E Agora Tche
E Agora Tche
E Agora Tche
E
de Tradições Gaúchas (CTG), de Porto
Alegre. Os CTGs são entidades civis que
têm como objetivo divulgar as tradi-
ções da cultura gaúcha. Com regras e
organização próprias, servem de espaço
de integração de seus participantes, que
se reúnem para resgatar os costumes
gaúchos, como a dança e o churrasco.
AGORA,
De acordo com o Movimento Tradicio-
nalista Gaúcho (MTG), no Rio Grande
do Sul existem 1.660 CTGs. O patrão é o
cargo máximo dentro de um CTG.
Em 70 anos, a policial militar
Márcia, que também é professora de
história, foi a primeira mulher a ocupar
o cargo dentro da instituição, em 2011.
O problema era justamente esse: ser
TCHÊ?
mulher. Nas eleições que fizeram de
Márcia a comandante do 35, havia
só uma chapa adversária, de homens
que há muito estavam no CTG e que
a viram crescer, já que ela entrou na
entidade com apenas cinco anos. É tão
incomum uma mulher estar no coman-
CULTURA
RESISTENTE
ÀS MUDANÇAS
Embora a sociedade tenha se de- música gaúcha é machista. Outros 86,23%
senvolvido e a mulher ocupe hoje um não consideram machista nem mesmo a
papel social significativo – sob todos cultura tradicionalista gaúcha.
do de um CTG que o termo patroa é os aspectos –, a cultura tradicionalista De acordo com Elenir Winck, vice-
utilizado para denominar a mulher do gaúcha se mostra resistente a adaptações. presidente administrativa do Movimento
patrão e nem existe uma palavra que Isto porque, como explica o professor de Tradicionalista Gaúcho (MTG), a parti-
represente o marido “da patrão”. história da Universidade Federal do Rio cipação da mulher dentro do movimento
Depois da ameaça de morte, Márcia Grande do Sul (UFRGS) Cezar Guazelli, a vem crescendo. “Nós já tivemos várias
fez um registro na polícia e, ao con- tradição fixa os papeis sociais e considera mulheres como presidentes de Congresso
trário do que esperavam dela, não se perigosa qualquer coisa que possa subver- Tradicionalista, mulheres conselheiras,
acovardou. Por isso os adversários ter essa ordem. coordenadoras, patroas de entidade, na
resolveram prejudicá-la de outras A doutora em comunicação social própria diretoria do MTG”, justifica.
maneiras. “Eles começaram a instigar Angela Felippi analisa como esse aspecto A vice-presidente é enfática ao convi-
os funcionários a colocar o CTG na também é reverberado na mídia: “A gente dar as mulheres a participar do tradiciona-
justiça e prejudicar financeiramente vai ver sempre aquela cobertura positiva lismo: “Não adianta reclamar que a mulher
a entidade.” A manobra também não do gaúcho desbravador, corajoso, trabalha- não é valorizada. Nós, mulheres, temos que
funcionou e, além de completar os dois dor, o que a gente chama de os elementos participar, colocar as nossas ideias, porque
anos de gestão à frente do 35, ela ainda da identidade gaúcha mais tradicional.” até agora nós fomos sempre bem recebidas
foi reeleita por outros dois anos, com a E é justamente sob o véu da tradição e acatadas com as nossas posições.”
maioria dos votos dos associados. “Não — e a preocupação em manter as coisas Entretanto, não foi isso que aconteceu
me arrependo de nada”, diz, orgulhosa “como sempre foram” — que se escondem com a jornalista Janine Appel, 34 anos,
do legado que construiu. preconceitos velados, seja em relação às que chegou a ser Primeira Prenda do
A quebra de paradigmas proporcio- mulheres, aos negros, aos homossexuais, Rio Grande do Sul, em 2007, e acabou
nada pela “prenda” – nome que se dá, no ou a todos que destoam do modelo do abandonando o movimento. Por conta
tradicionalismo gaúcho, à mulher – foi macho forte, provedor e onipotente. de ter vencido o concurso, que elege todo
mesmo significativa. A patronagem, tra- Para Clarissa Ferreira, doutoranda ano uma menina para representar o
dicionalmente, é uma atividade masculi- em etnomusicologia e autora do blog tradicionalismo no estado, Janine rodou
na. Baseada na hierarquia das estâncias, “Gauchismo Líquido”, a dificuldade está o Rio Grande do Sul conhecendo a fundo
que vai do patrão até o peão, os cargos em toda a construção do gauchismo. o tradicionalismo a ponto de perceber
excluem as mulheres, que, normalmente, “Porque o alicerce dele está no conserva- um problema que precisava ser discutido
têm como tarefa cuidar da casa e dos dorismo e na macheza.” Ela explica que dentro do movimento.
