que os militantes homossexuais
baianos atenuassem no seu estatuto o viés de luta política em defesa dos direitos civis dos
homossexuais.
De qualquer forma, a obtenção do registro de pessoa jurídica do direito privado sem
fins lucrativos, assim como a aquisição da sede, foi de grande importância para o
desenvolvimento e fortalecimento do GGB em defesa do amor pelo mesmo sexo na Bahia e no
Brasil. Tendo como principal objetivo “lutar contra todas as formas de discriminação de que
são alvo os gays”, o Grupo Gay da Bahia inaugurou uma nova política homossexual no país,
muito mais objetiva e focada nas fendas abertas pelo processo de redemocratização do Estado
nacional.
Antes de nos aprofundarmos um pouco mais na discussão acerca da atuação político-
cultural do GGB nos anos 1980, é importante salientar que, nesta primeira metade da década,
foram fundados mais três grupos organizados de homossexuais em Salvador, o “Grupo
Aquarius (Grupo de Libertação Homossexual)” e o “Grupo Adé Dudu – Grupo de
Homossexuais Negros”, em 1981, e o “Grupo Libertário Homossexual (GLH)”, formado por
mulheres lésbicas, em 1983. Infelizmente, se tem poucas informações acerca da atuação do
“Aquarius” e do GLH. Pelos registros encontrados se depreende que esses grupos não
funcionaram por muito tempo. 188 Em compensação, o Grupo “Adé Dudu” foi responsável por
introduzir a discussão acerca da problemática de ser negro e homossexual no Brasil. Neste
sentido, torna-se de grande importância a análise da trajetória desse grupo organizado de
homossexuais negros na Bahia.
188
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA, Ano I, nº 03, abril de 1982; BOLETIM DO GRUPO GAY DA
BAHIA, Ano IV, nº 12, março de 1986. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005.
Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 31 e 128.
85
2.3 “Além de preto, bicha”: intersecções entre “raça” e sexualidade na Bahia – a fundação
do Grupo Adé Dudu
Salvador é internacionalmente conhecida como a capital mais negra do Brasil. Em
1980, o censo realizado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatísticas (IBGE) já
demonstrava que a porcentagem de negros e pardos na cidade era bem superior à da parcela
branca da população.189 Porém, na prática social, essa superioridade numérica não se convertia
em diminuição das desigualdades raciais nem em melhores condições de vida para os negros
que continuavam a sofrer com o racismo imposto por uma lógica sócio-histórica e cultural.190
Com isso, diante de um grande densidade e heterogeneidade de pessoas não-brancas em
Salvador, era de se esperar que a questão da discriminação racial fosse atravessada por outros
marcadores sociais, como as questões referentes à classe social, ao gênero e à orientação sexual.
O entrecruzamento dessas categorias heurísticas de análise da realidade social é o que muitos
cientistas sociais denominam de “interseccionalidade”. Sobre este conceito, Kimberle
Crenshaw afirma:
A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as
conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da
subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o
patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam
desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias,
classes e outras. A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca
capturar as conseqüências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais
eixos da subordinação.191
189
Segundo Wlamyra R. de Albuquerque e Walter Fraga Filho, a identidade negra no Brasil, diferentemente dos
Estados Unidos que leva em consideração a afro-descendência, é definida pela cor da pele e outros traços físicos,
sobretudo textura do cabelo. Cf. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. & FRAGA FILHO, Walter. Uma história do
negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006, p. 290.
190
Cf. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). IX Recenseamento Geral do
Brasil – 1980: Bahia. Rio de Janeiro. Vol 1. Tomo 5. Nº 15.
191
CRENSHAW, K. Documento para o encontro de especialistas em aspectos da discriminação racial relativos
ao gênero. Estudos Feministas, Florianópolis, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002, p. 177.
192
O “movimento de mulheres negras (...) surgiu da percepção de que existem especificidades na forma como
mulheres e homens sofrem a discriminação racial. Lélia Gonzalez, uma das mais importantes ativistas negras nas
décadas de 1970 e 80, foi uma das primeiras a chamar a atenção para a importância da organização das mulheres
negras. Em 1988, foi criado em São Paulo o GELEDÉS, uma organização política que tem como propósito o
86
Quatorze de março de 1981, sábado, uma casa emprestada, oito rapazes negros,
homossexuais, reunidos. Estava sendo criado o Adé Dudu – Grupo de Negros
Homossexuais, por alguns membros do MNU-Ba e outros que estavam chegando.
Duas horas de discussões concluindo conversas anteriores e decidiu-se que o grupo
deveria ser formalizado com uma Carta de Abertura, onde seriam colocados os seus
objetivos: a luta contra o racismo, contra o machismo e a eliminação do preconceito
dirigido ao homossexual negro, como também o apoio a todos oprimidos. Nesse
mesmo documento explicou-se o nome do grupo, uma maneira de chegar mais junto
às nossas raízes: Adé Dudu. Adé, forma utilizada nos terreiros de candomblé para
designar os homossexuais e Dudu, palavra que significa negro em Iorubá, idioma
falado em algumas regiões da África; muito falado em algumas localidades da
Nigéria193.
É importante notar que o Adé Dudu foi formado por indivíduos que já tinham uma
experiência no ativismo negro e homossexual em Salvador. Além de Wilson Santos, que já
militava no Movimento Negro Unificado baiano e no Grupo Gay da Bahia, destacam-se outros
membros atuantes como Edson Santos Tosta, o Passarinho, um dos primeiros a levar o problema
da discriminação dos homossexuais negros para a roda de discussão do MNU; Hamilton Vieira,
que foi um dos primeiros a sistematizar as desigualdades entre homossexuais brancos e negros
na Bahia; Ermeval, que também fazia parte do GGB; Marco e “Estevão dos Santos”, todos eles
também integrantes do MNU-Bahia.194
Todavia, desde o ano anterior, quando se fundou o Grupo Gay da Bahia, esses
militantes homossexuais negros do MNU baiano já tinham a pretensão de fundar um grupo
específico que lutasse contra a dupla opressão sofrida pelos negros homossexuais. Dessa forma,
a saída de Wilson Santos do GGB para fundar o grupo Adé Dudu, mesmo levando em
consideração as suas acusações relativas a existência de racismo dentro do grupo, não
representou necessariamente uma dissidência do GGB. 195 A fundação do Adé Dudu está mais
combate ao racismo e a valorização das mulheres negras. Cf. ALBUQUERQUE, Wlamyra R. & FRAGA FILHO,
Walter. Uma história do negro no Brasil. Salvador: Centro de Estudos Afro-Orientais; Brasília: Fundação Cultural
Palmares, 2006, p. 292.
193
SANTOS, Wilson. A Participação dos homossexuais no movimento negro brasileiro. Salvador. Adé Dudu,
mimeo, 1984, p. 39.
194
Não obtivemos informações acerca dos outros dois membros que participaram da fundação do grupo Adé Dudu.
Da mesma forma, não encontramos nas fontes documentais pesquisadas os de Ermeval e Marco. Já em relação a
“Estevão dos Santos, constatou-se que este nome se tratava de um pseudônimo.
195
MACRAE, Edward. A Construção da Igualdade: Identidade sexual e política no Brasil da “Abertura”.
Campinas-SP: Editora da UNICAMP, 1990, p. 273.
87
ligada ao surgimento de um discurso que unia a luta antirracista com o empenho em pôr fim à
discriminação homossexual. Wilson Santos destaca pelo menos dois acontecimentos como
marcos dessa irrupção prático-discursiva no Brasil: a intervenção de Passarinho, que veio a se
tornar membro-fundador do grupo Adé Dudu, em sua fala contra a discriminação sofrida pelos
negros homossexuais na Conferência sobre o “13 de maio”, ministrada pela antropóloga e
militante negra e feminista Leila Gonzalez, em maio de 1978, em Salvador, e a publicação da
matéria “Além de Preto, Bicha!”, de Hamilton Vieira, no jornal “O Inimigo do Rei”, em março
de 1979.
Em seu artigo, Hamilton Vieira levantou uma série de questionamentos com o escopo
de provar que os negros homossexuais sofriam mais discriminação que os homossexuais
brancos na sociedade baiana. Para tanto, Hamilton Vieira refutou a tese de que não havia
preconceito racial, mas meras desigualdades de ordem socioeconômica. Com isso, procurou
demonstrar, por meio de vários depoimentos de homossexuais masculinos, negros e brancos, e
de representantes da “Sociedade Malê-Cultura e Arte Negra”, que os privilégios sociais
concedidos aos homossexuais brancos em detrimento dos homossexuais negros iam desde as
ocupações profissionais até a predileção sexual dos turistas estrangeiros pelo “negro exótico”.
Segue a problemática apresentada pelo jornalista:
Ser negro é ser minoria, logo estigmatizada. Nesse contexto, como o homossexual de
cor se vê? O fato de ele ser negro não influi no aspecto da marginalização ser ainda
mais forte? Ele não sofre mais acentuadamente a repressão imposta a todos os
homossexuais devido ao fator cor? Outro aspecto a ser levantado é o seguinte:
vivemos numa sociedade onde os valores culturais predominantes são de origem
europeia. Nessa sequência de valores quase exclusivamente brancos, como se situa o
indivíduo que possui características culturais distintas das desejáveis por toda uma
sociedade? No caso por exemplo, do homossexual negro, o primeiro dado a ser
levantado é este: no nosso país, a homossexualidade é marginalizada e até vista por
muitos como uma espécie de crime. O outro dado a ser analisado é que as
características culturais do negro, principalmente no campo da estética, não
correspondem aos ideais desejáveis pela sociedade. Dentro desta engrenagem, como
se situa o homossexual negro?196
Conforme Wilson Santos, estas questões suscitadas por Hamilton Vieira, assim como
o posicionamento de Passarinho, balizaram as ações do movimento homossexual negro em
Salvador, no início dos anos 1980.197 No entanto, Santos aponta ainda um terceiro
acontecimento que, segundo ele, também teve uma influência decisiva para a fundação e
atuação do Grupo Adé Dudu. De acordo com ele, as repercussões causadas pela intervenção de
196
VIEIRA, Hamilton. Além de Preto, Bicha!. In: JORNAL O INIMIGO DO REI. Salvador. Nº 4. Ano 3, fevereiro
e março de 1979, p. 14 e 15.
197
MOVIMENTO NEGRO UNIFICADO. 1978 – 1988: 10 anos de luta contra o racismo. São Paulo: Confraria
do Livro, 1988, p. 26.
88
Passarinho, dessa vez no 1º Congresso do Movimento Negro Unificado, que ocorreu no Rio de
Janeiro, em dezembro de 1979, quando este se juntou com as mulheres do movimento para
discutir problemas específicos enfrentados pelas mulheres negras e pelos homossexuais negros
no Brasil, geraram forte impacto em quatro militantes negros do grupo Somos/SP que depois
procuraram Passarinho para demonstrar seu apoio. A partir daí esses rapazes resolveram
organizar um grupo independente que combatesse o racismo tanto fora quanto dentro do meio
homossexual. Neste intuito, fundaram o “Grupo de Negros Homossexuais (GNH)” durante uma
reunião geral do “Somos”, em 26 de junho de 1980, alegando a existência de manifestações
racistas dentro do próprio grupo. Essa militância homossexual de São Paulo teve curta duração,
aproximadamente um ano. Mas, segundo Wilson Santos, o GNH paulista serviu como uma
importante fonte de inspiração para a formação do grupo baiano Adé Dudu.
Já constituído enquanto um grupo de negros homossexuais e fazendo jus à sua dupla
militância, o Adé Dudu participou de dois encontros em abril de 1981: o I EGHON, realizado
em Olinda, já mencionado, e o 2º Congresso do MNU, realizado em Belo Horizonte. Neste
evento que reuniu a militância negra de todo o país, o grupo incluiu entre as pautas de discussão,
a questão do negro homossexual. Nesta ocasião, foram aprovadas as seguintes propostas:
Embora poucas dessas sugestões tenham sido implementadas pelo Movimento Negro
Unificado, como atesta o próprio Wilson Santos, estas propostas encaminhadas pelo Adé Dudu,
juntamente com o conjunto de reivindicações das mulheres negras que compunham o
movimento, serviram como base para que na reunião da Comissão Executiva Nacional (CEN)
para a organização do 3º Congresso do MNU que se realizaria em abril de 1982, ficasse
acordado que a questão da mulher negra e do homossexual negro deveriam ser discutida uma
plenária mais geral. No entanto, já na preparação do evento, ficou claro que a homossexualidade
negra seria apenas uma pauta acessória nesta discussão.
Este programa proposto pelo grupo Adé Dudu aos militantes negros do país foi parte
198
SANTOS, Wilson. A Participação dos homossexuais no movimento negro brasileiro. Salvador. Adé Dudu,
mimeo, 1984, p. 31.
89
das iniciativas do grupo que tinha como finalidade extinguir a discriminação homossexual
dentro do movimento negro brasileiro. Para os militantes baianos, era necessário desconstruir
a ideia de que a homossexualidade era característica de outras raças e culturas, um “vício”
branco e europeu, portanto, estranho às tradições africanas. Por esta perspectiva, os
homossexuais negros eram encarados pelo negros heterossexuais como sendo os traidores da
raça negra. Outro argumento contrário à prática homossexual entre os negros, partia da
concepção de que a homossexualidade masculina feminizava o homem negro, tornando-o
frágil. O grupo Adé Dudu procurou rebater mais esse pensamento, sustentando que associar
estritamente a masculinidade negra ao perfil do macho forte e robusto, é destinar os homens
negros ao trabalho braçal e mal remunerado. 199 Wilson Santos, em seu testemunho a respeito
da participação dos homossexuais no movimento negro brasileiro, posicionou-se da seguinte
forma:
Tenho uma posição crítica em relação à nossa participação em outras entidades negras,
embora achado muito importante. Acho que os negros homossexuais dão mais de si,
trabalham mais do que os outros membros como que para dar uma satisfação aos
outros. Se aparecer uma bicha que não tenha esta intensidade de trabalho, será mais
discriminada. Acho que muitos homossexuais buscam um reconhecimento quando se
entregam a esse trabalho árduo... Um outro fato que vem entravando a nossa atuação
é o grande número de homossexuais nas entidades negras e não assumidos, o que
prejudica a visão de um todo.200
199
SANTOS, Wilson. A Participação dos homossexuais no movimento negro brasileiro. Salvador. Adé Dudu,
mimeo, 1984, p. 21.
