Nos Dominios de Exu e Xango o Axe Nunca Se Quebra Irineia Santos

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UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS


DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

IRINÉIA MARIA FRANCO DOS SANTOS

Nos Domínios de Exu e Xangô o Axé Nunca se Quebra:


Transformações Históricas em Religiões Afro-Brasileiras,
São Paulo e Maceió (1970-2000)

São Paulo
2012
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO
FACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM HISTÓRIA SOCIAL

IRINÉIA MARIA FRANCO DOS SANTOS

Nos Domínios de Exu e Xangô o Axé Nunca se Quebra:


Transformações Históricas em Religiões Afro-Brasileiras,
São Paulo e Maceió (1970-2000)

Tese apresentada à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências


Humanas da Universidade de São Paulo para a obtenção do
título de Doutor em Ciências, na área de concentração de
História Social.

Orientador: Prof. Dr. Wilson do Nascimento Barbosa

São Paulo
2012

2
FICHA CATALOGRÁFICA

Autorizo a reprodução e divulgação total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio
convencional ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.

Santos, Irinéia Maria Franco dos.


“Nos Domínios de Exu e Xangô o Axé Nunca se
Quebra”: Transformações Históricas em Religiões
Afro-Brasileiras, São Paulo e Maceió (1970-2000).
São Paulo, 2012. 350 p.
Tese de Doutorado, apresentada à Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas/Departamento
de História/USP – Área de concentração: História
Social.
Orientador: Barbosa, Wilson do Nascimento.
1. História Afro-Brasileira. 2. Religiões Afro-
Brasileiras. 3. Religião e Movimentos Sociais

3
Resumo

Esta tese apresenta uma análise sobre as transformações históricas nas religiões afro-
brasileiras (Candomblé e Umbanda) em São Paulo e Maceió, no período 1970 a 2000. Procurou-se
analisar tais transformações em suas relações internas e externas, dos terreiros e tendas entre si e
com o ambiente social, político e econômico em que estavam inseridos. Foram identificadas como
as transformações mais relevantes aquelas que dizem respeito: (1) às relações estabelecidas com os
espaços e as instituições públicos, sagrados e profanos na grande cidade; (2) ao aumento da
perseguição por parte das igrejas neopentecostais; (3) à folclorização das religiões afro-brasileiras;
(4) aos conflitos internos a respeito do acesso aos “segredos dos cultos” e da transmissão dos
conhecimentos mágico-religiosos; (5) às mudanças e adaptações realizadas nos rituais afro-
brasileiros expressos como contradições entre tradição e a inovação litúrgica e o papel dos gêneros
masculinos e femininos neles; e, (6) ao aumento de ações de valorização e resgate da memória e
história da presença religiosa negra nesses locais. A ideia central defendida sobre tais
transformações seria a de que a preocupação de suas lideranças com a “perda ou a quebra do axé”,
ou seja, sobre a possibilidade de continuar a reprodução no longo prazo das religiões afro-
brasileiras, não poderia ser compreendida sem levar em consideração os elementos estruturais das
mesmas. A cosmovisão e a ideologia religiosa afro-brasileira constituíram-se no Brasil como
“recriações continuadas”. Nelas as rupturas de processo, os confrontos e a luta política pela
existência dos cultos, manteve uma criatividade renovadora das formas (estratégias) como essas
religiões se estabeleceram e se mantiveram nos espaços urbanos no Nordeste e no Sudeste. Por
outro lado, os processos de urbanização e modernização capitalista em São Paulo e Maceió
tenderam a acelerar tais mudanças e a criar inseguranças sobre os modelos de culto que poderiam se
adequar a esses ambientes. O estudo histórico de tais religiões deveria levar em conta as forças
simbólicas e ideológicas expressas nas suas mitologias, como metáforas explicativas dos seus
mecanismos de funcionamento religioso, construídos e reconstruídos continuamente. Por fim, ao se
afirmar e refletir a historicidade das religiões afro-brasileiras espera-se contribuir para a criação de
referências para o seu estudo e para a desconstrução da subalternização e das concepções racistas
ainda prevalecentes na historiografia brasileira.

Palavras-chaves
História Afro-Brasileira; Religiões Afro-Brasileiras; História da Cultura Negra; Movimentos
Sociais

4
Abstract

This thesis presents an analysis on the historical transformations in the afro-Brazilian


religions (Candomblé and Umbanda) in São Paulo and Maceió, at period 1970 up to 2000. In it was
looked to analyze such transformations in its internal and external relations, of the “terreiros” and
tents between itself and with the social environment, economic politician and where they were
inserted. Most excellent those had been identified as the transformations that say respect: (1) to the
relations established with the spaces and the public institutions, sacred and profane in the great city;
(2) to the increase of the persecution on the part of the neopentecostais churches; (3) to the
folclorização of the religions afro-Brazilians; (4) to the internal conflicts regarding the access to the
“secrets of the cults” and the transmission of the magician-religious knowledge; (5) to the changes
and adaptations carried through in the rituals express afro-Brazilians as contradictions between
tradition and the liturgical innovation and the paper of the masculine and feminine sorts in them; e,
(6) increase of action of valuation and rescue of the memory and history of the black religious
presence in these places. The central idea defended on such transformations would be of that the
concern of its leaderships with the “loss or in addition axé”, that is, on the possibility of
reproduction in long stated period of the religions afro-Brazilians, it could not be understood
without taking in consideration the structural elements of the same ones, a time that the cosmovisão
and the religious ideology afro-Brazilian, had consisted in Brazil as “continued recreations”. In
them the ruptures of process, the confrontamentos and the fight politics for the existence of the
cults, kept a renovator creativity of the forms (strategies) as these religions if they had established
and if they manteram in the urban spaces north-eastern and the Southeast. On the other hand, the
processes of urbanization and capitalist modernization in São Paulo and Maceio had tended to speed
up such changes and to create unreliability on the cult models that could be adjusted to these
environments. The historical study of such religions it would have to take in account the symbolic
forces and ideological express in its mythologies, as explicative metaphors of its mechanisms of
religious functioning, constructed and reconstructed continuously. Finally, to if affirming and
reflecting the historicity of the religions afro-Brazilians one expects to constitute references for its
study and the deconstructions of subalterniations and the racist conceptions still revilements in the
Brazilian historiography.

Keywords

Afro-Brazilian History; Afro-Brazilian Religions; History of Black Culture; Social Movements

5
Agradecimentos

Durante os quase quatro anos de pesquisa e escrita deste trabalho tive o auxílio inestimável
de muitas pessoas. Agradeço em primeiro lugar ao meu orientador e mestre Prof. Dr. Wilson do
Nascimento Barbosa, por ser a voz inspiradora durante toda a minha formação acadêmica. Aos pais
e mães de santo, aos umbandistas e candomblecistas de São Paulo e Maceió, que me receberam
durante a etapa da pesquisa de campo, doaram seu tempo para entrevistas ou tiveram toda a
gentileza e paciência em responder às curiosidades desta pesquisadora. Em especial agradeço a Pai
Dalmo Ribas, Sr. José Humberto Gonçalves, Pai Alexandre Ramos, Pai Sidney de Xangô, Mãe
Vera, Mãe Silvia, Dorli Ribeiro, Diego dos Anjos, Ekedi Ana Maria, Pai Célio de Iemanjá, Paulo
Victor, José Aparecido – meu querido aluno e amigo – e Pai Manoel Xoroquê. Agradeço muito
também ao historiador Clébio Correia pela troca de informações e fontes sobre os xangôs
maceioenses.
Aos professores, amigos e colegas do Curso de História da UFAL, Ana Mónica Lopes, Gian
Carlo de Melo, Clara Suassuna Fernandes, Raquel Parmegiani, Célia Nonata, Osvaldo Maciel, José
Alberto Saldanha, Alberto Lins Caldas, que ajudaram na divisão de tantas tarefas e carga horária,
troca de ideias e incentivo, carinhosamente agradeço. Aos amigos Ana Paula Palamartchuk e
Antonio Filipe Pereira Caetano, por tudo, ontem, hoje e sempre, meu respeito e afeto. Aos meus
alunos e orientandos, agradeço também pelas inspirações de reflexão em sala de aula e reuniões de
grupo. Aos bolsistas Alberto Nogueira e Renata Macedo pela dedicação na busca de fontes da
imprensa que auxiliaram esta pesquisa.
Aos companheiros da Sankofa, Muryatan Barbosa, Maria Rosa Ribeiro, Rodrigo Bonciani,
Flávio Francisco, Eduardo Januário, Thiago Sapede – este trabalho deve muito aos nossos ideais
compartilhados.
Aos meus amigos próximos e distantes: Vitor Eduardo, Cecília Ipar, Mônica Gama, Adriana
Belmonte, Paulo Sérgio, Leandro Gomes, Marcelo Billi, Neide Carneiro, Josélia Aguiar, Carolina
Kallas, minha gratidão pelas alegrias e dores divididas.
À minha família querida, meus pais Manoel e Olegária, e meus irmãos Anderson e Marcos,
minhas cunhadas Regiane e Dirley, minha sobrinha Camila, pela paciência com meus sumiços e
mau humor nas horas da escrita. Pelo amor que nos une na distância.
Ao Luís, por me ajudar a seguir em frente.

6
Dedicatória

Para o professor Wilson,


por todo “axé e fundamento”

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Retorno
“Aprimorar-se em África”
É cair no seu espírito dentro de si mesmo
Viajar nas trevas do desconhecido
E pertencer-se ao que não é de si
No miolo do antimundo
Voltar de modo sofrido
Por se trazer de volta
E poder encarar o ver-se no não se ver
Conhecer-se enquanto oposto de si mesmo
E aparentemente
Pretender não ser...
(Wilson Barbosa, São Paulo, 20/10/2010)

(...) Aprendo certas visões, certas fantasias, sobretudo certas


revelações configuradas nos invocados símbolos do
candomblé. Não é nada folclórico, sou contrário ao que a
sociedade branca costuma rotular de “primitivo”. Tenhamos
em conta que as religiões de origem européia só cultuam, de
modo geral, deuses mortos. Religião africana é diferente. Os
orixás (divindades) descem de suas moradas celestes para
ganhar corpo humano: eles dançam, bebem, comem. Pura
vitalidade, o candomblé não é o “ópio do povo”. Seus deuses
são dinâmicos, incorporam um profundo sentido de libertação.
São divindades históricas, envolvidas na dinâmica libertadora
do negro. Em minha pintura procuro distinguir entre os
símbolos e mitos, que só existem como tradição, e aqueles que
preenchem necessidades do nosso tempo, podendo abrir uma
perspectiva no futuro. (...)
(Abdias do Nascimento, Folha de São Paulo, 25 de junho de
1978)

8
LISTA DE TABELAS E QUADROS

Tabela 1: Correspondências entre os orixás no Candomblé e na Umbanda........................................ p. 72


Tabela 2: Aspectos históricos das religiões afro-brasileiras em São Paulo (1900-1950).................... p. 115
Tabela 3: Aspectos históricos das religiões afro-brasileiras em São Paulo (1960-1980).................... p. 145
Quadro de valores e práticas na percepção da hierarquia religiosa afro-brasileira (1930-2000)......... p. 175
Tabela 4: Aspectos históricos das religiões afro-brasileiras em São Paulo (1990-2000).................... p. 189
Tabela 5: Aspectos históricos das religiões afro-brasileiras em Maceió (1900-1950)........................ p. 206
Tabela 6: Aspectos históricos das religiões afro-brasileiras em Maceió (1960-1980)........................ p. 228
Tabela 7: Orixás e sincretismo católico em Maceió (1950-2000)....................................................... p. 237
Tabela 8: Aspectos históricos das religiões afro-brasileiras em Maceió (1990-2000)........................ p. 267

9
LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Exu africano e assentamento de Exu no Brasil..................................................................... p. 61


Figura 2: Exus na Umbanda: Rei Sete Encruzilhada e Zé Pelintra...................................................... p. 63
Figura 3: Oxé de Xangô, Nigéria......................................................................................................... p. 66
Figura 4: Moisés de Michelangelo – representação umbandista de Xangô-São Jerônimo.................. p. 67
Figura 5: Peças da Coleção Perseverança, IHGAL.............................................................................. p. 68
Figura 6: Ancestral feminina, bronze do antigo Benin, Nigéria.......................................................... p. 82
Figura 7: Irokè-Ifá, Nigéria.................................................................................................................. p. 95
Figura 8: Folheto Profa. Nancy, Maceió.............................................................................................. p. 100
Figura 9: Folha da Noite, 24/10/1927.................................................................................................. p. 106
Figura 10: Folha da Noite, 28/02/1940................................................................................................ p. 108
Figura 11: Capa do primeiro número do Jornal Aruanda..................................................................... p. 121
Figura 12: Políticos apoiados pelo Jornal Aruanda.............................................................................. p. 135
Figura 13: Caboclos Rompe Mato e Pena Roxa, São Paulo................................................................ p. 169
Figura 14: Caboclos em sessão de desenvolvimento com médiuns, São Paulo................................... p. 169
Figura 15: Quadro de Xangô, São Paulo.............................................................................................. p. 178
Figura 16: Kátia de Oxalá saudando hierarquia do terreiro, São Paulo............................................... p. 183
Figura 17: Jornal de Alagoas, Reportagem Bruxaria sobre o Quebra de 1912.................................... p. 194
Figura 18: Membros da Federação Zeladora dos Cultos em Geral do Estado de Alagoas, 1972........ p. 211
Figura 19: Ilustração do Jornal de Alagoas.......................................................................................... p. 222
Figura 20: Xangô – Catálogo da Coleção Perseverança...................................................................... p. 239
Figura 21: Festa das Águas, Maceió (várias fotos).............................................................................. p. 246
Figura 22: Mãe Vera, Maceió.............................................................................................................. p. 249
Figura 23: Jovens do terreiro de Mãe Vera apresentando os paramentos dos orixás, Maceió............. p. 249
Figura 24: Afoxé da Casa de Iemanjá, Maceió................................................................................... p. 250
Figura 25: Panfleto evangélico anti-xangô........................................................................................... p. 250
Figura 26: Oroboro apresentado como movimento cósmico infinito.................................................. p. 262

10
Sumário
Resumo................................................................................................................................................4
Abstract...............................................................................................................................................5
Agradecimentos..................................................................................................................................6
Dedicatória..........................................................................................................................................7
Epígrafe...............................................................................................................................................8
Lista de Tabelas..................................................................................................................................9
Lista de Figuras................................................................................................................................10

Índice.................................................................................................................................................12
Introdução.........................................................................................................................................13
Capítulo 1..........................................................................................................................................28
Capítulo 2..........................................................................................................................................76
Capítulo 3........................................................................................................................................105
Capítulo 4........................................................................................................................................147
Capítulo 5........................................................................................................................................191
Capítulo 6........................................................................................................................................229
Capítulo 7........................................................................................................................................269
Conclusão........................................................................................................................................297
Bibliografia......................................................................................................................................303
Anexo 1: Diários de campo e entrevistas......................................................................................309
Anexo 2: Lista de notícias, imprensa paulista e maceioense......................................................325
Anexo 3: Fotografias......................................................................................................................353

11
Índice Págs.

Introdução..................................................................................................................................................... 13

Capítulo 1: A História das Religiões Afro-Brasileiras: debates teóricos e interpretações.................... 28


Notas bibliográficas para a história das religiões afro-brasileiras................................................................. 28
Teorias e Interpretações: a relação entre a história e a antropologia............................................................. 36
Características estruturais das religiões afro-brasileiras: estudos de mitologia e mística.............................. 45
O axé como metáfora para as interpretações histórico-religiosas no Brasil.................................................. 60

Capítulo 2: Religiões Africanas e Afro-Brasileiras: dinâmica histórica e relações contemporâneas.. 76


Os estudos sobre a história das religiões em África....................................................................................... 76
A ação missionária e os novos movimentos religiosos africanos.................................................................. 83
Sincretismo e africanização nas religiões afro-brasileiras............................................................................. 88
Sacerdotes africanos no Brasil....................................................................................................................... 93
Uma interpretação histórica da relação religiosa entre África e Brasil.......................................................... 98

Capítulo 3: As Religiões Afro-Brasileiras em São Paulo: 1970-1980...................................................... 105


“Nos Domínios de Enxú”: as religiões afro-brasileiras em São Paulo........................................................... 105
As federações e a definição das fronteiras religiosas..................................................................................... 115
Expansão das religiões afro-brasileiras em São Paulo: trajetórias e conflitos............................................... 124
Política, religião e movimento negro em São Paulo...................................................................................... 131
Uma interpretação histórica das religiões afro-brasileiras em São Paulo: 1970-1980................................... 141

Capítulo 4: As Religiões Afro-Brasileiras em São Paulo: 1990-2000...................................................... 147


Mudanças de relação: os espaços públicos e as religiões afro-brasileiras..................................................... 147
A tradição versus a inovação ritual e o acesso aos “segredos do culto”........................................................ 155
Mudanças e adaptações rituais na iniciação................................................................................................... 160
A manutenção da memória, da ancestralidade e do poder mágico-religioso................................................. 170
Conflitos religiosos e (re)ações afirmativas: análise de um discurso político............................................... 175
Uma interpretação histórica das religiões afro-brasileiras em São Paulo: 1990-2000................................... 185

Capítulo 5: As Religiões Afro-Brasileiras em Maceió: 1970-1980........................................................... 191


“Nos Domínios de Xangô”: religiões afro-brasileiras em Alagoas e a memória do Quebra-Quebra........... 191
A reestruturação dos cultos no pós-Quebra de 1912...................................................................................... 196
O período da Ditadura Militar........................................................................................................................ 207
A presença religiosa e a visão político-social das religiões afro-brasileiras em Maceió............................. 215
Uma interpretação histórica das religiões afro-brasileiras em Maceió: 1970-1980....................................... 222

Capítulo 6: As Religiões Afro-Brasileiras em Maceió: 1990-2000........................................................... 229


Nações e cultos do Xangô maceioense.......................................................................................................... 229
Mitologia e Panteão contemporâneo das religiões afro-brasileiras em Maceió............................................. 237
Festas públicas, movimento e cultura negra religiosa.................................................................................... 243
As transformações históricas na perspectiva dos pais e mães-de-santo......................................................... 251
Uma interpretação histórica das religiões afro-brasileiras em Maceió: 1990-2000....................................... 257

Capítulo 7: As transformações históricas nas religiões afro-brasileiras do Brasil


contemporâneo............................................................................................................................................. 269
Análise conjuntural das religiões afro-brasileiras no Brasil: 1970-2000....................................................... 269
Interpretação das transformações históricas em São Paulo e Maceió: 1970-2000....................................... 277
Auto-afirmação e valorização como perspectivas projetivas para as religiões afro-brasileiras.................... 292

Conclusão...................................................................................................................................................... 297
Bibliografia................................................................................................................................................... 303

12
Introdução

A ideia inicial para este trabalho foi gestada na fase final do mestrado, ao se refletir sobre os
resultados daquela pesquisa. Ela se centrara sobre o estudo de uma Comunidade Eclesial de Base
(CEBs) católica, onde se procurou construir seu histórico e fazer uma análise conjuntural das
transformações na Igreja no período 1980-2000. Ali foi possível compreender o quanto é
importante, para os moradores da periferia paulistana, um espaço comunitário, onde se pode
compartilhar os problemas do cotidiano e buscar soluções coletivas. Também as dificuldades em se
manter inter-relações, em um ambiente desagregador das relações humanas, como a sociedade
capitalista urbana – e a busca por um espaço democrático para a participação do leigo em
contraposição à hierarquia eclesiástica. O elemento religioso para essa comunidade representava a
utopia de melhorias estruturais, dentro de sua ideologia (Teologia da Libertação). O
enfraquecimento dessa linha interpretativa da religião cristã, a partir do final dos anos 1980,
representou uma perda de energia renovadora para o Catolicismo e um retraimento da participação
de seus membros na referida sociedade. A vida comunitária nos ambientes periféricos parece-me
essencial para uma análise explicativa sobre o modo como as religiões populares no Brasil foram
formadas desde o século XVI e transformadas no tempo, relacionadas às mudanças sócio-
econômicas que atingiram esses ambientes. Assim, iniciei a busca por novos objetos e por uma
visão mais ampla desse processo histórico.
Na graduação havia cursado a disciplina As Religiões Negras no Brasil com o Prof. Dr.
Reginaldo Prandi. Tal curso introduziu-me no universo das religiões afro-brasileiras, decodificando
os ritos e a linguagem e apresentando a riqueza mitológica do Candomblé e da Umbanda. No
entanto, somente no Mestrado, me foi possível fazer uma relação mais clara entre as transformações
econômicas, sociais e políticas no Brasil e a forma como a cultura africana aqui foi “ressignificada”
ou “reconstruída”. Cursei então, a disciplina Aspectos da Cultura Negra no Brasil, ministrada por
meu orientador, Prof. Dr. Wilson do Nascimento Barbosa. Nesse momento, através das aulas e
leituras do curso formou-se a percepção da complexidade e profundidade do caráter negro-brasileiro
e da “negação” estrutural desse fato via o racismo institucional, pela violência e exploração sócio-
econômica. As análises do prof. Barbosa foram esclarecedoras para aqueles elementos das religiões
afro-brasileiras até então, ignorados por mim, que fui formada dentro do Catolicismo tradicional e
posteriormente, na Teologia da Libertação. O professor chamava a atenção para olhar-se além do
estético das festas, dos ritos negros ou do imediatismo weberiano do toma-lá-dá-cá das trocas
mágicas dos ebós ou despachos. A mística negro-africana bantu com sua mitologia e “cosmovisão”,

13
expressa uma profunda articulação entre os mundos visíveis (material) e invisíveis (espiritual) que,
apesar do “pragmatismo” dos ritos mágicos (também necessários no culto), elabora uma
compreensão do cosmos, do indivíduo e da sociedade humana potencialmente transformadora. Ou
seja, o modo como a cultura bantu se articula favorece a criação e recriação de energias coletivas
(sinergia) corporais, lúdicas e religiosas. Barbosa analisava que: o transe e a dança sagrada (ginga)
entrelaçados ao toque do tambor visam “desligar os ouvintes dançarinos da realidade circundante, e
introduzi-los no reino comum do sonho, no processo de potenciação da mente coletiva (...) através
do movimento rítmico é possível retornar a uma culturalidade reprimida, e assenhorear-se do
passado”. Tal processo, segundo ele, estaria presente nos “terreiros de capoeira, umbanda,
candomblé, quimbanda etc”, em todo o Brasil. (BARBOSA; SANTOS, 1994: 31) Aqui, pois, as
religiões bantu e, posteriormente, aquelas de matriz iorubá forneceram a dinâmica, “a ginga”, que
possibilitou tanto a criação de uma cultura original (afro-brasileira ou negro-brasileira) como um
prolongamento no tempo e espaço das memórias africanas.
Como esse processo se deu historicamente? Ao longo dos séculos de escravidão e dos 122
anos de “liberdade”, como o povo negro brasileiro renovou seu repertório mitológico, ritualístico e
religioso, nos contextos repressivos da sociedade de classes brasileira? A vida coletiva e
comunitária das religiões afro-brasileiras manter-se-ia no período contemporâneo como espaço de
proteção e de diferenciação (Bastide)? Quais as transformações que foram necessárias à adaptação
no mundo urbano capitalista? Tais questões levaram a um recorte temporal de três décadas para este
estudo (1970-2000). Este período foi privilegiado por abarcar certa diferenciação no contexto
político-econômico no país e nas relações étnicas: ditadura e redemocratização (de 1964 a 1985),
além do ressurgimento dos Movimentos Negros contemporâneos (c. 1970-80). Para a vida religiosa
afro-brasileira, também foi momento de maior “divulgação”, via artes, literatura (Jorge Amado e
outros), música (Tropicalismo, Clara Nunes, Dorival Caymmi etc), teatro (Teatro Negro) que
apresentaram, a nível nacional, principalmente para a chamada classe média, “um estilo afro de
ser”. Não se pode esquecer que ocorreram nesse período, as últimas guerras de independência na
África, as lutas contra o racismo segregacionista nos EUA, das esquerdas contra as ditaduras
militares na América Latina e a agitação dos movimentos sociais, estudantis e populares.
Neste contexto, por exemplo, deu-se o estabelecimento “oficial” dos terreiros de Candomblé
na cidade de São Paulo – diferenciados das Tendas de Umbanda existentes desde o início do século
XX – sua organização e expansão nas periferias, com a posterior “aceitação” pública e integração
ao “mercado religioso”. Em Maceió, os terreiros, sobreviventes da repressão do início do XX,
adequaram-se aos novos tempos com elementos da Umbanda, reforçando os chamados cultos
trançados ou traçados. Foi um movimento inverso ao de São Paulo, uma vez que as tradições

14
religiosas negras no Nordeste são historicamente mais antigas. Apesar dessa maior diversidade, os
terreiros de Candomblé em Maceió com maior visibilidade social são aqueles de tradição nagô.
Enquanto que, numericamente, há atualmente mais Terreiros de Umbanda.
Uma vez que essas religiões possuem como membros pessoas de estrato popular, que trazem
na herança étnica elementos mágico-religiosos, com uma interpretação do mundo própria,
pontuava-se como problemática específica: (A) Como as religiões afro-brasileiras conseguiram
manter seus espaços sagrado-profanos (terreiros) em tal ambiente desagregador? (B) Como
perceberam as transformações sócio-religiosas seus sacerdotes e membros? (C) Como a percepção
do ritual (roda, círculo, ginga) se dava como abertura à alteridade? Estaria ligada à ancestralidade e
à preservação da memória? (D) Como enfrentavam as tentativas de desarticulação dos espaços
comunitários em ambiente mercadológico e em constante defesa dos ataques de outras religiões,
Neopentecostais e Católicos, que tentam deslegitimá-la ao negar-lhe a identificação como religião?
(E) Qual a importância dada pelos seus membros aos discursos de valorização étnica, marcados pela
luta dos movimentos negros atualmente?
Considerando as reflexões acima, a intenção foi analisar tais traços nos aspectos
constitutivos e dinâmicos da prática religiosa e social das religiões afro-brasileiras na cidade de São
Paulo e Maceió, existentes no período 1970-2000. O objetivo era conseguir identificar, analisar e
interpretar essas transformações, sob o impacto das modificações sócio-econômicas no período,
refletidas no cotidiano dos seus membros. Também aprofundar a análise histórica para as religiões
populares no Brasil, compreendendo os elementos intrínsecos a elas: seu ritual, crenças, influências
no comportamento dos membros (por exemplo, politização), estrutura hierárquica e mítica. Com
isso, perceber como se deu na luta pelo estabelecimento e manutenção de seus espaços sagrados, a
afirmação da “identidade étnica” nas religiões afro-brasileiras. Buscou-se, ao contrário de um
estudo de caso, apontar os elementos comuns e díspares de tais religiões em São Paulo e Maceió.
Pensava-se, assim, conseguir identificar um quadro geral que poderia contribuir para uma percepção
mais ampla das mudanças históricas ocorridas nestas religiões, como também contribuir para a
construção de fontes históricas para futuras pesquisas.
Nos anos 1970, com o desemprego e a falta de espaços de sociabilidade, os terreiros e
igrejas, representavam para a classe trabalhadora um lugar de trocas, de solidariedade e de criação
de perspectivas de melhorias da vida material. Leva-se em conta nesse período o interesse da classe
média intelectualizada pela cultura negra; já exemplificado nos movimentos artísticos e culturais
baianos, reconhecidos nacional e internacionalmente. Assim, as religiões afro-brasileiras, apesar da
condenação explícita da Igreja Católica e da ação do Estado com seu aparato burocrático repressor,
criaram teias de relações nos espaços urbanos; e se estabeleceram na oferta religiosa das grandes

15
cidades. Para Prandi, o “toma-lá-dá-cá” das religiões de magia e mistério são altamente atraentes
para uma classe média consumidora de bens religiosos.1 Partindo da teoria weberiana da religião,
encontra-se entre os especialistas uma distinção entre religiões universais e religiões étnicas.
Antônio Flávio Pierucci, tendo como base o texto de Cândido Procópio Ferreira, assim as define:
“As religiões étnicas (em jargão funcionalista: religiões com função de preservação de subculturas
étnicas) e religiões universais (abertas a todo e qualquer indivíduo, independentemente de tribo,
etnia ou nacionalidade)”.2 Vê-se tal distinção nos estudos sobre o Candomblé e demais religiões
afro-brasileiras, sendo muitas vezes marco classificatório para as transformações e percepções
sociais de tais religiões. No entendimento daqueles que estudam as religiões afro-brasileiras desde
dentro, só as religiões monoteístas são universais, pois, (1) representam Estados classistas; (2) são
formas de dominação e, (3) necessitam exercer o monopólio da salvação e do acerto.
Por exemplo, o aumento da participação e presença de não-negros como iniciados teria
possibilitado a afirmação do Candomblé como religião para todos, tal qual a Umbanda. Renato da
Silveira, ao levantar as fontes históricas sobre os batuques e calundus coloniais, apontava registros
da participação no culto de brancos, não somente como protetores e clientes dos terreiros, mas
como membros engajados.3 Pensa-se desta discussão que o entendimento da formação das religiões
afro-brasileiras foi, desde o início, feito sobrepondo-se à questão étnica stricto sensu. De fato,
muitas das irmandades religiosas negras e dos terreiros ditos puros (nagôs, jejes ou angolas)
possuíam membros de diferentes etnias. As relações sociais possíveis naquele período entre
brancos, mestiços, crioulos e escravos também ajudaram no entendimento de como os cultos
funcionavam no cotidiano. Por um lado, perseguidos por juízes, governadores e pela elite
escravagista, por outro, escondidos e protegidos por seus clientes e adeptos.
A discussão da Etnicidade e da Universalidade nas religiões afro-brasileiras passaria, entre
outros aspectos, pela compreensão das relações sociais que se davam nas periferias entre a
população. Em famoso terreiro no bairro de Jabaquara, em São Paulo, durante uma festa para o
Orixá Ogum no ano de 2003, pude observar uma quantidade considerável de pessoas brancas entre
a audiência e a hierarquia. Antes de começar o toque para os orixás, a mãe-de-santo fez uma
pequena preleção sobre o significado do Candomblé como religião que resgata “a dignidade do
negro brasileiro”, sendo uma religião de raiz africana, “é herança dos negros que devem ter orgulho
disso” e procurar “valorizar sua raça” e “buscar melhorias para sua vida”. No entanto, ressaltou que

1
Reginaldo Prandi, Herdeiras do Axé, p. 61.
2
Antônio Flávio Pierucci, Religião como solvente: uma aula, p. 114.
3
Renato da Silveira, O Candomblé da Barroquinha, p. 271. Ressalta-se no texto de Silveira, a importância dada por
ele aos “feiticeiros” e às “feiticeiras” (sacerdotes do culto). Estes teriam no período colonial uma função médico-
sanitária para atender à população. Esses curandeiros eram considerados muitas vezes melhores e mais bem preparados
que muitos dos médicos da corte.

16
todos eram bem vindos, brancos e negros, que a “casa estava protegida contra o mal”. A beleza da
festa – da dança, da música e do ritual, a presença marcante de Ogum, homenageado da noite,
(incorporado em seus diferentes cavalos; jovens e idosos) – deixava transparecer o ambiente
familiar e comunitário, explícito na presença das crianças dançando com os deuses ali presentes.4 O
Terreiro surgiria, assim, como espaço sagrado-profano em ambiente periférico no sentido original
afronegro, é “sagrado” tudo que é “humanizado”, a comunidade seria, portanto, formada por
“humanos e deuses”.
Outra categoria que caberia incluir nessa introdução seria a alteridade (relação com o outro
e com a Natureza (Orixás)) expressa pelo ritual, dança em roda/círculo e que remete a uma
rememoração da ancestralidade na memória mítica que é ali celebrada. Para cada Orixá um toque,
uma dança, uma saudação, uma história contada, cores, comidas, objetos de culto próprios. Cada
orixá expressa uma força da natureza ou ancestral divinizado, com suas qualidades e poderes, parte
do Axé (energia vital) presente em todas as coisas, animadas e inanimadas. A rememoração dos
ancestrais em África, aqui reencontrados e ressignificados, ao mesmo tempo em que se celebram as
origens, fazem uma conexão energética entre os dois continentes, trabalhada para garantir o bem
estar daqueles que honram essa tradição. Quanto mais fortes forem os laços entre os membros da
comunidade-terreiro, mais forte é o poder do baba ou da iyá, que poderá, assim, garantir sua
permanência na memória coletiva dos seus filhos, após a morte, e assegurar a continuidade do culto,
essencial para a manutenção do Axé.
Entende-se que tal manutenção da energia vital (axé) e de seu culto não se deu e não foi
repassado ao longo do tempo e do espaço de modo único e estático. A dinâmica própria da
culturalidade negra construir-se-ia materialmente num ritmo dialético de manutenção-transformação
dos mitos, ritos e práticas mágico-religiosas. Inclusive de seus símbolos e significados. A expressão
“o axé nunca se quebra”5 foi eleita para ilustrar esse processo histórico de continuidade-mudança.
A busca de legitimidade como religião (na perspectiva “branca” ocidental) para algumas das
religiões afro-brasileiras, teriam, num primeiro momento, “escondido” ou sincretizado os elementos

4
Observação feita durante a Festa de Ogum, no Terreiro Axé Ilê Obá de Mãe Sylvia de Oxalá, em 2003. São chamados
cavalos ou cavalos-de-santo os iniciados na religião que recebem (incorporam) o seu orixá de cabeça, ou seja,
considerado sua divindade protetora ou ancestral mítico.
5
Esta expressão “o axé nunca se quebra” foi retirada de uma entrevista concedida pela Egbomi Cidália de Iroko do
Candomblé do Gantois, Salvador/BA à Revista ORIXÁS, Candomblé e Umbanda, Ano II, nº 9, pp. 44-45: “Os
fundamentos nunca acabam, quanto mais surgem livros tentando desvendar os mistérios e fundamentos do Candomblé,
mas os liberes (pais e mães de santo, egbomis, ambas etc) se fecham, e aumentam os segredos em torno desses
preceitos. Fundamento nunca se acaba. O axé nunca se quebra, quem se quebra são as pessoas...se axé é força que
está sendo cultuada há vários anos, como uma pessoa pode desestabilizar o axé?” Essa fala, de uma praticante antiga
da religião, expressaria um entendimento profundo do modo como as práticas religiosas afro-brasileiras se prolongariam
no tempo e espaço. Problematizaria, por outro lado, a percepção entre os membros mais novos, que se preocupam com
o repasse do conhecimento religioso e ritualístico, num claro debate entre tradição e inovação, entre o antes e o hoje na
realidade religiosa afro-brasileira.

17
mágicos. Foram depois retomados para marcar a diferença original africana. Percebia-se a dialética
histórica da ação dos negros como construtores dos elementos mágico-religiosos de sua religião,
dentro de um contexto de perseguição social de suas crenças. De fato, no culto, tais elementos
(magia e religião) estão interligados. O juízo de valor atribuído a uma ou outra foi dado de fora para
dentro, ou seja, a partir de uma classificação antropológica, que hierarquizava dentro de uma
ideologia cristã ou cristianizada as práticas afro-brasileiras. Se os membros do grupo podem fazer
essa transfiguração de acordo com a ideologia social ou religiosa predominante, isso somente
reafirmaria a capacidade dessa comunidade em reconstruir e readaptar-se dentro de um ambiente
hostil às suas práticas. Tal fato demonstraria um exemplo da relação de transformações
estabelecidas entre o mundo espiritual-mágico (comunidade-terreiro/ancestralidade mítica) e o
mundo material (sociedade).
Essas considerações iniciais, da problematização dos processos sociais das religiões afro-
brasileiras, foram contrapostas ao conhecimento e produção históricos sobre o negro no Brasil e de
sua cultura. Este é ainda inicial, se comparado com a importância e a centralidade que sua cultura e
etnias têm para o país. Pode-se afirmar sem dúvidas que a maioria dos brasileiros é negra ou dele
descendente. Por isso, o conhecimento histórico da África e da cultura negra brasileira tornou-se
elemento estratégico e primordial para a recuperação da memória dos nossos antepassados, da
valorização dela como ferramenta para auxiliar nas exigências de igualdade e melhores condições
de vida para nossa gente. É também elemento importante para o estabelecimento de nossa
personalidade, do lugar do brasileiro e de suas lutas para a instauração de sua saúde psíquica. E a
fixação efetiva de seu lugar no mundo.
Uma revisão da historiografia brasileira sobre o negro começou a ser feita há quarenta anos.
Alguns historiadores e cientistas sociais, a partir da década de 1970, apresentaram novas
abordagens ao tratamento histórico dado sobre a participação da população negra na formação
social, econômica e política de nosso país. Uma das primeiras tarefas assumidas por esses
intelectuais foi buscar desconstruir as concepções racistas, presentes na historiografia e identificar
essas ideologias intrínsecas a muitas das fontes utilizadas e reproduzidas, quase sempre sem crítica.
Clóvis Moura, referência na desconstrução desses estudos, afirmava:
Da mesma forma como, na era atual, inúmeras correntes históricas surgem para racionalizar
as contradições e dilaceramentos do sistema capitalista, durante a escravidão, no Brasil, sua
historiografia era cooptada para justificar o modo de produção escravista, a sua necessidade
econômica e a impossibilidade de se apresentar outro modo de produção capaz de substituí-
lo. Se não partirmos da posição teórica de que essa historiografia existia como suporte
ideológico desse sistema, com o apoio institucional das suas estruturas de poder, não
poderemos compreender como os seus autores trataram o negro e o escravo (uma coisa estava
imbricada na outra) nas suas obras e nas suas posições políticas.6

6
Clóvis MOURA. As injustiças de Clio, p. 31.

18
Moura identificava tais historiadores como “intelectuais orgânicos do sistema escravista” e
procurou analisar suas obras na perspectiva de denunciar a reprodução ideológica desses trabalhos.
É conhecida a vinculação dessa intelligentsia nacional aos institutos históricos e geográficos e aos
museus financiados pelo Império e pela Primeira República durante os séculos XIX e início do XX.
Tais instituições tornaram-se as referências de produção de um discurso nacionalista voltado para a
criação de uma identidade brasileira, que expressasse a auto-imagem das elites, branca europeia.7 Se
por um lado, negavam a identidade objetiva do povo brasileiro, por outro, necessitavam de uma
perspectiva mulata (democracia racial) que minimizasse e disfarçasse os conflitos étnicos no país.
Vistos em longo prazo, esses discursos foram se readaptando dentro do contexto de formação de um
mercado de trabalho no início do século XX, para justificar o “lugar social” subordinado que se
“reservou” para a população negra nele. Joel Rufino dos Santos provocava essa discussão ao
perguntar:
Para que serve o negro? Para muitos essa pergunta terá um significado preciso: o que se
indaga é pelo lugar econômico-social do negro, qual a função desempenhada pela raça, ou
pela cor, na atribuição dos lugares sociais, ou, em última análise, de que maneira o negro se
insere em nossa estratificação social. Entendida por esta forma a pergunta não é difícil de
responder. O Negro serve em nossa sociedade para indicar o pior lugar: o inferno aqui não
são os outros, mas os negros.8

A discussão sobre a “contribuição” do negro ou da “raça negra” na formação do país,


enfocada por diferentes ideologias políticas, levou à busca por entendimentos mais claros sobre a
identidade negra no Brasil. Durante o século XX os Movimentos Negros e Pan-Africanistas lidaram
com a necessidade de afirmar uma “identidade negra” ou “africana” a ser definida politicamente. A
valorização da etnicidade do ser negro – tratado secularmente como o Outro negativo pelo
colonialismo europeu – estabeleceu uma série de demandas para melhorias das condições de vida
daquela população, participação política, estatutos de igualdade racial, ações afirmativas etc.
Somou-se a eles o interesse pela produção cultural negra, entendida como modo exemplar de
expressão da essencialidade diferencial do que seria ser negro.9 As diferentes abordagens para o
tema da identidade por escolas teóricas diversas minimizaram ao longo do tempo os aspectos
históricos de construção da mesma e enfocaram outros aportes. Sobre isso dizia Wilson Barbosa:

7
Sobre esta discussão ver Lilian SCHWARCZ. O Espetáculo das Raças: Cientistas, Instituições e Questão Racial
no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
8
Joel Rufino dos SANTOS. “Para que serve o negro?”, p. 59 in Revista PADÊ, nº 1 – junho de 1989, pp. 59-70.
CERNE – Centro de Referência Negro-Mestiça.
9
Esse debate não pode ser feito sem levar em consideração a construção ideológica do ser negro desde o modo de
produção escravista. Já dizia um especialista que o “negro é uma invenção do branco”. Os movimentos de emancipação
e libertação africanos e da diáspora, necessitaram ao longo do tempo refletir sobre essa identidade e a assumiram com o
intuito de a transformarem ou ressignificarem, de negativo a positiva, de acordo com as necessidades políticas e de
sobrevivência. Essa atitude é uma constante no modo de produzir cultura negra no mundo. O indivíduo negro estaria,
dentro de determinada perspectiva, identificado com o coletivo negro.

19
A questão da identidade é uma das mais complexas nas ciências sociais. De tempos em
tempos, devido à mudança dos enfoques políticos e ideológicos, o centro da questão desliza
de uma disciplina para outra. Há cem anos “identidade” era sinônimo de “identidade
histórica”, ou seja, um papel independente exercido por determinada nação, num dado
período de tempo. A duradoura influência de Durkheim e seus discípulos deslocou o
problema para certamente uma “identidade social”. Esta, no entanto, foi levada por uma nova
geração para algo como “identidade etnográfica” ou mesmo, “identidade antropológica”, etc.
Sem negar a legitimidade, a importância e, mesmo a complementaridade de todos estes
esforços da ciência social, diria que o foco hoje situa-se numa dimensão psicológico-social da
etnocultura. Os excessos da valoração social da identidade tornaram-se enjoativos. O
eurocentrismo atingiu seu máximo, disfarçado de ideologia social progressista. As diferenças
práticas entre o nazismo e outros ismos tornaram-se, não raro, privilégio de perfumaria.
Ocorreu aquilo que Gore em momento feliz chamou de “conspiração da raça branca” contra o
resto da humanidade. Felizmente a rejeição de tais ridicularias iniciou-se na própria Europa.
Primeiro a “Escola de Frankfurt” e, logo, dezenas de grupos, oficinas intelectuais, etc.,
iniciaram a desconstrução do europeísmo e das formas metodológicas do racismo.10

Nesse sentido, os esforços para a construção de uma historiografia anti-racista sobre o negro
brasileiro e sua cultura dialogou profundamente com a produção de outras ciências sociais e
humanas. A análise e o tratamento de fontes de diferentes tipos permitiriam ampliar o alcance das
explicações teóricas. O constante aprimoramento dos conhecimentos estabelecidos sobre o período
escravista, por exemplo, auxiliaria no modo como os estudiosos das religiões afro-brasileiras
explicariam a formação e organização das religiões negras e indígenas. Considera-se, pois,
fundamental, entender como esse processo de formação sócio-religiosa deu-se ao longo do tempo.
A presença negro-africana no Brasil data da chegada dos portugueses ao “Novo Mundo”, no
século XVI. Sabe-se que o processo de colonização da África e da América esteve profundamente
dependente da formação de um mercado de trabalho escravista. O trabalho escravo africano e
indígena tornou-se um fator determinante e essencial para o sucesso da presença europeia nas
colônias. As estimativas numéricas da vinda de escravizados africanos ao Brasil do século XVI a
metade do XIX chegava à cifra de quatro a mais milhões de indivíduos. Clóvis Moura dizia que,
para todo o período da escravidão moderna dos países europeus, “calcula-se (numa estimativa
incompleta e ideologicamente comprometida) que cerca de dez milhões de africanos foram trazidos
a partir do século XIV”.11 É fato que, no caso do Brasil, a proibição do tráfico não impediu a
entrada de novos escravos, mas a diminuiu em termos gerais. Já foram questionados pelos
especialistas os registros feitos nos portos de embarque em África e de chegada no Brasil.

10
Wilson do Nascimento BARBOSA. A identidade do negro no Brasil, p. 2.
11
Clóvis MOURA. Dicionário da Escravidão Negra no Brasil, verbete Escravidão Moderna, p. 149. Outros estudos
apresentam a cifra de 14 milhões de indivíduos escravizados do século XVI ao XIX, sendo que destes, 4 milhões teriam
vindo para o Brasil. David ELTIS; Stephen BEHRENDT e David RICHARDSON, “A participação dos países da
Europa e das Américas no tráfico transatlântico de escravos: novas evidências”. Afro-Ásia, 24 (2000), pp. 9-50. A
esses números ainda pode-se incluir o total de mais 50 milhões de pessoas que teriam morrido no trajeto para as
colônias americanas vindas da África. Mais ainda se somado ao número de nativos mortos em todo o continente
americano no processo de colonização. Fica óbvio, qualquer que seja o número, que se tratou do maior genocídio
ocorrido na história.

20
Independente da certeza das cifras o que se sabe é que os “projetos colonialistas” dependentes da
mão-de-obra escrava introduziram na América um imenso contingente de pessoas, sequestradas da
África, que alteraram a geografia humana local e reconstruíram, dentro das condições objetivas,
novos modos de fazer e viver.
Os povos africanos escravizados foram classificados por “nações” de acordo com o porto de
embarque, fazendo com que as diferenças de etnia e língua fossem, muitas vezes, misturadas ou
tornadas erradas, sem se poder ter com certeza o conhecimento da totalidade de culturas
diferenciadas que aqui chegaram. Desde o início dos estudos sobre a presença dos africanos no
Brasil, no século XIX (Nina Rodrigues), estabeleceram-se duas grandes divisões étnicas dos povos
escravizados: (a) os sudaneses: da África Ocidental (Nigéria, Benin e Togo), os iorubás ou nagôs
(subdivididos em queto, ijexá, egbá, etc), jejes (ewe e fon) e os fanti-achantis. Também entre eles
algumas nações islamizadas: os haussás, tapas, peuls, fulas e mandingas. Predominaram nas regiões
de Bahia e Pernambuco de meados do século XVII até metade do século XIX; e, (b) os bantos: das
regiões dos atuais países de Congo, Angola e Moçambique, vieram os angolas, caçanjes, bengalas,
entre outros. Foi o grupo mais numeroso e com maior influência na cultura brasileira,
predominando por quase todo o território nacional, principalmente, Minas Gerais, Rio de Janeiro e
Goiás; vieram de fins do século XVI até o século XIX.
Segundo Luis Nicolau Parés, o conceito de “nação” foi formado durante os séculos XVII e
XVIII e era utilizado junto com os termos “país” ou “reino” pelos traficantes, missionários e oficiais
administrativos das feitorias para designar “grupos populacionais autóctones”. Na África Ocidental
era usado por europeus, “a partir de seu senso de identidade coletiva prevalecente nos estados
monárquicos europeus, projetada em suas empresas comerciais e administrativas na Costa de
Mina”.12 O termo servia, segundo Parés, “para designar uma identidade coletiva que se daria como
filiação por parentesco a certas chefias organizadas em volta de instituições monárquicas”. No
entanto, essa identidade coletiva seria multidimensional e se daria em diferentes níveis: étnico,
religioso, territorial, linguístico, político.13 A ancestralidade comum, por exemplo, seguindo a
análise de Parés, que representava corporações familiares com atividades religiosas relacionadas
com o culto de determinados ancestrais ou de outras entidades espirituais, era o veículo por
excelência de identidade étnica ou comunitária. A sua pertença era afirmada com marcas físicas,
escarificações no rosto ou em outras partes do corpo. A cidade, o território de moradia, a língua,
também funcionavam como um sistema geral de nomeação e identidade coletiva; muitas vezes as
cidades compartilhavam o mesmo nome com seus habitantes. Por fim, as alianças políticas,

12
Luis Nicolau Parés. A Formação do Candomblé. História e ritual da nação jeje na Bahia, p. 23.
13
Luis Nicolau Parés, op. cit., p. 12.

21
dependências tributárias, configuravam novas e mais abrangentes identidades “nacionais”. A
diversidade de identidades coletivas estava sujeita às transformações históricas e diferentes fatores
como alianças matrimoniais, guerras, migrações, agregação de linhagens escravas, apropriação de
cultos religiosos estrangeiros ou mudanças políticas. As denominações externas, dadas por outros,
até mesmo por inimigos, posteriormente, eram muitas vezes apropriadas pelos grupos assim
designados.14 Durante o século XVI denominavam-se de forma genérica os africanos de “gentio da
Guiné” ou “negro da Guiné”. Na primeira metade do século XVII apareceram as designações das
diferentes nações. Sobre a origem do termo “crioulo” como “nação”, Parés informa:
A menção aos crioulos (descendentes de africanos nascidos no Brasil) como uma nação já
sugere que no século XVII esse conceito não respondia a critérios políticos ou étnicos
prevalecentes na África, mas a distinções elaboradas pelas classes dominantes na colônia em
função dos interesses escravistas.15

O grosso da população brasileira no período colonial até a República era, pois, descendente
da mistura de africanos, indígenas e brancos pobres. Em sua maioria tornou-se étnica e
culturalmente “negra”. Deu-se entre estes uma confluência para buscar uma “reinvenção” das
crenças e práticas culturais diversas, trazidas como herança da África e aqui adaptadas à situação de
cativeiro. A predominância em determinados períodos, de dada cultura, deu-se pela maior presença
numérica de indivíduos dessa cultura, como no caso da cultura sudanesa na Bahia e a consequente
importância do candomblé iorubá ou “jeje-nagô” nessa região.
Um modelo geral montado pelo antropólogo Vagner Gonçalves da Silva apresentava a
influência étnica relacionada às denominações regionais das religiões afro-brasileiras na atualidade.
Serviriam de pistas para visualizar a configuração espacial dessas religiões. Das “influências e
denominações regionais das Religiões Afro-Brasileiras” têm-se: (1) Religiões Indígenas, (2)
Catolicismo popular, (3) Espiritismo popular europeu, (4) Kardecismo (século XIX). Estes, de
modo geral, foram influenciados por práticas sudanesas e bantu. As Sudanesas teriam influenciado
mais: (a) Candomblé (BA, RJ, SP); (b) Xangô (PE; AL); (c) Batuque (RS); (d) Candomblé jeje
(BA); (e) Tambor-de-Mina (MA, PA); (f) Babassuê (PA). Já as práticas bantu influenciaram: (a)
Candomblé angola (SP, RJ), (b) Candomblé de caboclo (BA), (c) Cabula (ES), (d) Macumba (RJ,
SP), (e) Umbanda (RJ, SP e todo o Brasil); (f) Pajelança (AM, PA, MA); (g) Catimbó-Jurema (PE,
PB), (h) Xambá (AL, PB, PE); (i) Toré (SE), (j) Terecô (MA)16.
Segundo Barbosa, os contextos das construções religiosas no período 1780-1850 eram três:
“(a) um contexto indígena, formado pelas populações aborígenes à época dispersas pelas matas; (b)

14
Luis Nicolau Parés, op. cit., p. 13.
15
Luis Nicolau Parés, op. cit., p. 24.
16
Vagner Gonçalves da Silva. Candomblé e Umbanda: Caminhos da devoção brasileira, p. 98.

22
um contexto europeu formado nas aldeias litorâneas e outras poucas, tomadas, cultural e/ou
militarmente aos indígenas convertidas em vilas, cidades e missões e/ou fazendas do colonizador; e
(c) contexto afro-indígena, que compreendia o ambiente de encontro entre africanos e indígenas no
trabalho escravo, nas populações que das fazendas fugiam para o interior, etc.”17 A elaboração das
práticas rituais e a constituição de uma mitologia afro-indígena foram articuladas nesses contextos.
O dinamismo da cultura afro-indígena que se formava, agregava elementos em um sincretismo
positivo, ou seja, não havia sobreposição de elementos, mas uma justaposição ou adequação às
visões de mundo de ambos os grupos com trocas de conhecimento. A identidade mais africana ou
mais indígena do culto estabelecido, como já afirmado, dava-se de acordo com a quantidade de
indivíduos de determinado grupo ou da etnia do chefe religioso. O ambiente físico também
propiciou novos elementos para o culto, plantas sagradas, locais de magia, entidades ancestrais,
animais para o sacrifício, etc. O papel dos feiticeiros, curandeiros, “mandingueiros”, quimbandas ou
ngangas, foi essencial nesse processo. Para os escravizados eram estes os guardiães dos
conhecimentos sobre os ancestrais, deuses e a “força vital” (axé) presente em todas as coisas. O
distanciamento da terra de origem tornou necessário, então, o conhecimento dos antepassados da
nova terra.18
Ao longo dos séculos, as religiões afro-indígenas (afro-brasileiras) constituíram-se com uma
multiplicidade de identidades ou auto-identificações. Continuamente modificadas e adaptadas,
mantiveram como tradição ou “recorrência” o culto aos antepassados e às divindades e entidades
(inquices, voduns, orixás, caboclos, etc), o conhecimento das plantas medicinais, as oferendas e
sacrifícios, a dança mística para o transe sagrado e as diferentes práticas divinatórias. As religiões
afro-brasileiras são, pois, originadas da combinação das crenças daqueles diferentes povos
sequestrados do continente africano. No Brasil, em situação de cativeiro, esses povos fizeram uma
“recriação”, “reinvenção” da “comunidade perdida”. Ainda segundo Barbosa, estes povos “criam e
recriam instituições, costumes, práticas que afirmavam os antepassados, a mítica própria e
instrumentalizavam como veículo a cultura do dominador” (sincretismo). Através dos “atos
criadores de fé” (bater tambor, reencontrar os orixás nos santos católicos) “a África viu-se recriada
ou reinventada no Brasil ainda no século segundo (1650-1750) e penetraria no século terceiro como
uma força política alternativa (1750-1850). Forneceu a comunidade negra o contingente físico
básico de todas as revoltas liberais, republicanas e sociais”.19 Por isso, por muito tempo foram
perseguidos os sacerdotes dessas religiões. Quando identificados eram acusados de bruxaria,

17
Wilson do Nascimento Barbosa. Da N´bandla à Umbanda: transformações na cultura afro-brasileira, p. 8.
18
Idem, op. cit.
19
Wilson do Nascimento BARBOSA. Atrás do Muro da Noite, pp. 41-43.

23
encerrados nas prisões ou manicômios e muitas vezes mortos. Tal perseguição foi tão intensa que,
por exemplo, até metade do século XX, os pesquisadores afirmavam não existir mais no país a
função e as famílias de Babalaôs (Sacerdotes de Orunmilá, divindade da adivinhação) nos terreiros
de Candomblé de tradição iorubá.
Seria compreensível, nesse contexto, o porquê do muito que foi produzido a respeito das
religiões afro-brasileiras como locais de resistência à desumanização da sociedade escravista e,
posteriormente, do racismo à brasileira. Mais que resistência (no sentido de funcionar a partir da
agressão que vem de fora) as comunidades-terreiros, quilombolas e outras foram (e são)
continuidades dinâmicas e criadoras. Em consonância com a história do país refletiriam a luta
política pelo poder e espaço social e acesso aos meios de produção para sua sobrevivência. É esse o
viés de análise que se espera abordar ao reconstituir alguns aspectos da formação histórica dessas
religiões populares. Ou seja, o modo como as religiões afro-brasileiras em longo prazo constituíram
suas práticas religiosas, portanto, sociais e culturais, que souberam penetrar nas barreiras de
“castas” impostas pelo Estado racista no país. O dinamismo desse processo, com rupturas e
continuidades, esclareceria elementos importantes da especificidade cultural da história da etnia
negra no Brasil e da formação social como um todo.
Portanto, as religiões de matriz africana, especificamente, foram aqui os objetos
privilegiados para se conhecer os elementos profundos da “visão de mundo” negro-brasileira e sua
materialização cultural. Isso porque através da perspectiva histórica sobre uma determinada
religião, mesmo sem discutir detalhadamente o viés fenomenológico de sua mística – mas sem o
desconsiderar – poder-se-ia levantar a relação estabelecida ao longo do tempo entre a criação ou
recriação de determinadas crenças (ideologias) e práticas religiosas articuladas à vida social,
cultural e política dos seus locais de origem.
Este trabalho buscou apresentar tais discussões através da análise sobre as transformações
históricas nas religiões afro-brasileiras em São Paulo e Maceió, com destaque para o período entre
os anos 1970 e 2000. Nele procurou-se analisar tais transformações em suas relações internas e
externas, dos terreiros e tendas entre si e com o ambiente social, político e econômico em que
estavam inseridos.
Foram identificadas como as transformações mais relevantes aquelas que dizem respeito: (1)
às relações estabelecidas com os espaços e as instituições públicos, sagrados e profanos na grande
cidade; (2) ao aumento da perseguição por parte das igrejas neopentecostais; (3) à folclorização das
religiões afro-brasileiras; (4) aos conflitos internos a respeito do acesso aos “segredos dos cultos” e
da transmissão dos conhecimentos mágico-religiosos; (5) às mudanças e adaptações realizadas nos
rituais afro-brasileiros expressos como contradições entre tradição e a inovação litúrgica e o papel

24
dos gêneros masculinos e femininos neles; e, (6) ao aumento de ações de valorização e resgate da
memória e história da presença religiosa negra nesses locais. A ideia central defendida sobre tais
transformações seria a de que a preocupação de suas lideranças com a “perda ou a quebra do axé”,
ou seja, sobre a possibilidade de reprodução em longo prazo das religiões afro-brasileiras, não
poderia ser compreendida sem levar em consideração os elementos estruturais das mesmas, uma vez
que a cosmovisão e a ideologia religiosa afro-brasileira, constituíram-se no Brasil como “recriações
continuadas”. Nelas as rupturas de processo, os confrontos e a luta política pela existência dos
cultos, manteve uma criatividade renovadora das formas (estratégias) como essas religiões se
estabeleceram e se mantiveram nos espaços urbanos no Nordeste e no Sudeste. Por outro lado, os
processos de urbanização e modernização capitalista em São Paulo e Maceió tenderam a acelerar
tais mudanças e a criar inseguranças sobre os modelos de culto que poderiam se adequar a esses
ambientes. O estudo histórico de tais religiões deveria levar em conta as forças simbólicas e
ideológicas expressas nas suas mitologias, como metáforas explicativas dos seus mecanismos de
funcionamento religioso, construídos e reconstruídos continuamente. Por fim, ao se afirmar e
refletir a historicidade das religiões afro-brasileiras esperava-se contribuir para a criação de
referências para o seu estudo e para a desconstrução da subalternização e das concepções racistas
ainda prevalecentes na historiografia brasileira.
A partir da análise das fontes foi possível, num movimento dialético do geral para o
particular e do particular para o geral, identificar os elementos de historicidade no Candomblé e na
Umbanda dos últimos trinta anos. O uso privilegiado que se fez das fontes orais e da imprensa local
de São Paulo e Maceió, demonstrou-se bastante produtivo, pois, além de permitir comparações das
informações colhidas, explicitou as divergências de discurso, facilitando a percepção dos conflitos
ideológicos e políticos. Estas devem ajudar a alimentar o quadro de referências históricas para a
análise. A divisão do texto entre os elementos teóricos e gerais e os descritivos e particulares teve
por intenção melhor visualizar e articular os processos apresentados. Sem intenção de separar as
etapas da teoria e da empiria, uma vez que ambas formam o processo metodológico de análise.
Assim, os dois primeiros capítulos abordaram as teorias e os debates interpretativos sobre as
religiões afro-brasileiras no Brasil contemporâneo; e suas relações religiosas e políticas com os
processos históricos do continente africano. Ali, buscou-se explicitar a concomitância de algumas
criações afro-brasileiras e africanas e a força da memória mítica que se tem criado no Brasil, a
respeito de suas raízes culturais. Em seguida, encaminhou-se o debate para a observação dos
estudos de caso exemplares nas cidades de São Paulo e Maceió.
Os capítulos três e quatro descreveram, analisaram e interpretaram as transformações
históricas em São Paulo, no período eleito. Viu-se que, ao longo do século XX, as religiões negras

25
ali sofreram com as repressões sistemáticas, a dominação ideológica etc e passaram por uma
renovação constante de seu repertório ritualístico. As migrações internas da população negra entre
Nordeste e Sudeste mantiveram o fluxo de troca de informações e conhecimentos mágico-
religiosos, que atendiam às necessidades de proteção física (saúde) e espiritual (psíquica) da
população das periferias. O fim da clandestinidade e a expansão daquelas religiões no ambiente
urbano possibilitaram as articulações políticas que levaram a abertura para a afirmação e
valorização da herança religiosa negra. Os capítulos cinco e seis, por sua vez, detiveram-se no
processo histórico da cidade de Maceió. Foi destacado o impacto do Quebra de 1912, a diáspora de
seus sacerdotes, e a reestruturação de seus cultos na clandestinidade durante a primeira metade do
século XX. A abertura à visibilização das religiões na cidade foi dada através dos interesses
políticos que viram a força aglutinadora dos xangôs. A interferência militar na autonomia da
primeira federação de culto, a fragmentação e o embate entre as lideranças durante o período militar
e a abertura política, reforçaram a presença das religiões negras na cidade, mas não conseguiram dar
bases de sustentação para demandas políticas para seus adeptos. Somente nos anos 1990, aquele
movimento negro religioso, somado ao movimento negro na cidade, passou a dialogar mais sobre os
problemas enfrentados pelas religiões em Alagoas. Nos dois estudos de caso, viu-se que o
posicionamento afirmativo das lideranças e dos adeptos das religiões afro-brasileiras, apesar de
ampliar suas redes de solidariedade, ainda mantém graves dificuldades de inserção e articulação
como força política capaz de eleger representantes nas câmaras municipais, estaduais e federais.
O capítulo sete estabeleceu uma análise conjuntural das transformações nas religiões afro-
brasileiras no Brasil, nos anos 1970 e 2000. A comparação dos resultados da pesquisa em São Paulo
e Maceió demonstrou que, dadas suas diferenças e aproximações, existe uma ampliação das
perspectivas de futuro da população afro-brasileira, a partir das ações de valorização e auto-
afirmação.
Por fim, além de apontar as estratégias de luta anti-racista, procurou-se dar voz às lideranças
religiosas que refletiram sobre seu protagonismo e sobre as experiências vivenciadas, enquanto
indivíduos e enquanto coletivo religioso. A importância disso reside na possibilidade de, através da
observação histórica, afirmar a importância das religiões populares no Brasil. Estas, em diferentes
tradições, e especialmente naquelas de matriz afro-indígena, demonstrariam as experiências
concretas culturais, simbólicas, afetivas (psíquicas) de explicação do mundo e do cosmos, de seu
lugar na sociedade e de suas ações nela. Servem de exemplos para o entendimento dos processos de
dominação, do modo como as desigualdades sociais, econômicas e políticas são construídas
historicamente. Ou seja, os meandros de articulação da dominação na relação entre a infraestrutura
e a superestrutura. No entanto, a resistência, a continuidade na mudança demonstraria, por outro

26
lado, as estratégias cotidianas de luta pela sobrevivência material e espiritual e pelo atendimento às
necessidades de justiça social e respeito. Aquela idéia inicial da validade da análise da vida
comunitária nas periferias para melhor apreciação das religiões populares confirmou-se em especial
para as religiões afro-brasileiras.
Sabe-se que, trabalhos que buscam olhares mais amplos para processos de grande
complexidade tendem a “pecar pelo excesso”, nesse caso, de inferências generalistas. A intenção,
porém, de “saltar ao abismo”, entrar na “cabaça da cultura” ou, como dizia o prof. Barbosa, “cair no
espírito dentro de si mesmo”, no “miolo do antimundo”, permitiu-me enxergar a dura realidade da
carga pesada de racismo no qual fui criada, no ambiente católico tradicionalista mineiro. Mais do
que isso, permitiu enxergar a realidade sócio-cultural brasileira. Essa auto-análise, não seria algum
tipo de “expiação dos pecados”, muito ao gosto dos cristãos, mas o aprendizado profundo da
história. A mudança no tempo e espaço, a acumulação de eventos e processos, gera as estruturas nas
quais estamos inseridos. Herdamos de nossos antepassados toda uma cultura material e simbólica,
os modos de produzir e viver, as bases de nossa sustentação material e os valores que ordenam
nossa inserção no mundo. Permitir-se questionar estas estruturas, vê-las em sua historicidade, é
perder suas “ilusões”. Essas podem ser pessoais ou coletivas. A ilusão de uma única verdade final
para a história, ou a ilusão de uma sociedade e sistema produtivo democrático e igualitário. Por
outro lado, se ganha no encontro de si mesmo, na verdade sobre sua culturalidade, a “máscara
branca” cai e a pele-alma negro-indígena surge. Projeta-se, portanto, para o futuro, a continuidade
das possibilidades de reprodução daquela força vital (axé) que irá alimentar as novas gerações na
luta por uma sociedade melhor, com valores de justiça e respeito às diferenças.

27
Capítulo 1: A História das Religiões Afro-Brasileiras: debates teóricos e interpretações
Pedrinha miudinha
de Aruanda ê
Lajeiro tão grande
Tão grande na Aruanda ê

Quando eu não era ninguém


Era vento, terra e água
Elementos em amálgama
No coração de Olorum
Canto do Caboclo Pedra Preta – Domínio Público/Poema recitado por Maria Bethânia
CD Dentro do mar tem rio, ao vivo (2007)

Notas bibliográficas para a história das religiões afro-brasileiras


Desde fins do século XIX a bibliografia acadêmica que surgiu a respeito do negro (ou sobre
“o problema do negro”), “sua cultura e contribuições” à sociedade brasileira tem sido quase
totalmente, antropológica e sociológica. Como afirmado em outro momento, há pouco tempo os
historiadores iniciaram uma produção mais sistemática a respeito, a partir da década de 1970. Até
então, as referências à presença negro-africana no Brasil, na historiografia e livros didáticos eram
dadas somente nos capítulos sobre a escravidão ou escravismo, algo sobre Irmandades Negras e na
“teoria das três raças”, fundadoras da brasilidade, sob o mote da “democracia racial”.
Por outro lado, o levantamento de dados feito pelos antropólogos e etnólogos produziu uma
vasta gama de informações sobre os valores e as práticas (cultura material e simbólica) das
comunidades negras em todo o Brasil. O uso feito desse material produziu, por sua vez, análises na
perspectiva dos estudos sobre o folclore. O “folk-lore” (cultura popular ou do povo) brasileiro era
descrito e apresentado com certo exotismo, tendendo a ver como estática uma cultura
profundamente dinâmica, dentro dos contextos locais em que eram e são produzidas.
Nos últimos anos, a partir da promulgação da Lei 10.639/2003, uma produção
historiográfica específica sobre História da África e Cultura Afro-Brasileira (ou Negra) começou a
ser apresentada, com fins didáticos. A formação de pesquisadores e docentes especialistas iniciou-se
nas universidades públicas e privadas no país no cumprimento da Lei. Tal fato possibilitou o
surgimento de pesquisas pontuais sobre a história do negro e de sua cultura em diferentes análises,
sempre numa perspectiva multidisciplinar. Os historiadores perceberam ou têm percebido o atraso
em que se encontrava a disciplina em relação ao tema de tamanha importância. Isso porque a
bibliografia de interpretação histórica sobre a cultura negra no Brasil ainda se encontra incipiente.
Seria impossível, pois, “fugir” dos textos e análises produzidos pela Antropologia e Sociologia. Se,
por um lado os historiadores recorreram com sofreguidão à produção dos colegas das ciências
sociais, inclusive reproduzindo seus métodos de coleta de dados (a observação participante, por
exemplo), por outro, antropólogos e sociólogos já sentiriam a necessidade de incluir uma análise

28
histórica (contextual no mínimo), para conseguir compreender com mais profundidade seu objeto
de estudo.
O entendimento sobre a religiosidade afro-brasileira esteve, ao longo do tempo, diretamente
relacionada às explicações sobre a cultura, a identidade e as relações étnico-raciais no Brasil. De
modo geral, portanto, seria possível indicar uma periodização para os estudos das religiões afro-
brasileiras, identificando-a por recortes em algumas das obras de referência.
(1) O primeiro período seria aquele que vai de meados dos anos 1890 a meados da década
de 1920. Este abarca, especialmente, a pesquisa e a produção de Raimundo Nina Rodrigues (1862-
1906) e Manuel Querino (1851-1923). De Rodrigues têm-se O animismo fetichista dos negros
baianos escrito entre 1896-97 e Os Africanos no Brasil, escrito no mesmo período e publicado em
1932. De Querino, entre várias obras, destaca-se O colono preto como fator da civilização
brasileira de 1918. Esses autores pesquisaram no contexto do fim da escravidão (1888) e do
Império (1889) e início da República, principalmente na Bahia. Neste momento, havia uma
articulação das elites da oligarquia rural, que possibilitou criar uma série de mecanismos de
exclusão da população negra (“ex-escrava”), dificultando a sua integração como mão-de-obra livre
e cidadã com plenos direitos. Os primeiros estudos acadêmicos nesse período, embasados num
racismo cientificista, ao mesmo tempo em que afirmavam a “contribuição dos negros no processo
civilizatório” do Brasil, acusavam-lhes de “responsáveis pelo atraso” do país. A miscigenação foi
apresentada como solução “higienizadora” da identidade brasileira em longo prazo, devendo ser,
portanto, incentivada. Fortemente influenciada pelas relações de produção escravistas, de modo
geral, o indivíduo negro era tratado como inferior em termos biológicos e culturais. No particular,
os estudos de Rodrigues e Querino tiveram cada um, em sua especificidade, contribuições valiosas.
Rodrigues incluía as relações étnicas e a cultura negra como temas a serem abordados
“cientificamente”, relacionando-os com os povos do continente africano e considerando a realidade
desses povos no contexto da escravidão no Brasil. Apesar de hierarquizar as culturas iorubá e
banto, e, consequentemente, suas religiões, iniciou uma sistematização dos estudos sobre o negro,
com coleta de informação e dados, que influenciaram os temas e parte da análise que se seguiram
até, aproximadamente, a década de 1950. O seu livro Animismo Fetichista dos Negros Bahianos,
publicado em português pela primeira vez em 1935, teve sua primeira versão em francês publicada
em 1900 e dedicada à Société Médico-psychologique de Paris. Nele, para discutir a influência da
raça negra, apresentava um estudo sobre a mentalidade religiosa dos negros, caracterizando-a como
“patológica”, “atrasada”, “incapaz de manipular as elevadas abstrações exigidas pela religião
monoteísta”. Tal interpretação, de conteúdo racista, somava elementos de psiquiatria com o
evolucionismo cientificista do século XIX. Em Os Africanos apresentava uma etnografia religiosa,

29
descrevendo com detalhes o culto, principalmente, do terreiro do Gantois. Para ele, os candomblés
da tradição sudanesa (nagô) e, nesse caso, o Gantois, seriam um modelo de templo fetichista
enquanto os templos bantos, a seu ver, seriam rudimentares, misturados com elementos indígenas.
Rodrigues teria construído sem muita crítica a seus informantes, segundo os especialistas, a
percepção da diferença entre os candomblés frequentados por africanos, contrapostos aqueles dos
“negros da terra” (crioulos e mulatos); nos primeiros teria ocorrido o sincretismo, uma justaposição
com crenças católicas enquanto que, nos segundos, haveria uma fusão com as tradições indígenas.
Nesses últimos, o transe seria muito frequente e sem os cuidados rituais devidos. Rodrigues
apontava o Candomblé como um fenômeno urbano, que a seu ver tenderia a perder influência na
vida civil devido, por um lado, à “deturpação dos conceitos primitivos da mitologia africana” e, por
outro, à repressão policial e à opinião pública. Para ele as “práticas religiosas do fetichismo das
instituições africanas foram as que melhor se conservaram no Brasil”. Classificadas como
fetichistas e animistas, foram divididas entre (a) o animismo superior da mitologia jeje-iorubana,
mais “pura” e, (b) “o fetichismo estreito e inconvertido dos africanos das tribos mais atrasadas”
(povos bantus), sincretizados.20 Tal classificação orientou os estudos do segundo período, não sendo
superada até a final daquele.
Querino, por sua vez, ao apontar o “preto” como “colonizador” (civilizador), tratava-o,
segundo Antônio Sérgio Guimarães, “não apenas como mão-de-obra escrava”, passiva. Mas, ao
colocá-lo como sujeito, inverteria a “tradicional associação do negro com a barbárie”.21 Esta
perspectiva seria importante porque abriu possibilidades de interpretação da realidade étnica da
culturalidade brasileira. Ou seja, indivíduo e coletivo negro, como sujeitos históricos. A religião e
as artes negras foram os temas preferenciais nesta fase.
(2) O segundo período iria das décadas de 1930 a 1950, abarcando a produção de Gilberto
Freyre (Casa Grande & Senzala, 1932 e A interpretação do Brasil, 1947), Arthur Ramos (O Negro
Brasileiro, 1934) e Edison Carneiro (Religiões Negras, 1936). Arthur Ramos (1903-1949) também
médico-legista seguiu as indicações de Nina Rodrigues no estudo sobre os negros no Brasil; porém,
ao aderir à escola culturalista e ao pensamento pré-lógico de Lévy-Bruhl afastou-se do
evolucionismo de Rodrigues. O foco de análise para a religião afro-brasileira vai de “raça” para
“cultura”. Em suas obras O Negro Brasileiro (1934) e O Folclore do Negro Brasileiro (1936), no
entanto, manteve uma estrutura classificadora entre as tradições jeje-nagô e banto da mesma forma
que Rodrigues, apontando como superior o sistema mítico jeje-nagô. Ponto importante nos estudos
de Ramos foi a ampliação do campo de pesquisa etnográfica ao estudar não só o candomblé baiano,

20
Raimundo Nina RODRIGUES. Os africanos no Brasil, p. 198.
21
Antônio Sérgio GUIMARÃES. Racismo e Anti-racismo no Brasil, p. 13.

