O Do de Luigi Nono

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O Dodecafonismo Político de Luigi Nono

Uma análise de Il Canto Sospeso

Aluno: Bernardo Cruz (a90806)

Disciplina: História e Análise Musical IV

Docente: Elisa Lessa

Ano Letivo: 2020/2021


Introdução
Para justificar a escolha da obra Il Canto Sospeso de Luigi Nono devo apresentar
um episódio do meu programa favorito de rádio em primeiro lugar. Apresentado pelo
maestro Martim Sousa Tavares, o programa, apesar de já ter tido 3 nomes distintos
(Casa de Partida, Lira de Orfeu e O Mundo à Minha Procura), mantém-se como um
programa de autor transmitido na Antena 2 sobre música e arte em geral. O episódio
que refiro passou dia 11 de Outubro de 2020 e tem por título “Escolhas Hipster” da
Lira de Orfeu.

O que tem o programa afinal a ver com Luigi Nono? É que foi quando ouvi este
episódio que tomei consciência de uma “patologia” minha. Sou um “hipster”, ou seja,
tenho prazer em descobrir, tocar e ouvir o que não conheço e se ninguém o conhecer,
melhor ainda. Ora, de toda a lista que a professora Elisa Lessa enviou para escolha das
obras, Luigi Nono foi o único que nunca me tinha vindo parar ao ouvido. Para mim, é
razão suficiente para escolher.

A escolha do tema “Música Comprometida”, depois de uma pesquisa primária


sobre Luigi Nono e Il Canto Sospeso pareceu-me mais que obvia a escolha deste tema
para uma música e um compositor tão carregados de significado político e com
escolhas politicas tão vincadas. Nono mostra explicitamente os seus ideais anti-
fascistas em variadas obras deste período da sua vida, tendo até vindo em 1975 a
Portugal e à Festa do Avante mostrar a sua música que se enquadrava com o novo
panorama político em Portugal, como será desenvolvido mais à frente.

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1 - Enquadramento Histórico.
1.1- O Compositor

Luigi Nono foi um compositor contemporâneo Italiano, nasceu em 1924


(Veneza) e morreu em 1990 (Veneza). Nasceu em Veneza numa família com grande
contexto musical e artístico. Os seus pais eram pianistas amadores e desde cedo Luigi
ouvia Mahler, Beethoven e Wagner graças à grande colecção de discos de seu pai e os
muitos concertos no teatro La Fenice, sendo os pais patronos do mesmo. A partir dos
seus 12 anos, Luigi Nono inicia as suas aprendizagens ao piano e ouve música
contemporânea pela primeira vez na famosa Bienal de Veneza.

Apesar de não ter participado na 2ª Guerra Mundial “por razões de saúde”, a


sua família mostrava-se assumidamente anti-fascista durante o período da guerra. Na
sua juventude fascinou-se por compositores como Schoenberg, Webern e os
madrigalistas italianos Monteverdi ou Gesualdo sendo que as suas primeiras
composições se inspiraram na linguagem destes madrigalistas, exemplo de La discesa
di Cristo agli inferi.

A partir de 1948, tem como mentor Hermann Scherchen, maestro alemão de


grande importância no desenvolvimento da musica contemporânea da época, sendo
que este o incentiva a frequentar pela primeira vez em 1950 os cursos de Verão de
Darmstadt (Internationale Ferienkurse für Neue Musik). Nestes cursos juntavam-se os
mais importantes compositores europeus do pós-guerra como Karlheinz Stockhausen,
Pierre Boulez, Henri Pousseur. Foi neste ambiente que Nono se afirmou no centro da
música contemporânea, estreando varias obras suas como Polifonica-Monodia-Ritmica
(1951), Epitaffio per Federico García Lorca I. España en el corazón (1952). Apesar disto,
em 1959 Nono distancia-se de Boulez e Stockhausen acusando o serialismo ortodoxo
de contraditório e incoerente.

Foi da palestra de Luigi Nono em Darmstadt em 1959 que o compositor se


distanciou dos outros compositores de Darmstadt. Stockhausen, Malipiero, Boulez,
Pouseur, Nono e Milhaud; Todos eles seguiram caminhos musicais distintos e próprios,
sendo que Nono nesta palestra criticou o serialismo integral de Stockhausen e Boulez

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como contraditório e incoerente. A partir deste período, Nono delineou as linhas
marcantes da sua música de forma consciente: Conflito social, comprometimento e
denúncia políticas. Todo este período é fulcral para explicar uma das obras-primas do
Dodecafonismo: Il Canto Sospeso.

