DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO - Novas Perspectivas de Análise

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DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO:

novas perspectivas de análise

organizadores:
José Geraldo Silveira Bueno
Geovana Mendonça Lunardi Mendes
Roseli Albino dos Santos

junqueira&marin
editores
..................................................................................

Coordenação: Dinael Marin


Capa e Projeto Gráfico: www.zerocriativa.com.br
Impressão: Gráfica Compacta
Revisão Gramatical: Maria Aparecida Boschi Ribeiro
..................................................................................

CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO-NA-FONTE
SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE
LIVROS, RJ

D358

Deficiência e escolarização : novas perspectivas


de análise / organizadores : José Geraldo Silveira Bueno,
Geovana Mendonça Lunardi Mendes, Roseli Albino dos
Santos. - Araraquara, SP : Junqueira&Marin ; Brasília, DF
: CAPES, 2008.

Inclui bibliografia
ISBN 978-85-86305-54-2

1. Inclusão em educação. 2. Crianças


deficientes - Educação. 3. Educação especial. I. Bueno, José
Geraldo Silveira. II. Mendes, Geovana Mendonça Lunardi.
III. Santos, Roseli Albino dos. IV. Brasil. Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

08-0987. CDD: 371.928


CDU: 376.2

13.03.08
13.03.08 005714
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DIREITOS RESERVADOS

J.M. Editora e Comercial Ltda.


Junqueira&Marin Editores
Rua Voluntários da Pátria, 3238
Fone/Fax: 16 - 3336-3671
CEP 14802-205
Araraquara - SP
www.junqueiraemarin.com.br
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Proibida a reprodução total ou parcial desta edição, por


qualquer meio ou forma, em língua portuguesa ou qualquer
outro idioma, sem a prévia e expressa autorização da
editora.
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Esta edição recebeu apoio da CAPES - Coordenação de
Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior

..................................................................................
Impresso no Brasil
Printed in Brazil
..................................................................................
SUMÁRIO

PREFÁCIO
Cláudia Pereira Dutra – SEESP/MEC/Brasil ............... 7

APRESENTAÇÃO
José Geraldo Silveira Bueno – PUC/SP .................... 17

PARTE 1 - AS POLÍTICAS DE INCLUSÃO ESCOLAR

Capítulo 1
Políticas atuais de inclusão escolar:
reflexão a partir de um recorte conceitual
Maria Helena Souza Patto ......................................... 25

Capítulo 2
As políticas de inclusão escolar:
uma prerrogativa da educação especial?
José Geraldo Silveira Bueno ...................................... 43
PARTE 2 – ESCOLA, DOCÊNCIA E DEFICIÊNCIA

Capítulo 3
Desenhando a cultura escolar:
ensinoaprendizagem e deficiência mental
nas salas de recursos e nas salas comuns
Fabiany de Cássia Tavares Silva ............................... 67

Capítulo 4
Nas trilhas da exclusão: as práticas curriculares
de sala de aula como objeto de estudo
Geovana Mendonça Lunardi Mendes ...................... 109

Capítulo 5
Práticas de professores do ensino regular com
alunos surdos inseridos: entre a democratização
do acesso e permanência qualificada e a reiteração
da incapacidade de aprender
Mércia Aparecida da Cunha Oliveira ....................... 163

Capítulo 6
Práticas de ambigüidades estruturais e a reiteração
do modelo médico-psicológico: a formação de
professores de educação especial na UFSC
Maria Helena Michels .............................................. 205

PARTE 3 – PROCESSOS DE ESCOLARIZAÇÃO DE


ALUNOS COM DEFICIÊNCIA

Capítulo 7
Escolarização e deficiência:
a escolha da escola
Adarzilse Mazzuco Dallabrida .................................. 251
Capítulo 8
Inclusão de crianças deficientes mentais
no ensino regular: limites e possibilidades
de participação em sala de aula
Benigna Alves Siqueira ............................................ 301

Capítulo 9
A trajetória de escolarização e acesso
à profissão docente de professores deficientes
no ensino público de São Paulo
Edson Alves Viana ................................................... 349

Capítulo 10
Processos de escolarização e deficiência:
trajetórias escolares singulares de ex-alunos
de classe especial para deficientes mentais
Roseli Albino dos Santos ......................................... 415

Notas ....................................................................... 469


PREFÁCIO
Ao realizar o prefácio desta obra, desenvolvida
no âmbito do Programa de Apoio à Pesquisa em Educação
Especial – PROESP/CAPES/SEESP/MEC, quero registrar
a importância do estabelecimento de diálogo entre os
estudos e pesquisas realizadas pela academia e as políticas
públicas, para que possamos construir um debate profícuo
e orientador de novas propostas acerca da educação
inclusiva.
“Deficiência e escolarização: novas perspectivas
de análise”, organizada pelos professores José Geraldo
Silveira Bueno, Geovana Mendonça Lunardi Mendes e
Roseli Albino dos Santos, consiste em um relevante
trabalho a ser conhecido pelos pesquisadores e educadores
que se dedicam à área de conhecimento da Educação
Especial e às diferentes áreas que se relacionam à docência.
Revela a construção de uma crítica sistemática e rigorosa,
necessária em um momento histórico em que a Educação
Especial passa por um processo de sedimentação de suas
bases, ancorada no movimento mundial de educação
inclusiva. Neste sentido, vale reconhecer a importância
destas problematizações sobre a incidência da política de
educação inclusiva no cenário educacional brasileiro
enquanto indutoras de novas e promissoras reflexões que
darão sustentação ao projeto de recriação da escola. A
reflexão crítica sobre a Educação Especial e sua organização
precisa existir para questionar o instituído, e assume seu
sentido pleno quando complementada com o apontamento
de possibilidades de mudanças do cenário educacional
atual.
A obra organiza-se em torno de três eixos: As
políticas de inclusão escolar; Escola, docência e deficiência;
Processos de escolarização de alunos com deficiência.
Constituída de uma coletânea de artigos, resultado de
pesquisas sobre a Educação Especial e sua articulação com
a Educação Básica, lança aos leitores a possibilidade de

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 9


adentrar na discussão que atualmente tem se tornado
imprescindível no cenário educacional: a educação
inclusiva.
A primeira parte do livro, “As políticas de
inclusão escolar”, constitui-se de dois artigos: “Políticas
atuais de inclusão escolar: reflexão a partir de um recorte
conceitual “, de autoria da Professora Maria Helena Souza
Patto, e “As políticas de inclusão escolar: uma prerrogativa
da educação especial?”, escrito pelo Professor José Geraldo
Silveira Bueno.
Nesse feixe teórico, a autora Maria Helena
Souza Patto discute as políticas de inclusão social e escolar
e a possível contradição entre essa proposta e o sistema
capitalista vigente. Realizado sob um olhar crítico à
estrutura organizacional da sociedade atual, o texto
destaca a relação inclusão/exclusão no sistema capitalista
e a produção de ‘novas’ formas de inclusão submissas aos
ditames do capital, da produção e da rentabilidade. A
leitura deste artigo permite esclarecer os meandros
desenvolvidos pelo sistema capitalista e sua relação com a
educação. Da mesma forma, permite realizar esta análise
sob um prisma diferenciado, no qual a resistência ao
sistema vigente apresenta-se configurada pela garantia
do acesso ao processo de escolarização por via das políticas
públicas de educação para a emancipação, e pelo alerta da
necessidade de transformação nas práticas de gestão dos
sistemas de ensino.
Na mesma linha argumentativa, o professor
José Geraldo Silveira Bueno, na organização do capítulo
“As políticas de inclusão escolar: uma prerrogativa da
educação especial?”, analisa o processo de inter-relação
entre a educação especial e a educação inclusiva centrando-
se na discussão conceitual destes termos, no público-alvo
e nas perspectivas políticas da inclusão escolar. No seu
texto, problematiza as traduções dos documentos legais

10 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


internacionais que orientam a organização da educação
especial no Brasil e aponta o conhecimento dos conceitos
como fundamental para a elaboração das propostas
educacionais. Nesse sentido, segundo o autor, a forma de
traduzir e/ou definir os conceitos altera o entendimento
sobre o alunado da educação especial e as concepções
organizacionais dos sistemas de ensino, restringindo as
políticas de inclusão.
A segunda parte do livro “Escola, docência e
deficiência” é organizada pela compilação de quatro
capítulos que contextualizam a inclusão escolar no âmbito
da gestão dos sistemas de ensino, dos processos formativos
e da proposição de práticas pedagógicas que contemplam
as diferenças.
No artigo “Desenhando a cultura escolar:
ensinoaprendizagem e deficiência mental nas salas de
recursos e nas salas comuns” Fabiany de Cássia Tavares
Silva indaga a forma como as práticas pedagógicas são
estruturadas para a aprendizagem dos alunos com
deficiência mental. Sua pesquisa busca compreender os
mecanismos que a instituição escolar cria para ‘fabricar’
os indicadores de necessidades especiais dos alunos, que
reiteram o aluno como único responsável pelo sucesso e/
ou fracasso no processo de aprendizagem. A investigação
analisa a forma de articulação do trabalho entre a sala de
recursos e a sala de aula comum, considerando o espaço e
o tempo escolar como categorias fundamentais e
definidoras da cultura escolar em relação à inclusão do
aluno com deficiência mental.
“Nas trilhas da exclusão: as práticas
curriculares de sala de aula como objeto de estudo”, de
Geovana Mendonça Lunardi Mendes, apresenta os
resultados de sua busca investigativa que objetivou
compreender as práticas curriculares da escola diante das
diferenças dos alunos no processo de ensino e

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 11


aprendizagem. Guiada pelos pressupostos teóricos de
Bourdieu (1975, 1998, 2001) e seguidores da sociologia
crítica, a autora analisa a prática curricular de uma escola
pública da rede de ensino de Florianópolis/SC, constatando
que a organização curricular, quando não refletida na
proposição prática, constitui-se em instrumento de
exclusão escolar. Esse mecanismo exclui na medida em
que ignora as diferenças de aprendizagem, rotulando os
alunos como incapazes, com dificuldade de aprendizagem
e/ou com deficiência.
“Práticas de professores do ensino regular com
alunos surdos inseridos: entre a democratização do acesso
e permanência qualificada e a reiteração da incapacidade
de aprender”, de Mércia Aparecida da Cunha Oliveira, diz
respeito a pesquisa realizada em uma escola pública com
alunos surdos incluídos nas séries finais do ensino
fundamental. Esse estudo constata que as ações
pedagógicas dos professores dos alunos surdos incluídos
não consideram as especificidades que a surdez requer
para o sucesso na aprendizagem. Da mesma forma, aponta
a necessidade de desenvolver práticas de trabalho
colaborativo entre os professores que atuam na sala de
aula comum e os professores da educação especial. Revela,
diante disso, a necessidade de desestruturar a
homogeneidade da prática educativa e de investir em
processos formativos docentes que considerem as
diferenças e esclareçam os serviços e recursos necessários
para a escolarização dos alunos surdos.
“Práticas de ambigüidades estruturais e a
reiteração do modelo médico-psicológico: a formação de
professores de educação especial na UFSC” de autoria de
Maria Helena Michels centra o relato da investigação na
análise das propostas de cursos de graduação para a
formação de professores na educação especial, oferecidas
pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC entre

12 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


1998 e 2001. Realiza um estudo comparativo entre a
formação oferecida na modalidade emergencial – para
professores que já atuam no sistema de ensino – e para
professores em formação inicial - que não atuam
efetivamente nas escolas. À luz dos referenciais de
Bourdieu (1989, 1990, 2001, 2003), Viñao Frago (1996,
1998), Escolano (2000) e Montoya (1997), a autora revela
a permanência de ambigüidades estruturais na organização
dos cursos de formação de professores, em que
predominam ainda, os pressupostos do modelo médico-
psicológico na formação para a atuação pedagógica com
alunos com deficiência e aponta a necessidade de primar
pela qualidade da formação oferecida, independente da
modalidade.
A terceira parte do livro “Processos de
escolarização de alunos com deficiência”, é constituída de
quatro capítulos que tratam dos percursos de escolarização
dos alunos com deficiência, bem como dos benefícios de
uma escola heterogênea para a aprendizagem e
desenvolvimento dos alunos.
No capítulo “Escolarização e deficiência: a
escolha da escola”, Adarzilse Mazzuco Dallabrida socializa
os principais resultados de sua pesquisa, que analisa as
motivações e expectativas de famílias que pertencem às
classes superiores sobre a escolarização de seus filhos
deficientes e a forma de atendimento e organização dessas
escolas. Utilizando-se de conceitos de Bourdieu (1998,
2003, 2004), a autora constata que o investimento dessas
famílias na educação de seus filhos deficientes representa
a conversão do capital econômico em capital cultural. Desta
forma, essa conversão também constituiria uma
alternativa adotada pelos pais para, através da
escolarização e da manutenção de relações sociais,
minimizar os processos de exclusão dos seus filhos.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 13


Em “Inclusão de crianças deficientes mentais
no ensino regular: limites e possibilidades de participação
em sala de aula”, de Benigna Alves Siqueira, a discussão
tem como eixo analítico a inclusão de alunos com deficiência
mental na escola comum. Partindo da reflexão sobre uma
realidade desfavorecida economicamente, a autora apóia
sua explanação nas políticas públicas internacionais e
nacionais que indicam a proposta de educação inclusiva e
em autores que criticam a organização da educação
especial e da escola em moldes fragmentadores de ensino.
Em seus resultados, organizados a partir da proposição
de duas categorias de análise - o pertencimento à classe e
as atividades relativas ao aprendizado -, a autora indica
que a proposta de inclusão deve transcender à mera
presença do aluno na sala de aula comum, devendo ser
uma proposta educativa que assegure a participação do
aluno com deficiência mental como membro efetivo da
turma. Assim, no que tange às atividades, estas devem
ser organizadas de acordo com as possibilidades de
aprendizagem do aluno, permeadas pela intencionalidade
educativa por parte do professor.
“A trajetória de escolarização e acesso à
profissão docente de professores deficientes no ensino
público de São Paulo”, de Edson Alves Viana, diz respeito
a um processo investigativo que tem a intenção de
explicitar a formação escolar de pessoas deficientes e as
políticas de escolarização e inclusão escolar, apresentando
uma perspectiva de análise inovadora - a perspectiva de
sucesso - no conjunto das construções teóricas
apresentadas na obra. A pesquisa estrutura-se a partir
da análise da trajetória de formação de professores com
deficiência e busca conhecer os fatores intra e extra-
escolares que contribuíram para que conseguissem vencer
as barreiras interpostas a uma escolarização plena, que se

14 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


transformasse em formação e atuação profissional
satisfatória. Os participantes da pesquisa foram três
professores: um com deficiência auditiva, um com
deficiência física e outro com deficiência visual. Na
conclusão, o autor destaca que as condições sociais,
econômicas e culturais, bem como as concepções das
famílias acerca da deficiência são elementos definidores
do sucesso escolar dos alunos com deficiência.
“Processos de escolarização e deficiência:
trajetórias escolares singulares de ex-alunos de classe
especial para deficientes mentais”, de Roseli Albino dos
Santos apresenta sua pesquisa que objetivou compreender
como se constitui a trajetória escolar e os resultados
alcançados no processo de escolarização de alunos
considerados com deficiência mental que freqüentaram
classes especiais, a partir do relato dos próprios alunos.
Como indicativos conclusivos, a autora aponta que, tanto
a educação especial quanto a educação comum, na
trajetória desses alunos, assumiram um caráter
classificatório, destacando que as classes especiais não
serviram de instrumento para auxiliar na sua
aprendizagem. Assim, a análise das trajetórias escolares
dos alunos com deficiência mental demonstra que suas
experiências escolares são demarcadas, ao longo do
processo, por práticas homogeneizadoras de ensino e
aprendizagem, norteadas pela ideologia do esforço e do
dom como condição básica para o sucesso escolar.
As entrelinhas dessas produções revelam a
emergência de ressignificar as práticas escolares através
de um processo formativo docente que contemple as
especificidades da educação especial aliadas à escolarização
comum e aos movimentos sociais neste momento histórico.
Assim, esta leitura, crítica e esclarecedora instiga a
continuar os estudos na área da educação especial e,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 15


sobretudo, contribui para que possamos de fato inaugurar
um novo estatuto no interior da escola.

Cláudia Pereira Dutra


Secretária de Educação Especial
MEC/Brasil

16 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


APRESENTAÇÃO
Esta coletânea pretende coroar uma trajetória
de estudos e investigações iniciada em 1997 com a
reformulação do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Educação: História, Política, Sociedade, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo.
Naquela oportunidade, o programa foi
estruturado em torno de projetos de pesquisa de escopo
relativamente largo, que pudessem abrigar professores,
alunos e pesquisadores externos em torno de temáticas
abrangentes mas definidas.
Foi sob essa ótica que um grupo de professores,
interessados no estudo da escola básica brasileira
contemporânea, elaborou e implementou amplo projeto
denominado “Escola: entre saberes, professores e alunos”,
norteado por eixo que persegue as relações entre escola e
cultura, com o aporte das ciências sociais.
A escolha desse aporte se deveu à perspectiva
teórica de que a compreensão da escola e de sua atuação
numa perspectiva cultural exigia análises relacionais, para
que se apreendesse o sentido das práticas na teia de
significados que constitui a cultura escolar, em suas
relações mais amplas com o contexto histórico-social. Além
disso, considerávamos que a entrada ou ajuste de foco
numa faceta de sua atuação deveria se articular
necessariamente às outras, pois na atuação da escola não
se apartam dimensões como a docência, o currículo, os
alunos.
Nesse sentido, dentre as mais diversas
possibilidades, desdobramos o projeto em três sub-
projetos que constituíram os núcleos centrais de nossas
investigações: os saberes, a docência e os alunos.
Dentre esses três sub-projetos, coube-me o
privilégio de coordenar aquele que se voltou às
investigações cujo foco fundamental eram os alunos, no
qual foram criadas três frentes: trajetórias escolares,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 19


condição de aluno e diversidade cultural na
escola.
Embora não se restringindo somente a esse
tema, muitas investigações discentes se voltaram para a
relação entre processos de escolarização e deficiência,
certamente pela atração que a minha trajetória pregressa
como educador, docente e pesquisador, construída, em boa
parte com base nesse campo, exerceu sobre eles.
O que nos pareceu inovador, com relação aos
estudos tradicionais da chamada educação especial, foi a
perspectiva adotada que, sem desconsiderar as marcas
ímpares da deficiência que diferenciam esses sujeitos dos
demais, procurou analisar os processos de escolarização
dessa população, inserida em classes regulares ou em
classes e escolas especiais, para além das condições
intrínsecas às suas deficiências, em especial aquelas
decorrentes de suas origens sociais e familiares, também
determinadas por diferenças de classe, raça e gênero.
Após dez anos de vigência desse amplo projeto,
o grupo de pesquisadores responsáveis chegou à conclusão
de que era chegada a hora do seu desmembramento, na
medida em que a trajetória comum havia possibilitado a
criação de lastro suficiente para projetos mais delimitados,
sem perder, no entanto, a sua capacidade de agregação de
professores, alunos e pesquisadores externos.
Assim, a partir de 2006, mas de forma mais
solidificada e estruturada no presente ano, aquele sub-
projeto transformou-se no atual, “Inclusão/Exclusão
Escolar e Desigualdades Sociais”, que pretende
desenvolver estudos e investigações sobre os processos
de inclusão e exclusão escolar, tendo por base os estudos
originários da sociologia e história da educação que possam
contribuir como referência para análises dos processos de
escolarização, tanto no que se refere ao seu caráter de
seleção e classificação social, quanto o de promotora de

20 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


possibilidades de acesso aos bens culturais necessários à
inserção social, com uma dupla entrada: processos de
escolarização e seletividade escolar e políticas e
práticas de inclusão escolar.
Tendo em vista a conclusão dessa etapa, com a
construção deste novo projeto, é que apresentamos aqui
um conjunto de textos originários de pesquisas de alunos
que redundaram em dissertações de mestrado e teses de
doutorado, sobre temática relevante e atual, qual seja a
da relação entre processos de escolarização e deficiência.
Neste momento, não poderia deixar de fazer
um agradecimento especial à Profª Drª Maria Helena
Souza Patto, do Instituto de Psicologia da USP, que abriu
de forma brilhante o seminário de pesquisa elaborado pelos
membros do Projeto, realizado na PUC/SP em 2006, pela
aquiescência ao convite para que o texto de sua conferência
abrisse esta coletânea.
Queria também deixar aqui registrado o meu
agradecimento aos professores do Programa que trilharam
esse caminho comigo, assim como aos alunos e
pesquisadores externos que não fazem parte dos autores
desta coletânea, mas muito contribuíram para que ela
pudesse se concretizar.

São Paulo, março de 2008


José Geraldo Silveira Bueno

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 21


PARTE 1

AS POLÍTICAS DE
INCLUSÃO ESCOLAR
POLÍTICAS ATUAIS DE INCLUSÃO
ESCOLAR1: REFLEXÃO A PARTIR
DE UM RECORTE CONCEITUAL

Maria Helena Souza Patto2


USP/SP

Uma das coisas que mais me intriga no Brasil


de hoje é o uso epidêmico da palavra “inclusão”. Ela está
na midia, no discurso de políticos, em documentos de
Ministérios, de Secretarias estaduais e municipais e de
organizações não-governamentais; ela está na produção
acadêmica e no senso comum. E intriga porque esse uso
acontece num momento especialmente cruel da história
do capitalismo, em que o número de pessoas cujo trabalho
tornou-se desnecessário ao capital ampliou-se em escala
mundial. A exclusão de um enorme contingente da
população economicamente ativa do trabalho formal
produz um excedente de oferta de mão-de-obra que
degrada salários e muda até mesmo os critérios de seleção
de pessoal, quer dando espaço ainda mais largo a
estereótipos e preconceitos como a cor da pele, quer
exigindo níveis de escolaridade que não guardam relação
com o trabalho a ser realizado. Ao mesmo tempo, no marco
da lógica neoliberal, privatiza-se a responsabilidade do

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 25


poder público pelo provimento dos direitos sociais, entre
os quais o direito à educação, e despontam no cenário da
inclusão, sobretudo de crianças e jovens, grandes grupos
empresariais e centenas de Organizações Não-
Governamentais que se propõem a provê-los. Num
momento de dispensa em massa do trabalho, fala-se o
tempo todo em incluir. Resta saber em que termos. Este é
o cerne da questão. Para respondê-la é preciso entender
o processo de exclusão sob o modo capitalista de produção
ontem e hoje.

O conceito de exclusão

As iniciativas de entendimento sociológico da


existência de contingentes de desempregados e
subempregados na América Latina datam dos anos
sessenta. Entre os órgãos criados com esse fim destacou-
se a Comissão Econômica para a América Latina (CEPAL)
que se propunha a estudar contingentes populacionais
latino-americanos não só para sua identificação empírica,
mas sobretudo para sua compreensão teórica. Em 1966,
esse órgão publicou Notas sobre o Conceito de
Marginalidade Social, texto no qual seus técnicos faziam
uma crítica das definições então presentes na literatura
especializada, todas elas centradas na definição da
marginalidade social como “falta de integração” ou “falta
de participação” das populações marginais nas sociedades
em que vivem (PEREIRA, 1971). Eram concepções
calcadas na idéia de exclusão social. Num dos textos
analisados, os grupos marginais eram definidos como
portadores de limitações em seus direitos de cidadania,
dada a insuficiência de recursos dos países
subdesenvolvidos e, por isso, impedidos de integração no
processo econômico e de mobilidade social ascendente.
Coerente com essa concepção, a redenção viria de

26 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


programas de promoção social. Segundo o estudo da
CEPAL, essas explicações estruturalistas-funcionalistas
tinham como meta a produção de consenso e de
estabilidade social.
Em direção que acreditavam contrária, os
pesquisadores desta Comissão definiram os grupos
marginais como resultado de “um modo limitado e sem
consistência de pertencer e de participar da estrutura
geral da sociedade” (PEREIRA, 1971, p. 161). Para eles, a
marginalidade podia ser por desajustamento ou radical.
Na primeira, a inserção é inconsistente, mas os
marginalizados pertencem às estruturas dominantes da
sociedade; na segunda, participam marginalmente dos
setores econômico, social e político.
Embora se declarassem portadores de uma
visão “estruturalista-histórica” de sociedade, os técnicos
da CEPAL não foram, segundo Pereira, até o fim da leitura
marxista do capitalismo; por isso, introduziram
ambigüidades na interpretação do fenômeno da
marginalidade social. No centro dessa indecisão teórica
estava o entendimento de “estrutura geral da sociedade”
como constituída dos setores econômico, social e político,
quando, segundo Pereira, a investigação da origem das
populações “marginais” só pode ser conseqüente quando
se detém no plano da lógica da economia capitalista nos
países periféricos. Não basta, porém, remeter o estudo
dessa origem à esfera econômica em termos que não
atingem o cerne da questão. Há explicações teóricas da
marginalidade que a atribuem ao fato de que, nos países
subdesenvolvidos, algumas regiões ficam de fora do
desenvolvimento capitalista industrial, o que tem um
efeito excludente sobre os que vivem nesses polos
atrasados da economia. Em outros termos, nesses países,
a população sobrante não seria despossuída pelo sistema
capitalista, mas apenas agravada por ele, uma vez que,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 27


em condições subdesenvolvidas, o capital não tem
condições de incorporar o excedente dessa modalidade sui
generis de “exército de reserva”.
De qualquer forma, todas essas explicações –
desde as criticadas pela CEPAL, passando pela concepção
desse próprio órgão, até as interpretações centradas na
economia, mas isentando o capitalismo por sua produção
– põem a questão em termos antropológicos ou sociológicos
que superam as versões ideológicas fundadas no mais puro
preconceito rancoroso contra os pobres, como é o caso da
declaração de uma representante da Secretaria do Bem-
Estar Social da Prefeitura do Município de São Paulo que,
numa entrevista publicada num jornal paulista no começo
dos anos setenta, apontou como causas da marginalização
de meio milhão de pessoas na área metropolitana “a falta
de motivação para progredir, o alcoolismo, a toxicomania,
a delinqüência, a prostituição e vários tipos de deficiências
físico-mentais.”

Em 1969 o sociólogo Luiz Pereira escreveu


Populações “marginais”, ensaio publicado em 1971 que
se tornou um clássico. Partindo de uma análise de conteúdo
do texto da CEPAL e fazendo a crítica da teoria sociológica
que lhe serviu de base, ele propõe uma definição das
populações “marginais” nos países capitalistas periféricos
no marco da interpretação materialista histórica da lógica
do capital. No centro, a concepção marxista de trabalho,
as relações capitalistas de produção e a acumulação do
capital, acentuada nos países periféricos, dado o seu caráter
especialmente excludente e produtor de superabundância
de oferta de força de trabalho, que pode ou não estar ligada
ao crescimento demográfico. Ou seja, este autor fez falar
os silêncios contidos na concepção da CEPAL, superando-a

28 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


como visão ideológica das populações marginais.3
No marco teórico materialista histórico, as
populações “marginais” são produto da dinâmica interna
do capitalismo e de suas especificidades infraestruturais
nos chamados países periféricos. De um lado, a exploração
pesada dos trabalhadores reduz os postos de trabalho; de
outro, distribui-se a renda de modo a contemplar os
segmentos situados na parte mais alta da pirâmide: os
empregados trabalham muito, recebem pouco e não têm
garantidos os direitos sociais. É no interior dessa dinâmica,
e não fora dela, que se pode entender o lugar das
populações “marginais” na economia capitalista como de
participação-exclusão: “estes estão no interior do sistema
econômico, participando do mercado de trabalho como
ofertantes, mas não necessária e definitivamente
incorporados ao processo global de produção, dada a
debilidade crônica da demanda de força de trabalho que
tipifica o sistema econômico capitalista “periférico” em sua
etapa contemporânea. É esta debilidade que diferencia o
sistema capitalista ‘periférico’ contemporâneo do sistema
econômico capitalista ‘central’, clássico ou contemporâneo,
quanto ao fator trabalho.” São essas populações que, em
grande parte, estão abaixo do limite da necessidade de
força de trabalho, “o que faz com que elas se insiram
instavelmente no sistema capitalista periférico, competindo
entre si para atingirem tal limite, porque esse sistema
prescinde de boa parte desse contingente populacional,
embora não de todo ele” (PEREIRA, 1971, pp. 167-168).
A parcela não-prescindida inclui o que seria estritamente
o exército de reserva; a parcela prescindida seria o
“excedente do excedente”. 4 E “o sistema econômico
capitalista ‘periférico’ tende a expelir, a expulsar, a
extinguir (pela fome inclusive), a parte excedente desse
contingente, porque dela prescinde para o seu
funcionamento, em determinado estágio de seu

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 29


desenvolvimento.” (PEREIRA, 1971, p. 168)
Lembremo-nos que se estava então na década
de sessenta. Sabemos que, de lá para cá, e por motivos
bastante estudados nos últimos vinte anos, a debilidade
da demanda de força-de-trabalho cresceu em escala
mundial e aprofundou-se ainda mais onde já era funda.5

Cerca de vinte e cinco anos depois, o sociólogo


José de Souza Martins retoma a questão da marginalidade
social, agora numa fase do capitalismo que substitui em
ritmo crescente a força de trabalho pela tecnologia e
dispensa em larga escala o trabalho humano. No entanto,
isso não quer dizer que estejamos diante de uma sociedade
excludente. Sociologicamente, afirma Martins, a exclusão
não existe. Ela é um traço congênito do capitalismo, mas
“a sociedade capitalista desenraíza, exclui, para incluir,
incluir de outro modo, segundo suas próprias regras,
segundo sua própria lógica. O problema está justamente
nessa inclusão.” (MARTINS, 1997, p. 31-32, grifos meus)
O cerne da questão está no novo ritmo e nas
novas formas de inclusão. Antes o capitalismo excluía e
rapidamente incluía: os camponeses eram expulsos do
campo e rapidamente absorvidos no trabalho industrial.
Nos últimos anos, a inclusão tarda: “o período de passagem
do momento de exclusão para o momento da inclusão está
se transformando num modo de vida, está se tornando
mais do que um período transitório” (MARTINS, 1997 p.
33). Daí a atenção equivocada à exclusão. Além disso, no
interior da nova desigualdade, mais larga e mais cruel do
que a precedente, os modos atuais de inclusão causam,
como regra, degradação. As formas de absorver a
população excluída estão mudando, ou seja, estão gerando
condições sub-humanas de vida. São muitos os casos

30 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


dramáticos de reintegração que vem acompanhada de
graves danos morais, entre os quais o autor menciona os
camponeses que, expulsos da terra, agora são reincluídos
como trabalhadores escravos e as meninas nordestinas
que se prostituem para ganhar a vida e que não são
excluídas, mas incluídas como prostitutas: “na lógica fria
do mercado, essas meninas estão entrando no setor de
serviços sexuais do chamado pornoturismo” (MARTINS,
1997, p. 29). O mesmo vale para as crianças e jovens que
encontram o “primeiro emprego” no mundo do tráfico.
Incluídas economicamente, ainda que de modo
precário, mas excluídas no plano social, as pessoas que
moram nos guetos ou “áreas de excludência” estão
constituindo um mundo à parte, “que já não é o mundo
dos pobres” (MARTINS, 1997, p. 34): de um lado, os
integrados, ricos ou pobres – os que são tidos como
“gente”; de outro, os que só têm como saída as formas de
inclusão perversa – os que, por influência da midia, são
tidos como “bandidos”, “animais” ou “monstros”, tornam-
se objeto da barbárie da polícia e de grupos de extermínio
e abarrotam moradias sub-humanas, presídios e
cemitérios. Dizendo de outro modo, a pobreza “mudou de
forma, de âmbito e de conseqüências. Estamos longe do
tempo em que pobre era quem não tinha apenas o que
comer. (...) A privação hoje é mais que privação econômica.
Há nela, portanto, certa dimensão moral. A velha pobreza
oferecia ao pobre a perspectiva de ascensão social, com
base em pequenas economias feitas à custa de duras
privações ou por meio da escolarização e do estudo de filhos
e netos, quando possível. A nova pobreza já não oferece
essa alternativa a ninguém. Ela cai sobre o destino dos
pobres como uma condenação irremediável. (...) Hoje se
dissemina rapidamente a consciência de que quem
trabalha para outrem não tem a menor possibilidade de
mais adiante receber a sua parte no bolo, da acumulação

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 31


propiciada pela obra coletiva. Além disso, o próprio
trabalho vai sendo lentamente desmoralizado e deixa de
ser o meio privilegiado de integração positiva na sociedade
atual. É verdade que a paciência histórica das novas
gerações é cronologicamente muito reduzida em relação à
de nossos avós, dispostos ao sacrifício para que os frutos
de seu trabalho penoso fossem colhidos pelos netos. As
novas gerações tornaram-se, com razão, impacientes. De
modo que o discurso do caráter redentor da pobreza digna
já não comove nem convence.” (MARTINS, 1997, p. 18-
19)
Portanto, o conceito puro e simples de exclusão
social não dá conta do que se passa atualmente nas
sociedades capitalistas: “As políticas econômicas atuais, no
Brasil e em outros países, que seguem o que está sendo
chamado de modelo neoliberal, implicam a proposital
inclusão precária e instável, marginal. Não são
propriamente políticas de exclusão. São políticas de
inclusão das pessoas no processo econômico, na produção
e circulação de bens e serviços, estritamente em termos
daquilo que é racionalmente conveniente e necessário à
mais eficiente (e barata) reprodução do capital. E também
ao funcionamento da ordem política, em favor dos que
dominam. Esse é um meio que claramente atenua a
conflitividade social, de classe, politicamente perigosa para
as classes dominantes” (MARTINS, 1997, p. 18-19). Da
perspectiva de Castel, pode-se afirmar que se trata de
mais um recurso reformista de gerenciamento dos riscos
de conflito social. (CASTEL, 1987)
Em resumo, a exclusão é um falso problema; a
dificuldade social maior é a da inclusão marginal como
resposta das classes dominantes à nova desigualdade. Por
isso, Martins diz: “se queremos questionar essas respostas,
e acho que devemos, temos de admitir que a idéia de
exclusão é pobre e insuficiente. Ela nos lança na cilada de

32 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


discutir o que não está acontecendo exatamente como
sugerimos, impedindo-nos, portanto, de discutir o que de
fato acontece: discutimos a exclusão e, por isso, deixamos
de discutir as formas pobres, insuficientes e, às vezes, até
indecentes de inclusão”, presentes também, como
veremos, nas políticas de inclusão escolar. O que Martins
traz como contribuição inestimável é a advertência de que
o discurso da exclusão vale-se de um rótulo que parece
explicar, mas que de fato acoberta e traz duas
conseqüências nefastas: práticas pobres de inclusão e
fatalismo.
De um lado, entendida por ideólogos da classe
dominante como resultado da não-aquisição pelos pobres
de habilidades para acompanhar a rapidez do progresso
tecnológico, a idéia de exclusão informa práticas precárias
que querem habilitá-los e, assim, redimi-los, em
consonância com a velha mentalidade da promoção social.
Ao agirem por meio de “processos de exclusão integrativa”
(MARTINS, 1997, p. 16), essas ações os empurram para
dentro da sociedade, mas na “condição subalterna de
reprodutores mecânicos do sistema econômico,
reprodutores que não reivindiquem nem protestem em
face das privações, injustiças, carências” (MARTINS, 1997,
p. 18). De outro lado, um entendimento da exclusão como
produto da infra-estrutura econômica induz a uma
aceitação fatalista da lógica do capital que desestimula
outras leituras do processo excludente e a “participação
transformativa no próprio interior da sociedade que
exclui” (MARTINS, 1997, p. 20 e 17, respectivamente).
Essa participação só será possível se tivermos em mente
duas coisas: que uma alternativa de fato includente impõe
a necessidade de criticar, de recusar e resolver a
excludência social; que “a exclusão não se explica apenas
pelo fenômeno em si, mas também, e sobretudo, pela
interpretação que dele faz a vítima” (MARTINS, 1997, p.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 33


21), dimensão subjetiva da questão que já estava nos
escritos de Marialice Foracchi (1982) e de Maria Célia
Paoli. (1974)
Estas duas proposições remetem-nos ao tema
da educação popular, não como instrumento de promoção
social ou de promessa de uma impossível igualdade de
oportunidades, mas de desvelamento das contradições
inerentes ao modo de produção em vigor; não como
autoritarismo de uma vanguarda iluminista, que vai levar
luzes a quem supostamente não as tem, mas como convite
à reflexão a partir da experiência de vida de homens e
mulheres que, mesmo dominados pelas relações
estruturais da sociedade em que vivem, são dotados de
consciência. Estamos no plano da educação como formação,
nos termos adornianos. A escola de fato inclusiva é a escola
que esclarece, a partir da própria experiência dos
dominados. Numa sociedade dividida, essa consciência é
dividida: nem inteiramente lúcida, nem inteiramente
alienada, ela é contraditória, o que deixa espaço para a
reflexão que se nutre da própria contradição (CHAUÍ,
1981). E isto vale mesmo que o cerco de uma ideologização
maciça, sobretudo pelo aperfeiçoamento da ação capilar
da indústria cultural, venha se fechando cada vez mais.

As políticas de inclusão escolar

Infelizmente não há muito o que dizer em favor


da política educacional brasileira nos últimos quinze anos.
No bojo do entusiasmo da abertura política e do fim do
período ditatorial, o sonho de uma escola pública mais
igualitária assumiu, nos anos oitenta, várias formas
promissoras. Mas da intenção à realidade o fosso foi
grande. De dentro de todos os equívocos da Pedagogia
Moderna e de suas ciências de base, sobretudo uma
Psicologia normativa e justificadora da desigualdade social,

34 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


as reformas e programas escolares pós-ditadura
padeceram das armadilhas de sempre: o ensino em moldes
tayloristas, de ajuste da máquina do ensino às supostas
características da matéria-prima a ser processada; a
multiplicação de especialistas dentro da escola e a
conseqüente segmentação do trabalho pedagógico; a
medicalização de desvios definidos a partir de um discutível
conceito de normalidade; o entendimento da igualdade
como produção do uniforme e não como direito à diferença;
a formação docente entendida como aperfeiçoamento,
treinamento ou reciclagem; a busca tecnicista de solução
para o problema do baixo rendimento do ensino público
fundamental e médio; as modas teóricas sucessivas e
rapidamente descartadas, que decretaram a morte do
educador, reduzindo-o a um peão do ensino, sob as ordens
de uma estrutura hierárquica de educadores, da qual se
tornou o último elo; a política educacional gerenciada para
fins eleitoreiros e a decorrente descontinuidade técnico-
administrativa perversa no sistema escolar.
As sementes dessas características da política
educacional brasileira já estavam nos projetos republicanos
de reforma do ensino produzidos no Segundo Império e
que marcaram essa política ao longo do século XX,
pontuada de pequenos e efêmeros períodos de exceção.
Mas, no bojo da nova desigualdade gerada pelo aumento
rápido da população sobrante, a função social da escola
pública parece ter mudado radicalmente: ela deixou de
interessar como instituição de ensino, que prepara mão-
de-obra para o mercado de trabalho. A implementar esse
estado de coisas, a interferência dos órgãos financeiros de
agiotagem internacional na economia do país, de modo a
garantir que o devedor seja um bom pagador de
empréstimos e de juros extorsivos; empréstimos cuja
necessidade foi gerada no ventre do próprio imperialismo
econômico de países capitalistas centrais ao longo do século

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 35


vinte. Essa política econômica trouxe como palavra de
ordem o barateamento do ensino público. E barateá-lo
assumiu não só a forma de diminuição da reprovação
(primeiro pela criação do Ciclo Básico e depois por meio
do Projeto Classes de Aceleração, de regularização do fluxo
do alunado por intermédio do escoamento rápido dos
multi-repetentes para séries mais adiantadas,
ironicamente chamado, por educadores da rede pública,
de Projeto Higitec e Projeto Tobogan, mas também de
arrocho salarial dos profissionais da escola.
O bom ensino, a valorização do corpo docente
(que inclui salários dignos, boa formação intelectual e
participação nas decisões) e a redução da dualidade escolar
foram postos em plano mais que secundário. Ao contrário,
aprofundou-se o fosso entre as escolas para ricos e para
pobres. Foi assim que chegamos ao desmantelamento do
ensino público, de resultados trágicos do ponto de vista do
direito universal à educação escolar. Se nunca tivemos uma
escola formadora da inteligência crítica, já tivemos uma
escola que, pelo menos, ensinava a ler e a escrever. Hoje o
ensino está, como regra, aquém até mesmo da pseudo-
formação tal como entendida por Adorno. E aumentar,
sem mais nada, a duração do ensino fundamental em mais
um ano só aumentará a angústia dos que participam da
vida escolar.
No interior das novas formas de pobreza e de
inclusão, a escola foi re-significada: assistimos à volta do
slogan dominante no campo educacional na virada do
século XIX: “escolas cheias, cadeias vazias”. Em seu
alentado Projeto de Reforma do Ensino Primário,
Secundário e Superior do fim do Império, Rui Barbosa
argumentava que, por causa de um grande equívoco,
investia-se 1,99% em educação e 20,86% em despesas
militares, quando o certo seria pagar ao professor para
ensinar o respeito à propriedade em vez de pagar a um

36 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


guarda para protegê-la. Na propaganda eleitoral de 2006
foram muitos os bordões que deram continuidade a essa
concepção de escola como instituição destinada à
prevenção do crime: “uma sala de aula a mais, uma cela a
menos” (Paulo Maluf); “educar crianças, para não precisar
punir adultos” (Aurélio Miguel).
Voltou o discurso, mas não voltaram as práticas
escolares que no passado se propunham a realizá-lo. Antes,
a função disciplinadora da escola era cumprida de modo
mais complexo, vinha embutida no próprio método de
ensino e nos próprios conteúdos da matérias; agora a escola
tornou-se, como tenho afirmado, uma espécie de FEBEM-
dia, até mesmo no aspecto físico, que tem por objetivo tão-
somente “tirar as crianças das ruas” ou afastá-las do
trabalho infantil. No entanto, até mesmo esse objetivo de
educação moral pela reclusão não tem muita força num
país em que a sociabilidade entre as classes sempre foi
crivada de violência, a mão pesada da polícia sempre
funcionou a pleno vapor e o extermínio dos pobres tornou-
se banal. Nesse contexto, a escola jamais precisou, e precisa
cada vez menos, ser instituição disciplinar nos moldes
descritos por Foucault.
Um estudo recente, realizado pelo Núcleo de
Estudos da Violência da Universidade de São Paulo (NEV-
USP) em escolas da rede pública de ensino fundamental e
médio espalhadas pelo país, fala de violência, às vezes
extrema, como parte do cotidiano escolar. Quem resolve
os conflitos é a polícia, agora integrada às escolas. Ensinar
não é mais a meta: os alunos rapidamente percebem a
regra perversa do jogo e agora só querem o diploma,
presas do mito da empregabilidade pela escolarização. É
assim que se põe a professores desvalorizados o grande
desafio de entreter alunos desinteressados. Livros e
computadores podem povoar escolas despovoadas de
professores motivados ou preparados para usá-los.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 37


Nesse contexto, os programas governamentais
que obrigam a freqüência à escola tornam-se programas
de inclusão marginal – de formas pobres, perversas e até
indecentes de inclusão escolar. Retiradas das ruas ou do
mundo do trabalho, as crianças não estão tendo de fato o
direito ao ensino, pois, como regra, estão sendo incluídas
precariamente numa escola em cacos. No plano da inclusão
universitária (PROUNI), sabemos das dificuldades de um
programa que escolheu uma rede privada de escolas de
terceiro grau de qualidade duvidosa, não raro precárias
até mesmo como empresas, que fecham de uma hora para
outra, para inserir precariamente os jovens pobres no
ensino superior. A política de cotas para negros nas
Universidades públicas, medida tão polêmica quanto
complexa, está aí para ser avaliada em sua dimensão
jurídica e em seus reais efeitos inclusivos.
Além de local de detenção sutil, a escola pública
fundamental e média tem se tornado palco de programas
empresariais de inclusão, com freqüência ocupadas por
cursos de panificação, confeitaria, costura, capoeira, dança,
artesanato, esportes e outras modalidades de inclusão
escolar marginal, muitas vezes conduzidas por leigos
voluntários, na verdade trabalhadores explorados
eufemisticamente chamados “amigos da escola”. É o
retorno explícito da divisão social do trabalho em braçal e
intelectual. As escolas foram incorporadas ao grande
espetáculo midiático da inclusão social, de nítido caráter
assistencialista, orientado pela tradução de direitos em
favor dos poderosos, engodo de longa data na sociedade
brasileira.
Como eu já disse em outro lugar, filantropia e
cidadania pode ser uma rima, mas não é uma solução. Não
tenho nada contra um gesto de ajuda que pode aliviar por
um momento estados de privação que põem em risco a
vida. Não nego que as crianças pobres possam se beneficiar

38 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


do prazer fugaz trazido pelas atividades acima
mencionadas ou por excursões a museus, concertos, teatros
e feiras de livros. Mas da maneira como acontecem, elas
nada têm a ver com cidadania. São experiências isoladas,
numa sociedade em que tudo é mercadoria e espetáculo,
e que fazem mal como promessa de inclusão, como ilusão
de redenção a que certamente este caminho não levará, a
não ser em improváveis casos isolados que só farão
confirmar a regra. Sobre a diferença fundamental entre
filantropia e cidadania, um poema de Bertolt Brecht:

O ABRIGO NOTURNO

Soube que em Nova Iorque


Na esquina da Rua 26 com a Broadway
Todas as noites do inverno há um homem
Que arranja abrigo noturno para os que ali não têm teto
Fazendo pedidos aos passantes.
O mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos
Mas alguns homens têm um abrigo noturno
Por uma noite o vento é mantido longe deles
A neve que cairia sobre eles cai na calçada
Não ponha de lado o livro, você que me lê.
(...)
A neve que cairia sobre eles cai na calçada
Mas o mundo não vai mudar com isso
As relações entre os homens não vão melhorar
A era da exploração não vai durar menos.
(BRECHT, 1986, p. 90)

Com isso não estou aderindo a uma visão


economicista de transformação social. Ao contrário, entre
os teóricos em que me apoio estão Agnes Heller e os

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 39


filósofos da Escola de Frankfurt, que encarecem a
importância política da indagação, da reflexão sobre a
experiência, da atitude filosófica dos que são vítimas de
dominação frente ao estabelecido, em companhia de quem
possa com eles cultivar a inteligência crítica. Trata-se do
esclarecimento subjetivo proposto por Adorno (1995). A
esse respeito, Martins afirma: “sem a reflexão crítica que
situe nosso agir no processo histórico, esse agir se torna
um equívoco”. Isso está, de formas diversas, em Gramsci,
em Heller, nos filósofos frankfurtianos, na pedagogia
paulofreireana. Isso é educação para o protagonismo, para
a emancipação, para a autonomia possível a cada momento
da história. Isso é educação que se faz de fora e de dentro
das condições escolares atuais, mesmo que limitadas.
Munidos desta proposta, podemos colaborar
para formar educadores nos espaços formais e informais
onde se faz a educação popular e contribuir para a mudança
do quadro apresentado por Martins (1997, p. 20): “os
agentes, voluntários ou involuntários, dessas políticas,
podem oferecer e estão oferecendo suas próprias
alternativas às vítimas do atual processo de
desenvolvimento, que são as alternativas da coisificação e
da adaptação excludente, da alegria pré-fabricada e
manipulada” (MARTINS, 1997, p. 22). Parafraseando o
autor, eu diria que, num contexto de ideologização
avassaladora, de insistência na tese da exclusão que desvia
os nossos olhos da inclusão perversa, as centenas de
psicólogos, pedagogos e educadores envolvidos em
programas governamentais e não-governamentais de
inclusão correm o risco, eles também, de ter o seu
imaginário colonizado e de ir para a direita quando
acreditam que vão para a esquerda; para o autoritarismo
quando julgam que estão sendo democráticos; para o
populismo quando estão convencidos que estimulam a
participação. E não se pode esquecer que a tendência do

40 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


sistema em transformar rapidamente propostas de
resistência em práticas de adesão ao existente é cada vez
mais implacável.
Apesar dos pesares, é justo registrar também
que, neste momento, em vários pontos do território
nacional, dentro e fora das escolas, certamente estão
acontecendo experiências de educação do educador e de
educação popular que, na contramão de estratégias
políticas de controle do conflito social por meio de
promessas mentirosas de redenção dos pobres, põem, no
centro de grupos dialógicos, o pensamento crítico como
instrumento de combate dos que querem justiça.

Referências Bibliográficas

ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. In:


Educação e emancipação. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1995.

ARANTES Paulo Eduardo e COSTA, Iná Camargo


(coords.).Coleção Zero à Esquerda. Petrópolis: Vozes/
Fundação Perseu Abramo, 1998.

BRECHT, Bertolt. Poemas (1913-1956). São Paulo:


Brasiliense, 1986.

CASTEL, Robert. A gestão dos riscos. Rio de Janeiro:


Francisco Alves, 1987.

CHAUÍ, M. de S. Cultura e Democracia. O discurso


competente e outras falas. São Paulo: Moderna, 1981

FORACCHI, Marialice M. A participação social dos


excluídos. São Paulo: Hucitec, 1982.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 41


MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova
desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.

ONU. NEV/USP. Os jovens, a escola e os direitos


humanos. Relatório de Cidadania II, Rede de
Observatórios de Direitos Humanos. São Paulo: ONU/
NEV-USP, 2000.

PAOLI, Maria Celia Pinheiro Machado.


Desenvolvimento e Marginalidade. São Paulo:
Pioneira, 1974.

PEREIRA, Luiz. Populações “marginais”. In: PEREIRA,


L. Estudos sobre o Brasil Contemporâneo. São
Paulo: Pioneira, 1971, p. 159-178.

42 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


AS POLÍTICAS DE INCLUSÃO
ESCOLAR: UMA PRERROGATIVA
DA EDUCAÇÃO ESPECIAL?

José Geraldo Silveira Bueno


PUC/SP

A inclusão escolar é, hoje, o tema mais candente


das políticas educacionais em todo o mundo. Isso fica
evidente quando constatamos a sua incidência nas grandes
propostas políticas nacionais e internacionais, no discurso
dos políticos de todos os matizes ideológicos, nas ações
concretas dos governantes e de muitas escolas (ou de
todas, mesmo que obrigadas), nas produções científicas,
acadêmicas e de cunho técnico-profissional.
Por estar na ordem do dia e por ser quase que
uma unanimidade mundial, oferece a visão de que, quando
nos referimos à “inclusão escolar”, estamos tratando de
um único fenômeno, conhecido por todos e que possui um
único significado.
Nesse sentido, a inclusão escolar surge como a
“nova missão da escola”, no sentido atribuído por
Hargreaves (1996, pp. 8 e 9), de lealdade entre os crentes
e confiança entre os empenhados, assim como que
qualquer questionamento a respeito é encarado como

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 43


“heresia”, pois que não aceito pelos adeptos, sem qualquer
consulta ou consideração.
Este trabalho, na esteira da perspectiva
apontada por este autor, cometerá três heresias, na medida
em que pretendo questionar o que todas as outras pessoas
acreditam ou [aquilo] em que se devia acreditar; ao
proclamar-se a descrença, quando a coisa certa a fazer
seria manifestar a crença ou, pelo menos, permanecer
silencioso. (HARGREAVES, 1996, p. 184)
Assim, vou procurar me restringir a três
aspectos que me parecem centrais, para não correr o risco
de, por herético demais, ser levado à fogueira da inquisição:
1) a inclusão escolar como conceito; 2) a população por ela
atingida; 3) as perspectivas políticas da inclusão escolar.
Além disso, vou utilizar parte de balanço
produzido para outro trabalho, sobre as dissertações e
teses brasileiras sobre “inclusão escolar” e “educação
inclusiva”, abrangendo as produções de 1997 a 2003, com
o intuito de verificar como essa temática tem sido tratada
nos últimos anos, como uma das expressões da produção
científica brasileira sobre esta temática.

Primeira heresia: o conceito de inclusão escolar

De acordo com boa parte dos autores da


educação especial, a inclusão escolar de alunos com
necessidades educacionais especiais veio substituir o velho
paradigma da integração, ultrapassado e conservador, e
teve como marco fundamental a Declaração de Salamanca,
de 1994.
Ocorreu, em nosso País, um fato muito
estranho. A primeira publicação em português foi realizada
pela Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa
Portadora de Deficiência – CORDE, do Ministério da
Justiça, em 1994, com reedição em 1997. Nela há bastante

44 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


fidedignidade em relação ao texto original em espanhol
publicado pela UNESCO. Houve, entretanto, entre essa
publicação e as disponíveis atualmente, modificações
muito interessantes, das quais selecionamos aquela
disponível na versão eletrônica da página da Internet desse
mesmo órgão, para exemplificação dessas mudanças.
Assim é que encontramos as seguintes redações
em duas versões: a tradução realizada pela CORDE e a
versão eletrônica:

TRADUÇÃO IMPRESSA PUBLICADA PELA


CORDE (1994):
as escolas comuns, com essa orientação
integradora, representam o meio mais eficaz
para combater atitudes discriminatórias
(Conferência Mundial sobre Necessidades
Educacionais Especiais. 1994, p. 10)6
VERSÃO ELETRÔNICA DISPONÍVEL NO
SITE DA CORDE
escolas regulares que possuam tal orientação
inclusiva constituem os meios mais eficazes de
combater atitudes discriminatórias. (disponível
em http://www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/
dpdh/sicorde/decl_salamanca.asp, em 10/07/
2007) 7
Como se vê, entre as duas versões, publicadas
logo após a promulgação da Declaração e a atual, há uma
diferença significativa: enquanto a primeira utiliza o termo
“orientação integradora”, a atualmente disponível no site
da CORDE transformou essa expressão em “orientação
inclusiva”
Este não é um mero problema de tradução, mas
uma questão conceitual e política fundamental, pois a
segunda, ao deixar de ser fiel ao texto original, nos leva a
entender que a inclusão escolar é uma proposta

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 45


completamente inovadora, que nada tem a ver com o
passado e que inaugura uma nova etapa na educação
mundial: a educação para todos, inclusive para os
“portadores de necessidades educativas especiais”, na
construção de uma sociedade inclusiva.
A declaração simplesmente reconheceu que as
políticas educacionais de todo o mundo fracassaram no
sentido de estender a todas as suas crianças a educação
obrigatória e de que é preciso modificar tanto as políticas
quanto as práticas escolares sedimentadas na perspectiva
da homogeneidade do alunado, mas isto parece ficar
obscurecido.
Por outro lado, ao se colocar a educação inclusiva
como um novo paradigma, esconde-se que, desde há
décadas, a inserção escolar de determinados tipos de
alunos com deficiência já vinha ocorrendo, de forma
gradativa e pouco estruturada, em especial para crianças
oriundas dos estratos sociais superiores, sob a batuta de
profissionais da saúde (médicos, psicólogos,
fonoaudiólogos, etc.) e incorporados pela rede privada de
ensino regular. Mas, mesmo entre alunos das redes
públicas e assistenciais de educação especial, os processos
de inserção de alunos deficientes no ensino regular
começaram muito antes das reformas educacionais da
década de 90, em cujo bojo surgiu a bandeira da inclusão
escolar.
Se, por um lado, desde a Declaração, a ênfase
se volta para a adoção de políticas e de práticas
educacionais que permitam a inclusão da maior
diversidade possível de alunos, por outro, não se pode
deixar de lado o fato de que ela é derivada da preocupação
com a chamada “escola para todos”, cujo marco maior foi
a Declaração de Jontiem, que teve por finalidade precípua
estabelecer princípios, diretrizes e marcos de ação para
que todas as crianças do mundo pudessem ter satisfeitas

46 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


as “necessidades básicas de aprendizagem”.
O que essa última declaração apregoa é que
cada pessoa - criança, jovem ou adulto - deve estar em
condições de aproveitar as oportunidades educativas
voltadas para satisfazer suas necessidades básicas de
aprendizagem (Conferência Mundial de Educação para
Todos, 1990, p. 2) e que essas necessidades se restringem
à apropriação de conhecimentos e habilidades básicas:
leitura e escrita, cálculo, solução de problemas e
conhecimento básico para participação social.
Mesmo que, mais adiante, a declaração se refira
à “igualdade de direitos” que todas as crianças têm em
relação à educação, fica no ar a pergunta: toda e qualquer
criança se restringirá a essas necessidades? Ou, mais uma
vez, sob a capa de um discurso democrático, para todos,
esconde-se a perspectiva da seletividade escolar? Por
exemplo, quais pais, entre os membros dos estratos sociais
superiores, irão se satisfazer sabendo que seus filhos se
apropriaram apenas dessas necessidades?
O que se pode retirar da declaração, se formos
mais a fundo, é que, mais uma vez, distinguem-se os
processos de escolarização para os bem aquinhoados (que
ultrapassarão em muito o estágio das necessidades básicas
de aprendizagem) e aqueles para o “populacho”, quer
sejam as massas pauperizadas da América Latina, África
e Ásia, quer sejam os filhos dos árabes e africanos que hoje
vivem na França, Inglaterra e Alemanha ou os negros e
os “chicanos” dos Estados Unidos.
Por isso, parece ser ingênuo o espanto de muitos
profissionais, estudantes e acadêmicos da educação
especial frente aos resultados escolares extremamente
baixos alcançados por alunos deficientes, em particular
aqueles oriundos das camadas populares, inseridos ou não
em classes regulares, como se eles refletissem situação
muito diferente de seus pares não-deficientes.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 47


Entretanto, a simples constatação de que esses
baixos resultados não atingem somente esses alunos, mas
também muitos outros, considerados “não-deficientes”,
não basta, porque pode redundar numa visão estreita, de
responsabilização das escolas e dos professores por esses
baixos resultados.
Na verdade, como quis aqui apresentar, esta é
uma contradição de todo o processo de globalização baseado
nas leis do mercado, que produz uma massa de sujeitos
aos quais não se oferece mínimas condições para
usufruírem a riqueza material e cultural produzida, da qual
uma das expressões, pouco evidente, é a ambigüidade de
uma declaração internacional que pretende ser a resposta
para os problemas que assolam a educação escolar em todo
o mundo.
E como tem sido a produção científica brasileira
sobre o tema da “inclusão escolar” e da “educação
inclusiva”?
O balanço realizado sobre as dissertações e teses
que abordam esta temática traz alguns dados bastante
interessantes, conforme pode se verificar na Tabela 1.
Tabela 1 - Distribuição anual dos descritores - 1997/2003
Inclusão Educação
ANO Ambos
Escolar Inclusiva
1997 1 0 0
1998 1 0 0
1999 0 3 1
2000 3 7 0
2001 9 9 4
2002 19 19 7
2003 17 20 7
TOTAL 50 58 19
Fonte: Banco de Teses – CAPES - 2005

Verifica-se, em primeiro lugar, um equilíbrio


entre os dois conceitos, com a utilização de “inclusão

48 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


escolar” cronologicamente anterior ao de “educação
inclusiva”, mas, no decorrer do período, o segundo passou
a ser mais incidente, assim como a utilização de ambos.
Isto pode estar expressando, de um lado, um
incremento do segundo, bem como uma não-distinção
entre os dois conceitos que, a meu juízo, não são sinônimos,
na medida em que inclusão escolar refere-se a uma
proposição política em ação, de incorporação de alunos que
tradicionalmente têm sido excluídos da escola, enquanto
que educação inclusiva refere-se a um objetivo político a
ser alcançado.
Segundo o resumo dos trabalhos consultados,
o uso dos dois termos reflete uma perspectiva de
indefinição entre eles, isto é, fica pouco claro se os autores
fazem ou não distinção entre seus diferentes significados.
Pela amostra estudada, os dois termos servem tanto para
indicar políticas educacionais em ação quanto para
perspectivas políticas futuras.

Segunda heresia: a população-alvo das políticas de


inclusão

Se o conceito de inclusão escolar, ao ser


analisado criticamente mostra a sua fragilidade, a
população à qual ela se dirige é ainda mais ambígua.
Em trabalho anterior (BUENO, 2001) procuro
mostrar que a Declaração de Salamanca inclui no âmbito
das políticas integradoras crianças com deficiência e
crianças bem dotadas; crianças que vivem nas ruas e
que trabalham; crianças de populações distantes ou
nômades; crianças de minorias lingüísticas, étnicas ou
culturais e crianças de outros grupos ou zonas
desfavorecidos ou marginalizados. (Conferência Mundial
sobre Necessidades Educacionais Especiais, 1994, pp. 17-
18). Isto é, as crianças deficientes são apenas uma, entre

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 49


tantas outras, das expressões concretas das chamadas
necessidades educacionais especiais.
Tanto é assim que, em nenhum momento
aparece no texto original da Declaração o termo “educação
especial” como a responsável pelas políticas de integração/
inclusão escolar. Com isto, fica claro que o termo
“necessidades educativas especiais” abrange, com certeza,
a população deficiente, mas não se restringe somente a
ela.
Na apropriação, divulgação e disseminação dos
princípios, diretrizes e metas da Declaração feita no Brasil,
foram ocorrendo uma série de distorções, algumas
provavelmente sem qualquer conotação ideológica mas
outras, dada a sua evidente transformação, não podem
ser assim avaliadas.
Vou me prender somente a dois trechos da
Declaração que exemplificam um tipo de distorção que não
me parece meramente casual.
No primeiro, em que se apela para o
envolvimento dos governos, a tradução impressa
produzida pela CORDE, órgão do Ministério da Justiça
voltado à defesa dos direitos das pessoas deficientes foi
esta:
(...) instamos (...) aos governos a defender o
enfoque da escolarização integradora e apoiar
programas de ensino que facilitem a educação
de alunos e alunas com necessidades educativas
especiais. (Conferência Mundial sobre
Necessidades Educacionais Especiais, 1994, p.
11) 8
A tradução atualmente disponível na sua versão
eletrônica é a seguinte:
(...) congregamos (...) os governos a endossar
a perspectiva de escolarização inclusiva e apoiar

50 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


o desenvolvimento da educação especial como
parte integrante de todos os programas
educacionais. (disponível em http://
www.mj.gov.br/sedh/ct/corde/dpdh/sicorde/
decl_ salamanca.asp, em 10/07/2007)
É no mínimo estranho que, mesmo após uma
tradução feita por um órgão oficial e fiel ao documento
original, esse mesmo órgão divulgue uma nova versão em
que a expressão apoiar programas de ensino que facilitem
a educação de alunos e alunas com necessidades
educativas especiais se transforme em apoiar o
desenvolvimento da educação especial como parte
integrante de todos os programas educacionais. Mais
estranho ainda, quando verificamos que a expressão
“educação especial” foi incluída, quando no documento
original não há uma referência sequer a essa “modalidade
de ensino”.
Mais um pequeno trecho para ilustrar essa
incorporação indevida.
A tradução impressa da CORDE afirma que se
deve assegurar que, num contexto de mudança
sistemática, os programas de formação do
professorado, tanto inicial como contínua, estejam
voltados para atender às necessidades educativas
especiais nas escolas integradoras. 9 Já na versão
eletrônica disponível, do mesmo órgão, as modificações são
enormes em relação ao texto impresso em 1994:
garantam que, no contexto de uma mudança sistêmica,
programas de treinamento de professores, tanto em
serviço como durante a formação, incluam a provisão
de educação especial dentro das escolas inclusivas.
(Conferência Mundial sobre Necessidades Educacionais
Especiais, 1994, p. 12)
Aqui a impropriedade é dupla, já que se
substitui integradoras por inclusivas e programas

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 51


voltados para atender às necessidades educativas
especiais por provisão de educação especial.
Essa deterioração do texto original pela
substituição, em “tradução livre”, do conceito integração
pelo de inclusão e da inserção da educação especial não
pode ser encarada simplesmente como “falha técnica” na
medida em que já havia uma tradução disponível efetuada
por órgão oficial e muito fiel à versão original.
Assim, foram ocorrendo modificações
significativas em nosso país, no sentido de restringir as
políticas de inclusão (e não mais de integração) ao âmbito
da educação especial.
Tanto isto é verdade que a Resolução CNE/CEB
Nº 2, de 11 de setembro de 2001, que institui Diretrizes
Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica
restringe essas políticas de inclusão à ação da educação
especial.
Esta redução das políticas de inclusão ao âmbito
da educação especial torna-se evidente quando se define
que a educação especial é uma modalidade que visa
garantir a educação escolar e promover o desenvolvimento
das potencialidades dos educandos que apresentam
necessidades educacionais especiais, em todas as etapas
e modalidades da educação básica. (Brasil. CNE.
Resolução n. 02/01, Art. 3º).
Poder-se-ia, entretanto, afirmar que o
Conselho estaria considerando o termo necessidades
educativas especiais como sinônimo de deficiência, mas não
é o caso, quando se verifica que, no inciso I, do artigo 5º,
considera como parte dos educandos com necessidades
educativas especiais os que apresentarem dificuldades
acentuadas de aprendizagem ou limitações no processo
de desenvolvimento que dificultem o acompanhamento
das atividades curriculares (...) ligadas tanto a condições
relacionadas a condições, disfunções, limitações ou

52 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


deficiências (item “b”) quanto aquelas não vinculadas a
uma causa orgânica específica (item “a”).
Ora, quem são os alunos que apresentam
dificuldades acentuadas de aprendizagem ou limitações no
processo de desenvolvimento por causas não vinculadas a
um fator orgânico específico? A meu juízo, seriam todos
aqueles indicados na Declaração de Salamanca, com
exceção das crianças deficientes (crianças bem dotadas;
crianças que vivem nas ruas e que trabalham; crianças de
populações distantes ou nômades; crianças de minorias
lingüísticas, étnicas ou culturais e crianças de outros grupos
ou zonas desfavorecidos ou marginalizados), e que não
deveriam ser objeto da educação especial, mas de uma
política global de qualificação da educação nacional que
abrangesse, inclusive, os alunos deficientes, estes sim,
objetos da educação especial.
Ao criar uma proposição política ambígua e
imprecisa, o CNE contribui, propositalmente ou não, para
a criação ou, no mínimo, para a manutenção de uma
situação de indefinição em relação à instauração de políticas
educacionais que se contraponham àquelas que têm
historicamente privilegiado o caráter seletivo e excludente
da educação escolar brasileira.
Com relação à produção acadêmica, parece que
ela absorve acriticamente esta ambigüidade, tal como
podemos verificar nas Tabelas 2 e 3.
Tabela 2 - Alunado-alvo das dissertações/teses - 1997/2003
QUANTIDADE
POPULAÇÃO
Nº %
Deficientes/distúrbios 71 55,90
Com NEEs 39 30,71
Altas habilidades 01 00,79
Condutas típicas 01 00,79
Outras 15 11,81
TOTAL 127 100
Fonte: Banco de Teses – CAPES – 2005

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 53


Verifica-se que a predominância se volta à
população tradicionalmente atendida pela educação
especial, pois mesmo aqueles classificados como “com
necessidades educacionais especiais”, pelo teor dos
resumos, parecem se voltar para os alunos deficientes ou
com quadros específicos atendidos pela educação especial,
que somados aos caracterizados como “com deficiências
ou distúrbios”, perfazem um total de mais de 88% (112
produções).
Assim, a inclusão escolar parece ser tratada,
pelo conjunto da produção acadêmica, como política
predominantemente restrita aos portadores de
deficiências, distúrbios e problemas, anteriormente
tratados pela educação especial, na medida em que
somente 15 entre os 127 trabalhos se voltam à população
diferenciada.
A Tabela 3 nos mostra a distribuição das
produções em relação ao tipo de “aluno-problema”
investigado.
Tabela 3 - Tipo de “aluno-problema” investigado - 1997/2003
QUANTIDADE
TIPO
Nº %
Mental 16 12,60
Física 10 07,87
Auditiva 9 07,09
Visual 6 04,72
Condutas típicas 1 00,79
Altas habilidades 1 00,79
Distúrbios de linguagem 1 00,79
Aluno hospitalizado 1 00,79
Não discriminou 67 52,75
Problemas sociais 15 11,81
TOTAL 127 100
Fonte: Banco de Teses – CAPES - 2005

Pouco mais da metade das produções não

54 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


discriminou sobre que tipo de problema se debruçou,
consignando simplesmente que se voltava para as
“deficiências” ou “necessidades educativas especiais”, o
que parece reproduzir, no âmbito da produção acadêmica,
a mesma ambigüidade verificada nas proposições políticas.
Como era de se esperar, dentre os trabalhos
que fizeram a discriminação, a maior incidência recaiu
sobre a deficiência mental (12,6%). A eles se seguem
aqueles voltados à deficiência física (7,09%). Parece estar
ocorrendo, aqui, uma modificação em relação à produção
clássica da educação especial. Em trabalho anterior
(BUENO, 2006, p. 350), em que efetuei o balanço da
produção em educação especial, verifiquei que a segunda
maior incidência recaía sobre a deficiência auditiva, sendo
que a deficiência física foi objeto de interesse de um número
reduzidíssimo de produções (3 entre 79, ou seja, 3,8%).
Nos demais tipos discriminados, a incidência parece
acompanhar a tradição de estudos sobre esse tema.
Os 15 trabalhos que fogem do âmbito da
educação especial referem-se, na sua totalidade, a alunos
“com problemas sociais”, tais como “carentes”, “favelados”,
“de baixa renda”, “meninos de rua”, etc.

Terceira heresia: as perspectivas políticas da inclusão


escolar

Por fim, gostaria de cometer a minha terceira,


e última, heresia. A de contestar a perspectiva otimista,
largamente disseminada, de que a educação inclusiva é
uma meta a ser alcançada na construção de uma sociedade
inclusiva.
Porém, não vou me voltar à contestação dessa
perspectiva por considerar que não se conseguirá alcançar
uma educação verdadeiramente inclusiva numa sociedade
excludente, não porque não a considere perfeitamente

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 55


plausível e sustentável, mas porque acho que outros já
fizeram isto de forma muito competente.
Vou, neste trabalho, me voltar para o próprio
significado de “educação inclusiva” e “sociedade inclusiva”.
As bandeiras progressistas de educadores com
perspectivas tão diferentes como Anísio Teixeira (1979) e
Paulo Freire (1967), apontavam, desde os anos 50 e 60, a
necessidade de se construir uma educação
verdadeiramente democrática que, crescentemente,
oferecesse condições qualificadas de acesso e permanência
a todos os alunos, especialmente aqueles oriundos das
camadas populares, vítimas de políticas educacionais
elitistas e seletivas.
A bandeira da educação inclusiva parece, em
princípio, repor, sobre outras bases, esses mesmos ideais,
mas isto é somente aparência, pois se o norte é a educação
inclusiva como meta a ser alcançada, isto significa que a
projeção política que se faz do futuro é de que continuarão
a existir alunos excluídos, que deverão receber atenção
especial para deixarem de sê-lo. Isto é, a meu juízo, esta
nova bandeira vira de cabeça para baixo aquilo que era
uma proposição política efetivamente democrática (mesmo
com perspectivas políticas diferentes), na medida em que
o que deveria se constituir na política de fato – a
incorporação de todos pela escola, para se construir uma
escola de qualidade para todos – se transmuda num
horizonte, sempre móvel, porque nunca alcançado.
Aliás, o mesmo processo ocorre em relação às
perspectivas políticas para construção da sociedade do
futuro.
Sem levar em conta as críticas teóricas como
as de Martins (1997) em relação ao próprio conceito de
inclusão social, com o “fim das utopias socialistas” deixou
de existir um contraponto, correto ou não, em relação à
perspectiva que advogava o mercado como regulador

56 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


social básico, que passou a se constituir no “único caminho
para a construção da sociedade do futuro”.
É neste contexto que surge o conceito de
sociedade inclusiva, em substituição ao de sociedade
democrática e que opera a mesma inversão apontada
acima em relação à educação. Isto é, se o norte, o futuro, o
porvir, é a sociedade inclusiva, está por trás a perspectiva
de que a sociedade jamais incorporará a todos, pois que
terá que ser permanentemente inclusiva. Esta diferença
não é apenas semântica, mas política, e aponta em uma
direção diametralmente oposta àquela defendida pela
grande maioria dos analistas e políticos progressistas do
passado, qual seja, a da construção de uma sociedade
crescentemente democrática, que gradativamente fosse
incorporando a massa de deserdados produzidos por
políticas injustas e de privilegiamento das elites sociais.
Os dados apresentados por Lourenço Filho (na
década de 1930), por Anísio Teixeira (na década de 1950)
e por Maria José Garcia Werebe (na década de 1960),
embora demonstrassem que o elitismo e a seletividade
constituíram-se nas grandes marcas da educação moderna
no Brasil, desde os anos 30 do século passado, se,
comparados entre si, mostram, por outro lado que, de
forma lenta e penosa, essa escola, por bem ou por mal, foi
incorporando crianças que, em épocas passadas, a ela não
tinham acesso. Isto é, pensávamos que estávamos, a duras
penas, construindo uma educação crescentemente
democrática.
O que acontece nos dias de hoje, no contexto
político da inclusão escolar e da perspectiva da educação e
da sociedade inclusiva?
Os dados apresentados pelo INEP mostram
que, em certos aspectos, a educação escolar no Brasil piorou
na última década do século passado. Segundo estudo
realizado por este órgão (BRASIL. MEC.INEP. 2001), do

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 57


total de alunos que ingressavam no ensino fundamental,
59% o concluíam e, do total de alunos ingressantes no
ensino médio, 26% conseguiam terminá-lo.
Esses índices estão muito próximos dos
percentuais apresentados por Coraggio (1996) sobre as
perspectivas futuras apontadas pelo Banco Mundial em
relação à inclusão social pelo trabalho: 40% da população
economicamente ativa totalmente incluída, 30% com
oscilação entre inclusão e exclusão profissional e 30%
totalmente excluída.
Isto é, a exclusão escolar e profissional passou
a ser uma perspectiva política inquestionável dentro da
ótica das políticas neo-conservadoras e, portanto,
perfeitamente compatíveis com a perspectiva política: a)
da educação inclusiva, porque haverá sempre a quem
incluir na escola, já que ela não será para todos; e b) da
mesma forma, da sociedade inclusiva, porque a inclusão
social ocasionada pela única possibilidade para a maior
parte da população – o trabalho – também não será para
todos.
A produção acadêmica em termos de temáticas
específicas está apresentada na Tabela 4.
Tabela 4 - Temas principais - 1997/2003
QUANTIDADE
TEMA PRINCIPAL
Nº %
Docência 52 39,10
Organização do trabalho escolar 35 26,32
Política educacional/social 26 19,55
Alunado 16 12,03
História da educação especial 1 0,75
Produção científica em EE 1 0,75
Relação escola-comunidade 1 0,75
Relação saúde-educação 1 0,75
TOTAL 133 (*) 100
Fonte: Banco de Teses – CAPES – 2005
(*) Este número é superior à quantidade total de dissertações e teses
porque esta questão permitia mais de uma resposta.

58 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


As quatro temáticas mais incidentes referem-
se aos quatro aspectos centrais da problemática
educacional (docência, organização escolar, políticas e
alunado), com destaque para a primeira, com perto de 40%
de toda a produção, o que parece refletir a absorção da
perspectiva de que o nó da questão da inclusão escolar
reside na formação e prática docentes.
A segunda temática refere-se à organização da
escola, com predominância de trabalhos que procuram
analisar, de um lado, as diferentes formas de escolarização,
envolvendo instituições especializadas, classes especiais e
de classes regulares que aceitaram alunos deficientes.
A terceira, com aproximadamente 20%, ou seja,
3,7% produções em média por ano, volta-se exatamente
para as políticas de inclusão escolar. Assim, verifica-se que,
mesmo se constituindo em política altamente polêmica,
esse tema obteve metade da incidência dos estudos sobre
a docência. Será que não estamos nos restringindo a
aspectos específicos e não investigando criticamente as
proposições políticas nacionais, regionais e municipais?
Além disso, causa espanto que a relação saúde-
educação tenha sido objeto de apenas uma produção,
quando se tem por efetivo que essa relação é fundamental
para o êxito das políticas escolares voltadas aos alunos
deficientes; da mesma forma, causa espécie que a relação
escola-comunidade, também apontada com um dos fatores
fundamentais para o êxito escolar de alunos com
deficiência (especialmente no que se refere à relação escola-
família) tenha sido tão pouco aquinhoada.

Qual o sentido das heresias?

Depois de tantas críticas e de tantos


questionamentos, cabe perguntar: para que então ser
educador da ação, ser um pesquisador ou um acadêmico?

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 59


Meu objetivo, mais do que simplesmente
constatar as mazelas das nossas políticas educacionais e a
fragilidade de boa parte da produção acadêmica, foi o de
tentar demonstrar que muitas delas têm sido por nós
incorporadas acriticamente, de tal forma que,
inconscientemente podemos estar contribuindo
exatamente para essa “perspectiva política única”
amplamente disseminada pelos neo-conservadores.
Isso é, se é verdade que as políticas
educacionais iniciadas nos anos de 1980 e 1990, em todo o
mundo, têm, a meu juízo, o sentido explícito de mudar para
continuar exatamente como se estava antes delas, por
outro lado, a crítica radical pode efetivamente auxiliar
àqueles que não comungam com esse “pensamento único”,
para que possamos nos instrumentalizar para a resistência
e para a mudança de rumos.
Nesse sentido, cabe a nós, estudiosos da
educação especial, envidarmos todos os esforços para que
a “inclusão escolar” não se restrinja somente à população
tradicionalmente atendida por ela, pois, se assim for, ela
estará fadada ao insucesso, já que as diferentes expressões
do fracasso escolar têm se abatido sobre os deserdados
sociais, criados por políticas econômicas e sociais altamente
injustas, sejam eles deficientes, com distúrbios ou
“normais”.
O nosso papel, a meu juízo, é o de - levando em
consideração que alunos com deficiências ou com distúrbios
têm, sim, características pessoais que não podem deixar
de ser consideradas, se o intuito for o de uma efetiva
melhoria da qualidade do ensino - incluí-los, de forma
distinta, aos demais grupos sociais historicamente
desprezados por políticas sociais demagógicas e de
manutenção dos privilégios de classe.
Por fim, quero deixar registrado que, apesar
de extremamente crítico em relação ás políticas atuais,

60 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


considero que se é verdade que as sociedades não vão se
modificando de forma completamente aleatória, por outro,
todas as profecias parecem ter o mesmo fim, isto é, o de
não se concretizarem, na medida em que as condições
futuras não podem ser previstas por quem as faz.
Em outras palavras, assim como as condições
atuais parecem apontar para a impossibilidade de se
construir uma alternativa a essas políticas avassaladoras,
a crítica, a resistência e as heresias poderão contribuir para
que a história tome rumo diferente.
Mas isso só saberão os que viverem no futuro.
Cabe a nós, no mínimo, a responsabilidade de procurar
contribuir para que ele seja melhor que o presente.

Referências Bibliográficas

BRASIL. CNE. Resolução CNE/CEB Nº 2, DE 11 de


setembro de 2001, que institui as Diretrizes
Nacionais para a Educação Especial na Educação
Básica.

BRASIL. MEC.INEP. Geografia da educação


brasileira, Brasília, INEP, 2001.

BUENO, José Geraldo Silveira. A inclusão de alunos


deficientes nas classes comuns do ensino regular. Temas
sobre desenvolvimento, vol. 9, n. 54, 2001.

______. Alunos e alunos especiais como objetos de


investigação: das condições sociais às condições pessoais
adversas. IN: FREITAS, Marcos Cezar de. (Org.).
Desigualdade social e diversidade cultural na
infância e na juventude. São Paulo: Cortez, 2006.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 61


CONFERÊNCIA MUNDIAL DE EDUCAÇÃO PARA
TODOS. Declaração mundial sobre educação para
todos. Jomtien: UNESCO, 1990.

CONFERENCIA MUNDIAL SOBRE NECESIDADES


EDUCATIVAS ESPECIALES. Declaración de
Salamanca y marco de acción para las
necesidades educativas especiales. Salamanca:
UNESCO, 1994.

CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE NECESSIDADES


EDUCACIONAIS ESPECIAIS. Declaração de
Salamanca e linha de ação sobre necessidades
educativas especiais. Brasília: CORDE, 1994.

CONFERÊNCIA MUNDIAL SOBRE NECESSIDADES


EDUCACIONAIS ESPECIAIS. Declaração de
Salamanca: Sobre Princípios, Políticas e Práticas
na Área das Necessidades Educativas Especiais.
(disponível em http://www.mj.gov.br /sedh/ct/corde/
dpdh/sicorde/decl_salamanca.asp, em 22/07/2005)

CORAGGIO, José Luiz. Propostas do Banco Mundial para


a educação: sentido oculto ou problemas de concepção?
In: DE TOMMASI, Lívia; WARDE, Mirian J.; HADDAD,
Sergio. O Banco Mundial e as políticas
educacionais. São Paulo: Cortez/PUC-SP/Ação
Educativa, 1996.

HARGREAVES. Andy. Os professores em tempos de


mudança. Lisboa: Mc Graw-Hill, 1996.

FREIRE, Paulo. Educação como prática da


liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.

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MARTINS, José de Souza. Exclusão social e a nova
desigualdade. São Paulo: Paulus, 1997.

TEIXEIRA, Anísio. Educação no Brasil. São Paulo: Cia.


Editora Nacional, 1979.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 63


PARTE 2

ESCOLA, DOCÊNCIA E
DEFICIÊNCIA
DESENHANDO A
CULTURA ESCOLAR:
ENSINOAPRENDIZAGEM10 E
DEFICIÊNCIA MENTAL NAS
SALAS DE RECURSOS E NAS
SALAS COMUNS

Fabiany de Cássia Tavares Silva


UFMS/MS

... é fato que a educação cumpre finalidades


determinadas pela sociedade, não é menos
verdade que os projetos, os discursos, as teorias
pedagógicas materializam-se no cotidiano da
escola; é nesse âmbito que a intercessão de
subjetividades e práticas cadencia ritmos,
ritualiza comportamentos, intercambia
experiências, configura formas de agir, pensar,
sentir e possibilita a identidade/diferenciação
da escola no conjunto das instituições sociais.
(SOUZA, 1998, p. 19)

As reformas da política educativa, iniciadas na


década de 1990, no tocante aos sistemas de ensino, têm
encorajado que a educação dos alunos com necessidades
educacionais especiais, no caso dos deficientes, aconteça,
preferencialmente, nas salas de aulas comuns em escolas
regulares. Isso posto, assiste-se a uma reconfiguração das
modalidades de atendimento em serviço, as quais, ao

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 67


serem disponibilizadas no sistema regular de ensino
colocam a prerrogativa de comprovação de sua eficácia
para o processo de escolarização, principalmente, dos
deficientes.
Entre esses serviços, as salas de recursos
parecem fadadas a atender a essa prerrogativa, pois é cada
vez mais crescente a sua abertura, em detrimento das
classes especiais. Contudo, a criação dessas classes, na
educação especial brasileira, não se dá exclusivamente pela
reforma educativa em curso; pelo contrário, aconteceu em
meados da década de 1970, informada pela tradução de
bibliografia americana especializada e, principalmente,
pela discussão sobre os processos de segregação levados a
termo nas classes especiais, ou mesmo nas Escolas
Especiais.
Ancorados na perspectiva de configuração da
sala de recursos como um ambiente determinante para o
processo de qualificação da integração dos indivíduos no
ensino comum, distintos autores (DUNN, 1977; TELFORD
E SAWREY, 1977, entre outros) apresentaram diferentes
entendimentos sobre a ação nesse espaço escolar, ora
centrados nos aspectos determinantes das deficiências, ora
nos processos escolares.
Se é verdade que a proposta da sala de recursos
visa, por um lado, superar o persistente hiato entre a
educação especial e a integração dos alunos deficientes,
oferecendo um modelo simultaneamente operatório e
decorrente das necessidades específicas de cada
deficiência, por outro, aponta uma normalização das
condições de escolarização para indivíduos muito
diferentes. Mas, falar da sala de recursos, ou falar no seu
oferecimento especificamente para deficientes mentais,
impõe igualmente o problema de separar o que difere e
de avaliar em si mesmo o que é diferente, espaços
específicos destinados à escolarização dos deficientes.

68 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Na Resolução CNE/CEB Nº 2, de 11 de
setembro de 2001, a qual institui Diretrizes Nacionais para
a Educação Especial na Educação Básica, encontramos no
Art. 8º a seguinte indicação para salas de recursos:

V – serviços de apoio pedagógico especializado


em salas de recursos, nas quais o professor
especializado em educação especial realize a
complementação ou suplementação curricular,
utilizando procedimentos, equipamentos e
materiais específicos [...].