30
mas também os catimbós do Nordeste e as macumbas do Rio de Janeiro. Mesmo assim, manteve a
hierarquia, segundo seu ponto de vista, entre o modelo de rito do Nordeste (Gantois) mais puro,
complexo e antigo e os do sul sincretizados, simples e facilmente influenciados pelo catolicismo
popular, espiritismo e cultos ameríndios. Apesar de reforçar essa dicotomia norte-sul para os cultos
afro-brasileiros, assumiu que os mesmos não chegaram puros da África. Vagner Silva, ao analisar a
obra de Ramos, apontava a falta de crítica deste no uso das fontes. Em São Paulo, por exemplo,
Ramos teria afirmado não haver cultos organizados dentro das tradições dos candomblés baianos,
xangôs e macumbas; somente a presença de feiticeiros, curandeiros e mistificadores, dentro de um
sincretismo negro-europeu. Segundo Silva, ele usou como fonte Belfort de Mattos, que trabalhava
nos anos 1930 com atas de câmaras municipais e delegacias de costumes. Porém, há fontes dos
jornais de fins do século XIX que indicam a existência de cultos organizados.22 Para Arthur Ramos
os padrões culturais do mundo moderno e racional modificariam e substituiriam os elementos
míticos e pré-lógicos que ficariam sepultados no mundo subjetivo. Estes atrapalhavam o progresso,
mas, por serem culturais (adquiridos) e não raciais (inatas) o progresso ainda seria possível a partir
da herança africana.
Edison Carneiro (1912-1972) foi autor de diversos livros, como: Religiões negras (1936),
Negros bantus (1937), Candomblés da Bahia (1948), Antologia do negro brasileiro (1950),
Capoeira (1975), O quilombo dos Palmares (1958), Os cultos de origem africana no Brasil (1959),
O folclore nacional (1954), Ladinos e crioulos (1964), A sabedoria popular (1959), Samba de
umbigada (1961) e Ursa Maior (1980). São obras essenciais sobre os africanos e as culturas negras
no Brasil, em particular, no aspecto informativo. Sua maior contribuição talvez tenha sido
“reabilitar a macumba”. Apesar de acreditar na superioridade nagô e ver no banto um tipo de
“subcultura”. Sem grandes preocupações teóricas, seus dados etnográficos foram inovadores sobre
os cultos bantos. Ele afirmava ser a Macumba no Sudeste uma necessidade religiosa dos pobres
enquanto a Umbanda seria a dos ricos.
Juntamente com outros, tais autores mudaram o foco da discussão sobre as relações étnicas
no país, da categoria raça para o conceito de cultura, e favoreceram o mito da democracia racial.
Ramos, em específico, interpretava as religiões afro-brasileiras a partir do ponto de vista da
psiquiatria, em conexão com a tradição das escolas higienistas do Nordeste, entre eles os médicos

22
Vagner Gonçalves da Silva dá como fonte, por exemplo, uma notícia do Jornal A Província de São Paulo (atual O
Estado de São Paulo) de 30 de setembro de 1879. É o relato de uma ação policial repressora à casa de Leopoldina
Maria da Conceição, de 45 anos. Na notícia descreve-se com certos detalhes o culto que se dava na casa da Gunhodê
(mãe-de-santo em língua mina), termo que é utilizado pelo jornal, descrevendo as pessoas encontradas lá (idosos e
jovens), com suas funções na casa, inclusive moças que estavam reclusas em quartinho em estado de transe. Tal notícia
testemunharia uma estrutura de culto religioso complexo e já funcionando há certo tempo. Vagner Gonçalves da
SILVA. Os Orixás na Metrópole, p. 59.

31
que trabalharam no Serviço de Hygiene Mental do Recife sob a direção do Prof. Ulisses
Pernambucano, a exemplo de Gonçalves Fernandes. A perspectiva das religiões negras como
“patologias de uma mente primitiva” serviu nos anos 1930 como justificativa do controle por parte
do Estado sobre o funcionamento de seus cultos, além de indicar favorecimentos aos sacerdotes que
viessem a contribuir com os médicos – estes se tornaram verdadeiros árbitros que permitiam ou
negavam a autorização para os toques e a manutenção dos terreiros “oficialmente”.
Outro viés de análise foi apresentado nos trabalhos de Roger Bastide (1898-1974). De suas
obras têm-se, entre outros, Estudos Afro-Brasileiros, três volumes de 1946, 1951 e 1953; O
Candomblé da Bahia de 1958, As Religiões Africanas no Brasil, 1958 e Macumba Paulista de
1946. Bastide trabalhava com as contraposições: religião versus magia e mundo rural versus mundo
urbano. Com isso, apontava que a tradição cultural se expressaria em laços comunitários e a cidade
levaria a uma desagregação social que vitimiza as tradições. Assumiu como outros o “pressuposto
da pobreza mítica banto” e acompanhava Arthur Ramos e Belfort de Mattos na eleição de certos
temas. No entanto, suas sínteses foram originais de inspiração eclética. Segundo Silva, assim como
Ramos, Bastide também teve problema com as fontes sobre o Sudeste. Para Bastide as “religiões
africanas sofreram os efeitos das modificações da sociedade brasileira – da escravidão para o
capitalismo – que foram transformações separadas no tempo e com significados estruturais
diferentes”. De acordo com seu “princípio de corte” o sagrado estaria perpassado em outras esferas
do social. No Nordeste, o Candomblé seria comunitário, o que favoreceria a preservação de valores
tradicionais. Já no Sudeste, o Candomblé seria individualista, uma vez que a macumba expressaria a
perda dos valores tradicionais para a sociedade urbana. No mundo rural, não seria possível a
permanência do Candomblé, por conta da mistura com a cultura cabocla. Assim, para ele, a religião
lidaria com analogias, correspondências, tradução – equivalência mítica que permanece estruturada,
enquanto a magia seria acumulação, adição, finalidade operacional do sincretismo com um objetivo
a atingir (no geral, espúrio). Sobre São Paulo, afirmava ter existido a presença do negro desde o
século XVIII e XIX, com seus batuques e suas crenças. Com o tempo, desapareceram os antigos
macumbeiros e aumentou a presença de imigrantes. Nos anos 1940, essas práticas se dispersaram
pela periferia e a zona central da cidade. A Macumba seria, para ele, o ponto de dissociação entre o
negro e sua religião.
Bastide atualizou, portanto, as interpretações sobre o Candomblé e a Umbanda dentro do
mundo urbano industrial e desenvolveu categorias de análise como o princípio de corte, muito
utilizado nas obras sociológicas sobre o tema. Tal princípio seria o modo como “o candomblé
recriava para o negro um mundo ao qual ele podia, com certa regularidade, se retirar da sociedade
branca opressiva e dominadora, uma pequena África fora da sociedade, o terreiro como substitutivo

32
da perdida cidade africana e da família que não pôde ser refeita no Brasil nos moldes africanos”.23
Segundo Prandi, foi Bastide quem teria dado o “status sociológico de religião” ao Candomblé e a
Umbanda, a partir da mesma obra, “ponto de partida da moderna interpretação científica da religião
dos orixás”.24 Bastide fizera, portanto, uma discussão com os marxistas, na perspectiva da religião
como uma “ideologia”, não como espaço de “alienação”, mas como contraponto ao mundo do
branco, detentora de valores próprios africanos.
Sobre a história da cultura negra especificamente para a região alagoana, os textos de
Abelardo Duarte (Sobrevivências do Culto da Serpente (Dãnh-Gbi) nas Alagoas, 1952; Sobre o
panteão afro-brasileiro, 1952, Nominata – Pais e Mães de Santo do Passado, 1974; Nomenclatura
de Antigos Terreiros (Xangô) em Maceió, 1974, e outros) e Gonçalves Fernandes (Xangôs do
Nordeste, 1937 e Sincretismo religioso no Brasil, 1941) são, para este período, as referências
destacadas. Com obras escritas até a década de 1970, Duarte seguiu as linhas mestras da produção
de Gilberto Freyre e Arthur Ramos, utilizando elementos da pesquisa de Roger Bastide e fazendo
alguns aportes no debate com Ramos, René Ribeiro, Câmara Cascudo e outros. Isso pode ser visto
em Folclore negro das Alagoas: áreas da cana-de-açúcar, pesquisa e interpretação. Publicado em
primeira edição em 1974 e reeditado pela Universidade Federal de Alagoas em 2010. Nesta obra,
Duarte compila dados de suas pesquisas sobre os “fatos folclóricos” e as “sobrevivências das
culturas afro-negras no nosso país”. Segundo ele, com a escravidão, o negro “mesmo em face da
segregação social, do sofreamento dos seus impulsos, do seu forçado isolamento”, não podia “fugir
à tendência gregária, inata no homem”.
E por mais que intencionalmente ou não se procurasse separá-los, o sentimento gregário os
aproximou e uniu já na desdita e em circunstâncias vária, como uma necessidade imperiosa e
natural da sobrevivência cultural e material, em grupos e tragédia dos tumbeiros, como os
reuniu depois, no novo habitat, associações negras. Penso que não foi apenas a “qualidade”
de escravos, ou seja, o estigma da escravidão, que os uniu, como pensa Arthur Ramos, senão
prevalentemente essa necessidade gregária, instintiva e natural, agravada pelas terríveis
condições do regime a que foram submetidos. Tanto assim, que quanto mais se afrouxavam
os laços da escravidão mais se ampliava esse espírito associativo sob as mais diversas
formas, no plano cultural. (...) Contribuiu, portanto, poderosamente esse espírito associativo
para a transmissão dos costumes e das tradições, através das gerações sucessivas.25

Mesmo sem o aporte histórico dos processos estudados, a obra de Duarte aproximava os
debates e as pesquisas sobre a temática para a região alagoana e propiciava elementos de análise
para a percepção do entrelaçamento cultural. Portanto, dos elementos no processo formativo da

23
Reginaldo PRANDI. O que você precisa ler para saber quase tudo sobre as religiões afro-brasileiras ou As religiões
afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência, uma bibliografia, p.5. In Texto publicado na Revista Brasileira
de Informação Bibliográfica em Ciências Sociais – BIB. Congresso realizado pela ALER – Associação Latino-
Americana para o Estudo das Religiões – São Bernardo do Campo, de 3 a 7 de julho de 2006.
24
Reginaldo PRANDI. O que você precisa ler para saber quase tudo sobre as religiões afro-brasileiras ou As religiões
afro-brasileiras nas ciências sociais: uma conferência, uma bibliografia, op.cit.
25
Abelardo DUARTE. O folclore negro das Alagoas, p. 33.

33
cultura negra em Alagoas. O “espírito associativo” mencionado, se posto numa perspectiva de
processo histórico e não somente “biológico”, indicaria a força da sociabilidade produzida na região
e expressa na diversidade cultural e, por fim, religiosa.
(3) O terceiro período, em que se iniciou uma renovação das pesquisas, vai de 1970 até o
momento. A expansão das religiões afro-brasileiras atraiu a atenção dos pesquisadores de diferentes
áreas, como psicologia, educação, saúde pública, além das tradicionais áreas das ciências sociais e
da história. Foram entendidas, entre outras interpretações, como: (a) um movimento social
religioso; (b) parte do processo de “ressacralização” da vida moderna; (c) culturalidade dinâmica do
processo de formação histórica do Brasil. A quantidade de trabalhos seria, portanto, considerável.
Segundo Prandi, superaria “os três mil exemplares, sendo a maioria, produção brasileira”. Aqui,
indicam-se alguns que se destacaram no quadro geral. Os trabalhos de Yvonne Maggie Alves Velho
(Guerra de Orixá: um estudo de ritual e conflito, 1975), Renato Ortiz (A morte branca do feiticeiro
negro, 1978) e, Beatriz Góis Dantas (Vovó Nagô e Papai Branco: usos e abusos da África no
Brasil, 1982). Esses autores trabalharam em diferentes perspectivas com releituras da situação das
religiões afro-brasileiras no ambientes urbanos, buscando reinterpretar e atualizar informações dos
chamados “estudos clássicos”, principalmente no que diz respeito ao processo de sincretismo, à
manutenção das relações comunitárias nos ambientes urbanos e à composição étnico-racial dessas
religiões.
Outras obras contemporâneas deram continuidade na atualização dos dados: o sociólogo
Reginaldo Prandi (Os Candomblés de São Paulo, 1991; Mitologia dos Orixás, 2001 e outros) e o
antropólogo Vagner Gonçalves da Silva (Os Orixás na Metrópole, 1995, Candomblé e Umbanda:
caminhos da devoção brasileira, 2000 e outros) têm escrito grande parte da bibliografia sobre os
Candomblés de diferentes nações em São Paulo, com muitos orientandos produzindo através de
pesquisas de campo em nível de mestrado e doutorado. Também para São Paulo tem-se o sociólogo
Lísias Nogueira Negrão (Entre a cruz e a encruzilhada: formação do campo umbandista em São
Paulo, 1996) que apresenta uma análise weberiana da formação da Umbanda além de outros temas
como migração religiosa e conversão. A tese do sociólogo Ulisses Neves Rafael, (Xangô Rezado
Baixo: Um Estudo da Perseguição aos Terreiros de Xangô em Alagoas em 1912, 2004) foi um dos
pontos de virada para as pesquisas sobre as religiões afro-brasileiras naquele estado, ao resgatar o
episódio Quebra de Xangô e explicitar as relações de poder que envolviam os interesses de
perseguição às religiões afro-brasileiras durante a República Velha. Acompanha também a
produção atual da Revista Kulé-Kulé, multidisciplinar, organizada por uma equipe de sociólogos,
antropólogos e historiadores membros do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da Universidade
Federal de Alagoas (NEAB-UFAL). A Kulé-Kulé em seu número 04 (2008) trouxe um especial

34
sobre as religiões afro-brasileiras com uma série de artigos e um mapeamento dos terreiros de
Candomblé, Umbanda e outros na cidade de Maceió, em que se criava uma base de referência para
futuros estudos.
A área de psicologia social contribui com alguns textos. Entre outros o livro A Alma
Africana no Brasil: os iorubas (1996) de Ronilda Iyakemi Ribeiro analisava a contribuição da
cultura iorubana, com explicações sobre sua cosmologia e estrutura psíquica da pessoa humana.
Segundo Ribeiro, “para o negro-africano o visível constitui manifestação do invisível”. Dessa
forma, “para além das aparências encontra-se a realidade, o sentido, o ser que através das aparências
se manifesta”. E, “sob toda manifestação viva” residiria “uma força vital”:
(...) de Deus a um grão de areia, o universo africano é sem costura (Erny, 1968:19) Universo
de correspondências, analogias e interações, na qual o homem e todos os demais seres
constituem uma única rede de forças. O sagrado permeia de tal modo todos os setores da vida
africana, que se torna impossível realizar uma distinção formal entre o sagrado e o secular,
entre o espiritual e o material nas atividades do cotidiano. Uma força, poder ou energia
permeia tudo. Como diz Tempels (1949), o valor supremo é a vida, a força, viver forte ou
força vital. Essa força não é exclusivamente física ou corporal e sim uma força do ser total,
sendo que sua expressão inclui os progressos de ordem material e o prestígio social.
Felicidade é possuir muita força e infelicidade é estar privado dela. Toda doença, flagelo,
fracasso e adversidade são expressões da ausência de força. Prole numerosa é uma das
expressões de força. A força é adquirível, transmissível, pode aumentar e diminuir até o
esgotamento total.26

As explicações de ordem psíquico-espiritual serviriam de aporte para o entendimento


profundo da religiosidade afro-brasileira indicando-o, por sua vez, a problemática de sua
reprodução em face à dominação sócio-econômica e cultural. Por outro lado, dados da psicologia
social auxiliariam, ao se refletir sobre a relação entre o coletivo e o indivíduo, ou seja, sobre a
construção das identidades individuais (pessoais e míticas) a partir das atividades de socialibilidade
visíveis nos cultos afro-brasileiros.
Como afirmado, textos históricos sobre as religiões afro-brasileiras são raros. A produção de
Wilson do Nascimento Barbosa, junto com Joel Rufino dos Santos (Atrás do Muro da Noite:
dinâmica das culturas afro-brasileiras) destaca-se na interpretação histórica com um olhar interno
para a estrutura religiosa e ideológica das culturas negras; do prof. Barbosa tem-se ainda Cultura
Negra e Dominação, 2003 e O Caminho do Negro no Brasil, 1999, somados a uma série de artigos
produzidos desde a década de 1980, que contemplam a historicidade da cultura negra e das religiões
afro-brasileiras. Os textos Recorrência Afro-religiosa e Nova Mística, 1996 e o mais recente Da
N’bandla à Umbanda: transformações na cultura afro-brasileira, 2008 constituem-se referência
para os estudos históricos. Ainda dentro do campo de análise materialista histórica, têm-se as obras
de Clóvis Moura (Rebeliões na Senzala, 1988, As Injustiças de Clio, 1990 e Dicionário da

26
Ronilda Iyakemi RIBEIRO. Alma Africana no Brasil: os iorubás, p. 18.

35
Escravidão Negra no Brasil, 2004) preocupadas com o resgate historiográfico do negro brasileiro,
questiona as teorias sobre o período escravista, que colocavam o negro como passivo diante da
opressão. Trabalho recente é o de Gonçalo Santa Cruz de Souza (A Casa de Airá: criação e
transformação das casas de culto nagô: Salvador, Rio de Janeiro, São Paulo e Campo Grande-MS,
2008) tese de doutorado defendida no departamento de História da FFLCH-USP. Nele, o autor
procurava historiar as transformações históricas nas casas de culto de tradição nagô, em ambientes
sociais que desafiariam a infra-estrutura do sistema capitalista.
Um novo período pode-se apresentar, enfim, a partir da promulgação da Lei 10.639/03, que
impulsionou certo aumento de produção sobre História da África e Cultura Afro-Brasileira, para
fins de ensino. Poderia advir daí para a área de História, um aumento do número de pesquisas
originais em diferentes departamentos de pós-graduação no Brasil, com a formação de africanistas e
especialistas em história afro-brasileira. Essas notas apresentadas servem como panorama para
poder-se incluir a problemática do debate teórico subjacente a elas. O modo como os historiadores
irão trabalhar com as religiões afro-brasileiras passaria pela escolha das balizas teórico-
metodológicas e de interpretação.

Teorias e Interpretações: a relação entre a história e a antropologia

Os Negros não se sentem frustrados de sua História porque eles jamais


tiveram História, e nem desejaram ter uma. Como os Gauleses ou os
Germanos de antes da conquista romana ou que numerosos povos asiáticos
ou oceânicos. Se eles desejassem hoje criar uma, seria o sinal de que eles
queriam entrar no jogo do Mundo, que é, em grande parte, o jogo do
Ocidente.
(H. Brunschwig. Histoire Passée et Frustration en Afrique Noire)27

Recusamos a teoria que nega a possibilidade de escrever a História da


África Negra, deixando a este continente o direito apenas de uma
etnohistória. Somos por uma história de múltiplas fontes e polivalente que
tome em conta absolutamente todos os vestígios humanos deixados pelos
nossos antepassados.
(KI-ZERBO, A História da África Negra, volume I, p. 17)

Desde que o homem existe, a história existe. (...) A escrita fixa a memória
da história, mas quem cria a história é a vida social.
(Dirceu Lindoso. Lições de Etnologia Geral, p. 56)

A chamada “virada antropológica” na História deu-se nas décadas de 1970 e 1980, com a
ampliação de temas de pesquisa ligados à cultura28. De fato, ao voltar o olhar para a temática

27
Annales, set.-out., 1962 in Dirceu LINDOSO. Lições de Etnologia Geral: introdução aos seus estudos e
princípios, p. 107.
28
Patrimônio intelectual e material – quase sempre heterogêneo, mas às vezes relativamente integrado, outras vezes
internamente antagônico, durável em seu conjunto, mas sujeito a contínuas transformações, em ritmo que varia segundo

36
cultural – movimento que já vinha acontecendo na historiografia desde o século XVIII e
intensificado com a Escola dos Annales – os historiadores puderam refletir objetos que, até então,
estavam mais fortemente vinculados às pesquisas antropológicas e etnológicas. Um aspecto a ser
levado em consideração nesse novo momento do século XX foram os contextos político-
econômicos do “Terceiro Mundo” e as pesquisas sociais aí desenvolvidas. As lutas de
independência em África, contra os regimes totalitários na América Latina e a valorização dos
estudos culturais populares, impunham novas necessidades à disciplina.
Ou seja, percebia-se que, diferente do embate político oficial, formas culturais subalternas29
serviam nesses contextos como instrumentos de contestação (no caso da América Latina),
valorização e criação de uma identidade local de resistência em contraponto ao colonialismo (no
caso de África), etc. Parte dos estudos históricos sobre as culturas passaram a buscar referências
teóricas, conceitos e ferramentas metodológicas capazes de extrair um entendimento completo
dessas realidades sociais específicas e a se fazer a crítica do tipo de produção existente até o
momento. A interdisciplinaridade, nas ciências sociais e humanas, passou a ser uma aliada para tais
estudos. Historiadores, educadores e outros começaram a utilizar, por exemplo, as metodologias de
pesquisa-ação e pesquisa-participante, em clara afirmação de posições políticas vinculadas à
prática de pesquisas diversas.
A preocupação aqui seria discutir parte da problemática criada nesse amplo contexto de
produção. Para aí identificar alguns caminhos de pesquisa aos historiadores. Busca-se refletir, em
especial, a relação interdisciplinar da História com a Antropologia e a Etnologia. É necessário para
isso apresentar sucintamente o entendimento que se tem dos conceitos e das escolas teóricas
utilizados nesse diálogo. Primeiro: o que se entende por História. Segundo: o que se entende por
Antropologia e Etnologia. Essa preocupação não seria meramente didática. Ela indica a priori a
escolha de determinados métodos; e também o enfoque dado à pesquisa. Além do mais existem
diferentes definições para estes termos ou áreas que se modificaram ao longo do tempo, em função
de seus “usos e abusos”; mudanças de paradigmas, novas teorias que puseram em cheque as
anteriores, tensões políticas no campo da ciência, etc. Faz-se útil, pois, esclarecê-los.

a natureza dos seus elementos e das épocas – constituído por: (a) por valores, normas, conceitos, linguagens, símbolos,
sinais, modelos de comportamento, técnicas mentais e corporais, com função cognitiva, afetiva, valorativa, expressiva,
reguladora, manipuladora; (b) pelas objetivações, suportes, veículos materiais ou corporais dos mesmos; (c) pelos meios
materiais para a produção e a reprodução social do homem, que é produzido e desenvolvido inteiramente pelo trabalho e
pela interação social, patrimônio esse geralmente herdado das gerações passadas, inclusive de outras sociedades, e
somente em pequena parte produzido originalmente ou modificado pelas gerações vivas – que os membros de uma
determinada sociedade compartilham, em variada medida, ou a cujas partes podem seletivamente ter acesso ou dele se
apropriar, sob certas condições. DICIONÁRIO DE SOCIOLOGIA. Cultura, p. 174.
29
Ver abaixo essa discussão.

37
Para o historiador iniciante, a definição de sua disciplina, ou do campo de ação de sua área,
nem sempre está claro. Muitas vezes, em sala de aula, estudantes e professores ao falarem sobre
história têm entre si concepções muito diferentes. Entre os pesquisadores é provável que essa
diferença aumente consideravelmente, já que aí se colocam as balizas de escolas teóricas, temas e
métodos. Dessa forma, a concepção apresentada seria aquela que se tem como referência para
pesquisa e que expressaria melhor a prática historiográfica, como ofício (Marc Bloch) e como
práxis política. Entende-se a História como a ciência que estuda as transformações na sociedade
humana no tempo e no espaço. Sua preocupação é descrever, analisar e interpretar essas
transformações, numa relação dialética entre passado e presente. É ciência porque se esforça para
que o conhecimento produzido tenha “validade em si mesmo” e não seja simplesmente “senso
comum” ou meras opiniões eruditas. Para isso, desenvolve um ferramental metodológico que
sistematiza os passos para a pesquisa, sem amarrar o processo. A História, já dizia um mestre, é a
disciplina que melhor desenvolve consciência crítica. Seu próprio campo de ação e reflexão levaria
a isso. Ao estudar história, percebe-se que, quanto mais se entende os processos e as
transformações, mais se observa a historicidade (historidade) da construção da sociedade, da
cultura e das concepções que explicam aquilo que seria o “homem”, a identidade do humano. Essa
reflexão sobre o que é história e suas atribuições levaria a diferentes explicações e posicionamentos.
Destaca-se que a história é ao mesmo tempo a ciência, o método e o processo coletivo de
construção de conhecimento (práxis) sobre as transformações no tempo e no espaço que leva a uma
percepção mais consciente do local social (do lugar) em que se está inserido como indivíduo e
como grupo. História é também a hipótese ideológica (ideologia social) de que as coisas se passem
para a humanidade, de uma determinada maneira (evolutiva). Há, assim, necessariamente, uma
consequência política em qualquer produção historiográfica: pode ser transformar e interferir no
processo histórico ou a manutenção e a justificação das estruturas dominantes. A maioria dos
cientistas concorda que não existe ciência neutra. Afirma-se aqui, como outros, que não há
pesquisa histórica neutra.
Entende-se que, em tais afirmações, há uma série de pressupostos ligados ao
desenvolvimento da disciplina no Ocidente. De fato, a História como produção acadêmica é
estreitamente vinculada às bases filosóficas e teóricas da visão de mundo do homem ocidental. Ela é
etnocêntrica, mais precisamente, eurocêntrica. No entanto, muitos historiadores dos países que
foram colonizados reapropriaram-se dessa base teórico-metodológica e a utilizaram para a crítica. E
como aporte de mudança das diferentes realidades nacionais desde a dominação colonialista
(imperialista). Entra-se, pois, como na epígrafe acima, no “jogo do Ocidente”. Vale lembrar que

38
esse jogo é passível de regras: as estruturas sócio-políticas e econômicas que foram construídas
historicamente podem ser (e são), da mesma forma, desconstruídas.
Outra perspectiva é entender a história como a percepção da mudança no tempo,
independente de se ter isso entendido como ciclo ou crescimento30. Essa percepção humana não é
privilégio do Ocidente. A tradição ocidental não foi a única, nem mesmo a primeira, criadora de
formas de registro, e aí deve-se incluir também da oralidade (memória), em função da preservação
dos acontecimentos importantes para o grupo social e as futuras gerações. Se retomar-se a história
da história vê-se que o grego Heródoto aprendeu com os egípcios, africanos. Os chamados povos
ágrafos criavam seus relatos dos fatos precedentes. Por exemplo, os griots31, contistas oficiais no
Reino do Mali, mantinham listas dos seus reis – que podiam contar com centenas de nomes –
preservados na memória, para ser resgatados pelo grupo através desse especialista. O
desconhecimento ou a desconsideração desses fatos na produção histórica ocidental diz respeito à
visão de que a África estaria presa num continuísmo ou num passado pré-histórico, passando a
existir somente a partir da Colonização e do contato como o europeu; dependente do exterior para
que transformações internas ocorressem. Como afirmava o historiador Elikia M’Bokolo, “longe de
ser recheada apenas com as continuidades, este tempo longo do passado africano foi talvez, em
primeiro lugar, o das invenções contínuas, sob a forma de uma incessante bricolagem, de laboriosas
adaptações ou de rupturas radicais”32.
Vê-se assim que a herança eurocêntrica da história como produção acadêmica e práxis social
das elites está sofrendo um processo sistemático de desconstrução, a partir do surgimento de novas
posturas nas pesquisas e da utilização dos novos métodos e fontes. A Antropologia, também nesse
sentido, é uma ciência que surgiu no âmbito do colonialismo entre os séculos XVIII e XIX. De
modo geral, a antropologia estuda o homem e a humanidade em todas as suas dimensões. Segue as
definições do antropólogo Vagner Gonçalves da Silva:
A Antropologia é o estudo do homem como ser biológico, social e cultural. Sendo cada uma
destas dimensões por si só muito ampla, o conhecimento antropológico geralmente é
organizado em áreas que indicam uma escolha prévia de certos aspectos a serem

30
Segundo Luis SUÁREZ, “o suceder histórico, esta grande aventura coletiva da Humanidade, pode ser concebido de
duas maneiras radicalmente distintas: ou como um processo ideal de crescimento até uma meta situada dentro ou fora
do tempo ou como uma cadeia cíclica de repetições semelhantes ao processo biológico que aparece cada ser orgânico
individualmente considerado. No primeiro caso se entende que o processo humano é único. No segundo é múltiplo e
cada entidade – polis, nação ou cultura – se desenvolve separadamente. O entendimento da História como uma só linha
ascensional supõe a admissão de certos objetivos para a Humanidade, que estão fora dela. A explicação cíclica se apóia
no conceito de que as sociedades humanas têm em si mesmas comprimento.” In SUÁREZ, L. Grandes
interpretaciones de la Historia, pp. 18-19.
31
Uma produção histórica maior sobre os griots tem surgido nos últimos anos. Leva-se em conta neles os debates sobre
a oralidade com auxílio inclusive da área de linguística. Os historiadores africanos e africanistas têm se debruçado sobre
os diferentes registros feitos em África, numa busca sistemática por desconstruir os discursos racistas sobre o continente
africano.
32
Elikia M’BOKOLO. África Negra: História e Civilizações. Tomo I, p. 12.

39
privilegiados como a “Antropologia Física ou Biológica” (aspectos genéticos e biológicos do
homem), “Antropologia Social” (organização social e política, parentesco, instituições
sociais), “Antropologia Cultural” (sistemas simbólicos, religião, comportamento) e
“Arqueologia” (condições de existência dos grupos humanos desaparecidos). Além disso,
podemos utilizar termos como Antropologia, Etnologia e Etnografia para distinguir diferentes
níveis de análise ou tradições acadêmicas. Para o antropólogo Claude Lévi-Strauss
(1970:377) a etnografia corresponde “aos primeiros estágios da pesquisa: observação e
descrição; trabalho de campo”. A etnologia, com relação à etnografia, seria “um primeiro
passo em direção à síntese” e a antropologia “uma segunda e última etapa da síntese,
tomando por base as conclusões da etnografia e da etnologia”. Qualquer que seja a definição
adotada é possível entender a antropologia como uma forma de conhecimento sobre a
diversidade cultural, isto é, a busca de respostas para entendermos o que somos a partir do
espelho fornecido pelo “Outro”; uma maneira de se situar na fronteira de vários mundos
sociais e culturais, abrindo janelas entre eles, através das quais podemos alargar nossas
possibilidades de sentir, agir e refletir sobre o que, afinal de contas, nos torna seres
singulares, humanos.33

A objetividade das definições de Silva jogaria luz na discussão. Percebe-se em sua definição
já uma tentativa de superação do ponto de vista etnocêntrico na questão da alteridade. A princípio,
“o Outro” para o ocidental era o selvagem ou o bárbaro.34 O evolucionismo do século XIX na
antropologia influenciou a primeira geração de estudos sobre a cultura negra no Brasil, como já
apontado, com Nina Rodrigues. Na sequência, o culturalismo norte-americano influenciou os
trabalhos de Arthur Ramos, Gilberto Freyre e outros etnólogos. Estes fizeram nos anos 1930 a 1940
os estudos étnicos culturais no país com preocupações claras sobre a formação e afirmação da
identidade brasileira. No Brasil, o “Outro” (africano, indígena) transformar-se-ia em “Nós”, via a
mestiçagem e o discurso da democracia racial, sem de fato, haver uma integração no plano social e
econômico da maior parte da população.
Os historiadores, no que diz respeito à produção acadêmica sobre cultura negra no Brasil,
como visto, só irão contribuir a partir de meados das décadas de 1970 e, mais fortemente, nas
décadas de 1980 e 1990. Dessa forma, os dados etnográficos colhidos desde o início do século XX
começaram a ser trabalhados numa perspectiva histórica. É certo que a relação entre a história e
antropologia foi discutida desde Franz Boas, sobre a utilidade do método histórico para a
antropologia em produção do final do XIX. E, no século XX, com os trabalhos de Claude Lévi-
Strauss, Evans-Pritchard e Marshall Sahlins. As escolas interpretativas apresentadas foram
incorporadas em diferentes produções historiográficas. O movimento contrário também surgiu. As
reflexões dos antropólogos e etnólogos sobre os usos da História em suas áreas contribuíram muito
para a crítica daqueles pressupostos do colonialismo. Observe-se o comentário de Dirceu Lindoso
sobre isso:

33
Vagner Gonçalves da SILVA. Antropologia. Disponível em http://www.fflch.usp.br/da/vagner/antropo.html. Data de
acesso: 15/11/2009.
34
Um exemplo da objetividade dessa assertiva seria a ideologia e as práticas Bôers na África do Sul, a partir do século
XVI.

40
O etnólogo, ao contrário do historiador, deve desenvolver em sua aprendizagem de campo
uma percepção antropológica da expressão povo sem história. Saber que a expressão expressa
um simulacro, e que esse simulacro se produz em função da maneira como a história se
apresenta na estrutura social das sociedades primitivas que nos são contemporâneas. Não é
que a história não exista. É que a história existe. De uma maneira sutil, e age na estrutura
social das sociedades primitivas. Isso é o que chama de agir de certa maneira. Todos os povos
têm história, mesmo os pré-históricos, porque são os nossos antepassados. E ter um
antepassado é ter uma história. E se ela é perceptível ou não, isso é outra história. Mas a
percepção antropológica da história deve ser criada, só que não pode ser criada ao modo da
escrita, criada pelas técnicas mnemotécnicas dos alfabetos e ideogramas. Desde que o homem
existe, a história existe; só que para ser criada a história escrita, as sociedades tiveram que se
dividir em classes, com cujo tempo disponível adveio a escrita. A escrita fixa a memória da
história, mas quem cria a história é a vida social.35

Também é certo que uma produção histórica voltada para a cultura no século XX explorou
junto ao desenvolvimento das teorias antropológicas possibilidades de análise com novos temas. A
História Cultural não seria, nas palavras de Peter Burke, “uma descoberta ou invenção nova”. Ele
divide-a em quatro fases: (a) a fase “clássica” entre 1800 e 1950 – Jacob Burkhardt (A cultura do
Renascimento na Itália, 1869) e Johan Huizinga (O outono da Idade Média, 1919); (b) da “história
da arte”, que começou na década de 1930 (Aby Warburg; Fritz Saxl; Edgar Wind e Erwin
Panofsky); (c) a descoberta da “história da cultura popular”, na década de 1960 (Eric Hobsbawm;
Edward Thompson; Jacques Le Goff); e (d) a “nova história cultural”, final da década de 1980
(Lynn Hunt; Natalie Davis, Jacques Le Goff e outros com influências de Mikhail Bakhtin, Norbert
Elias, Michel Foucault e Pierre Bourdieu).36 De acordo com Burke, a respeito da “nova história
cultural” (NHC) “a realização coletiva das duas ou três últimas décadas é considerável, e o
movimento torna-se mais impressionante quanto visto como um todo. Se ocorreram poucas
inovações de método, no sentido estrito do termo, muitos novos temas foram descobertos e
explorados com a ajuda de novos conceitos”. Mesmo com certa continuidade entre os períodos teria
havido, segundo Burke, “um deslocamento ou uma virada coletiva na teoria e na prática da história
cultural”, com uma “mudança de ênfase mais que a ascensão de uma coisa nova”. No entanto, isto
não teria se dado sem contestações. Lembra Burke que a teoria subjacente à nova história cultural
foi questionada por historiadores como Edward Thompson (“A pobreza da teoria”, 1978). Ainda
segundo Burke, “o tradicional conceito antropológico de cultura como um mundo concreto e
delimitado de crenças e práticas foi criticado com base na afirmação de que as culturas são locais de

35
Dirceu LINDOSO. Lições de Etnologia, p. 56. O autor afirma nesse texto como é importante entender essa
explicação para a etnologia, diferente da discussão historiográfica. A referência a povos sem história vem de Hegel em
sua obra Filosofia da História. A negação da possibilidade dos povos africanos de ter história, por exemplo, é a máxima
expressão do eurocentrismo e está de acordo com a mentalidade colonialista do século XIX.
36
Peter BURKE. O que é História Cultural?, pp. 15-96.

41
conflitos, e integradas de maneira frouxa”. Outra controversa seria a respeito dos conceitos de
“construção cultural da realidade” e “representação”.37
Percebe-se que a ampliação das temáticas e o contato com outras áreas das ciências sociais
levaram os historiadores da cultura a refletir as implicações de suas escolhas teóricas em novos
níveis, às vezes, criando-se novas dificuldades. Exemplifica-se parte delas a partir de elementos
específicos da área desta pesquisa.
Dentre os temas da cultura que a história passou a lidar têm-se aqueles das religiões ou
religiosidades. A área de História das Religiões é uma das que mais produziram nas últimas décadas
e que está também particularmente utilizando elementos advindos da antropologia e outras ciências
sociais e humanas. O objeto de pesquisa “religiões” cresceu junto com a História Cultural, mas logo
abriu um campo próprio com perspectivas teórico-metodológicas bem diversas.38 Fica explícito em
um primeiro momento a escolha do termo religiões em detrimento da religião no singular. Uma
primeira ruptura teria sido aquela tentativa nas ciências sociais em desteologizar os estudos de
religião e levá-los para o campo das possibilidades de análises científicas. Nesse aspecto importou
em especial a “antropologia religiosa”, área de confluência entre a história das religiões e a
antropologia cultural. Em outro nível também os trabalhos de E. Durkheim, L. Feuerbach, Karl
Marx, Max Weber e outros. A abertura para o conhecimento do “Outro”, a crítica ao etnocentrismo
(eurocentrismo) e os estudos das relações entre Ocidente e o “Terceiro Mundo” expressos nos
movimentos religioso-sociais (no “Terceiro Mundo” em especial) foram importantes para que os
historiadores das religiões e os etnólogos colocassem alguns problemas epistemológicos. Afirmava
Massenzio:
O fato de assumir como objetivo o conhecimento do culturalmente diverso criou, e continua a
criar problemas epistemológicos muito complexos, para os quais os estudiosos deram
soluções divergentes no curso do tempo. Por exemplo, com o auxílio de quais critérios, de

37
Peter BURKE, op. cit., pp. 97-98. Burke afirmava sobre este debate que a “idéia de representação” é um conceito
central da NHC. “Ela parece significar que imagens e textos simplesmente refletem ou imitam a realidade social. No
entanto, vários praticantes da NHC há muito se sentem desconfortáveis com essa implicação. Em decorrência, tornou-se
comum pensar e falar em “construção” ou “produção” da realidade (do conhecimento, territórios, classes sociais,
doenças, tempo, identidade e assim por diante) por meio de representações”. (...) Seria, segundo Burke o que Roger
Chartier chamava de “um recente deslocamento da história social da cultura para a história cultural da sociedade”, nos
interesses dos historiadores na década de 1980, especialmente o “distanciamento com relação à história social no
sentido “duro”, do estudo de estruturas como as classes sociais”. Isso revelaria, para Burke, “a influência sobre a NHC
do movimento do “construtivismo” na filosofia e em outras disciplinas, da sociologia à história da ciência”. Peter
BURKE, op. cit., pp. 99-100.
38
Massenzio apresenta três vertentes teóricas na história das religiões, tal como entendidas pela Escola Italiana: (a) a
vertente sistemática: Müller, Taylor e Durkheim; (b) a vertente fenomenológica (essencialista): Otto, Van der Leuw e
Eliade, e; (c) a vertente italiana: Petazzoni, De Martino, Lanternari e outros. (MASSENZIO, M. A. História das
Religiões na cultura moderna, pp. 11-27) Há de se considerar também a História Religiosa dos franceses. De fato, a
produção de Eliade está muito próxima da produção das Ciências da Religião, de base teológica. Apesar disso, a
tentativa de criar interpretações gerais para o fenômeno religioso humano, levou essa escola também a utilizar
amplamente os métodos da etnografia e etnologia, no levantamento de dados específicos e síntese sobre diferentes
religiões no mundo.

42
quais categorias interpretativas pode-se adequadamente estudar civilizações que não
participam da tradição ocidental? Como reflexo, a questão geral tem a ver com o papel do
Ocidente dentro de um cenário cultural enormemente dilatado. Quanto à religião, coloca-se,
nesse âmbito, um quesito fundamental: é suficiente, é apropriada a bagagem conceitual
forjada de maneira prevalecente em função do cristianismo para o estudo de outros universos
religiosos? Ou seria necessário construir outros quadros de referência? Levar em conta tais
perguntas, repensá-las à luz da história do pensamento antropológico e histórico-religioso
contemporâneo significa enfrentar o problema da religião de modo novo, consoante ao tempo
em que estamos vivendo.39

Um exemplo clássico desse debate é a “noção ocidental de magia”. Segundo Massenzio tal
noção é o produto de “longuíssimo processo cultural” que caracterizou de maneiras nem sempre
uniformes, as fases históricas do Ocidente. Assim, a “polêmica magia x religião” e a consequente
desvalorização da magia representavam algumas dessas etapas mais importantes. Ficava claro para
o autor que:
Do que foi dito (...) evidencia-se que existe uma ligação inextrincável, de natureza dialética,
entre o plano da criação cultural (que compreende tanto as elaborações conceituais quanto os
juízos de valor) e um determinado âmbito histórico. Como conseqüência, qualquer produto
cultural, qualquer noção, não pode ser alienado do contexto que contribuiu de maneira
decisiva para conferir a eles uma fisionomia bem determinada. Concretamente, analisar as
“outras” culturas, que não foram tocadas pela polêmica antimágica típica do Ocidente por
meio do conceito de magia que é fruto maduro dessa polêmica, representa uma incongruência
epistemológica, a qual não pode produzir ganhos no plano do processo cognitivo.40

Nesse sentido, os estudos sobre as religiões negras no Brasil ou afro-indígenas sofreram


dessa transposição de conceitos. Às vezes, refletindo conflitos do âmbito social: étnicos e/ou
político-religiosos. O histórico ataque às religiões de matrizes africanas e indígenas foi posto em
termos de conflito entre magia (“falsidade”) e religião (“verdade”) em vários momentos. Sendo
categorizada como de menos “valor” as religiões ditas “mágicas”. De fato, o próprio uso da
categoria “religião” gera ainda polêmica, pois se costuma em certos meios cristãos, católicos e
protestantes, denominá-las “seitas” adjetivadas de “demoníacas”. Vê-se que mesmo considerando
tal polêmica como conflitos ou concorrência entre os campos religiosos, ou racismo na sociedade
brasileira, haveria, de fato, uma utilização, nas pesquisas sobre religião no país, dessas categorias
sem uma reflexão sobre a construção histórica desses conceitos. O mesmo pode ser dito do termo
“mito”, que na civilização ocidental “sofre o efeito do condicionamento exercido a partir da
filosofia grega”, na oposição entre logos (o discurso racionalmente estruturado) e mythos (o
discurso que desconhece a estrutura lógica).41 Assim, nenhum conhecimento que esteja fora do

39
Marcello MASSENZIO. A História das Religiões na cultura moderna, p. 38.
40
Marcello MASSENZIO. Op. cit., pp. 44-45.
41
Marcello MASSENZIO. Op. cit., p. 47. A vertente fenomenológica na história das religiões procurou criar uma
categoria explicativa para mito como estrutura arquetípica contraposta, por exemplo, à realidade. A partir da concepção
jungiana, Eliade, Campbell e outros afirmaram que a humanidade teria desenvolvido ao longo do tempo determinadas
categorias de mitos universais, com diferentes interpretações culturais que espelham um inconsciente coletivo humano.
Tais estudiosos ultrapassam a perspectiva ocidental para mito, ao dar a este um valor de sabedoria humana profunda,

43
âmbito do simbolicamente dominante na sociedade é considerado em sua explicação interna e
válido. Transformaram em folclore as mitologias afro-brasileiras, em oposição aos mitos bíblicos,
tratados como sabedoria ou “verdade em si mesmos”. O esforço para desteologizar os estudos de
religião soma-se ao de descristianizar seus conceitos e referências. Eis aí, o desafio posto no
questionamento acima de Massenzio.
Tem-se que essa discussão, na história das religiões, tendeu a incorporar as lutas ideológicas
das sociedades em que tais estudos se fazem. Nas sociedades latino-americanas, com as mudanças
no âmbito da pertença religiosa da população, fica claro que não se pode mais lidar com categorias
fixas. A pertença religiosa dupla ou, às vezes, múltipla surgiu na coleta de dados das pesquisas de
sociologia da religião e começou a serem aceitas como uma realidade da prática religiosa do povo
brasileiro. Muitas pessoas frequentam diferentes religiões ao longo da vida, sentindo-se vinculadas
a cada uma delas, sem conflitos. Outro ponto, indicado no último censo de 2000, foi o aumento dos
fiéis nas religiões cristãs neopentecostais, e o aumento daqueles que se identificavam como sem-
religião. Por outro lado, teve-se a diminuição daqueles que se identificavam como membros das
religiões afro-brasileiras e, nas últimas décadas, a perda de fiéis pela Igreja Católica. Essas
informações ultrapassam o âmbito cultural e trazem questões para a história das religiões no modo
como elas se desenvolveram no Brasil, como também as influências das mudanças na vida sócio-
econômica do país que interferiram nessas transformações. Ao se olhar historicamente para as
religiões no Brasil, ver-se-á uma clara oposição entre o modo como as religiões populares (afro-
indígenas; catolicismo e cristianismo popular etc) se desenvolveram, interpenetraram-se e
conviveram ao longo do tempo – e o modo como as hierarquias e instituições religiosas,
especialmente, católicas e agora também evangélicas – relacionaram-se com o Estado e os
governos, na manutenção das estruturas dominantes.
Voltando o olhar para a relação entre história e antropologia, pensa-se que tais relações
teórico-metodológicas, partem de uma tradição de debates bastante profícua e longa, de fins do
século XIX ao XX. Cada uma delas procurou aprender com a outra os enfoques necessários para
um entendimento mais amplo e aprofundado das temáticas culturais. Com o acima exposto,
percebe-se que as divergências em torno de Diacronia e Sincronia, parecem ser as maiores entre
História e Antropologia. Ou melhor, entre certas ciências sociais e a histórica. Veja-se abaixo uma
tentativa de sistematização dessas diferenças:

mas tendem a transcender seus sentidos das realidades históricas que os construíram. Os conceitos de Sagrado e o
Profano, em Eliade, seguem nessa linha, distinguindo como dois níveis opostos, mas que dialogam.

44
SEMELHANÇA DIFERENÇA
Analogia Especificidade
Combinação Típico
Continuidade Único
Tipologia Não-repetível; individual;
Ciências Humanas História
Sincronia Diacronia
Estático Dinâmico; estrutura, rede, valor posicional.
Fonte: Sara Albieri. Curso Teoria da História, Dept. História, USP, 03/07/2008.

Essas distinções têm um caráter de esclarecimento no sentido do método utilizado para a


construção das interpretações desta pesquisa. Para o historiador, os estudos de caso das religiões
afro-brasileiras, por exemplo, devem ser constantemente refletidos à luz das transformações
históricas do período estudado. Ou seja, não se deveria parar na etapa da coleta de dados e análise
interna deles, mas criar explicações históricas sobre tais elementos, com o intuito de compreender
no tempo e no espaço suas mudanças. A interdisciplinariedade deveria nesse caso servir de apoio.
Como diria Max Weber cada área das ciências sociais é uma “diferente porta que leva a uma mesma
sala”. O entendimento dado, a partir de Lindoso, quando afirmava que, “a escrita fixa a memória da
história, mas quem cria a história é a vida social”, colocaria em perspectiva os sujeitos desse
processo histórico. O estudo da vida social do afro-brasileiro explicitaria uma história afro-
brasileira.
Por outro lado, a crítica ao eurocentrismo, presente nas bases dessas ciências (sociais e
humanas), precisa também ser levada em consideração. Mantendo as velhas perguntas que os
historiadores fazem às suas fontes: Quem a criou? Com que intenção? Para quem? E, no contato
com a observação sistemática ou na oralidade, perceber como aquele indivíduo e/ou aquele grupo
interpretam suas práticas, vivem seu cotidiano, transmitem seus conhecimentos, etc. É no caminho
do geral para o particular e do particular para o geral, na relação entre a teoria e a empiria e no
esforço de criar explicações interpretativas, que os historiadores poderão contribuir para o
entendimento e transformação das realidades sociais. Nesse caso específico, contribuirá na luta anti-
racista no país. A partir dessa base teórica, aproximar-se-á das religiões afro-brasileiras, em especial
do Candomblé e da Umbanda, problematizando as transformações sofridas e vivenciadas na
segunda metade do século XX.

Características estruturais das religiões afro-brasileiras: estudos de mitologia e mística


A caracterização das religiões afro-brasileiras sofreria de uma “intromissão” de elementos
explicativos baseados no cristianismo e distantes de sua realidade cultural afro-indígena. O esforço
de descristianização não seria tarefa fácil. Portanto, as tipologias apresentadas merecem algumas

45
distinções iniciais. Para isso, buscou-se primeiramente indicar os elementos de africanidade
presentes nelas e, por fim, destacar as especificidades da ressignificação criada no Brasil, a partir do
século XVI. Especialmente, dá-se atenção às formas das religiões tal como se apresentaram a partir
dos anos 1970 até 2000. Da bibliografia especializada consultada, destacar-se-á aquela que dialoga
de modo mais próximo com as interpretações eleitas para a explicação das transformações
históricas. Leva-se em consideração também os estudos de simbologia e mitologia para
decodificação das representações religiosas e sua ideologia.
De modo geral, as religiões afro-brasileiras Candomblé e Umbanda apresentam as
características de serem cultos coletivos de cura e louvação aos ancestrais e deuses, através do
transe mediúnico42 da dança sagrada e do uso da medicina natural. Em África, as relações eram
estabelecidas de acordo com o culto familiar ou comunitário a uma divindade principal. No Brasil,
em situação de cativeiro, ocorreram as aproximações entre os cultos familiares ligados às “nações”
de origem e os cultos dos companheiros outros de escravidão (malungos), onde novas relações
familiares por solidariedade foram estabelecidas. Com isso, criou-se um sistema de práticas e
valores religiosos baseado na memória cultural africana, em que foi possível agregar todos aqueles
que estavam “desenraizados”, inclusive, indígenas e brancos pobres. Dois fatores seriam essenciais,
portanto, (1) a preocupação com a saúde psíquica e física dos indivíduos; e (2) a socialização do
coletivo, através da manutenção da memória do lugar de origem e dos conhecimentos “sagrados”
sobre o funcionamento e ordenamento do cosmos (natureza e sociedade humana). Sendo, pois, a
culturalidade africana muito antiga no seu processo de hominização, a dinâmica da (re)construção,
como diria Barbosa, da “comunidade por negação” constituiu-se uma variedade de formas
religiosas que se estruturaram – pelo menos para os modelos atuais – a partir de 1850. Ouvia-se de
babalorixás e ialorixás, do Candomblé e da Umbanda, que as religiões afro-brasileiras “cultuam a
Natureza, o axé emanado dela”, na personificação dos orixás e entidades. Faz-se necessário uma
explicação mais detida sobre esses elementos.

42
Também chamado “possessão” ou “estado-de-santo”. Os adeptos do Candomblé e da Umbanda, às vezes, rejeitam o
termo possessão, pela sua associação à idéia de “possessão demoníaca” e chegam a justificar dizendo que se um
“demônio entrasse na pessoa ela não aguentaria e morreria”. Houve um avanço nos estudos sobre o transe nas religiões
afro-brasileiras, em que as categorias psiquiátricas foram abandonadas para explicações culturais e de mística
comparada. Para efeitos deste estudo, seguir-se-ão as definições propostas por Roberto Motta ao afirmar que o aspecto
essencial do transe seria a “tomada de posse do indivíduo, ou pelo menos de algumas de suas faculdades cognitivas ou
afetivas, por uma força concebida como diferente do próprio indivíduo ou, pelo menos diferente de sua personalidade
de base. Essa força, esse diferente, pode ser pessoal ou impessoal. Por uma espécie de corolário, o transe pressupõe que
o indivíduo saia de si mesmo (ou, se preferirmos, que caia no seu mais profundo centro), que supere a prisão mais
apertada, a barreira mais difícil de ser superada, que é a dos limites do próprio eu”. In Arthur Cesar ISAIA (org.).
Orixás e Espíritos: o debate interdisciplinar na pesquisa contemporânea. Segunda Parte: campo afro-brasileiro.
Capítulo 1: Candomblé, Xangô e Catimbó: transe de êxtase e transe de possessão no nordeste do Brasil, p. 100.

46
O Candomblé, termo de origem bantu, significando “dança com tambores” e ao mesmo
tempo, o local onde a dança se realiza, passou a ser também, segundo Nei Lopes, um “nome
genérico com que, no Brasil se designam o culto aos orixás jeje-nagôs e algumas formas dele
derivadas, manifestas em diversas “nações”.43 Por extensão,
(...) celebração, festa dessa tradição, xirê; comunidade-terreiro onde se realizam essas festas.
A modalidade original consiste em um sistema religioso autônomo e específico que ganhou
forma e se desenvolveu no Brasil, a partir da Bahia, com base em diversas tradições
religiosas de origem africana, notadamente da região do golfo da Guiné. Candomblés de
Congo e de Angola: Modalidades de culto aos orixás nos quais prevalece a utilização de
linguagem crioulizada originária respectivamente do quicongo e do quimbundo.
Estruturalmente, seus símbolos e práticas pouco diferem daqueles usados no candomblé jeje-
nagô. Sua aproximação com outras expressões da religiosidade banta, no Brasil e nas
Américas, parece ocorrer, pelo menos aparentemente, apenas no nível lingüístico.
Candomblé de caboclo: Variante do candomblé de nação angola, permeada de elementos da
religiosidade indígena e de práticas do espiritismo popular.44

A generalização do termo passaria pela caracterização do culto público aos orixás (iorubá,
nagô), voduns (jeje) ou inkices (congo, angola) onde os elementos do canto, da dança e do toque
dos tambores seriam centrais. Importaria, por outro lado, não confundir o ritual público com a
totalidade da ritualística e de suas práticas religiosas. Como afirmado por seus adeptos, a festa
pública é somente um dos momentos do culto, não necessariamente o mais importante. No entanto,
se considerar-se o processo histórico, as “terapias ngoma” (terapias do tambor) existentes em África
teriam surgido no mesmo período do avanço do colonialismo a partir do século XVII, o que poderia
inferir uma criação paralela entre as formas religiosas em desenvolvimento no continente africano e
aquelas que surgiram no Brasil.45 Ajudaria a explicar, inclusive, o chamado “sincretismo atlântico”
de povos bantu que teriam vindo já com alguns elementos de cristianização. O fato é que, ao longo
da história o tambor, como símbolo religioso e como elemento aculturativo negro, foi perseguido
em todos os locais da diáspora. Seu poder de agregação da população negra foi temido pela ordem
escravocrata e, posteriormente, capitalista, como instrumento da rebelião e da “desordem”. Na
verdade, para as religiões africanas e afro-brasileiras, o tambor, ao contrário, representaria e
funcionaria como um dos elementos auxiliares da ordem cósmica. Como mediador na relação entre
humanos e deuses ou ancestrais, seu poder estaria na captação das ondas de energia psíquica
coletiva, responsáveis pelo transe, sendo considerado, ele mesmo uma divindade, pela força de seu
axé. Essas características sacro-instrumentais do tambor, do canto e da dança nas religiões afro-
brasileiras teriam se mantido ao longo do tempo como parte importante do componente associativo

43
Nei LOPES. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, p. 162.
44
Idem, op. cit.
45
Ver mais dessa discussão no capítulo 2. Aqui se está refletindo sobre as respostas criadas pelas populações africanas e
afro-brasileiras ao embate com o colonialismo e a escravidão. A partir de elementos próprios de sua dinâmica histórica
e cultural, tais populações produziram uma ideologia e uma prática religiosa que tentava dar conta destes processos
dissociadores e violentos.

47
dos cultos e de marcação das experiências próprias da culturalidade negra. Talvez tenham sido os
elementos que mais auxiliaram na aculturação do branco europeu na Colônia e na produção da
cultura nacional no período republicano.
O axé (ashe, asé) seria a força vital presente em todas as coisas, materiais e imateriais,
humanas, divinas e naturais. Segundo Katherine Olukemi Bankole, “na narrativa sagrada dos
Iorubás, na tradição espiritual do Ifá, refere-se à força celestial sagrada, também chamada de
Olodumare, que trouxe à tona o universo”. Assim, a cosmologia iorubana entenderia o axé como “o
primeiro poder espiritual que existiu”. O Axé, determinado a ter forma, “tornou-se ele mesmo o
Criador, Olodumare”. Como Deus, “existe no centro de tudo que é e tudo que irá ser no mundo”.46
Essa ontologia cosmogônica variaria de interpretação no que diz respeito à aplicação do conceito e
à estruturação da vida social. Dessa forma, ainda segundo Bankole,
(...) As interpretações de variação do conceito confirmam que Axé é um exemplo preliminar
de uma força de organização que esclarece as origens e a natureza dos seres humanos e do
universo. Axé é entendido como a personificação do "poder divino, da autoridade, da ordem,
da forca vital”. Axé foi definido como uma combinação de "benevolência e poder". É “Deus
em Si Mesmo”. “Tudo que é compartilhado na essência divina e é, em consequência,
sagrado”. É um conceito fluido, nele constrói-se uma ponte sobre o espaço entre os mundos
visíveis e invisíveis. Existe em todas as coisas, contudo pode ser uma força ativa ou passiva.
Está sempre presente e não pode ser destruído. Compreende-se que um sacerdote ou uma
sacerdotisa poderiam chamar a presença do Orisha para aumentar seu Axé. O conceito é
relacionado igualmente à idéia de “alma” na aquisição dos usos dinâmicos do poder que
envolvem o mundo material. Nesta categoria espiritual africana, Axé exercita o controle
sobre os objetos. Um vê-o como a energia interior que reside em nosso íntimo.47

Tal conceito apresentaria uma dinâmica que se poderia considerar histórica, na interpretação
que se dá das forças de movimento da existência (do ser, do vir a ser, do devir). Na transposição
dessa idéia durante o período da diáspora africana, entrando em contato com o mundo cristão e
ameríndio, elaborou-se uma ideologia religiosa afro-brasileira em que a transmissão e a reprodução
do axé incorporavam uma “análise crítica” das condições objetivas de sua manutenção e se
articulava a partir delas. Por exemplo, as mudanças nos papéis dos gêneros nos rituais, quem seria
iniciado e/ou quais conhecimentos seriam transmitidos, etc. Assim, buscou-se assimilar, em função
de suas necessidades, as estruturas de “ordem” da religião oficial dos brancos e dos conhecimentos
nativos sobre o meio natural. Ou seja, se o axé é força ordenadora dos mundos natural e social, os
agentes do conhecimento sagrado africano trataram de descobrir e utilizar as formas em que se
percebia tal força e como se expressava no novo ambiente. A (re)criação dos deuses africanos no

46
ENCYCLOPEDIA OF AFRICAN RELIGION. Ashe, p. 74.
47
Idem, op. cit.

48
Brasil foi importante para a concretização e fixação do axé (fundamento48) que iria alimentar a
história afro-brasileira.
Sabe-se que, em África, a quantidade de deuses (orixás, voduns, inkices) é imensa. No
Brasil, convencionou-se considerar, no período estudado, os dezesseis orixás mais cultuados,
incluindo suas qualidades, numa redução que teve como função aglutinar as relações entre as
diferentes etnias e também por conta da perda do conhecimento do culto específico para aquelas
divindades. Um processo inverso também teria se iniciado ao se retomar, por exemplo, nos últimos
vinte anos com mais força, cultos que até então estavam enfraquecidos ou perdidos, como o culto a
Ifá-Orunmilá (divindade do conhecimento oracular). Atualmente, sacerdotes da África Ocidental
têm realizado cursos para preparar sacerdotes afro-brasileiros (do Candomblé e da Umbanda) para
exercer as funções de babalaôs (Pai do Segredo).49
Pai Célio de Iemanjá dizia que o orixá (divindade, personificação de forças da natureza ou
de ancestrais divinizados) possui diferentes “personalidades” e características, porque diversos são
os elementos da natureza. Ele exemplificava-as nas “qualidades de Iemanjá”, tal como o mar, que
possui águas rasas e águas profundas, correntes marítimas quentes e frias, para cada uma delas seria
uma das qualidades da deusa.50 Na integração entre o indivíduo e o grupo, e entre o grupo e seu
ambiente (natureza e meio social), surgiria uma associação entre as qualidades psíquicas e/ou de
personalidade e aquelas identificadas nos orixás. O termo orixá (orisha) acabou por se tornar uma
referência generalista às diferentes entidades cultuadas no Brasil. De origem iorubá, segundo Pai
Alexandre Ramos, é formado por ori (cabeça) e xá (força da própria natureza). A cabeça (psique
humana) seria o local em que se manifesta a força vital da natureza (axé) e sua personificação
(orixá).51 Reginaldo Prandi, afirmava por sua vez, que no Candomblé “o eu é sagrado” e cada
pessoa seria “parte do orixá”, teria seu “deus particular”. Por isso, antes de cultuar o deus, “cultua-
se a cabeça, ori, com um status de divindade”. Esta seria sagrada, pois é portadora do orixá. Dar o
bori seria, portanto, “alimentar a cabeça, primeira etapa da iniciação e do tratamento de doenças”.
Haveria um ditado que dizia: ori buruku kossi orixá, “cabeça ruim não dá orixá”. Ainda segundo
Prandi, com a morte do indivíduo, “morre o ori, mas não o orixá, nem a nossa memória, o egum,
que poderá ser assentada e cultuada”.52

48
Fundamento é um termo muito utilizado pelos candomblecistas e umbandistas ao se referirem à força espiritual (axé)
plantada nos terreiros e responsáveis pela manutenção e reprodução da força religiosa daquela família-de-santo;
também no sentido de serem os conhecimentos mais profundos, às vezes, secretos ou somente abertos aos iniciados.
Quando alguém tem poder religioso diz-se que tem “fundamento”.
49
Conf. Capítulo 2.
50
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO. Pai Célio de Iemanjá, vol. 2, 2008.
51
Gravação em áudio. Explicação sobre os orixás por Pai Alexandre Teixeira Ramos, Centro Cultural Akanda, São
Paulo, 09/12/2008.
52
Reginaldo PRANDI, Os Candomblés de São Paulo, pp. 124-126.

49
Soma-se a esses elementos outros da culturalidade bantu. Como se sabe, foi a mais antiga
(séc. XVI ao XIX) e a que alcançou a maior parte do território nacional, servindo de substrato ou
“liga” entre as diferentes “nações africanas”, indígenas e o catolicismo. Também cultua suas
divindades, inquices (nkisi, no plural minikisi). De origem congolesa, a palavra designa a “força
sobrenatural”, a “medicina sagrada” e por extensão “qualquer objeto ou substancia material
investida com energia sagrada e feita para proporcionar proteção espiritual e uso moral”.53 Segundo
Nei Lopes, no Brasil inquice passou a indicar “cada uma das divindades dos cultos de origem banta,
correspondentes aos orixás iorubanos e o receptáculo ou objeto em que se fixa a energia de um
espírito ou de um morto”, passando a significar “o próprio espírito e ser usado nos cultos bantos,
como sinônimo de orixá”.54 Em África e no Brasil o nganga (curandeiro espiritual, adivinho e
mediador, o “mandingueiro”) era o responsável por criar os minikisi. Teria sido essa característica a
justificar para alguns pesquisadores a classificação de fetiche e fetichismo dada às religiões afro-
brasileiras até a década de 1950. Esta empobreceria os sentidos e funções do nkisi, pois pressupunha
incapacidades da “mente primitiva” para elaborar “abstrações mais elevadas” a respeito dos
“deuses”. Segundo Khonsura A. Wilson, porém, os “africanos vêem o Nkisi como uma metáfora do
cosmos em miniatura, uma forma carregada com emanações, flashes e traços do espírito. A fala
seria frequentemente o agente ativador tanto verbal quanto gestual dessas energias. Assim, vêem o
Nkisi como uma centelha divina ou alma dentro de um corpo material que pode ser um ancestral
retornando do outro mundo para servir ao possuidor espiritual.”55 Para os congoleses foi o deus
Funza quem deu ao mundo o primeiro Nkisi. A fonte de seu poder seriam os bakisi, mensageiros do
mundo espiritual.
Este entendimento das origens religiosas do inquice auxiliaria, por outro lado, a entender a
mística profunda das religiões afro-brasileiras, pois incluiria além da materialização das forças de
cura física e espiritual (moral), a abstração das relações de mediação com uma divindade suprema.
Como afirmado acima, certa tradição de pesquisadores dizia serem as religiões africanas e afro-
brasileiras incapazes de entendimento de “sutilezas teológicas”, principalmente, as de origem bantu.
Alguns exemplos demonstrariam o contrário. Ou seja, a já indicada existência de uma sofisticação
na ideologia religiosa afro-brasileira, relacional entre as forças naturais, humanas (sociais) e as ditas
“espirituais” (psíquicas e morais) estaria também presente no substrato bantu. Veja-se com o culto a
Zambi (Nzambi Mpungu) e a utopia de Aruanda, “a terra sem males”.

53
ENCYCLOPEDIA OF AFRICAN RELIGION. Nkisi, p. 450.
54
Nei LOPES, op. cit., p. 342.
55
Idem, op. cit., p. 450.

50
Nei Lopes definia Zambi como a “divindade suprema dos cultos de origem banta e da
Umbanda, correspondente ao iorubano Olorum e ao Deus católico. Origina-se do termo
multilinguístico banto Nzambi, o “Ser Supremo”.56 Edison Carneiro, em sua obra Religiões
Negras/Negros Bantos sobre a Bahia dizia que,
O deus principal dos negros bantos, Zambi, em Angola, e Zámbi-ampungu, no Congo,
naquelas partes da África identificado com o deus dos cristãos, também existe na Bahia,
como o demonstrou Arthur Ramos. Alguns povos de Lunda até usam crucifixos de metal,
imagens e registros de papel, a que chamam Zambi. Na Bahia, registrei a presença de Zambi
e de Zambiapombo, portanto os Zambi de Angola e do Congo, com a mesma significação
que tem na África. Na Bahia, esses orixás equivalem a Jesus Cristo... O erro na terminação de
Zambi-ampungu talvez se deva à concepção cristã da pomba do Espírito Santo.57

Molefi Kete Asante afirmava, por sua vez, que o supremo Deus do povo Bacongo é
chamado Nzambi Mpungu. É o Deus Criador, do casal primordial que deu origem aos seres
humanos. Neste conceito, Nzambi Mpungu seria todo poderoso, onisciente e invisível, o criador de
todas as coisas. Também criador dos objetos sagrados que os humanos podem usar para fazer os
rituais de honra aos ancestrais, além de intervir em cada nascimento e “toda aventura criativa
humana”.58 Acredita-se, segundo Asante, que
Nzambi Mpungu mandou Nzambi à Terra para lidar com os humanos no cotidiano. Nzambi
era uma energia feminina. Considerada a grande princesa que governou a Terra e aprendeu o
poder da chuva e do relâmpago. Manteve estes segredos enterrados em seus próprios
intestinos, e os seres humanos tiveram que fazer rituais especiais para obter estes poderes.
Nzambi era uma professora severa dos valores aos seres humanos como demonstra vários de
seus mitos. (...) A lição demonstrada neles fala sobre a necessidade de compaixão e
generosidade que permanece central para a ética de vida da sociedade no Congo.59

Ou seria um equívoco de Carneiro relacionar a corruptela de Mpungu com a “pomba do


Espírito Santo”, ou os negros baianos haviam feito uma relação entre Zambi e a terceira pessoa da
trindade cristã (Pai, Filho e Espírito Santo) que carregaria as concepções mais abstratas da
divindade. Isto poderia ter-se dado a partir do entendimento bantu da natureza divina. A linguística
seria uma ferramenta auxiliar para entender tal associação. A “aclimação” dos deuses africanos na
diáspora deu-se em uma diversidade de designações, relacionadas às experiências dos grupos
escravizados, que a linguística tem procurado estudar. Uma contribuição interessante vinda dessa
área afirmava que,
A cosmogonia bantu estabelece uma distinção inequívoca entre divindades superiores que
são os grandes deuses criadores inacessíveis e divindades inferiores intermediárias com quem
os humanos podem se comunicar e entre as quais figuram os gênios benéficos e/ou maléficos
da natureza e os espíritos ancestrais. No universo cultural bantu, o conceito de Deus é

56
Nei LOPES, op. cit., p. 693.
57
Edison CARNEIRO. Religiões Negras/Negros Bantos, p. 140.
58
ENCYCLOPEDIA OF AFRICAN RELIGION. Nzambi, p. 466.
59
Idem, op. cit., p. 467.

51
vinculado a mais de uma realidade. É, notadamente, definido como sendo um Ser
Autocriado, Ente Supremo e Ser Infinito.60

A partir dessas categorias, os autores procuraram identificar na semântica dos termos


aqueles elementos conceituais. (1) Rende-se graça ao Ser Autocriado, “cada língua o canta,
recorrendo a tais ou tais termos e expressões para render a ideia deste Deus autocriado. Assim, por
exemplo, se diz na língua Chokwe (K14): [ndala kaRitaNga], ou seja, textualmente, Deus que-se
autocriou-Sozinho. Em Luba (L31) se refere a Ele através de diversas expressões, tais como:
[mikomba kale›wu› nka›jenda› mudi›fu›ka] Mikomba, Filho de Kalewu-o-Autocriado”. Este Deus
autocriado, segundo os pesquisadores, seria “um ser onipotente que, muitas vezes, é representado
vestido de uma armadura toda poderosa, capaz de vencer qualquer desafiador”. (2) Na segunda
dimensão de Deus como Ser Supremo, o Deus Autocriado seria “também o criador do mundo
conhecido e desconhecido”. Para eles, “todas as línguas do universo cultural bantu expressam isso
por meio de diversos termos tais como, por exemplo, Nzambi, Nzambi a Mpungu, Efile, Mvidi
Mukulu, Unkulukulu, Leza, Mungu, Kalunga, etc”. O teor semântico de termos tais como Mvidi
Mukulu en Tshiluba (L31) e Unkukukulu nas línguas da zona S tais como Zulu, Xhosa, Ndebele,
etc. revelariam “a existência de uma hierarquização e que este Deus como Ser Supremo domina
uma superestrutura formada por outras divindades que lhe são subordinadas”. Em Tshiluba, por
exemplo, [mvidi mukulu] significa o Deus Superior, o Deus Supremo que é o mais antigo, o mais
velho. Dessa forma, para os autores do estudo, “essa hierarquização confirma a noção de
interrelação tão presente na concepção africana do cosmos, segundo a qual todo ser é ser dentro,
para e pelo grupo”. Confirmaria, por outro lado, a idéia do deus otiosus, que se distanciou da
humanidade. Ou seja, “Deus fica tão alto que se justifica a presença de espíritos subordinados,
sejam elas divindades benéficas ou maléficas. Esses espíritos subalternos – tais como os bayimu,
bakisi, bankanbwa etc. – preenchem o papel de intercessores dos seres vivos que povoam o mundo
visível com Deus, o Ser Supremo”. Seria dentro dessa categoria “das divindades inferiores que se
encontram não somente os espíritos benevolentes de antepassados (bakisi / bakishi e bankambwa),
mas também um bom número de gênios da natureza, associados, por exemplo, a fontes benfazejas,
árvores sagradas, objetos totêmicos, etc”. Tal evocaria, para os linguistas, “a ideia de uma sorte de
panteísmo consagrado. Enfim, este Deus Autocriado, este Deus Ser Supremo é, de fato, um Deus
incomensuravelmente Infinito. É infinito verticalmente em altura, nas profundezas e lateralmente
dentro do espaço”. (3) Em terceiro, tem-se o Deus como Ser Infinito. A ideia de Deus Ser Infinito
seria subsequente à de Deus Ser Supremo. O termo bantu mais usual que apresenta esta noção seria

60
Geralda V. ANGENOT; Jean-Pierre ANGENOT; Daniel Mutombo HUTA-MUKANA. A origem das denominações
genéricas das divindades superiores e inferiores da cosmogonia bantu atestadas no português brasileiro, p. 10. In
Revista PAPIA 19, p. 9-22, 2009.

