A Identificao de Artefatos Culturais
A Identificao de Artefatos Culturais
A Identificao de Artefatos Culturais
Resumo: A presente pesquisa parte dos nove artefatos culturais das autoras Strobel
(2008) e Peixoto (2018) para realização de uma análise comparativa das obras A Fábula
da Arca de Noé e As Luvas Mágicas do Papai Noel do autor surdo Claudio Mourão.
Sendo uma obra adaptada e a outra criada, ambas estão escritas em língua portuguesa.
Nesse sentido, propõe-se uma reflexão acerca da importância das Literaturas Visuais para
o desenvolvimento e fortalecimento da identidade, cultura e língua do surdo, pois, mesmo
com a existência de Leis como a Nº 10.436 de 2002 e o Decreto Nº 5.626 de 2005 que
possibilitam ao surdo o reconhecimento de sua diferença linguística, identitária e cultural,
o contato com as Literaturas Visuais fica restrito aos espaços distantes da escola. Nesses
termos, o objetivo da pesquisa é analisar, de maneira comparativa, a importância da inserção
dos artefatos culturais na Literatura Surda, uma vez que a presença desses artefatos culturais
nas obras literárias pode favorecer o desenvolvimento da língua, identidade e cultura do
surdo, já que ele irá interagir com elementos próprios da sua comunidade linguística. Com
isso, foi possível verificar que as duas Literaturas Surdas apresentam alguns dos artefatos
culturais, estando os artefatos Linguístico e Familiar presentes nas duas obras analisadas.
Tal fato nos leva à compreensão da importância da língua e da família do surdo para o
fortalecimento da identidade e cultura desses sujeitos
Palavras chave: Literatura Surda. Artefatos culturais. Língua.
1 Mestra em Educação pelo PPGE/UFPB, docente atuante no Centro Universitário de João Pessoa-UNIPÊ,
aluna da especialização em Ensino de Língua Portuguesa como segunda língua para Surdos, graduada em Pedagogia
pela UEPB, Letras-Libras pela UFPB e Psicologia pelo UNIPÊ.
2 Doutora em Letras pelo PPGL/UFPB, lotada no Departamento de Línguas de Sinais – DLS/CCHLA/UFPB,
docente atuante no Programa de Pós Graduação em Letras da UFPB e no curso de especialização em Ensino de Língua
Portuguesa como Segunda Língua para Surdos do IFPB.
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Abstract: This research is based on the nine cultural artifacts of the authors Strobel
(2008) and Peixoto (2018) to perform a comparative analysis of the works: A Fábula da
Arca de Noé and As Luvas Mágicas do Papai Noel, by the deaf author Claudio Mourão, one
work adapted and the other created, both written in Portuguese. In this sense, we propose
a reflection on the importance of visual literature for the development and strengthening
of identity, culture and language of the deaf, because even with the existence of laws
such as Law No. 10.436 of 2002 and Decree No. 5.626 of 2005, which enable the deaf to
recognize their linguistic difference, identity and culture, contact with the visual literature
is restricted to isolated spaces, far from school. In these terms, the objective of this research
is to analyze in a comparative manner the importance of the insertion of cultural artifacts
in Deaf Literature, since the presence of these cultural artifacts in literary works may favor
the development of language, identity and culture of the deaf, because he will interact with
elements of his own linguistic community. Thus, it was possible to verify that both Deaf
Literatures present some of the cultural artifacts, however the Linguistic and Family cultural
artifacts are present in both works analyzed, which leads us to understand the importance
of language and family of the deaf to strengthen the identity and culture of these subjects.
Keywords: Deaf literature; Cultural artifacts; Language.
1. INTRODUÇÃO
No campo educacional, a pessoa com deficiência passou por quatro eras segundo
Sassaki (2011), sendo a exclusão, da Antiguidade até o século XX, a primeira delas.
No período da exclusão, as pessoas com deficiência eram marginalizadas, rejeitadas ou
mortas. Em culturas como a de Roma, por exemplo, os pais tinham o direito de matar seus
filhos com deficiência logo após o nascimento para evitar o contato desses sujeitos com a
sociedade (LEME; FONTES, 2017).
O segundo período foi o da segregação (1920-1940) que propôs uma nova forma
de enxergar o outro, redefinindo alguns direitos e deveres sociais. No entanto, para isso,
partia-se da perspectiva de cura/milagre para aqueles que escolhiam se aproximar de
Deus, sendo a deficiência, portanto, entendida como um castigo divino. Além disso, todo
atendimento prestado a essas pessoas era de cunho assistencialista, afastado da família em
instituições religiosas e filantrópicas (FRANÇA, 2014).