Parece que a proposição das salas de recursos


continua se alimentando da tendência à vinculação da
deficiência à necessidade de práticas especializadas com
as quais os professores devem contar para a escolarização
de seus alunos. Vinculação essa que se transforma na
condição determinante para que as questões metodológicas
e técnicas não sejam as fundamentais dessa prática.
Diante disso, a questão que se coloca é saber
como as relações entre ensinoaprendizagem e deficiência
mental, construídas por meio das práticas em sala de
recursos e salas comuns do ensino fundamental, desenham
a cultura escolar.
Para discutir tal questão realizo, ainda que
pontualmente 11, uma leitura dos determinantes da
pesquisa sobre a escola e a cultura escolar relacionando-
os a alguns aspectos definidores na fabricação dos
indicadores de necessidades educacionais especiais12. Parto
dessa relação para aprofundar alguns eixos de análise, que
me parecem explicitar as marcas da cultura escolar e, ao
mesmo tempo, o cotidiano das salas de recursos, quais
sejam: o espaço e o tempo.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 69


Em seguida, analiso os ordenamentos temporal
e espacial de duas escolas da rede estadual na cidade de
Campo Grande (MS), a saber: Escola Seriema, com uma
sala de recursos para deficientes mentais e duas salas de
aulas comuns, e Escola Lontra com três salas de aulas
comuns13. A orientação para a escolha da Escola Seriema
se deu, por um lado, pelo oferecimento da sala de recursos
para deficientes mentais; de outro, pelo número de alunos
atendidos nessa sala oriundos dessa mesma escola. Já a
escolha da Escola Lontra deve-se ao número de alunos
encaminhados à sala de recursos da Escola Seriema.
Por fim, trabalho com uma categorização das
práticas desenvolvidas em salas de recursos e em salas
comuns, a fim de registrar as lógicas e as tensões internas
que produzem e, ao mesmo tempo, são produtos da relação
escolarização e deficiência mental.
Tecer uma reflexão sobre as práticas de ensino
na sala de recursos e sobre as séries/ciclos iniciais do
ensino fundamental com espaços, tempos e profissionais
definidos, prende-se à necessidade de colocar em questão
e criticar a própria estrutura em torno e por meio da qual
se constrói boa parte dos discursos e percepções sociais e
educativas, no que se refere ao ensino do deficiente mental.
Trata-se, portanto, de investigar a realidade,
para busca de argumentos que permitam defender
simbólica e materialmente as práticas como elementos
fundamentais, constitutivos e expressivos da cultura, a
escola como organização e instituição diferençada de
outras, característica do que Guy Vincent (1994) chamou
de produção de uma forma escolar. Essa distinção da
escola em relação a outras instituições, como a família, as
escolas especiais, por exemplo, configura-se no momento
da adoção de uma das formas autorizadas de ser da
educação especial, no caso dos serviços de educação
especial junto às escolas regulares.

70 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Escola e a cultura escolar: “luzes e sombras” na
fabricação dos indicadores de necessidades
especiais

Podemos dizer que existem inúmeras


características que aproximam os comportamentos das
escolas, bem como as investigações sobre ela, e há uma
infinidade de outras que os/as diferenciam. No entanto,
parece não haver inconvenientes em considerar a escola
como uma instituição com cultura própria. Os principais
elementos que desenham essa cultura são os atores
(famílias, professores, gestores e alunos), os discursos e
as linguagens (modos de conversação e comunicação), as
instituições (organização escolar e o sistema educativo) e
as práticas (pautas de comportamento que chegam a se
consolidar durante um tempo).
Para Chervel (1988), a escola fornece à
sociedade uma cultura constituída de duas partes: os
programas oficiais, que explicitam sua finalidade educativa
e os resultados efetivos da ação da escola, os quais, no
entanto, não estão inscritos nessa finalidade. Dito de outro
modo, esse autor entende a cultura escolar como cultura
adquirida na escola e encontra nela não somente seu modo
de difusão, mas também sua origem.
Tendo em vista essa definição, a escola tem uma
função social básica, que vai além de prestar serviços
educativos. Logo, não pode ser entendida como uma
organização social, pois essa figura burocrática está calcada
na necessidade de gerir seu espaço e seus tempos
particulares, o que, obviamente, contradiz as premissas
que instituem a função social da escola, bem como o seu
entendimento como um mundo social instituído de uma
cultura própria.
O modo como a escola vem se organizando tem
reforçado mecanismos geradores de adaptação e

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 71


dominação. São esses mecanismos que certamente
informam os processos pedagógicos, os organizativos, de
gestão e de tomada de decisões no interior da escola, os
quais vão além da legislação ou das recomendações feitas
pela(s) entidade(s) mantenedora(s) e/ou pelo poder
público. Assim, a escola, principal instituição da sociedade,
responsável pela educação formal dos indivíduos, difere
grandemente de outras organizações sociais.

A estrutura organizacional da escola não está


sustentada apenas por um plano racional
determinado pela burocracia. A escola é uma
totalidade mais ampla, “compreendendo não
apenas as relações ordenadas conscientemente,
mas, ainda, todas as que derivam de sua
existência enquanto grupo social” (CÂNDIDO,
1971, p. 107).
Sendo a escola, portanto, uma instituição da
sociedade, ela é base para o conceito de sociedade moderna
de que a humanidade dispõe atualmente, ou mais, a escola
é “elemento fundante” para o espírito de modernidade,
“um dos principais motores de triunfo da modernidade”
(PINEAU, 1999, p. 39).
O que se está buscando apontar é que

[...] as escolas são formas sociais que ampliam


as capacidades humanas, a fim de habilitar as
pessoas a intervir na formação de suas próprias
subjetividades e a serem capazes de exercer
poder com vistas a transformar as condições
ideológicas e materiais de dominação em
práticas que promovam o fortalecimento do
poder social e demonstrem as possibilidades de
democracia (GIROUX; SIMON, 1995, p. 95).
Conclui-se, então, que, se a escola assume o

72 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


papel de transformar a sociedade, conseqüentemente
transforma a cultura. Dessa maneira, o estudo das ações
do cotidiano escolar, seja na influência sobre os seus ritos
ou sobre a sua linguagem, seja na determinação das suas
formas de organização e de gestão, seja na constituição
dos sistemas curriculares, sem perder de vista a troca
entre esses elementos, configura a cultura escolar.
A análise e estudo da escola só têm verdadeiros
sentidos se conseguirem mobilizar todas as dimensões
pessoais, simbólicas e políticas da vida escolar, não
reduzindo o pensamento e a ação educativa a perspectivas
técnicas de gestão ou de eficácia. Os processos de estudo e
investigação educacional passam pela compreensão das
escolas em toda a sua complexidade técnica, científica e
humana.
Para tanto, a compreensão dos modelos
políticos, compreendidos como a introdução dos conceitos
de poder, de disputa ideológica, conflito, interesses,
controle, regulação, e dos modelos simbólicos, considerados
como os significados dados pelos indivíduos aos
acontecimentos, bem como o caráter incerto e imprevisível
dos processos organizacionais mais decisivos podem
significar a redefinição da descrição das características
organizacionais e da cultura escolar.
Viñao Frago lembra que a cultura escolar tem
sido entendida como uma das “caixas pretas” da
historiografia educacional e, no conceito de cultura escolar,
vê os modos de pensar e atuar que proporcionam aos seus
componentes estratégias e pautas para desenvolver-se
tanto nas aulas como fora delas – no resto do recinto escolar
e no mundo acadêmico – e integrar-se no cotidiano da
escola (VIÑAO FRAGO, 2000a, p. 100).
A função da cultura escolar não seria a de
promover uma incorporação de valores outros que não os
objetivos escolares, ou mesmo a de servir de ferramentas

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 73


para a inculcação de valores. Pelo menos não são apenas
essas as resultantes promovidas pela cultura escolar. Viñao
Frago concebe a cultura escolar como aquele conjunto de
práticas, normas, idéias e procedimentos que se
expressam em modos de fazer e pensar o cotidiano da
escola e,

[...] esses modos de fazer e de pensar –


mentalidades, atitudes, rituais, mitos, discursos,
ações – amplamente compartilhados,
assumidos, não postos em questão e
interiorizados, servem a uns e a outros para
desempenhar suas tarefas diárias, entender o
mundo acadêmico-educativo e fazer frente
tanto às mudanças ou reformas como às
exigências de outros membros da instituição,
de outros grupos e, em especial, dos
reformadores, gestores e inspetores (VIÑAO
FRAGO, 2000a, p. 100).

Os indivíduos e suas práticas são basilares para


o entendimento da cultura escolar, particularmente no que
se refere à formação desses indivíduos, à sua seleção e ao
desenvolvimento de sua carreira acadêmica. Dessa forma,
os discursos, as formas de comunicação e as linguagens
presentes no cotidiano escolar, constituem um aspecto
fundamental de sua cultura.
Observo, então, a escola como uma instituição
ímpar, que se estrutura sobre processos, normas, valores,
significados, rituais, formas de pensamento, constituidores
da própria cultura, que não é monolítica, nem estática, nem
repetível. E nessa idéia está pressuposta uma seleção
prévia de elementos da cultura humana, científica ou
popular, erudita ou de massas.
Em Bourdieu e Passeron (1992), por exemplo,
encontramos a afirmação de que o papel da escola é a

74 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


produção e a reprodução das condições institucionais para
a reprodução cultural e para a reprodução social. Em outras
palavras, a escola tem desenvolvido um padrão cultural,
não apenas de repetição de comportamentos, mas de
desenvolvimento mesmo de raciocínios para a solução dos
diferentes problemas e para a convivência.

Como ´força formadora de hábitos‘, a escola


provê aos que têm estado submetidos direta ou
indiretamente à sua influência, não tanto de
esquemas de pensamento particulares ou
particularizados, senão desta disposição geral,
geradora de esquemas particulares suscetíveis
de serem aplicados em campos diferentes de
pensamento e de ação, que se pode chamar de
habitus culto (BOURDIEU, 1977, p. 25).
Parece que a escola conforma os indivíduos
dotando-os “de um sistema de esquemas inconscientes
que constituem sua cultura” (BOURDIEU, 1977, p. 26),
isto é, uma cultura fundada em uma infinidade de práticas
adaptadas a situações sempre renovadas, sem nunca se
constituir em princípios explícitos. No entanto, essa mesma
cultura não é simples reprodutora, tampouco refratária a
mudanças, pois ela tem sua própria identidade construída
entre o que escutam, o que lêem, o que já sabem e
acreditam ideologicamente os indivíduos.
Vale destacar a importância da análise das
diferentes formas de trabalho executadas na escola, como
constitutivas de um projeto que parece depender cada vez
menos da excelência das idéias pedagógicas e mais do
trabalho investido na negociação, explicação, cooperação
e animação. As culturas escolares, ao se basearem em uma
organização pedagógico-administrativa rígida e em grupos
definidos hierarquicamente, orientados para os fins
funcionais da educação, apresentam dificuldades em se

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 75


adaptar a circunstâncias inesperadas. De uma maneira
geral, fazem avançar a prática seletiva que identifica a
dificuldade no nível individual.
Cabe ressaltar que essas dificuldades são
sempre atribuídas aos indivíduos que se encontram
inseridos em uma escola singularizada, de um lado, como
produto das estruturas macrossociais e das estruturas da
produção material; de outro, das políticas educacionais em
curso.
No caso específico da fabricação da diferença, o
pluralismo da escola e a sua concretização nas relações
pedagógicas, não passam, somente, pela ignorância ou pelo
acobertamento das deficiências, mas pelo entendimento
de que em relação a elas, existe uma diferença específica
de posicionamento.
Tal posicionamento é o de distanciamento, uma
vez que o conhecimento das diferenças dos alunos com
necessidades especiais passa pela necessidade de uma
estreita relação entre a escola e eles, o que poderia
contribuir para a transposição do reconhecimento da sua
diversidade cultural ao seu conhecimento e, para isso, ela
ainda não está preparada.
As proposições de Certeau (1998) nos oferecem
uma via para captar os potenciais de transformação,
embutidos nas práticas cotidianas de construção dos
indicadores de necessidades especiais, ao mesmo tempo
que abrem um espaço para divisar possibilidades de
reapropriação dos produtos envolvidos nessa construção,
de fabricação de outros sentidos, distintos daqueles
imprimidos na produção.
Os alunos com indicadores de necessidades
especiais ocupam uma posição específica na cultura escolar,
uma vez que existem inúmeras características que os
aproximam e há uma infinidade de outras que os
diferenciam, individual e grupalmente. Se a escola é

76 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


espaço e lugar (VIÑAO FRAGO; ESCOLANO, 1998, p.
77), produzido e reproduzido por indivíduos, as imagens
podem ser tudo e também o seu contrário — fabricada e
“natural”, normal e anormal, antiga e contemporânea,
comparativa, convencional, benéfica, ameaçadora...
Dessa forma, os alunos que cotidianamente
adentram o espaço da escola produzem e podem ser
produtos de imagens que (re)configuram as mais variadas
possibilidades de (in)adaptação e (des)contextualização
das experiências proporcionadas pelos processos, que são
ali desenvolvidos. A deficiência jamais passa despercebida,
provocando diferentes reações humanas diante dessa
condição, uma vez que surpreende, desorganiza e imobiliza
ao corporificar o que “escapa” ao familiar, ao usual, ao
esperado.
Paradoxalmente, a educação, na tentativa de
idealizar os processos de relacionamento entre os
indivíduos, acaba por isolá-los de seu meio, alimentando
um terreno propício para a criação de estereótipos
(estigmas). Sendo co-produtora desse fenômeno, aliada a
outras instâncias — família e meios de comunicação de
massa — a educação preconiza uma solidariedade que,
longe de ser marcada pela identificação com o outro, incide
diretamente sobre o medo da identificação com aquilo que
diferencia.
Expressão desse relacionamento é a subcultura
que toma forma nos processos de interação de pequenos
grupos (no caso os alunos com necessidades especiais) em
diversos âmbitos, dentro de grandes grupos (no caso os
“normais”). A necessidade de aceitação proporciona a
motivação de que os grupos se utilizam nas técnicas de
modificação dos indivíduos. A entrada em um determinado
grupo é permitida apenas à medida que os “estranhos” se
submetem às exigências do grupo, são reconhecidos como
parte integrante da situação (BECKER e GEER, 1959). Os

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 77


requisitos de aceitação de grupos nem sempre são
claramente formulados, e as reações do grupo como um
todo são essencialmente as mesmas que as dos indivíduos
que o compõem.
Essa interação grupal que, no espaço escolar, é
intensiva, faz parte da apreensão da cultura escolar. A
reação individual de um aluno com necessidades especiais
como de qualquer outro, não é apenas parte de um
comportamento desviante, tampouco mera seqüência de
experiências do passado em geral, mas varia com as
intenções e desejos do presente e também com as relações
sociais mantidas com o professor. A aprendizagem decorre
também de atitudes, interesses e valores, e seu efeito está
estritamente ligado ao prestígio, à aceitação da ação escolar
e docente.
No entanto, as conseqüências das relações
sociais na sala de aula são complicadas pelos efeitos
variáveis produzidos por atitudes diversas (liderança,
medo, respeito, afeição, indiferença, hostilidade), em
relação aos professores, professores-alunos, alunos-alunos
e, não somente pela presença da deficiência. Poderíamos
dizer que essa motivação constitui-se em elemento da
cultura estudantil, como categoria que engloba o modo pelo
qual os alunos, por meio de uma interação intensiva no
grupo, organizam e reorientam suas representações,
concepções, objetivos e seus esforços ao longo de sua
escolarização.
A cultura dominante, objetivada como a cultura
e em relação à qual é difícil perceber outras expressões
culturais, e a organização do trabalho, dentro do espaço
escolar, não têm favorecido a circulação de idéias, aquisição
e produção de saberes em relação a práticas de
ensinoaprendizagem, com os indivíduos com necessidades
especiais, sugerindo uma espécie de homogeneidade no
tratamento dos alunos e do próprio estabelecimento de

78 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


ensino.
Desse modo, encontram-se secundarizadas as
possibilidades de apreender que a escola e suas normas
de ensino são negociadas socialmente, no contexto da
escolarização, cotidianamente, como princípios de uma
cultura escolar. A cultura do local de trabalho está
impregnada por conceitos, práticas e crenças que são
partilhados pelos indivíduos (consciente ou
inconscientemente) e influenciam o ambiente de
aprendizagem, determinando as formas pelas quais são
vistos e/ou construídos o trabalho pedagógico e, sem
dúvida, os alunos.
Parece que a diferenciação se encontra no cerne
da discussão sobre o caráter cultural das relações escolares
e, sobretudo, dos critérios sob os quais as escolas vão
organizar a população escolar. No contexto dessa
diferenciação é que surgem os alunos com indicadores de
necessidades especiais, não somente como indivíduos
portadores de algo que lhes está intrinsecamente atribuído
– deficiências –, mas, também, como produto de in/
exclusão constitutiva da instituição escolar.
A seletividade escolar, contudo, manifestação
estrutural da escola brasileira, não se alocou somente na
educação comum, mas, também, na especial. A esta última,
trouxe conseqüências de duas ordens:- de absorção de
população não-deficiente e de imputação das causas do
baixo rendimento escolar do deficiente às peculiaridades
da sua deficiência.
Nesse sentido, a expansão dos serviços de
educação especial é entendida como resposta à
necessidade, entre outras, de explicação das diferenças de
rendimento da clientela escolar e a de justificar essa
diferença como não somente intrínseca aos processos de
ensino operacionalizados, portanto, oriundos de causas
muito específicas.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 79


Categorias adotadas: o espaço e o tempo como
“marcas” da cultura escolar

A afirmação dessas categorias e sua


configuração como conteúdos da cultura escolar, nesse
estudo, está intimamente ligada ao movimento de
organização da vivência escolar entre os indivíduos com
indicadores de necessidades especiais e os “outros”. A
primeira categoria, o espaço, auxilia a descrever e analisar
que a arquitetura das escolas, das salas de aulas, é um
programa de educação, uma pauta que proporciona aos
indivíduos experiências culturais e escolares com objetivos
implícitos.
Para Escolano (2000), o estudo do espaço
escolar incorpora símbolos e signos que asseguram uma
identidade inequívoca e que transmitem determinadas
mensagens de comum significado para as pessoas da escola,
portanto,

[...] a codificação da linguagem da arquitetura


escolar tem dado origem a toda uma série de
invariantes que podem ser analisadas como um
texto que transmite imagens de firmeza,
ordem, harmonia, seguridade, beleza... Essas
invariantes podem adotar diferentes estilos,
porém como sistema constitui todo um discurso
com sentido. (p. 23)
Assim, o espaço escolar, na perspectiva desta
pesquisa, traduz manifestações não somente de ideários
da organização pedagógica, mas, também, conteúdos de
cultura e diversos signos estéticos, sociais e ideológicos.
Nessa mesma ordem, considero o tempo como uma outra
variável dessa tradução, associado ao espaço, pois se
apodera dele e lhe oferece identidade. “Os marcos
temporais são algo mais que ‘uma pequena contingência

80 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


que inibe ou facilita’ a atividade da escola, toda vez que
condicionam representações e percepções dos espaços e
também sua planificação e seus usos” (HARGREAVES,
1998, p. 107).
A análise da complexa relação entre as escolas
e as suas formas de organização e funcionamento comunica
toda uma construção cultural da organização do espaço
para o contexto da cultura escolar. Essa análise não bastou
para penetrar no mais tradicional da disposição do espaço
escolar, nomeadamente a sala de aula.
Sem dúvida, os tempos escolares são múltiplos
e, aliados à ordenação do espaço, tomam parte na cultura
escolar. A organização rítmica da vida escolar se expressa
no transcurso e na rotina cotidiana, na duração, nas
alternâncias, continuidades e descontinuidades das
atividades, originadas nos distintos contextos e nas
seqüências e compassos das relações e práticas escolares.
Tal destaque apresenta efeitos conceituais e metodológicos
de pesquisa, uma vez que desnaturaliza a escola, a
normalidade dos conceitos, produzindo novas perspectivas
para as fontes disponíveis, recompondo significados.
O tempo e o espaço escolar têm sido, então,
concebidos essencialmente como uma das práticas que
auxiliam na operação desses efeitos. Para Viñao Frago
(1998), o tempo e o espaço são, respectivamente,
conceituados como:

[...] primeiramente, um tempo pessoal,


institucional e organizativo. Por outra parte tem
sido entendido, desde essa dupla perspectiva,
um dos instrumentos mais poderosos para
generalizar e apresentar como natural e única,
em nossas sociedades, uma concepção e
vivência do tempo como algo mensurável,
fragmentado, seqüenciado, linear e objetivo

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 81


que traz implícita uma visão de meta e futuro
(VIÑAO FRAGO, 1998, p. 19).
[...] nem um ‘contenedor’, nem um ‘cenário’,
mas sim uma espécie de discurso que institui
em sua materialidade um sistema de valores,
... uns marcos para o aprendizado sensorial e
motor e toda uma semiótica que cobre
diferentes símbolos estéticos, culturais e, ainda,
ideológicos. E, em suma, como a cultura
escolar, da qual faz parte, ‘uma forma silenciosa
de ensino’. Qualquer mudança em sua
disposição, como lugar ou território modifica
sua natureza cultural e educativa (VIÑAO
FRAGO, 1998, p. 69).

As possibilidades, que me parece


generalizarem-se nesses conceitos, consistem em
pluralizar a investigação do tempo e do espaço, exigindo
uma atualização contínua de observação da formação dos
fenômenos educativos, no decorrer das mudanças dadas
no cruzamento das esferas cultural, escolar e econômica.
Para essa observação, entendo imprescindível a
consciência da historicidade desse cruzamento, dos
processos em que se apóia, da manifestação do real e dos
resultados a que, num dado momento, dá corpo.
A afirmação dos ordenamentos temporal e
espacial e sua configuração como conteúdos da cultura
escolar, nessa análise, está intimamente ligada com o
movimento de localização do currículo no processo de
legitimação das formas de transmissão do conhecimento
acerca das diferenças e das possibilidades de aprendizagem
de todos os atores escolares e não somente dos alunos.
Segundo Viñao Frago; Escolano, “a distribuição
interna dos espaços, usos e funções requer uma análise
geral e permite, por sua vez, análises específicas de cada

82 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


um dos mesmos” (1998, p. 111). Essa análise específica,
nesse item, está na associação com o tempo escolar, que
regula o ritmo da prática educativa.
Algumas pautas se apresentam para a
(re)construção da categoria tempo escolar na pesquisa
educativa, entre elas destacamos: 1) o tempo de ensino, o
qual engloba o tempo previsto por programas e o tempo
dedicado à instrução e à educação, que segue sob o controle
da escola; 2) tempo de presença na escola, que estuda os
tempos de recreio, de refeição, de estudos; e 3) tempo das
atividades educativas extra-escolares, as aulas de
educação física, os trajetos de casa para a escola, os deveres
de casa e as aulas particulares (COMPÈRE, 2000).
Uma das marcas mais fortes da conceituação e
do funcionamento da sala de recursos é o estabelecimento
de critérios e formas de utilização do espaço e tempo, o
que concorre para a alteração da ordem racionalizada de
escola. Isso me leva a precisar que os espaços e tempos
específicos da sala de recursos, nas escolas da rede
estadual, conformam as marcas de uma forma particular
de tratamento do especial, isto é, da deficiência diante dos
espaços e tempos das salas comuns.

As salas de recursos e as salas comuns: “contornos”


do ordenamento espacial e temporal

A organização do espaço das salas de recursos,


por estar estreitamente relacionada com as necessidades
educativas dos alunos, implica a caracterização de uma sala
diferenciada que funciona no contraturno das salas
comuns. Já as salas comuns, ocupadas por diferentes
alunos, inclusive por aqueles com indicadores de
necessidades especiais, detêm as informações que
alimentam o ordenamento temporal e espacial das salas
de recursos.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 83


A cultura escolar parece construir, sobre as
condições concretas da organização da escola inclusiva,
variantes no entendimento da organização do tempo e do
espaço, com regras mais ou menos oscilantes, com
ocupações do espaço mais ou menos estáveis, com uma
maior ou menor dependência do relógio na medição do
tempo. Nesse sentido, inscrita nas relações entre as salas
de recursos e as salas comuns, gera atitudes, perante a
escolarização dos alunos com necessidades especiais e a
dos alunos comuns, por vezes alimentadas pelos conflitos
ideológicos e biológicos14 na fundamentação do currículo.
Cabe ressaltar que as escolas da rede estadual
funcionam no ensino fundamental, desde 2001, por ciclo,
nos anos iniciais, e por série nos anos finais, sendo ciclo I e
II para os anos iniciais. Cada ciclo tem a duração de dois
anos letivos, distribuídos em oito bimestres, mantendo-
se a lotação de professores habilitados nas áreas de
Educação Artística, Educação Física e Língua Estrangeira
Moderna.
A sala de recursos da Escola “Seriema” funciona
no período matutino, no mesmo turno de funcionamento
do ensino fundamental — 5ª a 8ª série, apenas uma turma
do ciclo I e outra de recuperação paralela. Conta com 10
alunos, sendo 02 deles da mesma escola, 05 da Escola
“Lontra” e 03 de outra escola.
Alojada em uma sala construída para o pernoite
do caseiro, é uma sala de aula adaptada, porque não tem o
espaço métrico de uma sala de aula e a disposição funcional
para tal, pois comporta uma pia e um banheiro desativado.
Esse espaço abriga, ainda, alguns materiais em desuso pela
escola, tais como armários, máquinas de escrever e
mimeógrafos.
Já as salas de aulas comuns dessa escola, apesar
de diferirem em espaço métrico das salas de recursos, não
apresentam condições adequadas de uso, algumas têm

84 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


janelas com vidros quebrados, ventiladores de teto
quebrados, carteiras em número insuficiente para os alunos
matriculados e precária iluminação, pela ausência de
lâmpadas. Em outras, observam-se melhores condições
de uso, pelo simples atendimento aos requisitos que faltam
às primeiras.
Ressalto, ainda, que a sala de recursos não
divide o espaço com outras salas de aulas, pois sua porta
de entrada/saída está projetada para o muro lateral. Essa
distribuição espacial não é algo indiferente, e parece
determinar em boa medida as reduções de possibilidades
de adaptação da escola aos supostos requerimentos
específicos dos alunos com indicadores de necessidades
especiais. Vale dizer, uma visão subjetiva do espaço como
que reveladora de determinadas mensagens por parte da
escola, constituindo uma forma de relação com as
necessidades estruturais e materiais dessa sala e as
biopsicossociais de seus alunos.
Isso se reforça na entrada dos alunos para essa
sala, pois tal entrada é independente, realizada pela lateral
do prédio, desobrigando-os, portanto, de passar pelo pátio.
Penso que a separação da sala de recursos do resto da
escola se fortalece na ausência do uso do pátio, palco dos
acontecimentos e da observação da administração, espaço
de trocas, transição do trabalho para o lazer e vice-versa,
o local que permite aos alunos a passagem de uma cultura
à outra.
A delimitação dessa circulação e dessa
apropriação, diferenciadas e diferenciadoras, imposta à sala
de recursos dessa escola, é um mediador cultural em
relação às experiências e às aprendizagens, elemento
significativo do currículo. Essa separação não é apenas mais
um dos elementos de distinção, ela impõe formas legítimas,
ou não, de sua apropriação e de sua utilização. Apropriação
que parece desautorizada aos alunos da sala de recursos,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 85


talvez porque eles não sejam vistos como fazendo parte
dela, alguns vêm de outras escolas.
A sala de recursos, no entanto, apresenta
similaridade com as salas de aulas comuns, dessa mesma
escola, nos dois traços mais característicos da sua
organização pedagógica e espacial, em que pesem as
diferenças de espaço físico. O primeiro deles é a disposição
das carteiras e dos alunos, próximos à professora e ao
quadro-negro ou memoboard15. Essa disposição permite
colocar em prática, ao mesmo tempo, o ensino mútuo e o
individual, bem como o acompanhamento e a correção das
atividades de todos, no momento em são realizadas. O
segundo traço é o ambiente visual dessa sala, igual aos
das salas de aulas comuns, com a presença de cartazes
com as letras do alfabeto, varal de produções dos alunos,
quadro horário, calendário, quadro-de-giz e carteiras.
Já nas três salas comuns, observadas na Escola
“Lontra”, essa similaridade não existe, pois as mesmas
salas apresentam outros traços, tais como: mobiliários em
sala de aula dispostos de forma alternada, isto é, em alguns
dias é possível presenciar uma organização de filas duplas,
realizadas apenas com a aproximação de duas carteiras;
em outros, filas que contêm uma, duas e até três carteiras,
distantes ou próximas da mesa e/ou carteira dos
professores.
Quanto ao ambiente visual, não havia padrão
estabelecido, uma vez que as salas da primeira etapa do
primeiro ciclo apresentavam cartazes, varal de produções,
mas as das etapas subseqüentes sequer tinham qualquer
cartaz. Acrescente-se a isso a precariedade dos espaços
físicos dessas salas que apresentavam rachaduras,
infiltrações, vidros quebrados e pouca luminosidade.
Ora, em que pesem as distinções dessa
organização pedagógica e espacial e a correlativa
organização das pessoas e objetos na sala de aula, elas não

86 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


deixam de constituir uma tentativa de “introduzir ordem
e previsão, certeza e racionalidade, regulação e
uniformidade” (VIÑAO FRAGO; ESCOLANO, 1998, p.
131), numa situação educativa em que os elementos de
controle, próprios da forma escolar, parecem minados.
A sala de recursos está, assim, produzindo o
embate de culturas, pela imposição do seu modelo diante
do modelo escolarizado de escola, isto é: “espaço fechado
e totalmente ordenado para a realização de cada um de
seus deveres, num tempo tão cuidadosamente regrado,
que não pode deixar nenhum lugar a um movimento
imprevisto, cada um submete sua atividade aos ‘princípios’
ou ‘regras’ que a regem” (VINCENT, 1994, p. 4).
Nesse sentido, são as relações estruturais que
marcam precisamente a formação da cultura escolar pelas
práticas específicas de espaço e tempo produzidas. “Os
tempos escolares, as horas, os dias, se constituem em
marcos de aprendizagem e em mecanismo para auto-
regulação dos comportamentos da infância” (ESCOLANO,
2000, p. 85). Distribuídos em diferentes tempos de
freqüência e permanência semanal, os alunos da sala de
recursos estão como que dando forma à afirmação acima.
O procedimento mais utilizado para o
agrupamento desses alunos, nos diferentes tempos de
permanência e freqüência, tem sido organizado em torno
dos comportamentos, correspondência em níveis de
aprendizagem acadêmica, na perspectiva de construção
de grupos que apresentem certa homogeneidade nesses
aspectos.
Apesar disso, é possível afirmar que se trata
de grupos heterogêneos, pois existem diferenças quanto
aos hábitos de trabalho, interesses, estilos de
aprendizagem. A distribuição dos tempos está organizada,
segundo o quadro abaixo.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 87


Horário de Funcionamento da Sala de Recursos da Escola
“Seriema”

SEGUNDA- TERÇA- QUARTA- QUINTA- SEXTA-


FEIRA FEIRA FEIRA FEIRA FEIRA

07 às 09 h Elias Ana Maria Vicente Elias


Alberto Augusto Elias Paulo
Vicente Alberto Paulo Vicente
Antonio
Tomaz
Planejamento
09 às 11 h Nilda Nilda Tomaz Tomaz
Marcus Marcus Alberto Antonio
Augusto Ana Maria
Antonio Nilda
Ana Maria Marcus
Augusto

Fonte: SILVA, 2003.

Em uma análise, ainda que superficial desse


quadro horário, posso dizer que ele torna visíveis dois tipos
de divisões temporais, o primeiro diretamente relacionado
aos alunos, e, o segundo, relacionado ao trabalho do
professor. Se, no entanto, procedo a uma análise mais
restrita, entendo que esses tempos apresentam-se como
tempos organizados, concedidos aos diferentes grupos e
tempos comprometidos com a realização de diferentes
tarefas.
O tempo organizado me parece mais amplo e
incorpora as considerações temporais acerca das
necessidades educativas dos alunos, ao mesmo tempo que
um tempo do professor. Já o segundo implica a conexão
entre essas necessidades e a execução das atividades.
Nesse sentido, o tempo escolar, ao “permitir o
estabelecimento de unidades cronológicas de diversa
índole, resulta uma condição imprescindível para a
adequada ordenação, racionalização e desenvolvimento da
atividade educativa” (GAIRÍN SALLÁN, 1993, p. 233).
Sendo assim, essa idéia estava na base da
organização do ensino nas salas de aula comuns,
principalmente aquelas que alguns alunos da sala de

88 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


recursos freqüentam. Submetidos a uma diferente
estruturação do tempo escolar, agora em função das
disciplinas acadêmicas e não somente das atividades, ou
mesmo, de suas necessidades, esses alunos encontram-se
diante de uma periodização definida pela alternância das
experiências curriculares.
Retiro dessa diferente estruturação temporal
das aulas, a organização de dois tipos de tempos: 1) o
tempo dos alunos, pois eles permanecem dentro do espaço
escolar por quatro horas diárias, em vez das duas horas
da sala de recursos; nesse total de horas, há subdivisões
em diferentes tempos, isto é, os tempos de aulas e os
tempos de lanche e recreio e; 2) o tempo dos professores,
já que esses estão sob uma organização horária, a qual
implica toda uma reestruturação temporal, da organização
da aula à aula propriamente dita.
As salas (A) e (B) da Escola “Seriema”, por
contarem com a matrícula de dois dos alunos de sua sala
de recursos, também foram observadas. Essas salas
correspondem, respectivamente, à primeira etapa do
primeiro ciclo e à última etapa do segundo ciclo, e nelas
encontrei a seguinte distribuição horária, nos dias
reservados para observação, de acordo com o quadro
abaixo.
Distribuição horária das aulas das salas comuns da Escola
“Seriema”
Sala (A) Sala (B)
Terça-Feira Quinta-Feira Terça-Feira Quinta-Feira
13h/14h20min Língua Inglesa Aulas Aulas regulares Língua
regulares Inglesa
LANCHE
14h20min/14h40min
14h40min/15h30min Aulas regulares Educação Educação Aulas
Física Artística regulares
RECREIO
15h30min/16h
16h/17h15min Educação Aulas Educação Física Aulas
Artística regulares regulares

Fonte: SILVA, 2003.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 89


Considerando os tempos dos alunos e dos
professores nessa organização, é possível depreender
modos diferençados de apreensão e reconhecimento desses
tempos. Na sala (A), há uma apropriação muito peculiar
dos tempos destinados às aulas diversificadas (Língua
Inglesa, Educação Artística e Educação Física), ministradas
por diferentes professores. Tanto para os alunos quanto
para esses professores estão, na figura do professor das
aulas regulares (Língua Portuguesa e Matemática), as
orientações para a organização do tempo e as dinâmicas
das aulas. Em outras palavras, o espaço e o tempo das
aulas regulares servem de modelo para as outras aulas,
exceto as de Educação Física. Vale destacar que, para as
aulas de Educação Física, mudam-se o espaço e a
organização do tempo, pois as atividades são desenvolvidas
na quadra de esportes.
O espaço e os tempos das aulas de Educação
Física colocam em análise a tradicional disposição do espaço
escolar, nomeadamente na sala de aula, a qual parece
fortalecer um contexto de socialização e práticas de
aprendizagem que pouco privilegiam as trocas, os diálogos,
o comum.
Na sala (B), o quadro horário entendido pelos
alunos e reforçado pelos professores, como uma
aproximação às dinâmicas próprias da organização das
aulas que serão encontradas na etapa subseqüente da
escolarização. Essa referência tenta aliar os tempos dos
alunos aos tempos das disciplinas, na perspectiva dos
primeiros estarem submetidos ao segundo, por meio de
um controle mais rigoroso sobre a proposição das
atividades.
Nesse espaço, esperava-se um comportamento
que supunha familiaridade simulada com os objetos, os
instrumentos de trabalho e as técnicas específicas
orientadas por um distanciamento cultural que se traduzia

90 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


para os alunos dessa sala não só em dificuldades, como
também em uma aprendizagem formal e mecânica.
A organização do tempo escolar, nesse sentido,
parece não ser somente uma organização e uma
distribuição horária das áreas de conhecimento e das
situações educativas de uma aula, como uma análise
superficial poderia detectar. Desse modo, mais do que uma
organização e uma distribuição, trata-se de uma situação
determinada pelos níveis educativos, as modalidades de
agrupamento dos professores e desses com os alunos, bem
como o grau de envolvimento dos professores com os
conteúdos de suas disciplinas. Situação essa que dá origem
a diferentes quadros horários e organizações temporais.
Já na Escola “Lontra”, os tempos de escolares,
nas salas observadas, estão organizados para a segunda
etapa do primeiro ciclo onde estão matriculados quatro
alunos, oriundos da sala de recursos da Escola “Seriema”,
de acordo com a descrição do quadro abaixo:

Distribuição horária das aulas das salas comuns da Escola


“Lontra”
Sala (C) Sala (D) Sala (E)
SEG QUAR QUAR SEX SEG SEX
13h/ Educação Aulas Aulas Educação Educação Educação
14h20min Física regulares regulares Artística Artística Física
LANCHE — 14h20min/14h40min

14h40min/ Aulas Língua Educação Aulas Aulas Aulas


15h30min regulares Inglesa Física regulares regulares regulares
RECREIO — 15h30min/16h

16h/ Educação Aulas Aulas Língua Língua Educação


17h15min Artística regulares regulares Inglesa Inglesa Física

Fonte: SILVA, 2003.

Mesmo organizado um horário geral para um


conjunto de professores, o tempo se estrutura
diferentemente para os professores e as professoras
nessas salas de aula. Sendo três salas de aulas
representativas das mesmas etapas do primeiro ciclo,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 91


ficam evidentes duas formas distintas, porém
complementares de apropriação dos tempos.
A primeira diz respeito a algumas formas
organizativas do tempo, tais como:

– os programas das disciplinas como padrão de referência


básico;
– o ajuste das atividades ao tempo disponível; e
– a organização de espaço como facilitador da gestão do
tempo.

Essas são as formas mais presentes de


adaptação ao tempo nas salas (C) e (D). Contudo, essa
adaptação parece esquecer, de um lado, os ritmos que
explicam os processos de aprendizagem e pelos quais se
pode organizar as atividades escolares e, de outro, as
diferenciações temporais necessárias entre as atividades
escolares, isto é, entre as que exigem esforço de atenção
concentrado e aquelas em que predominam os interesses
e o sentido lúdico.
O mesmo não observei na sala (E), para a qual
as relações da temporalização com o desenvolvimento
curricular não estão centradas em nenhum critério visível,
pois as aulas se organizam em torno da ausência de
elaborações, isto é, ou se repetem as atividades anteriores
com os mesmos e/ou outros conteúdos, ou se apresentam
outros conteúdos sem, com certeza, ter sido procedido o
término do anterior.
A periodização das disciplinas escolares,
apresentada nesses quadros horários, como a duração em
tempo das atividades de uma determinada área de
conhecimento, torna explícitas algumas variáveis que
incidem sobre as diferentes unidades dessa
temporalização. Entre essas variáveis merece destaque a
incidência real da programação de cada área, no caso das

92 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


aulas regulares e das aulas diversificadas, à medida que
se consideram os períodos mais curtos de tempo para as
últimas e esses períodos, por terem uma unidade em si
mesmos, que os diferencia de outros, parecem exigir a
elaboração de atividades diferençadas e rápidas.
Concomitante a isso, o emprego de práticas adaptadas a
esse tempo.

As problemáticas que acompanham o horário


escolar são tanto substantivas como
metodológicas. Por uma parte se coloca a
delimitação conceitual de término, por outra,
a maneira como se chega ao conteúdo
(GAIRÍN SALLÁN, 1993, p. 242).

De igual importância, embora fosse uma


variável que não estabelecia relações lineares com o
conteúdo das disciplinas acadêmicas, a desconsideração dos
aspectos biológicos e higiênicos envolvidos, principalmente
no tempo da aula de Educação Física e no de lanche. A
desconsideração desses aspectos, nos tempos das aulas de
Educação Física, se revelava pelo grau de incoerência em
algumas distribuições temporais, sobretudo quando
colocada após o tempo de lanche.
Quanto aos tempos de lanche, vale destacar, por
um lado, sua localização entre uma aula e outra, para, muito
tempo depois, ser concedido o tempo de descanso, ou
recreio. De outro, por ser realizado no espaço da sala de
aula, na carteira do aluno, entre cadernos, lápis e atividades
por terminar. Não raro presenciei, nesses tempos, os
alunos se alimentando e terminando as atividades.
O horário escolar, nesse sentido, não pode ser
analisado apenas como o tempo de permanência em um
espaço determinado ou a temporalização das atividades
acadêmicas, pois essas idéias singularizam os fatores que

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 93


condicionam a sua realização. No entanto, há um
reconhecimento generalizado de que o espaço e o tempo
educam, pois são portadores de um princípio de coerência,
dado que a distribuição das atividades coincide com a
especialização curricular tendo como conseqüência o
problema de dividir e diversificar o currículo e multiplicar
a atuação dos professores sobre os alunos com
necessidades especiais, ou não. Contudo, é nas práticas em
salas de recursos e em salas comuns que apreendemos
essa tendência à especialização curricular, o que podemos
analisar a seguir.

As práticas iniciais de aula, de ensino dos conteúdos


e de avaliação: “matizes” da relação entre
escolarização e deficiência

Na aproximação com as práticas, o interesse


inicial foi o de desocultar os processos de
ensinoaprendizagem nas salas de recursos e nas salas de
aulas comuns, bem como apreender as condições em que
são produzidas. Condições essas tomadas como reais, uma
vez que explicitam como as relações entre deficiência e
escolarização se processam. Para essa apreensão
emergem três categorizações, a saber: práticas iniciais
da aula, práticas de ensino dos conteúdos e
práticas de avaliação.
Apesar de essas práticas parecerem óbvias,
considero-as capazes de evidenciar as sutis diferenças e/
ou semelhanças entre a sala de recursos e as salas comuns,
pontos críticos e/ou importantes da metodologia adotada
e, principalmente, a possibilidade de buscar os nexos de
uma prática especializada.

A prática remete, freqüentemente, para o


processo ensino-aprendizagem e a própria

94 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


investigação reporta-se, sobretudo, à acção
didática. Mas a actividade dos professores não
se circunscreve a esta prática pedagógica
visível, sendo necessário sondar outras
dimensões menos evidentes. (GIMENO
SACRISTÁN, 1995, p. 68).16

Criar, portanto, uma imagem das aulas,


construída pelas práticas, como completamente
autônomas seria tão irreal como crer que as dinâmicas não
facultariam a resistência e a negociação com as condições
existentes. Nesse sentido, as salas e as aulas se configuram
em dois espaços completamente distintos, o primeiro
organizado antes mesmo da existência dos professores e
dos alunos, que o ocupariam; o segundo só compreendido
ao se considerar a existência de múltiplas relações entre
esses indivíduos e as escolas.
Sob a orientação dessa idéia, as práticas
iniciais de aula incidem diretamente sobre as primeiras
ações dos professores, precisamente nos tempos iniciais
do tempo total das aulas, como uma espécie de preparação,
ou mesmo de criação de condições para proposição das
atividades que se desenvolveriam.
Nas salas de recursos, as práticas iniciais de aula
podem ser assim agrupadas:

• proposição para que os alunos organizem as carteiras


de forma a ficarem agrupados e próximos a ela [a
professora] e ao quadro de giz;
• busca de informações sobre as experiências (o que
fizeram) do dia anterior, na sala de aula comum e em
casa;
• indicação de leitura coletiva e em voz alta do alfabeto,
do dia da semana e do mês;
• registro do cabeçalho no quadro de giz para cópia.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 95


Essas práticas, embora habituais, são realizadas
diferençadamente, uma vez que diariamente mudam-se
os recursos de entrada e desenvolvimento. Estou
chamando de recursos os diálogos, os quais entremeiam
as intervenções tanto da professora quanto dos alunos,
seja pelo oferecimento de idéias, sugestões, temas,
informações complementares e respostas às questões
colocadas.
Já nas salas comuns, essas práticas assentam-
se, primeiramente, na organização do espaço físico e
subjetivo das salas para iniciar as aulas, isto é, distribuição
de carteiras em filas e dos alunos por elas. Tal organização
mostra-se necessária, pois as salas, por funcionarem no
período matutino, encontram-se, no período vespertino,
desorganizadas. Práticas diferençadas só foram
observadas nas aulas de Educação Física.
Com menor evidência, essas práticas propõem
atividades cuja realização depende diretamente delas
mesmas, ou dos conteúdos. Quando assim se apresentam,
acabam por trazer implícitos quais são os resultados
esperados do coletivo da classe e, especificamente, de
alguns alunos, uma vez que são em si mesmas dependentes
da singularidade de seus objetivos.
A idéia que se repete, com maior intensidade
nas práticas iniciais das salas de recursos parece
exatamente contrária àquela que fica explícita nessas
práticas na sala de aula comum. Na primeira, a necessidade
de diversificar as “entradas” dos alunos na dinâmica das
aulas, com seus conteúdos e atividades, configura essas
práticas, tendo como suporte as interações dialógicas, o
que permite uma gestão do tempo em função das
aprendizagens e dos recursos nelas empregados.
Na segunda, parece ser a gestão do tempo o
que, precisamente, singulariza a importância das práticas
iniciais, nas duas escolas pesquisadas, uma vez que são os

96 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


tempos, de organização dos alunos e de proposição das
atividades, aqueles que incorrem em “perda” do total do
tempo das aulas.
Tais indicadores fornecem uma imagem
significativa das práticas iniciais de aula, registradas no
contexto dessas salas e das escolas, servindo igualmente
como esquema básico para analisar e compreender a
correlação de força estabelecida entre o tempo e as
práticas, a qual fica mais explícita nas práticas de ensino
dos conteúdos.
Quanto às práticas de ensino dos
conteúdos, na sala de recursos, posso dizer que se
dividem em tempos diferençados: um relacionado às
proposições dos conteúdos a serem estudados, e outro, às
atividades específicas da aprendizagem desses conteúdos.
A observação das aulas e a análise do material proposto e
produzido pelos alunos permite a afirmação, de que
aproximadamente 70% (setenta por cento) do tempo das
aulas são destinados às atividades relativas ao componente
de Língua Portuguesa, sendo os 30% (trinta por cento)
restantes relacionadas às atividades de Matemática.
Portanto, as áreas de História, Geografia e Ciências
praticamente inexistem.
Dessa forma, as práticas de ensino dos
conteúdos, na sala de recursos, garantindo o espaço da
interação verbal, da emergência dos conhecimentos e da
aprendizagem dos alunos, sistematizada em tempos
diferençados, instaura momentos importantes nas relações
de ensino. Nesse percurso, essas práticas acabam
aprisionadas pelo fundamento do processo de
alfabetização, qual seja, o ensino da língua escrita. Esse
aprisionamento, talvez não leve ao reconhecimento dessa
prática como “especializada”, mas evidencia o conflito entre
a cultura da deficiência e a universalidade da forma escolar.
Do mesmo modo, as práticas de ensino dos

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 97


conteúdos observadas nas salas comuns, parecem
aprisionadas ao ensino da língua-escrita, com uma
diferenciação básica: esse conteúdo permeia todas as áreas
de conhecimentos. Tal diferenciação pode vir, também,
singularizar o alcance dos conhecimentos próprios de cada
área, tão importantes quanto a escrita, por parte dos
alunos.
Essa afirmativa tem como perspectiva
considerar que esse aprisionamento afirma um modelo de
racionalidade instrumental do ato de leitura e escrita, o
qual se alimenta da herança cultural dos métodos de
alfabetização, baseados na aquisição desse conhecimento
de forma sistematizada e estandardizada.
Com relação às práticas de avaliação, essas
ocupam espaços distintos, nas diferentes salas de aula, o
primeiro relacionado às verificações dos resultados obtidos
nas atividades; e o segundo, determinado por temas já
clássicos nessa área — os tempos de aprendizagem e as
variáveis comportamentais.
A busca de uma análise mais complexa desses
espaços conduz ao encontro dos modos pelos quais os
professores atuam, ou seja, em direção a dois objetivos
básicos: de um lado, mostrar que as atividades são os
grandes lugares de ensino e de aprendizagem dos alunos;
e, de outro, captar a aprendizagem em cada aluno,
possibilidade de reconhecimento ou não das “deficiências”.
Verifica-se que as práticas, essencialmente,
baseiam-se em um modelo de testagem dos resultados,
os quais parecem determinados por uma maior ênfase no
produto do que no processo de aprendizagem. O uso desse
modelo pautado no reoferecimento de atividades vincula
o ensino à avaliação e, assim, explora o nível dos resultados
dos alunos. Nesse sentido, não fornece informações sobre
as estratégias de aprendizagem desenvolvidas, isto é,
informações acerca das respostas dos alunos ao ensino, ou

98 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


suas estratégias cognitivas/metacognitivas, a produção das
respostas corretas ou incorretas, ou mesmo, no caso de
uma resposta incorreta, quais foram os conhecimentos
colocados em curso.
No entanto, nessas mesmas condições de
produção, as práticas de avaliação se mostram capazes de
articular elementos para redimensionar ou confirmar as
informações constantes nos relatórios que atestam os
indicadores de necessidades especiais. Embora não sejam
considerados como parte do processo, o confronto e a
aceitação implicados na dominância do que deve ser
privilegiado nas relações de ensinoaprendizagem, acabam
emergindo, nessas práticas, evidenciando compreensões
variadas, mas efetivamente possíveis, dos elementos de
um mesmo e único sistema simbólico — ser um aluno com
necessidades especiais.
A organização dessas práticas (iniciais de aula,
de ensino dos conteúdos e de avaliação), no universo das
salas de aulas, constituiu duas facetas transcendentais do
processo de ensinoaprendizagem. A primeira, ligada a um
único objetivo, do qual os outros são derivados, qual seja,
os professores pretendem que cada decisão de seus alunos
esteja guiada por – e resulte em –, procedimentos corretos
de trabalho. Para alcançá-los, os professores colocam em
jogo suas práticas que, por sua vez, se apresentam em
forma de decisões e em planos de trabalhos para as salas
de aulas, por meio da programação inserida em um
currículo, temporização mais ou menos restrita das aulas
e seus conteúdos e o controle de aprendizagens. Talvez
sejam exatamente esses elementos internos de
organização das práticas, que as impossibilitem de atender
de forma particular os distintos grupos de alunos que
convivem nas salas de aula.
A segunda faceta parece determinada pela idéia
de que todas as decisões tomadas se alimentam de uma

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 99


boa dose de intuição por parte do professor e, com certeza,
de aceitação no âmbito das organizações didático-
pedagógicas das escolas. Decisões essas apoiadas em um
jogo de razões convincentes, de conhecimentos e dos
correspondentes recursos que permitam superar as
dificuldades nas práticas cotidianas, que seguem essas
decisões.
Dessa forma, portanto, é indiscutível que o
papel desempenhado pelas práticas tem influência
fundamental na composição da cultura escolar e,
conseqüentemente, na produção e/ou reprodução de
núcleos de valores amplamente aceites ou refutados
dentro do universo das escolas. Os alunos com indicadores
de necessidades especiais, com certeza, tomam parte
nesses núcleos.

Enfim, o desenho da cultura escolar: escolarização e


deficiência

A análise da relação escolarização e deficiência,


tendo como lócus a sala de recursos e as salas de aulas
comuns, permitiu desmistificar, por um lado, que esses
espaços constroem identidades diferençadas para os
alunos; de outro, pensar no processo de
ensinoaprendizagem que se está oferecendo no interior
das salas de recursos aos alunos com deficiência, que,
mesmo sob todos os questionamentos quanto às suas
práticas, ainda constituem um veículo privilegiado de
escolarização desses indivíduos.
A sala de recursos está configurada, simbólica
e materialmente, na delimitação de um tempo e de um
espaço próprios, apartados da escola. Assim, talvez no
mesmo nível da escola, a sala de recursos se impõe como
cenário e linguagem de uma cultura escolar que se
pretende afastada dos indivíduos deficientes e de suas

100 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


particularidades.
São mútuas as influências entre tempo e espaço,
mas, em relação à sala de recursos, essas categorias
comunicam e mostram à escola o emprego que a educação
especial faz deles. Um emprego dependente da cultura,
dizendo respeito não só às relações de
ensinoaprendizagem, mas também às condições e às
relações sociais de e entre aqueles que a habitam.
Diferentemente do espaço ocupado pelas salas
de aulas comuns, estruturado em sua origem para atender
alunos “normais” e que traz consigo símbolos, signos e
valores atualizados no dia-a-dia escolar, a sala de recursos
impõe “novas” relações escolares, nas quais o ordenamento
espacial e temporal do fenômeno educativo significa, ao
mesmo tempo, um distanciamento daquela atualização
diária e uma vinculação da escola com o universo do
“especial”.
Pensar em tempo escolar implica defini-lo em
sua especificidade, em um tempo adjetivo, diferente de
outros tempos. O tempo da sala de recursos se apresenta
na indissociação entre o tempo vivido e o tempo físico, isto
é, individualizado e particularizado, ao longo do qual se
desenrolam as atividades pedagógicas.
Essa indissociação entre o tempo subjetivo,
tempo físico e o tempo social funciona como uma condição
de possibilidade para o trabalho qualitativo da sala de
recursos. Mas, dessa indissociação, a individualização e a
particularização do tempo não decorrem da interpretação
de que cada indivíduo tenha seu próprio tempo, separado
e independente dos demais. Ao contrário, a
individualização não implica autonomização, mas somente
uma facilitação para atingir o poder disciplinar.
Em termos de espaço escolar, a sala de recursos
é concebida e montada numa clara tendência ao
planejamento e à ordenação dos alunos, promovida com

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 101


um único propósito, o de obter um melhor aproveitamento
do espaço na distribuição espacial deles e dos
equipamentos, e a partir da manifestação comportamental
da deficiência.
A idéia de criar um espaço limitado pelas
necessidades dos alunos, entre elas a de um ensino
individualizado ou em pequenos grupos, dependente ou
não do uso de materiais específicos, leva a uma
compreensão desse espaço como o único lugar para
ensinoaprendizagem, o que está diretamente ligado à
formação e/ou disciplinarização, de instituição de práticas.
Um aspecto particularmente importante dessa
formação está relacionado à forma pela qual se dão as
práticas pedagógicas cotidianas, capazes de interpretar
determinadas manifestações como sendo deficiências, e as
circunstâncias em que os alunos são vistos e tratados, como
deficientes, podem ajudar a forjar professores
especializados em ensinoaprendizagem.
O trabalho de análise da cultura, a partir dessa
perspectiva, produz como resultado, não apenas uma
descrição das formas de poder se manifestar e se exercer
o processo de ensinoaprendizagem e a deficiência, mas
igualmente uma descrição dos modos de identificação das
práticas com os indivíduos a ela destinados, especialmente
se os apreender em sua diferença — alunos com
indicadores de necessidades especiais.
Assim, pensar nas práticas como construídas
por/nas experiências, fez-se necessário porque as entendia
como lócus de resistência a uma leitura singular das
possibilidades de ensinoaprendizagem nas salas de
recursos e nas salas comuns. As práticas analisadas,
entretanto, pareceram testemunhar uma idéia arraigada
e específica das relações escolares, nesses espaços,
determinada por um grupo de alunos cujos históricos
acadêmicos (repetência, deficiência e/ou problemas de

102 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


aprendizagem) e experiências de vida (agressividade,
abandono, desatenção) são diferentes de uma “norma” —
os alunos comuns.
As práticas, então, foram entrecortadas pelo
jogo dos múltiplos entendimentos sobre conteúdos de
ensinoaprendizagens e, inclusive, sobre deficiência mental.
Esse movimento, por um lado, problematizou a idéia,
convencionada pela bibliografia, de toda uma sofisticação
de procedimentos e recursos a serem empregados nas
práticas das salas de recursos e, de outro, permitiu
observar a relação educação — deficiência, que foi tecida
com a cultura e a cultura escolar.
No processo de objetivação do primeiro
movimento, as informações que circulavam sobre as salas
de recursos pareciam estar problematizadas, colocando em
cheque os condicionantes físicos, materiais e culturais e,
sobretudo, os critérios normativos, que proporcionavam
uma imagem coerente e facilmente representada dessa
sala.
Historicamente, esses condicionantes foram
assim percebidos: físicos, aqueles determinados, pelo
espaço e tempo da sala de recursos; materiais, os
referentes ao tipo de material pedagógico disponível; e
escolares, os correspondentes à idéia do acesso diferençado
às informações em decorrência dos déficits biopsicológicos
dos alunos. Já os critérios normativos, eram guiados pelo
sistema de valores do grupo, os quais promoviam um
reconhecimento especializado da sala de recursos, no qual
estavam absorvidos, sintetizados e coordenados os
elementos da representação da diferença.
Talvez tenha sido a interação dialética entre
esses condicionantes e as práticas observadas/analisadas
que permitiu compreender como essas últimas são
utilizadas como sistema de instrumentação do universo
pedagógico e educativo da sala de recursos, influenciando

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 103


e sendo influenciadas pela leitura da especialização. O
segundo processo, marcado pelas observações da relação
entre educação e deficiência, teve importante implicação
na consideração de que não se trata, somente, da
construção formal de um conhecimento, mas de sua
inserção orgânica em um repertório de crenças já
constituído sobre esses dois elementos.
Enfim, esse conjunto de análises permitiu
apontar um desenho composto por claros e escuros, pontos
com detalhes e generalidades, movimento e estagnação,
criação e reprodução, cores fortes e esmaecidas, pontos
de destaques e de uniformidades iluminados por um jogo
de luzes e de sombras proporcionados pela relação
escolarização e deficiência.

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108 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


NAS TRILHAS DA EXCLUSÃO:
AS PRÁTICAS CURRICULARES
DE SALA DE AULA COMO
OBJETO DE ESTUDO

Geovana Mendonça Lunardi Mendes


UDESC/SC

Ao mesmo tempo, tal como acontece com


outras pessoas, quando eu lia (mas, mais
freqüentemente, quando eu viajava), dava-me
conta de que o que temos que explicar a respeito
dos sistemas educacionais, das práticas
educacionais, não é quão diferentes eles são,
de uma sociedade para outra, mas sua
avassaladora similaridade. Independente da
ideologia dominante a característica mais
notável dos princípios e práticas educacionais
é a sua avassaladora e impressionante
uniformidade. (BASIL BERNSTEIN, 1996)

Os estudos sobre as práticas pedagógicas


desenvolvidas pelos professores no trabalho com alunos
deficientes têm, historicamente, criado polarizações
(prática com sujeitos ditos normais num pólo e prática com
sujeitos deficientes em outro) na forma de análise de tal
objeto, ou feito recortes que destacam as características

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 109


dos sujeitos e suas deficiências e o desafio de atendê-las
no espaço regular de ensino.
Considerando as políticas de inclusão escolar
desencadeadas no país, principalmente a partir da década
de 90, entender as práticas da escola, em especial as
práticas de sala de aula das escolas regulares com os alunos
“identificados” como deficientes incluídos no espaço
escolar tem sido um novo e controvertido objeto de estudo.
Cada vez mais temos crianças incluídas e nesse sentido
essa nova trajetória escolar torna-se uma importante fonte
de pesquisa: as alternativas construídas pela escola, pelo
sistema, pelos professores; as socializações: a própria
trajetória: os serviços de apoio; etc.
Entre os estudos que têm buscado superar tais
polarizações, aqueles orientados pela perspectiva Crítica
do Currículo e da Sociologia tem trazido contribuições
significativas. É nesse quadro que este trabalho se insere.
Buscando contribuir para tal debate, o presente
artigo, origina-se da tese de doutorado defendida por mim
no Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação:
História, Política, Sociedade que objetivava compreender
as práticas curriculares da escola diante das diferenças dos
alunos no processo de ensino e aprendizagem.
A partir dela, as reflexões aqui apresentadas
têm como foco principal apontar o quanto as práticas
curriculares de sala de aula precisam ser compreendidas
como um elemento importante para a análise do trabalho
da escola diante da deficiência.
Talvez o foco na prática curricular constituída
no espaço da sala de aula seja a principal contribuição do
trabalho e é sobre ele que iremos nos deter.
No processo de construção do objeto de estudo,
identificamos que, para analisarmos as práticas
curriculares de sala de aula com os alunos deficientes,
precisaríamos compreender como de fato se estabelecem

110 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


tais práticas para todos os alunos.
Bourdieu (2001), quando instigava seus alunos
a fazer uma representação gráfica sobre a sociedade,
afirmava que a figura mais freqüentemente registrada era
a pirâmide. Contrariamente, ele explicitava que talvez a
melhor forma de compreender o mundo social era
representá-lo como um móbile de Calder, “formado de
pequenos universos que se balançam uns em relação aos
outros, num espaço com várias dimensões” (LOYOLA,
2002, p. 67).
Entendendo de forma análoga a sala de aula,
vemos que as práticas curriculares desenvolvidas com os
alunos ditos normais estabelecem uma convergência com
aquelas destinadas aos sujeitos deficientes ao mesmo
tempo que se posicionam de forma eqüidistante. Existem
equilíbrios, nexos e sentidos convergentes em ambas as
práticas.
Numa outra lógica, Jackson(1996), no clássico
estudo sobre a vida nas salas de aula, ao buscar uma
representação sobre as atividades curriculares
desenvolvidas na sala, dizia que o seu percurso se
assemelhava mais a um vôo de uma mariposa do que a
trajetória de uma bala.
A imediatez, a urgência das ações docentes e as
múltiplas dimensões envolvidas no trabalho de sala de aula
interferem nas escolhas curriculares feitas e constroem
sentidos que são específicos dos contextos em que
acontecem e nesse sentido não se restringem ao sujeito
deficiente, mas às dinâmicas das redes de sociabilidade
constituídas no espaço e no momento da aula.
Nesse sentido, Bourdieu, muitas vezes utilizava
a palavra “jogo” para explicar uma dinâmica social de uma
situação específica que tinha regras pré-estabelecida e
nexos próprios. Podemos compreender a sala de aula como
o lugar em que se desenvolve um jogo muito particular no

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 111


qual as práticas curriculares ajudam a configurar o tema,
o enredo e as regras da partida.
Os alunos, sejam eles deficientes ou não,
juntamente com os professores gravitam nessa esfera.
Precisamos, portanto compreender a
configuração e a forma como se estabelece esse jogo, para
então entendermos o espaço e a posição que os alunos com
deficiência estão ocupando.
Além disso, o foco nas práticas curriculares, no
caso deste estudo, redimensionou também a própria
compreensão de deficiência. Não importava mais definir
quem eram os alunos com deficiência, ou de que tipo ela
era, mas compreender as práticas curriculares diante das
diferentes formas de aprender. Considerando que os
processos de aprendizagem são sempre diferenciados,
interessava compreender o movimento operado pela escola
para ensinar conteúdos comuns para sujeitos diferentes.
Tal perspectiva ajudou a focalizar o objeto de estudo nas
práticas curriculares de sala de aula diante das diferenças
dos alunos no processo ensino-aprendizagem.
No espaço deste texto, especificamente,
objetivamos explicitar o conceito de prática curricular, que
foi fulcral no estudo, apontando suas contribuições para o
entendimento do trabalho pedagógico desenvolvido com
os alunos em função de suas diferenças e os movimentos
de exclusão/inclusão envolvidos nesse processo .

A prática curricular como objeto de estudo: escolhas


teórico-metodológicas

O conceito de prática curricular foi forjado ao


longo de todo o processo de investigação. Para tanto, fez-
se necessário retomar o próprio conceito de prática na
literatura educacional, em especial nos estudos da
sociologia da educação e do currículo.

112 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Conforme aponta Charlot (2000, p. 56), “o
conceito de prática remete a uma ação finalizada e
contextualizada, constantemente confrontada com
minivariações”. Na perspectiva de Charlot, a prática é
composta por um conjunto de atividades desenvolvidas
por sujeitos específicos. No entanto, Lahire (2002, p. 142),
nos lembra que

dos múltiplos usos que se fazem dele nas


ciências sociais, o termo prática não está
desprovido de ambigüidade. Ora ele se opõe ao
que dependeria do discurso (as práticas e os
discursos), ora se distingue de tudo o que é
teórico (a prática e a teoria), às vezes, ainda,
designa de maneira genérica as atividades
sociais mais diversas (as práticas culturais, as
práticas esportivas, as práticas econômicas...).
Gimeno Sacristán (1999) ao analisar o conceito
de prática educativa traz uma série de contribuições para
a compreensão desse conceito, nos servindo de apoio ao
longo de toda investigação. Reitera, assim como Lahire, o
caráter multiforme do conceito, além de apontar o quanto
a compreensão que temos do conceito está articulada às
circunstâncias históricas na qual ele foi forjado. Portanto
existe um vício redutor de ligar o conceito de prática única
e exclusivamente às ações visíveis. O autor separa o termo
ação do termo prática, dando uma operacionalidade muito
rica ao conceito. Entre as principais características que
compõem o conceito de prática, está a idéia de prática como
“um traço cultural compartilhado”(1999, p. 91).

A prática educativa é algo mais do que a


expressão do ofício dos professores, é algo que
não lhes pertence por inteiro, mas um traço
cultural compartilhado, assim como o médico

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 113


não possui o domínio de todas as ações para
favorecer a saúde, mas as compartilha com
outros agentes, algumas vezes em relação de
complementaridade e de colaboração, e em
outras, em relação de atribuições.
A prática educativa tem sua gênese em outras
práticas que interagem com o sistema escolar
e, além disso, é devedora de si mesma, de seu
passado. São características que podem ajudar-
nos a entender as razões das transformações
que são produzidas e aquelas que não chegam
a acontecer.

Essa idéia de prática como traço cultural


compartilhado, nos é operacional porque avança na
compreensão de prática como produto de uma ação
individualizada, rompendo com essa perspectiva e dando
ao conceito uma categoria de espaço e tempo também mais
ampla.
Para tanto, o autor distingue ação de prática.
Segundo Gimeno Sacristán (1999, p. 73),

Ação refere-se aos sujeitos, e, embora, por


extensão, possamos falar de ações coletivas, a
prática é a cultura acumulada sobre as ações
das quais aquela se nutre. Agimos a partir das
ações, porque o fazemos a partir de uma
cultura. A prática é cristalização coletiva da
experiência histórica das ações, é o resultado
da consolidação de padrões de ação
sedimentados em tradições e formas visíveis de
desenvolver a atividade. Pode-se adotar o
sentido que também é dado em sociologia ao
termo prática: ações sociais rotineiras próprias
de um grupo. Assim como ocorre com a ação

114 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


das pessoas, a prática tem uma continuidade
temporal inevitável e não é um simples passado
ao qual se olha como um objeto petrificado,
pelo contrário, continua sendo operacional,
organizando a ação dos membros que
compartilham uma cultura.

Ainda segundo o autor, toda ação humana, se


realiza no contexto interpessoal e social, gerando marcas,
sinais, vestígios que condicionam as próximas ações.
Apesar de ser ligada às histórias de vidas individuais, o
que sempre lhes dá o caráter de imprevisibilidade e
originalidade, ela deixa pegadas e demarca roteiros,
esquemas e rotinas que acabam demarcando as ações
futuras. Essas marcas da ação geram cultura subjetiva.
No entanto,

a experiência ou cultura subjetiva não é nutrida


somente da biografia pessoal, nem pertence
apenas a uma pessoa, mas pode ser cultura
compartilhada. As ações são imitáveis por
outros, e seus esquemas podem ser propagados
e transmitidos a agentes diferentes daqueles que
os geraram; a eficácia dos vestígios da memória
das ações multiplica-se socialmente no espaço
e no tempo. Criando bases transmissíveis, que
serão compartilhadas, a reiteração da ação,
além de condensar-se em biografia pessoal, cria
a realidade social, ou cultura intersubjetiva,
aproveitando a realidade social já criada. As
conseqüências das ações não só são imediatas
para seus agentes, na forma de capital de
experiência, mas deixam para trás padrões
sociais, na forma de rotinas, regras
estabilizáveis, instituições, sistemas recíprocos
de expectativas, formas de saber fazer, a partir

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 115


dos quais agiremos no futuro: o que fazemos
depende do legado de outros e do que cada um
realizou até esse momento; agimos de acordo
com as marcas de nossa biografia e das ações
dos outros. Este é o primeiro mecanismo de
estabilização de um tipo de prática
transmissível por mecanismos naturais
inerente à comunicação humana, devidos a
imitação que é construída com a experiência.
No momento de explicar como as práticas
educativas funcionam, é fundamental entender
esses processos de cristalização das experiências
pessoais e compartilhadas. (GIMENO
SACRISTÁN, 1999, p. 71, 72)

A prática é, com isso, cultura objetivada,


experiência compartilhada. Em nosso estudo essa
compreensão revestiu-se de uma grande importância. Se
somarmos a esse conceito a idéia de currículo,
identificamos que os conjuntos de ações que compõem o
currículo, são frutos desse processo de objetivação da
cultura. Tornam-se também trilhas, caminhos, sulcos que
guiam as ações futuras.
Nessa mesma perspectiva, entendemos que a
“teoria da prática” de Bourdieu nos auxilia já que “é preciso
fazer uma teoria dessa relação não teórica, parcial, um
pouco pé-no-chão, com o mundo social, que é o mundo da
experiência comum”(apud LAHIRE, 2002, p. 142).
Segundo Bourdieu (apud LOYOLA, 2002, p.
66) uma sociedade não forma uma totalidade única, “(...)
mas consiste em um conjunto de espaços de jogos
relativamente autônomos que não podem ser remetidos
a uma lógica social única, seja ela do capitalismo, da
modernidade ou da pós modernidade. Cada um desses
espaços constitui um campo – econômico, político, cultural,
científico, jornalístico etc (...)”

116 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Nesse sentido, o campo é entendido como “um
sistema estruturado de forças objetivas, uma configuração
relacional que, à maneira de um campo magnético, é
dotado de uma gravidade específica, capaz de impor sua
lógica a todos os agentes que nele penetram” (LOYOLA,
2002, p. 67).
Assim, nenhuma ação pode ser diretamente
relacionada à posição social de seus autores, pois esta é
sempre retraduzida em função das regras específicas do
campo no interior do qual foi construída. “Como um
prisma, todo campo refrata as forças externas, em função
de sua estrutura interna.”(LOYOLA, 2002, p. 67).
Dessa forma, “um campo é também um espaço
de conflitos e de concorrência no qual os concorrentes
lutam para estabelecer o monopólio sobre a espécie
específica do capital pertinente ao campo.” (LOYOLA,
2002, p. 67).
Considerando, então, a educação como um
campo que assume as características apontadas por
Bourdieu, entendemos que as práticas curriculares são
ações desencadeadas dentro da escola no campo
educacional e precisam ser entendidas considerando essas
relações.
Dessa forma, as práticas que são chamadas aqui
de curriculares são desenvolvidas por sujeitos, sejam eles
alunos, sejam professores, mas não podem ser entendidas
como ações individualizadas. Estão amarradas e são
decorrências de uma trama que lhes dá significado.
Então a idéia de campo, associada à
compreensão de prática como conjunto de ações
compartilhadas, cultura objetivada, expressa as
concepções orientadoras do processo de pesquisa. “A ação
pertence aos agentes, a prática pertence ao âmbito do social
é cultura objetivada, que, após ter sido acumulada, aparece
como algo dado aos sujeitos como um legado imposto aos

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 117


mesmos”(GIMENO SACRISTÁN, 1999, p. 74).
Em nossa concepção, o conceito de prática aqui
adotado se utiliza dessa perspectiva, ou seja, entende as
práticas como produtos de ações compartilhadas, e que
por isso podem ser reflexivas, como também dissociadas
de qualquer aspecto teórico e analítico.
Nesse sentido, as práticas curriculares são
entendidas como as ações envolvidas na elaboração e
implementação de currículo. São práticas na quais
convivem ações teóricas e práticas, refletidas e mecânicas,
normativas, orientadoras, reguladoras, cotidianas. Desde
a proposição de currículos pelos órgãos governamentais,
à recontextualização feita desses discursos pela escola e
pelos seus sujeitos, tudo é entendido aqui como práticas
curriculares.
No currículo produzido pelas práticas
curriculares se expressa o que a escola entende como
conhecimento, o que prioriza, que saberes privilegia e
transmite, assim como que sujeito pretende formar e que
sujeito de fato forma. Portanto, quando estudamos a escola
estamos diante de práticas curriculares que são o exercício
característico da escola na organização e desenvolvimento
do currículo, ou seja, dos conteúdos e das formas de sua
transmissão, o que inclui atividades e tarefas propostas,
bem como acompanhamento dos alunos no processo
ensino-aprendizagem. São aquelas implementadas e
recontextualizadas nos condicionantes escolares (tempo-
espaço) envolvendo as práticas de seleção e distribuição
dos conhecimentos escolares.
Portanto, após todo o exposto, gostaríamos de
reiterar nossa concepção de prática curricular, entendida
aqui como o conjunto de ações que implementam o
currículo, sendo produto de um processo de objetivação
da cultura, e do compartilhamento das ações individuais.
Nesse sentido, as práticas curriculares são coletivas,

118 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


históricas e culturais.
Para tal compreensão a pesquisa teve como
principais bases teóricas as contribuições dos estudos de
Basil Bernstein, Pierre Bourdieu, Guy Vincent, Bernard
Lahire e Gimeno Sacristán.
Como abordagem metodológica adotamos uma
perspectiva relacional pautada nos estudos da Sociologia
da Cultura, principalmente nas contribuições de Raymond
Williams e nos estudos portugueses que enfatizam a
mesoabordagem.
Os estudos culturais de Williams, de vertente
marxista, nos ajudaram a constituir um referencial teórico-
metodológico adequado para guiar o processo de
investigação. A forma como Williams (1992) procedeu seus
estudos sobre as práticas culturais, bem como sua
concepção de cultura, ajudaram a constituir o corpus
teórico que precisava ser forjado para o entendimento de
homem, de prática e de cultura que se fazia necessário
para o desenvolvimento da investigação.
Para Williams (1992, p. 29) o sociólogo cultural
deveria estudar “as práticas sociais e as relações culturais
que produzem não só uma cultura ou uma ideologia mas,
coisa muito mais significativa, aqueles modos de ser e
aquelas obras dinâmicas e concretas em cujo interior não
há apenas continuidades e determinações constantes, mas
também tensões, conflitos, resoluções e irresoluções,
inovações e mudanças reais”.
Na perspectiva do autor, uma sociologia da
cultura deveria se preocupar com todas as produções
culturais, com as instituições e formações das produções
culturais, com as formas artísticas e com os processos de
reprodução social e cultural.
É interessante percebermos, no entanto, que o
autor trabalha com uma concepção muito própria de
cultura. Para Williams (CEVASCO, 2001, p. 47), antes de

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 119


mais nada a cultura já está dada no nosso modo de vida:
“a cultura é experiência ordinária” e como tal é de todos.
Com isso, Williams rompe as perspectivas tradicionais de
cultura enquanto cultivo de um bem e explica que a
produção cultural está em todos os lugares.
No entanto, como afirma Cevasco (2001, p. 48),
o que o autor quer apontar com essa perspectiva é que,

a definição mais prosaica de cultura como um


modo de vida, e a mais elevada, de cultura
como os produtos artísticos, não representam
alternativas excludentes: o valor de uma obra
de arte individual reside na integração
particular da experiência que sua forma
plasma. Essa integração é uma seleção e uma
resposta ao modo de vida coletiva sem o qual a
arte não pode ser compreendida e nem mesmo
chegar a existir, uma vez que seu material e
seu significado vem deste coletivo.

Nesse sentido, os estudos culturais nos ajudam


a compreender que a cultura é o amálgama no qual estão
presas todas as práticas sociais, ou seja, ela não é um
processo social secundário nem pode ser entendido como
estanque: a educação, a economia, a cultura... Trata-se de
uma prática de constituição de significados e como tal
orientadora de todas as outras práticas.

A produção de significados e valores é uma


atividade humana primária que estrutura as
formas, instituições, relações, e também as
artes. O esforço do argumento é demonstrar
que, a contrapelo das formulações vigentes, não
é possível compreender as mudanças em que
estamos envolvidos se nos limitarmos a pensar,
como nos incita a fazer a fragmentação

120 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


característica da vida sob o capitalismo, as
revoluções democrática, industrial e cultural
como processos separados. (CEVASCO, 2001,
p. 50).

Nesse sentido, as práticas educativas são


também ordinárias e estão imbricadas no processo de
produção cultural da sociedade. Entender isso é
compreender que a escola como instituição tem um papel
determinado por essas relações. As práticas desenvolvidas
no seu interior, às vezes, carecem de explicitações
exteriores a elas e não são frutos de intenções
racionalizadas e individuais. Como afirma Williams (apud
CEVASCO, 2001, p. 51) “ a teoria da cultura pode ser
definida como o estudo das relações entre os elementos
de todo um modo de vida. A análise da cultura é a tentativa
de descobrir a natureza dessa organização que é o
complexo dessas relações”.
Para isso, uma das contribuições da perspectiva
de Williams é o enfrentamento de questões instituídas pelo
marxismo como infra-estrutura x superestrutura,
determinação econômica, e também a questão da
reprodução e mudança.
A questão da determinação econômica, ou seja,
da infra-estrutura sobre a superestrutura é enfrentada
pelo autor de modo que o sentido do determinar marxista
seja entendido como “exercer pressão e impor limites e
prefigurar, prever e controlar, erigindo daí os alicerces de
uma teoria marxista da cultura, vale dizer, dos modos de
sua determinação econômica e social” (MICELI, 2001, p.
14).
Por isso o avanço, também, na compreensão dos
processos de reprodução e mudança das práticas culturais.
Para ele, toda prática cultural carrega em si elementos de
reprodução social, mas também de mudança. A grande

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 121


questão levantada pelo autor é de que a reprodução é
controlada, por exemplo, pela idéia de tradição como um
segmento inerte. Na verdade, aquilo que se coloca na vida
social como tradição cultural é controlado pela classe
dominante. Como afirma Cevasco (2001, p. 72),

toda tradição é construída segundo um


princípio de seleção, funciona como um
poderoso mecanismo de incorporação,
articulando processos de identificação e de
definição cultural. Mais importante do que tudo
isso, funciona como um elemento formador do
presente, apresentando uma versão do passado
deliberadamente criada para estabelecer uma
conexão com o presente e ratificar seus
significados e valores.

No âmbito desta pesquisa, as concepções aqui


apresentadas foram primordiais para o desenvolvimento
da investigação e a forma como fomos delineando nosso
objeto de estudo. Entender a escola, imbricada no conjunto
de forças que compõem o social e por práticas culturais
que lhe dão sentido, foi fundamental para estabelecer as
escolhas que se fizeram necessárias para o tipo de pesquisa
que se pretendia realizar.
A perspectiva teórico-metodológica dos estudos
culturais decorrentes das abordagens de Williams nos fez
estudar as práticas curriculares de sala de aula percebendo
que para compreendê-las precisávamos relacioná-las com
práticas muitas vezes externas à escola, porém, amarradas
a uma relação muito mais emaranhada do que de
determinismo exterior.
A partir disso, fomos estudar as práticas
curriculares de sala de aula, buscando explicá-las através
daquilo que Lima (1996, p. 30) chamou de meso-
abordagem. Conforme Nóvoa (apud LIMA, 1996) a meso-

122 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


abordagem, “nos permite escapar do vaivém tradicional
entre uma percepção micro e um olhar macro,
privilegiando um nível meso de compreensão e de
intervenção”. Segundo Lima (1996, p. 30),

Não se trata, portanto, apenas da procura de


um lugar de encontro e de síntese, possível, das
contribuições resultantes das abordagens
macroscópicas e microscópicas; mais do que
isso, trata-se de valorizar um terreno específico
que uma vez articulado com os outros dois, que
não pode de resto dispensar ou desprezar,
permitirá o estabelecimento de uma espécie de
triangulação que mais facilmente poderá
conduzir a superação de limitações anteriores.
Então, partindo dessas premissas teórico-
metodológicas, em se tratando de uma pesquisa empírica,
algumas escolhas foram realizadas para a definição do
espaço de pesquisa. Como se trata de um estudo qualitativo
que privilegia a imersão do pesquisador no campo da
prática pelo maior tempo possível, optou-se no primeiro
momento em realizar a pesquisa em uma única escola. Essa
decisão surgiu da necessidade de focalizar as práticas de
sala de aula. Nesse sentido, um único espaço permitiria ao
pesquisador um estudo aprofundado, qualitativo e
pormenorizado dessas práticas.
Pela ótica da sociologia da cultura, entendíamos
que em cada escola singular encontraríamos elementos
que permitiriam uma compreensão alargada do objeto de
estudo, sem necessariamente precisarmos incorrer em
generalizações inapropriadas. Tal escolha permitiria um
aprofundamento sobre o objeto investigado, em função da
possibilidade de acompanhar a complexidade do cotidiano
no universo escolar. Por essa razão, decidiu-se buscar uma
escola que, além de responder às exigências do estudo,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 123


fosse representativa da rede escolhida.
Sendo, desde sempre, a escola pública e
gratuita a principal preocupação, o contexto dessa escola
foi definido como sendo a rede estadual de ensino. O estado
de Santa Catarina, e a cidade de Florianópolis foram
escolhidos por serem respectivamente o estado do qual a
pesquisadora é oriunda e a cidade onde habita, mas
também pela necessidade de consolidação de pesquisas
no campo educacional no estado e sobre esta rede de ensino.
A rede estadual foi escolhida pelo interesse em
contribuir para a compreensão das práticas curriculares
instituídas pela escola pública e gratuita, que é ainda, no
país, responsável pelo atendimento da maioria da
população.
Um outro aspecto que influenciou na escolha
de uma escola da rede estadual de ensino, para a realização
da pesquisa, foi o fato de nos últimos anos, o estado ter
instituído uma forte política de municipalização do ensino.
Tais políticas geraram diretrizes e problemáticas
educacionais para as escolas muito atreladas às
particularidades de cada município.
Então, buscou-se estudar uma escola da rede
estadual por se considerar que essas escolas têm uma
uniformidade em termos de políticas educacionais, que
criam uma certa identidade coletiva dessas instituições,
nos parecendo ser mais significativo para o estudo.
Por ser capital de estado, o estudo de uma escola
estadual de Florianópolis, torna-se representativo para o
estudo da rede estadual de ensino. As condições em que
está a cidade hoje são muito similares às de outras grandes
cidades do estado. Escolher uma escola da capital significa,
também, escolher um estabelecimento em relação direta
com as políticas educacionais pensadas para a rede. Nesse
sentido, ao escolher uma escola em Florianópolis e da rede
estadual, buscamos respeitar a idéia de estudar uma escola

124 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


mais característica possível da rede em questão.
Dessa forma, como uma das questões chaves
do estudo seria perceber as relações das práticas
curriculares da escola diante da diferença dos alunos no
processo ensino-aprendizagem, um dos critérios foi
escolher a escola que tivesse o maior número possível de
propostas de diferenciação curricular. Esse critério nos
auxiliou a identificar que, pelo menos na instituição
escolhida, existiam algumas alternativas que eram
propostas pela rede para o atendimento das diferenças
dos alunos, o que era fundamental para o estudo
pretendido.
Por se tratar de um estudo das práticas
curriculares da sala de aula, foi privilegiada uma escola, e
dentro dela, as turmas de Séries Iniciais. Nossa opção
fundamenta-se no entendimento de que são as práticas
curriculares das Séries Iniciais as responsáveis pelo
ingresso da criança na escola e de que, nesse sentido, é
também nessa fase do ensino que as crianças se vêem
como alunos, e lidam com os seus primeiros fracassos.
Durante o segundo semestre do ano de 2002,
iniciou-se o processo de coleta de dados e após a definição
da escola, foi realizado o primeiro contato com a mesma.
Apresentou-se a proposta de trabalho para a equipe
diretiva marcando-se um encontro com o corpo docente
para explicitação do objetivo da pesquisa e a forma como
seria desenvolvido o processo de coleta de dados. Definiu-
se, do total de turmas de Séries Iniciais, algumas turmas
para realizar um estudo exploratório. Em conversa com a
equipe diretiva da escola foram sugeridas algumas turmas
para a realização da pesquisa. A seleção foi feita tendo
como objetivo escolher as turmas com o grupo de alunos
mais heterogêneo possível no processo de ensino e
aprendizagem. Em contato com os professores, foram
confirmadas as turmas a serem investigadas e iniciou-se

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 125


o processo de observação.
Por se tratar de um estudo sobre as práticas
curriculares de sala de aula, a observação foi o instrumento
de coleta de dados privilegiado. Conforme afirma Estrela
(1994, p. 30),

tendo procedido a um levantamento das


acepções em que a palavra observação é
utilizada em Pedagogia e Ciências da
Educação, verificamos que existem mais de
setenta vocábulos designando conceitos
diferentes, semelhantes ou idênticos. Esta
diversidade resulta não só das diferentes
orientações científicas dos investigadores que
trabalham no campo da Educação, como
também da falta de sistematização que se tem
verificado no âmbito da investigação
especificamente pedagógica.