200
SANTOS, Wilson. Op. Cit., p. 17.
201
GRUPO ADÉ DUDU. Negros Homossexuais – Pesquisa realizada pelo Grupo Adé Dudu. Salvador: mimeo,
novembro de 1981, p. 2.
90
velado dentro dos grupos de liberação homossexual. Sobre estas atitudes consideradas racistas
por parte dos homossexuais brancos, segue um depoimento de um dos entrevistados da
pesquisa:
Conhecemos também muitos “casos” entre homossexuais negros e brancos, mas na
maioria das vezes o branco não leva o seu parceiro em determinados lugares que
frequenta, como clubes, boites, casas de amigos, parentes etc e é muito frequente
terem de esconder a existência de um relacionamento entre eles, para evitar
reprovação geral. C. S. (nº 4).202
202
GRUPO ADÉ DUDU, Negros Homossexuais – Pesquisa realizada pelo Grupo Adé Dudu. Salvador: mimeo,
novembro de 1981, p. 9.
203
GRUPO ADÉ DUDU. Op. Cit., 1981, pp. 10-12.
91
como pecadores. Na opinião de Marco, membro do grupo, isso ocorria porque os próprios
deuses da religião, os orixás, não associavam o prazer sexual ao pecado. Além disso, muitos
babalorixás eram homossexuais ou bissexuais casados com mulheres. Entretanto, “Estevão”,
outro membro do Adé Dudu, tem um olhar mais crítico acerca dessa suposta liberação e simetria
social e homossexual nos terreiros de candomblé. Segundo ele:
Acredito que existe uma tolerância muito grande com o homossexual folclórico, a
bicha que faz gracejo, atraindo a atenção dos frequentadores do Candomblé. Vejo que
não só no candomblé existe um número grande de homossexuais mas em qualquer
religião. Nas religiões cristãs a gente também observa este fato, principalmente na
católica, onde acredito que 60% dos religiosos são homossexuais. O que nos parece
ocorrer no Candomblé é que os seus homossexuais são quase sempre negros e pobres,
não tendo muita coisa a perder, e daí se exporem mais.204
204
GRUPO ADÈ DUDU. Op. Cit., p. 46.
205
Cf. FRY, Peter. Para inglês ver: identidade e política na cultura brasileira. Rio de Janeiro: Zahar Editores,
1982, p. 79.
206
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA, Ano VI, nº 13, outubro de 1986. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 149.
92
consonância com os acontecimentos que estouravam no país, Salvador vivenciou uma forte
efervescência cultural e política que permitiu a formação de identidades coletivas dispostas a
lutarem pelos direitos civis das mulheres, dos negros e dos homossexuais. No contexto
soteropolitano, essas novas identidades culturais foram propiciadas, precipuamente, pelas
inquietações do movimento estudantil da UFBa que se organizou neste período de abertura
política do Estado nacional para enfrentar a repressão da Ditadura Militar em todos seus níveis.
É neste diapasão que se constitui uma identidade coletiva homossexual na capital baiana.
Ao esmiuçar essa agitação político-cultural em torno da homossexualidade em
Salvador, embora se reconheça a existência de outros dois grupos homossexuais formados na
Bahia no decorrer do decênio de 1980, o Grupo Aquarius (Grupo de Libertação Homossexual)
e o Grupo Libertário Homossexual, formado por mulheres lésbicas, fica claro que este período
da militância homossexual em Salvador ficou mesmo marcado pelas ações do GGB e do Grupo
Adé Dudu. No entanto, a atuação do Grupo Gay da Bahia nos anos 1980, tendo em vista o
alcance das suas lutas por ampliação dos direitos civis dos homossexuais e a sua projeção no
Brasil e no exterior, merece um estudo mais detalhado, como veremos no capítulo seguinte.
93
CAPÍTULO III
SOB O SIGNO DA DOENÇA: A ATUAÇÃO DO GRUPO GAY DA BAHIA NA BUSCA
POR RECONHECIMENTO E CIDADANIA PLENA
O alerta exposto acima sobre as “causas” e “precauções” que devem ser tomadas para
evitar a homossexualidade foi publicado no Jornal “A Tarde”, em 19 de novembro de 1978.
Nesta matéria, médicos e psicólogos deixavam claro a concepção de que o homossexual era um
indivíduo atormentado por um grave “transtorno de personalidade”. Havia dúvidas sobre a
exatidão de tais “causas”, mas se atribuía às circunstâncias e influências externas e contextuais
para supostamente explicá-la e combatê-la desde a tenra infância. Observa-se, com isso, que
mesmo tendo passado um século desde o aparecimento do termo “homossexualismo”, o sujeito
tido como homossexual continuava a ser visto como um doente, um “desviante sexual”. A
homossexualidade seria uma distorção. Em compensação, esta reportagem exibida pelo jornal
baiano revelava também os sutis deslocamentos que já começavam a operar no conceito
científico de homossexualidade. Se em seu surgimento o “homossexualismo” era compreendido
como uma anormalidade congênita, um “terceiro sexo”, neste momento, a psiquiatria e a
psicologia começa a perspectivá-lo como uma falha no desenvolvimento sexual do indivíduo,
causada, sobretudo, pelo “complexo de édipo”, teoria esta formulada por Sigmund Freud. 208
Essas etiologias da homossexualidade reverberavam nas maneiras como os sujeitos
207
JORNAL A TARDE. Salvador, 19 de novembro de 1978.
208
Segundo Freud: “A gênese do homossexualismo masculino, em grande quantidade de casos, é a seguinte: um
jovem esteve inusitadamente e por longo tempo fixado em sua mãe, no sentido do complexo de Édipo. Finalmente,
porém, após o término da puberdade, chega a ocasião de trocar a mãe por algum outro objeto sexual. As coisas
sofrem uma virada repentina: o jovem não abandona a mãe, mas identifica-se com ela; transforma-se e procura
então objetos que possam substituir o seu ego para ele, objetos aos quais possa conceder um amor e um carinho
iguais aos que recebeu de sua mãe.” Cf. FREUD, Sigmund. Psicologia das Massas e a Análise do eu e Outros
textos (1920-1923). Obras Completas Volume 15. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das
Letras, 2011, p. 66.
94
209
FOLHA DE SÃO PAULO. 2º Caderno. São Paulo, 11 de novembro de 1984, p. 25.
210
Para José Murilo de Carvalho, uma “cidadania plena” seria aquela que combinasse liberdade, participação e
igualdade para todos. Conforme Carvalho: “Tornou-se costume desdobrar a cidadania em direitos civis, políticos
e sociais. O cidadão pleno seria aquele que fosse titular dos três direitos. Cidadãos incompletos seriam os que
possuíssem apenas alguns dos direitos. Os que não se beneficiassem de nenhum dos direitos seriam não-cidadãos.”
Cf. CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: O longo caminho. 11º ed. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2008, p. 9.
95
dos anos 1980, o GGB se voltou mais para a conscientização política dos homossexuais e para
a luta por reconhecimento dos seus direitos civis, enquanto na segunda metade, como
discutiremos no próximo capítulo, o grupo passou a focar mais na luta contra a discriminação
homossexual e nas ações e conquistas junto ao Estado. No entanto, ao longo desta análise,
perceberemos que, embora este corte temporal esteja em sintonia com as transformações
sociopolíticas e culturais que ocorreram no país neste período, ele serve mais para fins didáticos,
uma vez que quase todas frentes de batalhas evocadas pelo GGB atravessaram a maior parte da
década.
3.1 Uma nova postura política homossexual: o estilo de militância do Grupo Gay da Bahia
na década de 1980
Entre esses novos grupos que surgiram na década de 1970 estavam também os de
homossexuais, como foi o caso dos grupos Somos, Ação Lésbico-Feminista, Eros e Libertos de
São Paulo, o Somos e o Auê do Rio de Janeiro, o Beijo-Livre de Brasília, entre outros. No
entanto, diferentemente dessa primeira militância homossexual, o Grupo Gay da Bahia, que
surge em 1980, aproveitou-se deste novo cenário político para levar adiante muitas das
demandas suscitadas por esse primeiro movimento homossexual. Este ímpeto do grupo foi
favorecido também por uma ditadura mais “branda”, com a chegada do general-presidente João
Baptista Figueiredo ao poder, em março de 1979, e pela mobilização de novos atores políticos.
Com isso, neste momento, somam-se às ações políticas do movimento homossexual voltadas
para a sociedade civil, de contornos mais micropolíticos, um enfoque político mais
institucional, visando o Estado.
A promessa de uma nova constituição federal também agitou os diversos movimentos
sociais na busca por conquistas imediatas no início da década de 1980, muitas vezes negociadas
com os novos partidos políticos que emergiram nesse período com a revogação do Ato
Institucional Nº 2 (AI-2) que previa o bipartidarismo. “Para Tarrow, os movimentos sociais
ocorrem quando as oportunidades políticas se ampliam, quando há aliados e quando as
211
Para mais informações sobre o processo de redemocratização do Brasil pós-Ditadura Militar, ver SILVA,
Francisco Carlos Teixeira da. Crise da ditadura militar e o processo de abertura política no Brasil, 1974-1985. In:
FERREIRA, Jorge e DELGADO, Lucília de Almeida Neves (orgs.). O Tempo da Ditadura: regime militar e
movimentos sociais em fins do século XX. 2º Ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2007. (Brasil
Republicano, Vol. 4).
212
Cf. SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 1993, p. 52.
97
vulnerabilidades dos oponentes se revelam”. 213 Nesta urdidura, o GGB se empenhou em aliar
suas ações coletivas em torno da homossexualidade com as outras mobilizações coletivas que
ocorriam em todo o país. No entanto, essa visão mais imediatista e utilitarista da luta
homossexual baseada na busca por reconhecimento de direitos e conquista da cidadania plena
passou a sofrer críticas de muitos ativistas homossexuais que atuaram na década de 1970.
Muitos mais focados em uma política existencialista, estes outros militantes homossexuais
passaram a ver esse alinhamento do grupo baiano com a política de estado como uma forma de
“cooptação” ou até mesmo de “declínio” do movimento.
Para Scherer-Warren, esta ênfase na cidadania foi marcante na ação dos novos
movimentos sociais na década de 1980. Ela sustenta que “esta prática política decorre de uma
reavaliação, estimulada pelo trabalho de educadores populares junto aos movimentos, dos
princípios de legalidade e legitimidade”.214 Todavia, comenta a autora, muitas vezes este papel
de educador era confundido com o de “dono” do movimento. Ciro Flamarion Cardoso corrobora
a importância dessa função educadora ou politização desempenhada por alguns líderes de
movimentos sociais, quando este afirma que “a politização de sua sociedade consiste na
existência de uma autoridade (princípio mediador) exterior à comunidade de base”. 215 No caso
do Grupo Gay da Bahia, em seus primeiros anos, esta função educadora, ou politizadora, ficou,
notadamente, sob a responsabilidade do seu principal representante – Luiz Mott. Em entrevista
concedida, Mott discorre sobre o papel desempenhado por ele na trajetória do GGB:
213
Cf. GOHN, Maria da Glória Marcondes. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 2º ed. São Paulo: Loyola, p.
33.
214
Cf. SCHERER-WARREN, Ilse. Redes de movimentos sociais. São Paulo: Loyola, 1993, p. 55.
215
Cf. CARDOSO, Ciro Flamarion. “História e Poder: uma nova história política?”. In: CARDOSO, Ciro
Flamarion & VAINFAS, Ronaldo. Novos Domínios da História. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012, p. 38.
216
Entrevista concedida por Luiz Mott, em 23 de março de 2016.
98
Esta liderança ativa de Mott nas ações do grupo, assim como suas produções
acadêmicas e literárias sobre a homossexualidade, conferiam-lhe uma posição de “intelectual
orgânico” dentro do grupo, tal qual como foi pensado por Antônio Gramsci. 217 Vale lembrar
que, neste período, apesar dessa eclosão de grupos culturalistas identitários, pelos idos de 1970,
a concepção de movimento social estava ainda muito atrelada ao paradigma marxista de luta de
classes. Não por acaso, o próprio GGB, por muitas vezes, se autorreferencia como sendo ou
pretendendo ser um “sindicatos dos gays”. É o que fica evidente no boletim de abril de 1982:
Esta confusão entre classe social e grupo identitário era também o que norteava a luta
do Grupo Gay da Bahia contra a discriminação homossexual e pelo reconhecimento dos seus
direitos. Neste enfoque, o conquista de uma cidadania plena se apresentava como tema-central
para o grupo, o que fez com que o GGB desenvolvesse uma concepção mais antagônica na luta
pelos direitos civis dos homossexuais, apontando aliados e opositores da causa homossexual.