Nessa perspectiva, no período da segregação o desejo latente da sociedade era
corrigir a falta/falha das pessoas com deficiência, o que gerou inúmeros prejuízos para essas
pessoas, dentre os prejuízos a proibição da sinalização e obrigatoriedade da oralização. A
língua de sinais era considerada falha e incompleta, por isso o surdo precisava buscar a
reabilitação da fala (LULKIN, 2015).
Em oposição ao distanciamento das pessoas com deficiência dos demais sujeitos da
sociedade, os movimentos sociais e as famílias das pessoas com deficiência passaram a lutar
pela integração desses sujeitos e, entre 1950 e 1980 acontece a terceira era, a integração,
na qual as pessoas com deficiência foram integradas a sociedade e passaram a fazer parte
das escolas regulares, frequentando as classes especiais (MENDES, 2006).
A palavra “cultura” tem muitos significados, mas quando se estabelece relação entre
a cultura e as pessoas surdas, entende-se que a cultura está ligada às vivências linguísticas
e às experiências visuais dos surdos, o que influencia, inclusive, na forma dos surdos
aprenderem. Partindo da perspectiva dos Estudos Culturais, Strobel (2008, p.18) afirma que
a cultura é “uma ferramenta de transmissão, de percepção da forma de ver diferente, não
mais de homogeneidade, mas de vida social constituída de modos de ser, de compreender
e de explicar”. Assim, a cultura não é apenas o que o surdo aprende na sua comunidade,
mas é um modo de entender o mundo considerando outros aspectos.
Para Fernandes, Alves e Stumpf (2020), no que concerne à cultura surda, a língua
de sinais é o instrumento de maior transmissão cultural que, por ser natural ao povo surdo,
favorece o desenvolvimento cognitivo desses sujeitos. Desse modo, a cultura surda é
definida, também, como:
Dessa maneira, ao longo dos tempos, os surdos foram desenvolvendo sua cultura
própria e transmitindo essa produção cultural em diversos espaços, principalmente através
do contato linguístico com seus pares. A cultura e a identidade linguística do surdo são
diferentes da comunidade ouvinte, visto que o canal utilizado para entender e se relacionar
com o mundo é diferente. Conforme define Fernandes (2003), as línguas podem ser orais-
auditivas e/ou espaço-visuais, por isso o desenvolvimento linguístico do surdo é também
um desenvolvimento cultural, já que língua e cultura estão diretamente relacionadas.
A cultura é a base de instrução de um povo e é perpassada não só através do diálogo,
mas, também, em seus registros literários, sendo a transmissão desses textos escritos/
sinalizados aquilo que possibilita a apropriação dos elementos que compõem a cultura de
um povo e viabiliza a formação de conceitos e representação da realidade. De acordo com
Hall (2003, p.43), “A cultura não é uma questão de ser, mas de se tornar”. Assim, é no
contato linguístico com seus pares que o surdo se apropria de sua cultura, e é na experiência
com a língua de sinais que o sujeito se enxerga como surdo (BISOL E SPERB, 2010).
Essa visão de diferença linguística é a base da concepção socioantropológica da
pessoa surda, a qual acredita no compartilhamento de vivências e experiências entre o
povo surdo que está unido por um mesmo ideal: poder compreender o mundo através
de sua própria língua. Isso não significa dizer que o surdo deseja uma vida isolada ou
Não quer dizer que o povo surdo se isola da comunidade ouvinte, o que estamos
explicando é que os sujeitos surdos, quando se identificam com a comunidade
surda, estão mais motivados a valorizar a sua condição cultural e, assim, passam
a respirar com mais orgulho e autoconfiantes na sua construção de identidade
e ingressam em uma relação intercultural, iniciando uma caminhada sendo
respeitado como sujeito “diferente” e não como deficiente. (STROBEL, 2008, p. 33)
Com base na autora, é possível verificar que a literatura surda é construída tendo
como base a cultura do povo surdo, ou seja, aquilo que eles trazem como experiência.
Atualmente, a literatura surda é registrada com o objetivo de que os futuros surdos tenham
acesso a essa cultura e, assim, se apropriem dos conhecimentos presentes nas poesias,
histórias e piadas que são feitas pela comunidade surda, utilizando as características culturais
e históricas do povo surdo como elemento principal dessas produções. Esses registros são
feitos em vídeos de maneira sinalizada e/ou escritos, tanto na língua portuguesa quanto
na Escrita da Língua de Sinais (ELS), no sistema Sing Writing.
Para Peixoto e Possebon (2018, p.78), “Este artefato cultural, denominado de
literatura, retrata e recria a realidade de um povo, através de textos literários que se originam
das relações humanas”. Percebe-se, então, que a literatura oportuniza ao surdo expressar
suas inquietações e interpretações sobre o mundo.