52
Kalunga. Existem muitas expressões que se referem à infinitude de Deus, como, por exemplo, as
seguintes denominações de Deus atestadas em Tshiluba: (a) [nkaSamba› wa dJe›nda› diitu] que
significa literalmente Leopardo-que-reina-sozinho-na-sua-floresta; (b) [mukaleNga udi ka›ji ne›
mukaleNga nenda›] que significa literalmente o-Chefe-que-não-têm-chefe-igual-a-ele; (c) [tSjula›
wa mu tshibo›ta› ku›jaaja› baji ka›ji] que significa literalmente o-Sapo-que-vive dentro-de-uma-
bananeira- não-vai-lá-para-onde-vão-os-viandantes. Interpreta-se aqui “a ideia de Alfa e Omega”.
Deus seria entendido como o “Começo e o Fim”. Este estudo de linguística apresentava, em
resumo, que “na visão dos bantu, o cosmos fica integrado de acordo com papéis definidos a serem
assumidos por cada membro da hierarquia: o Deus Supremo reina, seus subordinados intercedem
junto com ele, em favor dos seres vivos e estes, por sua vez, manifestam sua gratidão através de
oferendas cultuais regulares”.61
Tais explicações ajudariam a esclarecer daqueles elementos formativos das religiões afro-
brasileiras a capacidade de seus produtores em identificar e se apropriar das semelhanças
(analogias62) entre as ideias teológicas cristãs e as africanas das quais fazem uso. Demonstraria
como resultado, uma mística própria63 elaborada na cultura religiosa banta que se pode perceber
nos pontos cantados dos Candomblés e da Umbanda. Tal capacidade de abstração incluiria as
religiões africanas e afro-brasileiras dentro das grandes tradições religiosas mundiais. Para alguns,
seriam ainda as próprias tradições africanas aquelas que teriam dado as bases para as religiões da
antiguidade clássica, tanto a partir do Egito para Grécia, quanto da África austral para o
Mediterrâneo europeu, além das relações com o Oriente Médio, recordando a presença dos judeus
no Egito.64
No que se referiria a uma tradição de “escrituras sagradas” – além da tradição oral já
consagrada como local em que a ideologia religiosa afro-brasileira floresceu – os pontos cantados
durante os rituais poderiam ser estudados como exemplos textuais. Vê-se isso nas epígrafes deste
capítulo. A primeira apresenta duas versões transcritas abaixo:
Pedrinha miudinha
de Aruanda ê

61
Idem, op. cit., pp. 11-12.
62
O termo teria “dois significados fundamentais: (1) o sentido próprio e restrito, requerido pelo uso matemático
(equivalente à proporção), de igualdade de relações; (2) o sentido de extensão provável do conhecimento mediante o
uso de semelhanças genéricas que se podem aduzir em diferentes situações. O termo foi usado por Platão e Aristóteles
no primeiro significado e ainda hoje é usado pela lógica e pela ciência. No segundo significado, o termo tem sido e é
adotado pela filosofia moderna e contemporânea. O uso medieval do termo serve de transição entre um e outro
significado (uso metafísico-teológico)”. In Nicola ABBAGNANO. Diccionario de Filosofia, pp. 72-73.
63
Derivado de misticismo (do grego mysticos) seria aquele que experimenta ou pratica uma “religião de mistérios”, ou
seja, o iniciado nesses mistérios. Seria “a busca da comunhão com a identidade, com o consciente ou consciência de
uma derradeira realidade, divindade, verdade espiritual, ou Deus através da experiência direta ou intuitiva”. Cf. James,
William. The Varieties of Religious Experience: A Study in Human Nature. [S.l.: s.n.], 1902.
64
Cf. Capítulo 2.

53
Lajeiro tão grande
Tão grande na Aruanda ê
Ou
Pedrinha miudinha
de Aruanda ê
lajeiro tão grande
tão longe de Aruanda ê
Pedrinha bonitinha
de Aruanda ê
lajeiro tão grande
tão grande de Aruanda ê

Esta última é a versão de um dos pontos do Caboclo Pedra Preta, famoso por ser uma das
entidades do pai-de-santo Joãozinho da Goméia, do rito Angola, difundida por ele no LP Rei do
Candomblé. Os cantos podem ser compreendidos, como afirmava José Jorge de Carvalho, como
uma “mitopoética”, “como textos poético-religiosos da humanidade”. Assim, eles deixariam de “ser
apenas representação coletiva” e passariam a “atestar descobertas, conclusões, explorações,
questionamentos; enfim, expansões da consciência dos indivíduos que vivem o culto às entidades
desse complexo panteão”.65 Simbolicamente, a pedra, em diferentes culturas “era venerada como
expressão da união entre o céu e a terra”. E, por causa de sua dureza e imutabilidade, “era com
frequência associada com poderes divinos, eternos, imutáveis e vista como expressão de força
concentrada”.66 Apesar disso, não era entendida como “algo rígido, morto, e sim como dispensadora
de vida”. Vê-se, por exemplo, a idéia da Pedra Filosofal (lapis philosophorum) que na alquimia, era
uma “substância que supostamente podia ser produzida a partir da materia prima, através de
demorados processos, e que transformaria metais não nobres em metais nobres e teria efeitos de
rejuvenescimento e de cura”.67 Carl Gustav Jung teria interpretado esse mito como parte do
“processo de individuação”, no qual o indivíduo passaria pelo processo de autoconhecimento.
Tal poder transmutador ou transformador pode ser percebido ao notar nos cantos que é a
“pedrinha miudinha”, vista na perspectiva do mundo material. Em Aruanda, porém, no mundo
espiritual, se tornaria um “lajeiro tão grande”. Ou seja, sua verdadeira natureza estaria escondida
aos olhos do não-iniciado. Carvalho analisou esse ponto comparando-o com outro do Caboclo
Tupinambá que ouviu em uma mesa de Jurema68 no Recife:
Três Pedras, três pedras
Dentro dessa aldeia
Uma maior, outro menor
A mais pequena é que nos alumeia69

65
José Jorge de CARVALHO. A Tradição Mística Afro-Brasileira, pp. 6-7. In Revista Religião e Sociedade, Vol. 18,
Nº 2, maio, 1998.
66
DICIONÁRIO DE SÍMBOLOS. Pedra, p. 213.
67
Idem, Pedra Filosofal, pp. 213-214.
68
Sobre a Jurema Sagrada, ver capítulo 5.
69
José Jorge de CARVALHO. A Tradição Mística Afro-Brasileira, p. 8.

54
Dizia Carvalho que “essa pedra mínima que ilumina pode parecer-se à pedra filosofal dos
alquimistas e até mesmo ao centro incontaminado da alma, ou luz interna da alma de que fala
Meister Eckhart”. Os dois cantos trariam a idéia de uma “transformação mística”, na variação
semântica utilizada: o “maior”, o “menor”; “miudinha”, “tão grande”, “tão longe” contraposto ao
que se encontra perto. Pois, no “reino de Aruanda, as pedrinhas miudinhas são de fato grandes
lajeiros”. Segundo Carvalho, “em toda a região central do culto da Jurema existem muitas pedras
grandes que são objetos de culto”. Assim, as “pedrinhas suscitam a possibilidade mágica de um dia
voltar ao reino encantado, aos lajeiros”. Concluía que,
No caso dos cultos afro-brasileiros tradicionais, que preservam com tenacidade a raiz
simbólica africana (como o candomblé, o xangô e o batuque) a linguagem para se referir a
esses espaços míticos é mais indireta e muito menos formalizada. O mundo do orun, da
África, de onde vêm os orixás, é mencionado apenas nos rituais e mesmo nesse contexto, há
uma inibição formal, em termos de clareza de expressão, que é dada pelo uso restrito da
língua portuguesa. Ainda mais difícil se torna dizê-lo nos cânticos, pois estes são cantados
em iorubá, idioma que não é mais falado pela comunidade afro-brasileira. Em contraparte, o
reino da Aruanda é uma imagem explícita de um espaço mítico, de uma África celeste, ao
mesmo tempo individual e coletiva, subjetiva e objetiva, com que os adeptos se propõem
entrar em contato. Paralelo, assim, ao modelo da cidade fortificada, surge outro modelo
igualmente muito desenvolvido nessa tradição: o modelo da transformação. É o contato com
o reino encantado da Aruanda que permite esse prodígio, da pedrinha virar lajeiro. Essa
pedrinha-lajeiro-de-Aruanda é claramente uma imago mundi, equivalente, por exemplo, a
outra pedra muito cara aos estudiosos da cultura grega antiga: o omphalos, a pedra do oráculo
de Apolo em Delfos, que a Pítia tocava e que funcionava como um umbigo do mundo (o axis
mundi na terminologia já tão difundida por Mircea Eliade). Essa associação simbólica pode
crescer para incluir também, pelo lado do lajeiro de Aruanda, outros centros do mundo
conhecidos dos estudiosos de mitologia e religiões comparadas: o monte Meru da mitologia
hindu; o Montsalvat, da lenda medieval do Santo Graal; o monte Qaf da mitologia persa
clássica; e mesmo o bétilo - Beth-El, ou casa de Deus, pedra em que Jacó apoiou sua cabeça
para dormir e sonhar com a escada por onde subiam e desciam os anjos (Gênese 28:11-12).70

O sentido transformador da mística afro-brasileira seria reforçado na segunda epígrafe deste


capítulo, referindo-se ao universo iorubá: “Quando eu não era ninguém, era vento, terra e água,
elementos em amálgama no coração de Olorum”. A identidade do eu (o Ser) não existia nas
origens (Não-Ser), disperso nos elementos naturais, seria, no entanto, parte da divindade criadora,
ou seja, da força criativa do universo (vir-a-Ser; devir). A decodificação desses elementos da
ontologia do cosmos e do ser social que, funcionariam como metáforas, ajudaria a alcançar o
entendimento mais profundo da dinâmica cultural afro-brasileira, ou de sua epistemologia.71
Por exemplo, o esforço de análise comparativa apresentada por Carvalho pode ser somada à
definição dada por Nei Lopes quando dizia ser Aruanda, “a morada mítica dos orixás e entidades
superiores da Umbanda”. Seguindo a explicação de Edison Carneiro, “é a forma através da qual
70
José Jorge de CARVALHO, op. cit., p. 11.
71
Epistemologia aqui entendida no latto sensu como uma teoria do conhecimento. Haveria uma teoria sobre o
conhecimento do mundo propriamente africana e afro-brasileira, a qual se poderia aproximar através da elucidação dos
seus elementos culturais surgidos em contextos históricos específicos.

55
parte da memória coletiva do negro brasileiro teria conservado a reminiscência de São Paulo de
Luanda, capital de Angola, cidade que, de forma utópica, simbólica e abrangente, ganhou o
significado de “pátria distante, paraíso da liberdade perdida, terra da promissão”.72 Ora, não se
encontrou nas referências sobre as religiões africanas o termo aruanda. Evidencia-se, portanto, uma
criação afro-brasileira, marcando historicamente um sentimento de utopia comparada à “terra sem
males” dos Tupi-guaranis, ou à “terra prometida” cristã, ideologia religiosa fortemente presente nas
religiões populares brasileiras. Estas foram perseguidas até os anos 1950, nos movimentos
camponeses chamados “milenaristas” como Canudos, Caldeirão etc.73 Muitas vezes, representavam
a tentativa da população pobre em criar “comunidades de vida”, com uma produção voltada para a
auto-sustentação, driblando a ordem social exploratória. Como dizia Darcy Ribeiro “vivendo para si
mesmos” para “poder plantar o que comer”, e não como mão-de-obra escrava dos grandes
latifundiários ou força de trabalho barata nas cidades grandes.
Entende-se que a formação histórica da religiosidade afro-brasileira e de sua mística foi
marcada pela vivência da escravidão e, se considerar os modelos de culto atuais, a experiência da
Abolição e da perseguição durante as primeiras décadas da República. Nesses anos (c.1888-1950), o
substrato bantu, somado às tradições iorubanas, foram a força ideológica que soube (re)criar deuses
e entidades, rituais e práticas para assistir sua população, em suas necessidades específicas. Os
Caboclos, Boiadeiros, Pombagiras, Marinheiros e outros da Umbanda passaram a adotar as
características dos ancestrais bantu e dos tipos sociais marginalizados. Ressignificados tornaram-se
as referências nacionalistas no período das definições da identidade brasileira. Haveria, assim, uma
mística e uma utopia religiosa (do lugar social que se busca) que auxiliaria na compreensão das
estruturas rituais afro-brasileiras vista em parte nas atribuições dos orixás e entidades.
No que se refere à Umbanda, dita a “única religião 100% brasileira”, esta se desenvolveu
como um amplo sincretismo no início do século XX, em que se articulava o culto aos ancestrais,
orixás e caboclos (candomblé angola e jeje-nagô), com as práticas da pajelança indígena, do

72
Nei LOPES, op. cit., p. 75.
73
Encontra-se nas fontes da imprensa referências a movimentos populares religiosos, acompanhados por “líderes
carismáticos” até a década de 1950. 1936 – (27/09) Jornal de Alagoas, p. 3: Fanatismo, consequencia moral da
superstição e penúria: como o “beato” José Lourenço conseguiu reunir no interior do Ceará, 700 devotos que lhe
obedeciam cegamente. Existem estudos sobre José Lourenço, negro, discípulo de Padre Cícero que organizou uma
comunidade camponesa considerada como certo “comunismo primitivo”. 1956 – (12/08) Folha de São Paulo: Primeiro
caderno, p. 1. Choque armado entre policiais e fanáticos em Inhaúma, Minas Gerais, provoca 7 mortes – teriam os
policiais reagidos para não serem massacrados pelos adeptos da estranha seita. [em Serra Grande, próximo a Sete
Lagoas – Davi Damião “profeta” e um militar soldado Geraldo Enes de Oliveira, acusados de prática de curandeirismo
e macumba – denunciados pelo padre, o cura de Inhaúma Antonio Nacif Salomão]. 1958 – (09/07) Folha de São Paulo,
Assuntos Gerais, p. 8. Surge no Maranhão versão moderna do “Conselheiro”. Um novo enviado do céu, senhor
das terras e das almas de Nazaré. [texto de Audalio Dantas, com fotos, reportagem grande, reproduz cantigas] sobre
Padrin José Bruno fundador do Arraial de Nazaré (José Bruno de Morais) – sincretismo (católico-umbanda) igreja e
terreiro – templos separados, há toques de tambor. Repórter diz que Padrin informa que seguem a lei da umbanda, mas
lá é diferente, é “undina”.

56
catolicismo popular e do espiritismo kardecista. A referência de sua fundação, enquanto culto
“branqueado” teria sido a partir do médium Zélio Fernandino de Moraes, em 1908, no Rio de
Janeiro.74 Ronaldo Linares, seguindo a tradição oral, contava que quando esteve em 1972 na
companhia de Zélio Moraes, este lhe contou como teria acontecido. Aos 17 anos, Zélio teria
começado a sofrer “ataques” em que se mostrava com comportamento alterado, às vezes, “assumia
a estranha postura de um velho” e outras vezes, “sua forma física lembrava a de um felino lépido e
desembaraçado, que parecia conhecer todos os segredos da natureza, os animais e as plantas”.75
Após ser tratado por médicos psiquiatras, e “sofrido dois exorcismos”, foi encaminhado à “recém-
fundada Federação Kardecista de Niterói”, presidida por José de Souza, “chefe de um departamento
da Marinha, chamada Toque Toque”. Na Federação, no dia 15 de novembro de 1908, Zélio
incorporou um “espírito” que foi “entrevistado” pelo médium José de Souza. Segundo contava,
então, Linares, parte desse diálogo teria se dado “aproximadamente” assim:
Sr. José: Quem é você que ocupa o corpo deste jovem?
O espírito: Eu sou apenas um caboclo brasileiro.
(...)
Sr. José: E qual é o seu nome?
O espírito: Se for preciso que eu tenha um nome, digam que eu sou o Caboclo das
Sete Encruzilhadas, pois para mim não existirão caminhos fechados. Venho trazer a
Umbanda, uma religião que harmonizará as famílias e perdurará até o final dos tempos. (...)
Amanhã, na casa onde o meu aparelho mora, haverá uma mesa posta a toda e qualquer
entidade que queira se manifestar, independentemente daquilo que foi em vida; todos serão
ouvidos, e nós aprenderemos com aqueles espíritos que souberem mais e ensinaremos
aqueles que souberem menos, e a nenhum viraremos as costas nem diremos não, pois esta é a
vontade do Pai.76

74
Segundo Wilson do Nascimento BARBOSA, “uma importante viragem no processo para “tornar branca” a Umbanda
deu-se com a experiência relacionada à descida do Caboclo Sete Encruzilhadas, no médium então kardecista Zélio
Fernandino (15 de novembro de 1908), que levaria a uma gradual reestruturação da Inbandla como Umbanda de Linha
Branca, isto é, como um ramo cada vez mais desafricanizado de religião, sob a influência dos discípulos de Alan
Kardec. A Umbanda de Linha Branca iria se estruturar no período 1913 (com um conselho de cinco membros, entre os
quais haveria um padre católico) a 1930, com a formação de associações civis que enquadravam no total cerca de
trezentas tendas, no Rio de Janeiro, Minas Gerais, Espírito Santo e São Paulo, nesta fase inicial. Mais tarde, o
movimento se estenderia a todo o Brasil. Dois foram os traços característicos desta nova Umbanda, daqui em diante
referida simplesmente como Umbanda: (1) a leitura kardecista como fato hegemônico, com a preservação de alguns
elementos de ciganaria e as Três Linhas; e (2) eliminação ou redução da Jurema na ritualística. Na nova hierarquia
cerimonial, o sacerdote perderia gradativamente a sua condição de feiticeiro (capacidade impregnadora) e avançaria
enquanto hieródulo (cavalo-de-santo e médium). Os nomes africanos para o sacerdote perderam influência, poder e,
portanto, desapareceram. O termo “pai-de-santo” ou “mãe-de-santo” vieram a substituir a terminologia africana. Os
“três outros mundos” também desapareceram, reduzindo-se a um “outro mundo” unificado, dentro do padrão kardecista.
A tradição africana de formação sacerdotal pelo discurso e pela cópia foi substituída por uma formação apenas
ritualística e com apoio livresco. As relações com a Igreja Católica se reforçaram no nível de base, constituindo-se
muitas vezes o culto local um complemento subordinado das práticas católicas, o chamado catolicismo popular. As
Três Linhas desenvolveram uma liturgia diferenciada, onde os milhares de entidades (“muitos”) viram-se reduzida a
Pretos Velhos, Caboclos e Exus. Através desses três canais, a Umbanda reformada alegava poder acessar todas as
entidades precedentes do Universo Espiritual Afro-indígena. In BARBOSA, Wilson do Nascimento. Da N’bandla à
Umbanda: transformações na cultura afro-brasileira, pp. 12-13.
75
Diamantino Fernandes TRINDADE, Ronaldo Antonio LINARES, Wagner Veneziani COSTA. Os orixás na
Umbanda e no Candomblé, p. 31-41.
76
Idem, op. cit., p. 34.

57
Assim, em seu “mito de origem”, nascida como profecia, a Umbanda de Zélio de Moraes
teria assumido como missão espiritual a prática da caridade para o desenvolvimento espiritual dos
vivos e dos espíritos desencarnados. Segundo Linares, quando indagou a Zélio de Moraes a origem
do ritual umbandista, este teria dito que o “o rito nasceu naturalmente, como consequencia,
principalmente da presença do índio e do elemento negro, não tanto pela presença física do negro,
mas sim pela presença do Preto-Velho incorporado”. O Preto-Velho Pai Antonio teria, segundo a
tradição, sido incorporado naquela primeira sessão de 16 de novembro, após a “subida” do Caboclo
Sete Encruzilhadas. Teria sido também, nesse momento, ao manterem os médiuns um diálogo com
as entidades que as características de personalidade e gostos, e elementos do ritual passaram a ser
estabelecidos, como o costume de presentear os Caboclos e Preto-Velhos com fumo, usado
posteriormente como parte dos ritos de cura no atendimento espiritual dos clientes. Para Linares, a
introdução desses espíritos teria trazido maior “liberdade”, e as “pessoas afugentadas da elitizada
mesa kardecista passaram a freqüentar a nova religião”. Como “boa parcela dessas pessoas era da
etnia negra”, a Umbanda teria contado com uma “boa parte de médiuns dessa etnia, que se sentiam
muito à vontade pela ausência de preconceitos”. Estes teriam, então, “enriquecido o ritual
umbandista com práticas dos cultos africanos, principalmente do Candomblé”, no sincretismo dos
orixás com os santos católicos, no uso das comidas de santo, atabaques, agogôs e outros
instrumentos.77
Viu-se, assim, que na tradição oral, a Umbanda do Rio de Janeiro não teria nascido a partir
dos cultos bantu existentes, mas seria originalmente, uma religião nascida de uma “epifania” ou
missão espiritual pessoal do médium Zélio de Moraes. Essa distinção auxiliaria a compreender
muito das transformações históricas vivenciadas pela Umbanda no período 1970-2000.78 No que se
refere à sua estruturação mitológica e ritualística, na Umbanda cultuam-se, os orixás (jeje-nagôs e
bantus), os caboclos (indígenas e ancestrais bantu) e também as entidades ditas de direita e de
esquerda (Exus, chamados “escravos dos orixás”, Preto-Velhos, Pombagiras, Marinheiros, Ciganos,
entre outros, espíritos de mortos em estado de evolução espiritual). Formariam as chamadas Linhas
de Umbanda. Existem muitas controvérsias a respeito do número exato dessas linhas. Em 1925,
Leal de Souza teria sido o primeiro ensaísta a tentar classificar, “segundo seu conhecimento”, as
Sete Linhas da Umbanda, sincretizadas com os santos católicos. Estas seriam: (1) Oxalá (Nosso
Senhor do Bonfim); (2) Ogum (São Jorge); (3) Euxoce (São Sebastião); (4) Shangô (São Jerônimo);
(5) Nhan-san (Santa Bárbara); (6) Amanjar (Nossa Senhora da Conceição); (7) As Almas.79 Estas

77
Idem, op. cit., p. 39.
78
Cf. capítulos 3 e 4.
79
Idem, op. cit., p. 44.

58
linhas foram aprovadas durante o Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda,
realizado em 1941 no Rio de Janeiro. Zélio de Moraes teria afirmado à Linares que, das tendas
originárias da sua (Tenda Nossa Senhora da Piedade), deveriam nascer as Sete Linhas da Umbanda,
representadas por sete cores. 80
Haveria, portanto, uma diferenciação considerável a respeito do que seria o orixá no
Candomblé e na Umbanda. Para o umbandista, parte-se do princípio de que “todo Orixá é Santo,
mas nem todo Santo é Orixá, em virtude do plano de hierarquia de acordo com as missões que
desempenham ou desempenharam na Terra”. Nesse caso, o termo santo diz respeito à entidade,
santo católico ou caboclo ou alma. Nota-se a influência do kardecismo na estruturação dos planos
de desenvolvimento espiritual. Seria, “um foco irradiando forças espirituais em que possam atuar e
um plano de vibrações na escala da espiritualidade acudindo os adeptos na busca de
aperfeiçoamento”. Dessa forma, o Orixá “em função da sua vibração na sua falange, dentro da sua
linha, influi diretamente nos mensageiros espirituais, que são as entidades que incorporam o
médium para os trabalhos a serem realizados.”81 Explica-se da seguinte forma:
Na dualidade Santo-Orixá, há os que viveram e os que nunca tiveram passagens terrenas, da
mesma maneira que os Anjos e Arcanjos, todos centralizando focos de magia astral que se
procura fixar em símbolos, cores e características litúrgicas como forma de entrosamento
entre o crente e o plano divino. Dessa maneira, permite ao homem que, pelo uso instrumental
ou material dos objetos rituais, possa fixar o pensamento para sintonizar na intimidade do ser
a convicção da sua fé e ingressar na iniciação religiosa, galgando o desenvolvimento
espiritual. O Orixá age no campo astral, imperceptível ao nosso conhecimento, para ser
cultuado de forma perceptível aos nossos sentidos, simbolicamente, ou pertencendo a linhas
divisórias de vibrações, como se dominassem determinados campos humanos ou naturais.82

Tem-se, até o momento, a percepção de que na passagem do culto africano ao culto


umbandista brasileiro, historicamente deu-se um processo de diferenciação a respeito da “natureza”
dos orixás, de forças naturais e de sociabilidade, em direção às “vibrações” energéticas funcionais a
um “plano divino” dado. Permaneceria, no entanto, a função de mediação entre os mundos material
e espiritual e a diversificação de suas “qualidades” ou espaços de atuação. Os deuses africanos,
como afirmado em outro momento, estavam de acordo com a estrutura da vida econômica, social e
cultural de seus locais de origem, e espelhavam as relações entre os gêneros e as funções de

80
Idem, op. cit., p. 44. A Tenda Nossa Senhora da Piedade, primeira casa fundada por Zélio de Moraes, teria no seu
crescimento, preparado os médiuns para abrirem novas tendas que surgiram. Segundo os autores, Moraes “chegou
mesmo a financiar contratos de aluguéis e ser, ele próprio, fiador em muitos casos dos imóveis onde seriam instalados
novas tendas, até que estas tivessem condições de se manter com a contribuição dos seus próprios médiuns”. Assim,
surgiram: a Tenda Nossa Senhora da Guia, com Durval de Souza; a Tenda Nossa Senhora da Conceição, com Leal de
Souza; a Tenda Santa Bárbara, com João Aguiar; a Tenda São Pedro, com José Meireles; a Tenda Oxalá, com Paulo
Lavois, a Tenda São Jorge, com João Severino Ramos; e a Tenda São Jerônimo, com José Álvares Pessoa. Também a
Tenda Mirim, fundada em 13 de outubro de 1924. No Rio de Janeiro e outros estados foram surgindo novas tendas,
como a Cosme e Damião, Nossa Senhora de Sant’Ana, São Lázaro, Nossa Senhora dos Navegantes, Nossa Senhora da
Guia e outras. Op. cit, p. 45.
81
Idem, op. cit., pp. 42-43.
82
Idem, op. cit., pp. 43-44.

59
sobrevivência de sua comunidade, além de compartilharem e serem parte da memória das origens
familiares e de clã. No Brasil, a quebra dessas bases teria “dispersado” a energia dos cultos
particulares que foram, com o tempo, sendo impregnadas nas novas estruturas de sociabilidades
montadas durante o período da escravidão e após o seu fim. Seria importante reforçar que, tal base
de funcionamento, em ambas as religiões aqui destacadas, Candomblé e Umbanda, manteriam
daqueles elementos originais a cura psíquica e física (terapias do tambor e uso de plantas
medicinais), a louvação à memória ancestral e a valorização da vida comunitária. Ao final, tem-se
um quadro comparativo dos orixás no Candomblé e na Umbanda, baseado na literatura
especializada.

O Axé como metáfora para as transformações histórico-religiosas no Brasil


Dessa multiplicidade de personas (modelos arquetípicos), das experiências coletivas e
individuais dos afro-brasileiros e dos adeptos de suas religiões, dentro da complexidade das relações
sócio-econômicas, foram escolhidos, para ilustrar as transformações históricas vividas no período
de 1970 a 2000, os orixás Exu e Xangô. Tais orixás representam respectivamente, a força (o axé) do
dinamismo transformador da vida e, portanto, da história (Exu) e a busca pela justiça (Xangô).
Este apontaria para as demandas políticas da população afro-brasileira, que se tem colocado mais
fortemente nas últimas décadas.
Exu (Esu, Elegbara, Legba, Eleguá, Bará) é o “mensageiro divino, o deus trapaceiro da
mudança, o princípio da indeterminação”. É considerado a mais importante e influente deidade no
panteão iorubá, porque todos, incluindo outros deuses, devem conhecê-lo.83 Segundo Prandi, Exu é
o mensageiro entre o orum (céu) e o aiê (mundo), tendo a função mediadora como o deus grego
Hermes e o romano Mercúrio, leva as mensagens e as oferendas entre os humanos e os deuses.
Representaria o princípio dinâmico e nada aconteceria sem a sua participação. Por isso, recebe as
primeiras oferendas em qualquer sacrifício a ser feito e no início dos xirês no Candomblé. Por
representar o princípio transformador do mundo, igualmente expressaria a desordem social. Seria
responsável pela reprodução e o ato sexual, que dá origem ao novo. É simbolizado na África pelo
falo ereto. Trabalharia tanto pelo bem quanto pelo mal, não tendo censura, às vezes é caracterizado
como um tipo “anti-social”.84 No Brasil, a Umbanda expressou essas características nos seus
diferentes Exus, que figuram como arquétipos do “malandro”.
O pai-de-santo Alexandre Teixeira Ramos do Candomblé explicava que Exu, é o “início”, o
“movimento”, por isso “quando se faz oferendas se busca as ruas”, porque “deve-se buscar o

83
ENCYCLOPEDIA OF AFRICAN RELIGION. Esu, p. 245.
84
Reginaldo PRANDI., Curso Religiões Africanas no Brasil, 2001. FFLCH-USP

60
movimento nas encruzilhadas”. Seria nelas, segundo Ramos, o local em que “convergem as quatro
energias” (norte, sul, leste e oeste) ×. Já a encruzilhada em forma de Y serviria para receber as
oferendas relacionadas à “energia feminina de Exu”, chamada por Ramos de “Lebara” (chamada
por outros de Pombagira). Seriam “energias associadas às personalidades e às questões humanas”.
Exu, não seria, ainda segundo ele, “bom ou ruim”, pois, “sendo energia pura, é neutra”. Esta pode
ser usada “tanto para fazer o mal a alguém quanto para benfeitoria de um monte de coisas”.
Continuava explicando que “tudo que é vida, é Exu; sua cor é a vermelha porque está ligado ao
sangue que se encontra em todos os seres vivos, humanos e animais”. Sendo, portanto, portador de
grande energia (força) o sangue é ofertado como parte dos sacrifícios rituais nos ebós (“despachos”,
oferendas) e nos pejis (altares ou assentamento dos orixás).85 “Infelizmente, a Pombagira” teria,
para Ramos, ficado “relacionado às prostitutas”, mas “isso não seria correto”. As diferentes energias
de determinado local agem de uma maneira específica, por isso, a diversidade de nomes para se
referir a essa energia dinâmica de movimento. Por exemplo, Exu Onam estaria ligado aos caminhos,
Exu Dunodo ligado a “coisas mais densas”, quando se está, no exemplo, querendo “fechar um
negócio” se recorreria a essa energia.86

Figuras do altar com o penteado alongado típico do orixá Exu africano. Nigéria.
Assentamento de Exu, usado em seu peji. Brasil87

Essas caracterizações podem ser explicadas ou refletidas a partir da mitologia. Os mitos de


Exu contariam diferentes situações em que se dariam seus aspectos de trapaceiro e brincalhão,
moralmente dúbio e poderoso. A título de exemplo, eis um mito que conta as origens de seu poder
sobre as encruzilhadas e da sua primazia entre os deuses e os rituais.
Exu ganha o poder sobre as encruzilhadas
Exu não tinha riqueza, não tinha fazenda, não tinha rio,
Não tinha profissão, nem artes, nem missão.
Exu vagabundeava pelo mundo sem paradeiro.
Então um dia, Exu passou a ir à casa de Oxalá.

85
Cada ebó é elaborado com as comidas, objetos e emblemas de preferência e que caracterizam cada orixá. Para
exemplos consultar Prandi (1996) e Silva (2005).
86
Alexandre Teixeira RAMOS, op. cit.
87
Fonte: Werner Forman/Art Resource, New York. Encyclopedia of African Religion, p. 504.

61
Ia à casa de Oxalá todos os dias.
Na casa de Oxalá, Exu se distraía,
Vendo o velho fabricando os seres humanos.
Muitos e muitos também vinham visitar Oxalá,
Mas ali ficavam pouco,
Quatro dias, oito dias, e nada aprendiam.
Traziam oferendas, viam o velho orixá,
Apreciavam sua obra e partiam.
Exu ficou na casa de Oxalá dezesseis anos.
Exu prestava muita atenção na modelagem
E Exu aprendeu como Oxalá fabricava
As mãos, os pés, a boca, os olhos, o pênis dos homens,
As mãos, os pés, a boca, os olhos, a vagina das mulheres.
Durante dezesseis anos ali ficou ajudando o velho orixá.
Exu não perguntava.
Exu observava.
Exu prestava atenção.
Exu aprendeu tudo.

Um dia Oxalá disse a Exu para ir postar-se na encruzilhada


Por onde passavam os que vinham à sua casa.
Para ficar ali e não deixar passar quem não trouxesse uma oferenda a Oxalá.
Cada vez mais havia mais humanos para Oxalá fazer.
Oxalá não queria perder tempo
Recolhendo os presentes que todos lhe ofereciam.
Oxalá nem tinha tempo para as visitas.
Exu tinha aprendido tudo e agora podia ajudar Oxalá.
Exu coletava os ebós para Oxalá.
Exu recebia as oferendas e as entregava a Oxalá.
Exu fazia bem o seu trabalho
E Oxalá decidiu recompensá-lo.
Assim, quem viesse à casa de Oxalá
Teria que pagar também alguma coisa a Exu.
Quem estivesse voltando da casa de Oxalá
Também pagaria alguma coisa a Exu.
Exu mantinha-se sempre a postos
Guardando a casa de Oxalá.
Armado de um ogó, poderoso porrete,
Afastava os indesejáveis
E punia quem tentasse burlar sua vigilância.
Exu trabalhava demais e fez ali a sua casa,
Ali na encruzilhada.
Ganhou uma rendosa profissão, ganhou seu lugar, sua casa.
Exu ficou rico e poderoso.
Ninguém pode mais passar pela encruzilhada
Sem pagar alguma coisa a Exu. [1]88
[...]
São muitas as tramóias de Exu
Exu pode fazer contra,
Exu pode fazer a favor.
Exu faz o que faz, é o que é. [23]

Este mito explicava, portanto, o lugar de honra de Exu no culto, além de ilustrar o processo
de iniciação, feito na convivência e no respeito à hierarquia; sua ascendência sobre a reprodução
humana e sobre os segredos oraculares do destino, já que sabia o segredo da fabricação dos seres
humanos, no convívio com o Deus Criador. Costuma-se deixar o peji (altar com suas oferendas e
88
Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixás, pp. 40-41; 70.

62
insígnias) de Exu sempre na entrada dos terreiros; às vezes, uma estátua sua fica a postos na porta
de entrada das casas para proteção. Outros mitos contavam as aventuras do deus, andando pelo
mundo, perturbando a ordem, punindo aqueles que se achavam muito “espertos” e vingando-se dos
que lhe desconsideravam. A Umbanda foi incorporando, na sua primeira fase de expansão (1906-
1940), como afirmado, aqueles tipos sociais que se enquadravam nessa personalidade mítica. O
“malandro carioca” foi incorporado na figura de Zé Pelintra, capoeirista, sambista, vivendo sem
trabalhar (“vagabundo”), à custa de mulheres, mas livre para ser quem quiser e estar aonde quer,
sem ter que dar satisfações a nenhum “senhor” ou “patrão”. Parece ser um ideal masculino no
período Pós-Abolição (1889-). Os homens negros, livres agora, tentavam ditar o seu destino. Foram
“enquadrados” no código penal como “vagabundos” e perseguidos duramente pela polícia,
principalmente, no período da República Nova de Vargas (1937-1945). Na Umbanda essas figuras
antiordem foram também “enquadradas” no plano astral, como espíritos que devem trabalhar pelo
seu desenvolvimento espiritual, compensando os “pecados” ou “maldades” feitos em vida. Percebe-
se nos terreiros, todavia, que a chegada dessas entidades continua marcada por muita animação,
normalmente são recebidas com muita cachaça, charutos, risadas e brincadeiras “picantes”. Em um
terreiro de Maceió, ouvia-se a cantiga do Exu Sete Sinas, em que se repetia no refrão: “Eu sou Exu
Sete Sinas, o consolo das meninas”...

Exus na Umbanda: Rei Sete Encruzilhada e Zé Pelintra89

Esse dinamismo figurativo, arquetípico das mudanças na personalidade humana e da vida


social, foi escolhido como metáfora das transformações históricas vividas pelas religiões afro-
brasileiras nas cidades grandes, no período de 1970 a 2000, em especial para a cidade de São Paulo.

89
Fontes: Disponível em: http://terreirodavobenedita.blogspot.com/2010/06/exu-rei-das-7-encruzilhadas.html e
http://pt.wikipedia.org/wiki/Ficheiro:Z%C3%A9_Pelintra_2.JPG. Data de acesso: 21/10/2011.

63
Uma das questões críticas para as religiões afro-brasileiras sempre foi a acusação de serem culto ao
“demônio”, justificada por seus perseguidores na própria figuração da estatuária de Exu,
sincreticamente associada ao Diabo cristão. Em uma aula (2007) foi preciso mediar uma discussão
entre um aluno evangélico e outro umbandista em que se questionava: “se Exu não é o diabo porque
é representado assim”? Toda a explicação a partir das referências arquetípicas do Exu africano,
somadas à situação da escravidão e do sincretismo, tomou o tempo todo da aula. No fundo,
expressava esse debate uma luta de ideologias sociais e religiosas, em que se percebia o quanto
atrasada se encontrava em São Paulo a aceitação da plena existência das religiões afro-brasileiras
em um ambiente social dito “democrático”. Além dos preconceitos, do racismo e do
desconhecimento dos símbolos religiosos, percebia-se a dificuldade de se justificar valores, por
exemplo, referentes à superação da dicotomia bem e mal, para um grupo em sua maioria formado
por cristãos. Teria talvez ajudado um pouco mais explicar que o “diabo cristão” também é uma
figura dúbia. Presente como parte da criação do mundo, tinha uma função na ordem cósmica
(arcanjo), e parecia tentar, no mito bíblico, dar certo controle às forças de mudança, representadas
pela criação dos seres humanos. Foi mantido como parte do sistema cosmogônico judaico-cristão
sendo facultada uma função dentro do Plano Divino da Salvação. Ou seja, o judaísmo-cristianismo
atribuiu-lhe certas funções, como parte das explicações para o fato da existência do mal no mundo,
que se estruturou em sua teodicéia (Weber/Bourdieu/Berger).
Interessa destacar que, se a figuração de Exu sempre causou problemas, em Maceió a forte
presença de Xangô, entre o final do XIX e o início do XX também incorporou simbolicamente a
luta política e étnica entre a população e as elites. No período em destaque (1970-2000), o culto a
Xangô não tem mais a mesma importância e é pouco comentado entre os adeptos, tirando é claro
seus filhos-de-santo. Esse “silêncio” faz referência ao episódio do Quebra de Xangô (1912) como
também ao “silêncio social” e “dos intelectuais” que por muito tempo negaram uma análise e
explicação dos conflitos sociais existentes no estado de Alagoas. Ainda identificam-se os
candomblés de Maceió como “xangôs”, porém de forma bem menos patente. Faz-se, então, a
reafirmação aqui da presença de Xangô, mesmo que silenciosa. Dizem que os silêncios também
falam. O não dito, serve para descortinar parte das transformações históricas das religiões afro-
brasileiras, não somente para Alagoas, mas para todo o território nacional, pois ilustraria a forma
como à população negra foi relegada sua história. Por outro lado, reafirmaria também o resgate
dessa história, a valorização dos indivíduos e do coletivo negros e de suas lutas que se ampliaram a
nessa segunda metade do XX.
Xangô (Shango, Esango, Sogbo, Ebioso, Afonjá etc) “é a deidade maior dos iorubás do
sudoeste da África, também aparece para os Bini do sudoeste da Nigéria (Esango), na religião dos

64
Fon da República do Benin (Sogbo e Ebioso)”. Como todas as divindades iorubás, Xangô é ambos
“um ancestral divinizado e uma força da natureza”. Ambos os aspectos são associados a um culto, a
um sacerdócio e a uma cultura material elaborada que “testemunha e dá suporte ao seu culto”.90
Segundo George Brandom, “o ancestral Shango foi o quarto rei da cidade de Oió”, descrito na
história oral como um “rei poderoso que tinha uma voz como um trovão e soltava fogo pela boca
quando falava”. Conta-se que,
Quando um chefe subordinado desafiou suas regras, muitos da população da cidade,
impressionados pelos feitos mágicos do chefe, abandonaram-lhe, e Shango, derrotado aos
olhos da maioria deixou Oyo e cometeu suicídio. Seus seguidores fiéis, entretanto,
reivindicaram que ele não havia se enforcado realmente: em lugar disso, ascendeu aos céus
em uma corrente. Afirmaram que seu desaparecimento não era morte, mas a ocasião de sua
transformação em um orisha. Após sua morte, foi deificado e tomou alguns dos atributos de
uma preexistente deidade, Jakuta, cujo nome continua a ser associado com ele em Cuba.
Jakuta representa a ira do deus, da destruição e da cura do mal pela justiça feroz. Seus
seguidores começaram a sacrificar-lhe, continuado as cerimônias que teve executado quando
na terra, e passado a sua adoração às gerações com êxito. Os seguidores de Shango
conseguiram eventualmente fixar um lugar para seu culto no sistema religioso e político da
cidade; e este se tornou integral à instalação de reis de Oyo. Espalhou-se extensamente
quando Oyo se transformou na cidade central de um rico império que dominou a maioria dos
outros reinos Yoruba, assim como Bini e Fon. Ambos incorporaram a adoração de Shango
em suas religiões e continuaram seu culto mesmo depois que cessaram de estar abaixo do
controle de Oyo.91

No Brasil, segundo Prandi, o arquétipo de Xangô caracteriza-o como “o orixá do trovão e da


justiça”, por ter sido ele mesmo “vítima de uma grande injustiça quando foi deposto”. Suas
mulheres favoritas eram Obá, Oxum e Iansã-Oiá. No mito, estas se transformaram em rio na África,
quando ele se tornou orixá. Como rei, Xangô comia muito e tinha uma grande sexualidade.
Atualmente está associado à justiça, às leis, normas, contratos, empregos e práticas burocráticas, e
também aos trabalhos intelectuais. “Seria justo, mas capaz de trambiques, seus filhos tendem a ser
gordos e seu símbolo é o oxé, o machado duplo”.92 Essas características gerais podem ser
apreciadas no mito abaixo. Eis,
Xangô é reconhecido como o orixá da justiça

Xangô e seus homens lutavam com um inimigo implacável.


Os guerreiros de Xangô, capturados pelo inimigo,
Eram mutilados e torturados até a morte, sem piedade ou compaixão.
As atrocidades já não tinham limites.
O inimigo mandava entregar a Xangô seus homens aos pedaços.
Xangô estava desesperado e enfurecido.
Xangô subiu no alto de uma pedreira perto do acampamento
E dali consultou Orunmilá sobre o que fazer.
Xangô pediu ajuda a Orunmilá.
Xangô estava irado e começou a bater nas pedras com o oxé,
Bater com seu machado duplo.

90
ENCYCLOPEDIA OF AFRICAN RELIGION, Shango, p. 612.
91
Idem, op. cit.
92
Reginaldo PRANDI, Curso Religiões Africanas no Brasil, 2001, FFLCH-USP.

65
O machado arrancava das pedras faíscas,
Que acendiam no ar famintas línguas de fogo,
Que devoravam os soldados inimigos.
A guerra perdida foi se transformando em vitória.

Xangô ganhou a guerra.


Os chefes inimigos que haviam ordenado
O massacre dos soldados de Xangô
Foram dizimados por um raio que Xangô disparou no auge da fúria.
Mas os soldados inimigos que sobreviveram
Foram poupados por Xangô.
A partir daí, o senso de justiça de Xangô
Foi admirado e cantado por todos.
Através dos séculos,
Os orixás e os homens têm recorrido a Xangô
Para resolver todo tipo de pendência,
Julgar as discordâncias e administrar justiça. [124]93

Insígnia (oxé) usada por devotos de Shango durante sua dança, quando possuídos pela deidade.
Nigéria, séculos XIX-XX.94

No mito, o poder transformador de Xangô seria o de tornar uma situação desfavorável em


favorável, contando com os conhecimentos sagrados do oráculo e demonstrando sabedoria em
castigar aqueles que merecem; nesse caso os “chefes inimigos” e não os “soldados”. Na Umbanda
manteve-se a associação de Xangô como a “força que resolve pendências, dando a quem é devido o
que lhe é de direito”. Foi representado como um homem maduro, “no apogeu de seu
desenvolvimento físico e mental”, por isso, utilizam quase sempre como sua representação a
imagem de Moisés de Michelangelo, tendo ao lado o leão submisso, que significaria “a vitória da
razão sobre a força”. Ainda na Umbanda, costuma-se fazer a “invocação de Xangô desde os 12

93
Reginaldo PRANDI, Mitologia dos orixás, p. 245.
94
Fonte: Werner Forman/Art Resource, New York. Encyclopedia of African Religion, p. 381.

66
Apóstolos a todos os santos velhos, evidenciando a sabedoria que só o tempo e a experiência
coroam”. Sincretizado com São Jerônimo, representaria também uma “conjugação na sublimação
da justiça, em consonância com os signos zodiacais”.95 Tanto a Umbanda como o Candomblé
utilizam a pedra de raio (meteorito) como emblemas, postos no altar (peji) do orixá.

Moisés de Michelangelo – Representação umbandista de Xangô-São Jerônimo

Em Alagoas, a influência de Xangô nas religiões afro-brasileiras esteve historicamente


identificada na designação dada a elas e pode ser apreciada na estatuária representativa dos cultos
existentes antes do Quebra-Quebra de 1912.96 Raul Lody, ao analisar as peças alagoanas
sobreviventes do massacre, dizia que testemunhavam os “registros de manutenção da memória
africana, já adaptada e incorporada ao modelo co-formativo afro-alagoano”. Tornar-se-ia
“inequívoca”, segundo Lody, “a alta importância do acervo para a compreensão abrangente da
cultura afro-brasileira”. Para ele, “o Xangô nas Alagoas e no Estado de Pernambuco formam uma
mesma mancha de ocorrência, ficando o Xangô sergipano muito mais voltado e motivado pelo
Candomblé da Bahia.” Mostraria, para o estudioso, “que esse Xangô alagoano, visto pelos objetos
da coleção Perseverança, mostra alta elaboração litúrgica e tecnológica, além de possuir exemplares
únicos no Brasil e uma imaginária fortemente africanizada”.97 A valorização da memória das
religiões afro-brasileiras em Alagoas passou a ser resgatada a partir da ação do movimento negro
nacional e local, exemplificada na elaboração de um novo catálogo em 1984 (o primeiro data de
1974, elaborado por Abelardo Duarte)98.

95
Diamantino Fernandes TRINDADE, Ronaldo Antonio LINARES, Wagner Veneziani COSTA. Op.cit., p. 49.
96
Sobre o Quebra de Xangô consultar o capítulo 5.
97
Raul LODY. Catálogo Coleção Perseverança: um documento do Xangô Alagoano, pp. 9-10.
98
Sobre o processo histórico em Alagoas ver capítulos 5 e 6.

67
Peças da Coleção Perseverança, IHGAL – Maceió/AL.
Fotos do Catálogo Coleção Perseverança: um documento do Xangô Alagoano

O que se buscou nesta explanação foi destacar a complexidade da ideologia e das práticas
religiosas relacionada aos modos como a população negro-africana reconstituiu no Brasil a sua
culturalidade. Os orixás, como deuses, forças e energias naturais e sociais, refletiriam parte dessa
dinâmica histórica porque seriam a teorização e a materialização da cultura e da ideologia afro-
brasileira. Para se ter uma escrita da história que leve em consideração a participação dessa
população, se deve ter em mente tais elementos. De acordo com isso, elegeu-se aqui, o axé (força
vital dinâmica) como metáfora de historicidade. Não como um “absoluto hegeliano”, usa-se o axé
como uma analogia ilustrativa das mudanças temporais e espaciais, compreendidas no cotidiano
dessas religiões populares.
A idéia central defendia é entender as religiões afro-brasileiras como religiões populares em
situação de subalternização no âmbito da sociedade brasileira. Haveria nessa afirmação alguns
pressupostos a serem esclarecidos. Partindo dos conceitos gramscianos, vários autores trabalharam
na perspectiva de entender a relação das religiões populares com o processo de modernização
capitalista, na segunda metade do século XX. Ivete Simionatto afirmava que:
Na obra gramsciana, as primeiras noções sobre o termo "subalterno" aparecem nos escritos
pré-carcerários, empregadas para designar a submissão de uma pessoa a outras, mais
especificamente no contexto da hierarquia militar. É, no entanto, nos Cadernos do
Cárcere que Gramsci amplia largamente o significado desse conceito, demarcando seus
nexos dialéticos com o Estado, a sociedade civil, a hegemonia, a ideologia, a cultura e a
filosofia da práxis. Sugere, no estudo das classes subalternas, a observação de uma série de
mediações, tais como suas relações com o "desenvolvimento das transformações
econômicas"; sua "adesão ativa ou passiva às formações políticas dominantes"; as lutas
travadas a fim de "influir sobre os programas dessas formações para impor reivindicações
próprias"; a formação de "novos partidos dos grupos dominantes, para manter o consenso e o
controle dos grupos sociais subalternos"; a caracterização das reivindicações dos grupos
subalternos e "as formas que afirmam a autonomia" (GRAMSCI, 2002, p.140). Tais
indicações, não têm por proposição um programa de estudos historiográfico, mas remetem à
complexa tessitura do pensamento gramsciano, em que as reflexões sobre a subalternidade
aparecem dialeticamente interligadas com o Estado, a sociedade civil e a hegemonia. A

68
categoria "subalterno" e o conceito de "subalternidade" têm sido utilizados,
contemporaneamente, na análise de fenômenos sociopolíticos e culturais, normalmente para
descrever as condições de vida de grupos e camadas de classe em situações de exploração ou
destituídos dos meios suficientes para uma vida digna. No pensamento gramsciano, contudo,
tratar das classes subalternas exige, em síntese, mais do que isso. Trata-se de recuperar os
processos de dominação presentes na sociedade, desvendando "as operações político-
culturais da hegemonia que escondem, suprimem, cancelam ou marginalizam a história dos
subalternos" (BUTTIGIEG, 1999, p. 30).99

Utilizar tal conceito ajudaria a elucidar os mecanismos de dominação histórica que


invisibilizaram e negaram às religiões afro-brasileiras o status e o reconhecimento de suas
contribuições à história brasileira; e também à história das religiões. Vistas como religiões
populares, por outro lado, assumiu-se a idéia de serem tais religiões majoritariamente criadas e
frequentadas pelas classes populares. Ampliando o uso de Gramsci, os sacerdotes afro-brasileiros
poderiam ser entendidos aí, como os “intelectuais orgânicos” desse movimento negro-religioso.
Cada grupo social, nascendo no terreno originário de uma função essencial no mundo da
produção econômica, cria para si, ao mesmo tempo, de um modo orgânico, uma ou mais
camadas de intelectuais que lhe dão homogeneidade e consciência da própria função, não
apenas no campo econômico, mas também no social e no político: o empresário capitalista
cria consigo o técnico da indústria, o cientista da economia política, o organizador de uma
nova cultura, de um novo direito, etc. etc.100

Como lembrava Clóvis Moura, se havia os “intelectuais orgânicos” do escravismo, nada há


de se estranhar na idéia de se ter o inverso. Haveria, nesse caso, a elaboração dos mecanismos de
respostas à situação de dominação e dos conflitos advindos dela, ao mesmo tempo em que tais
religiões funcionaram como veículos de conscientização ou proporcionaram locais onde se poderia
criar uma consciência crítica das situações de opressão da população negra, como também da
historicidade da presença negro-africana no Brasil. O alcance de tais respostas pode ser
problematizado. Porém, concorda-se com Alexandre M. T. de Carvalho quando este refletia que,
(...) é interessante notar que há no meio científico um preconceito (uma espécie de senso-
comum intelectualizado ou mesmo obstáculo epistemológico, se assim optarmos por designá-
lo) que desqualifica a expressão religiosa dos pobres e, por efeito da sobreposição do
preconceito racial e cultural ao sócio-econômico, dos negros: não raro, Marx é usado como
referência, como se fosse possível transpor automaticamente, de forma acrítica, os conceitos
que Marx utiliza em sua “Crítica da filosofia do Direito de Hegel (introdução)” para o
contexto do processo político latino-americano. Talvez um dos erros tenha sido aceitar que “a
crítica da religião é o pressuposto de toda a crítica”, universalizando uma crítica que tinha seu
tempo e lugar na Alemanha do século XIX. O sujeito da religião popular, (...) na concepção
de Parker (1996) e de outros autores, não pode ser confundido com o Estado ou a sociedade
alemã que produziam “a religião como consciência invertida do mundo” (MARX, 2001, p.
45). No contexto da obra de Marx, de 1843/1844, lutar contra a religião, fazer a crítica da
religião era lutar contra a ordem capitalista que imperava. A idéia de “consciência invertida
do mundo”, todavia, se pensada do ponto de vista do latino-americano em processo de
colonização-exploração, ganha uma conotação bem diferente: em vez de alienação-subtração
e inversão para controle e “persuasão” (a la Lutero), consciência invertida como crítica
(negação) de um mundo explorador e opressor e, simultaneamente, como proposição

99
Ivete SIMIONATTO. Classes subalternas, lutas de classe e hegemonia: uma abordagem gramsciana, p. 1. In Revista
Katálysis, vol.12 no.1. Florianópolis Jan./June 2009 http://dx.doi.org/10.1590/S1414-49802009000100006
100
Antonio GRAMSCI, Os intelectuais e a organização da cultura, pp. 3-4.

69
(afirmação) de um mundo Outro. Refletindo sobre aspectos históricos da religião negra, Luz
(1983, p. 28) afirma que “longe de ser ‘ópio do povo’, a religião negra é ponto básico, é fonte
de afirmação dos valores civilizatórios negros e núcleo de resistência às variadas formas de
aspirações neocolonialistas”.101

Tais pressupostos fortificariam as escolhas teórico-metodológicas apresentadas. Ao se fazer


uma analogia entre o axé como modelo do movimento da história, procura-se resgatar uma
epistemologia própria afro-brasileira aplicada na vida social, a partir da qual se pode observar e
analisar suas transformações. Sobre isso há de se considerar uma contradição percebida entre os
estudiosos. Como apresentado acima, Bankole afirmava ser o axé entendido como “força ativa ou
passiva” estaria “sempre presente e não pode ser destruído”. Já Ribeiro, dizia que a “força é
adquirível, transmissível, pode aumentar e diminuir até o esgotamento total”. Esse debate teórico foi
percebido nas falas dos babalorixás e ialorixás, ao afirmarem ou negarem a possibilidade da
“quebra do axé”, ou ao associarem mudanças na religião relacionadas ao “perigo de”, ou a “perda
de axé”. Sem cair na tentação de prolongar um debate de “teologia afro-brasileira”, elegeu-se para
esta pesquisa o sentido problemático que se pode inferir dele. Ou seja, para os sacerdotes afro-
brasileiros o processo histórico de formação das religiões afro-brasileiras, deu-se no constante
embate da continuidade versus as transformações, da tradição versus a inovação, vivenciadas no
cotidiano social. Se tal problema é importante para os religiosos afro-brasileiros (para qualquer
religião, de fato) refletiria, por outro lado, uma questão essencial na ciência histórica. Marc Bloch
afirmava que “o tempo da história, realidade concreta e viva, abandonada a seu impulso
irreversível, é o plasma mesmo em que se banha os fenômenos e algo assim como o lugar de sua
inteligibilidade.” Este “tempo verdadeiro” seria, “por sua própria natureza, um contínuo”. Seria
também “mudança perpétua”. Da “antítese desses dois atributos provém os grandes problemas da
investigação histórica”.102 Tal antítese, continuidade-mudança, é o que se chama aqui, em síntese,
‘axé’, dado nas contradições da experiência histórica afro-brasileira para os anos 1970 a 2000.103
Por outro lado, indicar as relações com o continente africano, buscaria estabelecer também outros
elementos que compõe tal processo histórico, como se verá no próximo capítulo.
A lição de historicidade que tal temática traz, reforçaria um conjunto teórico que surgiu mais
fortemente a partir dos anos 1980. E encontrou no estudo da cultura e das religiões afro-brasileiras
objetos exemplares da realidade social brasileira. Estas refletem ainda a utopia da mudança das

101
Alexandre Magno Teixeira de CARVALHO. O conceito de religião popular e as religiões afro-brasileiras: cultura,
sincretismo, resistência e singularidade, pp. 181-182. Cadernos de Ciências Humanas - Especiaria. V. 9, n.15, jan./jun.,
2006, p. 181-198.
102
Marc BLOCH, Introducción a la historia, p. 32.
103
Essa inferência dialoga com aquela proposta por BARBOSA quando utiliza o conceito de ginga como uma
“metodologia da dinâmica cultural afro-brasileira”. Wilson do Nascimento BARBOSA. Ginga e cosmovisão. In
BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel Rufino dos. Atrás do muro da noite (Dinâmica da cultura afro-
brasileira), pp. 31-63.

70
condições sócio-políticas da maioria da população, da valorização e reconhecimento de sua
etnicidade, do direito de existir como se é. Makota Malvina nos anos 2000 dizia: “Eu não quero ser
tolerada, eu quero ser respeitada”. Essa demanda, aparentemente, simples, indicaria que o discurso
da tolerância religiosa pode esconder o lugar de direito das religiões afro-brasileiras. O respeito
refletiria não uma posição subalterna, mas de igualdade em importância dado no valor da ideologia
religiosa e de sua práxis social.

71
Tabela 1 – Correspondência entre os Orixás no Candomblé e na Umbanda104
CANDOMBLÉ UMBANDA
Sincretismo/correspondência/atribuições Linhas/elementos/atribuições
Orixás Voduns Santos Católicos Cores/elementos Atribuição e LINHAS/Tendas Características Cores Atribuição (simbolismo)
Inquices patronagem originárias/sincretismo
católico
Exu “Demônio” Vermelho Mensageiro, guardião EXUS/POMBAGIRAS e Auxiliares dos Orixás Variadas Atuam como “falanges”
Elebará Preto / minério de das encruzilhadas e da ALMAS (Caboclos chefes das Linhas às ajudando a resolver questões da
Aluviá ferro entrada das casas/ etc.)/Não aparece como vezes chamados vida material; muito cultuados;
Pombagira comunicação, linha “escravos” relacionados a alguns dos
transformação, potência orixás das matas não cultuados
sexual
Ogum Santo Antonio Azul-escuro Orixá da metalurgia, da OGUM/ Tenda São Jorge Patrono da força que Vermelha Vencedor de demandas com
Doçu (BA) Vermelho / ferro agricultura e da guerra / São Jorge/ garante a execução da vibrações positivas, combate as
Roxo Mucumbe São Jorge (RJ) forjado estradas abertas, lei, força aplicada na forças do mal, luta contra as
Incoce ocupações manuais, manutenção da ordem, magias antepondo-se aos
soldados e polícia espíritos guerreiros, espíritos negativos; determina a
vários nomes: Ogum luta nesses setores vibratórios
Beira-Mar, Ogum de batalhas enfrentando todos
Rompe Mato, Ogum os planos de malefícios para
Nagô, Ogum Sete “aliviar o corpo magiado ou a
Ondas, Ogum Yara mente ensombrada pelo reino
etc. das trevas”
Oxóssi (Odé) São Miguel (PE) Azul-claro verde Orixá da caça (fauna) OXÓSSI/ Tenda São Elemento verde da Verde Representa o elemento jovem,
Azacá São Jorge (BA) /florestas /Fartura de alimentos Sebastião/ São Sebastião natureza, as matas e os o espírito idealista, sendo
Mutacalombo São Sebastião (RJ) povos que nela habita, honestos e desinteressados;
Congobira índios e seus mestiços, desbravador das almas no
os caboclos; assume aspecto espiritual, daí o sentido
atribuições de Ossanha e a força na manifestação;
no uso das ervas limpa as vibrações inferiores,
medicinais; vasta harmonização, uso da força
falange de caboclos cósmica em relação às épocas
lunares ou solares que se
refletem nas matas e na seiva
das plantas em consonância
com as revoluções do sol e da
lua, determina ciclo das festas –
equilíbrio de foca entre magia e
demanda

104
Fontes: Reginaldo PRANDI. Herdeiras do Axé, pp. 45-49; Vagner Gonçalves da SILVA. Candomblé e Umbanda: caminhos da devoção brasileira, pp. 94-97; Diamantino
Fernandes TRINDADE, Ronaldo Antonio LINARES, Wagner Veneziani COSTA. Os orixás na Umbanda e no Candomblé, pp. 45-50.
72
Obaluaiê (Omulu, São Roque Marron Orixá da varíola, pragas OBALUAIÊ ou OMOLU/ Chefia a falange dos Preto105 Contribui para o
Xapanã) São Lázaro Preto e doenças/ cura de Tenda São Lázaro/ São mortos, encaminha a desenvolvimento do espírito na
Acossi Sapatá Branco / terra, doenças físicas Lázaro ou São Roque alma dos recém usa libertação do corpo carnal;
Cavungo solo falecidos e delas é uma porta que se abre nos
Cafunã absorve os fluidos que trabalhos para desfazer magias
se exalam na maléficas
substancia material;
protetor sem caráter
vingativo
Ossaim (Osanha) São Benedito, São Verde branco / Orixá da vegetação _ _ _ _
Águê Roque, São Jorge folhas (flora)/ eficácia dos
Catendê remédios e da medicina
Oxumarê São Bartolomeu Verde Orixá do arco-íris/ _ _ _ _
Bessem Amarelo /chuvas riqueza que provém das
Dã e condições colheitas (chuva);
Angorô atmosféricas
Xangô São Jerônimo Vermelho Orixá do trovão/ XANGÔ/Tenda São Força da justiça Marrom Representado pela imagem do
Badé-Quevioso São Pedro Branco / trovão e governo, justiça, Jerônimo/São Jerônimo resolve as pendências Moisés de Michelangelo, tendo
Zaze São João Batista pedras (pedra de tribunais; ocupações dando a quem é devido ao lado o leão submisso, que
(PE) raio) burocráticas o que é de direito; significa vitória da razão sobre
a força
Oxum N. Sra. das Amarelo / rios, Orixá da água doce e YEMANJÁ/Oxum/Nossa Orixá do mar, e orixá Azul Período em que a vida é gerada
Aziritoboce Candeias lagoas e dos metais preciosos / Senhora da Glória/Nossa da água-doce, o arco- no útero materno; é o próprio e
Eowa N. Sra. Da cachoeiras amor, ouro, fertilidade, Senhora da íris e suas ligações complexo ato da fecundação e
Quissamba Conceição gestação, vaidade Conceição/Nossa Senhora desenvolvimento do feto/no
Samba N. Sra. Aparecida dos Navegantes e Nossa aspecto de Oxum tem sentido
Iemanjá N. Sra. da Azul-claro, Orixá das grandes Senhora da Guia geral de purificação, consolida
Abé Conceição branco, verde águas, do mar / no filho de fé a força mágica
Dandalunda N. Sra. dos claro / mar, maternidade, família, (axé) pelas vibrações que
Quissimbe Navegantes grandes rios saúde mental envolvem, fortificando a
mediunidade nos banhos de
cachoeira
Iansã (Oiá) Santa Bárbara Vermelho Orixá do relâmpago, INHAÇÃ/Tenda Santa Orixá guerreiro Amarelo- Força mágica capaz de afastar
Sobô marrom rosa / dona dos espíritos dos Bárbara/Santa Bárbara domina também as ouro bem males e influências negativas,
Bamburucema relâmpagos, raios, mortos / sensualidade, águas, como todas as clarinho atendendo às súplicas dos que
Matamba vento tempestade amor carnal, desastres Santas Senhoras; recorrem ao seu poder
atmosféricos domínio sobre os vibratório, como o poder de
raios, chuvas e ventos descarregar cargas nocivas de

105
“É a ausência da cor e da luz da vida”, para Zélio de Moraes, “as cores branco e preto não fazem parte das sete linhas, pois o branco, que é a presença da luz, existe em todas elas e
o negro, que é justamente a ausência da luz, está justamente na falta delas”. Cf. Diamantino Fernandes TRINDADE, Ronaldo Antonio LINARES, Wagner Veneziani COSTA. Os
orixás na Umbanda e no Candomblé, p. 50.
73
enfeitiçamento.
Obá Santa Joana D’Arc Vermelho e Orixá dos rios / trabalho - - - -
dourado / rios doméstico e o poder da
mulher
Logun-Edé São Miguel Dourado e azul Orixás dos rios que - - - -
Bosso-Jara Arcanjo turquesa / rios e correm nas florestas / o
florestas mesmo que Oxum e
Oxóssi, seus pais
Euá Santa Lúcia Vermelho e Orixá das fontes / - - - -
Euá amarelo / harmonia doméstica
nascentes e
riachos
Nanã Santana Lilás, púrpura, Orixá da lama do fundo NANÃ BURUQUÊ/Tenda Senhora Suprema da Violeta ou Representa o elemento velho e
azul e branco / das águas / educação, Nossa Senhora de Umbanda, culto roxo senil, consciente de toda a sua
lama, pântanos senioridade e morte Santana/ Vovó da restrito/ calma, existência, já ocupando um
Umbanda/Santana paciência, ponderação; corpo gasto, o indivíduo espera
a libertação que virá com a
morte
Oxalá (Oxaguiã Jovem e Jesus Cristo Branco / ar Como Oxaguiã orixá da OXALÁ/ Orixá maior da Supremo para o qual Branco* Sentido da pureza, sem mácula,
Oxalufã Velho) N. Sr. do Bonfim criação (cultura Umbanda/Jesus Cristo convergem todas as na cor que é a síntese de todas
Mavu-Lissa (BA) material) / cultura linhas as cores irmanadas, simbolismo
Zambi material, sobrevivência. da força máxima da umbanda,
Lemba Como Oxalufã orixá da constitui Linha Suprema em
criação (humanidade) / que se abrigam as linhas e
sopro da vida falanges
Erê, Ibeji (Espíritos São Cosme e São s/c / brinquedos, Orixá Criança/princípio IBEJI/Tenda Cosme e Espíritos das crianças, Rosa Raízes milenares no âmago
Infantis) Damião doces da dualidade; tudo que Damião/Cosme e Damião puros em corpos espiritual de todos os povos,
Hohó se inicia e nasce: a físicos recém-libertos cultos dos gêmeos; relacionado
Tobossi nascente de um rio, o do útero materno, ao transe infantil denominado
Vunje nascimento dos seres espíritos aprendizes; “Erê”, limpeza fluídica nos
humanos, o germinar filhos de fé ao final das práticas
das plantas, etc, de terreiro.
brincadeira, alegria.

74
Referências bibliográficas:
1. ABBAGNANO, Nicola. Diccionario de Filosofia. México: Fondo de Cultura Económico,
2004.
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Novos estudos - CEBRAP no. 72, São Paulo, July 2005.
20. TRINDADE, Diamantino Fernandes; LINARES, Ronaldo Antonio; COSTA, Wagner
Veneziani. Os Orixás na Umbanda e no Candomblé. São Paulo: Madras, 2008.
Capítulo 2 – Religiões Africanas e Afro-Brasileiras: dinâmica histórica e relações
contemporâneas
Bahia, oh África,
Vem cá, vem nos ajudar
(...)
Hoje o olhar de mamãe marejou, só marejou
Quando se lembrou do velho, o meu bisavô
Disse que ele foi escravo,
Mas não se entregou à escravidão,
Sempre vivia fugindo e arrumando confusão
Disse pra mim que essa história do meu bisavô, nego fujão
Devia servir de exemplo
A esses nego pai-joão
Disse afinal que o que é de verdade ninguém mais hoje liga,
Isso é coisa da antiga.
Música Coisa da Antiga (Wilson Moreira/Nei Lopes)

Os estudos sobre a história das religiões em África


Desde o século XIX, os estudos sobre o continente africano eram realizados do ponto de
vista da etnografia e da antropologia. A perspectiva da a-historicidade de África, principalmente da
região ao Sul do Saara conhecida como África Negra, predominou por muito tempo nas ciências
sociais do Ocidente, justificada na ideia da não existência de fontes escritas para a produção de uma
história dos países africanos e do “primitivismo” daqueles povos ágrafos. Eles demonstrariam, no
seu pouco desenvolvimento material, a prova de sua “humanidade atrasada”.
Os estudos sobre as religiões africanas seguiam os mesmos parâmetros. No século XIX, as
perspectivas evolucionistas pensavam dar conta da explicação sobre o desenvolvimento dos cultos e
religiões no continente, com os conceitos de fetichismo e animismo.106 Por muito tempo, a
representação da África como um “continente sem história e sem religião”, nas palavras do filósofo
congolês Valentin Mudimbe, teve um “papel central na legitimação do tráfico atlântico de escravos
e da colonização”.107 Os pensadores ocidentais, ao construírem ao longo dos séculos uma
representação de suas próprias origens culturais (greco-latinas positivadas), montaram na mesma
medida uma representação negativa dos outros povos, principalmente dos asiáticos, africanos e

106
Fetichismo é um termo derivo da palavra portuguesa feitiço (artificial), significaria “a crença no poder sobrenatural
ou mágico de objetos materiais particulares. Mais comumente, a atitude dos que consideram animados os objetos
materiais, e os tipos de religião ou de filosofia fundados nesta crença”. Esse conceito foi substituído pelo de animismo
desenvolvido por Edward Burnett Taylor em sua obra Primitive Culture (1934) para indicar “a crença, difundida entre
os povos primitivos de que todas as coisas naturais se acham animadas, dito em outras palavras, a tendência de explicar
os acontecimentos pela ação de forças e princípios animados”. (ABBAGNANO, N. Diccionario de Filosofia, verbete
fetichismo, p. 484 e verbete animismo, p. 79). Taylor pensava ser o animismo o primeiro estágio de desenvolvimento da
religião e uma “chave para a chamada mente primitiva” de acordo com a perspectiva evolucionista do século XIX. Os
dois conceitos foram duramente criticados e estão em desuso hoje, apesar da prolongação das perspectivas racistas por
trás deles. Vale lembrar que Nina Rodrigues utilizou os dois termos em sua mais famosa obra sobre as religiões negras
na Bahia do XIX, O animismo fetichista dos negros baianos de 1896/1897.
107
Vinigi GROTTALELLI e Robert M. BAUM. African Religion: history of study, p. 111 in ENCYCLOPEDIA OF
RELIGION, second edition. O trabalho citado de Mudimbe está em sua obra The Invention of Africa (1988).

76
americanos, que lhes serviam de mão-de-obra escrava. Utilizaram-se para isso de uma continuidade
literária que viria desde Heródoto (c.484-430/420 a.C.) à época contemporânea, em que se
“marginalizou a África dos estudos científicos das religiões mundiais” e de sua participação
civilizatória.
Um exemplo seriam as terminologias utilizadas para descrever as religiões africanas, que
demonstram o desnível no tratamento dado às diferentes tradições. As africanas são denominadas
primal, oral, tribal, tradicional ou indígena para distinguí-las das “religiões universais” e estão fora
dos departamentos de história e de estudos da religião, vistas como temas da antropologia.108 O
sociólogo holandês Wim van Binsbergen considera o termo “tradicional” inadequado para designar
as religiões em África. Recordem-se os debates de Hobsbawm e Ranger a respeito da “invenção das
tradições”. Segundo ele o melhor “eufemismo” seria “religiões históricas africanas”.109 A noção de
“civilizações tradicionais” também foi criticada pelos africanistas tanto como o epíteto de África
“Pré-Colonial”, porque diz respeito à visão de que a África estaria presa num continuísmo ou num
passado pré-histórico, passando a existir somente a partir da Colonização e do contato com o
europeu. Seria dependente do exterior para que transformações internas ocorressem.110
Essa variedade de terminologias, designações e aportes teóricos não é capaz de esgotar a
complexidade das religiões africanas e, em especial, das subsaarianas. Essas diferenças expressam
mais as mudanças na perspectiva política que se tem sobre o continente africano – das concepções
mais racistas para as menos racistas, se é possível – e o modo como as outras disciplinas e os novos
tratamentos metodológicos foram utilizados, ao longo do tempo, para a análise das mesmas. Essa
mudança no olhar dos pesquisadores a respeito da África, sua cultura e, consequentemente, sua
religião, além de procurar romper com as teorias abertamente racistas, cria uma nova base teórico-
metodológica e aumenta, em diferentes níveis, o conhecimento que se tem do continente. Esse
movimento não é somente exterior. Os pesquisadores africanos estão tomando a frente e desde
meados do século XX seus trabalhos vem a ser utilizados no conhecimento que se quer construir
sobre a África. A “tradição oral”, por sua vez, passou a ser uma fonte importante e considerada com
muita seriedade pela história e outras ciências sociais, na reconstrução e explicação da vida social
africana. Para os estudos das religiões africanas, não poderia ser diferente. E seus debates são
profícuos.

108
Idem, p. 111.
109
Wim van BINSBERGEN. “Challenges for the sociology of religion in the African context: prospects for the next
fifty years”, p. 2. Artigo da Revista Social Compass em seu 50º aniversário, XXVII Conferência da Sociedade
Internacional de Sociologia da Religião, Turin, Itália, 21-25 de julho, 2003.
110
Elikia M’BOKOLO. África Negra: História e Civilizações. Tomo I, p. 12. Como afirmava este historiador “longe
de ser recheada apenas com as continuidades, este tempo longo do passado africano foi talvez, em primeiro lugar, o das
invenções contínuas, sob a forma de uma incessante bricolagem, de laboriosas adaptações ou de rupturas radicais”.

77
O que primeiramente se percebe, ao se consultar as enciclopédias e compêndios sobre as
religiões em África, seria a diferença no uso das palavras religião e/ou religiões. Os especialistas
que se utilizam do singular religião consideram que existe “um todo entrelaçado entre diferentes
regiões em África que criam uma correspondência de visão de mundo” e outros aspectos como: “o
apelo à ética baseado no caráter correto; a busca pela vida eterna; o encontro na vida terrena onde o
bem vence o mal; a abertura aos espíritos ancestrais, remanescentes entre a comunidade dos vivos
etc; uma apreciação do ciclo recorrente da humanidade”. Essa perspectiva, ligada, principalmente,
aos estudos da religião fenomenológicos e teológicos, procura dar uma visão do continente africano
como um todo. E colocar a religião africana no mesmo patamar de importância religiosa universal
dada às outras tradições. Segundo Asante e Mazama, a contribuição africana é importante para as
idéias religiosas. Isso, no que diz respeito à espiritualidade, ritual, iniciação, novas categorias
teológicas, narrativas cosmológicas e caminhos para conceitualizar o comportamento ético
humano.111 Para eles, as diferentes manifestações religiosas expressariam uma unidade essencial
africana. Essa teoria pode ser vista como debitária dos movimentos de Negritude e Afrocentrismo e
dos escritores africanos cristãos, como John Mbiti. Ela tende a destacar a essencialidade africana.
E, por vezes, a sua centralidade no processo de hominização e estruturação cultural da espécie
humana.
Outra perspectiva seria aquela que percebia no continente africano uma variedade de
manifestações religiosas ou religiões, podendo-se dividí-las de acordo com as regiões geográficas e
suas características intrínsecas, culturais ou étnicas. Uma classificação bastante conhecida é aquela
utilizada pelos estudiosos europeus, dividindo-as entre as religiões tradicionais e as sincréticas,
misturadas com o cristianismo, islamismo, judaísmo. E que dão origem aos novos movimentos
religiosos modernos. Dessa forma, haveria tantas religiões quanto há grupos linguísticos étnicos.
Aproximadamente mais de oitocentos, das quais 730 estão classificados.112 Haveria também
algumas similaridades de idéias e certas características comuns para todas as religiões africanas,
podendo-se perceber que elas constituem um padrão africano de pensamento e ação religiosos.113
Historiadores, antropólogos e sociólogos são os que fazem uso dessa perspectiva. Como visto, as
duas não difeririam em tese. Marcariam mais uma diferença de enfoque e de tratamento
metodológico. No fundo, concorda-se que há uma essencialidade africana (um modo de ser ou um
padrão africano), expressa em uma diversidade de manifestações religiosas. Para os cientistas
sociais, importaria mais talvez perceber o modo como as religiões africanas transformaram-se,

111
Molefi Keti ASANTE e Ama MAZAMA (Eds.). Encyclopedia of African Religion, pp. xxi-xxii.
112
Mircea Eliade. Dicionário das Religiões, p. 27.
113
Benjamin C. RAY. African Religions: an overview, p. 83 in ENCYCLOPEDIA OF RELIGION, second edition.