Da mesma forma, a produção de uma identidade coletiva homossexual e a necessidade de que
os diferentes indivíduos que desfrutavam dos prazeres com o mesmo sexo se assumissem
enquanto homossexual, passaram também a ser perspectivadas pelo GGB como uma forma de
garantir uma maior adesão unitária desses sujeitos à causa homossexual e dar mais visibilidade
aos seus pleitos. Sobre esta estratégia adotada pelo grupo, Mott se manifesta:
Nós sempre lutamos pelo coming out, pelo sair do armário, sempre estimulando as
pessoas a se assumir, como uma forma de conquistar espaços, de ter visibilidade, de
ter cidadania plena. Sempre acreditamos que era uma luta conjunta. (...) De modo que,
acreditando numa luta unificada, tanto que me opus inicialmente a subdivisão de
movimento homossexual para movimento GLS, eu achava que tinha que ser
movimento homossexual como foi por últimos anos.219
217
De acordo com Gramsci, o intelectual orgânico é proveniente do grupo social que o gerou, tornando-se seu
especialista, organizador e homogeneizador, em contraposição, ao intelectual tradicional que acredita estar
desvinculado das classes sociais. Cf. GRAMSCI, Antonio. Cadernos do cárcere: volume 2. 6ª ed. Edição e
tradução de Carlos Nelson Coutinho; co-edição Luiz Sérgio Henriques e Marco Aurélio Nogueira. Rio de Janeiro:
Civilização Brasileira, 2011; e GRAMSCI, Antonio. Intelectuais e a Organização da Cultura. São Paulo:
Civilização Brasileira, 1989.
218
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA, Ano I, nº 03, Abril de 1982. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim do
Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 29.
219
Entrevista concedida por Luiz Mott, em 23 de março de 2016.
99
enquanto homossexual, “sair do armário” (coming out), por parte dos militantes homossexuais
baianos, guardava uma forte semelhança com a noção de “consciência de classe”, preconizada
pelos marxistas. Todavia, o conceito de homossexualidade, diametralmente oposto a qualquer
suposição de uma representação transcendental, desde seu aparecimento, sempre esteve em
disputa. Segundo Deleuze, a representação é o lugar da ilusão transcendental, ela doma a
diferença.220 Dessa forma, se assumir homossexual era assumir uma ou duas, ou mais,
representações veiculadas a respeito desse referente. Com isso, a representação homossexual
privilegiada pelo Grupo Gay da Bahia era a identidade “gay”. Sobre isto, Dilton Ferreira,
membro do grupo, declara: “Queremos que nos chamem de homossexuais ou gays. Outra
expressão qualquer só faz reforçar uma convicção errônea que a sociedade tem do
homossexualismo”. 221 Essa luta por autorreferência não era puro nominalismo vazio, mas uma
declaração que privilegiava a resistência às imposições externas e pejorativas no bojo de lutas
por (auto)representações.
Embora seja óbvio que essa predileção pela identidade “gay” parte da grande
influência exercida pelo ativismo homossexual estadunidense em todo o mundo. Isso não quer
dizer que os militantes homossexuais baianos não tenham também se apropriados das múltiplas
possibilidades escamoteadas pela aparente repetição deste conceito. Uma prova disso é que o
GGB passou a ver também nesta representação uma oportunidade de deslocar uma série de
significantes e significados fixados próprios da tradição cultural brasileira. De acordo com
Mott:
220
Para Deleuze, a ilusão da representação tem quatro formas interpenetradas: a identidade do conceito, que se
reflete numa ratio cognoscendi; a oposição do predicado, desenvolvida numa ratio fendi; a analogia do juízo,
distribuída numa ratio essendi; a semelhança da percepção, que determina uma ratio agendi. Cf. DELEUZE,
Gilles. Diferença e Repetição. Tradução de Luiz Orlandi e Roberto Machado. 1ª ed. Lisboa: Editora Relógio
D´Água, 2000, p. 247.
221
JORNAL TRIBUNA DA BAHIA, Salvador, 17 de agosto de 1982.
222
JORNAL A TRIBUNA, Vitória-ES, 1 de outubro de 1982.
100
odeia a mulher”, os vistos como mais femininos por assim dizer. O pesar de Mott com a
existência de uma “pequena” parcela de homossexuais, que pudessem ser enquadrados nesta
significação da homossexualidade, que era popularmente divulgada no Brasil, revela de que
forma a identidade gay era subjetivada pelos militantes homossexuais baianos. Nesta ascética
homossexual, ser gay era ser mais “viril”, “belicoso”, por conseguinte, mais “respeitado” e
“preparado” para o enfrentamento social. Esta rigidez e melindre em torno da identidade foram
incorporados dos ideais dos movimentos negro e feminista que também serviram como
importantes referenciais teóricos para os militantes homossexuais. É partir daí que o discurso
de uma “subalternidade ativa” se torna uma importante arma na luta pela ampliação da
cidadania homossexual.
Esta nova postura política adotada permitiu ao GGB retomar e reformular uma série
de reinvindicações do movimento homossexual do final da década de 1970. Orientados sob
estes novos princípios, o grupo praticou diversas ações e publicou diversos textos informativos,
visando não apenas o fim da opressão sofrida pelos homossexuais, mas como também uma
maior consciência por parte deles de seus direitos e deveres e, por conseguinte, uma maior
visibilidade e participação no novo Estado brasileiro que estava sendo construído. Assim, a
ênfase em um devir “revolucionário” que marcou a primeira fase do movimento homossexual
brasileiro foi deixado de lado e o grupo adotou uma postura política mais pragmática,
direcionada, sobretudo, para os ganhos políticos junto ao Estado. Mas isso ocorreu sem deixar
de lado as ações de enfrentamento no interior da sociedade civil.
Dessa forma, estas práticas e representações produzidas pela militância homossexual
baiana, sobretudo, sob a égide do Grupo Gay da Bahia, nos anos 1980, revelou-se como um
confisco do poder, um “saber dominado”223 que se levanta contra os dominantes. Para Foucault
(1979), este é o grande jogo da história, o apoderamento de regras, “utilizá-las e voltá-las contra
aqueles que as tinham imposto”. Neste sentido, a luta pela despatologização da
homossexualidade, o combate à violência diária sofrida pelos homossexuais, a defesa dos
territórios e das práticas homoeróticas, as manifestações contrárias à imposição de uma
representação homossexual subalterna e as campanhas contra a epidemia do HIV/AIDS, nos
meados da década de 1980, foram reintroduzidas no campo social e introduzidas nas questões
223
Termo utilizado por Foucault “para designar uma série de saberes que tinham sido desqualificados como não
competentes ou insuficientemente elaborados: saberes ingênuos, hierarquicamente inferiores, saberes abaixo do
nível requerido de conhecimento ou de cientificidade.” (...) Trata-se de uma insurreição de saberes locais,
descontínuos, desqualificados, não legitimados, contra a instância teórica, unitárias que pretendia depurá-los,
hierarquizá-los, ordená-los em nome de um conhecimento verdadeiro, em nome dos direitos de uma ciência detida
por alguns”. Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio
de Janeiro: Edições Graal, 1979, p. 170 e 171.
101
de Estado tendo o Grupo Gay da Bahia como um dos principais atores sociais e porta-vozes
desse discurso. Para os militantes gays baianos era “a hora e a vez” dos homossexuais. Cabe
agora, portanto, analisarmos de forma mais detalhada como se deu essa militância homossexual
do GGB ao longo dos anos 1980.
3.2 “Heterotopias”: relações entre o GGB e o “gueto” homossexual em Salvador nos anos
1980
Esta nova postura política assumida pelos militantes homossexuais baianos deu a
tônica da relação do Grupo Gay da Bahia com os frequentadores dos espaços de
homossociabilidade em Salvador nos anos 1980. Na busca por uma maior conscientização
política por partes dos homossexuais, o GGB passou a mapear as áreas de maior concentração
pessoas que praticavam sexo e trocavam afetos entre iguais na capital baiana. Este interesse já
estava presente desde a fundação do grupo, quando definiu como sendo um dos seus principais
objetivos: “atingir o maior número de possível de homossexuais, conscientizando-os da
necessidade de se organizarem e defenderem seus direitos de pessoas humanas normais, com
os mesmos direitos legais dos demais cidadãos”. 224
Tal preocupação do grupo com esses territórios de sociabilidade homossexual partia
da concepção que a existência desses espaços delimitados, por si só, evidenciava a negação dos
direitos dos homossexuais. No entanto, esta constatação, ao invés de servir para distanciá-los
dos guetos gays da cidade, negando sua importância na luta por uma cidadania plena
homossexual, impulsionou-os ainda mais a lutarem pelo seu fortalecimento e ampliação, tendo
em vista uma maior ocupação da cidade por aqueles que desfrutavam dos prazeres com o
mesmo sexo. “A cidade é o espaço próximo e possível da luta. Discrimina-os, mas também ela
pode ser reapropriada por suas ações coletivas que a reconstroem dando-lhes novos usos e
significados”.225
Estes “outros espaços” da cidade de Salvador – “heterotopias”226 – foram
224
Cf. MOTT, Luiz. A cena gay de Salvador em tempos de Aids. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2000, p.
31.
225
Cf. GOHN, Maria da Glória Marcondes. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 2º ed. São Paulo: Loyola, p.
122.
226
Foucault define “heterotopia” como sendo os espaços de contraposicionamentos reais. Para ele: “Há,
igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer civilização, lugares reais, lugares efetivos,
lugares que são delineados na própria instituição da sociedade, e que são espécies de contraposicionamentos,
espécies de utopias efetivamente realizadas nas quais os posicionamentos reais, todos os outros posicionamentos
reais que se podem encontrar no interior da cultura estão ao mesmo tempo representados, contestados e invertidos,
espécies de lugares que estão fora de todos os lugares, embora eles sejam efetivamente localizáveis.” Cf.
102
cartografados pelo Grupo Gay da Bahia na primeira edição do “Guia Gay da Bahia”, publicado
em 1981. Neste informativo, já analisado no capítulo referente a “Salvador dos homossexuais”,
o GGB procurou identificar os espaços utilizados pelos amantes do mesmo sexo na cidade –
“lugar praticado”, numa acepção certeauniana – para a prática de homossociabilidade e
homoerotismo.
A cartografização de territórios e estabelecimentos ocupados por homossexuais em
Salvador, nos início dos anos 1980, foi o que permitiu ao Grupo Gay da Bahia desempenhar
uma série de ações voltadas para uma maior politização da homossexualidade na capital baiana.
Não obstante, muitas vezes, estas relações eram marcadas não apenas por solidariedades, mas
como também por conflitos.
A atuação do Grupo Gay da Bahia nesses espaços urbanos dominados pelos amantes
do mesmo sexo se dava de diversas formas, mas sempre tendo como objetivo “conscientizar”
seus frequentadores da necessidade de lutar pelos seus direitos e tentando suprir suas diferentes
“carências”, por se tratar de um grupo tão heterogêneo. Nesta finalidade, o GGB manteve um
diálogo com os guetos homossexuais de Salvador, realizando manifestações político-culturais,
distribuindo panfletos ou informativos acerca dos direitos civis ou negação deles para a
comunidade homossexual, pichando em muros frases de conteúdos valorativos sobre a
homossexualidade, coletando assinaturas para abaixo-assinados, que visavam à alteração ou a
promulgação de leis, e prestando serviços sociais ou defendendo gays, lésbicas e travestis das
agressões praticadas por policiais militares e outros indivíduos que destilavam seu ódio contra
esses sujeitos. Estas ações do grupo nas áreas de maior concentração de homossexuais em
Salvador, principalmente no que tange ao combate à violência, são relatadas por Marcelo
Cerqueira. Segundo seu depoimento:
A atuação do GGB, ela se dava, especialmente, porque naquela época havia muita
repressão a travestis, a homossexuais. Então, era uma época que ainda existia a tal
Delegacia de Jogos e Costumes, então muitos travestis e gays eram presos porque não
tinha a carteira de trabalho assinada nas mãos. [...] E, na delegacia, eram presos
justamente por estarem na rua, acusados como vadiagem. Na delegacia eram
obrigados a fazer faxina de banheiro, limpeza da delegacia, cozinhar e, muitas vezes,
prestar serviços sexuais a outros presos e a outros indivíduos. Tínhamos uma ação
muito presente nos “Beco dos Artistas”, num dos primeiros bares chamado “Cactus”,
no “Zamzibar” também, na Federação, um bar lésbico, também a gente tinha muita
ação lá e na antiga “Boate Tropical”, que funcionava na Rua do Pau da Bandeira. Era
muito comum nessa época a polícia entrar nas boates e mandar acender as luzes e
diziam “caçador de um lado e veados de outro”. E era horrível porque era um acinte
aos direitos humanos. Então, o GGB lutou muito, batalhou muito, brigou muito com
FOUCAULT, Michel. Outros Espaços. In: Estética: literatura e pintura, música e cinema. Organização de Manoel
Barros da Motta. Tradução de Inês Autran Dourado Barbosa. 2ª Ed. Rio de Janeiro: Fonte Universitária, 2009, p.
415.
103
a polícia, durante muitos anos e situações como essas hoje não ocorrem, graças a essa
ação que a gente fez.227
Observa-se assim que os gays e as travestis ao chegarem na DJC, além de terem seus
desejos e práticas sexuais condenados por esses policiais, passam a ser oprimidos também por
reproduzirem o papel de gênero feminino. A distinção entre “caçadores” e “veados” parece
indicar exatamente uma lógica dicotômica e essencializada capaz de (des)legitimar sujeitos,
esvaziando-os de direitos e liberdade de ação. Embora ambos estivessem sujeitos à repressão,
é inegável a discriminação mais acentuada aos sujeitos homossexuais efetiva ou supostamente
considerados não-masculinos e não-ativos. Reforça-se, com isso, o grau de subalternização e
privação de direitos no qual estes sujeitos estavam expostos ao buscarem interagir com o mesmo
sexo na cidade Salvador.