Diante dessa diversidade, segundo Estrela, o


tipo de observação que utilizamos nessa pesquisa poderia
ser qualificada de observação participante ou
antropológica. Segundo esse autor, seria um tipo de
observação que exige uma presença prolongada do
observador no campo e seu contato direto e pessoal com
os observados. Caracteriza-se por evitar isolar
previamente as variáveis,

não procedendo ao seu controlo ou a sua


eliminação, pois utiliza a técnica de redução
do campo de observação de acordo com as
perspectivas que vão emergindo ao longo do
processo de investigação. Começando por ser
descritiva, as categorias que emprega são
decorrentes da experiência e não de ordem
apriorística. Assim, pretende evitar os perigos

126 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


do reducionismo e do enviezamento.O seu
incoveniente principal reside na falta de
generalidade. No entanto, essa dificuldade
poderá ser, em parte, ultrapassada pela análise
do que há de comum entre as diversas situações
analisadas. (ESTRELA, 1994, p. 52)

As observações exploratórias foram realizadas


sem um roteiro específico, sendo desenvolvidas duas
sessões em cada sala selecionada. Este primeiro momento
visava a introduzir a pesquisadora no cotidiano escolar.
Além disso, foram realizadas entrevistas abertas para
obter informações gerais sobre o trabalho da escola.
Com base nos dados coletados, realizamos a
organização e a análise desses materiais, selecionando, a
partir daí, turmas específicas para investigar, e definindo
também novos focos de observação elaborando, para
ajudar no aprofundamento das informações sobre o campo,
roteiros específicos. Foram selecionadas para investigação
quatro turmas de primeira série, duas de segunda série,
uma terceira e uma quarta série.
Nessa segunda fase da pesquisa, as primeiras e
segundas séries foram privilegiadas, em relação ao número
de observações. A terceira fase desse processo de
observação centrou-se nos serviços constituídos pela
escola e pelo Estado para atender às situações de
desvantagem vividas pelos alunos. Realizaram-se também
seis sessões de observações exploratórias e seis sessões
de observações específicas, com um roteiro elaborado
previamente.
Ao todo, podemos afirmar, que foram realizadas
mais de 200 horas de observação do espaço de pesquisa.
Concomitante às observações das práticas curriculares da
sala de aula, foram investigados documentos relativos à
organização da prática escolar, tais como o Projeto

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 127


Pedagógico da Escola, as Propostas Curriculares oficiais
do Estado, os Planos dos Professores, os Diários de Classe,
os Registros dos Professores dos Serviços de Apoio e o
material disponibilizado aos alunos durante as aulas. É
interessante observar que os currículos prescritos foram
buscados a partir da prática observada privilegiando-se a
idéia de que as práticas curriculares de sala de aula
constituem-se a partir dos vários elementos envolvidos
nesse processo.
Segundo Sampaio (1998, p. 25), os indícios da
prática presentes nos documentos produzidos por
professores “constituem elementos relevantes para o
conhecimento do trabalho escolar – desde que
considerados nos limites em que se inserem e que não
sejam tomados de forma isolada do contexto em que
podem ganhar unidade e maior significado”.
Nesse sentido, fomos buscando a partir dos
dados coletados nas observações, toda sorte de
informações que nos auxiliassem a compreender a forma
como se apresentava nosso objeto de estudo sem perder
de vista o alerta feito por Jackson (1996, p. 207),

Ao observar debemos tener en cuenta la


omnipresencia de los fenómenos del aula tanto
en el tiempo como en el espacio. Solo si
recordamos que cada minuto de clase es uno
entre millones de minutos semejantes
experimentados por millones de personas y por
cada persona millones de veces, nos sentiremos
inducidos a examinar con más atención los
detalles de los acontecimientos que
contemplamos. Considerados aisladamente,
muchos aspectos déla vida en el aula parecen
triviales. Y, en cierto sentido, lo son. El
entendimiento pleno de su importancia

128 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


empieza a surgir cuando reflexionamos sobre
su presencia acumulativa. Así, además de
observar los rasgos dominantes de los
intercambios de la instrucción y el diseño
general de curriculum, tenemos que sopesar,
mientras miramos, el significado de las cosas
que aparecen y desaparecen en un instante, con
el bostezo de un alumno o el ceno de un
profesor. Semejantes acontecimientos
transitorios pueden contener más información
sobre la vida en el aula de lo que parecería a
primera vista.

No processo de análise, os dados coletados


foram confrontados com o referencial teórico estudado,
buscando dessa relação extrair as respostas para as
perguntas que guiavam a pesquisa. Segundo Sampaio
(1998, p. 25):

investigar fragmentos ou indícios é valido, pois


a escuta pedagógica se inicia por eles; a prática
pedagógica pode ser assim revelada se os
indícios forem acolhidos, ouvidos e
interpretados da forma mais objetiva e crítica
possível. Isto implica procurar e perseguir
pistas, situando-as em seus múltiplos
determinantes. Nesse sentido, como indícios da
prática, os dados devem possibilitar uma
reflexão abrangente, extrapolando seus limites
de inserção no movimento da análise, com as
idas e vindas entre eles e o contexto mais amplo,
que lhes confere unidade e significado.

A leitura e a organização dos dados fizeram


emergir categorias analíticas que nos ajudaram a
estabelecer as inter-relações necessárias para a
compreensão dos dados.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 129


As práticas curriculares de sala de aula e as
diferenças dos alunos no processo de ensino e
aprendizagem

As práticas curriculares conforme já


explicitamos são aquelas implementadas e
recontextualizadas nos determinantes escolares (tempo-
espaço) envolvendo as práticas de seleção e distribuição
dos conhecimentos escolares.
Centrando-nos inicialmente nas práticas
curriculares de sala de aula, nos foi fundamental
compreender que o tempo e o espaço escolar funcionam
como condicionantes importantes dessas práticas.
Alguns estudos, em especial, Viñao Frago e
Escolano (1998), têm destacado o quanto a organização
do tempo e do espaço escolar tem sido definidora daquilo
que é ensinado e aprendido na escola, compondo e
delineando os traços da forma escolar. Escolano Benito
chega a afirmar que,

la arquitetura escolar es também por si misma


um programa, uma espécie de discurso que
instituye en su materalidade um sistema de
valores, como los de orden, disciplina y
racionalidad, uns marcos para el aprendizaje
sensorioal y motórico y toda una semiologia
que cubre diferentes símbolos, estéticos,
culturales y aun ideológios. Al mismo tiempo,
el espacio educativo há reflejado em su
formateado las innovaciones pedagógicas,
tanto em sus concepciones generales como em
los aspectos mas técnicos (2000, p. 183).

Vemos que o espaço comporta os corpos,


demarca as ações, organiza as relações. Da mesma
maneira, o tempo escolar é um outro forte componente

130 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


dessa estruturação. Segundo Escolano Benito (2000 p.
185),

a disciplina del tiempo educativo, inspirada


también en los os vetustos ritmos del convento
(a los que el sistema napoleónico superpuso los
del tambor) reforzó con la regularidad de sus
ritmos, la acción de influencia de las estructuras
arquitectónicas, dando origen a todo un
ordenamiento de la vida académica que entro,
de forma “invisible” aunque por lo demás bien
notoria, a formar parte del curriculum.
Esses dois determinantes fazem as práticas
curriculares da escola, assumirem um contorno que
“organiza minuciosamente los movimientos y los gestos
de los actores que representan la dinámica educativa y
hace que la escuela sea un efectivo contenedor del
poder”(ESCOLANO BENITO, 2000, p. 185).
As práticas curriculares de sala de aula são,
portanto, expressão das práticas curriculares da escola,
sendo condicionadas pela organização do tempo e do
espaço escolar. São as ações implementadas e
recontextualizadas no espaço da sala de aula por
professores e alunos na constituição daquilo que chamamos
de currículo.
Como um lugar de constituição de currículo, a
partir da análise do que acontece no cotidiano da sala de
aula, podemos perceber as práticas de recontextualização
presentes no contexto escolar e a instituição do discurso
pedagógico vivido no cotidiano.
Essas práticas curriculares, condicionadas pelo
tempo e espaço da sala de aula, acabam por agir na
produção da identidade dos sujeitos envolvidos no processo
ensino-aprendizagem e na produção dos saberes
trabalhados em sala.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 131


Ao nos centrarmos nessas práticas,
identificamos o que se ensina nas Séries Iniciais, como se
ensina, o que se aprende, como se aprende e as relações
estabelecidas entre os sujeitos com o conhecimento que
se deseja ensinar e aprender.
Com base nessa tessitura, conseguimos
perceber as diferenças que aparecem nesse processo, como
elas aparecem e como são enfrentadas por professores e
alunos. Dessa forma, reforçamos que para compreender
as escolhas curriculares diante das dificuldades dos alunos,
é necessário refletir sobre o processo de ensino e
aprendizagem instituído.
A própria identificação de dificuldades, como
veremos, emerge desse processo. Dependendo da forma
como o ensino se organiza, estaremos diante de
determinadas dificuldades apresentadas pelos alunos. O
como ensinar, materializado nas relações, tarefas e
materiais utilizados em aula, como o elemento mais
palpável do processo, reflete e também determina o que
será entendido como sucesso e como fracasso dos alunos
na aprendizagem.
Portanto, no movimento de entender tais
práticas, com relação à seleção dos conteúdos a serem
ensinados e aprendidos, optamos por, ao invés de
perguntar ao professor como ele escolhe os conteúdos que
pretende ensinar, analisar aquilo que de fato foi trabalhado
em sala de aula, através das observações realizadas.
A análise, a partir da prática instituída, aponta
para a seleção dos conteúdos com base no plano de ensino
e no diário de classe como uma tarefa pouco refletida pelos
professores, pautada nas experiências cotidianas do
docente, mais do que nas prescrições curriculares.
Nesse sentido, num ambiente complexo, a
manutenção de alguns objetos de ensino, por mais que se
distancie das prescrições curriculares, pode se justificar

132 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


por uma construção do saber docente a partir de suas
experiências práticas e condicionadas pelas categorias de
tempo e espaço. Por isso, a seleção dos conteúdos
ensinados em sala pelos professores advém do que está
sedimentado na cultura docente e escolar como objeto de
ensino válido e de importância reconhecida. Mesmo que a
escolha no contexto da ação seja irrefletida, ela se pauta
numa validação anterior, realizada pelos seus pares, pelo
contexto escolar e adequada ao tempo e espaço da sala de
aula. Daí decorre uma das primeiras características das
práticas curriculares estudadas: são sempre práticas
culturais e nesse sentido compartilhadas. Como afirma
Gimeno Sacristán (1999, p. 72) “a prática que pode ser
observada no desenvolvimento da educação é prática
ancorada em esquemas pessoais, que tem uma história, e
nos caminhos consolidados na cultura, nas estruturas
sociais (soma e produto coletivo), que também possuem
sua trajetória”. Existem “caminhos lavrados”, trilhas
culturais, “ainda que modificáveis, nas quais deve
percorrer no presente – e nós com ele. As ações dos
professores pertencem a eles mesmos, embora, por
nutrirem-se da experiência coletiva depurada e por
reagirem a situações cristalizadas no percurso histórico,
devam situar-se nessa experiência coletiva, que podem
não aceitar” (1999, p. 73).
Por essa ótica, analisamos os objetos de ensino
evidenciados nas práticas observadas. Primeiramente, é
importante destacar que encontramos, na sala de aula,
uma organização curricular do tipo coleção. Mesmo sendo
os professores de primeira, segunda e terceira séries
titulares (ou regentes) das turmas, ou seja, responsáveis
por ministrar todos os conteúdos, com exceção das
disciplinas de Educação Física e Artes, cada uma com seu
professor específico, no cotidiano das práticas curriculares,
os professores dividiam e organizavam o tempo da sala de

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 133


aula em disciplinas específicas: havia um momento
demarcado para cada aula e cada conteúdo.
Com relação à organização das disciplinas,
identificamos uma ênfase curricular na disciplina de Língua
Portuguesa. De todas as aulas observadas, percebeu-se
que os conteúdos de Língua Portuguesa eram os mais
trabalhados pelos professores, seguidos dos conteúdos de
Matemática e Ciências. Nota-se também a ausência de
trabalho com conteúdos relacionados à História e à
Geografia nas três primeiras séries, durante o período de
observação. Da mesma forma, surpreende a presença de
conteúdos relacionados à Religião. Como as aulas de
Educação Física e Artes são demarcadas por regras
exteriores à sala de aula, a presença dessas aulas era
garantida por uma questão espacial e temporal.
O que foi possível identificar no processo de
observação é que o trabalho do professor das Séries Iniciais
constitui um oficio solitário e destituído de
acompanhamento pedagógico, no caso da escola estudada.
As decisões curriculares tomadas pelos professores eram
decisões individualizadas e, por isso, definidas pela forma
como esse profissional foi sendo constituído. Poderíamos
afirmar que existe, aparentemente, uma autonomia muito
grande no trabalho docente em sala de aula, sendo as
escolhas curriculares de sala de aula dependentes das
disposições individuais dos sujeitos. Por exemplo,
percebeu-se na professora da segunda série A e B um
empenho maior para trabalhar com os conteúdos da
Matemática e também de Religião. Nos professores de
Primeira Série, as escolhas eram pelos conteúdos de Língua
Portuguesa. Tudo isso aparentava ser realizado de
maneira intuitiva pelo professor. Não se verificou ao longo
do período de permanência na escola, nenhum tipo de
orientação, supervisão ou acompanhamento do trabalho
docente em sala de aula. ou seja, o professor de fato fazia o

134 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


que melhor lhe convinha no momento de definir suas
escolhas curriculares.
No entanto, a partir da compreensão do conceito
de forma escolar e da compreensão de prática enquanto
experiência partilhada, sabemos que as escolhas
individuais são mediadas por esses elementos que
estruturam o trabalho docente, imprimindo-lhe um jeito
de pensar e constituir suas práticas. Compreendemos
também que a ação do sujeito individual representa a
incorporação de um ethos social.
Desse modo, a seleção feita pelos professores
em suas práticas curriculares de sala de aula, denota os
valores, crenças e conhecimentos sedimentados no juízo
professoral. Os professores são fiéis aos seus objetivos,
ainda que não tenham clareza reflexiva sobre a origem
deles.
Isso traz para a sala de aula, uma diversificação
na maneira como as áreas do conhecimento são
apresentadas aos alunos. Na análise da seleção dos
conteúdos escolares trabalhados em sala de aula, vemos
que as disciplinas não são apresentadas de forma
equiparada para os alunos, destacando-se a ênfase na
Disciplina de Língua Portuguesa, conforme já explicitado.
Porém, identificou-se que existem ênfases curriculares
diferenciadas de série para série. Nas primeiras séries os
conhecimentos escolares trabalhados referiam-se
principalmente, à disciplina de Língua Portuguesa. A
preocupação pela alfabetização faz com que as outras áreas
disciplinares circundem esta ênfase principal. Em segundo
lugar, aparecem Matemática e Ciências, sendo que,
fundamentalmente, esses conteúdos aparecem como
meios para exercitar e trabalhar o contato com o código
escrito.
Apenas na quarta série, os conteúdos de
História e Geografia apareceram. As disciplinas de

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 135


Educação Física e Artes, como já destacamos, estão
presentes desde as primeiras séries, em função de serem
ministradas por professores específicos.
Na perspectiva de nossa análise, interessa
também perceber os conteúdos selecionados dentro das
disciplinas, para evidenciarmos também essas ênfases.
Aqui, quando falamos de conteúdo, estamos nos referindo
ao tópico de estudo abordado na relação de ensino
aprendizagem instituída na sala de aula, podendo ser uma
decorrência da área disciplinar instituída ou não ter com
ela uma relação direta.
Levantamos essa questão para apontar que nas
escolhas que o professor faz sobre o que ensinar, parece
que sua preocupação centra-se exclusivamente nos
conteúdos conceituais ligados às áreas disciplinares
clássicas.
Ao centrarmos a análise nas práticas
curriculares do ensino da Língua Portuguesa é possível
identificar, pelo tipo de conteúdo trabalhado, uma
presença forte de uma concepção de língua escrita como
codificação que trabalha exaustivamente para auxiliar os
alunos a decodificarem o código escrito, por isso a
necessidade de conteúdos como: encontros consonantais,
sílabas complexas etc. Tudo isso apresentado de maneira
factual para os alunos.
Além disso, ao privilegiar a leitura e a escrita
como sendo uma habilidade a ser adquirida, um
desempenho especializado, não importa o conteúdo daquilo
que se aprende, nem o sentido disso para os alunos desde
que a leitura e a escrita estejam sendo treinadas. Tal
aspecto revela uma característica forte da prática
curricular observada: o que importa é o como se faz e não
o que se aprende. Os conteúdos escolares, na verdade, nas
primeiras e segundas séries, são um meio para promover
um fim que é a leitura e a escrita e nas terceiras e quarta

136 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


séries é um fim em si mesmo. Não importa o sentido e o
significado para os alunos, importa é a tarefa, a atividade,
o mantê-los ocupados de uma forma que lhes possibilite
aprender a ler e escrever.
Tal perspectiva ficou muito explícita nos
conteúdos trabalhados nas aulas de alfabetização
observadas. Os conteúdos restringiam-se a formas de
exercitação da leitura e escrita, como podemos perceber
nos conteúdos registrados na aula da primeira série
apresentados a seguir:

Foguete - gue - gui


O foguete sobe para o céu.
Guido vê um foguete.
O foguete sobe para o céu.
Ele voa como uma águia.
O foguete vai até a lua.
1. Copie três vezes a mesma palavra:
Guitarra guitarra guitarra
Açougue açougue açougue
Guerreiro guerreiro guerreiro
Coleguinha coleguinha coleguinha
Amiguinho amiguinho amiguinho
2. Separe as sílabas
Mangueira
Guitarra
Ninguém
Guaraná
Guardanapo

3. Forme pensamentos:
Foguete
Coleguinha
Açougue

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 137


4. Responda
Para onde foi o foguete?
Ele voava como uma?
Quantas palavras têm o texto?
5. Sublinhe no texto as palavras:
Céu
Foguete
Lua
Voa
(Notas de campo – 1ª série B)

Esses pequenos textos e essas atividades foram


escritos no quadro negro e as crianças copiavam em seus
cadernos. Os textos eram lidos e relidos coletivamente
pelos alunos e poucas eram as explicações do professor
sobre o que as palavras significavam ou outros comentários
para além do texto. O objetivo da atividade era a leitura e
a escrita e o conteúdo não tinha um sentido direto para as
crianças.
Por isso, torna-se um conteúdo procedimental,
a criança aprende um modus operandi da escrita e um
conteúdo factual porque os elementos desse processo são
apresentados de forma solta, desconectada, ou seja, a
forma como se trabalha o conteúdo vai demarcando o seu
sentido e as suas características, além do tipo de
aprendizagem que se estabelece.
A partir de práticas como essas os alunos
também vão tendo conteúdos atitudinais, vão aprendendo
o papel e o sentido da leitura nas suas vidas e sua atitude
frente a ela. Hand (apud WHITTY, 1985, p. 15), descreve
assim esta situação:

Todas as crianças da classe trabalhadora


aprendem a ler na escola. Esforçando-se
exaustivamente através de esquemas de leitura

138 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


aprendem que a leitura é uma tarefa não
relacionada com algo que possam entender.
Assim, elas são preparadas para um papel no
qual a leitura é relevante somente para o
cumprimento de tarefas ordenadas pelos
outros. Para outras finalidades – para além da
leitura de jornais, elas abandonam-na tão
rapidamente quanto possível.

Aparece aí, portanto um discurso regulador do


qual professores e alunos parecem não se dar conta: as
práticas da escola ajudam no abandono da leitura como
prática social significativa para todos os sujeitos. Os
pequenos textos e as atividades trabalhadas exemplificam
essa situação.
Os conteúdos escolares, na verdade, como já
afirmamos, nas primeiras e segundas séries, são um meio
para promover um fim que é a leitura e a escrita e nas
terceiras e quarta séries são um fim em si mesmo.
Além disso, os conteúdos conceituais, quando
aparecem, são trabalhados de forma desconexa,
descontextualizada e, nesse sentido, sem significado para
os alunos.
Nas práticas curriculares observamos isso nos
conteúdos relacionados a Língua Portuguesa, como
destacamos abaixo:

Circule os pronomes do caso reto.


Forme frase com os pronomes:
Eu
Tu
Ele
Nós
Vós
Eles

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 139


2. Passe para o plural.
Pastel, varal, azul, caracol, farol, sol, jornal,
cantil, anil, carnaval, anel, funil, anzol, quartel,
bambuzal.
(Notas de campo – 3ª série)
1. Sublinhe os verbos que indicam fenômeno
da natureza:
Gritar, falar, ventar, relampejar, chover,
comer, trovejar, repartir.
2. Numere corretamente:
(1) 1ª conjugação
(2) 2ª conjugação
(3) 3ª conjugação
( ) beber, correr, viver
( ) ajudar, limpar, cantar
( ) fugir, dividir, permitir
( ) pular, gastar, rasgar
( ) adormecer, perder, perceber
3. Indique a pessoa e o número dos verbos
destacados:
a) Quantos anos você tem?
b) As crianças comeram as frutas.
c) Eu estava no portão da rua.
d) Quando comprei aqueles livros?
4. Passe as frases para o plural.
a) Eu penso em você.
b) Eu escrevo um bilhete.
c) Ele canta conosco.
d) Ele pulou o muro.
(Notas de campo – 4ª série)

E de forma ainda mais aparente com os


conteúdos de História e Geografia:

140 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Exercício de fixação
1. Complete:
a) A região sul é formada pelos estados
_______, ______, ______.
b) A região _______ é a que possui o maior
número de estados.
c) A compra, venda e troca de produtos
chama-se_______..
d) O comércio realizado dentro do próprio país
chama-se comércio _______..
e) O rebanho mais numeroso do Brasil é o
_______..
f) O transporte _____ é o mais caro e o mais
rápido de todos.
g) As grandes navegações tiveram início no
séc. ____.
h) Os primeiros povos a praticar o comércio
no oriente foram os comerciantes das
cidades ____de_____e______..
i) Os europeus faziam comércio no ______
principalmente na Ásia e na região das
______s.
j) Algumas invenções como: a _______,
o______, a ________s possibilitaram a
realização das grandes viagens marítimas.
2. Como podem ser as rodovias brasileiras?
3. Quais são os principais rios brasileiros
navegáveis?
4. Em que região se localiza o estado de Santa
Catarina?
5. Cite três exemplos de produtos trazidos das
Índias mais procurados pelos comerciantes
europeus:
6. Qual é a principal atividade econômica do
Brasil?
(Notas de campo – 4ª série)
Vemos que a seleção por conteúdos como:

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 141


encontros consonantais e vocálicos, seres vivos, plantas,
verbo, meios de transporte, associada à forma dada a esses
conteúdos fragiliza o trabalho da escola com o
conhecimento. O conhecimento é apresentado para os
alunos como informações desconectadas, sem sentido e
inclusive já dominadas por eles em outras situações sociais.
Alguns autores, como Silva (1990), têm
destacado o trabalho frágil da escola com o conhecimento,
apontando que o conhecimento escolar é distribuído de
forma desigual, dependendo das classes e grupos sociais a
que se destina, além do papel dos conteúdos relacionados
ao currículo oculto.
Duarte (2000), acrescenta a essa idéia a crítica
de que mesmo nas prescrições curriculares parece existir
uma demanda para que o trabalho da escola com os alunos
oriundos da classe trabalhadora centre-se em conteúdos
que sejam úteis. Como afirma o autor,

Assim está sendo produzida (talvez fosse mais


adequado dizer que já se instalou) uma
mentalidade altamente pragmática, centrada
apenas no hoje, no aqui e no agora, criando-se
uma aversão àquilo que Saviani (1997b, p. 22-
23) denominou “clássico” no saber socialmente
produzido, uma aversão ao esforço necessário
ao estudo do clássico, uma aversão à teoria
considerada como inútil e uma valorização do
banal, dos casos pitorescos ocorridos no
cotidiano de cada indivíduo, uma valorização
do fácil, do útil, do que não exija
questionamento, crítica, raciocínio. (p. 35)

A partir das práticas curriculares observadas,


nossa crítica é ainda mais radical: o conteúdo selecionado
e trabalhado no cotidiano da sala de aula é prescindível na
vida cotidiana dos alunos, ou seja, não se reveste de uma

142 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


utilidade prática direta, ao mesmo tempo em que reitera
a aversão ao teórico, ao conhecimento “clássico”. O que
pôde ser percebido na seleção de conteúdos feita pelos
professores foi um esvaziamento do trabalho da escola com
o conhecimento. O conhecimento escolar ensinado (forma
e conteúdo) tornou-se tão frágil que não tem sentido em
outro espaço que não o escolar.
Configura-se, portanto, uma prática curricular
de abandono do trabalho com o conhecimento. Parece que
na chamada “sociedade do conhecimento” a prática
curricular da escola, necessária para uma determinada
parcela da população não é o trabalho com o conhecimento.
O conhecimento trabalhado na sala de aula
aparece como deslocado do tempo e do espaço e preso a
um cotidiano escolar passado. Esse aparente
deslocamento, no entanto, pode refletir o esforço docente
para acompanhar as demandas sociais. No contexto geral
das práticas curriculares observadas, o que vemos foi um
conhecimento escolar empobrecido, destituído de sentido,
deslocado, fragmentado e principalmente, como afirma
Moraes (2003), incapaz de auxiliar na constituição de uma
compreensão crítica do mundo.
Charlot (2000, p. 73) afirma que uma aula
interessante seria aquela na qual se estabeleça, “em uma
forma específica, uma relação com o mundo, uma relação
consigo mesmo e uma relação com o outro”. Para ele, toda
relação com o saber comporta uma relação epistêmica e
de identidade. As seleções de conteúdo analisadas
inviabilizam essas duas relações e trarão com certeza
decorrências para o processo de aprendizagem.
A seleção pobre e feita de maneira,
aparentemente, irrefletida pelos professores, empobrece
também o próprio trabalho docente. O trabalho do
professor é com o conhecimento escolar, sendo essa relação
empobrecida, as outras dimensões de sua prática serão

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 143


afetadas.
No entanto, mais uma vez é importante
destacar que o professor aqui é entendido não como um
sujeito individual, mas como um sujeito plural, forjado e
que ajuda a forjar todas as relações nas quais está
envolvido. Como afirma Lahire (1997, p. 349),

A consciência de qualquer ser social só se forma


e adquire existência através das múltiplas
relações que ele estabelece, no mundo, com o
outro. Ela é, portanto, social por natureza, e
não porque seria “influenciada” por um “meio
social”, um “ambiente social” (concepção de um
social periférico).

Nesse sentido, o trabalho com o conhecimento


vai sendo fragilizado, sem o professor dar-se conta. Aos
poucos, o conhecimento selecionado por ele como
relevante vai sendo destituído de sentido e sua prática
curricular legitima o papel social delegado à escola. Nesse
caso, um papel que, em essência, cada vez mais, parece
ser o de guarda, de tutela, de cuidado.
Entendemos também que o método, a forma
dada ao conteúdo, as tarefas sugeridas aos alunos, as
relações estabelecidas entre professor-aluno-
conhecimento ajudam a constituir as práticas curriculares
de sala de aula.
O que percebemos é que todos os elementos
ajudam na tessitura das diferenças que importam no
processo ensino-aprendizagem, assim como nas respostas
que se tornam possíveis em decorrência do tipo de prática
instituída.
Se entendermos esses aspectos, identificamos
que de fato as diferenças vivenciadas pelos alunos no
processo de aprendizagem, só podem ser entendidas com

144 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


base no processo de ensino. Nesse sentido, nossa questão
é eminentemente curricular: para entender o processo de
ensino e aprendizagem precisamos centrar-nos no
trabalho da escola com o conhecimento.
O trabalho frágil da escola na seleção do
conhecimento parece ser a ponta do novelo que precisa
ser puxada para a compreensão das respostas instituídas
diante das dificuldades dos alunos.
E o que nos revela o desenrolar desse fio?
Práticas que demonstraram a pobreza do conteúdo escolar
selecionado para o processo de ensino, a centralidade do
ensino em detrimento da aprendizagem e a hierarquização
dos sujeitos e das disciplinas escolares no espaço da sala
de aula. Identificou-se também a fragilidade do trabalho
com o conhecimento nesse nível de ensino, centrando-se
o trabalho naquelas que seriam as capacidades básicas a
serem desenvolvidas pelas Séries Iniciais: ler, escrever,
contar... A marca disciplinar forte na organização do
conhecimento a ser trabalhado pela escola apontou
também o complexo processo constituído, suas
desconexões e fracionamentos, mostrando o quanto o
trabalho com o conhecimento precisa ser retomado pela
escola, sendo talvez necessário para isso, outra concepção
de conhecimento.
Todos os elementos que compõem o currículo
nas Séries Iniciais demonstram, na situação estudada, uma
prática curricular que evidencia o ensino com conteúdos
sem significado para os alunos, através de práticas
centradas na exercitação e fixação. Um tipo de prática que
demarca fortemente as diferenças na medida em que está
centrada no coletivo e não se destina a atender aos sujeitos
individualmente.
Numa prática curricular guiada por princípios
homogeneizadores, há uma concepção intrínseca de que o
processo de aprendizagem é igual e ocorre da mesma

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 145


forma para todos os sujeitos. Talvez, o mais adequado fosse
afirmar que, na escola estudada, como o foco é exclusivo
no ensino, o princípio da homogeneização faz constituir
práticas de ensino centradas no coletivo: um único modelo
válido de ensino, um padrão de tarefas a serem solicitadas,
um modelo invariante de seqüências didáticas.
Nesse sentido, o que acontece é que, no conflito
entre os princípios hipotéticos que orientam o “como será”
a prática, constituída pelo habitus e institucionalizadas no
cotidiano escolar, e o contexto efetivo da prática, gera-se
um grande desconforto para todos os envolvidos. O
professor com um modelo internalizado se vê diante de
uma situação que não se adapta ao seu modelo. Nesse
contexto, as diferenças dos alunos que sempre estiveram
na sala de aula, se revelam e impelem os professores a
terem de buscar alternativas para o descompasso entre o
seu modelo de ensino e o modelo de aprendizagem do
aluno. Portanto vão sendo encontrados espaços, tempos e
estratégias para atender essas diferenças segundo a lógica
curricular adotada.
Na prática curricular cotidiana observada,
parecia não existir espaço para as diferenças individuais
de qualquer ordem.
Como a forma de organização da aula é sempre
para a classe, as diferenças aparecem como um fator
dificultador da aula, já que exige do professor um
atendimento particularizado, em detrimento do coletivo.
Nesse sentido, tanto a diferença revelada por uma
capacidade superior do aluno para lidar com aquele
conhecimento, quanto aquela que revele uma
incapacidade, atrapalha a forma como a aula está
organizada.
As práticas curriculares observadas definiam
um modelo fixo de aluno, de ensino e de aprendizagem;
dessa forma tudo que fugia a esse modelo era visto como

146 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


diferente, sendo o diferente, nesse caso, sinônimo de
inadequado, de dificuldade ou até mesmo de incapacidade.
Nesse sentido, a atenção voltada para essa
diferença que emergia, já partia do pressuposto de
enxergar nela o menos, o obstáculo, o erro, a
impossibilidade. No entanto, na observação minuciosa,
fomos percebendo que umas “atrapalhavam” e
importavam mais que outras. Percebemos, então, que,
ainda que de forma pouco sistematizada, o professor
realizava um diagnóstico sobre os alunos e sobre a turma
e esse diagnóstico o ajudava a constituir um processo de
triagem das diferenças, ou seja, existiam diferenças que
importavam segundo a lógica curricular instituída e
existiam as diferenças que não importavam.
Na constituição das diferenças que interferiam,
de maneira negativa nas práticas curriculares
desenvolvidas, agrupamos as diferenças identificadas pelos
professores em três grupos:

• diferenças na forma de lidar com o conhecimento


escolar: seriam aquelas diferenças apontadas pelos
professores como “dificuldades de aprendizagem”.
Revelavam-se nas dificuldades dos alunos durante a
alfabetização, com a matemática, com a leitura e a
interpretação de texto, como também em suas
capacidades de irem além daquilo proposto pelo
professor;
• diferenças na adaptação ao tempo e ao espaço da sala
de aula e da escola: decorrem da dificuldade, presente
em algumas crianças, de compreender o que se espera
delas e por isso comportarem-se inadequadamente no
espaço escolar.
• diferenças oriundas de deficiências legitimadas: são
aquelas deficiências evidentes e visivelmente
identificadas ou diagnosticadas como tal.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 147


Um primeiro aspecto importante na análise do
tipo de diferença que, na percepção dos professores,
interferia na prática curricular desenvolvida pela escola
era a dissociação entre o processo de ensino e
aprendizagem e suas decorrências.
As diferenças apontadas pelos professores, em
suas práticas, eram diferenças ‘dos alunos’, originárias dos
seus processos de aprendizagem. Em nenhum momento
serviam para questionar, rever ou reorientar o processo
de ensino. Por exemplo, em uma das turmas de primeira
série, de 29 alunos, 22 não estavam conseguindo se
alfabetizar e freqüentavam o serviço de apoio. A professora
dessa turma várias vezes dizia que se o problema fosse o
seu método de ensino, ela não teria tido êxito com nenhum
aluno, o que demonstrava que era uma dificuldade das
crianças.
É interessante o tipo de decorrência que tal
dissociação traz para as práticas curriculares dos
professores: quando precisam orientar suas escolhas
didáticas centram-se no ensino, quando precisam
identificar as dificuldades do processo centram-se na
aprendizagem. Por isso, podemos entender que, segundo
Sampaio (1998, p. 82), como o currículo está bem
delineado e estruturado num todo do qual não parecem
fazer parte os alunos, quando o professor percebe falhas
no processo de transmissão ele reorganiza as novas etapas
do ensino, mas sem prever retornos ou desvios do
movimento curricular. Não é um currículo orientado pelas
aprendizagens, por isso, as perdas e as dificuldades são
sempre entendidas como dos alunos. Nesse sentido, “o que
se perde permanece perdido”, e o professor continua
buscando investir em quem consegue acompanhar esse
processo.
Ao mesmo tempo, ocorre o que Laterman
(2004) identificou no seu processo de pesquisa, a

148 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


naturalização da presença desses alunos que não
acompanham o ensino, ou seja, o sucesso de muitos serve
de justificação para as práticas curriculares adotadas, como
no caso da professora acima, mesmo que isso leve ao
insucesso de alguns.
Na lógica curricular adotada, a diferença é vista
como um empecilho, uma dificuldade que precisa ser
superada, no que diz respeito ao trabalho com o
conhecimento, ao mesmo tempo em que é entendida como
um mal que sempre vai existir e que por isso precisa
apenas ser administrado para ter níveis toleráveis.
O processo de identificação das diferenças que
atrapalham o ensino, nesse sentido, torna-se essencial para
a manutenção adequada da prática curricular escolhida.
Com relação à identificação, portanto, o que foi
possível perceber é que no caso do primeiro grupo
destacado, as diferenças frente ao conhecimento escolar,
destacavam principalmente as dificuldades de leitura e
escrita. Como já vimos, dada a ênfase curricular no domínio
do código lingüístico, as dificuldades de alfabetização
tornavam-se extremamente incômodas para a prática
curricular adotada. Sendo o foco das Séries Iniciais, a
leitura e a escrita, as dificuldades que os alunos
apresentavam para dominar esses processos eram as que
mais se destacavam como impedidoras dos seus avanços
na prática escolar.
Considerando o já exposto, de que temos nas
Séries Iniciais um ensino voltado a formar no aluno as
habilidades de leitura e escrita, uma dificuldade neste
aspecto é uma dificuldade que indubitavelmente irá
comprometer a vida escolar deste aluno. Como fomos
percebendo, não é qualquer leitura e escrita que é
trabalhada pela escola, mas uma leitura e escrita,
amarrada e estruturada aos padrões e normas do trabalho
escolar. Portanto, muitas vezes, a dificuldade da leitura e

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 149


escrita reflete uma dificuldade de compreensão do trabalho
escolar, e uma incapacidade de ler e escrever do jeito que
a escola quer, no tempo e no espaço determinado para
essa aprendizagem.
Os dados nos mostraram que dos 208 alunos
que freqüentavam a primeira série, 98 alunos
freqüentavam o reforço escolar, ou seja, cerca de 47% .
Considerando a idade cronológica apresentada nas fichas
do Serviço de reforço escolar pesquisadas e a história
escolar dos alunos, muitos desses alunos estavam pela
primeira vez freqüentando a escola e a primeira série,
mesmo aqueles que já tinham oito anos. Mesmo assim,
em julho já estavam sendo encaminhados para um serviço
de apoio por lerem e escreverem com dificuldade. Na
verdade, se esse fosse um trabalho preventivo, o
encaminhamento precoce ajudaria a resolver futuros
problemas. A grande questão, é que, mesmo freqüentando
um serviço de apoio, o aluno não tem alternativa senão
dominar a forma como o trabalho escolar está organizado
e adaptar-se a ele. A prática curricular de sala de aula não
muda em função das dificuldades das crianças.
Como afirma Sampaio (1998, p. 98), a

situação criada parece eficiente para selecionar


e excluir os alunos que dependem apenas da
escola para aprender, por não dominarem os
pré-requisitos implícitos a cada etapa, pois as
exigências não se referem apenas a noções
transmitidas em classe, mas também a
habilidades e outros aspectos cuja aquisição
depende de outras oportunidades e recursos
culturais.
A escola mantém-se, dessa forma, insuficiente
para introduzir o aluno num processo mais
contínuo e pessoal de conhecimentos, abrindo

150 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


possibilidades de progresso apenas aos que
contam com retarguada cultural de suas
famílias, uma vez que retomar e aprofundar
conteúdos e resolver dificuldades de
aprendizagem são tratados como problemas
dos alunos, a serem resolvidos por conta
própria. O trabalho dos professores em sala de
aula não consegue resolver esses problemas,
resultando para o aluno em dificuldades que
não se supram e que, no limite, levam ao
fracasso.

Isso pode ser comprovado pelo grande número


de reprovações apresentadas nas primeiras séries
observadas (das 116 crianças que freqüentavam as quatro
primeiras séries observadas, 38 crianças reprovaram,
perfazendo um total de 33%).
Então, com tudo isso, percebemos que as
diferenças na aprendizagem dos conteúdos escolares,
vivenciadas pelos alunos, têm relação direta com aquilo
que a escola prima por ensinar: a leitura e a escrita. Como
vimos, qualquer dificuldade nesse aspecto vai criar ainda
mais situações de desvantagens para os alunos,
considerando a forma como se processa o ensino.
A prática curricular, por ser orientada ao
coletivo, exige do aluno um trabalho individualizado, na
medida em que prevê uma exposição, exercitação e fixação.
O aluno que não conseguir trabalhar dessa forma vai ter o
seu desempenho prejudicado e vai experenciar uma grande
diferenciação entre ele e seus colegas. Com o passar do
tempo, essa dificuldade acaba limitando suas possibilidades
de aprendizagem em sala, dando origem, no caso da escola
estudada, ao grande número de crianças encaminhadas
ao serviço de apoio.
As dificuldades de operar a lógica matemática
também fazem parte desse grupo, mas as principais

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 151


queixas dos professores são as questões relacionadas à
leitura e à escrita e depois interpretação de texto.
Percebemos, portanto, como o tipo de diferença
identificada na sala de aula tem relação direta com a prática
curricular desenvolvida. Como o trabalho com o conteúdo
é frágil, as questões relativas ao conhecimento, com
exceção da leitura e escrita não se colocam como
problemáticas.
Nesse grupo destacam-se também as
dificuldades dos professores de lidarem com os alunos que
desenvolvem uma forma diferente de trabalhar com o
conhecimento, por exemplo, questionando, tendo uma
postura mais ativa diante do que está sendo ensinado.
Um outro grupo de diferenças, que se
destacavam como atrapalhando as práticas curriculares
estudadas, dizia respeito aos alunos que não se adaptavam
ao espaço e tempo de sala de aula. Eram alunos que, por
algum motivo, não compreendiam a forma do trabalho
escolar e o boicotavam, ou então se submetiam, mas sem
sucesso. Nesse grupo, encontravam-se os “bagunceiros”,
os “dispersos”, os “hiperativos”, os “preguiçosos” que,
atrelados a essas características, fatalmente tornavam-
se os “repetentes” e “evadidos”.
Esses alunos são apontados pelos professores
como aqueles que “mais incomodam”. Esse incômodo, na
maioria das vezes, relaciona-se ao fato de que esses
sujeitos desafiam a organização do trabalho escolar quando
não conseguem aprender. Distanciam-se do trabalho
escolar e em função disso, perturbam a ordem “natural”
da sala de aula. São aqueles alunos que não fazem por “não
querer fazer”, por “não entender”, por “não saber”. São
aqueles dos quais o professor se queixa: “ele não faz só
para me incomodar” e às vezes são aqueles que, de fato,
não fazem para “incomodar” mesmo, porque foi esta a
estratégia de sobrevivência encontrada nesse espaço.

152 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Como vimos, a forma do trabalho escolar exige
uma série de comportamentos e como a escola exerce com
muita força sua função regulativa, não ter determinado
comportamento pode ser um problema, uma dificuldade
tão importante como não dominar determinado conteúdo.
Sendo muitas vezes o conteúdo ensinado uma
habilidade a ser adquirida, estamos falando então de
comportamentos, de forma de agir que às vezes torna-se
o principal a ser ensinado em determinada situação. Por
isso, os alunos “bagunceiros, distraídos, preguiçosos”
atrapalham tanto quanto aquele que apresenta uma
determinada dificuldade cognitiva. Às vezes, o que está
sendo ensinado tem como conteúdo, um jeito de falar, de
vestir, de se comportar.
Segundo Lahire (1997, p. 57),

Os professores privilegiam, portanto, o


comportamento como um todo, o ethos
detectável no aluno através do conjunto de seu
comportamento na escola em relação ao
domínio de qualidades intelectuais puras.
Aquilo que podemos classificar entre os
resultados escolares e as qualidades intelectuais
fica quase sempre no limite da disposição moral
de conjunto: ter uma escrita legível significa
também se aplicar, não precisar o tempo todo
de explicações significa também saber se virar
sozinho, ser autônomo, independente, curioso,
é ser aberto...Inversamente, inúmeras
qualidades morais ou comportamentais têm
implicações intelectuais quando se referem a
trabalhos escolares. Ser ordenado, organizado
é também ser racional, ter idéias ordenadas,
ser cuidadoso, ou bem cuidado, em geral, quer
dizer cuidar de sua expressão, cuidar de sua
apresentação e mostrar um espírito de clareza

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 153


em certos casos.

Em suma, ter um comportamento diferente


daquele necessário ao trabalho escolar gera para o aluno
tantos problemas quanto não dominar determinado
conteúdo. No caso da escola estudada, percebemos que,
como a função regulativa é forte, não aprender passa a
ser, definido também pela incapacidade da criança em
dominar as regras necessárias para o trabalho pedagógico.
No caso das diferenças apresentadas pelos
alunos, percebemos que, como afirma Gimeno Sacristán
(2000, p. 226), os alunos rapidamente aprendem o que
se espera deles em cada tipo de atividade.

Uma vez que, no curso de sua experiência


escolar, perceba as exigências que cada tarefa
requer, a estrutura destas molda seu trabalho
intelectual, seu comportamento na aula, com
os demais companheiros e com o próprio
professor. O ato de assumir tais parâmetros é
fundamental para a própria autodireção do
aluno e para a conquista do controle de sua
conduta canalizada pela ordem interna da
atividade inerente a cada tipo de tarefa.
Na verdade, as observações foram mostrando
que a diferença que mais incomoda a prática docente é
aquela que se expressa no aluno que não domina essa
forma de funcionamento escolar, aquele que não
acompanha, porque não vê sentido, porque não
compreende, e depois porque já não se importa mais em
acompanhar.
Charlot destaca que os alunos dos quais se
costuma dizer que desistiram da escola, muitas vezes não
desistiram, porque nunca entraram. Isso está bem
presente no cotidiano escolar, o aluno está na escola, mas

154 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


não se enquadra na forma como esse cotidiano está
organizado, arrumado e por isso desiste, sem ter sequer
entrado.
Compreende-se, então que a escola ao centrar-
se no ensino de conteúdos sem significado para os alunos,
porque, em certo sentido, são conteúdos destituídos de
significados por visarem imprimir uma habilidade, um
comportamento, por organizar o trabalho escolar centrado
somente no ensino, e numa forma que se coloca como um
fim em si mesma, e por estabelecer, para isso, uma relação
distanciada entre professor e aluno, demarca que o sucesso
é restrito àqueles que dominarem o jeito de se posicionar
nessa estrutura.
Ao mesmo tempo, o esvaziamento de sentido
daquilo que se ensina vai mostrando aos seus usuários que
o não aprender o que a escola ensina é relevante somente
no contexto escolar, e que o sucesso ou o fracasso, nessa
instituição, pouco modificará a sua atual condição de vida.
Com relação ao último grupo, identificado como
uma diferença relevante no processo ensino e
aprendizagem, destacam-se aqueles alunos marcadamente
diferentes, vistos e apontados como portadores de alguma
deficiência ou incapacidade cognitiva.
Esses alunos ditos deficientes que se
encontravam incluídos (eram em número de sete, sendo
que um freqüentava a escola e no outro período uma escola
especial, um ainda não havia sido encaminhado para
nenhum serviço e cinco freqüentavam o Serviço de
Educação Especial da escola), tinham um diagnóstico de
deficiência mental leve. Não havia nenhum caso na escola
de deficiências sensoriais e físicas. O que é interessante
observar é que, considerando a inespecificidade desse
diagnóstico, o que vimos no cotidiano de sala de aula é que
essas crianças aparentemente apresentavam as mesmas
dificuldades daquelas já apontadas no primeiro grupo, ou

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 155


seja, dificuldades de alfabetização e de operar com a lógica
matemática. No entanto, o fato de terem um diagnóstico
parecia que gerava a explicação necessária para o
professor modificar sua ação diante delas. Eram tratadas
de maneira diferente daquelas que compunham o primeiro
grupo.
Percebeu-se que eram tratados pelos
professores com algum tipo de comiseração, raramente
eram punidos ou chamados à atenção em classe, assim
como pareciam estar alijados do processo. Se quisessem
copiar, copiavam, se quisessem fazer, faziam, se quisessem
ir, iam. Muitas vezes ouviam-se os professores afirmando
sobre esses alunos, ‘queria ter uma sala cheia de alunos
como o ..., ele não me incomoda”.
Essa ausência de incômodo refletia que, no
contexto da sala de aula, esses alunos eram completamente
invisíveis para os professores. Não havia esforço para
possibilitar-lhes aprendizagens, porque em função do seu
diagnóstico declarado, os professores se viam autorizados
a não investir neles e então, às vezes, numa turma cheia
de “alunos problemas” escolhiam aqueles que na sua ótica,
tinham condições de superar suas dificuldades.
Dito dessa forma parece que estas escolhas são
deliberadas e racionalmente premeditadas pelo professor.
Como já destacamos, o currículo vai se constituindo de tal
modo e criando redes tão bem atreladas que, muitas vezes,
o sujeito que está no meio da ação não percebe para onde
suas escolhas o estão levando e essas escolhas, apesar de
serem individuais, na perspectiva que estamos
trabalhando, são sempre sociais.
Como afirma Gimeno Sacristán (1999, p. 74),

A ação pertence aos agentes, a prática pertence


ao âmbito social do social, é cultura objetivada
que, após ter sido acumulada, aparece como

156 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


algo dado aos sujeitos, como um legado imposto
aos mesmo.(...)
A análise da prática como reificação social das
ações conduz a consideração de que, uma vez
que se parte de uma determinada prática
consolidada como produto humano, a ação
individual e coletiva é a possibilidade
dialeticamente configurada pela iniciativa e
pela capacidade dos sujeitos, jogando no terreno
dos limites, sempre flexíveis, do habitus e da
institucionalização.

Nesse sentido, a identificação da diferença e as


possibilidades de atendimento pensadas são decorrentes
dos próprios princípios orientadores da prática curricular.
Nas situações observadas, vemos que as diferenças são
valoradas negativamente pelas práticas curriculares de
sala de aula. Com base nessa valoração, as diferenças que
incomodam são identificadas por práticas intuitivas pouco
sistematizadas e sem orientações específicas pelos
professores e decorrem da sua observação e interação com
os colegas do cotidiano escolar.

As práticas tornam-se trilhas que levam à exclusão...

Ao buscarmos compreender o trabalho da


escola diante da diferença dos alunos no processo ensino-
aprendizagem, centramo-nos nas práticas curriculares de
sala de aula por intuir que este espaço poderia ser
revelador da lógica que guia as práticas escolares diante
da diferença. Ao longo das observações, nos foi possível
constatar que mais do que revelador esse é um movimento
necessário.
Compreender a forma como se organiza a
prática curricular de sala de aula, a seleção e distribuição

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 157


do conhecimento e as seqüências didáticas vividas por
professores e alunos é fundamental para o entendimento
da escola e de suas práticas.
Nesse sentido, um dos primeiros argumentos
defendidos aqui é de que só podemos compreender as
alternativas curriculares constituídas para o atendimento
das diferenças dos alunos no processo ensino-
aprendizagem se partirmos das práticas curriculares
instituídas no cotidiano escolar.
As propostas de inclusão escolar, de Escola para
todos, de correção de fluxos, de eliminação de problemas
como repetência, evasão e defasagem série-idade,
precisam ser pensadas tendo por base, o que acontece na
realidade escolar.
Essas práticas, reveladoras do que a escola faz,
também nos permitem compreender por que outras
práticas, talvez mais democráticas, mais inovadoras, não
conseguem penetrar nesse espaço.
A observação das práticas curriculares de sala
de aula nos permitiu identificar que as práticas instituídas
são sociais, partilhadas, culturais e, nesse sentido, não são
objetos única e exclusivamente de decisões individuais.
Existe uma prática curricular sedimentada em
sala de aula no que diz respeito, à seleção, distribuição e
trabalho com o conhecimento. Existe também uma
definição explícita dos papéis de professor e aluno nesse
processo.
Com relação à seleção dos conteúdos,
identificamos uma prática de seleção pautada nas
experiências cotidianas do docente, realizada às vezes de
maneira irrefletida e por isso muito decorrente “dos
sulcos” presentes nos caminhos e partilhados pelos
professores em sua história profissional.
Essa característica, uma prática curricular
extremamente sedimentada no cotidiano da sala de aula,

158 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


faz com que os objetos de ensino estejam distanciados dos
seus sentidos originais, transformando-se em conteúdos
destituídos de significados para os alunos.
Vimos que a seleção dos conteúdos, associada à
forma dada a esses conteúdos, fragiliza o trabalho da escola
com o conhecimento, considerando que o conteúdo
selecionado e trabalhado no cotidiano da sala de aula é
prescindível na vida cotidiana dos alunos. Configura-se,
portanto, conforme já explicitamos, uma prática curricular
de abandono do trabalho com o conhecimento. Foi possível
identificar um trabalho homogeneizado dos professores
com um conhecimento escolar empobrecido, destituído de
sentido, deslocado e fragmentado.
Nesse contexto, o trabalho do professor com o
conhecimento e a relação estabelecida entre professor e
aluno também desempenham um papel nessa fragilização
do conhecimento.
Encontramos uma prática curricular de
organização da aula extremamente homogeneizada entre
os professores, pautada em uma forma padronizada de
organização do ensino. Um modelo que privilegia o ensino
em detrimento da aprendizagem, a forma em relação ao
conteúdo, centralizando-se na figura do professor ao invés
do aluno.
Esse modelo de aula ajuda a constituir a
organização da escola como espaço institucional, do mesmo
modo que estabelece relações com os determinantes
escolares exteriores. O estudo nos permitiu também
desvelar essas relações para podermos, aí sim,
compreender as alternativas escolares para o atendimento
das diferenças possíveis nesse processo.
No entanto, somente com os elementos aqui
apresentados nos é possível afirmar que estamos diante
de um processo de ensino e de aprendizagem enredados
aos limites e possibilidades do habitus. Conformados nas

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 159


características e nas relações de espaço e de tempo da sala
de aula, nas quais se expressa a materialidade da forma
escolar e também se demarcam os papéis dos sujeitos. Ao
criar a regra, a norma, o normativo, postula-se a exceção,
o diferente, o anormal. Os modos de lidar com isso estão
implícitos e explícitos nos princípios fundantes da norma.
Em síntese, as possibilidades de entendimento
das diferenças apresentadas pelos alunos no processo de
ensino e aprendizagem, já estão dadas pelo modo como se
opera o ensino, pelo que se ensina e pela função designada
para professores e alunos nesse processo, assim como as
práticas de atendimento possíveis. Estamos, portanto,
diante de práticas que geram práticas...

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162 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


PRÁTICAS DE PROFESSORES
DO ENSINO REGULAR COM
ALUNOS SURDOS INSERIDOS:
ENTRE A DEMOCRATIZAÇÃO
DO ACESSO E PERMANÊNCIA
QUALIFICADA E A REITERAÇÃO
DA INCAPACIDADE DE APRENDER

Mércia Aparecida da Cunha Oliveira


UNITAU/SP

Introdução

Atualmente, parece existir um consenso


mundial quanto à inclusão de alunos com deficiências nas
classes comuns do ensino regular, consenso esse
proclamado em declarações como as Declaração Mundial
sobre Educação para Todos, resultante da Conferência
Mundial sobre Educação para Todos (Jomtien, 1990) e a
Declaração de Salamanca (1994) e em documentos legais
como a Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional
(Lei nº. 9394/96 (Brasil 1996) e a Resolução CNE/CEB
nº 2 de 11 de setembro de 2001, que as institui Diretrizes
Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica
(BRASIL, 2001).
Se, por um lado, essas posições favoráveis à
inclusão de crianças com deficiência na classe do ensino
regular representam um avanço em termos do acesso à
educação dessa parcela da população de alunos, por outro

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 163


lado, vários autores têm apontado em seus estudos que,
principalmente nas escolas públicas, têm sido
desenvolvidas práticas pedagógicas que não favorecem o
êxito escolar de muitos alunos.
Segundo Góes e Laplane (2004, p. 37), os
estudos sobre a realidade social da escola evidenciam que
o fenômeno do fracasso escolar, um dos seus problemas
mais sérios, ainda não foi solucionado. As autoras
mencionam os estudos realizados por Plank (2001) e
Ferraro (1999) que, de acordo com elas, apontam para o
fato de que, nas últimas décadas as políticas e os
programas desencadeados não têm surtido efeitos
positivos quanto às mudanças pretendidas para acabar
com o fenômeno do fracasso escolar de um número
significativo de alunos da escola pública que ainda hoje,
não sabe bem como ensinar seus alunos tradicionais.
Bueno (1999) aponta que não é só a educação
especial que tem excluído uma parcela significativa de seu
alunado sob alegação de que, devido às características
pessoais, não têm condições de receber o mesmo nível de
ensino que os alunos considerados normais. Afirma o autor
que, também o

ensino regular tem excluído sistematicamente


larga parcela de sua população sob a
justificativa de que essa parcela não reúne
condições para usufruir do processo escolar, por
apresentar problemas pessoais (distúrbios dos
mais diversos), problemas familiares
(desagregação ou desorganização da família)
ou “carências culturais” (provenientes de um
meio social pobre) [...]. (p. 11)
Segundo Ferraro (1999, p. 46) um dos
problemas mais graves da escola fundamental brasileira
é o fenômeno da exclusão na escola, resultante da ação

164 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


dos mecanismos da reprovação e repetência, embora o
autor alerte que isso não deva diminuir o problema do
acesso ou da exclusão da escola.
Com base nesses estudos é possível afirmar que,
mesmo com a adoção de políticas de inclusão e que sendo
a inclusão considerada como a forma mais democrática de
ensino, a exclusão escolar ainda é uma realidade na escola
fundamental brasileira. Para Glat e Ferreira (2004) a
inclusão ainda não existe no Brasil por diversas razões e,
entre elas, porque o País ainda não desenvolveu programas
públicos que assegurem os direitos que representam um
mínimo de exercício de cidadania. Segundo esses autores,
se considerarmos os diversos níveis e modalidades de
ensino, a escola inclusiva ainda não existe. Mesmo diante
do discurso da inclusão multiplica-se a demanda pelo
conjunto de serviços junto às instituições especializadas e
filantrópicas, de caráter multi-profissional. Alguns
problemas crônicos permanecem, mesmo que atenuados,
como, por exemplo, o índice de analfabetismo (13,6%) na
população com mais de 15 anos e os cerca de 30 milhões
de analfabetos funcionais. De cada 100 alunos, que
ingressam no ensino fundamental no primeiro ano,
somente 59 concluem esse nível de ensino. Os alunos
levam em média 8, 5 anos para cumprir uma escolaridade
que deveria ser de 6, 8 anos. Além disso, os autores
mencionam o estudo recentemente publicado pelo MEC
que avalia como negativo o resultado do desempenho dos
alunos no Sistema Nacional de Avaliação da Educação
Básica, de 2001.
Bueno (1999) questiona a qualidade do ensino
que tem sido oferecido no Brasil. Segundo o autor, tanto a
escola regular quanto o ensino especial “tem uma história
contraditória de ampliação de acesso e de desqualificação
do processo pedagógico, especialmente a partir da
instituição da educação de massas, nas décadas de 60 e

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 165


70” (p. 11). De acordo com esse autor, é preciso admitir
que a exclusão é uma realidade para muitos alunos,
independente de ser de uma ou de outra modalidade de
ensino, “tendo em vista que tanto um quanto outro
colocaram em seus ombros a responsabilidade pelo
fracasso que sobre eles abateu” (p. 11).
Tais dados significam dizer que o aluno é
excluído do ensino regular com a justificativa de não possuir
condições para se beneficiar dessa modalidade de ensino
devido a problemas pessoais (distúrbios de aprendizagem,
problemas emocionais, entre outros), problemas de ordem
familiar como a desagregação, desorganização, falta de
interesse e por ser proveniente de um meio social pobre
(carente cultural). Justifica-se a exclusão de grande parcela
de alunos deficientes, que, também, pelas suas próprias
características, não têm condições para receber o mesmo
nível de ensino que as crianças normais (cf. BUENO, 1999).
Essas justificativas mascaram os mecanismos
de exclusão usados na e pela escola, que sob o discurso da
democratização do ensino e da igualdade de
oportunidades, na realidade “[...] determinam a eliminação
contínua das crianças desfavorecidas” (BOURDIEU, 1998,
p. 41), já que, a escola é uma das instituições mais
importantes na reprodução dos privilégios culturais.
Na perspectiva de Bourdieu, a escola não
considera que o capital cultural com o qual a criança chega
à escola difere segundo as classes sociais. Esse capital
segundo ele é “responsável pela diferença inicial das
crianças diante da experiência escolar, e
consequentemente pelas taxas de êxito” (BOURDIEU,
1998, p. 42). Segundo ele, ao não se considerar essa
diferença “tratando todos os educandos, por mais desiguais
que sejam eles de fato, como iguais em direitos e deveres,
o sistema escolar é levado a dar sua sanção às
desigualdades iniciais diante da cultura”.

166 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Assim, a inclusão requer que as diferenças
sejam consideradas, mas não para desqualificá-los na
perspectiva de Bourdieu. No entanto, a forma com que o
ensino é oferecido aos alunos com deficiência não favorece
a inclusão escolar desses alunos uma vez que eles são
agrupados pela característica que os desqualifica para a
freqüência no ensino regular. Os grupos de alunos para as
classes especiais são formados tendo como único critério a
presença desta ou daquela deficiência, a mesma coisa
acontecendo com as práticas dos professores que nivelam
esses alunos por baixo por causa da presença de uma
deficiência. Os alunos normais são atendidos nas classes
comuns; os alunos deficientes nas classes especiais. Os
horários de aula e de atendimento na classe especial ou na
sala de recursos são distribuídos de forma diferente.
Também, os professores que atuam nas diferentes
modalidades e nos diferentes níveis de ensino são oriundos
de diferentes cursos de formação, que direcionam e
orientam suas práticas. O professor polivalente (de 1ª a
4ª série) para as primeiras séries do ensino fundamental,
o professor especialista (de 5ª a 8ª série) conforme Bueno
(1999) e os professores especializados para trabalhar com
alunos deficientes. Quanto à formação destes últimos,
muitas instituições de ensino superior e universidades,
organizam separadamente cursos específicos para cada
tipo de deficiência (DA, DV, DM, DF). “É a consagração da
discriminação já na própria formação de um e de outro
[...]” (CARTOLANO, 1998, p. 32). Parece que ainda existe
um ideário dos organizadores dos cursos na direção de que
os conhecimentos específicos de cada deficiência são
suficientes para a criação de práticas pedagógicas
eficientes.
Blanco (1995) considera importante na ação
educativa, procurar encontrar a resposta mais adequada
a cada aluno, pois isso demonstra uma atitude de busca

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 167


constante de soluções que permite ao professor ajustar,
em cada momento, a sua ação educacional a realidades
concretas que estão em constante mudança.
Educar com êxito a todas as crianças, inclusive
as que apresentam deficiências graves, implica o professor
e sua formação profissional, pois é quem atua diretamente
com os alunos na sala de aula. Ele deverá favorecer o
estabelecimento de interações sociais visando o
aprendizado desses sujeitos, para que as ações já
desencadeadas em favor da inclusão e as metas
estabelecidas pelas políticas educacionais alcancem êxito
almejado. Assim, a questão da formação de professores
precisa ser discutida de forma ampla e englobar tanto a
formação do professor que atua na educação especial
quanto no ensino comum. A dicotomia que foi estabelecida
entre educação especial e educação regular acabou
refletindo na própria formação dos professores e,
conseqüentemente nas suas ações no âmbito escolar. Por
isso,

(...) a formação diferenciada dos professores de


uns e de outros somente vem reforçar o modelo
capitalista de produção baseado na eficiência,
na seleção dos melhores e na exclusão social
de muitos e fundado em uma visão “desfocada”
da realidade e do indivíduo, estamos assim
correndo o risco de estar institucionalizando a
discriminação já no ponto de partida da
formação dos professores e negando, portanto,
o princípio da integração não só do deficiente
na rede regular de ensino, como também do
profissional da educação na realidade
educacional existente (...). (CARTOLANO,
1998, p. 30).

Nesse sentido, ao se colocar em pauta o tema

168 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


da inclusão de alunos com deficiência nas classes comuns
de ensino, tendo como foco o professor e suas ações, é
preciso considerar: os documentos legais que dispõem
sobre a formação de professores; o que os estudiosos têm
escrito sobre o assunto; as reformas que têm sido
implementadas e o que de fato ocorre no cotidiano escolar
(VIÑAO FRAGO, 1996, p. 180).
Analisando o artigo 59 da Lei de Diretrizes e
Bases da Educação Nacional (BRASIL, 1996), Lei nº
9394/96, verifica-se que a inclusão de alunos deficientes
nas classes comuns de ensino envolve tanto os professores
do ensino regular quanto os professores especializados. Os
primeiros deverão ter preparo suficiente para atender a
diversidade de alunos e, os segundos, preparo suficiente
para atuar diretamente com essa população de alunos e
também para apoiar e orientar os professores das classes
comuns que contam com alunos deficientes em suas
classes.
No entanto, a formação de professores para as
diferentes modalidades – ensino regular e educação
especial, e para os diferentes níveis de ensino (ensino
fundamental da 1ª à 4ª série e de 5ª à 8ª série) – tem sido
o “nó” na educação brasileira, na visão de autores que
estudam o assunto, e, também, parece não existir um
consenso mesmo entre eles. Analisando os escritos desses
autores, verifica-se que Ferreira (1998, p. 12), por
exemplo, observa: “Sabe-se que o tema das necessidades
especiais, ou mesmo da diversidade, é ainda pouco
presente nos cursos de formação [...] mesmo com
recomendações e indicações legais para que se supere essa
lacuna”. Para Bueno (1999), no entanto, não basta,
simplesmente, inserir nos currículos dos cursos de
formação de professores “conteúdos e disciplinas”, com a
finalidade de capacitar esses profissionais para atuação
junto aos deficientes. Isso não resolve o problema, “pois a

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 169


eterna indefinição sobre sua formação, aliada a fatores
macrossociais e de políticas educacionais, tem produzido
professores com baixa qualidade profissional” (p. 18).
O momento pelo qual passa a educação
brasileira é de dupla transição. Estamos passando de um
modelo de educação especial com classes organizadas
separadamente do restante das classes na escola e até
entre si para atender às necessidades específicas
decorrentes do tipo de deficiência apresentada pelos
alunos, para um modelo que desloca o foco da
responsabilização do alunado para as condições reais da
escola o que implica, necessariamente, mudanças de cunho
organizativo e, sobretudo docente. Se todos deverão
aprender juntos porque têm condições para isso, toda a
escola deverá estar preparada para receber qualquer tipo
de aluno nas classes do ensino regular.
Aos professores é atribuído, portanto,
importante papel na definição dos propósitos e das
condições da escolarização. Daqui decorre que, na
perspectiva atual da educação, o professor será um
elemento muito importante no processo de inclusão escolar
de alunos com deficiência, em particular, por todas as
diferenças acrescidas às já existentes. Assim sendo, julguei
ser relevante investigar como vêm os professores reagindo
nesse contexto de mudança. Como vem atuando o
professor de classe regular quando conta, em sua turma,
com crianças deficientes as quais anteriormente se
destinavam às classes especiais? Quais os apoios que vem
recebendo para tanto? Quais as bases culturais que
conformam tais práticas?
Este texto tem por finalidade apresentar alguns
resultados e algumas considerações da tese de doutorado
apresentada na Pontifícia Universidade17 Católica de São
Paulo em 2005 que teve como objetivo central contribuir
para a compreensão dos processos de inclusão como

170 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


resultado de política pública de educação ao identificar as
ações efetivadas pelos professores de classes regulares que
contam com crianças surdas inseridas, para discernir as
formas de atuar e quais os modos e conteúdos de seu
pensamento nesse contexto, como reagem diante dessas
novas configurações das classes.
O estudo foi realizado em uma escola pública
estadual com alunos surdos inseridos nas classes de 5ª.,
6ª. e 7ª. séries do ensino fundamental. Para a coleta dos
dados foram realizadas entrevistas com a direção da escola,
professores do ensino regular de Ciclo II, do sistema
estadual de ensino, considerando aqueles que
participavam do processo de inclusão de alunos deficientes
em suas turmas e os professores das classes especiais,
observações de suas aulas e de outras atividades da escola
como Hora de Trabalho Pedagógico Coletivo e do Conselho
de Classe. Os dados obtidos por meio das observações e
das entrevistas foram organizados em três chaves de
análise denominadas respectivamente de: Procedimentos
de ensino, Dificuldades eventuais que os professores
encontram nas condições de trabalho e Expectativas dos
professores quanto à aprendizagem e à continuidade nos
estudos.

A inserção do aluno surdo na classe comum e a


reiteração da exclusão

A análise dos dados obtidos para este estudo,


tendo como foco central as manifestações e ações dos
professores, sobretudo aqueles das classes regulares,
apontou que as ações desses professores estão baseadas
na crença de que o aluno surdo é incapaz de aprender.
O termo ação, de acordo com Gimeno Sacristán
(1999), tem o significado de processo e resultado. O
professor age como pessoa, e suas ações o constituem. As

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 171


ações, além de expressarem a singularidade do eu,
permitem que cada um construa a própria diferença em
relação aos demais e se torne singular ator de sua própria
vida. Nesse sentido, toda ação tem um caráter pessoal, de
tal modo que as repostas às situações trazem o traço de
personalidade, afetos, crenças e expectativas que são
peculiares a cada pessoa humana. Por isso, é importante
descrever as ações de cada professor isoladamente.
Embora as ações sejam singulares, pode-se falar em estilos
de ações compartilhadas, como acontece na escola, entre
os professores.

A experiência ou cultura subjetiva não é nutrida


somente da biografia pessoal, nem pertence
apenas a uma pessoa, mas pode ser cultura
compartilhada. As ações são imitáveis por
outros, e seus esquemas podem ser propagados
e transmitidos a agentes diferentes daqueles que
o geraram; a eficácia dos vestígios da memória
das ações multiplica-se socialmente no espaço
e no tempo. (GIMENO SACRISTÁN, 1999, p.
71)

Nessa direção, foi possível captar a existência


de modos de agir generalizados entre os professores
analisados.
Segundo o mesmo autor, a reiteração da ação
cria a realidade social, ou cultura intersubjetiva,
aproveitando a realidade social existente anteriormente,
definindo padrões sociais na forma de rotinas, regras,
instituições, sistemas recíprocos de expectativas e formas
de saber fazer que orientarão as ações futuras.
O autor define prática da educação como a
cultura compartilhada de um tipo de ações que tem relação
com o cuidado, o ensino e a direção de outros (p. 73). Para
ele, a prática é a cristalização coletiva da experiência

172 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


histórica das ações. É o resultado da consolidação de
padrões de ação sedimentados em tradições e formas
visíveis de desenvolver a atividade. Para desenvolver suas
reflexões, pauta-se em conceitos centrais da obra de
Bourdieu:

Assim como as ações do sujeito são devidas a


outras ações suas, as dos indivíduos são geradas
em estruturas práticas construídas pelas ações
dos outros. As práticas, como reprodutoras das
regularidades nas quais foram geradas,
requerem a presença e a sobrevivência de um
passado que não está morto, que é ativo e
perpetuado pela sua reativação. (GIMENO
SACRISTÁN, 1999, p. 83)
Com isso, ele quer dizer que, no interior da
escola, há uma espécie de ordem impessoal de autoria
coletiva que gera certa estabilidade das ações efetivadas
nesse espaço, isto é, o habitus, que dirige e regula as ações
futuras e, assim, não há a necessidade de se planejar a
intenção de cada ação futura, de deliberar e de estudar as
conseqüentes interpretações diante dos dilemas, o que
proporciona economia e garante a continuidade.
Segundo Gimeno Sacristán (1999, p. 84), o
habitus, uma vez assumido, tem mais força do que
qualquer norma formal, porque foi interiorizado e, graças
e ele, a reprodução da prática passa despercebida, e
continua simplesmente atuando sob as condições nas quais
foi configurada. As ações se cristalizaram em práticas.
O habitus, segundo Bourdieu (1996), resulta da
dialética da troca entre os agentes e a sociedade,
produzindo sistema de disposição para agir. Segundo ele,
esses sistemas resultam de uma ação organizadora,
sistematicamente atuando sobre os indivíduos,
constituindo um modo de ser, uma predisposição. Ao se

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 173


constituir desse modo, funcionam como principio gerador
das práticas e representações sem supor finalidades
explícitas, sem que haja orquestração coletiva, sem um
regente.
Como tais disposições são duráveis e
transponíveis, integram experiências passadas,
funcionando como matriz de percepções, apreciações e
ações, engendram aspirações e práticas compatíveis com
as condições objetivas, e produzem um ethos disseminado
que conforma as ações valorativas.
Assim, as condições de existência dos agentes
produzindo sistemas de disposições semelhantes, segundo
o autor, produzem certa homogeneidade e objetividade,
que fazem com que tais disposições sejam vistas e vividas
como evidentes ou necessárias, assim como suas
decorrências: “ é assim...”
A análise dos dados desta pesquisa apontou que,
mesmo com a inserção de alunos deficientes nas classes
do ensino comum, persistia a forma de organização escolar
baseada no princípio da homogeneidade, sem lugar para a
diferença. Isto é, mesmo diante da exigência de uma nova
configuração escolar, constatou-se a manutenção de
práticas educativas que não atendiam às necessidades dos
alunos inseridos nas classes do sistema comum de ensino.
As ações dos professores nas salas de aulas não
se desenvolvem isoladamente, não são resultados apenas
de suas características pessoais (suas crenças, valores,
expectativas), mas refletem o tipo de cultura da instituição,
considerada no contexto mais amplo das políticas de
reformas e mudanças educacionais que exercem
influências no cotidiano da escola e, conseqüentemente,
nas práticas dos professores.
Dessa forma, para a análise dos dados obtidos
para a pesquisa foi preciso, em primeiro lugar, a
contextualização das ações dos professores no contexto

174 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


das mudanças que estavam ocorrendo em relação à
educação dos deficientes. Em seguida, a análise desses
dados, ao lado de outros, como fios a tecer a trama de uma
realidade escolar.
Quanto às reformas, neste estudo, para efeito
de análise, foi considerada a reforma educacional voltada
para o atendimento de deficientes na escola pública
paulista. No Estado de São Paulo, a partir de 2001, com as
Novas Diretrizes da Educação Especial, foram criados os
Serviços de Apoio Pedagógico Especializado-SAPE, que
podem ser estruturados sob a forma de Classe Especial
ou Sala de Recursos.
O SAPE com sala de recursos constitui espaço
educacional integrado aos demais ambientes da escola,
destinado a complementar ou suprir as atividades
escolares dos alunos, matriculados em classes comuns da
própria escola ou, em outras, que necessitem de recursos
didáticos específicos e professores especializados. Como
classe especial, constitui agrupamento sistemático de
alunos com o mesmo tipo de deficiência, sob a
responsabilidade de professor especializado. Recomenda-
se que, na organização dessas classes, seja evitada
discrepância significativa entre as faixas etárias dos
alunos.
De acordo com essas Diretrizes, espera-se que
todos os alunos sejam inseridos nas classes do ensino
comum. Caso seja necessário, poderão freqüentar classe
comum combinada com sala de recurso, ou seja, o alunado
recebe atendimento especializado paralelo ao ensino
comum. De acordo com essas Diretrizes, os alunos com
deficiências acentuadas, que necessitam de alteração
significativa do currículo, alto grau de individualização,
além de estratégias pedagógicas diferenciadas, poderão
freqüentar classe especial.
O encaminhamento dos alunos aos diferentes

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 175


recursos será efetuado após um criterioso processo de
avaliação. O aluno ingressante terá sua matrícula efetivada
em classe comum e o professor deverá avaliar seu
desempenho acadêmico e identificar a melhor forma de
atendimento para cada caso. Para a utilização da sala de
recursos simultaneamente à classe comum, o professor
deverá proceder a uma avaliação pedagógica que justifique
essa medida. Essa avaliação deverá basear-se no
levantamento de hipóteses e sugestões de intervenção. No
caso de encaminhamento à classe especial, haverá
necessidade de permanência do aluno em classe comum,
combinada com a sala de recursos, por um período que
permita esgotar as possibilidades nesse nível. Nessa
circunstância, será necessária uma avaliação pedagógica
realizada por uma equipe interdisciplinar, constituída no
âmbito da Diretoria de Ensino, com os seguintes
profissionais: professor da classe comum, professor da sala
de recursos, professor-coordenador, assistente técnico
pedagógico de educação especial e do ensino fundamental
e supervisor de ensino. Essas medidas vêm ao encontro
das ações educacionais, em reposta às necessidades
educacionais especiais dos alunos. Percebe-se assim, que
as novas diretrizes objetivam garantir a inserção de todos
os alunos no ensino regular, incluindo os deficientes. No
entanto, a prática dessas indicações nas escolas não
acontece exatamente conforme prevê a política atual da
educação especial, já que as condições objetivas das escolas
são mais diversas do que supõe o legislador.
A escola onde foi desenvolvida a pesquisa tinha
um modelo tradicional quanto à organização das
modalidades de ensino: classes formadas por alunos
normais (ensino fundamental) e classes formadas por
alunos surdos (classe especial/sala de recursos),
apresentando um aparente esforço para a superação desse
modelo tradicional de organização, ao procurar

176 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


implementar as Novas Diretrizes da Educação Especial do
Estado de São Paulo.
No entanto, verificou-se uma distorção da sala
de recursos, que, teoricamente, não deveria ser apenas
para os alunos surdos ou portadores de outras deficiências:
são recursos para atender outros tipos de necessidades
do alunado, porém a interpretação dada pela escola parece
generalizada, conforme os dados analisados por Silva
(2003), no estado do Mato Grosso do Sul. É possível
apontar, assim, indício de visão homogênea quanto à
interpretação do uso da sala de recursos, ou seja, é uma
sala para ser utilizada por alunos deficientes ou que sejam
rotulados como tal.
Tal princípio da homogeneidade de visão sobre
os alunos surdos refere-se à organização das classes
separadas, presentes nessa escola, como em tantas outras.
Além disso, foi possível flagrar, também por essa
organização, a necessidade da homogeneidade dos alunos
que compõem as classes: alunos ouvintes com ouvintes,
surdos com surdos. A tentativa de inserção dos alunos
surdos nas classes comuns de alunos ouvintes, de qualquer
forma, apesar dos inúmeros problemas descritos,
constituiu uma etapa de início de ruptura de uma visão
homogeneizada de distinguir o alunado das escolas,
trabalhando com a segregação, e não com a integração.
Tal atitude organizativa pautava-se na crença da
impossibilidade verificada em diversas circunstâncias.
Na verdade, é possível afirmar que a escola
reinterpreta o discurso oficial, procurando criar ações
alternativas que não desestabilizem, nem a sua cultura,
nem a cultura dos professores, isto é, continua pautada no
princípio da homogeneização. Na essência, as práticas
continuam as mesmas, pois se verificou que as práticas
desenvolvidas nessa escola, em relação ao aluno surdo,
reiteram as práticas a que esse tipo de aluno tem sido

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 177


submetido ao longo da história: a separação daqueles que
não acompanham a ordem da classe.
Também foi possível verificar, por exemplo, que
as professoras da educação especial, embora procurassem
fazer a inserção dos alunos surdos nas classes do ensino
regular, não acreditavam na sua efetivação. As duas
afirmaram que eram de opinião que, da forma como a
inclusão estava sendo realizada na escola, “é uma perda
de tempo”, que os alunos iam sair do ensino fundamental
sem que tivessem aprendido de fato e que os professores
do ensino regular “não estão nem aí com os alunos
surdos”. Uma das professoras afirmou que “não há o que
se possa fazer, pois se é para fazer a inclusão, ela tem
que ser feita”, mas que não acreditava na inclusão do surdo,
pois os professores do ensino regular não estavam
preparados. Para ela, a inclusão do cego, do deficiente
mental, “tudo bem, mas do surdo é complicado”,
posicionando-se claramente a respeito da inclusão: “eu sou
contra a inclusão do surdo”.
A forma de organizar turmas de alunos,
inserindo parcial ou totalmente o alunado surdo,
possibilitou a manifestação, bem generalizada entre os
professores, de um outro ponto muito comum na educação
dos deficientes, qual seja, a preocupação quanto a ações
de socialização. As condições sociais vividas por esses
professores vêm continuamente reiterando a idéia de que
este é o objetivo central, ou seja, a partir da segregação,
educá-los para serem inseridos ou integrados de modo
adequado ao convívio social. Nesse sentido, a maioria dos
professores do ensino regular pareceu ser favorável à
inclusão, mas enfatizando como contribuição da escola o
favorecimento da socialização desses alunos.
Nessa escola, os alunos surdos inseridos nas
salas comuns tinham idade bem acima da média da classe,
mas parece que os professores não consideravam essa

178 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


diferença, apesar de, por exemplo, na classe da 5ª série,
onde a média de idade era normalmente entre 11-12 anos,
haver alunos com idades entre 15 e 21 anos. Havia,
portanto, não só uma diferença de idade, mas também de
tamanho e de características físicas, além dos interesses
próprios de cada faixa etária. Nesse sentido, parece ser
infundada a afirmação de que a escola poderia contribuir
para a sociabilidade e o convívio com os ouvintes, até
porque os próprios professores não organizavam
atividades para propiciar a interação entre os dois grupos
de alunos. Além disso, esses alunos adolescentes e adultos
tinham vida social fora da escola, participavam de outros
ambientes para além do familiar, no bairro, nas idas às
lojas, nos locais de lazer e de projetos paralelos que a
própria escola organizava, como exemplo, o projeto de
Dança de Rua.
Considerar o estar junto na classe como
contribuição da escola é muito pouco quando se pensa no
conceito real da inclusão e evidencia claramente o
desencontro entre o que se manifestava e as ações que se
realizavam. Verifiquei que, mesmo quando apareceu a
oportunidade de interação entre surdos e ouvintes, em
uma das aulas ela foi retirada pelo próprio professor da
classe. Não há neutralidade nem acaso nessas ações, pois
elas revelam baixa expectativa real em relação a esses
alunos, até mesmo nesse ponto, apesar de reproduzirem,
quase mecanicamente o que veiculam. Na própria escola
e fora dela, haja vista a situação em que uma das
professoras considerou que os alunos da 6ª série (apesar
dos 17 e 21 anos) eram incapazes de participar da festa do
folclore, servindo pratos típicos cujas receitas foram
copiadas na aula.
É possível afirmar que existe uma prática
institucionalizada no que tange à educação desses
indivíduos, constatada nas ações desencadeadas na escola

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 179


para atender às exigências da lei, que atualmente
determina o atendimento do aluno deficiente,
preferencialmente, nas classes comuns de ensino regular.
Assim, por exemplo, na escola onde se realizada a
pesquisa, foi instituída a prática da inserção parcial e
inserção total do aluno surdo nas classes do ensino regular.
Segundo Lunardi (2005, p. 142):

Como afirma Bersntein, a escola


recontextualiza seu discurso oficial,
constituindo o discurso pedagógico escolar.
Nesse processo de recontextualização
reorganiza, recoloca sujeitos, agências e
saberes, estabelecendo uma dinâmica própria
de funcionamento.

Nessa prática organizativa da escola, tal


recontextualização organizou-se a partir do fato de os
alunos surdos serem avaliados e encaminhados para a
inserção parcial ou para a inserção total de acordo com os
resultados da avaliação pedagógica e de acordo com os
critérios estabelecidos apenas pelas professoras da
educação especial.
Mesmo quando o aluno era encaminhado para
a inserção total, o que significava freqüentar as aulas de
todas as disciplinas na classe comum, a partir da 7ª série,
não deixava de ir para a classe especial/sala de recursos,
espaço reservado aos alunos surdos. Duas vezes por
semana, os alunos deveriam se dirigir a essa sala, para
que a professora da educação especial acompanhasse o
trabalho da classe regular e tirasse as dúvidas sobre os
conteúdos, caso os alunos as apresentassem. O grupo de
alunos considerados inaptos para freqüentar algumas
disciplinas na classe comum era encaminhado para a
inserção parcial. Esses alunos ficavam meio período na

180 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


classe comum, onde aprendiam os conteúdos de
Matemática, Português e Arte, e meio período na sala de
recursos, onde a professora da educação especial
trabalhava os conteúdos de História, Geografia e Ciências,
conforme mencionado no capítulo anterior.
De qualquer forma, verifica-se que continuava
existindo a separação entre alunos ouvintes e alunos
surdos no interior da escola, agora separados quanto a sua
condição de aprender. Assim, a inserção ou não desses
alunos ficava indefinida. Os alunos, eles ficavam com um
pé no ensino regular e outro pé no ensino especial. Havia,
portanto, uma indefinição na situação escolar desses
alunos, o que marcava a sua condição de deficientes.
A análise dessas situações permitiu detectar,
na origem, a crença e as expectativas de incapacidade do
aluno surdo para a aprendizagem dos conhecimentos
veiculados na escola. Essa crença parece ser disseminada
na escola e pôde ser constatada quando foram analisadas
as ações dos professores do ensino regular, assim como as
ações e manifestações dos professores das classes
especiais.
Assim, por exemplo, é possível destacar e até
radicalizar a análise, apontando a existência de duplo
currículo nessas séries: um currículo em ação para alunos
ouvintes, e outro para os surdos, no que se refere tanto
aos conteúdos veiculados, quanto às atividades
selecionadas e atribuídas a eles pelos professores.
Segundo Pérez Gómez (1983), as decisões
docentes são resultados de informações a serem
processadas. Entre o conjunto de informações que os
professores recebem, destacam-se as expectativas que os
professores têm de cada um dos alunos e do grupo de
alunos da classe, em função de informações que recebem,
suas crenças, teorias explícitas e implícitas acerca da
educação e capacidade de aprender do aluno. A partir disso,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 181


o professor decide sobre o que e como ensinar.