78
desenvolveram-se e se relacionaram ao longo do tempo nas diferentes sociedades e grupos étnicos.
Enquanto os teólogos preocupar-se-iam com a análise teo-filosófica das idéias religiosas em si.
Pensa-se que os dois modos de tratar a questão têm sua importância no resgate e conhecimento
sobre as religiões africanas, sendo úteis em diferentes momentos.
Tal observação pode ser exemplificada ao somarem-se as informações que se tem sobre o
desenvolvimento histórico das religiões em África e suas “visões de mundo”, cosmologias e
cosmogonias. A antiguidade da humanidade em África e de sua civilização (características
linguísticas, raciais, religiosas, econômicas e de cultura material) somada à sua história religiosa,
segundo pesquisas atuais, pode ser vista em termos de uma “interação e intermistura de sistemas
culturais que produziram os padrões religiosos e culturais mais complexos de hoje”. Há evidências
das “antigas fases” da religião em certas áreas. Existem pinturas em rocha na África do Sul que
datam do século XIX, mas também de 2000, 6000 e até 20.000 a.C. que “aparentemente
representam uma continuidade de tradição do Xamanismo (estados de transe induzidos pela dança)
praticado pelos caçadores San e seus ancestrais”.114
A partir de 1.500 a.C., têm-se vestígios de importantes mudanças no desenvolvimento
religioso ao Sul do Saara. Tal acompanhou as mudanças da economia de coleta e caça para a
agricultura. Houve a emergência dos “cultos territoriais organizados ao redor de altares e sacerdotes
locais relacionados à terra, produção de alimentos e chuva. Esses cultos geraram líderes políticos e
religiosos em níveis local, tribal e de clã.” De 400 a 500 d.C. o uso do ferro na região foi
responsável pelo surgimento de muitos mitos, ritos e formas simbólicas. Os ferreiros tornaram-se
heróis míticos e eram resguardados como uma casta especial com proibições rituais e algumas vezes
protegidos em santuários. Considerava-se que o ferro tinha propriedades sagradas, pois seria um
elemento que se transforma no fogo, podendo adquirir diferentes formas e tendo muitos usos. Foi
afirmado que o poder transformador ou de transformação (transmutação) seria muito importante
para o entendimento das religiões africanas ou afro-brasileiras. Os maiores feiticeiros seriam
aqueles que o dominam, já que o segredo da vida é sua constante e dinâmica mutação. Por isso, as
divindades ou figuras míticas que possuem esse poder são muito conhecidas na mitologia africana.
No Brasil e na África conhecem-se os mitos de Ogum, “o dono da forja”, divindade de
origem iorubá que representa os guerreiros e também os agricultores, criador das ferramentas
importantes para a sustentação da sociedade. Ogum seria um exemplo do chamado “herói
civilizador” ou “ancestral civilizador” que se tornou divindade (Orixá) através do mito. O mito é
uma narrativa sagrada que explica as origens do cosmos, da humanidade, das instituições ou dos

114
Idem, p. 83.

79
papéis sociais e que tem uma função dentro dos rituais religiosos das sociedades em todo o mundo
(M. Eliade). Em África podem expressar também lições morais ou a caracterização da
personalidade e do comportamento social dos indivíduos no grupo. Essa preocupação com a
ontologia do mundo e do ser social marcaria o surgimento de pessoas ou seres extraordinários que
se tornaram exemplares para as gerações futuras. Esse herói seria visto como um dos mediadores
entre o mundo espiritual e o material, entre a ordem e a desordem, entre a civilização (humanidade)
e o mundo natural. Por fim, entre a vida e a morte.
Essa complexa estruturação ritual e mítica aprofundou-se dos séculos treze ao quinze com o
surgimento dos reinados em África que passaram a se tornar uma “parte dominante dos sistemas
religiosos”. Os “reis sacros” eram vistos como deuses ou descendentes de deuses e estavam
espiritualmente relacionados à fertilidade da terra e bem estar do povo. Já dos séculos dezessete ao
dezenove, existem evidências de dois tipos de desenvolvimento religioso: (a) um aumento dos
cultos de cura e possessão espirituais, geralmente conhecidos como cultos de aflição, e, (b) uma
ênfase sobre o conceito de ser supremo. A hipótese de Asante e Mazama é a de que,
A emergência dos cultos de cura populares parece estar ligada a quebra das instituições
políticas locais e o contato com forças exteriores e novas doenças [colonialismo]. O bem-
documentado culto de Lemba na porção ocidental da República Democrática do Congo, cujas
datas vão do século 17 a início do 20, era uma das muitas terapias ngoma (tambor) que eram
e continuam sendo características das religiões e dos povos de fala bantu do centro e sul da
África. Durante o mesmo período, o crescimento importante do conceito de ser supremo
parece estar ligado ao aumento da escala política e da necessidade de explicar a difusão social
e as mudanças políticas em níveis mais universais.115

Sabe-se que no Brasil a “terapia ngoma” foi central na consolidação das formas religiosas
afro-brasileiras. O “bater tambor” está, de fato, imbricado em todas as manifestações culturais
negras sagradas ou profanas. Ritualmente, nas diferentes religiões afro-brasileiras, o tambor marca e
conduz a chegada das entidades, orixás, inquices ou caboclos, servindo como “gatilho” para o
transe mediúnico. Nas tradições iorubás o conjunto dos atabaques do culto – chamados Rum, Rumpi
e Le – são reverenciados por todos, durante o culto e fora dele, e recebem oferendas. O poder dos
tambores estaria em abrir uma passagem entre o mundo dos orixás e o humano, caracterizando
também uma função de mediação. Para cada orixá, existe um toque que cria a vibração energética
característica que atrai aquela divindade. Com as transformações da orquestra ritual religiosa ao
longo do tempo é possível que a elaboração dos toques e das cantigas tenham se especializado
muito para manter o padrão de sonoridade que leva ao transe. Si, se pode falar de uma
essencialidade africana ou padrão religioso africano, o caráter extático das religiões africanas e
suas derivadas na diáspora é o mais notável, com um poder agregador e fortificador das relações no

115
Benjamin C. RAY, op. cit, p. 84.

80
grupo religioso (o transe “verdadeiro” é o desejado e esperado durante o culto) e como elemento
estabilizador da psique do indivíduo que é preparado para “receber no corpo” (na cabeça, ori) a
divindade ou uma experiência profunda de manifestação religiosa.116
Dessa formação mítico-religiosa relacionada às transformações históricas dos povos
africanos e da diáspora podem-se incluir ainda algumas explicações de características gerais das
religiões africanas. Ray identificava: (a) a percepção da natureza imperfeita da condição humana;
(b) os mitos de criação; (c) os problemas podem ser aliviados através de ação ritual e, (d) a
explicação e o controle da experiência imediata.117 A profundidade filosófica desses elementos
sugere que essas religiões fizeram uma complexa elaboração do conhecimento da vida humana e do
ambiente natural. Uma visão psicológica e médico-científica que integraria o indivíduo no grupo
social e no mundo natural, em todas as etapas da existência.
Complementando tais elementos, vê-se que para Asante e Mazama os pontos gerais a serem
considerados – que dão um senso unitário em “numerosas intrusões culturais e espirituais” – seriam:
(1) a origem dos seres humanos deu-se no continente africano, propiciando a mais antiga
consciência humana em direção à descoberta da natureza e dos mistérios da vida e morte. Por isso,
em África os espíritos existem, não é uma questão debatível na maioria de suas sociedades. Os
espíritos são empregados na manutenção do balanço e da harmonia e representam a busca contínua
por equilíbrio; (2) a idéia de que um criador existe, está também na base da realidade africana,
sendo a mais antiga idéia de Suprema Divindade; (3) a crença no Primeiro Ancestral relacionado ao
Ser Supremo; (4) o Ser Supremo raramente se envolve nas atividades diárias das pessoas; (5) o Ser
Supremo é o criador (não um administrador) sem se envolver nas coisas humanas; deu às
divindades menores a tarefa de lidar com os humanos. Não recebe culto, somente em momentos de
grande crise. Os Ancestrais são mais importantes no dia-a-dia. Por isso são cultuados118.
Vê-se abaixo uma bela estatueta feminina de uma ancestral nigeriana.

116
Aqui estou pensando não somente nas chamadas “religiões tradicionais” ou nos “cultos tradicionais” da diáspora,
mas também nas Igrejas Negras, gospel ou evangélicas, em que frequentemente os fiéis entram em transe extático.
117
Idem, p. 85.
118
Molefi Keti ASANTE e Ama MAZAMA (Eds.), op.cit., pp. xxii-xxiv.

81
Bronze do Antigo Benin representando uma figura ancestral na Nigéria.
Fonte: Encyclopedia of African Religion, p. 46.

Essas características auxiliariam a formar uma percepção mais ampla da realidade religiosa
africana, servindo como porta de entrada aos estudos mais específicos. O conhecimento desses
elementos seria essencial, quando se busca analisar a formação das religiões afro-brasileiras. As
proximidades e as diferenças explicariam algo da dinâmica religiosa própria africana, que foi
reelaborada no Brasil. Por exemplo, o papel dos médiuns, sacerdote-médico-mago. No Brasil o
nganga ou quimbanda (exercendo funções de curandeiro, adivinho e sacerdote) foi o primeiro
“agente” da reelaboração das práticas religiosas africanas, identificado durante a escravidão
atendendo à população escrava e pobre na colônia, desde o século XVI. Foi por isso duramente
perseguido, pois representava as antigas lideranças africanas, sendo alguns de fato membros das
casas e famílias reais e, portanto, referências de organização política. Pode-se afirmar que a
repressão aos sacerdotes-médicos-magos estava associada aos levantes e às rebeliões contra a
ordem colonial. Sobre eles em África, dizia Ray,
Em África a distinção entre médiuns, adivinhos, sacerdotes e profetas é um fluído, e a
transição de um para outro é feita facilmente. Geralmente, adivinhos e médiuns são
consultores espirituais, enquanto profetas são líderes humanos. Os profetas podem ir
diretamente para o povo com programas para ação e iniciativa religiosa e movimentos
políticos. Por esta razão os profetas são frequentemente fonte de mudança política e religiosa.
Em circunstâncias de agitação política, sacerdotes médiuns podem desenvolver poderes
proféticos e iniciar mudança sócio-religiosa. Isto ocorreu durante os tempos coloniais na
África oriental: profetas tradicionais tornaram-se líderes de resistência política em partes do
Sudão, Uganda, Tanzânia e Zimbabwe. No Kênia, no movimento de resistência Mau Mau foi
também significativamente implementado e mantido por normas rituais tradicionais.119

Esse exemplo esclareceria como o colonialismo associava a ação dos sacerdotes com
possíveis levantes e resistência política. Daí a consequente perseguição a eles, quando transportados

119
Idem, p. 87.

82
ao Brasil. Por outro lado, compreende-se o porquê da ação missionária européia em África, católica
e protestante, considerar fundamental o extermínio ou a “aculturação” das religiões históricas
africanas, numa “guerra santa” contra a chamada feitiçaria e seus agentes. A autonomia religiosa
foi parte do processo de resistência contra o domínio político, militar e econômico externo. Muitos
movimentos religiosos “sincréticos”, que surgiram em África do século XIX em diante, estiveram
envolvidos nas lutas de independência anticolonialistas. Para se compreender o cenário atual das
religiões em África e a relação histórica com as religiões afro-brasileiras, é preciso considerar com
atenção as conexões da vida religiosa com a vida política desde os anos 1960. Em ambas
apresentam-se contextos de dominação político-econômica, luta anti-racista e situações de
subordinação político-cultural.

A ação missionária e os novos movimentos religiosos africanos


O continente africano manteve relações contínuas com outras partes do mundo desde a pré-
história e antiguidade. Como um “continente aberto” (M’Bokolo) intercambiou diferentes tradições
religiosas ao longo do tempo. A presença muçulmana e cristã no continente data do século VII e XII
sendo, pois, rica as mútuas influências na região do nordeste de África. Segundo Gromiko,
existiriam em África “vários focos de sincretismo religioso das religiões tradicionais com as
mundiais”120. Um desses focos seria o etíope, “mais antigo na África Tropical e provavelmente o
mais complexo”. Combinaria de modo sintético “a religião politeísta do Axum, as religiões pré-
politeístas antigas e posteriores dos povos kushitas, o judaísmo, o cristianismo, o islã e também
elementos do budismo primitivo”.121 Na África Ocidental e Central a presença dos viajantes e
missionários portugueses, desde o século XV, introduziu elementos do catolicismo entre as
populações da região. No entanto, foi a partir do século XVII que a presença de missionários
católicos e protestantes influenciou mais fortemente a vida religiosa no continente.
A partilha da África entre as potências coloniais facilitou a penetração dos missionários
europeus e americanos no continente; as autoridades coloniais incentivavam inclusive, as
atividades das missões, quando estas não impediam as tarefas políticas e não agudizavam a
situação. No mapa da África, sobretudo na parte ocidental do continente e ao Sul do equador,
surgiram numerosos focos de catolicismo cristão-africano. Religiosos pela sua forma e
anticolonialistas quanto à sua orientação, os movimentos cristão-africanos conferiram um
matiz sociopolítico ao sincretismo. O Cristo Preto contra o Diabo Branco – eis sua essência.
O desenvolvimento da luta anticolonial e os difíceis processos sociais e culturais que
ocorreram nas sociedades africanas durante a conquista da independência e nos primeiros
anos da sua instauração fizeram multiplicar o número de seitas e de igrejas sincréticas,

120
Aqui se entende o sincretismo no seu sentido “positivo” e “objetivo”, tal como apresentado por Barbosa e Ferretti
respectivamente. Ou seja, todas as religiões possuem elementos sincréticos (diversos) de troca que se configuram para a
sua estruturação.
121
A. A. GROMIKO. As Religiões Africanas: Tradicionais e Sincréticas, p. 236.

83
contribuindo para a divulgação dos movimentos cristão-africanos em países e partes do
continente, onde os missionários impunham a fé católica e protestante.122

Os novos movimentos religiosos modernos em África podem ser compreendidos assim


como “respostas criativas e inovadoras para os níveis históricos sem precedentes de convulsão e
mudança em todas as áreas da vida – cultural, econômica, ambiental, social e política” advinda da
imposição do governo colonial, iniciada na segunda metade do XIX.123 Outra forma de analisar a
questão é perceber a reestruturação ritual nesse período. As religiões africanas históricas criaram
suas próprias interpretações e usos para o cristianismo e o islamismo, incorporando seus elementos.
Sobre isso comentava Ray,
Na medida em que o cristianismo europeu relaciona-se somente com os problemas
espirituais, as sociedades africanas criaram suas próprias formas de cristianismo onde os
rituais são dirigidos para ambas as doenças físicas e espirituais da sociedade. Isto tende a ser
proferido em igrejas independentes que utilizam o poder da oração cristã e do ritual para
curar males fisiológicos e psicológicos, muito parecidos com as religiões indígenas. O Islã
adaptou no tempo algumas linhas similares. Embora a medicina ocidental seja reconhecida e
procurada para o tratamento de doenças infectuosas e injúrias físicas, técnicas rituais
continuam sendo usadas em ambas as áreas rural e urbana por causa das ideias africanas a
respeito da fundação espiritual e social da saúde pessoal e bem-estar. Onde os dois sistemas
estão disponíveis, as pessoas frequentemente usam os dois. A crescente urbanização tendeu a
quebrar certos elementos das religiões tradicionais; por exemplo, os ritos para os espíritos
ancestrais e deuses da natureza. Porém, a urbanização criou seus próprios problemas sociais,
psicológicos e espirituais para os quais adivinhos e médiuns têm desenvolvido métodos de
tratamento.124

Poder-se-ia afirmar que seriam aquelas características gerais que permitiriam a adaptação
contínua nos novos contextos sociais. Habilidade transformadora dos agentes religiosos que
deveriam estar aptos a lidar com diferentes e novas situações. Seria um processo dialético que agiria
na configuração de novas estruturas rituais e religiosas. Um exemplo religioso ilustrativo, para essa
problemática, pode ser dado com a análise da mediação e dos mediadores. Tal como é apresentada
pelos historiadores das religiões, a mediação seria um dos elementos mítico-estruturais presentes
em diferentes culturas e tradições religiosas. De acordo com essa perspectiva, o ser humano
desenvolve ao longo do tempo uma representação de elementos naturais, simbólicos e/ou ligados às
funções sociais (sacerdotes, visionários, feiticeiros etc.) que servem como catalisadores das forças
espirituais que se manifestam no mundo natural. São veículos de comunicação com os deuses e
como “portas” que abririam o caminho para o mundo espiritual. Talvez tal construção esteja ligada
à percepção da mortalidade e do dinamismo da vida natural, que levaria à busca de um
entendimento sobre o movimento geral da existência. Principalmente, dada a possibilidade de se

122
A. A. GROMIKO, op. cit., pp. 237-238.
123
Peter B. CLARKE. African religions: new religious movements, p. 102. In ENCYCLOPEDIA OF RELIGIONS,
second edition.
124
Benjamin C. RAY, op. cit., p. 87.

84
controlar e prever seus fluxos. Ao expressarem determinada “cosmovisão”125 esses mediadores
tornar-se-ão parte indispensável dos cultos e, em alguns casos, como no cristianismo e no
hinduísmo, a personificação ou emanação direta da própria divindade – Jesus Cristo que seria ao
mesmo tempo o Filho e o próprio Deus Pai ou, o deus hindu Krishna herói e emanação de Vishnu –
por exemplo. O contato ou embate entre diferentes culturas, em situação de dominação política,
levaria a reinterpretações ou interpolações de práticas rituais e cosmovisões. Poder-se-ia afirmar
que a relação existente entre as igrejas ocidentais e as religiões históricas em África problematizaria
aspectos ligados à mediação na época contemporânea.
Por exemplo, a partir do Concílio Vaticano II (1963-1965), ficou muito conhecido o termo
inculturação, utilizado em contraposição à aculturação, perspectiva considerada como impositiva
das práticas culturais ocidentais cristãs em relação às culturas pré-colombianas, ameríndias,
africanas e asiáticas, conquistadas e colonizadas pelos europeus, principalmente, a partir do século
XVI. Assim, ao invés de se estabelecer um sincretismo negativo entre práticas religiosas
diferenciadas, obrigando os dominados a assumirem os rituais e as crenças dos dominadores, a
inculturação cristã permitiria, segundo a Igreja, uma intercalação de perspectivas (releituras) das
religiões históricas africanas, no geral em termos estéticos (música, danças, vestimentas, dias
sagrados ou sacrifícios simbólicos), desde que não firam os dogmas de fé católica. Romam Maleck,
a respeito da questão da ancestralidade em África, afirmava ser esta interpretada pela cristologia no
contexto da redenção, podendo descrever uma soteriologia narrativo-memorativa, ou seja, um
reforço da doutrina da salvação ligada à narração e memória do Cristo. Os africanos cristianizados
continuariam a rezar para os ancestrais pedindo intercessão junto a Cristo, “verdadeiro irmão,
ancestral e único mediador”. Os católicos inserem, dessa forma, “comunidade dos santos” no culto
aos ancestrais. A Eucaristia, como uma rememoração do sacrifício do Cristo, seria explicada como
um ritual ancestral.126
Apesar da aparente aceitação e valorização da religião histórica e de seus elementos, o
cristianismo missionário em África, protestante ou católico, engessava e subordinava a dinâmica
própria das diferentes culturas no continente. Muitas práticas ligadas ao culto dos ancestrais
expressam relações de parentesco e de poder político nas comunidades. São relações sociais
construídas historicamente, ligadas à posse e ao cultivo da terra, formas corretas de se cuidar do
gado ou das crianças, além da proteção contra possíveis males que possam atingir a comunidade

125
Entende-se por cosmovisão, segundo Barbosa, o modelo de interpretação do mundo (cosmos) tal como elaborado por
determinada cultura, nela engloba-se o entendimento sobre a origem do universo e do ser humano, e a relação que se
estabelece entre o universo visível humano (sociedade) e o invisível (espiritual).
126
MALECK, Romam. “Ancestor Worship II (Africa)”, pp. 20-23. In: GITTINS, Anthony J. Dictionary of Mission.
New York: Orbis Books, Maryknoll, 1997.

85
como doenças, ataques de bruxos, guerras, etc. Também expressa, em outro nível, a identidade
pessoal e familiar indicando o lugar do ser humano em relação aos mundos natural e espiritual.
Mexer com estas estruturas implica dissolver identidades e gerar taras sociais, psicopatologias
sociais, ódio social e guerras étnicas (introdução das psicoses coletivas típicas da “construção
europeia” apressada).
No entanto, essas transformações nas religiões históricas não foram de via única. Entre os
diferentes movimentos religiosos, atualmente, as igrejas cristão-africanas são as mais numerosas e
apresentam um sincretismo bastante articulado. Também chamadas independentes, proféticas,
messiânicas ou de iniciação, “são organizações que se separaram principalmente das igrejas
protestantes, em parte da católica e da etíope e se proclamaram independentes”. Assim, criaram
seus dogmas e ritos, sintetizando “as religiões tradicionais autóctones com o cristianismo”. São
divididas em três grupos: (a) as organizações religiosas etíopes, que se pronunciaram contra a
dominação do clero europeu na administração eclesiástica; encontram-se na África Austral, Central
e Oriental; (b) as organizações sionistas que estão presentes na África Austral e Central; segundo
elas os europeus deturparam a Bíblia e, por conseguinte, seus seguidores consideram-nos como
cristãos impuros; combatem a “bruxaria”, apesar de utilizarem-se muitos elementos das religiões
tradicionais em seu culto; e, (c) as organizações apostólicas (ou messianistas) que atribuem um
importante papel à personalidade: apóstolo, Messias, profeta, etc. Tiveram maior divulgação nos
países da África Ocidental, Central e Oriental; pregam o advento do “Reino de Deus” na Terra e a
fé na chegada do “Salvador preto”.127
Uma das mais antigas, com um maior número de fiéis e de influência, é a igreja
amaNazaretha (Nazaré ou Igreja Batista Nazirite) fundada na Zululândia, África do Sul em 1913.
Foi criada por Mdlimawafa Mloyisa Isaiah Shembe (1867-1935), ex-membro da Igreja Batista
Nativa Africana, que era uma secessão da Igreja Batista branca. Shembe acreditava na idéia de uma
revelação divina contínua e guia espiritual através de sonhos e visões. Ele interpretava os ritos
sacramentais como ritos essencialmente de purificação (as cinzas eram retidas como símbolos
purgativos). Shembe modelou sua missão de acordo com aquela do profeta bíblico João Batista;
proibiu o uso da medicina ocidental, pois acreditava que a saúde e bem estar viriam através da fé e
da água abençoada. Segundo Clarke, a Igreja amaNazaretha e outras introduziram mudanças
litúrgicas importantes. O uso do tambor sagrado, visto pelas igrejas missionárias como um símbolo
separatista, ganhou destaque como um instrumento do culto. Também mudaram radicalmente a

127
A. A. GROMIKO, op. cit., p. 280.

86
importância do hino, que foi transformado de versos sobre certas idéias religiosas em um “ritmo
sagrado que se expressava através da dança sagrada do médium”.128
Para Clarke, tais igrejas não seriam “simplesmente pontes construídas entre a nova cultura
religiosa e as antigas, mas procuraram transformar ambas”. Mudou-se tanto o sentido dos hinos
como o significado dos festivais de dança tradicionais, que se tornaram a maior inovação litúrgica.
Estes ajudaram a despertar a consciência da opressão e colonização e promoveram a
conscientização deles como “povo escolhido de Deus”. A ênfase escatológica da amaNazaretha
declara que as montanhas sagradas de Inhlangakazi, a oitenta milhas de Durban, e Ekuphakameni
(“o lugar eleito”), próximo a Durban, são “os templos mais desejáveis de Deus e a localização do
paraíso sobre a Terra”.129
Este exemplo da dupla via de transformação histórica das religiões africanas permitiria
questionar o modo específico como esse processo se deu no Brasil, no século XX. Reforça-se o
argumento de que a elaboração da religiosidade africana no Brasil, colônia e império, parece ter-se
dado concomitante às mudanças religiosas que ocorreram em África, durante o avanço do
colonialismo, dos séculos XVI ao XIX. No século XX, uma vez que a proximidade entre as
religiões africanas e as afro-brasileiras tendeu a se fortificar a partir de meados da década de 1960,
qual a “imagem de África” presente hoje nas religiões afro-brasileiras? Porque tal imagem
(construção cultural) seria mais forte a partir desse período? Quem construiu ou participou de sua
construção?
Tem-se, pois, que a diversidade religiosa na África contemporânea seria um campo amplo e
complexo para os pesquisadores da religião. Da mesma forma que no Brasil, atualmente em África
a ação das igrejas Neopentecostais tendeu a transformar mais ainda o campo das religiões no país.
Inclusive o Brasil é um exportador de novas igrejas, que contribuem para as transformações no
continente irmão. A Igreja Universal do Reino de Deus foi implantada em África há décadas e
cresceu muito não só nos países lusófonos. Procurar elementos gerais para comparação não
significa ignorar as diferenças de desenvolvimento em cada região e país, mas possibilitar análises
articuladas que contribuam para o fortalecimento de teorias explicativas sobre a história das
religiões africanas e afro-brasileiras. Para isso, a discussão atual sobre a “africanização” no campo
religioso afro-brasileiro é bastante útil.

128
Peter CLARKE, op. cit., p. 103.
129
Idem.

87
Sincretismo e Africanização nas religiões afro-brasileiras
As pesquisas atuais das ciências sociais apontam que as religiões afro-brasileiras passaram
por processos de branqueamento e africanização ou reafricanização, num movimento dialético e de
resposta às transformações sócio-políticas e econômicas, principalmente no último século.
Relacionada a esses aspectos, Reginaldo Prandi apresentou uma periodização para a história das
religiões afro-brasileiras dividindo-a em três momentos: (a) o primeiro período seria o da
sincretização com o catolicismo, durante a formação das modalidades tradicionais conhecidas como
candomblé, xangô, tambor de mina e batuque; (b) o segundo seria do branqueamento, na formação
da Umbanda nos anos 1920 e 1930 e, (c) o terceiro, da africanização, “na transformação do
Candomblé em religião universal, isto é, aberta a todos, sem barreiras de cor ou origem racial,
africanização que implica negação do sincretismo, a partir dos anos 1960”.130 Vale lembrar que para
a sincretização do primeiro período, tanto os elementos religiosos africanos quanto os católicos, não
existiam em estado de “pureza” e já se apresentavam em processo de diferentes configurações, ao
chegar ao país. Quanto ao terceiro período, pensa-se que a africanização não diria respeito somente
às transformações internas nas religiões afro-brasileiras, mas também estariam ligadas às mudanças
de percepção política a respeito do continente africano, em paralelo com as lutas de independência
no período.
Entre os pesquisadores e os membros das religiões afro-brasileiras iniciou-se nas últimas
décadas um debate sobre como se daria a manutenção da tradição, o que de fato representaria a
“pureza ritual” e o que se poderia considerar sua inovação. Retomaram para isso as discussões
sobre o sincretismo na formação das religiões afro-brasileiras. Nos últimos anos percebeu-se uma
diferença crescente entre os cultos afro-brasileiros e aqueles que procuram retomar uma “pureza
original” africana. Um exemplo seria a alternativa criada ao nome candomblé. Alguns sacerdotes já
preferem o termo “culto dos orixás” ou “religião dos orixás” que daria o sentido verdadeiramente
africano para a religião, distinto do então “modo brasileiro”. Essa dicotomia aparente esconderia o
entrelaçamento secular das diferentes tradições das “nações religiosas” africanas no Brasil como
também expressaria o ideal político de busca e construção de uma “África mítica”, berço da cultura
e da identidade negra – a sonhada Aruanda.
Um marco contemporâneo dessa discussão foi o Manifesto das Ialorixás Baianas de 29 de
julho de 1983, publicado no Jornal da Bahia em Salvador. Nele cinco das mais conhecidas mães-de-
santo afirmavam o fim do uso dos elementos católicos nos terreiros e de qualquer sincretismo ritual

130
Reginaldo PRANDI. “Referências sociais das religiões afro-brasileiras: sincretismo, branqueamento e
africanização”, p. 93 in CAROSO, C. & BACELAR, J. (orgs.) Faces da Tradição Afro-Brasileira. Rio de
Janeiro/Salvador: Pallas, CEAO, 2006.

88
no candomblé. A manchete do jornal era: “Candomblé rompe de vez com o sincretismo” e trazia
como resumo:
São Jorge não é Oxóssi, Santa Bárbara não é Iansã. O candomblé resolveu romper com o
sincretismo religioso. Agora, nada de exploração folclórica. Nada de utilização em concursos
oficiais ou propaganda turística. A II Conferência Mundial da Tradição Orixá e Cultura, que
se realizou em Salvador, de 17 a 23 deste mês, ajudou na decisão. Quem assina o manifesto
ao público e ao povo do candomblé merece respeito: Menininha do Gantois, Stella de Oxóssi
(foto), Tetê de Iansã, Olga de Alaketo e Nicinha do Bogum Axé.131

Segundo Consorte, durante o mês de agosto de 1983, a mídia baiana fomentou a discussão
em torno do tema, fazendo uma série de entrevistas com os líderes religiosos, do Candomblé e
católicos e com a Secretaria de Turismo de Salvador. Apesar do “apoio” recebido, principalmente,
das autoridades, muitos duvidavam da real concretização do manifesto. A força da “tradição” nesse
caso estava do lado do sincretismo e os mais velhos apresentavam muita resistência em abrir mão
dos antigos rituais, das missas fúnebres (realizadas concomitantemente com o axexê), das imagens
dos santos etc. Houve divergência inclusive entre as Ialorixás de outras tradições como a Angola.
Com a polêmica instaurada um segundo documento de resposta, datado de 12 de agosto de 1983, foi
preparado pelas mães-de-santo, mas não divulgado via jornais, sendo distribuído somente nos
terreiros. Vêem-se alguns trechos dele abaixo.
Vinte e sete de julho passado deixamos pública nossa posição a respeito do fato de
nossa religião não ser uma seita, uma prática animista primitiva; consequentemente
rejeitamos o sincretismo como fruto da nossa religião, desde que ele foi criado pela
escravidão à qual foram submetidos nossos antepassados.
Falamos também do grande massacre, do consumo que tem sofrido nossa religião.
Eram fundamentos que podiam ser exibidos, mostrados, pois não mais éramos escravos nem
dependemos de senhores que nos orientem. Os jornais não publicaram o documento na
íntegra; aproveitaram-no para notícias e reportagens.
Quais os peixes colhidos por esta rede lançada? Os do sensacionalismo por parte da
imprensa, onde apenas os aspectos do sincretismo e suas implicações turísticas (lavagem do
Bonfim, etc) eram notados; por outro lado apareceram a submissão, a ignorância, o medo e
ainda “a atitude de escravo” por parte de alguns adeptos, até mesmo ialorixás, representantes
de associações “afro”, buscando serem aceitos por autoridades políticas e religiosas.
Candomblé não é uma questão de opinião. É uma realidade religiosa que só pode ser
realizada dentro de sua pureza de propósito e rituais. Quem assim não pensa, já de há muito
está desvirtuado e por isso podem continuar sincretizando, levando Iyaôs ao Bonfim, rezando
missas, recebendo os pagamentos, as gorjetas para servir ao pólo turístico baiano, tendo
acesso ao poder, conseguindo empregos etc.
Não queremos revolucionar nada, não somos políticos, somos religiosos, daí nossa
atitude ser de distinguir, explicar, diferenciar o que nos enriquece, nos aumenta, tem a ver
com nossa gente, nossa tradição e o que se desgarra dela, mesmo que isso esteja escondido na
melhor das aparências. Enfim, reafirmamos nossa posição de julho passado, deixando claro
que de nada adiantam pressões políticas, da imprensa, do consumo, do dinheiro, pois o que
importa não é o lucro pessoal, a satisfação da imaturidade e do desejo de aparecer, mas sim a
manutenção da nossa religião em toda a sua pureza e verdade, coisa que infelizmente nessa
cidade, neste país vem sendo cada vez mais ameaçada pelo poder econômico, cultural,
político, artístico e intelectual. Vemos que todas as incoerências surgidas entre as pessoas do

131
Josildeth Gomes CONSORTE. “Em torno de um manifesto de Ialorixás baianas contra o sincretismo”, p. 71 in
CAROSO, C. & BACELAR, J. (orgs.) Faces da Tradição Afro-Brasileira. Rio de Janeiro/Salvador: Pallas, CEAO,
2006.

89
candomblé que querem ir à lavagem do Bonfim carregando suas quartinhas, que querem
continuar adorando Oyá e S. Bárbara, como dois aspectos da mesma moeda, são resíduos da
escravidão econômica, cultural e social que nosso povo ainda sofre.
Desde a escravidão que preto é sinônimo de pobre, ignorante, sem direito a nada; e
por saber que não tem direito é um grande brinquedo dentro da cultura que o estigmatiza, sua
religião também vira brincadeira. Sejamos livres, lutemos contra o que nos abate e o que nos
desconsidera, contra o que só nos aceita se nós estivermos com a roupa que nos deram para
usar. Durante a escravidão, o sincretismo foi necessário para a nossa sobrevivência, agora em
suas decorrências e manifestações públicas, gente-do-santo, ialorixás, realizando lavagens
nas igrejas, saindo das camarinhas para as missas etc., nos descaracteriza como religião,
dando margem ao uso da mesma coisa exótica, folclore, turismo. Que nossos netos possam se
orgulhar de pertencer à religião de seus antepassados, que ser preto, negro, lhe traga de volta
a África e não a escravidão. (...) Todo este nosso esforço é por querer devolver ao culto dos
Orixás, à religião africana, a dignidade perdida durante a escravidão e processos decorrentes
da mesma: alienação cultural, social e econômica, que deram margem ao folclore, ao
consumo e profanação da nossa religião.132

Ficava claro que havia um conteúdo político explícito na fala das Ialorixás que se
aproximava das ações do movimento negro naquele momento de reabertura política, pós-ditadura
militar. Do ponto de vista das mães-de-santo, o conhecimento e a valorização do lado africano,
diferente da “tradição brasileira” só importava no sentido de deixar para trás as imposições de um
sincretismo negativo da escravidão. “Trazer de volta a África” seria, nesse sentido, estabelecer um
elo ritual, um reforço mágico-religioso e dos mitos de origem que são o fundamento da religião
afro-brasileira. A valorização da identidade étnica do ser negro seria central, segundo o documento.
Isso passaria pelo conhecimento e valorização da ancestralidade. Constituir-se-ia, a partir dessa
“purificação” ritual e ideológica, um lugar social de maior respeito, herança para as futuras
gerações. Haveria uma associação direta entre a opressão econômica, política e cultural e a
repressão e abuso das religiões afro-brasileiras. O posicionamento posto no Manifesto seria uma
afirmação contra a dominação e alienação do negro brasileiro em todos os níveis. Por outro lado,
expressaria uma leitura e “ressignificação” dos modos como foi apresentado historicamente o
desenvolvimento da religião afro-brasileira no país. A crítica às interpretações antropológicas
datadas seria um primeiro passo para a desconstrução da visão pública que se tem sobre tal religião.
Uma idealização de África seria, pois, construída pelas lideranças religiosas, em concomitância com
o movimento negro. Nela o enfoque de dignificação e valorização das origens, de novo fortificaria
os mitos em torno da Terra Mãe África. “Devolver o Culto dos Orixás à religião africana” pode ser
percebido tanto como um ato político-ideológico como uma transformação litúrgica profunda nas
estruturas rituais e míticas das religiões afro-brasileiras.
No cotidiano das comunidades-terreiro o que se percebeu, a partir daí, foi uma separação
dentro das casas entre os espaços físicos destinados às cerimônias “africanas” e um espaço

132
Josildeth Gomes CONSORTE, op. cit., pp. 88-90, apêndice. No artigo o documento foi transcrito na íntegra.

90
destinado a guardar as imagens de santos católicos. Sobre isso, Consorte apontava que há diferenças
de ponto de vista, mesmo entre as Ialorixás que assinaram o manifesto.
Segundo as ialorixás Olga de Alaketo e Nicinha do Bogum e, pelo que pude observar nos
Terreiros da Casa Branca e do Gantois, é na manutenção da tradição, como algo que se
reproduz sempre igual, que reside a força do candomblé, é essa tradição que funda e legitima
sua autoridade. Já para Mãe Stella, manter a tradição não significa reproduzir-se sempre da
mesma forma. Assim, no seu entender, é rompendo com a tradição que ela se mantém fiel à
tradição de seu terreiro. Na medida em que divergem, tais posições revelam uma
compreensão diversa da natureza da formação das religiões afro-brasileiras, com
repercussões significativas para o debate e o encaminhamento da (re)construção da
identidade do negro no Brasil.133

Haveria um “conflito” interno no campo religioso afro-brasileiro, expresso na concorrência


entre os terreiros e também nas divergências de interpretação rituais que expressam ideologias
diversas. Ampliando o enfoque poderia também refletir aquela diferença apontada no capítulo
anterior no movimento do axé como continuidade ou mudança. A ênfase em um ou outro aspecto
pode indicar posicionamentos políticos diferentes ou diferentes percepções da ontologia do ser
(social-histórico e cósmico). Por outro lado, sabe-se que as Federações, salvo exceções, têm
dificuldades para criar uma articulação plena entre as diferentes casas de culto. Para alguns líderes,
as federações representam, na verdade, um engessamento ou uma tentativa de “controle político”
(poder econômico e controle de recursos) de algum grupo mais forte sobre os terreiros menores.
Cada Terreiro tem autonomia e cada pai e mãe-de-santo autoridade plena em suas casas de culto.
Isso acarretaria dificuldades no espaço macrossocial, onde as religiões afro-brasileiras necessitam
de representação política e articulação de demandas das comunidades-terreiros. Estas, em sua
maioria, são carentes e estão estabelecidas nas periferias. No geral, as demandas políticas tem
estado historicamente associadas aos movimentos negros, apesar da participação individual e
representativa das lideranças religiosas afro-brasileiras.
O que significa, então, a africanização ou reafricanização, no período em que foi escrito o
Manifesto e nas últimas décadas? Em primeiro lugar representa uma afirmação de tomada de
consciência crítica em relação à cultura e à identidade negra no Brasil; e sua contribuição original
para a formação da sociedade brasileira. Isso está em perfeito acordo com as demandas do
movimento negro no período pós-ditadura militar. Em segundo, demarca diferenças de rituais que
expressam o fortalecimento de um “ideal de África” que, mesmo contraposto à realidade
contemporânea africana, remonta ao período da travessia atlântica, do tráfico, misturando-se com as
concepções míticas antigas “da terra prometida”. Como, por exemplo, a mítica Aruanda para os
bantu. Lá viveriam os antepassados e a sociedade estaria em harmonia. Por fim, expressa a

133
Josildeth Gomes CONSORTE, op. cit., p. 88.

91
possibilidade de demarcar diferenças publicamente; diferenciação e autonomia ritual que afirmam
uma ou várias “realidades religiosas” próprias.
Ou seja, como religião, igual a qualquer outra, o Candomblé (ou outra religião afro-
brasileira) é autônoma para criar ou recriar sua estrutura religiosa e assim tem feito ao longo do
tempo. Isso mostraria como diz Sansone que, mais do que a “preservação”, está aqui posta a
“criatividade”, capaz de “reinventar a África” por razões políticas e não “preservando uma cultura
africana construída à base da opressão”. A meu ver, mostra o modo dinâmico da culturalidade negra
em lidar com as realidades sócio-políticas que encontrou no ambiente da diáspora. Toma-se o que
se necessita, ressignifica-se e constrói-se o novo. Essa ação “antropofágica” e dialética não é um
privilégio da cultura negra, porém, no caso brasileiro, esparramou-se em diferentes espaços
culturais que extrapolaram o âmbito religioso, sendo tema central para as discussões da identidade
brasileira.
Todavia a (re)africanização demonstraria o fortalecimento de uma “mercantilização
moderna” da “rota do sagrado” entre África e Brasil. Ir à África também é ir atrás de serviços e
produtos específicos de culto para serem vendidos aqui. Sacerdotes africanos vêm ao Brasil para
ensinar iorubá, fazer iniciações e criar novos espaços religiosos. Fazem-se, desde os anos 1970,
viagens aéreas com pacotes turísticos direcionados para as áreas iorubás na Nigéria e Benin, onde se
podem visitar os templos e se instruir com os religiosos locais. Compram-se tecidos, objetos de
culto, imagens dos orixás, adereços e ervas africanas etc. Esse profícuo comércio identificado em
diferentes épocas134 provocaria uma diferenciação de status entre aqueles terreiros que têm “coisas
africanas” e os que não têm. Em entrevista, uma umbandista que também “visita” os candomblés de
rito ketu em São Paulo, afirmou ser o Candomblé “uma religião muito cara, de muito luxo”.
Percebe-se nos comentários (“fuxicos”) entre os visitantes e os membros do terreiro que essa
diferenciação causa constrangimentos para aqueles que não têm condições de comprar os tecidos
mais bonitos para vestir seus Orixás. É preciso “correr atrás”, trabalhar muito, fazer rifa ou pedir
aos amigos e protetores auxílio na hora de fazer a iniciação. Afirmava a entrevistada que “se o
Orixá quer minha cabeça tem que me ajudar”.135 Esses exemplos expressariam uma diferenciação
entre “pobres e ricos” – presente em todas as religiões – mas que a atual “africanização” acaba por
destacar na vida cotidiana das comunidades-terreiro. Os terreiros mais bonitos, mais ricos,
tenderiam a atrair uma “clientela” de maior prestígio, além da atenção dos pesquisadores.

134
Diferentes pesquisas apontam que uma “rota do sagrado” existia entre Brasil (nordeste) e África desde o século
XVIII, comprovada pela fluxo comercial e movimento da população liberta.
135
Entrevista 2, Dorli Barbosa, São Paulo, 17 de novembro de 2008.

92
A força do discurso político-religioso do Manifesto das Ialorixás baianas repercutiu muito
nos terreiros de todas as nações no Brasil. Em especial, naqueles de “nação nagô”, rito ketu –
tradição da casa de Stella de Oxóssi; muitos deles fundados por sacerdotes e sacerdotisas iniciados
nas “três casas-mãe”, Ilê Iyá Nassô (Candomblé do Engenho Velho ou Terreiro da Casa Branca), Ilê
Axé Omim Iyá Massê (Terreiro do Gantois) e Ilê Axé Opô Afonjá. Como visto, não sem polêmica.
De fato, o manifesto expressou a culminação de um movimento mais amplo que já vinha se dando
pelo menos desde os anos 1970. É possível que o contexto das lutas contra a Ditadura militar e a
articulação do movimento negro tenha possibilitado uma abertura em direção à politização das
demandas religiosas. Por outro lado, foi também a partir desse período que ocorreu uma maior
“intelectualização” (em cursos universitários superiores) de parte dos sacerdotes e sacerdotisas das
religiões afro-brasileiras.

Sacerdotes africanos no Brasil


Outro aspecto deste processo de africanização tem-se dado nos últimos vinte anos com uma
presença maior de sacerdotes africanos no Brasil. Em São Paulo, quando da criação do curso de
língua iorubá na Universidade de São Paulo, na década de 1980, as aulas eram proferidas para
estudantes interessados e entre eles sacerdotes e sacerdotisas das religiões afro-brasileiras. O grande
interesse por informações sobre os cultos religiosos em África levou os professores daquele curso a
pensar numa relação mais próxima. Segundo Ronilda Iyakemi Ribeiro, o professor e babalorixá
Sikiru King Salami foi um dos protagonistas no movimento de introdução dos conhecimentos do
culto Ifá-Orunmilá em São Paulo, trazendo babalaôs da Nigéria e de Cuba para o Brasil.136
Atualmente, o trabalho do grupo ligado a King Salami está concentrado no Odudwa Templo dos
Orixás, localizado na cidade de Mongaguá, no litoral paulista. Ribeiro informava que o Templo
reúne praticantes de diferentes religiões de matriz africana que “lá se dirigem em busca de
conhecimento da Religião Tradicional Iorubá”. Líderes de Umbanda e Candomblé para lá levam
seus filhos-de-santo e “compartilham informações sobre diversos temas relevantes a suas práticas
religiosas e mágicas”. Também estariam buscando “conhecimentos teológicos e litúrgicos próprios
da matriz iorubá”.137 Outros detalhes desse processo são apresentados por Ribeiro:
Nos últimos anos, com força crescente na última década, observa-se entre nós o surgimento
de um novo espaço religioso: o da prática da Religião Tradicional Iorubá. Esse movimento,
cujo eixo é o Sistema de Ifá-Orunmilá, tem por principais atores babalaôs da Nigéria, que
vêm preencher importante lacuna. Nesse contexto, sem sombra de dúvida, o papel mais
expressivo competiu ao Babalawo Fabunmi Sowunmi, Balogun [chefe dos guerreiros,
organizador das estratégias de guerra; designa também liderança religiosa] dos babalaôs de

136
Ronilda Iyakemi RIBEIRO. “Odudwa Templo dos Orixás: Território de entrelaçamento de religiões brasileiras de
matriz africana”, p. 1.
137
Idem.

93
Abeokuta, capital do estado de Ogun, que por determinações do culto, sempre se fez
acompanhar da iyanifa Obimonure Asabi Dyaolu, respeitável praticante de oogun, medicina
tradicional iorubá. Ao longo de anos esses sacerdotes vieram regularmente ao Brasil, trazidos
pela iniciativa corajosa de Sikiru King Sàlámi. O Babalawo Fabunmi realizou mais de 500
iniciações em Ifá [que não confere grau de babalaô = “pai do segredo”] – de brasileiros e
europeus – colaborando de modo expressivo para a difusão de conhecimentos da sabedoria
iorubá. Entre os anos de 2004 e 2005 Fabunmi e Obimonure faleceram. Dão continuidade à
sua tarefa o Babalô Awodiran Sowunmi, sua iyanifa Mojisola Akibo e as ialorixás Risikatu e
Ayinde Alake. Atualmente o número total de iniciados gira em torno de mil pessoas.138

Toda a articulação constituída no Odudwa é complementada por “atividades educacionais e


religiosas com a prestação de benefícios à comunidade do entorno”; por exemplo, através das festas
juninas e Egbe-Ibeji e apoio a iniciativas educacionais do poder público. A formação religiosa é
dada através de cursos ministrados por Salami e outros com as temáticas específicas sobre a
mitologia dos orixás africanos, complementada com material didático e paradidático criado em
parceria com a Editora Odudwa.139 Para Ribeiro as características do Odudwa ilustram a ocorrência
de outro fenômeno. Segundo ela seria “a estrutura em rede, que articula diversas Casas de Axé” e
que começaria a ser reproduzida em pequena escala. Esse modelo estaria sendo reproduzido em
outros lugares como na Federação de Umbanda e Candomblé Caminho dos Orixás, sediada no
Templo de Umbanda Vovô Serafim e Ogum Três Espadas, em Rio Claro. A intenção e preocupação
desta rede seria a de “colaborar para a formação de sacerdotes competentes e éticos e contribuir
para disseminar de modo fidedigno os fundamentos da Umbanda e Candomblé”.140
Nas revistas de divulgação também se encontram atualmente muitos artigos e informações
referentes ao culto Ifá-Orunmilá no Brasil e em África.141 Tal culto é originário da África
Ocidental, na região que compõem a conhecida Iorubalândia (Nigéria, Togo, Benin, Daomé, Costa
do Marfim, etc). Trata-se do culto a divindade Orunmilá, deidade do conhecimento, da sabedoria e
da onisciência. Entre outros nomes é conhecido por Eleri Ipin, “a testemunha da criação e do
destino”; nos mitos de criação é chamado Ibikeji Olodumare, “o segundo para o Criador
Olodumarê”, seu braço direito. É o patrono e o guardião do Ifá, o sistema iniciático de adivinhação
e conhecimento, responsabilidade dada a ele por Olodumarê. Por ter sido testemunha da criação,
Orunmilá teria o conhecimento total da existência, conhece os seus segredos e compreende todos os
destinos, os grandes e os pequenos. Sendo o “mestre babalawo” (pai do segredo de todas as coisas)
ele é também o patrono de todos os babalaôs e yanile (consortes dos babalaôs com função
específica no culto). Estes devem estudar muito para ter acesso ao conhecimento de Ifá. O processo

138
Idem, op.cit., p. 3. As informações em colchete estão nas rodas de rodapé do texto da autora.
139
Ronilda Iyakemi RIBEIRO, op. cit., pp. 5-7.
140
Idem, op. cit., p. 10.
141
Encontram-se muitas informações nas seguintes edições: A Sabedoria dos Orixás da Editora EM, número 1, que teve
a colaboração do Babalawo Sikiru King Salami; Orixás Candomblé e Umbanda da Editora Minuano edições número 12
e 14 trazem entrevistas e reportagens especiais sobre o Ifá-Orunmilá.

94
de iniciação ao Ifá em África é intenso e longo, podendo levar mais de vinte anos. Como um
oráculo, o Ifá tem um papel prático e significativo, oferece respostas e soluções aos problemas
existenciais através de oferendas às divindades apropriadas para cada situação. Sendo um sistema
muito antigo, não se sabe ao certo sua origem. Os especialistas concordam que estaria ligada à
geomancia dos Nupe (vizinhos ao nordeste dos Iorubás). “O método divinatório de Nupe é derivado
das práticas oraculares de Siwah, cidade antiga do Egito faraônico, famosa por seu templo e oráculo
de Zeus Ammon”, durante o quinto século a.C. Os especialistas pensam que, provavelmente, o Ifá
possa ser parte da religião egípcia antiga.142 Ou, o contrário, já que os negros foram para o Egito em
massa no período de 15 mil a 4 mil a.C.

Irokè-Ifá, Arte do Povo Yoruba, Nigéria; Marfim.


Fonte: Werner Forman/Art Resource, New York in Encyclopedia of African Religion, p. 330.

Este sistema adivinhatório é formado por 16 Odús (caminhos)143. Para cada Odu
corresponde uma história (itan) que “auxilia o Babalaô para orientar o consulente e indicar o ebó
(oferenda) a ser feito em caso de necessidade”. Entre os instrumentos utilizados tem-se: (1) o Ikin,
as dezesseis nozes sagradas de palma, (2) o Opele, corrente ou corda a que está fixado a intervalos
regulares oito nozes de palma, quatro delas para cada braço do Opele e, (3) o Irokè-Ifá, instrumento
com o qual o sacerdote bate no Opon-Ifá (tábua sagrada onde os odús são marcados no pó ‘lero-
sum’ – pó de uma árvore sagrada, corroída naturalmente pelos cupins), após colocar o Ibi (fruto
sagrado) dentro d’água. Também é usado durante o jogo. Os babalaôs batem o Opon-Ifá com a

142
BioDun J. OGUNDAYO. Ifa, pp. 329-330; Diedre L. BADEJO, Orunmila, p. 508 in ENCYCLOPEDIA OF
AFRICAN RELIGION, op. cit.
143
Chama a atenção para Barbosa que “o quadrado de 16 (162) é quase o número de orixás, ou de suas manifestações,
256; o número de orixás é 257, mas inclui “Deus”, ou o orixá de origem. Este é também o “número tradicional” das
etnias (“tribos”) negras”.

95
ponta do Irokè-Ifá (imagem acima) repetidamente para chamar a atenção dos orixás Exu, e de
Orunmilá.
Atualmente, no Brasil, não são somente os terreiros de tradição iorubá que procuram renovar
o conhecimento do Ifá, como já visto a partir da experiência do Templo Odudwa144. Também no
Rio de Janeiro essa experiência teria se dado no mesmo período. Lá se tem o ensino, a prática e o
culto a Ifá desde a década de 1970. José Nilton Viana Reis, Pai Torode D’Ogum, foi iniciado em
1960 por Joãozinho da Goméia, na tradição Angola. Em 1976 iniciou-se no Culto ao Ifá com
“africanos que vieram ao Brasil disseminar esse conhecimento”.145 Desde 1984, Pai Torode “tem
autorização para dar continuidade ao Ifá no Brasil” e diz ter iniciado mais de duas mil pessoas, entre
elas Nancy Fernandes, Ialorixá na Nação Jeje-Mahi. Em 1990 abriu uma casa na Áustria, na
fronteira com a República Tcheca. Apesar de não ter ainda retornado àquela cidade, uma filha-de-
santo sua, austríaca, “está dando continuidade ao trabalho”. Ao ser questionado em entrevista sobre
as diferenças entre o culto praticado em África, no Brasil e em Cuba destaca alguns problemas
como, por exemplo, o tempo de iniciação e a hierarquia. Diz Pai Torode,
África é a terra mãe, é a matriz de tudo. Não dá para questionar isso em países que cultuam o
Ifá de uma forma “tolhida”, como por exemplo, no Brasil, onde as pessoas não aceitam
determinados rigores, não têm tempo porque a vida mudou. Em Cuba, pelo que eu li e
estudei, há mais controvérsias, coisas fragmentadas, como existia no Brasil. Na África existe
uma iniciação que vai de oito a nove anos; aqui na minha casa eu procuro levar no mínimo
entre quatro a seis anos, até que a pessoa tenha conhecimento. Na África existe a hierarquia,
mas aqui praticamente não há, porque não há condições. Mesmo para o Culto aos Orixás
existe aquele ditado mal-empregado: “cada um em sua casa é rei”, e isso dá margem a cada
um fazer o que quer em sua casa. Dentro do Ifá eu criei um estatuto onde foram formalizadas
todas as regras e todos os princípios, mas isso não está sendo cumprido corretamente. Até
pessoas que fizeram parte do primeiro grupo estão indo para o Rádio dar cursos de Ifá, e
acaba virando uma coisa mecânica. Onde está a Espiritualidade nisso tudo? Uma coisa é
render o sistema e outra é praticar, porque a pessoa tem que fazer suas obrigações. Hoje há
uma certa epidemia de “Ifá-apostila”, “Ifá-disquete” e isso acaba causando a exploração de
pessoas inocentes. Onde está a divindade nisso tudo? Assim, deixa de existir o sagrado e
deixa de ser verdadeiro, porque até no dia que é feita a leitura a pessoa que irá ler deve se
abster de sexo, de comer carne, são reservados os dias para se comunicar.146

A experiência de Pai Torode é um exemplo de modificações nos cultos afro-brasileiros em


consonância com a relação religiosa contemporânea com África e da diversificação das práticas
rituais no ambiente urbano. A sua preocupação com o cumprimento das normas de iniciação não o
impediu, no entanto, de adequá-las à realidade brasileira. As mídias modernas têm sido utilizadas
com maior frequência aumentando a disseminação de informações, com superficialidade, o que
facilitaria a seu ver, “a exploração de pessoas inocentes”. De modo geral, os sacerdotes e

144
Sabe-se que o Ifá era jogado por sacerdotisas e sacerdotes em fins do XIX aos anos 1930, pelo menos, em diferentes
locais no Brasil. Há indicações desse fato nas obras de Ruth Landes, Edison Carneiro e Abelardo Duarte, entre outros.
145
Marcelo FRITZ. “Pai Torode D’Ogum e seu Culto ao Ifá” in Revista ESPIRITUAL DE UMBANDA. Especial 03
CULTOS DE NAÇÃO CANDOMBLÉS, p. 20.
146
Marcelo FRITZ. “Pai Torode D’Ogum e seu Culto ao Ifá”. Entrevista e fotos in Revista ESPIRITUAL DE
UMBANDA. Especial 03 CULTOS DE NAÇÃO CANDOMBLÉS, pp. 20-21.

96
sacerdotisas afro-brasileiros vêem tal problema relacionado com a própria dificuldade de articular
grupos mais amplos de terreiros ou as federações de culto. A perda da sacralidade (espiritualidade;
poder mágico-religioso) seria um problema sério e uma fragilização, desde o ponto de vista de
alguns de seus praticantes, para as religiões afro-brasileiras, nas últimas décadas. Está muito
presente nas falas de candomblecistas a idéia de que “hoje em dia, com o pouco tempo de iniciação”
não se teriam os mesmos sinais de presença da força do orixá nos iniciados. Sabe-se que a
efetividade do poder mágico-religioso estaria, para alguns, na reprodução ritual, tal qual foi
ensinada e praticada nos tempos da origem, ou na tradição religiosa em que se vive. Ouvem-se
muito menos casos de “surras dos orixás”, por exemplo, quando alguém quebra algum tabu ligado
aos períodos de permanência na camarinha, ou da abstenção de determinadas comidas ou sexo.147
Outra referência para o culto de Ifá-Orunmilá é o nigeriano Otunba Adekunle Aderonmu,
fundador do Centro Cultural Africano, na cidade de São Paulo. Formado em bioquímica em Lagos,
veio para o Brasil em 1999 fazer um curso na Universidade de São Paulo. Segundo ele, “não
imaginava a proximidade deste país com o continente africano”. Adekunle percebia uma
similaridade de cultura e costumes, mas carente de “conhecimento”. Por conta disso teve a idéia de
fundar o Centro Cultural Africano para que as pessoas pudessem “interagir, conhecer e também
descobrir o que é e também o que representa a cultura africana sem estereótipos”. Entre os objetivos
do centro cultural ter-se-ia,
Além de passar informação, com ajuda de brasileiros e africanos, meu sonho é multiplicar
ainda mais as oportunidades de valorização da cultura africana. Tratar da importância e da
valorização da cultura negra dentro da escola, criar espaços para manifestações artísticas que
proporcionem reflexão crítica da realidade e afirmação positiva dos valores culturais negros
pertencentes a nossa sociedade é o que propõe o projeto do Centro Cultural Africano. A
educação escolar no Brasil sempre pintou um continente africano pobre, sem histórias
próprias, com uma população subalterna, sem cultura e escravizada. Quero urgentemente
reverter este quadro. E esse projeto pedagógico surge para tentar tirar do anonimato a
verdadeira história da África e de seu povo, bem como abrir um leque de discussões em torno
da diversidade cultural existente em nosso país, a fim de que essa diversidade seja respeitada
e valorizada.148

O discurso de valorização da cultura negra, forte na fala de Adekunle, sugere que a presença
de sacerdotes africanos no Brasil nas últimas três décadas tem contribuído para a divulgação da
religiosidade africana nigeriana, em especial, que reafirma a idéia de “pureza” ritual e
“conhecimento verdadeiro” vindos de África. O fato de esses sacerdotes terem uma educação de
nível superior e terem uma situação sócio-econômica melhor que a maioria do povo-de-santo

147
“Surra do orixá” seria um episódio em que a divindade incorpora em seu cavalo (médium) fora do momento ritual
(da gira) e lhe inflige machucados físicos, quedas, bate-se o corpo ou a cabeça na parede, etc. Seria a expressão de um
castigo direto do orixá que sofreu uma ofensa na quebra de suas quizilas.
148
Revista ORIXÁS, Candomblé e Umbanda. “Centro Cultural Africano divulga a cultura pelo mundo”, pp.30-31. Ano
II, nº 12, 2009.

97
brasileiro, demonstraria ainda que “africanizar-se” significa mudar de posição econômica e de
status. Contribui para isso também a já apontada comercialização da rota do sagrado entre Nigéria e
Brasil. O discurso político tende a ser aquele da educação dos jovens para a inclusão no mercado de
trabalho. Alguns pais-de-santo de São Paulo, em entrevista, afirmavam continuamente da
necessidade de se educar para acabar com a marginalização do povo-de-santo e do Candomblé
como religião.

Uma interpretação histórica da relação religiosa entre África e Brasil


Ao se refletir sobre as mudanças histórico-religiosas em África, percebe-se que as
transformações provocadas pelo colonialismo naquele continente aceleraram os processos de
sincretismo entre as religiões autóctones e as “estrangeiras”. Cercadas entre a ação missionária
conversionista e a dominação sócio-econômica, política e militar – que alteraram profundamente as
bases materiais e as formas locais de vida comunitária e social – as religiões africanas históricas
precisaram readaptar ou criar novas estruturas rituais e instituições religiosas. Estas foram
gradativamente perdendo a proeminência e o papel organizacional da vida cotidiana. As lideranças
políticas e religiosas ou realizaram acordos com as autoridades coloniais ou mantiveram-se
isoladas, quando não eram eliminadas imediatamente. A imposição das instituições, dos modelos de
comportamento e da ideologia ocidental europeia – não sem resistência – fez-se penetrar, inclusive,
nas estruturas mitológicas daquelas religiões. Já as novas igrejas independentes encontraram meios
de assimilar o discurso religioso ocidental a seu favor.
Das formas religiosas africanas que migraram ao Brasil durante o período escravista –
algumas já sincretizadas – mantiveram-se aqueles elementos de padrão africano ou do substrato
das religiões étnicas que carregavam a criatividade própria e a sua dinâmica cultural. Essa
culturalidade, tanto na África quanto no ambiente da diáspora brasileira, lidou com situações de
violenta repressão, com episódios de explosão de resistência (revoltas e revoluções) e com a
ressignificação diária dos valores éticos e solidários, das identidades, das cosmogonias e das
mitologias próprias. Constituíram-se em espaços autônomos (locais sociais organizados por/para si
mesmos), as comunidades-terreiros, as irmandades religiosas, os quilombos, as comunidades de
quintal, etc, que assumiram o modo de vida africano dentro da realidade objetiva brasileira.
No que diz respeito à estrutura religiosa na atual vida moderna em África, a partir da
segunda metade do século XX, foram atualizadas as ações e os discursos missionários católicos e
protestantes. Se, por um lado, apresentaram-se “menos racistas” e impositivos nos modos de
conversão – o trabalho humanitário ao invés da ação militar – por outro lado, mantêm um discurso
“antifeitiçaria”, que rejeita o “modo de vida tradicional” africano e sua religião. As igrejas cristão-

98
africanas, como no caso visto da amaNazaretha, apropriaram-se das mitologias judaico-cristãs na
formulação de um corpo de crenças e práticas que valorizariam o continente (lugar do “paraíso na
terra”); e o próprio modo de pensar e sentir africanos. Assim, tal sincretismo contemporâneo,
guardada às devidas diferenças entre as igrejas e movimentos, mesmo mantendo o discurso cristão
contrário à “bruxaria”, assumiu por si mesmo o papel de “redentor” de sua gente. Os efeitos
originários daí deveriam ser estudados desde o ponto de vista daqueles fiéis e de suas práticas
sociais. A história da África contemporânea, que tem sido escrita nas últimas décadas, não pode
ignorar a força das igrejas e dos novos movimentos religiosos. Estes, em alguns casos, atuam como
as estruturas organizadoras privilegiadas (formas de dominação) da vida social local. A força de
continuidade das religiões históricas, por outro lado, estaria na manutenção dos laços étnicos e
comunitários, na constante reelaboração do ordenamento mítico do mundo, diante das novas
realidades sócio-econômicas e políticas.
No Brasil o sincretismo afro-católico-indígena, com diferentes graus no território nacional,
manteve o substrato africano como núcleo articulador. Dos anos 1970 até a atualidade houve uma
reviravolta na afirmação da “tradição” daquelas práticas sincréticas. Com a abertura política em
1985, o movimento negro que já vinha se articulando desde a década de 1960, juntamente com as
lideranças religiosas afro-brasileiras, afirmou a necessidade de se valorizar e retomar a identidade
africana como aporte para a valorização do ser negro. A estratégia política de resgate da história e
da “tradição pura” africana, somada às atividades dos pesquisadores sociais nas casas de culto,
reforçou nesse processo a “visão rodriguiana” da “superioridade” do candomblé jeje-nagô em
detrimento dos cultos bantu. Abandonar o sincretismo, como feito pelas Ialorixás baianas na década
de 1980, compunha, pois, uma ação política e ideológica, de valorização e visibilização da própria
cultura negra do Brasil – principalmente daquela vivida por certo candomblé baiano. Apesar disso,
aquele manifesto explicitou as diferenças e a diversidade entre as comunidades-terreiros que não
conseguem, ainda hoje, minimizá-las através das Federações de Culto. As divergências e os
conflitos entre as casas atrapalhariam uma ação política mais efetiva, no que diz respeito à proteção
aos terreiros e aos direitos individuais de seus membros. As redes existentes, como a do Templo
Odudwa, ainda são exceções.
A vinda, pois, de sacerdotes africanos ao Brasil e o avanço do culto Ifá-Orunmilá são outros
aspectos dessa diversificação e da “africanização” do campo religioso afro-brasileiro nesse período.
Esta discussão, presente na fala dos pesquisadores e dos sacerdotes mais intelectualizados, não é a
preocupação da maioria do povo-de-santo. Aparentemente, a tradição africana é uma referência

99
distante, “coisa dos antigos”. Por outro lado, foi apropriada como “diferencial” na oferta religiosa.
Veja-se abaixo um panfleto distribuído em 2010 no centro da cidade de Maceió.149

Chama a atenção no panfleto: (a) a titulação da especialista, “professora”; (b) sua


autodenominação religiosa, “espírita vidente”; e, (c) a sua especialização, teria sido a única a se
“aprimorar em África”. Os trabalhos oferecidos são os mais procurados, respectivamente, para os
problemas afetivos e financeiros. Na oferta religiosa, a garantia “absoluta” de sucesso e a rapidez
recebem o reforço do aprimoramento africano. A África seria, de modo geral, percebida como a
terra (local e origem) de maior força mágico-religiosa. Mesmo não se sabendo se a Profa. Nancy é
membro efetivo de um Terreiro, sua propaganda seria reveladora do momento pelo qual os cultos
afro-brasileiros em Maceió começam a entrar na “onda da africanização”. Os Terreiros mais antigos
no Estado – os nagôs e os chamados cultos traçados – têm uma tradição sincrética muito forte. Esse
pequeno exemplo, popular, está no pano de fundo das discussões dos especialistas com os
sacerdotes mais envolvidos como o processo de “purificação” das religiões afro-brasileiras. A busca
por força mágico-religiosa, não se distancia da necessidade de atrair os membros para uma religião
que possa ser mais bem aceita socialmente. Sob o prisma religioso, a Profa. Nancy não difere de
outros sacerdotes afro-brasileiros que procuram adaptar-se e se especializar para a resolução dos
problemas da vida urbana moderna. Simbolicamente, a lua crescente e a estrela são signos do
Islamismo, mas também estão associados às práticas mágicas esotéricas orientais e de ciganaria. No
panfleto esses símbolos ilustram e chamam a atenção do possível cliente.

149
Este panfleto me foi entregue na praça D. Pedro II, centro de Maceió, em 04 de março de 2010.

100
A comercialização dos produtos mágico-religiosos e a possível exploração da credulidade
alheia são sempre apresentadas como desafios e um sério problema pelos sacerdotes afro-
brasileiros. Mãe Stella de Oxóssi, em mensagem para o povo-de-santo, dizia:
Gostaria que todos nós pensássemos igualmente no que se refere ao Culto aos Orixás, porque
nossa religião é muito bonita, muito profunda e muito séria, e quando a gente se dedica a uma
religião tem que ser por inteiro, e nunca fazer disso um meio de vida e nem se aproveitar dos
outros para tirar proveito.150

É sintomático que em entrevista a uma revista nacional Mãe Stella se pronuncie sobre a
sinceridade da prática religiosa e do perigo da exploração da religião. Historicamente as religiões
afro-brasileiras e seus sacerdotes foram (e são) acusados de charlatanismo, sendo muito vezes
associadas algumas práticas rituais (cura, adivinhação) a crimes de falsidade ideológica. A
necessidade de distinguir os verdadeiros praticantes da religião dos “marmoteiros” tornou-se nos
últimos anos uma constante nos discursos públicos de pais e mães-de-santo. O esclarecimento da
realidade religiosa afro-brasileira para a sociedade no geral seria parte da estratégia para acabar com
a marginalização da cultura negra no país.
A africanização das últimas décadas demonstraria as formas de configuração histórica das
religiões afro-brasileiras, que respondem às transformações políticas, econômicas e de ordem
religiosa. Em termos religiosos não são todos os terreiros e tendas que sofreram esse processo ou
não o sofrem de modo semelhante. A Umbanda tende a não passar por ele do mesmo modo. Os
sociólogos da religião notaram nas últimas décadas uma tendência de zeladores da Umbanda que
vão à busca de iniciação no Candomblé, “para fortificar os rituais mágico-religiosos”. Se
considerarmos o caso da rede do Templo Odudwa, essa articulação pode vir a modificar aspectos
litúrgicos das Tendas de Umbanda.
Já os Candomblés de rito keto no Nordeste e no Sudeste tenderam nos últimos anos a
acelerar este processo, principalmente pela via da intelectualização de seus sacerdotes e da
divulgação do movimento anti-sincretismo, proposto pelas mais famosas ialorixás do país. Isso não
se deu de modo homogêneo, como visto. Mãe Beata de Iemanjá, iniciada por Olga de Alaketu,
afirmou em entrevista, ser a religião dos Orixás:
Uma grande cultura milenar, cultura afro-descendente (eu não sou africana e sim uma afro-
descendente), é o que o brasileiro deve viver. Nós não temos nada que copiar as coisas da
África, basta querermos e logo temos tudo aqui. Agora mesmo, estou embaixo de um pé de
Iroko, com um pano amarrado, perto de um Ossaim, perto do pé de cajazeiro, da mangueira,
pois tudo isso é África. Eu fiz a minha África no Rio de Janeiro, então todos nós somos
iguais.151

150
Marcelo FRITZ. “Mãe Stella de Oxóssi ‘Ilê Axé Opô Afonjá’, comemorando 30 anos à frente do Ilê Axé”.
Entrevista, Revista Cultos de Nação, Candomblés, Especial 03, p. 33. REVISTA ESPIRITUAL DE UMBANDA,
Editora Scala, nº 3.
151
Revista ORIXÁS e as maravilhosas histórias dos deuses da criação. Ano 1, nº 5, Editora Minuano, p. 15.

101
Nota-se que para a Ialorixá ter elementos africanos não tornaria automaticamente o culto
africano. O modo de ser brasileiro seria ainda o fundamental, ou seja, a constituição da África no
Brasil seria o elemento legitimador das práticas religiosas afro-descendentes. Em Maceió, por outro
lado, os Terreiros não passam por esse processo de modo claro. De fato, há nesse caso um conflito
entre teoria e prática. Alguns pais-de-santo fazem discursos contrários ao sincretismo, mas mantém
práticas sincréticas como lavagem das escadarias de igreja, ou até mesmo recebendo suas entidades
(caboclos). O que se nota é um discurso de valorização da cultura negra que busca trazer de volta a
representação da África mítica, terra do poder mágico-religioso.
As políticas públicas afirmativas intentadas para a população negra no Brasil, nas últimas
décadas, possibilitaram a expressão da cultura negra como marca de distinção e de identidade
coletiva. Também trouxe à tona – talvez com maior articulação – as diferenças sócio-econômicas
entre as etnias no país, apesar de todo o discurso da “democracia racial” ainda em vigor. O Estado
brasileiro vem assumindo, com vagar, algumas políticas públicas, que visam eliminar o abismo
econômico e social entre negros e brancos. Apesar da aplicação e dos resultados positivos que se
tem com a política de cotas, por exemplo, ainda há muito para ser feito, principalmente, no que diz
respeito ao acesso à educação, trabalho, segurança social e moradia. A luta por espaços sociais de
visibilização da cultura negra também estão dentro das demandas políticas do movimento negro e
das lideranças religiosas afro-brasileiras.
Como a memória, a tradição e a identidade não são elementos estáticos, mas históricos, suas
construções partem de situações objetivas. Alguns de suas características são destacadas em nível
social ou reapropriados pelas classes dominantes. Isso, com intuito de esvaziar seus conteúdos
contestatórios (ou melhor, de sua exemplaridade contrária) da ordem social. A tendência das
últimas décadas de se constituir uma memória oficial da identidade negra brasileira, de sua cultura e
tradição – criação e valorização dos “mitos” do herói Zumbi, do samba, da capoeira e a visão da
religião afro-brasileira como espetáculo – é o perigo de “branqueamento” no sentido da aculturação.
A realidade dos praticantes das religiões afro-brasileiras continua marcada pela exclusão e
repressão. Pela negativação de suas origens e crenças. A expressão e vivência religiosa cotidiana
das comunidades-terreiro de 1970 a 2000 foi a de uma reconfiguração das antigas tradições
sincréticas, questionadas na base da identidade do ser negro no Brasil. A necessidade política de
resgatar a “África perdida pela escravidão” deu-se, portanto, através da reelaboração das
identidades étnicas e míticas. Esta prática africana, muito antiga, foi e continua sendo uma
estratégia de equilíbrio e harmonização da vida social dos afro-descentes no país. Dinamismo
criativo da afrocultura, que se pode compreender a partir dos estudos históricos a serem
apresentados em seguida.