Com a transferência da sede do grupo para a Barroquinha, em 15 de abril de 1982, o
Grupo Gay da Bahia começou a conviver e combater as cenas de abuso e agressões sofridas por
homossexuais mais de perto. Isso ocorria porque na frente das novas instalações do grupo ficava
um banheiro público que era frequentemente utilizado por indivíduos que buscavam desfrutar
dos prazeres com o mesmo sexo. No Brasil, a prática de relações sexuais em público era (e
ainda é) considerada ilegal, crime de ato obsceno.228 Respaldado nessa lei, e em seus próprios
preconceitos, muitos policiais constrangiam, agrediam e prendiam vários frequentadores desse
local. Diante das arbitrariedades do poder policial, o GGB atuou como um defensor dos
frequentadores desse sanitário público. Em carta publicada pela redação do jornal “Tribuna da
Bahia”, os militantes homossexuais baianos denunciam esses abusos:
“Art. 233. Praticar ato obsceno em lugar público, ou aberto ou exposto ao público. Pena – detenção, de 6 (seis)
228
meses a 2 (dois) anos, ou multa. Cf. BRASIL. Código Penal. Decreto-Lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940.
Vade mecum. São Paulo: Saraiva, 2015.
104
discrição.229
No dia 28 de setembro, no Teatro Vila Velha, foi realizado o “2º Concurso da Beleza
Gay” com o tema “Gay Paris”. O GGB aproveitou a oportunidade para questionar a
229
JORNAL TRIBUNA DA BAHIA, Salvador, 09 de dezembro de 1982.
230
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA, Ano II, nº 04, Setembro de 1982. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 48
231
Entrevista concedida por Luiz Mott, em 23 de março de 2017.
105
validade de tais concursos numa carta aberta a toda a população e especialmente aos
gays: “Há vários anos que as mulheres conscientes se recusam ser meros objetos de
consumo da sociedade machista, denunciando a caretice dos concursos de miss. Não
obstante ainda hoje as bichas insistem em eleger a miss Brasil-Gay, a miss Cacau-
Gay, etc.” A carta prossegue afirmando: “Um concurso de travestis pode até ter uma
importância política na medida em que as bichas usassem de seu travestismo para
criticar a rigidez da divisão sexual dos papéis, roupas, etc. Infelizmente, nem sempre
isto é lembrado”.232
Estes conflitos desvelavam mais uma vez as disputas de representações que rondavam
o conceito de homossexualidade entre os amantes do mesmo sexo, deixando transparecer assim
uma dicotomia que tinha, de um lado, os “respeitáveis militantes”, e do outro, as “bichas
loucas”. No artigo “Os Respeitáveis Militantes e as Bichas Loucas”, publicado originalmente
em 1982, Edward MacRae denuncia este distanciamento dos primeiros militantes
homossexuais, provenientes de camadas mais intelectualizadas da sociedade, dos diversos
frequentadores dos guetos homossexuais, vistos por estes como “alienados”. Esta polarização
ficou evidente quando, em 1981, o Grupo Gay Da Bahia enviou um artigo para o Jornal
“Lampião da Esquina”, porta-voz do MHB em sua primeira fase, para noticiar o 1º Encontro
de Grupos Homossexuais Organizados do Nordeste. Segundo MacRae, o texto escrito pela
militância baiana carregado de palavras de ordem como “au au au é legal ser homossexual”,
“ado ado ado ser viado não é pecado”, entre outras, gerou um mal-estar nos editores do jornal
que buscavam construir nas páginas do seu periódico uma outra representação da
homossexualidade, muito mais respeitável e distante das veiculadas na grande mídia e
encarnada pelos frequentadores dos guetos homossexuais.
Observa-se com isso que, a despeito de algumas críticas, diferentemente da
experiência da militância do Grupo “Somos-SP”, o Grupo Gay da Bahia, em certa medida,
assimilou como tática política a “fechação” praticada pelos frequentadores do gueto, que eram
popularmente conhecidos como “bichas”, e que tanto contrariava o movimento homossexual
paulista. Isso ocorreu também porque, segundo Mott, com exceção da maioria dos seus
membros-fundadores que eram estudantes universitários, professores, jornalistas e profissionais
liberais, o GGB sempre foi constituído por pessoas pertencentes às camadas mais humildes
economicamente da sociedade.
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano I, nº 2. Outubro de 1981. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim do
232
Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 17.
106
chamado “correio nagô, pelas atividades que fazíamos, e sempre tínhamos um folheto
que até hoje é disponível, um quarto de página – “Dez verdades sobre a
homossexualidade” – em que discutíamos os aspectos fundamentais que não é [a
homossexualidade] pecado, não é crime, não é doença e etc, e sempre com o endereço
convidando as pessoas.233
233
Entrevista concedida por Luiz Mott, em 23 de março de 2017.
234
Cf. DELEUZE, G. & GUATTARI, F. O que é uma literatura menor? In: ____. Kafka: Por uma literatura menor.
Tradução Castanon Guimarães. Rio de Janeiro: Imago, 2003, p. 28 e29.
235
Cf. SADER, Eder. Quando novos personagens entraram em cena: Experiências, falas e lutas dos trabalhadores
da Grande São Paulo (1970-80). São Paulo: Paz e Terra, 2ª ed., 1988, p. 58.
236
Cf. Os Respeitáveis Militantes e as Bichas Loucas. In: COLLING, Leandro (org.). Stonewall 40 + o que no
Brasil. Salvador; EDUFBa, 2011. (Coleção Cult, n. 9), p. 33 e 34.
107
pode ser entendido como uma forma de resistência à politização da homossexualidade sob a
égide dos movimentos homossexuais, vista como tão necessária para conquista da cidadania
plena, sobretudo, por partes dos militantes baianos do GGB. No contraponto desta ideia de
politização em torno de uma identidade coletiva homossexual pré-definida, o ato de
desmunhecar pode ser perspectivado então como um ato político de reinvindicação de si, uma
tática de recusa de uma consciência externa e “superior”, uma forma de não se alienar de si
mesmo. Para Foucault, quando a politização ocorre a partir das práticas particulares de cada
sujeito, através de experiências concretas e imediatas, pode-se produzir toda uma teia de saberes
que se estende “de um ponto de politização para outro” – redes de intelectuais específicos –,
evitando assim a figura do “intelectual orgânico”, provedor de uma consciência política.237
Nesta perspectiva, a “fechação” de muitos homossexuais não seria uma forma de negar a
importância desses movimentos sociais, mas sim de criticar seus modi operandi.
Estas relações entre a militância homossexual e os homossexuais não-organizados
adquirem novas feições a partir da segunda metade da década de 1980, devido a confirmação
dos primeiros casos de contágio do vírus do HIV/AIDS no Brasil. Não obstante, esta discussão
está reservada para o próximo capítulo.
Uma das primeiras lutas encampadas pelo Grupo Gay da Bahia logo depois da sua
fundação foi a campanha pela despatologização da homossexualidade no Brasil. Pensando em
tirar vantagem do processo de redemocratização que estava ocorrendo no país, o GGB iniciou
uma mobilização nacional pela revogação do parágrafo 302.0 do Código de Saúde do” Instituto
Nacional de Assistência Médica e Previdência Social (INAMPS)” que rotulava a
homossexualidade como “desvio e transtorno sexual”.
Antes de qualquer coisa, vale lembrar que a sinonímia entre homossexualidade e doença
é bem anterior às décadas de 1970 e 1980, e não era uma particularidade da saúde pública
brasileira. Neste trabalho, já vimos que a própria emergência do conceito de homossexualidade
é resultado de um dispositivo médico-legal. Por isso que, para Foucault, a invenção do conceito
de homossexualidade se inscreve entre as “verdades” produzidas pela clínica médica no século
XIX.238
237
Cf. FOUCAULT, Michel. Microfísica do Poder. Tradução e Organização de Roberto Machado. Rio de Janeiro:
Edições Graal, 1979, p. 170 e 171, p. 9.
238
“A clínica não é um instrumento para descobrir uma verdade ainda desconhecida; é uma determinada maneira
de dispor a verdade já adquirida e de apresentá-la para que ela se desvele sistematicamente.” Cf. FOUCAULT,
108
Assim, a homossexualidade antes vista como pecado ou crime, passou a ser classificada
também, desde os anos novecentistas, como uma doença. Segundo Ruy Laurenti, em seu
editorial intitulado “Homossexualismo e a Classificação Internacional de Doenças”, publicado
na “Revista de Saúde Pública”, em 1984, o “homossexualismo” foi incluído na Classificação
Internacional de Doenças (CID) da Organização Mundial de Saúde (OMS) a partir da sua 6a
Revisão, em 1948, na Categoria 320 “personalidade patológica”, por ser considerado um
“desvio sexual”. Esta categorização foi revista na 8a Revisão, em 1965, na qual o
homossexualismo passou a ser compreendido como pertencente a Categoria 302 "desvio e
transtornos Sexuais", mais especificamente, na subcategoria 302.0 – “Homossexualismo”. Com
a 9a Revisão, em 1975, manteve-se a homossexualidade na mesma classificação. Não obstante,
nesse período, muitos psiquiatras, principalmente dos Estados Unidos, já refutavam esta
disposição. Desse modo, Laurenti ressalta que a OMS incluiu a seguinte orientação sobre este
código: "Codifique a homossexualidade aqui seja ou não a mesma considerada transtorno
mental”.239
A partir da inclusão desta nota na 9ª Revisão da CID, o saber médico que concebia a
homossexualidade como doença, até então encastelado em sua “verdade”, passa a sofrer
diversos ataques dentro do próprio campo da medicina, como também da psicologia. Da mesma
forma, os ativistas homossexuais passaram a reivindicar a revogação desse código 302.0 por
entender que essa patologização reforçava a série de atribuições negativas direcionadas àqueles
que desfrutavam dos prazeres com o mesmo sexo e era responsável por conferir a eles um status
quo de subcidadão, categoria inferior dentro da estruturação social. Outrossim, foi a partir desta
concepção que as primeiras organizações homossexuais brasileiras puseram em prática uma
campanha pela despatologização da homossexualidade no Brasil e no mundo no final da década
de 1970 e nos anos 1980.
No país, a luta contra a sinonímia entre homossexualidade e doença se inicia ainda nessa
primeira onda do Movimento Homossexual Brasileiro, impulsionada, sobretudo, pela parceria
entre o Jornal “Lampião da Esquina” e o grupo “Somos-SP”. Essa aliança culminou na
organização do Encontro de Homossexuais Militantes, em dezembro de 1979. Este evento foi
o pontapé inicial da campanha do MHB pela despatologização da homossexualidade em
território nacional. Já em abril de 1980, ocorreu o I Encontro de Grupos Homossexuais
Michel. O Nascimento da Clínica. Tradução de Roberto Machado. Rio de Janeiro: Editora Forense-Universitária,
1977, p. 66.
239
Cf. LAURENTI, Ruy. “Homossexualismo e a Classificação Internacional de doenças”. Rev. Saúde Pública,
vol.18, nº 5, São Paulo, Outubro de 1984.
109
Entretanto, essas deliberações não foram levadas adiante pelo Somos-SP que devido as
dissenções internas, dissolveu-se de vez no ano de 1982. A partir daí o Grupo Gay da Bahia que
já estava em funcionamento desde 1980, capitaneou de vez essa luta. Pensando em se
oportunizar do processo sociopolítico e cultural que estava ocorrendo no país, o GGB iniciou
uma mobilização nacional pela revogação do parágrafo 302.0 do Código de Saúde do INAMPS
que rotulava a homossexualidade como “desvio e transtorno sexual”. Aproveitando a realização
da reunião anual da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência que ocorreu em julho de
1981, em Salvador, o grupo organizou diversas manifestações contra a discriminação
cientificista da homossexualidade. Tais atividades tinham também como objetivo ampliar a
visibilidade da causa gay. Isso devido à presença da grande imprensa no evento e o apoio de
parte da sociedade científica e civil se mostraram favorável a despatologização da
homossexualidade, por meio de um abaixo-assinado. De acordo com o boletim informativo do
GGB:
240
JORNAL LAMPIÃO DA ESQUINA. Rio de Janeiro. Ano 2. Nº 24, maio de 1980, p.7.
110
introduzida pelos gays; fomos alvo de ameaça terrorista; conseguimos mais de 4 mil
assinaturas contra o §302.0 do INAMPS; aceitamos o desafio e saímos vitoriosos num
debate de improviso com um padre católico sobre o tema “a verdade sobre o sexo”.241
Em tom ufanista, o grupo pôde ainda comemorar a aprovação por unanimidade por parte
dos cientistas membros da SBPC de uma moção que comprometia a direção do órgão a lutar
contra o código de saúde que associava à homossexualidade a doença. A campanha ganhou
ainda mais impulso depois do envio de uma carta-protesto, intitulada “Mais cuidado com os
gays”, em outubro de 1981, direcionada ao Ministro da Previdência Social Dr. Jair Soares. Tal
iniciativa foi uma resposta às declarações moralistas do Dr. Newton Guimarães, diretor da
Faculdade de Medicina da UFBA, que afirmou no “Jornal A Tarde”, em janeiro de 1981, que
os homossexuais eram os principais responsáveis pelo aumento das doenças venéreas no Brasil.
A partir desse momento o Grupo Gay da Bahia fez um levantamento da incidência de doenças
venéreas na comunidade homossexual de Salvador. Para isso, disponibilizou médicos e
investigou arquivos da Delegacia de Jogos e Costumes de Salvador, pois além de informações
gerais, essas fichas também indagavam acerca da ocorrência de doenças venéreas. De acordo
com o dossiê formulado pelo grupo, tendo o Pelourinho como amostra, esta pesquisa revelou
que 90% dos homossexuais dessa região, de um universo de 131 informantes, nunca foram
portadores de doenças venéreas.
Independentemente da validade ou não deste resultado por se tratar de uma pesquisa
feita pela militância homossexual, tal estatística fez com que o GGB fundamentasse ainda mais
as posições do movimento homossexual brasileiro contra o parágrafo 302.0. Segue abaixo um
trecho da carta direcionada ao ministro:
O fragmento escrito todo em letras maiúsculas, assim como no original, revela o anseio
do grupo acerca dessa questão. Com toda esta agitação, a polêmica sobre o caráter patológico
ou não da homossexualidade adentrou diversos segmentos da sociedade baiana e brasileira.