filhos. a mídia construiu e reforçou a ideia do Foi então que, em 2015, em um con-
Foi por isso que o MTG, ao longo gaúcho como um “cara grosso, machão, gresso que reuniu os membros do MTG, a
de sua construção, também não contou semibárbaro, anti-intelectual”. “Parece jornalista propôs o título “Prenda Minha:
com a mulher como parte pensante do que as bases da cultura gaúcha são isso e MTG no Combate à Violência contra
movimento. Quando um grupo de tradi- que, para algumas pessoas, se tirar isso, a Mulher” como tema a ser trabalhado
cionalistas, do qual faziam parte Paixão não sobra nada.” durante o ano. Ela conta que a apresen-
Cortes e Luiz Carlos Barbosa Lessa, Gaúchos e gaúchas, em sua maioria, tação estava marcada para às 16h, mas a
criou os centros de tradições gaúchas, não veem problema em músicas que diretoria a boicotou tanto que ela só foi
na década de 1940, as mulheres nem cantam “ajoelha e chora, quanto mais iniciar às 23h. “Fui rechaçada de todos
faziam parte do projeto. Foi só a partir eu passo o laço, mais ela me adora”. Esse os lados. Eles disseram: ‘esse problema
dos grupos de dança e da necessidade trecho da música “Ajoelha e chora”, do não nos tange, primeiro a gente tem que
de se ter uma prenda para fazer par grupo Tchê Garotos, é entoado sem resolver nossos problemas internos do
com o dançarino homem que a inserção críticas da maioria. Segundo pesquisa ela- movimento, para depois querer fazer algo
da mulher começou a ser feita. Assim, borada pela reportagem e aplicada pelo pra sociedade’”. Sua proposta, portanto,
a participação da figura feminina foi instituto de pesquisa Index, 96,07% de 305 foi deixada de lado. No início deste ano,
acontecendo de forma gradual ao longo entrevistados em Porto Alegre, em setem- depois de 18 anos de participação, Janine
da história, embora sempre limitada. bro deste ano, acreditam que nenhuma saiu do movimento.
O MOVIMENTO
TRADICIONALISTA
GAÚCHO, AO
LONGO DE SUA
CONSTRUÇÃO,
NÃO CONTOU COM
A MULHER COMO
PARTE PENSANTE
DO MOVIMENTO.
FOI SÓ A PARTIR
DOS GRUPOS
DE DANÇA E DA
NECESSIDADE
DE SE TER UMA
PRENDA PARA
FAZER PAR COM
O DANÇARINO
HOMEM QUE
A INSERÇÃO
DA MULHER
COMEÇOU
A SER FEITA.
intérprete, mais popular, melhor indu- feminina é geralmente tratada ora
mentária e campeã da imprensa. como um ser doce e sensível, que deve
Para Kelvyn Krug, presidente do ser protegido, ora como tendo a única
Departamento Jovem do MTG, o tarefa de ser mãe – a mulher que cuida
machismo não existe mais dentro da da casa, dos filhos e do marido. Ainda
cultura gaúcha. “Acho que, nos últimos há casos em que a mulher é desvaloriza-
10 anos, mudou bastante coisa dentro da e objetificada: comparada a animais,
do movimento. A entrada da mulher objetos e comida.