Es el profesor quien interpreta, evalua y da


significación a las personas , objetos, espacios
y procesos que interatuán em la aula. […] Los
valores potenciales llegan a ser actuantes em
virtude de la actividade cognitiva del profesor
que os dota de sentido em su estratégia docente.
(PÉREZ GÓMEZ, 1983, p. 177)

Nessa direção, é possível dizer que a análise das


manifestações verbais e das observações das aulas
permitiu apontar que os professores interpretavam que
os alunos surdos das 5ª e 6ª séries eram capazes apenas
de aprender Português, Matemática e Artes nas classes
regulares, pois os demais componentes curriculares eram
ministrados em outro local, o da classe especial, com as
professoras especializadas.
Decorrente dessa disposição relativa, as
professoras de Português da 5ª e 6ª séries, por exemplo,
diminuíam deliberadamente as noções e atividades para
os surdos inseridos – a gramática era desnecessária, e os
textos deveriam ter mais desenhos – assim como o
professor de Matemática “cobrava” menos, ou seja, os
professores tinham padrões de aprendizagem
interpretados, dotados de sentido diverso, quando
comparados aos trabalhos com alunos ouvintes, e agiam a
partir dessa visão.
A análise das manifestações e das ações das
professoras da educação especial revelou que, embora elas
procurassem fazer a inclusão de surdos no ensino regular,
ainda não tinham a convicção da efetividade da
aprendizagem a que eles eram submetidos, tanto assim
que mantinham uma situação de indefinição na vida escolar
daqueles alunos. Por exemplo, no Plano de Gestão da

182 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Escola, quando se avaliavam os resultados do processo
educativo da escola direcionados aos alunos surdos, e
apareciam resultados negativos do processo, surgia a
questão da falta de classes por série, para esses alunos.
Isso pode ser um dado a mais a respeito das crenças e
valores que estão na base dessas manifestações e das
práticas desenvolvidas na escola, reiterando-se a visão da
impossibilidade de os alunos seguirem a classe regular. Elas
não percebiam que, se fosse para os surdos continuarem
em classes “adaptadas”, por que então se falar e procurar
fazer a inclusão?
Outro aspecto relevante no que tange aos
estudos do currículo em geral, e, em particular, na educação
de surdos, refere-se à diferença no tempo e no espaço
escolar desses alunos em relação ao espaço e tempo do
aluno ouvinte, ou melhor, aos espaços e tempos: o espaço
e o tempo nas salas de aula e na escola, conforme Viñao
Frago (2001), carregam em suas configurações, como
território e lugar, signos, símbolos e vestígios da condição
e das relações sociais de e entre aqueles que o habitam,
todos eles carregados de significados.
Os surdos que vão para a escola pública, via de
regra, são aqueles que não têm recursos financeiros para
usufruir de outros serviços disponíveis nas instituições
privadas (escola particular, clínicas, fonoaudiólogos, entre
outros). Muitas vezes, chegam à escola para serem
atendidos na classe especial, onde permanecem por vários
anos, até serem considerados aptos para a inserção na
classe comum da 5ª série. Os alunos que vieram
transferidos de outras escolas para freqüentar a 5ª série
acabaram voltando para a 3ª ou 4ª série, onde
permaneceram, conforme as informações obtidas, por 2
ou 3 anos, até serem encaminhados para a 5ª série, quando
já tinham por volta de 15 anos de idade.
Todos esses aspectos configuram práticas

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 183


tradicionais arraigadas que marcam a vida escolar desses
alunos. São práticas engendradas mediante as disposições
que consideram imprescindível a passagem ou
permanência dos alunos surdos em classes especiais. Como
parte do habitus, as professoras não refletem sobre as
conseqüências dessas práticas na formação da identidade
do aluno. Para elas isso é normal, e não percebem que os
alunos estão, nessas passagens, sendo submetidos a um
ritual que os rotula como incapazes.
Considerando que o tempo normal para se
cursar o ensino fundamental é de oito anos, e considerando
a idade de acesso à escola, que, segundo as informações
obtidas, era efetuada por volta dos dez anos, verifica-se a
defasagem significativa na vida escolar desses alunos, como
o caso de uma aluna que, com 23 anos, estava cursando a
7ª série do ensino fundamental.
Esse aspecto está relacionado com o que foi dito
antes, a respeito da inserção parcial e total dos alunos
surdos no âmbito da escola, ou seja, há uma imprecisão
que leva às ambigüidades e à indeterminação quanto aos
espaços a serem ocupados pelos surdos.
Assim, a escola:

[...] produz um número cada vez maior de


indivíduos atingidos por essa espécie de mal-
estar crônico instituído pela experiência – mais
ou menos completamente recalcada – do
fracasso escolar, absoluto ou relativo, e
obrigados a defender, por uma espécie de blefe
permanente, diante dos outros e também de si
mesmos, uma imagem de si constantemente
maltratada e mutilada. (BOURDIEU, 1998, p.
222)
As práticas escolares voltadas ao atendimento
dos surdos (acima mencionadas) podem ser interpretadas

184 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


como práticas que excluem o aluno surdo no interior das
escolas, com repercussão também na sua vida fora da
escola, visto que eles permanecem muitos anos na escola,
muitas vezes participando de outras atividades e projetos
paralelos que, na verdade, só servem para ratificar a sua
condição de deficiente.
O surdo tem a garantia legal do acesso e
continuidade, mas permanece por muito mais tempo na
escola do que os ouvintes, sem a garantia de uma
escolarização de qualidade, que permita a aquisição, de
fato, dos conhecimentos ali veiculados. Depois de
permanecer anos a fio na escola, ao final obtêm certificados
desvalorizados de acordo com as manifestações dos
próprios professores que afirmaram esperar que esses
alunos pegassem um “pouquinho” da matéria, que não
acreditavam que eles prosseguissem seus estudos e que
só poderiam trabalhar em coisas simples.
É possível afirmar, de acordo com Bourdieu
(1998, p. 47), que o destino dos alunos surdos

[...] é continuamente lembrado pela


experiência direta ou mediata e pela estatística
intuitiva das derrotas e dos êxitos parciais das
crianças de seu meio e também, mais
indiretamente, pelas apreciações do professor
[...] que leva em conta, consciente ou
inconscientemente, a origem social de seus
alunos [...].
Além disso, a permanência dos surdos na escola,
por longos anos, sem receberem escolarização compatível
com suas capacidades, traz como resultado uma exclusão
que, segundo Bourdieu (1998), é mais estigmatizante e
mais total do que era no passado, na medida em que,
aparentemente, esses alunos tiveram sua chance.
Prosseguindo o raciocínio desse autor, a instituição escolar

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 185


tende a ser considerada uma “[...] espécie de terra
prometida semelhante ao horizonte, que recua na medida
em que se avança na sua direção” (p. 221).
Com relação à comunicação, outra centralidade
neste estudo, pôde-se verificar que os professores
conservavam os procedimentos tradicionais para a
transmissão dos conteúdos das disciplinas. Usavam o
método expositivo tradicional, escrevendo na lousa e
dirigindo-se oralmente para a classe, e mesmo quando
esses professores afirmavam dar atenção mais
individualizada aos alunos, na realidade ela consistia nas
sucessivas aproximações físicas superficiais do professor
em relação ao aluno. Outras pesquisas como as de Góes e
Laplane (2004) e Tartuci (2001) também apontaram que
os procedimentos de ensino adotados pelos professores
do ensino regular com alunos surdos inseridos em seu
grupo-classe não favoreciam a aprendizagem e tão pouco
a interação entre alunos surdos e ouvintes e aluno surdo e
professor.
De acordo com Gimeno Sacristán (1999), foi
possível afirmar que as práticas utilizadas pelos professores
no ensino dos diversos componentes curriculares
decorrem da cristalização das ações, as quais, ao serem
reconhecidas por todos, tornam-se institucionalizadas.
Nesse sentido as ações dos professores do ensino regular,
com relação aos alunos surdos, devem ser compreendidas
considerando-se o processo de institucionalização das
práticas. Os professores do ensino regular de 5ª a 8ª série
tiveram uma formação voltada ao atendimento do aluno
normal e, mesmo com pensamentos diversos e
procedimentos distintos, a tônica básica de atuação é a
língua oral, e justificavam-se com o não preparo em lidar
com o aluno surdo. As afirmações dos professores do ensino
regular, sujeitos da pesquisa apontavam maior
preocupação em relação à comunicação com os alunos

186 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


surdos do que em relação aos conteúdos do ensino.
Da mesma forma, os professores da educação
especial de surdos enfatizam o ensino da comunicação em
detrimento dos conteúdos escolares, uma prática
consolidada historicamente na educação de surdos.
Considerando esses elementos, é possível
apontar a presença de disposições gerais metodológicas
quanto ao modo de ensino generalizado na docência,
práticas arraigadas e histórica e coletivamente
disseminadas, compondo parte do habitus docente.
Entre outras práticas encontradas na escola que
mereceram atenção, uma diz respeito à Hora de Trabalho
Pedagógico Coletivo (HTPC) instituída pela Lei
Complementar 836/97. Do ponto de vista de Hargreaves
(1998), o coletivo é condição importante para o
desenvolvimento da escola e para o crescimento
profissional dos professores, considerando que, em grupo,
eles poderiam refletir sobre as ações já executadas e tomar
as decisões para as futuras. Segundo Hargreaves (1998,
p. 209), se uma das heresias mais proeminentes da
mudança educativa é a da cultura do individualismo, então
a colaboração e a colegialidade ocupam um lugar central
nas ortodoxias das mudanças.
Na pesquisa que desenvolvi, verifiquei que a
organização da HTPC na escola não estava favorecendo a
colaboração e a colegialidade, pois as HTPC aconteciam
por nível de modalidade: a do ensino fundamental separada
por ciclo (ciclo I e ciclo II), e a HTPC da educação especial.
É possível identificar essa forma de organização das HTPC
dessa escola com o que o autor denomina cultura
balcanizada. Segundo ele, a forma balcanizada da cultura
dos professores é definida por padrões particulares de
interação entre os docentes. Tais padrões consistem,
essencialmente, em situações em que os professores
trabalham, não em isolamento, nem com a maior parte

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 187


dos professores, considerando-se a escola com um todo,
mas em subgrupos menores, no interior da escola, tais como
o sub-grupo dos professores de 1ª a 4ª série, o sub-grupo
dos professores de 5ª a 8ª série e o sub-grupo dos
professores da educação especial. Segundo o autor, o que
está em jogo nessa forma de trabalho, não são as vantagens
e as desvantagens gerais dos professores trabalharem em
conjunto ou em grupos menores, mas sim as configurações
particulares que tais formas de associação podem assumir,
bem como os seus efeitos. Nas culturas balcanizadas podem
ser identificadas quatro qualidades adicionais, quer entre
os professores, quer em outros grupos: a permeabilidade
baixa (sentimento de pertença a grupos múltiplos é pouco
comum), a permanência elevada (forte permanência, ao
longo do tempo, com pouca mobilidade dos professores
entre os grupos.), a identificação pessoal (os professores
passam a ver-se a si próprios, não como docente em geral,
mas especificamente como professor do ciclo I, de
Matemática, de Ciências, ou de educação especial) a
compleição política (As promoções, o status e os recursos
são freqüentemente distribuídos e concretizados por via
da pertença a estas subculturas. Nesse tipo de organização,
os bens não são igualmente distribuídos, nem contestados
em igualdade de circunstâncias pelas diferentes
subculturas).
A organização dos cursos de formação dos
professores, entre nós separados em formação para
educação infantil, para as séries iniciais do ensino
fundamental, ensino fundamental, de 5ª à 8ª série, para
lecionar as diferentes disciplinas do currículo -
Matemática, Português, História, Geografia, Ciências e
Arte, segundo o conceito de Hargreaves (1998), provoca
formas particulares de construção das suas identidades.
Essas situações apontadas pelo autor puderam
ser verificadas na escola, pois os subgrupos eram formados

188 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


por ciclos (I e II), e por período de aula, no que tange aos
professores das classes regulares e ao grupo da educação
especial.
É possível que a organização das HTPC da
escola possa ser identificada com os tipos de culturas
balcanizadas expostos por Hargreaves (1998), pois, na
realidade, as HTPC não propiciavam a aprendizagem
coletiva dos professores. Da forma como estavam
organizadas, não poderiam ser úteis à superação das
práticas calcadas no princípio da diferenciação, e tendiam
a criar o mito de imutabilidade entre o corpo docente,
levando - o à não percepção de seu interesse pela mudança
e da capacidade de a realizar. Desse ponto de vista, a
permanência desse tipo de cultura, que na realidade
fragmenta o trabalho da escola e dos docentes, não traz
benefícios, nem para os alunos surdos, nem para os demais.
É preciso ressaltar, no entanto, que a política da inclusão
só se efetivará no interior da escola quando todos os
agentes forem envolvidos no processo. Para Hargreaves
(1998):

Um dos paradigmas mais prometedores que


surgiram na idade pós-moderna é o da
colaboração, enquanto princípio articulador e
integrador da acção, da planificação, da cultura,
do desenvolvimento, da organização e da
investigação. (p. 277)

Por outro lado, o desenvolvimento dessa prática


se relaciona com as condições de organização, pois deixa
transparecer certa falta de interesse, devido à ausência
de vários professores, conforme observou a orientadora,
e à falta de aprofundamento sobre o tema proposto para
discussão, “A escola dos meus sonhos”, de Rubem Alves,
quando na realidade os professores se deixaram conduzir

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 189


pela coordenadora que, sutilmente, consciente ou
inconscientemente, atribuía apenas aos professores a
responsabilidade pela concretização dessa escola
idealizada. No entanto, a escola como um espaço ideal não
existe:

[...] nunca existiram nas escolas convívios


felizes [...] estamos desmistificando termos que
não conta da realidade. Por exemplo, a
comunidade escolar, tão proclamada em
discursos adocicados, como se a escola devesse
ser a expressão mais perfeita da convivência
humana. Quem inventou que ensinar, educar
é sinômino de convívio feliz? porque nunca
existiram nas escolas convívios tão felizes [...]
É impressionante a quantidade de imaginários
ultrapassados, que povoam o universo
educacional e que povoam a representação
social da escola. (ARROYO, 2004, p. 47)

Nos Conselhos de Classe e Série, ciclo II,


relativos ao primeiro semestre de 2003, houve
participação da direção, coordenação, dos professores de
ensino regular e de uma professora da educação especial.
Participaram, também, pais e representantes da APM, e
alunos representantes de séries. Avaliaram-se as
atividades do primeiro semestre e o desempenho
acadêmico dos alunos. Verifiquei que, embora a professora
da educação especial estivesse presente para passar os
resultados da avaliação do desempenho dos alunos da
inserção parcial e para tomar conhecimento dos resultados
dos alunos da inserção total, não se fez qualquer referência
específica aos alunos surdos. A preocupação maior da
direção da escola pareceu ser com relação às menções
atribuídas aos alunos, enfatizando que os professores
deveriam avaliar o aluno no todo (nos aspectos afetivo,

190 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


cognitivo e social), e que os professores deveriam ter
cuidado com a menção C, pois isso poderia prejudicar o
aluno futuramente. Observei que alguns professores
pareciam não concordar com a visão da direção, porém
não apresentaram objeção, submetendo-se às suas
decisões e comentários. De todo modo, essa era uma
oportunidade em que o debate poderia vigorar, e uma
forma de troca real de informações e conhecimentos para
o aperfeiçoamento não foi desenvolvida.
A análise dos depoimentos e das observações
das atuações dos professores permite apontar uma outra
face desse cenário, pois foi possível flagrar aspectos que
os autores aqui utilizados denominam de rupturas ou
alterações nessa realidade a partir da inserção dos alunos
surdos nas classes regulares.
Percebe-se que alguns professores parecem
estar diante de dilemas frente à inserção de alunos surdos
nas classes comuns, uma situação complexa que exige
tomada de decisões que tendem a romper a conexão
pensamento e ação tradicional, segundo Pacheco (1995),
a partir de considerações de Zabalza. Diante da
impossibilidade de tomar uma decisão adequada à situação
que se lhe apresenta, muitas vezes, os professores são
invadidos por uma sensação de fracasso ou de dúvida,
como muitos se manifestaram.
Se as reformas educacionais, por um lado,
provocam turbulências no cotidiano da escola, porque “Na
pressa política de engendrar reformas, as vozes dos
docentes têm sido largamente negligenciadas, as suas
opiniões anuladas e as suas preocupações postas de lado”
(HARGREAVES, 1998, p. 7), por outro lado elas poderiam
representar oportunidade para a escola sair do seu estado
de inércia e se movimentar na direção da construção de
uma realidade nova, a partir da reflexão das ações que
têm sido desenvolvidas no seu interior, superando as

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 191


práticas que se encontram cristalizadas e que não atendem
às exigências atuais da educação.
A análise dos dados obtidos, por exemplo,
revelou que os professores da educação especial
procuravam alternativas de atendimento as quais, do seu
ponto de vista, atenderiam às necessidades educacionais
dos alunos surdos, mas não conseguiram superar o conjunto
das práticas que foram compartilhadas, sedimentadas ao
longo do tempo e que se expressavam nas ações e na
tomada de decisões sobre a vida desses alunos no interior
da escola. Assim, encaminhavam esses alunos para as
classes do ensino comum de uma forma que eles
continuavam dependentes dos serviços de apoio
pedagógico existente, e eram atendidos em espaços e
tempos diferentes dos da classe comum, evidenciando-se,
portanto, a diferença entre os alunos surdos e os ouvintes.
Vários professores comentaram sobre as
necessidades sentidas por eles em alterar algo de seu
padrão de atuação. Ir mais devagar, adequando-se ao
ritmo dos surdos; passar texto na lousa, coisa que não
fazem quando não há aluno surdo na classe; preocupar-se
com o filme legendado, e não apenas com o dublado;
preocupação com o desenho, para explicar ainda melhor o
que já explicaram, foram algumas das manifestações de
professores as quais podem ser creditadas à alteração
provocada pela inserção desses alunos nas classes
regulares. Além disso, a relação interpessoal com as
professoras da classe especial, apesar de incipiente, passou
a ocorrer principalmente por causa da LIBRAS.
Do mesmo modo, as professoras da educação
especial passaram a se preocupar com os conteúdos
curriculares, procurando os professores dos diversos
componentes para poder desempenhar sua função nas
aulas de Ciências, História e Geografia ou para sanar as
dificuldades dos alunos. Tais modificações, entretanto, são

192 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


por demais superficiais, mediante o volume esperado.
A análise dos dados desta pesquisa permitiu
compor um quadro da situação da inserção do aluno surdo
nas classes do ensino regular. Verificou-se o distanciamento
existente entre as políticas da educação inclusiva e as
práticas escolares.
Embora se enfatize que a inclusão é a forma
mais democrática da educação e a possibilidade de
oferecimento de ensino de qualidade para todos – incluindo
aí as pessoas que possuem algum tipo de deficiência, tendo
em vista a inclusão social –, as práticas observadas nessa
escola são baseadas, ainda, em uma concepção
homogeneizadora do ensino, explicitada de forma diversa.
Tal forma de pensar e concretizar a educação
permite concluir que a organização opera dispersando os
alunos surdos para fora da classe especial, com a intenção
de torná-los aptos a freqüentar o ensino comum. No
entanto, a inclusão na classe comum é feita parcialmente
e, mesmo quando a inserção é integral, mantém a
dependência da sala de recursos. Nesse movimento de vai
e vem entre a classe especial/sala de recursos e a classe
comum, vai-se reiterando, constantemente, a incapacidade
do aluno para aprender, dando margem à disseminação
crescente, no interior da escola, de crenças e expectativas
negativas em relação ao aluno surdo. Isso talvez possa
explicar as ações dos professores do ensino comum, que,
na realidade, na maioria dos casos, só recebem o aluno na
sua classe, mas, de fato, não atuam na direção de criar
estratégias que favoreçam sua aprendizagem.
Nesse sentido, pode-se afirmar que a melhoria
do ensino e a introdução de inovações passam pela
compreensão de como os professores percebem a
realização do ensino pela aceitação crítica das justificativas
que apresentam e pela “desnormatização” do ensino
(PACHECO, 1995). Só assim poderá haver condições para

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 193


atender a todos os alunos indistintamente e independente
de suas condições pessoais e de vida. Por outro lado, é
preciso destacar que o ensino não depende somente das
intenções do professor, mas também da situação concreta
de sala de aula e das condições objetivas de trabalho, de
organização da escola em diversos aspectos, da formação
inicial e continuada dos professores e demais agentes
educativos.
Nesse sentido, para se inserir o aluno surdo no
ensino regular, é preciso que se proporcionem condições
para que os seus agentes, coletivamente, reflitam sobre
as ações a serem desenvolvidas e, a partir disso, construam
novos conhecimentos sobre aquela realidade escolar.
Assim, há que se repensar também a formação
inicial dos professores e seu ingresso na profissão,
conforme observações de vários autores. Os estudos sobre
pensamento e ação do professor são apontados por
Pacheco (1995) como importantes auxiliares para a
reconceptualização do professor e inovações nos programas
de formação.
Aos professores da educação especial também
cabe parte do processo, pois tem sido atribuída a eles a
total responsabilidade sobre os destinos dos alunos
deficientes no interior da escola e mesmo fora dela, o que
desenvolve, muitas vezes, uma relação de dependência do
surdo em relação a esses profissionais. Por sua vez, esse
profissional tem freqüentemente, irrefletidamente,
assumido essa responsabilidade, evidenciando-se aí uma
relação de poder: como se tivesse total conhecimento
sobre o aluno e isso lhe outorgasse plenos direitos sobre
ele e, por isso, sua formação deverá ser urgentemente
repensada.
Assim, no atual momento da educação inclusiva,
voltada sobretudo aos deficientes, verifica-se a tensão
entre o discurso oficial sobre a democratização do ensino

194 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


e as ações da escola, quando se depara com práticas
pedagógicas que ratificam a diferença dos tratamentos
dispensados em face da incapacidade de aprender dos
alunos surdos.
Para a realização deste estudo, adentrei a escola
a ali permaneci por um semestre, com o objetivo de obter
dados suficientes para a pesquisa. Evidentemente, muitos
aspectos escaparam ao meu olhar, mas apesar disso, foi
possível verificar as contradições vivenciadas pela escola,
fruto das tradições criadas social e educacionalmente sobre
as crianças surdas. São contradições próprias das situações
vividas em nossa sociedade que me permitem, ao final,
defender a tese de que a busca da inclusão dos alunos
surdos nas classes regulares provoca, nas escolas, uma
tensão entre a proposta de inclusão como tentativa de
democratização, pelo ingresso e permanência com
qualidade, e a reiteração da exclusão, sem se perder a
esperança de uma só e boa escola para todos.

Considerações sobre os resultados da pesquisa

O início deste estudo decorreu da manutenção


das minhas inquietações com o atendimento escolar de
crianças surdas.
Essas crianças e todas as outras com
modalidades diversas de deficiências, vêm sendo alvo de
ações políticas no campo educacional com a movimentação
internacional pela inclusão de todos nos sistemas
educacionais.
A partir dessas ações surgiu o questionamento
inicial deste estudo, qual seja, como estariam atuando os
professores das classes regulares quando contam com tais
crianças em suas turmas de alunos. Para obtenção de
informações, considerou-se importante a análise da
bibliografia e da legislação sobre o tema. Foi possível

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 195


perceber, então, que tais ações produzem, para a educação
brasileira, propostas de dupla transição: passa-se de um
modelo de educação especial com classes separadas do
restante da escola, para um modelo que a secundariza ou
até a elimina e, além disso, desloca a responsabilização da
aprendizagem para as condições reais da escola tirando-a
do alunado.
Na primeira etapa da pesquisa buscou-se
delinear um conjunto de referências sobre o atendimento
escolar em geral abordando questões de rendimento,
fracasso e abrangência, incluindo aí as crianças e jovens
deficientes.
O resultado desse rastreamento foi a detecção
de dados de pesquisas demonstrativos de exclusão de
grande contingente de alunos da e na escola, mantendo-
se a visão e as expectativas de impossibilidade de avanços
escolares para muitos apesar da legislação federal e de toda
a movimentação internacional em favor da expansão da
escolaridade.
Esse levantamento possibilitou ir construindo
o objeto de investigação com ampliação dos
questionamentos iniciais e delineamento do ciclo II como
campo empírico devido à inexistência de estudos nessa
faixa de escolaridade na direção que se pretendia, além
de verificar a existência real de escola que promovia um
sistema duplo de inserção de alunos (parcial e total).
Com o auxílio dos estudos teóricos
empreendidos, ampliou-se o escopo para verificar os apoios
e bases culturais conformadoras das ações docentes.
Considerou-se relevante analisar, portanto, manifestações
dos professores e suas ações, ou seja, formas de pensar,
sentir e agir como indicadores de facetas do habitus
docente, principalmente por sua responsabilidade na
implantação das medidas anunciadas.
O ingresso na instituição para levantamento dos

196 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


dados por meio de entrevista, de observação e vivência
de situações variadas do dia a dia, permitiu identificar a
atuação dos professores e como se manifestaram sobre
toda a situação, organizando-se os dados em três
agrupamentos: procedimentos de ensino, dificuldades
enfrentadas e expectativas quanto à aprendizagem e
prosseguimento de estudos ao lado da contribuição da
escola para o futuro desses alunos surdos. Esses dados
descritos e analisados, consistiram o núcleo central da
pesquisa.
No decorrer do estudo acrescentou-se a
entrevista com as professoras da educação especial pelo
envolvimento na definição dos alunos a serem enviados
para as classes regulares e por continuarem atendendo
esses alunos na sala de recursos.
Do conjunto dos dados foi possível identificar
de modo detalhado uma organização escolar, em que se
mesclam o atendimento específico a esses alunos de ciclo
II em classes regulares e atendimento em salas de
recursos/classe especial por meio de duas modalidades de
inserção: parcial e total.
A atuação dos professores das classes regulares
– objeto central deste estudo – mostrou-se diversificada
quanto aos procedimentos de ensino, modo de organizar o
espaço das salas de aula, materiais e seu uso, relações com
os alunos, seleção de conteúdos, quer para turmas como
um todo, quer para os alunos surdos.
Para essa atuação, os professores encontravam
dificuldades, sobretudo as relativas ao processo de
comunicação – como seria esperado – em função de
ausência formativa na área específica da deficiência.
Parte dessas dificuldades era superada com
alguns auxílios das professoras da educação especial. Estas,
por sua vez, também tinham dificuldades quanto aos
componentes curriculares, solicitando auxílio aos

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 197


professores das diversas séries. Explicitaram-se, por tais
dificuldades, as lacunas formativas de ambos os tipos de
profissionais para atuar nessas circunstâncias.
Explicitaram-se, como decorrência, as razões das
defasagens de aprendizagem dos deficientes, quando
comparada com a dos ouvintes. Este, no entanto, não foi
um foco explorado neste estudo por não constituir o objeto
central cabendo novas pesquisas nessa direção.
A atuação dos professores das classes regulares
era pautada por um conjunto de expectativas, muitas delas
explicitadoras das crenças sobre as (im)possibilidades
desses alunos surdos aprenderem e continuarem os
estudos, expectativas bem concretizadas nas atuações em
sala de aula e parcial, ou veladamente, reveladas em suas
manifestações verbais.
Esses dados de atuação e do escasso apoio
institucional que recebiam para efetuarem seu trabalho
têm relações variadas com as mudanças propostas
oficialmente, com a organização do trabalho da escola, com
a natureza específica dos diversos componentes
curriculares, com os modos de pensar sobre a escolaridade
e sobre as condições dos alunos.
No decorrer da descrição e análise dos dados
foram identificadas as precárias condições de trabalho e
da organização do trabalho pedagógico. Identificou-se que
os professores não foram consultados para receber os
alunos – aliás como também não são para o caso dos
ouvintes -, que essa inserção foi eivada de conflitos e
desencontros demonstradores da contradição em relação
à própria atuação e em relação à legislação.
Evidenciou-se a possibilidade das escolas quanto
à interpretação das diretrizes atuais sobre a educação de
deficientes na educação básica do encontro de alternativas
para segui-las. Esse é um dos indicadores da cultura
escolar no que tange á fragmentação de sua organização e

198 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


à sua capacidade de buscar soluções que não a
desequilibrem no seu funcionamento, ainda que em
prejuízo do alunado.
A organização do trabalho da escola manteve
os alunos surdos apartados, pois, desde o plano, passando
pela solução encontrada para a inclusão e pela atuação dos
professores, verificaram-se esferas de realidade em que
a inclusão não se efetivava.
As bases culturais da atuação dos professores
se revelaram diretamente pelos procedimentos adotados,
pelas manifestações das dificuldades e expectativas. Ainda
que com diversificação, por um lado, por outro são
professores que manifestam e atuam buscando a
consecução da – e contando com a – homogeneidade das
turmas, em maior ou menor grau, considerando pequenas
diferenças de um docente para outro. Manifestam
expectativas de que os alunos continuem os estudos,
porém, de modo não enfático e acompanhado de ceticismo
quanto à consecução dessa possibilidade. Essas
expectativas parecem ser o modo de expressão da crença
de que a surdez é condição interceptadora da capacidade
de aprender, não só da parte dos professores regulares,
mas também, para os especialistas da educação especial
que mantêm alunos com 21 anos em sala de aula regular
de ciclo II e de recursos. São pontos importantes para
novos estudos sobre a excepcionalidade não só dos alunos,
mas das medidas oficiais, pois não se trata de permanência
qualificada do alunado.
A hipótese inicialmente estipulada foi
interessante ponto orientador do estudo. Verificou-se, de
fato, que a organização escolar e a atuação dos professores
podem ser caracterizadas como práticas, reveladoras do
atendimento segregador desses alunos surdos, expressão
de perspectivas históricas e sedimentadas socialmente e
no universo escolar. No decorrer do estudo, as hipóteses

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 199


desdobradas foram parcialmente confirmadas. Foi possível
obter evidências de parcelas da cultura docente
constitutivas do habitus docente quanto a modos regulares
de atuar como já explicitado. No entanto, foram
encontrados professores que alteraram suas rotinas para
atender alunos com dificuldades, incluindo os surdos, fato
que permite considerar as possibilidades de mudança ainda
que muito diminutas e parcelares.
É preciso, no entanto, a realização de novas
pesquisas que explorem a relação entre os professores da
educação especial e do ensino regular; tendo como
perspectiva as diferentes disciplinas do currículo escolar.
Para trabalhos futuros poderão ser
aprofundadas e exploradas algumas questões aqui
levantadas e outras complementares.

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204 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


PRÁTICAS DE AMBIGÜIDADES
ESTRUTURAIS E A
REITERAÇÃO DO MODELO
MÉDICO-PSICOLÓGICO:
A FORMAÇÃO DE PROFESSORES
DE EDUCAÇÃO ESPECIAL
NA UFSC

Maria Helena Michels


UFSC/SC

Introdução

Este texto é fruto de minha tese de doutorado,


defendida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(PUC/SP) no ano de 2004. É com base nela que elaboro
este artigo no qual tenho a intenção de discutir a formação
de professores para a educação especial, em nível de
graduação, no curso de Pedagogia. Para tanto, apresento
alguns elementos sobre como abordo a formação de
professores e preocupações que privilegio para pensar essa
formação. Procuro, também, apresentar alguns dados
sobre a formação de professores para essa área,
especificamente aqueles referentes ao Curso de Pedagogia
da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), entre
os anos de 1998 a 2001. Os dados referem-se à
organização formal do curso - no que concerne a objetivos,
certificação, critérios de acesso, acompanhamento formal -,
aos sujeitos envolvidos nessa formação - alunos e

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 205


professores -, ao tempo e ao espaço nos quais o curso foi
organizado, bem como a organização curricular.
Compreendo que esses elementos articulados entre si e
analisados sob determinadas bases teóricas poderão
auxiliar na compreensão de como vem ocorrendo tal
formação no Brasil.
Primeiramente procurarei apresentar algumas
bases teóricas que sustentam meus estudos, buscando as
contribuições de Bourdieu (1989; 1990; 2001; 2003);
Viñao Frago (1996; 1998); Escolano (2000); Montoya
(1997).
À luz dessa base teórica, elegendo categorias
de análise, apresento alguns dados empíricos sobre a
formação de professores para a Educação Especial, que
são compreendidos como expressão das ambigüidades
presentes historicamente na formação desses profissionais.
Nas considerações finais, apresento algumas
conclusões acerca das ambigüidades percebidas nessa
formação, bem como destaco a permanência do modelo
médico-psicológico em sua base teórica, tendo como
sustentação teórica principal as contribuições de Skrtic
(1996).

Algumas categorias de análise: ambigüidade, habitus,


tempo e espaço

Ao analisarmos a história da formação de


professores e, especificamente, aquela destinada à
educação especial, no Brasil, observamos que esta pode
ocorrer de muitas maneiras, como por exemplo: em nível
médio ou superior; em cursos regulares ou emergenciais;
na formação inicial ou na formação em serviço, entre
outras possibilidades. Ou seja, a ambigüidade, na formação
de professores, apresenta-se com mais de uma
possibilidade, como múltiplas possibilidades de definição,

206 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


o que gera indefinição. Há, sim, indicações e
encaminhamentos de como deve ocorrer essa formação,
mas, normalmente, considera-se mais que uma
possibilidade. A “ambigüidade”, então, é considerada aqui
como categoria conceitual. Com base nela analisaremos a
formação de professores, em nível superior, para atender
alunos considerados deficientes.
Porém não podemos pensar que esta
ambigüidade é própria ou específica da formação de
professores. Ao contrário, ela é constituída e constituinte
na/da forma como a sociedade está organizada. É na
organização capitalista que a formação em tela ocorreu e
está sendo analisada, e essa traz a ambigüidade como sua
expressão.18 Em outras palavras, a sociedade apresenta-
se de maneira ambígua nas suas diferentes manifestações
e a formação de professores é uma delas. Esta, porém,
não pode ser confundida com a contradição, também
presente na sociedade capitalista, mas que está na sua
própria gênese. Para Cury (1995, p. 30), a

contradição sempre expressa uma relação de


conflito no devir do real. Essa relação se dá na
definição de um elemento pelo que ele não é.
Assim, cada coisa exige a existência do seu
contrário, como determinação e negação do
outro. As propriedades das coisas decorrem
dessa determinação recíproca e não das relações
de exterioridade.
Enquanto a contradição manifesta embates nas
relações, a ambigüidade revela múltiplas possibilidades que
não são consideradas excludentes como, por exemplo,
formar o professor em nível médio e também em nível
superior.
Parto, então, do pressuposto de que a formação
de professores no Brasil está marcada por ambigüidades

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 207


tais como as referentes ao locus, ao nível no qual ela ocorre,
ao tempo dedicado para ela, e a quem ela se destina.
Essas ambigüidades, historicamente presentes
na formação de professores, aparecem, muitas vezes, de
maneira naturalizada, constituindo-se no que Bourdieu
denomina de habitus.
Buscando o conceito de habitus em Bourdieu,
podemos entendê-lo como uma certa disposição
incorporada de valores, normas, gostos, entre outros, que
estão presentes no nosso cotidiano, que formam nossa
“consciência incorporada” sem que nos demos conta disso.
Para Bourdieu (2003, p. 113), o habitus

[...] representa a inércia do grupo, depositada


em cada organismo sob a forma de esquemas
de percepção, apreciação e ação que tendem,
com mais firmeza do que todas as normas
explícitas (aliás, geralmente congruentes com
essas disposições), a assegurar a conformidade
das práticas para além das gerações. O habitus,
isto é, o organismo do qual o grupo se apropriou
e que é apropriado ao grupo, funciona como o
suporte material da memória coletiva:
instrumento de um grupo, tende a reproduzir
nos sucessores o que foi adquirido pelos
predecessores, ou, simplesmente, os
predecessores nos sucessores. A hereditariedade
social dos caracteres adquiridos, assegurada por
ele, oferece ao grupo um dos meios mais
eficazes para perpetuar-se enquanto grupo e
transcender os limites da finitude biológica no
sentido de salvaguardar sua maneira distinta
de existir. Essa espécie de tendência do grupo
para perseverar em seu ser não tem sujeito
propriamente dito, ainda que possa encarnar-
se, a cada momento, em um ou outro de seus

208 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


membros; [...] mais profundo, também, do que
as estratégias conscientes pelas quais os agentes
entendem agir expressamente sobre o seu
futuro e moldá-lo conforme a imagem do
passado, como as disposições testamentárias ou
até as normas explícitas, simples chamadas à
ordem, isto é, ao provável, cuja eficácia é
redobrada por sua intervenção (Grifos do
autor).
Desta maneira, o habitus apresenta-se como
algo dado, não de maneira explícita ou implícita, mas
naturalizado, que dispensa questionamentos e que
perpassa as sucessivas gerações como disposições
individuais.
Para Bourdieu (1990, p. 130), a noção de
habitus é usada para

[...] explicar o fato de as condutas [...]


adquirirem a forma de seqüências
objetivamente orientadas em referência a um
fim, sem serem necessariamente produtos nem
de uma estratégia consciente, nem de uma
determinação mecânica. Os agentes de algum
modo caem na sua própria prática, mais do que
as escolhem de acordo com um livre projeto,
ou do que são empurrados para ela por uma
coação mecânica. Se isso acontece dessa
maneira, é porque o habitus, sistemas de
disposições adquiridas na relação com um
determinado campo, tornou-se eficiente,
operante [...].

Nas palavras de Bourdieu (2001, p. 78 e 79),

O conceito de habitus tem por função


primordial lembrar com ênfase que nossas

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 209


ações possuem mais freqüentemente por
princípio o senso prático do que o cálculo
racional, ou que, contra a visão descontinuísta
e atualista tão comum às filosofias da
consciência [...] e às filosofias mecanicistas [...],
o passado permanece presente e ativo nas
disposições por ele produzidas; ou ainda que,
contra a visão atomista proposta por certa
psicologia experimental, ligada à análise das
aptidões ou das atitudes separadas [...] e contra
a representação [...] que opõe os gostos nobres,
ditos “puros”, e os gostos elementares, ou
alimentares, os agentes sociais possuem, com
muito maior freqüência do que se poderia
esperar, disposições (gostos, por exemplo) mais
sistemáticas do que se poderia acreditar (Grifo
do autor).

Porém, o habitus não pode ser confundido com


inculcação, pois o primeiro não ocorre por processo
mecânico de aprendizagem, no qual se desenha um destino
(social ou individual) fixo (BOURDIEU, 2001). O fato de
constituir-se em um habitus não retira a possibilidade de
mudança no encaminhamento dado. Ao contrário,
entendendo que a realidade é contraditória é que podemos
perceber que esta “disposição” está intrinsecamente
relacionada a incertezas colocadas pela vida social. O
próprio autor aponta que, mesmo em “setores mais
regulares e enrijecidos da estrutura social”, as implicações
desta dialética não são menores ou menos importantes.
Podemos depreender, então, que, mesmo havendo uma
determinada “disposição”, é nessa relação dialética que tal
ação se constituiu. Só pensaríamos o habitus como fixo,
imutável, atrelado a um “caráter” inato e a um “destino
socialmente constituído” se apreendêssemos sua noção de
maneira mecanicista (BOURDIEU, 2001).

210 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


É buscando apreender o habitus nessa relação
dialética que o entendo como “tecido tramado” nas relações
entre os homens que, como em qualquer ação humana,
ocorre em um tempo e em um espaço determinados. O
tempo e o espaço também são entendidos como
construções sociais e estão imbricados entre si. Para Viñao
Frago (1996, p. 61),

Así como el tiempo es una construcción social,


una relación sensible – que puede ser sentida
– de una realidad invisible salvo por medios
indirectos, el espacio es algo visible y, en cierto
modo, hasta tangible y asible. El tiempo puede
ser también percibido, como se ha visto, a
través de diversos medios y modos, pero, en el
fondo, se siente como algo dado, no manejable
ni modificable. El espacio, sin embargo, puede
verse y, al menos en parte, modificarse. No a
voluntad, por supuesto. También, como el
tiempo, es posibilidad y limite. Sólo que, en
comparación con él, se percibe más como
posibilidad que como límite. Por otra parte, a
causa de su mayor densidad y apariencia
material, el espacio implica y afecta de modo
más directo a lo corporal y a lo objetual, a los
seres vivos - el ser humano entre ellos -, y a las
cosas u objeto; a su disposición o relación
espacial, a sus desplazamientos y a su
configuración como tales.

Neste sentido, o tempo e o espaço não são


categorias neutras (ESCOLANO, 2000). O tempo, em uma
perspectiva histórica, é uma construção social diversa e
plural, cultural e pedagógica, pessoal e institucional ¯
organizativa (VIÑAO FRAGO, 1996).
O tempo é considerado, aqui, como construído

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 211


social e historicamente pelos homens nas suas relações.
Da mesma maneira, o tempo nas escolas elementares, de
nível médio ou nas universidades também é construído
nas relações que permeiam essas instituições, sejam elas
pedagógicas, sejam administrativas ou burocráticas. Para
Viñao Frago (1996, p. 59),

El tiempo escolar por excelencia, el de la carrera


o ‘cursus’ académicos, desde el primer año de
la educación infantil hasta el último de la
universitaria, hoy ya prolongado con los cada
vez más generalizados ‘masters’, cursos de
postgrado y doctorado, se constituye a partir
del mismo. Deviene un tiempo social y
culturalmente construido. No dado sino
construido por los mismos seres humanos que
han olvidado, quizás, el carácter histórico, y por
tanto relativo, de esta construcción a la vez
prescrita y vivida, impuesta y contestada, rígida
y adaptable, social e individual.

O tempo do qual se fala é uma relação e não um


fluxo. Viñao Frago (1996, p. 29) acrescenta ainda:

El tiempo humano, en cuanto construcción


social, es múltiple y plural. [...] Pero no sólo se
trata de una pluralidad intercultural. Es
también intracultural. Es decir, la arquitectura
temporal, las modalidades o niveles del tiempo
humano, difieren de unas sociedades u otras y,
a su vez, dentro de cada sociedad. O, si se
prefiere, cada sociedad posee una estructura o
relación propia de tiempos diversos. No de un
solo tiempo, sino de una diversidad de
modalidades o niveles del mismo.

A relação de tempo na proposição para a

212 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


formação de professores está diretamente vinculada ao
currículo proposto. Não falo aqui somente do currículo
prescrito, mas o currículo como forma organizativa da
sociedade (GIMENO SACRISTÁN, 2000). Esta
perpetuação do papel da escola e do currículo chega à escola
pelos professores que, conscientes ou não, são formados
dentro de uma determinada ideologia. Ou seja, os
professores também estão embrenhados neste contexto
ideológico. Para Bourdieu (1989, p. 35),

[...] aunque la escuela sea sólo un agente de


socialización en otros aspectos, todo este
conjunto de rasgos que forman la ‘personalidad
intelectual’ de una sociedad – o más
exactamente de las clases cultas de esa sociedad
– está constituido o reforzado por el sistema de
enseñanza, profundamente marcado por una
historia singular y capaz de amoldar los
espíritus de los discentes y de los docentes, tanto
por el contenido como por el espíritu de la
cultura que transmite, e igualmente por los
métodos según los cuales se efectúan la
transmisión.

Se estes valores, crenças e compreensão de


mundo são transmitidos, em parte, pela educação, podemos
questionar qual modelo de formação de professores tem,
historicamente, marcado a área da educação especial.
É sabido que na formação de professores em
geral e, especificamente, na formação de professores para
a Educação Especial encontramos determinada
organização temporal, no caso do curso de Pedagogia, hoje,
estruturado por sistema de créditos, organização
semestral, ano letivo, seqüência de disciplinas (com pré-
requisitos), entre outros elementos que desenham um
determinado curso. Porém, o que temos historicamente

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 213


para o curso em questão é a categoria tempo flexibilizada,
tanto pela sua relação com o espaço (que também se
apresenta de maneira diversificada) como pelo tempo em
si, com carga horária de disciplinas, idade e momento
profissional dos alunos. Esses são alguns elementos que
configuram um determinado tempo para essa formação.
A organização curricular, em uma determinada
ordenação do espaço, também mostra indícios de como
vêm se formando os professores para a área na sua
proposição inicial. Nas palavras de Viñao Frago (1998, p.
78): “[...] a ordenação do espaço, sua configuração como
lugar, constitui um elemento significativo de currículo ¯
independentemente de que aqueles que o habitam
estejam, ou não, conscientes disso”.
Como busquei indicar, o espaço é parte
constituinte e constituidor dessa formação. Não somente
o espaço material, mas sua dimensão simbólica. Para
Montoya (1997, p. 19), “En todo diagrama espacial
subyacen estructuras simbólicas que hacen referencia a
modos de vivir y entender la realidad, a la que, a su vez,
conforman”.
O espaço, então, não é somente o espaço
percebido, mas um lugar apreendido culturalmente. Nas
palavras de Viñao Frago (1998, p. 78),

[...] todo espaço é um lugar percebido. A


percepção é um processo cultural. Por isso, não
percebemos espaços, mas lugares, isso é,
espaços elaborados, construídos. Espaços com
significados e representações de espaços.
Representações de espaço que se visualizam ou
contemplam, que se rememoram ou recordam,
mas que sempre levam consigo uma
interpretação determinada. Uma interpretação
que é o resultado não apenas da dimensão

214 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


material de tais espaços, como também de sua
dimensão simbólica.

Porém, não podemos perder de vista a


necessária articulação entre esse espaço (material e
simbólico) e o tempo, pois é nela, e não em um aspecto
isoladamente, que as relações se estabelecem.

O Curso de Pedagogia da UFSC: sua estrutura formal,


seus sujeitos, tempos e espaços constituindo uma
formação

Para desenvolver algumas reflexões referentes


à formação de professores para a educação especial
buscaram-se dados referentes ao Curso de Pedagogia da
Universidade Federal de Santa Catarina, especificamente
a habilitação educação especial, entre os anos de 1998 e
2001.
Nesse período existiam duas modalidades de
curso de graduação em Pedagogia ¯ habilitação educação
especial ¯ (regular e emergencial), que são aqui tomadas
como expressão de ambigüidades apresentadas na
formação de professores. A modalidade regular do curso
refere-se àquela oferecida por esta Universidade desde o
ano de 1980, que ocorre no espaço da universidade, com
corpo docente por ela selecionado, com alunos selecionados
no vestibular, entre outras características. A modalidade
emergencial, por sua vez, compunha o chamado Programa
Magister (parte integrante da política de formação de
professores do Estado de Santa Catarina). Esse Programa
caracterizou-se como formação em serviço, possibilitando
aos professores das redes públicas receberem diploma de
graduação. Ao mesmo tempo certificou os alunos na
graduação, o que o caracterizou como formação inicial.19
Esta modalidade ocorreu, majoritariamente, na Fundação

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 215


Catarinense de Educação Especial (FCEE) sendo suas aulas
ministradas nas sextas-feiras (período noturno), aos
sábados (em período integral) e durante o período de férias
das redes Municipais e Estadual de ensino.Os professores
foram contratados especificamente para ministrar aulas
nesta modalidade e os alunos selecionados em vestibular
específico.
Segundo consta no Regimento do Programa
Magister (Santa Catarina, 1998), a organização interna,
como carga horária, disciplinas, professores, entre outros,
deve ser estabelecida pela instituição que oferecer o curso.
O Programa Magister traz em sua proposição o
funcionamento, em caráter emergencial, daqueles cursos
de que as instituições de ensino superior já dispunham.
Desta maneira, por mais diferenças que existam entre uma
e outra modalidade, estas compõem um único curso.
A análise de documentos referentes à
proposição e à implementação do curso de Pedagogia na
UFSC como: relatório de exposição de motivos para a
implementação da habilitação em tela no curso regular;
projeto de extensão aprovado no colegiado, para a
implementação do curso emergencial, e resoluções
expedidas pela UFSC, relacionadas ao funcionamento
dessa universidade, bem como resoluções sobre a
organização e o funcionamento do Programa Magister no
Estado de Santa Catarina, entre outros materiais,
possibilitaram a apreensão das ambigüidades
apresentadas no curso em foco.

A estrutura formal do Curso de Pedagogia da UFSC

Compreendo “estrutura formal” como


componentes materiais e humanos da organização de uma
determinada instituição e, dentro dela, de um curso. Dessa
maneira, ao analisar alguns elementos que compõem tal

216 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


estrutura, busquei esclarecer a conformação do curso e,
ao mesmo tempo, perceber a permanência ou não de certas
disposições (habitus). Porém, esses elementos analisados
isoladamente não dariam conta de explicar sua
organização. Somente a relação entre eles possibilita
apreender o movimento desse processo que constitui uma
instituição e, no caso em foco, um curso, tal como nos indica
Fernández Enguita (2004, p. 93):

As organizações, incluídas as escolas, são um


conjunto de elementos materiais e humanos
destinados a um fim ou a um conjunto de fins.
Em si mesmos, tais elementos apenas
constituem um agregado, uma coleção de
singularidades, mas, unidos por uma série de
relações que, alcançando um nível maior de
complexidade, constituem uma estrutura,
formam um sistema. (Grifos no original)
Buscando relacionar os elementos materiais e
humanos constituintes da estrutura formal do curso de
Pedagogia da UFSC, especificamente aqueles referentes
à habilitação educação especial, é que optei por fazer
algumas análises sobre os objetivos apresentados pela
instituição para as duas modalidades de curso, a
certificação conferida aos alunos concluintes, os critérios
que nortearam a entrada desses alunos nesse curso, o
acompanhamento institucional destinado a cada
modalidade e a caracterização dos alunos e professores
que constituíram esse curso, na habilitação em foco.
Quanto aos objetivos do Curso de Pedagogia em
regime regular, estes foram formulados em 1995 e indicam
a busca da formação do pedagogo nas diversas habilitações
com fundamentação teórica e consciência crítica. Não há
objetivos específicos para cada uma das habilitações. Tal
fato parece distanciar essa formação da ação docente em

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 217


sala de aula, uma vez que não trata das especificidades de
cada uma delas. Ao mesmo tempo, aproxima-se do que
Scheibe e Aguiar (1999, p. 231) chamam de “[...] repúdio
à proposta do ‘especialista no professor’ no curso de
pedagogia”, pois não centra seu objetivo na divisão das
habilitações.
Na modalidade emergencial, a habilitação em
foco foi oferecida como licenciatura plena em educação
especial.20 Segundo documentos analisados (UFSC, 1998),
o objetivo foi formar em nível superior os professores das
Redes Estaduais e Municipais de Ensino visando a
integração/inclusão das crianças e adolescentes com
necessidades educativas especiais, no cotidiano da escola
regular.
Observa-se, então, que, neste caso, a
centralidade estava na formação do professor para a
Educação Especial e não outro professor.
Estes objetivos distintos parecem atribuir mais
de um sentido ao curso de Pedagogia da UFSC (nas suas
duas modalidades), indicando ambigüidades quanto ao
profissional que se pretende formar. Se a modalidade
regular busca formar o pedagogo para a Educação Especial
dentre as várias outras funções educacionais possíveis
(professor, supervisor, orientador, entre outros), a
modalidade emergencial, buscou a formação do professor
especialista em Educação Especial.
Quanto à certificação expedida, a modalidade
regular, após a reformulação curricular de 1995, teve como
proposta inicial a certificação em Licenciatura em
Pedagogia Séries Iniciais justaposta à habilitação escolhida.
Porém, a formação de base discutida e implantada na
UFSC – séries iniciais – não foi reconhecida como
habilitação pelo Conselho Estadual de Educação (CEE).
Dessa maneira, a reformulação não assegurou que os
diplomas fossem expedidos em séries iniciais, passando a

218 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


ser expedidos diplomas em Licenciatura em Pedagogia na
habilitação escolhida (Educação Especial; Orientação
Educacional; Supervisão Escolar; Educação Infantil).
Já a modalidade emergencial propôs,
inicialmente, que seus formandos tivessem suas
certificações em Pedagogia Habilitação Educação Especial.
Porém, durante o andamento do curso, com as
reformulações curriculares que ocorreram, buscou-se
asseverar a formação, também, para as séries iniciais. A
exemplo do que ocorreu na modalidade regular, o
Conselho Estadual de Educação (CEE) não permitiu tal
encaminhamento, e os diplomas foram expedidos somente
para a habilitação educação especial.
Percebe-se, então, que as duas modalidades
têm o mesmo encaminhamento em relação à certificação.
Porém, a modalidade regular sugere a formação, primeiro
do professor das séries iniciais e, no último ano, a formação
na habilitação específica. Já a modalidade emergencial
propõe a formação específica na habilitação educação
especial desde o seu início, mas reivindica a certificação
também para as séries iniciais. Também é possível inferir
que a modalidade regular tem a formação do especialista
calcada sobre a formação geral do professor. Esta
preocupação, porém, não está explicitamente presente na
modalidade emergencial, que, desde o seu início, procurou
formar o especialista, vindo a preocupar-se com a formação
geral do professor no decorrer do curso.
Em relação aos critérios de entrada no curso
de Pedagogia da UFSC houve critérios distintos nas duas
modalidades. Para a modalidade regular o critério é a
aprovação no concurso vestibular, tendo concluído o ensino
médio. Normalmente, são oferecidas 80 vagas por ano (40
por semestre) para o curso de Pedagogia, e após esse
ingresso, no sexto (6o) semestre, os alunos optam pela
habilitação desejada (educação infantil; orientação

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 219


educacional; supervisão escolar; educação especial).
Já para a modalidade emergencial, o Regimento
do Programa Magister é claro quando afirma que o
exercício da docência, tanto em escolas dos municípios
como do Estado, é o critério primeiro, seguido da conclusão
do ensino médio. O vestibular, para esta modalidade, foi
específico, organizado pelo Edital n° 004/GR/97, que
regulamentou as inscrições e a prova. Inicialmente, foram
abertas 50 vagas para a habilitação em foco. Esse número
parece ter sido eleito aleatoriamente, uma vez que não há
indicação de levantamentos ou estudos que mostrassem
qual seria a demanda real para essa formação.
Segundo documento da Secretaria do Programa
Magister do CED (UFSC, 1998, p. 2), “Cerca de 250
interessados se inscreveram para o vestibular do
Magister, concorrendo a 50 vagas; tamanha demanda
originou a criação de uma segunda turma [...], para mais
50 educadores”. Criaram-se, então, duas turmas de
Pedagogia – habilitação educação especial – Licenciatura
Plena, através do Programa Magister, na UFSC. Também
não há critérios explícitos acerca do limite em duas turmas,
uma vez que a demanda indicava a necessidade de mais
vagas.
Desta maneira, ao comparar as duas
modalidades (regular e emergencial) do curso de
Pedagogia da UFSC, percebem-se diferenças quanto aos
critérios e processos de acesso. Pode-se apreender,
também, que há uma cultura institucional na UFSC,
referente ao acesso ao curso de Pedagogia, que é ambígua,
pois ora permite a entrada de alunos com o ensino médio,
ora coloca como critério de entrada, na mesma instituição,
a atuação na área. Ao mesmo tempo, expressa a
permanência da provisoriedade da formação, tanto em
relação ao tipo de formação, quanto à organização
institucional, uma vez que, a cada momento, os critérios

220 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


de acesso são redefinidos. Além disso, observa-se uma
fragilização da justificativa para a criação da modalidade
emergencial na UFSC, uma vez que, em princípio, o curso
na sua modalidade regular não vetava o ingresso dos
professores (desde que estes tivessem ensino médio). Tal
modalidade também não disponibilizou nada de diferente
para quem nela ingressou já exercendo a profissão docente
(mudança na grade curricular, por exemplo).
O acompanhamento do curso nas duas
modalidades foi feito pelos respectivos colegiados de curso.
Esses colegiados, contudo, são compostos de maneiras
distintas, uma vez que cada modalidade conta com
possibilidades diferentes de participação de alunos e
professores.
Na modalidade regular, o colegiado é composto
por professores do Centro de Ciências da Educação, sejam
eles efetivos, sejam substitutos, independente de estarem
ou não atuando como professores do curso naquele
semestre. Esses professores representam os
Departamentos de Ensino que oferecem disciplinas ao
curso. Além dos professores, fazem parte do colegiado do
curso representantes discentes e de “[...] associações,
conselhos ou órgãos de classe regionais ou nacionais, que
não tenham vinculação com a UFSC” (UFSC, 1997). Esse
colegiado é presidido pelo chefe ou subchefe do
Departamento que oferecer mais de 50% da carga horária
total do curso ou, quando nenhum departamento cumprir
esse requisito, o Conselho da Unidade de Ensino elegerá o
presidente. Esse colegiado de curso faz parte da estrutura
organizacional do CED e está vinculado diretamente à
Direção do Centro. Algumas de suas decisões são
consideradas de caráter normativo, como por exemplo:
turno de funcionamento do curso, normas que busquem
garantir a qualidade didático-pedagógica, estabelecimento
do perfil profissional e proposta do curso (UFSC, 1997).

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 221


Outras podem ser definidas como de caráter deliberativo,
como as referentes a pedidos de prorrogação de prazo para
a conclusão do curso, revalidação de diplomas de curso de
Graduação, análise de plano de ensino, entre outras
imputações.
Na modalidade emergencial, o colegiado foi
composto pelos professores e representantes discentes,
tendo como presidente a coordenadora ou a vice-
coordenadora do curso (emergencial). Salienta-se, porém,
que, segundo a regulamentação da UFSC referente aos
colegiados dos cursos de Graduação em caráter especial
(UFSC, 1995), os representantes docentes nesse colegiado
deveriam, a exemplo da modalidade regular, estar
vinculados aos Departamentos responsáveis pelas
disciplinas oferecidas no curso. Mas, os professores desse
curso na sua modalidade emergencial não eram, na sua
grande maioria, professores da UFSC, ou seja, não tinham
vínculo com nenhum Departamento dessa instituição. O
colegiado, então, se caracterizou como “rotativo”, pois era
composto apenas pelos professores que estavam
ministrando aulas nessa modalidade, no momento de
realização de cada reunião. Como elas ocorriam uma vez
ao mês, os professores que estavam atuando ou que iriam
trabalhar no curso eram convidados a participar destas
reuniões, uma vez que tais atividades não faziam parte de
seu contrato de trabalho. Quanto às atribuições desse
colegiado, eram as mesmas apresentadas para a
modalidade regular, ou seja, algumas de suas decisões
tinham caráter normativo, e outras, deliberativo.
Com estas observações podemos perceber que,
mesmo havendo regulamentações referentes à composição
e ao funcionamento dos colegiados, estes funcionaram de
maneira particular. Se na modalidade regular o colegiado
era formado por professores dos Departamentos da UFSC
e esses professores eram “convocados” e tinham hora/

222 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


atividade para participar das reuniões, na modalidade
emergencial o colegiado foi composto por professores que,
na sua maioria, não tinham vínculo com a UFSC, e por isso
não se poderia contar com sua presença nas reuniões, pois,
muitas vezes, estavam em atividade profissional em outra
instituição.
Dessa maneira, podemos depreender que,
quanto ao acompanhamento do curso, a modalidade
regular faz parte de uma estrutura administrativa,
funcional e burocrática da UFSC (e do sistema de
universidades brasileiras), o que lhe dá uma caracterização
mais “orgânica”. Já a modalidade emergencial, que se
caracterizou como projeto de extensão da UFSC, não teve
a mesma estrutura organizacional, o que parece ter lhe
possibilitado maior “flexibilidade” na avaliação e no
acompanhamento do curso.

Os alunos e os professores, sujeitos desse curso

O curso de Pedagogia habilitação educação


especial da UFSC, nas suas duas modalidades, contou para
sua implementação com vários sujeitos, quais sejam,
alunos, professores, coordenadores, funcionários técnico-
administrativos, entre outros. Porém, para efeito desta
investigação, centrarei minhas reflexões sobre os alunos
e os professores.
Em relação aos alunos podemos afirmar que em
cada uma das modalidades tínhamos um perfil de aluno.
Como expressão disso podemos destacar a faixa etária e a
atuação profissional desses alunos.
Na modalidade regular a maior número de
alunos (53,3%) tinham idade entre 20 e 30 anos e não
exerciam atividade profissional docente ou relacionada à
educação.
Na modalidade emergencial, a maioria (46,43%)

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 223


dos alunos tinha idade entre 31 e 40 anos. Podemos
depreender daí que muitos desses alunos-professores já
estavam atuando como profissionais havia alguns anos.
Essa relação entre idade e formação parece
explicitar, mais uma vez, as diferenças entre uma
modalidade e outra. A emergencial constituiu-se por
pessoas com experiência no magistério (ou na escola), e a
maioria tinha idade superior a 30 anos. A regular contava
com alunos sem experiência no magistério.
Em relação ao corpo docente, dois
departamentos da UFSC são, majoritariamente,
responsáveis pelo Curso de Pedagogia, na modalidade
regular: o Departamento de Estudos Especializados em
Educação (EED) com 20 de seus 25 professores efetivos
ministrando aulas no referido curso – três na habilitação
Educação Especial - e o Departamento de Metodologia de
Ensino (MEN), com 19 dos seus 61 professores alocados
no Curso de Pedagogia – nenhum na habilitação em foco.21
Ambos os departamentos pertencem ao CED.
Além destes três professores efetivos a
habilitação educação especial do curso de Pedagogia em
regime regular contou, entre 1998 e 2001, com duas vagas
de 20 horas para professores substitutos, todas do
Departamento de Estudos Especializados em Educação.
Já o curso de Pedagogia, na modalidade
emergencial, contou com a participação de 59 professores
que foram contratados para prestar serviços, ou seja, para
ministrar determinadas disciplinas, e mantinham vínculo
com outras instituições ou instâncias de ensino, tais como:
universidades privadas, redes municipais de ensino, rede
estadual de ensino, FCEE, Colégio de Aplicação da UFSC,
do CED, entre outros. Especificamente do CED, do MEN e
do EED foram quatro professores efetivos que
ministraram aulas na modalidade emergencial. Os
professores das redes públicas (municipal, estadual e

224 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


federal) que ministraram aulas no Programa Magister
recebiam pagamento adicional por esse trabalho.
Com esses dados sobre a forma de contratação
e regime de trabalho de cada modalidade de curso de
Pedagogia oferecida pela UFSC, pode-se perceber que no
regime regular havia uma “desprofissionalização” dos
professores da habilitação em foco, que tinham seus
contratos como professores temporários. Esse fato parece
se explicitar na modalidade emergencial, que tinha todo
seu corpo docente com subcontratos. Tal situação, além
de trazer à tona o debate sobre a profissionalização do
trabalho docente, também implicava a desqualificação dos
cursos de graduação que, historicamente, têm como eixo
os trabalhos de pesquisa e extensão pouco presentes na
habilitação educação especial na modalidade regular e
ausentes na modalidade emergencial.
Por outro lado, o estatuto efetivo de três
professores e de sua inserção funcional com todos os
deveres e direitos acadêmicos assegurados permite
afirmar que a atuação ampla, do ponto de vista acadêmico
e político estava, em tese, garantida. Ao contrário, o
contrato por serviço prestado caracteriza-se pela
efemeridade da tarefa, e a não-inclusão do profissional na
estrutura acadêmica limita, de forma evidente, essa
mesma participação.
No que concerne à titulação acadêmica dos
professores atuantes no curso de pedagogia, na modalidade
regular, o Departamento EED contava com quatro
professores com pós-doutorado, 20 com o Doutorado
concluído, cinco mestres e um especialista. O MEN contava,
entre os efetivos, com 20 doutores, 16 mestres, um
especialista e dois graduados.
Já a titulação dos professores que atuaram na
modalidade emergencial do curso, nas turmas de
Licenciatura Plena, foi: cinco professores tinham o título

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 225


de doutor, 27 eram mestres, 15 especialistas e seis,
graduados.22
Como se pode observar há uma diferença
substancial na titulação dos professores de uma e de outra
modalidade, quando se trata do curso de Pedagogia como
um todo. Estas diferenças se mantêm na especificidade
da habilitação educação especial, onde trabalharam sete
professores na modalidade regular (dois doutores, quatro
mestres e um especialista) e 14 na emergencial (cinco
mestres, sete especialistas e dois graduados).23

O tempo e espaço como elemento constituinte da


formação dos professores

O curso de Pedagogia – habilitação educação


especial – da UFSC, em regime regular, ocorre nas
instalações da própria Universidade, situada em um bairro
tipicamente urbano da cidade de Florianópolis. A área do
campus desta universidade é de um milhão de metros
quadrados, com 187.452 metros quadrados construídos.24
Seu funcionamento é considerado de “cidade”, uma vez
que tem infra-estrutura própria, com aproximadamente
vinte mil pessoas (entre alunos, professores e funcionários
técnico-administrativos) circulando diariamente pelo
campus. Nos centros constitutivos da UFSC funcionam os
cursos de graduação e de pós-graduação em várias áreas
de conhecimento que são organizados por áreas afins.
Já o curso de Pedagogia em regime especial,
mesmo sendo oferecido pela UFSC, ocorreu na cidade de
São José, localizada na zona industrial da Grande
Florianópolis, praticamente às margens da BR–101, na
Fundação Catarinense de Educação Especial (FCEE). Essa
Fundação ocupa uma área de 52.018 metros quadrados e
em suas instalações, funcionam o atendimento direto de
pessoas consideradas deficientes, e a avaliação diagnóstica

226 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


de crianças oriundas de todo o Estado de Santa Catarina,
além de espaços destinados a administração, biblioteca,
refeitório, quadra de esporte, centro de capacitação de
recursos humanos, auditório, centro de pesquisa e recursos
tecnológicos e laboratório de informática educativa. A
FCEE tinha, em 2003, seu espaço organizado por Centros
de Atendimento, dispostos de acordo com as diversas
categorias de deficiência e com as atividades a serem
desenvolvidas (Centro de Estudos ao Atendimento da
Deficiência Sensorial – Ceads; Centro de Avaliação e
Encaminhamento – Cenae; Centro de Ensino e
Aprendizagem – Cenap; Centro de Educação e Reabilitação
– Cener; Centro de Educação e Trabalho – Cenet I e II;
Centro de Recursos Pesquisa e Tecnologia).25
No ano de 2003, a Fundação contava com 566
alunos e 422 funcionários (professores, pessoal da
administração, apoio e técnicos),26 configurando-se como
um grande centro de atendimento público aos alunos
considerados deficientes no Estado de Santa Catarina.
Ressalte-se que, entre estas duas instituições
(UFSC e FCEE), as diferenças não estão somente nas
dimensões físicas, mas, principalmente, na cultura que é
parte constituinte desses espaços. A UFSC tem um
conjunto de características que podem ser relacionadas à
cultura universitária (com vários cursos de graduação e
pós-graduação acontecendo ao mesmo tempo; palestras
e cursos das mais variadas áreas; ampla biblioteca
contendo acervo das mais diversas áreas do conhecimento,
além de bibliotecas setoriais, organizadas por áreas do
conhecimento; anfiteatros e auditórios; equipamentos
esportivos; todos voltados para a comunidade
universitária); acesso à cultura e ao lazer dentro do
campus. Já a FCEE apresenta um funcionamento de
instituição de educação especial (seus cursos e seu
atendimento estão direcionados à educação especial e à

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 227


sua clientela), com salas de aula organizadas para atender
crianças e adolescentes, com o acervo da biblioteca
contando com materiais destinados à educação básica e
especial, entre outros.
Buscando apreender melhor estas dimensões
culturais da instituição, fiz uma breve observação de
murais informativos, recurso utilizado nos dois espaços
(universidade e FCEE). Na Universidade, optei por
observar os murais do CED e do Núcleo de Investigação
do Desenvolvimento Humano (Nucleind), onde são
ministradas as disciplinas específicas da habilitação
Educação Especial, da modalidade regular, e na FCEE o
mural instalado na entrada das salas onde ocorreu a maior
parte do curso na modalidade emergencial. Essa
observação foi feita uma vez na semana, durante um mês.27
Primeiramente, na UFSC, encontrei vários murais no CED
(da graduação, da pós-graduação, do Centro Acadêmico,
do Núcleo de publicações, abertos a todos os segmentos e
fins). Buscando apreender o maior movimento possível,
fiz o registro do mural aberto a todos os segmentos da
universidade, localizado no CED. Nele encontrei
informações sobre: cursos oferecidos pela universidade, e
fora dela, das mais variadas áreas; seleção de pós-
graduação; defesas de dissertações e teses; lançamentos
de livros; cursos de capacitação; festas programadas pelos
alunos; aluguel de casas e apartamentos; seminários;
bolsas de estágio; cursos de especialização; concertos
musicais; cursos de violão e pandeiro; workshop. Observei
que, a cada semana, algumas dessas informações eram
retiradas do mural, outras permaneciam, e
acrescentavam-se novos cartazes.
Também observei o mural do Nucleind que,
mesmo fazendo parte do CED, encontra-se em um prédio
separado. As informações contidas nesse mural foram mais
específicas da área de educação especial: congresso sobre

228 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


deficiência; notícias de jornais sobre deficientes; cursos de
aperfeiçoamento técnico e educação inclusiva. Porém,
nesse espaço, também encontrei informações que já
estavam no mural do CED, como defesas de dissertação e
tese; seleção para a pós-graduação; congressos, entre
outros.
No mesmo período, o mural da FCEE tinha
expostas informações sobre: Encontro de Psicopedagogia;
Congresso da Educação Infantil; Notícias em jornal sobre
transporte de deficientes; Palestra sobre autismo e
Simpósio sobre a Educação Ambiental. Não houve, durante
este mês de observação, acréscimo ou retirada de
informações.
Somente analisando os murais, podemos
observar o diferencial entre uma instituição e outra. A
universidade, especificamente no CED, a variação de
informações à disposição dos sujeitos que por lá transitam.
O Nucleind, mesmo fazendo parte da UFSC, já apresentava
elementos mais restritos, especializando as informações.
A FCEE, com poucas notícias, sem modificação nesse
período e com uma tendência à especialização das
informações.
A partir da observação dos murais nas duas
instituições é possível perceber a diferença entre elas no
que se refere à cultura que as constitui. Embora se
encontrem no campus universitário da UFSC murais com
informações específicas de uma área, é oportunizado aos
alunos da modalidade regular um contato com informações
de diversas áreas, portanto, uma base que ultrapassa a
formação específica e que permite ao estudante um
alargamento de horizontes. Na FCEE isto não é oferecido,
o que restringe esse tipo de formação cultural mais ampla.
As diferenças culturais aqui tratadas foram
constituídas e constituíram espaços distintos de formação,
nos quais ocorreram, entre os anos de 1998 e 2001, as

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 229


duas modalidades que formaram professores para a
educação especial, ambas oferecidas pela UFSC.
Fazendo um cotejamento dos dados relativos à
categoria tempo, podemos perceber que, apesar de
ocorrerem no mesmo período (1998 – 2001), as duas
modalidades estabeleceram relações distintas com esta
categoria. Tempos diferentes constituíram a mesma
certificação no curso de Pedagogia da UFSC – habilitação
educação especial – nas suas duas modalidades
apresentadas, entre os anos 1998 e 2001.
A carga horária total do curso de Pedagogia –
habilitação educação especial –, em regime regular,
conforme consta no Catálogo da UFSC (2002, p. 121), é
de 3.168 h/a. Deste total, 2.952 h/a correspondem às
disciplinas obrigatórias e 216 h/a às disciplinas optativas.28
Já a carga horária total do curso de Pedagogia
– habilitação educação especial – Licenciatura Plena –, do
regime emergencial, foi proposta em 2.542 h/a, sem
disciplinas optativas. Isso significa que, em termos de
proposição, a modalidade regular teve 626 h/a a mais que
a modalidade emergencial.
Porém, após analisar o histórico escolar de uma
das alunas do curso da modalidade emergencial, constatei
que sua carga horária efetiva foi de 2.436 h/a.29 Isso
demonstra que houve uma modificação da carga horária
total, com uma redução de 106h/a em relação ao proposto
inicialmente no projeto do curso.30
Comparativamente, observa-se que houve,
efetivamente, uma diferença de 732 h/a entre as duas
modalidades. Contando somente as disciplinas
obrigatórias, a diferença fica em 516h/a. Isso indica que é
aceito que um curso possa ocorrer com essa diferença na
carga horária e que as certificações sejam as mesmas. Em
outras palavras, a mesma universidade expediu
certificados de conclusão de curso similares para

230 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


modalidades de curso que tiveram cargas horárias tão
distintas. A própria legislação permite (e, até certo ponto,
indica) que é possível formar professores em um curso de
graduação com uma variada carga horária, desde que seja
cumprido o mínimo de horas previstas em lei.
No caso do curso emergencial, todas as
disciplinas são obrigatórias, de modo que todos os alunos
cursaram as mesmas disciplinas. O projeto desta
modalidade do curso de Pedagogia da UFSC não previu
disciplinas optativas. Na modalidade regular, segundo a
Resolução n° 017/CUn/97, o currículo pleno dos cursos
de graduação constitui-se de disciplinas obrigatórias e
optativas:

§ 1°- As disciplinas optativas, de livre escolha


do aluno, dentre as oferecidas pela
Universidade, obedecerão, como limite
máximo, o percentual de 20% da carga horária
mínima do curso fixada pelo Conselho
Nacional de Educação – CNE. (UFSC, 1997).

Essas disciplinas, selecionadas pelos alunos, com


alguns critérios predeterminados, podem ser cursadas em
diferentes Centros da Universidade, com turmas diversas
e em semestres letivos variados (a não ser as optativas
que têm pré-requisitos para serem cursadas). Aos
colegiados cabe definir quais disciplinas optativas serão
oferecidas no semestre. Se as disciplinas optativas
desempenham o papel de ampliar o foco, dar maior
abrangência à formação acadêmica dos alunos, sua
ausência na modalidade emergencial pode indicar que não
houve, por parte dos propositores desse curso, a
preocupação com essa ampliação. Cabe ressaltar que,
conforme o regimento do programa Magister (Seção II)
Art. 3°, o currículo oferecido pela modalidade emergencial

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 231


será o mesmo que estiver em vigor na instituição que a
oferecer. Então, por que não oferecer disciplinas optativas?
A carga horária foi distribuída, nas duas
modalidades, em quatro anos. Porém, para o curso regular
o período foi subdividido em oito semestres letivos com
aulas de segunda a sexta-feira no período vespertino
(perfazendo em torno de 25h/a por semana). Em um
mesmo semestre várias disciplinas são ministradas
concomitantemente, conforme o currículo prescrito.
Porém, o fato de as aulas ocorrerem no período vespertino
dificulta aos professores das redes públicas de ensino que
trabalham 20 horas semanais, e impossibilita aos que
trabalham 40 horas semanais cursar a graduação nesta
modalidade.
Já o curso de Pedagogia na modalidade
emergencial também teve os quatro anos divididos em
semestres, mas houve uma flexibilidade no que se pode
chamar de calendário semestral. As aulas dessa
modalidade ocorriam às sextas-feiras no período noturno
e aos sábados pela manhã e à tarde (15h/a por final de
semana). Também se contava com as férias das escolas
regulares e/ou especiais onde os alunos-professores
atuavam (janeiro, fevereiro e julho), para ministrar as
aulas. Quando era este o período de aulas, as disciplinas
eram ministradas de segunda a sexta-feira, nos períodos
da manhã e da tarde (oito horas por dia, cinco dias por
semana), perfazendo 40h/a semanais.
Dessa maneira, por exemplo, uma disciplina de
60 h/a na modalidade regular era (e continua sendo)
distribuída por um semestre, com quatro ou cinco horas/
aula por semana. Na modalidade emergencial a mesma
disciplina, com idêntica carga horária, ocorreu de
diferentes maneiras: em quatro finais de semana seguidos
(sextas à noite e sábados o dia todo); ou em uma semana
e meia, com aulas de segunda a sexta-feira, em período

232 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


integral (nos períodos de férias).
Pode-se perceber uma inflexibilidade na
modalidade regular quanto à distribuição da carga horária
das disciplinas, o que é histórico nos cursos de graduação,
em diferentes áreas do conhecimento. Nessa organização,
as disciplinas são fixadas na distribuição do tempo em
semestres e permanecem assim por anos. Mas, ao mesmo
tempo, essa disposição temporal possibilita uma maior
reflexão sobre o conteúdo trabalhado, uma diversificação
nas atividades desenvolvidas, um tempo maior para que
os alunos se apropriem do conhecimento. Além disso,
várias disciplinas são oferecidas no mesmo semestre, o que
possibilita, embora não garanta, uma maior articulação
entre as diferentes áreas que compõem o currículo.
Na modalidade emergencial há um
“afrouxamento” da distribuição das disciplinas, o que pode
indicar um atendimento às necessidades dos alunos-
professores quanto ao seu tempo fora da instituição em
que trabalham. Porém, a forma dessa flexibilidade
impossibilitou, em grande medida, uma maior reflexão
sobre os conteúdos trabalhados, levou os professores a
terem que distribuir o tempo em sala de aula com
atividades que, em um curso na modalidade regular, são
desenvolvidas em horários extraclasse (leituras, trabalhos
em grupo), além de não possibilitar uma troca entre as
áreas do conhecimento, porque as disciplinas ocorreram
uma por semana ou em uma seqüência de finais de
semana, até completarem a carga horária da disciplina.
Ao mesmo tempo, esta característica
“maleável”, concernente ao tempo do curso na modalidade
emergencial, se apresentou de maneira relativa. Ainda que
a grade curricular colocada em prática não tenha seguido
rigidamente a proposta no projeto de curso, observei que
sua duração, na modalidade em questão, não foi alterada.
Isso significa que a modalidade emergencial se apresentou

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 233


maleável em relação à seqüência das disciplinas e rígida
no que se refere à duração do curso como um todo. Na
primeira característica percebe-se uma diferença em
relação à modalidade regular, e na segunda, uma
similaridade.
Também podemos considerar a disposição das
disciplinas nas diferentes grades curriculares como
expressão da organização do tempo nas duas modalidades
de curso de Pedagogia.
Para efeito desta investigação, busquei analisar
a disposição das disciplinas nas duas grades curriculares,
suas similaridades e diferenciações quanto ao momento
em que se apresentavam no curso. Para tanto, destaquei
algumas disciplinas (ou conjunto delas) que passarei a
analisar como expressão dessas relações.
Inicialmente, é importante destacar que no
curso de Pedagogia, em regime regular, as disciplinas
específicas da habilitação educação especial (como das
outras habilitações oferecidas nessa modalidade)
concentram-se nos últimos dois semestres do curso (7a e
8a fases). Já na modalidade emergencial estas disciplinas
estão distribuídas a partir do 3o semestre, começando com
a disciplina de Fundamentos em Educação Especial com
um aumento gradativo no número de disciplinas
específicas, por semestre ao longo do curso.
Esse fato indica que na modalidade regular se
busca formar primeiramente o professor de 1a a 4a séries
e depois, no mesmo curso, o chamado especialista em
educação especial. Na modalidade emergencial não há essa
divisão, ou seja, o especialista é formado no mesmo
momento em que o professor das séries iniciais do ensino
fundamental. Em ambos os casos observam-se a
proposição de formar o professor das séries iniciais e o
especialista como complemento um do outro.
A organização de curso parece trazer à tona a

234 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


discussão entre formação do especialista e/ou generalista.
Porém, como nos indica Bueno (1999), não se trata de
colocá-las em oposição, mas sim perceber como estão
sendo formados estes profissionais. Nas duas modalidades
de curso de Pedagogia aqui investigadas, a ambigüidade
na proposta de formação é explicitada quando se
pretendem formar, no mesmo curso, o professor e o
especialista em educação especial: na modalidade regular
formando, nas seis primeiras fases (três anos), o professor
de 1a a 4a séries, e nos últimos dois semestres (um ano), o
especialista em educação especial; na modalidade
emergencial a organização curricular propõe a formação
dos dois profissionais ao mesmo tempo. Dessa maneira, a
formação proposta na UFSC, nas duas modalidades,
apresenta-se de maneira dúbia e reafirma a divisão entre
educação e educação especial. Nas palavras de Ferreira
(1999, p. 140):

[...] a ser mantido este modelo de formação de


especialistas, vamos reafirmar um modelo de
relação entre educação regular e educação
especial que se caracteriza por ser dualista e
segregacionista. Isto é, contribuir para manter
numa linha a educação regular e, em linha
paralela, a educação especial,
descompromissando os educadores dos
sistemas de ensino regular da responsabilidade
pela educação escolar de qualidade para todos.

Ainda com referência à organização das


disciplinas, também se depreende que aquelas relativas à
especificidade da educação especial, na modalidade
regular, não ocorrem nos mesmos semestres das
disciplinas consideradas de formação básica do pedagogo,
como Psicologia, Sociologia e Filosofia. Já na modalidade
emergencial as disciplinas de base (de fundamentos)

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 235


ocorrem na mesma fase que as disciplinas específicas da
habilitação. Isso indica que, no primeiro caso, a
organização da grade curricular pressupõe o entendimento
de que é preciso primeiro formar o professor em bases
gerais para, sobre tais pilares, formar o especialista. No
caso da modalidade emergencial, essa seqüência não está
presente. Porém, nesta modalidade, as disciplinas
acontecem uma por vez (em quatro finais de semana
consecutivos ou em uma semana e meia de aula – nas
férias), o que retira a riqueza de uma possível articulação
entre disciplinas de base e disciplinas específicas. Ao
mesmo tempo, a organização curricular da modalidade
regular pode retirar a possibilidade de articulação entre
as disciplinas de fundamentos da educação com as da
habilitação em questão, e a da modalidade emergencial
pode desarticular a troca entre as disciplinas de maneira
geral, quando as dispõem no tempo dessa maneira (uma a
uma).

As disciplinas e a permanência do modelo médico-


psicológico

Podemos afirmar, de uma maneira geral, que


as disciplinas específicas da habilitação educação especial,
nas duas modalidades de curso, ainda centram-se na
deficiência. Ou seja, em grande medida, os tipos de
deficiência são os organizadores da maioria das disciplinas
que formam os professores para a Educação Especial, nas
duas modalidades de curso de Pedagogia da UFSC.
Todavia, quando analisamos as ementas dessas
disciplinas consideradas similares nas duas modalidades,
observamos que a maneira como é abordada a deficiência
é diferente nas duas modalidades.
A disciplina “Ensino em Educação Especial:
Área Mental”, oferecida pela modalidade regular, conta

236 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


com a seguinte ementa:

Aprofundamento nos diferentes aspectos


teóricos e metodológicos relacionados ao ensino
da pessoa com necessidades especiais,
valorizando seu desenvolvimento potencial:
correntes, estratégias e recursos didáticos
(UFSC, 2002, p. 141)

Na modalidade emergencial a disciplina


responsável pela área de deficiência mental foi:
“Metodologia de Ensino: Área Mental e Múltipla”.
Observa-se que o nome da disciplina sugere uma relação
entre deficiência mental e múltipla, o que não corresponde
à caracterização de deficiência múltipla, que pode
apresentar-se como deficiência visual e auditiva, ou
auditiva e física, e não envolver, necessariamente, a
deficiência mental. Nesse caso, a ementa foi assim
elaborada:

1. Caracterização e estudo dos processos de


prevenção primária, secundária e terciária. 2.
Evolução histórica do conceito. 3.
Caracterização dos tipos de deficiência mental
e múltipla e os processos avaliativos. 4.
Alternativas de atendimento e suas
metodologias na educação infantil, ensino
fundamental e médio (UFSC, 1998, p. 17).
A leitura das ementas permite explicitar a
diferença entre uma disciplina e outra. No caso da
modalidade regular, há uma clara relação entre a discussão
da área mental com o processo ensino-aprendizagem, com
ausência de aspectos biológicos. Porém, sua redação sugere
que a análise perpassa a base da Psicologia, principalmente
pela idéia de “potencialidade”. Já na emergencial, ainda

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 237


temos resquícios da centralidade no biológico, com a
necessidade de marcar as características que possam ser
consideradas diferentes (entre o normal e o patológico)
para então pensar os processos pedagógicos.
Já a deficiência física teve, na modalidade
regular, a disciplina “Ensino em Educação Especial: Área
Física” como foco para suas discussões. Nesta a ementa
foi assim elaborada: “Adaptação de materiais para o
educando com necessidades especiais: arranjos de
ambientes. Utilização de tecnologias. Discussões sobre a
superação das barreiras arquitetônicas” (UFSC: 2002, p.
141). Percebe-se, novamente, a ênfase nos recursos
destinados à deficiência e a secundarização da discussão
do processo pedagógico. Na modalidade emergencial essa
área foi contemplada com a disciplina: “Corporeidade e
Deficiência Física”, com a seguinte ementa:

1. Conceituação e caracterização da deficiência


física. 2. A construção da corporeidade e suas
implicações. 3. Barreiras arquitetônicas e
ambientais. 4. Novas tecnologias, possibilidades
de acesso. 5. Adaptações nos procedimentos
didáticos e pedagógicos (UFSC, 1998, p. 17).