1.2- A Obra

Il Canto Sospeso é uma Cantata para Soprano, Alto, Tenor, Coro e Orquestra
escrita entre 1955 e 1956 por Luigi Nono. Os textos usados na obra são cartas de
membros da resistência europeia durante a 2ª Guerra Mundial condenados à morte.
Na obra, “Dedicada a todos eles”, usa uma instrumentação bastante alargada,
especialmente na percussão seguindo uma tendência de exploração timbrica.

Compreende-se assim que Il Canto Sospeso surge num período de


fragmentação inicial do estilo serialista de Darmstadt. Possui muitas características
do estilo original mas apresenta já os traços caracterizantes de Luigi Nono.

Como exemplos do estilo original de Darmstadt podem enumerar-se:

- O uso de referências neo-classicas como o uso da forma Cantata, especialmente


desenvolvida no período barroco como exemplos como as Cantatas de J.S.Bach. O
Neo-Classicismo era uma ferramenta/estilo recorrente nos compositores de
Darmstadt.

-A exploração sonora: É evidente que as combinações instrumentais que Nono


apresenta para alguns dos andamentos da sua Cantata mostram um profundo
conhecimento e também uma vontade de descobrir novas sonoridades na obra. O
exemplo mais flagrante será o andamento IX onde o coro se apresenta exclusivamente
acompanhado pelos tímpanos.

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Fig.2: Estrutura de Il Canto Sospeso (1956)

Em contraste, elementos que já mostram uma individualidade bem distinta:

-O Significado politico bem presente na obra é inegável. Dificilmente se poderia


escolher uma temática mais sensível em 1956 especialmente se tivermos em conta
que a obra foi estreada na Alemanha (em Colónia) e os textos ditos em alemão. Esta
afirmação mostra portanto muito do que Luigi Nono é apesar da obra se encontrar
num período ainda bastante influenciado por Darmstadt.

- A Distorção Textual é uma técnica que Nono começa a explorar neste período e que
consiste em colocar diferentes palavras e até por diferentes elementos do coro. Foi
uma técnica bastante criticada, até por Stockhausen mas isso torna-a sem dúvida
característica de Nono.

Fig.1: Instrumentação de Il Canto Sospeso (1956)

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2.Comentários contextuais e analíticos da obra

2.1 Schoenberg e Nono

A Cantata Il Canto Sospeso foi até aqui dissecada sem se considerar um


compositor que mostrou infinitamente influente para Luigi Nono. Esse compositor é
Arnold Schoenberg. O apreço que Nono tinha por Schoenberg era enorme. Em 1954,
Nono assistiu à estreia de Moses un Aron , a ópera de Schoenberg, em Hamburgo.
Nesse concerto conheceu Nuria Schoenberg, filha do compositor e um ano mais tarde
ela e Nono acabam por casar.

Deve também referir-se uma obra de Schoenberg que influenciou


decisivamente Il Canto Sospeso: “Um sobrevivente de Varsóvia”. Esta obra apresenta
grandes semelhanças com a de Nono: Escrita em 1947, usando o método dodecafónico
numa obra dedicada às vitimas do Holocausto, Schoenberg escreve esta Cantata
usando textos escritos pelo compositor simulando o que um sobrevivente do Gueto de
Varsóvia diria. Se as semelhanças como Il Canto Suspenso não são evidentes, talvez
sejam óbvias e tudo faz sentido ao percebermos a reverência que Nono tinha por
Schoenberg.

Fig.3: Série de 12 tons usada em Il Canto Sospeso

2.2 Processo Composicional

Para compreender toda a dimensão desta obra de 30 minutos de duração é


necessário descortinar a enorme complexidade composicional da obra. Quem o
explicou de brilhante maneira foi o compositor americano Elliot Carter numa palestra
na Universidade do Minnesota em 1967. Carter explica-nos que Nono tem uma série
de 12 notas que se repete por toda a peça. A série segue uma estrutura muito simples,
são intervalos a alargar-se cada vez mais, desde uma segunda menor até à sétima
maior. Para alem da sequencia de notas, Nono criou também séries para duração de
notas e as dinâmicas. Elliot Carter exemplifica com o 2º andamento, que tem 11

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sequências de dinâmicas diferentes. Imaginar a loucura que é escrever uma obra que
tem que respeitar tantos parâmetros e criar uma obra de arte a partir de tantas regras
é um desafio apenas à altura de compositores enormes como Luigi Nono ou
Schoenberg.