modificou muitas coisas, e eu creio que Com a experiência no Galpão Criou-
o fim do machismo tenha sido uma das lo e o entendimento de que músicas
maiores mudanças.” gaúchas com teor sexista não deveriam
Segundo ele, músicas que tratam a mais ser aceitas, Shana fez um texto
mulher como objeto são de “60, 80 anos manifesto no blog do programa inti-
atrás”. Krug diz que, nas músicas atuais, tulado “Não sou china, nem égua, nem
isso não acontece mais. Mas não foram quero que o velho goste” e compartilhou
só músicos antigos que fizeram a can- a publicação em suas redes sociais. A
tora Shana Muller, 37 anos, apresenta- resposta foi quase instantânea.
dora do programa Galpão Crioulo, da “1.300 pessoas me xingando, 10
RBSTV – afiliada da Rede Globo no Rio mil compartilhamentos, grande parte
Grande do Sul –, repensar o universo deles vindo das próprias mulheres”, ela
musical da cultura gaúcha. relembra. “O machismo também está
“A minha preocupação surgiu na gra- intrínseco nas mulheres, e a gente não
vação do Galpão, vendo jovens gravarem se dá conta.” Tanto que, na pesquisa
composições em que a mulher seguia o elaborada pela reportagem, entre as
ser feminino do conceito antigo, que fica 128 mulheres entrevistadas, apenas 19
em casa, varre o chão, cuida dos filhos.” consideram a cultura tradicionalista
Ainda que algumas das composições machista.
sejam, de fato, de músicos mais velhos, A cantora explica que o título do
essas e outras novas canções misóginas texto foi para chamar a atenção das
são reproduzidas por homens de todas pessoas para a música “É disso que o
as idades, incluindo a nova geração de velho gosta”, muito popular entre os
músicos, com cantores na faixa dos 20 gaúchos, que com o refrão “churrasco
anos. É o caso da música “Bonitão do e bom chimarrão, fandango, trago e
Baile”, por exemplo, da banda Tchê mulher/ É disso que o velho gosta, é isso
Guri, que diz: “Quando chego no bailão/ que o velho quer”, coloca a mulher no
Enlouqueço a mulherada/ Elas caem em mesmo nível de “coisas” que o “velho”
cima “d’eu”/ Enlouquecem e dão risada/ gosta. “Quer dizer, a mulher é um ob-
Eu não sei se é o meu jeitinho/ Ou elas jeto naquele momento”, conclui Shana.
são muito atirada”. Curiosamente, a música é de autoria
Na semana em que Shana percebeu de uma mulher, Berenice Azambuja, em
a problemática diante do retrato da parceria com Gildo Campos.
mulher nas músicas regionais, outros Shana diz que, mesmo que ela
acontecimentos haviam ganhado des- própria já tenha cantado músicas com
taque na mídia: o primeiro, um caso de letras como “não quero trago de graça,
assédio envolvendo o ator José Mayer se bobear eu quebro a tasca e faço o
e uma figurinista da Rede Globo. O chinedo chorar”, é preciso fazer uma
segundo, a violência psicológica e física autoavaliação daquilo que não cabe mais
a qual a ex-participante do Big Brother e que pode servir de incentivo a casos
Geralmente cantada por homens, “Morocha”. Apresentada em 1984 na Brasil Emilly Araújo estava sofrendo no de preconceito e violência. “Com essas
a música gauchesca trata de temas do Coxilha Nativista de Cruz Alta, com relacionamento amoroso que manteve músicas, a gente alimenta, incentiva,
campo, do chimarrão, da lida com os interpretação de David Menezes Junior com o médico Marcos Harter enquanto encoraja as situações de violência, de
O
animais, muitas vezes mostrando o e Os incompreendidos, sua letra dizia estavam no reality show. preconceito, de maus-tratos contra as
homem como valente e conquistador. “mulher pra mim é como redomão, “Eu estava com aquilo tudo na mulheres. Isso está presente em todos os
As duas principais gravadores dedicadas maneador nas ‘pata’, pelego na cara”. cabeça e, daqui a pouco, eu estava ali dias na nossa vida e a gente não perce-
MACHISMO
a esse tipo de canção, Acit e Vertical, Redomão é como os gaúchos chama um gravando o programa e me chama be”, escreve em seu texto.