Neste caso, as duas modalidades parecem


aproximar-se um pouco mais, uma vez que ambas dão
forte ênfase aos recursos e às possíveis barreiras
arquitetônicas, mais que às atitudinais. Porém, neste
segundo caso, novamente inicia-se a discussão pela
caracterização que pode ter por base a questão biológica.
A evidência dada, nas duas modalidades, para
a questão das deficiências e suas respectivas áreas é
corroborada, na modalidade emergencial, por mais uma
disciplina (que não encontra similar na modalidade regular)
que trata especificamente dos transtornos de

238 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


comportamento e distúrbios no desenvolvimento. Esta
disciplina foi denominada: “Metodologia de Ensino:
Distúrbio Global no Desenvolvimento e Transtornos de
Comportamento” e teve como ementa:

1. Características diagnósticas dos transtornos


invasivos do desenvolvimento e
comportamento disruptivo. 2. Transtornos
associados. 3. Diagnóstico diferencial. 4.
Metodologia alternativa de ensino (UFSC, 1998,
p. 17).

Observa-se, neste caso, a presença significativa


da abordagem biológica e psicológica.
Em síntese, as disciplinas relacionadas às áreas
de deficiência deram, no caso da modalidade regular, maior
destaque a recursos e técnicas que visassem ao processo
pedagógico. Tal evidência demonstra a preocupação da
área de Educação Especial com o que Skrtic (1996)
denomina de “conhecimento prático” e convenciona
chamar de “modelo hierárquico de conhecimento
profissional”.

Considerações finais

A investigação aqui apresentada, cuja temática


foi a formação de professores para atuar na Educação
Especial, teve por objetivo a análise de como vem
ocorrendo a formação desses professores, que compreendo
ser expressão localizada do modo como vem sendo
proposta e realizada a formação de professores de maneira
geral em nosso país.
Com este estudo, pude verificar que essa
formação está constituída por ambigüidades estruturais
que perpassam historicamente as práticas de formação

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 239


docente e que o modelo médico-psicológico continua
constituindo a base da formação de professores para a
Educação Especial.
Nesse sentido, pode-se considerar que as
modalidades oferecidas pela UFSC se contrapõem à
ambigüidade ainda expressa pela legislação brasileira,
referente ao nível de formação do professor de Educação
Especial, que tanto pode ocorrer em nível médio como em
nível superior. Além desses dois níveis, a formação desses
professores também pode ser feita por meio de formação
em serviço, esta última para os denominados professores
capacitados (Brasil, 2001). Nas Diretrizes para o Curso de
Pedagogia que Institui Diretrizes Curriculares Nacionais
para o Curso de Graduação em Pedagogia, licenciatura
(Brasil, 2006) onde as habilitações são extintas, a formação
desses professores capacitados é reafirmada (em nível
superior) uma vez que indica que deve garantir-se a
discussão sobre a educação de pessoas com necessidades
especiais na formação geral dos professores. Tal fato indica
que a formação do professor especialista irá ocorrer em
nível de pós-graduação.31
No caso do Estado catarinense, segundo o Censo
Escolar de 2003, a maioria dos professores que trabalham
nas instituições de Educação Especial cursou o magistério,
em nível médio, com especialização por meio de cursos
adicionais, de capacitação e de aperfeiçoamento (SANTA
CATARINA, 2004), e a oferta de formação superior teve
como uma de suas justificativas básicas exatamente a
maior qualificação desse professorado.
Entretanto, se estas ambigüidades foram
superadas, surgem outras que parecem expressar a
translação da estrutura que reitera, de forma
diferenciada, a permanência de ambigüidades estruturais
na formação docente no Brasil (BOURDIEU, 1990).
No estudo em foco, o curso de Pedagogia, na

240 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


sua modalidade emergencial, oferecido pela UFSC, além
de ter caráter de formação inicial, também se constituía
em formação em serviço. Tal direcionamento, em princípio,
aparenta ser uma solução para a histórica dicotomia:
“formação inicial x formação em serviço”. Entretanto, com
um olhar mais atento, observa-se, na modalidade
emergencial, um forte traço da formação em serviço, mas
com certificação em nível superior.
Talvez resida neste argumento a crítica para
adoção de modelo ambíguo de formação, ou seja, ser ao
mesmo tempo formação “inicial” e em “serviço”. As
políticas atuais para a formação de professores têm
centrado suas proposições para a formação em serviço. A
exemplo do que ocorreu em Santa Catarina, outros
Estados brasileiros vêm investindo em formação em
serviço concomitante à formação inicial. Porém, essa
dicotomia ainda não foi quebrada, uma vez que se
compreende que a formação em serviço e a formação inicial
não ocorrem em um único momento, mas são, sim,
complementares. Em algumas situações podemos afirmar
que há uma desvalorização da formação inicial e uma
valorização da formação em serviço.
A análise dos dados referentes ao Curso de
Pedagogia da UFSC permitiu fazer algumas reflexões em
relação à permanência e à ruptura de ambigüidades, e à
manutenção ou não do modelo de formação de professores
para a Educação Especial.
Em relação às ambigüidades, este estudo
possibilitou, em primeiro lugar, perceber sua presença,
apreendendo-as como “múltiplas possibilidades”. No caso
da UFSC, cada uma das modalidades estudadas apresentou
uma forma própria de organização quanto aos seus
objetivos, ao acesso a esse curso, ao acompanhamento de
seu funcionamento, ao corpo docente e discente, à carga
horária total, à distribuição das disciplinas nas grades

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 241


curriculares, ao espaço (relacionado ao local e à cultura
que este possibilitou), entre outros elementos que
“conformaram” essa formação.
Para sintetizar, podemos concluir que, se antigas
e novas práticas desqualificadoras não estão presentes nas
duas modalidades (como as ambigüidades referentes ao
nível de ensino ou ao tipo de curso superior), outras
permaneceram ou foram criadas. Essas podem ser
consideradas expressões individuadas do princípio gerador
das práticas de formação docente no Brasil, qual seja, as
ambigüidades estruturais que expressam a sua eterna
provisoriedade e que contribuem, no seu âmbito, para a
desqualificação da formação docente, aqui expressa de uma
determinada forma, e as ambigüidades específicas da
formação do professor para a Educação Especial.
Com as reflexões oportunizadas durante esta
investigação, pude verificar as grandes distinções entre
as duas modalidades que, paradoxalmente, reiteraram a
manutenção do modelo médico-psicológico na formação
de professores para atuar na Educação Especial.
Com as contribuições de Skrtic (1996) em
relação ao conhecimento prático e teórico, podemos inferir
que o fato de a formação de professores para a Educação
Especial ocorrer em nível superior, nessas duas
modalidades, pode trazer contribuições para o
desenvolvimento de ações práticas de maior qualidade
para os alunos considerados deficientes. Porém, o mesmo
autor auxilia na compreensão de que, em grande medida,
a discussão da Educação Especial continua tendo como
base o modelo médico-psicológico. Para Skrtic (1996, p.
36):

Según el modelo, el conocimiento de la


educación especial se fundamenta en el
conocimiento teórico de una disciplina

242 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


subyacente o ciencia básica. En el nivel de la
ciencia aplicada del modelo, el conocimiento
teórico se traduce en conocimiento aplicado, o
los modelos y procedimientos que guían y
configuran la práctica de la educación especial.
Finalmente, el conocimiento aplicado y
teóricamente fundamentado de la educación
especial produce el conocimiento práctico [...].
El rendimiento de los servicios profesionales de
la educación especial a sus clientes se basa en
el conocimiento práctico, conceptualizado
como el resultado de la aplicación del
conocimiento teórico a los problemas de la
práctica de la educación especial.

Como foi observado na apresentação das


ementas de algumas disciplinas, o modelo médico-
psicológico ainda é a base de organização do curso nas suas
duas modalidades. Nelas se encontra a manutenção da
compreensão do fenômeno educacional relacionado ao
aluno considerado deficiente, pela base biológica e, de
maneira mais acentuada, pela Psicologia. A reiteração
dessas bases de conhecimento retira da Educação a
compreensão da deficiência e da própria ação pedagógica
como fato social. Sob os auspícios do modelo médico-
psicológico, o aluno é responsabilizado pelo seu sucesso ou
fracasso escolar, os quais são explicados pelas marcas de
deficiência. Tal visão tem sido hegemônica, encobrindo a
compreensão segundo a qual os sujeitos se constituem nas
e pelas relações sociais.
É importante destacar, porém, que a
manutenção desse modelo não se deu de maneira clara
para os sujeitos que dela participaram. Ao contrário, este
se constituiu em uma disposição ou, nas palavras de
Bourdieu (2001, p. 21), em um habitus, o qual não se
estabelece fora das relações sociais, no exterior de um

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 243


“campo” (mundo ou espaço social) e, também, não está
posto de maneira explícita ou exposto claramente nas
ações dos sujeitos.

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DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 247


PARTE 3

PROCESSOS DE
ESCOLARIZAÇÃO DE ALUNOS
COM DEFICIÊNCIA
ESCOLARIZAÇÃO E DEFICIÊNCIA:
A ESCOLHA DA ESCOLA

Adarzilse Mazzuco Dallabrida


UNISUL/SC

Neste artigo procura-se articular uma discussão


sobre o conceito de deficiência e escolarização,
problematizando as estratégias utilizadas na escolha da
escola pelas famílias que pertencem as diferentes classes
sociais. Especificamente, apresentar-se-ão os principais
resultados da tese de doutoramento, que analisou as
motivações e as expectativas de famílias que pertencem
às classes superiores sobre a escolarização de seus filhos
deficientes e, a forma de atendimento e organização
oferecida pelo Colégio.
A construção dos objetivos, parte da premissa
de que a sociedade, através das exigências e momentos
históricos, é a responsável por identificar, classificar e
construir castas de indivíduos, segundo sua funcionalidade,
com base nos comportamentos sociais estabelecidos como
legítimos. Tem como embasamento teórico autores que já
desenvolveram trabalhos nessa concepção, como Bueno,
(1993, 1997 e 2001), Crochik (1995) e Goffman (1998), e

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 251


que estabeleceram discussão de forma ampla e crítica
ultrapassando a simples determinação e classificação das
deficiências, mas tecendo seus recortes como produto de
uma construção social.
Estudos no Brasil sobre as estratégias que as
famílias de diferentes estratos sociais utilizam na seleção
da escola para o filho (NOGUEIRA, 2002; CARVALHO,
2004; OLIVEIRA, 2005) vêm apontando que a articulação
família-escola é a responsável pela produção de sujeitos,
ou agentes sociais, para ocupar posições determinadas na
sociedade às quais são destinados, indicando diferentes
estratégias desenvolvidas, tomando como base o capital
econômico, cultural e social dessas famílias.
O problema deste estudo fundamenta-se
teoricamente nos estudos de Bourdieu (1998a, 2003a),
na análise das expectativas dessas famílias com relação à
escolaridade dos filhos considerados deficientes e em que
medida essas expectativas com relação aos seus filhos,
deficientes ou não, coincidem quando colocados no mesmo
ambiente escolar.
Bueno (2001) discute como a “anormalidade
enquanto manifestação concreta” se apresenta nas relações
entre homem e meio. Afirma que esse conceito foi
historicamente se modificando na medida em que o
homem foi transformando suas condições sociais. Com
relação ao conceito de deficiência mental, explica que ele
foi identificado a partir do final do século XVIII, em
determinadas formações sociais que exigiam
determinadas formas de produtividade intelectual.
Nessa perspectiva, o autor abre a possibilidade
de aprofundar a compreensão das representações sociais
sobre a “anormalidade”, em função do atendimento
disponibilizado durante as três fases da história da
educação especial no Brasil32, não somente através das
ações objetivas de escolarização e atuação na sociedade,

252 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


mas na inculcação da identidade social da anormalidade.
Crochik (1995, p. 15) discute a questão do
conceito de preconceito, recorrendo a várias áreas do
saber, afirmando que o que leva o indivíduo a ser ou não
preconceituoso pode ser encontrado no seu processo de
socialização “no qual se transforma e forma enquanto
indivíduo”. Esse processo só pode ser entendido como fruto
da cultura e da história, o que significa “que varia
historicamente dentro da mesma cultura e em culturas
diferentes”.
As marcas da deficiência podem ser analisadas
não somente por sua “materialidade” ou “condição social”,
mas principalmente na maneira como a sociedade
incorpora e encaixa essas diferenças em seus padrões de
normalidade. Segundo Silva (2004) as atitudes, os
preconceitos, os estereótipos e a estigmatização com
relação às pessoas deficientes partem desta “leitura social”
das diferenças.
Goffman (1988) investigou diversos fatores
ligados ao estigma - um valor negativo atribuído a uma
condição existencial - e destacou a visibilidade, o
encobertamento e a identidade pessoal em seu estudo
sobre a manipulação de identidades deterioradas
explicando que:

(...) o termo é amplamente usado de maneira


um tanto semelhante ao sentido literal original,
porém, é mais aplicado à própria desgraça do
que à evidência corporal (GOFFMAN, 1988, p.
11).

Nesse sentido, as marcas da deficiência podem


ser vistas não somente na pessoa deficiente, mas em seu
entorno, principalmente na família através das atitudes e
comportamentos.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 253


Classe social é também um conceito complexo.
Para Bourdieu (1998), classe social não se define somente
pela categoria econômica ou pela soma das diferentes
categorias que o sujeito possui (idade, sexo, etc.), mas sim
pela estrutura das relações entre todas as categorias
pertinentes. Ele explica que tem utilizado em suas
pesquisas além da profissão e o nível de instrução, os
índices de volume das diferenças especiais de capital,
assim como sexo, idade e residência. Construir classes as
mais homogêneas possíveis com relação aos determinantes
fundamentais de condições materiais de existência e a sua
utilização é levar em conta as variações de distribuição e
de práticas, como uma rede de características secundárias.
Para esse autor, é necessária a realização de
uma rede de relações entre os determinantes de uma classe
social específica para se poder justificar sua utilização,
rompendo com o pensamento linear de classificação direta
das categorias sociais existentes (BOURDIEU, 1998a, p.
105).
O espaço social é constituído por pessoas com
afinidades fundamentais, principalmente, no campo
econômico e cultural: “Falar de um espaço social, é dizer
que se não pode juntar uma pessoa qualquer com outra
pessoa qualquer, descurando as diferenças fundamentais,
sobretudo econômicas e culturais” (BOURDIEU, 2003b,
p. 138).
Nesse sentido, classe social não é um elemento
autônomo, mas se incorpora em uma estrutura que a cria
e que ela mesma reproduz. O lugar das classes em uma
estrutura social seria a posição, em um ambiente
hierarquizado por critérios que ultrapassam o capital
econômico. O capital simbólico é um elemento
importantíssimo para a compreensão de classe social
conforme sua posição:

254 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


[...] as diferenças propriamente econômicas são
duplicadas pelas distinções simbólicas na
maneira de usufruir estes bens, ou melhor,
através do consumo, e mais, através do
consumo simbólico (ou ostentatório) que
transmuta os bens em signos, as diferenças em
fatos de distinções significantes, ou para falar
como os lingüistas, em valores, privilegiando a
maneira, a forma da ação ou do objeto em
detrimento de sua função. Em conseqüência,
os traços distintivos mais prestigiosos são
aqueles que simbolizam mais claramente a
posição diferencial dos agentes na estrutura
social- por exemplo, a roupa, a linguagem ou
a pronúncia, e sobretudo “as maneiras”, o bom
gosto e a cultura- pois aparecem como
propriedades essenciais da pessoa, como ser
irredutível ao ter como uma natureza [...]
(BOURDIEU, 1998a, p. 16).

Os indivíduos, a partir de sua formação inicial


em um dado ambiente social e familiar correspondente a
uma posição específica na estrutura social, incorporariam
um habitus familiar que regeria suas ações nos mais
variados ambientes, como um conjunto de disposições para
a ação típica de sua posição, perpetuando assim a estrutura
social através desta atualização constante, porém o autor
alerta que este sistema de disposições incorporado pelo
sujeito não o conduz em suas ações de modo mecânico. Há
certa dinamicidade entre as condições estruturais originais
do sistema de disposições do indivíduo e sua aplicabilidade
no sistema de disposições da estrutura social: “a estrutura
social conduziria as ações individuais e tenderia a se
reproduzir através delas, mas esse processo não seria
rígido, direto ou mecânico”. (NOGUEIRA e NOGUEIRA,
2002, p. 04).

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 255


Na análise dos fenômenos educacionais,
Nogueira (2002) aponta o esforço de Bourdieu para evitar
tanto o objetivismo quanto o subjetivismo, considerando
cada indivíduo como sendo caracterizado por sua bagagem
socialmente herdada, assim o ator não é nem o indivíduo
isolado, consciente, reflexivo, nem o sujeito determinado,
mecanicamente submetido às condições objetivas em que
ele age, conforme ilustra a citação abaixo:

Essa bagagem inclui, por um lado, certos


componentes objetivos, externos ao indivíduo,
e que podem ser postos a serviço do sucesso
escolar. Fazem parte dessa primeira categoria
o capital econômico, tomado em termos dos
bens e serviços a que ele dá acesso, o capital
social, definido como o conjunto de
relacionamentos sociais influentes mantidos
pela família, além do capital cultural
institucionalizado, formado basicamente por
títulos escolares. A bagagem transmitida pela
família inclui, por outro lado, certos
componentes que passam a fazer parte da
própria subjetividade do indivíduo, sobretudo,
o capital cultural na sua forma “incorporada”.
Como elementos constitutivos dessa forma de
capital merecem destaque a chamada “cultura
geral” -expressão sintomaticamente vaga; os
gostos em matéria de arte, de culinária,
decoração, vestuário, esportes e etc; o domínio
maior ou menor da língua culta; as
informações sobre o mundo escolar
(NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2002, p. 04).

Bourdieu teve o mérito de formular uma


resposta original para explicar o problema das
desigualdades escolares, principalmente na diminuição do

256 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


impacto do fator econômico, comparativamente ao
cultural no destino escolar. As referências culturais trazidas
de casa são consideradas como uma ponte entre a família
e a escola. O capital econômico e o capital social
funcionariam com auxiliares na acumulação do capital
cultural.
Das três formas de capital cultural33 é no estado
incorporado sob forma de bens duráveis do organismo que
a diferenciação de classe se faz mais evidente, pois a
introjeção ou assimilação desta “herança” faz-se ao longo
da vida, principalmente na infância. Com o estado do
capital incorporado vem o conceito de habitus34, pois
entende-se que este tipo de capital é arraigado na
subjetividade de seu portador (NOGUEIRA e CATANI,
1998).
A idéia de Bourdieu, é que, por um processo
não deliberado de ajustamento entre investimentos e
condições objetivas de ação, as estratégias consideradas
menos arriscadas, ou seja mais adequadas, acabariam
sendo incorporadas pelos sujeitos de um mesmo grupo
como parte de seu habitus, ou seja, sua idéia é que os
grupos sociais constroem conhecimentos práticos relativos
às possibilidades de êxito dentro da realidade social,
levando em conta os tipos de capitais –econômico, social,
cultural e simbólico- possuídos por seus membros
(NOGUEIRA e NOGUEIRA, 2002).
Lahire (1997), em contraponto com a posição
de que o habitus familiar é transmitido aos seus
descendentes de forma naturalizada, instiga que se
investigue mais profundamente o modo de transmissão
destes recursos disponíveis através dos capitais
acumulados, dentro da dinâmica interna de cada família
através das relações e interdependência social e afetiva
entre seus membros, que pode ser explicado desta
maneira:

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 257


No conjunto, as críticas a Bourdieu realçam o
fato de que o habitus de uma família e, mais
ainda, de um indivíduo não pode ser deduzido
diretamente do que seria seu habitus de classe.
As famílias e os indivíduos não se reduzem a
sua posição de classe. O pertencimento a uma
classe social, traduzido na forma de um habitus
de classe, pode indicar certas disposições mais
gerais que tenderiam a ser compartilhadas
pelos membros da classe. Cada família, no
entanto, e, mais ainda, os indivíduos tomados
separadamente, seriam o produto de múltiplas
e, em parte, contraditórias influências sociais
(LAHIRE e CHARLOT apud NOGUEIRA,
2002).

A complexidade da utilização da categoria classe


social nas pesquisas sobre famílias e a sua relação com a
escolarização é discutida por Romanelli (2003), que aponta
que a utilização dos termos como classe e camada remetem
a campos teóricos distintos. Classe indica a abordagem
marxista de divisão da sociedade e, camada, a abordagem
da estratificação social, e ambas, no plural, apontam
divisões no seu interior. A utilização de camadas em
detrimento de classes oferece a possibilidade de se
configurar como “categoria descritiva cuja diferenciação
em segmentos específicos resulta na articulação entre
determinantes sociais e culturais” (p. 248). Indica a
possibilidade de utilizar, segundo Bourdieu, o estilo de vida
como categoria de análises dos segmentos dessas camadas.
Bourdieu (2003b) afirma que foi com base nas
pesquisas realizadas com alunos de todas as Grandes
Escolas e das classes preparatórias, mais precisamente na
impossibilidade de compreender, pela análise dos dados,
o sentido e os elementos que permeavam o jogo na
competição dentro do espaço escolar, que vislumbrou a

258 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


necessidade de conhecer e de ampliar seu entendimento
sobre lógica além dos muros escolares, que passou da
sociologia das instituições de ensino à sociologia do que se
denomina normalmente “classe dominante” ou elite e que
o autor prefere denominar “campo de poder” como seu
objeto principal.

Logo percebi que não poderia compreender


completamente o sentido nem o que estava em
jogo na competição, dentro do espaço escolar,
entre alunos ou instituições enquanto
permanecesse ignorada a lógica do
funcionamento dos diferentes “mercados” em
que os diversos diplomas e seus detentores
estavam situados (BOURDIEU apud ORTIZ,
2003, p. 35).
Relata que sua decisão de estudar os conjuntos
das Grandes Escolas permitiu verificar que o conhecimento
do espaço ocupado por determinada instituição em um
lócus específico, neste caso o “espaço das escolas”, é muito
mais revelador, principalmente porque evidenciam as
relações mais do que os elementos diretamente visíveis.

A escolha metodológica proporcionou deduzir


as leis de funcionamento destes campos, seus
objetivos específicos, os princípios de divisão
segundo os quais se organizam, as forças e as
estratégias dos campos que se opõem, tudo isto
sem esquecer que, por maior que seja sua
autonomia relativa, cada um deve suas
propriedades mais fundamentais à posição que
ocupa no campo do poder. Só pensando assim
a estrutura de relações objetivas entre os
diferentes universos e a luta para manter ou
subverter essa estrutura- para impor o princípio

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 259


dominante de dominação (capital econômico
ou cultural hoje, poder temporal e autoridade
espiritual na sociedade feudal)- é possível
compreender completamente as propriedades
específicas de cada um dos subcampos
(BOURDIEU apud ORTIZ, 2003, p. 36).

Neste trabalho optou-se por utilizar o termo


“classes superiores” para designar um grupo social
estudado, com base nos estudos de Nogueira (2002) que
identifica essa parcela da população através do “modo de
vida” utilizando como critério os recursos materiais
objetivados, como por exemplo: a condição residencial,
apresentada pelo local onde moram e a posse de
residências secundárias, a ocupação e escolarização dos
pais e dos irmãos. A característica principal deste grupo
social não reside somente na posição que ocupam na
sociedade atualmente, mas por ocuparem esta posição há
pelo menos duas gerações.
Bourdieu (1998a) afirma que as classes
abastadas colocam em marcha uma série de estratégias,
de maneira consciente ou inconsciente, que visam
conservar ou aumentar seu patrimônio, e
conseqüentemente manter ou melhorar sua posição social.
Entre as principais “marcas de distinção”, destacam-se a
linguagem, o vestiário e a escolha da escola de seus filhos.
O investimento em educação escolar, ou seja, o pagamento
de um colégio que promete “status” intelectual e social e
êxito nos graus superiores de educação representa uma
“estratégia de reconversão” do capital econômico em
capital cultural. Aliás, para o sociólogo francês, os diplomas
e certificados escolares são entendidos como “capital
cultural institucionalizado”.
Nogueira (1998) apresenta resultados de
pesquisas realizadas na Europa sobre a seleção da escola

260 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


e constata que o termo estratégia é utilizado nesses
estudos para designar as condutas familiares de escolha
da escola, porém, dependendo da orientação teórica, a
significação é diferente. Por exemplo, “estratégias de
classes” são utilizadas – sob a influência de Bourdieu –
visando a manutenção de distinção social e educacional e
“estratégias de consumo”, que são utilizadas na associação
de decisões racionais, de análise do custo/benefício do seu
investimento.
Os resultados do estudo realizado pelo
pesquisador Ballion (1991), com 517 famílias, no momento
de seleção da escola do filho na entrada no ensino médio
(liceu), traz uma categorização do comportamento das
famílias com relação à escolha, descritas da seguinte
maneira: condutas avaliatórias e condutas
funcionais. As primeiras compreendem as seleções por
características educativas, ou seja, as práticas escolares, o
currículo, as ações pedagógicas, o ensino de religião, a
disciplina e principalmente os resultados escolares. As
condutas funcionais estão atreladas a critérios práticos de
conveniência, isto é, proximidade geográfica, facilidade no
transporte, preços, pessoas conhecidas que freqüentam o
estabelecimento.
Para esse autor as representações sociais que
as famílias fazem dos diferentes estabelecimentos são
parte das combinações de informação, tais como grau de
tradição, estrutura física, resultados divulgados na mídia,
percepção do tipo de clientela, clima disciplinar,
comportamento dos alunos e localização. Nogueira (1998)
apresenta uma tipologia35 dos estabelecimentos de ensino
na rede privada na França dos anos oitenta do século XX,
que ajuda na compreensão do fenômeno que este projeto
pretende estudar, quais sejam: “estabelecimentos de
excelência”, “estabelecimentos para as classes altas”,
“estabelecimentos inovadores”, “estabelecimentos de

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 261


apoio” e “estabelecimento de rattapage”.
Com relação à formação dos professores, os
autores reportam que o nível de exigência é bem superior
às qualidades pedagógicas, pois que são escolhidos
criteriosamente pela dupla seleção dinheiro e exame
de dossiês nos quais o nome de família é um dos
elementos relevantes.
Pode-se inferir, a partir dos artigos citados, que
a escola como instância social não compensa as diferenças
que a sociedade capitalista impõe, ou melhor, não consegue
anular as diferenças entre as classes e grupos com
possibilidades e oportunidades econômicas distintas, pois
apesar de pertencer a uma sociedade industrializada e de
apresentar uma constituição formalmente democrática,
sobrevivem a desigualdade e as injustiças. Os pais da elite,
por possuírem capital econômico, impõem seu capital
cultural e social e, apesar da escola ser considerada pública,
interferem na prática de ensino selecionando os saberes
que deverão ser repassados, independentemente da
formação que o professor recebeu.
No Brasil, podemos destacar os trabalhos de
Almeida (1999); Dallabrida (2001); Nogueira (2002),
sobre a escolarização de grupos considerados dominantes
(dirigentes), apontando o modo de funcionamento de
instituições escolares especificas. Esses trabalhos
subsidiaram as interpretações realizadas na presente
pesquisa.
Almeida (1999) em seu estudo sobre “A escola
dos dirigentes paulistas” pesquisa as “fraturas e
articulações” entre grupos de dirigentes por meio do
estudo da escolarização de alta qualidade na cidade de São
Paulo. Tomou com base o acesso ao nível superior na
Universidade de São Paulo (USP) e analisou três colégios
privados que preparavam para este acesso. Conclui que
na realidade social brasileira existe uma situação de quase

262 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


monopólio do ensino privado como credenciais de
aprovação no vestibular nessa Universidade.
Segundo Dallabrida (2001), as instituições
escolares escolhem a população que as freqüenta, além da
selecionarem a forma e o conteúdo escolar. Em seu
trabalho sobre a fabricação escolar das elites, estudo feito
sobre o Ginásio Catarinense na Primeira República,
apresenta a divisão da elite catarinense em relação aos
gêneros nos modos de educação secundária: enquanto os
homens ingressavam no Ginásio Catarinense, as mulheres
estudavam em cursos normais ou na Escola Normal ou no
Colégio Coração de Jesus. Afirma que, nessa época, na
capital catarinense, houve uma série de investimentos
políticos objetivando produzir uma população disciplinada,
saudável e produtiva, através das instituições escolares
confessionais.
Nogueira (2002), apresenta as estratégias de
escolarização em famílias de empresários no estado de
Minas Gerais, com empresas dos setores diversificados
(comércio, indústria, serviços) de porte pequeno a grande,
frustrando a intenção inicial de investigar somente famílias
de empresas de porte grande (pela dificuldade de
identificação e acesso a essas famílias); essa flexibilização,
impôs que nem todas as famílias pudessem ser classificadas
como ocupando as mais altas posições na escala econômica,
porém todos os participantes da pesquisa fazem parte, do
que a autora denominou de “classes superiores”36.Em suas
análises preliminares aponta que a na escolha da escola
para o filho valor atribuído para o social- estabelecimento
que propiciem a constituição de uma rede de sociabilidade-
é maior que o valor acadêmico. Explica que neste estudo
encontrou um certo desinteresse pelos estudos e uma
relação com o conhecimento escolar do tipo “utilitarista”,
presente de sobremaneira, quando os pais têm baixo nível
de escolaridade e creditam seu êxito econômico a

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 263


competências externas ao conhecimento escolar.
Os processos de ampliação de oportunidades de
acesso à escola pública, especialmente no que se refere ao
ensino fundamental, ocorridos a partir dos anos 60 do
século passado e que redundou, na atualidade, na quase
universalização absoluta de acesso a esse nível de ensino,
foram acompanhados por um forte comprometimento da
sua qualidade, especialmente em razão de políticas públicas
que pouco privilegiaram esse aspecto.
Estas políticas permitiram, favoreceram e
estimularam a ampliação da rede privada de ensino que,
calcada no desmantelamento do ensino público, passou a
ser procurada, especialmente pelos extratos superiores
das camadas médias, como forma alternativa de oferta de
ensino de qualidade aos seus filhos.
Ao lado do surgimento e expansão de grandes
redes empresariais que foram se formando nesse contexto,
as escolas confessionais de alto nível, antes destinadas
quase que exclusivamente às elites, passaram por
processos de reformulação para a incorporação desse novo
contingente que buscava alternativa à deterioração do
ensino público, da qual o Colégio Coração de Jesus fez parte.

A entrada de frações, até aí fracas utilizadoras


da escola, na corrida e na concorrência pelo
título escolar, tem tido como efeito obrigar as
frações de classe, cuja reprodução era
assegurada principal e exclusivamente pela
escola, a intensificar seus investimentos para
manter a raridade relativa de seus diplomas e,
correlativamente, sua posição na estrutura de
classes; neste caso, o diploma, e o sistema
escolar que o confere, tornam-se assim um dos
objetos privilegiados de uma concorrência entre
as classes [...] (BOURDIEU, 1998b, p. 148).

264 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Segundo Romanelli, Zago e Nogueira (2000, p.
12), os principais estudos acerca da relação família e escola
têm apregoado que esta relação é complexa e muitas vezes
assimétrica com respeito aos valores e objetivos das duas
instituições. Reportam o cuidado com que a família e a
escola precisam ser tratadas nas suas condições históricas
e socioculturais. E apontam a nova tendência dos estudos
sobre as trajetórias escolares, que passam a acompanhar
o percurso na tentativa de conhecer os diferentes
contextos, etapas, mecanismos e modos de constituição
da desigualdade como forma de quebra “das grandes
regularidades sociais”.
Zago (2000), no seu trabalho sobre “processos
de escolarização nos meios populares”, parte do princípio
que as experiências sociais extra-escolares dos alunos
precisam ser consideradas em função da leitura do sujeito
como parte ativa de seu processo de escolarização. Nesse
contexto, enfatiza dois pontos como recorrentes: a escola
como espaço de socialização e proteção dos filhos do
contato com a rua e domínio dos saberes fundamentais
para a entrada no mercado de trabalho.
Se é fato que o grande problema da educação
brasileira reside na oferta de escolarização diferençada
para diferentes classes sociais, constituindo-se em evidente
agente para a manutenção do status quo, não se pode negar
que o imaginário social construído sobre as
(im)possibilidades de aprendizagem e de inserção social
satisfatória dos sujeitos considerados com deficiência,
embora acarrete conseqüências muito mais fortes, por
razões óbvias, sobre aqueles oriundos dos extratos sociais
desprivilegiados, perpassa por toda a sociedade.
A relatividade entre possibilidades e limites na
integração social de indivíduos deficientes, dentro do
padrão esperado de determinada sociedade, como por
exemplo, escolaridade e atividade profissional, parece estar

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 265


relacionada mais com o meio sócio econômico do qual o
mesmo faz parte, do que com as específicas dificuldades
que a deficiência poderia ocasionar. Nesta direção, Bueno
(1993, p. 50) afirma:

Isto pode ser comprovado por indivíduos que,


apesar de surdos e cegos, conseguem atingir
níveis elevados de escolaridade, exercer
ocupações profissionais qualificadas, constituir
família regularmente e participar de atividades
sociais próximas ou abrangentes. Não se pode
negar que a maioria esmagadora desses surdos
e cegos provém de meio sócio-econômico
privilegiado, o que é mais uma comprovação
de que as dificuldades/ possibilidades do
excepcional se constituem em via de mão
dupla.

As oportunidades de desenvolvimento da
autonomia e da individualidade, que fazem parte do
processo de humanização, são oferecidas de forma desigual
através de diversas maneiras de escolarização. Com os
deficientes, a “marca negativa” parece suplantada nos
estratos superiores da sociedade de classes, pelo fato de
terem maior acesso à educação de qualidade e,
conseqüentemente, à integração social.
Os estudos sobre família com filhos deficientes
têm enfocado mais as percepções ou representações sobre
a deficiência e as práticas no processo de escolarização. A
discussão atual diz respeito ao processo de exclusão/
inclusão por que passam os considerados “Portadores de
Necessidades Educativas Especiais”37 na rede regular de
ensino.
Barroso (2003, p. 27) afirma que são múltiplas
as formas de exclusão fabricadas pela escola e aponta
quatro modalidades: a escola exclui porque não deixa

266 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


entrar os que estão fora; a escola exclui porque põe fora
os que estão dentro; a escola exclui incluindo; a escola
exclui porque a inclusão deixou de fazer sentido. No
primeiro caso aponta a desigualdade de oportunidades
relacionada com a origem social dos alunos. No segundo
caso, a exclusão refere-se ao fracasso e à evasão dos alunos.
Já nas últimas modalidades, a exclusão é sutil, pois, no
mesmo momento em que oferece seus bancos escolares,
não estrutura sua prática para que a aprendizagem
aconteça, fazendo que o sentimento de pertencimento, à
escola, não atinja os alunos que possuam diferenças no seu
potencial educativo.
A permanência e a naturalização da organização
pedagógica, como é a escola seriada caracterizada
fundamentalmente pela homogeneidade das regras, dos
espaços, da divisão do tempo, dos alunos, dos professores
e dos processos de inculcação, constitui uma das marcas
mais distintivas da “cultura escolar”. A série, que era
inicialmente uma simples divisão de alunos, adquiriu, com
a sua legitimação, o papel de medir a progressão dos alunos,
tornando-se sinônimo do ano de escolaridade (BARROSO,
2003).
Existe uma hierarquia da autoridade entre o
corpo discente e docente na organização das escolas
seriadas, como por exemplo, entre professores e alunos,
entre os alunos das séries mais adiantadas, entre a direção
e os professores. Com relação à existência de classes
regulares e classes especiais, acredita-se que se acirre esta
noção hieraquizada.
Esses dois modelos de Classes dentro dos
mesmos modos de organização e funcionamento, sendo a
primeira marcada pela progressão e a segunda pela
estagnação já sentenciam as diferenças nos objetivos e
interesses finais da escola, seja através do currículo ou da
participação das atividades coletivas no cotidiano escolar

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 267


fazendo com que exista uma diminuição no sentimento de
pertença daqueles que não correspondem e são excluídos
do ethos escolar.
Dubet e Martuccelli (apud SIQUEIRA, 2004,
p. 20), destacam as diferenças sociais que atravessam o
sistema escolar apontando trajetórias diferentes para
indivíduos diferentes:

[...] agora, que a escola é menos desigual que


antes, ela se mostra comparativamente muito
mais injusta, na medida em que é no seio
mesmo do percurso escolar que se formam as
desigualdades.

A realidade social não é linear e sofre constantes


mudanças, hoje já não se pode pensar na sociedade como
uma totalidade; é necessário analisar a pluralidade e a
heterogeneidade que orientam a “experiência social”.
Segundo Dubet (apud SCHALLER, 2002) as lógicas de ação
que se desenvolvem na esfera da vida social, são três: a
estratégia, a integração e a subjetivação. Neste sentido,
orienta que é necessário isolá-las como ponto de partida
para construir um estado de lugares. A escola, a família
não são mais espaços únicos de socialização; as relações
sociais são sentidas como provas individuais de
desempenho, pessoal e profissional; é necessário ser
merecedor, pois, do contrário, o não reconhecimento e o
não pertencimento são formas de violência principalmente
no meio escolar. Essas imagens de vítimas sociais remetem
ao que o autor chamou de “defectologia individual”:

O processo segregativo mantém uma


abordagem integrativa, um apelo à identidade
integrativa como uma referência a um sistema
normativo central: para pertencer à sociedade,

268 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


é preciso estar dentro. Os Outros não
contribuem para a vida econômica, não
participam da vida cultural e social. A
segregação marca toda uma população
definida por uma distância em relação a essa
norma central de integração. Essa distância
pode ser caracterizada, seja em termos de
participação social, ao descrever toda uma
população como inutilizada, seja em termos de
valores morais, nos quais os comportamentos
das pessoas são descritos como fora das
expectativas sociais (SCHALLER, 2002, p. 2).

O estabelecimento de um sistema paralelo à


educação regular para atender alunos deficientes que
consiste na “educação especial” em escola diferenciada ou
mesmo em classes especiais contribui para a exclusão
desses alunos na rede regular de ensino, já que se acredita
que, neste ambiente, os alunos deficientes encontram
estruturas materiais e humanas especializadas para
atender suas necessidades e, em contrapartida, a escola
regular seria inadequada tanto pela estrutura física quanto
pelo despreparo do professor.
Longe de acreditar que a escola especial é
desnecessária ou que alunos com deficiência não deveriam
ter atendimento especializado, a reflexão que se faz aqui é
sobre a concepção que as práticas da “educação especial”
inculcaram no ensino regular - de que sua “clientela” não
se beneficiaria dos saberes de um currículo comum-
independentemente de sua deficiência ser considerada de
ordem mental, visual ou auditiva.
A discussão que se tenta fazer neste trabalho é
para além da dicotomia escola comum ou especial; a
pretensão é estabelecer os parâmetros entre as condições
objetiva de uma “implicação no funcionamento físico” e as
condições reais de inserção desse sujeito em seu meio social.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 269


A maneira como a nossa sociedade reagiu e caracterizou
as pessoas deficientes ao longo da história possibilita
discutir as formas de escolarização atuais para esses alunos
e todo o dilema da educação inclusiva que transcende os
muros escolares.
Investigar as motivações e expectativas de
famílias que pertencem a classes superiores da sociedade
sobre a escolarização de seus filhos deficientes e as formas
de organização oferecidas pela escola escolhida, pode
oferecer meios para se aprofundar ainda mais a relação
entre deficiência, escolarização e classe social, tendo em
vista que, nos estudos disponíveis que versam sobre a
seleção da escola pelas famílias, não foram encontrados
trabalhos que se reportem à educação especial.
O caminho escolhido e percorrido para a
pesquisa, está dividido em três partes: na primeira faz-se
uma discussão sobre a metodologia utilizada nas pesquisa
das Ciências Sociais relacionadas com família e escola,
justificando a escolha dos procedimentos de coleta e análise
dos dados. Na segunda parte apresenta-se o delineamento
da pesquisa, com os dados sobre a seleção dos
participantes, e procedimento de coleta de dados. A
terceira parte é relativa à apresentação, análise e discussão
dos resultados.
1 – Quais as motivações, os critérios e as
expectativas das famílias na escolha do Colégio Coração
de Jesus para o/a filho/a com deficiência?
2 – Como a escola se organizou nesse período
para atender a essa população e quais os resultados
alcançados?
As pesquisas em educação têm apontado que é
necessário buscar interfaces com o campo multidisciplinar,
principalmente na busca de instrumentos que consigam
aproximar o pesquisador de seu objeto.
Brandão (2000), em seu artigo sobre as

270 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


condições de produção de pesquisa com a temática família
e escola, discute, a partir de sua experiência de
pesquisadora, que, com muita freqüência, as pesquisas em
educação sofrem com a falta de “tradição disciplinar” e
por isso buscam referências e instrumentos em outros
campos. Critica a dicotomia entre quantidade e qualidade
nas pesquisas das ciências sociais, enfatizando a
necessidade desta área não ter “ortodoxia metodológica”
para recorrer ao melhor instrumento que possibilite obter
o “ângulo mais adequado do problema em investigação”.
Compreendo que as experiências de
pesquisadores desta temática abrem caminhos para que
as pesquisas ganhem em qualidade e não percam o rigor
necessário às investigações acadêmicas. Essas
experiências, objetivadas nas práticas de pesquisas, podem
ser reconhecidas como disposições duráveis (habitus) dos
pesquisadores, conforme explica Brandão:

A aquisição do habitus científico (rigor) exige


tempo e esforço: os materiais de pesquisa,
sejam dados quantitativos ou informações e
representações sociais colhidas por
questionários ou entrevistas, não são dados. Há
todo um trabalho prévio de construção de um
corpo de hipóteses derivado de um conjunto de
escolhas teóricas que é indispensável para
delimitar e conferir sentido aos materiais
empíricos necessários ao desenvolvimento da
investigação (BRANDÃO, 2000, p. 175).

Bourdieu (1998a) discute que as escolhas dos


procedimentos de coleta de dados podem revelar a
ortodoxia de algumas “Escolas Teóricas” que, por trás de
fundamentos metodológicos, determinam as técnicas, sem
a mobilidade salutar de se mesclar ou combinar
procedimentos que possam ser pertinentes em relação ao

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 271


objeto de pesquisa.
Esse autor preza que os pesquisadores fiquem
atentos e desenvolvam o que ele denominou de habitus
acadêmico, sem se desprenderem de seu foco de pesquisa,
utilizando as técnicas pertinentes ao seu objeto, mesmo
que seja necessário combinar procedimentos para coletar
os dados de diferentes perspectivas metodológicas.
Lembra que a “arrogância da ignorância” faz do
pesquisador um escolástico quando se perde nas
armadilhas metodológicas.
A presente pesquisa buscou dados das mais
variadas formas e fontes, mesclou entrevistas e análises
documentais - documentos da secretaria do Colégio, do
Conselho Estadual de Educação, das Leis e decretos, bem
como livros de circulação restrita, encomendados para
marcar as comemorações da Instituição e da Congregação
da Divina Providência - para assegurar que o objetivo da
pesquisa não fosse perdido. Na entrevista, priorizaram-
se as informações mais do que a parte formal, havendo,
quando necessário, mais de um encontro, para esclarecer
as dúvidas da primeira intervenção, sem a mesma rigidez
de tempo de duração.
Segundo Zago (2003, p. 295), a escolha dos
instrumentos de coleta de dados não é neutra, sendo
empregados em diferentes perspectivas com base na
definição da problemática do estudo. Enfatiza que a
utilização genérica do termo entrevista encobre a
variedade no método, pois o pesquisador não se apropria
da entrevista como uma técnica mecânica.
Foram selecionados sete ex-alunos que hoje
fazem parte da Cooperativa (COEPAD - Cooperativa Social
de Pais, Amigos e Portadores de Deficiência Mental),
fundada pelos pais dos alunos que freqüentaram a classe
especial desse Colégio. As entrevistas foram realizadas com
seis mães, uma com um pai - cuja esposa já havia sido

272 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


ouvida - e uma com a própria ex-aluna. Em três casos foi
realizada mais de uma entrevista. Também foram ouvidas
três professoras que trabalharam diretamente nas Classes
Especiais, sendo que destas uma foi ouvida duas vezes. As
professoras foram selecionadas por indicação da primeira
informante, que foi escolhida por ser Coordenadora do
Ensino Fundamental e, na época das observações, era
reconhecida como o “braço direito da Direção”.
Segundo Lahire (1997, p. 77), o pesquisador tem
que abrir seu leque de entrevistados para conseguir maior
confiabilidade nos resultados, apresentando em suas
pesquisas uma gama de entrevistas com diferentes agentes
sociais que formam uma configuração familiar, não para
confrontar as “verdades” mas para reconstruir, com base
em todas as informações, a realidade social:

(...) o problema não é, definitivamente, saber


se os entrevistados disseram ou não a verdade,
mas tentar reconstruir relações de
interdependências e disposições sociais
prováveis através das convergências e
contradições entre informações verbais do pai
e as fornecidas pela mãe ou pela criança, entre
as informações verbais e as paraverbais,
contextuais ou estilísticas, etc. (LAHIRE, 1997,
p. 77).
No decorrer das análises dos dados foram sendo
incorporados ao rol de participantes pessoas que foram
sendo indicadas como relevantes para o entendimento da
implantação das Classes Especiais:
1) O pai de uma ex-aluna que foi presidente da
APAE de Florianópolis e responsável por muitas ações na
área da educação especial no Estado de Santa Catarina.
Atualmente presidente da Cooperativa;
2) O médico neurologista que encaminhou seus

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 273


clientes de uma clínica particular para o Colégio.
Nesse sentido, como procedimento de análise
das transcrições, optou-se, nesta pesquisa, por não fazer
nenhum corte, nenhuma substituição, preservando o
conteúdo da fala, com seus vícios e suas redundâncias,
porém para melhor apresentação, tentou-se retirar em
alguns momentos as intervenções da entrevistadora por
acreditar que isso não prejudicaria o entendimento do
leitor. Nestes casos aparece como interrupção da fala a
chave com reticências, simbologia idêntica para as pausas
do próprio entrevistado.
Após as transcrições e as inúmeras leituras,
optou-se por categorizar as falas em três grandes eixos
temáticos, separando-se as falas sobre as famílias e sobre
o Colégio. Em um segundo momento esses eixos foram
divididos em categorias devido à constatação de que sobre
cada de um deles existia uma gama de informações que
precisavam ser sistematizadas. Foram construídas, ainda,
subcategorias norteadas pelos objetivos desta pesquisa,
na tentativa de focalizar as respostas e não se perder na
riqueza do material empírico.
Os principais resultados encontrados sobre as
famílias, demonstram que as mesmas pertencem às
“Classes Superiores”, utilizando-se o conceito de Nogueira
(2002) que identifica essa parcela da população através
do “modo de vida” sob a mira dos recursos materiais
disponíveis, muito acima da média nacional. Como
indicadores foram utilizados: a ocupação e escolarização
dos pais e dos irmãos, bem como a condição residencial,
apresentada pelo local onde moram e a posse de
residências secundárias. A característica principal dessas
famílias não reside somente na posição social que ocupam
atualmente, mas no fato de as mesmas terem estudado
em estabelecimentos de ensino privados, e ocuparem essa
posição há pelo menos duas gerações.

274 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Evidencia-se nesse grupo a predominância por
moradias centrais, considerando que a área central da
cidade é muito valorizada, principalmente nesse caso em
que a maior parte das residências são próximas da avenida
Beira Mar Norte38, local onde o preço do metro quadrado
é muito mais elevado que nos outros bairros da capital.
A segunda residência aparece como opção de
casa de campo e de praia, demonstrando que existe, nestas
famílias, a possibilidade de passar as férias dos meses de
verão na praia e as férias dos meses mais frios na casa de
campo.
Pinçon e Pinçon-Charlot (2002, p. 19) relatam
a pesquisa realizada sobre a infância dos chefes herdeiros
ricos da França e apresentam a relação entre espaço e
aprendizagem familiar. Evidenciam os elementos da vida
cotidiana, entre eles o espaço de moradia:

Parece tão natural que as famílias ricas


disponham de grandes apartamentos, de
carrões do ano, de palacetes ou propriedades
na província, e também que tenham a
possibilidade de viajar pela França e exterior
que, naturalmente, acabamos esquecendo os
efeitos das experiências precoces associadas às
experiências em relação à estruturação dos
habitus, à formação das predisposições e
representações que induzem uma relação
específica ao espaço e uma relação diferente
do corpo, de seu próprio corpo, com o meio
circundante “físico” e humano, com a
sociedade incorporada nas coisas, inclusive no
ordenamento da “natureza” que é sempre -pelo
menos, na Europa - cultivada, nos dois sentidos
do termo.

Os autores discutem de que forma este

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 275


enquadramento espacial, convertido aqui na moradia, pode
influenciar na utilização do corpo e nas atitudes sociais das
crianças que vivem em espaços amplos e crianças que
vivem em espaços pequenos:

(...) no primeiro caso, o indivíduo dispõe sempre


de lugar sendo que a dificuldade consiste em
administrar seu corpo, a apresentação de si no
meio circundante que coloca em cena, expõe
os corpos. Pelo contrário, o alojamento popular
exíguo, adapta-se à displicência das atitudes.
No entanto, essas diferenças na
experimentação do espaço cotidiano induzem
grandes desigualdades no controle ulterior das
atitudes sociais em que se trata de estar em
representação como, por exemplo, tomar a
palavra em público, ou simplesmente fazer boa
figura em uma reunião (PINÇON e PINÇON-
CHARLOT, 2002, p. 19).

Alertam que de nada adiantaria o espaço


generoso se o indivíduo não interiorizasse concomitante
sua posição ocupada na sociedade, ressaltando que a vida
do bairro, as benesses e as deferências manifestadas
através de bens e serviços inculcam a aprendizagem da
vida social e legitimam a superioridade de suas origens.
Almeida (2003) em seu estudo sobre um
colégio privado da cidade de São Paulo relata que a forma
como o endereço era utilizado pela escola para explicar as
propriedades sociais de seus alunos resultava em uma
prática de denominação que indicava automaticamente
uma posição social inferior, na tentativa de homogenização
dos moradores da “zona leste”.
Transpondo esta análise para a parte central
de Florianópolis, evidencia-se que o diferencial é o entorno
da avenida Beira Mar Norte entendida como a parte

276 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


burguesa da cidade. Nesse caso encontram-se quatro dos
sete participantes com a residência nesse espaço
considerado de elite com padrão de amplitude apontado
por Pinçon e Pinçon-Charlot (2002), anteriormente
citados, como foi constatado no momento da entrevista,
com alto padrão de construção e com um serviço impecável
de segurança.
Quanto à formação dos pais, buscou-se
articular entre a escolaridade e a ocupação dos pais para
construir uma caracterização mais detalhada das famílias,
inspirada no trabalho de Nogueira (2003), que estudou a
trajetória escolar de universitários pertencentes a famílias
intelectualizadas (filhos de professores universitários),
fazendo um levantamento dos dados de formação paternos
e maternos.
Foi possível identificar que em todas as famílias
encontra-se um dos pais com formação universitária,
sendo que em três casos as mães também possuem
graduação, porém o que mais chama atenção é que todas
as mães estão atualmente dedicadas ao lar, mesmo as que
concluíram um curso superior. Sobre a ocupação da mãe,
consta que somente uma conseguiu aposentar-se, ou seja,
seguiu sua carreira até o término de sua profissão como
funcionária pública39.Quanto à formação dos outros filhos,
aparece a maioria com nível superior, das mais variadas
profissões, médicos, advogados, engenheiros, pedagogos,
administradores de empresas.
Segundo Carvalho (2004), os estudos nacionais
e internacionais têm apontado que o impacto da educação
dos pais sobre o desempenho educacional dos filhos pode
ser demonstrado pelo nível educacional atingido por estes.
Em seu estudo sobre estudantes dos Cursos de Engenharia
e Direito da PUC-Rio no ano de 2000, os resultados
apontaram que a grande maioria das famílias possuíam
pais com cursos superiores.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 277


Martin (2002) em seu estudo sobre os modos
de educação de jovens aristocratas na França, aponta que
na Notre-Dame des Oiseaux, escola situada no 16° bairro
de Paris, existe uma forte homogeneidade social no
recrutamento das alunas, professoras e religiosas, sendo
que muitas gerações da família passam pelo mesmo
estabelecimento de ensino como forma de prolongar a
educação familiar.
Brandão e Lelis (2003), em pesquisa
desenvolvida sobre a escolarização dos filhos de elites
acadêmicas, apontam que existe uma intenção das famílias
de que os filhos repitam a trajetória escolar dos pais na
rede privada de ensino, porém as exceções de filhos
matriculados na rede pública foram especificamente em
colégios de “excelências” (Colégios de Aplicação e Colégio
Pedro II), que são disputados por diversas frações das
camadas sociais.
No que se refere ao estado civil dos pais,
verificou-se que todos foram casados no civil e no religioso,
a maioria das famílias possuem dois ou três filhos sendo
que duas famílias possuem somente um filho.
Aspectos relacionados à composição familiar
como, número e posição na ordem cronológica ocupada
pelos filhos, em estudos que investigam o investimento
das famílias na escolarização, têm sido apontado como
diferencial. Segundo Nogueira (1995), as estratégias
educativas de famílias que possuem menos filhos têm sido
identificadas de forma diferente, conforme a camada social.
Nas classes média e baixa, a aposta tem sido na
escolarização do filho mais velho, porém, no caso das elites,
não são encontradas diferenças no modo de investimentos
entre os filhos. Em compensação, quanto menor o capital
econômico, maior o número de filhos e vice-versa.
Nesse aspecto, estudos mais recentes têm
apontado para o risco da generalização nas comparações

278 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


entre o número de filhos das famílias pertencentes às
diversas camadas sociais. Ressaltam que a realidade
brasileira tem se modificado com os programas de
planejamento familiar e com os controles de natalidade
(CARVALHO, 2004; OLIVEIRA, 2005).
Segundo os dados da profissão do pai, não é
possível determinar a renda média familiar, porém infere-
se que a mensalidade escolar e todos os atendimentos
dispensados ao filho não pesavam no orçamento familiar.
Com base nas informações das entrevistas, a maioria das
famílias pagava, além da mensalidade do Colégio, outros
atendimentos clínicos com a renda familiar vinda somente
do trabalho do pai.
Destaca-se que não é somente o capital
econômico dessas famílias que as faz ir atrás de recursos e
atendimentos diferenciados. Aqui aplica-se o que Bourdieu
(apud NOGUEIRA, 2003) comenta sobre a importância
de um componente específico do capital cultural que é a
informação.
O conjunto das informações sobre a condição
de vida das famílias confirma o seu pertencimento às
chamadas “classes superiores” correspondendo às
descrições de estudos que trabalharam com esse grupo
social (BRANDÃO, 2000; CARVALHO, 2004;
NOGUEIRA, 2002 e 2003), não somente pelo seu capital
econômico, mas pelo seu capital escolar, tendo em vista a
predominância de familiares com o curso universitário,
bem como outros tipos de capitais: o capital social e
simbólico, informacional.
Nos relatos, observa-se que existe um grande
desconhecimento sobre as questões que envolvem o
nascimento de um filho com deficiência, desde a etiologia,
os atendimentos médicos e paramédicos e principalmente
o que envolve prognóstico. O momento da revelação
diagnóstica é descrito como algo penoso que marca

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 279


decididamente os encaminhamentos tomados. Uma das
mães contou que não amamentou o filho, pois fora orientada
na maternidade que não seria possível e, sua palavras
parecem carregadas de muita “culpa” por aquilo que não
pôde oferecer naturalmente para um filho esperado, por
falta de orientação.
A história da educação especial na civilização
ocidental apresenta, em diferentes épocas, que os
atendimentos às pessoas com deficiência variaram, mas
somente agora, muito recentemente, é que a concepção
sobre a deficiência passou a ser vista com olhos
educacionais. A visão clínica que perdurou por longas
décadas e que ainda subsiste em muitas formas de
atendimento atualmente, provavelmente foi uma das
responsáveis por desencadear e naturalizar a necessidade
de tratamento como se a deficiência fosse uma doença e,
neste sentido, as famílias dos alunos que freqüentaram as
classes especiais dessa instituição educacional não saíram
ilesas; procuraram por anos “tratar” as dificuldades dos
filhos com atendimentos fonoaudiológicos, fisioterápicos e
psicológicos na tentativa de diminuir suas “incapacidades”
no processo de escolarização regular, como veremos a
seguir:
Constata-se que existiu um grande
investimento com atividades extra-escolares, desde o
nascimento, com a “estimulação precoce”, que na maioria
dos casos foram atendimentos privados, o que certamente
exigiu grandes gastos financeiros. Sem contar o dispêndio
de tempo necessário para dar conta da agenda de
atendimentos. Considerando que a maioria das mães tinha
mais de um filho, é compreensível que as mesmas tenham
abandonado suas carreiras profissionais. Uma delas, depois
de 10 anos na profissão de advogada, relata que abandonou
a carreira para dedicar-se ao filho com Síndrome de Down
(S.D.). Infere-se que a formação que a maioria dessas mães

280 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


teve nesse estabelecimento de ensino ou em colégio similar
seja também responsável pela abnegação encontrada
nessas mulheres, que foram formadas para exercerem o
papel de “boas mães e esposas”, porém a atitude de ficar
em casa só pôde ser efetivada pelo respaldo que a condição
financeira propiciou, principalmente na figura do pai, numa
distinção clara dos papéis tradicionais de homem e mulher
na configuração dessas famílias.
Romanelli (2000) escrevendo sobre a
autoridade e o poder na família indica que a organização
familiar é um elemento importante na forma como é
conduzido o processo de socialização dos “imaturos”.
Explica que apesar das mudanças, nas últimas décadas,
da diversidade na composição e constituição das famílias,
a família nuclear continua prevalecendo, mas que sua
importância transcende ao predomínio estatístico,
residindo em seu significado simbólico que a transformou
no modelo ideal de ordenação da vida doméstica:

Em linha gerais, esse modelo de família tem


como atributos básicos: uma estrutura
hierarquizada, no interior da qual o marido/
pai exerce autoridade e poder sobre a esposa e
os filhos; a divisão sexual do trabalho bastante
rígida, que separa tarefas e atribuições
masculinas e femininas; o tipo de vínculo
afetivo existente entre os cônjuges e entre esses
e a prole, sendo que neste último caso há maior
proximidade entre mãe e filhos; o controle da
sexualidade feminina e a dupla moral sexual.
(ROMANELLI, 2000, p. 75).

Examinando-se as características de
composição dessas famílias é possível afirmar que se trata
de famílias nucleares, com forte divisão do papel dos
genitores, a mãe responsável pela vida privada da família,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 281


cuidando da casa e dos filhos e o pai da vida pública,
buscando fora o sustento da prole.
Segundo Brown (1990), o sistema familiar é
composto pelos membros de casa e por qualquer pessoa,
presente ou não, que exerça influência constante na
configuração das interações familiares. Completa
afirmando que os laços familiares são invisíveis, complexos
e poderosíssimos, capazes de modelar atitudes, expor
emoções a quilômetros de distância e influenciar nosso
comportamento durante toda a vida.
Entram aqui também os investimentos
“naturais” da classe superior em academias de ginásticas,
cursos de informática, dança, entre outros que essas
famílias costumam fazer para seus filhos e que aqui
também é resguardo para o filho com deficiência.
Carvalho (2004) relaciona as atividades extra-
escolares com o capital cultural das famílias, apresentando
como um investimento das famílias na educação dos filhos
os cursos de língua estrangeira.
As atividades freqüentadas pelos filhos dessas
famílias variam de natação e ballet a aulas de instrumentos
musicais e arte. Entende-se que essas aulas extras fazem
parte da busca do “ser integral”, ou seja, investindo no
potencial dos filhos, incentivando-os a ter contato com uma
gama de atividades que não fazem parte do currículo da
escola formal, enriqueceriam seu repertório cultural e,
conseqüentemente, o prestígio e distinção que advêm do
acúmulo desses capitais inacessíveis à maioria da
população.
Soares (2004), discutindo a escolaridade
obrigatória do aluno surdo do ensino regular, afirma que
muitas famílias, devido à posição social, optavam por
colocar seus filhos no ensino regular em detrimento do
ensino especializado, porém possibilitando atendimento
clínico e pedagógico extra escolar:

282 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


A política que originou o surgimento de uma
rede privada de ensino permitiu que várias
crianças que possuíam deficiências
freqüentassem o ensino comum. Pela posição
social que ocupavam, certos pais recusavam o
ensino especializado preferindo que seus filhos
permanecessem integrados no ensino comum.
Essas crianças usufruíam todo atendimento
clínico e pedagógico necessário para garantir a
sua permanência escolar de forma integrada.
(SOARES, 2004, p. 50).

Apesar de a autora estar se referindo


especialmente aos alunos surdos e atendimentos clínicos
específicos, é possível fazer a aproximação com os dados
desta pesquisa, onde os pais procuravam compensar as
“deficiências” de linguagem, do tônus muscular e outros,
com atendimento paralelo para compensar o que ele
estaria usufruindo se estivesse em uma escola especial.
Os depoimentos dos participantes demonstram
que essas famílias investiram na seleção da escola para o
filho como estratégia de diminuir as marcas da deficiência,
e que a concepção de que as escolas especiais não eram
para eles torna-se evidente em suas respostas ao
questionamento sobre suas escolhas.
Basicamente a expectativa é de que o filho,
apesar da “deficiência”, fosse alfabetizado, por ter um
“nível mais elevado”, como mencionou a última mãe.
Demonstram que o relacionamento com a família é
tranqüilo, mas que ainda perseguem com reforço escolar
que os filhos não “desaprendam” o que conquistaram,
mantendo uma luta constante.
Fernandes (2005) destaca que todos da família
são atingidos pelo nascimento de um membro deficiente.
Lembra que muitos irmãos sentem-se abandonados pelos
pais e obrigados a se esforçar para serem felizes e

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 283


brilhantes já que nasceram sem nenhuma deficiência.

Os restantes filhos são, pois, abandonados e,


ainda, obrigados a esforçarem-se por serem
perfeitos, felizes, brilhantes e a darem aos pais
todas as alegrias de que eles foram privados pelo
aparecimento do problema. Como se os pais
projetassem, nos filhos sãos, a imagem
idealizada do filho perdido. E, ainda, algumas
vezes, a indisponibilidade parental (dos dois ou,
apenas, de um deles) leva-os a que deleguem a
um dos filhos as suas funções, o que induz, na
criança parentificada, comportamentos de
hipermaturação que mais cedo ou mais tarde
podem perturbar o desenvolvimento da sua
autonomia (FERNANDES, 2005, p. 27).

No relacionamento dos filhos com os pais


encontram-se várias descrições, algumas mães salientam
a presença do pai na educação dos filhos na busca da melhor
atendimento, alguns mais abertos outros mais distantes,
porém todas tiveram a presença dos maridos em casa,
mesmo que na função de provedor.
Quanto à expectativa em relação ao filho, os
depoimentos demonstram mais preocupação que
verdadeiramente uma expectativa para o futuro. A
passagem da infância para a adolescência e dela para a
vida adulta gera muitas inseguranças nas famílias,
principalmente com relação ao futuro e à sexualidade.
Alguns estudos mostram que os pais lançam mão de
estratégias de infantilização na tentativa de mantê-los
alheios ao seu próprio desenvolvimento, através do uso
de roupas, acessórios, brinquedos e brincadeiras de
crianças e também através da forma de tratamento:
“minha criança, minha lindinha, meu bebê” (FRANÇA
RIBEIRO, 2001).

284 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Fica claro que essas famílias assistem seus filhos
com muita devoção, com muito carinho, porém as marcas
deixadas pela deficiência turvam suas visões para enxergar
o filho real, adulto, que apesar de ter um diagnóstico que
pressupõe uma “deficiência mental”, é uma pessoa, e que
já conquistou muito mais, através de atendimentos
diferenciados que a família pôde oferecer, do que a maioria
da população, e principalmente saiu das terríveis
estatísticas do analfabetismo que assola o Brasil.
Dentro das expectativas familiares, será
analisada a escolha desse estabelecimento de ensino pelas
famílias que, desde o nascimento desse filho, estão
travando uma batalha interna e externamente na busca
de um atendimento que “normalize” a questão da
deficiência.
Nesse sentido as famílias descrevem que essa
instituição foi o primeiro colégio regular que implementou
Classes Especiais para atender alunos que, devido a sua
condição de deficientes, não eram aceitos nas classes
comuns, sendo elegíveis somente para as escolas especiais.
Acreditam que a falta de alternativas de atendimento para
as pessoas deficientes deveu-se a duas razões: a
desinformação e, conseqüentemente, a forma como a
deficiência era encarada.
Com base nos depoimentos que apresentam as
motivações e as expectativas das famílias, a escolha da
escola deveu-se mais à busca de um colégio de tradição
que oferecesse a oportunidade de convívio com pessoas
da mesma origem social, do que à busca de atendimento
pedagógico, tendo em vista que na maioria dos casos, os
filhos já estavam no processo de alfabetização, e mesmo
em relação àqueles não conseguiram se alfabetizar, as
mães declararam que gostariam que o filho estivesse ainda
freqüentando aquela instituição.
Esta instituição consolidou-se para as famílias

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 285


como a única opção confiável de atendimento ao filho que
dissimulasse as marcas deixadas pela deficiência e que nas
outras instituições disponíveis seriam expostas.
Diante dos relatos sobre suas expectativas com
respeito ao filho e à sua escolarização, é possível traçar
um perfil dessas famílias com relação à escolha da escola.
Todas buscavam no estabelecimento de ensino a anulação
das marcas da deficiência e, embora acreditassem na
competência pedagógica do Colégio, os critérios de seleção
passam mais pelas relações sociais latentes que a
freqüência a esse Colégio pode ofertar do que pelo
atendimento especializado oferecido nas Classes Especiais.
Ter todos os filhos freqüentando o mesmo
Colégio parece ter influenciado a escolha, tendo em vista
todos os dispositivos citados para dissimular as marcas da
deficiência, como o uso do uniforme.
Todos os depoimentos parecem comprovar que
a motivação maior para esses pais matricularem seus filhos
na escola privada que boa parte dos familiares freqüentou
residiu muito mais nas possibilidades de freqüência de local
adequado às suas condições sociais de origem do que na
busca de um processo de escolarização mais eficiente.
A formação dessas classes especiais se dava pela
idade e o nível de aprendizagem dos alunos. Após a criação
da primeira Classe Especial, em alguns anos chegaram a
ter mais de uma sala. Apesar desta constatação, verificou-
se que, no cotidiano escolar das classes especiais, as
atividades eram realizadas com o objetivo mais ocupacional
do que escolar, mas acredita-se que as famílias estavam
esperando do Colégio atividades mais escolarizantes, tanto
que essas atividades “atividades de vida diária” não eram
realizadas na escola, eram feitas em outro lugar, mas os
pais pegavam e buscavam o filho no Colégio. O
descompasso encontrado aqui entre o objetivo das famílias
e o planejamento dos professores, não fica bem claro, já

286 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


que existem indícios de que os pais eram avisados sobre
essas atividades, pois os filhos levavam dinheiro para suas
compras.
O investimento em atividades extra-classe
tinha o objetivo de oportunizar a ampliação do repertório
do capital cultural, como acontece no ensino regular, mas
o que chama atenção são as viagens e a hospedagem em
hotéis, que são relatadas como atividades freqüentes.
Nas atividades realizadas no interior do Colégio,
os relatos apontam que, nas exposições, os trabalhos dos
alunos das classes especiais eram colocados junto aos de
todas as turmas e que se destacavam pela variedade dos
materiais utilizados, porém, com relação às Olimpíadas do
Colégio, as informações estão desencontradas; apesar de
duas professoras afirmarem que eles participavam de toda
a programação, isto não é confirmado pela terceira
entrevistada que relata que eles só assistiam.
Com relação à participação na banda do Colégio,
infere-se que foi uma conquista dos pais, já que foi criada
uma banda exclusiva para esta classe, porém com
integrantes da outra banda (oficial) para ajudá-los com os
instrumentos.
Até a década de 1990 o Colégio manteve as
Classes Especiais, porém, em decorrência da legislação do
Sistema Estadual de Educação, os alunos das Classes
Especiais foram integrados, nas últimas séries do Ensino
Fundamental, às Classes Regulares.
O fechamento das Classes Especiais foi relatado
pelas famílias como um momento de muitas incertezas,
devido à segurança que esse atendimento proporcionava.
Mencionam que o CCJ preparou as famílias para a
mudança que os alunos iriam sofrer com o processo de
integração, mas que, mesmo assim, muitas famílias não
entenderam, causando um mal estar geral neste período.
A insegurança sobre a adaptação do filho ao

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 287


ensino regular e o fato de o Colégio ter apontado outras
opções de atendimentos fora do mesmo, como por
exemplo, na escola especial mantida pela APAE, parece
ter sido o pivô de muitos desencontros entre as famílias e
a direção da escola.
Embora a maioria das famílias tenha se
manifestado positivamente com relação ao período de
integração, uma das mães acredita que seu filho tenha
apresentado muita dificuldade de adaptação.
A preocupação dessa mãe de que o filho não
conseguisse acompanhar as atividades dos outros alunos
da mesma sala, ou seja, da 8ª série do Ensino Fundamental,
seria procedente se não fosse pelo fato de que esta
integração deu-se somente através do espaço físico. Os
alunos que vieram das Classes Especiais tinham atividades
específicas montadas por professoras do setor de educação
especial dentro do Colégio.
É interessante analisar esse desfecho na ótica
das famílias, pois parece que o valor do diploma e da
cerimônia de formatura veio ao encontro dos objetivos que
motivaram a matrícula desse filho neste estabelecimento
de ensino. Com exceção de duas mães, todas as outras
mencionam o quanto foi importante para o filho ter saído
do Colégio com um diploma, mesmo admitindo que os
filhos não estavam com nível de aprendizagem para
completar o Ensino Fundamental, relatando descrédito
sobre a validade das avaliações e, principalmente, tendo
consciência do valor simbólico desse diploma. Apenas duas
mães reportaram que seus filhos não participaram da
formatura.
Apareceu ao longo do trabalho através das
entrevistas que uma das principais motivações e
expectativas das famílias ao matricularem seu filho nesse
estabelecimento de ensino foi com relação à convivência
social com pessoas da mesma origem social, porém parece

288 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


que foi no período em que as Classes Especiais foram
extintas e os alunos foram para as Classes Regulares que
as relações sociais se intensificaram.
Nesse sentido pode-se concluir que essas
famílias abriram caminhos para que o filho deficiente
pudesse percorrer sua trajetória de vida dentro do padrão
que eles almejavam. Na trajetória escolar, valendo-se do
capital social, buscaram juntamente com os responsáveis
pela clínica onde aconteciam os atendimentos psicológicos,
fonoaudiológicos e fisioterápicos a criação das Classes
Especiais no Colégio Coração de Jesus e com isso
conseguiram que o desfecho escolar fosse de sucesso, pois
a maioria dos alunos saiu com o diploma do Ensino
Fundamental. Sendo assim, conclui-se que as famílias
investiram na seleção da escola para o filho como estratégia
de diminuir as marcas da deficiência, na medida em que a
concepção de que as escolas especiais não eram para eles
tornou-se evidente ao longo da pesquisa.
A formação que a maioria das mães recebeu
através da escolarização em colégios destinados somente
a educação feminina foi entendida como responsável pela
abnegação encontrada nestas mulheres, que foram
formadas para exercerem o papel de “boas mães e
esposas”, mas destaca-se que foi o capital econômico
destas famílias que permitiu que estas mulheres
exercessem o papel que tradicionalmente lhes era
destinado na configuração familiar.
Quanto à escolha do Colégio Coração de Jesus
concluiu-se que, desde o nascimento deste filho, estas
famílias estão travando uma batalha interna e
externamente na busca de um atendimento que
“normalize” a questão da deficiência e encontraram nesta
instituição de ensino esta abertura, sendo que as
motivações e as expectativas das famílias deveram-se
mais à busca de um colégio de tradição que oferecesse a

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 289


oportunidade de convívio com pessoas da mesma origem
social, do que à expectativa com relação às possibilidades
de escolarização dos filhos.
Quanto ao critério de escolha, não se evidenciou
que tivesse tido relação com a questão religiosa, pois foi
salientada, ao longo das entrevistas, somente a
competência das Congregações Religiosas na manutenção
da excelência escolar, da disciplina e do rigor no
comportamento, marca tradicional dos colégios
confessionais.
Quanto à forma como o Colégio Coração de
Jesus se organizou para atender esses alunos em Classes
Especiais, a pesquisa indica que os trabalhos de sala eram
voltados para o trabalho psicomotor e os conteúdos eram
diferenciados pelo nível dos alunos. O currículo incluía
atividades ocupacionais, como por exemplo as atividades
de culinária, porém foi possível retratar um descompasso
entre os objetivos das famílias e o planejamento dos
professores. Ficou claro que as famílias foram buscar nesse
Colégio um atendimento mais escolarizante e que a escola,
desacreditando no potencial de aprendizagem dos
conteúdos escolares destes alunos, buscava implementar,
mesmo sem estrutura, atividades de vida diária, que eram
comuns, nessa época, nas escolas especiais.
A participação com trabalhos nas exposições no
interior do Colégio, a participação na banda, elementos
muito valorizados, para os alunos das Classes Especiais
aparece como uma conquista das famílias na mediação com
a escola, com o objetivo de realizar os desejos desses filhos
que almejavam essas atividades destinadas somente aos
alunos das classes regulares, mas, nas demais atividades,
como, por exemplo, as Olimpíadas do Colégio, esses alunos
ficaram com o papel de expectadores.
Apesar da divisão existente entre as classes
especiais e as regulares no interior do Colégio, o status de

290 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


estar incluído em uma escola regular fez com que as
famílias relatassem o período de fechamento dessas classes
com muito pesar.
Acredita-se que o projeto de integração
viabilizado após o fechamento destas classes deveu-se a
uma conjunção de fatores: o primeiro de ordem
administrativa e financeira (as classes estavam dando
prejuízos); o segundo, a pressão exercida pela mudança
do paradigma quanto ao atendimento segregado
evidenciada nas políticas estaduais e o terceiro a
necessidade de dar uma terminalidade à trajetória escolar
destes alunos que já estavam com idades superiores aos
alunos do Ensino Médio.
Embora conflituoso, o fechamento das classes
especiais, atendeu, em parte, às expectativas das famílias,
como se percebeu pelas menções de valorização destinadas
por elas ao diploma e à cerimônia de formatura, apesar do
descrédito sobre a validade das avaliações e
principalmente tendo consciência do valor simbólico desse
diploma.
Assim sendo, o que se pode concluir desta
pesquisa é que essas famílias buscaram, através do
ingresso de seus filhos deficientes mentais em escola de
alto padrão, algum nível de escolarização e a manutenção
de relações sociais que minimizassem os processos de
desclassificação de seus filhos, na medida em que, para
eles, a deficiência era impossibilitadora de inserção social
que correspondesse às suas expectativas como pais da elite
catarinense, tal como esperavam de seus outros filhos.
De qualquer forma, foi praticamente unânime
a valorização por esses pais do período em que lá
permaneceram, na medida em que respondeu aos seus
desejos de estabelecimento de relações sociais dentro da
camada social a que pertenciam.
Na medida em que o trabalho pedagógico

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 291


imprimido pela escola apresentou resultados muito baixos,
em termos de escolarização, ficou reforçada para esses
pais, a perspectiva de total impossibilidade de
aprendizagem de conteúdos acadêmicos por seus filhos
deficientes.
Nesse sentido, o reconhecimento do valor do
diploma conseguido, mesmo sem a devida correspondência
com a aprendizagem adequada dos conteúdos acadêmicos,
parece demonstrar que a marca da deficiência como
impossibilitadora de aprendizagens se sobreleva às
expectativas de inserção social, pois parece evidente que
essa situação jamais seria aceita pelos mesmos pais, se não
houvesse essa marca, tal como se evidenciou pelos
depoimentos em relação aos outros filhos.
De qualquer forma, tendo em vista que a
construção social da deficiência construída por esses pais,
e ratificada pelo trabalho escolar redundou numa visão de
incapacidade em qualquer tipo de atividade mais
elaborada. O fato de criarem a Cooperativa, onde seus filhos
deficientes desenvolvem alguns tipos de atividade laboral
na companhia de seus pares sociais deficientes, bem como
o fato de, pelas condições econômicas das famílias, as suas
subsistências estarem garantidas, mostra que, embora
semelhante ao destino social dos deficientes em geral, a
solução encontrada permite a manutenção de seus filhos
deficientes em “ambiente adequado” ao seu nível social.

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DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 299


INCLUSÃO DE CRIANÇAS
DEFICIENTES MENTAIS NO
ENSINO REGULAR: LIMITES
E POSSIBILIDADES DE
PARTICIPAÇÃO EM
SALA DE AULA

Benigna Alves Siqueira


APAE/SP

Durante 16 anos de trabalho na APAE de


Francisco Morato, venho acompanhando de perto a
realidade e a prática da educação de crianças deficientes
mentais, as oportunidades, as mudanças e as
“perversidades” do sistema educacional e social na
periferia de São Paulo.
Nestes anos de trabalho, atendi mães, pais e
crianças que “sonhavam” com uma vaga na escola. Porém,
no período compreendido entre 1989, quando comecei
meu trabalho na APAE de Francisco Morato, até 1996, a
equipe da escola especial não podia encaminhar crianças
deficientes mentais para a escola da rede regular, porque
estas não eram aceitas nessas escolas.
A promulgação da nova Lei de Diretrizes e Bases
da Educação Nacional - n º 9.394/96 gerou um “novo
contexto escolar” que tem possibilitado a matrícula e a
permanência de alunos deficientes nas escolas da rede
regular. Embora a inclusão escolar de alunos deficientes

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 301


constitua um desafio, sendo alvo de muitos
questionamentos, especialmente de educadores e pais que
entendem que a escola regular, especialmente a escola
pública, não está preparada para receber esse tipo de
criança, a inclusão escolar de alunos deficientes mentais
está ocorrendo e se disseminando pelo país.
Esta minha inquietação me fez buscar novos
caminhos, e me conduziu para o ingresso no Curso de
Mestrado do Programa de Estudos Pós-Graduados em
Educação: História, Política, Sociedade, da Pontifícia
Universidade Católica de São Paulo, em Agosto de 2002,
quando realizei esta pesquisa.
Apesar de trabalhar e “estar acostumada” com
as situações de pobreza, foi considerável o impacto da
“inclusão real” e das condições dos alunos, pois a escola
onde realizei as observações está localizada em um dos
bairros mais pobres de um dos municípios mais pobres da
Região Metropolitana da Grande São Paulo, sendo então
a “periferia da periferia”. Deparei-me com os problemas
reais da escola, não apenas no que se refere à inclusão,
mas também aos outros contextos do cotidiano escolar,
que são a expressão viva da “escola pobre para os pobres”:
divisão de horários para o uso do pequeno pátio, que
também é o local onde o lanche é servido; faltas freqüentes
de professores; escassez de materiais escolares por parte
dos alunos e também da escola; quadra descoberta o que
impossibilita seu uso nos dias de chuva etc.
A imprecisão das informações sobre a
aprendizagem dos alunos, suas atividades e
comportamentos em sala de aula mostraram-me, ao
mesmo tempo, um universo complexo da situação da
educação e também da inclusão escolar, porém rico e
motivador para a continuidade da minha pesquisa.
Entretanto, no decorrer desta pesquisa
constatei que, se por um lado a determinação legal da

302 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


matrícula possibilitou o ingresso do aluno deficiente na
escola da rede regular, por outro parece não existir
nenhum processo de avaliação e acompanhamento desses
alunos, que, neste município, são considerados “alunos de
inclusão”, juntamente com outros que apresentam baixo
rendimento escolar mas que não foram diagnosticados
como deficientes mentais.
Então, de fato, quem são os alunos de inclusão?
De acordo com a classificação utilizada no município onde
foi realizada a pesquisa, eles correspondem a uma parcela
com necessidades educativas especiais, caracterizada pelo
Conselho Nacional de Educação:

Artigo 5º - Consideram-se educandos com


necessidades educacionais especiais os que,
durante o processo educacional, apresentarem:
I – dificuldades acentuadas de aprendizagem
ou limitações no processo de desenvolvimento
que dificultem o acompanhamento das
atividades curriculares, compreendidas em dois
grupos:
a) aquelas não vinculadas a uma causa
orgânica específica;
b) aquelas relacionadas a condições, disfunções,
limitações ou deficiências;
II – dificuldades de comunicação e sinalização
diferenciadas dos demais alunos, demandando
a utilização de linguagens e códigos aplicáveis;
II – altas habilidades/ superdotação, grande
facilidade de aprendizagem que os leve a
dominar rapidamente conceitos,
procedimentos e atitudes.