241
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano I. Nº 1. Agosto de 1981. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim do
Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 10.
242
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano I. Nº 2. Agosto de 1981. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op. Cit., p.
25.
111
Era o primeiro indício que o movimento homossexual poderia sair com vitória desta
empreitada. A resposta de um representante do governo acenou para um novo tipo de relação
entre o MHB e o Estado, tendo como principal agente na busca por esse emparelhamento o
Grupo Gay da Bahia, com suas ações coletivas e visibilidade alçada nos primeiros anos da
década de 1980. Outrossim, é salutar destacar que 1982 foi um ano marcante no processo de
redemocratização do país, pois é neste momento que ocorreu as primeiras eleições diretas pós-
regime militar para governador, senador, deputados, prefeitos e vereadores em todo os estados
da federação. A partir daí, a discussão em torno da despatologização da homossexualidade
adquire contornos mais institucionais. É neste momento que se inicia os primeiros diálogos
entre o GGB e os partidos políticos que começavam a despontar o cenário nacional. Sem
embargo, estas relações eram vistas pelo grupo com desconfianças.
Para o Grupo Gay da Bahia, independentemente dos interesses dos partidos de oposição
e do governo militar, era importante aproveitar as brechas deste novo cenário político que se
apresentava na primeira metade da década de 1980. Partindo dessa concepção, o grupo sentou
com candidatos dos recém-fundados partidos políticos de oposição como o PT (Partido dos
Trabalhadores) e o PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro). Entre esses se
destacam os candidatos Emiliano José e Sérgio Santana, pelo PMDB, e José Sérgio Gabrielli
que, filiado à plataforma nacional do PT, incluía a defesa dos homossexuais em sua campanha.
Levando em consideração o seu uso estratégico destes partidos e evidenciando seu desejo de
apartidarismo, o GGB traçou suas condições para aqueles que pretendiam apoiar a causa “gay”.
A principal imposição era que o candidato apoiasse a luta pela remoção do parágrafo 302.0 do
Código de Saúde do INAMPS. Como fica evidente na transcrição de um boletim informativo
do grupo:
243
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA, Ano I, Nº 3, abril de 1982. Cf. Boletim do Grupo Gay da Bahia:
1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p27.
112
A partir daí, a luta pela despatologização da homossexualidade se trava cada vez mais
no campo da macropolítica. Destaca-se também neste período a parceria do GGB com o
militante gaúcho João Antônio Mascarenhas que teve participação crucial no processo de
institucionalização do grupo, disponibilizando seus serviços de advogado e prestando
consultoria na luta pela obtenção do registro do “Grupo Gay da Bahia”. Com isso, o GGB se
tornou o primeiro grupo homossexual a obter o registro de sociedade civil sem fins lucrativos,
em 24 de janeiro de 1983.245
O ano de 1984 iniciou-se com a celebração do movimento homossexual em todo o
mundo como o “ano gay internacional”. Nesta onda de celebração, e com a vitória na luta pelo
reconhecimento jurídico do grupo, o Grupo Gay da Bahia retoma com toda força a campanha
pela extinção do parágrafo 302.0 do Código de saúde do INAMPS. Foi neste ano que ocorreu
também o II EGHO, entre os dias 13 e 15 de janeiro, em Salvador. Neste encontro, foi
evidenciada novamente a prioridade a ser dada à luta pela despatologização da
homossexualidade. Em julho, mais uma vez, os militantes homossexuais de todo o Brasil
participaram da reunião anual da SBPC que ocorria neste ano em Belém, no Pará. Em agosto
deste mesmo ano, o GGB distribuiu uma circular, intitulada “Todos devem Protestar”, exigindo
do Ministro da Saúde a desvinculação entre homossexualidade e doença. Este documento foi
composto ainda por diversas cartas de protesto de vários militantes internacionais. Neste
momento, alguns países, devido à pressão dos movimentos homossexuais locais, já tinham
retirado a homossexualidade do seu código de doença, como foi o caso da Noruega e Canadá.246
Em 1985, a campanha pela extinção do parágrafo 302.0 do código de Saúde do INAMPS
que rotulava a homossexualidade como desvio e transtorno sexual já contava com o apoio de
importantes associações científicas do país, como a Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência, a Associação Brasileira de Antropologia, a Associação Brasileira de Estudos
244
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano II. Nº 4. Setembro de 1982. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 46.
245
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA, Ano II, nº 06, março de 1983. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op. Cit.,
2011, p. 65 e 66.
246
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano III. Nº 08. Janeiro de 1984. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 89.
113
Com todas essas adesões e significativo apoio popular com mais de 16 mil assinaturas,
finalmente aos 9 de fevereiro de 1985, o Conselho Federal de Medicina atendeu nossa
reivindicação, deixando a homossexualidade de ser enquadrada no código 302.0 e
passando para o código 2062.9, “outras circunstâncias psicossociais”, ao lado do
“desemprego, desajustamento social, tensões, psicológicas”. Como o “CID” inclui
também códigos não relativos a doenças, os quais servem unicamente para codificar
motivos de atendimento médico, a partir de então a homossexualidade deixou de ser
considerada “desvio e transtorno sexual”, para tornar-se apenas uma estatística do
atendimento médico. Assim sendo, não há mais nenhuma lei, nem código no Brasil
que se refira à homossexualidade como “patologia”. Portanto é legal ser homossexual,
é saudável ser homossexual. Nossos agradecimentos a todos que com sua assinatura
e empenho colaboraram com o GGB nesta histórica vitória.249
247
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano III. Nº 09. Julho de 1984. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op. Cit.,
2011, p. 97.
248
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano IV. Nº 10. Janeiro de 1985. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op. Cit.,
2011, p. 114.
249
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano IV. Nº 11. Julho de 1985. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op. Cit.,
2011, p. 118.
114
com que os amantes do mesmo sexo no Brasil não tivessem um alvo na luta pelo fim da
inferiorização. Com a organização do MHB na década de 1970, os grupos organizados se
voltaram contra o Código de Classificação de Doenças da OMS. Pela primeira vez, os
homossexuais estavam diante de uma luta com trincheiras estabelecidas de ambos os lados. A
conquista do Movimento Homossexual Brasileiro em relação à extinção do parágrafo 302.0
Código do INAMPS se antecipou em muito a despatologização da homossexualidade no plano
internacional, que só ocorreu em 17 de maio de 1990.
No entanto, o ano de 1985 marcou também o início de uma nova batalha. Neste ano,
espalhou-se por todo país a notícia de uma doença que matava, sobretudo, os gays. A chegada
do HIV/AIDS no Brasil, desde 1982, e o grande número de vítimas homossexuais sinalizou
mais uma vez para a sinonímia entre homossexualidade e doença. Apesar da relutância da
militância em se envolver com tal questão, devido ao medo da morte e da estigmatização, sua
atuação foi de significativa importância no combate a essa epidemia. Para isso, as relações
estabelecidas com o Estado nesta primeira metade da década de 1980, na luta pela
despatologização da homossexualidade, possibilitaram um diálogo profícuo entre governo e o
movimento homossexual. Pois, ao invés de serem visto como doentes sentenciados à morte, os
homossexuais passaram a ser concebidos, sobretudo, devido a atuação da militância
homossexual, como “grupo de risco”. Atribuindo, assim, ao Estado a devida responsabilidade
de garantir as condições para uma dignidade humana, como proteção social e saúde pública.
Não obstante, esta discussão será melhor aprofundada no próximo capítulo.
Com isso, neste primeiro momento, já podemos traçar algumas diferenciações
norteadoras entre a atuação dos primeiros grupos organizados de homossexuais que surgiram
no final da década de 1970 e o GGB que adotou uma nova postura política homossexual muito
mais pragmática e multidirecionada, tendo como alvo tanto a sociedade civil quanto o Estado.
Nesta linha, o grupo focou na consolidação de uma identidade coletiva homossexual que desse
mais coesão e visibilidade às causas do movimento. Dessa forma, o ato de “se assumir”
enquanto homossexual, o coming out, passou a ser incentivado pelo grupo como sendo uma
forma de demonstração de consciência política por parte dos amantes do mesmo sexo. Neste
sentido, a identidade “gay” passou a ser perspectivada por esses militantes baianos como sendo
a representação da homossexualidade mais “respeitável” e “preparada” para a luta política e
social.
Da mesma forma, pudemos perceber que esse novo estilo de militância homossexual
praticado pelo GGB a partir dos anos 1980, diferenciou-se ainda da experiência dos primeiros
militantes homossexuais brasileiros por estabelecer, dentre outras estratégias, uma maior
115
aproximação com o gueto homossexual, o que permitiu ao grupo absorver em alguma medida
práticas de “fechação” como tática política. No entanto, este diálogo do militantes baianos com
os demais integrantes da comunidade homossexual soteropolitana, não impediu, por outro lado,
que cessassem os conflitos em torno das representações da homossexualidade.
Por último, destacamos ainda nesse primeiro momento, a atuação do GGB na
campanha pela despatologização da homossexualidade no Brasil. Nesta luta, o GGB se valeu
do processo de redemocratização do Estado nacional para obter apoio e vantagens políticas por
parte de líderes e agremiações partidárias que vinham se reorganizando ou surgindo no país
neste período. A vitória na luta pela revogação do parágrafo 302.0 do Código de Saúde do
INAMPS que rotulava a homossexualidade como “desvio e transtorno sexual”, foi encarada
pelo grupo gay baiano como um avanço na luta pelo reconhecimento dos direitos civis dos
homossexuais. Além disso, esta conquista também serviu para mitigar os sentidos atribuídos à
homossexualidade, como a concepção do homossexual enquanto doente. Todavia, como
veremos a seguir, outras incursões no real provocadas pelo surto do HIV/AIDS, em meados da
década de 1980, abalaram esta operação, exigindo por parte do MHB novas respostas à antiga
sinonímia entre homossexualidade e doença, bem como às demais significações que serviam
para subalternizar o ser homossexual.
116
CAPÍTULO IV
SOB O SIGNO DO CRIME: O GRUPO GAY DA BAHIA E A LUTA PELA
AMPLIAÇÃO DA DEMOCRACIA NO BRASIL
250
JORNAL A TARDE, Salvador, 27 de abril de 1973, p.1.
251
JORNAL A TARDE, Salvador, 22 de janeiro de 1974, p. 1.
117
não do crime, o mais importante é notar que neste período, mesmo não havendo em todo o
século XX, no Brasil, nenhum tipo penal que imputasse qualquer pena para os amantes do
mesmo sexo, a homossexualidade ainda era vista pela maioria da sociedade como predicado de
culpabilidade criminal. O discurso do jornal, pondo lado a lado o “homossexualismo” e o tráfico
de tóxicos como dados circunstanciais ligados ao assassinato de Dilma, passava um recado
claro para a sociedade da época de que a homossexualidade estava estreitamente associada à
atividade criminal. Fica claro então que, para grande parte da imprensa e da sociedade brasileira
como um todo, a prática homossexual, vista como anormal, tornava o indivíduo susceptível a
cometer atos delituosos.
Neste esteio, a análise dessas matérias publicadas no “A Tarde” permite perceber
também o tratamento que a maior parte da imprensa dispensava ao homossexual na década de
1970, bem como as representações da homossexualidade veiculadas nestas mídias. Todo esse
enredo em torno do assassinato de Dilma, apontada como uma mulher lésbica, e as suspeitas de
uma possível motivação homossexual neste crime, revelava não somente o preconceito que
imperava na sociedade em geral, como também a postura discriminatória contra os
homossexuais adotada pelo próprio jornal.
Tendo em vista pôr fim a estes preconceitos contra os homossexuais produzidos e
reproduzidos pela grande mídia nacional, o Grupo Gay da Bahia, ainda nos seus primeiros anos,
travou diversas batalhas contra esses veículos de comunicação. A respeito da associação que
estes faziam entre homossexualidade e criminalidade, o GGB tratou de enviar uma carta de
protesto à redação do jornal “A Tarde”, criticando a exposição seletiva da “preferência sexual”
do acusado de crime ou do criminoso apenas quando esses eram identificados enquanto
homossexuais. Para os militantes homossexuais baianos, o jornal se valia da curiosidade e do
preconceito homossexual de grande parte de seus leitores, como podemos observar no caso do
assassinato de Dilma, para vender mais exemplares252.
Estes embates do GGB contra as representações consideradas negativas da
homossexualidade, que circulavam na grande mídia, inscrevem-se num plano de ações maior
proposto pelo grupo que tinha como direcionamentos a luta contra as diferentes formas de
discriminação homossexual e a busca pelo reconhecimento dos direitos desses sujeitos. Na
segunda metade da década de 1980, com o fim da Ditadura Civil-Militar e o movimento pela
Constituinte, encaminha-se no Brasil um projeto de Estado Democrático de Direito. O Grupo
Gay da Bahia passa então dimensionar suas ações e focar suas conquistas numa relação mais
252
JORNAL A TARDE, Salvador, 21 de abril de 1982.
118
próxima com o Estado. Paralelamente, é neste período também que o contágio do vírus
HIV/AIDS chega em sua fase mais aguda no país, atingindo, sobretudo, os sujeitos que
praticavam sexo entre iguais. O enfrentamento a essa epidemia exigiu assim novas alianças e
demandas por parte do Movimento Homossexual Brasileiro.