listam 161 artistas ou grupos com CDs cavalo recém-domado. A apresentação atenção a música. Uma gurizada de 20 e O silêncio que seguiu a sua tomada
lançados. Apenas cinco são mulheres. foi vaiada pelas mulheres, mas, mesmo poucos anos ainda compõe isso, mulher de atitude foi o que mais desanimou a
Uma das canções consideradas assim, a música continuou sendo inter- comparada ao animal, por exemplo, que apresentadora. Segundo ela, ninguém
EMBORA OS
CENTROS DE
TRADIÇÕES
GAÚCHAS TENHAM
SIDO CRIADOS
SEM A PRESENÇA
FEMININA E
REFORÇANDO
ESTEREÓTIPOS
MASCULINOS,
AS INEVITÁVEIS
MUDANÇAS
SOCIAIS FIZERAM
COM QUE MUITAS
MULHERES
GAÚCHAS
PASSASSEM A
REIVINDICAR SEU
ESPAÇO NESSAS
ENTIDADES.
MESMO
SOFRENDO
RESISTÊNCIA, ELAS
A FORÇA
NÃO ABREM MÃO
DE VIVENCIAR
A CULTURA DO
ESTADO IMPONDO
NOVAS REGRAS
DAS PRENDAS
DE CONVIVÊNCIA
TANTO NOS CTGS
QUANTO FORA
DELES.
BIANCA, 50 ANOS, É VETERINÁRIA NEUSA, 70 ANOS, FOI QUEM
E UMA DAS COORDENADORAS CONSEGUIU REUNIR 30
DA CAVALGADA DO CTG RODEIO MULHERES PARA ASSUMIR A
SERRANO. ELA DIZ QUE O PATRONAGEM DO CTG QUE
MACHISMO SE MOSTRA EM FORMA ESTAVA SEM LIDERANÇA. NO
DE BOICOTE, QUANDO OS HOMENS INÍCIO, OS MARIDOS SENTIRAM-
IGNORAM AS MULHERES. “NÓS SE DIMINUÍDOS, MAS DEPOIS
PRECISAMOS NOS SUPERAR A CADA TIVERAM QUE ACEITAR O
SITUAÇÃO, NÃO QUE EU TENHA QUE COMANDO FEMININO. NEUSA
FAZER MELHOR, MAS EU TENHO É MAIS VELHA E ALANA, 16
QUE ME SUPERAR, SENÃO NÃO VOU ANOS, A MAIS MOÇA DENTRO
TER CREDIBILIDADE”, AFIRMA DO GRUPO DA PATRONAGEM
O CTG DAS
30 MULHERES
A apenas 115 quilômetros de Porto No plano traçado, ficou decidido que Enquanto elas discutem os negócios da
Alegre, a cidade de São Francisco de ela seria a nova patroa – como prefe- entidade, os homens, mais tímidos, ao
Paula, na serra gaúcha, essencialmente rem chamar, no feminino – do CTG, canto, sentam-se, em roda, para tomar
turística e conhecida por suas baixas mas se agora estava mudando tudo, por o chimarrão e prosear. Por vezes, eles
temperaturas no inverno, ainda preser- que não uma patronagem toda compos- também são os responsáveis por provi-
va hábitos do interior. Os moradores de ta por mulheres? E Neusa conseguiu: 30 denciar a janta.
“São Chico” – como é carinhosamente mulheres – amigas, conhecidas, parentes “Aqui quem cozinha são os homens
chamada – vivem em comunidade. Lá, o – se uniram para, juntas, tocar a história e cozinham muito bem”, brinca Car-
CTG faz as vezes de clube e reúne gente do Rodeio Serrano adiante. la Marques, 51 anos, professora de
de todas as tribos: tradicionalistas, turis- De início, os maridos sentiram-se Educação Física e segunda vice do CTG.