102
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16. MERRIAN-WEBSTER´S Encyclopedia of Worlds Religion. New York: Merrian-Webster,
2000.
17. MUNANGA, Kabengele. “África e Imagens de África”. Entrevista In SANKOFA. Revista
de História da África e de Estudos da Diáspora Africana, Ano I, nº 1, junho/2008, p.
107-116.
18. OLIVEIRA, Rosalira dos Santos. Em busca da Pátria Mítica: visões da África entre os
adeptos do candomblé. CAOS – Revista Eletrônica de Ciências Sociais, número 14 –
setembro de 2009, pp. 95-105.
19. PALMER, Martin. World Religions. C. Collins, Mapping History. London: Flame Tree
Publishing, 2002, 2004. Religion in Africa, pp. 87-94.

103
20. REVISTA ORIXÁS: Candomblé e Umbanda. Ifá: a antiga arte de prever sua origem. Ano
II, nº 12, pp. 16-19.
21. RIBEIRO, Ronilda Iyakemi. Oduduwa Templo dos Orixás: território de entrelaçamento de
religiões brasileiras de matriz africana. X Simpósio da Associação Brasileira de História
das Religiões (ABHR): Migrações e imigrações das religiões. UNESP, Assis, 12 a 15 de
maio de 2008.
22. SANSONE, Livio. Da África ao Afro: uso e abuso da África entre os intelectuais e na
cultura popular brasileira durante o século XX. Tradução do inglês: Patrícia Farias. Centro
de Estudos Afro-Asiáticos, Universidade Cândido Mendes – UCAM, Rio de Janeiro.

104
Capítulo 3 – As Religiões Afro-Brasileiras em São Paulo: 1970-1980
“Enxú acordou
P’ra reza com Assanha
E quando o enjoado acordou
Mordeu a perna da aranha...
Com a aranha, dois,
Com a mãe da aranha, três
Quatro depois
São nove”
Folha da Noite, 4-11-1927 – Nos domínios de Enxú

“Nos Domínios de Enxú”: as religiões afro-brasileiras em São Paulo


O entendimento do processo histórico vivenciado pelas religiões afro-brasileiras, nas
décadas de 1970 e 1980, deve ser apresentado tendo em vista a repressão sistemática sofrida por
elas, na primeira metade do século. Esta se acentuou entre os anos 1920 e 1950, assumindo um
caráter político-policial de extermínio dos cultos negros. Tais ações, “higienizadoras” da
modernidade capitalista, acompanhavam o processo de urbanização e industrialização na metrópole.
Vejam-se alguns elementos desse processo.
As religiões afro-brasileiras no Estado e na cidade de São Paulo começaram a se expandir
entre 1930 e 1950, com o aumento da migração de nordestinos, especialmente baianos, que iam à
busca de trabalho e melhores condições de vida no sudeste. Todavia, sabe-se da presença e da
prática de cultos de matriz africana na região desde meados do século XIX. Há registros nos jornais
da província de São Paulo que informavam a existência de “feiticeiros negros” e curandeiros, como
também de “cultos” (“batuques” ou “pagodes”) tanto no interior como na capital. 152
Nas primeiras décadas do século XX a imprensa paulistana continuou noticiando a
existência e a repressão policial às “macumbas” ou “cangerês”, que contavam com um “sem
número” de pais-de-santo e clientela desde os bairros mais afastados (Vila Formosa, Santana, São
Miguel Paulista) até o centro da cidade (Braz, Lapa, Mooca). Entre 21 de outubro e 04 de novembro
de 1927, uma série de reportagens sob o título “Nos Domínios de Enxú”, foi publicada pela Folha da
Noite, comentando a visita de repórteres aos terreiros.
A policia anda com raiva das macumbas. Mas porque? É devido a exploração da crendice
popular, de certo. Entretanto, se não fóra assim, não vigorariam macumbas e Enxú perderia
todo o seu prestígio e o seu latim. Onde não entra o dinheiro não pôde nada. A prisão recente
de vários elementos do “cangerê”, todavia não fez ruir por terra essa notável instituição, que é
“Pae de Santo”, antes mais a eleva, pois que aumenta o número ilimitado de seus martyres.
Ademais não há quem não saiba da existência de um sem número de “apóstolos” de Enxú
aqui em São Paulo. E muita gente os teme, desde que estamos sempre sujeitos à vingança

152
“... um negro curandeiro de feitiço que aqui está. Este negro, segundo a opinião de muita gente boa, tem feito muito
mal, e não sei o que é mais digno de admiração, se a estupidez e charlatanismo deste negro, ou a credulidade e
superstição deste povo (Correio Paulistano, 03.11.1854)”. In Lísias Nogueira NEGRÃO. Entre a cruz e a
encruzilhada, p. 42. Segundo Negrão, esta seria a notícia mais antiga encontrada por ele nas fontes da imprensa
paulista sobre a região de Campinas.

105
terrível de uma “coisa feita”. Não sabem o que é? Pois nem queiram saber, porque “coisa
feita” é ainda muita mais grave que “unha de grillo” e só declina do paciente quando a
macumba tem todos os poderes junto a Enxú. O objectivo da série de reportagens que vamos
elaborando sobre o vertente assumpto, não é, absolutamente, combater o templo respeitável
do Capêta, nem tem a ousadia de controlar-lhe a vigência. Somos observadores apenas, e que
nos livrem das iras de um “cavalo de santo”!...153

Folha da Noite, segunda-feira, 24 de outubro de 1927


Fonte: Acervo Folha online, www.acervo.folha.com.br

É notável que a série “Nos domínios de Enxú” traga desenhos caricatos dos pais-de-santo.
Neles a “preta velha”, o homem negro e aquele que procura a religião são apresentados como
pessoas com fisionomias apáticas, doentias, bem próximas da imagem evocada pela personagem
Jeca Tatu de Monteiro Lobato, como se vê na imagem acima. A ironia e o deboche dos repórteres
em todos os artigos, além de insinuar uma constante “má fé” dos sacerdotes, desenhavam um
quadro de “exploração de incautos”, via cobrança dos atendimentos aos que iriam por “desespero
em busca da macumba”. Indicavam, por fim, a vigilância e a perseguição acometidas sobre eles.
Ao comparar diferentes notícias, verifica-se que a inferiorização das práticas religiosas afro-
brasileiras tendeu a repetir estereótipos. Prolongados no tempo, esses se tornaram parte do discurso
e da ideologia racista que levaram a classificação dos diferentes cultos como “primitivos”,
“exóticos”, “superstição” e/ou “folclore”. É possível, no entanto, inferir dessas fontes algumas
características das práticas rituais. Estas se centravam na cura, no transe e na louvação dos orixás e
entidades indígenas (caboclos) ao som dos cantos, palmas e atabaques. A chamada “macumba
paulista” seria, segundo os especialistas, uma reelaboração de práticas religiosas bantu (culto aos

153
Folha da Noite, Sexta-feira, 04 de Novembro de 1927, página única.

106
ancestrais e cura) somadas à pajelança indígena.154 O uso do termo “macumba”155, nas fontes da
imprensa consultadas, é amplo ao se referir aos cultos de cura com a presença do transe e consulta,
sempre em um sentido pejorativo. O termo “candomblé” (candombe ou cadombe) aparece na
maioria das vezes referindo-se aos cultos afro-brasileiros baianos; mas também como sinônimo de
“macumba” em São Paulo. O termo “cangerê” referindo-se às mesmas práticas só foi identificado
em notícias da década de 1920 e 1930.156 É possível que a maior divulgação e uso da palavra
macumba pelos jornalistas às religiões negras na cidade e, posteriormente, da Umbanda e do
Candomblé, tanto no Rio de Janeiro como em São Paulo, tenha influenciado na designação dada,
perdendo com o tempo esse antigo nome local. Outra hipótese sugeriria que o cangerê como ritual
teria predominado em fins do século XIX e início do XX e perdido espaço para a Umbanda, ou,
sincretizado-se com ela, nos anos 1930, tanto pela expansão desta como pela repressão intensiva
organizada pela polícia paulista.
A Umbanda, vinda do Rio de Janeiro, teria chegado a São Paulo na década de 1930, tendo
como um dos primeiros sacerdotes o conhecido Pai Jaú (Euclides Barbosa), ex-jogador do

154
Roger Bastide em estudo sobre a “macumba paulista” afirmava que o aumento do número de negros em São Paulo
no século XVIII levou à visão da religião africana como um “perigo para a segurança pública e o regime escravista”.
Para Bastide, a “macumba paulista vai do coletivo ao individual, das formas religiosas para as espécies simplificadas de
magia e de simples curandeirismo. É sob esta forma degradada que a estudaremos, porque é a mais comum, procurando
as razões dessa degradação na estrutura social e nas representações coletivas do meio paulista”. (...) Também afirmava
que a “África não está totalmente ausente da Macumba paulista, sendo ela mais indígena que a carioca”. (...) O branco
transforma a macumba não somente introduzindo nela uma certa perversidade, como arrastando-a para o lado da
exploração da credulidade popular (...) a mentalidade capitalista, caracterizada pela busca do lucro, substitui a
mentalidade primitiva, caracterizada pelo mútuo auxílio social”. Ref. BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros, pp.
216-246. Em que pese, a importância da análise de Bastide sobre o impacto do capitalismo nas religiões afro-brasileiras,
a visão de um culto degradado acabava por manter a perspectiva racista criticada por ele. A “simplicidade” do culto
bantu foi por longo tempo subestimada e mau compreendida pelos cientistas sociais que hierarquizaram os diferentes
cultos no Brasil. Existe uma mística bantu a ser interpretada como no verso da epígrafe este capítulo; o número nove
sagrado é representado pelo papel assumido no rito dos personagens que dele participam e abriria um caminho espiritual
para a cura. A teia de aranha era utilizada como ingrediente para a cura de “enjoados”, pessoas com algum tipo de
obsessão espiritual, apáticos, sem ânimo. Conta-se então, com o Enxú, o Assanha [seria Ossanha, orixá das folhas e da
medicina?], a aranha, sua mãe, o doente, mais quatro [participantes da roda?] somando assim os nove necessários.
Sobre esse tema ver: José Jorge de CARVALHO. A Tradição Mística Afro-Brasileira. Dept. de Antropologia, Uneb,
Brasília, 1998.
155
Wilson do Nascimento BARBOSA em seu artigo Da N’bandla à Umbanda: transformações da cultura afro-
brasileira, p. 8 afirma que: “Todos já sabem, mas é bom recordar que “Candomblé” é uma corruptela para “dança com
tambores”, dito depreciativamente “barulho de tambores”. “Macumba”, por sua vez, palavra bantu, vem de CUMBÊ ou
KUMBÈ, com qualquer grafia significando “dança de tambores”. O prefixo MA oferece-lhe ênfase, podendo ser
traduzido como “muito poderosa”. Tratava-se, portanto, em ambos os caos, de uma dança mágica, mística ou religiosa
ao som de tambores, que as autoridades instituídas não desejavam preservar. Os mestres antigos dessas religiões afro-
brasileiras diziam que só os viventes podem arrastar o pé no chão quando dançam, daí decorrendo o caráter sagrado do
terreiro, ou do piso de terra (a terra era então importante), onde se davam as práticas religiosas. Quanto ao nome de
“pagodes”, eram dados por deboche pelas autoridades policiais, em virtude do caráter enfeitado e complicado dos
rituais e dos instrumentos de culto ali evidenciados”.
156
Cangerê é um dos termos mais antigos para se referir às “reuniões religiosas dos negros no Brasil”, tendo também o
mesmo sentido de “feitiço e mandinga”. Ref. Nei LOPES. Enciclopédia Brasileira da Diáspora Africana, p. 163.

107
Corinthians e do Vasco.157 No entanto, a Umbanda e o Candomblé dividiram em muitos casos, os
mesmos espaços (terreiros) e os mesmos sacerdotes. Nestas primeiras décadas, por conta da maior
repressão, alguns terreiros afro-brasileiros registravam-se como centros espíritas ou como
sociedades de estudos psíquicos, ocultistas e espiritualistas, para diminuir possíveis problemas com
vizinhos e/ou autoridades religiosas cristãs. Além disso, no processo de constituição dessas
religiões, segundo os especialistas, a elaboração de suas práticas, mitologias e rituais muitas vezes
se davam numa intermistura e ressignificação entre diferentes tradições. Em 28 de fevereiro de
1940 a policia prendeu “um falso sargento”, Odayr de Oliveira, junto com outros policiais, na Rua
Deoclesiana, 36, com “farto material de macumba”. Na reportagem o jornal reproduz um ponto de
um dos cadernos de Odayr, acusado de “trabalhar pela seita magia negra, utilizando-se dos recursos
de feitiçaria empregados nos candomblés da Bahia, destacando-se principalmente o que se refere às
chamadas linhas “Ubanda”, Nagô e Jege.158

Folha da Noite, 28 de fevereiro de 1940. Fonte: Acervo online www.acervo.folha.com.br

Este processo de interrelação ritual foi intensificado pelos sacerdotes e sacerdotisas


nordestinos vindos para o Sudeste, a partir dos anos 1950. Já nos anos 1960 e 1970 o Candomblé,
chamado de “nação” (principalmente o keto baiano) e a Umbanda (chamada Branca ou Mágica)
teriam procurado se reafirmar de modo mais distinto em São Paulo. Grosso modo, certo Candomblé
se (re) africaniza e certa Umbanda se esoteriza. Já nos anos 2000, tais fronteiras tornaram-se
novamente muito difusas.159 Importa destacar, para essas primeiras décadas, o surgimento e a
manutenção em São Paulo das casas de culto afro-brasileiras sob intensa repressão. Muitas notícias

157
Segundo depoimento do Pai Jamil Rachid, Pai Jaú teria aberto terreiro nos anos 1930 em Guarulhos no bairro do
Macedo, sob o nome de Tenda Espiritualista São Lázaro. Entrevista concedida a Dalmo RIBAS, in Sarava Ogum, a
Umbanda em procissão, p. 59.
158
Installou um mundo aberto para iludir incautos com magia negra. Folha da Noite, 28 de fevereiro de 1940, p. 5.
159
Aqui se refere ao uso dos termos umbandomblé ou da candombanda em São Paulo, utilizados de forma às vezes
depreciativa, às vezes brincalhona, sobre os terreiros em que as duas tradições são praticadas – em dias diferentes ou em
rituais sincretizados.

108
ao longo das décadas de 1930 a 1950, principalmente, referem-se a pais e mães de santo presos pela
Delegacia de Costumes e “reincidentes” em sua prática religiosa – além da apreensão de “enorme
quantidade” de objetos de culto, atabaques, cadernos, santinhos, receitas etc nos “centros de
macumba varejados pela policia”. Uma dessas notícias é especialmente agressiva. Teria sido escrita
por um anônimo “observador policial” e acabou por fomentar uma “enérgica ação repressiva da
Delegacia de Costumes” ao longo dos anos 1940, tanto na capital quanto no interior do Estado. Eis
a nota,
A zona sul do Estado nesses últimos meses tem fornecido às crônicas páginas
horripilantes, de fatos inacreditáveis. Há meses em Tatuí, um grupo de fanáticos enfrentou a
força policial. Do choque resultaram mortos e feridos e a sindicância procedida pelo delegado
regional de Itapetininga, provou a que ponto chegou a embriagues provocada pelos falsos
credos, onde o baixo espiritismo e prática assídua da macumba se misturam.
Mal acabou o eco dessa refrega sanguinolenta, eis que de Buri na mesma zona,
chegam as notícias de pavoroso drama engendrado e levado a termo por um caboclo
envenenado pela macumba!
Doloroso devemos constatar que em pleno século XX e num Estado como São
Paulo, o líder, o dinâmico, o moderno, ainda seja tão difundida a prática de exorcismos
africanos. Trágica herança que envenena organismos e que se propaga, apesar dos pesares, no
meio das populações rurais. Negros boçais conseguem, com a prática primitiva que seus
ancestrais cultivaram e seus maiores importaram no Brasil, conjuntamente às levas de
cativos, escravizar núcleos densos, propagando o “vírus” que enlouquece e idiotiza!
Escolas existem, jornais são lidos em todos os recantos, irradiações são ouvidas.
Tudo isso forma a maneira prática de educação e, no entanto, a ignorância crasea, o marasmo
intelectual.
Há uma Delegacia de Costumes a quem está afeto o expurgo dos elementos
deletérios. No vasto programa que essa especialização policial deve exercer, o baixo
espiritismo, e a macumba propriamente dita, entram como capítulos de primeira importância,
ainda mais que os casos mais repugnantes e dolorosos, já constatando dos arquivos, narram
cruamente os resultados medonhos da prática desses ritos nefandos!
Limita-se, porém, a Delegacia de Costumes, a uma ação enérgica e profilática dentro
da capital. Fóra dos muros da urbe cessa a sua atividade. Isto não está positivamente certo e,
pelos seus investigadores especializados, deveria postar-se pelo interior do Estado, sabido
como é que as delegacias da “hinterlandia” não estão aparelhadas para um combate a essa
ramificação religiosa.
Elementos ótimos não faltam ao Gabinete de Investigações para formarem uma
“turma volante” a fim de percorrer o interior, indagar, prevenir e reprimir o curandeirismo, a
macumba, o falso espiritismo. Assim como a “escolta de captura”, que evitou, só com a
divulgação de sua criação, incontáveis delitos, e chegou a extinguir o cancro representado
pelos jagunços e matadores profissionais, também a “turma volante da Delegacia de
Costumes” extinguiria, em breve tempo, a praga dos feiticeiros, muito mais perniciosa e
infinitamente mais perigosos do que os assassinos mercenários.160

O tom conclamatório de devassas a serem realizadas é justificado no mais cru do racismo,


em que as religiões negras são vistas como uma doença, “vírus que enlouquece e idiotiza” e seus
praticantes como piores que “assassinos mercenários”. Fica claro também a inconformidade do
autor com a resistência e o enfrentamento das forças de repressão e a influência da culturalidade

160
Macumbeiros (de um observador policial). Folha da Noite, 14 de agosto de 1940, p. 2. Ressalta-se que também eram
divulgadas com destaque as notícias da repressão aos terreiros no Rio de Janeiro, como por exemplo: Iniciada pela
polícia carioca severa campanha contra o baixo espiritismo – foram presos 85 macumbeiros, Folha da Manhã, 01 de
abril de 1941, p. 4. Nela o responsável pela perseguição é o Major Felinto Müller. Este costumava associar a
“macumba” à loucura.

109
negra no estado “moderno” e “dinâmico” de São Paulo. Esse ódio racial das elites é presente em
outros tantos artigos, escritos por policiais, intelectuais espíritas e por bispos e padres da Igreja
Católica. A partir de 1941, muitas notícias dão conta da “tenaz perseguição” engendrada em todo o
estado. Em 11 de janeiro de 1941, a Folha da Noite chega a publicar com destaque uma notícia
intitulada “Agoniza a macumba em São Paulo”, com as seguintes chamadas: “das impressionantes
pompas de outros tempos, à vulgaridade atual” – “Candoblés (sic) que se transformam em “sessões”
espíritas – enérgica ação repressiva da Delegacia de Costumes, durante o ano de 1940 – cincoenta
(sic) “macumbeiros” processados. O texto é do jornalista Hermillio de Oliveira Pacheco e inclui
fotografias ¾ das pessoas presas, homens e mulheres.161
Pode-se afirmar, da leitura dessas fontes, que em vinte anos as religiões afro-brasileiras
deixaram de ser vistas em São Paulo como um “exotismo” das classes populares e de
“espertalhões”, para se tornarem um “problema sério”, a ser resolvido com uma ação repressiva
organizada das forças de segurança. Tais ações policiais, como se sabe, estavam amparadas no
Código Penal Brasileiro aprovado naquele ano de 1940, no qual constavam os delitos de
“charlatanismo (art. 283) e curandeirismo (art. 284)”. Este era herdeiro do Código republicano de
1890, que dentre seus artigos “fixava a responsabilidade penal em nove anos (art. 27 § Iº) para os
“crimes” de: capoeiragem (art. 402); curandeirismo (art. 158); espiritismo (art. 157); mendicância
(art. 391) e vadiagem (art. 399).162 Explicitava-se, dessa forma, como afirmou Silva Jr, o “destaque
legalmente conferido à dominação cultural, à imposição da cultura e dos valores europeus como
estratégia para a dominação política e a exploração econômica.”163
O sacerdócio afro-brasileiro em São Paulo, essa “notável instituição”, estabeleceu-se,
todavia, amplamente, em detrimento de seus perseguidores e, foi adaptando-se ao ambiente
restritivo, criando formas de estratégia para burlar-se da ação da polícia, da campanha
“antiespiritismo” da Igreja Católica e das recriminações do Espiritismo Kardecista. Por exemplo,
Jamil Rachid foi iniciado na Umbanda por Pai Jaú, na década de 1940. Começou a atuar na Penha
atendendo pessoas que vinham lhe pedir auxílio para a cura de doenças. Conta em entrevista, que a
cura de uma menina foi o ponto-chave para o início de suas atividades como sacerdote e a abertura
de sua Tenda, junto com seu irmão de santo Décio. Dizia ele,
A família ficou tão agradecida que ofereceu um cômodo da casa para que iniciássemos ali um
terreiro de Umbanda. Era 1950. Foi no dia 13 de dezembro, razão pela qual consideramos
essa data como sendo a nossa fundação como entidade de filantropia, caridade e religião.
Logo após o acontecido, tudo o que se passou naquela noite, foi relatado ao Pai Jaú. Em

161
Folha da Noite, 11 de janeiro de 1941, p. 10. Infelizmente, a maior parte do texto encontra-se ilegível.
162
Hédio SILVA JR. Notas sobre sistema jurídico e intolerância religiosa no Brasil, p. 309. In SILVA, Vagner
Gonçalves da. Intolerância Religiosa – impactos do neopentecostalismo no campo religioso afro-brasileiro, pp.
303-323.
163
Idem, op. cit.

110
resposta fomos por ele incentivados. – Vocês comecem devagarzinho, com as portas
fechadas, atendendo primeiro a família e depois vamos ver como é que fica... (...)
Começamos com a maior simplicidade, com as consultas sempre realizadas sem nenhuma
cobrança. Aí, surgiram as primeiras dificuldades. A notícia dos atendimentos se espalhando e
pessoas necessitadas começaram a aparecer de cá e de lá. Cresceu o movimento. (...) Em
1951, já tínhamos quase 30 pessoas frequentando a sala. As sessões eram quase que diárias e
não tínhamos tempo nem espaço pra nada. De dia trabalhávamos de um lado da rua, na
indústria, e de noite, do outro lado, trabalhávamos na espiritualidade. (...) Vou dizer que não
foi fácil! Não podíamos chamar a atenção. Era um tempo difícil para a Umbanda; aquela
coisa de ser proibido pela polícia, fotografia no jornal, “fofocaiada” de vizinho. (...) Não era
só lá que crescia a Umbanda. Chegavam notícias de casas de Umbanda aparecendo em toda
São Paulo. Era lindo ver como a Umbanda crescia. E a Igreja ficava “mordida” de inveja. A
Igreja estimulava a polícia pra vir pra cima da gente. Diziam que éramos gente ignorante,
exploradores, que abusávamos da fé pública. (...) Quando fazíamos nossas reuniões, as
pessoas vinham chegando de mansinho, disfarçando pela calçada, e aí... “plump” entravam na
casa. Não se podia chamar a atenção. Na sala em que fazíamos os trabalhos, a janela ficava
bem fechadinha e na cozinha deixávamos ligado bem alto o volume do rádio. O ruído do
rádio disfarçava as nossas palmas. Não havia atabaques, nem nada, e a luz da frente da casa,
apagada o tempo todo, era para não despertar suspeitas. Lá para os nossos códigos, luz
apagada significava que os trabalhos já haviam começado.164

Pai Jamil ainda conta que nessa época o D. I. (Departamento de Investigações), atual DEIC
(Departamento de Investigações Criminais) da Secretaria de Segurança Pública do Estado, era
comandada pelo delegado Walderico Arruda de Moraes. Por iniciativa dele, teria sido “criada um
sala destinada a recolher todos os objetos de culto da Umbanda, os quais eram apreendidos nas
diligências policiais”. Alguns dos policiais responsáveis pelas diligências, segundo Pai Jamil, eram
seus conhecidos. E, um deles, chegou a lhe recriminar por estar “metido com essa gente da
macumba”.165 As estratégias de sobrevivência na clandestinidade podem ser percebidas em várias
outras notícias, como também as resistências e negociações estabelecidas quando possível. Fica
evidente que uma comunidade tendia a se formar em torno dos terreiros, no atendimento às várias
necessidades materiais e espirituais. Tem-se nessas, desde o caso de uma mãe-de-santo que criava
crianças abandonadas (bem tratadas) como de um pai-de-santo que vê seus filhos (homens,
mulheres e crianças) ajoelhados, chorando aos policiais para que não o levassem preso.
A visão de mundo das elites católicas e da intelectualidade espírita, sobre o universo social e
das necessidades espirituais do povo-de-santo, somente começou a ser questionada quando da
organização do movimento federalista das tendas de Umbanda e terreiros de Candomblé e suas
manifestações massivas (em especial as Festas de Iemanjá em Santos e na Praia Grande e a
Procissão de Ogum no Ibirapuera). O catolicismo paulista sentia o refluxo de suas fileiras, enquanto
o espiritismo kardecista nunca havia alcançado tal projeção. Foi percebida a demonstração do

164
Entrevista a Dalmo RIBAS, op. cit., p. 72-73.
165
Dalmo RIBAS, op. cit., p. 74. Pai Jamil ainda comenta que a sala era cheia de atabaques, imagens e objetos do culto,
e que “o medo dos umbandistas ficava todo impregnado naquele material”. Segundo ele, “e sabe como funciona no
astral, né? Tudo o que de ruim se faz para os outros, tem a lei do retorno; aquilo acaba voltando”. (...)

111
potencial de força política e que passou a ser explorada para fins eleitorais, a partir do final da
década de 1950.
O local subalterno que as elites reservaram à população negra no país de modo geral, e em
São Paulo, de modo particular, também pode ser percebida nessas fontes da imprensa. Enquanto a
repressão violenta ocorria nos terreiros, nos teatros divulgava-se constantemente a cultura
folclorizada. A divulgação da cultura negra fazia-se, nessa primeira metade do século XX, através
das “irradiações”, como as da Rádio Difusora de São Paulo, que apresentavam quadros em forma de
crônicas sobre a “autêntica macumba”, cantores de samba, além dos espetáculos teatrais e de dança
que procuravam assimilar e “formatar” a cultura negra, retirando-a do seu contexto social de criação
e de seu dinamismo próprio. Assim, tem-se nas referências mais antigas da Folha da Noite e da
Manhã – de c.1921 até c.1950 mais fortemente – a transcrição das “cantigas” de sucesso do
carnaval carioca que faziam a associação direta entre o samba e a “macumba”. Como os sambas
falavam do cotidiano da população negra nos morros do Rio de Janeiro, a presença da macumba
como tema era frequente.
O interesse da intelectualidade modernista de São Paulo pelas manifestações populares
acabou por dar apoio e divulgar as apresentações “artísticas” que tivessem a temática da
“macumba”, dos “feitiços”, do “baixo espiritismo”, das “danças negras” etc, que também podiam
ser vistas em exposições folclóricas. Nessas, bonecos eram vestidos como os orixás baianos e
apresentados com detalhes, destacando-se os elementos e símbolos mais “exóticos”.166 Nesses
tempos de afirmação de uma identidade nacional que se adequasse ao gosto das elites – na base da
democracia racial – parte da imprensa paulista parecia ter tido certa consciência da inevitabilidade
da penetração da cultura negra nas diferentes classes sociais, independente das leis e dos “códigos
de postura” contrários a ela; e à sua importância na formação histórica da cultura brasileira. Um
artigo da Folha da Manhã de 09 de junho de 1930, assinado por João de Caxias, fazia um pequeno
histórico do samba e da música brasileira naquele tempo e comentava:
(...) Nos sambas de outrora em que o branco misturava-se desordenadamente com o preto,
pelas noites de verão, foi assim se creando a nossa musica popular, irresistível, sensual e
arrebatadora, como a nossa natureza. (...) Em outra crônica já tivemos opportunidade de
referir a uma postura da Câmara de São Paulo, em 1533, impondo “penas a todo homem
christão branco que não seja negro de fóra que se achar em aldea de negros foros ou cativos
bebendo e bailando no meio do dito jentio”... O samba nacional tinha que vencer, todavia,
aparecessem quais fossem os obstáculos. E assim novamente em 1623, temos noticia de que a
musica nacional, ainda em formação, continuava dominando, mau grado as posturas dos srs.
vereadores. Sambava-se pela noite toda, no terreiro socado das [...] propriedades mais

166
Um exemplo é a da Feira Folclórica de 1949, que organizou uma Semana da Macumba. Nela foi montado um
“terreiro” com pais-de-santo da Bahia e Rio de Janeiro. Folha da Manhã, 25 de setembro de 1949, Primeiro Caderno, p.
2. No entanto, o Teatro Folclórico Brasileiro de Solano Trindade e também o Teatro Experimental do Negro de Abdias
do Nascimento, nesse mesmo período, utilizaram-se desse interesse para fazer uma divulgação crítica e consciente da
cultura negra e dos problemas sociais de sua população.

112
afastadas da villa. Quando o frio apertava a branquinha tomava a si o [...] de reanimar o corpo
e se a noite fosse muito quente, ella também se incumbia de refrescar... Os vereadores da
Câmara de São Paulo por mais uma vez protestaram, e pela voz do procurador foi dito “nesta
villa fazem (os pretos) bailles de noite e de dia porque nos ditos bailes assedia muitos
pecados mortaes e insulencia contra os serviços de Deus e bem comum, e mometero fugidas
e levantamentos e outras couzas que não declaravão por não ser desentes e vtº o dito
requerimento e acordarão os ditos officiaes da câmera que antes da missa do [...] de noite não
houvesse os ditos bailes sob pena do dono do negro ou negra q for achado nos taes bailes
pagar cem réis por cada negro ou negra q for achado para qual efeito serão prezos e da cadeia
pagará seu senhor”. Tudo isso foi inútil, como era fatal. O samba venceu como affirmação
que é da alma popular, para ainda hoje ecoar em todas as esquinas....
Na Pavuna
Na Pavuna,
Tem um samba que só dá gente reúna...
Na Pavuna tem escola para o samba
Quem não passa pela escola não é bamba
Na Pavuna, tem
Cangerê também,
Tem macumba, tem mandinga e candomblé...167

Entende-se que nessa primeira metade do século XX, as religiões afro-brasileiras em São
Paulo passaram por um processo de constituição em um ambiente em que a repressão policial e a
criminalização de sua prática religiosa, representavam a busca da assimilação e do controle da
população negra, como mão-de-obra “adequada” ao desenvolvimento capitalista da metrópole.
Dentro dos “domínios de Enxú” (Exu), a cidade se urbanizava, através do movimento de suas
populações, do campo a cidade. Como se sabe, Exu predomina sobre as encruzilhadas, as ruas, as
fronteiras entre os dois mundos (material e espiritual) que se entrecruzam. Em São Paulo o rural e o
urbano, o “arcaico” e o “moderno”, o mundo do negro e o mundo do branco. Historicamente, pode-
se inferir, nos trechos das fontes trazidas por João de Caxias, que a elite escravista tinha (e mantém)
uma idéia muito clara do perigo dessas reuniões de negros, da sua força aglutinadora, de fomentar
“fugas” e “levantamentos”; capaz de atrair e assimilar os “cristãos brancos”. Somente a violência
repressiva poderia ser a resposta para garantir certo controle dessa “força-de-trabalho”.
A importância individual e coletiva que os Terreiros e a prática da religião dos antepassados
têm para o negro não chegava a ser compreendida pelas elites e, muitas vezes, também pelos
estudiosos. O senhor José Humberto Gonçalves, 58 anos, é médium na Tenda de Umbanda São
Benedito de Pai Jamil Rachid, em São Paulo. Em entrevista contava sobre sua infância em Santos e
sobre a história de sua família ligada à sua religião. Eis um trecho de seu depoimento,

167
São Paulo dos nossos avós. Noites de Samba. Folha da Manhã, 09 de junho de 1930, p.2. Caderno Único, p. 17. Já
em 1931, no dia 01 de janeiro, o cronista conhecido como Juca Pato, publicou em sua sessão Desabafos de Juca Pato,
um poema por título Cangerê de Ruy Cortes, preconceituoso ao descrever aquele ritual: “Tôsco na bera da grota,
esfuma o rancho oblongo/ Cujo aspecto bacento é fúnebre, de tumba/ Onde, surdo, alta noite, o bate pé retumba/ Dentro
no cangerê dos moambeiros do Congo/ O Mestre – um negro velho – o chefe da macumba/ Fala a Cabonde – o guia – e
solta um grito longo.../ Faz piruetas e ginga, e gingando no jongo/ Bate a pemba, a pedir que o inimigo sucumba.../ Um
creoula que acende a vela e urde a mandinga/ Funga, resmunga e dansa e ora canta e ora xinga/ E outros rezam, de roda,
em voz rouca e abafada.../ E, enquanto rumoreja o macabro alvoroço/ Santo Antonio é amarrado alli pelo pescoço/ E
enche o ar um cheiro mao de pólvora queimada”. Folha da Manhã, 01 de janeiro de 1931, p. 5.

113
A nossa família, da parte do meu pai, por exemplo, nós somos do Rio de Janeiro. Mas o que é
o negro? O negro é porto. Você vê aí quando mostram as fotografias, Prestes Maia, quando
ele inaugurou a Avenida 23 de maio, você vê que São Paulo era totalmente interior. E a
negrada até a década de 40 pra baixo, 50 pra baixo, ainda existia o tráfico de negros, ou
talvez, o negro tivesse um pouquinho mais de liberdade, mas... Todo o transporte que você
tinha era a navegação, então, todo lugar de porto, Rio de Janeiro, Salvador, Pernambuco, a
Baixada Santista, foi um local que se trouxe muitos negros. Meu pai veio do Rio de Janeiro, a
história... Quando ele veio do Rio de Janeiro, veio por minha causa. Porque na fazenda onde
ele e minha mãe moravam, na década de 50, os negros só poderiam ter um filho, cada casal
de negro, era permitido pra permanecer na fazenda só um filho. Então, já tinha o mais velho,
como minha mãe engravidou de novo de mim, eles tiveram que sair. Foi quando ele veio pra
Baixada Santista. Nunca te contaram isso? Eu acho que o conhecimento do candomblé já
vem da herança da família. Porque hoje eu vejo em mim... Por exemplo, porque toda família
tem que ter um esteio, não importa qual religião que seja, às vezes, os filhos, os pais não vão,
mas tem uma avó católica assídua; às vezes tem na família, também. Porque o poderoso é tão
sábio, que ele não permite a família inteira, então ele dá a sabedoria a um. Mesmo que a
gente não acredita. Eu venho da linha dos orixás e acredito é nisso. Então, por intermédio
desse um você tem o equilíbrio da família toda. Meu avô deixou pra ele, e ele, acho, passou
pra mim. Se observar sou eu e mais oito. Eu sou o segundo. Eles não têm a responsabilidade
que eu tenho. Eles podem viver a vida deles mais... Então, existe isso.”168

A vivência religiosa do senhor José Humberto está profundamente ligada à sua experiência
familiar, no contexto de sua condição étnica e social. O equilíbrio espiritual e psíquico da família
negra passaria pelo vínculo com seus ancestrais e com o culto herdado deles. O esteio da família
seria aquele indivíduo que funcionaria como ponto de equilíbrio espiritual, na linha de sucessão da
força vital (axé) dos antepassados. É compreensível, nesse sentido, a insistência dos movimentos
negros e culturais religiosos em valorizar a herança, a memória e a história de seus antepassados.
Caminho necessário para o entendimento de si e dos seus. Como esperar que a população negra
“comporte-se” dentro dos padrões do mundo do branco, urbanizado e capitalista, ao ser-lhe negada
a experiência vital de si mesma, e ao ser constantemente excluída do direito à cidadania plena?
Mais ainda, porque deveriam? O impacto das devassas e demais mecanismos de controle dessa
população, durante a primeira metade do século XX, além de desestruturar as organizações
religiosas negras, reforçava a ideologia racista de inferioridade cultural.
Historicamente, a visão das elites pautava-se na confiança de que o processo de urbanização
junto à educação formal e cristã (e porque não a miscigenação) seria a solução para a eliminação da
culturalidade negra, da africanidade, e das outras formas de vivência societária contrárias ao seu
modelo e não controladas por ela. As várias ações nesse sentido mostraram-se equivocadas na
tentativa de conter a expansão das religiões afro-brasileiras e a migração de católicos para estes
cultos. Por outro lado, a repressão conseguiu que surgisse entre as lideranças da Umbanda e do
Candomblé em São Paulo, a percepção de que uma ordenação e uma formalização burocrática dos
cultos eram necessárias para a sobrevivência em longo prazo, a manutenção e a eliminação de

168
Entrevista com José Humberto Gonçalves, São Paulo, 02 de agosto de 2011, Pinheiros, Tenda São Benedito.

114
possíveis exploradores de seu meio no novo contexto urbano. Nesse sentido, foram necessários
acordos com os grupos políticos que exerciam o poder.

Tabela 2: Aspectos Históricos das Religiões Afro-Brasileiras em São Paulo (1900-1950)


Aspectos 1900-1940 1950
Contexto sócio-político- Poder das oligarquias de terra; Urbanização; migração interna;
econômico Governo Vargas; política desenvolvimentista de
Juscelino Kubitschek; organização dos
movimentos sociais de base
Gerais – mudanças e - forte repressão político- - institucionalização via federações;
dificuldades policial; sincretismo católico - campanha anti-espiritismo; 1ª Festa
somado a um sincretismo de Ogum em 1957 (procissão pública)
espírita-kardecista; repressão
geral ao “baixo espiritismo”;
“degradação do culto”;
distribuição controlada de
alvarás de funcionamento
Relevantes - Principais - Umbanda chega a SP na Predominância da Umbanda –
características década de 1930; há terreiros de consegue membros via espiritismo e
“macumba” (candomblés) “macumbas”; início da organização
restritos às periferias e ao das Federações de Culto no Estado de
litoral; clandestinidade; São Paulo (1953); Campanha anti-
resistência expressa na espiritismo da Igreja Católica via
reincidência, campanhas de CNBB
devassas violentas e
enfrentamentos com policiais
Rituais Candomblés bantu; cangerê, Candomblé - primeiras famílias do
Umbanda; curandeirismo com rito Angola e rito Efã (variante do
transe ritual, nagô-jeje; nagô); Umbanda assume tarefas de
“espírita” como estratégia de visibilização e burocratização dos
proteção terreiros
Sócio-econômicos e Perseguição – proteção em Crescimento da filiação permite a
Políticos alguns casos de famílias da compra de terrenos para criação de
elite – ou elite empobrecida; casas de culto e federações; auto-
música/artes utilizam sustentação
elementos da cultura negra; são
populares as rádio crônicas –
“macumba autêntica” como
espetáculo; assimilação da
cultura negra

As federações e a definição das fronteiras religiosas


O crescimento da Umbanda, como culto diferenciado da velha “macumba paulista” seguiu
nas décadas de 1950 e 1960 e possibilitou uma articulação nacional e regional de federações de
culto para atender as exigências da Secretaria de Segurança, na abertura das tendas, e para buscar
uma integração ritualística, entendida como elemento essencial para sua afirmação como religião. O
Candomblé “de nação” (de raízes nordestinas) também começou um processo de distinção, com os
primeiros terreiros que se registraram no início da década de 1960, como Casas de Candomblé; não
mais se utilizando do termo espírita, para disfarçar sua pertença religiosa. A presença de militares e
soldados como membros engajados, principalmente na Umbanda, ainda na década de 1940, e uma

115
aproximação maior do Kardecismo na década de 1960, mediou as relações que iam se
estabelecendo com os órgãos de segurança pública no estado. Os detalhes desse processo foram
debatidos e apresentados em conhecida literatura das ciências sociais.169 Aqui, interessa
problematizar alguns elementos dentro desta articulação, a partir das fontes da imprensa paulista,
entrevistas e da imprensa umbandista e de candomblé. Em especial, identificar o modo como as
lideranças religiosas afro-brasileiras passaram a atuar para sair da clandestinidade e afirmar o valor
de sua religião.
A partir de meados da década de 1950 entre as notícias sobre prisões de “macumbeiros”,
violência nos terreiros e textos “antimacumba” de intelectuais cristãos, encontravam-se indícios do
aumento da visibilização das religiões afro-brasileiras na cidade de São Paulo e no litoral paulista.
Em 31 de julho de 1955, a Folha publicou uma notícia intitulada: “Umbanda Branca, um espetáculo
pouco frequente à beira mar”. Nela informava sobre os “adeptos de estranha seita” que praticavam
seus rituais “sob os olhares curiosos dos profanos”. Essa homenagem a Iemanjá na Praia Grande,
foi realizada pela Irmandade Espiritual Estrela do Mar, que tinha seu endereço na Rua Bresser, 204.
No texto, sempre em tom pejorativo, explicava o jornalista que se designava “branca, segundo fiéis,
por não se dedicar a prejudicar os outros”.170 Em setembro, do mesmo ano, outra nota informava
que “Ganham popularidade os terreiros de Umbanda”.171 Já em 1957, no dia 07 de setembro foi
noticiada a prisão do presidente da Federação Umbandista, senhor Alfredo da Costa Moura, “pelo
exercício ilegal da medicina”. Ele encontrava-se na sede da Federação, na Rua Paschoal Moreira,
449, com cerca de 150 pessoas presentes no local para “consulta”. Apreenderam também “livros de
registros das tendas de umbanda na capital e do litoral”.172
Na virada da década, de 1958 a 1960, as notícias mudaram, já que aparecem artigos que
procuravam compreender o fenômeno da Umbanda e das religiões afro-brasileiras de forma mais
“neutra”. Usava-se explicar os rituais a partir das falas de seus membros, sobre o uso das plantas e
com referência aos ensinamentos de “pretos velhos” e “caboclos”. Divulgavam-se as atividades das
federações de culto, como congressos, reuniões, posse de diretorias etc. Em 09 de dezembro de
1960, por exemplo, noticiaram: “Os Umbandistas reverenciam Iemanjá, a rainha do mar”. O ritual
descrito ocorreu na Praia Grande, não causando, dessa vez, maior estranhamento. 173

169
Os detalhes dessa articulação umbandista foram discutidos amplamente por Lísias NEGRÃO. Entre a Cruz e a
Encruzilhada: Formação do campo umbandista em São Paulo (1996); para o Candomblé têm-se as obras de Vagner
Gonçalves da SILVA. Orixás da Metrópole (1995) e Reginaldo PRANDI. Os Candomblés de São Paulo (1991).
170
Folha da Manhã, Assuntos Gerais, p. 10.
171
Folha da Manhã, Primeiro Caderno, 16 de setembro de 1955, p. 8.
172
Folha da Manhã, Assuntos Gerais, p. 2.
173
Folha de São Paulo, Primeiro Caderno, p. 4.

116
A partir daí, cada vez mais, Candomblé e Umbanda foram noticiados como parte de um
processo histórico irreversível de mudanças no campo religioso em São Paulo, herança da
população negra no Brasil e, de certo modo, as religiões que melhor expressavam “a alma do nosso
povo”. Assim, as Festas de Iemanjá e Oxum no litoral e a procissão de São Jorge-Ogum no
Pacaembu e no Ibirapuera, foram anualmente destacadas nos periódicos.174 Abriram-se espaços
maiores às religiões afro-brasileiras também em programas de rádio e televisão. A aproximação de
políticos às federações de culto tornou-se mais evidente. Em São Paulo, foi especialmente próxima
a relação de políticos, vereadores, deputados e governadores do partido ARENA (Aliança
Renovadora Nacional), após o golpe militar de 1964.
Um espaço privilegiado para analisar tal relação seria a procissão de São Jorge-Ogum,
iniciada em 1957, e anualmente promovida pela União das Tendas de Umbanda e Candomblé,
presidida pelo Pai Jamil Rachid, juntamente com o Supremo Órgão de Umbanda do Estado de São
Paulo e outras entidades federativas do ABC paulista, do interior e de outros estados. Esta
procissão, realizada até hoje, concentrava milhares de umbandista e candomblecistas da cidade, do
interior e de outros países. Apareceu noticiada na Folha de São Paulo a partir de 1964. Em 29 de
abril de 1968, com grande destaque, tem-se a seguinte manchete: “Cinco mil umbandistas
homenagearam S. Jorge”.175 Na descrição dos discursos, destacavam o primeiro deles, do General
Nelson Braga, “velho militante do umbandismo”,
(...) Lembrou que estava representando o Presidente da República e que a festa era uma
homenagem ao Exercito Nacional, que tem São Jorge como padroeiro. Pediu a união de todas
as religiões, “cristãs ou não”, em torno da luta para afastar o materialismo ateu, que está
levando o mundo para um fim trágico. Asseverou que as dificuldades, que o culto da
Umbanda vem encontrando em breve serão superadas com a aproximação dos irmãos
ausentes. Depois do general falaram o jornalista Ginésio Silva Filho e Jamil Rachid que
organizou a festa de Ogum. Todos ressaltaram a necessidade da união dos umbandistas de
todo o estado de São Paulo. Jamil criticou outras federações de Umbanda – existem mais de
15 em São Paulo – que não quiseram se integrar no movimento pelo “saneamento da
religião”.176

Essas falas podem ser compreendidas tendo em vista que: (a) os militares souberam
aproveitar bem as relações históricas dos seus com o movimento umbandista e espírita, na
preocupação de manter um foco de apoio popular, em estado de tensão e luta pela manutenção do
poder, ao longo do período de exceção. Ao mesmo tempo, mantinha-se uma vigilância às possíveis
infiltrações do “materialismo ateu” em meio às religiões afro-brasileiras. Mesmo a festa de Ogum
não recebendo, segundo Rachid, ajuda financeira para a sua realização, havia apoio logístico da

174
Outras festas eram realizadas na cidade, como a Festa de Iemanjá promovida por Solano Trindade no Embu das
Artes, festas na Mooca e em Itaquera, para Oxum e Xangô e outras. Atualmente, a procissão de S. Jorge-Ogum sai de
São Paulo com destino ao Vale dos Orixás, localizado em Itanhaém.
175
Folha de São Paulo, Primeiro Caderno, p. 5.
176
Folha de São Paulo, op. cit.

117
Secretaria de Cultura, Esportes e Turismo do Estado de São Paulo e de vereadores, contava com a
presença da Guarda Montada e do Corpo de Bombeiros para fazer as honras à imagem de São
Jorge, que ia em procissão da sede da União das Tendas em Pinheiros, até o Ginásio do Pacaembu,
e, posteriormente, até o Ibirapuera. Também o movimento umbandista percebia “com quem estava a
bola” naquele momento, e na busca por legitimação e pelo fim das perseguições policiais,
associava-se com aqueles que detinham o poder; (b) percebe-se, por outro lado, que o processo de
integração das tendas e terreiros e entre as diversas federações, não foi tranquilo. Todo um debate
nacional prolongou-se até os anos 1970, a respeito da formatação dos rituais da Umbanda e do
controle dos processos de iniciação do Candomblé. Ou seja, o “saneamento da religião”, que
significava a criação de mecanismos que limitasse a ação de pais e mães de santo com baixa
escolaridade (considerados ignorantes e presos a hábitos que depunham contra “as seitas”), de
pessoas que utilizassem as religiões para enriquecimento pessoal, ou de “falsos” sacerdotes que
davam “golpes”, inclusive explorando o nome dos dirigentes das federações.
Nesse momento, também a relação entre as duas “linhas” não era ponto pacífico. A própria
União das Tendas, irá incluir os terreiros de Candomblé em 1968, numa tentativa de equilibrar e de
aglutinar a maior quantidade de Casas de Axé que surgiam na cidade e se assumiam diferenciados
da Umbanda, numericamente predominante desde os anos 1940. A antiga “macumba paulista”
passava a ser discriminada, inclusive entre umbandistas e candomblecistas que vinham nela um
culto deturpado. Esta era acusada de fazer “trabalhos” somente com as “entidades de esquerda” –
principalmente Exu –, e nesse caso, começou a ser identificada como “Quimbanda”, porque “faria o
mal” (oposto da chamada Umbanda Branca, fazedora do “bem”). Ou, será vista como um
“sincretismo católico”, herança da escravidão, que precisava ser extinta para se ter a “verdadeira
religião dos orixás”, herança da África, legítima portadora dos maiores segredos e mistérios, de axé
mais forte.
Duas notícias apóiam essas afirmações. Primeiro, sobre a festa de Ogum celebrada em 21 de
abril de 1969.177 No texto, após a descrição costumeira do evento, o jornalista observa a presença de
adeptos do Candomblé e de seu impacto em meio à maioria umbandista.
(...) Umbandistas mais ortodoxos criticavam a presença de adeptos do Candomblé. Com suas
roupas exóticas de forte colorido e os panos-da-costa, ajeitados à cabeça, ao estilo das negras
africanas. Alguns homens dessa corrente ritualística vestiam trajes de cores berrantes
crivados de lantejoulas, levando turbantes indianos à cabeça. Também na maneira de dançar
eram criticados os adeptos do candomblé, por acharem os umbandistas mais conservadores
que “não se deve misturar as coisas. Ou bem se é umbandista ou bem se é outra coisa”.
Outros eram ainda criticados pelos excessos, como alguns chefes de Terreiro vestidos com

177
Sete mil umbandistas festejam Ogum. Folha de São Paulo, Primeiro Caderno, p. 4. Observa-se também a presença de
turistas argentinos.

118
capas luxuosas e macacões aplicados com pedrarias que despertavam a atenção geral. “Isso
aqui não é exatamente um desfile de carnaval” - comentou um umbandista purista.178

Ao iniciar a década de 1970, a relação com o Candomblé e com a África, de modo especial,
foi-se destacando, demonstrando o estreitamento de relações entre as religiões afro-brasileiras de
São Paulo e a Bahia. Em 1973, Jamil Rachid e Jaime Alcântara receberam como convidados para a
Festa de Ogum autoridades da Nigéria, Gana e outros países africanos. Nesse momento, a
participação na festa foi contabilizada em torno de 25 mil pessoas.179 Três anos depois, em 1976, a
festa de Ogum já contava com representações do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato
Grosso, Minas Gerais e Espírito Santo, “além de uma representação umbandista do Uruguai. Um
dos pontos altos dos festejos foi “a apresentação da Embaixada do Senegal, com seus trajes e
danças típicas”.180 Outras notícias sobre a festa de Ogum destacavam as homenagens ao Presidente
Garrastazu Médici, às Forças Armadas e ao Governador Laudo Natel.
Esta virada afirmativa da culturalidade afronegra expressou-se positivamente nas atividades
das federações. Em 1975, a União das Tendas de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo
passou a publicar o jornal Aruanda. O primeiro número de junho além de trazer uma homenagem
ao General Nelson Braga Moreira, falecido em 16/02/1973, apresentava um resumo dos 20 anos da
História da União. Nela, apontava a importância dessa entidade na tentativa de acabar com os
“exploradores que invadiram o nosso meio”. Notava-se o destaque a uma acentuada
internacionalização da Umbanda via relações estabelecidas com terreiros na fronteira sul, Uruguai,
Paraguai e Argentina. Jamil Rachid assumiu a presidência da instituição em 1967. O resumo
apresentado das atividades até 1975 justificava a inclusão do Candomblé:
Motivado pelo fato de não existir em 1968, nenhuma federação à altura em SP, que pudesse
dentro do rito dos orixás, orientar suas organizações, e também a pedidos dos “Babalorixás”,
foi aprovada por unanimidade em Assembléia Geral Extraordinária, a mudança estatutária do
nome da União, passando então a denominar-se União das Tendas Espíritas de Umbanda e
Candomblé do Estado de São Paulo. Preenchida assim uma lacuna, hoje a União presta às
Tendas filiadas todo o serviço de orientação sobre o Candomblé Africano condicionado às
181
circunstâncias do Brasil.

A valorização da África parece ser consequência dessa articulação entre as linhas de culto
em São Paulo, a exemplo do que ocorreu em outras partes do Brasil. No campo político, vale
lembrar que a federalização representou para os terreiros vantagens de proteção. Também se tinha o

178
Idem, op.cit.
179
Louvor a São Jorge. Folha de São Paulo, 21 de abril de 1973.
180
Festa de Ogum no Ginásio do Ibirapuera. Folha de São Paulo, 30 de maio de 1976, Local, 3º caderno, p. 23.
181
Jornal Aruanda. História da União – 20 anos. Ano I, nº 1, São Paulo, junho de 1975, p. 6. O Jornal Aruanda foi
publicado de 1975 a 1987, porém com edições irregulares para os últimos anos da década de 1980. Chegou a ter uma
tiragem de 20 mil exemplares vendidos em todo o Brasil. A crise econômica dos anos 1980 inviabilizou a sua
continuidade.

119
aumento de prestígio das lideranças que se tornavam representantes influentes, entre o povo-de-
santo e no momento de se conseguir aprovação de benefícios junto às prefeituras e estado. Toda a
valorização do Candomblé baiano, que vinha ocorrendo através dos intelectuais e artistas, pode ser
percebida neste primeiro número do Aruanda, em que se divulgava uma “Excursão à África Negra”,
“idealizada e organizada” com o apoio de baianos famosos. Entre eles, Jorge Amado. Além do
roteiro que destacava a visita à terra dos Orixás, na Nigéria, os participantes teriam direito a um
certificado, em que,
(...) cada excursionista ganhará um diploma exclusivo, intitulado “MO TI DÉ IBÉ” – que
prova haver o seu portador estado na Terra dos Orixás, e que deverá ser usado antes do nome
da pessoa, ou depois, como se faz com os títulos de honra da Inglaterra, de tal modo que
alguém poderá dar-se a si mesmo, através da viagem e do diploma, o título de, por exemplo:
MO TI DÉ IBÉ José Silva. O diploma terá as assinaturas do Obá de Oió e de Antonio
Olinto.182

A articulação da União das Tendas no sentido de aproximar os cultos de Umbanda e


Candomblé, pelo menos no que diz respeito a uma representação política única e um discurso de
integração, foi possibilitada pela atuação de seu presidente, Pai Jamil Rachid. Ele, iniciado na
Umbanda na década de 1940, buscou também uma iniciação no Candomblé no Rio de Janeiro, nos
anos 1960. Na tradição oral dos membros da Tenda São Benedito, esse aspecto da liderança de Pai
Jamil foi explicado da seguinte forma,
Pai Jamil tem uma árvore genealógica que foi transmitida só na história oral. Então, Pai Jamil
tem um pai de santo só na Umbanda, o Pai Jaú que era filho de não sei quem lá no Rio de
Janeiro. Foi quem trouxe a Umbanda pra São Paulo, o Sr. Euclides Barbosa, que é o Pai Jaú.
Ele foi jogador da Portuguesa, depois jogou no Vasco, na seleção brasileira, voltou pro
Corinthians e, foi quem consagrou o Corinthians com a fama de macumbeiro etc e tal. Era o
pai do Pai Jamil. Mas o Pai Jau veio do Candomblé para Umbanda, e o Pai Jamil fez uma
coisa que nenhum deles fez, não ignorou Umbanda e Candomblé, como se fosse um
antagonismo. Ele se colocou como sacerdote da Umbanda cedo – com 18 anos já era pai-de-
santo, essa casa que frenquentamos é da década de 50 – e vai trabalhar com o Candomblé, na
nação jeje-marrim, através de um pai-de-santo que tinha na Baixada Fluminense, muito
famoso, que era o Tata Famotinho. O Tata Famotinho é o pai-de-santo do Pai Jamil no
Candomblé. O Tata Famotinho era filho de santo da dona Maria Angorense, a dona Maria
Angorense era de Cachoeira de São Felix na Bahia, numa função muito reconhecida, porque
ela tinha sido criada num terreiro de um negro muito velhinho chamado Seu Ventura, o
Negro Ventura, de Cachoeira de São Felix. Ele chegou lá, conta a tradição, que ele era um
sacerdote africano que veio pra cá e se nega a ser escravo; ele foge e se esconde na Cachoeira
de São Felix, aí ele cria um quilombola e a partir daí surge a tradição da nossa casa. O negro
Ventura cria a Maria Angorense, que cria o Tata Famotinho, o Tata Famotinho cria o Pai
Jamil, o Pai Jamil me cria e assim vai passando. […]183

A filiação religiosa de Pai Jamil, além de lhe conferir legitimidade para estabelecer as
relações com os Candomblés “de nação”, já que suas raízes são consideradas das mais tradicionais,
também demonstraria que a Umbanda não teria renegado pelo menos parte de sua herança africana.
Ao longo dos anos, o Jornal Aruanda publicou uma série de artigos de autoria de Rachid, sobre a

182
Jornal Aruanda. Excursão à África Negra. Ano I, nº 1, São Paulo, junho de 1975, p. 7.
183
Entrevista com o babalorixá Dalmo Ribas, São Paulo, Vila Madalena, 01/08/2011.

120
História da Umbanda. Neles, tal história era retomada a partir da África, de seus povos escravizados
no Brasil, com referência aos grupos linguísticos bantu e sudaneses. O material utilizado variava da
compilação dos estudos clássicos de antropólogos e sociólogos a comentários sobre as viagens que
o pai-de-santo fez à África e Oriente Médio, apoiado em literatura especializada. Foram escritos
com especial atenção, vários textos sobre o Egito, sua história, tradição religiosa e hermética, numa
clara valorização das supostas influências do ocultismo egípcio nas tradições sudanesas, que teriam
sido transportadas ao Brasil durante o período escravista. Mas, também presentes na tradição
esotérica ocidental, da qual a Umbanda tomou influências, muito fortemente, a partir da década de
1960; e, da tradição oriental, presente em diferentes artigos na década de 1970.

Capa do primeiro número do Jornal Aruanda


Fonte: União das Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil184

Mesmo com a relativa integração e convivência entre as linhas de culto, a Umbanda a nível
nacional e regional, assumiu a tarefa de definir claramente as fronteiras entre elas, e a tentar integrar
o máximo possível os rituais em suas tendas. Aparentemente, esse tem sido um problema apontado
desde o início do movimento umbandista e parece continuar até os dias de hoje. Através dos artigos
do Aruanda, foi possível acompanhar parte desse debate nos anos 1970 e 1980. Na primeira edição,
de junho de 1975, um dos destaques era a nota sobre o terceiro Simpósio de Chefes Templários
Umbandistas, promovido pelo Superior Órgão de Umbanda do Estado de São Paulo, presidido por
Demétrio Domingues, realizado no saguão da Câmara Municipal de São Paulo. Na sua pauta
constava: (a) organização das casas umbandistas; (b) abolição de usos incivis; (c) combate ao
alcoolismo e à violência; (d) enquadramento legal do casamento; (e) debate sobre o rito do batismo
na Umbanda; (f) assistência médica, judiciária, hospitalar para os umbandistas e suas famílias; (g)

184
Tive acesso ao Jornal Aruanda através do Pai Dalmo Ribas, a quem agradeço a gentileza em disponibilizar todos os
exemplares existentes na União das Tendas. Dalmo Ribas defendeu em 2010 sua dissertação de Mestrado em Ciências
da Religião na PUC-SP, intitulada Sarava Ogum: a Umbanda em procissão. Nela faz o histórico e a análise da festa
de Ogum e da importância da trajetória do Pai Jamil Rachid em São Paulo.

121
grande objetivo – integração da Umbanda. Esses pontos que passaram a ser continuamente
referidos, em novembro, durante o 1º Seminário Umbandista do Estado de São Paulo, em 26 e 27
julho, foram defendidos para a criação de uma “codificação”. Esse tema já havia sido debatido
durante o Iº Congresso Umbandista do Estado de São Paulo, de 8 a 10 de dezembro de 1961,
promovido pela Liga Umbandista São Jerônimo do Estado de São Paulo (presidida por Pai Jaú), e o
Primado de Umbanda do Estado de São Paulo. Nesse momento, estavam seguindo as determinações
do II Congresso Nacional, ocorrido no Rio de Janeiro no ano anterior (1960). A justificativa para a
codificação, principalmente dos ritos litúrgicos do batismo, casamento e funeral, em 1975 era que,
A falta dessa codificação estava interrompendo a velocidade do crescimento da seita, pois
ficava no ar uma certa dúvida sobre a importância de tais rituais, uma vez que cada um
executava de maneira diversa a dos outros, ficando os adeptos sem saber qual era a maneira
correta. Preenchida assim uma lacuna que há anos retardou o crescimento da Umbanda, que
embora enorme poderia estar maior ainda se antes alguém já tivesse conseguido tal
codificação.185

A preocupação com a integração litúrgica também dizia respeito à formação dos médiuns e à
iniciação no Candomblé. Pois, havia sempre aqueles que “deturpam os objetivos” de ambas as
religiões, causando problemas. Por exemplo, segundo um articulista do Aruanda, “a formação sem
base no candomblé, que virou fábrica de fazer médiuns”, existia por conta do “fator econômico
dando ordens”.186 Medidas específicas para a codificação e a explicação de diferenças entre os
cultos seriam tomadas ao longo dos anos 1970. Porém, o chamamento à união das casas e terreiros,
continuou até fins da década de 1980. As dificuldades para isso podem ser vislumbradas no texto de
Maria Helena Farelli, do CEJUB (Círculo de Escritores e Jornalistas de Umbanda no Brasil),
publicado no número 7 do Aruanda, de março de 1976. Nele, a jornalista afirmava a positividade do
caráter sincrético da Umbanda, “igual a todas as outras tradições, elas mesmas sincréticas”. Dizia
que as raízes antigas estão no Oriente e na África. No entanto, tinha a preocupação em distinguir as
diferenças entre Umbanda, Quimbanda e Candomblé. Para isso, apresentou sete pontos para
diferenciá-las e conseguir, segundo afirmava, a “tão sonhada definição” entre as religiões.
1º - a Umbanda aceita a reencarnação, a lei do Karma e não aceita o sacrifício animal;
2º - a Umbanda apresenta um ritual que varia pela origem, já o Candomblé tem um ritual fixo
de nação africana, e a Quimbanda ainda não delineou seus ritos, visto que é bruxaria,
semelhante à européia;
3º - As vestes na Umbanda são em geral brancas, e as do Candomblé são coloridas, com o
uso de insígnias dos Orixás, e a Quimbanda só se utiliza de vestes negras ou pretas e
vermelhas;
4º - O Candomblé não aceita a incorporação dos eguns, ou melhor dos espíritos, e a Umbanda
trabalha com espíritos em evolução, diferentes dos de nação africana, que simbolizam forças
da natureza e são fontes de energia;
5º - A Umbanda necessita de despachos ou ebós, visto que o ebó é uma imposição do
Candomblé, para agradar Exu, para que ele não venha atrapalhar a Festa dos Orixás. A

185
Jornal Aruanda, Ano I, nº 3, São Paulo, novembro de 1975, p. 9.
186
Jornal Aruanda, Ano I, nº 6 São Paulo Fevereiro de 1976, p. 8.

122
Quimbanda usa o despacho, o sacrifício animal, exatamente como o culto de nação, mas, tem
uma diferença, suas sessões públicas são a meia-noite;
6º - a Umbanda é doutrinária, sendo que a Quimbanda não tem bases doutrinárias, e o
Candomblé se fundamenta na tradição africana, nada tem a ver com a doutrina espírita;
7º - A Umbanda é Magia Branca, e suas origens estão no Espiritismo, no africanismo, na
mitologia ameríndia, no catolicismo, e no ocultismo que traz em si as velhas tradições da
antiguidade, e seu objetivo é a prática da caridade; (...)
O CEJUB respeita e ama o ritual africano, aceita a Quimbanda, pois a cada um será dado
conforme a sua capacidade de entender e sentir, mas, realmente dedica-se à Umbanda, pois
crê que na prática da caridade, da mediunidade com doutrina e esclarecimento, o homem
brasileiro caminha para a realização espiritual.

A mal disfarçada hierarquização apresentada pela jornalista, apontava o grau de dificuldades


para a integração política das linhas de culto, em detrimento das fronteiras litúrgicas e ritualísticas a
serem estabelecidas. A Quimbanda, nessa perspectiva, seria praticamente um culto de “mentes
primitivas” – “conforme a capacidade de entender e sentir” – argumento repetido desde os tempos
de Nina Rodrigues. Foi bastante utilizado contra a “macumba paulista”, também pelo espiritismo
kardecista nos anos 1940 e 1950. O sentido dessas definições acabou gerando polêmica entre os
leitores de Aruanda. A insistência na tradição orientalista para as origens místicas da chamada
Umbanda Branca foram apresentadas na edição número 11 de julho de 1976, em um artigo
intitulado Umbanda, religião secular. Baseado no livro “Umbanda de todos nós” de W. W. Mata e
Silva, o articulista definia a religião a partir de “um sentido místico”, em que predominavam os
elementos do bramanismo e da cabala. Decodificava ali a palavra umbanda, a partir do AUM (Om)
indiano, som que representaria o movimento criativo do universo, sendo expressão do próprio
cosmos. A Umbanda tornava-se, então, uma “Lei Mater”, universal, religião original dos princípios
de toda existência. Teria se manifestado em várias tradições, inclusive com diferentes graus
entendimentos. Insistia que, “não criticamos ninguém, não temos pessoalmente nada contra
ninguém, porém jamais devemos confundir a Umbanda verdadeira com a umbanda praticada sem
escrúpulos. Aquela umbanda de histórias da carochinha, com Guias e Orixás, nem com estátuas de
bruxos como Diabos de todo o tipo”.187 Consequentemente, no número 12, o redator responsável
Norival Nogueira, precisou se desculpar sobre “a polêmica e discordâncias” decorrentes da matéria.
Após reafirmar as explicações místicas para a origem da Umbanda, reiterava que,
Quando falamos da Umbanda não tomamos posição contra Candomblé, Xangô, Catimbó.
Existem muitas casas sérias, de tradição. O verdadeiro umbandista respeita todos os cultos, e
sabe a razão de ser de cada um. Tudo tem um valor na escala evolutiva dentro do universo.
Não concordemos nem duvidemos do vocábulo UMBANDA, dentro das línguas mortas
como sânscrito, nos sinais védicos e do alfabeto dos Brahmas, identificando a expressão de
AUM. Pesquisemos porque quem procura acha. (...) A meta das entidades na Lei de
Umbanda não é apenas atuar em médiuns que se presta a servir, através dos espíritos de
Caboclos e Pretos Velhos, Orixás intermediários, Guias e Protetores, mas para atuar na Terra

187
Jornal Aruanda, Ano I, nº11, São Paulo, julho de 1976, p. 14-15. Nessa tradição, a Umbanda seria originária do
perdido continente de Mu. Tal como a Atlântida, Mu teria sido submergido nas águas nos primórdios dos tempos e seus
descendentes foram parar na África.

123
ligando o astral inferior às Hierarquias Superiores, trazendo cada vez mais o SOL
ESPIRITUAL para todos.188

Enfim, as fronteiras estabelecidas pelas linhas de culto em São Paulo, na década de 1970,
foram intensificadas com o orientalismo retomado pelo moderno movimento teosófico deste
período. Enquanto a chamada Umbanda Branca foi aprofundando outros sentidos, “branqueando”
(Ortiz) ainda mais as entidades dos cultos bantu, o chamado Candomblé “de nação” foi retomando
com força suas heranças africanas. O rito keto em São Paulo tornou-se bastante popular na expansão
que tomou força nos anos 1980.189 As federações passaram a aglutinar, além de demandas
específicas de seus grupos, as bases para as distinções entre os cultos, através da formação dos
chefes de terreiro, com a realização de cursos litúrgicos e a distribuição de diplomas. Esperava-se,
dessa forma, acabar com a confusão do “candombanda” e do “umbandomblé”.

Expansão das religiões afro-brasileiras em São Paulo: trajetórias e conflitos


Durante o período da Ditadura militar (1964-1985), pais e mães de santo criaram
mecanismos de negociação com os poderes públicos e político-partidários para garantir a
sobrevivência e a proteção de suas casas de axé. Mais importante, talvez, nesse período, foi a
continuidade da mudança de postura, com a “saída às ruas” e a tomada de posição pública em

188
Jornal Aruanda, Ano I, nº12, São Paulo, julho de 1976, p. 4.
189
Vagner Silva divide em quatro fases a formação do Candomblé em São Paulo, de acordo com a constituição das
famílias-de-santo, por nações e linhagens. Seriam elas: (1) primeira fase – rito Angola (c. 1950 e 1960): marcada pela
atuação de João Torres Filho (Joãozinho da Goméia) nos anos 1950, no Rio de Janeiro e São Paulo; iniciou muitos
filhos e filhas-de-santo em São Paulo, tanto na capital como no litoral paulista. Também do rito angola tem-se a família
da baiana Samba Diamongo, do Terreiro do Bate-Folha, de Manuel Bernardino da Paixão, em Salvador. Outra
referência são os descendentes paulistas de Nanã de Aracaju (Erundina Nobre Santos), como Mãe Manodê. (2) segunda
fase – rito efã (c. 1950 e 1960): período de “contato entre religiosos do candomblé do Rio de Janeiro e da Bahia,
posteriormente estendidos a São Paulo”. Destaque para Cristóvão de Ogum (Cristóvão Lopes dos Anjos), do Terreiro de
Oloroquê, em Salvador, matriz do rito efã (tronco nagô ou iorubá); desta linhagem vieram para São Paulo Waldomiro
de Xangô (Waldomiro Costa Pinto) e Alvinho de Omolu (Álvaro Pinto de Almeida). (3) terceira fase – rito queto (c.
1960, 1970 e 1980): entre inúmeras linhagens está a de Nezinho de Ogum (Manuel Siqueira do Amorim) do terreiro do
Portão da Muritiba, no Recôncavo Baiano, ligado às famosas casas de Salvador (Casa Branca do Engenho Velho e o
Gantois), com ele foram iniciados, com a ajuda de Tia Rosinha, Pérsio de Xangô e Tonhão de Ogum, entre outros na
região do ABC paulista. Silva informa que “o prestígio que o modelo queto desfrutou por volta dos anos 70 e 80 fez
com que muitos religiosos paulistas fossem diretamente às grandes casas baianas para se iniciarem ou mesmo dar
obrigações, abandonando suas antigas nações ou entrecruzando a nova identidade com o rito anterior”. Entre eles Caio
de Xangô (Caio de Souza Aranha), falecido em 1984, cuja filha de santo e sobrinha carnal, Sylvia de Oxalufã, dirige
hoje o Axé Ilê Obá no Jabaquara. (4) quarta fase – rito queto reafricanizado e outras nações (c. 1950 – atual): Entre
outros, da nação jeje, na variação baiana, chamada marrim veio para São Paulo o pai-de-santo Vavá Negrinha, da casa
de Gaiacu (Maria Angoronense) em Cachoeira de São Félix, Bahia. Na variável maranhense, chamada mina, veio Toi
(Pai) Francelino de Xapanã (Francelino Vasconcelos Ferreira), filho-de-santo de Jorge de Iemanjá, do Terreiro de Mina
de Iemanjá na cidade de São Luís. “Do xangô pernambucano (variação regional do queto)” veio em 1984 Mãe das
Dores originária do Sítio do Pai Adão, na Estrada da Água Fria em Recife. A “transformação mais recente” apontada
por Vagner Silva seria aquela referente ao processo de reafricanização do Candomblé, empreendido por alguns pais e
mães-de-santo em São Paulo. Procurava-se nessa perspectiva depurar da estrutura religiosa quaisquer elementos que
fossem entendidos como não sendo de origem africana. Para isso, alguns passaram a buscar em África iniciação e
conhecimentos rituais, como também objetos de culto. Vagner Gonçalves da SILVA. Orixás na metrópole, pp. 81-93.

124
defesa dos cultos. A identificação da trajetória de alguns dos sujeitos históricos deste processo
auxilia a compreender o modo como as religiões afro-brasileiras foram se configurando em São
Paulo, a despeito da repressão e do preconceito e/ou dos conflitos entre as linhagens de culto e as
federações. O apontamento das dificuldades cotidianas enfrentadas, em diferentes bairros, reforçaria
o argumento da capacidade dinâmica de recriação continuada das bases materiais e espirituais,
realizada pelos agentes religiosos afro-brasileiros. O desgaste energético (de axé) é muito grande e
o “preço cobrado” aos sacerdotes, muito alto. Isso quando da invasão de terreiros, da perseguição
religiosa e político-policial, da iniciação feita às pressas, das relações interpessoais que precisam ser
(re)estabelecidas em bases fiáveis, de solidariedade e afetivas. Eis, alguns exemplos.
Os pesquisadores concordam, até o momento, que um dos primeiros Terreiros na cidade de
São Paulo a se registrar como Candomblé foi o de nação angola, da baiana Julita Lima da Silva
(Mãe Manodê, Manudê ou Manaundê), filha de santo de Erundina Nobre Santos (Nanã de Aracaju).
Silva afirmava que Mãe Manodê foi iniciada por Nanã ainda em Salvador e teria vindo para São
Paulo acompanhando seu marido em 1963. Em 1965 abriu o Terreiro de Santa Bárbara na Vila
Brasilândia, “um dos primeiros a ter registro de Candomblé e do qual já saíram mais de quatro
gerações de iniciados”.190
Baba Silvio de Oxumaré, por sua vez, contava que Julita veio para São Paulo na década de
1940, com o nome de Oia Mande. Nesse período trabalhou como doméstica na casa de Jânio
Quadros. Com a ajuda dele teria alugado uma casa na Avenida Itaberaba, zona norte da capital,
“para morar e tocar com palmas, sessões clandestinas aos orixás”.191 Segundo Baba Silvio, o
caboclo Seu Treme-Terra de Mãe Manodê, “por várias bênçãos e diversos pedidos realizados”,
ganhou o terreno da Vila Brasilândia e lá, “num barraco improvisado coberto com lona”, ela tirou
seu primeiro barco de iaô em São Paulo. As primeiras filhas foram Oiadeci e Oiameci, ambas de
Iansã, orixá de Mãe Manodê. Nos anos 1950, ainda segundo Silvio, o terreiro sofria com a
intolerância. “Era rotina diária, constantemente a polícia aparecia por lá e a perseguição já tomava
conta de sua vida, chegaram algumas vezes a invadir o terreiro e até a quebrar assentamentos de
santo”. Essa rotina teria sido amenizada com a vinda de clientes e filhos-de-santo importantes,
juízes, advogados e artistas, que teriam ajudado a mudar o “quadro de preconceito”. Em 1965 foi
registrado o terreiro, oficializando-o com o nome de Terreiro Santa Bárbara Oia Manaundê, mesmo
ainda enfrentando abaixo-assinados de vizinhos, “descontentes com a instalação de um terreiro de
candomblé na região”. Em 1976 sua filha-de-santo Pulquéria de Oiá foi indicada, “por Iansã”, como

190
Vagner Gonçalves da SILVA. Orixás da metrópole, p. 83.
191
Revista ORIXÁS, Candomblé e Umbanda. Os primeiros Candomblés de São Paulo – Manaundê, pioneira da zona
norte de São Paulo. Ano II, nº 8, p. 44. Texto de Silvio de Oxumaré.