Karnopp (2010) conceitua a literatura surda como sendo a produção de textos
literários em sinais, que traduz a experiência visual e possibilita outras representações de
surdos, levando em consideração as pessoas surdas como um grupo linguístico e cultural
diferente. Esse tipo de literatura está relacionado à produção de histórias que trazem, em
suas narrativas feitas pelos surdos, a língua de sinais, a identidade e a cultura surda.
Porto e Peixoto (2011) categorizam as literaturas da comunidade Surda do Brasil
em três tipos:
Para as autoras, o termo Literatura Visual é o conceito mais amplo e engloba todas
as categorias de produções literárias dessa comunidade linguística, mesmo quando a obra
não foi criada ou traduzida pelo próprio surdo. Assim, a Literatura em Libras é a tradução
de qualquer obra da comunidade ouvinte para Libras, na modalidade sinalizada ou escrita
(ELS ou Sing Writing).
A Literatura Surda é as criações e/ou adaptações (sinalizadas ou escritas) produzidas
por surdos com o intuito de apresentar elementos próprios da cultura do povo surdo. Para
isso, ocorre, nas adaptações, o acréscimo de alguns elementos a fim de que a obra tenha
relação com o público surdo. Já nas obras criadas, os autores, na maioria das vezes, produzem
em sua língua natural e inspirados pela sua trajetória, compreensão de mundo e identidade.
Para análise das obras do autor surdo Claudio Mourão (A Fábula da Arca de
Noé - 2015 e As Luvas Mágicas do Papai Noel - 2012), foram utilizados os oito artefatos
culturais categorizados pela autora Karin Strobel (2008) em seu livro As Imagens do Outro
Sobre a Cultura Surda, sendo eles: Experiência Visual; Linguístico; Familiar; Literatura
Surda; Vida Social e Esportiva; Artes Visuais; Política e Materiais e o artefato Religioso
acrescentado por Peixoto (2018).
A Fábula da Arca de Noé, publicada em 2015, é uma obra bilíngue. Sua versão em
língua portuguesa é acompanhada por um DVD que possui o registro da obra sinalizada
pelo autor surdo Claudio Henrique Nunes Mourão. A fábula tem uma semelhança com a
história bíblica da Arca de Noé, mas com uma sequência de acontecimentos bem diferentes,
já que a Arca narrada na bíblia foi construída para salvar um povo em específico de um
dilúvio e garantir a perpetuação do humano e dos animais.
Por outro lado, a fábula aqui analisada retrata a inauguração de uma grande Arca
que o personagem Capitão Noé e sua família construíram para realizar a exposição de
suas descobertas, pois ele adorava estudar coisas novas. Os visitantes não sabiam do que
se tratava, mas, ao entrar na Arca, foram conhecendo, com ajuda do guia, o que havia em
cada uma de suas salas e na exposição.
Nesse passeio, um dos personagens, o Dado, que era surdo, se perdeu pela Arca,
passou por duas salas de exposição e teve medo dos ossos do dinossauro e do leão. Os seus
pais ficaram muito preocupados com o sumiço do filho e falaram com o Capitão Noé para
procurá-lo. O Capitão Noé encontrou Dado assistindo a uma palestra que tinha como tema
Geração surda: vivacidade evolução, ministrada por um palestrante surdo, acompanhado
de uma intérprete de Libras, cujo tema era a importância da língua de sinais. Logo depois
foi assistir ao jacaré, que era ouvinte, trabalhava em uma escola de surdos e estava falando
sobre a importância das patas e dos olhos na comunicação.
Depois de procurarem Dado por toda Arca, os pais o encontraram e falaram com ele
em língua de sinais. Foi assim que o Capitão Noé entendeu que a Arca não estava preparada
para receber todo mundo, tomando a decisão de fazer da Arca um lugar acessível e criar,
com a ajuda de Dado, uma sala com os artefatos históricos e culturais dos animais surdos.
O primeiro artefato cultural é a Experiência Visual que, segundo Strobel (2008,
p.38), faz os “sujeitos surdos perceberem o mundo de maneira diferente, a qual provoca
reflexões de suas subjetividades”. Na fábula analisada, essa marca cultural fica nítida no
personagem Dado que observava o ambiente para conseguir informações e realizar suas
próprias interpretações, pois ele utiliza a visão para compreender o mundo. Isso ocorre
quando Dado se depara com os ossos dos dinossauros e com o leão.