tas, gente que quer só “arrastar um pé” e diminuídos. “Mas aí, antes de assumir, Apesar de ser uma situação atípica na
curtir a noite com os amigos, mulheres eu disse: se vocês continuarem ajudan- cultura gaúcha, a história dessas mu-
de calça jeans ou bombachas, homens de do, trabalhando, fazendo o que faziam, lheres continua sendo desconhecida da
tênis esporte. podem continuar participando”, conta maioria dos gaúchos. Novamente, assim
Essa versão democrática de um Neusa. como no caso da cantora Shana, foi o si-
centro de tradições gaúchas, contudo, A história das três dezenas de mulhe- lêncio das entidades oficiais e dos CTGs
poderia nem ter acontecido. No início res que assumiram o CTG sem a ajuda do estado que elas receberam como
deste ano, o CTG Rodeio Serrano estava de homem algum gerou burburinho resposta. “O machismo não vai permitir
com os dias contados. O lugar não tinha na comunidade. “As pessoas começa- que se eleve essa situação, ponha-se lá
patronagem, já que a antiga diretoria ram a vir ao CTG, curiosas para saber no alto, talvez não nesse primeiro mo-
não queria assumir a responsabilidade como íamos agir. ‘Elas vão dar conta?’ mento”, opina Bianca.
de mais uma gestão e não havia nenhu- Acho que tem essa coisa do ‘dar conta’, Apesar da decepção, elas se mantêm
ma outra pessoa interessada a ocupar porque a gente vive numa sociedade firmes na administração do estabeleci-
o cargo. A história, então, começou a machista, muitas vezes declarada, outras mento. Essa é a forma encontrada por
ser reescrita: Neusa dos Reis, 70 anos, vezes não”, explica Bianca Pereira, 50 elas de combater a misoginia: a presen-
frequentadora do CTG e esposa de tra- anos, veterinária e coordenadora de ça delas, pura e simples, em uma patro-
dicionalista, resolveu dar um jeito. cavalgada da entidade. nagem inteira, para tentar, aos poucos,
“Fizemos uma reunião de todas as A partir de maio, quando teve início vencer o preconceito. “Como o ma-
mulheres, só mulheres, que participa- a nova gestão de “prendas”, se estabe- chismo se mostra? Boicote, te ignoram,
vam do CTG para alguém continuar leceu que os encontros iriam acontecer ignoram um trabalho que tu faz. Nós
e fazer funcionar. Os homens não às quintas-feiras à noite, a cada 15 dias. precisamos nos superar a cada situação,
queriam mais, e nós sempre estivemos Nessas ocasiões, a mesa de madeira não que eu tenha que fazer melhor, mas
na ativa na instituição, participando, comprida da cozinha do CTG serve eu tenho que me superar, senão não vou
ajudando.” como o balcão de reunião das mulheres. ter credibilidade”, afirma Bianca.
A CAVALGADA
DELAS
É Bianca Pereira que cuida dos ani- seus arredores. A cavalgada começa no Francisco de Paula. Na sexta-feira as profissões: a mais nova entre as 30 conhecida só como a ‘filha do fulano’”. hereford. Candinha explica que eles não
mais que competem nos rodeios de São CTG Rodeio Serrano, atravessa a via anterior, Neusa, ao passar informações mulheres que compõem a patronagem, A mais velha do grupo, a própria têm capataz e, por isso, faz toda a lida
Francisco de Paula e regiões próximas, de asfalto da cidade e, geralmente, segue sobre a atividade, que estava prevista Alana Krindges, 16 anos, é estudante, Neusa, além de comandar o CTG, é de gado com o esposo. O serviço consiste
como Cambará do Sul. Além disso, a por alguma estrada de chão, para passar para domingo, foi enfática: “A cavalgada trabalha em uma pecuária e participa de dona de uma loja de pilchas – vesti- em desatolar os animais que caem no