125
sua sucessora, entre “buxixos e contrariedades”. Mãe Manodê faleceu em 13 de setembro de 2004.
Foi enterrada no cemitério da Vila Nova Cachoeirinha sob os cânticos das nações Angola e Keto. O
Terreiro de Santa Bárbara está atualmente em processo de tombamento pelo IPHAN.192 Em
entrevista concedida a Reginaldo Prandi em 1987, Mãe Manodê falava sobre a sua trajetória e
iniciação, entre indas e vindas, do nordeste para São Paulo.
Eu cheguei aqui em São Paulo e quando abri meu candomblé registrei a minha casa no
cartório como casa de candomblé. Direto de Sergipe para São Paulo. Meu marido tinha casa
em São Paulo e casa em Sergipe. Porque eu tinha sogra lá [São Paulo] e quando eu fui para
lá, eu dei uma festa lá no sítio e fizeram um barracão, como candomblé mesmo. Mas antes eu
fui passar uns tempos lá com minha mãe [mãe-de-santo] em Sergipe, que ela estava doente.
Eu fui, conversei com a minha mãe e ela me ensinou, e tudo que ela me ensinou eu fiz na
minha casa. Eu me abri a casa e minha mãe foi pra inaugurar a casa e tudo isso eu fiz lá. Foi
quando esta menina aqui [Oiadeci ou Pulquéria?] saiu daqui de São Paulo à minha procura e
foi para Salvador, mas não me achou em Salvador, eu estava em Sergipe. Então ela foi daqui
para Salvador de avião e de Salvador para Sergipe ela foi de ônibus. A família dela me
trouxe. Ela está sempre comigo e fez a obrigação de vinte e cinco anos aqui mesmo neste
barracão. Depois eu vim aqui, fiz, raspei também a irmã dela [Oiameci?]. Estas minhas duas
filhas estão dentro do ritmo antigo mesmo, tudo no ritmo antigo mesmo. Fui fazendo iaô,
muito iaô. Fui ficando e ficando. Aí depois os filhos começaram a querer bancar muita
grandeza, muita sabedoria, e aí chegaram a dizer que meu candomblé era umbanda sangrenta,
não sei o quê. Aí foi dando desgosto, mas das pessoas, não da religião. Eu vim para São
Paulo porque a família dessa moça que eu fiz lá me trouxe, para mim trabalhar com ela. E
quando eu cheguei aqui não tinha candomblé não, a primeira que registrou o candomblé foi
Manudê, em 1965. Não tinha ninguém que tivesse candomblé aqui. Por isso o primeiro
candomblé de São Paulo foi Manudê. Aqui só tinha umbanda.193

As duas narrativas em torno da trajetória de Julita, mesmo divergentes, não interferem na


percepção de que esta mãe-de-santo pôde constituir um atendimento e uma filiação do rito angola
(Sergipe) no início de 1960 em São Paulo. Foi apresentada em seu depoimento uma distinção clara
entre seu Candomblé e a Umbanda existente até então. Tal ponto pode ser percebido na oposição
entre a valorização da iniciação de suas duas filhas mais velhas, “dentro do ritmo antigo” e os filhos
outros que bancando grandeza negativaram o seu ritual como “umbanda sangrenta”.194 Ter sido a
primeira a registrar a casa de culto como candomblé em São Paulo seria a comprovação da sua
distinção.

192
Revista ORIXÁS, Candomblé e Umbanda, op. cit., p. 44.
193
Reginaldo PRANDI. As herdeiras do axé, pp. 172-173. Entrevista em 25/8/87. Procurei identificar na fala de Mãe
Manodê, entre colchetes, algumas hipóteses em cima das informações dadas por Baba Silvio. Não se pode ter certeza,
no entanto, da cronologia certa de todos os fatos. Pelo depoimento de Julita pode-se inferir que ela já estava em São
Paulo antes da oficialização em cartório do Terreiro de Santa Bárbara em 1965. É provável que antes dessa data, ela
trabalhasse junto com seu marido dando atendimento com seu caboclo.
194
Este conflito pode ser entendido também como parte do processo de valorização dos terreiros do rito keto (iorubá)
em detrimento daqueles de tradição bantu. “Umbanda sangrenta” seria uma umbanda que faz sacrifício. Vale lembrar,
que no entendimento e distinção entre Umbanda e Candomblé, como afirmado antes, muitos pais e mães-de-santo no
período de formação do candomblé em São Paulo transitaram de uma religião à outra, de acordo com os interesses ou
necessidades de filiação. Quanto mais o candomblé começou a se popularizar e se tornar mais aceito, foi considerado
também portador de maior força mágico-religiosa e, portanto, com condições de atrair uma clientela maior aos terreiros,
dando maiores garantias de eficácia.

126
Segundo as informações de Baba Silvio, o processo conflituoso na transmissão da herança
do Terreiro de Santa Bárbara para Pulquéria, teria “abalado a saúde de Mãe Manodê”. Outro ponto
apresentada por Baba Silvio seria que Mãe Manodê, ou, na época, Oia Mande, quando morava na
Avenida Itaberaba, tocava com “palmas, sessões clandestinas aos orixás”. Tocar com palmas foi
uma das formas utilizadas para não chamar a atenção e evitar a repressão, não tocando com os
atabaques, que fazem mais barulho. Tal como Pai Jamil fazia também em outro ponto da cidade.
Este fato indicaria a generalização da repressão, para os cultos afro-brasileiros que, segundo os
relatos, era parte do cotidiano dos terreiros e tendas. Aparentemente, a mudança do “quadro de
preconceito” dar-se-ia com os filhos e clientes importantes, de outra classe social. Seria a clientela
branca, sempre presente na história das religiões afro-brasileiras e que, nesse ambiente urbano,
poderia servir como proteção contra a violência policial em alguns casos. Vale lembrar que em
Maceió, após o “Quebra de Xangô” de 1912, os sobreviventes em Alagoas e outros que fugiram
para os estados vizinhos (Sergipe e Pernambuco) passaram a tocar para os orixás sem atabaques, na
mesma estratégia de sobrevivência na clandestinidade desses cultos.
Essa seria uma estratégia secular dos negros brasileiros que se escondiam nas matas e
criavam seus “códigos secretos” e formas de disfarce. Dadas as devidas diferenças regionais, tal
estratégia demonstrava as mudanças que ocorreriam nas religiões afro-brasileiras, influenciadas
pelo contexto político de então. Entre 1900 e 1950, poder-se-ia afirmar grosso modo, foi um
período de interiorização dos cultos, com seu funcionamento clandestino – mesmo tendo em vista
as “desobediências reincidentes” – em que adaptações ritualísticas foram feitas para responder ao
novo ambiente social repressor. A partir dos anos 1960, foi sendo dada a permissão para que as
casas de axé pudessem tocar e funcionar abertamente em todo o Brasil (exteriorização dos cultos),
com diferenças de datas para cada região.
A Umbanda, por ser herdeira também do kardecismo espírita e ter, ao longo do tempo,
diminuído suas referências negras, saiu à frente na organização de federações de cultos e da
articulação com membros das elites, no que diz respeito a São Paulo e, em certo sentido, também a
Maceió. O Candomblé associou-se a Umbanda no início da abertura pública dos cultos, mas logo
em seguida, buscou articular suas próprias organizações para dar conta de desafios próprios.195
Como afirmado antes, o que vai distinguindo as linhas de culto das religiões afro-brasileiras,
195
Em 11 de novembro de 1976, a Federação Baiana de Culto Afro-Brasileiro iniciou campanha contra a exploração
turística do Candomblé. Pretendiam através do cadastro e fiscalização dos terreiros ajudar a acabar com a visão negativa
da religião, como “exploradores”. “A federação pretende também evitar a apresentação e uso, em festas populares, de
objetos e símbolos referentes aos cultos afro-brasileiros, incluindo indumentárias características ou exibições de
cerimônias sagradas de seus rituais. Esta proibição será extensiva a espetáculos artísticos e exibições de qualquer
espécie, mesmo que de natureza folclórica”. Para isso, contariam com a ajuda da Secretaria de Segurança Pública.
Macumba baiana, mas não para turista ver (Folha de São Paulo, quinta-feira, 11 de novembro de 1976, Ilustrada, p. 6).

127
principalmente entre as décadas de 1970 e 1980 foi, por um lado, a orientalização mística da
Umbanda e, por outro, a africanização do Candomblé.
Os candomblés de São Paulo teriam, pois, se auto-afirmado na década de 1970, procurando
se diferenciar da Umbanda. Dos muitos desafios enfrentados pelos sacerdotes e sacerdotisas das
religiões afro-brasileiras, tanto em São Paulo como em outros centros, foi posto em xeque – na
confluência de novos agentes e conhecimentos e do aumento do fluxo de informações entre os seus
filhos e iniciados – o conhecimento e o controle dos segredos rituais e de culto. As novas gerações
formadas nesses ambientes urbanos, a partir dos anos 1980, tenderam a questionar a velocidade da
transmissão e a qualidade do ensinamento passado por seus babalorixás e ialorixás. Conflitos e
oposições entre a tradição e a inovação ritual deram-se, pois, mais fortemente nas décadas de 1980
a 2000.
No final dos anos 1970, outro exemplo da mudança de postura de adeptos das religiões afro-
brasileiras, pôde ser visto na forma como os candomblés de raízes baianas sentiram a diferença e as
dificuldades de se inserir no ambiente paulistano, com as tradições sincretizadas do catolicismo no
Nordeste. Foram noticiadas nos dias 12 e 13 de fevereiro de 1977 um conflito entre a Igreja
Católica e o Aché Ilê Obá (Congregação Espírita Beneficente Pai Jerônimo) do Babalorixá Caio
Aranha.196 O episódio ocorreu quando da inauguração do terreiro de Pai Caio para a qual se havia
encomendado uma missa na Igreja do Rosário dos Homens Pretos, no Largo do Paissandú. Dizia o
jornal que, “o ogan do terreiro, José da Silva, ao encomendar a missa em ação de graças a São
Jerônimo, não explicou nada sobre o ritual que o Aché Ilê Obá havia programado. Não falou sobre
o número de convidados, que os adeptos da seita viriam vestidos a caráter e nem que seria
introduzida na igreja durante a missa, uma estátua de Xangô com mais de duzentos quilos”.197
O pai-de-santo Caio Aranha (na foto, em seu terreiro Aché Ilê Obá) pergunta: por que a
estátua de Xangô (pesa 200 kilos) que para os católicos é São Jerônimo, não pode entrar na
igreja do largo Paissandu, se no Brasil os fiéis costumam participar dos dois cultos? O bispo
auxiliar d. José Thurler, da Arquidiocese de São Paulo, que proibiu a realização da missa que
comemora a inauguração do maior terreiro de candomblé do Brasil, marcada para as 10 horas
de hoje, não deu explicações. Apenas advertiu: “Se o capelão Rubens de Azevedo celebrar
essa missa terá que arcar com as conseqüências”.

Na arquidiocese a resposta do bispo auxiliar, D. José Thurler, foi transmitida pelo Cônego
Décio Pereira:
“Isto é contra os nossos princípios” – afirmou o bispo. “O que podemos aceitar – diz o
cônego Décio – é o aspecto folclórico, para sermos simpáticos e conceder uma abertura no
sentido da temática da cultura popular”. “Não sei o que aconteceu com o padre Rubens –
continua o cônego – a não ser que ele esteja sendo iludido e não saiba da gravidade da

196
As manchetes a respeito do episódio eram: Igreja vs. Candomblé – Crise Igreja-Candomblé – Espíritas-católicos à
brasileira. Folha de São Paulo, 12 de fevereiro de 1977, Primeiro Caderno, Local, p.1, 13 e 22.
197
Idem, op.cit. Ao ser encomendada, paga-se a celebração da missa com antecedência.

128
situação. Os padres celebram a missa de acordo com os santos do catálogo, como São
Jerônimo faz parte dos santos relacionados, pode ser que o padre inocentemente tenha dito
que rezará a missa”. “No entanto, agora mesmo ele será advertido. A sugestão do bispo é para
que ele procure os dirigentes da seita e explique a situação. A missa poderá ser rezada, porém
a imagem de Xangô, não entrará na igreja. Se for o caso a missa não será celebrada. Imagine
só, a igreja repleta de gente fantasiada. Não podemos admitir tal coisa e se ele achar que
deverá celebrar a missa será então responsabilizado por seu ato”, assegurou o cônego.198

Pai Caio, em 1977 já com setenta anos de idade, foi iniciado por Mãe Menininha na década
de 1930 em Salvador. Contava com muitos filhos e filhas de santo em seu terreiro, localizado
próximo à Rodovia dos Imigrantes. Seria este o primeiro terreiro a ser tombado pelo patrimônio
histórico do estado, em três de maio de 1990, sob o comando de sua sobrinha Mãe Sylvia de
Oxalá.199 Sua resposta à oposição da Igreja Católica relacionou a perda de fiéis católicos à atitude
restritiva do clero, e procurou demonstrar a força dos cultos afro-brasileiros para a população
brasileira. Entre um e outro comentário negativo do jornalista, a resposta de Pai Caio ajudaria a
entender a busca de afirmação de espaço social próprio, pelas religiões afro-brasileiras, nesse
período em São Paulo. Eis,
“Atualmente, desde que a nossa crença foi liberada oficialmente e que os adeptos não têm
medo de serem presos por estarem praticando os ritos do candomblé – diz o pai de santo – o
número das pessoas que freqüentam o terreiro aumentou muito. A igreja perde cada vez mais
seus membros que procuram no candomblé uma forma de amenizar o medo, a angústia, a
insatisfação geral, a cura dos mil males”. “Contudo, nosso terreiro não recebe só católicos,
mas também protestantes anglicanos, judeus, maçons, enfim, temos aqui no terreiro uma
mistura geral de religiões. (...) “Atualmente, o candomblé faz parte da vida da população, -
afirmou Caio Aranha – a influência das religiões afro-brasileiras tem crescido tanto, que
muitas decisões políticas são tomadas a nível de consulta nos terreiros”. Segundo os
dirigentes do Aché Ilê Obá, entre os muitos adeptos do terreiro, encontram-se deputados,
vereadores, jurídicos, empresários de alto gabarito, a alta sociedade do Rio de Janeiro e São
Paulo. “Não queremos dar nome aos bois – diz Caio – porém várias personalidades políticas
freqüentam assiduamente nossas reuniões. Todos vêm em busca de bênçãos, conselhos e com
muita fé nos santos. O candomblé elege seus senadores e deputados”. (...) Para ele o
candomblé faz parte da vida da população que acredita no poder sobrenatural do pai-de-
santo. Muitos chegam desesperados – diz ele – e como são ouvidos e têm fé, acabam
melhorando momentaneamente. “No entanto – diz ele – neste terreiro funciona uma
verdadeira comunidade, que vem diariamente cumprir com suas obrigações. Os adeptos
fazem um revezamento e cada qual tem o seu dia para preparar as diversas comidas que são
apreciadas pelos santos, manter e conservar o Aché Ilê Obá”.200

No dia 13 de fevereiro, noticiava-se por sua vez o resultado do conflito.201 Com a negação
final da Igreja Católica, inclusive com a escapada do padre Rubens da igreja após a missa da
manhã, e a falta de explicação aos membros do Candomblé da negativa, as notícias afirmavam que,
(...) O cancelamento da missa, entretanto, não impediu que os seguidores do candomblé se
dirigissem para o Largo do Paissandú e, junto ao monumento da Mãe Preta, depositassem um

198
Idem, op.cit., p. 13.
199
Estado tomba terreiro de candomblé de SP. Folha, quinta-feira 3 de maio de 1990, Cidades/Mortes, p. C-4.
200
Folha de São Paulo, 12 e 13 de fevereiro de 1977, Primeiro Caderno, Local, p. 13.
201
Xangô não é festejado com missa na Igreja – Padre não quis ver Xangô. Folha de São Paulo, 13 de fevereiro de
1977, Primeiro Caderno, Local, p.1 e 22.

129
ramalhete de rosas. Por advertência de um tenente do DSV, as filhas-de-santo trajadas à
maneira baiana, desistiram de entoar os cânticos da seita. E a cerimônia teria se limitado a um
discurso do vice-presidente da Confederação de Tendas de Umbanda e Candomblé e ao
repicar de alguns rojões, se o bispo da Igreja Católica Reunida, não tivesse concordado em
celebrar uma missa no terreiro que iria ser inaugurado à noite na Vila Fachini. Ainda assim o
ogan José da Silva não escondia sua irritação com o cancelamento da missa e o súbito
desaparecimento do padre Rubens. “Eu acho isso uma falta de ética, um desrespeito ao ser
humano. Essa iria ser uma missa normal, com os participantes trajados normalmente. É claro
se uma filha-de-santo desejasse vir vestida de baiana, desde que decentemente trajada, nós
não iríamos impedir. Mas o que eu não me conformo é de não termos nem a possibilidade de
argumentar. Se o padre Rubens pudesse me explicar porque o catolicismo de São Paulo tem
que ser diferente do da Bahia, que permite a realização dessas missas, eu seria capaz de
entender. Agora, sem diálogo, não há condições de entendimento. (...) “Não queremos atrito
com nenhuma outra religião. O importante é que a missa foi celebrada”, dizia o septuagenário
pai-de-santo do Aché Ilê Obá, Caio Aranha. E prossegue falando, preferindo abordar a
construção do novo templo: “Isso aqui um dia vai ser uma universidade. Eu quero construir
uma faculdade de candomblé, para acabar com esses charlatães de Umbanda, as vezes semi-
analfabetos, e que se tornam pais-de-santo. Na faculdade de filosofia da Bahia já existe uma
cadeira que estuda o candomblé, mas eu quero fazer um curso só sobre isso.” (...)202

Este episódio seria esclarecedor de alguns elementos das transformações históricas das
religiões afro-brasileiras em São Paulo, nas décadas de 1970-1980. Destaca-se que: (a) a expansão e
a visibilização das religiões afro-brasileiras na cidade era uma realidade inevitável em fins dos anos
1970; (b) os terreiros de Candomblé de tradição baiana, procuravam distinguir-se da Umbanda, via
reprodução dos rituais e liturgias baseadas na tradição nordestina. Fortificava um discurso de maior
poder mágico-religioso através da intelectualização e de certa influência político-cultural dos seus
pais-de-santo; (c) a liberdade dos cultos era restrita e o controle sobre os espaços públicos – em
especial os tradicionais – em que as religiões afro-brasileiras poderiam se manifestar dependia de
uma negociação com os órgãos de segurança. E, por fim (d) o ecumenismo católico, apregoado a
partir do Concílio Vaticano II (1963-1965) limitava-se a um discurso voltado para as igrejas cristãs
protestantes. Era, portanto, subalternizador das religiões afro-brasileiras. Nesse sentido, a Igreja
Católica Brasileira soube tomar lugar no diálogo com os cultos negros.203
O palco onde se desenrolou este episódio ter sido o Largo do Paissandú expressaria, por sua
vez, as contradições da chamada “democracia racial”. Tradicionalmente foi o local de comemoração
do 13 de maio na cidade, momento em que políticos davam às caras para afirmar a “importância do
povo negro” na formação do Brasil. Durante o período militar, a presença de seus presidentes e
representantes nessas comemorações foi frequente, como também a elaboração de um discurso de

202
Idem, op. cit., p. 22.
203
A Igreja Católica Brasileira é uma dissidência da Igreja Católica Romana, com sede no Rio de Janeiro. No jornal
Aruanda, há referências à presença do padre Chico da Igreja Católica Brasileira nas Festas de Ogum no Ibirapuera e em
eventos promovidos pela União das Tendas de Umbanda e Candomblé no Estado de São Paulo. Também destacam
certa mudança de discurso da Igreja Católica Romana no que se refere à Umbanda, ao mesmo tempo em que se nota
uma preocupação dela com seu avanço. Aruanda. Editorial. Umbanda em expansão preocupa a Igreja. Ano III, nº 29,
São Paulo, novembro de 1978 e Bispos pedem o máximo de respeito a Umbanda, desde 1973. Ano III, nº 30, São Paulo,
Dez/78-Jan/79.

130
lideranças das federações de culto que louvavam e faziam campanhas políticas aos candidatos da
ARENA. Os movimentos de esquerda tiveram uma relação menos influente nos meios afro-
brasileiros, apesar do interesse de alguns intelectuais. Enquanto o Movimento Negro em São Paulo
tomava força nos anos 1980, somente passaria a se preocupar mais diretamente com as religiões
afro-brasileiras a partir dos anos 1990.

Política, religião, e o movimento negro em São Paulo


Tem-se, pois, certa concomitância entre a expansão das religiões afro-brasileiras em São
Paulo e o período político repressivo. Alguns analistas percebiam nisso a afirmação de que fôra a
“despolitização das religiões afro-brasileiras” favorecedoras de apoio ao regime militar,
diferentemente das pastorais sociais e dos movimentos de base de influência católica, que se
opuseram abertamente à Ditadura. No entanto, pensa-se ter sido a liberalização oficial do controle
policial às religiões afro-brasileiras, a maior responsável pela expansão. Tanto as bases católicas
quanto as afro-brasileiras estavam diluídas como força de resistência política. As ações e
reivindicações desses grupos, por melhorias das condições de vida, principalmente nas periferias,
quando existiam, tendiam a se limitar aos bairros populares. Se, por um lado, os políticos do regime
apoiavam as manifestações massivas da Umbanda e do Candomblé, por outro, mantinham a mesma
vigilância, espionagem e interferência repressiva nas suas organizações e nos terreiros menores. E,
do mesmo modo, nas CEBs e pequenas igrejas protestantes.
Dada as diferenças religiosas e/ou ideológicas, terreiros e comunidades católicas tendiam a
reforçar simbolicamente ou espiritualmente aquilo que melhor protegesse o seu grupo. As CEBs
contavam com os laços familiares e de amizade, embasadas em uma ideologia comunitária e na
utopia da luta pela construção do “Reino de Deus na Terra”. Os Terreiros, contavam também com
os laços familiares e de solidariedade (ajuda mútua), com peso maior à filiação religiosa (família-
de-santo), lutando para garantir o direito de existir e cultuar seus orixás e entidades. Enquanto as
CEBs contavam (bem ou mal) com a proteção institucional da Igreja Católica; os Terreiros mal
podiam contar com a proteção das Federações. Estas mesmas, para conseguir garantias de proteção
ou melhorias, precisaram negociar diretamente com os militares. Dessa forma, após décadas de
repressão, compreende-se o porquê de alguns poucos “favorecimentos”, serem recebidos, pelos
terreiros e federações, sem maiores problemas. E, a aproximação dos discursos políticos e da
ideologia da “democracia racial”, repetidos pelo governo e as federações.
Exemplifica-se. No dia 14 de maio de 1972, foi celebrada a Abolição no Largo do
Paissandú, com a presença do presidente Médici. A cerimônia contou com a participação de cerca
de 10 mil pessoas, sendo considerado pelo jornal “a maior acolhida entre todas” dada ao presidente

131
em São Paulo, com muitos aplausos e chuva de papel picado dos prédios ao lado da praça. Contou
também com a presença de membros do Candomblé e da Umbanda, vestidos com roupas rituais.
Além do presidente e sua esposa Scila Médici, compareceram o governador Laudo Natel e sua
esposa, dona Zilda Natel, “os dois filhos do presidente, Sergio e Roberto, o comandante do II
Exército general Humberto de Souza Mello, o comandante do IV Distrito Naval, almirante Silvio de
Magalhães Figueiredo, o comandante da IV Zona Aérea, brigadeiro Délio Jardim de Matos, o chefe
do Serviço Nacional de Informações, general Carlos Alberto Gontorra. E os Chefes das Casas Civil
e Militar da Presidência, general João Batista Figueiredo e prof. João Leitão de Abreu”. Também se
encontrava presentes Paulo Maluf, Secretário dos Transportes e Henri Aidar, chefe da Casa Civil do
governo do estado.204 Após homenagens à Mãe Preta, símbolo de São Paulo, Maria Madalena
Penteado, de 82 anos, o presidente e ela juntos, colocaram um ramalhete de flores no monumento à
Mãe Preta existente na praça. No palanque, ao lado da igreja, o presidente do Clube dos 220 e filho
de Dona Maria Madalena, Frederico Penteado Jr, fez o discurso de saudação,
Disse o orador que “pela primeira vez, um chefe da nação comparece em praça pública a uma
comemoração de 13 de maio, a convite da coletividade negra de São Paulo. Cabe-nos assim,
inicialmente o dever de agradecer o gesto delicado de V. Excia., a atenção honrosa do maior
dos brasileiros, e sobretudo destacar a importância da presença de V. Excia., neste momento,
neste local, junto ao Monumento à Mãe Preta, para reafirmar a integração de todos os
brasileiros, de todas as raças, de todas as religiões, na grande comunidade democrática
brasileira que é um exemplo para o mundo”. Mais adiante disse: “Devemos lembrar que o
glorioso Exército Nacional, que incorporou os negros aos batalhões de voluntários na Guerra
do Paraguai, tornando fatal a emancipação desses soldados e o Clube Militar que, em
memorável assembléia, proclamou que os oficiais do Exército Brasileiro não se prestariam ao
papel de caçadores de escravos fugidos”. Ao final disse que “quando a sociedade brasileira se
democratiza realmente graças à Revolução de 31 de Março, da qual V. Excia., é o mandatário
e depositário, queremos apenas dizer ao Presidente da República que pode contar conosco,
que marcharemos com o Brasil da Revolução, e que nesta praça, junto ao monumento
humanitário da Mãe Preta, mãe dos negros e dos brancos. V. Excia. e d. Scila Médici, num
gesto emocionante, consolidaram a Abolição no coração de todos os brasileiros presentes”.205

Vê-se que este evento – similar a outros deste tipo – teve forte conotação de demonstração
de força do regime militar, com a presença do alto comando das forças armadas, dos órgãos de
segurança nacional e do governo do estado. A notícia explorava o apoio popular que teria sido dado
ao presidente Médici, “mandatário e depositário” da “Revolução de 31 de Março”, portanto, apoio
ao regime e à sua política. O discurso de Frederico Penteado Jr repetia temas caros, presente nos
discursos do período militar, como, por exemplo, a constante referência à integração de todos os
brasileiros. Parece ter sido palavra de ordem, em vários âmbitos governativos expressando políticas
de “desenvolvimentismo”, integração do território nacional e uma preocupação em controlar
qualquer movimento que “cheirasse à anomia social”. Parece óbvio que qualquer grupo que esteja

204
O povo junto de Médici na data da Abolição. Folha de São Paulo, 14 de maio de 1972, Primeiro Caderno, p. 3.
205
Idem, op. cit.

132
no poder, mesmo sob a força bélica, deseje manter-se nele, e, para isso, precise buscar certo apoio
junto às massas populares. Os negros e sua cultura haviam sido identificados historicamente pelas
elites, como forças antagônicas à ordem e ao “bem comum”; porém, naquele momento, o discurso
de Penteado Jr indicaria que o Exército Nacional fôra o baluarte da “emancipação” e, assim,
transformou-os em elementos participantes e integradores da ordem político-social. A idealização
emotiva das relações sociais, étnicas e religiosas funcionaria como “boa propaganda” do regime. O
discurso ideológico da “revolução democrática” convencia na força da representação pública ali
presente. Nada mais “emocionante” e mais apaziguador dos conflitos da realidade étnico-racial
brasileira que a figura da Mãe Preta. Religiosos afro-brasileiros se fizeram presentes no evento.
Vestidos ritualmente, alguns levaram flores, outros fizeram a lavagem ritual nas escadarias da
Igreja.206
Tal idealização de apaziguamento dos conflitos sociais e o discurso da integração étnico-
racial parece terem sido expressos melhor, em São Paulo, através das federações de Umbanda e
Candomblé em suas manifestações públicas. Se, por um lado, os diferentes governos militares
souberam buscar apoio entre as religiões afro-brasileiras, estas, por seu lado, souberam utilizar em
seu benefício o que lhes pudesse ser oferecido. Max Weber, afirmava que
As religiões que sustentaram uma ética da salvação fraternalmente coerente sofreram uma
tensão igualmente aguda em relação às ordens políticas do mundo. Este problema não existiu
para a religiosidade mágica ou para a religião das divindades funcionais. O antigo deus da
guerra bem como o deus que garantia a ordem legal, eram divindades funcionais que
protegiam os valores indubitáveis da rotina cotidiana. Os deuses da localidade, tribo e Estado
interessavam-se apenas pelas suas respectivas associações. Tinham de lutar contra outros
deuses como eles mesmos, tal como suas comunidades lutavam, e tinham de provar seus
poderes divinos nessa luta mesma. O problema só surgiu quando essas barreiras de
localidade, tribo e Estado foram esmagadas pelas religiões universalistas, por uma religião
com um Deus unificado de todo o mundo. E o problema só surgiu com todo o vigor quando
este Deus era um Deus de “amor”. O problema das tensões com a ordem política surgiu para
as religiões redentoras com a exigência básica da fraternidade. E na política, como na
economia, quanto mais racional se tornava a ordem política, tanto mais agudos os problemas
dessas tensões se tornavam.207

Adaptando-se esta análise às condições históricas das religiões afro-brasileiras, segundo


alguns pesquisadores, estas teriam passado por uma “universalização” de discursos que englobaria a
abertura à participação das diferentes etnias e o início da elaboração de um discurso de “salvação”
em que as oposições bem e mal fossem destacadas.208 A ética das religiões africanas e afro-
brasileiras é expressa nas relações de coletividade do grupo entre si e com suas divindades (orixás
ou entidades antepassados). Ainda fortemente representadas e vividas como relações de parentesco

206
Idem, op. cit.
207
Max WEBER. Ensaios de Sociologia. Rejeições Religiosas do Mundo e Suas Direções, p. 232-233.
208
Ver de Reginaldo PRANDI, Os Candomblés de São Paulo (1991). E também Rita AMARAL. Xirê! O modo de
crer e de viver no Candomblé (2005).

133
familiar e espiritual. A intensificação da participação de não-negros nos diferentes cultos é indicada
nas fontes históricas e remetem ao início da colonização, sendo, no entanto, intensificada no século
XX. Porém, foi através da experiência histórica da Umbanda, na elaboração de sua mitologia e
ritualística que se abriu, no seu “branqueamento”209, a brecha de mudanças nas relações éticas
tradicionalmente vinculadas aos cultos de maior tradição africana. Mais “adequada” ao ambiente
urbano capitalista, a Umbanda tendeu a privilegiar relações diferentes daquelas da tradição negra. A
iniciação umbandista, por exemplo, a partir da década de 1970, foi muito criticada por sacerdotes do
Candomblé, por não seguirem as regras de resguardo e rituais de origem africana. É, às vezes,
reconhecida, através da militância e cursos realizados nas federações de culto. Caso, utilizando-se
de Weber, pode-se pensar que surgem problemas de convívio quando as “barreiras de localidade,
tribo e Estado foram esmagadas”, no que diz respeito às religiões afro-brasileiras em São Paulo. A
presença explícita do jogo político partidário entre os seus e do discurso integracionista
(codificação, união etc) disfarçaria e, por outro lado, apontaria os conflitos existentes entre elas e
com o meio social.
A tomada de posição do Jornal Aruanda, no ano eleitoral de 1976, a favor dos candidatos do
partido ARENA, apresentou-se nas homenagens aos seus políticos, em que faziam alusão às obras
de urbanização nos bairros periféricos de São Paulo, indicando uma boa relação entre chefes de
terreiros e agentes das subprefeituras. No número 14 de outubro de 1976, foram apresentados aos
leitores do jornal dois candidatos negros e suas qualificações. Eduardo Joaquim de Oliveira e
Emiliano de Oliveira, como representantes da “comunidade negra”, expressariam a integração e a
democracia do partido. Entende-se, através de suas qualificações, que estes estariam aptos a atender
às demandas das religiões afro-brasileiras.

209
Processo este, segundo Wilson do Nascimento BARBOSA, que teria se dado entre 1960-1990. “A Umbanda desta
última fase encontrou-se cada vez menos negra, no sentido africano do termo, embora recorresse à cultura dravidi como
elemento formal, importando traços e formas rituais da Índia para mascarar práticas afro-brasileiras e kardecistas. A
estrutura dos rituais viu-se, assim, bastante modificada. Os curandeiros e profetas quase desapareceram, com suas
adivinhações, mensagens e farmácia tradicional. A prática dos passes permaneceu, com os banhos-de-erva e as
fórmulas das rezadeiras. A profunda concentração e intelectualização dos chefes-de-terreiro que caracterizavam os
métodos indutivos bantu viriam a se rarificar nesta fase. Tal se deu com o gradual desaparecimento da etnocultura negra
e a prevalência do médium no lugar do mamudongo e do cambono no lugar do inhaúti. O terreiro continuou uma área
intermédia onde se encontram forças adversas, mas existe um sentido próprio na sessão para deixar lá fora as entidades
insondáveis. A função impregnativa subsiste, embora enfraquecida. Continua-se ali a praticar diferentes graus de
hipnose, inclusive a autohipnose. As entidades espirituais são todas de outro mundo, eliminando-se as diferenças para
aqueles três mundos. Não é tão evidente a portação de poderes sobrenaturais ou mágicos, não se ouvindo o discurso ou
a afirmação entre as entidades presentes do antepassado incorporado. A farmacopéia adotada revela-se mais funcional
que impregnativa. Ocorre ali, como antes, uma reconstituição de integridades psíquicas, embora as identidades culturais
atuais não sejam explicitamente afrobrasileiras”. In BARBOSA, Wilson do Nascimento. Da N’bandla à Umbanda, p.
12.

134
Respectivamente tem-se a homenagem ao presidente Geisel, ao governador Paulo Egídio e ao prefeito Olavo Setúbal
Aruanda. Ano I, nº 11, 12, 13 São Paulo, julho-agosto-setembro de 1976 /

Aruanda. Ano I, nº 14, São Paulo, outubro de 1976

Já na década de 1980, ao aproximar-se a abertura política e o fim do regime militar, a


“excessiva” associação entre os cultos afro-brasileiros e a política passou a ser questionada e
criticada por religiosos e por cientistas sociais.210 A Festa de São Jorge-Ogum teria sofrido, por sua
vez, as maiores críticas da imprensa, agora mais “corajosa” nas análises políticas. Essas pareceram
englobar o impacto do Movimento Negro Unificado que teve sua articulação acentuada, com vários
destaques para suas lutas, nesses primeiros anos da década.211 Em texto de Miguel de Almeida, a
festa de Ogum em 1983, foi descrita pela Folha de São Paulo como “uma comemoração”, “escolar
com gostinho de festa”. As arquibancadas do ginásio estariam esvaziadas em comparação aos anos
anteriores. Contava com a presença do então vice-governador Orestes Quércia. Este, segundo o
texto, “parecia pouco entusiasmado com a comemoração”, fazia “questão de se confundir em meio

210
Umbandistas contestam uso político da religião. Folha de São Paulo, domingo, 9 de janeiro de 1983, Local, 3º
Caderno, p. 24. Noticia-se o debate sobre o filme “Umbanda” do antropólogo Peter Fry, no auditório da Folha. Nele a
Umbanda é posta como uma questão cultural; presenças de Jamil Rachid, Lísias Negrão e público diverso de outras
religiões. Indica a exportação da religião para a América Latina e a necessidade de se cobrir o espaço falho na mídia,
que noticiaria somente as festas e grandes eventos da religião.
211
A Folha de São Paulo divulgou ações do movimento negro e foi anualmente entrevistando intelectuais negros,
militantes e pesquisadores que passavam a fazer as críticas mais fortes ao sistema capitalista e ao racismo no Brasil.

135
às pessoas, rareando seus cumprimentos à turba”. A notícia ironizava a relação da União das Tendas
com o governo Montoro e o ex-governador Paulo Maluf. 212 Afirmava-se que, São Jorge-Ogum teria
sido usado “como cavalo-de-batalha para conseguir votos ao PDS”. Sobre a relação política com
Paulo Maluf dizia o jornalista,
Ele deu ônibus da CMTC às pampas para que fossem trazidos os fiéis dos terreiros. Neste
ano a União teve que se contentar com os ônibus também da CMTC oferecidos pelo
deputado federal Samir Achoa, do PMDB. Sai Maluf, entra Achoa... Assim, fica explicado
como conseguiu tantos votos. Basta usar a mesma técnica do clientelismo, agora pelo partido
da oposição... (...) A esperada homenagem ao Exército brasileiro, anunciada pelos
organizadores, não aconteceu, nem foi explicada a razão da desistência. O motivo era São
Jorge (sim, ele...), padroeiro da Cavalaria. Esteve presente, porém, somente a Policia Militar,
representada pela sua banda.213

Ficava indicado no discurso do jornalista que, independentemente do partido, ou das


diferenças ideológicas, o apoio logístico ofertado aos terreiros para a organização de sua festa
devia-se, tão somente, aos interesses eleitoreiros dos diferentes políticos. Incorpora também um
discurso crítico à Umbanda e à sua articulação política, considerada “clientelista”. Com a Lei de
Anistia de 1979 e o fim do bipartidarismo, políticos antes vinculados à Arena de São Paulo – como
Samir Achoa – migraram para outros partidos nascentes naquele momento. A crítica do jornalista
encaminha-se, ao final, à composição étnica dos fiéis presentes. Ficava implícito que, a “pouca
presença de negros”, “chamava atenção”, como também a presença de outras etnias (japoneses e
árabes).
(...) A quem frequenta terreiros, de Umbanda ou Candomblé, algo chamava atenção. A pouca
presença de negros. Na percussão, aos atabaques e agogôs, apenas brancos – e razoavelmente
afinados, diga-se. Mesmo nas arquibancadas poucos negros. Havia também muitos japoneses
e árabes. (...) O altar montado para receber a imagem de São Jorge (Ogum) era palco de
verdadeira antropofagia. O santo estava guardado por dois dragões da Cavalaria bem sérios.
Mais à frente, quatro índios, todos pintados, de “sainha” e cocares, com um baita frio, porque
ventava nos ossos dentro do ginásio do Ibirapuera.214

É interessante perceber que, com o aumento da bibliografia sobre as religiões afro-


brasileiras e, em especial, sobre a Umbanda, esta recebeu toda uma dose de análises críticas neste
período (fins dos 1970 e início dos anos 1980) em que o “sincretismo” foi visto somente em seu
viés “negativo”, expressão da “mentalidade escrava” e deturpação da tradição africana. Com a força
de discurso do movimento negro e a intensificação da africanização e do movimento anti-
sincretismo na Bahia, aquela identificação da Umbanda como religião nacional integradora das
diferenças, passou a ser amaldiçoada como a cúmplice do regime militar, cooptadora da ideologia
racista. Aparentemente, em tempos de afirmação étnica, a “antropofagia” (democracia racial) em

212
Menos gente e mais política na festa de São Jorge. Folha de São Paulo, segunda-feira, 25 de abril de 1983, Local, p.
7.
213
Idem, op. cit., p. 7.
214
Menos gente e mais política na festa de São Jorge. Op.cit., p. 7.

136
São Paulo, perdeu seu status de teoria explicativa da realidade social, para a intelectualidade
paulista.
Tenta-se aqui, evitar juízos de valor em torno das escolhas políticas que o movimento
federativo, principalmente o da Umbanda, fizeram no período analisado. Em que pese o
pragmatismo de suas lideranças, não foram somente as instituições religiosas afro-brasileiras as
“únicas defensoras” do apaziguamento racial, social e político. As religiões em si, são
conservadoras, - em termos durkheimianos representam os “reflexos das estruturas da sociedade” –
e, salvo exceções de pouquíssimos movimentos, no Brasil, todo discurso e ideologia religiosa
procuraram no período de transição da Ditadura Militar (1979-1985) criar consensos contra o perigo
das rupturas revolucionárias violentas, ou melhor, contra o “perigo” de mudanças profundas na
estrutura político-econômica e social.
Em entrevista, o babalorixá Dalmo Ribas comentava sobre a relação entre sua militância
política de esquerda e sua filiação religiosa à Umbanda. Seus primeiros contatos com a religião
deram-se no final dos anos setenta em Embu-Guaçu.
É muito maluco essas confluências todas; aonde eu fui encontrar o terreiro da Mãe Clara [sua
primeira ialorixá] era um lugar estratégico para o partido em função da guerrilha; tinha duas
guerrilhas... O PC do B tinha preparado a guerrilha lá no Araguaia, onde meu irmão
participou [Antonio Guilherme Ribas], morrendo em combate, e tinha aqui pro lado do Vale
do Ribeira que era aonde eu participava. Eu fazia parte da “quinta tarefa” então, a chamada
“quinta tarefa” eram as tarefas militares. Quem compra um sitio e vai morar nele é um
jornalista chamado Armando Gimenez que se definia como um ateu, mas que gostava muito
de Umbanda. Tem entrevistas na época que são divulgadas, recortes que são divulgados
defendendo a Umbanda pelo jornal Diário da Noite, um dos diários associados, onde ele é o
redator chefe. Então, naquele cantinho lá do Cipó era onde a gente no sitio fazia treinamento
militar. 215

As relações entre Armando Gimenez, o prefeito Antônio Carlos Cravo Roxo e a mãe-de-
santo Clara Marques Guimarães, instigaram o interesse de Ribas em ficar no Embu-Guaçu e
conhecer melhor a Umbanda. Em um bairro popular, “semi-rural”, o terreiro de Mãe Clara atendia à
população de trabalhadores e servia de espaço para ajuda mútua entre seus membros. Mãe Clara era
empregada doméstica, “filha de Xangô e Iansã”. Por conta das necessidades de seu terreiro, havia
aberto uma loja para venda de produtos para o culto. Porém, segundo Ribas, “não teria enriquecido,
ou se afastado do povo. Pelo contrário, ela era sempre muito atenta e se mobilizava para ajudar as
pessoas, para arranjar emprego para um, casa para o outro, havia todo um aparato de atendimento
social que normalmente não existe por si”. Essa experiência teria marcado o militante Dalmo. Ele
analisava essa vivência a partir da imbricação entre a militância política, a psicologia e a religião.
Parte de seu processo pessoal de tomada de consciência. Dizia ele que,

215
Entrevista com Dalmo Ribas, op. cit.

137
À época em que eu tinha uma proposta política tão avançada, eu e o grupo do qual fazia
parte, era muito pouco ouvido. Então, de repente aparece a religião como uma fenda, uma
fissura através da qual você podia penetrar e chegar próximo do povo. Não com o intuito de
doutriná-lo, conscientizá-lo com aquele propósito que havia enquanto militante político. Mas,
no sentido de me integrar à cultura, à realidade do povo de uma maneira mais efetiva, poder
participar e contribuir dessa formação civilizatória de uma nação brasileira.216

A valorização da experiência popular para o conhecimento da realidade brasileira fazia parte


das práticas militantes de esquerda, políticas ou culturais. As Comunidades Eclesiais de Base
(CEBs) da Igreja Católica, nos anos 1970 e 1980, aproximavam-se desta perspectiva. E, nesse
sentido, tal como os Terreiros, funcionavam como espaços de trocas e solidariedade. Por outro lado,
diferente das CEBs, os Terreiros sofreram de uma perseguição sistemática. Para Ribas, esta vai até
o início da oposição ao regime militar feita por alguns bispos católicos. Juntamente a outras
lideranças religiosas, D. Paulo Evaristo Arns e alguns de seus bispos auxiliares, articulavam-se ao
movimento da Anistia, nesse período. O afastamento político da hierarquia católica em São Paulo
teria, segundo ele, aproximado os militares da Umbanda. Contava que,
(...) [A perseguição aos terreiros foi] Até os militares, quando a Igreja Católica, através da
Teologia de Libertação rompe, com a prisão de Frei Tito, Frei Betto, aquele massacre todo, e
ela muda de posição... A Igreja não, D. Angélico Sândalo, D. Paulo Evaristo Arns. D. Paulo,
essa figura maravilhosa. Mas ele nunca foi da Teologia de Libertação, ele sempre foi de
vanguarda, mas assim, o sonho de D. Paulo era pacificar todo mundo. (...) Eu o conheci no
movimento da Anistia; eu estava com uma comissão do ICBA e aí nós estávamos discutindo
esse negócio e tal, e a realização de um culto ecumênico que juntava representantes da Igreja
Metodista, do Reverendo Jaime Wright, a Monja Coen, esse pessoal luterano também aqui de
São Paulo que se articulava ecumenicamente e dava apoio a Igreja Católica pra realização...
Para pedir anistia. Num dado momento, D. Paulo volta-se assim pra um grupo restrito,
éramos umas 12 pessoas conversando, mas quando estava um petit comitê dentro do petit
comitê ele coloca que: “olha por mim esse culto juntava todo mundo, vencidos e vencedores,
militares e contestadores do regime e pacificava a família brasileira”. Proposta de D. Paulo.
(...) A Igreja Católica se afasta e eles [os militares] buscando uma legitimação popular se
aproximam da Umbanda. E, vem daí certo, certa deferência, cortesia em relação ao
movimento umbandista. Então, começa o general que está ligado à formação, em 1957,
General Braga Moreira, que na verdade era coronel e quando entra pra reforma vira general,
então, o general Braga Moreira se junta com um pessoal do Rio de Janeiro e forma a União
de Tendas de Umbanda, o que veio a ser a União de Tendas de Umbanda e Candomblé do
Brasil. (...) 217

Como visto, a articulação política entre movimento umbandista e militares expressou certas
“cortesias”, o que não significou reais interesses na criação de políticas públicas específicas para
resolver os problemas das religiões afro-brasileiras. Tirando, talvez, as portarias promulgadas em
todo o país que liberavam os toques da proibição policial, o vínculo com as federações implicou a
manutenção de um controle burocrático e político na relação entre os terreiros e os órgãos de
segurança pública. Assim, compreende-se porque que, a partir da abertura política, com a
redemocratização e a explosão da crise econômica (inflação e desemprego), as federações tiveram

216
Entrevista com Dalmo Ribas, op. cit.
217
Entrevista com Dalmo Ribas, op. cit.

138
dificuldade de manter aquelas atividades que dependiam mais de apoio público – jornais, maior
apoio logístico aos grandes eventos, redes de auxílio médico, dentário e jurídico etc. Tal mudança
no cenário político levou os terreiros e federações a se voltarem para suas questões internas e/ou
articularem-se às demandas do movimento negro, que se fortificou nesse período.
No final da década de 1980, o Movimento Negro em São Paulo havia conquistado uma data
comemorativa que representava a luta contra a ideologia da democracia racial. O 13 de maio, data
da Abolição, foi considerado como não representativo das demandas e da realidade social da
população negra brasileira. O mito da abolição como momento de integração total dos negros à
sociedade brasileira, foi desmontado. Desde 1977, o movimento negro começou a celebração do 20
de novembro como o Dia da Consciência Negra (data do assassinato de Zumbi dos Palmares em
1695). Sua articulação foi no sentido de diferenciar as lutas conscientes do negro brasileiro por
justiça social, igualdade de oportunidades. Pela criminalização do racismo e o resgate da memória
histórica da presença dos afro-descendentes no país. Teria havido, portanto, uma aproximação ainda
que tímida, entre os terreiros de Candomblé e Umbanda e o movimento negro em São Paulo,
através da participação nas comemorações do 20 de novembro. Em 1987, a Folha noticiou a
celebração na Praça da Sé, no centro de São Paulo. Segundo a nota, “as apresentações de Maracatu,
Candomblé, Capoeira, Reaggae e muito Pagode animaram a festa, que reuniu cerca de sete mil
pessoas” para a comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra. Informou ainda que o evento
era promovido pelo Movimento Negro Unificado. No final do texto dizia: “Ontem, estiveram
presentes na Sé líderes religiosos de várias igrejas e cultos, inclusive o cardeal-arcebispo de São
Paulo, dom Paulo Evaristo Arns. Para Mãe Sylvia de Oxalá, do Candomblé, faltou divulgação do
evento porque o preconceito contra a cultura negra ainda existia. “O negro só mudou da senzala
para a favela”, dizia ela”.218
A diferença entre este evento e aquele de 1972 no Largo do Paissandú expressaria as
transformações do discurso político a respeito do negro no Brasil, o papel do protagonismo da
militância negra e o entendimento de um novo discurso político que as religiões afro-brasileiras
teriam assumido. O intelectual Abdias do Nascimento, um dos nomes mais emblemáticos deste
movimento, em entrevista à Folha de São Paulo em 1978, expressava claramente a mudança de
postura do negro, em relação à luta de classes e em relação à sua própria história e religião,

(...) “Minha situação nesse depoimento é paradoxal, pois não sou um opositor simplesmente
do governo instalado em 64, pois todos os governos que o Brasil já teve foram contra o
negro. De fato as tendências políticas discriminaram, direta e sutilmente, o negro no Brasil.
Os liberais paternalizaram à distância. A direita é abertamente racista. A esquerda é cega,

218
Negros de SP comemoram Dia da Consciência. Folha de São Paulo, segunda-feira, 21 de novembro de 1987,
Cidades C-3.

139
surda e muda no que se refere aos problemas específicos do negro e despreza sua tradição
cultural. Em relação ao problema do negro, essas correntes políticas tão distintas se
combinam e se complementam no esforço de destruir as raízes africanas e moldar o negro e
sua cultura segundo os padrões da cultura européia”. (...) 219

A exemplo de Nascimento, outros intelectuais do movimento negro levantaram uma voz


própria sobre a situação sócio-econômica e política da população negra brasileira. Esta ajudou a
marcar, naquele momento, um posicionamento e uma leitura diferenciada que os religiosos afro-
brasileiros também fariam sobre si mesmos nas décadas seguintes. Cada vez mais, entendeu-se que
as perseguições sofridas pelas religiões negras representavam todo o contexto histórico do racismo
à brasileira. Para alguns, nas próximas décadas, as dificuldades de união entre as linhas de culto, as
diferenças ritualísticas e a concorrência entre terreiros e tendas perderia importância perto da
necessidade de conseguir a definição e aplicação de políticas públicas e de finalmente, conseguir
uma legítima representação política.
Estava posto, por outro lado, as diferenças teológicas e ontológicas entre as religiões
africanas e as judaico-cristãs. Pelo menos, no final dos anos setenta, fôra importante demarcar tais
diferenças. Estudos comparados poderiam indicar suas proximidades, atualmente. No entanto,
Abdias do Nascimento procurou marcar tais diferenciações, como reforço de valorização de uma
epistemologia própria afronegra. Eis,
(...) Tenhamos em conta que as religiões de origem européia só cultuam, de modo geral,
deuses mortos. Religião africana é diferente. Os orixás (divindades) descem de suas moradas
celestes para ganhar corpo humano: eles dançam, bebem, comem. Pura vitalidade, o
candomblé não é o “ópio do povo”. Seus deuses são dinâmicos, incorporam um profundo
sentido de libertação. São divindades históricas, envolvidas na dinâmica libertadora do negro.
Em minha pintura procuro distinguir entre os símbolos e mitos, que só existem como
tradição, e aqueles que preenchem necessidades do nosso tempo, podendo abrir uma
perspectiva no futuro. Não advogo que simplesmente lembremos nosso passado. Meus orixás
não estão imobilizados no tempo e no espaço. São forças do presente. Emergem na vida
diária e em assuntos seculares. Os orixás recebem nomes de pessoas vivas, assumem a defesa
dos heróis e mártires que ainda hoje são oferecidos pela raça negra como sacrifício na busca
da liberdade.220

A afirmação da vitalidade da religião africana, contraposta às religiões europeias


funcionavam como respostas às perspectivas folclóricas em voga, e uma cutucada na esquerda
“cega” aos problemas do negro. Como “divindades históricas”, presentes na “dinâmica libertadora
do negro”, Abdias do Nascimento colocava as religiões afro-brasileiras, ou melhor, a “religião dos
orixás”, como parte do processo histórico de lutas contra o racismo e a favor da “liberdade”. Por
ela, “heróis e mártires” seriam “oferecidos” como “sacrifício”. Percebe-se uma proximidade de
termos no discurso, daqueles utilizados pelos militantes católicos da Teologia da Libertação. Essa
semelhança parece indicar uma identidade de discurso ampliada, mesmo que com impacto reduzido,

219
As lutas do negro Abdias. Folha de São Paulo, 25 de junho de 1978, Folhetim, pp. 11-12. Texto de Mirna Grzich.
220
As lutas do negro Abdias, op. cit.

140
dos movimentos de luta contra a Ditadura militar naquela década. A “liberdade” para os afro-
brasileiros remeteria, porém, concretamente, à oposição das condições históricas da escravidão e
das perseguições do período pós-abolição. Sugeriria, também, a fortificação de uma ideologia
religiosa afro-brasileira refletida estrategicamente como elemento de luta política. Para isso, seria
importante retirar a “imobilidade” das interpretações antropológicas sobre os orixás e incluí-los
como “forças históricas do presente”.

Uma interpretação histórica das religiões afro-brasileiras em São Paulo: 1970-1980


Viu-se que, em São Paulo, entre 1900 e 1930, o Cangerê (“macumba paulista”) existiu com
características de um culto rural, presente na capital e nos núcleos urbanos no interior, com forte
presença da comunidade negra. De substrato bantu, sincretizado com o catolicismo e a pajelança
indígena, caracterizava-se pelo transe ritual com consulta às entidades (Orixás e Caboclos) e
práticas de cura. Comporia para a população pobre “os domínios de Enxú” – local onde se buscava
as curas dos males do corpo e do espírito. Foi brutalmente perseguido e teria recebido as críticas da
intelectualidade como um “culto degradado”. Quando da chegada da Umbanda vinda do Rio de
Janeiro, entre 1930 e 1940, esta era identificada como “baixo espiritismo”, portanto, também uma
aberração do “sincretismo fetichista” presente nas “camadas inferiores”. Para os analistas externos
(intelectuais e inimigos vários das religiões afro-brasileiras), seria mais um ritual, igual à Macumba,
Candomblé e Catimbó e sofreria junto com o Cangerê a perseguição organizada.
A partir da década de 1950 no contexto das políticas desenvolvimentistas e da organização
dos movimentos sociais de base, a Umbanda em São Paulo começou a se organizar em federações
de culto de forma mais sistemática, sob forte campanha contrária do Espiritismo Kardecista e da
Igreja Católica. Com o crescimento de sua filiação religiosa e de sua articulação política, passaria a
ser o culto afro-brasileiro predominante em São Paulo até as décadas de 1960 e 1970. Naquele
momento, os terreiros de Candomblé de raízes baianas e pernambucanas expandiram-se e
relacionaram-se em federações mistas com a Umbanda e o Espiritismo kardecista. Esta maior
interação entre as chamadas linhas de culto preocuparam as lideranças que passaram a buscar
definições e distinções mais claras entre elas. A Umbanda buscou nesse momento uma
padronização de seus rituais, principalmente daqueles identificados com os ritos de passagem:
batismo, casamento e funeral, e que cumpriam funções consideradas essenciais para a sua validade
como “verdadeira religião”, autônoma. No âmbito das definições, a Umbanda foi incorporando
elementos do orientalismo místico ou hermético, compondo outro sincretismo esotérico – mais
próximo da magia européia do que da africana. O Candomblé, por sua vez, teria iniciado seu
processo de reafricanização, intensificado na década de 1980, com a depuração de elementos do

141
sincretismo com o católico. A demarcação das diferenças entre as “nações”, ao mesmo tempo em
que mantinha uma rede de filiação religiosa com a Bahia, buscava também filiações independentes
com iniciação direta da África. A ritualística, liturgia e processo de iniciação foram adaptados para
adequar-se à realidade urbana de São Paulo.
O problema central, neste capítulo, dizia respeito à evolução das religiões afro-brasileiras em
São Paulo, nos anos 1970 e 1980. Quais foram e como lidaram com os problemas e conflitos em
torno da organização e estruturação dos cultos no novo contexto. Nesse caso, buscou-se o
entendimento desse processo tendo em vista a histórica repressão político-policial da primeira
metade do século XX, na base da modernização capitalista. Esta se transformou em repressão
político-ideológica, na segunda metade do século, na base da influência dos militares nas
federações de culto e das negociações com os poderes públicos e políticos partidários.
A resposta mais perceptível, destacada e analisada, nas fontes históricas, foi a da busca pela
organização em associações civis, que pudessem suplantar diferenças rituais a favor da negociação
com aqueles poderes para sua manutenção em longo prazo. Historicamente, as associações negras
precisaram lidar com o apadrinhamento e o controle social exercido por brancos para garantir seu
estabelecimento. Aqui, não se está considerando a composição étnica desses grupos, para o período
contemporâneo. Independentemente, de se ter mais negros ou brancos em uma determinada religião
afro-brasileira, tem-se a auto-identificação da herança africana e da culturalidade negra como eixo
central, organizativo e de identidade (comportamento, práticas e valores) que a marcam como
“negra” ou “africana”, para si mesma e para a sociedade. Ser, portanto, uma “associação negra” ou
de religião afro-brasileira, no período destacado, geraria conflitos com o entorno e a busca por
soluções que deveriam, necessariamente, ser garantidas pelo poder público. Tal necessidade teria
sido aproveitada pelos governos militares, para fortificação de suas bases de apoio populares.
Obviamente, nem todas as lideranças e grupos manteram uma ideologia política totalmente
vinculada a esses governos. A realidade específica do negro e de sua cultura em São Paulo era mais
complexa, com problemas mais profundos e estruturais, enfrentados cotidianamente nas periferias.
Assim, ao somarem-se as lutas contra a repressão política, a abertura democrática e as
mudanças sócio-econômicas, outro movimento surge entre as religiões afro-brasileiras, o da
revalorização e da afirmação da culturalidade negra e africana. Esta ocorria, naquelas décadas, no
Brasil e no mundo. As lutas de independência em África e todos os movimentos anti-racistas
permitiram o maior interesse pela cultura negra (principalmente, pelas classes médias urbanas) e o
aumento de estudos interdisciplinares sobre ela, com uma melhor articulação das demandas sociais
e culturais. As comunidades-terreiros tornaram-se foco de interesse de diferentes pesquisadores, que
elaboraram modelos teóricos explicativos para os diferentes cultos. Os discursos dos chefes de

142
terreiro e sua elaboração teórico-explicativa foram mais considerados na análise dos pesquisadores.
Esses sujeitos elaboraram explicações sobre suas religiões que incorporaram novidades de
mitologia e rituais. Seria o que alguns chamariam de o início da “virada” nas relações étnico-raciais
no país; da transformação do negro de “objeto folclórico” a “sujeito histórico” ou “sujeito de sua
própria história”. Toda uma releitura da historiografia, dos símbolos, mitos e emblemas da religião
e das artes negras deu-se a partir da ótica da experiência e da visão de mundo (cosmovisão)
afronegra. A atuação propositiva das lideranças religiosas teria sido no sentido de proteger as casas
de culto, defender um lugar social e afirmar o valor intrínseco de sua cultura e religião. Pensadas
como “forças do presente”, as mitologias afro-brasileiras, passaram a ser depositárias de uma
tradição de lutas históricas no Brasil e no mundo, em que o protagonismo negro foi destacado. Isso
tem uma importância central, para a compreensão dessas duas décadas.
Os conflitos resultantes do encaminhamento das lutas pela garantia de fixação do lugar
social do negro, na sociedade capitalista paulistana, trouxeram à tona as práticas e o discurso racista
das elites católicas, e sua articulação em políticas “higienizadoras”. Para os membros das religiões
afro-brasileiras, todo o sofrimento da primeira metade do século (devassas, prisões, etc), parecia
diluído no momento da expansão das religiões, nos anos 1960, 1970 e 1980. Porém, não esquecido.
Mesmo com a abertura democrática, a luta pelos direitos da população negra e de sua religião
prolongou-se no tempo, sem terem alcançado um patamar de melhorias consideráveis.
Internamente, as necessidades de adaptação dos cultos às condições da repressão e da
modernização capitalista intensificaram as transformações rituais que vinham ocorrendo no início
do XX, influenciando as designações e auto-identificações das religiões afro-brasileiras. Estas
foram aprofundadas na década de 1990. Deram-se primeiro, entre o Cangerê e a Umbanda,
intensificadas pós-anos 1950, no fluxo da migração nordeste-sudeste dos sacerdotes do Candomblé.
São Paulo apareceu como lugar ideal para frutificar um espaço-religioso afro-brasileiro nas
periferias urbanas. Nos diferentes terreiros, de diferentes tradições, viveram-se mais
acentuadamente os conflitos e a concorrência – primeiro entre o “Cangerê” e o Espiritismo
Kardecista (1900-1930), depois entre este último e a Umbanda (Anos 1940 e 1960), posteriormente,
entre esta e as nações de Candomblé Angola e Keto (Anos 1970 e 1980). A rede de filiação
reforçada neste último período entre Bahia, Rio de Janeiro e São Paulo teria procurado criar
condições favoráveis ao enquadramento e institucionalização dos terreiros via Federações. O
Candomblé “de nação” e a Umbanda dividiram entre si a massa dos fiéis e clientes, mantendo
relações de filiação e de articulação política.
Levando em consideração as contradições entre os discursos e as práticas, entre as
argumentações políticas e as necessidades reais no cotidiano das comunidades-terreiros, toda a

143
discussão interna à religião, nesse período, ainda necessitou lidar com a continuidade da repressão
policial (disfarçada em “manutenção da ordem”) e a “demonização”, via concorrência evangélica
das igrejas que surgiram em meados dos anos 1970. No próximo capítulo procurar-se-á identificar
as possíveis soluções aplicadas pelo povo-de-santo em São Paulo para lidar com tais problemas.
Sabe-se que a movimentação da população negra e seus descendentes no país foi constante e
que as trocas materiais e simbólicas entre os grupos e etnias do Nordeste e do Sudeste deram-se
tanto no período colonial, como na república. O aumento do empobrecimento e da imiserização dos
negros, devido ao racismo discriminatório para os postos de trabalho e o impedimento do acesso à
terra, à educação etc, além dos processos de urbanização e industrialização, intensificou
consideravelmente tal fluxo populacional. As diferenças de desenvolvimento regional marcaram o
sentido Nordeste-Sudeste, muito mais do que seu inverso. A necessidade de sair à busca do
sustento, de um lugar para fixar suas raízes (familiares e espirituais) gerou instabilidade material e
psíquica para as famílias negras. Estar desterrado em seu próprio país, ou ser rotulado
pejorativamente de migrante, “nordestino”, “baiano” criava e reforçava o racismo, ao mesmo tempo
em que impedia a fortificação de um contingente da população com potencial contestatório da
“ordem capitalista”. Porém, e dentro dessas condições desfavoráveis, as lideranças afro-brasileiras
conseguiram fixar rotas de iniciação e filiação, na prestação de serviços mágico-religiosos e no
atendimento às necessidades do povo-de-santo e, especialmente, dos pobres.
Se no Sudeste, a diversificação dos cultos durante a segunda metade do século XX
contribuiu na expansão das religiões afro-brasileiras, comparativamente ver-se-á que, no Nordeste,
em Maceió, no mesmo período, a predominância da Umbanda (culto traçado), chegada ali no final
da década de quarenta e início de cinquenta, enfrentou também problemas de expansão. Tentou
adaptar-se à criação e à fiscalização das Federações de culto. Estas buscaram afirmar sua
legitimidade via vinculação com os órgãos superiores nacionais do Sudeste, especialmente, os do
Rio de Janeiro. Será que a repressão sofrida por aquela religião, na primeira metade do século XX,
teria permitido uma desvalorização das próprias “raízes do axé” local? Para os terreiros em São
Paulo, até os anos 1980, as raízes do axé encontravam-se no Nordeste. Nas duas últimas décadas,
porém, essas referências estariam em África e/ou já poderiam ser identificadas dentro do próprio
Estado.
A análise histórica das duas décadas aqui expostas apresentou, por fim, que muitas das
dificuldades vivenciadas pelas religiões afro-brasileiras podem ser vistas como parte do conflito
entre as ideologias religiosas em São Paulo, articulados aos problemas étnico-raciais, políticos e
sociais do país. Expressaram-se na luta pelo espaço social e reconhecimento das religiões afro-
brasileiras como realidades religiosas em si mesmas. Pensa-se que a resistência das elites (católicas

144
e outras) em aceitar tal fato residia (e reside) no ódio racial, posto nos mecanismos de controle e
subalternização aplicados no período.

Tabela 3: Aspectos Históricos das Religiões Afro-Brasileiras em São Paulo (1960-1980)

Aspectos 1960 1970 1980


Contexto sócio- Crise política do desenvolvimentismo; Ditadura militar; Abertura política; início da
político-econômico Governos Jânio Quadros; João clandestinidade dos redemocratização; grave
Goulart; Golpe Militar; crise nos movimentos sociais; lutas crise econômica
movimentos sociais; repressão política antiditadura
Gerais – - organização do Candomblé distinto - valorização do candomblé - Mudanças no processo de
mudanças e da Umbanda; como religião de grande poder iniciação;
dificuldades - repressão policial; mágico-religioso em - conflitos em torno do
detrimento da Umbanda conhecimento ritual;
(ocultismo); intelectualização da
- maior interesse dos hierarquia sacerdotal
pesquisadores
Relevantes - Registro em cartório dos primeiros Aumento do número de Início do movimento de
Principais terreiros de candomblé de candomblé terreiros de candomblé; “reafricanização” via
características em São Paulo; Inter-relação ritual, relações de filiação entre ketualização dos rituais;
mítica e organizativa entre Umbanda e terreiros do Rio de Janeiro e busca de iniciações nas
Candomblé; migração de filiação entre São Paulo; forte federalização casas tradicionais baianas e
uma religião e outra por sacerdotes e da umbanda e do candomblé em África; anti-sincretismo
fiéis; Festa de Ogum e Iemanjá católico; definição de
fronteiras entre as religiões
afro-brasileiras
Rituais No candomblé primeiras famílias dos No candomblé - rito Keto; fim No candomblé rito keto e
ritos keto; predomínio da nação do predomínio do padrão angola-congo passa por
angola-congo; Umbanda preocupa-se angola-congo de culto; maior “reafricanização”; Umbanda
com a integração de seus rituais interação entre umbanda e aproxima-se mais de
(casamento, batismo e funeral) candomblé ainda preocupa religiões orientais;
lideranças que buscam “umbandomblé” é criticado
definições – é padronização e também defendido
rituais que passam a ser
realizados nas tendas –
cobrança de seguir as
definições; África é valorizada
tanto por candomblé quanto
por umbanda
Sócio-econômicos Crescimento das religiões afro- Aumenta presença militar nas Presença militar vai sendo
e Políticos brasileiras são percebidas em SP – federações (especial minimizada com o fim da
ainda religião dos mais pobres – Umbanda); auxílios ditadura no final dos 80;
interesse dos intelectuais como financeiros e políticos para os auxílios financeiros
folclore terreiros – base eleitoral; diminuem – federações têm
ampliação de um setor de dificuldade em manter
pequeno comércio voltado aos assistencialismo aos
cultos afro-brasileiros e maior membros dos terreiros;
uso dos meios de comunicação

Referências Bibliográficas do Capítulo e Fontes


(A) Fontes:
Jornal Aruanda. União das Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil, várias edições.
Acervo online Folha de São Paulo, várias edições.
Entrevitas: Pai Dalmo Ribas; Sr. José Humberto Gonçalves.

145
(B) Livros, artigos e Referências:
1. BARBOSA, Wilson do Nascimento. Recorrência Afro-religiosa e Nova Mística. Pós-
Graduação em História Social, USP, 2002. Disponível em
http://sites.google.com/site/dnbwilson Data de acesso: 21/07/2009.
2. BARBOSA, Wilson do Nascimento. Da N’bandla à Umbanda: transformações na cultura
afro-brasileira. Sankofa. Revista de História da África e de Estudos da Diáspora
Africana. Ano I nº 1, junho/2008, pp. 07-19. Disponível em
http://sites.google.com/revistasankofa Data de acesso: 21/07/2009.
3. BASTIDE, Roger. Estudos Afro-Brasileiros. São Paulo: Perspectiva, 1991.
4. CARVALHO, José Jorge de. A Tradição Mística Afro-Brasileira. Dept. de Antropologia,
Uneb, Brasília, 1998.
5. NEGRÃO, Lísias Nogueira. Entre a Cruz e a Encruzilhada. Formação do campo
umbandista em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1996.
6. RAMOS, Arthur. O Negro Brasileiro. Rio de Janeiro: Graphia, 2001.
7. PRANDI, Reginaldo. As herdeiras do Axé. São Paulo: Hucitec, 1996.
8. PRANDI, Reginaldo. Os Candomblés de São Paulo. São Paulo: Hucitec-EDUSP, 1991.
9. RIBAS, Dalmo. Sarava Ogum: a umbanda em procissão. Dissertação de Mestrado,
Programa de Ciências da Religião, PUC-SP, São Paulo, 2010.
10. SILVA, Vagner Gonçalves. Orixás na Metrópole. Petrópolis/RJ: Vozes, 1995.
11. WEBER, Max. Ensaios de Sociologia. 5ª edição. Rio de Janeiro: LTC, 2002.

146
Capítulo 4 – As Religiões Afro-Brasileiras em São Paulo: 1990-2000
“Tem morador,
De certo tem morador,
Na porta onde o galo canta,
De certo tem morador,
Lá na porteira, eu deixei a sentinela (bis)
Eu deixei Seu Tranca Rua,
Tomando conta da cancela”
Canto Ritual de Abertura – Tenda Nossa Casa (2009)

Mudanças de relação: os espaços públicos e as religiões afro-brasileiras


Foi afirmado que as religiões afro-brasileiras em São Paulo estabeleceram relações
ampliadas através da organização de suas federações de culto (anos 1950), e da busca por iniciação
nos terreiros tradicionais nordestinos (anos 1960-1970) e, posteriormente, em África, criando-se
certa “rota do sagrado”. Essa “ponte aérea” – intensificou-se nos anos 1980 e passou a reforçar os
laços de filiação religiosa e de amizade estabelecidos entre as casas do Sudeste e do Nordeste. As
casas de São Paulo, mesmo autônomas, mantiveram – em alguns casos mais em outros menos –
uma referência das práticas, rituais e da estrutura de funcionamento dos terreiros de origem, e
fortaleceram por sua vez, uma “tradição própria”, no reforço da ampliação de suas famílias-de-
santo.
Por outro lado, significou na comparação entre as regiões brasileiras, a percepção da
necessidade de mudanças para adequarem-se ao novo ambiente, dadas mais fortemente nos anos
1990 e 2000. Tal acentuação das mudanças, processadas continuamente, surge aqui como a
principal questão para o entendimento desta década, e das preocupações atuais do povo-de-santo,
em São Paulo e em outras cidades. Recorda-se que, desde a década de 1970, as religiões afro-
brasileiras iniciaram também um processo de emigração para outros países das Américas do Sul, do
Norte e da Europa. Em cada novo ambiente, a continuidade-mudança foi a chave de sobrevivência
e manutenção dos cultos e da perpetuação do axé.
Em São Paulo, como processos inter-relacionados, tais transformações expressaram-se em
relações internas e externas, por vezes conflituosas, dos terreiros entre si e com o ambiente social,
político e religioso, ideologicamente dominado pelo cristianismo. Nesse sentido, foram fortemente
afetados os âmbitos: (a) das relações com os espaços e as instituições públicas, sagrados e
profanos na grande cidade; (b) da relação entre a tradição e as necessárias inovações rituais
(iniciação, papel dos gêneros no ritual, percepção das diferenças de temporalidades) e, (c) do acesso
aos “segredos do culto” pelas novas gerações (relacionamento entre os iniciandos e a hierarquia
sacerdotal) iniciadas em São Paulo. Do enfrentamento e das estratégias de sobrevivência
desenvolvidas ao longo do tempo, as religiões afro-brasileiras passaram, nesse sentido, a: (d)

147
valorizar e resgatar a memória histórica de sua presença na cidade e, (e) a elaborar discursos e
ações políticas de resposta aos conflitos e repressões sofridos, visando conseguir uma representação
política legítima.
A respeito da relação com os espaços e as instituições públicos, sagrados e profanos, três
situações ajudariam a ilustrar esta problemática de avanços e resistências à plena aceitação da
existência das religiões afro-brasileiras em São Paulo nos anos 1990 e 2000.
(1) O tombamento em 3 de maio de 1990 do Ilê Aché Obá, fundado por Pai Caio Aranha em
1974221, e continuado com a sua sobrinha Mãe Sílvia de Oxalá.222 O ineditismo do tombamento
como patrimônio cultural de um terreiro de Candomblé no estado de São Paulo – segundo no
Brasil, o primeiro foi o terreiro da Casa Branca do Engenho Velho, tombado em 1984 como
patrimônio histórico – além de ter aberto um precedente para a busca de reconhecimento por outras
casas de axé, teria ajudado na legitimidade para as demandas políticas que foram postas pelo povo-
de-santo durante todo o período. Uma vez que o tombamento “é um ato administrativo realizado
pelo Poder Público com o objetivo de preservar, por intermédio da aplicação de legislação
específica, bens de valor histórico, cultural, arquitetônico, ambiental e também de valor afetivo para
a população, impedindo que venham a ser destruídos ou descaracterizados”.223 Por meio dele,
concedeu-se ao “bem material benefícios para que nele se garanta a preservação da memória”. Este
fato representaria ou deveria representar o reconhecimento por parte do Estado da importância
histórico-cultural das criações afro-brasileiras em São Paulo e do direito de sua livre existência. A
Folha de São Paulo informava na reportagem que,
Para o presidente do Condephaat (Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico,
Arqueológico, Artístico e Turístico de São Paulo) Edgard de Assis Carvalho, 48, o
tombamento está dentro de um conceito mais amplo de patrimônio cultural definido na
Constituição, que fala em bens “materiais e imateriais”. Dentro desse conceito, então, por
exemplo, as “formas de expressão, os modos de criar, fazer e viver”. O terreiro de Mãe
Sylvia está sendo tombado pelas “relações culturais” que representa, não por seus valores
históricos e arquitetônicos. Por causa dessas inovações, o processo se arrastou por dois anos e
exigiu o parecer de seis especialistas. Os conselheiros tiveram que mergulhar no intricado
universo do candomblé. “Pedimos o tombamento todos os dias para todos os orixás”, disse
Sylvia de Souza Egídio, 52. Para ela, o tombamento significa “uma vitória para a tradição, o
culto e a cultura dos orixás”. Significa também o fim de uma ameaça que pesava sobre o
terreiro: seus quase quatro mil m2 de terreno, numa região altamente valorizada, eram
disputados por pessoas que preferiam vender a área. O terreiro foi construído ali em 1974

221
Segundo a tradição do terreiro, sua fundação original deu-se no bairro do Brás em 22 de setembro de 1950 como
Congregação Espírita São Jerônimo, por Pai Caio Aranha. Com a amenização da perseguição, a iniciação de Caio no
Gantois (BA) e o aumento da sua filiação religiosa o terreiro passou a se chamar Aché Ilê Obá em 1974, mudando-se
para o Jabaquara. Sua inauguração após reforma do espaço deu-se em 1977, como visto no capítulo 3.
222
Estado tomba terreiro de candomblé em São Paulo. Folha de São Paulo, quinta-feira, 3 de maio de 1990.
Cidades/Mortes, p. C-4.
223
Definição do IPHAN (Instituto de Patrimônio Artístico Histórico e Artístico Nacional) disponível em
http://portal.iphan.gov.br/portal/montarDetalheConteudo.do?id=12691&sigla=PerguntasFrequentes&retorno=detalhePe
rguntasFrequentes. Data de acesso: 30/09/2011.