Podemos considerar portanto que, nesse

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 303


município, os chamados alunos de inclusão40 envolvem
toda aquela gama de alunos que tinha como horizonte a
repetência ou exclusão escolar em virtude do baixo
rendimento apresentado, agora incluindo os deficientes
mentais anteriormente sem nenhum atendimento e uma
pequena minoria que era atendida pela instituição
especializada.
Isto parece vir ao encontro de autores como
Mindrisz (1994, p. 21), que afirma:

(...) não são os desvios que determinam a


excepcionalidade, mas o fracasso escolar. Este
é explicado pelas incapacidades atribuídas ao
aluno, escamoteando a questão das
desigualdades sociais que são de origem
econômica e não desigualdades naturalmente
dadas. (MINDRISZ, 1994, p. 21)

Andretto (2001) aponta que a Declaração de


Salamanca (Conferencia Mundial sobre Necessidades
Educativas Especiales, 1994) foi um dos marcos
fundamentais para a definição das atuais políticas de
inclusão. É nela que aparece o termo “necessidades
educacionais especiais” referindo-se a todas aquelas
crianças ou jovens cujas necessidades educacionais
especiais se originam em função de deficiências ou
dificuldades de aprendizagem. Muitas crianças
experimentam dificuldades de aprendizagem e, portanto,
possuem necessidades educacionais especiais em algum
ponto durante a sua escolarização.
Se afirmarmos que é durante o processo
educacional que se deve avaliar o aluno e definir se o
mesmo apresenta necessidade educativa especial, então
ele deverá estar matriculado, o que representa um ganho
enorme em relação à oportunidade de escolarização para

304 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


todos.
A forte influência do discurso médico na
educação especial também é dos aspectos que vêm se
modificando. Nos anos que antecederam a publicação da
Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, alunos
ficavam de fora da escola, muitas vezes, porque
apresentavam um relatório de um profissional ou de
avaliações realizadas em instituições, principalmente de
saúde, cujos profissionais emitiam laudos e prescreviam o
tipo de atendimento de que a criança precisava para
aprender.
Assim, o tipo de educação escolar a ser oferecido
era, muitas vezes, determinado por médicos, psicólogos,
fisioterapeutas, entre outros, que, ao emitirem laudos e
relatórios, incluíam também o tipo de escola que a criança
deveria freqüentar. Atualmente, isso ainda acontece, mas
as escolas agora têm argumentos legais para questionar e
recusar os encaminhamentos desses outros profissionais.
Esta situação, no estado de São Paulo, parece
vir se modificando com a ênfase do processo avaliativo
colocada na equipe escolar, colocando em segundo plano o
papel dos serviços de saúde, a partir da promulgação da
Resolução n.º 95 do Conselho Estadual de Educação , de
21/11/2000, que em seu artigo 3 º prescreve:

Artigo 3º - O atendimento escolar a ser


oferecido ao aluno com necessidades
educacionais especiais deverá ser orientado por
avaliação pedagógica realizada pela equipe da
escola podendo, ainda, contar com o apoio de
profissionais da área da saúde quanto aos
aspectos físicos, motores, visuais, auditivos e
psicossociais.
Para Manzini (1999, p. 23), a integração da
criança deficiente no sistema educacional é altamente

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 305


desejável por todos os profissionais da escola. Entretanto,
afirma que, “para que isso seja uma realidade, é
necessário vencer várias barreiras: pedagógicas,
arquitetônicas e administrativas e as barreiras invisíveis
que são o preconceito e o estigma”.
Não se pode negar, entretanto, que parece estar
ocorrendo um primeiro movimento de inclusão de alunos
deficientes na escola regular e que este novo contexto
obriga a escola a enfrentar o fracasso da aprendizagem do
aluno, não apenas do aluno deficiente, mas também
daqueles que simplesmente não respondem às suas
exigências por múltiplas razões, o que pode contribuir para
a desmistificação da perspectiva que considera que a
capacidade ou incapacidade para aprendizagem é
individual, inata e de responsabilidade exclusiva do sujeito.
Ao ser matriculado na escola da rede regular
de seu bairro, o aluno tem a oportunidade de construir
sua identidade a partir daquele contexto escolar, fato este
muito diferente do aluno que vai para uma instituição
especializada ou para a classe especial onde permanecerá
até o final de sua escolarização, ou, em casos muito mais
raros, será encaminhado, depois de anos de permanência
em sistemas especiais de ensino, para o ensino regular,
em razão de avaliação que o considera com “nível
compatível com as exigências de escolarização”.
No entanto, se a chance da escolha, da tentativa
de construir uma identidade como aluno que pertence à
escola x ou y, pode parecer incipiente para quem está longe
do cotidiano dessas crianças, do ponto de vista do sujeito
até agora condenado à segregação, sair de listas de espera
de instituições, e muitas vezes de confinamento domiciliar
para o direito legal de matrícula e permanência em escolas
da rede regular de ensino, pode se constituir em
transformação enorme.
O que as pesquisas nos indicam sobre o processo

306 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


de aprendizagem de crianças deficientes mentais é que
sabemos muito pouco sobre a aprendizagem desses alunos
quando estão matriculados em escolas regulares, até
porque o processo todo é muito recente. Entretanto, uma
série de estudos mostra também que os resultados
alcançados pela educação especial com esses alunos são
também muito baixos. (BUENO, 1993)
Boa parte das justificativas, tanto dos
profissionais especializados quanto de estudiosos, imputa
ao próprio deficiente a responsabilidade do fracasso, na
medida em que se apóia em uma concepção de inteligência
fixa e inata.
A matrícula e permanência de alunos deficientes
mentais na escola é o ponto de partida para sua
participação na sociedade. Pesquisadores, professores e
pais são alguns exemplos de “vozes” que falam sobre o
aluno deficiente mental. Mas e ele mesmo o que faz? O
que efetivamente tem feito na sala de aula? Que
participação ele tem nesse ambiente escolar? Este é o
núcleo da investigação que desenvolvi com vistas à minha
dissertação de mestrado.
Considerando as alterações das leis que regem
o funcionamento da educação no Brasil, mais
especificamente em São Paulo, e a trajetória da
escolarização de crianças deficientes mentais, o foco desta
pesquisa é a inclusão de crianças portadoras de
deficiência mental nas escolas da rede regular, sob a
perspectiva do aluno.
Nesse sentido, o problema foi, inicialmente,
assim formulado:
O que efetivamente está ocorrendo com
as crianças deficientes mentais incluídas em
classes do ensino regular em termos de
participação nas atividades escolares e de acesso
ao conteúdo nelas ministrado?

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 307


Ocorre que, na medida em que fui me
adentrando na sistemática de atendimento dos chamados
alunos de inclusão do município em questão, pude verificar
que, juntamente com os deficientes mentais, outros eram
assim considerados, sem que tivessem qualquer tipo de
avaliação, a não ser a constatação de que apresentavam
baixo rendimento em relação aos demais.
Essa situação me levou, então, a incluir na
pesquisa alunos de inclusão não deficientes mentais, para
que se pudesse cotejar a sua participação e o seu
rendimento escolar, por entender que o cotejamento
poderia enriquecer ainda mais a minha investigação.
Nesse sentido, a formulação final de meu
problema de pesquisa foi a seguinte:
O que efetivamente está ocorrendo com
os alunos de inclusão inseridos em classes do
ensino regular, aqui considerados alunos com
deficiência mental e alunos não deficientes, em
termos de participação nas atividades escolares
e de acesso ao conteúdo nelas ministrado?
Deste problema geral, decorrem as seguintes
questões:

1 ) Com relação aos alunos de inclusão em geral,


inclusive os deficientes mentais
– Quais as formas de participação dos alunos de inclusão
na classe regular? Existe diferença de participação
entre eles e os demais alunos das classes? Que
atividades eles realizam em sala de aula? Elas se
distinguem das atividades realizadas pelos demais
alunos? Em que aspectos?
– Existem diferenças de rendimento escolar evidentes
entre esses alunos e os demais alunos das suas classes?
2) Com relação aos alunos deficientes mentais
– Quais as formas de participação do aluno deficiente

308 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


mental na classe regular? Existe diferença de
participação entre ele e os demais alunos de inclusão?
Que atividades eles realizam em sala de aula? Elas se
distinguem das atividades realizadas pelos demais
alunos de inclusão? Em que aspectos?
– Existem diferenças de rendimento escolar evidentes
entre esses alunos e os demais alunos de inclusão?

Foi imersa neste percurso que parti para a


pesquisa de campo, tendo por objeto de estudo a inclusão
escolar, centrando o foco da investigação na inclusão de
alunos deficientes mentais no ensino regular, com o
objetivo de identificar e analisar as possíveis
distinções entre a participação e a aprendizagem
do conteúdo escolar dos alunos deficientes
mentais incluídos em classe regular e dos demais
alunos, assim como entre a dos alunos de
inclusão deficientes mentais e a dos não
deficientes. Tal como afirmei acima, uma vez que os
alunos considerados de inclusão não se restringem aos
deficientes mentais, entendi que seria proveitoso centrar-
me nesses últimos, já que constituem sujeitos centrais de
meu interesse, mas sem perder de vista os demais alunos
assim denominados.
Para a realização desta investigação, selecionei
uma escola situada no município de Franscico Morato que,
no ano de 2003, possuía, entre seus alunos, 7 alunos
considerados de inclusão, entre ele dois com diagnóstico
de deficiência mental.
Como procedimentos de pesquisa, utilizei-
me de observações sistemáticas na escola, priorizando as
atividades realizadas em sala de aula, mas incluindo
também o horário de recreio, reunião de pais e professores
e atividades de educação física, com foco nas atividades
realizadas por quatro alunos de inclusão, dois deles

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 309


deficientes mentais e dois não deficientes.
Foram realizadas 9 observações em 3 salas de
aula (duas classes de 4º ano e uma de 1º ano, ambas do
ciclo 1 do Ensino Fundamental), com a duração total de 15
horas, com registro concomitante às próprias observações
em diário de campo. Imediatamente após o término de
cada observação, os registros eram organizados de
maneira mais efetiva, inclusive em termos de expressão
escrita, já que, durante a observação, dada a dinamicidade
do ambiente de sala de aula, utilizei-me de abreviações e
notações gráficas que, depois de algum tempo, correriam
o risco de ser ininteligíveis até para mim. Todo este material
foi, posteriormente, organizado e digitalizado, compondo-
se o corpus do estudo.

A inclusão escolar de alunos deficientes mentais

Inclusão escolar e educação especial

As políticas e processos de inclusão de alunos


deficientes no ensino regular têm sido objeto de
controvérsias, polêmicas e divergências, não só por parte
do professorado, tanto da educação especial como do ensino
regular, mas também por parte de especialistas,
acadêmicos e pesquisadores.
Apesar de se constatar que estas polêmicas e
divergências atingem a todas as áreas das deficiências,
parece que elas se exacerbam em relação aos alunos
deficientes mentais, certamente pelos seus prejuízos
intelectuais que, tendo em vista o compromisso da escola
com a aprendizagem acadêmica, afetam de maneira mais
incisiva esse tipo de aluno.
Mas, mesmo em relação a esses possíveis
prejuízos, não se pode afirmar que haja consenso entre os
estudiosos.

310 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Mindrisz (1994), por exemplo, destaca que,
embora a preocupação com a deficiência mental remonte
ao final do século XVIII, foi a partir da construção e
disseminação dos testes de inteligência que se criou toda
a caracterização e classificação de retardo mental que tem
se mantido em sua essência basicamente até hoje. A autora,
entretanto, ao se debruçar sobre a disseminação dos testes
de inteligência, constatou, entre outros achados, dois
aspectos muito significativos:
1) que o teste de inteligência encomendado a
Binet e Simon teve por móvel as dificuldades que muitas
crianças apresentavam para aprender, em uma escola
elementar que ampliava enormemente o acesso a ela;
2) que, dada essa necessidade, na sua gênese
(o teste Binet-Simon), o padrão de confiabilidade ou não
das provas era determinado pela distância entre a
respostas dos alunos e a sua performance escolar. Isto é,
se a distância entre a resposta ao teste e o seu desempenho
escolar fosse muito alto, os seus criadores consideravam
que o teste estava mal formulado. Com as transformações
e refinamentos dos testes, como por exemplo, o tratamento
estatístico dado por Terman e com os testes de Wechsler,
a situação se inverteu, já que os resultados dos testes
passaram a ser preditivos de uma boa ou má escolarização:

O que se pode verificar, portanto, é que a


escolarização, como ponto de partida, foi
determinante para a construção do teste de
inteligência. No entanto, como ponto de
chegada, o teste de inteligência passou a
determinar as possibilidades de escolarização
do aluno. (MINDRISZ, 1994, p. 71)

Verifica-se, portanto que, se no início a definição


e caracterização da deficiência mental, através dos testes

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 311


de inteligência, foram utilizadas para explicar as razões
de alunos que não apresentavam bom rendimento na
escola, a disseminação de seu uso redundou em prática de
exclusão a priori de alunos considerados sem condições
intelectuais para usufruir dos processos regulares de
ensino.
Esta patologização do fracasso escolar é
explicada por Bueno (1993, p. 80), quando analisa a
ampliação das oportunidades educacionais para alunos
deficientes, ao afirmar que

na realidade, a educação especial, na sociedade


moderna que, na sua origem, absorvia
deficiências orgânicas (auditivas, visuais e,
posteriormente, mentais), com o
desenvolvimento do processo produtivo, foi
incorporando população com “deficiências e
distúrbios” cada vez mais próximos da
normalidade média determinada por uma
“abordagem científica” que se pretende “neutra
e objetiva”, culminando com o envolvimento
dos que não têm quaisquer evidências de desvio
dessa mesma “normalidade média”.

Procurar analisar os processos contemporâneos


de inclusão escolar obriga-nos a situá-la, portanto, dentro
de um contexto histórico mais amplo.
Se é verdade que, por um lado, a trajetória
histórica da educação especial tem como marca a
patologização da pobreza, por outro, não se pode negar
que, desde o século XVIII e, mesmo antes, ao lado da
segregação da maioria dos deficientes, alguns privilegiados
do ponto de vista social e econômico conseguiam fugir a
esta sina, integrando-se nos processos regulares de ensino.
(BUENO, 1993)

312 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Além disso, todo o movimento da educação
especial no século XX tem como uma de suas marcas
principais os processos de desinstitucionalização, expressos
pela substituição dos internatos por escolas de freqüência
diária, destas para a criação de classes especiais junto a
escolas de ensino regular e, finalmente, por políticas
explícitas de inserção de alunos deficientes em classes
regulares de ensino.
É nesse sentido que Bueno (2001, p. 24) afirma
que

... a inserção de alunos deficientes no ensino


regular não foi inaugurada pela Declaração [de
Salamanca]. Muito antes disso, já se falava e
se estabeleciam normas a respeito dessa
inserção. Em nosso País, pelo menos desde a
década de 70, já se levantava a bandeira pela
integração dos deficientes no ensino regular.

A Declaração de Salamanca teve o grande


mérito de ter sido resultado de amplo debate internacional
com origem remota na promulgação da Declaração
Universal dos Direitos Humanos, de 1948, a partir da qual
iniciaram-se amplos movimentos em prol dos direitos
humanos em praticamente todo o planeta e que
culminaram na Declaração Mundial de Educação para
Todos .
Além disso, a Declaração de Salamanca, segundo
Bueno (1999, pp. 4 e 5), constituiu um avanço em relação
às políticas anteriores, na medida em que desloca o eixo
das possíveis dificuldades de escolarização das
características peculiares da população com necessidades
educacionais especiais para as modificações necessárias
para que a escola incorpore, com qualidade, todos aqueles
que, historicamente, vinham sendo dela excluídos:

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 313


[A Declaração], ao considerar que existem
múltiplas diferenças, originárias de condições
pessoais, sociais, culturais e políticas, tem como
pressuposto que a escola atual não consegue
dar conta delas, na medida em que proclama a
necessidade de modificações estruturais da
escola que aí está para que “(...) elas sejam
capazes de prover uma educação de alta
qualidade a todas as crianças (...)”, [assumindo
que] (...) as diferenças humanas são normais
e que a aprendizagem deve se adaptar às
necessidades da criança, ao invés de se adaptar
a criança a assunções pré-concebidas a respeito
do ritmo e da natureza do processo de
aprendizagem.

Isto é, a Declaração, além de não se voltar a


uma escola que, na prática, não existe, indica que todos os
governos devem atribuir

(...) a mais alta prioridade política e financeira


ao aprimoramento de seus sistemas
educacionais no sentido de se tornarem aptos
a incluírem todas as crianças,
independentemente de suas diferenças ou
dificuldades individuais. (BUENO, 1999, p. 5)

Outro autor que tem se destacado em relação


à análise das políticas de educação especial é Mazzota
(2003), que afirma que as políticas públicas de educação
especial no Brasil e, mais especificamente, de alunos
deficientes mentais foram diretamente influenciadas pelos
grupos de pessoas que estavam ligados às instituições
assistenciais e este fato explica a configuração histórica do
atendimento educacional para esses alunos. Para o autor,
é importante conhecermos as implicações da atuação e

314 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


contribuições desses “agentes individuais” e também
identificar sua influência na elaboração da legislação,
incluindo-se nesta a específica de inclusão educacional.
O autor identifica a trajetória da integração do
aluno deficiente como um percurso que precisa também
ser analisado do ponto vista político, econômico e social e
destaca que não podemos fazer o debate isolado da inclusão
dos alunos deficientes sem estabelecer relações com os
processos de exclusão escolar que se abatem sobre os
considerados alunos normais.
Nesse sentido, considerando as diferentes
posições e abordagens dos pesquisadores da área de
educação de alunos deficientes, julgo importante destacar
também as discussões apresentadas por Schwatzman
(1997, p. 63), por considerar que

(...) defender a idéia de que é possível integrar


um portador de algum tipo de deficiência à
nossa sociedade implica em aceitar a
possibilidade de que este indivíduo, uma vez
integrado, terá acesso aos serviços, facilidades,
mercado de trabalho, escolas, lazer, etc. Seria
de se esperar que este indivíduo, inteiramente
integrado, fosse capaz de uma vida produtiva,
independente e que fosse aceito pela sociedade
em todos os níveis de atuação.
Para o autor, quando discutida no contexto
educacional, a integração implica a possibilidade de que
esses indivíduos não somente freqüentem uma escola, mas
também aprendam e acompanhem um currículo regular
através de um método pedagógico utilizado para a
população escolar considerada normal.
Considerando as determinações legais, todas as
escolas devem ser inclusivas e possibilitar o ensino de

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 315


qualidade para todos os alunos, inclusive para os deficientes
mentais.
Segundo Schwartzman (1997, p. 65),
determinar

(...) por força de lei que crianças com


necessidades especiais sejam absorvidas pelo
nosso sistema regular de ensino que não
consegue dar conta, atualmente, sequer das
crianças ditas normais, é pretender uma
solução fácil e ilusória para o problema da
educação especial. Os professores de ensino
regular não têm sido preparados para a tarefa
de lidar com este tipo de criança, e sem este
preparo, por melhor que seja o método utilizado
pelo professor, as chances de sucesso serão
muito limitadas.

Esse autor, ao se referir, por exemplo, a uma


escola apropriada para uma criança cujo diagnóstico
médico inclua transtorno de déficit de atenção, indica a
importância de que cada criança seja avaliada de forma
individual e, no geral, sugere uma escola com poucos alunos
em classe, para que possa lidar com crianças com ritmos
de aprendizagem diferentes e que conte com uma
professora que tenha conhecimento de como é o
funcionamento de uma criança assim caracterizada;
destaca como importante não cobrar da criança atitudes
que ela não tem condições de exibir e não recriminar a
criança por comportamentos que estão fora de seu controle
voluntário.
Ainda sobre os problemas que a inclusão escolar
de alunos deficientes apresenta, vale a pena destacar a
posição de Mills (2003) segundo a qual a criação de uma
escola inclusiva implica um processo de mudança que
consome tempo para as necessárias adaptações e requer

316 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


providências indispensáveis para o bom funcionamento do
ensino inclusivo.
A autora afirma ainda que, atualmente, no
ensino regular, a criança deve adequar-se à estrutura da
escola para ser integrada com sucesso. O correto seria
mudar o sistema e não a criança, pois, no ensino inclusivo,
a estrutura escolar é que deve se ajustar às necessidades
de todos os alunos, favorecendo a integração e o
desenvolvimento de todos, tenham eles necessidades
educativas especiais ou não. Para a autora, a escola especial
não deve ser eliminada e sim atuar para transformar a
escola regular em inclusiva.
Por outro lado, existem autores que consideram
que a inclusão escolar deva ser aplicada de imediato, como
se pode verificar pela posição de Mantoan (1997, p. 117):

A inclusão escolar é incondicional e, portanto,


não admite qualquer forma de segregação. Esta
opção de inserção tem como meta principal não
deixar nenhum aluno no exterior do ensino
regular, desde o início da escolarização, e
questiona o papel do meio social no processo
interativo de produção das incapacidades,
porque o deficiente mental tem o direito de se
desenvolver como as demais pessoas, em
ambientes que não discriminam, mas
valorizam as diferenças.

Segundo Mantoan (2001b), se o aluno


deficiente mental for acolhido entre os normais na escola,
será sem dúvida mais fácil de ocorrer a sua
desmarginalização em outros ambientes, incluindo-se
nestes a própria família.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 317


A escola e a aprendizagem escolar

Todos os autores apresentados acima discutem


a inclusão escolar e se reportam, continuamente, às funções
que devem ser exercidas pela instituição escolar. Mas de
qual escola estes autores estão falando?
Para situar esta questão, considero
fundamentais as contribuições de Dubet e Martuccelli
(1998, pp. 185 e 173) que destacam as diferenças sociais
que atravessam o sistema escolar e consideram que a
escola produz itinerários diferentes e indivíduos diferentes:
“agora, que a escola é menos desigual que antes, ela se
mostra comparativamente muito mais injusta, na medida
em que é no seio mesmo do percurso escolar que se
formam as desigualdades”.41
Para Dubet, é a escola que hoje reforça as
desigualdades sociais de seus alunos, isto é, deixou de ser
um universo fechado, em que era uma espécie de paraíso
de justiça, cercado por uma sociedade injusta. (DUBET,
s.d.p. , p. 175)
Ao analisar a evolução da experiência dos
alunos, os autores destacam que a escola deixou de ser
uma instituição (no sentido da antiga escola republicana),
na medida em que ela é definida pela presença “de um
mercado competitivo, de uma comunidade de
estudantes e de uma burocracia” 42 (DUBET e
MARTUCCELLI, 1998, p. 174), em razão de que o acesso
ao saber escolar centra-se na construção da experiência
que os alunos experimentam no espaço escolar.
Destacam também que é necessário perceber
como os estudantes participam do sistema escolar e como
é o processo de formação dos indivíduos na escola:

A escola produz também indivíduos que


representam um certo número de atitudes e de

318 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


disposições. A esse respeito a escola vem sendo
considerada como uma instituição de
socialização, um aparelho identificado aos
valores comuns capaz de assegurar a
interiorização, por meio dos conhecimentos e
da forma mesma da relação pedagógica, com
a finalidade de modelar a personalidade.
(DUBET e MARTUCCELLI, 1998, p. 169)43
Nesse sentido, afirmam os autores que a
aprendizagem das normas propostas não corresponde
mais a uma organização homogênea, mas às tensões entre
o pertencimento e as normas, “as que distinguem o
universo familiar e o universo escolar, a classe e os grupos
de alunos”. (DUBET e MARTUCCELLI, 1998, p. 175)44
Ora, se a escola de massas não responde mais
às funções clássicas, o que move os alunos a participarem
dela ? Segundo Dubet (s.d.p. , p. 189), “no espaço da
experiência social, as tensões ligam e opõem ao mesmo
tempo outras lógicas de acção”: da integração, da
estratégia e do sujeito.45
Assim, a escolarização não se dá mais de forma
a responder àquelas funções clássicas mas

a trajetória escolar se apresenta, então, como


uma sucessão de ‘etapas’ de socialização no seio
de situações socialmente contrastantes, nas
quais o indivíduo se esforça por formar uma
experiência, tentando ordenar
simultaneamente as exigências do indivíduo
racional e as exigências do ‘indivíduo’ autêntico.
(DUBET e MARTUCCELLI, 1998, p. 176)46
Nesse sentido, para este trabalho, vale a pena
apropriarmo-nos do conceito de pertencimento, na
perspectiva apontada por Dubet (s.d.p. , p. 116) com
relação à natureza das relações sociais associadas à

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 319


identidade integradora. Tal conceito opõe o ‘in-group’ ao
‘out-group’, isto é, a identidade dos sujeitos só se mantém
nessa relação entre a idéia de pertencimento a um grupo
em contraposição aos sujeitos que dele não fazem parte.
Dentro desta perspectiva, cabe ressaltar a
advertência feita por ele em relação às ‘condutas
patológicas’, pois “a lógica da integração não explica
somente a “patologia”, ela explica também a reacção dos
atores” (DUBET, s.d.p. , p. 120).
Além disso, Dubet e Martuccelli (1998, p. 169)
indicam que o processo de subjetivação, definido como um
distanciamento de si mesmo e por uma capacidade crítica,
ocorre na experiência escolar.
Nesse sentido, parece ser pertinente, para os
propósitos deste trabalho, que tem como foco o aluno com
deficiência mental, reportarmo-nos à obra de Vigotski
(2003, p. 103), na medida em que ele afirma que

a relação entre aprendizado e desenvolvimento


em crianças em idade escolar ainda é o mais
obscuro de todos os problemas básicos
necessários à aplicação de teorias do
desenvolvimento da criança aos processos
educacionais.

De acordo com Vigotski (2002, p. 110), “o


aprendizado das crianças começa muito antes de elas
freqüentarem a escola, qualquer situação de
aprendizado com a qual a criança se defronta na escola
tem sempre uma história prévia”. O aprendizado e o
desenvolvimento estão inter-relacionados desde o
primeiro dia de vida da criança.
Segundo este autor, para descobrir as relações
reais entre o processo de desenvolvimento e a capacidade
de aprendizado, temos que determinar dois níveis de

320 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


desenvolvimento: o real, que é o nível de desenvolvimento
das funções mentais da criança que se estabeleceram como
resultado de ciclos de desenvolvimento já completados,
de funções que já amadureceram, ou seja, os produtos
finais do desenvolvimento; o segundo, que é a zona de
desenvolvimento proximal, define aquelas funções que
ainda não amadureceram, mas que estão em processo de
maturação, funções que amadurecerão, mas que estão
presentemente em estado embrionário. “O estado de
desenvolvimento mental de uma criança só pode ser
determinado se forem revelados os seus dois níveis: o
nível de desenvolvimento real e a zona de
desenvolvimento proximal”. (VIGOTSKI, 2002, p. 113)
Vigotski (2002, p. 116) nos diz que as crianças
deficientes mentais não são muito capazes de ter
pensamento abstrato e, quando deixadas a si mesmas,
nunca atingirão formas bem elaboradas de pensamento
abstrato, “e que a escola deveria fazer todo esforço para
empurrá-las nessa direção, para desenvolver nelas o que
está intrinsecamente faltando no seu próprio
desenvolvimento”. Para este autor (2002, p. 117), “a
noção de zona de desenvolvimento proximal capacita-
nos a propor uma nova fórmula, a de que o ‘bom
aprendizado’ é somente aquele que se adianta ao
desenvolvimento”.
O autor afirma que as crianças, através das
interações entre elas e as pessoas no seu ambiente,
desenvolvem a fala interior e o pensamento reflexivo, e
que essas interações propiciam o desenvolvimento do
comportamento voluntário da criança.
Para Vigotski (2003, p. 116) o aprendizado é
indispensável para que ocorra o desenvolvimento, daí
decorre a grande importância do acesso de todas as
crianças à escola e também do reconhecimento por parte
da escola de como acontece o processo de desenvolvimento

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 321


das crianças e a função da aprendizagem: “a aprendizagem
escolar orienta e estimula processos internos de
desenvolvimento”.
Ao discutir as implicações educacionais do
desenvolvimento, Vigotski (2003, p. 115) afirma:

A aprendizagem não é, em si mesma,


desenvolvimento, mas uma correta
organização da aprendizagem da criança
conduz ao desenvolvimento mental, ativa todo
um grupo de processos de desenvolvimento, e
esta ativação não poderia produzir-se sem a
aprendizagem. Por isso, a aprendizagem é um
momento intrinsecamente necessário e
universal para que se desenvolvam na criança
essas características humanas não-naturais,
mas formadas historicamente.

Para Vigotski (2003, p. 110), a aprendizagem


escolar dá algo completamente novo ao curso do
desenvolvimento da criança. Ao definir a zona de
desenvolvimento proximal, Vigotski (2002, p. 113)
apontou um novo caminho para o conhecimento do
processo de desenvolvimento e aprendizagem da criança.
Além disso, fica claro, na exposição acima, o
papel peculiar e único que a escola possui para o
desenvolvimento intelectual dos alunos. Nesse sentido,
vale a pena retornar à discussão sobre a escola e o
rendimento escolar.
Para Charlot (2000, p. 63),

não há sujeito de saber e não há saber senão


em uma certa relação com o mundo, que vem
a ser, ao mesmo tempo e por isso mesmo, uma
relação com o saber. Essa relação com o mundo
é também relação consigo mesmo e relação

322 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


com os outros. Implica uma forma de atividade
e, acrescentarei, uma relação com a linguagem
e uma relação com o tempo.

A questão do fracasso escolar foi amplamente


estudada por Charlot (2000), que aponta a existência de
muitas teorias sobre fracasso escolar construídas em
opiniões de senso comum. Para esse autor, o termo
exclusão, a crise do ensino ou o fracasso escolar são
também objetos de um discurso social e dos meios de
comunicação de massa, e alerta para o risco existente de
que pesquisadores podem se enganar.
O autor afirma que o fracasso escolar não existe,
o que existe de fato é um conjunto de situações que
colocam o aluno em situação de fracasso escolar, e que,
portanto, para estudar o fracasso escolar, é preciso
constituí-lo rigorosamente como objeto de pesquisa.
Apresenta uma grande contribuição para as indagações
sobre as razões pelas quais as crianças fracassam na escola
e por que esse fracasso é mais freqüente entre as famílias
de categorias sociais populares do que em outras famílias.
Para ele, ao analisarmos o fracasso escolar,
devemos levar em consideração, entre outros fatores, a
atividade efetiva da escola, suas práticas, bem como a
especificidade dessa atividade, que se desenrola (ou não)
no campo do saber.
Charlot destaca que existem diversas formas
da “teoria da deficiência” e apresenta a formulação de John
Ogbu, segundo a qual existem três tipos de deficiências:
da privação, do conflito cultural e deficiência institucional,
sendo que nas duas últimas a deficiência é uma
desvantagem do aluno em decorrência de uma relação:

Para entender esse desvio da deficiência com


relação à deficiência como falta imputada ao

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 323


aluno é interessante analisar a história da
própria noção de handicap, segundo o
Dictionnaire Historique de la Langue Française
(1993), a palavra vem do inglês hand in cap (a
mão ao chapéu), nome de um jogo de azar. A
seguir, entra no vocabulário hípico (1754): para
igualar as chances numa corrida, impõe-se um
handcap para um cavalo sabidamente mais
rápido, isto é, uma desvantagem (sob a forma
de pesos ou distância suplementar). Em 1827,
a palavra já era utilizada na língua francesa e,
a partir de 1889, handicapée designava uma
pessoa afetada por uma deficiência física ou
mental” (CHARLOT, 2000, p. 26)

Segundo o autor, é importante observar que,


ao longo dessa história, a idéia de deficiência está
relacionada a chances, de desigualdades e de igualdade.
Assim, o que é pensado na idéia de deficiência é a produção
de uma compensação, ou seja, é uma relação.
Mas o autor destaca também que a noção se vê
invertida em vários pontos correlativos. O “handicap”
torna-se a deficiência da qual padece uma pessoa que, por
isso mesmo, encontra-se em posição de inferioridade: “O
handicap não é mais pensado como uma relação, mas,
sim, como uma falta que caracteriza o mais fraco.”
(CHARLOT, 2000, p. 27)
Assim, a deficiência passa a ser imputada ao
indivíduo e quando um aluno está em situação de fracasso,
constatam-se efetivamente faltas, isto é, diferenças entre
esse aluno e os outros, ou também entre o que se esperava
e o resultado efetivo. Mas a indagação permanece: falta
do quê?
Segundo Charlot (2000, p. 30), a teoria da
deficiência sócio-cultural faz uma leitura negativa da
realidade:

324 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


reifica as relações para torná-las coisas,
aniquila47 essas coisas transformando-as em
coisas ausentes, “explica” o mundo por
deslocamentos das faltas, postula uma
causalidade de falta. Esse tipo de leitura gera
“coisas” como o “fracasso escolar” ou “os sem
teto”. A leitura negativa é a forma como as
categorias dominantes vêem as dominadas.
Nesse sentido, para superar a leitura negativa
em termos do que falta, o autor propõe que se preste
atenção também ao que as pessoas fazem e conseguem,
que se busque compreender e explicar como se constroem
as situações de fracasso e destaca a importância de se
estudar o sujeito como um conjunto de relações e
processos, pois, para ele, o sujeito da educação é:

– um ser humano, aberto a um mundo que


não se reduz ao aqui e agora, portador de
desejos, movido por esses desejos, em relação
com outros seres humanos, eles também
sujeitos;
– um ser social, que nasce e cresce em uma
família (ou em um substituto da família),
que ocupa uma posição em um espaço
social, que está inscrito em relações sociais;
– um ser singular, exemplar único da espécie
humana, que tem uma história, interpreta
o mundo, dá sentido a esse mundo, à posição
que ocupa nele, às suas relações com os
outros, à sua própria história, à sua
singularidade. (CHARLOT, 2000, p. 33)

Além disso, esse autor destaca a importância


de compreendermos o sujeito da educação como um ser
social (CHARLOT, 2000, pp. 33 e 34):

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 325


(...) esse sujeito age no e sobre o mundo,
encontra a questão do saber como necessidade
de aprender e como presença no mundo de
objetos, de pessoas e de lugares portadores de
saber e se produz ele mesmo, e é produzido,
através da educação.

Esse aluno deve, portanto, ser conhecido na


situação escolar, que pode despertar-lhe a necessidade de
saber e de aprender, ou confirmar sua situação de
desvantagem.
Pode-se observar que há uma relação entre a
trajetória escolar dos alunos e os processos de inclusão e
exclusão na escola. Nota-se que os autores citados
abordaram essa questão relacionando-a principalmente
com o desenvolvimento do aluno na escola.
Portanto, ao adentrar o interior das salas de
aula, os estudos de Bourdieu trazem importantes
contribuições para esta pesquisa, principalmente no que
se refere à análise dos processos de “exclusão no interior”.
Ao apresentar a relação entre trajetórias escolares e
condição de aluno, o autor possibilita a reflexão sobre o
que acontece quando novas categorias sociais que estavam
excluídas da Escola entram no “jogo escolar”, e

(...) fazem com que o sistema de ensino,


amplamente aberto a todos e, no entanto,
estritamente reservado a alguns, consiga a
façanha de reunir as aparências da
“democratização” com a realidade da
reprodução que se realiza em um grau superior
de dissimulação, portanto, com um efeito
acentuado de legitimação social. (BOURDIEU,
1998, p. 223)
Os alunos de inclusão que não têm deficiência

326 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


mental são os alunos que apresentam dificuldades na
aprendizagem, conforme explicitado na introdução deste
trabalho, de forma que, embora, na acepção de Bourdieu,
constituam uma nova categoria na escola (daqueles que
estão fadados a serem os primeiros sobre os quais a
“exclusão branda” se abate), têm agora, em nosso País,
novos “parceiros”, os alunos deficientes mentais que, por
força das novas legislações, passaram a ser incorporados,
muito recentemente, pelas classes regulares de ensino,
pois, até o final da década de 90, esses alunos não eram
matriculados nas escolas regulares. Parece que, no
entanto, ao serem classificados todos como alunos de
inclusão, tanto os deficientes como os não-deficientes, eles
recebem na escola o mesmo tipo de ensino e de atenção,
de forma que na escola não há uma distinção entre um
grupo e outro, evidenciando entretanto somente uma clara
distinção entre os alunos que aprendem e os que não
aprendem na sala de aula.
Bourdieu (1998), ao colocar em discussão a
inclusão de novas categorias sociais na escola, traz
importante contribuição para a reflexão das contradições
da educação escolar.
Para esse autor, o que atualmente existe nos
sistemas escolares é uma tendência para que as práticas
de “exclusão branda” sejam instauradas, sendo esta
definida

(...) no duplo sentido de contínuas, graduais e


imperceptíveis, despercebidas, tanto por aqueles
que as exercem como por aqueles que são suas
vítimas. A eliminação branda é para a
eliminação brutal, o que a troca de dons e
contra-dons é para o “dá-se a quem dá”:
desdobrando o processo no tempo, ela oferece
àqueles que têm tal vivência a possibilidade de

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 327


dissimular a si mesmos a verdade ou pelo
menos de se entregar, com chances de sucesso,
ao trabalho de má fé pelo qual é possível chegar
a mentir a si mesmo sobre o que se faz.
(BOURDIEU, 1998, p. 222)

Neste mesmo trabalho, o autor apresenta


resultado de pesquisa realizada junto aos alunos do ensino
secundário, na França, em que constata:

Como sempre a escola exclui; mas, a partir de


agora, exclui de maneira contínua, em todos
os níveis de cursus48* e mantém em seu seio
aqueles que exclui, contentando-se em relegá-
los para os ramos mais ou menos
desvalorizados. Por conseguinte, esses excluídos
do interior são votados a oscilar - em função,
sem dúvida, das flutuações e das oscilações das
sanções aplicadas - entre a adesão maravilhada
à ilusão que ela propõe e a resignação a seus
veredictos, entre a submissão ansiosa e a
revolta impotente. (p. 224)

A citada pesquisa de Bourdieu (1998) apresenta


novas contribuições, principalmente para compreender o
processo de exclusão que ocorre no interior da escola e
mais especificamente no interior da sala de aula, pois
embora se esteja discutindo especificamente a inclusão de
alunos deficientes mentais, os fenômenos de inclusão e
exclusão atingem as diferentes categorias de alunos. Cabe
destacar que a afirmação apresentada pelo autor, embora
ocorrida na França, até o final dos anos 50, pode servir ao
universo pesquisado, tendo em vista as condições sociais
do município e as observações que fiz na escola:

A seleção com base social que se operava era

328 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


amplamente aceita pelas crianças vítimas de
tal seleção e pelas famílias, uma vez que ela
parecia apoiar-se exclusivamente nos dons e
méritos dos eleitos, e uma vez que aqueles que
a escola rejeitava ficavam convencidos
(especialmente pela escola) de que eram eles
que não queriam a escola. (BOURDIEU, 1998,
p. 219)
Assim, por meio das contribuições de Dubet e
Martuccelli, Vigotski, Bourdieu e Charlot, podemos
construir um eixo de análise que se pauta em três frentes:

– a do pertencimento como categoria explicativa das


possibilidades de inclusão escolar de alunos marcados
como diferentes dos demais de sua classe;
– a da precedência do aprendizado em relação ao
desenvolvimento infantil e da importância da
aprendizagem escolar; e
– a de centrar nossa investigação sobre o que
efetivamente os alunos fazem na sala de aula,
alterando-se o foco, atualmente hegemônico, sobre o
que falta aos alunos em termos de aprendizagem
escolar.

Entretanto, como esta investigação tem como


foco um determinado tipo de aluno, aquele diagnosticado
com deficiente mental, não podemos correr o risco de não
levarmos em conta essa marca pessoal, sob o risco de, mais
uma vez, reiterarmos uma visão abstrata de uma categoria
amplamente utilizada nos meios educacionais e que, de
alguma forma, subsidia as práticas escolares.

Deficiência mental e trajetórias escolares

A definição mais aceita hoje sobre a deficiência

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 329


mental é proveniente da American Association of Mental
Retardation, que a caracteriza pelo funcionamento
intelectual significativamente abaixo da média, coexistindo
com limitações relativas a duas ou mais das seguintes áreas
de habilidade adaptativas: comunicação, auto-cuidado,
habilidades sociais, participação familiar e comunitária,
autonomia, saúde e segurança, funcionalidade acadêmica,
de lazer e de trabalho, manifestando-se antes dos dezoito
anos de idade. (cf. D’ANTINO, 1997, p. 100)
Para os propósitos deste trabalho, o que nos
parece fundamental nas duas definições é que ambas
apontam para dificuldades acadêmicas e escolares
provenientes do baixo nível intelectual e que redunda em
dificuldades de comportamento adaptativo.
Assim, não cabe aqui ficar analisando
criticamente estas ou quaisquer outras definições mas, a
partir delas, procurar verificar como a escola tem lidado
com alunos que a literatura especializada tem disseminado
como portadores de dificuldades intelectuais intrínsecas
em relação aos processos de escolarização.
Por outro lado, as práticas políticas de inclusão,
bem como os trabalhos de pesquisa como o de Santos
(2002), mostram que os alunos deficientes mentais
incluídos no ensino regular são aqueles considerados leves
ou moderados, que pouca distinção apresentam em relação
a outros alunos que fracassam em termos de
aprendizagem acadêmica.
Pode-se também verificar que boa parte dos
estudos sobre a educação do aluno deficiente mental e,
ultimamente, aquele que tem procurado se voltar para os
processos de inclusão escolar desses alunos, tem se
caracterizado, fundamentalmente, pela centralização de
foco nas políticas de inclusão, na percepção e posição de
professores e nas críticas à qualidade de ensino da escola
para o recebimento desses alunos.

330 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Os alunos de inclusão que encontrei na escola
da rede regular onde realizei esta pesquisa são aqueles
que apresentam dificuldades de aprendizagem – incluindo-
se também aí as relacionadas a deficiências –, também
denominados alunos com necessidades especiais, de acordo
com a Resolução nº 2 do Conselho Nacional de Educação
no artigo 5º.
Na prática escolar observada, pude verificar
que o termo inclusão se sobrepõe ao da deficiência
mental, ou seja, prevalece a relação entre o fracasso
escolar e a escola. Cabe destacar que, dos sete alunos de
inclusão indicados pela direção da escola pesquisada, apenas
dois apresentavam um diagnóstico médico de deficiência
mental, sendo um de “encefalopatia crônica não evolutiva”
e o outro de “irritabilidade difusa”, e as queixas dos outros
cinco alunos referiam-se à dificuldade de aprender e à falta
de concentração.
Assim constatei que, na escola, o aluno de
inclusão é aquele que “está em situação de fracasso
escolar”, seja devido ao seu comportamento, ou devido ao
não acompanhamento das lições propostas pela professora.
Nesse sentido, os alunos de inclusão constituem uma nova
categoria escolar.
Considerando esta relação existente entre
alunos de inclusão e alunos em situação de fracasso escolar,
verifiquei que, ao tentar compreender os limites e
possibilidades dos alunos de inclusão em sala de aula,
tornou-se essencial aprofundar a reflexão sobre questões,
muitas vezes polêmicas, que envolvem a temática do
fracasso, sucesso e trajetórias escolares de alunos no ensino
regular.
Durante a realização da pesquisa de campo,
pude constatar que nenhuma das cinco professoras com
quem tive contato sabia, de fato, o que levou a escola a
caracterizá-los como alunos de inclusão. Para elas, parecia

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 331


ser suficiente saberem que eles tinham mais dificuldades
para aprender do que os demais alunos, não diferenciando
os alunos deficientes dos que não o são.

As práticas escolares de alunos deficientes mentais


incluídos em sala de aula regular

Os sujeitos selecionados

Os alunos de inclusão, entre eles os dois alunos


deficientes mentais, sujeitos desta investigação,
freqüentam essa escola desde o início de sua vida escolar
e residem nas proximidades.
Segundo relato da diretora, que acompanha
esses alunos desde que ingressaram na escola, existe ali
uma preocupação real com eles. Além de inúmeras
tentativas para que freqüentem turmas e tenham
professores que os “compreendam” a cada ano (quando
necessário, é realizado o remanejamento de turma, mesmo
durante o ano) há, principalmente, uma preocupação com
a “felicidade do aluno na escola”, mesmo porque, segundo
a diretora, suas possibilidades de aprendizagem são
restritas.
Existe um esforço real da escola para “acolher
esses alunos” e mantê-los “incluídos”, entretanto a diretora
me relatou que a escola não tem informações sobre os
diagnósticos, muito menos sobre o que indicam em relação
às possibilidades de aprendizagem e, portanto, a escola
procede pedagogicamente do mesmo jeito que faz com os
outros alunos, considerando que ela também tem seus
limites.
Minha primeira iniciativa, para a seleção dos
sujeitos, voltou-se para a identificação dos alunos que a
escola incluía no rol dos de inclusão, quando recebi da
diretora a informação de que eram sete alunos. De posse

332 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


das informações da diretora sobre os alunos de inclusão,
consultei os respectivos prontuários, de onde pude colher
os primeiros dados desta pesquisa.
Quando inicialmente entrei em contato com os
professores, os dados específicos dos alunos classificados
pela escola como alunos de inclusão, constantes do
prontuário escolar , não se confirmaram, pois constatei que
os professores incluíam outros alunos.
Assim, a esses considerados pela escola como
alunos de inclusão, acrescentou-se mais um aluno
classificado pela professora.
Com base nessas informações, selecionei duas
salas de aula pelos seguintes critérios:

– classes de 1º e 4º anos, porque poderia verificar


possíveis diferenças de participação desses alunos, no
ano inicial e no ano final do primeiro ciclo do ensino
fundamental; e
– classes que tivessem alunos de inclusão classificados
como deficientes mentais e não deficientes mentais.

Nesse sentido, a amostra de sujeitos


observados, ficou assim definida:

Quadro I
Alunos de inclusão selecionados para a pesquisa

Aluno Série Idade Sexo DM49


Daniela 1ª série E 09 F Sim
Cristian 1ª série E 07 M Não
Carla 4ª série D 10 F Não
Diego 4ª série E 10 M Sim

Cabe ainda destacar que, em relação aos


sujeitos, com exceção de Daniela, todos os outros três
tinham idade compatível com a série cursada. No caso

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 333


específico de Daniela, pude verificar que, apesar de
formalmente matriculada no 3º ano, ela freqüentava o 1º
ano, sob a justificativa de que seu rendimento não permitia
que ela freqüentasse o ano em que estava oficialmente
matriculada.

Os procedimentos de pesquisa

Para a coleta de dados relacionada à inclusão


dos alunos deficientes mentais em sala de aula no ensino
regular, recorreu-se, fundamentalmente, à técnica de
observação sistemática das atividades escolares,
priorizando as atividades em sala de aula, mas incluindo
também o recreio, as aulas de educação física e a festa dos
alunos de encerramento do ano letivo.
Além desse conjunto de observações, assisti a
uma reunião de pais e mestres, no final do 4º período letivo,
bem como colhi alguns trabalhos escritos produzidos pelos
alunos em classe, com o intuito de complementar os dados
colhidos nas observações junto aos alunos.
Inicialmente, realizei visita à escola, quando
conversei com a diretora para conhecer todo o processo
referente aos alunos de inclusão. Nesta visita também pude
colher a listagem dos alunos considerados pela escola como
de inclusão.
Em seguida, iniciei as observações, que foram
distribuídas em 9 dias, perfazendo um total de 15 horas
de observação. Tal como consta do Quadro 1, foram
observados quatro alunos em duas classes de 4º ano e uma
classe de 1º ano.
Embora tenham sido observadas três turmas,
participaram da observação 6 professoras (devido às faltas
e substituições). A minha apresentação às professoras foi
feita diretamente pela diretora e/ou pela vice-diretora da
escola, que me receberam na secretaria e imediatamente

334 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


me acompanharam até a sala de aula. Esse contato foi
bastante importante pois foi o momento em que a diretora
relatou alguns dos desafios e situações dos alunos e
professores em relação à inclusão. Essas informações,
embora não tenham sido sistematizadas, foram de grande
valor para compreender o funcionamento da escola.

Apresentação e análise dos resultados da pesquisa

A organização dos dados, sua apresentação e


análise foram estruturadas em torno de dois eixos: (1) o
pertencimento à classe; e (2) as atividades relativas ao
aprendizado, sempre procurando cotejar a relação entre
esse pertencimento e as atividades entre os alunos
deficientes mentais e os demais alunos de inclusão, bem
como entre esses e os demais alunos da classe.
Como as atividades são muito dinâmicas e as
situações muito ricas, resolvi apresentar os resultados em
forma de “cenas” que não correspondem a este ou aquele
eixo, mas a análise de cada uma delas procurou se pautar
nos dois eixos.
Com relação ao primeiro eixo, considero que o
significado de pertencer à escola e à classe, além da
exigência, óbvia, de que o aluno freqüente efetivamente
uma determinada turma (o que, no caso dos alunos
observados, está garantido pela política municipal de
inclusão), deriva da participação efetiva dos alunos nas
atividades de classe. Assim, diferentemente das formas
de organização escolar anteriores (escolas e classes
especiais, salas de reforço ou de aceleração, múltipla
repetência), os alunos que eram excluídos agora não o são
mais, em razão da inclusão escolar em classes regulares e
pelo fato do regime de progressão continuada não permitir
a sua retenção nos anos iniciais.
Tanto é assim que os alunos observados

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 335


freqüentam classes de 1º e de 4º ano, situação, em
princípio, muito diferente daquela constatada por Bueno
(1993), em que a maioria esmagadora das crianças com
deficiência permanecia nos anos iniciais, com
predominância nos 1os e 2os anos.
Mas não basta simplesmente estar na classe, é
preciso dela participar como membro efetivo. Dubet (s.d.p.,
p. 113), ao se referir à lógica da integração afirma: “o actor
define-se pelas suas pertenças, visa a mantê-las ou
fortalecê-las no seio de uma sociedade considerada como
um sistema de integração”. Porém este sentimento de
pertencer não se dá por mera vontade do sujeito, e sim
pelo fato concreto de viver experiências que se incorporem
aos sujeitos como membro deste ou daquele determinado
grupo.
Com relação ao segundo eixo, procurei destacar
os processos aos quais os alunos são expostos, em relação
às exigências de aprendizagem do conteúdo trabalhado
pela professora, isto é, de verificar se, quando participantes
das atividades, as exigências de rendimento se
diferenciavam entre os três diferentes grupos de alunos:
os de inclusão deficientes mentais, os de inclusão não
deficientes e os demais alunos.

Considerações finais

Durante a realização deste trabalho, na


apresentação e análise dos dados, parte desta
complexidade do interior da sala de aula, onde há alunos
de inclusão, ficou evidente.
É importante apontar que, para a análise dos
dados, considerei os três eixos de análise apresentados: o
pertencimento como categoria explicativa das
possibilidades de inclusão escolar de alunos marcados como
diferentes dos demais de sua classe; a precedência do

336 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


aprendizado em relação ao desenvolvimento infantil e a
importância da aprendizagem escolar; e o que
efetivamente os alunos fazem na sala de aula, em termos
de aprendizagem escolar.
Para identificar o que o aluno deficiente mental
efetivamente tem feito na sala de aula e de que forma
participa desse ambiente escolar, foi necessário identificar
também quais eram essas salas de aula, as condições dos
professores e a dos demais alunos.
Conforme explicitado na Introdução deste
trabalho, na medida em que fui adentrando as salas de
aula, pude verificar que, juntamente com os deficientes
mentais, outros alunos se identificavam com eles em
termos de participação e aprendizagem, sem que tivessem
qualquer tipo de avaliação, a não ser a constatação de que
apresentavam baixo rendimento em relação aos demais.
Esta constatação me levou a incluir também os alunos de
inclusão não deficientes como sujeitos da pesquisa.
Pude constatar que há distinções entre a
participação dos alunos de inclusão em relação aos demais,
principalmente no que se refere às atividades escolares,
pois os alunos de inclusão deficientes e não deficientes não
apresentam o mesmo rendimento escolar que os outros
alunos.
Os alunos de inclusão deficientes mentais
apresentam algumas diferenças nos resultados da
aprendizagem escolar em relação aos alunos de inclusão
não deficientes, pois os resultados de sua aprendizagem
foram inferiores comparados aos dos outros alunos de
inclusão não deficientes, embora as diferenças fossem tão
sutis que não foram identificadas pelas professoras.
O que pude verificar é que, no caso de Daniela
(1º ano do ciclo 1), embora ela apresentasse grandes
dificuldades escolares, havia toda uma tentativa por parte
da professora em fazer com que ela efetuasse as lições,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 337


visto que em que dava a ela as mesmas tarefas que aos
demais e, até certo ponto, insistia na realização pela aluna.
Mas como ela não conseguia realizá-las, a professora
pareceu não ter qualquer outro recurso senão fazer a
tarefa por ela ou, então, aceitar como aceitável, qualquer
resultado por ela alcançado.
Assim, as tarefas escolares não tiveram
qualquer sentido como fator de desenvolvimento da aluna,
já que não houve nenhuma tentativa de, através dessas
atividades, a professora procurar elevar seu nível de
desenvolvimento real por algum tipo de intervenção mais
focada nesse aspecto.
Ao contrário, mesmo quando a professora fazia
por Daniela, não havia qualquer tentativa de incluir a aluna
no processo de sua resolução, o que tornava inócua a
intervenção. Cabe destacar aqui que Daniela tem idade
para freqüentar o 3º ano (onde está oficialmente
matriculada) mas mesmo na classe de 1º ano, seu
rendimento é praticamente nulo, o que se pode verificar
tanto pela sua pouca participação mas, muito mais, pela
enorme distância entre o que a professora espera em
termos de realização e a sua performance.
Entretanto, embora em determinados
exercícios Cristian demonstrasse ter dominado algumas
habilidades (como a sua tentativa de cópia, em que
empenhou-se em fazer a tarefa, embora tenha feito um
mínimo), seus resultados escolares foram muito próximos
dos de Daniela. Por outro lado, como o problema dele
parecia ser mais de dedicação e empenho, a professora o
repreendia continuamente e procurava fazer com que ele
cumprisse as tarefas. Como ele em geral não as cumpria,
ela acabava por deixá-lo de lado.
Assim, o que pareceu caracterizar a pouca
atuação da professora sobre ambos não foi a distinção entre
a deficiência mental de um aluno e a falta de empenho do

338 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


outro, mas ambos foram identificados apenas porque não
rendiam como os demais.
Desta forma, os resultados escolares de ambos,
embora com diferenças de qualidade, parecem apontar
para um único caminho: o do abandono gradativo por parte
das professoras, e que, certamente, resultará no fracasso
relativamente precoce dos dois alunos.
Esse caminho parece confirmar-se pela
situação vivida em classes de 4º ano por Diego e Carla.
Aqui também são dois alunos com características
diferentes, um com diagnóstico de deficiência mental,
enquanto a outra parece um caso típico de problema
disciplinar e de algum tipo de dificuldade com relação à
linguagem escrita que, pelo pouco tempo de observação,
não tenho condições de afirmar se é intrínseca à aluna ou
produzida pelos próprios processos pedagógicos.
Entretanto, tanto em termos de participação quanto de
rendimento escolar, Diego e Carla estão ainda mais
afastados da performance dos demais alunos.
Pode-se afirmar, portanto, que conforme foram
tendo acesso aos anos mais avançados, Diego e Carla foram
se tornando “invisíveis”: suas participações em sala de
aula, embora totalmente fora dos padrões exigidos pela
professora, foram suportadas, mas ao preço de passarem
a ser totalmente ignorados, tanto por ela como pelos
colegas, pois esse parece ter sido o único recurso
encontrado para que eles não perturbassem o andamento
dos trabalhos.
Embora aqui também exista alguma diferença
entre o aluno deficiente mental e o não deficiente, o que se
verifica é que isso não foi levado em conta pelas professoras
que, desta forma, expressaram uma determinada visão
sobre esse tipo de aluno, ou seja, a de descrédito em suas
possibilidades de aprendizagem e na sua incapacidade de
mínima adequação aos padrões escolares.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 339


Durante o período de coleta dos dados, pude
constatar que a avaliação pedagógica resumiu-se à
avaliação da professora, pois essa escola, além da
professora, conta apenas com a diretora e a vice-diretora,
que não realizaram, durante o período de observação,
nenhuma atividade de orientação pedagógica junto aos
professores. Por informações das professoras, soube que
elas cumprem Horário de Trabalho Pedagógico Coletivo
(HTPC) uma vez por semana, em que participa a diretora
ou a vice, mas não tive a oportunidade de acompanhar
nenhuma dessas atividades. A rotinização das atividades
observadas, entretanto, parece evidenciar que elas não
exercem qualquer efeito no sentido do enriquecimento das
práticas pedagógicas utilizadas em sala de aula.
Mas não se pode simplesmente culpar as
professoras pela situação, na medida em que, por um lado,
elas se apóiam nos resultados obtidos pelos outros alunos
que, vale enfatizar, também são pertencentes a famílias
extremamente pobres, característica de toda a população
do bairro.
Por outro lado, fica evidente a falta de apoio
para que as professoras pudessem tentar modificar as suas
práticas no sentido de incluir aqueles que não respondem
às suas expectativas, que não parecem ser tão elevadas,
já que os demais alunos respondem a elas, e pelos tipos de
exercícios observados. Embora a diretora e as próprias
professoras tenham mencionado a atuação de uma
assistente técnico pedagógica de educação especial, que
teria por tarefa a orientação das professoras para que elas
pudessem lidar melhor com esses alunos, sua atuação
pareceu não exercer qualquer efeito em relação aos alunos
observados .
Assim, alunos de inclusão representam um
grupo de desconhecidos em relação ao processo de
aprendizagem e desenvolvimento e, pelo que pude

340 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


observar em classe, a eles acaba sendo imputada a
responsabilidade pelo próprio fracasso.
Nesse sentido, a exclusão branda, conforme o
conceito de Bourdieu, aqui parece se concretizar, tanto pelo
fato dos resultados alcançados em termos de participação
e de rendimento escolar desses alunos, quanto pelo fato
de dissimularem a si mesmos a verdade, quando deixam
de tentar realizar as atividades em sala de aula, como por
exemplo quando a aluna Carla me disse “É, eu não sei lê
mesmo...”, balançando os ombros ou quando a professora
dela me disse “Ela não tem caderno porque rasgou”.
De fato, a grande mudança é que agora os
alunos de inclusão permanecem na sala de aula,
independente do que nela realizam e, neste sentido, vale
a pena retornar ao trabalho de Bourdieu (1998, p. 224)
que afirma que a escola, embora continue excluindo de
maneira contínua, agora mantém em seu interior os
anteriormente dela excluídos.
Outro aspecto que merece ser destacado é a
aceitação, pelas crianças e suas famílias, desse processo
de exclusão no interior, fato este evidenciado pela
naturalidade com que os alunos de inclusão aceitam a
diferenciação na sala de aula, seja em relação às atividades
ou ao seu comportamento e também à falta de
questionamentos dos pais em relação ao aprendizado de
seus filhos, o que parece indicar que os alunos de inclusão
sejam de fato responsabilizados pela não aprendizagem
dos conteúdos escolares propostos pela escola.
Investigando ainda a questão da aprendizagem,
pode-se verificar, com relação aos alunos deficientes
mentais, a situação paradoxal em que se encontram pois,
segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional,
os alunos devem ser matriculados nos anos escolares de
acordo com sua idade, porém cabe à equipe pedagógica da
escola definir uma proposta para atendê-los.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 341


Nesta pesquisa, pude observar as duas
situações: uma em que a equipe pedagógica, a partir da
orientação da psicoterapeuta que atendia Daniela através
do convênio de seu pai e indicou que ela freqüentasse as
aulas do 1º ano do ciclo 1, manteve sua matrícula no 3º
ano; e a situação de Diego, que estava matriculado e
freqüentava as aulas no 4º ano do ciclo I. Pude identificar
que, embora Daniela não estivesse acompanhando o
mesmo ritmo dos demais alunos em relação à
aprendizagem e também ao pertencimento ao grupo,
estava, de alguma forma, um pouco mais integrada que
Diego no 4º ano. Em todas as minhas observações, pude
constatar que durante a maior parte do tempo não era
possível diferenciar Daniela dos demais alunos quando
estavam fazendo as lições, mas apenas quando se
verificava o resultado é que as diferenças de aprendizagem
ficavam evidentes. Situação idêntica vivia Cristian, que
também se integrava às atividades escolares, mas com
rendimento muito inferior aos demais alunos.
Entretanto, a situação de Diego e Carla, na 4ª
série, era diferente, principalmente, porque enquanto os
alunos faziam as atividades, os dois ficavam circulando
livremente pela classe, mas também pelo fato de ambos
terem rasgado os cadernos e permanecerem sem eles.
Isto é, nos quatro casos analisados ficou
evidente que, na medida em que se avançou nos anos
escolares, os processos de exclusão branda, aqui expressos
pela não participação como membro da classe e pelos
resultados escolares alcançados, se exacerbaram.
Outra situação paradoxal ocorreu pelo fato de
que, ou o aluno de inclusão realizava as mesmas atividades
que os demais, ou não realizava nenhuma. Segundo uma
das professoras que participou da pesquisa, ele faz a
mesma atividade para não se sentir excluído, mas ela
(atividade) tem um objetivo diferente para ele. Nessa

342 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


declaração, fica evidente a inconsciência da professora
sobre as práticas desenvolvidas em sala de aula, pois elas
são a expressão da exclusão interna.
Se é verdade que a escola vem se constituindo
como um local de experiências, a partir da entrada dos
anteriormente excluídos, aquelas vividas por esses alunos
estão sendo incorporadas, tanto por seus professores,
quanto por seus pais e por eles próprios, como o atestado
da absoluta falta de condições para nela estarem presentes.
Esta parece ser a função que a escola analisada
tem cumprido com relação a esses alunos, quer sejam
deficientes mentais ou não: o da reiteração de suas
incapacidades de aprendizagem.
Nesse sentido, a hipótese de que as maiores
dificuldades de aprendizagem dos alunos deficientes
mentais acarretariam distinções de participação e de
rendimento escolar entre eles e os demais alunos de
inclusão não se confirmou, na medida em que as
participações e realização de tarefas de Daniela (deficiente
mental) e Cristian (não deficiente) estavam muito mais
próximas do que da primeira em relação a Diego (também
deficientes mental) assim como do segundo em relação à
Carla (também não deficiente).
Entretanto, em relação à segunda proposição
da hipótese, pode-se constatar que, à medida que estes
alunos de inclusão (aqui representados por Diego e Carla,
do 4 º ano do ciclo 1) foram sendo incorporados por séries
mais elevadas, as distinções entre suas participações e seu
rendimento escolar foram se tornando cada vez mais
distantes dos demais alunos, configurando, de maneira
clara, a exacerbação de práticas pedagógicas de exclusão
no interior da escola de alunos que não apresentam
padrões de comportamento e de rendimento dentro do
esperado.
Mesmo se levando em consideração estas

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 343


constatações, o fato desses alunos freqüentarem uma
classe regular e, dentro dela, apresentarem resultados tão
insuficientes, não deve nos levar a assumir a posição mais
cômoda, ou seja, de retorno a processos segregados de
ensino, mesmo porque, os resultados escolares alcançados
pelo ensino especial segregado no País são também muito
baixos (BUENO, 1993). Além disso, vale a pena reiterar
que as práticas de exclusão não se abateram somente sobre
alunos com diagnóstico de deficiência; ao contrário, alunos
que não foram assim classificados, mas que apresentaram
baixo rendimento escolar e dificuldades de participação
nas atividades pedagógicas, receberam praticamente o
mesmo tipo de atendimento em classe.
Embora muito pobre, talvez esta tenha sido a
única marca positiva encontrada nesta pesquisa: o fato de
que, agora, não há mais como esconder os baixíssimos
resultados alcançados com a escolarização de parcela do
alunado, sejam eles deficientes mentais ou não, tal como
ocorria anteriormente, por meio do encaminhamento a
classes especiais ou a instituições especializadas.
Exatamente por considerar que os processos
de inclusão escolar não devam retroceder, é que
entendemos que, se esta pesquisa teve algum mérito, foi
o de evidenciar os processos internos de exclusão de alunos
que, por razões orgânicas ou de outra ordem, não
conseguem se adequar aos padrões exigidos.
Nesse sentido, nossa expectativa é de que este
trabalho, em que se procurou efetuar a análise crítica da
atual realidade escolar, a partir de um determinado campo
empírico, possa estar contribuindo, de alguma forma, para
a diminuição dos processos de exclusão que ocorrem no
interior da escola.

344 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


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DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 347


A TRAJETÓRIA DE
ESCOLARIZAÇÃO E ACESSO À
PROFISSÃO DOCENTE DE
PROFESSORES DEFICIENTES NO
ENSINO PÚBLICO DE SÃO PAULO

Edson Alves Viana


SEE/SP

Não podemos concordar que seja suficiente,


garantir a presença de alunos deficientes na sala de aula e
promover a sua integração no sistema escolar regular
através de leis como garantia de sua escolarização. É
preciso ensinar adequadamente, dando um sentido a esse
processo de ensino, quer nos conteúdos e na forma como
são transmitidos, quer nas políticas educacionais voltadas
a essa população, e esse é o grande desafio que se apresenta
a educadores e gestores escolares no que se convencionou
chamar de “paradigma da inclusão”.
Nossa pesquisa (VIANA, 2006) foi realizada
tendo como tema central a formação escolar de deficientes
e as políticas de escolarização e inclusão escolar dessa
população, dentro de uma perspectiva de sucesso.
Iniciando nossos estudos, constatamos que a
bibliografia especializada sobre o assunto mostrava que a
maioria dos autores discute, até exaustivamente, a questão
do fracasso escolar do deficiente, enquanto meu interesse

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 349


residia em pesquisar o sucesso escolar de alunos
deficientes, ou seja, os porquês do sucesso obtido por
alguns deles, na medida em que em nosso sistema
educacional grande parte dos alunos que apresentam
algum tipo de necessidades especiais é excluída da escola
ou nela permanece por longo tempo, com pouco ou
quase nenhum progresso (BUENO, 2004, p. 10).
Os indivíduos com deficiência, visto como
doentes e incapazes, sempre estiveram em situação de
maior desvantagem nos sistemas de ensino e na sociedade,
ocupando, no imaginário coletivo, a posição de alvos da
caridade popular e da assistência social, e não de sujeitos
plenos de direitos sociais, entre os quais, e principalmente,
o direito à educação.
Ainda hoje, constata-se a dificuldade de
aceitação do “diferente” no meio familiar e social, entre
eles, em especial, o sujeito deficiente.
O deficiente enfrenta enormes barreiras, não
só por possíveis limitações decorrentes da deficiência. São
barreiras construídas historicamente para sua
escolarização e socialização. A despeito de algumas
conquistas obtidas na última década do século passado,
falta muito para que seus direitos sejam respeitados, sua
inclusão social seja posta a toda a sociedade e, salientamos,
mais precisamente ao contexto educacional.
Em uma sociedade como a nossa, marcada pelas
grandes desigualdades sócio-econômicas e culturais, o
papel fundamental da escola é a promoção de condições
favoráveis à inclusão social de todos os alunos sem exceção
ou qualquer restrição.
Foi imbuído pelo exposto que partimos para a
pesquisa de campo, tendo por objeto de estudo as
trajetórias de professores deficientes, que estão atuando
em salas de aula na rede pública, na medida em que
atenderam aos requisitos e exigências legais para o

350 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


exercício da docência, bem como ao arquétipo50 que a
profissão exige, tal como definido pela Lei 9.394/96 (Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, BRASIL,
1996).
Assim nos propusemos a investigar trajetórias
escolares e de formação e acesso à docência de professores
com deficiência que atuam no serviço público e que, nesse
sentido, contrariaram as expectativas sociais de fracasso
escolar dessa população. Afinal esses professores são a
prova viva de que é possível realizar, nos processos de
escolarização, uma formação satisfatória para essa
população que obteve sucesso no meio escolar. Com esse
entendimento procuramos responder ao seguinte
problema:

– Quais os fatores intra e extra-escolares que


contribuíram para que indivíduos deficientes
conseguissem vencer as barreiras interpostas a uma
escolarização plena e que redundaram em formação e
atuação profissional satisfatória?

Tomamos por hipóteses para a realização da


pesquisa que:

– as condições sociais, econômicas e culturais de origem


exerceram papel fundamental nessas trajetórias;
– os processos de escolarização contribuíram para a
superação das dificuldades intrínsecas das
deficiências; e
– foram construídas, em sua trajetória de vida, relações
sociais favorecedoras da trajetória escolar e profissional.

Na tentativa de responder a essas questões e


hipóteses, tivemos por objetivo examinar os processos de
escolarização e exclusão da população escolar de modo

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 351


geral e, em especial, do estudante deficiente, uma vez que,
na relação sucesso/fracasso escolar, existem aqueles que
escapam aos (supostos) desígnios de fracasso escolar.
A dificuldade encontrada nos meios escolares
em aceitar aquilo que foge da normalidade dando origem
à resistência e ao preconceito para desenvolver práticas
de ensino a essa população, promoveu em nós, a idéia de
que os processos de escolarização de deficientes parecem
ser sempre discutidos apenas por não deficientes, sem
considerar o pensamento ou mesmo experiências dos
próprios sujeitos sobre o assunto, oportunidade que a
pesquisa ofereceu, ao examinar como se efetivou a
trajetória de escolarização/ formação e acesso à profissão
desses professores.
A partir dessa idéia, pudemos selecionar três
professores com deficiências, cada um deles com diferentes
deficiências: 1 com deficiência auditiva, 1 com deficiência
visual e 1 com deficiência física, sendo os dois primeiros
professores de Educação Básica II (PEB II) e o terceiro,
professor de Desenvolvimento Infantil (PDI) e da
Educação Básica I (PEB I).51
Nessa etapa, foi possível perceber a dificuldade
de levantar os sujeitos da pesquisa junto ao serviço público,
pois não existiam registros, por parte do Serviço de
Recursos Humanos ou mesmo de Departamento Pessoal
das Secretarias de Educação, pelo menos até aquele
momento, sobre professores com deficiência que
estivessem atuando, que pudessem nos orientar no sentido
de localizar tais professores, até mesmo nos Setores de
Educação Especial.
Percebendo a dificuldade de encontrar esses
professores, via canais oficiais, realizamos então visitas e
consultas aos sindicatos de classe dos professores, para
assim ter acesso a um possível cadastramento desses, e
pude verificar que aí também não havia registro algum.

352 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Contudo, a partir dos contatos pessoais
mantidos nessas buscas mal sucedidas, criamos o
interesse, por parte de alguns membros das redes de
ensino Municipal e Estadual em nos auxiliar a localizar
esses professores, o que, de fato, redundou na localização
de 5 professores, sendo 2 deficientes auditivos, 2
deficientes físicos e 1 deficiente visual, que estavam
atuando na rede, sendo que apenas 3 deles aceitaram
participar desta pesquisa.
Para delimitação dos sujeitos da pesquisa,
utilizamos a conceituação de deficientes estabelecida pelo
MEC, por meio de seus Parâmetros Curriculares
Nacionais-Adaptações Curriculares - Estratégias para
a Educação de Alunos com Necessidades Educacionais
Especiais (BRASIL, 1999):

• Deficiência auditiva - perda total ou parcial, congênita


ou adquirida, da capacidade de compreender a fala por
intermédio do ouvido.
• Deficiência física - variedade de condições não sensoriais,
que afetam o indivíduo em termos de mobilidade, de
coordenação motora geral ou da fala, como decorrência
de lesões neurológicas, neuromusculares e ortopédicas
ou ainda, de malformações congênitas ou adquiridas.
• Deficiência visual - redução ou perda total da capacidade
de ver com o melhor olho e após a melhor correção ótica,
manifesta-se como cegueira: representa à perda total
ou resíduo mínimo da visão, que leva o indivíduo a
necessitar do método Braille como meio de leitura e
escrita, além de outros recursos didáticos e
equipamentos especiais para sua educação.

A coleta de dados se efetivou nos meses de


setembro e outubro de 2005 e janeiro de 2006, por meio
de entrevistas semi-estruturadas, promovendo o

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 353


levantamento de dados objetivos, sobre composição
familiar, nível sócio-econômico-profissional e escolar, bem
como do histórico escolar que permitiu a análise de dados
sobre os tipos de escolarização e a progressão escolar
desses sujeitos e sua trajetória para o encaminhamento
profissional docente.
Foram realizadas, ao todo, 19 horas de
gravações: (5 horas com o professor deficiente físico, 6
horas com o professor deficiente auditivo e 8 horas com o
professor deficiente visual), sendo estas horas resultados
das várias seções de entrevistas, adiante explicitadas, e
que foram sempre digitadas ao término das mesmas.
Quanto às questões direcionadas aos
professores, visaram levantar determinados aspectos de
suas vidas ao longo do seu processo de formação escolar,
relacionados à marca de sua deficiência específica,
atingindo inclusive o momento da sua formação e de
atuação como professor.
Após a localização dos professores nas redes de
ensino e de um contacto inicial, através do telefone e “e-
mails”, agendamos com cada um dos professores datas e
horários para a realização das entrevistas, sempre
respeitando as suas disponibilidades de tempo, e com a
autorização dos Diretores das unidades escolares, quando
visitadas, para ter espaço e tempo para as entrevistas.
Na primeira entrevista realizada com a
professora deficiente auditiva fez-se necessário que a
Diretora da escola onde a professora trabalha autorizasse
a sua realização, sob sua presença, para que atuasse como
intérprete das perguntas e esclarecimento do conteúdo,
através da Língua Brasileira de Sinais (LIBRAS). Após esse
primeiro contato, não houve mais a necessidade da
intérprete visto que a professora conseguia ler
perfeitamente os lábios e poderia responder às questões
da entrevista sem muita dificuldade, desde que eu

354 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


articulasse as perguntas devagar e de frente para ela.
As entrevistas com essa professora, em número
de 6, foram realizadas em vários dias, na escola em que
ela atua; uma escola para deficientes auditivos do
Município de São Paulo, durante o horário de atividades
sem alunos.
Após tudo acordado, e atendidos os aspectos
burocráticos, durante um mês, comparecemos à escola em
visitas semanais, para realizar as entrevistas cuja duração
nunca ultrapassou mais de uma hora e meia por dia, nas
classes onde ela própria dava as aulas, nos horários por
ela estabelecidos, transcrevendo as falas imediatamente
após a sua realização.
Da mesma forma procedemos para a realização
da entrevista com o professor deficiente visual, porém este
decidiu por bem me receber em sua casa, em finais de
semana, pois, segundo ele, ficaria mais à vontade para
responder às questões e conversar melhor, visto que,
durante a semana de trabalho, não dispunha de tempo na
escola para tal fim.
Assim, procedemos às visitas à sua residência,
onde realizamos as entrevistas (às vezes assistidas pelos
pais, que não interrompiam a fala do filho professor),
durante quatro finais de semana, sendo de três a quatro
horas a duração de cada uma delas.
Com relação à professora deficiente física, as
entrevistas se deram parte na escola e parte na sua
residência, por sugestão da própria professora, sempre nos
dias de semana, por períodos que variavam de uma a duas
horas de gravação, durante um mês compondo um total
de 5 sessões de entrevistas.
Tendo como ponto de partida as entrevistas e
transcrevendo as falas tal como foram ditas, sem nenhuma
correção gramatical, na tentativa de preservar-lhes, o mais
fielmente possível, o sentido e o contexto, adotamos os

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 355


procedimentos de análise dando inclusive nomes fictícios
com o propósito de assegurar no anonimato suas
identidades neste trabalho.
Dessa forma a organização dos dados, sua
classificação e análise foram estruturadas através da
categorização do conteúdo dos depoimentos, por meio de
eixos temáticos norteadores das entrevistas;

• a ambiência familiar, aqui contemplada, também, a


origem familiar;
• as relações sociais que exerceram influência em suas
trajetórias sócio-educacionais;
• os processos de escolarização e a opção e acesso à
docência.

Ao propor a entrevista como procedimento de


pesquisa adotado, considero o alerta de Bourdieu (1999,
p. 695), sobre a necessidade de compreender o seu papel
como instrumento metodológico de coleta de dados para
pesquisa em ciências sociais e seus efeitos, em especial
aqueles relacionados a interferências no universo dos
sujeitos pesquisados:

Tentar saber o que se faz quando se inicia uma


relação de entrevista é em primeiro lugar tentar
conhecer os efeitos que se podem produzir, sem
o saber, por esta espécie de intrusão sempre um
pouco arbitrária que está no princípio da troca
(especialmente pela maneira de se apresentar
à pesquisa, pelos estímulos dados ou recusados,
etc.). (BOURDIEU, 1999, p. 695).
Concordamos com o autor que: embora as
pesquisas científicas não tenham intenção de exercer
qualquer forma de violência simbólica, essa, muitas vezes,
se faz presente, de forma inconsciente, talvez até pelo

356 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


desconhecimento dos efeitos que os diferentes tipos de
relações podem produzir no momento da entrevista. Assim
sendo, o pesquisador deve atentar para seus atos no
estabelecer dessas relações, procurando tornar a entrevista
o mais próximo possível do limite da realidade.
Pretendíamos, inicialmente, ultrapassar o
âmbito estrito da deficiência, na medida em que
considerávamos que, embora uma marca importante, a
ela se agregariam muitas outras, algumas provavelmente
com tanta importância quanto essa. Entretanto, à medida
que fomos mantendo contato com os entrevistados,
constatamos que a marca da deficiência era tão forte que
não dar a ela o valor atribuído pelos entrevistados seria
não ser fiel ao teor dos depoimentos.
A partir dessa perspectiva, é que passamos a
analisar o material, levantando os temas mais relevantes
dentro dos eixos temáticos analisando os dados na
perspectiva de sucesso/fracasso escolar.

As formas de apropriação das bases teóricas

Como base teórica apoiei-me no conceito de


capital cultural e capital social de Bourdieu e Passeron
(1982), pela forma como os autores sugerem compreender
o mundo social, procurando a síntese entre o “objetivismo
estruturante”, em que o ser social se posta como simples
executor da estrutura que a ele é imposta e o “subjetivismo
fenomenológico”, que analisa o sujeito e as relações sociais
estabelecidas, independentemente da estrutura social na
qual se manifestam.
A partir desse entendimento, cumpre definir
que, para Bourdieu (2003b, p. 10) o capital cultural existe
sob três formas, a saber,

• no estado incorporado: sob a forma de disposições

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 357


duráveis do organismo, cuja acumulação está ligada ao
corpo, exigindo incorporação; nesse sentido, demanda
tempo, pressupõe um trabalho de inculcação e
assimilação e esse tempo necessário deve ser investido
pessoalmente pelo receptor;
• no estado objetivado: sob a forma de bens culturais -
quadros, livros, dicionários, instrumentos, máquinas -
transmissíveis de maneira relativamente instantânea
quanto à propriedade jurídica; e
• no estado institucionalizado: consolidando-se nos
títulos e certificados escolares que, da mesma maneira
que o dinheiro, guardam relativa independência em
relação ao portador do título.

Por outro lado, o conceito de capital social,


segundo Bourdieu (apud NOGUEIRA e CATANI, 2003,
p. 10), refere-se ao conjunto de recursos (atuais ou
potenciais) que estão ligados à posse de uma rede durável
de relações mais ou menos institucionalizadas, em que os
agentes se reconhecem como pares ou como vinculados a
determinado(s) grupo(s). Tais agentes são dotados de
propriedades comuns e, também, encontram-se unidos
através de ligações permanentes e úteis.
Na mesma obra, Bourdieu (2003a, p. 42 a 45),
através de análises estatísticas, mostra que existe uma
correlação bem próxima entre variáveis referentes ao
perfil da família e o sucesso escolar de seus filhos, devendo-
se levar em consideração, além da formação cultural dos
antepassados da primeira e segunda geração, o local de
residência da família (centro X periferia), o tipo de estudo
secundário (profissionalizante ou propedêutico), o tipo de
estabelecimento de ensino (público ou privado) do
estudante, bem como o modelo demográfico da família e o
sentido da trajetória social (ascendente ou descendente)
do chefe do grupo familiar, como variáveis importantes e

358 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


fortemente relacionadas com o sucesso educacional.
O interessante é que, segundo ele, nenhuma
dessas variáveis estabelece um fator determinante de
influência quando considerada de forma isolada já que
existem fatores extra-escolares – econômicos e culturais
- que influenciam sobremaneira no desempenho e no
aproveitamento do estudante. O importante é revelar que
existem diferenças de várias ordens, principalmente de
acesso aos bens da cultura, entre as famílias, que são
responsáveis pela variação no desempenho e rendimento
relativos aos estudos.
Procura afirmar que:

Na realidade, cada família transmite a seus


filhos, mais por vias indiretas que diretas, um
certo capital cultural e um certo ethos, sistema
de valores implícitos e profundamente
interiorizados, que contribui para definir, entre
outras coisas, as atitudes face ao capital
cultural e à instituição escolar. (BOURDIEU,
2003a, p. 41).
Assim, a posse de um certo capital cultural e de
um ethos familiar predisposto a valorizar e incentivar o
conhecimento escolar seriam importantes elementos para
se alcançar, conseqüentemente, um êxito escolar, embora
não sejam os únicos.
Dessa forma, crianças mais abastadas e com
maior acesso aos bens culturais seriam aquelas que teriam
as maiores “chances” de obter um bom desempenho
escolar.
No texto “Os três estados do capital cultural”
(BOURDIEU, 2003b, p. 73), esclarece:

A noção de capital cultural impôs-se,


primeiramente, como uma hipótese

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 359


indispensável para dar conta da desigualdade
de desempenho escolar de crianças
provenientes das diferentes classes sociais,
relacionando o “sucesso escolar”, ou seja, os
benefícios específicos que as crianças das
diferentes classes e frações de classe podem obter
no mercado escolar, à distribuição do capital
cultural entre as classes e frações de classe.
Tomando o autor como referencial nos foi
possível perceber que no bojo dessa discussão está a
percepção que devemos ter para as diferenças nas
condições de acesso a uma cultura geral, e assim, como
decorrência, apontou para as condições diferenciadas de
aquisição também de uma cultura escolar.
Nesse sentido, capital cultural é um conceito que
explicita um novo tipo de capital, um novo recurso social,
fonte de distinção e poder em sociedades em que a posse
desse recurso é privilégio de poucos, e nesse sentido, é
preciso salientar que a posse desse capital pode derivar
de investimentos culturais diversos e que pode se
expressar na forma de diplomas, na conclusão de um curso
socialmente reconhecido como de uma licenciatura como
exemplo.
As contribuições metodológicas de Lahire
(1997) são outra base referencial no tratamento teórico
adotado, na medida em que nos propusemos compreender
as trajetórias de sucesso dos indivíduos pesquisados,
segundo a perspectiva utilizada por esse autor, quando
pondera que a presença objetiva de um capital cultural só
terá efeito se esse capital for colocado em condições que
tornem possível sua “transmissão” e nesse ponto de
destaque é que concebemos a articulação para a análise.
Para o autor, não basta uma criança estar
cercada de objetos ou circular em ambientes estimulantes
do ponto de vista escolar; é preciso perceber as

360 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


modalidades efetivas de “transmissão” dessas disposições
culturais, de um capital cultural, pois as competências e
os estímulos podem não surtir efeito quando não
encontrarem situações para que sejam postos em prática.
E, nesse sentido, a presença das famílias na
escolarização dos filhos em situação de sucesso escolar e,
no caso presente, de deficientes, foi analisada, através da
interdependência entre a escola e a família:

Se a família e a escola podem ser consideradas


redes de interdependências estruturadas por
formas de relações sociais específicas, então o
“fracasso” ou o “sucesso” escolares podem ser
apreendidos como o resultado de uma maior
ou menor contradição, do grau mais ou menos
elevado de dissonância ou de concordância das
formas de relações sociais de uma rede de
interdependência a outra (LAHIRE, 1997, p.
19).

O conceito de “Configurações” fornecido pelo


autor 52 foi utilizado, mas, ampliando-se os âmbitos
possíveis de serem observados, para assim reconstruir o
conjunto de dados que permitiram estabelecer diferentes
configurações, compostas pelas origens familiares dos
sujeitos, pelos tipos de escolarização e demais relações
sociais que exerceram influência em suas trajetórias sócio-
educacionais.
Promovemos, assim, uma articulação entre
“capital cultural”, proveniente do ambiente familiar e o
“capital social” aqui entendido como as relações sociais
estabelecidas não só pela família, mas pelos próprios
sujeitos em suas trajetórias, compondo, dessa forma, uma
articulação entre as contribuições de Lahire e Bourdieu,
como instrumento de análise.
Com essa concepção, a organização dos dados,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 361


sua apresentação e análise foram estruturadas, em um
primeiro momento, em torno da “análise da enunciação”
pois, segundo Bardin (1995), cada “entrevista é estudada
em si mesma como uma totalidade organizada e singular.
A dinâmica própria de cada produção é analisada, e os
diferentes indicadores adaptam-se a cada locutor”
(BARDIN, 1995, p. 175).

As trajetórias de professores com deficiência

A seguir serão apresentados alguns dados da


pesquisa, sua classificação, e análises estruturadas através
da categorização do conteúdo dos depoimentos por meio
dos eixos temáticos norteadores já citados. Esses elementos
permitiram que detectássemos algumas similaridades e
diferenças no conjunto das entrevistas.
Dentre elas, uma das primeiras providências
por parte das famílias desses professores foi, em todos os
casos relatados, buscar um diagnóstico médico para
constatar o grau da deficiência dos filhos e descobrir o
modo de tratar o “problema”. Os familiares procuraram,
logo no início da escolarização dos filhos, ajuda para
superarem as dificuldades causadas pelas limitações
impostas pela deficiência, a escola DERDIC para Dalva, o
Instituto Padre Chico para Vítor e a AACD para Flávia.
Embora tenha existido toda uma mobilização
familiar de ajuda a esses professores, ela se mostrou mais
específica, por parte daquele familiar que possuía um nível
maior de escolarização na família, nos relatos isso fica muito
evidente, sendo o Pai de Dalva, a Mãe de Vitor, e a mãe de
Flávia, exemplos dessa mobilização.
Nos relatos sobre a etapa superior de formação,
podemos caracterizar dois momentos: o primeiro, uma
tendência de valorização dos esforços pessoais na
superação das limitações da deficiência imposta pelas

362 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


exigências da vida acadêmica, e a criação de mecanismos
para enfrentá-las; o segundo, a recorrência constante a
leis para garantia de seus direitos, evidenciando o
despreparo das instituições universitárias em receber essa
população.
Em um sistema de ensino que historicamente
tende a eliminar todos aqueles que se mostram pouco
integrados à cultura escolar, e apresentam necessidades
específicas para aprendizagem, e especificamente, aqueles
que apresentam alguma deficiência, esses professores
aprenderam a desenvolver ações, práticas, recursos via
legislação, visando sua permanência, para conseguirem a
conclusão escolar.
Observamos nos depoimentos dos três
professores, que não existia um interesse prévio relativo
à decisão de serem docentes, porém existiram certas
condições subjetivas e objetivas para a opção docente.
Dentre elas destacamos: as sugestões de amigos
para ingresso na profissão; a análise do mercado de
trabalho para uma decisão que contemplasse as
necessidades financeiras familiares; ou mesmo uma
conseqüência natural para quem conclui os estudos
universitários que permitam a docência.
Quanto ao acesso à docência no serviço público,
embora parecesse apresentar maiores dificuldades por ser
muito seletivo, era o de melhores condições de ingresso,
permanência e igualdades profissionais, pela garantia da
lei dos concursos públicos, independente de serem os
concursados deficientes ou não.
Mesmo assim o estigma da deficiência é
fortemente presente, transformando as pessoas, cegas,
surdas ou deficientes físicas em seres aparentemente
incapazes para o exercício da profissão, de tal forma que
fica mais fácil, até para o serviço médico público, salientar
os impedimentos para o acesso do que as habilidades e

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 363


capacidades dessas pessoas que atingiram esse nível
profissional, como constatamos neste trabalho.