veterinária também é a encarregada de pelos pampas desabitados. Ao final da sai com qualquer tempo.” competições de laço. Desde pequena, Ala- menta gaúcha – no centro da cidade. banhado e alimentá-los diariamente. As
fazer o checkup dos cavalos no dia da ida, há um almoço para a hora do des- E assim foi. Embora o número na pratica cavalgada e acompanha o pai De manhã cedo, a patroa acorda e, tarefas são todas divididas de forma igual
Cavalgada da Prendas. Há 26 anos, as canso e das brincadeiras – com o sorteio de mulheres tenha sido menor que o em rodeios. Apesar disso, ela conta que sempre acompanhada do mate, espera entre ela e o companheiro. Contudo, o
mulheres de São Chico já faziam questio- de prêmios e a confraternização com as esperado, 52 gurias estavam à frente do nunca havia se dado conta de que podia os clientes na loja com seu uniforme de tratamento no “mundo dos negócios”, se-
namentos. Na época, só os homens an- famílias e com o resto da comunidade – e Rodeio Serrano às 9h de uma nublada laçar. “Não era comum uma mulher todo dia: a bombacha - roupa masculi- gundo ela, se dá de maneira desigual: aos
davam a cavalo em cavalgadas de festejos também para que elas possam ganhar e gélida manhã dominical. Com longas laçar, aí uns dois anos atrás pensei assim: na, típica do homem gaúcho. “No mês olhos dos outros homens, a pecuarista
farroupilhas. Foi aí que um grupo de fôlego para a volta. Nos cerca de 12 qui- capas, que as abrigavam da chuva, além pera, eu sei andar a cavalo, eu posso fazer farroupilha [setembro], não coloco outra não tem a mesma autoridade do marido.
não mais que quatro mulheres, segundo lômetros de trajeto, os homens são apenas de proteger o corpo dos cavalos, e um isso, sei que tem mulheres que laçam, por roupa nem depois do banho, é só bom- “Eu percebo que, quando estou com
Neusa, resolveu participar da procissão coadjuvantes: o máximo que fazem é se- chapéu, que fazia as vezes de guarda- que eu não posso fazer isso?” bacha”, brinca. meu esposo, as pessoas respeitam. Eu
masculina: “A gente sabia andar a cavalo guir a procissão dentro dos carros, sendo chuva, elas rumaram à estrada e à lama Ainda assim, as coisas não ficaram Maria Cândida Moraes, a Candinha, já vi que, conforme a pessoa, estamos
e gostava de andar a cavalo.” o que as mulheres chamam de “apoio”, para reafirmar, a quem ainda não fáceis. Alana conta que está sempre 43 anos, também é uma das 30 mulheres. negociando gado e aí ela vem e fala com
No ano seguinte, o grupo criou a caso surja alguma adversidade. entendeu, que o Rio Grande também tentando se superar para conseguir reco- Ela é uma das coordenadoras de cavalga- meu esposo que está do meu lado e não
cavalgada de prendas. Anualmente, as Neste ano, o percurso foi ainda mais pertence a elas. nhecimento, ao que Bianca completa: “Se da do CTG e trabalha como pecuarista, fala comigo, sendo que eu sei igual ou
prendas desfilam com seus cavalos pela emocionante. Para o fim de semana, O grupo, diversificado, comporta não acertar laçada nenhuma, a mulher junto do marido na fazenda do casal. mais que meu esposo, porque participo
cidade de São Francisco de Paula e a previsão era de muita chuva em São mulheres de todas as idades e todas não existe naquele contexto, às vezes é Lá, eles criam gado de corte da raça de tudo.”
“EU PERCEBO
QUE, QUANDO
ESTOU COM
MEU ESPOSO,
AS PESSOAS
RESPEITAM.
EU JÁ VI QUE,
CONFORME
A PESSOA,
ESTAMOS
NEGOCIANDO
GADO E AÍ
ELA VEM E
FALA COM
MEU ESPOSO
QUE ESTÁ DO
MEU LADO
E NÃO FALA
COMIGO,
SENDO QUE
EU SEI IGUAL
OU MAIS QUE
MEU ESPOSO,
PORQUE
PARTICIPO
DE TUDO.”