148
pelo pai-de-santo Caio Aranha que morreu em 1984 deixando vários sobrinhos herdeiros,
entre eles Sylvia, sua única herdeira espiritual.224

Emerson Giumbelli, em artigo, concordava com o antropólogo Vagner Silva ao afirmar que,
“na prática, o pedido do tombamento foi a solução encaminhada para enfrentar um impasse que se
colocava no plano dos direitos de propriedade do imóvel em que se localizava o terreiro”. Segundo
ele, o “falecimento do pai-de-santo que fundou o terreiro provocou uma disputa civil pela herança;
o tombamento garantiu que a herdeira cuja autoridade religiosa se consolidara na sucessão ficasse
também com a posse do imóvel”. Assim, “o procedimento efetivado representou a exploração de
uma via jurídica alternativa para resolver o problema da transferência de propriedade, problema que
está diretamente ligado às formas de autoridade nesse universo religioso. Tão importante quanto
isso é notar que o tombamento considerou o terreiro como “espaço cultural” e, para isso, envolveu
uma fundamentação antropológica para a sua efetivação. Foi, portanto, a título de “cultura” que esse
reconhecimento ocorreu, aceitando-se que a religião pudesse ser assim concebida e considerada”.225
(2) A tentativa de criação de espaços públicos em cemitérios municipais, próprios para os
rituais das religiões afro-brasileiras.226 No entendimento religioso afronegro (bantu e não-bantu),
como na religião do antigo Egito, as polarizações do bem e do mal refletem o embate de sistemas
contrários, como forças naturais e cosmológicas, das quais os homens são simples joguetes. Este
certamente não é um dualismo elaborado metafisicamente, pelo menos no sentido de possuir autores
conhecidos. O bem e o mal como sistemas embatem-se na esperança dos homens, mas não se
reduzem às esperanças da humanidade. Como forças magnéticas de tipo mega e profundas, tais
forças sofrem a mediação de “estações” elevadas de percepção e retransmissão, expressas como os
antepassados. Tal intermediação tem seu custo energético (eletromagnético) e social, cujo
parâmetro referencial se constitui a morte. A “passagem” entre mundos é gerenciada por deidades
ou antepassados (por exemplo, Iansã, Nanã Buruquê, Omulu etc), conferindo ao princípio mítico as
chaves da acessibilidade. Daí a importância do “campo-santo” ou de lugares onde “descansam” os
mortos para a prática do sagrado. Não difere muito na tradição etrusco-romano-cristã.
Segundo notícias da imprensa, os espaços voltados para as religiões afro-brasileiras, nos
cemitérios, teriam em torno de 100m2 de área. Seu projeto arquitetônico tinha sido elaborado com a
participação de associações de Umbanda e Candomblé. Seriam sem teto, com muros altos e
trancados. Dentro haveria “um cruzeiro, uma cruz simulando encruzilhada, e estátuas dos orixás

224
Estado tomba terreiro de candomblé em São Paulo, op.cit.
225
Emerson GIUMBELLI. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil. In RELIGIÃO E
SOCIEDADE, Rio de Janeiro, 28 (2): 80-101, 2008, p. 87.
226
Erundina cria 4 “macumbódromos”: prefeitura irá abrir licitação para construir centros de despachos em
cemitérios públicos. Folha de São Paulo, domingo, 19 de julho de 1992, p. 1. O protesto: verdes criticam os
macumbódromos. Folha de São Paulo, terça-feira, 4 de agosto de 1992, Cotidiano, p. 1.

149
Omulu e Iansã. Os locais seriam nos cemitérios da Saudade (São Miguel Paulista, zona leste), Vila
Formosa (zona leste), Vila Nova Cachoeirinha (zona norte) e Campo Grande (Santo Amaro, zona
sul). O projeto foi inspirado no espaço Ilê (terreiro, casa) do cemitério municipal de Diadema (15
km ao sul de São Paulo), inaugurado em um de abril de 1988. A lei tinha sido de autoria do
vereador Arselino Tatto do Partido dos Trabalhadores e havia sido sancionada por Luiza Erundina,
em 24 de junho de 1991. De acordo com a reportagem, a intenção do vereador era “assegurar a
liberdade de culto religioso, prevista na constituição”.
O pai-de-santo Cássio Lopes Ribeiro, presidente à época da Federação de Umbanda e Cultos
Afro-brasileiros de Diadema, dizia na notícia que o projeto acabava com o “monopólio da Igreja
Católica nos cemitérios”. A reportagem aproveitou para explorar a oposição dos cristãos. Bispos e
pastores reclamavam do “precedente” que se abriria, pois “privilegiaria apenas uma religião”, e que
a “prefeitura deveria gastar dinheiro em algo mais útil à população”. Ainda contrários ao projeto
manifestaram-se membros do Partido Verde, acusando que a abertura desses espaços nos cemitérios
aumentaria “os casos de tortura e morte de animais”. Esta acusação, como se sabe, foi constante às
religiões afro-brasileiras, e intensificou-se a partir dos anos 1990.227 Em resposta, Rui Barbosa de
Alencar, superintendente do Serviço Funerário à época afirmava que “os macumbódromos
disciplinarão a prática dos rituais afro-brasileiros, comuns em cemitérios”.228 Com a polêmica o
projeto não foi instaurado. Dez anos depois, em 2001, teve-se novamente a notícia de que a
inauguração em quatro cemitérios do “Espaço Reservado para Cultos e Oferendas Afro-Brasileiras”
se daria no próximo ano (2002).229 Eis,
Em janeiro, deverá ser inaugurado o primeiro espaço do gênero, no Cemitério São Luiz, Zona
Sul de São Paulo. Pelo menos essa é a expectativa do Serviço Funerário Municipal, que em
conjunto com entidades religiosas vai colocar em prática uma antiga lei, de 1991, do vereador
petista Arselino Tatto, criando espaços multirreligiosos nos cemitérios. Outros cemitérios a
serem beneficiados com a nova medida são os de Itaquera e Vila Formosa, na Zona Leste, e
Vila Nova Cachoeirinha, na Zona Norte. “Nós não estamos dando privilégio a nenhuma
religião, mas cumprindo o dever do Estado”, afirmou Eliana Queiroz, coordenadora de
projetos do Serviço Funerário. De acordo com ela, a lei faz referência a um espaço
multirreligioso. Entretanto, o local acabará sendo utilizado pelos praticantes das religiões
afro-brasileiras. “A prática dessas religiões suscita vários desentendimentos nos cemitérios.
Infelizmente, existe ainda muito preconceito contra essas pessoas. Eles são vistos como
realizadores de culto ao demônio e rituais macabros”, explicou. “Como os seguidores dessas
religiões não têm um espaço próprio, muitos costumam, em seus rituais, colocar oferendas

227
Sobre o sentido religioso do sacrifício vê-se o capítulo 1. Em relação às respostas dadas pelas federações e lideranças
debater-se-á no final deste capítulo.
228
Erundina cria 4 “macumbódromos”: prefeitura irá abrir licitação para construir centros de despachos em
cemitérios públicos, op.cit. . O protesto: verdes criticam os macumbódromos, op.cit. Na mesma reportagem há uma
explicação do antropólogo Vagner Gonçalves sobre os sentidos do culto nos cemitérios e a questão dos ossos de
animais e sacrifício.
229
São Paulo: Umbanda ganha espaço em cemitério. Jornal do Comércio, Recife, 09.12.2001, domingo. Da Agência
Estado, por Marici Capitelli. Disponível em http://www2.uol.com.br/JC/_2001/0912/br0912_3.htm. Data de acesso:
30/09/2011.

150
em cima de túmulos, o que causa confusão com as famílias dos mortos, principalmente as
evangélicas”, ressaltou Eliana.230

Até o momento, não se teve notícia da aplicação do projeto e o único cemitério na grande
São Paulo que manteve um espaço reservado para as religiões afro-brasileiras foi o Cemitério da
Saudade, em Diadema.231 Em pesquisa de campo, esta demanda ainda é lembrada pelos sacerdotes
da religião, incluindo-se nela o direito de assistir aos moribundos e enfermos nos hospitais. Ainda
há resistência por parte dos médicos de se permitir a realização de rituais para alívio espiritual de
adeptos do Candomblé e da Umbanda.232 Os espaços considerados ecumênicos, na maioria das
vezes, reproduzem os ambientes do cristianismo, predominando, portanto a presença de católicos,
protestantes e evangélicos. Outro elemento da relação entre as religiões afro-brasileiras e os espaços
sagrados na cidade nos anos 1990 e 2000, seria o reconhecimento de seus rituais como portadores
de valores religiosos de sociabilidade. Por exemplo, o que se refere à questão do casamento
religioso na Umbanda e no Candomblé.
(3) A censura por parte da imprensa e da hierarquia afro-brasileira aos “falsos pais-de-santo” que
dão consultas nas ruas de São Paulo, também pode ser considerada como elemento da
problemática das relações estabelecidas no espaço público. Isto apareceu nas fontes da imprensa
relacionada ao aumento do desemprego em São Paulo ao longo da década de 1990, que teria
influenciado o surgimento de “marreteiros-místicos” oferecendo jogos de tarôs, búzios e leitura de
mão no Viaduto do Chá no centro da cidade. Dizia a notícia que,
(...) o jogo mais disputado é o tarô. Os marreteiros se preparam em cursos de Cr$ 50 mil
dados em templos de umbanda, sempre na periferia. Segundo Antonio de Ogum, 27, “o tarô
hoje é muito procurado por quem quer saber se está com AIDS”. Os clientes assíduos sabem
que há dois axiomas básicos em voga. Primeiro: todo vidente abre sua consulta dizendo que
“algo vai mudar muito na sua vida”. Segundo: o vidente diz que fica no viaduto por vontade
própria, não porque está desempregado. “Nem os policiais mexem com a gente porque sabem
que estamos aqui em missão de vida, por ordem divina dos orixás, diz Antonio de Ogum. (...)
Elias Barros de Morais, 47, previu que o repórter morreria aos 82 anos. “Já tratei do Príncipe
da Bulgária e fiz gente famosa engravidar. Ninguém mexe comigo. Tenho respeito. Os fiscais
da prefeitura nem chegam perto, tem medo de macumba”, diz. André Luiz Félix, chefe dos
fiscais da prefeitura na região da Sé (centro), diz que os videntes são expulsos da calçada
“como qualquer marreteiro” e nega que os fiscais os temam por seus “poderes”. “Eles
vendem coisas como qualquer um”, diz.233

230
São Paulo: Umbanda ganha espaço em cemitério, op.cit.
231
Em 08 de abril de 2008, uma notícia no portal ABCD Maior (“Umbandistas ficam sem espaço no cemitério de
Diadema”) informava que o Ilê, nome dado ao espaço destinado aos cultos afro-brasileiros no cemitério de Diadema,
estava fechada por quatro meses, para reformas que seriam feitas pela prefeitura. A notícia informa, no entanto, que
havia reclamações de pessoas sobre o cheiro forte dos alimentos deixados lá. Os membros das religiões afro-brasileiras
também reclamavam, mas do vandalismo que ainda ocorria no espaço, mesmo este sendo fechado. Pessoas tinham o
costume de roubar as garrafas de bebidas deixadas no local. Disponível em
http://www.abcdmaior.com.br/noticia_exibir.php?noticia=6312. Data de acesso: 30/09/2011.
232
Pesquisa de campo, Ilê Axé Xangô, Osasco, São Paulo, 26 de outubro de 2008.
233
Crise faz do viaduto do Chá templo de videntes. Folha de São Paulo, domingo, 19 de julho de 1992. Cotidiano, p. 1.

151
A visão negativa expressada pela notícia acabou por ressoar nas federações de culto. Uma
nota informava que o secretário adjunto de segurança pública do Estado, Paulo Tarso de Mendonça,
havia pedido que a polícia verificasse “a situação das pessoas que jogam búzios e praticam outras
formas de adivinhação nas ruas de São Paulo”. Ele havia recebido em seu gabinete o pai-de-santo
Walmir Damasceno, que lhe pediu “ação policial contra o que chama de “comércio da
adivinhação”.234 Para Damasceno, presidente da Federação Nacional de Tradição e Cultura Afro-
Brasileira, “o objetivo do pedido é impedir a ação dos “falsos pais e mães-de-santo” no centro da
cidade e nos shoppings”. Ele explicava ao repórter que “os búzios só podem ser jogados em
terreiros de Candomblé, de acordo com os preceitos da religião”.235
No documento encaminhado à Secretaria, a entidade presidida pelo pai-de-santo alega que os
jogadores de búzios nas ruas “assustam e enganam as pessoas” com previsões sem nenhuma
base nos preceitos do candomblé. O documento estende a acusação às ciganas que atuam no
centro. Segundo Damasceno, há indícios de que alguns adivinhadores, com o pretexto de
realizar “trabalhos”, levariam as pessoas para lugares “escusos” e lhes tomariam dinheiro e
objetos de valor. O pai-de-santo disse suspeitar, ainda, de que haveria traficantes de drogas
usando a adivinhação como fachada. Tudo isso, diz ele, deixa a federação “indignada” e
desmoraliza o candomblé. O secretário-adjunto de Segurança disse que só agirá a respeito do
que estiver “expressamente previsto em lei”. 236

As três situações exemplificadas indicariam que a relação das religiões afro-brasileiras com
os espaços e as instituições públicos foi sempre mediada pelo poder, numa relação de repressão,
desconfiança e/ou subalternização. Mesmo no caso do tombamento do Aché Ilê Obá, a notícia
deixava entrever implicitamente certas desconfianças (“intricado mundo do candomblé”) e
dificuldades no processo político realizado, como também as dificuldades em adequar as religiões
afro-brasileiras dentro dos sistemas jurídicos existentes, mesmo considerando-se os conflitos de
ordem familiar sobre a herança. A conquista mínima gerava toda uma contraparte de opiniões que
negativavam ou questionavam a “deferência” dada às religiões afro-brasileiras. Somente explicitaria
a diferença de tratamento que gerou e gera indignação, presente no depoimento de boa parte da
hierarquia afro-brasileira. Pode-se afirmar, em âmbito nacional. Ou seja, não existiam – e quando
sim, não eram aplicadas – entre os anos de 1990 e 2000, políticas públicas que atendessem às
especificidades das religiões afro-brasileiras ou que as protegessem contra problemas dissociativos
nas grandes cidades. Outro aspecto da relação, aqui não abordado, mas não esquecido, seria o
problema da manutenção de áreas verdes com água corrente, próprias para as oferendas aos orixás
e entidades na cidade. Isso fez com que os que possuíssem condições tentassem a migração para as

234
Entidade pede que polícia tire 'falsos pais-de-santo' das ruas. Folha de São Paulo, quinta-feira 19 de novembro de
1992, Cotidiano, p. 3
235
Idem, op.cit.
236
Idem, op. cit.

152
periferias mais distantes em busca de sítios e chácaras ou, para os interiores próximos à
metrópole.237
Consideram-se, aqui, as respostas elaboradas pelas federações de culto e hierarquia
religiosa para tais “desafios” ou dificuldades postas à vivência das religiões afro-brasileiras em São
Paulo. A capacidade de responder ou de criar articulações para o estabelecimento de demandas deu-
se a partir da reabertura política de meados dos anos 1980. Considerando que o movimento
federalista somado ao movimento negro desde os anos 1960, mais fortemente, haviam iniciado um
processo de “conscientização” para os direitos da população negra e da vivência de sua cultura,
pode-se entender então, que entre os anos 1990 e 2000, certa base estava montada para o discurso e
as ações que passariam a ser apresentadas. O impacto conseguido, no entanto, teria sido pequeno,
mas contou nos anos 2000 com algumas vitórias. A mais considerada pelos adeptos das religiões
afro-brasileiras seria sua própria mudança de postura.
Nas revistas de divulgação voltadas para o Candomblé e a Umbanda, encontrava-se em
quase todos os números consultados artigos sobre direitos humanos e de cidadania, respostas à
intolerância religiosa e, tentativas de fomentar a união em torno de se ter uma consciência política
para eleger os representes próprios para as câmeras municipal, federal e nacional. Por exemplo, a
revista Orixás – Candomblé e Umbanda trazia em vários números, uma coluna escrita por Antonio
Basílio Filho (Ogan Basílio de Xangô), vice-presidente do Superior Órgão de Umbanda e
Candomblé do Estado de São Paulo e Diretor Jurídico da União das Tendas de Umbanda e
Candomblé do Brasil238. Um de seus artigos seria exemplar para essa discussão. Intitulado
Casamento Religioso na Umbanda e Candomblé apresentava amplamente em termos da legislação
nacional, toda uma argumentação que respondia às dúvidas sobre “a validade desse casamento
religioso”.239 Dizia ele que,
Vou direto ao assunto, pedindo permissão para começar de trás para frente, assentando: o
CASAMENTO RELIGIOSO, SEJA ELE REALIZADO NA UMBANDA OU NO
CANDOMBLÉ, EXISTE SIM, tanto quanto qualquer outro, realizado na Igreja Católica, na
Mesquita Muçulmana ou na Sinagoga Judaica, ou em qualquer sede de qualquer outra
religião. E, POR IGUAL, É VÁLIDO SIM! (...) Portanto, se na Umbanda e no Candomblé
estamos em sede religiosa, o casamento nelas e por elas realizado é um casamento religioso,
que produz efeitos civis, na forma da lei! (...) Então, Irmãos, com convicção eu repito: se
ainda houver alguém que duvide da validade de nosso casamento religioso, saiba que não
estará só desafiando a lei e à própria Constituição Federal. Estará ousando duvidar da
Umbanda e do Candomblé enquanto religião! Por isso, Meus Irmãos de Fé, se quiserem casar
no Seio da Religião não tenham receio sobre a validade desse matrimônio, nem se submetam
a qualquer constrangimento por ser da Umbanda ou do Candomblé. Ao contrário, tenham

237
Aqui se tem como referência uma reportagem sobre as diferentes crenças em São Paulo, em que se apresenta um
mapa religioso com resumo das diferentes religiões. Água e floresta atraem os cultos africanos. Folha de São Paulo,
22 de dezembro de 1996, p.3-4.
238
Antonio Basílio Filho é advogado criminalista, conhecido por Dr. Basílio.
239
Doutor Basílio. Casamento Religioso na Umbanda e no Candomblé In Revista ORIXÁS – Candomblé e Umbanda,
Ano II, nº 9, pp. 6-9.

153
orgulho de professar a sua Religião. Apenas verifiquem se a “casa” freqüentada está
regularizada e, preferencialmente, filiada a uma Federação idônea. No mais, Irmão, Erguei a
cabeça e fazei valer o seu direito! Axé! E que as bênçãos de Oxalá recaiam sobre nós!240

É tarefa extremamente complexa distinguir as diferentes camadas da tradição (e da


interpretação) religiosa, como uma tarefa de historiador, e não como uma tarefa mística. Enquanto
tarefa mística, o místico “apenas” recorre aos seus laços com a entidade requerida e encarta ou
descarta tais ou quais procedimentos, definindo-lhes o patamar da tradição. Para o historiador, o
exame dos elementos deixados e a sua hierarquização temporal são muito mais complexos. É difícil
ter “onde escorar-se” para separar as camadas de transição. A linha hermenêutica dificilmente é
visível.
Ora, os rituais do casamento, batismo ou ritos fúnebres, nas tradições africanas e católicas
diferem no que diz respeito às concepções da passagem da vida terrena e do pós-morte. Os sentidos
de sociabilidade, no entanto, são os mesmos. O controle do cotidiano e dos costumes, exercido pela
Igreja Católica no Brasil, nas condições em que foi realizada a colonização portuguesa, confundiu-
se com a própria organização cultural. E, por isso, tornou-se elemento estruturante da sociedade.
Isso não significa que houvesse uma democratização plena no acesso aos sacramentos católicos.
Houve todo um controle que impedia aos africanos e seus descendentes a experiência plena de suas
próprias práticas religiosas, que são, por sua vez, também ordenadoras do mundo social e natural.
Além das dificuldades apresentadas pela burocratização católica de acesso ao sagrado, receber os
sacramentos tinha o papel de distinguir as classes (ou “castas sociais”, nas palavras de Octavio
Ianni) no Brasil. Socialmente, os ritos de passagem marcavam o lugar dos indivíduos no grupo
social, sua identidade familiar no processo de desenvolvimento pessoal, sua respeitabilidade e
status. Enquanto o batismo parece ter sido amplamente praticado – inclusive como estratégia e
mecanismo de dominação psíquica dos escravizados – o casamento e os ritos fúnebres foram, por
muito tempo, um “luxo”, privilégio das elites. A separação entre a Igreja Católica e o Estado no
início do século XX, não favoreceu de imediato uma alteração nessa situação, uma vez que o
casamento civil continuou sendo caro. Mais caro ainda, o casamento religioso. Havendo sido,
portanto, de pouco acesso à população negra. Por trás dessas condições sócio-políticas, encontrava-
se também a ideologia racista, expressada nos vários ditos populares. Casar-se “na igreja dos
macacos” ainda hoje significa “juntar-se”, onde o casal mora junto sem nenhum tipo de cerimônia.
Pode-se afirmar que, nos anos noventa e dois mil, negar à população negra a prática de tais ritos, de
acordo com sua religião, significaria um afrontamento aos seus direitos civis.

240
Idem, op. cit. A legislação apresentada por Basílio foi: Constituição Federal, art. 5º, art. 226, Código Civil (Lei
Federal nº 10.406 de janeiro de 2002; na legislação concernente aos Registros Públicos (Lei Federal nº 6.015 de 31 de
dezembro de 1973.

154
Para Basílio de Xangô o entendimento que os membros das religiões afro-brasileiras
deveriam ter de seus direitos civis, passaria pela auto-afirmação e defesa da religiosidade de suas
práticas. Em outros textos, Basílio identificaria os problemas enfrentados ainda à herança do
escravismo, pois, segundo ele, “todos sabemos que, no nosso grande contingente populacional,
somos afro-descendentes. Mas, ao mesmo tempo em que toda a nossa sociedade clama em defesa
do orgulho de sermos afro-brasileiros, ainda existem aqueles que insurgem contra as práticas
religiosas herdadas dos nossos antepassados, o que não deixa de ser uma agressão à nossa herança
genético-social”.241 Estaria, posto, nesse sentido, que as transformações históricas sofridas pelas
religiões afro-brasileiras em São Paulo entre as décadas de 1990 e 2000 deram-se no embate pelo
pertencimento real ao corpo social, com tudo o que isso implicaria em direitos de plena cidadania.
As instituições públicas e a legislação federal do Estado “laico” surgiriam como as “brechas” a
serem aproveitadas para vencer o sistema de exclusão da população negra.

A tradição versus a inovação ritual e o acesso aos “segredos do culto”


A essa relação no âmbito público somaram-se para a hierarquia sacerdotal afro-brasileira,
em São Paulo, a necessidade de lidar com as mudanças na relação entre a tradição e as inovações
rituais (iniciação, papel dos gêneros no ritual e percepção das diferenças de temporalidade) e o
questionamento sobre o acesso aos “segredos do culto” pelas novas gerações (relacionamento
entre os iniciandos e a hierarquia sacerdotal), iniciadas. O aumento das publicações, crescente
desde os anos 1980, de livros, revistas e manuais sobre a liturgia, ebós, mitologia, etc. despertou nos
novos membros e sacerdotes certa percepção de que o conhecimento da religião já não seria mais
tão “secreto”. Esse processo teria se intensificado ainda mais nas duas últimas décadas. Hoje, para
alguns sacerdotes mais novos, o conhecimento divulgado, a explicação dos cultos e dos
fundamentos das religiões com detalhes, seria essencial para a sua manutenção em longo prazo e
para a quebra dos preconceitos ainda existentes a respeito delas. Mais do que isso, esses manuais se
tornaram referências para serem usadas nos cultos, como cartilhas, o que causou reações diferentes
dentro da hierarquia. O pai-de-santo Alexandre Teixeira Ramos (Alexandre de Oxaguiã) favorável a
essa idéia, em entrevista, comentava sobre as diferenças entre o Terreiro do Gantois (Ilê Iyá Omim
Axé Iyá Massê – Sociedade São Jorge do Gantois), na Bahia e o seu terreiro em São Paulo. Foi no
Gantois onde viu-se iniciado há 28 anos, com o qual mantém relações de filiação – cumprindo suas
obrigações rituais lá no tempo devido . Dizia:

241
Dr. Basílio. Da Liberdade Religiosa e da Polêmica Criada em Torno do Sacrifício de Animais. In Revista ORIXÁS
– Candomblé e Umbanda, Ano II, n° 6, p. 11.

155
[Referindo-se às casas mãe da Bahia] matriarcal; totalmente! Só aqui em São Paulo tem
muito Babalorixá, aqui homem dança no xirê [festa pública]; lá em Salvador não se dança e é
até chacota; aliás, nem é permitido a não ser que esteja incorporado com o Orixá, só isso,
nesse sentido. Agora fora esses casos em si, cargo para homem é especificamente para ogã.
Porque aumentou a participação do homem aqui em São Paulo? Por que estava se perdendo
força, por isso começaram a colocar homens mesmo. Essa é a questão, mas em Salvador
quem manda são as mulheres: matriarcal. Extremamente! O homem, lá, nesse sentido, não
tem vez. Aqui em minha casa eu explico tudo para os meus filhos. Lá a gente não podia
perguntar nada no tempo da iniciação. Aqui eu deixo eles perguntarem e explico tudo.242

Tais diferenças, na percepção de Pai Alexandre, estariam ligadas ao conflito em torno da


posse do “segredo” pelos mais velhos, que passou a ser mais explícito atualmente, apesar de sempre
ter existido, segundo ele. A participação masculina, na mudança de relação dos papéis dos gêneros,
representaria forte diferença ritual entre o Terreiro do Gantois, em Salvador, e o seu Ilê Alamonjú
Ketu, em São Paulo. Para Alexandre, expressaria neste caso uma necessidade de manutenção da
religião contra a “perda da força” (axé).
Outro depoimento reforçaria a opinião de Pai Alexandre. Mãe Fabíola de Iemanjá tem 25
anos de Candomblé, sendo 17 de “raspada” (iniciada) na Bahia, no Terreiro Axé Oxumaré, rito
keto. Possui atualmente terreiro em São Bernardo.243 De acordo com sua experiência comentou
sobre os muitos problemas enfrentados pelas casas de Candomblé em São Paulo, entre eles a grande
“perseguição e ofensas por parte dos evangélicos” que, segundo a mãe-de-santo, “tem a ver com o
racismo”. Conta que certa vez na zona leste, estava em sua casa em um toque, e receberam pedradas
jogadas por “crentes da vizinhança”. Haveria segundo Fabíola, outro grande problema: “muitos pais
e mães-de-santo não são sérios”. O excesso de comércio prejudicaria a percepção que as pessoas
têm da religião. A tradição também sofreria muito em São Paulo uma vez que, “com a busca por
praticidade perde-se axé”. Ao comentar sobre as diferenças na iniciação entre os terreiros baianos e
os paulistas identificava-as na “relação entre os iniciados e a hierarquia”. Ao falar sobre a iniciação
comparava o “orixá novo a um bebê que ao nascer precisaria ser cuidado, alimentado, banhado,
vestido”. Haveria uma dificuldade em seguir os preceitos em São Paulo e esse ritual acabaria sendo
feito às pressas. Exemplo claro para essa perda de axé, segundo ela, seria a “teimosia dos filhos-de-
santo” que não cumprem suas obrigações: “antes se ouvia muitos os casos das surras de orixás, mas
hoje em dia não se ouve mais falar sobre isso por aqui”.
É interessante, portanto, perceber esse processo através do olhar e da análise dos pais e
mães-de-santo mais velhos que seriam as atuais referências para as comunidades-terreiros paulistas.
Ao comparar os depoimentos, pode-se verificar o que aproximava e o que distanciava essas
gerações de sacerdotes e sacerdotisas, no que diz respeito à tradição, iniciação e repasse dos

242
Entrevista com Alexandre Teixeira Ramos em 26/10/2008.
243
Depoimento colhido em 27/09/2008, Ribeirão Pires.

156
conhecimentos do culto. Talvez o aumento da procura por iniciação no Candomblé, a partir dos
anos 1970, tenha despertado uma maior desconfiança dos mais velhos sobre o real interesse. Isso
quanto aos pesquisadores, que intensificaram suas atividades nesse período, como dos mais jovens,
que foram à busca de conhecimento. O aumento do desemprego e do custo de vida em São Paulo,
de fato representava um alerta para a prática da religião. Esta acabaria por ser vista como um meio
de garantir a sobrevivência material, não sendo mais uma “missão espiritual”. Passaria a ser
“comércio”. Outra hipótese seria que, tal desconfiança resultou dos séculos de perseguição e da
formulação da ideologia social negativa sobre essas religiões, que levariam os sacerdotes mais
velhos a limitar o acesso aos conhecimentos rituais. A desconstrução dessa visão negativa foi
sempre dificultada pelas campanhas midiáticas e das religiões cristãs, com maior poder de alcance
na exposição de idéias, como também pelo racismo presente na sociedade brasileira.
Porém, a resposta que mais se ouvia entre os sacerdotes foi a que diz respeito à própria
estrutura de transmissão do conhecimento – tradição oral – das religiões afro-brasileiras (de vários
ritos) em que o saber mágico-religioso e ritual seria passado através da convivência cotidiana. Nela
importaria muito a relação de confiança estabelecida entre pai/mãe e filho-de-santo. Este saber e
prática se dariam, ou deveriam se dar, num tempo (africano, “natural”) diferente daquele da
sociedade urbana industrial (ocidental, “mecânico”). Sobre isso, eis um comentário explicativo de
Tata Obalumbi,
O candomblé de origem bantu (congo-angola) tem por tradição e com certeza faz parte de
etnia bantu guardar segredo, não dividir seus costumes com outros povos, isto é até uma
maneira de preservar as tradições. No candomblé angola de tradição mais antiga, os iniciados
novos (muzemba) não participam de certos atos, aprendem o necessário para sua função.
Conforme vai chegando sua idade dentro da religião, as coisas vão lhe sendo ensinadas, ou
seja, é preciso confiança dos mais velhos para ensinar ou deixar ver alguma coisa. Esta
tradição, com o passar dos tempos, tem conseqüências boas e ruins, as boas é que as casas
com tradição forte mantiveram seus segredos muito bem guardados e ruins é que as pessoas
às vezes despreparadas ou que não tiveram total confiança de seus zeladores, não sabiam
explicar direito nem quem são (jinkice) inkice no plural, a história de cada um, suas
244
particularidades, etc.

Para Tata Obalumbi a “confiança nos mais velhos” tenderia nos últimos anos a ser abalada.
Como a fala de Mãe Fabíola indicaria, os iniciandos em São Paulo não teriam a mesma paciência
dos antigos no processo ritual de transmissão do conhecimento. Com o tempo ocorreria o
enfraquecimento do conhecimento ritual. Pode-se perceber tal problema também na Umbanda. Com
as mesmas preocupações, mas ampliando o enfoque, o zelador Gilmar de Ogum, ao ser questionado
se estaria “tendo” todos os ensinamentos que quer sobre a religião, assim respondeu:
Ter ainda não tenho, mas quero poder receber estes ensinamentos na íntegra. Acho que a
melhor é quando estamos ao lado de quem conhece e esta se propõe a nos ensinar. Eu já
estou providenciando meu caderninho.... É complicado... Digo no meu caso... Sim ainda

244
Coluna de Tata Obalumbi in Revista Orixás – Candomblé e Umbanda, Ano 2, nº 8, p. 9.

157
tenho muito a aprender, mas o tempo é curto, mas vou aprendendo... O que falta? Tempo
para se aprofundar ainda mais... Mas, infelizmente, vejo que certos babás ou padrinhos não
ensinam para que muitos fiquem sempre na dependência deles, e isso eu não concordo, como
também sei que não devem ensinar tudo, por que não precisariam voltar a eles para
esclarecerem dúvidas. Pensando com calma vejo que [ter] todos [os conhecimentos] é
impossível. Peço a Deus sempre sabedoria e discernimento. Tanto a umbanda como o
candomblé vêm de uma tradição passada de boca em boca, não de livros, mas, sim, de
costumes que, ao longo do tempo, muita coisa boa foi perdida. Já não se sabe as orações de
antigamente (para dor de cabeça, ouvido, dente, etc). Muitos utilizam apenas o toma lá de cá,
lhe dou se você me der. Falta ética, compromisso com a evolução pessoal e espiritual. Ou
seja, faltam os ensinamentos do passado, de quem nada contra a correnteza está procurando a
nascente. Yalorixá/Babalorixá que renegam ensinamentos aos seus descendentes, estão
castrando a vida de seu próprio axé. Porém, tem que se ter plena confiança nas pessoas as
quais serão transmitidos os ensinamentos, e este deve restringir-se a função que o omo-orixá
tem na casa. No mais, em aspectos culturais acho válido a leitura de livros, cursos, pesquisas
em sites, etc. sendo que temos que ter na consciência que o Candomblé e a Umbanda é uma
religião viva, e que cada dia estaremos aprendendo algo novo. Acho que o suficiente para não
ser enganado(a). Quando digo isso é que a religião consiste em três coisas: convivência, só
quem convive dentro da religião aprende alguns de seus caminhos; interesse, não basta
somente conviver, mas sim, ter vontade de aprender; humildade, pois quando tiver uma
dúvida ou não saber não ter vergonha de perguntar para os mais velhos e pesquisar para
245
evoluir cada dia.

Destacava-se na fala do zelador a percepção de que nas últimas décadas, o tempo para
aprender e aprofundar os conhecimentos seria um empecilho no aprimoramento do sacerdote. Além
de “certos babás e padrinhos” que, para manter o controle sobre seus filhos, não ensinariam tudo o
que sabem. Por outro lado, ele identificava que a confiança no iniciando seria um fator determinante
para a transmissão do conhecimento. A tradição oral teria feito com que se perdessem
conhecimentos ao longo do tempo. As condições históricas para a reprodução dessa tradição, não
possibilitaram sua reprodução nos mesmos moldes da primeira metade do XX. Mas, segundo ele, a
atitude de não repassar o conhecimento mágico-religioso levaria a uma “castração do próprio axé”.
Ficava reforçado na fala de Gilmar que o fato do Candomblé e da Umbanda serem “religiões
vivas”, só se poderia apropriar-se e apreender seus fundamentos, de fato, com: (a) convivência, é no
cotidiano que se vivencia a religião; (b) interesse, por parte dos iniciandos, tendo vontade de
aprender e, por último, (c) humildade, não “ter vergonha de perguntar” e “pesquisar”, estudar para
saber. Viu-se nessa fala, como afirmado anteriormente, que a possibilidade de aprendizado da
religião seria mais ampla atualmente através dos livros e sites. Note-se que para Gilmar esse tipo de
conhecimento seria cultural, não religioso. Novamente apontava-se aqui que as relações
estabelecidas com o ambiente social, identificariam uma percepção das religiões afro-brasileiras
como cultura. Apropriadas dentro dessa categoria, não haveria impedimentos “legais” na utilização
de seus elementos para interesses mercadológicos.

245
Revista ORIXÁS, Candomblé e Umbanda. Entrevista com Gilmar de Ogum. Ano II, nº 11, p. 59.

158
O movimento negro, juntamente ao movimento religioso dos anos 1970 e 1980, buscou
criar mecanismos legislativos que impedissem os abusos às religiões afro-brasileiras. Muito
lentamente, aos longos dos anos 1990 e 2000, algumas dessas demandas puderam ser aplicadas em
São Paulo. No que diz respeito a uma visão da imprensa paulista (Folha de São Paulo), nesse
período, noticiaram-se algumas das ações de atendimento às necessidades da população negra, via
federações e terreiros, como certa mudança no uso do termo macumba, não mais se referindo
“explicitamente” ao Candomblé e a Umbanda e à sua legitimidade como religião. Já nas mídias
afro-brasileiras, como a citada revisa Orixás, foram destacadas como importantes a criação em 22
de março de 2006 da DECRADI (Delegacia de Crimes Raciais e Delitos de Intolerância) sob a
direção, à época, da delegada Margarette Barreto,246 e ações no Ministério Público Federal contra
“ato discriminatório e ofensivo verificado em programas veiculados pela Rede Record e pela TV
Mulher”, onde “obteve tutela antecipada para obrigar as emissoras a veicular um programa diário de
até uma hora de duração com duas chamadas pela manhã e à tarde”, para apresentar “direito de
resposta”, ou seja, “mensagens de paz, amor, tolerância, amizade, coexistência pacífica,
colaboração, irmandade, enfim, uma demonstração de que Deus também está na Umbanda e no
Candomblé.247
Por outro lado, mesmo com essas ações, o perigo de “deturpação dos ensinamentos”, o
aumento da comercialização e da veiculação midiática da religião, a “falta de ética”, ainda estariam
ferindo sua legitimidade, na percepção dos mais velhos. Esses temas surgiram nas falas dos
sacerdotes ao compararem a religião de antes e a de hoje. Mãe Manodê já dizia sobre isso em 1987,
Eu levei sete anos com minha mãe-de-santo, junto com ela, junto, junto. Porque dizem que
santo de casa não faz milagre, mas o meu faz para mim e faz pelos outros. Mas hoje ninguém
quer nada. Eu tenho encontrado muita gente ingrata, que pensa que religião é pagode, pensa
que religião é beleza. Na religião não tem beleza, a beleza está na gente. A gente [é] que faz
folclore na religião. Ainda agora, hoje em dia para sair um santo, tudo isso é folclore. No
meu tempo não tinha essas coisas. Ia sair com um paninho de chita, sei lá, o que fosse para
mim estava a mesma coisa, um pano de chita ou até o pano pior que tivesse podia ser. Tem
que saber e receber aquilo com carinho, porque santo necessita dos axés, precisa é das rezas
de lá de dentro, o preceito que a gente tem que cumprir. Acho que a parte lá de dentro é o
mais interessante, o mais bonito. É isso, mas tem muita gente que quer fazer do candomblé
um folclore. Eu quero fazer tudo como um carinho pra quem me escolheu, escolheu nesta
terra cheia de tanta falsidade, pra quem me escolheu para me dar essa missão. Eu cumpro ela
248
com amor, com carinho e com respeito.

A função do sacerdócio afro-brasileiro estaria se deturpando nas últimas décadas, segundo


Mãe Manodê, com riscos de perder o seu respeito para as vaidades modernas. Nos ambientes

246
A Delegacia que faltava. In Revista Orixás – Candomblé e Umbanda, ano I, nº 3, p. 6.
247
“O Direito de Resposta”, por Dr. Antonio Basílio. In Revista Orixás – Candomblé e Umbanda, Ano I, nº 2, p. 6-7. A
Ação civil pública foi registrada no processo nº 2004.61.00.034549-6 junto à 5ª Vara Federal de São Paulo.
248
Reginaldo PRANDI, op. cit., pp. 170-171.

159
urbanos, além do perigo de usos da religião como folclore, teria ocorrido também o esvaziamento
do sentido do sagrado na iniciação, como da própria prática religiosa. Já percebido nos anos 1970 e
1980, nas últimas décadas, principalmente para o Candomblé “de nação” com seus contatos com
África, a abertura que se deu ao relacionar essa religião com o movimento cultural afro (artes
negras), teria intensificado noções confusas a respeito da religiosidade. Teria sido difícil e rejeitado
por certos grupos das elites, o entendimento dos elementos de religiosidade própria dos africanos e
afro-brasileiros. Lembre-se que desde o período colonial, os portugueses identificaram
pejorativamente os cultos negros como “pagodes”, “bailes”, por sua intrínseca diferença com os
rituais oficiais católicos contidos e burocráticos. Na conformação e sincretismo das tradições
religiosas no Brasil, se por um lado, o catolicismo popular assimilaria os elementos de “espetáculo
público” de certas tradições européias, como as procissões dos santos (todos de base dita pagã,
diga-se de passagem), as religiões afro-indígenas incorporaram elementos de uns e de outros,
elaboraram uma ressignificação e manteriam aquela dinâmica própria africana, em que a dança, o
toque do tambor, o transe ritual foram os elementos estruturantes e sempre presentes. Também o
caráter iniciático foi visto como perigoso para a ordem pública, por restringir o acesso aos seus
mistérios, algo extremamente incômodo para a mentalidade cristã, centralizadora e dominadora da
mediação com o sagrado.
O entendimento africano da encarnação insere-se na continuidade entre o mundo dos vivos e
o mundo dos mortos, permitindo livremente a passagem de um a outro, através de formas de
metempsicose e de reencarnação. Um antepassado pode “voltar” à família – dadas certas regras e
invocações – quantas vezes seja necessário, “nascendo” sob a forma de um descendente seu. Esta
permeabilidade entre os “dois mundos” (na verdade, “quatro”, no sentido africano) reduz em muito
a importância da salvação como história judaica e do Cristo, para o sacerdote verdadeiramente
africano. As religiões ditas universais – particularmente as três de origem judaica – enfrentam aqui
a irredutibilidade das chamadas religiões ditas tradicionais ou regionais africanas. A
impossibilidade de que se reconciliem se expressa na luta atual pela volta aos “fundamentos
africanos”.
A interferência das entidades e/ou os antepassados, sob a forma de novos nascimentos,
permite replasmar o presente e alterar o futuro, com um envio de um “profeta” ou de um
“salvador”, o que confere total independência e dinâmica aos mitos afros de constituição religiosa.

Mudanças e adaptações rituais na iniciação


Uma das características estruturais das religiões afro-brasileiras e do Candomblé em especial
é seu caráter iniciático. A iniciação marcaria a entrada oficial do(a) filho(a) na casa como também

160
sua adoção mítica à uma família-de-santo. Mais importante: seria a entrega física, mental e
emocional do iniciando ao seu orixá. No grupo, a iniciação teria a importante função de estabelecer
coesão (Silva), reforçar os laços de solidariedade entre os membros, e reproduzir dentro da
hierarquia a renovação dos membros do culto. O processo seria dificultoso, tanto material quanto
psicossocial. Uma vez que, além dos custos financeiros para a iniciação, o(a) candidato(a) a
filho(a)-de-santo precisaria se afastar por um período de tempo de sua vida social, respeitar uma
série de restrições de comportamento e dever obediência a seu pai ou mãe-de-santo.
Portanto, seria compreensível que as mudanças que se deram neste ritual preocupassem
tanto os sacerdotes da religião. Tais mudanças estariam se dando há bastante tempo. No processo de
formação e constituição dos rituais nas religiões afro-brasileiras, a ressignificação e a recriação dos
ritos e práticas foram uma constante. A iniciação do início do século difereria, assim, daquela
praticada na segunda metade do XX. Arthur Ramos, na década de 1930 afirmava que “a iniciação
dura muito tempo, de três a seis meses entre os nagôs, até um ano, entre os jejes, prazo que vai se
reduzindo presentemente”.249 Já em 1967, um conhecido escritor de livros sobre Umbanda e
Candomblé, Celso Rosa (Decelso) comentava sobre a iniciação:
Ela varia segundo o RITO, no tradicional, pretendem muitos que seguem o tradicional RITO
de “Nação de Nagô, Angola”, etc. Nos referidos Terreiros, fizeram profundas alterações no
tempo e modo de iniciação. Insistem hoje, os atuais Babalaôs e Ialorixás, em iniciar, em
preparar “filhos”, em deitá-los sem distinguir para que cargo ou função foi a mesma iniciada.
Ouve-se: “deitei um barco de iaô” ou, “vou levantar uma barco”; “pintei, raspei”. Se
perguntarmos quem é seu Pai, quem é sua Mãe-de-santo, há sempre uma desconversa; além
de não distinguirem os cargos e funções para os quais preparam os “filhos”. Também
insistem em chamar os homens de “iaôs”. Querem fazer crer que numa semana preparam
uma “iaô” ou, como dizem, um “iaô”. Em nenhum Terreiro de Santo que se preze de tal
nome, o tempo sempre foi bem maior. Já assisti a uma cerimônia de entrega de “deka” em
quatro (4) anos. [seria em 7] Não entendi. Também vi a entrega da obrigação feita na ocasião
embrulhada em papel. Também não entendi. Já vi a Ebame, com o Orixá, passeando no
quintal, isto é, no tempo, sem a proteção do Alá [pano branco que cobre a cabeça]. Não
entendi. Já vi Orixá, quando incorporado, falando a linguagem comum dos mortais. Dando
entrevista. Não entendi. Enfim, em nome da tradição já vi tanta coisa que nada entendi, como
não entendo. Outro fato grave é a falta de unidade, em especial, quanto ao calendário. Basta
ler o Byron, nas previsões para 1967. Ora, sendo o Orixá, Eledá, Espírito Elemental, da
Natureza, sua regência, variando em horas, etc, deve ser universal. Como numa mesma hora,
a pessoa nasça no Rio de Janeiro, esteja sob a regência de determinado Orixá; nascendo no
Rio Grande do Sul, Paraná, ou mais para o Norte, está sob a regência de outro Orixá?! Outro
fato são os atuais Ifás. Eles põem a pobre da consulente ou o consulente maluco. Para cada
um deles, o búzio ou delogum diz uma coisa. E por quê? Falta de conhecimento
orixalógico.250

Percebe-se que a diferença de iniciação, se considerar as informações de Ramos e Decelso,


variou de tempo, grosso modo, de um período de seis meses para uma semana, em 30 anos. Salve as

249
Arthur RAMOS. O Negro Brasileiro, p. 59.
250
DECELSO. Babalaôs e Ialorixás, pp. 29-30. Decelso reclama do uso de iaô para os homens, pelo significado
original da palavra, em iorubá, “esposa mais jovem”. No candomblé diz-se da filha-de-santo que se inicia, como a
esposa mais jovem, deve obediência aos mais velhos.

161
diferenças particulares, ficava evidente que as transformações no ambiente urbano das grandes
cidades impuseram um novo ritmo ao processo iniciático. A percepção dos sacerdotes mais velhos,
no entanto, tenderia a indicar como responsável pela mudança o desconhecimento e uma má
intenção de muitos que iriam à busca da iniciação. Pai Air José Bangboxê, referência baiana
presente no candomblé paulista, problematizava tal processo:
O que está acontecendo é que as pessoas estão deturpando muito. Primeiro de tudo procuram
o axé como se fossem tirar um diploma. O axé não é isto. O axé é dedicação. O axé é o amor.
O axé é carinho. Orixá é simplicidade. Orixá é igualdade. Orixá é humildade. Se não tiver
essas coisas, não tem nada. Hoje em dia só vê vaidade no axé. Quem vai iniciar, quer tirar um
diploma, e não é isso não! Orixá é simplicidade, igualdade, humildade. (...) Sim. Não vem do
orixá, com certeza. Vem da vaidade das pessoas. Então isso vai perturbando um pouco e acho
também que vai enfraquecendo. (...) se todo zelador procurar mostrar esse lado ao seu
iniciado e tentar segurar esse pepino. Mas depende da cabeça, da humildade de cada um. Na
verdade, a própria evolução do mundo e das pessoas está complicada. O que se aplicava antes
era diferente. (...) Às vezes aparecem cem pessoas lá e eu faço caridade, mas para lidar com
filho de santo eu não faço caridade, eu escolho quem está apto a assumir responsabilidade.
De cem eu tiro 2 para ser filho da casa. Como? Ah, pelo comportamento. No nosso ritmo lá
ninguém sai para o orixá da noite para o dia. Leva anos e anos sendo abiã da casa. Então dá
251
para conhecer, dá para saber quem é ou não é.

Sobre a fala de Pai Air, Leonardo Tobybnyjô complementava:


Os candidatos a filhos-de-santo hoje têm mordomias que não havia há 60 anos. Existe o
problema de região que nos obriga a mudar. Por exemplo, lá em Salvador a gente toma só
banho frio, mas durante o ano todo faz 30 ou 40 graus de calor. Aqui no sul a temperatura
chega a 2 graus. Se uma pessoa toma banho frio morre congelado! Então a gente tem que
quebrar o banho. Isso é contra o axé, é contra os ensinamentos, mas somos obrigados a fazer,
senão matamos a pessoa. Daí surge o problema. Fazemos essas adaptações que parecem
justas e acaba dando abertura para as pessoas acharem que podem fazer tudo, e não podem.
Por exemplo, uma pessoa abrir uma casa com dois ou três anos de santo só porque tem
diploma. Não é assim, nós fazemos o santo porque existe uma necessidade disso. Ninguém
252
faz o santo porque quer fazer. Mas o povo faz santo só por querer fazer.

A abertura de casas sem o preparo adequado foi percebido também em Maceió como uma
das transformações históricas sofridas e parte dos problemas atuais enfrentados pelas religiões afro-
brasileiras naquela cidade. Pode-se inferir pelos depoimentos que essa problemática da aceleração
da iniciação se intensificou em São Paulo a partir dos anos 1980, tendo como referência a data da
entrevista de Mãe Manodê e o tempo de iniciação dos mais jovens, aqui exemplificados. Esses
sacerdotes, mais velhos, tiveram suas iniciações feitas entre as décadas de 1930, 40 e 50 no
Nordeste, muitos ainda crianças, o que transpareceu nas diferenciações dos procedimentos rituais de
iniciação e talvez, na “qualidade e dedicação” do sacerdócio praticado. José Daniel da Goméia,
iniciado por Joãozinho da Goméia na Bahia nos anos 1940, ao ser questionado sobre a situação do

251
Revista Orixás, Candomblé especial, nº 12, p. 7. Entrevista com Pai Air José Bongbosé.
252
Revista Orixás, Especial, op. cit.

162
Candomblé atual, foi incisivo em identificar as diferenças de antes e de hoje, seus problemas e uma
possível solução:
Muito mestiçado! É o que eu falei antes. Muitas das coisas que eu vi na minha infância, hoje
eu vejo diferente. Nem todas as pessoas cumprem as coisas como antigamente. Não tem jeito.
Não tem como. Só nas matrizes a coisa continua certa. Até os iniciados quando saem, não
vão fazer mais as mesmas coisas como eram na casa dele. Ele vai fazer sempre uma coisa
diferente. Um filho que não é obediente. Ele diz: ‘a casa é minha, eu faço o que eu quero!’
Por esse motivo que eu disse que eu continuo cultuando nkisi. O nome certo é culto aos nkisi.
Então veio a seita e depois acabou. Agora não é mais seita, é religião. Não há uma cartilha
para as pessoas aprenderem. Se houvesse uma cartilha, a gente podia seguir. Então não pode
ser religião, porque para ser religião tem que haver uma cartilha. Como não tem cartilha
ninguém está errado. Todos estão certos. Se a pessoa se dá bem, então é por que está certo. O
que falta é união. Como era a união de antigamente. Não havia discriminação de nações.
Havia união de todas as nações. Eu sou da nação angola, aquele é jeje; o outro é keto; aquela
ali é nagô; esse aqui é ijexá, e outras nações. Todos cultuavam os seus orixás, os seus inkisis.
Não havia esta demanda de que eu vejo hoje, essa discriminação! Hoje é assim: eu sou isto,
eu sou aquilo. Um não vai à casa do outro. Isto está errado! Todo mundo quer aparecer,
principalmente depois que o nosso culto virou comércio. Podem ficar danados comigo.
Muitos fazem comércio sim. É como na igreja. Vai fazer batismo, paga! Vai fazer casamento,
paga! Por isso querem que o candomblé vire seita, porque assim têm o direito de cobrar. Eu,
José Daniel da Bahia, não cobro um centavo de pessoa alguma. Se quiserem, me gratifiquem
253
como puderem.

Tata José Daniel parecia aceitar a impossibilidade de se fazer as iniciações hoje como
antigamente. No entanto, a perda de referenciação às casas matrizes levaria os “filhos
desobedientes” a fazer tudo a seu jeito, intensificaria uma idéia do culto particularizado. Não há
uma cartilha, ou seja, não haveria uma codificação formal dos ensinamentos e ritos que pudesse se
sobrepor às diferenças particulares. Apesar das tentativas, como visto, de padronização das
Federações de Culto, nas décadas anteriores. Antes, segundo ele, a união entre as diferentes nações,
por laços de solidariedade, sobrepunha-se às divergências religiosas. A causa dessa situação, para
ele, seria a comercialização da religião. Ou seja, a assimilação do sistema capitalista. Inclui-se aí
fazer a iniciação para ter um “diploma”, necessário para abrir um terreiro próprio e poder-se “viver
do candomblé”. Antes o pai e mãe de santo tinham uma profissão (trabalho) além do sacerdócio.
Hoje, o sacerdócio afro-brasileiro seria a “profissão”.
Sabe-se que, as relações de trocas entre as divindades e os humanos fizeram parte de toda
tradição religiosa, assumindo que o “toma lá, dá cá”, no entendimento weberiano do tema, não seria
algo estranho às crenças mágico-religiosas. O problema residiria, talvez, na invisibilização dos
elementos comunitários que são parte essencial das religiões afro-brasileiras. Até que ponto a
percepção da necessidade de burocratização do Candomblé e da Umbanda teve influência do
regime da ditadura militar? Aparentemente, esse processo via movimento federalista impôs uma
ordenação e estruturação dos cultos – única forma de permitir a abertura das casas – que não era
253
Revista Orixás, Candomblé especial, nº 12, p. 13. Entrevista feita por Fernando Moretti em 7 de abril de 2006 no
Unzo Nkose Mukumbe, Diadema, São Paulo.

163
próprio dessas religiões, porém, as mudanças advindas da ordem social e econômica tornaram
impossível viver de outra forma dentro do sistema capitalista. Ou se buscava “sanear” a religião ou
se mantinha a perseguição aberta do Estado.
É possível, então, que na base das soluções “conciliadoras”, o mesmo se deu para as
questões rituais. De acordo com Silva, ter-se-iam criado alguns “paliativos” em São Paulo, nesse
período, para aqueles que não tinham condições materiais ou, por proibições rituais, de realizar a
iniciação (como para os filhos de Logunedé – deve-se esperar um intervalo de mínimo de sete anos
para que se possa realizar outra iniciação para este mesmo orixá em uma casa).254 Esta seria a
realização do bori que consiste em “dar comida à cabeça”, ao ori (cabeça) que é em si, uma
entidade, “com o objetivo de fortificá-la e ao mesmo tempo reverenciá-la, pois o orixá só tomou
aquela cabeça (aquele ori) porque esta assim o permitiu”.255 Representaria um nível anterior à
iniciação, de menor comprometimento, mas que englobaria como na iniciação: recolhimento,
sacrifício ritual e assentamento. Explicava Silva que, “o período de recolhimento tradicionalmente
varia de três a sete dias”, podendo ser realizado em “até um dia, dependendo da disponibilidade de
tempo do borizado e do pai-de-santo”. Costumaria ocorrer nos finais de semana ou feriados, “tendo
sido realizados os ebós (oferendas) e banhos rituais”. Dizia ele que,
Nesta cerimônia são oferecidos alimentos e sangue de um pombo à cabeça do borizado,
iniciando a aliança deste com seu ori e com seu orixá. O bori, embora durante muito tempo
tenha sido visto como uma das etapas da iniciação, fazendo parte do mesmo culto ao orixá,
hoje em dia, ao menos em São Paulo, adquire características de rito autônomo, adiando
indeterminadamente a iniciação, na medida em que pode ser realizado e renovado várias
vezes. No caso de dificuldades para a iniciação, o bori é feito com o intuito de “acalmar” o
orixá, sendo conhecido nestas circunstâncias como “cala a boca” do orixá. Ele possibilita,
ainda, a arregimentação de um número maior de fiéis, já que permite um maior grau de
liberdade em relação à conversão que se torna consumada na iniciação. Em São Paulo, o
número de borizados no candomblé costuma ser elevado em relação ao número de iniciados,
e é interessante notar que dentro da categoria ritual do bori criaram-se subdivisões entre o
“bori quente” (o que exige sacrifício animal) e o “bori frio” (“seco” ou de “água”) que
oferece apenas comidas secas (acassá, peixe “salgado” etc.) ou obi para a cabeça. 256

A renovação das práticas rituais, para adequar-se às necessidades dos fiéis inseridos no
mercado de trabalho, foi realizada de forma a criar, segundo Silva, “certa rotinização do bori”, ou
de práticas rituais “em pequena escala”, mas que mantiveram, ou procuraram manter, “os valores
fundantes dentro do sistema do qual fazem parte”.257 Tal mudança no processo de iniciação
demonstraria em São Paulo como as religiões adaptaram-se à realidade local, numa clara relação
dialética entre tradição e inovação. Mais do que a manutenção da forma, parecia ser claro uma

254
Vagner Gonçalves da SILVA. Op. cit., p. 124.
255
Idem, op. cit. O antropólogo Vagner Silva passou, ele mesmo, pelo ritual do bori no final dos anos 1980 em São
Paulo e o descreve em sua obra citada.
256
Vagner Gonçalves da SILVA. Op. cit., pp.124-126.
257
Vagner Gonçalves da SILVA. Op. cit., pp. 126.

164
necessidade de manter a essência significativa dos elementos simbólicos mais fortes, no caso, os
laços de pertencimento do borizado com seu orixá e com a comunidade-terreiro da qual buscava
pertencer. Os pais e mães-de-santo procuraram elaborar uma série de “acordos” com as entidades e
explicações litúrgicas que não entrariam em conflito direto com a essencialidade da religião, ou
seja, seus fundamentos. Mãe Sandra de Xangô, uma das sacerdotisas “reafricanizadas” de São
Paulo, expôs a questão da seguinte forma:
Há noventa anos o iaô ficava seis meses de quelê [colar ritual posto no início da iniciação],
depois três e agora vinte e um dias. Não que eu queria modernizar a religião – a religião é a
impressão dos orixás do nordeste; mas da mesma maneira como você entra hoje num
barracão e ele está pintado, o chão dele é cascolac ou carpete. Aqui quando eu comecei o meu
barracão era terra socada com areia em cima como o da minha mãe, mas dava um trabalho
louco, sujava a roupa, era todo aberto, chovia. Aí eu cheguei e joguei orobô no pé de Xangô e
pedi: “- O Senhor permite?”, e ele deixou. É muito difícil os orixás não deixarem
(determinadas coisas eles não abrem mão). Tá certo que nossa religião é a tradição dos
orixás, mas certas coisas podem e devem ser mudadas. Por exemplo, se eu digo: use material
individual ou esterilize. É claro que você não vai pegar o obé (faca) e colocar numa água
fervendo... Agora se você pegar a água oxigenada não tem problema porque ela é água e ar.
O emi, o ar; você não sopra na cabeça do iaô do mesmo modo que Olodumarê para dar vida
às formas que Obatalá cria ou cozinha, ele não dá o sopro criador, o emi, o ar? Então, nós
podemos usar material individual ou descartável... Na África raspa-se com uma pedra afiada,
uma lasca de bambu, com uma navalha, com uma gilete, com uma faca, uma concha, porque
o negócio é tirar o cabelo. Então, tem que ver o que é preceito: preceito é ficar careca; o que é
hábito: é a maneira de raspar. 258

O entendimento feito pela mãe-de-santo sobre a diferença entre “preceito” e “hábito” parece
indicar a solução encontrada por ela. Por que tais adaptações rituais seriam tão preocupantes para os
sacerdotes? Como visto no capítulo 2 o chamado processo de reafricanização do Candomblé,
principalmente naqueles de rito keto, já havia aberto a possibilidade de profundas alterações rituais
e litúrgicas, a partir da eliminação de elementos do sincretismo afro-católico – marco em 1983, com
o Manifesto das Ialorixás Baianas. Em São Paulo, não somente os terreiros keto, mas também os
angola-congo sofreram o impacto da reafricanização e da concorrência interreligiosa urbana.
Também a Umbanda, num processo próprio como visto, havia aumentado suas referências ao
orientalismo e algo da África, no entanto, sua iniciação manteve-se simples, incorporando a
participação no movimento umbandista como etapa de formação do sacerdócio.

258
Mãe Sandra ainda afirmava que: “Sete dias de roncó para mulher e nove para homem e o preceito na África, em
alguns lugares mantêm-se os dezesseis. Quelê: sete dias para mulher e nove para homem ou vinte e um. Agora três
meses de quelê para quem trabalha é muito... Vai depender da necessidade, mesmo porque para não cumprir direito... E
também a pessoa precisa adaptar-se e precisa ver se realmente há necessidade de iniciação. Porque tem a política de
terreiro onde tudo é motivo para iniciar, visando interesse financeiro... Eu tenho um menino aqui em casa que precisa
ser raspado, mas ele é advogado, e ele não pode parar três meses até o cabelo dele crescer num tamanho razoável, como
ele vai se apresentar pro juiz de quelê, de branco e de boné? Então a gente dá um bori à cabeça, dá comida ao orixá.
Então ele vai estruturar-se para se iniciar porque é muito difícil o orixá cobrar assim, a não ser quando a pessoa já nasce
dentro do orixá”. Vagner Gonçalves da SILVA. Os orixás na metrópole, pp. 136-137.

165
Tais mudanças de relação pareciam expor uma crise de expansão de tais religiões, na
passagem do mundo rural para o urbano, processo sentido por todas as religiões populares de
organização comunitária. Lembrando Bastide, este afirmava nos anos 1950 – acompanhando,
mesmo que por razões diferentes, Nina Rodrigues – que as religiões afro-brasileiras estariam
fadadas a desaparecer no mundo urbano industrial. O que se pode inferir talvez, seria que o modo
como tais religiões se estruturavam e organizavam na primeira metade do século XX, não pode
mais se manter do mesmo modo. Para sobreviver, sobrepor-se, proteger-se e atrair adeptos os
sacerdotes afro-brasileiros souberam criar novos modos que se adequaram às novas situações
cotidianas. Como visto, não sem conflito entre as diferentes gerações e não sem adaptações nos
rituais.
Outro ponto a ser considerado seria a referência constante dos entrevistados à “necessidade
da iniciação”. Essa necessidade diz respeito às questões espirituais envolvendo o iniciando.
Normalmente, há um sinal claro da exigência do orixá pela “cabeça do filho(a)”. Quando ele(a) cai
em transe durante uma festa pública, por exemplo, ficaria mais que evidente esta eleição. Outras
vezes pode dizer respeito a problemas de saúde, dos quais as causas físicas não ficaram evidentes. A
umbandista Dorli Barbosa, em entrevista comentava sobre a diferença entre as duas religiões e
sobre a iniciação:
Tem um pai-de-santo de outra casa, ele vai, toma a benção e reverencia; já no candomblé
não. Chegou uma pessoa de outra casa e “coro” está tocando lá, eles vão deixando o coro
sozinho vai batendo palma para a pessoa entrar, entendeu? É diferente. Só que é muito luxo
[no candomblé]. É muito caro para se fazer o santo. Só quem precisa mesmo fazer que vai,
né? Eles têm lá o ritual deles, quando alguém está muito doente, então eles fazem o “santo de
misericórdia”. Então todo mundo ajuda. Mas, eu já não sei, eu tenho uma cabeça diferente.
Eu penso: se é para ser feita, se ele [orixá] quer minha cabeça, tem que me ajudar a ganhar
dinheiro.

Para Dorli, a eleição feita pela entidade, mesmo apresentando-se como uma “necessidade”,
não deixa de ser negociada, na medida da troca pessoal que existe entre o filho e seu orixá. Tal
resolução, no entanto, por mais pessoal que seja, seria vivenciada no grupo, que solidariamente,
pode contribuir para a formalização da relação. De fato, o iniciando só poderia vivenciar
plenamente sua relação com o orixá através do grupo religioso, principalmente, no caso de um filho
“rodante” (que entra em transe) e que precisa de apoio financeiro para realizar sua iniciação.
Mas quando ele está doente, não tem como ele ganhar dinheiro. Então tem isso. Eu mesma
conheço uma menina que os médicos tinham desenganado. Aí uma amiga da mãe dela disse
para levar ela no Centro. Chegou lá, ela jogou e viu que a Iemanjá queria a cabeça dela de
todo jeito. E ela não tinha como fazer. Aí o que aconteceu: fizeram de misericórdia. Todo
mundo ajudou, o pai de santo ajudou. Ela tinha o cabelo na cintura, aquilo raspou tudo. Hoje
em dia quem a vê, não diz que era aquela mulher que estava desenganada. Tem coisas, que as
pessoas dizem: é macumba! Não se trata disso. Se todo mundo na verdade ou já foi, ou quer
ir, mas tem vergonha, fica dizendo que é macumba. Nós somos sete filhas na minha casa. Das

166
minhas irmãs, só eu que “vou pro babado”, como dizem. Só eu. Eu adoro e não tenho
vergonha de falar para ninguém que sou espírita. E gosto da minha religião.259

Segundo Dorli, o “santo de misericórdia” funcionaria como uma solução solidária para os
casos extremos de necessidade de iniciação. Em muitas falas o sinal de eleição ao santo e de seu
chamado foram os momentos de ruptura e renovação na vida do iniciando. O Babalorixá Alexandre
Ramos comentava sobre o “momento de encontro” com o seu orixá, em uma situação parecida com
aquela contada por Dorli. Dizia ele que quando tinha seis anos foi passear em Salvador/BA com
seus pais. Lá comeu um acarajé na rua e se sentiu muito mal, precisou ser internado. No hospital
não conseguiram fazê-lo melhorar. Foi aí que uma enfermeira disse à sua mãe que o levasse para
Mãe Menininha que o problema dele não seria curado ali. Ele foi então levado para o Gantois.
Contava que Mãe Menininha pediu que o deixassem lá com ela. Ele ficou sob seus cuidados
e em poucos dias melhorou. A mãe-de-santo jogou os búzios e viu que Alexandre era filho de Oxalá
(Oxaguiã), por isso havia se sentido mal ao comer o acarajé. Oxalá não come azeite de dendê. No
Gantois Alexandre foi iniciado ainda criança. Contou-me também sobre o seu primeiro momento de
transe, aos nove anos de idade, desmaiou durante um toque para seu orixá. Hoje, após tantos anos
de iniciado, pensa que foi escolhido pelos orixás, pois, em sua família, ele é o único com o dom. O
antropólogo Roger Sansi ao analisar a relação entre iniciação e dom no Candomblé260 comentava:
Poder-se-á dizer que, através da iniciação, também se constrói a pessoa da filha-de-
santo. A iniciação dura muitos anos, num intercâmbio em que a “pessoa” e o “santo” se
constroem mutuamente, porque fazer o santo é, de facto, fazer-se a si mesmo. Quando a
iniciada tem sete anos de iniciação e cumpriu com as suas obrigações rituais, já pode abrir a
sua casa de candomblé (se a sua mãe-de-santo permitir), no ritual da deca, ou “dar a
navalha”, com o qual se pode “raspar a cabeça”, iniciar. Porém o axé, a força vital da nova
casa, vai permanecer sempre ligado ao axé da casa original onde a nova mãe-de-santo foi
feita; na realidade, é o mesmo axé. 261

A iniciação estaria, assim, fortemente ligada ao processo de repasse da força espiritual (axé)
daquela linhagem de culto. Sua importância, na estruturação da religião, abarcaria todas as etapas
da experiência religiosa afro-brasileira. Mais ainda, garantiria sua reprodução no tempo e no espaço.
Segundo Sansi, a força e a capacidade da religião prolongar-se no tempo, estaria não somente na
hierarquia, mas na “capacidade inata” de alguns. Dizia, ele que,
(...) Esta narração é perfeitamente cíclica: um longo processo hierarquizado de
aquisição de conhecimento ritual mediado pelo poder absoluto da mãe-de-santo. “A
hierarquia é tudo: princípio, meios, fim. Sem ela, só há caos [...]”, diz Mãe Stella (1995),
mãe-de-santo de um dos mais antigos candomblés da Bahia e grande líder do movimento
contra o sincretismo. O axé, a força vital, reproduz-se, mas fica sempre igual a si mesmo.
Mas, hierarquia não é tudo. Da mesma maneira que nem todos são chamados a “fazer o

259
Entrevista com Dorli Barbosa em 16/11/2008, São Paulo/SP.
260
Roger SANSI. “Fazer o Santo”. Dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras. Análise Social, Vol.
XIV (1º), 2009, 139-160.
261
Roger SANSI. “Fazer o Santo”. Dom, iniciação e historicidade nas religiões afro-brasileiras, pp. 144-145.

167
santo”, nem todas as iniciadas serão mães-de-santo. Não é preciso apenas uma iniciação, mas
também um dom, uma capacidade inata de reconhecer e comunicar com o santo. O
candomblé não é só técnica, é também arte, e as pessoas com um dom particular podem
desfrutar desde o início de uma relação privilegiada com o seu santo e isso pode gerar
conflitos com as suas mães-de-santo.262

Sansi discutia em seu artigo a disputa entre os terreiros de rito keto na Bahia e aqueles
chamados “candomblés de Caboclo” do rito bantu (Angola-Congo), desconsiderados historicamente
como “sincréticos” e/ou “menos puros”. Ele procurava, por sua vez, legitimar a historicidade
existente na constituição das “entidades brasileiras”, os caboclos, feita pelos sacerdotes dos ritos
bantu, inclusive da Umbanda. Segundo o antropólogo, “os discursos não são só construções
artificiais, feitas de costas para a realidade, mas são feitos para confrontar essa realidade e gerar
novos objectos e novos sujeitos reais”. Portanto, “dizer que, no Candomblé, o discurso do retorno às
origens produz novas realidades históricas não implica necessariamente um crítica desse processo
de produção”.
Dizia ele que “é verdade que muitas vezes o discurso crítico da “invenção da tradição” no
Candomblé se manteve nesse nível de crítica da ideologia da autenticidade como construção
artificial, no sentido de falsa consciência; o meu argumento, acredito, vai um pouco mais além:
penso que essas construções [no caso os caboclos] não são falsas, mas geram novas verdades
históricas”. Para Sansi, negar a autenticidade dos caboclos, por exemplo, seria “questionar a
história”; muitos já seriam centenários. Muitas vezes esse conflito se daria, de fato, como um
embate entre as hierarquias dos Candomblés, numa clara disputa de poder.263
Esta seria uma questão interessante, pois implicaria em parte da discussão sobre a disputa
dos sacerdotes, entre aqueles que são iniciados e teriam “certeza” das origens de seus axés
(fundamentos) e aqueles que não sendo iniciados “formalmente”, teriam recebido sua iniciação via
entidades ou guias (dom individual que se manifesta), considerando tal iniciação válida da mesma
forma. Uma mãe-de-santo da Umbanda dizia que tudo o que sabia havia aprendido com seus guias,
em especial, o seu Caboclo Pena Roxa. “Tudo em minha casa é feito como eles determinam”. O
discurso de legitimidade de seu sacerdócio, feito diante de seus filhos, não queria deixar dúvidas
sobre seu conhecimento e a validade de seus fundamentos. Em outro momento, no entanto, ela
afirmou ler muito da literatura umbandista existente, principalmente, a do autor Rubens Saraceni.
Concordando com Sansi, a construção histórica das explicações dadas pelos agentes da religião, não
seriam menos válidas, do que aquelas constituídas em outras religiões. O “dom pessoal”, recebido
via transe, ou o contato com as entidades e os “santos” percebidas no cotidiano, seriam formas
suficientemente marcantes na vida do iniciado.
262
Roger SANSI, op. cit.
263
Roger SANSI, op. cit., p. 157.