No campo da Experiência Visual, o toque no ombro de Dado, feito pelo Capitão
Noé, representa, também, a experiência visual do povo surdo, pois na comunicação o
encontro visual é de suma importância. Ainda tratando da Experiência Visual na fábula,
o palestrante convidado, o jacaré, fala sobre a importância dos olhos para comunicação.
Por fim, o Capitão Noé conta com a participação de Dado para transformar a Arca em um
No momento em que Dado foge da sala do leão, existe uma “marca” de sinalização.
Na imagem das orelhas e da mão de Dado, aparecem aspas para marcar dois aspectos
importantes da língua de sinais: a sinalização acrescida da expressão corporal.
Figura 3: Aspas nas orelhas e mão de Dado
Partindo dos artefatos culturais do povo surdos que Strobel (2008, p. 37) define
como “as peculiaridades da cultura surda”, ou seja, aquilo que é construído com base na
experiência do surdo com o mundo, a obra intitulada As Luvas Mágicas do Papai Noel
mostra, logo de início, o artefato cultural Familiar presente na relação entre o pai e o filho.
Aqui não é possível identificar se a família é surda ou ouvinte, mas, pelo acesso tardio de
Dion à língua de sinais, pode-se inferir que sua família era ouvinte. É importante ressaltar,
no entanto, que, à medida que Dion tem contato com a língua de sinais, sua família
também aprende, já o pai leu a história das Luvas Mágicas do Papai Noel para o filho
e fez a tradução sinalizada da obra. Strobel (2008, p. 52) afirma que isso ocorre quando
“um ou outro membro ouvinte de família de filho surdo resolveu se informar e aprofundar
a respeito da cultura surda, procurando se comunicar e passar todas as informações para
a criança surda”. Então, foi Dion que, após aprender a língua de sinais, ensinou ao pai.
Outro artefato cultural presente na obra é o Linguístico que, segundo a autora
Strobel (2008, p. 44), “para o surdo ter acesso às informações e conhecimentos e para
construir sua identidade é fundamental criar uma ligação como o povo surdo em que se
usa a sua língua em comum: a língua de sinais. Em concordância com a fala da autora, a
obra apresenta momentos de interação entre os surdos em língua de sinais e entre surdos
e ouvintes também em língua de sinais.
O encontro entre surdo e ouvinte aconteceu quando o Papai Noel utilizou a língua
de sinais com a ajuda das luvas mágicas para se comunicar com a criança surda, bem como
para aprender a sinalizar. O pai, ao aprender e utilizar a língua de sinais para estabelecer uma
comunicação com o filho, representa o artefato Linguístico, pois favorece o desenvolvimento
da identidade do filho surdo.
O contato entre surdos na obra acontece no momento em que Dion usa a luva para
conversar com seu amigo surdo e quando estão na praça conversando e chega Bruna. Isso
revela, portanto, a importância da interação entre os pares linguísticos para que, através
da língua de sinais, esses sujeitos constituam sua identidade e cultura.
Strobel (2008) afirma que é na relação entre surdos que eles se motivam a valorizar
a sua diferença cultural, construindo a identidade do diferente com orgulho e autoconfiança.
Pode-se perceber que, no momento em que Dion e Bruna usam a luva e começam a
sinalizar, ocorre, imediatamente, a formação e apropriação de uma identidade relacionada
à aquisição da língua.
A obra das Luvas Mágicas do Papai Noel também possui o artefato de Vida Social
e Esportiva, que, segundo Peixoto e Sousa (2018), diz respeito aos momentos que são
compartilhados em grupo nos locais de encontro, ou seja, quando os surdos se reúnem
para conversar e falar de suas emoções. Na obra, Dion passa a luva para Bruna e ela sente
4. Considerações finais
5. Referências
ALMEIDA, WG., org. Educação de surdos: formação, estratégias e prática docente. Ilhéus,
BA: Editus, p.197, 2015. Disponível em: <http://books.scielo.org>. Acesso em: 08 set. 2020
BISOL, C.; SPERB, T. M. Discursos sobre a surdez: deficiência, diferença, singularidade
e construção de sentido. Psicologia: teoria e pesquisa, Brasília, n. 26, v. 1, p. 7-13, 2010.
Disponível em: <http://www.scielo.br/pdf/ptp/v26n1 /a02v26n1.pdf>. Acesso em: 11 set. 2020.
BRASIL. Ministério da Educação. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional.
LDB 9.394, 20 de dezembro de 1996. Brasília: MEC, 1996.
BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 2 de 11 de setembro de 2001. Diretrizes Curriculares
para a Educação Especial na Educação Básica. Disponível em: http://portal.mec.gov.br/
seesp/arquivos/pdf/res1_2.pdf. Acesso em: 12 set. 2020.