Nesta trilha, discute-se, neste capítulo, a atuação do Grupo Gay da Bahia na luta contra
a discriminação da homossexualidade e na busca pela conquista dos direitos dos homossexuais
junto ao Estado brasileiro, tendo em vista uma ampliação das noções de cidadania e de
democracia provocada pelas transformações culturais e sociopolíticas que vinham ocorrendo
no país, na segunda metade dos anos 1980. Destaca-se, neste momento, as disputas entre o GGB
e a grande mídia em torno das representações da homossexualidade, as ações dos militantes
homossexuais baianos no combate à violência e à discriminação por orientação sexual e o papel
do grupo no controle da epidemia do HIV/AIDS entre os homossexuais no Brasil.
Ademais, vale acrescentar que estas ações do Grupo Gay da Bahia na segunda metade
da década de 1980, assim como a atuação Grupo Triângulo Rosa, recém-criado em 1985, no
Rio de Janeiro, por João Antônio Mascarenhas, deram a tônica do MHB neste período. A
militância homossexual desses grupos serviu de sustentáculo para a reorganização do
movimento homossexual na década de 1990, que logo mais tarde, após sucessivas trocas de
siglas, passou a adotar o nome de Movimento LGBTQI+ brasileiro.253
A luta do Grupo Gay da Bahia por um dispositivo legal que protegesse e garantisse os
direitos civis dos homossexuais não ocorreu de forma desvencilhada de uma tentativa de alterar
também todo um “imaginário”254 social que sustentava o preconceito e a discriminação dos
amantes do mesmo sexo dentro da organização social. Para isso, o grupo travou verdadeiras
253
Conforme Facchini: “Nos documentos produzidos por membros ou grupos/organizações do movimento desde
seu surgimento, a sigla MHB tem sido utilizada para auto-referência, principalmente quando se trata de traçar
abordagens generalizantes e históricas. Em momento específicos, como em 1993, esse movimento aparece descrito
como MGL (movimento de gays e lésbicas). A partir de 1995, aparece primeiramente como um movimento GLT
(gays, lésbicas e travestis) e, posteriormente, a partir de 1999 e por iniciativa do grupo a partir do qual realizei
minhas observações, passa a figurar como um movimento GLBT – de gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros”.
Cf. FACCHINI, Regina. Sopa de Letrinhas? Movimento homossexual e produção de identidades coletivas nos
anos 1990. Rio de Janeiro: Garamond, 2005, p. 20.
254
De acordo com Pesavento: “O imaginário é histórico e datado, ou seja, em cada época os homens constroem
representações para conferir sentido ao real. (...) O imaginário comporta crenças, mitos ideologias, conceitos,
valores, é construtor de identidades e exclusões, hierarquiza, divide, aponta semelhanças e diferenças no social.
Ele é um saber-fazer que organiza o mundo, produzindo a coesão ou o conflito”. Cf. PESAVENTO, Sandra Jatahy.
História & História Cultural. 2º Ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2008, p. 43.
119
255
Para Chartier: “As percepções do social não são de forma alguma discursos neutros: produzem estratégias e
práticas (sociais, escolares, politicas) que tendem a impor uma autoridade à custa de outros, por elas
menosprezados, a legitimar um projecto reformador ou a justificar, para os próprios indivíduos, as suas escolhas e
condutas. (...) As lutas de representações tem tanta importância como as lutas econômicas para compreender os
mecanismos pelos quais um grupo impõe, ou tenta impor, a sua concepção do mundo social, os valores que são os
seus, e o seu domínio.” Cf. CHARTIER, Roger. A História Cultural: entre práticas e representações. Tradução
Maria Manuela Galhardo. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1990, p. 18.
120
Assim sendo, agrupamos em três modalidades as infrações mais freqüentes d´A Tarde
à Lei de Imprensa: 1º) Instigação de preconceito e discriminação contra os gays,
chegando ultimamente a pregação repetida do extermínio dos homossexuais; 2º)
Sonegação de informações cruciais sobre eventos do movimento homossexual
256
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano II. Nº 4. Setembro de 1982. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 45.
257
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano II. Nº 4. Setembro de 1982. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op. Cit.,
2011, p. 43.
121
O GGB ainda destacou nesse documento os nomes dos principais jornalistas que
escreviam abertamente contra os homossexuais, eram eles: o colunista de cinema, José Augusto
Berbert, o redator-secretário do jornal na época, Joaquim Alves Cruz Rios, o professor Remy
de Sousa, e o também professor Pereira de Sousa, conhecido como “Padre Pereirinha”. Contra
o preconceito homossexual escancarado de Berbert, o grupo declarou uma verdadeira guerra,
realizando protestos semanais contra os preconceitos destilados por ele a qualquer indício de
homossexualidade. Em sua coluna semanal, Berbert expressava seu repúdio a
homossexualidade da seguinte forma:
Tenham paciência, mas não posso aceitar uma coisa dessas. Francamente, estou velho
demais para perder duas horas no cinema vendo homossexualismo. As cenas amorosas
dos ‘ferdinandos’ (sic) são nauseantes. Bicha no cinema só caricato: levadas a sério,
é aberração.” (13-12-1982). Seu comentário aos “Parceiros da Noite” (Cruising) está
no mesmo baixo nível: “O filme é uma viadagem sem limite, enojando-se ver
homossexual beijando homem na boca. Tudo no filme dos veados é nauseante (4-8-
1981).259
258
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano IV. Nº 11. Junho de 1985. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op. Cit.,
2011, p. 118.
259
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano IV. Nº 11. Setembro de 1985. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 119.
122
homossexual enquanto “travesti”, “palhaço” ou “modista”. Contra esta prática vista pelos
militantes homossexuais como discriminatória, foi elaborado um documento intitulado “Carta
Aberta aos Homossexuais Brasileiros”, formulado durante o II Encontro Brasileiro de
Homossexuais (EBHO), realizado em Salvador, entre os dias 13 e 15 de janeiro de 1984. Nesta
carta, ficou acertada a seguinte resolução no que diz respeito às relações entre o movimento
homossexual e os meios de comunicação:
260
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano III. Nº 9. Julho de 1984. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op. Cit.,
2011, p. 102.
261
Cf. BORRILLO, Daniel. Homofobia: História e Crítica de um preconceito. Belo Horizonte: Autêntica Editora,
2010, p. 13.
262
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano II. Nº 4. Setembro de 1982. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 41.
123
A Tribuna da Bahia deu chamada de 1ª página e longa matéria com foto: além de uma
festinha-dançante na sede, realizamos uma solenidade no Forte de S. Marcelo,
levando flores brancas que foram depositadas na porta do forte, em homenagem a seu
construtor, Diogo Botelho, o 1º Governador Gay da Bahia (1607). A TV-Educativa fez
belíssima reportagem, distribuída nacionalmente, onde mostrou os membros do GGB
numa canoa, atravessando a Baía de todos os Santos em direção ao forte.263
Além disso, o GGB passou a publicar, desde 1981, o boletim do Grupo Gay da Bahia”.
A ideia de produzir uma revistinha regional surgiu no 1º Encontro de Grupos Homossexuais
organizados do Nordeste. Entretanto, como a “Revista Bichana” não foi para frente, o Grupo
Gay da Bahia tratou de publicar o boletim de número 01 em agosto de 1981. O informativo
contava com um relatório das atividades do grupo, denúncias de crimes contra homossexuais e
indicações de bibliografias e notícias acerca da homossexualidade e do movimento
homossexual. Os boletins eram publicados nos formatos mimeografados e distribuídos em sua
maior parte na Bahia, e a outra parte enviada para outros grupos gays do Brasil. Outras pessoas
que quisessem adquirir o periódico poderia ainda pagar uma quantia em dinheiro ou fazer sua
assinatura anual. Com o fim do Jornal “Lampião da Esquina”, os boletins do GGB
representaram-se como um importante veículo de informação e aproximação dos diferentes
grupos homossexuais organizados no Brasil durante a década de 1980. Tratava-se, portanto, de
um “saber dominado”, conforme a acepção de Foucault, que se insurgia, um contradiscurso.
Outras iniciativas do grupo nesta luta contra as representações homossexuais
dominantes na grande mídia foram: a publicação da 1º edição do “Guia Gay da Bahia”, em
1981, e a organização do “I Concurso Brasileiro de Poesia Gay”, em 1982. Como resultado
desse certame, o GGB publicou um livro intitulado “24 Poemas Gays”.
263
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano VI. Nº 13. Outubro de 1986. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op.
Cit., 2011, p. 143.
124
Entretanto, todo esse esforço do Grupo Gay da Bahia em promover uma representação
homossexual mais “séria” na sociedade não contou com o apoio de todos os membros do grupo.
Alguns deles viam nisso tudo uma ênfase exacerbada na representação “gayista” do amor pelo
mesmo sexo. Foi o caso dos anarquistas, Ricardo Líper, Tony Pacheco e Alexandre Ferraz que
passaram a contestar essas imagens. Estes se afastaram do grupo e, ainda nos primeiros anos de
militância do GGB, passaram a privilegiar uma outra representação da homossexualidade – a
identidade “espartana”264 – por considerá-la mais masculina, em comparação com a identidade
gay. Sobre isto, depõe Tony Pacheco:
Mas, na verdade, logo no início a gente teve problemas com isso, devido a uma
maioria de pessoas identificadas com o feminino nesse trabalho [Grupo Gay da
Bahia]. A gente, pelo menos, nós do movimento anarquista, não achamos isso muito
relevante. Achamos que todo ser humano deve ser do jeito que quiser, inclusive se
quiser se fantasiar de abóbora e sair na rua, ninguém tem o direito de dizer
absolutamente nada, porque o ser humano nasce livre e deve permanecer livre até o
momento da morte dele e ninguém tem o direito de dizer se tá correto ou incorreto.
Os anarquistas defendem isso, todo ser humano tem o direito de levar a sua vida do
jeito que quiser. Só que nós, especificamente. Nós três não nos identificamos com esse
negócio de você sendo homem querer ser mulher. Não temos identidade com o
feminino. (...) Nós três, por exemplo, somos homens e achamos que a masculinidade
é um construto social que nos interessa. (...) Nós espartanos, achamos que a
masculinidade é a nossa identidade.265
264
Para mais informações sobre o “espartanismo”, ver LÍPER, Ricardo. Sexo entre homens e a tradição espartana:
tudo que você queria saber e tinha medo de perguntar. Salvador: Edições RCP, 2005.
265
Entrevista concedida por Tony Pacheco em 10 de março de 2012.
125
Pouco mais da metade morreu antes dos 30. Muitos passavam dos 50, dois tinham 70
anos!266
A partir dos dados apresentados pelo Grupo Gay da Bahia, fica evidente que os crimes
homofóbicos se distribuíam por todas as camadas da sociedade. Entretanto, percebe-se que
esses delitos se acentuavam entre os gays e as travestis pertencentes à parcela mais humilde da
população. Para ter uma maior compreensão desse levantamento, o GGB também procurou
traçar os perfis dos assassinos de homossexuais no Brasil.
Apesar dos outros marcadores sociais, o fato da maioria dos assassinos serem rapazes
brancos é um dado para se levar em consideração. Tendo em vista que muitos desses crimes
eram cometidos por sujeitos que praticavam regularmente ou eventualmente a “michetagem”
e, segundo Perlonguer, em sua análise da prostituição masculina em São Paulo, os michês
brancos e loiros eram os mais valorizados e procurados por homossexuais. 268 Vale ressaltar que
muitos michês, mesmo praticando atos homoeróticos, não se viam enquanto homossexuais e as
manifestações de desprezo por parte desses sujeitos em relação ao seus clientes era também
uma forma utilizada por eles para preservar a sua posição de macho heterossexual. 269 Outro
dado importante, que também tem correspondência com o número de rapazes brancos
assassinos de homossexuais e a prática da “michetagem”, é a pobreza da população brasileira,
compreendida nesta pesquisa como mais um elemento fomentador de crimes homofóbicos.
Por detrás dessas personagens que compunham o quadro de vítimas e assassinos, o
grupo identificava também todo um conjunto de instituições que disseminavam e reforçavam o
preconceito e, por conseguinte, instigavam a violência contra os homossexuais. Nesse sentido,
eram constantes as denúncias do GGB contra as Igrejas católicas e evangélicas, contra os meios
266
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano IV. Nº 10. Janeiro de 1985. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 108.
267
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano IV. Nº 10. Janeiro de 1985. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op. Cit.,
2011, p. 109.
268
PERLONGHER, Néstor Osvaldo. O Negócio do Michê: prostituição viril em São Paulo. 1ª ed. São Paulo:
Editora Brasiliense, 1987, p. 17, p. 145.
269
PERLONGHER, Néstor Osvaldo. Op. Cit., p. 19 e 20.
127
270
JORNAL CORREIO DA BAHIA, Salvador, 29 de agosto de 1985.
271
JORNAL FOLHA DE SÃO PAULO, São Paulo, 9 de fevereiro de 1986.
128
1. Constituição Federal: incluir no Artigo 153, §1° o seguinte: “Todos são iguais
perante a lei, sem distinção de sexo, PREFERÊNCIA SEXUAL, raça, trabalho, credo
religioso e convicções políticas. Será punida pela Lei qualquer manifestação
preconceituosa ou discriminatória, por razões de raça, cor ou PREFERENCIA
SEXUAL”. (Obviamente que “preferência sexual” refere-se exclusivamente a
“sexualidade legal”, excluindo-se por exemplo, violência contra indefesos, estupros,
etc.). (...)