CANDINHA
SHANA MÜLLER:
PRECISAMOS FALAR
SOBRE O MACHISMO
DA CULTURA GAÚCHA
Com uma rotina repleta de ativi- Cortes e Nico Fagundes. Aos 13 anos, Com a aposentadoria de Nico gaúcho, em que muitos veem a raiz
dades, Shana Müller se divide entre gravou a primeira música e, a partir de Fagundes, que apresentava o Galpão do preconceito e da misoginia, Shana
ser jornalista, apresentadora, cantora, então, começou a construir sua história Crioulo, da RBSTV, ao lado do sobri- vê a solução. A apresentadora diz que
empresária e mãe. Todas as tarefas, profissional em cima dessa vivência, nho, Neto Fagundes, Shana foi convi- o gaúcho não é um ser estanque, pelo
contudo, estão ligadas à cultura gaúcha. segundo ela, de forma muito natural. dada a assumir o seu lugar e carregar a contrário, é um ser livre.
Até mesmo a maternidade: o filho, Em Porto Alegre, Shana começou responsabilidade de levar ao programa “Talvez essa seja a característica
Gonçalo, veio ao mundo em 20 de a cursar Jornalismo na PUCRS, mas o a representação feminina, que esteve mais profunda do gaúcho, um cara a
setembro do ano passado, data que se gauchismo esteve sempre à espreita. ausente durante 30 anos. “Sempre tive- cavalo, livre. Então a gente não pode in-
comemora a Revolução Farroupilha. Além de se manter no meio musical, ela ram mulheres convidadas para cantar, centivar uma cultura estanque, que não
À época, teve gente que disse que a também demonstrava, em seus traba- mas, no momento em que eu entro, a se atualiza nem dialoga com os tempos
apresentadora havia feito de propósito, lhos jornalísticos, mais afinidade com minha visão enquanto mulher está pre- de hoje, porque, talvez, a gente também
como forma de chamar atenção. Ela o tema do nativismo. As gravações em sente todos os domingos: no texto que esteja colocando um ponto final nela. “
brinca com a situação: “Se eu pudesse, festivais de música e o lançamento do eu escrevo, na pergunta que eu faço. “ Ainda que o posicionamento da
não teria escolhido que ele nascesse em primeiro disco fizeram com que ela E foi a sua trajetória dentro do mo- apresentadora não tenha repercutido
20 de setembro, porque é o dia em que abrisse o mercado e também a cabeça vimento que a levou a ocupar espaço na da maneira desejada entre os colegas
eu tenho mais trabalho”. dos gaúchos mais conservadores. tradição gaúcha e que a permitiu chegar músicos, o Galpão Crioulo implantou
Desde pequena, Shana se viu “Uma guria cantando música ao polêmico texto “Não sou china, nem mudanças na sua concepção. Se, antes
envolvida com a cultura nativista. No campeira não era algo comum. Mas eu égua, nem quero que o velho goste”. do manifesto de Shana, não havia con-
início, foi pela dança que se encantou. sempre pensei: eu vejo o mesmo campo “Eu tenho propriedade do que eu estou trole sobre as letras e tipos de músicas
Mais tarde, ganhou o concurso de que tu, sou mulher e tu é homem, mas o falando”, ela defende. que seriam veiculadas no programa,
Prenda Regional do Estado e viajou conteúdo é o mesmo. Eu ando a cavalo, Apesar dos ruídos negativos em hoje, todas passam por inspeção para
a todas as querências do Rio Grande sei identificar gado. Esse Rio Grande do torno do seu manifesto, a jornalista ver se não estão alinhadas a nenhuma
ao lado dos tradicionalistas Paixão Sul é meu também.” é otimista. Na construção cultural do prática preconceituosa ou misógina.
“UMA GURIA
CANTANDO
MÚSICA
CAMPEIRA
NÃO ERA
ALGO
COMUM. MAS
EU SEMPRE
PENSEI:
EU VEJO
O MESMO
CAMPO QUE
TU, SOU
MULHER E TU
É HOMEM,
MAS O
CONTEÚDO
É O MESMO.
EU ANDO A
CAVALO, SEI
IDENTIFICAR
GADO. ESSE
RIO GRANDE
DO SUL É MEU
TAMBÉM.”