Caracterização dos entrevistados/entrevistas

PROFESSORA DALVA
A entrevista com a professora Dalva (deficiente
auditiva) foi realizada durante o mês de setembro de
53

2005, é professora do Ensino Básico (PEB II), em uma


sala de aula em escola municipal especial para alunos
deficientes auditivos, na qual, atualmente, leciona a
disciplina História da 5ª à 8ª série.
A professora nasceu em São Paulo, capital, em
um bairro típico de classe média. É a segunda filha e seu
irmão também é surdo. Atualmente é casada e mora em
um bairro próximo daquele em que nasceu, também típico
de classe média. Seu marido tem uma pequena perda
auditiva e seu filho, com 18 anos na época da pesquisa, já
cursava Universidade.
A professora entendeu minhas perguntas sem
auxilio de intérprete, somente lendo os lábios, pedindo
apenas, para que eu articulasse as palavras
vagarosamente quando formulasse as perguntas.

PROFESSOR VÍTOR
As entrevistas com o professor Vítor (deficiente
visual), professor de educação básica (PEB II) na disciplina
História, em escola pública estadual, foram realizadas
durante o mês de outubro de 2005.
O professor me recebeu em sua casa, sempre
aos finais de semana à tarde, para a realização das mesmas,
contando com a presença dos pais que apenas as
assistiram, não intervindo em nenhum momento.
O professor tem 45 anos de idade, é solteiro,
nasceu no estado da Bahia, no município de Campo

364 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Formoso, vindo com seus pais para São Paulo antes da
idade escolar. Atualmente mora no bairro de
Guarapiranga, zona sul da cidade de São Paulo, tendo
perdido totalmente a visão com sete anos de idade, isto é,
logo no início dos seus estudos no ensino fundamental.
Seus pais atualmente com 70 e 73 anos, são
aposentados, o pai, desde que chegou a São Paulo, sempre
trabalhou na construção civil, chegando a mestre-de-obras
no final da carreira e a mãe, dona de casa. Ambos cursaram
somente o ensino fundamental, sendo que o pai não chegou
a concluí-lo. Além de Vítor, a família é composta por mais
quatro irmãos, todos casados e não mais morando com os
pais.
Após o término das entrevistas, o professor me
convidou para conhecer a sua casa, se atendo mais ao
quarto onde ficava também seu escritório, mostrando seu
micro-computador, com os programas que facilitam a sua
vida profissional de professor, demonstrando como é seu
contato com os “e-mails” que são falados pelo computador
além de outros “softwares” que usa. Chamou-me a atenção
a arrumação do quarto e o cuidado com cada objeto pessoal,
conjunto de som, aparelho de televisão, sobre a qual fez o
seguinte comentário: – Não posso ver, mas escuto. (risos).

PROFESSORA FLÁVIA
A entrevista da professora Flávia (deficiente
física), Professora de Desenvolvimento Infantil (PDI) e de
Educação Básica I (PEBI), foi realizada durante o mês de
janeiro de 2006.
A professora, cuja deficiência física restringe-
se ao fato de não possuir a mão direita, por causa congênita,
tem 21 anos de idade, é solteira, e nasceu em São Paulo,
capital, no Bairro do Capão Redondo. Seu pai é metalúrgico,
atualmente aposentado, com 51 anos de idade e sua mãe
com 56 anos de idade é professora da rede pública. Ambos

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 365


são originários do Nordeste e migraram para São Paulo
antes do seu nascimento. Além dela, sua família é composta
por mais dois irmãos não deficientes.
A entrevista foi realizada parte na escola e
parte na casa da professora, a pedido da própria, em dias
e horários determinados por ela, durante um mês, sempre
em dias de semana, por períodos de gravação de uma a
duas horas com a presença da mãe.

Ambiência/Origem familiar

Bourdieu (2003b), afirma que o extrato social


a que pertence a família intervém no êxito e na orientação
escolar dos filhos por meio de fatores concretos como a
estrutura da língua falada, a atmosfera intelectual da
família, o acesso aos bens culturais, a atitude desenvolvida
em relação à escola e o custo financeiro dos estudos que a
família pode vir a arcar.
No entanto, embora a origem social da família
determine, em grande parte, a trajetória escolar do
indivíduo, a transmissão dos capitais das famílias somente
se efetiva mediante condições favoráveis.
Foi sob esta perspectiva que procurei analisar
as diferentes trajetórias dos três professores no que se
refere à ambiência familiar.

PROFESSORA DALVA
A situação familiar da professora, deduzida
pelos relatos, a coloca como pertencente à classe média
alta, com pai contador, cuja carreira o guindou ao posto de
diretor de empresa, o que lhe permitiu oferecer condições
favoráveis à escolarização da professora, pois, desde o
início da sua escolarização, contou com apoio pedagógico,
clínico e de acesso a bens culturais, como vemos nos relatos
abaixo.

366 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


– Desde pequena eu tive conforto; meu pai
sempre se preocupou com nós, sempre; levava
a gente no cinema, almoçávamos fora
também, tenho recordações ótimas.
– Meu pai trabalhava na cidade, na rua Bráulio
Gomes, mandava nós irmos à cidade encontrar
com ele, pra irmos ao cinema primeiro e depois
passear na Paulista e até a av. Ipiranga pra
comer cachorro quente.
Naquela época era o único lugar da
Kopenhagem pra comer chocolate e depois
íamos pra casa; eu tinha sete ou oito anos.
– Quando eu ficava doente meu pai sempre
ligava pra casa trazia chocolate tudo sempre,
sempre.
– Meu pai (era) Contador e minha mãe, dona
de casa.
– Meu pai já faleceu há cinco anos, trabalhava
em uma firma de madeira, era diretor da firma
e depois se aposentou; minha mãe está com 81
anos, mas precisa ver, forte, firme, mora
sozinha.

A preocupação com a escolarização dos filhos


parece ter sido tão forte a ponto da família decidir se
transferir para uma residência pior, para facilitar a
permanência dos filhos na escola especial que cursavam.

– Meu pai já era tesoureiro e sabia como


funcionava, meu pai sempre foi muito presente,
sempre a prioridade pra ele era eu e meu irmão,
quando a perua faltava, na época eu morava
na Lapa, a escola era no Aeroporto longe,
quando a perua faltava, ele falava: – Assim não,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 367


vamos vender a casa e vamos pra perto da
escola, – Então vendemos a casa, eu não queria
porque era uma casa muito bonita tudo, com
um quintal grande e teve que vender, e fomos
pra uma casa menor em Moema, mais perto
da escola especial; foi difícil. (a professora fica
muito emocionada e mostra a foto do pai que
estava na carteira dentro de sua bolsa).
Por outro lado, as condições sócio-econômicas
e culturais, permitiram que a família oferecesse aos filhos
uma ambiência cultural bastante rica, com casa própria
de veraneio, viagens, na qual se destaca a figura da amiga
e que, segundo ela, lhe ajudava a entender o mundo que a
cercava.

– Tinha uma vida sociável, tinha uma casa


grande, bonita também, meu pai comprou um
apartamento em Santos com um amigo dele.
– Viagens? Viajava muito com a família e
também com o amigo do meu pai e com sua
filha que era ouvinte e que me ajudava muito.
– Sabe o que minha amiga fazia sempre? O
programa pra viagem, pro Sul pro Norte fazia
tudo certinho, a gente viajava, apartamento na
praia, a gente passava às férias lá, (era) muito
bom.

Referiu-se, também ao investimento na


reabilitação não somente no que se refere às escolhas e
facilidade de acesso à escola mas, também, aos
procedimentos de comunicação valorizados e utilizados pela
escola naquela época.

– E com seus pais, como se comunicavam com


a senhora?

368 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


– Labial sempre, sempre.

Da mesma forma, seu depoimento deixa claro


o cuidado dos pais, especialmente da mãe, no que se refere
à qualidade de sua escolarização.

– Eu tinha muita responsabilidade, eu fazia


tudo. Só quando eu era pequena, na primeira
série, minha mãe (uma vez) perguntou:
– Você já fez a lição de casa?
Eu respondi:
– Já.
– Então vamos passear.
– Quando voltei, quis fazer a lição correndo,
minha mãe descobriu e me deu uma surra,
nunca mais... (risos).
– Meu irmão também, sempre fomos bons
alunos.

Mas o fato de conseguir atingir padrões de


comunicação e escolares de qualidade fazia com que, de
forma paradoxal, ela se sentisse, ao mesmo tempo, exposta
pela deficiência e valorizada pelos resultados alcançados,
tal como revela o trecho abaixo.

Meu pai me deixava louca da vida porque


sempre me apresentava pro amigos:
– Fala, olha minha filha, sabe falar.
Com um maior orgulho, meu pai me mostrava
pra tudo mundo, eu ficava louca eu não queria.
Mas foi bom né...

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 369


(Ele) falava:
– Olha minha filha... Fala alguma coisa fala
que... (Profª olhos lacrimejados... choro...)
– Também, também minha mãe sempre fala
até hoje, sempre falou que criou-nos para o
mundo e não pra ela, porque sabia que a minha
vida ia ser difícil. Meus pais sempre
acreditaram muito em nós, sempre
acreditando que nós podíamos fazer muita
coisa.
Quando eu era pequena, mandava eu comprar
pão na padaria, presunto, mussarela, tudo,
mandava eu comprar.
As boas condições econômicas e sociais da
família se expressam desde os primeiros anos de vida pela
busca precoce de um diagnóstico médico para constatar o
grau de deficiência e de como tratar o “problema”, embora
o fato de ter um irmão mais velho também com deficiência
auditiva parece ter diminuído o impacto para seus pais.

– Não dá pra saber, porque meu pai não sabe


o porquê... (sobre a causa de sua surdez).
– Tinha meu irmão mais velho e nós dois
nascemos surdos, todo mundo pergunta para
meus pais; tenho primos e nada de problema,
não tenho nenhum parente surdo. Só eu e meu
irmão.
– Médicos? não, já sabíamos tinha meu irmão
primeiro depois eu, minha mãe já estava
preparada sabia, já tinham visto com meu
irmão, não tinha nada pra fazer, naquela época
não tinha nada a fazer mesmo, se fosse hoje
em dia !.

370 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


E nesse sentido, o irmão, foi também um
elemento que, no comum da ajuda familiar à professora,
caracterizou-se como um membro com disponibilidade e
“paciência” para prestar auxílio nas diversas etapas da
vida, como percebemos nos relatos abaixo, quando
perguntada sobre sua relação com ele.

– Brincadeira?, eu brincava muito com ele eu


lembro que era brava, muito brava, eu lembro
que eu era muito irritada, muito agitada, a
ponto do diretor da escola me chamar a
atenção, porque eu aprontava. (Risos).

PROFESSOR VÍTOR
A situação familiar do professor, deduzida dos
relatos, coloca-o como pertencente à classe média. O pai é
trabalhador da construção civil; a mãe é doméstica, com
cinco filhos, sendo o professor o mais novo deles. Assim
que foi constatada a sua deficiência, em idade escolar, além
do diagnóstico obtido, os pais foram alertados para o
processo de escolarização do filho, e logo tomaram alguma
atitude no sentido de solucionar o problema ou, ao menos,
amenizá-lo. Embora tivessem pouco capital cultural,
econômico e social, contaram com informação e orientação
médica para que fossem atrás de atendimento escolar para
o filho, como vemos nos relatos abaixo.

....e no Hospital São Paulo é que descobriram


que eu estava com um tumor, mas não sabiam
se era benigno ou maligno aí fiz uma cirurgia
tirei esse tumor, cento e cinqüenta gramas de
pus, aí eles me encaminharam e disseram a
meus pais, – ele não pode ficar sem estudar,
ele tem que estudar, o tumor estava localizado
no nervo ótico próximo ao cérebro, mas não

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 371


afetou o cérebro, aí o que fizeram, ele não pode
ficar sem estudar, tem que estudar, aí meus
pais procuraram saber que escola que tinha
especializada para deficiente visual aí indicaram
o Instituto Padre Chico, lá no Ipiranga né, aí
fui para o Instituto Padre Chico entrei no
instituto, fiquei de 1970 a 1977 fiz o ensino
fundamental todo lá. – fomos orientados pelos
médicos que eu não poderia ficar sem estudar,
aí indicaram o instituto Padre Chico.

Foi grande o impacto sofrido pela família do


professor, e as medidas tomadas a ponto de interná-lo em
um instituto, pareceram ser a melhor decisão, em função
de ser a deficiência uma novidade no seio familiar e de não
saberem como agir. Tal fato lhe permitiu obter condições
favoráveis à escolarização, pois desde o início pôde contar
com apoio escolar através do instituto podendo seguir
normalmente seus estudos.

(sobre a escolarização no Instituto) – Eu tive


que acompanhar, eu tive sorte e eu tive que
aprender o Braile, e o Braile eu venci, porque o
Braile gasta um ano aprender o Braile, e eu
aprendi em seis meses, eu dominei o Braile,
então facilitou entendeu? E eu consegui
praticamente quase acompanhar a minha
faixa etária né, e foi aí que eu consegui chegar
ao ensino fundamental.
A relação do professor com os irmãos antes ou
mesmo depois da ida para o instituto era normal em
condições de igualdade perante os pais, pois sempre foi
tratado de forma igual o que o ajudou a desenvolver sua
disciplina e habilidade, reconhecer seus limites.

...Mas a gente brigava, “Ochi”, normal rapaz,

372 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


discutia assim entendeu? Não tinha essa
proteção assim, e meus pais não me tratavam
diferente, você vai fazer isso, as tarefas eram
divididas normalmente, até hoje, por exemplo,
quem cuida, vamos supor, do meu quarto, eu
cuido do meu quarto, eu arrumo minhas coisas,
eu faço minhas coisas, deixo tudo organizado,
faço tudo como eu quero entendeu? Tudo aqui,
ó esse som aqui eu mexo, (o professor se
levanta, vai até ao aparelho de som na estante
da casa e liga, desliga, aumenta o som e volta
a sentar-se, vira-se para o aparelho de telefone
com fax e diz: – “eu atendo ao telefone digito,
passo fax tudo entendeu?”). Você não pode
passar do seu limite, você não pode passar do
seu limite, então vamos respeitar o seu limite,
todo mundo tem limite, vamos então respeitar,
até aqui eu posso, daqui pra lá eu não posso.
(Risos).

PROFESSORA FLÁVIA
A situação familiar da professora, deduzida dos
relatos, a coloca como pertencente à classe média. Embora
com problemas familiares com os demais parentes, seus
pais, após o nascimento da professora se mobilizam para
oferecer melhores condições de vida e atendimento clínico
para filha como vemos nos relatos a seguir.

(sobre a primeira infância) – Lembro, lembro:


é, a gente morava numa casa muito boa, mas
era na beira do córrego e morava numa casa
minha mãe, na casa de baixo meu tio, irmão
do meu pai, e na casa do lado um outro irmão
do meu pai, na casa de cima um outro irmão
do meu pai, a família toda e daí você já tira
que era um caos... (Risos), não era muito legal,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 373


aí meu pai começou a perceber que não era
muito bom morar ali, que a família se
intromete muito, meu tio tinha problema com
alcoolismo, eu me lembro que ele xingava,
batia na porta, arrancava a roupa do varal,
minha mãe nunca deixava a gente brincar fora
no quintal, todas as lembranças que eu tenho
é a gente dentro de casa ou cantando, cantava
muitas músicas ou livrinhos. Nós tínhamos
muitos, tínhamos mais livros que brinquedos.
– Eu fazia exercícios com bolas bastões,
pesinhos, barras, vários exercícios, tinha duas
fisioterapeutas que me acompanhavam, é
assim: tinha um atendimento lá de outro
mundo era AACD da Vila Clementino, ao lado
do Servidor Público e eles me encaminharam
pra fazer natação duas vezes por semana, e
duas vezes por semana o atendimento lá. Então
eu acho que fui até beneficiada porque durante
esse tempo eu não tinha que estudar ainda,
então assim, ter feito este tratamento nesses
seis anos logo que nasci não me prejudicou nos
estudos.

Na busca da família da professora pelo


diagnóstico médico e apoio clínico, nesta fase, fica evidente
a visão médica estreita e carregada de falta de
expectativas, quanto ao tratamento para a superação dos
limites de uma deficiência. De acordo com o médico, pelo
fato de ser a professora deficiente, seu futuro social já
estaria determinado, como vemos no relato abaixo.

– O que o médico falou foi o seguinte: que eu


tinha nascido com má formação congênita, tá,
e essa formação congênita acarretou uma
deficiência do tipo ortopédica, e então o que eles

374 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


propuseram na AACD e graças a DEUS minha
mãe não aceitou: eles propuseram eu cortar
assim – na gravação não sei como você vai
fazer essa descrição_ cortar esse pedaço aqui
da mão pra eu poder segurar uma vassoura,
gente do céu! (risos), olha só que absurdo, o
próprio médico fazer uma cirurgia pra segurar
uma vassoura! – porque – eu acho que é assim,
já vê uma coisa sem perspectiva né, por ser
deficiente o máximo que ela vai fazer é cuidar
da casa dela no máximo né, .... Então, tudo
bem eu vou chamar meu marido a gente vem
e dá a solução, não voltou mais, eu me lembro
do médico que a gente estava numa sala só com
ela, eles propuseram que eu usasse uma prótese
na mão, só que eu lembro que não queria
prótese porque poucas semanas antes eu tinha
ido à igreja com minha mãe e que na hora da
aleluia, com a mão para o alto, eu lembro que
a prótese da mão da mulher voou e eu dei tanta
risada que eu não queria dar minha mão e ela
sair, dar esse mico (risos), aí eu desisti.

A professora observa que toda a família se viu


“atingida” pela sua deficiência. Além do aspecto de
mobilização familiar para sua assistência por ter uma
deficiência, houve também mudanças de comportamento
visando equilibrar o orçamento doméstico.

.....: Ela sempre me levou pra exames e


fisioterapias, eu lembro que teve uma época que
ela emagreceu muito, muito, meu pai, ah! Sim!
– Eles não comentam muito sobre como foi:
“meu Deus minha filha é deficiente”!, eu
lembro de meu pai falar assim que começou a
fumar na época, mas depois ele ficou tão assim

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 375


assustado na época e pensou. – Meu Deus eu
vou gastar dinheiro com vício e depois não vou
ter dinheiro pra cuidar da minha filha e largou
o cigarro, ele deve ter ficado muito tumultuado
na cabeça dele, já tinha um filho que é meu
irmão mais velho, meu pai trabalhando o dia
inteiro, minha mãe em dois serviços e eu com
problema na perna, na coluna e na mão.
É nítido que a mãe da professora tenta diminuir
a marca da deficiência da filha, através do atendimento
clínico e tratando todos os filhos igualmente, marcando sua
relação com os filhos de maneira igual, mas envolvendo os
outros filhos na ajuda à professora.

– Bem, a gente sempre teve um relacionamento


muito bom, nós três sempre fomos muito bons,
mas os cuidados comigo sempre foi com a
minha mãe.
– A gente, sempre brincava muito junto, eu
não tenho lembrança de tratamento diferente
entre a gente, só quando do tratamento na
AACD, pois tínhamos que acordar muito cedo
e às vezes, da minha parte, por que eu tenho
que levantar tão cedo e eles, meus irmãos não?
Eu não queria ir, só que quando eu chegava,
eu falava que brinquei, fiz isso, fiz
aquilo...(risos), para meus irmãos, ah! A
fisioterapeuta mandava exercícios para fazer
em casa, eu odiava, aí minha mãe colocava
meus irmãos para fazer junto...(risos), e eles, e
a natação eu fazia particular, minha mãe
sempre presente para cumprir as tarefas às
vezes eu chorava, tinha hora pra assistir
televisão, para os exercícios, o caderno tinha
que estar impecável, essas coisas.

376 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Relações sociais e trajetórias sócio-educacionais

As relações sociais dão forma e contorno a nossa


formação, e nesse sentido desenvolvemos estratégias de
relacionamento no nosso convívio social nas várias etapas
de nossa vida.
Com base em Bourdieu (2003a), as estratégias
significam ações que tanto podem ser resultado de análises
e ponderações conscientes perpetradas pelos atores, como
também revelar tão somente uma intuição prática, fruto
do senso comum adquirido no processo de interiorização
das regras do jogo social.
Também sob essa perspectiva, é que analiso os
relatos dos três professores no que se refere às relações
sociais e trajetórias sócio-educacionais.

PROFESSORA DALVA
Em meio, ao preconceito de parte da sociedade
que ainda não sabe conviver com as diferenças, e a
existência da “cultura” de segregação, mais forte ainda
nessa fase da vida da professora, a figura de uma amiga
ouvinte ou não, que ajuda nos problemas do dia a dia, quer
durante a infância quer na idade escolar básica e em todas
as etapas acadêmicas, até na profissional está sempre
presente, como percebemos nos relatos.

.....Este amigo tinha uma filha ouvinte e me


ajudava muito, até hoje, fez aniversário por
esses dias, não me ocorreu o dia, mas foi de
muita importância pra mim
... Meus amigos. Na escola tinha dois lados,
tinha uma ouvinte que foi importante pra mim,
– os amigos facilitam a vida da gente, por
exemplo, tinha dificuldade para arrumar
emprego, conhecer a vida e os amigos facilitam,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 377


e os outros...
...Eu fui pra uma escola comum de freiras,
Santa Terezinha do menino Jesus, eu morava
em Moema e fui estudar no Pari por causa de
uma amiga minha que não queria estudar
sozinha, eu fazia sacrifício para ir lá do outro
lado da cidade, estudar no outro lado da cidade,
estudei lá três anos, por causa de uma amiga
minha que queria fazer normal em sala
comum com ouvintes.
...Eu e minha amiga fomos para outra escola
do Pari e lá nós fomos muito bem recebidas
era uma escola só de meninas e lá as colegas
ajudavam muito, tinha uma menina, a melhor
da classe, se preocupava muito comigo eu
fiquei no grupo dela e os professores disseram,
duas únicas surdas tinham que separar pra não
ficar as duas juntas e a outra ficou em outro
grupo, foi uma experiência ótima..
... Ouvintes, minhas amigas Mariza, Maria
Inês, a Mariza é professora da URP, pena eu
perdi contato com elas.(A senhora terminou
este curso?) – Sim, foi normal, mas meus pais
ficaram preocupados porque a outra moça
muito inteligente, mais os pais não confiavam
na capacidade dela e tiraram, meu pai depois
que eu me formei disse para o pai da minha
amiga: – E ai sua filha se formou? E, ele ficou
sem graça né.! ...Acho que os pais dela não
acreditaram nela, ela era uma das melhores
alunas da classe os pais eram advogados e tudo.

PROFESSOR VÍTOR
Para o professor, que, na época, estava
internado no instituto, as relações sociais mostram-se

378 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


circunscritas aos amigos mais próximos, que tinham as
mesmas limitações causadas pela deficiência e problemas
familiares comuns, como se constata em sua fala:

...é a gente trocava experiência, ah e você assim,


assim, isso aquilo, tal, então há troca, então a
gente ia aprendendo um com o outro esse ta
vivendo de um jeito aquele ta vivendo de outro
jeito outro ta vivendo melhor, então o que ele
ta fazendo, o que facilita a vida dele, então a
gente pegava, então há troca entendeu. Agora,
quando a gente pegava estes colegas que tinha
problema em casa e tal a gente tentava orientar
ajudar dar uma força pra ele em casa, vamos
tentar dar uma força pra ele, chega em casa
faz isso, faz aquilo tenta né, pra ver se os pais
aceitavam melhor, aí você chega a um ponto
de que quando a gente sentia que não dava
mesmo a gente contava pras freiras.

A relação de amizade desenvolvida com os


colegas ficou restrita àqueles amigos que também
superaram a limitação da deficiência conforme relatado
abaixo:

... A amizade era completa entre todos, com


todos, nossa, por que não tinha nada a fazer
então bater papo lazer, dia de sexta feira é que
tinha visita né, que o pessoal vinha visitar, o
pessoal de faculdades vinha visitar a gente e a
gente tava lá.
.... Há, era mais sala de aula né, e nós tínhamos
um grupo assim sala de aula, inclusive dentre
os colegas que se formaram comigo eu tenho
uma que trabalha no Centro Cultural Vergueiro
uma das que se formou comigo a única que eu

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 379


lembro assim, que eu tenho contato, que às
vezes quando eu ligo eu quero algum livro
assim alguma coisa.

PROFESSORA FLÁVIA
A família, seguida da escola, se constituiu como
o primeiro universo de relações sociais para a professora
e de modo geral, existiu uma mobilização de todos da
família, na diminuição das limitações, conseqüência de ter
a professora uma deficiência, mas à medida que se
ampliam seus contatos sociais, a professora se depara com
as atitudes da sociedade que, em relação às pessoas com
deficiência, geralmente, não são positivas, quando as
marcas de deficiência são evidentes, e ainda mais
marcantes quando presentes em uma mulher, que apesar
de bonita, é vista como “aleijada” como vemos no
depoimento abaixo:

– Eu comecei a sair, meus pais são muito


ciumentos principalmente meu pai, então a
gente praticamente não saía de casa pra festas,
quando eu tinha quinze anos a primeira vez
que eu sai à noite pra balada fomos todos juntos
meu pai minha mãe minha irmã e meu irmão
fomos todos juntos pra balada e aí era uma
balada de Forró Universitário... (Baile Popular).
– eu me lembro que o movimento do Forró
Universitário estava surgindo e aí um rapaz
veio me chamar para dançar e quando o rapaz
chama no forró, ele chama com a mão direita
e você estende a mão direita e você começa a
dançar e é legal, por diversas vezes eu fiquei
naquela situação em que a pessoa olha pra mão
e faz assim.(a professora estende a mão e retrai
rapidamente, simulando o movimento do
pedido e da recusa através do gesto para não

380 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


segurar a mão). – e olhar pra seu rosto e depois
pra sua mão, não chama pra dançar, mas
também não te solta (risos). – Teve uma vez
que eu fiquei muito chateada, eu saí à noite
com umas primas que vieram Brasília e a gente
tava no restaurante e um rapaz falou ao passar
pela mesa da gente, – Que morena linda não
sei o que, e ai o amigo dele cutucou falou, –
mas ela é aleijada, – nossa aquilo me deixou
pra baixo, mas essa situação aconteceu é difícil,
mas acontece né.

Processos de escolarização

PROFESSORA DALVA
Apesar de todo o investimento realizado pela
família, mesmo no âmbito da educação especial, a
professora enfrentava o descrédito quanto às suas reais
condições para se escolarizar, fato que se tornou mais
evidente nas etapas seguintes de escolarização, conforme
relatos abaixo.

.... e eu me formei com dezessete anos, com


dezoito comecei a trabalhar no SERPRO,
depois eu fui para a faculdade e larguei, era
bacharelado em turismo e desanimei e larguei
seis meses depois, depois fui para Belas Artes.
.... não orientava, era pessoal, mas antes do
ensino normal uma professora de ciências
chamava nós de burros, ela dizia: – vocês não
têm capacidade pra nada, não tem capacidade
nenhuma, a gente ficava quieto, ela passou a
5ª, 6ª, 7ª e 8ª série até a admissão, com a
gente.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 381


Quando saiu da escola especial e tentou
ingressar no ensino regular, apesar de possuir certificação
para tanto, enfrentou, inicialmente, discriminação.
...Na escola de freiras, na verdade eles não
queriam que eu estudasse lá, na escola Nossa
Senhora Aparecida, eles não acreditaram em
mim por causa da minha surdez, na escola de
freira e eles não acreditaram e mim... Como
que pode né?.
...Não Acreditaram, e nós (minha família)
ficamos admirados porque, uma escola de
freiras não aceitava uma surda né...Minha mãe
e a mãe da minha amiga nossa como pode ?
...Lembro de um detalhe, uma prova de
geografia para quarenta meninas todo mundo
fazendo cola porque era gabarito. A B C assim
marcando (mostra a mão, exemplificando a
cola)
Mas eu tinha me preparado porque eu tinha
estudado, tava preparada e a minha amiga
surda do lado pediu a resposta de uma pergunta
e eu falei “A”.
E ela (respondeu):
– Não, pode porque todo mundo marcou C e
por que só você?
– Porque eu tenho certeza que é essa.
Ela ficou na dúvida e eu disse:
– Pode marcar.
Ela respondeu:
– Mas não pode.
Eu disse: – não pode por que?

382 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


E ela:
– Porque eles são ouvintes, a melhor da classe
marcou outra, e se você estiver errada, eu mato
você.
Marquei (a alternativa) A e (fui à única na
classe a tirar dez) tudo mundo mais ou menos,
eu tinha certeza eu estudei minha amiga era
insegura... (Risos).

Embora tenha enfrentado dificuldades de


diversas ordens como o preconceito que parte da própria
professora do ensino especial, que parece traduzir a
exclusão do mundo escolar à pessoa que possui a marca
da deficiência, a professora prosseguiu nos estudos sem
interrupções:

...Então, eu deixei uma escola especializada e


fui pra uma escola comum, eu me senti um
pouco perdida na Santa Terezinha do menino
Jesus no PARI, só tinha ouvinte e só fui por
causa de uma amiga minha, no começo foi
difícil, mas depois eu fiz amizades, aquela da
primeira aluna, me formei normal, três anos
nesta escola, só menina e depois comecei a
trabalhar no SERPRO até 1976 e depois fiquei
parada e entrei na faculdade direto, Belas Artes
e ai cursei três anos de artes plásticas e depois
mais 3 bacharelado em pintura e durante esse
período só estudava não trabalhava mais.

Também no nível universitário, a professora


enfrentou dificuldades pelo despreparo das instituições
escolares e dos professores em receber o estudante
deficiente nesse nível de ensino, revelando, ainda, que o
deficiente que chega a esse nível de ensino tem que fazer
uso das leis para garantir seus direitos, conforme relato

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 383


abaixo.

– só tive problema com a professora de música


na Faculdade só com ela, no segundo semestre
do curso, a professora de música mandou
comprar flauta, flauta e experimentar pra ver
se eu sentia alguma coisa, e eu não sentia nada
nem vibração, ai falei pra professora que não
podia usar a flauta, falei pra professora sou
surda, ela disse: – surda? o que, que eu vou
fazer com você ?, tá perdendo seu tempo aqui,
saia daqui já. – Mas eu posso fazer de tudo,
faço trabalho, faço qualquer coisa. – Não, não,
não dá... Aí fui reclamar com o diretor, só que
eu não podia reclamar diretamente, falei com
a secretária e ela falou com o diretor e o diretor
falou pra mim fica lá, aí ela na sala de aula
ficava falando que eu só conversava, eu dizia:
– nós?, (com uma amiga).Mas ela estava me
explicando e a professora: – não vocês estão
conversando. Era uma cisma comigo isso me
deixava apavorada né...A primeira prova que
eu fiz tirei quatro (4), mas a nota mais alta foi
sete(7) (uma menina) o resto, zero, não fui tão
mal e depois mandou fazer um trabalho em
grupo era sobre ritmo e tinha que apresentar
eu disse a meu grupo que ia fazer, eu vou fazer
pra provar que eu podia, eu tinha que “tocar”
um instrumento no grupo e eu disse que não
podia cantar, mas podia tocar alguma coisa,
acompanhar e combinei com uma amiga...(a
professora afasta a cadeira para trás e mostra
os pés sinalizando os movimentos da batida dos
pés no chão a maneira que deveria tocar seu
instrumento de percussão que seria feito pela
amiga para que ela pudesse acompanhar). –
Na hora a amiga olhava pra mim, faria o

384 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


movimento e eu acompanhava, tudo
preparado, mas na hora da apresentação,
minha amiga não conseguia fazer, ela estava
mais nervosa que eu, mas eu estava preparada
e toquei sozinha, certinho. A professora falou:
– Melhor grupo e quem merece palmas é você
apontando pra mim, mas eu fiquei assim... (a
professora cruza os braços, para de falar e fica
bem séria sisuda), fria, também na formatura
as pessoas batiam palmas pra mim e essa
professora também e eu ficava numa boa, mas
fria.
– Sim sempre, tinha outra amiga surda que
saiu da faculdade e ela não lia os lábios.
– Passaram a me conhecer na Faculdade, tinha
o professor Vítor falava rápido, – eu tinha
dificuldade, e tinha algum preconceito, mas
meu irmão dizia: – tenha paciência eu já passei
por isso, quanto à professora, ela era “chata”
com tudo mundo, mas comigo eu sentia que
era mais.
– Normal.

PROFESSOR VÍTOR
Um significado percebido e atribuído à
instituição assistencial de caráter escolar por parte da
família do professor e do próprio professor foi a de ser um
espaço caracterizado como “refúgio” para a assistência e
escolarização inicial do professor. O Instituto Padre Chico,
mesmo podendo ser considerado como um espaço de
segregação para a pessoa deficiente, foi importante por
manter o professor em condições de seguir seus estudos:

– Oito anos lá o fundamental de hoje inteirinho


lá.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 385


– Lá tinha um serviço de apoio completo,
porque você entra e tem que desenvolver o tato
é na pré-escola você tem que conhecer
ambiente, como se locomover então tudo isso
daí você vai aprendendo, estimular como vai
estimular os sentidos tudo isso ela trabalha (a
professora) com você, então você vai
memorizando, trabalhando tudo isso aí.
– Eu fiquei internado, eu ficava internado a
semana inteira, só vinha aos finais de semana,
lá tinha piscina, tinha quadra de futebol de
salão, tinha arremesso, tudo; na parte de
atletismo era completo lá, piscina térmica
coberta, 25 x 12 m., a piscina semi-olímpica.

Isto ainda fica mais evidente quando o professor


relata a sua rotina de vida no instituto como uma
lembrança positiva.

– De manhã tinha aula, onze e meia saía da


escola trocava de roupa e ia almoçar depois do
almoço tinha um recreio uma espécie de
recreação até uma hora, depois voltava até as
três, nós ficávamos estudando em uma sala só
pra estudar, fazer as atividades da sala de aula
tudo, depois das três horas nós íamos tomar
café, aí depois do café nós partíamos para
recreação de novo até quatro horas e depois
estudava de novo mesmo que você não tivesse
nada pra fazer tinha que estudar, alguma
atividade tinha que fazer e aí ficávamos até seis
horas, onde nos preparávamos pra janta e
depois da janta ficávamos até sete horas no
pátio brincando, ai nos íamos pra capela que
tem lá fazer orações e depois dela nós íamos

386 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


dormir, todo dia isso aí esta rotina. Mas foi bom
muito bom.

O Instituto pareceu à família e ao professor


Vítor ser mais seguro e útil também porque suas práticas
educacionais prescreviam “Os bons comportamentos”,
além de ensiná-lo a viver no mundo visual, o que ele
poderia e o que não poderia fazer desde cedo, devido às
limitações advindas da deficiência, conforme relato abaixo.

– Nós tínhamos um lugar para tomar banho


certinho, nós preparávamos nossa cama nós
arrumávamos nossa cama, nós fazíamos tudo
nessa parte, se você deixasse a cama um pouco
desarrumada de manhã e fosse, né, porque a
gente levantava e já ia tomar banho e depois,
já preparava para a aula ou ia orar um pouco,
ou preparar para o café e depois você já vai pra
escola na sala de aula, ai se você deixa a sua
cama, um pouquinho, desarrumada as freiras
ia lá na sua sala de aula pra você descer e ir até
o dormitório arrumar a sua cama e voltar.
– Exatamente, mexia com arte culinária, mexia
com argila, etc tudo, fazíamos porta retrato nas
aulas de arte, pegava um algodão molhava no
verniz e ia passando e depois ela via, não podia
borrar se não abaixava a nota.
– Porque lá era particular e Estadual, mas era
sustentada uma parte pelo governo outra
particular, mas nós não pagávamos era
patrocínios, eu esqueci de falar, tinha oficinas
lá dentro que nós fazíamos vassouras,
espanadores, lá você aprende tudo, lá na sala
de aula, você aprende até como fazer comida,
como cuidar de uma criança, como limpar a

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 387


casa, como pregar um botão, tudo.

Após a escola especial que o preparou bem para


seguir nos estudos, o professor sente o preconceito e as
dificuldades de cursar a escola regular normal. Infere-se
também nesse relato a dificuldade sentida pelo professor
no atendimento e no despreparo do sistema educacional
para lidar com a população deficiente que chega aos níveis
mais elevados de escolaridade e tem que lutar para fazer
valer seus direitos:

– Bem eles disseram, agora você se formou,


procura um ensino médio pra fazer, se você
quiser continuar.
– Aí, já mudei de escola, e fui partir pra outra,
ai foi onde eu senti um pouco de discriminação,
por que até então não tinha, entre nós lá não
tinha problema, ai quando eu parti pra rede
Estadual, que eu vim, eu falei bom agora eu
vou estudar na rede Estadual normal, ...: Ah,
ai foi o seguinte: eu falei tudo bem vou entrar
agora no ensino médio legal, vou estudar com
as pessoas normais por que escola pública não
tem mais problema ficar com deficiência, ai fui
no Alberto Conte (trata-se de escola Estadual
localizada no centro do bairro de Sto Amaro
SP.) Há legal todo mundo estuda, legal vou
estudar lá, ai eu lembro tinha até a D. Néia em
78 aí, tudo bem, cheguei lá entrei e falei – Bom
eu gostaria de me matricular ai ela falou assim:
– Peraí, você enxerga, eu falei: – Não, sou
deficiente visual ela falou: – Aqui nós não
podemos misturar cegos no meio das pessoas
que enxergam, me tratou como produto
químico, me senti assim horrível, não, mas eu
posso fazer isso, isso e isso, não tudo bem, aí

388 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


voltei no dia seguinte discuti com ela também,
e com diretora ai bati boca de novo, eu disse,
mas eu posso fazer isso, posso estudar
tranqüilamente, eu sei que pode por isso, por
isso e tal, e eu sabia que aqui tinha os
professores itinerantes. – se tem deficiente,
traduz tudo que lê escreveu aqui e passa pra
professora avaliar e era isso, e ela não queria
aceitar e ai eu levei minha mãe tudo e tal e aí
ficou mais bate boca e, eu falei: bom aqui eu
não quero mais estudar também mesmo eu
conseguindo, eu sabia que a lei estava do meu
lado, ela falou – bom eu não vou mexer agora,
mas como eu passei por tudo aquilo, aquele
bate boca tudo, eu falei: – peraí, corri atrás da
lei, descobri tudo os meus direitos, o que eu
podia fazer o que eu não podia, né; aí fui pra
outra escola, ai fui para o Padre Sabóia de
Medeiros, (trata-se de outra escola também
estadual no mesmo bairro), fica na Américo
Brasiliense, na chácara Sto Antonio perto do
Borba gato, então cheguei lá e a diretora falou
assim: – é, já estava a tarde sentada ela falou
assim: você quer o que? Eu quero me
matricular, ela pode me seguir, mas quando a
pessoa ta de salto ela vai andando tac, tac, tac,
eu fui seguindo, aí eu fui seguindo ela pelo salto,
ai ela entro, eu entrei na sala dela ai ela falou
assim, pode falar, eu disse assim eu vim me
matricular, tudo, tal, tal, só que eu não
enxergo, ai ela falou assim: Você não enxerga
bem durante o dia? Como que é? Aí eu falei:
eu não enxergo, – você não enxerga bem a
noite um pouco? Eu: – nem de noite nem de
dia aí ela falou: – então não posso, então vamos
suspender a sua matrícula não vai dar para
fazer, tudo bem, a senhora não quer que eu

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 389


me matricule aqui? Não: então, por favor, a
senhora pode fazer uma carta escrevendo
porque a senhora não me quer aceitar aqui,
não quer que eu estude aqui e assine embaixo,
– não, mas porque essa carta? Não eu tenho
onde levar essa carta na secretaria de educação,
ela: não, então tudo bem, então eu vou fazer,
veja eu estava pedindo a demissão dela, porque
eu já ia levar para as autoridades, e falar: ó ta
aqui essa não quer me aceitar, por ter passado
pela outra e já tava me esfolado então já que
eu tinha que ir bem preparado, ela falou como
você sabe? Eu falei a lei esta assim, eu estou
amparado, eu sei que a senhora tem que me
dar vaga, e a senhora me aceitando a secretaria
da educação tem que mandar professores para
cá e a escola nem a senhora não vai pagar
nada, Há então tudo bem, ela me aceitou.
O professor prossegue nos estudos e enfrenta
diversas dificuldades nesse nível de ensino mais elevado,
no relato fica evidente o despreparo que envolve o acesso
do estudante deficiente visual ao nível superior por parte
das instituições escolares, tendo de fazer uso da legislação
para garantia dos seus direitos.
– Aí eu falei bom agora eu vou fazer uma
Faculdade, aí pensei “caramba”, já tive um
problema sério agora e agora fiquei pensando
eu vou bater de frente de novo, aí chegou na
faculdade, na OSEC lembra agora é UNISA,
aí eu fui lá de todas a mais próxima, aí cheguei
lá: ó eu quero fazer a matrícula aqui e tal –
Há! assina aqui, mas, eu sou deficiente visual,
mas você sabe assinar? – sei. – assina aqui,
assinei aquele papelzinho de comprovante né
você sabe! aí escolhi a matéria e tal e tudo bem.

390 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Aí na hora do vestibular “ou melhor” uns dias
antes, aí descobriram que tinha um deficiente,
por que eu coloquei na fichinha deficiente
visual para não ter problema, quando pegaram
aí veio o problema, me chamaram e disseram...
Nós não vamos poder aceitar você aqui tarará.
Tudo bem, mais eu vou ficar aqui. Mas nos
vamos abrir um processo por que nós não
vamos poder te aceitar. E eu, tudo bem, se vocês
não aceitam eu ponho um advogado. Também
aí abrimos um processo sem ter feito ainda o
vestibular, já era pra ter feito e mesmo antes já
estava aquela crise, já estava aquela batalha
por que deixaram eu assinar aquela inscrição
(papel). Não podia me mandar mais embora
porque tinham deixado eu assinar o papel. Que
eles não tinham pessoas para fazer a prova pra
mim, eu falei tem por que eu sei que tem isso
no Estado. Tem aquilo enfim mostrei todos os
recursos. Aí falaram assim, mas nós não temos
dinheiro para pagar, eu falei assim bem isso é
outro problema agora vocês se viram, eu sei
que foi um processo dessa grossura, (Faz gesto
com os dedos numa imagem volumosa se
referindo a grossura do processo), ganhei o
processo fiz o vestibular oral, tudo oral, Física
o cara fazia assim ó, (mostra a palma da mão
e demonstra). Como a questão foi feita, olha
aqui tem um retângulo, (aqui tem uma reta
calcule isso aqui etc com o dedo)...

O professor, além das dificuldades de acesso,


enfrentou a falta de estrutura acadêmica para seu
aprendizado no nível superior. Evidencia-se também a
falta de profissionais especializados para a adaptação e
atendimento desse alunado e, neste depoimento,
encontramos uma cobrança dos colegas de forma a medir

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 391


o desempenho acadêmico do professor.

– Quando eu entrei na Faculdade e era o


primeiro ano Internacional do deficiente onde
eu provei, ò precisei brigar, brigar e agora vem
ano internacional e vocês não sabem de nada,
e a faculdade OSEC queria ficar com todas as
minhas fitas, deixa aí para que outros
deficientes aproveitem, tinha quatrocentas e
cinqüenta fitas, eu falei ta, a hora que vocês
comprarem um gravador e quatrocentas e
cinqüenta fitas eu vou passar pra vocês, afinal
a Faculdade não oferecia nada de recurso pra
mim eu corri atrás, não foi nada de mão
beijada, porque eu vejo hoje assim o pessoal
estuda por que quer, não estou afim, não vou,
sem nenhum problema, por que eu era assim,
eu não podia tirar nota baixa porque eu era
comparado na sala de aula, quando apareciam
aqueles papes anexado na parede com as notas
eles iam ver a minha e depois viam as deles
entendeu? Porque eu era comparado, porque
você conseguiu essa nota eu não, porque eles
achavam que o deficiente tem que ser menos
que eles e eu era mais que eles incomodava e
as provas minhas era oral.

PROFESSORA FLÁVIA
A professora Flávia, embora não tenha passado
pela educação especial, tem na pessoa da mãe a preparação
e auxílio para a superação da marca da deficiência, no seu
início de escolarização, por ser a mãe professora.

– Bem o que lembro já é quando entrei na


escola, depois de normalizar a perna e a coluna,

392 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


e aí então entrei na EMEI Anízio Teixeira e
assim o que eu me lembro, a minha mãe
conversava bastante assim: você não se
preocupa do que as pessoas vão falar todo
mundo é diferente vê se todo mundo tem olho
igual não tem cabelo da mesma cor, cabelo é
liso cabelo é enrolado então ela destacava as
alunas diferentes que existiam pra diferença da
mão não parecer que era a única, pois era mais
visível, era a única coisa, enfim como professora
ela era como que me meio me preparava. – O
que eu me lembro era de crianças que não
queriam dar as mãos pra mim, eu lembro que
eu tinha muita amizade tinha uma garotinha
chamada Ana Paula e uma outra que até pouco
tempo freqüentava minha casa e depois casou,
mais sempre tive muita amizade desde o
começo na escola na verdade eu não fiquei
muito tempo lá.

Seguindo as fases de escolarização a professora


enfrenta as dificuldades de se ter uma deficiência na escola
regular normal, mas a mãe procurando promover
condições mais favoráveis para a adequação e recebimento
da filha à vida escolar, como ilustram os seguintes relatos:

– Bem as professoras eram amigas da minha


mãe, e engraçado outro dia encontrei uma
antiga amiga de sala SESC Pompéia e ela: – oi
como você está?, Sabe, eu achava tão
bonitinho, sua mãe levando você pra escola e
estando na sala com sua mãe, – porque às vezes
ela me levava para a sala de aula dela, e aí eu
lembrei que às vezes era estranho, pois as
crianças olhavam pra mim e não falavam nada,
não perguntavam, e era normal perguntarem

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 393


o que aconteceu? E essa amiga comentou: –
sua mãe é dez, sabe, na quarta-feira quando
você ia, antes na terça-feira, sua mãe falava
como você era, que tinha um problema na
mão, que a gente podia olhar, que a gente podia
ficar perguntando. Eu falei Ah, (risos) então
ela que meio preparava o terreno (risos) vinte
anos depois é que eu fiquei sabendo disso, e eu
me lembro que sempre que podia eu
acompanhava minha mãe, ela me dava caneta
pra eu corrigir os cadernos dos alunos da
primeira série, porque eu já sabia ler, colocava
algum desenho na lousa era legal.

Levando-se em consideração que sua


deficiência não causava maiores dificuldades em relação à
aprendizagem acadêmica em geral, Flávia jamais
freqüentou o ensino especial.

– Depois eu fui para o fundamental I em uma


classe normal, nunca entrei em uma sala
especial e eu lembro que com a turma da sala
foi muito bem, às vezes quando a gente ia
brincar no parque, que aí sim apontavam pra
mim, olha a minha amiga: – às vezes a gente
ficava chateada e não se envolvia nas
brincadeiras e tudo bem, as minhas colegas
chamando a atenção apontando. Isso está claro
pra mim que tinham as que não queriam
segurar a minha mão, mas tinham outras que
queriam também, então foi tranqüila na
primeira série, e eu fui alfabetizada pela
professora Silvina, que eu já cheguei a dar aula
com ela e era uma pessoa fora de série, lembro
que no primeiro dia de aula ela me colocou
sentada numa carteira próxima a ela, na frente
da mesa dela e ela ficou me apresentando as

394 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


letras e depois, levou a gente pra sala de vídeo
e mostrou um vídeo pra toda sala, sobre uma
japonesa que não tinha os dois braços e essa
japonesa atendia ao telefone cortava legumes,
penteava cabelo e eu fiquei tão! Impressionada
com a habilidade da japonesa, e os alunos: –
“nossa como ela faz”.

Parece também, nesses relatos, se configurar,


tanto um processo de mobilização para a inclusão escolar
da filha, quanto a tentativa de se transformar as marcas
visíveis da deficiência como normais perante os colegas
de classe e escola, para que dessa forma a professora fosse
acolhida e recebesse a mesma atenção que os demais
alunos, pois a mãe professora recorre às suas relações
sociais de trabalho para, além das atitudes de proteção e
cuidado com a filha, facilitar seu processo de aprendizagem
e inserção escolar.
Nos relatos a seguir, à medida que a professora
avança nas etapas escolares, não sente no meio escolar,
discriminação ou preconceito pela sua limitação. Demonstra
uma valorização das experiências, fato esse devido
especialmente à contribuição da escola para o seu futuro
profissional bem como para sua inserção social no mundo
do trabalho, acreditando que desde cedo é preciso se
predispor ao estudo e ao trabalho.

– É, eu nunca fiquei para recuperação nunca


tive média vermelha tudo normal, só que eu
não participei da formatura eu não gostava eu
achava que terminar a oitava série era o que
todo mundo tem né, eu sabia que todo mundo
acha que terminar a oitava é o máximo, e eu o
que vou fazer e depois, eles acham que é o fim
né?

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 395


– Então, quando terminou o ensino
fundamental eu pensei pra onde eu vou, então
começou aquela coisa de ensino médio, escola
técnica ou não, eu não sabia o que eu queria
prestar, mas e ai eu prestei Edificações no Liceu
de Artes e Ofícios prestei para o Magistério no
CEFAM e acabei optando pelo Magistério e
passei muito bem na prova, aí mudou minha
rotina, pois a escola era no Itaim Bibi pra
chegar lá as sete e eu tinha que acordar de
madrugada, pegar ônibus todo dia e a escola
era de período integral então eu estudava das
sete da manhã as seis da noite, o dia inteiro
longe dos meus pais dos meus irmãos eu não
estava acostumada, mas aí pesou que eu iria
ganhar um salário mínimo então eu não ia
trabalhar, mas ia ganhar bolsa então eu fui e
algumas amigas passaram também e nós
íamos juntas, foi muito gostoso.
– Eu nunca encontrei problema de
discriminação preconceito lá dentro eu tinha
uma relação diferenciada eu era muito
conhecida eu era representante a diretora me
elogiava pra minha mãe eu acho que a minha
postura era diferente daquela que eles
esperavam, talvez mais fechada, mas quando
chegou a hora do estagio a professora de
didática me chamou.
A professora prossegue nos estudos e encontra
no nível universitário uma melhor aceitação onde a marca
da sua deficiência não atrapalha, pelo contrário facilita na
sua relação acadêmica.
(Faculdade) – Eu fiquei com muito medo
porque era um ambiente totalmente diferente
e tinha pessoas muito mais velhas que eu, mais

396 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


logo no primeiro dia, eu acho que eles foram
com a minha cara o professor pediu pra ler uma
redação e ninguém se habilitou, e eu fui ler a
minha na frente; o pessoal começou a gostar
de mim, ai umas pessoas começaram a
perguntar o que aconteceu com a minha mão
porque eu tinha uma mão assim, e ai começou
uma amizade acho que a deficiência aqui fez
com que as pessoas se interessassem a se
aproximar, as pessoas perguntavam e eu ia
falando e começava um diálogo. (Risos).

Opção/Acesso à docência

PROFESSORA DALVA
A inserção da professora no mundo do trabalho
se deu de forma desinteressada a título de experiência por
influência da amiga antes mesmo de completar seus
estudos:

– Sabe, uma amiga trouxe uma proposta de


estágio no SERPRO: – Você não está
interessada?, Eu disse: – pode pôr meu nome,
só por experiência; era um estágio para surdos
e mudos, depois a coordenadora do SERPRO
me chamou e disse: – Você não quer fazer um
teste? E chamou mais quatro meninas e nós
passamos a trabalhar por acaso.
– É, mas depois fui fazer Belas Artes em 1977.
– Meu pai pagava pra mim tudo e pra meu
irmão.

Também através de uma amiga, a professora


começa a trabalhar na escola pública especial, e aparece
uma descrença no potencial e nas habilidades da

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 397


professora, embora tenha formação acadêmica na área de
atuação, o que parece evidenciar que o próprio meio da
educação especial possui pouco esclarecimento a respeito
dos limites e possibilidades das pessoas deficientes como
relatado abaixo:

– Foi em 86 eu comecei a trabalhar aqui, como


professora contratada, foi através de uma
amiga que trabalhava aqui no jardim, essa
professora era ouvinte e namorava um amigo
de infância meu essa professora namorada do
meu amigo que era surdo, essa professora
perguntou pra mim: – Por que não dá aula
aqui?; Por que não tenta?. – Nunca pensei em
dar aulas, aí ela perguntou ao diretor por que
não me pegava se tinha preconceito, porque
tinha colegas da Faculdade, seis anos antes, que
tinha tentado entrar aqui, e ele o Diretor queria
colocar outra professora, aí essa professora
insistiu pra eu entrar aqui, no começo eu tive
dificuldades por que eu não tinha a língua de
sinais e tive que aprender pra entrar aqui,
aprendendo com os alunos... (risos)... Até hoje.

Embora formada e habilitada e apesar de ter


cumprido o que foi exigido no concurso público para acesso,
da mesma forma que os não deficientes, a professora
enfrenta dificuldades por ter a marca de uma deficiência.

– Foi tudo igual os ouvintes, normal, eu lia e


respondia as questões, sem nenhuma
diferença, o problema foi: na hora do exame
médico na DEMED, na hora do exame eu disse
que tinha problema de audição, ele fez (Médico
no exame de seleção) uma cara feia, ele não
olhava pra mim não; um japonês, então

398 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


começamos a conversar: – então como o
senhor sabe! Eu tenho problema de audição, e
ele de cabeça abaixada, eu não escuto, ele então
responde: – você não pode dar aula.Isso no
primeiro concurso, uma pessoa surda não pode
dar aulas?. Eu fiquei louca da vida. Aí depois
fui passando por um psicólogo também, entrei
com recurso, cobram da gente eu passei a vida
inteira assim. Depois de um tempo infelizmente
perdi o concurso e ainda disseram pra mim que
eu não tinha EDAC, e pra dar aulas pra surdos
precisava desse curso de áudio comunicação
na época eu não tinha, e eu disse pra que? Eu
sou a própria, aí eu fui diretamente ao próprio
Secretário da Educação, eu tinha uma
professora que tinha “amizades” e nós fomos
lá e ele disse que não podia fazer nada, tinha
que ter o papel na mão, perdi o concurso, fiquei
super chateada, perdi.
– Para ser professora aqui no fundamental II,
perdi não adiantou nada o recurso.(a professora
se mostra nervosa, aumenta a voz) aí eu fui
fazer o EDAC.
– De novo, mais ai eu tinha feito o EDAC,
especialização de áudio comunicação eu fiz no
Brás, na FIEL um ano de especialização para
entrar aqui, para trabalhar aqui.

Pelo depoimento da professora abaixo, fica claro


comprovar que: a visão médica sobre educação e
deficiência parece ser caracterizada por “distúrbios” em
vez de harmonia e ajuda, existe descrédito por se ter uma
deficiência, e que o deficiente a despeito de atender as
exigências legais impostas para acesso à profissão, tem que
fazer uso da legislação para obtenção plena dos seus
direitos, até mesmo no serviço público.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 399


– Nesse segundo concurso eu tinha feito tudo
certinho, passei, mas, depois fui reprovada,
agora qual o problema?..Aquela menina do
Anne Sullivam, foi a mesma coisa, foi
reprovada, eu tava lá, e ficou desesperada, eu
disse fica tranqüila vamos entrar com recurso
e foi aprovada também.
– O médico colocou Inapta no exame médico
e eu fui reprovada, eu estava aqui dando aula
como contratada, falaram pra mim: – Não
entra com recurso que você vai perder, me
ameaçando aqui. A gente procurou uma
procuradora, me avisaram para não mexer
muito com meu caso porque eu ia ter
problema.Abuso de poder né?.
– O Prefeito era o Maluf.
– Tudo deu certo e fui nomeada.
– Todos aqui me tratam igual, e gostam de
mim, os alunos se assustam quando sabem que
sou surda e dou aula pra eles, é tudo normal.
– Normal, tudo normal, dirijo, trabalho, tenho
uma família.

PROFESSOR VÍTOR
No depoimento abaixo constatamos as
dificuldades do professor para acesso à profissão docente
de deficientes, mesmo existindo uma legislação específica
para acesso em carreira pública pela reserva de vagas.
Mesmo na instrumentação de avaliação, há um
desconhecimento por parte do poder público, das
necessidades específicas de cada deficiência. E muitos
assumem a condição de deficientes para obtenção do
ingresso, sem se importar com o estigma presente nessa
condição quando se trata de se obter benesses do Estado.

400 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


– Tinham mais, acho que assim, uns cinqüenta
e pouco deficientes e tinham mais deficientes
visuais do que auditivos ou outros, mas depois
que passou pela fase do exame médico,
eliminou um bocado, minha classificação não
se alterou porque eu já estava bem classificado
e eu fiquei em décimo e acabou, (risos). Olha:
falando da primeira fase foi ótima, agora a
segunda parte, que foi a dissertativa, aí eu tive
um problema ali, porque tinha uma imagem
“né”, era do Debret, e essa imagem não dava
pra eu analisar, e a questão estava pedindo para
você olhar e analisar e passar o que você tava
entendendo, daquela imagem. E eu não tinha
como fazer, porque a fiscal não podia passar
aquilo pra mim porque o que você vê não dá
para passar com significado pra outra, a pessoa
tem que ver e entender do modo dela entendeu?
Aí foi onde complicou: eu falei: – Não estou
conseguindo entender, e era tudo em braile e
esta questão estava à tinta eu me recusei a fazer
esta questão e aí fiz a observação em braile:
deixo de responder essa questão por motivo de
não estar vendo a imagem e eu não posso
analisar algo que não consigo ver, aí depois
disso, entrei com recurso e foi aí que eles
perceberam que eles cometeram um grande
erro, e o pessoal da escola que eu trabalhava
me ajudou nisso, fui de carona até no dia do
final do prazo para entrar com recurso, mas
valeu a pena, olha quando eu fiz a inscrição eu
marquei que era deficiente visual e solicitei a
prova em “papel sulfite” e não em “papel
manteiga” porque em “papel manteiga” quando
você esta lendo ele segura aí no outro dia
mudaram a prova para papel “sulfite”, quer
dizer no dia de prova ainda tive de brigar e aí

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 401


eles mudaram no outro dia para papel “sulfite”
e tinha um pacote que estava as provas pra
mim, e no final depois na fase do exame médico
lá na Maria Paula muitos foram dispensados
não iam concorrer mais como deficientes,
então várias pessoas voltaram para a lista geral,
não como especial não perderam o concurso,
muita gente se fez de deficiente pra ter uma
boa classificação, senhoras até, querendo entrar
assim. Depois foi fácil tive que fazer Laudo
Médico e escolher a vaga após a nomeação.
– Foi porque eu reclamei e fui atendido, entrei
com recurso e ganhei em pouco tempo de
análise do recurso um mês quase ou um mês e
pouco e aí entrei na internet e tava lá aprovado
(risos).
O professor Vítor opta pela docência levado por
um amigo que facilita seu acesso e acredita nas habilidades
do professor pela sua reflexão pessoal, mas enfrenta
também no próprio sistema de ensino o despreparo e
desconhecimento das possibilidades e limitações do
deficiente.

Um amigo veio e disse: – Olha, nós estamos


precisando de um professor lá e é a sua cara.Eu
tudo bem, mas não vai dar problema?, – Não.
Aí eu fui para a escola, já cheguei e já assumi,
tudo bem até então tudo bem, aí a Diretora
falou: – Eu vou levar a sua papelada até a
Delegacia de Ensino era a vigésima, hoje é a
Sul três, aí quando levou, bem aí a Delegacia
que nunca tinha tido um deficiente começou,
mas como ele vai dar aulas, como ele vai poder
trabalhar e aí começou aquela coisa, eles
querendo me barrar lá, aí eu comecei resolver

402 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


outro problema aí eu tive que provar para eles
“né”, que era capaz de dar aulas, como eu
poderia estar com alunos, pois aí os alunos não
poderiam entender a aula, e aí eu provei prá
eles, até com literatura, do Luis Braile, que era
professor e está aqui o documento ele era
professor, tem Helen Keller, etc, e a Diretora
disse: – eu compro a briga a parte
administrativa aqui eu resolvo e ele vai
trabalhar na minha escola, e aí ela foi e bancou
e depois o pessoal da “ Delegacia” ficou contente
deu tudo certo, cumprimentaram a Diretora,
ela recebeu todos os elogios, bem: sei que aí
comecei a trabalhar em 1986 como professor e
estou até hoje(risos). Mas aí eu não era da área
eu dava aulas de qualquer coisa, foi aí que eu
parti pra História.

PROFESSORA FLÁVIA
A professora Flávia decide ser professora por
influência da mãe e por fatores subjetivos como relatado
abaixo:

– É influência da minha mãe é um fato sem


dúvida nenhuma “né”, ela sempre me levou pra
escola e eu acho que eu tive muita sorte porque
eu sempre tive bons professores e sempre tive
contato com amigas com muita dificuldade de
aprendizagem durante a escola e então eu
ajudava, e quando eu ajudava, eu percebia que
elas aprendiam, então eu falei: – bom acho que
eu tenho um “Don” para isso, mas mesmo
assim eu fui gostar mesmo quando eu entrei
no estágio e vi que era mesmo o que eu queria,
teve uma época que eu fiquei balançada pela

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 403


questão do “Status” você sabe como é ser
professor, mas mesmo assim, pois antes da
pessoa ser um médico ela tem que passar pela
mão do professor então mais importante do que
todos os profissionais é o professor, mas a
sociedade não pensa assim e o Estado paga mal,
Prefeitura um pouco melhor, mas há a
desvalorização do profissional poucos cursos de
atualização.
– E minha mãe sempre falando a favor da
Pedagogia pra min, então eu fiz meu primeiro
ano de Faculdade junto com meu último ano
do CEFAM.

O acesso à profissão no serviço público se dá


como conseqüência de estar habilitada e surgir a
oportunidade de participar do concurso, e também por
influência da mãe. Mas o fato de ter uma deficiência, para
a professora, não é fator que determina suas possibilidades
maiores ou menores de acesso à profissão, mesmo tendo
dificuldades durante a etapa médica de exames, no
convencimento sobre suas possibilidades e limitações para
o exercício da profissão como veremos a seguir:

– Então eu me inscrevi e me deparei com


aquela questão na inscrição: portador de
deficiência ou não?... Só que eu estava em
dúvida pelo fato de: se eu não me inscrevesse
como portadora iria me impedir de tomar posse
depois, caso eu passasse, por questão legal, é só
olhar pra mim não tem como mentir: de
qualquer forma eu me inscrevi como não
portadora de deficiência física, fiz a prova,
passei, fui bem classificada, três mil duzentos e
pouco, eram, tinha seis mil vagas, quando fui

404 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


convocada pra fazer o laudo médico aí foi que
eu fiquei com medo porque no laudo eles
podiam barrar pela deficiência física aí. O
médico perguntava se tinha alguma deficiência
eu falava que não...(risos) porque até aí ele não
tinha visto, tirou pressão, fez exame de vista
essa coisa mais básica, mas aí na hora de sair
da sala do médico foi que o médico falou: –
há, você esta apta parabéns por ter conseguido
seu cargo e tal e estendeu a mão pra mim e eu
estendi a mão pra cumprimentá-lo então foi
nessa hora que ele viu que a minha mão, bem
não tinha nem os dedos...(risos) Aí ele olhou
pra minha, cara de bravo e disse: – puxa vida
você é deficiente física por que você esta
mentindo?. – Eu falei não, eu sou deficiente
física, mas eu não me considero uma deficiente
física, aí ele falou: – Mas e aí como é que é,
você trabalha com ela, (mostra a deficiência),
articula algo, justamente a mão direita?.Eu
falei: – é, mas eu sou canhota a minha mão
direita não modifica em nada não me
atrapalha.

A professora fez uso de apoio jurídico para


garantir seu acesso ao serviço público estadual no que se
referia à formação; por outro lado, o fato de não fazer uso
da lei para acesso a deficientes no serviço público, na
instância Estadual, não foi impedimento nem mesmo no
aspecto médico conforme relato:

– Então, no segundo concurso, quando saiu o


edital, saiu muito claro que só iriam aceitar
inscrições para aqueles formados em
Pedagogia, então eu me filiei ao CPP, porque o

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 405


CPP entrou com uma ação, pois na Lei Federal
permite você entrar com o Magistério, bom
enfim eu me filiei e fiz a prova e passei, dos
cinqüenta e poucos mil aprovados eu fiquei
classificada em dois mil duzentos e seis, e
acabou que o CPP conseguiu a ação e a gente
pode tomar posse “né”, só que antes de tomar
posse a gente teve que fazer o laudo médico
então a gente foi para o “Maria Paula”
chegando lá teve os exames pra vista, e
passamos pela psiquiatria, a única coisa que
ele perguntou foi qual seu nome e assim “ta
apta”, foi uma coisa assim muito jogada, eu
achei um laudo péssimo, e eu não me inscrevi
como portadora de deficiência, deixa eu
retomar, quando eu fui fazer a inscrição para
o concurso eu me lembrei da fala do médico
do concurso anterior, que se eu tivesse me
inscrito como portadora eu teria mais
“vantagens”. – tomei posse do cargo e me
tornei professora do Ensino Fundamental I do
Estado (PEB I), como a minha mãe, risos..... é
uma repetição... (risos).

Ao final de todos esses relatos, pode-se verificar


que as trajetórias escolares desses três professores
apresentam similaridades e diferenças, tanto em razão das
próprias características provenientes de suas distintas
deficiências, quanto de marcas familiares, escolares e
sociais que foram conformando-os como sujeitos.

As principais conclusões a que chegamos

Ao iniciarmos este trabalho considerei esta


proposta como inédita no campo da educação especial, pois

406 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


desconhecíamos trabalhos que se voltassem para
trajetórias de sucesso de deficientes e que revelassem
sistematicamente a vida escolar de alunos com deficiência
que puderam alcançar todas as etapas de aprendizagem,
chegando a se formar no nível universitário.
Sob essa constatação avaliamos esse trabalho
como importante no meio da educação especial,
especialmente pela visão otimista (de sucesso) dentre
tantos outros voltados para a já conhecida dificuldade e/
ou impossibilidade de formação em nível superior de pessoa
com deficiência.
A análise dos dados nos permite afirmar que,
embora os níveis sociais, econômicos e culturais das
famílias desses professores, na sua origem, não fossem
homogêneos, pois os pais de Dalva e Flávia apresentavam
níveis superiores ao de Vítor, todos mostraram, dentro
de seus limites, esforços para a escolarização dos filhos e,
como objetivos, diminuição das limitações impostas pela
deficiência.
Verifica-se, portanto, que esta centralização de
esforços foi, nos casos estudados, determinante nessas
trajetórias, embora não única, pois como ressalta Lahire
(1997), ao analisar-se uma dada configuração social, cabe
sempre lembrar que se trata de uma rede de relações de
interdependência específicas entre seres sociais concretos
e que deve, portanto sempre ser contextualizada em suas
singularidades e particularidades.
Assim, parece inquestionável a influência
familiar e o peso das condições sociais, econômicas e
culturais sobre a definição de uma dada situação de sucesso
ou fracasso escolar.
Se, nos casos de Dalva e Flávia, o capital
econômico parece ter se constituído em fator facilitador à
escolarização dos filhos com deficiência, não se pode dizer
o mesmo em relação a Vítor, que parece ter sido

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 407


compensado pelo apoio institucional.
Ficou evidente que, para os três professores, à
medida que necessitavam de mais ajuda devido às
limitações que a deficiência impunha para sua progressão
escolar e que a escola normal nas primeiras etapas de
escolarização, não oferecia, houve a necessidade de apoio
complementar como professor particular, natação,
tratamento clínico institucional, etc.
Em todos os depoimentos, verificou-se que,
constatando que somente a inserção na escola regular não
responderia às exigências advindas da deficiência no
processo de escolarização, o que poderia acarretar a
repetência e o possível fracasso escolar, os esforços
pessoais e familiares em todos os sentidos, inclusive por
vias jurídicas, pareceram contribuir para a permanência
do aluno na escola, valorizando a sua auto-estima e
ajudando na transposição das diferentes etapas escolares
até se tornarem professores.
Os professores da pesquisa atribuíram grande
importância à disciplina para o estudo, em todas as etapas
da escolarização, por acreditarem juntamente com suas
famílias que a educação escolar era um elemento de
inserção social, e, ainda, um fator preponderante na
melhoria das condições de vida, acesso ao mundo do
trabalho e conseqüente inclusão social.
Nunca é demais lembrar que, na descrição das
condições de vida da primeira infância desses professores
e suas famílias, o que se configura é um meio familiar no
qual tanto os bens materiais como os simbólicos são
existentes, de tal forma que podemos afirmar que, tanto
o capital cultural familiar de Dalva ou Flávia, quanto a
ajuda institucional recebida por Vítor devido à falta de
opção para atendimento em escolas normais, traduziram-
se de forma a aumentar em número, importância e
intensidade as recompensas sociais pela garantia de seus

408 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


direitos de escolarização.
Pode-se afirmar, portanto, que os processos de
escolarização diferenciados, com Dalva e Vítor
freqüentando o ensino fundamental em instituição
especializada e Flávia em escola comum, não redundaram
em destinos sociais diferenciados. Assim, fica aqui um
questionamento: até que ponto a inserção em sistema
especial de ensino traz prejuízos marcantes à socialização
de pessoas com deficiência? Parece que as marcas da
origem familiar e as possibilidades amplas de relações
sociais foram elementos mais evidentes para a construção
dessas trajetórias.
Estratégias como a mudança de escola, aulas
particulares e a realização de cursos voltados para a
superação das marcas da deficiência são relatadas por todos
os professores, mas sem que pareça haver uma diminuição
na sua auto-estima por necessitarem dessas atividades,
durante suas trajetórias escolares, por se encontrarem na
condição de deficientes ou mesmo por não estarem
habilitados para alguma coisa.
Percebemos que, para Dalva e Vítor, talvez em
razão das peculiaridades de suas deficiências, o apoio
especializado nas escolas em que estudaram, justamente
na fase escolar de aquisição da escrita e leitura, contribuiu
para a não ocorrência da repetência nas primeiras séries.
Em compensação, no caso de Flávia, dada a pouca
influência de suas limitações físicas na aprendizagem
acadêmica, a inserção na escola comum respondeu às
exigências de escolarização.
Tal fato demonstra que as condições efetivas
das escolas onde estudaram nesse período atenderam às
necessidades de aprendizagem de cada fase escolar, para
a superação das dificuldades e limitações impostas pelas
características intrínsecas das deficiências.
Assim, os dois primeiros sujeitos contaram com

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 409


professores qualificados na alfabetização de pessoas com
deficiência, uma vez que esse processo foi desenvolvido
em escolas especiais, com uso de materiais e recursos
didáticos e pedagógicos específicos para atender à
necessidade de superação imposta pela deficiência,
oferecendo a eles, enquanto alunos, condições
diferenciadas que facilitaram as suas aprendizagens e
sucesso escolar.
Acreditamos ser necessário refletir sobre as
experiências positivas de escolas e de institutos e classes
especiais, por que passaram esses professores, que
souberam desenvolver o potencial de seus alunos e, dessa
forma, contribuíram para a sua inclusão escolar e social:
afinal negar aspectos positivos do passado é esquecer que
a construção do conhecimento está baseada no acúmulo
das experiências incorporadas.
Entretanto, o fato de Flávia nunca ter
freqüentado escola especial também é um indicador de
que a inclusão escolar, quando feita com qualidade, pode
também resultar em trajetórias escolares ascendentes.
Com relação às relações sociais construídas por
esses sujeitos pode-se verificar, também, algumas
singularidades. Dalva parece ter criado uma relação de
dependência muito mais forte em relação à família do que
os demais. O fato de Vítor ter estudado em instituição
especial pode ter sido um fator importante para a
construção de sua autonomia em relação à família de
origem. Mas o mesmo não se pode dizer em relação a
Flávia, que esteve o tempo todo ligada à sua família,
residindo até hoje com os pais.
Mas há um paradoxo nessa situação, pois apesar
de parecer que Dalva tenha criado laços de dependência
mais fortes em relação à sua família, foi a única entre os
três, que se casou e constituiu família. Se a situação de

410 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Flávia pode ser explicada pela pouca idade (21 anos), ela
não cabe no caso de Vítor, que já completou 45 anos.
Todos os professores, como qualquer outra
pessoa engajada na profissão e incluída socialmente,
apresentam planos de melhoria das condições de vida,
tanto no nível pessoal como no profissional enquanto
cidadãos plenos de direitos sociais.
Embora o universo dos sujeitos pesquisados
pareça ser muito reduzido, não havendo, à primeira vista,
possibilidades de generalizações, ele por si só já é revelador
de que, apesar das poucas possibilidades oferecidas no
sistema educacional para que essa população, em geral,
possa atingir níveis mais elevados de escolarização, parece
que as marcas determinantes foram as possibilidades que
eles tiveram, em relação tanto às condições familiares
quanto aos processos de escolarização e de socialização,
de superarem as marcas específicas de suas deficiências e
estabelecerem trajetórias sócio-educacionais bastante
satisfatórias.
Por fim, buscamos, neste trabalho, apresentar
alguns indicativos que podem explicar as diferentes
trajetórias de sucesso escolar de deficientes, sabendo que
esses indicativos não se esgotam nesta investigação sobre
o tema. Pelo contrário, esperamos que este estudo possa
também servir de fonte de questionamento para novas
pesquisas sobre as trajetórias escolares de alunos com
deficiência que obtiveram sucesso na sua escolarização,
incluindo-os como sujeitos que se constroem nas relações
concretas que o meio social lhes oferece.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 411


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Professores Deficientes no Ensino Público de São
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DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 413


PROCESSOS DE
ESCOLARIZAÇÃO E DEFICIÊNCIA:
TRAJETÓRIAS ESCOLARES
SINGULARES DE EX-ALUNOS
DE CLASSE ESPECIAL PARA
DEFICIENTES MENTAIS

Roseli Albino dos Santos


UNITAU/SP

O presente estudo procurou compreender e


explicar, a partir do relato dos sujeitos que freqüentaram
classe especial para deficientes mentais, como se constituiu
a sua trajetória escolar e os resultados alcançados no
processo de escolarização a partir da rede de relações
construída junto à família, ao meio social e à própria escola.
Neste capítulo apresentamos os principais resultados da
investigação.
Nortearam a pesquisa as seguintes questões:
Qual o significado da presença da família nessas trajetórias
escolares? Outros grupos de referência exerceram
influência nessas trajetórias escolares? Como os ex-alunos
relacionam os resultados escolares alcançados e as
experiências educacionais vividas na classe especial? Como
esses indivíduos concebem e se posicionam com relação a
sua trajetória escolar e quais as perspectivas para o futuro?
A discussão teórica apoiou-se nos estudos da
Sociologia da Educação, especialmente aqueles que têm

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 415


contribuído para a compreensão e análise dos sistemas e
práticas educacionais, que nos permitam compreender a
trajetória escolar dos alunos no contexto das relações
sociais. Nessa perspectiva destacam-se os estudos de
autores como Bourdieu e Champagne (2003), Lahire
(1997; 2004) e Charlot (1996) e na mesma perspectiva,
como referenciais nacionais temos os estudos Zago (2000).
De outro lado, é inegável que ao ser caracterizado como
deficiente mental, o aluno poderá passar por um processo
de estigmatização que poderá provocar forte impacto em
sua trajetória escolar, para cuja compreensão os estudos
de Goffman (1988) foram de grande relevância.
Na tentativa de compreender como se
constituíram as trajetórias escolares de ex-alunos de classe
especiais para deficientes mentais e os resultados
alcançados no processo de escolarizações, realizou-se uma
pesquisa de caráter qualitativo, que não se restringiu
somente a notas, a aprovações, a retenções e a evasões
registradas pelos sistemas de ensino. Optou-se nessa
pesquisa em dar a palavra aos ex-alunos de classe especial
para deficientes mentais, a fim de possibilitar-lhes
reconstruir a sua própria trajetória escolar e dar a sua
versão sobre as experiências vividas ao longo dessa
trajetória.
Assim, a coleta de dados se realizou através de
trabalho de campo e foi utilizada uma amostra intencional
de sujeitos, constituída por cinco ex-alunos de classe
especial para deficientes mentais (Elza, Viviane, Rosinete,
Daniel e Fabiano) 54 que apresentavam diferentes
trajetórias escolares (anexo 1) e características familiares
(anexo 2).
Sendo assim, a perspectiva metodológica que
norteou a construção desse estudo partiu do princípio de
que, sem desconsiderar as marcas que a deficiência
acarreta, os sujeitos se constituem como tal nas suas

416 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


relações sociais e, desta forma, os padrões sociais e culturais
que vigoravam em seu entorno próximo exerceram papel
fundamental na constituição de suas subjetividades, nos
processos de escolarização e no seu destino social.
Se este foi um princípio básico que norteou a
pesquisa, por outro lado levou-se em consideração que
embora origens sociais semelhantes tendam a produzir
efeitos sociais parecidos, as formas como os diferentes
sujeitos incorporam essa tradição cultural são singulares,
ou seja, buscou-se, a partir do depoimento de cada sujeito,
compreender a sua trajetória escolar de forma única e
singular, a partir da rede de relações sociais construída
junto à família, ao meio social e à própria escola.
O percurso trilhado para a construção deste
trabalho, possibilitou uma incursão mais detalhada nas
vidas de pessoas, que embora tenham em comum o fato
de terem freqüentado o mesmo modelo de ensino, ou seja,
a classe especial para deficientes mentais, apresentaram
diferenças relevantes do ponto de vista da constituição de
suas trajetórias escolares, o que só foi possível apreender
em decorrência do próprio enfoque metodológico utilizado.
Exigiu, também, extrema cautela na coleta e
na análise e interpretação dos dados, na medida em que
resultaram, principalmente, da versão dos próprios
sujeitos sobre suas trajetórias e que, portanto, deveriam,
assim como toda e qualquer versão de fatos ocorridos,
oferecer elementos que pudessem ser organizados,
classificados e analisados à luz do referencial teórico
utilizado e não serem tratados com o estatuto de “versão
verdadeira”, tal como afirma Lahire (2004, p. 315):
Sem negar ou negligenciar a problemática mais
ou menos clara que o entrevistado lhe impõe,
e contrariando as sociologias que afirmam
(demagogicamente) que a verdade (toda
verdade) sai diretamente das bocas dos

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 417


entrevistados, o sociólogo não faz
completamente seu trabalho a não ser quando
analisa também os inúmeros aspectos da vida
passada e presente do entrevistado que não
entram em campo de interesse espontâneo
deste.

Para definir o objeto de estudo desta pesquisa


- a trajetória escolar de ex-alunos de classe especial para
deficientes mentais - partiu-se da hipótese de que a
deficiência mental, por si só, seria a marca predominante
na constituição dessas trajetórias e que os ex-alunos de
classe especial, mesmo os que haviam conseguido alcançar
níveis mais avançados no processo de escolarização,
compunham uma população dos que foram excluídos no
interior da escola.
Essa marca, no entanto, embora constituída no
interior de cada um desses sujeitos, não se restringia a
uma capacidade intelectual rebaixada, pretensamente
objetivada, em alguns casos, por meio de avaliações
precisas, mas a um imaginário construído nas relações
sociais e que os foi moldando, assim como aqueles que com
eles foram convivendo.
Nesse sentido, foram construídos três grandes
eixos de análise e, dentro deles, a definição de alguns
tópicos, a partir de aspectos significativos para que se
pudesse examinar a singularidade de cada uma dessas
trajetórias, sendo eles: 1. AMBIENTE FAMILIAR; 2.
ESCOLARIZAÇÃO; 3. CONVÍVIO SOCIAL

A constituição das trajetórias escolares

Ambiente familiar

A opção por este eixo de análise não se prende

418 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


somente ao fato de já ter sido comprovado que ele
influencia as trajetórias escolares de todo e qualquer sujeito.
Além desse motivo, relevante sem dúvida, no caso dos
alunos em tela, dadas as suas limitações, a família
permanece como sua grande âncora social, com muito
pouca diversificação de convívios com outros ambientes
que não sejam estabelecidos a partir dela.
Assim, parece que as relações familiares vão se
constituindo e têm como núcleo central as formas pelas
quais as famílias estabeleceram práticas de convívio com
os sujeitos deficientes mentais.
Uma das marcas mais significativas que
aparecem nos depoimentos dos sujeitos investigados diz
respeito ao cuidado diferenciado, em relação aos outros
filhos, assumido pelas famílias e a conseqüente relação de
dependência estabelecida.
Ao longo da vida dos sujeitos, essa dependência
vai se configurando de diferentes formas e, nos relatos,
observamos que em diferentes momentos a relação com
os familiares foi marcada por atitudes de superproteção,
infantilização ou mesmo rejeição. Porém, não se percebe
uma uniformidade em todos os casos.
Em grande parte dos depoimentos, observamos
que a necessidade de cuidados especiais no ambiente
familiar tem sua gênese na primeira infância, em
decorrência de problemas relacionados à saúde.
Entretanto, há grandes diferenças na forma como a família
lidou com esses problemas.
Pode-se verificar que nos casos em que os
problemas eram mais evidentes, a atuação da família
parece ter se diferenciado desde a mais tenra idade,
embora nem sempre o diagnóstico precoce redundou em
melhores oportunidades de desenvolvimento e de
escolarização.
Do mesmo modo como o surgimento de um filho

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 419


deficiente se diferenciou de família para família em termos
dos cuidados, os procedimentos utilizados por elas no
intuito de responderem às necessidades de seus filhos
também foram distintos.
Com relação à decisão familiar no que diz
respeito à escolarização, as trajetórias dos alunos mostram
peculiaridades muito interessantes.
No caso de Elza, por exemplo, até a entrada na
escola, a família, apesar da superproteção e dos cuidados
especiais, parece não ter desacreditado do seu potencial
intelectual e das possibilidades de freqüentar uma escola
regular.
Na realidade, o que podemos apreender de seu
depoimento é que as possíveis dificuldades de ordem
intelectual começaram a ser percebidas pelos familiares
na medida em que Elza não conseguia acompanhar seus
irmãos na progressão escolar, principalmente, em função
das freqüentes repetências, e teve como seu ponto chave
o encaminhamento para classe especial:

Ah, porque eu estava na primeira série e daí


falei para minha mãe: quem sabe eu passava
pra segunda. Mas ela falou: mas você não vai
passar, filha. Você só vai ficar na primeira. Até
o dia que ela (a professora) falou pra minha
mãe que eu ia pra classe especial eu até chorei,
porque falei pra ela: mas o que vou fazer na
classe especial, não tem nada ali! Eu achava
que a classe especial era de louco, minha mãe
falava: Não filha, a professora falou que a classe
especial é para criança que nem você, que não
consegue aprender.

Os cuidados diferenciados dedicados à Viviane


pelos pais se estenderam a todos os setores de sua vida,
inclusive o escolar. Diferentemente do irmão, que sempre

420 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


estudou em escolas públicas, Viviane iniciou sua carreira
escolar em escolas particulares. Segundo ela, seus pais
acreditavam que na escola particular contaria com maiores
chances de aprender e superar as dificuldades.

No pré, eu já estudei na escola particular.


Minha mãe me colocou lá porque eu tinha mais
dificuldade para aprender e lá era melhor, tinha
mais atenção, a professora dava mais atenção.