4. Serão considerados crimes em razão de descriminação por preferência sexual (ou
orientação sexual ou estilo de vida): negar a contratação de alguém, dificultar ou
impedir a promoção, ou provocar direta ou indiretamente, a demissão ou a rescisão de
contrato de pessoas profissionalmente habilitadas ao desenvolvimento de atividades
laborais; impedir ou dificultar o ingresso, permanência e o normal acesso em qualquer
estabelecimento de ensino, civil ou militar, seja em relação ao pessoal docente, seja
ao pessoal discente; colocar obstáculos à custódia de filhos, na hipótese de separação
272
Segundo Maria Helena Versiani, em seu artigo Cartas Cidadãs, a Comissão dos Notáveis foi uma resposta do
presidente Sarney as pressões de vários segmentos da sociedade civil que ansiavam em participar do processo de
elaboração da nova Constituição Nacional. Segundo a autora, “em 18 de julho de 1985 o presidente José Sarney instituiu
a Comissão Provisória de Estudos Constitucionais, que ficou conhecida como Comissão dos Notáveis. Idealizada por
Afonso Arinos, que viria a ser o seu presidente, a proposta previa a elaboração de um anteprojeto que servisse como
subsídio aos trabalhos da Assembléia Nacional Constituinte. A idéia foi encampada por Tancredo Neves. A Comissão foi
integrada por 50 personalidades brasileiras de diferentes tendências ideológicas e formações, representando setores
diversos da sociedade. Designados por Sarney, participaram da Comissão, entre outros, Barbosa Lima Sobrinho, Bolívar
Lamounier, Cândido Mendes, Celso Furtado, Cristovam Buarque, Jorge Amado e José Afonso da Silva. Tendo em vista
colher idéias e propostas da população em geral, à Comissão coube criar canais de interlocução com a sociedade,
promovendo audiências com debates públicos e incentivando a participação. Milhares de cartas foram encaminhados à
Comissão, com sugestões de entidades e cidadãos brasileiros.” Cf. VERSIANI, Maria Helena. Cartas Cidadãs.
Disponível em:
http://encontro2008.rj.anpuh.org/resources/content/anais/1213210085_ARQUIVO_2008ANPUHregionalTextofinalSero
pedicareduzido.pdf. Acesso em: 27 de março de 2012.
129
Como se pode perceber, nesta primeira carta enviada pelo movimento homossexual à
“Comissão dos Notáveis”, a militância homossexual, ao solicitar a inclusão específica da
proibição de discriminação por “preferência sexual” na Constituição Nacional, optou por
utilizar termos como “preferência sexual” ou “opção sexual”. Posteriormente, depois de
sucessivas discussões travadas por ativistas gays e estudiosos de todo o país acerca da
essencialização ou não da homossexualidade, a proposta foi alterada e a expressão “orientação
sexual” passou a ser vista como a que melhor emoldurava o desejo sexual pelo mesmo sexo.
Resolvido esta querela, que também era uma busca por coerência simbólica e ativista,
o movimento homossexual deu continuidade ao seu projeto de criminalização da homofobia
atuando diretamente em Brasília, representado por João Antônio Mascarenhas. Em depoimento
concedido a Claudio Roberto da Silva (1998), Mascarenhas relata os percalços enfrentados por
ele na luta pela inclusão do projeto de lei que proibia a discriminação por orientação sexual no
Brasil na Constituição de 1988. Segundo ele:
Em 1987, pela primeira vez – até agora a única! –, o Triângulo Rosa conseguiu ir à
Câmara Federal... ao Congresso Nacional Constituinte. Lá, fiz exposição a duas
subcomissões... parece que isso foi em abril. O assunto foi levado a plenário e fomos
derrotados... a última votação na Assembléia Nacional Constituinte foi em fevereiro
de 1988. Fui à Brasília... nunca um ativista gay tinha entrado no Congresso Nacional
como tal. Muito menos para fazer uma exposição e ser sabatinado pelos
parlamentares... isso foi um escândalo! A imprensa noticiou muito, alguns jornais
meio em tom de troça, outros apoiaram, outros descreveram o fato objetivamente, mas
houve uma grande cobertura... Houve a votação no início de 1988, acho que foi janeiro
ou fevereiro... fomos derrotados. Nos fins de fevereiro e princípios de março de 1988,
saiu o primeiro projeto da Constituição Federal. Por essa época, eu me afastei do grupo
Triângulo Rosa. Depois retomei quando se aproximava a Revisão Constitucional.
273
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano VI. Nº 12. Março de 1986. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 129 e 130.
274
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano VI. Nº 13. Outubro de 1986. Cf. MOTT, Luiz (editor). Op.
Cit., 2011, p. 138.
130
Porém, dizia que voltaria até terminar a Revisão... qualquer que fosse o resultado. Na
Revisão, também fomos derrotados. Desta vez não houve esse sucesso de escândalo...
Comeste nosso trabalho, não conseguimos ser contemplados na Constituição Federal,
mas conseguimos em duas Constituições estaduais: a de Sergipe e a de Mato Grosso;
e em 27 leis orgânicas municipais... inclusive do Rio de Janeiro, São Paulo e
Salvador.275
275
Depoimento de João Antônio Mascarenhas concedido a Cláudio Roberto da Silva, em 22 de junho de 1995. Cf.
SILVA, Cláudio Roberto da. Reinventando o Sonho: história oral de vida política e homossexualidade no Brasil
contemporâneo. Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1998, p. 276 e 277.
131
Estados Unidos. Um deles era o estilista Marcos Vinícius Resende Gonçalves, o Markito, de 31
anos. A notícia de sua morte reverberou em todo o país, criando medo e despertando os
brasileiros para os riscos de uma possível epidemia.
Em 1985, quando esta epidemia já era uma realidade no Brasil, e a imprensa e os
médicos passaram a reforçar antigos preconceitos contra os homossexuais, como a sinonímia
entre homossexualidade e doença, o GGB tratou de divulgar nas páginas do seu boletim um
informativo sobre esta enfermidade. Nesse informe, continha-se os principais sintomas da
“AIDS”, sigla em inglês da “Síndrome de Imunodeficiência Adquirida”, como passou a ser
conhecida esta doença, suas formas de contágio e os meios para evitá-la. Neste momento, havia
ainda por parte da militância homossexual, além do medo de contagio, um receio que suas ações
de combate a essa epidemia viessem atrelá-la mais ainda à homossexualidade, tornando-se mais
um estigma. Esse primeiro posicionamento dos militantes homossexuais brasileiros está
presente no depoimento de Edward MacRae. Segundo ele:
Quando voltei ao Brasil, a idéia era que se tratava de mais um complô médico. A
questão da AIDS era vista como outra fórmula pseudocientífica para oprimir os
homossexuais, fazê-los retornar à margem. Muitos dos antigos militantes defendiam
esse parecer. Certamente, também teria tomado esta posição, mas havia estado nos
Estados Unidos e visto que o caso era sério. Os norte-americanos não estavam mais
defendendo as antigas posições, então comecei a ver a questão sob outro prisma.
Assim, houve momentos em que ocorreram algumas discordâncias entre eu e os
militantes, mas eles eram pessoas inteligentes e logo começaram aperceber os perigos
que estavam correndo.276
Foi somente a partir da segunda metade da década de 1980 que começou a surgir uma
insólita parceria de médicos e ativistas gays no combate à epidemia da AIDS. Entretanto,
algumas divergências persistiram. Em setembro de 1987, Hédimo Santana, membro-fundador
do GGB, publicou uma matéria no boletim do grupo protestando contra a obrigatoriedade do
teste do anti-HIV, vírus causador da AIDS, como requisito admissional em fronteiras e na
obtenção de empregos. Para ele, tal exame poderia acarretar problemas psicológicos, levando
o indivíduo as mais variadas reações, como até o suicídio, além de não representar, com efeito,
nenhuma proteção contra o vírus. Usando um discurso médico-científico para relativizar as
próprias práticas e saberes médico-científicos, Santana procurou deslocar o seu peso
discriminatório para definir a vida das pessoas, especialmente a dos homossexuais. Nas palavras
dele:
276
Depoimento de Edward MacRae concedido a Cláudio Roberto da Silva, em 22 de junho de 1995. Cf. SILVA,
Cláudio Roberto da. Reinventando o Sonho: história oral de vida política e homossexualidade no Brasil
contemporâneo. Dissertação de mestrado. São Paulo, Universidade de São Paulo, 1998, p. 351.
132
O teste anticorpos HIV mede a exposição e provável infecção pelo vírus associado a
AIDS. O teste unicamente não diagnostica a doença. A porcentagem ou média de
indivíduos que obtiveram resultados positivos (soropositivos) e irão desenvolver
AIDS ou condições relacionadas à AIDS não é conhecido mas, é significante. Levará
muito tempo. As pesquisas ainda são imprecisas e permanecem inconclusas, assim
como o êxito das intervenções médicas naqueles soropositivos assintomáticos.277
277
BOLETIM DO GRUPO GAY DA BAHIA. Ano VIII. Nº 16. Março de 1988. Cf. MOTT, Luiz (editor). Boletim
do Grupo Gay da Bahia: 1981-2005. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2011, p. 169.
278
Cf. SIMÕES, Júlio Assis e FACCHINI, Regina. Na Trilha do Arco-íris: Do movimento homossexual ao LGBT.
São Paulo: Editora Fundação Perseu Abramo, 2009, p. 130 e 131.
133
Fica evidente, na narrativa de Mott, o grave impacto negativo causado pelo surto do
HIV/AIDS nos processos de afirmação da identidade homossexual no país e na expansão da
movimento homossexual brasileiro a partir da segunda metade da década de 1980. No entanto,
Mott também aponta aspectos positivos. Isso foi possível porque, de acordo com Simões e
Facchini (2009), o aparecimento dessa doença, por mais desastroso que tenha sido para a
279
MOTT, Luiz. A cena gay de Salvador em tempos de Aids. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2000. p. 115.
280
Entrevista concedida por Luiz Mott, em 23 de março de 2017.
134
281
Para José Roberto Bassul Campos, a sigla ONG é amplamente utilizada para designar “Organizações não
governamentais” – grupos sociais organizados, sem fins lucrativos, constituído formal e autonomamente,
caracterizado por ações de solidariedade no campo das políticas públicas e pelo legítimo exercício de pressões
políticas em proveito de populações excluídas das condições da cidadania. Cf. CAMPOS, José Roberto Bassul.
Organizações Não-Governamentais nas áreas ambiental, indígena e mineral. Disponível em:
http://www.senado.gov.br/senado/conleg/artigos/especiais/OrganizacoesNaoGovernamentais.pdf. Acesso em: 10
de abril de 2012.
282
Segundo Gohn, isso ocorreu porque “a maior parte dos movimentos sociais populares entram, nos anos 90,
despreparados diante da nova conjuntura de políticas sociais estatais de parcerias entre o Estado e entidades da
sociedade civil organizada [...]. O despreparo dos movimentos possibilitou que novas ONGs e outras entidades
associativas do ‘terceiro setor’ ocupassem aqueles espaços.” Cf. GOHN, Maria da Glória Marcondes. O novo
associativismo e o Terceiro Setor. Revista Serviço Social e Sociedade, n.58, São Paulo: Cortez, 1998, p. 11.
283
Cf. GOHN, Maria da Glória Marcondes. Novas Teorias dos Movimentos Sociais. 2º ed. São Paulo: Loyola,
2009, p. 13.
135
284
Cf. LOPES, José Raimundo de Lima. Da dissidência à diferença: direitos dos homossexuais no Brasil da
Ditadura à democracia. In: GREEN, James N. e QUINALHA, Renan (Orgs.). Ditadura e Homossexualidades:
repressão, resistência e a busca da verdade. São Carlos: EDUFSCar, 2014, p. 290 e 291.
136
Embora se reconheça que esta divisão temporal da atuação do Grupo Gay da Bahia no
decênio de 1980 em duas fases tenha mais a ver com um procedimento de intelecção adotado
aqui, do que propriamente uma quebra da linearidade acontecimental, tendo em vista que
muitos dessas ações estavam imbricadas na maioria das reinvindicações do grupo. Isso não
impede que observemos, nesse período de 1985 a 1988, graças a uma ampliação das noções de
cidadania e de democracia provocada pelas transformações culturais e sociopolíticas que
vinham ocorrendo no país, um conjunto de ações consistentes do grupo, visando, sobretudo,
um maior acesso às políticas implementadas pelo Estado. Foi o caso das pressões pela
criminalização da discriminação por orientação sexual levada até à Assembleia Constituinte
pelo MHB e a conveniente parceria estabelecida entre o movimento e os órgãos estatais no
combate à epidemia do HIV/AIDS.
No que tange à luta contra a discriminação do homossexual perpetrada pelas relações
de poder no interior da sociedade civil, vimos que o grupo elegeu os meios de comunicação
como um dos principais responsáveis pela disseminação do preconceito homossexual no país.
Sendo assim, o GGB travou diversas batalhas contra a mídia impressa e televisiva, buscando
sempre produzir um contra-discurso num jogo de representações que tinha como tática principal
desconstruir a gama de significantes e significados negativos atribuídos à homossexualidade.
Sem embargo, os embates contra a discriminação da homossexualidade também
tiveram como alvo o Estado, sobretudo, em sua omissão contra a violência e assassinatos
praticados contra os homossexuais. É, neste momento, que também começamos a perceber a
emergência do conceito de “homofobia” como um importante instrumento nas mãos dos
militantes e teóricos interessados no fim das expressões e dos crimes de ódio direcionados aos
homossexuais. Essa luta ganha uma outra dimensão ainda, quando o MHB, especialmente o
GGB e o Triângulo Rosa, fundado por João Antônio Mascarenhas, passa a cobrar a
especificação da proibição da discriminação por orientação sexual na Assembleia Constituinte,
em 1987, porém sem grandes êxitos.
Esta maior tutela do Estado e sua aproximação com a militância homossexual somente
veio se consolidar a partir do combate e controle da epidemia do HIV/AIDS entre os
homossexuais no Brasil, especialmente, a partir das ações do Grupo Gay da Bahia
estabelecendo assim uma nova relação entre a militância homossexual e o Estado. Nestes
últimos anos da década de 1980, o GGB, assim como outros grupos sobreviventes do surto do
HIV/AIDS, implementou um novo estilo de militância, passando a se apoiar mais nos subsídios
do governo e investindo num formato de ONG-AIDS. Finalmente, já se pode sentir, por
consequência do HIV/AIDS, os desarranjos, as novas configurações e as novas estratégias
137
adotadas pelo MHB para adentrar à década de 1990, quando este passou a ser conhecido como
Movimento LGBT brasileiro.