SHANA MÜLLER
MÁRCIA BORGES:
ENTRE O PERIGO DAS RUAS
E O PERIGO DE DENTRO DAS
INSTITUIÇÕES GAÚCHAS
Em seu trabalho como policial em que era “patrão”, concorreu e venceu relembrando os obstáculos que já en- paixão pelo tradicionalismo para lançar,
militar, era difícil imaginar que um com a maioria dos votos dos sócios. frentou em seus dois papeis. Enquanto em setembro deste ano, em parceria com
cargo do CTG fosse demandar tanta Depois de ter enfrentado a ameaça policial, por ser mulher, ela conta que o Paulo Roberto de Fraga Cirne, o livro “A
força e coragem como a profissão do de morte com uma denúncia, Márcia preconceito não veio dos colegas, mas evolução histórica da mulher gaúcha”. O
dia a dia já exige. Márcia Borges, a encarou outros obstáculos, princi- dos próprios cidadãos, que, algumas projeto foi feito com base no seu Traba-
primeira ‘‘patrão mulher’’ do 35 CTG palmente em forma de boicote a sua vezes, não a levam a sério e não a lho de Conclusão de Curso de graduação,
em 70 anos de entidade, soube lidar gestão. Apesar disso, gradualmente respeitam enquanto autoridade. Como de 2016, e fala sobre as mulheres na
com os dois: os perigos da rua e os as dificuldades foram diminuindo e “patrão”, além de todas as dificulda- formação étnica do Rio Grande do Sul.
perigos da instituição. E não é exage- a policial da Brigada Militar iniciou des que teve de enfrentar, geradas Os quatro anos de gestão de Márcia
ro: quando assumiu a patronagem do uma mudança significativa no CTG, por membros da instituição, Márcia no CTG já se encerraram, mas ela
35, Márcia sofreu ameaça de morte. a começar pela inclusão social, com também teve de lidar com os frequen- deixou de legado, além das melhorias,
Já havia um tempo que ela queria a criação de um grupo de dança de tadores do CTG, que acreditavam que o sopro de encorajamento no resto das
mudar as coisas na instituição, princi- surdos e mudos e a arrecadação de ela, por ser mulher, não iria conseguir mulheres. Para continuar tocando seus
palmente o perfil do lugar e, de certa materiais e alimentos para institui- administrar o local. projetos, quem está no comando do 35
forma, das pessoas que o frequenta- ções carentes. “Nós temos bem forte o Formada em História, Márcia é CTG hoje é sua irmã, Gleicimary Bor-
vam. Mesmo com o decorrer dos anos, trabalho da questão social, de igualdade professora da Brigada Militar no curso ges, 35 anos. Assim como a historiado-
o 35 CTG ainda permanecia elitista e de gênero, de respeito. A gente tem de alunos soldados, além de lecionar ra, Gleicimary também montou uma
excludente. A patronagem era a mes- trabalhado muito dentro da entidade e no colégio Tiradentes as disciplinas de chapa e foi eleita com a maioria dos
ma havia 12 anos e nada se fazia de com os associados.” história, sociologia e filosofia. A “patrão” votos. Já é a terceira gestão consecutiva
novo. Então ela montou uma chapa, “Não me arrependo de nada”, diz, uniu os conhecimentos em história e a comandada por uma mulheres.
“QUANDO
FAZIA UMA
SEMANA QUE
EU TINHA
ASSUMIDO
A GESTÃO
DO CTG, UM
SENHOR DA
OUTRA CHAPA,
QUE PERDEU
PARA A MINHA
NAS ELEIÇÕES,
ME DISSE QUE
SE EU NÃO
ENTREGASSE A
PATRONAGEM,
ELES IAM ME
APAGAR.”
MÁRCIA BORGES
EXPEDIENTE:
REPORTAGEM:
ALUNAS GABRIELA GARCIA
E ISADORA AIRES
FOTOS:
CAMILA HERMES
DIAGRAMAÇÃO:
THAIS LONGARAY
PROFESSORA ORIENTADORA:
THAÍS FURTADO
JORNALISTA MENTOR:
MARCELO SOARES