Fig.3: Partitura do 2º Andamento de Il Canto Sospeso (1956)

2.3 A Estreia e Scherchen

A estreia de Il Canto Sospeso aconteceu em Colónia, dia 24 de Outubro de


1956. Conhecendo a ideia politica por trás desta Cantata de Nono e perceber que esta
foi estreada na Alemanha apenas uma década depois do fim da guerra leva-nos a
perceber o impacto que uma obra destas teve no publico. O holocausto, nessa data era
um tema muitíssimo sensível na Alemanha, e recitar textos de prisioneiros esperando
a execução pelos Nazis alemães especialmente cantados em Alemão levou a um
choque de quem ouviu a obra e levou a uma grande controvérsia.

Quem dirigiu o concerto foi o já falado Hermann Scherchen, que apoiou Nono
desde cedo e o levou nas primeiras vezes Darmstadt. Scherchen não só apoiava a
musica de Nono como também apoiava a ideologia por trás da obra. Isso é discernível
se tivermos em conta que em conta que logo em 1933, o maestro alemão abandonou
a Alemanha em protesto com a ideologia Nazi que começava a propagar-se nesses
anos. Deve referir-se que no concerto de estreia, também foram tocadas as Peças para
Orquestra op.6 e 10 de Webern e Friede auf Erden de Schoenberg.

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3. Gravação/Interpretação

A interpretação que mais me impressionou e que decidi destacar foi a gravação


em vídeo pela Orquestra SWR (Orquestra Sinfónica da Rádio do Sudoeste Alemão) de
Julho de 2017 dirigida por Peter Rundel, maestro conhecido do público português por
ser o maestro do Remix Ensemble da Casa da Música. Os solistas são: Mojca Erdmann
(Soprano) Jenny Carlstedt (Alto) Robin Tritschler (Tenor). O coro é o SWR
Vokalensemble. Esta gravação está disponível no Youtube no canal da SWR Classic.

Apesar de haver gravações áudio de enorme interesse musical,


nomeadamente uma gravação da estreia de 1956 em Colónia, e dificilmente haverá
alguma gravação mais interessante, a gravação vídeo traz percepções novas da
obra. As características que mais me despertaram a atenção foram o uso da técnica
pontilhista, técnica usada nessa época na pintura também. Ao ver a gravação vídeo
é muito mais palpável esta técnica porque podemos observar, especialmente nos
andamentos para coro que é impossível dirigir a atenção para um instrumento mais
de 3 ou 4 segundos porque a linha melódica esta constantemente a mudar de
instrumento.

É especialmente curioso ver e perceber na gravação a variedade timbrica e a


dimensão da orquestração que Nono pede para esta Cantata. É recorrente na
gravação ver os percussionistas esperarem e prepararem-se para uma passagem
sendo que passagem não passa de uma nota ou um tremolo.

Devo destacar nesta gravação o excelente papel que o coro da Radio do


Sudoeste Alemão que demonstra o absoluto terror dos textos que os membros da
resistência mostram perante a proximidade da morte. As passagens e andamentos
do coro são muitas vezes assombrosos e ver aquelas dezenas de pessoas no coro a
gritar palavras tão difíceis é algo que me causa arrepios. Especialmente o final do
último andamento onde o coro desaparece lentamente e o silencio é assoberbante.

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Bibliografia, Webgrafia e Discografia

-Guerrero, Jeannie (2006) Serial Intervention in Nono´s Il Canto Sospeso

-Elliot Carter Studies;

https://studies.elliottcarter.org/volume03/01Emmery/01Emmery.html

-Fondazione Archivio Luigi Nono

- http://www.luiginono.it/en/works/il-canto-sospeso/

-http://www.luiginono.it/en/luigi-nono/biography/

-Peter Rundel (Casa da Música)

-https://www.casadamusica.com/pt/artistas-e-obras/maestros/r/rundel-peter/#tab=0

- Nielinger, Carola (2020) ‘The Song Unsung’: Luigi Nono's Il canto sospeso

- Gravação SWR Orchestra, (Julho 2020, Freiburg) Il Canto Sospeso

- https://www.youtube.com/watch?v=58YmocJewH0&t=42s

-CD Studio Wolfgang Feder (2005) Ilse Hollweg, soprano; Eva Bornemann, alto;
Friederich Lenz, tenore; Sinfonieorchester des WDR; Chor des WDR; dir. Hermann
Scherchen. (1956,Colonia)

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