138
CONCLUSÃO
Neste trabalho, por meio de uma discussão bibliográfica e análise dos documentos,
discutiu-se como se deu o processo de agitação político-cultural e formação de um movimento
homossexual organizado em Salvador no período de abertura política e redemocratização do
Estado brasileiro, de 1978 a 1988, dando-se grande ênfase à atuação do Grupo Gay da Bahia
(GGB). Com isso, foram analisados desde indícios preliminares acerca de uma agitação
político-cultural homossexual em Salvador nos anos 1970, até a organização e militância dos
primeiros grupos organizados de homossexuais na Bahia, destacando, precipuamente, a
trajetória do Grupo Gay da Bahia, sobre a qual recai a maior parte desse estudo, e do Grupo
Adé Dudu, na sua luta contra a dupla discriminação sofridas pelos negros homossexuais na
Bahia e no Brasil. Além disso, foi possível perceber também as tensões que envolvem as
diferentes representações da homossexualidade e seus conjuntos de significantes e significados,
revelando assim as linhas de força e de atualização, as curvas de enunciação e as rotas de fuga
que trespassam este dispositivo.
No decorrer dessa discussão ficou claro que se trata de uma história de “trânsitos”,
“deslocamentos” e até “congestionamentos”. O homossexual é um “viajante”, carrega uma
identidade instável e em constante transformação. Por isso que o problema da agitação político-
cultural homossexual e da organização política dos homossexuais na Bahia passa primeiro pela
interpelação acerca da construção de uma identidade coletiva homossexual. Este dilema está no
cerne do próprio conceito de homossexualidade. Dessa forma, ao adotar uma identidade política
homossexual na luta contra a discriminação da homossexualidade e pela conquista de seus
direitos, o sujeito não desloca apenas o real, mas todo o imaginário social e um conjunto de
significantes e significados no campo do simbólico que fora antes, arbitrariamente, indexados
neste referente. Isto acontece porque, a partir das ideias de Foucault, passamos a compreender
a homossexualidade não como um dado “natural” e acessível ao historiador, mas como uma
categoria discursiva produzida pela vontade de verdade e relações de poder para capturar
sujeitos e suas pulsões sexuais vistas como desviantes pela norma médico-legal. Sua
emergência pode ser situada no século XIX, mas não se fala numa origem, antes é importante
perceber toda a teia de saberes e estratégias de poder que cruzam esta fabricação.
Neste diapasão, a produção de uma identidade coletiva homossexual tão cara aos
movimentos homossexuais em todo mundo passa a ser apreciada a partir da bifurcação na qual
se encontra. Nesta abordagem, a questão da autoidentificação foi tomada tanto em sua
139
perspectiva negativa quanto em seu viés positivo. Assim, a identidade homossexual foi pensada
tanto como um instrumento de disciplinarização e classificação do indivíduo quanto como uma
autodeterminação, uma substância política na defesa do amor pelo mesmo sexo.
Esta ambivalência que marca a identidade homossexual fica mais clara quando
analisamos os movimentos homossexuais que surgiram no Brasil no final dos anos 1970 e na
década de 1980. É neste sentido que se torna tão fundamental, neste trabalho, o empenho de
comparar a atuação do grupo Somos-SP com a postura política adotada pelo Grupo Gay da
Bahia. Embora muitas das campanhas e reinvindicações postas em prática pelo GGB foram
gestadas e ensaiadas ainda pela militância homossexual paulista, são nas descontinuidades entre
esses dois coletivos que essa antinomia da identidade se revela bem mais perigosa do que
apenas uma abstração filosófica. Como vimos, a afirmação da identidade gay foi para o grupo
baiano uma das principais estratégias de luta pelos direitos daqueles que desfrutavam dos
prazeres com o mesmo sexo.
No entanto, vale lembrar que mesmo antes da formação do GGB, no ano de 1980, já
existia em Salvador toda uma agitação político-cultural em torno da homossexualidade, foi na
direção dessa “Salvador dos Homossexuais” que também se encaminhou esta investigação. No
rastro de sujeitos individuais e coletivos, tais como o estilista Waldeilton Di Paula, editor dos
periódicos “Little Darling” e “Ello”, voltados para a cena homossexual na década de 1970; os
grupos de teatro baianos que produziam peças; os anarquista do “O Inimigo do Rei” que
publicava em seu jornal homônimo matérias valorizando o amor livre; os membros
homossexuais do MNU baiano que, posteriormente, juntamente com outros rapazes negros,
formaram o Grupo Adé Dudu; e os acontecimentos que contribuíram para o aparecimento de
identidades homossexuais politizadas na Bahia na década de 1970.
Ao esmiuçar essa agitação político-cultural em torno da homossexualidade em
Salvador, podemos destacar ainda o aumento dos espaços reservados à prática da
homossociabilidade e homoerotismo na cidade, uma certa classificação dos sujeitos que
desfrutavam dos prazeres com o mesmo sexo, a ampliação da visibilidade homossexual e o
início de uma politização da homossexualidade na Bahia. Já a partir de 1980, vimos como foram
constituídos os grupos organizados de homossexuais em Salvador e quais foram as relativas
inovações provocadas por essa militância homossexual baiana no MHB. Neste momento, tem
destaque uma série de táticas políticas implementadas pelo GGB, muitas delas já pensadas pelos
primeiros grupos de homossexuais, como a institucionalização do movimento. Da mesma
forma, e até certo ponto, o grupo Adé Dudu inovou essa dinâmica ao enfrentar a dupla
discriminação direcionada aos negros homossexuais no Brasil. A análise da trajetória desse
140
grupo de negros homossexuais baianos revela ainda o reforço das opressões sobre os indivíduos
nos quais se intersecionam dois ou mais marcadores sociais, tais como raça, gênero, orientação
sexual e classe social.
Este estudo da Salvador dos Homossexuais permitiu ainda constatar a existência de
outros dois grupos homossexuais formados na Bahia pelos idos de 1980, o Grupo Aquarius
(Grupo de Libertação Homossexual) e o Grupo Libertário Homossexual, formado por mulheres
lésbicas. No entanto, devido às poucas informações encontradas, não podemos narrar a
trajetória desses grupos. Em compensação, foi sob a égide do Grupo Gay da Bahia, nos anos
1980, que a atuação do movimento homossexual se mostrou consubstancial e inovadora,
marcada por um novo processo de politização da homossexualidade, sobretudo, na Bahia, que
visou conscientizar o máximo de pessoas que mantinham relações sexuais com o mesmo sexo
dos seus direitos humanos e civis, através de uma ação política diversificada e criativa, tanto
no interior da sociedade civil quanto junto ao Estado. Dessa forma, o GGB se tornou o principal
sustentáculo do movimento homossexual brasileiro, servindo de modelo para outros grupos
homossexuais organizados que foram surgindo nesta época.
A militância do Grupo Gay da Bahia, neste trabalho, foi dividida em duas partes. Tal
divisão, de caráter mais didático, partiu da compreensão de que, na primeira metade dos anos
1980, o GGB se esforçou por uma maior conscientização política por partes dos homossexuais
e pelo direito de lutar pelos seus direitos civis, adotando uma novo estilo de militância política,
aproximando-se do gueto homossexual e retirando a homossexualidade do Código de doença
do INAMPS para inserir no campo político, enquanto que nos anos de 1985 a 1988, o grupo
partiu de uma maior politização da homossexualidade na Bahia e no Brasil para tomar a
dianteira da luta contra a discriminação homossexual, tanto na esfera da sociedade civil quanto
no âmbito do Estado, assim como começou a vislumbrar no contexto sociopolítico da segunda
metade da década de 1980, a possibilidade de uma maior participação política e ampliação de
direitos.
Com isso, neste primeiro momento, identificou-se que o Grupo Gay da Bahia,
diferentemente dos primeiros grupos organizados de homossexuais que surgiram no final da
década de 1970, adotou uma nova postura política homossexual, muito mais pragmática e
multidirecionada, tendo como alvo tanto a sociedade civil quanto o Estado. Nesta linha, o grupo
focou na consolidação de uma identidade coletiva homossexual que desse mais coesão e
visibilidade às causas do movimento. Dessa forma, o ato de “se assumir” enquanto
homossexual, o coming out, passou a ser incentivado pelo grupo como sendo uma forma de
demonstração de consciência política por parte dos amantes do mesmo sexo. Neste sentido, a
141
identidade “gay” passou a ser perspectivada por esses militantes baianos como sendo a
representação da homossexualidade mais “respeitável” e “preparada” para a luta política e
social. Pudemos perceber ainda dentre estas novas estratégias do grupo, uma maior
aproximação com o gueto homossexual, o que permitiu ao GGB absorver em alguma medida
práticas de “fechação” como tática política.
Estas alterações no estilo de militância foram de grande importância também para o
grupo ingressar na campanha pela despatologização da homossexualidade no Brasil. Nesta luta,
o GGB se valeu do processo de redemocratização do Estado nacional para obter apoio e
vantagens políticas por parte de líderes e agremiações partidárias que vinham se reorganizando
ou surgindo no país neste período. Além disso, esta conquista também serviu para mitigar os
sentidos atribuídos à homossexualidade, como a concepção do homossexual enquanto doente.
Já na segunda metade da década de 1980, vimos que o movimento homossexual
brasileiros procurou forçar uma ampliação da noção de cidadania e de democracia no Brasil.
Nesta perspectiva, a luta contra a discriminação da homossexualidade também teve como alvo
o Estado, sobretudo, em sua omissão contra a violência e assassinatos praticados contra os
homossexuais. É, neste momento, que também começamos a perceber a emergência do conceito
de “homofobia” como uma ferramenta utilizada por militantes e teóricos interessados no fim
das expressões e dos crimes de ódio direcionados aos homossexuais. Essa luta ganhou uma
outra dimensão ainda, quando o MHB, especialmente o GGB e o Triângulo Rosa, fundado por
João Antônio Mascarenhas, passou a cobrar a especificação da proibição da discriminação por
orientação sexual na Assembleia Constituinte, em 1987, porém sem grandes êxitos. Esta
aproximação do Grupo Gay da Bahia com o Estado ficou mais estreita a partir da epidemia do
HIV/AIDS. Podemos observar que neste últimos anos da década de 1980, o GGB, sob o impacto
do HIV/AIDS, adaptou a sua militância à política de repasses de subsídios disponibilizados
pelo Estado para a prevenção da doença. Estas alterações no estilo de militância homossexual
marcou todo o MHB e apontou para os novos arranjos e novas demandas que deram os
contornos da atuação do movimento na década de 1990.
Por fim, essa é uma história possível das lutas homossexuais na Bahia, nas décadas de
1970 e 1980. Nela, além de traçar toda movimentação e movimento desses homossexuais em
busca da liberdade e do reconhecimento civil dos seus direitos de amar o mesmo sexo, pudemos
perceber outros deslocamentos, voluntários e involuntários, gerados pelas práticas desses
sujeitos. Com isso, observamos que o movimento homossexual além gerar incursões no real,
também remaneja o imaginário e o simbólico produzido sobre a homossexualidade, fabricando
assim novas linguagens. Assim como, ao embaralhar as fronteiras do político e do cultural,
142
produz também uma nova epistemologia da luta social. Por conseguinte, esta produção é um
apenas esforço de “capturar”, por meio de “imagens” ou “autorretratos” que chegam do
passado, este personagem nomeado de homossexual.
143
FONTES
FONTES IMPRESSAS
Biblioteca Pública do Estado da Bahia
Jornal A Tarde – Salvador.
Jornal Correio da Bahia – Salvador.
Jornal Tribuna da Bahia – Salvador.
Jornal Folha de São Paulo – São Paulo
Jornal A Tribuna –Vitória/ES
Centro de Documentação Luiz Mott
Jornal Lampião Da Esquina – De Julho De 1979 A Maio De 1980.
Boletim Do Grupo Gay Da Bahia – De Agosto De 1981 A Fevereiro De 1990.
Guia Gay Da Bahia – 1º Edição (1981)
Dossiê “Negros Homossexuais” (Pesquisa Realizada Pelo Grupo Adé Dudu) – Novembro De
1981.
Dossiê “A Participação dos Homossexuais no Movimento Negro Brasileiro” – Setembro de
1984
FONTES ORAIS
Marcelo Cerqueira – Entrevista Realizada no dia 27 de Fevereiro De 2012. Atual Presidente do
Grupo Gay da Bahia (GGB).
Luiz Mott – Entrevista realizada no dia 23 de março de 2017. Antropólogo e principal líder do
GGB.
Davi Aranha – Entrevista realizada no dia 24 de março de 2017. Economista e membro-
fundador do GGB.
Antônio Pacheco – Entrevista realizada no dia 10 de março de 2012. Jornalista e membro-
fundador do GGB e do Jornal O Inimigo do Rei.
Ricardo Líper – Entrevista realizada no dia 12 de março de 2012. Professor de filosofia e
membro-fundador do GGB e do Jornal O Inimigo do Rei
Carlos Borges – Entrevista realizada no dia 16 de maio de 2016. Produtor cultural e amigo de
Waldeilton di Paula.
Wilson Santos – Entrevista oral concedida ao blog “Ade Dudu”. Disponível em:
http://adedudu.blogspot.com.br/2011/05/um-pouco-de-historia.html. Acesso em: 02 de março
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de 2012.
FONTE AUDIOVISUAL
Vídeo-documentário “O Inimigo do Rei – Imprimindo Utopias Anarquistas” – produzido por
Carlos Baqueiro e Eliene Nunes, em 2007.
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REFERÊNCIAS
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