A deficiência física de Daniel, por outro lado,


parece não ter impedido sua mãe de confiar em suas
capacidades cognitivas, o que a fez querer matriculá-lo em
uma escola regular.
Na verdade, a decisão de matriculá-lo em classe
especial para deficientes mentais foi da escola procurada
que, ao vê-lo, concluiu que deveria receber atendimento
especial dessa natureza.
A matrícula em classe especial para deficientes
mentais, entretanto, parece não ter afetado as relações
de Daniel no ambiente familiar, o que pode estar ligado ao
seu desempenho escolar satisfatório. Pelo seu relato
percebemos que, apesar de freqüentar e permanecer
durante três anos na classe especial, nunca apresentou
problemas de aprendizagem e os professores o elogiavam
constantemente, fato que parece ter contribuído
fortemente para que ele e a família continuassem a
acreditar em suas possibilidades.
O cuidado e a proteção dos filhos deficientes,
em alguns casos, redundou, na vida adulta, em pessoas
sem autonomia, de extrema dependência, quer seja da mãe
ou de outros sujeitos. É o que podemos retirar do
depoimento de Elza, que cada vez mais, teve intensificada
a aproximação com a mãe, o que a levou a se tornar cada
vez mais dependente e sem nenhuma autonomia:

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 421


Eu tenho medo de sair sozinha, de andar por
aí, eu só saio com minha mãe e com a turma
lá da igreja. A minha mãe até já falou: qualquer
dia vou levar você na cidade e deixar você andar
na cidade inteirinha e depois vir embora
sozinha. Eu falei: Eu não sei o caminho, pode
levar, mas lá eu fico. Eu não sei vir embora
sozinha.
A situação de Viviane, com relação à autonomia
pessoal é bem diferente, embora mantenha um
relacionamento muito estreito com a mãe, que sempre a
acompanhou e ainda a acompanha em todos as decisões
de sua vida e que em determinadas situações não lhe dá
tanto espaço para tomar as próprias decisões:

Tem hora que fico nervosa e xingo minha mãe.


Eu acho que ela me trata como criança...

Apesar disto, Viviane apresenta muito mais


autonomia em relação à vida cotidiana:

Eu vou sozinha na cidade, vou no correio e na


escola sozinha, não pago ônibus mesmo. Agora
eu quero mesmo é arrumar um emprego lá na
loja, quero ganhar dinheiro.

O relato de Fabiano nos permite observar que


a terapeuta esteve presente nas decisões sobre troca de
escolas, nas escolhas de atividades, dos cursos que deveria
freqüentar e nas dificuldades vividas na escola:

A Miriam que falou pra minha mãe me colocar


em outra escola, ela achava que o JN (escola
de educação infantil) não estava fazendo o que
seria bom para mim.

422 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Verifica-se, portanto, que as atitudes de
atenção e de cuidado frente a um filho deficiente foram
variando de aluno para aluno, mas que parecem ter
redundado, na maioria dos casos, em um estado de
dependência na vida adulta, independentemente das
diferentes configurações familiares.

Escolarização

A escolha deste eixo de análise considerou que


a escola moderna é uma instituição social de expressiva
relevância na vida de todo indivíduo que a ela tem acesso.
No que tange aos alunos investigados, percebe-se que
parte significativa das suas experiências pessoais, sociais
e educacionais foi vivida dentro desse universo social.
De acordo com os depoimentos dos sujeitos
investigados, as práticas escolares adotadas nas escolas
parecem ter sido fundamentais para imposição, ratificação,
minimização e, em alguns casos, superação da condição de
deficiente mental.
Ao falarem sobre a vida escolar antes de
freqüentarem classe especial, independente do nível de
ensino freqüentado, os sujeitos revelam alguns problemas
com relação à adaptação à escola e à aquisição do saber
escolar. Entretanto, as alternativas escolhidas pelas
famílias para que seus filhos superassem as dificuldades
foram variadas e parecem estar relacionadas às suas
condições financeiras e culturais.
Elza, como todos os seus irmãos, iniciou sua vida
escolar aos sete anos, quando entrou em uma escola
pública da rede estadual. Apesar de apresentar problemas
de saúde desde que nasceu, a família não relacionou tal
fato com suas possibilidades de escolarização. Isto é, dada
a condição social e cultural precária, parece que a família
nem sequer cogitou em verificar se as fragilidades de Elza

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 423


poderiam prejudicar a sua vida escolar.
Apesar de apresentar grandes dificuldades de
escolarização, a sua situação ficou à mercê única e
exclusivamente da escola, já que os pais parecem não
possuir qualquer outra referência em relação às
possibilidades cognitivas de seus filhos do que o julgamento
escolar.

Eu entrei na primeira, né? Até a professora,


(pausa) a professora falava que eu não
conseguia aprender. Ela ficava horas e horas
comigo, mas não adiantava. Nossa eu tinha
sete anos, mas eu mais repetia que passava.
Fiquei uns três anos na primeira, só podia sair
da primeira se aprendesse.

Este mesmo trecho do depoimento mostra


também como ela própria vai incorporando uma
perspectiva reducionista de imputar somente a si o seu
fracasso escolar, fato que fica mais evidente no depoimento
abaixo:

No final do ano, eu ficava esperando a


professora dizer se eu tinha passado de ano, mas
ela sempre dizia pra minha mãe que eu era
muito boazinha e esperta só não conseguia
aprender, aí, eu repetia’.

Assim, há fatores significativos que, além das


dificuldades próprias da aluna, parecem ter marcado mais
decisivamente essa trajetória conturbada de iniciação da
escolaridade: a falta de recursos familiares para busca de
diagnósticos e apoios especializados e o acesso à escola
pública, em que não deveria ser a única que apresentava
dificuldades na escolarização.

424 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Esta situação que envolve escola e família
reforçou a visão de seus pais com relação à perspectiva
dos dons e foi construindo uma aluna que passou a imputar,
somente a si, a responsabilidade pelas dificuldades
apresentadas na escola.
Ao ser encaminhada para classe especial, Elza,
em seu depoimento, demonstra certa resistência e, dentro
de suas possibilidades, parece ter lutado para conseguir
escapar à decisão da escola, alegando que a classe especial
não era para ela:

Eu falei pra minha mãe: mas a classe especial


não é classe de louco? O que eu vou fazer lá?

Entretanto, seus argumentos não foram


suficientes para que seus professores mudassem suas
posições. Sua resistência inicial foi superada pelo parecer
médico e Elza acabou aceitando freqüentar a classe especial.

Eu fiquei um tempão na segunda-série, mais


repetia do que passava. Daí a professora
chamou minha mãe e disse : é melhor você
colocar ela na classe especial que ela se enturma
mais na classe especial. Ai foi uma médica,
acho, foi lá na escola e falou pra minha mãe
que tinha dificuldade para aprender e que
melhor mesmo era se eu fosse pra classe
especial. Aí eu entrei na classe especial e fiquei
lá.
Esses dados mostram, de um lado, que o
processo de seleção e classificação escolar foi sendo
cumprido, inclusive com o concurso da área de saúde. Mas,
de outro, a resistência de Elza pouco tem a ver com suas
dificuldades de escolarização. Isto é, a resistência diz
respeito ao ingresso em uma “classe de loucos” e não uma

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 425


preocupação com uma aprendizagem escolar, porque para
ela, já estava incorporada a visão de que eram as suas
limitações pessoais as únicas responsáveis pelo seu
fracasso.
Já Viviane iniciou sua vida escolar no ensino
infantil de uma escola particular, aos seis anos de idade,
porém as dificuldades com relação ao desenvolvimento e
aprendizagem foram detectadas antes mesmo da sua
entrada na escola. Seus pais a matricularam na educação
infantil, o que atendia ao aconselhamento de uma psicóloga
que a acompanhava desde os três anos de idade:

A minha mãe fala que a psicóloga falou pra


ela que seria melhor eu entrar na escolinha,
assim eu melhorava mais na fala e fazia mais
amizade.

Nota-se que as expectativas dos pais nesse


período, orientados pelo parecer de uma terapeuta,
estavam em oferecer a Viviane oportunidades de
socialização e não propriamente acesso ao saber escolar.
A educação infantil foi encarada pelos pais como um meio
de Viviane desenvolver a fala e relacionar-se com crianças
da mesma faixa etária dela favorecendo, assim, o seu
desenvolvimento.
Viviane permaneceu quatro anos na educação
infantil, dos seis aos nove anos. O que nos chama atenção,
é o tempo de permanência de Viviane nesse nível de ensino
e a sua idade cronológica, se considerarmos que a faixa
etária dos alunos geralmente atendidos na educação infantil
era de quatro a seis anos. É possível que a imagem de eterna
criança vinculada à pessoa com deficiência mental tenha
acompanhado Viviane desde o início de sua trajetória
escolar.
De outro lado, se a entrada na educação infantil

426 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


tinha por objetivo proporcionar a Viviane experiências que
possibilitassem a superação de sua defasagem no
desenvolvimento, seu depoimento indica que a experiência
escolar revelou ainda mais as suas dificuldades:

Eu não conseguia aprender no pré e a


professora dizia pra minha mãe que era para
ela encontrar uma escola que fosse melhor pra
mim, eu não conseguia aprender nada.(...) No
prezinho eu gostava de brincar lá no parquinho,
mas os coleginhas judiavam de mim, porque
eu era pequenininha, eu chorava muito...

Porém, se a expectativa dos pais era (somente)


com a socialização de Viviane, é possível que essa
expectativa tenha sido incorporada também pelos
professores, que deixaram para segundo plano seu acesso
aos conhecimentos escolares. É possível, ainda, que o fato
de receber atendimento psicológico, a idade avançada de
Viviane para o nível de ensino cursado e o comportamento
infantilizado tenham despertado nos professores descrença
em sua capacidade de aprendizagem, o que parece ter sido,
também, incorporado por ela:

Eu não conseguia aprender...

A experiência de fracasso vivida na educação


infantil, parece ter sido fundamental para que seus pais e
ela se convencessem que necessitaria de atendimento
educacional especializado.
Assim, pode-se considerar que as perspectivas
familiares sobre as possibilidades de aprendizagem de
Viviane foram sendo construídas na sua relação com o
especialista, bem como pela sua própria trajetória escolar.
Rosinete, assim como Elza, iniciou sua vida

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 427


escolar aos sete anos de idade, em uma escola da rede
pública estadual. A entrada na escola ocorreu no mesmo
período em que sua família mudou-se da zona rural da
cidade de Parati-RJ para a cidade de Taubaté-SP, o que
significou uma mudança radical no estilo de vida.
A adaptação à nova realidade familiar, as
dificuldades financeiras da família, a chegada das irmãs
mais novas, que exigiram cuidados especiais por parte dos
pais, em especial da mãe, aliados ao fato de que a
experiência escolar era uma realidade inédita para
Rosinete, que não havia freqüentado o ensino infantil,
podem ter contribuído para que ela apresentasse, no início
de sua vida escolar, dificuldades de adaptação à escola.
Rosinete relata que no início apenas chorava,
não conseguia aprender e não queria ir à escola, só ia porque
a irmã mais velha estudava na mesma classe:

Eu lembro que no primeiro ano eu só chorava,


quando era hora de acordar eu não queria
levantar pra ir para a escola, mas minha irmã
fazia eu levantar. A gente estudava na mesma
classe e ela me ajudava na escola, mas não
conseguia aprender. Ninguém podia olhar pra
mim que eu já chorava.

Entretanto, nos parece que a professora


desconsiderava o momento peculiar pelo qual passava
Rosinete e interpretava seu comportamento como
imaturidade e falta de limites, atribuiu a ela a
responsabilidade pelas dificuldades apresentadas no
processo educativo. A professora não só levantou a
hipótese de que Rosinete teria algum problema de
desenvolvimento como convenceu a mãe que sua filha
necessitaria de atendimento educacional especializado.

428 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Eu quase não lembro dessa época, só sei que a
professora, dona Marli, era muito brava, só
vivia chamando atenção da gente e dizia que
eu era muito chorona.(...) Foi a professora
Marli que me colocou na classe especial, ela
chamou minha mãe e disse: é melhor você
colocar ela na classe especial pra ver se ela
amadurece. Aí minha mãe me colocou lá...
Rosinete freqüentou durante um ano a primeira
série do ensino fundamental e logo a seguir foi transferida
para classe especial. Chama-nos atenção a força do
discurso professoral, que legitima a classificação dos alunos
na escola, entre os capazes de aprender e os não capazes e
decidem seu futuro. À mãe, destituída do poder econômico
e cultural que lhe possibilitaria ter uma leitura mais
aprofundada sobre as reais dificuldades de sua filha e as
ações e recursos necessários para que ela as superasse,
restou submeter-se ao parecer daquela, considerada por
ela, dona do saber.
As atitudes paternas, reforçadas pelo
julgamento da professora, estavam norteadas pela ideologia
do esforço e capacidade pessoal como condição básica para
o sucesso escolar. A crença na força de vontade para
adaptar-se à escola se revelou como requisito fundamental
no processo educacional.
O poder da escola em rotular, classificar e
decidir sobre a vida escolar de seus alunos de forma
arbitrária e decisiva se revela no início da vida escolar de
Daniel.
Daniel passou sua primeira infância a realizar
tratamentos médicos em decorrência da hidrocefalia. Aos
sete anos, juntamente com sua família, mudou-se da cidade
de Tremembé para Taubaté e dois anos depois, quando
sua mãe foi matriculá-lo na escola, a direção considerou
que seria melhor que ele estudasse na classe especial para

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 429


deficientes mentais. É possível que a aparência física de
Daniel, que utilizava cadeira de rodas para se locomover e
tinha a cabeça maior do que o comum, em decorrência da
hidrocefalia e da idade, pois ele já estava com nove anos,
tenha despertado na direção da escola dúvidas com relação
às suas capacidades intelectuais. Daniel destaca que foi
matriculado diretamente na classe especial e que não
passou por avaliação pedagógica antes desse
encaminhamento; no entanto a justificativa da escola foi
que ele apresentava dificuldades de aprendizagem:

Eu não sei explicar porque fui matriculado


direto na classe especial. Eu só sei que quando
minha mãe foi me matricular, eles já me
colocaram na classe especial, porque eu tinha
dificuldade de aprendizagem.

Destaca-se aqui que a escola tem um padrão


de aluno ideal vinculado não somente às capacidades
intelectuais, mas à imagem física. Aqueles que fogem a
esse padrão são considerados inaptos para aprender e
precisam de tratamento diferenciado.
Daniel, muito embora em seu depoimento
questione esse encaminhamento, aceita e justifica a atitude
da escola e alega que ela não estava adaptada para atendê-
lo:

Mas também tinha o problema da cadeira de


rodas e de eu usar fraldas, a escola não era
adaptada.Ela não estava preparada para me
receber, então eu fui para classe especial.

O comentário de Daniel leva-nos à tentativa de


entender o significado que ele atribui a esse
encaminhamento e por que aceitou a decisão da escola,

430 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


pois a não adaptação da escola para atendê-lo,
provavelmente, se estendia à classe especial para
deficientes mentais. Portanto, este não é um argumento
suficiente para compreendermos a sua aceitação. O fato
de ser deficiente físico, o pouco acesso às informações sobre
a real natureza de seu problema e a crença de que a escola,
percebida como o âmbito do saber, é infalível em seu
julgamento, pode tê-lo levado e também sua família, a
acreditar que de fato a sua condição física resultava em
problemas de ordem intelectual e exigia um atendimento
educacional diferenciado.
Já Fabiano, que iniciou sua vida escolar aos três
anos na educação infantil, se recorda que nos primeiros
anos de escola, começou a apresentar dificuldades no
processo de aprendizagem, o que levou sua mãe a procurar
atendimento médico e psicológico.
Após freqüentar educação infantil por quatro
anos e a primeira série na mesma escola, Fabiano foi retido
e de acordo com seu relato, sua mãe e a psicóloga
resolveram transferi-lo para outra escola, também
particular. Na nova escola, freqüentou por três anos a
primeira série e por três anos a segunda série. Fabiano
não aprofundou suas lembranças sobre as experiências
vividas nessa escola; seus comentários sobre ela parecem
expressar o ressentimento de ter passado várias vezes
pela experiência da repetência e do fracasso escolar.

Depois que saí do JN (escola) eu fiquei um


tempão na escola da minha madrinha, que eu
nem lembro o nome, só lembro que era uma
escola bem pequena e não tinha muitos alunos
(...) É, acho que foi isso mesmo, eu repeti lá
umas quatro ou cinco vezes, mas, porque a
escola faz o maior suspense com o aluno se ele
repetiu ou não repetiu? Se passou ou não

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 431


passou? Toda escola faz suspense com o aluno.
Chama o aluno, chega assim no dia, faz aquele
suspense, não fala de uma vez, fica enrolando,
ou chama a mãe da gente pra falar primeiro
pra ela. A gente já sabe se repetiu ou passou.
Todo mundo sabe. Pra que tanto suspense?

O que se destacou no depoimento de Fabiano


sobre o início de sua trajetória escolar foi o empenho de
sua família para que ele continuasse freqüentando escola
comum. Muito embora as suas dificuldades escolares
tenham sido reveladas já na educação infantil, aos três
anos, a decisão de que ele freqüentaria um atendimento
educacional especializado só ocorreu quando completou 13
anos, após passar por várias experiências educacionais no
ensino regular.
É provável que as condições financeiras e
culturais da família tenham proporcionado a Fabiano, além
do acesso aos melhores recursos educacionais e
terapêuticos disponíveis no município de Taubaté, um
conjunto de informações aos pais, entre as quais,
provavelmente, os ganhos que seu filho teria freqüentando
escola comum.
Assim fizeram e o mantiveram por vários anos,
apesar de contínuos fracassos. Essa resistência vai sendo
minada até que a família se curva “ante as evidências”.

Como eu não passava mesmo, minha mãe


resolveu me colocar na D. (escola particular
de educação fundamental que tinha classe
especial para deficientes mentais e deficientes
auditivos), acho que foi uma amiga dela que
falou que lá tinha uma classe pra criança que
não conseguia aprender, daí minha mãe me
colocou lá.

432 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Entretanto, independentemente das
constituições familiares, do tipo (pública e particular) e das
condições das escolas freqüentadas, o encaminhamento
dos sujeitos investigados para classe especial para
deficientes mentais, com exceção de Daniel, resultou das
dificuldades enfrentadas e não superadas por eles nas
primeiras séries do ensino regular. As falas dos sujeitos
investigados nos revelam a posição ocupada pelas classes
especiais no contexto escolar e os processos de
escolarização vividos.
Elza permaneceu durante sete anos na classe
especial e sua expectativa era a de retornar ao ensino
regular, mas, segundo seu depoimento, a sua transferência
estava condicionada ao domínio do saber escolar, o que
causava angústia e expectativas ao término de cada ano
letivo:

Eu falava pra minha mãe: Será que eu... Porque


todo ano a professora dizia: cinco ou seis alunos
vão passar, mas o resto não. Eu falei: E eu? E
eu sempre ficava por último. Daí ela falou
assim: Ah, você vai ficando e o dia em que você
se firmar bem, escrever e fazer as coisas aí você
vai, você passa de ano, se não, você fica na
classe especial. Aí eu fiquei. Aí todo ano que ia
passar aluno eu ficava até doida pra passar e
não passava.
Uma análise da fala acima aponta para a crença,
legitimada pelo parecer da professora, de que as
dificuldades escolares são resultado de condições
intrínsecas ao aluno. Por outro lado, há um processo de
incorporação de mesma crença pela aluna que atribuía a
si mesma a responsabilidade pelo “passar” ou “não passar
de ano”.
Evidencia-se no relato de Elza que muito

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 433


embora a ênfase da escola estivesse voltada ao
desenvolvimento das possibilidades acadêmicas da aluna
como condição básica para sua promoção educacional, a
prática pedagógica desenvolvida na classe especial
contribuía muito pouco para que ela pudesse superar suas
dificuldades.
Na classe especial, o tempo escolar era
preenchido com atividades relacionadas não somente ao
domínio do saber escolar, como aulas de matemática,
português, história, entre outras, exigência para que ela
pudesse ser transferida para uma classe regular, mas
envolvia outras atividades como a limpeza da escola,
limpeza da sala de aula e aulas de artesanato:

Olha, a escola de Tremembé até que era bem


limpa, a diretora não gostava de sujeira. Todos
os dias, os alunos da classe especial saíam depois
do recreio para catar o lixo e varrer o pátio.
Toda semana a gente lavava a sala de aula e
deixava tudo cheirando. Mas, a escola de
Taubaté era uma sujeira, na classe especial, só
tinha carteira velha, armário velho, a parede
era toda descascada e nem tinha lousa, tinha
uma toda velha e feia. Ah tinha também umas
três janelas, só que com os vidros quebrados .

Nesse depoimento, Elza deixa clara a relação


dos alunos da classe especial com a escola. Percebidos,
provavelmente, como inaptos para aprendizagem escolar,
ajudavam na limpeza da escola e estudavam em uma classe
totalmente desprovida de recursos pedagógicos
compatíveis com suas necessidades. Assim, o processo de
seleção e exclusão na escola continuava e se intensificava
na classe especial, pois as possibilidades dos alunos
retornarem ao ensino regular e prosseguirem seus estudos
ficavam cada vez mais distantes.

434 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Elza fala do distanciamento entre o trabalho
pedagógico desenvolvido na classe especial e a classe
regular, além da estagnação de seu processo de
aprendizagem:

Na classe especial a gente não fazia assim...


atividades como das outras classes, não tinha
muita aula. A gente mais brincava, fazia
aquelas coisas de pintura no pano.(...)A
professora não passava coisa difícil, só passava
aquilo que a gente já sabia fazer.

O que se pode retirar de todo esse depoimento


de Elza em relação à classe especial é de que ela serviu
basicamente para reiterar as dificuldades enfrentadas por
Elza no ensino regular e de inculcar a perspectiva de que
se mais não teve, isto se deve somente às próprias
dificuldades.
A mesma visão sobre a classe especial é
percebida no depoimento de Rosinete que permaneceu
três anos neste modelo de atendimento educacional. Do
ponto de vista do espaço físico do prédio escolar, os
comentários dela revelam o lugar que a classe especial
ocupava na escola. Segundo seu relato, a escola era
bastante espaçosa, contava com quadra de futebol, uma
área arborizada com parquinho e várias salas de aula. A
classe especial era a última do corredor, ao lado dos
banheiros dos alunos:

A nossa sala era a mais pequena da escola,


também tinha pouco aluno... Ela ficava no final
do corredor e tinha os banheiros dos alunos.
Na hora do recreio , a gente tinha que fechar a
porta, era um fedor que ninguém agüentava,
a gente sempre reclamava pra professora que

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 435


não dava pra agüentar, mas ela dizia que a
gente tinha que agüentar porque não tinha
outra sala. Mas a sala era legal, tinha bastante
jogos pra gente brincar e ninguém ficava
incomodando a gente. A gente podia brincar,
correr e até gritar que não atrapalhava as
outras salas.

Os alunos foram encaminhados para classe


especial por se considerar que nesta classe eles
encontrariam os recursos especializados necessários para
o desenvolvimento de seu processo de aprendizagem e
superação das dificuldades.
Contudo, nos casos descritos acima, observamos
que, na realidade, as classes especiais freqüentadas além
de não oferecerem tais recursos, não favoreceram o acesso
das alunas aos bens culturais e contribuíram para um
processo perverso de auto-exclusão escolar, ou seja, as
alunas foram convencidas a submeterem-se às condições
precárias das salas de aula e a evitarem o contato com os
outros alunos da escola.
No caso de Rosinete isto se torna evidente, pois
a classe especial funcionava em um local da escola que
permitia certo distanciamento das outras classes e oferecia
aos alunos condições materiais (jogos, brinquedos, banheiro
ao lado) para que não precisassem circular pela escola.
O tempo que Rosinete passou na classe especial
parece ter contribuído para sua permanência na escola,
porém, pouco contribuiu para o acesso aos conteúdos
escolares, o que é percebido claramente por ela,
principalmente no momento em que foi transferida para
classe comum.

Eu não gostava muito de estudar na classe


especial não, eu gostava mais da sala normal

436 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


mesmo. (...) Ah, porque lá o ensino não era
tão bom, a lição era fraca, a professora
controlava mais. A classe especial só tinha
pouco aluno e meu gosto que tenha bastante,
é melhor. Na classe especial era pior, as
atividades eram muito fáceis de fazer. A gente
mais brincava do que fazia atividade.

De outro lado, Viviane, que estudou em uma


classe especial para deficientes mentais em uma escola
particular de renome na cidade de Taubaté, fala com
grande entusiasmo das experiências escolares vividas
neste período de sua vida escolar:

Eu gostava muito de estudar na D.(nome da


escola). Foi lá que eu aprendi a ler e escrever,
eu gostava de cantar o hino nacional, fazia tudo
em filinha assim e a gente cantava o hino
nacional e tudo.

É provável que Viviane, após ter passado quatro


anos no ensino infantil e enfrentado dificuldades de
aprendizagem e de adaptação, tenha depositado,
juntamente com sua família, expectativas positivas quanto
à possibilidade de superar as dificuldades ao ser
matriculada na classe especial.
Segundo Viviane, seus pais investiram grande
parte de seus recursos financeiros no pagamento da
mensalidade da escola e nos materiais que eram
solicitados, o que demonstra que eles tiveram acesso a
informações sobre as vantagens que sua filha teria ao
freqüentar essa classe:

Eu tinha muitas dificuldades e precisava


estudar lá para aprender a ler e escrever.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 437


Para Viviane, os anos passados na classe especial
dessa escola foram proveitosos em termos de aquisição
cultural e ampliação das relações sociais.

...na época da D. era muito bom a gente


passeava de excursão, fazia um monte de
passeio, fazia trabalho na casa dos colegas,
tinha muitos colegas, fazia educação física,
antigamente era diferente o uniforme de
educação física, era tudo branco. A gente ia no
campo jogar bola, fazer ginástica lá. Ia jogar
bola, jogar vôlei lá no campão.
Embora a classe fosse identificada como classe
especial, o relato de Viviane indica proximidade com a
classe comum, a participação efetiva no cotidiano da escola
e a consciência de ter aprendido, o que pode explicar o
entusiasmo manifestado por Viviane ao falar sobre esta
etapa da sua trajetória escolar.

A escola era muito boa, a professora ensinava


bem, tinha paciência com a gente e era boa.
Ela sempre dizia: Se você quiser você pode
aprender e cada dia a gente aprendia coisa
nova.

A visão positiva de Viviane em relação à classe


especial se deve ao fato de, pelo menos formalmente, ela
parecer pouco se diferenciar das classes comuns, o que
lhe dava a sensação de que não seria muito diferente
dessas últimas. Pelo seu depoimento, percebemos que a
escola proporcionava aos alunos da classe especial a
vivência de experiências educacionais (passeios, excursões,
interações entre os colegas) semelhantes às das demais
classes.
Entretanto, apesar de todo esse trabalho,

438 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Viviane, após permanecer três anos na classe especial e já
estar com quatorze anos de idade, foi transferida para a
segunda série do ensino fundamental, o que torna evidente
que o que aprendeu na classe especial, apesar de altamente
valorizado por ela e com aparência de próximo do ensino
regular, pode não ter sido tão significativo, na medida em
que não lhe garantiu o acesso a níveis escolares mais
avançados. Assim, a perspectiva de que as dificuldades
residiam somente nas suas limitações fica,
contraditoriamente, ainda mais forte, pois apesar de
receber uma escolarização considerada adequada, os
baixos resultados escolares alcançados nesse processo,
provavelmente, foram atribuídos a sua incapacidade
pessoal.
No caso de Fabiano, a situação é
diametralmente oposta, pois ele relata uma série de
aspectos negativos da classe especial, apesar de privada,
o que em tese, deveria redundar em melhor qualidade de
ensino.
Fabiano freqüentou classe especial para
deficientes mentais em uma escola particular que além do
atendimento especializado na área da deficiência mental e
da deficiência auditiva, contava com uma equipe de
profissionais da área clínica (psicólogos, fonoaudiólogos,
terapeutas ocupacionais, terapeuta da fala, professores
especializados). Todavia, apesar de toda essa estrutura,
seu relato mostra a segregação e discriminação dos alunos
da classe especial:

A gente começou a conversar entre os alunos


que não vamos mais ficar aqui não, parado que
nem sei o quê. A gente era esquecido, certos
passeios que a escola fazia a gente não
participava. Era um abandono da sala especial.
E se acontecia alguma coisa, a culpa sempre

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 439


caía pra gente. Teve um dia que a bola sumiu e
colocaram a culpa na classe especial. Depois
eu meti pau nos caras, que culpar a sala
especial nada, a gente não estava nem jogando
bola, a gente é fantasma por acaso.

Um aspecto interessante no processo de


escolarização de Fabiano na classe especial é o caráter
infantilizante das aulas que, provavelmente, estivesse
vinculado à crença de que a pessoa com deficiência mental
é uma eterna criança.

Primeiro eu fui bem, porque passei para outra


classe especial. Saí de uma sala pra outra sala.
Na outra sala, já estava me dando bem em
certas matérias. Mas era assim, vamos supor:
Vai, dá a matéria para o aluno, dá desenho
para o aluno fazer ou pintar(...) O que eles
davam na D? Simplesmente um ursinho....

Indagado sobre o que aprendeu na classe


especial, Fabiano considera que aprendeu muito pouco e
o tempo que lá permaneceu nada contribuiu para superar
suas dificuldades.

Então, na classe especial você aprende, mas a


maioria das coisas que você aprende na classe
especial, na verdade, está revendo o que você
já aprendeu. Porque eles, o jeito que eles tratam
você é como se eu fosse um burrinho.

Revela-se, pelo depoimento de Fabiano que a


classe especial, ao não garantir ao aluno condições reais
de aprendizagem e desenvolvimento, segue a lógica de um
sistema escolar seletivo e excludente e destaca-se como

440 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


um mecanismo eficaz de eliminação dos considerados
inaptos para aprendizagem, que independe, no caso, da
origem social. O que nos parece, no caso de Fabiano, é que
a deficiência mental é a marca de maior peso em sua
trajetória escolar.
Entretanto, aparece um dado extremamente
ilustrativo da influência da origem familiar sobre o trabalho
pedagógico: Fabiano relata alguns conflitos entre o que era
ministrado e o que os alunos tinham como expectativa,
como no caso das músicas infantis e que após protestos
foram substituídas por músicas mais apropriadas para
adolescentes.
Nos casos anteriores, com exceção de Viviane
que tinha uma visão altamente positiva da escola, não
passou pela cabeça de Elza e de Rosinete, nem de seus
familiares, qualquer questionamento sobre a ação da classe
especial.
Essas diferenças de postura frente ao que era
desenvolvido na escola não podem ser imputadas somente
a características pessoais dos alunos e de seus familiares,
mas denotam uma diferença de classe, do poder que
segmentos superiores têm em relação aos processos de
escolarização.
A justificativa de que estudava em escola
privada não deve explicar tudo, porque Viviane também
estudou em instituição particular e, apesar da pouca
contribuição para a continuidade de seus estudos, ela
incorporou, de forma mais contundente, a perspectiva do
dom: a escola fez o que pode; portanto o problema estava
nela.
Já Daniel permaneceu três anos na classe
especial para deficientes mentais de uma escola pública e
desse período suas lembranças se relacionam muito mais
às dificuldades de locomoção do que à estrutura da escola
e à metodologia utilizada na classe especial.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 441


Quando se refere aos colegas de classe, destaca
a ajuda que recebia para se locomover na escola:

Minha vida na classe especial foi boa, eu tive


algumas dificuldades de aprendizagem, mas foi
bom, deu para aprender.(...) Eu não lembro
porque eu tinha dificuldade, mas me lembro
que meus colegas me ajudavam bastante no
que eu precisava. Me ajudavam a me
locomover dentro da escola, o que eu precisava
eles me ajudavam a fazer. .
No que diz respeito aos professores da classe
especial, enfatiza a importância deles na sua trajetória
escolar, principalmente do apoio recebido para que
continuasse a estudar e superasse suas dificuldades.

As professoras que eu tive sempre foram muito


boas, nunca tive nenhum problema com elas.
Eu tive duas professoras que me marcou muito,
a dona Marli e a dona Mércia. Elas me deram
muitos conselhos para eu nunca sair da escola.
A professora Marli gostava muito de mim, ela
dava muita atenção para mim, mais do que
para os outros alunos, eu era o mais da turma
lá... Mas isso não que dizer nada... o mais
importante foi a atenção e o modo que elas me
ensinaram, aí eu consegui chegar aonde
cheguei.

Quanto à metodologia utilizada na classe


especial, Daniel diz não se lembrar, mas revela que as
professoras desenvolviam um trabalho individualizado.
Daniel se recorda que foi um aluno muito disciplinado, dócil
e comunicativo, o que o tornou popular na escola.

Eu sempre fui muito responsável na escola,

442 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


sempre fazia minhas tarefas e me comportava
bem na sala de aula, nunca fui de ficar batendo
boca com os professores ou com os colegas,
sempre quando tinha um problema eu
conversava e as coisas se resolviam. Na escola,
todo mundo me conhecia e eu nunca senti
nenhuma diferença. Eu sempre participei de
tudo que a escola fazia e é lógico, os colegas
sempre me ajudavam, principalmente na
questão da locomoção.

A permanência de Daniel na classe especial para


deficientes mentais parece não ter representado para ele
a estagnação do saber. Daniel relata que a metodologia
adotada na classe especial foi fundamental para que ele
tivesse acesso ao conhecimento escolar e pudesse
prosseguir os estudos:

Minha vida na classe especial foi boa, eu tive


algumas dificuldades de aprendizagem no
começo. Eu não tinha feito o pré, mas foi bom,
deu para aprender (...)

Daniel, que teve sua primeira matrícula na


classe especial, parece não ter apresentado dificuldade de
aprendizagem, incorporou satisfatoriamente o
conhecimento escolar.

Eu não tinha dificuldade na escola, eu sempre


aprendi com facilidade. A professora sempre
falava que eu era bom aluno. Eu sempre gostei
muito de ler, acho que isso me ajudou.

Na classe especial, nos parece que Daniel


conseguiu provar aos professores que não apresentava
nenhum comprometimento intelectual, o que lhe rendeu

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 443


um tratamento diferenciado dos demais alunos:

O modo delas ensinarem era especial. Se eu


não entendia, elas me ensinavam de novo. Eu
não entendia, elas vinham e me ensinavam até
eu pegar. Elas faziam um trabalho individual
com cada aluno, davam uma atenção diferente
para mim.

Assim, paradoxalmente, a inserção inicial de


Daniel na classe especial parece ter servido exatamente
para que ele pudesse demonstrar, apesar das evidentes
marcas no corpo, que poderia aprender. Entretanto, essa
possibilidade, se analisada de forma mais ampla, talvez
mostre que seja esse mesmo o papel exercido pelo ensino
especial: o de complementaridade da seleção e classificação
realizadas pelo ensino comum. Entre todos os sujeitos aqui
analisados ele foi o único que apresentou progressão
escolar satisfatória, exatamente porque pôde demonstrar
que não possuía limitações intelectuais. Os demais, embora
inseridos em sistemas especiais, pouco conseguiram
aprender e não chegaram a atingir níveis um pouco mais
elevados de escolarização.

Convívio social

Um aspecto recorrente nos depoimentos dos


sujeitos foi o isolamento social, em menor ou maior grau,
que os acompanhou ao longo de suas trajetórias.
Entretanto, esse isolamento não esteve relacionado apenas
à suas condições intrínsecas de deficientes, mas percebe-
se, em cada caso, uma interdependência entre as condições
sociais, culturais e econômicas das famílias, o clima afetivo
familiar e as relações estabelecidas com a escola.
Até o ingresso na escola, a vida social de Elza

444 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


não se diferenciava da de suas irmãs (os brinquedos na
rua, os afazeres domésticos) e parece que elas tinham a
mesma liberdade que os homens, embora já existisse uma
diferença de gênero no tipo de atividades.
Essa liberdade, no entanto, vai se restringindo
igualmente para as filhas mulheres, na medida em que o
pai as impedia de saírem de casa:

As minhas irmãs, desde que elas eram


mocinhas, a gente era mocinha, quase não
saía. Não ia a lugar nenhum, meu pai é muito
bravo, ele não deixava. Até agora, perto de
minha casa tem umas amigas que falam:
vamos passear em tal lugar. Eu falo: eu não...,
prefiro ficar mais dentro de casa. Não gosto de
passear.
Entretanto, nota-se neste trecho do
depoimento que, diferentemente de suas irmãs, que
estudaram, casaram-se, trabalham, Elza vai construindo
uma trajetória de isolamento social.
Quando indagada sobre os amigos, Elza se
refere à experiência pessoal no ensino comum de forma
bastante negativa:

Eu quase não tinha amizade não. Também, eu


só vivia chorando e eles roubavam meu lanche,
daí eu chorava mais ainda. (...) Também
naquela época mais eu chorava, porque eles
vinham bater em mim. Quando eu era
pequena eu falava pra minha mãe que eu não
queria dar meu lanche e eles vinham em cima
de mim. Então, eu não tinha amigos. Estes dias
passou uma menina em frente de minha casa
e ela falou: você lembra de mim. Eu falei
assim: Eu não lembro de você, não sei onde

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 445


você mora, eu não sei. Ela falou: você conhece.
Ai eu falei: eu não conheço você, eu não lembro
de ninguém.

Mas, mais que essa perspectiva negativa, o


depoimento de Elza revela, por um lado, uma certa auto-
responsabilização por suas dificuldades sociais e por outro,
um rancor que, mesmo na idade adulta, não pode ser
superado, talvez em razão da contínua reiteração das
dificuldades de sua trajetória de vida.
A única referência explícita de Elza refere-se a
uma amiga da classe especial, com a qual mantém contato
até a vida adulta e que apresentava, na classe especial,
comportamento muito semelhante ao seu quando do
ingresso no ensino comum:

Eu sempre vou na casa da Carolina, ela era


minha única amiga na escola, a gente ficava
no recreio brincando e na sala a gente sempre
sentava perto. Eu sempre ensinava ela na
escola, ela não conseguia fazer a tarefa e
sempre chorava, até hoje ela é chorona,
também, com aquela mãe, até eu.

Como se vê, Elza, cuja trajetória social,


inicialmente, era muito semelhante à das irmãs, vai se
confinando, cada vez mais, devido às marcas de sua
deficiência. Seja pela própria trajetória no ensino especial,
seja pelas marcas negativas que as relações sociais com
não deficientes causaram e que se acentuaram.
Assim que saiu da escola, Elza começou a
freqüentar uma igreja católica próxima à sua residência e
parece ter sido esta a primeira experiência de ampliação
de sua vivência social, que até então tinha se confinado à
família e ao ensino especial:

446 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Depois que eu parei de estudar foi que eu
comecei a freqüentar mais a igreja. Eu comecei
a ir na missa sozinha e com o tempo a mãe
começou a ir comigo. Aí eu fiquei sabendo do
grupo de oração. Comecei a freqüentar e eles
me chamaram para participar da equipe.

Esta parece ter sido a primeira experiência


positiva de Elza em termos de participação social. Atuou
como voluntária na Pastoral da Saúde e o rótulo de
deficiente mental, tão enraizado na família e na escola
parece não ser percebido ou não fez diferença neste novo
grupo:

Desde então, eu comecei a participar da


Pastoral da Saúde. Eu visito os doentes, às vezes,
tem que dar banho. De tudo que eu faço o que
eu mais gosto é de trabalhar com os doentes.
Porque quando a gente vai visitar, eles estão
meio pra baixo, aí a gente fala alguma coisa e
eles já ficam mais animados(...)Eu gosto muito
de trabalhar com os doentes, quando eu vou
visitar eu esqueço da vida, fico conversando
com eles, às vezes, eles contam a história deles,
nossa, às vezes, quando eu escuto as histórias
eu saio até chorando, uma história mais triste
que outra, ai eu vejo que meus problemas são
bem pequenos, eu até que tive uma vida boa
(...)

Esta nova experiência parece permitir a Elza


definir novos projetos para sua vida que, em parte, ela
reconhece como de difícil realização:

Meu sonho eu falei pra minha mãe , mas minha


mãe não deixa eu ir. Meu sonho era entrar para

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 447


o convento.
Eu leio, mas gaguejando. E se a irmã mandar
eu ler na frente de todo mundo, eu não leio
não
Eu tenho medo de sair sozinha e não saber
voltar pra casa. Porque quando eu saio, eu vou
com as turmas da igreja. Eles levam de carro e
traz na porta da igreja. Daí eu venho embora.
Mas sozinha eu não saio. Por isso eu acho que
as irmãs não vão me aceitar no convento,
porque eu não sei andar sozinha.

Mas se isto mostra que Elza amplia seus


horizontes, ao mesmo tempo revela a sua absoluta
incapacidade, construída socialmente, de avaliar as suas
possibilidades de atuação. Tal como ela relata, realiza seu
trabalho como voluntária de maneira competente, sem
restrição dos demais membros, mas isto não é incorporado
por ela como uma comprovação de suas capacidades para
uma ocupação remunerada semelhante.
Viviane, no entanto, desde a sua primeira
infância, apesar dos limites impostos pela condição de
deficiente mental, que resultaram em atrasos em seu
desenvolvimento e provavelmente, dificuldades no
convívio com crianças da sua faixa etária, fala com
saudades do tempo de criança, marcado por passeios nas
férias e brincadeiras com os colegas na rua.
O relato de Viviane nos mostra que até então e
tal como Elza, a sua primeira infância não se diferenciou
das demais crianças que com ela conviviam. Mas a sua
transferência para a classe especial de uma escola
particular truncou essas experiências e, a partir daí, suas
amizades se centralizam, é óbvio, em seus colegas de classe:

Eu tinha várias (todas da classe especial)

448 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


amigas e até hoje eu vou na casa delas, tem a
Juliana, a Joana, . A Juliane agora mora em
Pinda, ela casou e tem uma menininha, mas a
Joana mora perto de casa, eu sempre vou na
casa dela. No natal, eu fiquei até meia noite na
casa dela, meu pai foi até atrás de mim, ele
ficou bravo.

A escola, pelo que indica o depoimento de


Viviane, de um lado parecia proporcionar aos alunos várias
atividades extra-escolares que envolviam passeios,
excursões e acampamento, mas de outro, confinava essas
atividades aos alunos da classe especial.
A sua transferência da escola particular para
uma classe especial de uma escola pública e logo a seguir,
para uma escola especial, parece não ter empobrecido as
suas atividades sociais, pois, desde que entrou na escola
especial, participa de grupo de dança, equipe de ginástica
olímpica e de teatro que fazem apresentações em cidades
no Estado de São Paulo,
Contudo, tal como ocorria na escola particular,
as apresentações ocorrem, principalmente, em eventos
que envolvem apenas instituições especializadas na área
da deficiência mental, o que não modificou
substancialmente a qualidade de seus círculos de amizade,
unicamente com seus “iguais”.
As marcas distintivas da deficiência e do
fracasso escolar, que vão se constituindo nas suas relações
sociais, modifica, inclusive, as suas relações com membros
da família ampliada:

Todas férias é sempre a mesma coisa, ou meu


pai vai na casa dos meus tios ou eles vem na
nossa casa. É um saco, aquele bando de criança
correndo. Minha prima, a Janaina, sempre

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 449


pergunta a mesma coisa: se eu passei de ano,
se não vou arrumar emprego. Ah, isso não é
da conta dela. (...) Ah, eu prefiro que não tivesse
férias é melhor mesmo ficar na escola.

As suas expectativas de vida mostram como a


marca da deficiência continua sendo reiterada, pois apesar
de já ter 30 anos, ainda é considerada como incapaz de
constituir família:

Quero arrumar um emprego, ganhar dinheiro


para comprar tudo que eu preciso, minha mãe
fala que eu tenho que trabalhar de babá, mas
eu quero trabalhar na loja, eu já sei mexer com
computador (...) Ah, é lógico que eu quero
namorar, casar, mas a minha mãe fala que é
muito cedo ainda, eu nem gosto de falar isso
pra ela, ela fala que eu tenho que estudar
primeiro, eu não sei não...
Da mesma forma, a sua incompetência
acadêmica, atestada continuamente tanto pelo ensino
regular, que não a aceitou, quanto pelo especial, no qual
teve reiterada a sua incapacidade de aprender, se reflete
na sua busca de inserção social:

A Teresa (psicóloga da escola especial) falou


assim: é só ficar calma e responder as perguntas
direito que está empregada, mas aí eu fiquei
nervosa, gaguejei um monte, a moça fez tanta
pergunta que eu fiquei até com dor de cabeça,
mas eu achei que fui bem (....) A moça
perguntou minha série na escola, eu disse 4a
série, minha mãe falou que eles só pegam
quem tem a 8a série. Assim é difícil conseguir.
(...) eu já fiz três vezes a entrevista, a Tereza

450 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


disse que eu não posso ficar nervosa, mas na
hora eu não sei, dá até dor de barriga, assim eu
nunca vou conseguir emprego.

Rosinete e sua irmã mais velha passaram a


primeira infância em um sítio isolado na cidade de Parati-
RJ. Suas lembranças desse período relacionam-se às
brincadeiras com a irmã mais velha, com a liberdade
própria de quem mora na zona rural.
Após a sua ida para a cidade, ocorreram os
primeiros contatos com outras pessoas fora do seu núcleo
familiar e com outras realidades sociais, principalmente
com a entrada na escola, cujo início foi marcado por
dificuldades de adaptação à sala de aula, que resultaram
no seu encaminhamento para classe especial para
deficientes mentais.
Nota-se que, até esse período, Rosinete não
tinha apresentado nenhum comportamento que a
diferenciasse de sua irmã; na verdade, quem se encontrava
em defasagem escolar era esta última, que apesar de ser
dois anos mais velha, foi estudar na mesma classe e na
mesma série.
Porém, com as dificuldades apresentadas por
Rosinete no processo educacional, as comparações, por
parte dos pais e professores, foram inevitáveis. O
encaminhamento para classe especial reforçou ainda mais
a diferença e fez com que ela fosse incorporando,
gradativamente, o rótulo de deficiente mental.
O isolamento físico e social da classe especial
na escola se estendia àqueles que a freqüentavam. Durante
os três anos que a freqüentou, as relações sociais de
Rosinete na escola se limitaram, assim como Elza e Viviane,
ao contato com a professora e com os colegas da classe:

Os colegas eram legais, às vezes tinha briga,

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 451


mas eram legais, era tudo igual. A gente
brincava na quadra, de joguinho na sala, fazia
bagunça também.

Assim, pode-se considerar que nesses três


casos, a classe especial contribuiu para a incorporação do
estigma de deficiente, a estagnação do saber e o processo
de isolamento social
A trajetória social de Rosinete se mostra
intimamente relacionada às etapas distintas de sua
escolarização: deslocada inicialmente na classe comum,
Rosinete é encaminhada rapidamente para a classe
especial para deficientes mentais; quando passa a
restringir suas relações sociais ao âmbito dos colegas
deficientes. Reencaminhada para o ensino comum,
Rosinete vive inicialmente um processo rico de relações
sociais com os colegas de classe, mas ao ser retida nas
séries mais avançadas, se vê novamente isolada
socialmente, o que redunda, na atualidade, num processo
intenso de isolamento social.
No entanto, a força da escolarização como valor
social incorporado, apesar de Rosinete carregar o estigma
da deficiência mental e de uma trajetória escolar marcada
pela reiterada quebra de laços sociais, faz com que
Rosinete, aos vinte e seis anos de idade, ainda estabeleça
ligação entre a escolarização e as possibilidades de futuro:

No ano que vem, eu vou ver se volto pra escola,


eu tenho que terminar os estudos pra ver se
arrumo um emprego, se não a gente não
consegue nada (...) O que eu espero do futuro,
olha eu nem sei, às vezes, acho (silêncio). Acho
que vou voltar a estudar, meu pai fala muito
pra mim voltar. Eu penso em fazer um curso
de computação, quem sabe eu consiga um

452 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


emprego, mas não vai adiantar, né? Tem que
terminar o colégio.

Os problemas de aprendizagem de Fabiano


identificados desde o início de sua vida escolar, aos três
anos de idade, apesar da exigência da dedicação especial
dos seus familiares, em especial a mãe, parecem não ter
interferido nas suas atividades sociais e familiares na
primeira infância.
Entretanto, as constantes repetências, a
necessidade de mudar de escola e o encaminhamento para
classe especial de deficientes mentais parecem ter
resultado no afastamento de seu irmão e o início do
isolamento social de Fabiano:
Durante o período escolar, Fabiano se recorda
que, apesar das dificuldades de aprendizagem, o domínio
das informações atuais por meio do acesso aos recursos
tecnológicos e de comunicação que a família lhe
proporcionava e a facilidade de comunicar-se oralmente
possibilitavam a ele o reconhecimento dos professores e
dos colegas de classe.
Quando descreve sua relação com os colegas de
classe, mostra o esforço para manter o relacionamento,
que se condicionava às condições materiais que possuía, o
que, de alguma forma, atraía seus pares, como os
equipamentos que possuía em casa ou o fato de adquirir
guloseimas para todos na escola:

Na escola, até nas classes que eu não estudava


eu fiz amizade. Os colegas iam em casa para
estudar comigo e a gente fazia a maior
bagunça, minha mãe ficava louca. A gente
ficava no computador, jogava vídeo-game, era
muito legal. Um dia, eu passei lá e os cara
falaram: Que saudades de você, não tem um

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 453


dinheirinho aí para a gente comprar
salgadinhos e duas cocas. Ah, aquele tempo era
bom, a gente ia até a cantina e eu comprava
salgadinho para todos os colegas. Eu mandava
a moça esquentar o salgadinho no microondas.

Mesmo assim, com todo esse esforço, Fabiano


não conseguiu manter nenhum vínculo de amizade
duradouro e após sair da escola regular, seu passatempo
é ficar na internet:
Quando não estou na escola especial, fico em
casa no computador, converso com gente diferente e faço
novas amizades. A minha mãe até fala: sai desse
computador. Mas se eu não ficar no computador vou fazer
o quê?
Por toda a sua trajetória conturbada e pelo fato
de possuir um certificado de ensino fundamental que não
corresponde ao que normalmente se exige de seu portador,
falar sobre os planos para futuro não parece ser uma tarefa
fácil e agradável para ele.
Em todos os momentos em que tal assunto era
colocado em pauta, sua expressão se tornava mais tensa e
ele dava um jeito de mudar de assunto, mas o pouco que
se colheu mostra que a expectativa de futuro se liga às
possibilidades de estudo, mas também, a uma certa
tranqüilidade em termos de subsistência pessoal,
certamente pelas condições econômicas familiares.
Daniel, por outro lado, devido à hidrocefalia e à
deficiência física, passou a primeira infância entre médicos
e hospitais, o que ocasionou uma diferenciação em relação
aos seus irmãos. Isto se comprova em seu relato de que,
quando criança, não participava das atividades de rua com
seus irmãos, pois não podia jogar futebol. Mas brincava
com a irmã e suas amigas dentro de casa, o que foi criando
um vínculo muito mais forte com ela do que com os demais:

454 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Mas parece que a demonstração de seu
potencial de aprendizagem foi restringindo esse apoio às
suas limitações físicas, o que permitiu que a família fosse
estabelecendo com ele uma relação produtiva entre apoio
às limitações e exigência de superações:

Minha mãe sempre falava que tinha que tentar


fazer as coisas sozinho, sem ficar dependendo
dos meus irmãos. Tá certo que eles me ajudam
muito, principalmente na locomoção, mas a
maioria das coisas eu faço sozinho.

Assim como na família, as lembranças de Daniel


sobre o período inicial de escolarização se voltam,
fundamentalmente, para o âmbito das relações sociais com
as professoras, mais do que para o que tenha aprendido.
Mesmo quando encaminhado para o ensino
regular, o seu potencial, aliado ao seu comportamento
adequado, vai lhe abrindo espaços de relações sociais
altamente satisfatórias:

Na segunda série, eu fazia toda a lição que a


professora passava e não fazia bagunça como
os outros alunos, assim a professora sempre me
elogiava e dizia que eu era um bom aluno

Assim, apesar de ter sido marcado, no início de


sua vida escola, como deficiente mental, o fato de poder
comprovar o seu potencial cognitivo vai constituindo uma
trajetória social diferente dos demais. Nesse sentido, pode-
se verificar como na escola o estigma da deficiência física
não tem o mesmo peso que o da deficiência mental, pois
Daniel é apoiado em suas limitações (que não interferiam
no âmbito acadêmico) e cria laços duradouros de amizade.
Sua trajetória de relações sociais é sui generis

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 455


entre os casos estudados: de um processo inicial de
segregação, com o encaminhamento para o ensino comum
e a sua alta “performance” escolar, Daniel vai se
incorporando ao meio social, onde não figurava nenhum
outro deficiente.
O contato com pessoas com problemas
semelhantes ao seu ocorreu no último ano do ensino médio.
Daniel, por intermédio do seu professor de Educação
Física, começou a participar de atividades promovidas por
uma instituição de atendimento às pessoas com deficiência
física (Associação dos Paraplégicos de Taubaté - APARTE).
Nessa instituição entrou em um time de basquete para
cadeirantes e durante dois anos seguidos participou de
campeonatos em várias regiões do estado de São Paulo.
Para Daniel, essa experiência reforçou a convicção de que
a deficiência física não o impediria de realizar os seus
sonhos.

Quando eu entrei na APARTE e vi pessoas com


problemas maiores do que o meu jogando tênis
de mesa e basquete eu pensei: acho que eu
também posso fazer e fiz. Nunca tinha pensado
nisso, mas depois que comecei a jogar basquete
eu vi que tinha capacidade, era só tentar. Tinha
vários colegas formados, um rapaz que era
advogado, outro estava fazendo faculdade, ai
eu vi que eu também, se quisesse, tinha
capacidade para fazer faculdade .

Assim, a partir do êxito escolar, as possibilidades


de Daniel, de construção de relações sociais positivas e
reforçadoras vão fazendo com que ele possa definir, com
objetividade e com consciência de suas limitações, objetivos
para sua vida, que envolvem a busca pelo emprego e a
carreira universitária:

456 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Agora o que eu mais quero é fazer uma
faculdade, arrumar um serviço, ser alguém na
vida. Quero trabalhar como técnico em
informática. Eu vou ver se consigo arrumar
uma bolsa, mas se não der, vou correr atrás de
emprego para conseguir pagar a faculdade.

Considerações finais

Elza, Viviane e Rosinete foram frutos de uma


trajetória marcada por famílias que ou não tinham
condições para buscar recursos mais apropriados para
seus filhos ou que por condições financeiras, não
conseguiram dar continuidade a uma trajetória que lhes
parecia mais adequada; como foi o caso de Viviane, que
teve suas dificuldades de aprendizagem identificadas antes
mesmo da entrada na escola e durante os primeiros anos
de sua vida escolar, contou com o apoio de serviços
especializados particulares.
O caso de Daniel, entretanto, parece sui generis,
pois que, oriundo do mesmo estrato social, conseguiu
superar as dificuldades e progredir na carreira escolar.
Apesar desses resultados parecerem
paradoxais revelam o caráter classificador e selecionador
da educação especial, tanto quanto da educação regular.
Para que o aluno possa progredir na carreira escolar,
parece que ele precisa comprovar que não possui
limitações, como foi o caso de Daniel.
O que a trajetória escolar dos demais parece
comprovar é que embora tenham freqüentado, por anos
a fio, classes especiais, elas serviram, basicamente, para
reiterar e atestar as suas dificuldades.
Portanto, parece, no que tange à escolarização
de alunos deficientes mentais, que para se conseguir

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 457


resultados escolares mais satisfatórios cabe aos alunos,
considerados como tais pelo próprio sistema de ensino, a
única saída: comprovar que não são deficientes.
Se em relação ao caso de Fabiano, cuja origem
social se diferencia dos outros quatro sujeitos, a marca da
deficiência mental parece ter sido mais forte do que as de
sua origem, não se pode deixar de lado, entretanto, o fato
de que talvez ele fosse, entre os cinco sujeitos estudados,
o que tivesse maiores prejuízos intelectuais, pois que
originário de família de classe média alta, teve reconhecidas
as suas diferenças desde a mais tenra idade e contou
durante toda sua trajetória com serviços de apoio
especializados, o que parece denotar características
pessoais mais visíveis.
O mesmo, entretanto, não se pode afirmar com
relação a Elza e a Rosinete, que só começaram a ser
notadas como “diferentes” a partir da entrada na escola,
isto é, foram as dificuldades escolares apresentadas que
se constituíram no móvel que culminou com seus
encaminhamentos para a classe especial de deficientes
mentais.
As próprias trajetórias escolares desses quatro
sujeitos demonstram o quanto foram diferentes, pois
enquanto nada restou às três alunas e a suas famílias do
que se adequarem ao que era possível, as condições
econômicas, sociais e culturais da mãe de Fabiano
possibilitaram que ela tomasse uma série de iniciativas
diferentes, na tentativa de evitar a desclassificação social
do filho deficiente.
Assim, embora todo esse esforço não tenha
culminado em resultados sociais evidentes, já que Fabiano,
agora na idade adulta, continua refém da educação
especial, produziu entre todos, mesmo ao se considerar
Daniel, um sujeito com mais visão crítica sobre a sua
própria trajetória do que os demais.

458 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Todavia, a análise dos dados nos aponta que o
processo de seleção e classificação escolar acompanhou os
sujeitos ao longo das suas trajetórias. As suas experiências
escolares, muito embora com vivências e resultados
diferenciados, foram marcadas por práticas escolares
guiadas por princípios homogeneizadores e fortemente
norteadas pela ideologia do esforço e do dom como
condição básica para o sucesso escolar.
As dificuldades apresentadas pelos alunos no
processo de escolarização parecem ter sido atribuídas
somente às suas características específicas e as práticas
escolares não foram levadas em consideração, o que
contribuiu para o fracasso daqueles que não conseguiram
se adaptar a elas.
Como os casos de Elza, Viviane e Rosinete que,
após experimentarem várias experiências de fracassos,
sem possibilidades de avaliarem as práticas escolares,
incorporaram paulatinamente a culpa pelos inúmeros
fracassos vividos na escola.
Paradoxalmente, a classe especial, que deveria
garantir-lhes a superação das dificuldades e o retorno ao
ensino regular, funcionou como um mecanismo eficiente
de exclusão escolar, pois, aparentemente, garantiu a
permanência das alunas na escola; porém não ofereceu a
elas possibilidades concretas de aprendizagem. As práticas
pedagógicas adotadas, além de desvalorizarem o
conhecimento escolar que resultou na estagnação do saber,
como já apontado nos estudos de Amaral (2004),
contribuíram para o isolamento social das alunas, para a
reiteração das dificuldades enfrentadas no ensino regular
e para a incorporação subjetiva da incapacidade de
aprender.
No caso de Fabiano, embora tenha freqüentado
uma classe especial que contava com recursos pedagógicos
mais sofisticados e o acompanhamento de terapeutas de

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 459


diversas áreas, as experiências escolares vividas nessa
classe não diferiram, substancialmente, das três ex-alunas.
No entanto, as condições dele de vida familiar lhe
possibilitaram avaliar a experiência escolar e não imputar
toda a culpa pelo fracasso às suas características pessoais.
Daniel, que apresentou uma trajetória escolar
diferenciada dos demais sujeitos, também não escapou ao
processo de seleção da escola, pois foi matriculado na classe
especial por apresentar uma imagem física diferente dos
demais alunos. Entretanto, na classe especial, ao conseguir
mostrar as suas capacidades intelectuais conquistou o
reconhecimento e a valorização dos professores e dos
colegas. Porém, o tipo de conteúdo que foi apreendido por
ele, durante os quatro anos de permanência no ensino
especial, apesar de ser considerado como um excelente
aluno, não diferiu do demais, pois todos foram
encaminhados para a 2ª série do ensino fundamental, o
que indica a pouca ênfase nos conhecimentos escolares
desenvolvidos na classe especial, mesmo para os alunos
considerados, pela própria escola, intelectualmente aptos
para aprendizagem.
Assim, nas classes especiais,
independentemente do tipo de escola (particular ou
pública), constata-se que as práticas metodológicas, de
organização e funcionamento, de forma consciente ou não
por parte de seus agentes, não tinham como eixo
fundamental básico a valorização do saber escolar.
Neste sentido, a seleção, a classificação e a
eliminação a que foram submetidos os sujeitos no processo
de escolarização, se, por um lado, estiveram relacionadas
aos processos de exclusão social a que estão sujeitas as
pessoas com deficiência, por outro, constituem um dos
mecanismos que exclui parte da população escolar, tais
como processos burocratizados de ensino, avaliações
normativas, homogeneização e inflexibilidade de ensino.

460 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Segundo Bourdieu (2003), a escola, em nome
da igualdade de oportunidades, na verdade, contribui para
a perpetuação das desigualdades sociais. O que se vê na
escola, na realidade, é uma igualdade formal servindo como
máscara que justifica a indiferença quanto às
desigualdades reais diante do ensino e da cultura
transmitida e exigida pela escola a qual se organiza de tal
forma que privilegia fundamentalmente as crianças das
famílias dos estratos sociais superiores.
Entretanto, no que se relaciona ao aluno com
deficiência mental, observamos que a exclusão escolar não
se limita à questão de origem social, mas parece se basear,
principalmente, na condição de incapaz vinculada à imagem
da pessoa com deficiência. A partir do momento em que
essa imagem é quebrada, parece que as chances de
progressão escolar se tornam mais palpáveis, muito
embora os mecanismos de seleção e eliminação não
desapareçam. Logo, se esse rótulo da deficiência mental
não é quebrado, ele acompanha o aluno mesmo depois de
ter saído da classe especial, o que conseqüentemente, o
leva a vivenciar experiências de fracasso escolar.
Ao analisar as diferentes trajetórias,
percebemos, pois, que há diferenças significativas na
maneira como os sujeitos absorveram as experiências de
fracasso após saírem da classe especial e retornarem ao
ensino comum.
Elza, após sair da classe especial, continuou
vivenciando experiências contínuas de fracassos na escola
e somente conseguiu ter certa progressão nos estudos em
decorrência do regime de progressão continuada, que não
foi suficiente para que ela conseguisse trilhar uma nova
trajetória escolar. O sentimento de incompetência que já
havia sido incorporado só aumentou na classe comum. As
diferenças com relação às colegas tornaram-se ainda mais
explícitas devido à grande defasagem idade–série; e o

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 461


abandono do sonho de melhorar suas condições de vida
por meio dos estudos se tornou inevitável.
Viviane avaliou positivamente as experiências
vividas na classe especial, teve uma curta trajetória na
classe comum. Viveu, juntamente com a família, a ilusão
de que sair da classe especial representava o fim dos
problemas escolares. Porém, quando se transferiu para o
ensino regular teve sua incapacidade de aprender reiterada
e retornou novamente para o ensino especial. Após entrar
na classe especial, a crença em suas capacidades de
conquistar uma vida autônoma e independente parece
muito distante, tanto para ela como para a família.
Rosinete, após passar, aparentemente, por um
período de sucesso escolar e depois por sucessivas
situações de repetência, viu reiterada na classe comum a
condição de deficiente mental e perdeu totalmente o
interesse pela educação escolar. Culpa os professores e os
colegas pelo seu fracasso e, ao mesmo tempo, parece não
confiar em suas capacidades pessoais.
E mesmo Fabiano que, após sair da classe
especial, foi transferido para uma escola que parece ter se
transformado para atender às suas necessidades especiais,
ao não conseguir acompanhar o mesmo ritmo dos
trabalhos escolares dos colegas de classe, se sente culpado
pelas dificuldades enfrentadas e imputa a si mesmo a
responsabilidade pelos fracassos vividos. Após essa
experiência, muito embora tenha conseguido receber um
certificado de conclusão do ensino fundamental, parece não
mais acreditar nas suas possibilidades intelectuais de
retornar aos estudos e se submete às iniciativas da mãe.
Daniel, que também passou por situações de
repetências após sair da classe especial, ao contrário dos
outros sujeitos, conseguiu superar as dificuldades e
prosseguiu regularmente seus estudos. Daniel, na escola,
além do apoio dos professores, nunca perdeu a confiança

462 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


em suas capacidades pessoais, mas só pôde concretizar
essa trajetória na medida em que conseguiu comprovar
que não tinha limitações intelectuais.
Portanto, mesmo ao considerarmos as
singularidades das trajetórias, nos quatro primeiros casos,
observamos que os processos de escolarização produziram
sujeitos que foram se conformando ao rótulo de incapaz e
assumiram a responsabilidade pelo fracasso sofrido ao
longo de suas trajetórias escolares; apesar de terem
freqüentado uma modalidade de ensino que,
pretensamente, deveria contribuir para a superação de
suas dificuldades.
Diante disso, a baixa escolaridade alcançada, o
isolamento social a que foram submetidos, tanto no âmbito
familiar como escolar, as poucas chances de serem aceitos
em outros grupos sociais e a imobilização pessoal gerada
em decorrência dos inúmeros fracassos sofridos ao longo
da trajetória, os deixam sem muita perspectiva de vida
escolar e/ou social, ou de trabalho.
Assim, as trajetórias de todos eles têm em
comum o fato de que, tal como afirmam Bourdieu e
Passeron (1982, p. 70), os processos de escolarização a
que se submeteram parecem comprovar que o sistema
de ensino produz e reproduz “pelos meios próprios da
instituição, as condições institucionais do
desconhecimento da violência simbólica que exerce, isto
é, do reconhecimento de sua legitimidade como
instituição pedagógica”.

Referências Bibliográficas

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Mental Leve: processos de escolarização e subjetivação.
São Paulo/USP. Doutorado em Psicologia.

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do interior. In: NOGUEIRA. M. A. e CATANI. A. (orgs.).
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populares: as razões do improvável. São Paulo: Ática.

______. (2004). Retratos Sociológicos: Disposições


e Variações Individuais/trad. Patrícia Chittoni Ramos
Reuillard e Didier Martin. Porto Alegre: ArtMed.

464 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


ZAGO, Nadir (2000). Processos de escolarização dos
meios populares - As contradições da obrigatoriedade da
escola. In: NOGUEIRA, M. A; ROMANELLI, G. e ZAGO,
N. (orgs.). Família e escola: trajetória de escolarização
em camadas médias e populares. Petrópolis: Vozes.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 465


Anexo 1

Quadro 1- Trajetórias escolares dos sujeitos

Elza Viviane Rosinete Daniel Fábio

Idade de ingresso na Não 6 anos Não Não 3 anos


educação infantil freqüentou freqüentou freqüentou

Series cursadas na Jardim e Pré- Não Não Maternal


educação infantil escola freqüentou freqüentou
Jardim
Pré-escola

Idade de ingresso no 8 anos Não ingressou 7 anos 9 anos 7 anos


ensino fundamental

a
Séries cursadas no Não freqüentou 1 série Não 1a e 2a séries
ensino fundamental freqüentou
a a
antes do 1 e 2 séries
encaminhamento
para classe especial

Número de 2 repetências Não freqüentou nenhuma nenhuma 4 repetências


repetências antes do
encaminhamento
para classe especial

Idade de ingresso na 11 anos 8 anos 9 anos 13 anos


classe especial
10 anos

Tempo de 7 anos 5 anos 3 anos 3 anos 4 anos


permanência na
classe especial

Série freqüentada 2a série 2a série 2a série 2a série 5a série


após sair da classe
especial

Número de Três Não freqüentou Duas Duas


repetências após repetências repetências repetências
freqüentar classe
especial

Nível de 4a série do 4a série do 8a serie do Concluiu o Concluiu o


escolaridade ensino ensino ensino ensino ensino
alcançado/ Tipo de fundamental- fundamental- fundamental- médio- fundamental-
escola ensino regular escola especial / ensino regular ensino Supletivo
educação de regular
jovens e adultos

466 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


Anexo 2

Quadro 2- Características sócio-familiares

Elza Viviane Rosinete Daniel Fabiano

Idade 29 anos 28 anos 25 anos 26 anos 22 anos

Local de Tremembé-SP Taubaté-SP Parati-RJ Tremembé-SP Taubaté-SP


nascimento

Posição de 5a filha de 9 1a filha de 2 2a filha de 4 2o filho de 4 2o filho de 2


nascimento

Nível de Concluiu a 4a Concluiu a 4a Concluiu a 7a Concluiu o Concluiu o


escolaridade série do ensino série do ensino série do ensino ensino médio ensino
fundamental fundamental fundamental fundamental

Local da Periferia de Periferia de Periferia de Periferia de Região central


residência Taubaté- Taubaté- Taubaté- Taubaté- da cidade de
próximo à zona próximo ao próximo à zona próximo à zona Taubaté- Zona
rural centro da rural rural nobre
cidade

Numero de 4 pessoas 4 pessoas 6 pessoas 6 pessoas 3 pessoas


pessoas que
moram na
residência

Pai: Idade, 59 anos 54 anos 67 anos 64 anos 50 anos


escolaridade e
profissão 4a serie do 4a série do 2a série do 3a série do Ensino Superior
ensino ensino ensino ensino
fundamental fundamental fundamental fundamental Engenheiro
Mecânico
Guarda Operário Barbeiro Auxiliar de
Municipal aposentado cozinha

Mãe:idade, 57 anos 50 anos 55 anos 50 anos 50 anos


escolaridade e
profissão Analfabeta 4a série do 4a série do 4a série do Mestrado
ensino ensino ensino
Do lar fundamental fundamental fundamental Professora
Universitária
Do lar Do lar Empregada
doméstica

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 467


Notas
1
Palestra de abertura do I Encontro de Pesquisa sobre Inclusão/
Exclusão Escolar e Desigualdades Sociais, realizado pelo
Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação: História,
Política, Sociedade, da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, em 27 de novembro de 2006.

2
Docente do Instituto de Psicologia da Universidade de São
Paulo.

3
Sobre o discurso ideológico como discurso lacunar, veja Chaui.
M. de S. Cultura e Democracia. O discurso competente e outras
falas. São Paulo: Moderna, 1981, especialmente o ensaio Crítica
e Ideologia, p. 15-38.

4
Segundo o autor, elas não se diferenciam qualitativamente,
pois a parcela desnecessária pressiona no sentido de fazer com
que a necessária tenha também reduzido ou nulo poder de
barganha no mercado de trabalho e seja também instavelmente
incorporada no processo produtivo global e fracamente
remunerada.

5
Veja, por exemplo, os volumes reunidos por Paulo Eduardo
Arantes e Iná Camargo Costa (coords.) na Coleção Zero à
Esquerda. Petrópolis: Vozes/Fundação Perseu Abramo, 1998.

6
O texto original em espanhol é o seguinte: las escuelas
ordinarias con esta orientación integradora representan el
media más eficaz para combatir las actitudes discriminatorias,
(Conferencia Mundial sobre Necesidades Educativas
Especiales, 1994, p. ix)

7
A indicação da data diz respeito à coleta de informações na
página do órgão, mas não de sua inserção, pois esta informação
não faz parte da sistemática de qualquer informação colhida
via Internet.

8
Na redação original em espanhol: (..) apelamos (…) a los

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 469


gobiernos a defender el enfoque de escolarización integradora
y apoyar los programas de enseñanza que faciliten la educación
de los alumnos y alumnas con necesidades educativas
especiales; (Conferencia Mundial sobre Necesidades Educativas
Especiales, 1994, p. x).

9
Redação original em español: garantizar que, en un contexto
de cambio sistemático, los programas de formación del
profesorado, tanto inicial como continua, estén orientados a
atender las necesidades educativas especiales en las escuelas
integradoras. (Conferencia Mundial sobre Necesidades
Educativas Especiales , 1994, p. x).

10
A junção desses termos significa uma tentativa de superação
da dicotomia.

11
Nos limites deste texto, estou trabalhando apenas com um
extrato de minha Tese de Doutoramento, intitulada “As
relações entre ensino, aprendizagem e deficiência mental,
desenhando a cultura escolar” (2003).

12
Para este estudo, adoto a terminologia, alunos com indicadores
de necessidades especiais, pois no caso específico das redes de
ensino investigadas, esses alunos não são identificados como
deficientes mentais, mesmo depois da avaliação
psicopedagógica, realizada por psicólogo e pedagogo. Essa
avaliação é concluída apenas com a indicação do serviço a ser-
lhes oferecido. Entretanto, são as escolas, mais precisamente,
os professores, aqueles que formulam os indicadores da
deficiência mental desses alunos, o que por si só já configura
uma idéia da dificuldade ou incapacidade.

13
Os nomes das escolas, bem como dos alunos são fictícios.

14
A ideologização do currículo é entendida, nesta pesquisa, por
meio da intervenção do Estado com a publicação do documento
intitulado “Parâmetros Curriculares Nacionais: Adaptações
Curriculares” para o universo da escola inclusiva. Já a
biologicidade do currículo se dá na consideração da deficiência

470 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


como delineadora dos limites e potencialidades de
aprendizagem e ensino.

15
Espécie de lousa em fibra de carbono, que utiliza caneta
esferográfica no lugar de giz.

16
Foi conservada a grafia original.

17
Tese de doutorado apresentada no Programa: Educação:
História, Política, Sociedade, da PUC/SPsob a orientação da
Professora Dra. Alda Junqueira Marin, em julho de 2005.

18
Sobre a ambigüidade na educação ver PEREIRA, G. R. de M.
Servidão ambígua: valores e condição do magistério. São Paulo:
Escrituras, 2001. (Coleção Ensaios Transversais).

19
Segundo consta do Informativo: Atos do Conselho Estadual de
Educação de Santa Catarina (Santa Catarina, 1996, p. 700), o
Programa Magister “[...] é exclusivo para professores da Rede
Pública Municipal e Estadual num percentual de 30% e 70%,
respectivamente”.

20
Também foi oferecida a habilitação como Curso de
Complementação que se destinou a formar professores já
graduados, que atuavam na Educação Especial, mas sem a
habilitação específica. Este, porém, não será foco desta análise.

21
Além do EED e do MEN, mais quatro departamentos ministram
aulas no curso de Pedagogia (regular): o Departamento de
Psicologia (com a disciplina Psicologia da Educação I); o
Departamento de Sociologia (com a disciplina Sociologia Geral
– A); o Departamento de História (com a disciplina História da
Educação I); e o Departamento de Letras (com a disciplina
Literatura infanto-juvenil). Para efeito dessa análise, resolvi
analisar os dados referentes somente aos professores do EED e
do MEN.

22
Sobre quatro professores não há registro de formação. Também
é importante salientar que houve casos em que o mesmo

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 471


professor ministrou até sete disciplinas diferentes.

23
Não houve nenhum professor efetivo da UFSC que tenha
ministrado aulas nas disciplinas da habilitação específica de
educação especial, do Programa Magister.

24
Dados obtidos no ETUFSC, pelo site www.ufsc.br, em 24 de
setembro de 2003. Além desse espaço, situado no bairro
Trindade da cidade de Florianópolis, fazem parte da UFSC o
espaço destinado ao curso de Agronomia (situado no bairro
do Itacorubi); a Ilha de Anhatomirim, com 45 mil metros, onde
se localiza a Fortaleza de Santa Cruz (local destinado aos estudos
da aqüicultura e de mamíferos aquáticos); Fortaleza de Santo
Antônio e de São José da Ponta Grossa. Nas três fortalezas estão
sendo desenvolvidos trabalhos de Turismo Educativo.

25
A FCEE apresenta, hoje, uma outra organização. Porém,
mantém sua organização por Centros de Atendimento e a maior
parte desses Centros permanece inalterada, cf. home page:
http://www.fcee.sc.gov.br consultada em fevereiro de 2007.26
Os dados referentes ao número de alunos foram obtidos no
Censo Educacional Catarinense. Quanto ao número específico
de professores, não há dados, na FCEE ou no censo catarinense.
Por isso, utilizamos os dados referentes ao número total de
funcionários da FCEE, dado este cedido pelo Diretor-Geral da
instituição.

26
Os dados referentes ao número de alunos foram obtidos no
Censo Educacional Catarinense. Quanto ao número específico
de professores, não há dados, na FCEE ou no censo catarinense.
Por isso utilizamos os dados referentes ao número total de
funcionários da FCEE, dado este cedido pelo Diretor-Geral da
instituição.

27
Esta observação ocorreu durante o mês de setembro de 2003.

28
As disciplinas optativas não serão analisadas nesta
investigação, pois se constituem em um rol de disciplinas cujos
dados não foi possível sistematizar. Além disso, como a

472 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


modalidade emergencial não conta com essa categoria de
disciplinas, inviabiliza-se, nos termos desta pesquisa, a
possibilidade de cotejamento entre as modalidades de curso.

29
Observe-se que em ambas as modalidades é cumprida a carga
horária mínima exigida pelo Ministério da Educação para o
curso de Pedagogia.

30
A análise do histórico escolar deu-se em função de que, com os
dados encontrados sobre a grade curricular, ementas e
programas das disciplinas, não ficou claro quais disciplinas
efetivamente foram ministradas nessa modalidade.

31
Faz-se necessário observar como as universidades irão
reorganizar seus cursos de pedagogia para então buscarmos
perceber como essa formação será oferecida.

32
Para maior aprofundamento sobre esta questão, consultar “A
produção social da identidade anormal” (BUENO, 2001).

33
“O capital cultural existe sob três formas a saber: a) no estado
incorporado, sob a forma de disposições duráveis do
organismo. Sua acumulação está ligada ao corpo, exigindo
incorporação, demanda de tempo, pressupõe um trabalho de
inculcação e assimilação...b) no estado objetivado, sob a forma
de bens culturais (quadros, livros, dicionários, instrumentos e
máquinas). c) no estado institucionalizado, consolidando-se
nos títulos e certificados escolares que, da mesma maneira que
o dinheiro, guardam relativa independência em relação ao
portador do título” (NOGUEIRA e CATANI, 1998, p. 10).

34
O conceito de habitus pode ser entendido como: “disposição
incorporada de valores, normas, gostos, entre outros que estão
presentes no nosso cotidiano, que formam nossa consciência
incorporada sem que nos demos conta disso” (MICHELS, 2004,
p. 8).

35
Segundo Nogueira (1998, p. 53) pode-se classificar as escolas
em: estabelecimentos de excelência - são tradicionais, sua

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 473


reputação apóia-se na qualidade do ensino fornecido e no rigor
da disciplina e a exigência acadêmica parece associada à forte
seleção na entrada, recusando alunos com histórico
insuficiente; estabelecimentos para classes altas - aproximam-
se do modelo anterior quanto à clientela, porém não se
caracterizam pela excelência escolar, mas pela garantia de um
meio social seleto e por um tipo de prática que reforça o
pertencimento de elite (dança clássica, concerto, teatro);
estabelecimentos inovadores - caracterizam-se pela busca de
inovação pedagógica, freqüentado por famílias “modernistas”
das camadas favorecidas; estabelecimentos de apoio - recebem
alunos que necessitam de direção e acompanhamento para
levá-los ao sucesso escolar; e estabelecimento de rattapage -
funcionam como reforço escolar e psicológico para alunos em
situação de fracasso escolar.

36
Segundo Nogueira, essa classificação foi realizada a partir de
alguns indicadores que mostram que esta população tem acesso
a recursos materiais indisponíveis para a grande maioria, como
é o caso das residências dos participantes: mansões ou amplos
apartamentos de propriedade da família, com empregados
domésticos em número variado, decorados e mobiliados com
certo luxo, alguns localizados nos bairros mais nobres da cidade
onde o preço do metro quadrado é sabidamente mais elevado.
Acrescente-se a isso a posse, muito freqüente, de residências
secundárias (casas de campo, de praia, fazendas, etc)
(NOGUEIRA, 2002 p. 51).

37
A designação Portadores de Necessidades Educativas Especiais
foi criada com o objetivo de situar o processo educativo nas
necessidades que o aluno apresenta. Procurou-se, assim, tirar
o estigma de deficiência, porém, no meu entendimento, além
de continuar rotulando o termo é muito abrangente e
inespecífico.

38
A Av. Rubens de Arruda Ramos chamada também de Av. Beira
Mar Norte foi tradicionalmente considerada bairro da
Burguesia, a partir das mudanças implementadas no início do
século XX na capital Catarinense o bairro denominado até então
de “Praia de Fora” ficou popularmente conhecido pelas

474 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


chácaras onde a elite ia passar os finais de semana e que
posteriormente viraram residência fixa dos mais afortunados
que construíram verdadeiros palacetes para usufruir dos
banhos de mar que naquela época haviam-se tornado um hábito
social entre as classes abastadas. (ARAUJO, 1989).

39
Florianópolis foi por muito tempo considerada o berço do
funcionalismo púbico, pois, sendo a capital administrativa do
Estado, tinha em sua população grande número de empregos
públicos.

40
Embora não exista, na legislação atual, nada que indique o uso
desta terminologia, tanto na Diretoria de Ensino, quanto na
Secretaria Municipal, nas escolas e entre os professores esta é
a designação utilizada para aqueles alunos que apresentam
baixo rendimento escolar, quer seja relacionado a condições,
disfunções, limitações ou deficiências, quer seja não
proveniente de causas orgânicas, o que, em parte, corresponde
à conceituação de “alunos portadores de necessidades
educacionais especiais” definida pelo Conselho Nacional de
Educação (BRASIL. CNE, 2001, inciso I do Artigo 5º). Como
esta é a terminologia utilizada no município e na escola em que
realizei esta pesquisa, ela será por mim utilizada para designar
os sujeitos nela envolvidos.

41
Alors que l’école est plutôt moins inégalitaire, qu’autrefois (2),
elle apparaît comme beaucoup plus injuste dans la mesure où
c’est au sein même du parcours scolaire que se forment les
inégalités.

42
marché competitive, d’une communauté d’éléves et d’une
bureaucratie.

43
L’école produit aussi des individus ayant un certain nombre d’
attitudes et de dispositions. À cet égard, l’école a longtemps
été considérée comme une intitution de socialisation, un
appareil identifié à valeurs communes et capable d’en assurer
l’intériorisation, par les connaissances et la forme même de la
relation pédagogique, afin de modeler des personnalités.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 475


44
celles qui distinguent l’univers familial et l’univers scolaire, la
classe et les groupes d’élèves.

45
A lógica da integração é, para os autores, definida por uma
participação; uma parte de sua identidade é a expressão
subjetiva de sua integração social; a lógica estratégica se define
pela limitação dos recursos e dos interesses disponíveis para a
ação; e a lógica da subjetivação definida pelo distanciamento
do indivíduo de si mesmo e de uma capacidade crítica que
fazem dele um sujeito.

46
La trajectoire scolaire se présente alors comme une succession
d’ “étapes”, de socialisation, au sein de situations socialement
contrastées, dans lesquelles l’individu s’efforce de former une
expérience en essayant d’agencer ensemble les exigences de l’
individu rationnel et celles de l’individu “authentique”.

47
N. de R.T. O verbo utilizado pelo autor é néantiser, relativo ao
substantivo néantisation.

48
Percurso (mais ou menos longo, nesse ou naquele ramo de
ensino, nesse ou naquele estabelecimento) efetuado pelo aluno
ao longo de sua carreira escolar (N. do R.).

49
DM é a abreviação usualmente utilizada para designar a
deficiência mental.

50
Trata-se de arquétipo profissional, aqui entendido como tipo
de pessoa que apresenta uma síntese de diversos traços de
personalidade, aptidões, interesses e valores, que formam um
tipo ideal de profissional.

51
A denominação PEB I refere-se ao professor de educação
básica, habilitado para lecionar nas quatro primeiras séries do
ensino Fundamental, enquanto a denominação PEB II refere-
se ao professor habilitado para lecionar nas quatro últimas
séries do ensino Fundamental e em todas as séries do Ensino
Médio, ambas pertencentes ao quadro do magistério da
Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, a denominação

476 DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise


PDI refere-se ao professor habilitado em educação infantil
pertencente ao quadro do magistério da Secretária Municipal
de São Paulo.

52
“Com isso produzimos textos de configurações singulares;
textos que, no entanto, não são isolados entre si por duas razões
ao menos: por um lado, trabalham com as mesmas orientações
interpretativas, e, por outro, o texto de cada perfil desempenha
um papel no texto de todos os outros perfis¹”. (LAHIRE, 1997,
p. 71).

53
O nome dessa entrevistada, assim como dos demais, é fictício
para evitar a sua identificação.

54
Pseudônimos de nossos entrevistados.

DEFICIÊNCIA E ESCOLARIZAÇÃO: novas perspectivas de análise 477

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