168
Caboclos Rompe Mato e Pena Roxa
Tenda de Umbanda Nossa Casa, Lapa, 2009.
Foto: Irineia Franco

Aparentemente, essa capacidade de ressignificar-se, notadamente percebida pelos


pesquisadores das religiões afro-brasileiras, ainda não teria sido entendida em sua totalidade. O
mecanismo, a estratégia ou a capacidade dialética de transformar-se de acordo com a realidade
circundante, por mais negativa que esta se coloque, poderia ser o segredo, o fundamento da
religião? Pensa-se que, muito da preocupação dos sacerdotes nos anos 1990 e 2000 estava na perda
dessa capacidade de reproduzir-se em longo prazo ou manter tal habilidade adaptativa. Por isso,
seria tão importante a preservação da “tradição” através do “conhecimento orixalógico”, dos
“preceitos” que não poderiam ser confundidos com os “hábitos”. Não seria por acaso que Exu –
expressão de tal força transformadora (manipuladora de energia vital) – é o primeiro a ser louvado,
tanto no Candomblé como na Umbanda. Tem-se que o jogo dialético entre tradição e inovação,
exemplificado na problemática da iniciação, foi também sentido no que diz respeito à manutenção
da memória histórica das comunidades-terreiros que expressava, por sua vez, o conhecimento das
origens do poder mágico-religioso do Candomblé e da Umbanda, as raízes de seu axé.

Caboclos em sessão de “desenvolvimento com os médiuns”


Tenda de Umbanda Nossa Casa, Lapa, 2009
Foto: Irineia Franco

169
A manutenção da memória, da ancestralidade e do poder mágico-religioso
A problemática levantada a partir do ponto de vista dos sacerdotes apresentaria um
movimento de abertura nos cultos afro-brasileiros em São Paulo, a partir dos anos 1980 e
intensificada nos anos 1990 e 2000, para adaptar-se à vida urbana, indicada nas renovações rituais
de iniciação, na relação entre babalorixá/ialorixá/zelador e iniciando, no acesso ao conhecimento
“tradicional”, etc. além do “perigo” da possível perda de poder mágico-religioso, devido à quebra
na transmissão deste. Na memória desses sacerdotes, o antes e o hoje que marcaram essas
diferenciações, também estaria fortemente posto, nas relações de convivência e solidariedade entre
as casas de culto. Mãe Beata de Yemonjá relacionou a memória da vida comunitária com as
amizades que fez com pessoas de diferentes nações e terreiros. Para ela,
Os de antigamente era gostoso porque o pessoal era mais unido e se respeitava. (...) Quando
você colocava um Yaô, os mais velhos, os ebomis, todos iam e chegavam ao final da tarde
para ajudar a Ialorixá, mas hoje em dia, quando convidam algum Babalorixá ou Ialorixá para
ajudar a fazer algum Yaô, os mesmos saem dizendo que foram em determinadas casas para
fazer o Santo porque eles não sabem fazer o Santo. Isso não é ético. Não podemos dar aula,
porque não somos professores da religião e sim alunos, porque estamos sempre aprendendo.
264

Esta falta de solidariedade atual entre os religiosos teria levado, segundo Mãe Beata a uma
diminuição do repasse dos conhecimentos e segredos da religião. O despreparo dos sacerdotes faria
com que muitos erros fossem cometidos.
(...) Hoje em dia o que vejo no Candomblé é que os antigos levaram todos seus segredos e
colocaram dentro de uma panela de barro e enterrou para não passá-los para ninguém, e hoje
em dia, vimos muitas coisas e não podemos falar, pois eles não passaram para os seus omo-
orixás. Uma certa vez vi uma Ialorixá dizer num programa de televisão, porque perguntaram
à ela para que servia o xaorô265 e ela disse que o xaorô era segredo de roncó. Isso não é
verdade, pois ela não soube explicar que o xaorô é para saber onde o iaô está, seja na roça,
em volta da casa ou buscando água na fonte, mas ela não soube explicar. Infelizmente, não
teve ninguém que explicasse para ela, mas tem uma coisa: eu passo aos meus omo-orixá tudo
no seu tempo, quem tem um ano de santo aprende as coisas de 1 ano, quem tem 3 anos
aprende as coisas de 3 e quem tem 7 aprende de 7 e assim sucessivamente, pois todos tem os
seus degraus.266

Do perigo de perda do poder mágico-religioso e do desconhecimento dos emblemas e rituais


do culto, teve-se por outro lado nas últimas décadas, o perigo da perda da memória dessa

264
Revista Orixás e as maravilhosas histórias dos deuses da criação, Ano 1, nº 05, pp. 18-19.
265
Diz Raul Lody sobre o Xaorô: “No traje do iaô, noviço, dentro da estrutura sociorreligioso do candomblé, o xaorô é
um dos símbolos da iniciação, um produtor de som. O xaorô é formado por dois guizos de latão em fios trançados de
palha-da-costa, que se mantêm no tornozelo do iaô durante todo o período de iniciação e por algum após a cerimônia do
nome – oruncó, quando o noviço publicamente diz o nome próprio do seu deus tutelar, ultrapassando importante etapa
do longo e complexo período da feitura. O som do xaorô anuncia a chegada, serve para localizar o iaô e também para
evitar sua fuga. É costume dizer que a iniciação é um processo rigoroso e até mesmo cruel, fazendo com que muitos
iniciados se arrependam e queiram liberdade imediata; o xaorô serve, então, como sinalização do noviço, além de lhe
auferir sua condição de recém-feito e iniciante na trajetória dos cargos hierárquicos do terreiro”. In LODY, Raul.
Dicionário de Artes Sacras & Técnicas Afro-Brasileiras, p. 286.
266
Revista Orixás e as maravilhosas histórias dos deuses da criação, Ano 1, nº 05, p. 19.

170
experiência coletiva de religião popular. Como visto, nem sempre o reconhecimento dado pelo
Estado em alguns casos, conseguiu ampliar o entendimento do valor das religiões negras. O
depoimento de Cidália de Iroko (Gantois), apesar dessa ressalva, seria o mais otimista, pois
confiava que os mistérios e fundamentos da religião continuarão sendo mantidos pelos mais velhos.
Assim, os fundamentos da religião não acabariam, porque a força do axé “nunca se quebra”. As
histórias pessoais, as memórias, também teriam, para Egbomi Cidália, a capacidade de reforçar e
perpetuar o axé. Diz ela,
Os fundamentos nunca acabam, quanto mais surgem livros tentando desvendar os mistérios e
fundamentos do Candomblé, mas os liberes (pais e mães de santo, egbomis, ambas etc) se
fecham, e aumentam os segredos em torno desses preceitos. Fundamento nunca se acaba. O
axé nunca se quebra, quem se quebra são as pessoas... Se axé é força que está sendo cultuada
há vários anos, como uma pessoa pode desestabilizar o axé? Por exemplo, é o que sempre
falo quando vou dar uma entrevista: e repórter não quer saber de ser pai de santo e sim saber
das histórias relacionadas ao candomblé. (...) mais que uma mensagem, o que eu gostaria de
pedir até aos meus irmãos todos, principalmente aos adeptos das religiões africanas, os
terreiros em geral, é que contem histórias, a única coisa que está precisando ultimamente.
Pois os novos que estão chegando agora estão sem histórias. Todos nós temos uma história de
axé para contar, temos sim! Uma história bonita. Quem foi que entrou como omo-orixás que
não tenha uma história bonita? O candomblé não anda de porta em porta chamando ninguém.
Eu trabalhei 25 anos como cozinheira de hotel, eu tenho a minha história civil! E de axé! Será
que só quem tem história no candomblé sou eu? Acho que os terreiros estão precisando de
história... Cadê a história do povo? De como cada um chegou ao seu respectivo terreiro? Não
267
somente as mães de santo, mas todos os mais velhos no axé têm uma história para contar.

Essa força da memória, das histórias dos antigos serviria como reforço da ancestralidade. A
compreensão desse fundamento pode-se dizer, estabeleceria a diferenciação na qualidade da
iniciação, das relações comunitárias e da prática da religião. Serviria, por sua vez, para o
enfrentamento da repressão político-ideológica, existente e persistente, nas décadas de 1990 e
2000. Cidália colocava em sua fala, a intemporalidade dos fundamentos e do axé, capazes de
continuar, na força do culto. Mesmo dependentes dos segredos, seriam independentes das pessoas.
A confiança na capacidade reprodutiva parecia, em sua fala, ser dada na força das histórias do povo-
de-santo e dos terreiros. Estas expressavam valores da vida comunitária.
Tata Talamonakô (Manoel Cremildo da Cruz) da Casa de Angoro (Bessem) de Salvador,
também afirmava os valores do Candomblé, mas prevenia aqueles que não buscassem corretamente
a iniciação:
Para quem está lendo esta revista e deseja ser iniciado no Candomblé, eu digo que é preciso
ser humilde. Não pense que Candomblé é riqueza, porque Candomblé não é riqueza,
Candomblé é humildade! Candomblé é cuidar da ancestralidade, é cuidar dos antepassados.
O Candomblé não enriquece ninguém. Se você não trabalhar, não poderá ficar rico. Tem
muita gente hoje querendo entrar no Candomblé achando que vai ficar rico e que seus
problemas vão acabar. Não é assim não. Não venha com esse pensamento, porque o
Candomblé em si cura, mas também mata. A ancestralidade não lhe dá somente vitória,
porque se você o ofende, ele também vai lhe dar uma resposta. E digo mais, é muito difícil

267
Revista ORIXÁS, Candomblé e Umbanda, Ano II, nº 9, pp. 44-45.

171
falar sobre o Candomblé, sobre a religião, porque cada pessoa vê a religião de uma maneira
diferente. 268

Segundo este pai-de-santo, a seriedade da experiência religiosa do Candomblé precisaria ser


afirmada para esclarecimento dos incautos. A dificuldade para explicar a religião para aqueles que
não tenham a mesma “maneira” de entendê-la foi explicada por ele, no exemplo de Inzila (nkisi
com características similares ao orixá Exu).
Tem gente que vê Inzila como Satanás. Ele não é Satanás, ele é um dos nkisis mais sabidos,
mais conhecedor... É o senhor do caminho. Então lhe digo com sinceridade, peço até desculpa
pelo que vou falar. Vejo Inzila semelhante no conhecimento como filho de deus – quero dizer
como filho de deus em conhecimento – porque Inzila tem caminho para todas as finalidades.
Ninguém pense que Inzila é agressivo. Não veja Inzila pelo lado da maldade. Ele não é mau,
ele é o bem. Tudo depende do que se vai pedir para ele fazer, porque ele não faz nada de
graça. Ele não vê o bem nem mal. Se receber uma oferenda ele vai resolver o problema para a
pessoa. Ela é quem quer o bem ou mal. O mal está na cabeça das pessoas. Se o pai-de-santo
ganha para fazer o mal, também vai ter que pagar pelo erro que está cometendo em ganhar o
dinheiro para fazer o mal aos outros. Tudo tem causa e efeito. Um dia você vai pagar todo o
mal que está fazendo, seja lá como for você vai ter que pagar por aquilo. Não venda sua
espiritualidade, porque tudo tem o seu preço.

Assim, Tata Talamonakô identificava na explicação religiosa do papel de Inzila (Exu) –


igualado “com desculpas” em conhecimento ao “filho do deus” cristão – o modo como o
Candomblé “funciona”. O poder mágico-religioso não seria um caminho de uma única via, mas
uma relação causal (de causa e efeito) que precisaria ser compreendida profundamente para ser
vivenciada. A “ameaça” contra aqueles que fazem mau uso dos preceitos, soava como um
dispositivo de segurança, contra a deturpação daquela experiência sagrada e como salvaguarda das
relações entre os “humanos e os deuses”.
A respeito da transmissão dos segredos das religiões afro-brasileiras e da relação entre
tradição e inovação, nos anos 1990 e 2000, as mudanças acarretadas pela maior visualização dessas
religiões, o aumento dos textos de divulgação, teria levado a quebrar a predominância da autoridade
sacerdotal nos processos de iniciação. O maior número das casas de culto, devido à expansão e a
maior quantidade de iniciados poderia ser incluído entre os fatores que consolidaram essas
mudanças. Tal visibilidade indicaria transformações e novas problemáticas, como a necessidade de
articulação (união) contra a discriminação religiosa e a repressão policial e político-ideológica.
Como afirmado em outro momento, as Federações de Umbanda e Candomblé que surgiram em São
Paulo, desde os anos 1950, foram vistas como um caminho de organização e legitimação religiosa e
política e, para proteção e estruturação dos terreiros.269 No entanto, sob a tutela do regime ditatorial,

268
Revista Orixás, Candomblé especial, nº 12, p. 19. Entrevista feita por Fernando Moretti em 7 de abril de 2006 no
Unzo Nkose Mukumbe, Diadema, São Paulo.
269
Sobre as Federações ver em NEGRÃO, Lísias. Entre a Cruz e Encruzilhada: formação do campo umbandista
em São Paulo. São Paulo: EDUSP, 1996.

172
burocratizou-se fortemente a abertura e manutenção dos terreiros e tendas, criando-se mecanismos
de adaptação à sociedade capitalista.
A relação entre as mudanças apresentadas demonstraria que o ambiente social e urbano, em
São Paulo, impôs aos rituais das religiões afro-brasileiras novos modos de vivência da religiosidade,
diferente daquelas do catolicismo e do evangelismo tradicionais. A tradição das religiões afro-
brasileiras manter-se-ia na memória e na história de vida dos mais velhos, garantindo a força do
axé. A inovação, para ser íntegra, deveria vir acompanhada da fortificação dos laços de
solidariedade comunitária entre os terreiros, federações, redes de ajuda mútua etc, para garantir a
proeminência e o fim das perseguições às religiões afro-brasileiras. Alguns como visto, apostaram
na “vingança do deuses” contra a modernidade alienante e desagregadora. Outros, na moralização e
na ética dos sacerdotes e filhos de santo.
No entanto, no entendimento que os diferentes sacerdotes e sacerdotisas tiveram sobre o
processo de constituição e expansão das religiões afro-brasileiras, em São Paulo, no período aqui
estudado, demonstraria uma preocupação com a identificação e a memória das linhagens de
origem, que serviria tanto para comprovar sua genealogia como para justificar as práticas ditas
“puras”. A denúncia “purista” da possível existência de “falsos” pais e mães-de-santo fundadores
das linhagens em São Paulo criaria uma situação delicada para o convívio entre as comunidades-
terreiro, numa transposição dos modelos rituais do Nordeste ao Sudeste. Antes, tal questão não
existia como problemática, já que a tradição do Cangerê e da Umbanda eram locais. No entanto,
para os “candomblés de nação”, aparentemente, continuaria existindo tal situação ainda nos
primeiros anos do século XXI. Tata Talamonakô, em uma entrevista concedida em 2006 afirmava:
Hoje vemos muita gente se dizendo Tata de Nkisi, nengua de nkisi, e na realidade não tem
conhecimento profundo daquilo que estão falando e ficam jogando nossa etnia fora. (...) não
tem como não. Eles se dizem pai-de-santo e realmente não foram iniciados, mas tem casa de
Candomblé. Quanta gente tem por aí dizendo mãe-de-santo e não foram iniciadas. Como
vamos provar e como vamos dizer a eles que não podem proceder... (...) É isso. Vou lhe dizer
uma coisa, têm muitos que não querem trabalhar e sim viver do Candomblé. A situação
financeira dele é zero. Então quando o cliente chega, ele aplica mil e uma coisas para poder
lhe tomar o dinheiro. Se tudo deu certo, muito bem, mas se não deu certo o candomblé cai na
descrença. Não se pode usar o nome do Candomblé para sobreviver. Isso acaba com a etnia,
com a religião. Infelizmente é isto, mas não podemos chegar à casa dele e dizer “você não vai
fazer isto”! Temos que contar com a consciência dele.270

Talamonakô entendia o problema dos “falsos pais-de-santo” como um grave prejuízo à


religião e à etnia (rito angola-congo). Por outro lado, permitiria observar as dificuldades sócio-
econômicas sempre presentes àqueles que praticam essas religiões. Também a clara identificação

270
Revista Orixás, Candomblé especial, nº 12, pp. 18-19. Entrevista feita por Fernando Moretti em 7 de abril de 2006
no Unzo Nkose Mukumbe, Diadema, São Paulo.

173
dos “marmoteiros” ou “marreteiros-místicos”, como aqueles sem iniciação ou sem a iniciação
considerada correta.
Silva, afirmava que “aqueles que conheci (...) sabem a sua genealogia, mas não é um assunto
sobre o qual insistam, principalmente quando esta genealogia não os remete aos importantes
terreiros da Bahia e de outros lugares”.271 Isso parece explicar a grande necessidade de reforço da
ancestralidade, na indicação de um forte poder mágico-religioso, diferencial para conseguir mais
clientes e filhos. Surgiria daí outra problemática: a necessidade de estruturação das federações de
culto para “controle” do Candomblé. Para Silva “as transformações na noção de nação e linhagem”
que ocorreram em São Paulo seriam “significativas, não apenas por representarem alterações
substanciais nos termos da religião, como por exemplo, nas visões cosmológicas que definem o que
é axé e onde se adquire o que são os deuses e por que devemos cultuá-los, mas ainda por indicar
alterações nas relações entre extremos que, de certo modo, apontam em direção a uma percepção
que as pessoas fazem desta religião no contexto onde interage”. Tal percepção, para o antropólogo,
expressar-se-ia em “ações, muitas vezes contraditórias e conflitantes”: (a) de um lado, “estariam os
grupos tentando resgatar linhagens e nações como uma forma, não única, de controle do axé e
gestão do sagrado enquanto bens simbólicos”, e, (b) de outro, “aqueles que acham que o poder
religioso, o controle do sagrado mágico, não deve ser balizado em função dos rígidos contornos da
família religiosa ou da herança por linhagem, pois a legitimidade de cultuar os orixás, nas
sociedades que definitivamente abandonaram as lealdades por linhagens ou clãs, antigas
reguladoras dos acessos aos bens econômicos, políticos e simbólicos, foi estendida
sociologicamente a todos os grupos e pessoas que atuam no mercado pluricultural das cidades”. Isto
estaria de acordo com “as noções de igualitarismo, liberdade de oportunidades e de cidadania que
colocam os grupos em relativa autonomia para estabelecerem negociações e diálogos que os
identificam e definem sua esfera de influência tanto no mundo secular como no religioso”.272
No entanto, essas percepções acabariam por se entrelaçar na própria realidade cotidiana.
Com o passar do tempo, tornar-se-ia mais difícil identificar as origens “corretas” (“puras”) das
linhagens e a reconstrução de uma memória nas bases da tradição oral começaria a ser reconstituída
pelo conhecimento formal (muitas vezes, intelectual) que o pai ou mãe-de-santo podem comprovar.
Nesse sentido, tanto contribuíram, como já afirmado, o movimento de reafricanização, como
também, o maior uso dos meios de comunicação e mídias impressas. As dificuldades para se
estabelecer relações de cooperação, entre os diferentes terreiros em São Paulo, deixavam entrever o
tamanho do problema enfrentado pelas Federações. A análise apresentada apontaria que as

271
Vagner Gonçalves da SILVA, op. cit., p. 116.
272
Vagner Gonçalves da SILVA. Op. cit., pp. 117-118.

174
transformações sofridas pelas religiões afro-brasileiras nos ambientes urbanos no final do século
XX poderiam ser identificadas na expansão numérica dos terreiros em diferentes linhagens e
nações, nas diferenças de iniciação, na percepção dos babalorixás e ialorixás da inevitabilidade
dessas mudanças, na relação de repasse do conhecimento litúrgico e mágico-religioso, na prática
atual do sacerdócio etc. Nessas quatro últimas décadas, os valores e as práticas comunitários
parecem dar lugar aos valores e práticas da sociedade industrial capitalista, acompanhando a
fortificação do processo de industrialização dos centros urbanos. Veja-se abaixo, como exemplo, o
quadro de valores, montado a partir das fontes apresentadas:

Quadro de valores e práticas na percepção da hierarquia religiosa afro-brasileira


Valores e Práticas Antigos (anos 1930-1960) Valores e Práticas de Hoje (1970-2000)
Dedicação Improviso
Humildade Vaidade
Amor “folclorização”
Carinho “pagode”
Simplicidade Egoísmo
União Conflitos
Respeito Desrespeito
Obediência Desobediência; Falta de Ética
Convivência Comunitária Desunião, concorrência entre os terreiros
Iniciação mais rigorosa Iniciação adaptada
Sacerdócio visto como “vocação” Sacerdócio visto como “profissão”

Conflitos religiosos e (re)ações afirmativas: análise de um discurso político


Os últimos decênios do século XX foram no Brasil, considerados por alguns, como o
período em que sua população precisou “reaprender a democracia” após o regime militar. As
primeiras eleições diretas para presidente da República, em 1989, explicitavam nos seus candidatos
vontades de mudança versus a “tradicional” luta política pelo controle do poder entre as elites.
Marcou nesse momento a interferência dos meios de comunicação na campanha presidencial – no
caso do debate editado pela Rede Globo entre Fernando Collor de Mello e Luiz Inácio Lula da Silva
que favoreceu o primeiro. A vitória de Collor teria representado a vitória das políticas econômicas
liberalizantes (“globalização”) e a consequente perda de direitos trabalhistas. Durante a crise
política do impeachment, entre 1990 e 1995 (Plano Real), o cenário político nacional era de
conturbação, quebra e criação de alianças momentâneas de poder, denúncias de corrupção e
aumento das demandas sociais. Na imprensa encontrava-se nesses primeiros anos da década,
referências a uma “macumba política” ou “umbanda política” em que teria se tornado o congresso e
o senado nacional, significando “confusão” e “bagunça”, “mistura” de interesses econômicos e/ou
ideologias políticas de momento. O reforço racista que advinha desses abusos de linguagem
confirmaria uma associação direta entre os interesses das elites (econômica e política) e a

175
resistência à implantação das demandas do movimento negro do período anterior, além das
dificuldades de real democracia para as religiões afro-brasileiras.
Sabe-se que a perseguição às religiões afro-brasileiras foi constante no período escravista
entre os séculos XVI e XIX. No entanto, no pós-abolição, fortificou-se durante a tentativa de
formulação da identidade nacional brasileira com caráter de uma república moderna e industrial. As
elites urbanas pensavam que só seria possível alcançar tal objetivo através de políticas voltadas para
o branqueamento da nação através do incentivo à imigração européia, e da eliminação de traços de
comportamento e cultura tradicionais que remetessem ainda ao passado escravista e rural. Ou seja, o
velho problema, “o negro” no Brasil, tornar-se-ia questão essencial ao se dar à população negra o
status de cidadã, sem sua real concretização em bases socioeconômicas e jurídicas. São conhecidos
e foram mencionados os diferentes mecanismos de jurisprudência criados para limitar o acesso à
terra aos ex-escravos (Leis de Terra de 1848), além da criminalização de suas práticas culturais
religiosas, ou a destruição de seus locais de cultos e socialização na cidade de São Paulo, por
exemplo. Por trás de tais regulamentações encontrava-se o racismo histórico, reafirmado na regra e
encoberto, posteriormente, pela ideologia da democracia racial.
Segundo Petrônio Domingues, ao se discutir a estruturação das práticas de racismo na
sociedade paulista encontrava-se, por exemplo, a exclusão do negro no período de formação do
mercado de trabalho, inclusive em cargos públicos, a perseguição policial e discriminação no acesso
à educação.273 A literatura sobre as religiões afro-brasileiras também apresentou graus de
interpretação racistas. Antes de Nina Rodrigues apareciam poucos comentários sobre elas sempre
em páginas de jornal e nas crônicas policiais em processos criminais. O Código Penal de 1890,
como se viu, punia aqueles que “praticavam a magia e seus sortilégios para despertar sentimentos
de ódio ou amor ou subjugar a credulidade pública”.274 A necessidade de regular tais práticas
permitiu aquela violência contra os terreiros e casas de culto e a perseguição aos seus sacerdotes e
sacerdotisas. Mesmo com a permissão oficial dos toques, a perseguição e a violência policial contra
os terreiros permaneceu no período de abertura democrática e ainda persiste na primeira década do
século XXI.
Nesse contexto, a relação entre as mudanças das últimas décadas e as reações dos grupos
religiosos, poderia ser problematizada a partir da fala do umbandista José Umberto Gonçalves. Ao
ser questionado sobre os desafios enfrentados pelas religiões afro-brasileiras, assim respondeu:
Tem problemas. Eu acho que você precisa de mais política. Mais política. Nós negros, não
temos quem nos ampare até hoje. Tivemos aí a princesa Isabel com a Lei Áurea, aí foram lá

273
Petrônio DOMINGUES. Racismo: uma história não contada, p. 102.
274
Yvone MAGGIE e Peter FRY. “Apresentação” In: RODRIGUES, Nina. O Animismo Fetichista dos Negros
Baianos, p. 10.

176
nos tribunais deles, bateu o martelo, os negros estão todos libertos, mas como é que eles vão
viver? Você não tem uma lei até hoje. Então eu acho que a religião, o espiritismo também
não tem esses amparos. E pro resto de tudo que você vê no Brasil e no mundo existe lei. Mas
pra esses dois fatores, não existe [o negro e sua religião]. Porque começamos a nos afirmar
agora... Há muito tempo, mas agora que está aparecendo mais... A tecnologia está aí, boa...
Quando você dá uma esperneada um pouquinho mais alto, alguém vai te ouvir. Então acho
que é isso que está acontecendo. Porque o espiritismo ele tem esse lado bom. Eu nasci. Pro
resto do mundo eu seria errado... Te conheço hoje, sou muito seu amigo, mas se amanhã eu
desagradasse de alguma coisa, mal não ia te fazer, mas se eu visse que você fosse fazer
alguma coisa, prejudicar ou me prejudicar, se eu não achasse um jeito de impedir aquilo, eu
virava as minhas costas e ia embora... Então, eu não era capaz de discernir a coisa direito,
mas hoje não, você vê o que é a religião para mim, ela me permitiu... Acho que assim é pra
muita gente, sinal que a coisa está certa. Então, acho que a busca das pessoas, hoje em dia,
tanta religião, tanta promessas, tanta coisa, o espiritismo ele está aí, assim desse jeito, não só
pra um, para todo mundo, para muita gente. Então, o pessoal está segurando com mais afinco
essa bandeira. E uma hora eu acho normal poder chegar a determinado ponto em que a gente
vai ter pessoas nos representando, tanto de dentro como de fora da religião, porque pra tudo
você tem que ter apoio, já que o pensamento é político, né? O pensamento do mundo, ele é
político. Então, a gente tem que dar um jeitinho de chegar nessa parte, aí sim, vai ficar
melhor. Vai chegar onde tem que chegar.275

Entende-se dessa fala que a discussão sobre a relação estabelecida entre as religiões afro-
brasileiras e os órgãos públicos no país continuaria mediada pelo racismo. No entanto, a religião
propiciaria uma tomada de consciência de si mesmo e de seu lugar no mundo, indicando
possibilidades de luta para mudança da situação política negativa. A representação racista através de
estereótipos sobre o negro e sua cultura impediria uma relação justa (impessoal) entre as partes, ou
seja, o estabelecimento de relações imparciais diante da lei e no que diz respeito aos direitos.
Apesar da “afirmação de si” iniciada, os direitos de cidadania da população negra não são
respeitados, pois se assumiriam pressupostos de valoração “não oficiais” de sua cultura, mas que
não se sobrepõem e interferem no cotidiano das relações de poder. Entender e discutir este processo
seriam essenciais, como afirmava Wilson do Nascimento Barbosa,
A história brasileira é uma história de silêncios, de mentiras à sombra, de omissões. Dentro
desse contexto, a história do negro é de um silêncio absoluto [...] A importância da discussão
dos tabus da sociedade é uma das tarefas dos intelectuais. Entretanto [...] a maioria não gosta
de discutir assuntos polêmicos. Servem ao status quo. Praticam as normas do silêncio racial.
Se o racismo é uma fera, de nada adianta manter o silêncio. Ele despertará com fome, após o
sono digestivo. Nosso dever é enfrentá-lo sempre. Não mantê-lo adormecido.276

Uma das maneiras de se abordar a discussão dessa relação seria verificar como o racismo foi
identificado, discutido e combatido pelo povo-de-santo e suas lideranças. O enfrentamento se daria
no cotidiano, nas relações estabelecidas entre os terreiros e a vizinhança. Por isso, foi importante
identificar na fala dos líderes do Candomblé e da Umbanda suas leituras do problema e suas
respostas a ele. Como referência, escolheu-se o discurso proferido pelo Babalorixá Sidney de
Xangô, servindo aqui como eixo de referência para análise. Foi um discurso político na sua acepção

275
Entrevista com José Humberto Gonçalves, São Paulo, 02 de agosto de 2011, Tenda São Benedito, Pinheiros.
276
Petrônio DOMINGUES, op. cit., p. 83.

177
geral, pois apontava os problemas enfrentados em seu terreiro nos anos 2000 e procurava enxergá-
los dentro de um contexto político-social mais amplo. Gravado e transcrito como segue abaixo,
optou-se por corrigir a fala em texto formal, mas sem alterar o sentido ou a estrutura das frases. A
divisão foi feita de forma a destacar o tema central em cada trecho de fala criando, assim, blocos de
sentido. Ocorreu no terreiro de Sidney de Xangô no dia 26 de outubro de 2008, no encerramento de
um xirê (festa pública). Neste dia realizou-se, segundo seu calendário, a festa das Iabás (orixás
femininas, mães, responsáveis pela fertilidade) e a obrigação de sete anos da iaô Kátia de Oxalá.
Esta pequena etnografia tem a intenção de ser exemplar do processo de transformação histórica,
através da apropriação do discurso democrático e das ações políticas pelas religiões afro-brasileiras
no período analisado.

Quadro de Xangô – Ilê Alaketu Axé Xangô – Osasco/2008

Não foi possível identificar no momento da observação se o discurso proferido era


corriqueiro nas festas públicas deste terreiro. Ficou claro, no entanto, que muito da fala do Pai
Sidney devia-se a presença das “visitas de fora”, os amigos pesquisadores de Pai Alexandre, que
nos apresentou à comunidade. Muito do que foi dito era para que “os de fora” percebessem a
realidade do terreiro e entendessem mais sobre a religião Candomblé. Apesar da riqueza de temas
possíveis a ser discutidos na observação de todo o ritual, aqui se privilegia o discurso. Ei-lo:
1. Queremos agradecer em nome da Kátia que está tomando obrigação de sete anos e em
nome da nossa casa também, às pessoas que colaboraram e ajudaram aqui. Também na obra,
em arrumar quarto de santo, colaboraram com pouco, com a mão-de-obra. Quem não tinha
dinheiro para colaborar, mas veio passar um pano no chão. Tem gente que está aqui há
quinze dias, correndo, arrumando, dormindo três, quatro horas da manhã, ajudando.

178
Sabe-se que os terreiros de Candomblé formavam-se em torno de uma família de sangue, no
geral, a família do pai ou da mãe-de-santo, estabelecendo-se vínculos entre eles e os filhos-de-santo,
iniciados por aqueles, o que vai constituir por fim, a família-de-santo. Esta família alargada
estruturava em termos religiosos as tarefas do cotidiano para manutenção do terreiro. Ela fortificava
importantes relações de ajuda mútua nos ambientes de periferia. Este aspecto marcaria muito a fala
de Pai Sidney, pois ele estabeleceu nessa relação entre os filhos de santo, amigos e parentes a
identidade positiva de sua religião.
2. Porque o Candomblé é uma religião de negro, que é ainda perseguida pelos evangélicos e
cristãos que falam besteira da nossa religião, que a gente mata criança, que a gente estupra,
que a gente rouba. E vocês estão participando do Candomblé e estão vendo que não é nada
disso. Que as pessoas que estão aqui presentes, que participam do dia-a-dia vêem que é uma
família, uma comunidade.

Esta auto-identificação seria importante. Principalmente, quando a existência de uma


imagem negativa continua bastante apregoada fora do ambiente do terreiro. A identidade negra do
Candomblé foi, nesta fala, claramente afirmada e posta como uma marca de distinção. A
perseguição sofrida aparentemente advém daí. Os cristãos e em especial, os “evangélicos” teriam,
segundo a fala do pai-de-santo, o discurso contrário ao Candomblé, portanto, deveriam ser
desmentidos. E isso poderia ser feito no conhecimento do cotidiano e das relações pessoais
estabelecidas através da religião. A legitimação do Candomblé somente seria possível, nesse
sentido, se for incluído e investido, social e economicamente, em igualdade com as outras religiões.
A educação era percebida por Pai Sidney como o meio de ascensão social do membro do
Candomblé.
3. Nós precisamos de ajuda, viu Silas [empresário levado à festa por Alexandre], das pessoas
que tem uma ligação com o governo com os escalões maiores, mostrar que o Candomblé é
uma comunidade que precisa de computador, que precisa de escolaridade. Nós temos aqui
advogado que saiu daqui, o Andrezinho, é doutor hoje, Dr. André; se formou, lutou (...)
temos muitas outras pessoas que estão estudando. Mas o Candomblé não tem o apoio que as
outras religiões têm porque nós somos uma religião de negros, exclusivamente de negros.

A falta de apoio e reconhecimento do Candomblé como religião foi apresentada no discurso


como um problema étnico-racial. A exclusividade da religião do negro pode ser considerada
fundamental para o entendimento dos problemas enfrentados por ela. Afirmou-se em outro
momento o fato da presença de não-negros (brancos, mestiços) no Candomblé desde o século XVI.
A discussão posta, por exemplo, pela sociologia e antropologia a respeito da transformação do
Candomblé nos últimos tempos, principalmente, nos grandes centros, de uma religião étnica para
uma religião universal – tal como discutido por Reginaldo Prandi e outros – seria dado que se
observa na realidade dos terreiros, na etnia de muitos chefes e nos filhos e filhas de santo. No
entanto, pensa-se habitar, no discurso de Sidney, a percepção da origem étnica da religião e de suas

179
raízes africanas. Também no fato de que, apesar do aumento da participação e presença de brancos
nos terreiros, ela ainda se daria mais pelo estabelecimento de uma clientela (em busca de serviços
mágico-religiosos) do que por “conversão” e adesão à religião. Tal exclusividade aparente seria,
assim, reinterpretada no contexto social atual, mas afirmada ainda como questão étnica, como se
percebia na seqüência do discurso. Pai Sidney procurava explicar melhor sua posição. O
Candomblé expressaria muito do ser negro e vice-versa. Surgiria então, certa dicotomia no discurso
entre a escolha livre e o verdadeiro lugar de pertença do negro.
4. O negro que vai para outra religião está na religião errada. Todo mundo tem direito de
escolher qualquer religião, mas a religião do negro é o Orixá. Os Orixás são todas as cores,
as cores que tem em outras religiões. E deixar bem claro que o Candomblé, para quem não
conhece, é um encontro. Como todas as facções têm gente errada, tem picareta, tem ladrão,
como tem no evangélico, no católico, tem em toda religião, tem no japonês. Então, vocês que
estão no Candomblé que são homossexuais assumidos, que é a única religião que aceita
vocês como são, que são heterossexuais do jeito que são; que são de todo jeito, ladrão,
advogado, dentista. Candomblé não está aqui para julgar ninguém. (...) O cara pode ser de
qualquer religião e parar de fumar maconha, parar de roubar carro. Isso não é do crente ou
do católico. E fazendo isso, ele vai economizar, vai comprar carro, casa e vai ter uma vida
social melhor. Ele vai deixar de ser uma pessoa errada na sociedade e vai ser uma pessoa
mais correta.

A diversidade de tipos sociais e a abertura para aqueles que não são bem recebidos ou
discriminados em outras religiões, segundo o pai-de-santo, traria outro elemento interessante para
esta análise. O discurso político de Pai Sidney procurava igualar o Candomblé a qualquer outra
crença, como uma religião que pode trazer mudanças na vida dos fiéis; por outro lado, destacava a
existência de uma aceitação maior das diferenças ou de papéis sociais discriminados. Afirmar a
igualdade e estabelecer as diferenças entre o Candomblé e outras religiões seria compreensível num
ambiente de competição religiosa (Bourdieu). Também poderia ser um caminho para se acabar com
as dificuldades enfrentadas pelos terreiros na cidade. A representação política foi na segunda
metade do século XX muito discutida entre o povo-de-santo, inclusive como demanda, nos
diferentes movimentos negros. Serviria como estratégia necessária para a preservação ou conquista
daqueles espaços nos ambientes urbanos, especiais para o culto (preservação de áreas verdes, matas,
regulamentação dos terrenos dos terreiros mais antigos, espaços próprios nos cemitérios etc,
apontados anteriormente) manutenção material dos terreiros e proteção policial. No entanto,
mantiveram-se nos últimos anos as dificuldades para a articulação eleitoral como uma demanda
única.
5. Recentemente nós tivemos aqui o Renatinho que foi candidato a vereador, nosso amigo,
pai-de-santo. Teve a votação, a gente se esforçando para ele ser eleito, para o Candomblé ter
um representante. Não conseguimos ter essa votação, porque o próprio povo de Candomblé
não apoiou. As pessoas do Candomblé não lembram que nós temos que montar a casa, que
tem que fazer a estrutura, ter limpeza, que as pessoas ajudam e tem que colaborar, com luz,
água, banheiro, tudo. E quando as pessoas aqui falarem, nossa, a casa [desarrumada]... Mas é
porque a própria sociedade não dá condições para o Orixá manter a casa de Candomblé. É
por isso que nós estamos lutando, com deputado, com vereadores. [...] Por isso, quando o

180
Renato me disse que ia sair candidato, nós o apoiamos de corpo e alma, fizemos um trabalho
com ele. Nós tínhamos a noção e ele também dentro dele, que era impossível concorrer com
essas feras que estão aí. Esses bandidos que estão aí. Ele é um homem trabalhador e esses
bandidos chamam a polícia, e prometem, mas não dão nada. E quando o Renato lançou essa
idéia, nós falamos, é duro, mas nós vamos tentar. Sem ter apoio, sem ter uma verba de
gasolina, sem nada. Ele gastava a gasolina dele, eu gastava a minha.

A candidatura do pai-de-santo Renato foi um fato importante para esta comunidade-terreiro.


A possibilidade de vitória política era entendida como o espaço certo para conseguir garantias de
proteção e ajuda ao terreiro. Para isso, começava-se a reforçar um discurso de articulação da
participação eleitoral engajada do povo-de-santo. Sem assumir a própria identidade e religião não
seriam possíveis tais conquistas. Para Pai Sidney, a disputa pode ser muito desigual entre o homem
simples, trabalhador e os políticos profissionais, “bandidos”. O reforço no discurso sobre a
necessidade de apoio para articulação de educação e assistência ao povo-de-santo estaria
relacionada ao lugar que o Candomblé possuiria na estrutura social, por conta da sua origem étnica
e das condições sócio-econômicas dos seus membros. A visão social do Candomblé, de
marginalização, como característica daqueles que o frequentam, deveria ser enfrentada via
educação formal e técnica. Ou seja, para o Candomblé deixar de ser considerado marginal – uma
vez que abrigaria “marginais” – seria preciso que seus membros “mostrem” para a “sociedade
maior” (elites) que têm valor como cultura e religião. A luta para vencer a discriminação bateria de
frente com a ideologia e a prática racista vigentes.
6. Estamos abrindo agora um centro cultural, lutando com o Alexandre, tentando mostrar
para a sociedade que o Candomblé não é só para preto, puta e pobre, como eu ouvi uma
pessoa falar para mim (...) todas as pessoas que frequentam o Candomblé, são difíceis
assumirem e dizer “eu sou do Candomblé”, ele diz que é católico, evangélico. Aqui vem
muito evangélico jogar búzios. Mas eles não querem que ninguém saiba. Então a gente está
assumindo a nossa negritude, está assumindo a nossa religião. E tem mais, nós vamos
conseguir colocar a nossa marca na sociedade maior que é o candomblé, a religião dos
negros.

O projeto de um centro cultural em parceria com Pai Alexandre e outros, surgia naquele
momento como uma estratégia para divulgação da cultura africana e afro-brasileira. Além das
melhorias educativas que podiam ser alcançadas, serviria para colocar a “marca do candomblé na
sociedade”, ou seja, fixar um lugar social de direito. Como projeto social, poderia ter impacto
positivo no atendimento às necessidades várias dos filhos-de-santo daquela comunidade.
7. E lá no centro cultural haverá três inaugurações, para as camadas da sociedade entenderem
o que é o Candomblé. Vai ter uma inauguração para uma camada [povo-de-santo], uma
inauguração para a sociedade ver e uma inauguração para as crianças. Todas elas que
quiserem ir lá, fazer bagunça, rolar, correr lá dentro e tudo o mais. A gente vai mostrar coisas
de negro da Nigéria para a gente ver, vai ter projeto social, projeto médico. Se a gente
conseguir o apoio que estamos precisando, vamos colocar um sistema para ligar essa casa
aqui com a outra casa lá, curso de computador. E investir na sociedade negra, nos filhos de
santo gay, nas filhas de santo lésbicas, nas filhas que são putas. Nós temos isso tudo, não

181
somos como as outras religiões que diz, ah não tem bicha, não tem lésbica, não tem
prostituta. Aqui tem de tudo e o Candomblé aceita a pessoa como ela é. É claro dentro do
parâmetro que a pessoa tem respeito (...) é uma luta de três ou quatro anos que nós estamos
lutando para ter isso. (...) Ela tem lugar com uma luta com a comunidade. Eu fui tentar na
prefeitura ganhar trinta cestas-básicas para doar para as filhas de santo daqui e um
assistente do prefeito disse para mim que Candomblé não era religião, era um grupo negro
que fazia batucada e que incomodava os vizinhos.

A discriminação racista explícita sofrida por Pai Sidney demonstraria a dura realidade
enfrentada. Herança ainda do passado escravista e reforçada na imiseração dos afro-descendentes
no país. A repressão direta e indireta sofrida pelos terreiros em São Paulo teve um efeito sobre o
culto e as práticas religiosas. O espaço físico dos terreiros teria se limitado cada vez mais, e a lei de
silêncio após as 22hs alterou também o tempo dos toques. O não reconhecimento do Candomblé
como religião submeteu ao longo do tempo seus membros e hierarquia a tratamentos no mínimo
desrespeitosos. A unidade do povo-de-santo, cada vez mais reforçada como necessidade no discurso
de Pai Sidney, transparecia as dificuldades e conflitos vivenciados no cotidiano. Prisões, denúncias
anônimas e preconceitos ainda seriam frequentes. Ao encerrar sua fala, colocava claramente a busca
(e espera da chegada) do “direito” de ser como se é, negro, com sua religião própria, reconhecida
pela sociedade.
8. Agora o importante é que vocês [povo-de-santo] se unam. Estou dizendo isso há anos,
vamos eleger um representante [...] porque é duro, mas nós precisamos de um representante
na política, para que a gente possa colocar o Candomblé com evidência, como uma religião
que ajuda as pessoas na sociedade. Que o Renato aqui e o pessoal da comunidade ajudam as
pessoas, dá moradia, assistência médica, não como médico, mas de levar a pessoa [ao
hospital]. Tem gente que está parindo a gente leva para o hospital. Às vezes a gente coloca a
mão na cumbuca que é um vespeiro porque a gente não tem por trás um apoio. Se não é um
filho de santo, a gente vai preso. Toda semana o pai de santo vai preso, toda semana eu sou
preso. Toda semana tem denúncia anônima, aparece alguém dizendo que a gente não pode.
Outra semana tinha um carro parado aqui na frente e já disseram que era um carro roubado
que estava aqui no portão. Então sempre a comunidade do candomblé – o carro era dele [de
um filho-de-santo] – é considerada errada. Então, eu estava dizendo para vocês, nós temos
que nos unir como religião. Para que, quando chegar o direito, como a gente tem, para não
ficarmos nessa obscuridade de ser marginal (...) para a sociedade compreender que o
Candomblé é uma religião. E isso nós só vamos fazer se a gente se unir. Queria agradecer a
presença de todos vocês.

No discurso, a marginalização do Candomblé expressaria o processo de repressão sofrido


pelos afro-descendentes e pobres no país. A “obscuridade de ser marginal” (“considerado sempre
errado”) e o não reconhecimento da legitimidade de sua prática religiosa marcaram o cotidiano de
muitos terreiros no Brasil. Foi afirmado que, em São Paulo, ao se pesquisar sobre as transformações
ocorridas nas religiões afro-brasileiras nas últimas décadas, ouvia-se muito sobre o aumento das
dificuldades de se manter os terreiros nos centros urbanos. A intolerância religiosa seria outro ponto
destacado, já que muitas igrejas evangélicas trabalham sistematicamente no “combate” aos terreiros
de Candomblé e Umbanda. A divulgação de informações nos meios de comunicação de massa

182
começou a ser utilizado pelas associações e federações de Candomblé e Umbanda, de modo mais
forte nos anos 2000.

Kátia de Oxalá saudando hierarquia do terreiro


Ilê Alaketu Axé Xangô, Osasco, 2008
Foto: Irineia Franco

Na onda do consumo de bens mágico-religiosos nas grandes cidades, algumas publicações


foram organizadas e saem periodicamente nas bancas, como por exemplo, a Revista Orixás (Editora
Minuano) que existe há dois anos; com circulação nacional e internacional. Na edição nº 15 de
março de 2009 publicou-se, por exemplo, entrevista e matéria com Mãe Jaciara do terreiro Axé
Abassá de Ogun, da Bahia. Nelas, a Ialorixá fazia a defesa da religião: “se não houver quem se
preocupe em preservar o sagrado, vai virar mico-leão-dourado” (REVISTA ORIXÁS, 2009: 30). A
existência dessas revistas especializadas, voltadas para o povo-de-santo são bons exemplos do
material de divulgação e fontes para pesquisa sobre transformações nas religiões afro-brasileiras.
Serviriam para auxiliar na aceitação pública das práticas dessas religiões. Muitos pais e mães-de-
santo em São Paulo insistem na necessidade de informar a população sobre o Candomblé, para
limitar ao máximo as más interpretações e o preconceito. No embate entre o poder das mídias das
igrejas neopentecostais e, a pouca divulgação e espaço nos meios de comunicação que as religiões
afro-brasileiras possuem, viu-se o esforço para reverter o quadro de diminuição dos participantes
nos terreiros.
Claramente também, como no discurso de Pai Sidney, foi reforçada a necessidade de que o
povo-de-santo “se una” e consiga articular uma base política para ter representantes nos governos
municipais, estaduais e nas câmeras de vereadores e assembléias. A existência da “bancada
evangélica” deixou claro para a hierarquia dos terreiros a estratégia favorável de se ter a sua
“bancada”. A repressão policial seria ainda outro aspecto desta problemática. Em São Paulo e
outros estados, ainda que não se tenha mais a força da lei contrária dos códigos penais, pais e mães-

183
de-santo sofrem da perseguição policial, muitas vezes feita por policiais evangélicos. Por conta
disso, procurava-se organizar petições às associações de policiais para garantirem a segurança dos
terreiros. Essas demandas careciam assim, da articulação de discursos políticos que ajudassem a
superar as diferenças entre as diversas casas de Umbanda e Terreiros de Candomblé.
A auto-identificação ou auto-afirmação do povo-de-santo seria apresentado no discurso de
Pai Sidney e também na fala do umbandista José Humberto. Ainda comentando sobre as mudanças
sofridas pelas religiões afro-brasileiras dizia ele:
Quem mudou fomos nós, no geral. O povo brasileiro. Quem mudou fomos nós. O que
acontece? Você vê escândalos nas igrejas. Nós nunca quisemos ficar por cima, por que somos
devotos dos orixás, cultuamos os orixás, não dizemos que não temos pecado. Muito pelo
contrário, somos de carne e osso, igualzinho a todo mundo. Sentimos dor, temos fome, e eu
pelo pouco que conheci, as pessoas que eu conheci, todas elas eram muito claras nisso.
Então, não temos vergonha de ser simples. A simplicidade não significa pobreza. Pobreza é
questão de espírito. Então, o que acontece, o pouco que pude ver nas outras religiões, nossa,
porque caiu um palito no chão, vamos condenar aquela pessoa. Não, as coisas têm que ser
natural como Deus. Então, as pessoas que são realmente espíritas levam essa história com
amor, elas não têm o que esconder. Acho que esse número de pessoas aumentou. Dizem: sou
sim, sou umbandista. Sou espírita e não abro mão. Respeito as outras religião, mas a minha
eu não abro mão. Então acho que esse número aumentou e você está falando um pouquinho
mais da religião... Porque ela já é uma religião... Somos nós que temos que confirmar ela.
Acho que ela está um pouquinho mais no conhecimento do pessoal, que quer mesmo levar,
vê que a vida vale à pena, ela é bonita, mas tem que ser levada a sério. Eu acho que no meio
de tanta coisa que está acontecendo tem muita gente também que vê esse mundo feliz. Esse é
o nosso conceito.277

Não assumir-se como membro da religião por vergonha social ou medo de represália seria
um problema vivenciado ainda pelo povo-de-santo para alcançar seus objetivos, apesar de
mudanças sentidas. Em pesquisa de campo registrou-se muitos comentários a esse respeito em
diferentes níveis. Desde a repressão direta sofrida por crianças nas escolas que, por serem filhas de
membros dos terreiros ou já iniciadas foram chamadas de “macumbeiras” pelas professoras e
colegas, até os jovens que possuíam diferentes perfis nas redes sociais da internet (Orkut), um para
os “amigos comuns” e outro para os “amigos do Candomblé”. Andar com suas guias, com a cabeça
coberta ou raspada em tempos de iniciação também foi citado como problema por conta dos
ambientes de trabalho. Por isso, foi visto que houve alterações nos ritos ou necessidade de
modificação de parte dos tabus no processo de iniciação. Esse aspecto, já apontado por outros
pesquisadores, interferiria no Axé empregado, enfraquecendo muito, na percepção dos sacerdotes, o
poder mágico-religioso dos ritos. A perda dos espaços naturais na cidade, a dificuldade no acesso às
“folhas sagradas” também foi mencionado frequentemente.
De fato, tais problemas são enfrentados pelas religiões afro-brasileiras ao longo da história.
Importaria, no entanto, perceber que a história dessas religiões expressaria diferentes maneiras

277
Entrevista, José Humberto Gonçalves, op.cit.

184
como a cultura afro-brasileira foi continuamente sendo restringida em suas manifestações públicas
deixando de ser vista para ser escondida ou celebrada em poucos dias como “folclore”. Haveria
muito mais “liberdade”, em termos de presença e utilização dos espaços públicos, no período
colonial do que nos períodos da pós-abolição e atual. O que teria ocasionado essa modificação? O
que mudou foi o fim da escravidão, com o controle jurídico e repressor que isso representava. A
dinâmica própria da cultura negra no Brasil criou vários mecanismos de ressignificação em
diferentes ambientes (rural ou urbano) que permitiram o seu prolongamento no tempo e
continuidade diferenciada. Sendo, pois, a cultura brasileira, intrinsecamente negra ou afro-
indígena, possuiria os elementos necessários para se articular e recriar-se nesses ambientes
desfavoráveis (ginga/axé). As elites brasileiras, com seu modelo europeu não poderiam permitir
isso. Toda uma literatura discute esse tema. A identidade nacional forjada no início do século XX
iria subordinar toda a cultura negro-brasileira e renegar sua força criadora de “civilização”
(BARBOSA; SANTOS, 1999). O controle e, se possível, a eliminação dela seria, portanto,
necessário.
O racismo que perpassa essas questões não poderia ser disfarçado. No que diz respeito às
religiões afro-brasileiras foi um assunto “complexo”, para não se dizer evitado. Diferentes discursos
foram ouvidos nesse sentido nos terreiros. Como na sociedade de maneira geral haveria os que
afirmam ser o “preconceito” um problema “criado” pelo próprio negro – que “não se valoriza” – e
os que diziam ser a causa das perseguições o racismo disfarçado ou direto. Assim, o discurso de Pai
Sidney e as falas de José Humberto, trouxeram o reforço dado por eles à identificação das religiões
afro-brasileiras como “religiões de negro” e marcaram, portanto, um posicionamento nesse debate.
“Ser negro” ou ser da Umbanda ou do Candomblé não seria motivo de desvalorização. Ao
contrário, seria o que diferiria e o que daria a especificidade dos cultos e das relações com o sagrado
(Orixás/Entidades). Essa origem específica envolveria aceitação, entendimento e autovalorização.

Uma interpretação histórica das religiões afro-brasileiras em São Paulo: 1990-2000


O contexto sócio-econômico dessas duas décadas no Brasil passou de uma situação de crise
política e institucional (impeachment), no início dos anos 1990, somada a uma crise econômica que
levou à criação do Plano Real para estabilização da inflação, a política econômica de abertura ao
capital externo, refletindo perdas salariais e de direitos para a classe trabalhadora. A chamada
“globalização” da economia mundial representou a criação em nível mundial de um sistema
produtivo, comercial e financeiro que amarrou as economias locais às necessidades dos países
desenvolvidos. No entanto, na sequência dos anos 2000, a manutenção de certo equilíbrio
econômico na ordem liberal e a manutenção da democracia nas eleições brasileiras possibilitou que,

185
durante o período dos dois mandatos do governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003 a 2010), a
criação de alguns programas sociais minimizasse a diferença da distribuição de renda no país. Em
que pese a limitação desses programas, percebeu-se melhorias para setores das classes médias,
mesmo no contexto de crise econômica do capitalismo mundial. Assim, aquele “aprendizado da
democracia”, importante para esse período pós-ditadura militar, teria favorecido a articulação nos
ambientes urbanos das práticas religiosas consideradas, até os anos 1950, como problemas da
ignorância e superstição da população pobre, isto é, da maioria da população brasileira afro-
descendente.
Dessa forma, o problema central neste capítulo, dizia respeito ao aprofundamento das
mudanças nas religiões afro-brasileiras em São Paulo, entre os anos 1990 a 2000. Tais alterações
teriam diminuído a “força do axé” dos cultos afro-brasileiros em São Paulo, como temiam suas
lideranças? A resposta a isso deve considerar o modo como as mudanças se deram, destacando-se as
relações estabelecidas entre essas religiões e o seu meio social. Como visto, puderam ser
identificadas através: (a) das relações com os espaços e as instituições públicos, sagrados e
profanos na grande cidade; (b) da relação entre a tradição e as necessárias inovações rituais
(iniciação, papel dos gêneros no ritual, percepção das diferenças de temporalidades); (c) do acesso
aos “segredos do culto” pelas novas gerações (relacionamento entre os iniciandos e a hierarquia
sacerdotal) iniciadas em São Paulo; (d) da valorização e resgate da memória histórica de sua
presença na cidade e, (e) da elaboração de discursos e ações políticas de resposta aos conflitos e
repressões sofridos, visando conseguir uma representação política legítima. Estas transformações
históricas, compreendidas na visão de conjunto dos contextos políticos e sócio-econômicos no país,
demonstraram a capacidade de adaptação criativa das religiões afro-brasileiras. O prolongamento no
tempo das repressões político-ideológicas perpetradas pelas elites, governos e ideologias religiosas
contrárias às religiões negras, apresentou-se como o desafio maior a ser enfrentado. A “força do
axé” teria se renovado, na cidade, ao se buscar diferenciar o que seria o mais importante para a
religião negra. O estudo dessa década sugere que, ao se proporem o desafio de fixação política das
religiões em São Paulo e de melhorias na qualidade de vida da população negra, suas lideranças
enxergaram nisso, a reposta para a superação de seus problemas. O direito de existir enquanto tal e
de vivenciar sua religião estaria relacionado, portanto, à superação do racismo.
Tais mudanças, internas e externas, ocorreram a partir da articulação dos movimentos negros
e das lutas antiditadura, entre as décadas de 1970 e 1980. No período seguinte, 1990 e 2000, teve-se
um reforço dos elementos político-culturais nas religiões negras. Mesmo com as dificuldades em se
articular as federações existentes desde os anos 1950, e eleger-se representantes para as diferentes
câmaras. A maior participação da hierarquia religiosa e dos filhos-de-santo, em movimentos

186
políticos e culturais de afirmação da culturalidade negra, foi percebida no crescimento de institutos,
centros de cultura, revistas de divulgação, publicações das federações etc. O impacto desse material
e ações, aparentemente, estaria restrito aos ambientes universitários e aos movimentos negros e
populares. Ainda assim, indicariam o aumento da tomada de posição afirmativa.
Caracterizou-se esse período, de forma relevante, a consolidação da expansão das religiões
afro-brasileiras, tanto o Candomblé, como a Umbanda. Em São Paulo reproduziram-se e
expandiram-se, mais fortemente, através de linhagens de filiação religiosa ligadas à Bahia e a
Pernambuco, indo em direção ao interior e a outros estados e países. O Candomblé paulista ganhou
certa “tradição” de força mágico-religiosa, por suas ligações com a Bahia e o continente africano. A
Umbanda, já tradicional, teve grande presença de intelectuais e da classe média, com considerável
aumento da presença de brancos em seus rituais. As lideranças afro-brasileiras fizeram campanhas
contra os “falsos pais-de-santo”, numa tentativa de diminuir a percepção negativa sobre a religião e
eliminar a marca do “charlatanismo”, identificado no comércio das curas. Também passaram a
articular um discurso político anti-racista com apoio da legislação civil. As religiões afro-brasileiras
foram fortemente percebidas, principalmente pelas classes médias, como “terapias” e parte da onda
de espiritualismo no mundo moderno. A auto-afirmação religiosa procurou minimizar essa
percepção externa.
No entanto, houve, principalmente no campo umbandista, uma assimilação maior dos
elementos da magia ocidental, indiana e outras, fortalecendo certo sincretismo “globalizado”. No
Candomblé, alguns pais-de-santo mais jovens, também lidaram com mais abertura às inovações do
“ferramental” de cura e tratamento espiritual. Não necessariamente incorporando no ritual afronegro
esses elementos, mas mantendo-os como possibilidades de aplicação aos clientes e filhos, de acordo
com as necessidades desses. Alguns Candomblés, por sua vez, reforçaram sua identidade africana.
A Umbanda mais “adaptada” a esse sincretismo, por suas origens e desenvolvimento, demonstrava
nesse período grande diversificação ritual. Mesmo com a formatação dos ritos pelas federações
entre os anos 1960-1980, a prática umbandista em São Paulo manteve-se múltipla nos anos 1990 a
2000. No “mercado religioso” (Bourdieu), tal fato, marcaria um diferencial competitivo entre os
vários terreiros e “tradições”.
Foram sentidas as dificuldades em se manter os rituais tradicionais na cidade grande, o que
levou às adaptações e ao aceleramento do tempo da iniciação. A filiação religiosa tornou-se muito
dinâmica entre as diferentes linhas de culto, na passagem entre Umbanda e Candomblé ou vice-
versa. Aquela concorrência entre terreiros no atendimento à clientela, o aumento da literatura
especializada, a existência de um mercado editorial e de produtos afro-brasileiros, foram fatos que
sustentaram economicamente alguns grupos. Tal favoreceu a importância dada à mídia impressa e

187
televisiva para a divulgação das religiões. Isso teria possibilitado também a divulgação maior do
entendimento das religiões afro-brasileiras como patrimônios culturais. E, nesse caso, o Estado
deveria ajudar a financiá-las. Este ponto seria ainda visto como demanda política, dependente de
interesses políticos pessoais ou partidários. Estratégia importante para pôr fim à perseguição,
juntamente com o resgate da memória histórica da religião em São Paulo, que começou a ser escrita
também nesse período.
Tem-se, portanto, que as religiões afro-brasileiras em São Paulo puderam, mesmo aos
poucos, ampliar suas ações para a defesa de sua religiosidade, entre as décadas de 1990 e 2000.
Houve sempre resistências perante a repressão sofrida na cidade durante todo o século XX. A
repressão político-ideológica, no entanto, seria mais difícil de ser combatida, porque tem se dado
de modo persistente no cotidiano. Positivamente, aquela tomada de consciência e afirmação da
historicidade das religiões afro-brasileiras parece ganhar espaço. Foi emblemática para as mudanças
ainda desejadas a tomada do Largo do Paissandú no ano de 2008, no ato da lavagem das escadarias
da Igreja da Mãe Preta, durante a festa das Águas de Oxalá, sob o tema “Águas de São Paulo para
Águas do Brasil”. Silvio D’Osumare escreveu sobre esse dia que,
Uma semente é lançada ao solo, massageada pela luz do sol e acariciada pelas águas da
chuva. Todo o conjunto de atos vai fazer com que ela germine e se transforme numa árvore
imponente que na sua grandeza pareça tocar o céu. Veja as idéias de mãe Edeuzita
D’Osogyan como as sementes lançadas em solos que fertilizados com a ajuda do povo do
santo farão crescer e realizar muitos dos sonhos que habitam a mente dessa digníssima Iya e
as pessoas honradas que compartilham das mesmas idéias. No ano de 2008 começou esse
movimento das religiões de matrizes africanas, candomblé, umbanda na cidade de São Paulo
com a liderança de Iya Edeuzita que já comanda os eventos no Rio de Janeiro e Salvador.
Timidamente com poucas pessoas, as escadarias da igreja da Mãe Preta no largo do
Paissandu, centro de São Paulo foram lavadas para pedir a PAZ no Brasil e no mundo. Este
ano, a organização feita por Ekedi Vera D’Oxum e Oim D’Oxum juntou muitas lideranças
nessa luta de eventos a favor da liberdade religiosa e contra a intolerância. (...) No mês de
setembro, o vale do Anhangabaú foi tingido de branco, branco da paz, branco do povo do
santo que devagar foi chegando e juntos desfilaram numa marcha de axé, circulando a igreja
no movimento de continuidade que nunca vai parar. (...) Ogam João (Oje Dei), Iya Cris
D’Oxum tiveram muito trabalho para ajudar na organização desse evento, se sentem
prazerosas por mais uma missão cumprida, mas que não pára por aí, a luta continua, pois o
projeto de lei 14.342 com fé e ajuda de Deus e os Orixás virará nacional, para as águas de
São Paulo tornarem-se águas do Brasil. Axé.278

Para aqueles mais críticos, partidários do movimento de anti-sincretismo, a lavagem de


escadarias de igrejas representa um atrelamento ao passado de escravidão e aos usos da religião
como folclore e espetáculo turístico. Como prática deveria, nesse sentido, ser abolida. Para estes, o
mais importante, talvez, seria procurar desconstruir os mecanismos de “disciplinarização” que
possam estar escondidos nas datas celebrativas concedidas como esmolas às religiões afro-

278
“Águas de São Paulo para Águas do Brasil”, por Silvio D’Osumare. In Revista ORIXÁS – Candomblé e Umbanda,
ano II, nº 13, p. 54. A lei municipal 14.342 de cinco de abril de 2007, instituiu o Dia das Tradições das Raízes de
Matrizes Africanas e Nações do Candomblé, a ser comemorado anualmente no dia 30 de setembro.

188
brasileiras, ou em projetos de leis mal aplicados. O processo lento de democracia para as religiões
afro-brasileiras parecia, como visto acima, não desanimar parte de suas lideranças. Seria esperado,
que as leis de valorização venham a se transformar, por sua vez, em políticas públicas, para que essa
etapa de constante auto-afirmação possa vir a ser superada ainda no século XXI.
Visto na perspectiva do povo-de-santo, o sair às ruas, paramentado, realizando rituais, com
cânticos etc, possui uma força simbólica, de reforço da ideologia religiosa afro-brasileira, de
visibilização e de afirmação muito importantes. Não precisar realizar seus cultos às escondidas, por
medo de ser perseguido ou sofrer violências, eis a importância desses atos públicos. Viu-se que,
apesar de toda perseguição, a “reincidência” das atividades, das práticas dos pais e mães-de-santo
foram uma continuidade histórica por todo o século XX e início do XXI, somente para ficar-se no
período contemporâneo. A representativa do Largo do Paissandú como um espaço afronegro, e,
portanto, como legitimamente pertencente aos negros e à sua religião, não seria, nesse caso,
contraditório com a Igreja Católica do local. Ao invés de serem “assimilados” pela cultura e religião
dos brancos, tem-se seu inverso. A “tomada para si”, a “ressignificação” daquele espaço sagrado do
Outro (branco), funcionando como campo de “luta” entre as forças espirituais. Mas, também de
“paz”, com a impregnação do axé, a ser utilizado em benefício do povo-de-santo.

Tabela 04: Aspectos Históricos das Religiões Afro-Brasileiras em São Paulo (1990-2010)

Aspectos 1990 2000-2010


Contexto sócio-político- Crise política e institucional Manutenção de certo equilíbrio
econômico (impeachment); crise econômica, econômico de ordem liberal, fortificação
plano real, globalização; perdas democrática (Era Lula); percepção de
salariais e de direitos trabalhistas melhorias setoriais para classe média e
mais pobres; crise econômica mundial
Gerais – mudanças e - reforço político-cultural nas - religiões afro-brasileiras como cultura
dificuldades religiões; dificuldade em articular as negra valorizada; mantém-se problema
federações e eleger candidatos; para ter representação política
dificuldade para cumprir rituais
tradicionais na cidade grande
Relevantes - Principais Candomblé e Umbanda de SP - religiões afro-brasileiras são
características começam a reproduzir mais percebidas com um caráter fortemente
fortemente linhagens no interior e em terapêutico (parte da onda de
outros estados; candomblé paulista espiritualismo no mundo moderno) –
ganha certa “tradição” de força auto-afirmação dos membros e
mágico-religiosa por suas ligações lideranças de culto é visto como
com a Bahia e África; Umbanda já estratégica e necessária para o fim da
tradicional tem grande presença de perseguição; memória histórica da
intelectuais e da classe média; religião em SP começa a ser escrita e
lideranças afro-brasileiras fazem resgatada
campanha contra “falsos pais-de-
santo”
Rituais Rituais tradicionais são difíceis de Esoterismo (ocultismo) marca certa
cumprir na cidade grande, adaptações diferenciação entre umbanda e
e aceleramento da iniciação; filiação candomblé; alguns candomblés reforçam
religiosa é muito dinâmica; identidade africana ao mesmo tempo em
que aceitam a presença de outros

189
elementos orientais (simpatia – respeito
às outras tradições religiosas – atende a
clientes com diferentes gostos)
Sócio-econômicos e Concorrência entre terreiros; aumento Percepção das religiões afro-brasileiras
Políticos da literatura especializada – existe um como patrimônios culturais, o Estado
mercado editorial, e de produtos afro- deve ajudar a financiá-las (ainda como
brasileiros que sustentam alguns demanda – depende de interesses
grupos; percebe-se importância da políticos pessoais ou partidários);
mídia impressa e televisiva

Referências bibliográficas:
1. BARBOSA, Wilson do Nascimento. “O N’Ganga: A Origem e o Poder do Pai de Santo”. In:
BARBOSA, W. O Caminho do Negro no Brasil. São Paulo: Câmara Brasileira do Livro,
1999.
2. BARBOSA, Wilson do Nascimento; SANTOS, Joel Rufino. Atrás do Muro da Noite:
Dinâmica das Culturas Afro-brasileiras. Biblioteca Palmares, volume 1. Brasília:
Ministério da Cultura, Fundação Palmares, 1994.
3. DOMINGUES, Petrônio. Uma História não Contada: negro, racismo e branqueamento
em São Paulo no pós-abolição. São Paulo: Editora SENAC, 2003.
4. GIUMBELLI, Emerson. A presença do religioso no espaço público: modalidades no Brasil.
Revista Religião e Sociedade, Rio de Janeiro, 28 (2): 80-101, 2008.
5. KOGURUMA, Paulo. Conflitos do Imaginário: A Reelaboração das Práticas e Crenças
Afro-brasileiras na “metrópole do café”: 1890-1920. São Paulo: FAPESP, Annablume,
2001.
6. MAGGIE, Yvone; FRY, Peter. “Apresentação” In: RODRIGUES, Nina. O Animismo
Fetichista dos Negros Baianos. Ed. fac-símile. Rio de Janeiro: Fundação Biblioteca
Nacional / Editora UFRJ, 2006.
7. PRANDI, Reginaldo. “Sacerdócio, poder e política no Candomblé”. In: PRANDI, R.;
PIERUCCI, F. Realidade Social das Religiões no Brasil: Religião, Sociedade e Política.
São Paulo: Hucitec, 1996.
Fontes:
1. BALALORIXÁ Sidney de Xangô. Discurso de encerramento de xirê. Ilê Alaketu Axé Xangô,
Osasco, 26/10/2008.
2. REVISTA ORIXÁS. “A Guerreira Mãe Jaciara, preocupação e luta pela religião para não virar
mico-leão-dourado”. Ano II, nº 15, p. 30-36. São Paulo: Editora Minuano, 2009.
3. MÉDIUM José Humberto Gonçalves. Entrevista em São Paulo, 02 de agosto de 2011, Tenda São
Benedito, Pinheiros.
4. IALORIXÁ Mãe Fabíola.
5. BABALORIXÁ Alexandre Teixeira Ramos.
5. UMBANDISTA Dorli Ribeiro.
6. FOLHA DE SÃO PAULO. Disponível em WWW.acervo.folha.com.br
8. REVISTA ORIXÁS CANDOMBLÉ E UMBANDA.

190
Capítulo 5 – As Religiões Afro-Brasileiras em Maceió: 1970-1980
Porque padece tanto
O povo de Olorum?
Quando eu pergunto a Zambi
Não tem eco algum.
Por que tanto amargor?
Por que, me diz, Xangô?
Ô justiceiro,
Por que ele é sofredor?
(...)
Olorum – Sérgio Santos/Paulo César Pinheiro
CD Áfrico – Quando o Brasil resolver cantar – Sérgio Santos (2001)

“Nos Domínios de Xangô”: religiões afro-brasileiras em Alagoas e a memória do Quebra-


Quebra
Para se compreender a evolução histórica das religiões afro-brasileiras em Alagoas na
segunda metade do século XX, deve-se ter em mente o impacto das mudanças sofridas no período
anterior. As primeiras informações conhecidas sobre a presença da religiosidade negra em Alagoas,
em especial, na cidade de Maceió, datam da primeira metade do século XX279. Foi através de alguns
poucos estudos sobre o “folclore” negro e notícias em jornais que se tiveram pistas sobre a
organização das religiões afro-brasileiras no período contemporâneo. Apesar do longo “silêncio dos
intelectuais” e da repressão violenta e sistemática contra os cultos negros, iniciou-se há duas
décadas o resgate da memória da história afro-brasileira na cidade, num esforço coletivo que se deu
mais fortemente a partir dos anos 1980, com estudos realizados pelo Núcleo de Estudos Afro-
Brasileiros (NEAB-AL) e por professores dos cursos de Ciências Sociais e História da Universidade
Federal de Alagoas.280
O fato histórico resgatado que se tornou o marco da renovação destas pesquisas foi o
chamado Quebra-Quebra, Quebra de Xangô ou Operação Xangô, ocorrido em fevereiro de 1912.
Em meio aos conflitos políticos pelo poder no período da República Velha, entre o Governador

279
Os autores clássicos Gonçalves Fernandes, João Ribeiro, Alfredo Brandão, Arthur Ramos, Théo Brandão, Manuel
Diégues Junior, Abelardo Duarte, a partir dos anos 1930, produziram diferentes análises sobre a presença do negro em
Alagoas, seu folclore e religiosidade. Há, no entanto, uma descontinuidade entre os trabalhos e pouca atenção para
análises mais aprofundadas; boa parte desta bibliografia dedica-se a levantamentos etnográficos, ensaios e tentativas de
classificação a partir de modelos exteriores, estabelecidos pelos estudiosos da “Escola Nina Rodrigues”. A produção do
Instituto Histórico e Geográfico de Alagoas, via sua Revista, também pode ser incluído na listagem. Datando de fins do
XIX e existindo até hoje, poucos artigos foram apresentados sobre a temática negro-indígena em Alagoas, aparecendo
mais fortemente a partir dos 1950, com a publicação da pesquisa de Abelardo Duarte, então Secretário Perpétuo do
Instituto. É recorrente, no entanto, nessa historiografia oficial, referências, coletâneas de documentos e narrativas sobre
o Quilombo dos Palmares. De fato, a “Guerra de Palmares” (1695), junto à “Expulsão dos Holandeses” (1654) e a
“Emancipação Política em 1817”, na historiografia oficial das elites alagoanas, foram postos como fatos (marcos
históricos) comemorativos da fundação de uma especificidade e identidade local.
280
É sempre importante mencionar os trabalhos dos professores Clóvis Moura e Luiz Sávio de Almeida. Deve-se
também destacar os esforços de pesquisa e realização de atividades educacionais e de extensão sobre história da África
e da cultura negra dos professores Décio Freitas, Zezito Araújo e Clara Suassuna Fernandes do NEAB-AL e dos
professores Rachel Rocha, Bruno Cavalcanti e Ulisses Neves Rafael, entre outros, das Ciências Sociais da Universidade
Federal de Alagoas.

191
Euclides Malta e o grupo de oposição liderado por seu sogro, Barão de Traipú, e pelo candidato
Clodoaldo da Fonseca. Nas palavras de Ulisses Rafael, foi um dos “episódios mais violentos de que
foram vítimas as casas de culto afro-brasileiro de Alagoas”.281 Entre os dias 01 e 02 de fevereiro de
1912 a milícia particular conhecida como Liga dos Republicanos Combatentes, tumultuou a cidade.
Prepararam-se, invadiram e quebraram os principais terreiros de Xangô em Maceió.282 Além de
várias outras ações violentas, Tia Marcelina, africana, conhecida Ialorixá da época, foi morta com
um golpe de sabre na cabeça. Muitos outros pais e mães de santo e membros do culto sofreram
violência e humilhações. Tiveram suas casas invadidas, os assentamentos de orixás e objetos rituais
quebrados ou queimados. Tal fato foi justificado perante a população através de campanha feita
pelos jornais de oposição, em que se associava a pessoa de Euclides Malta com os terreiros de
Xangô. Dizia-se que Malta era frequentador de terreiros, xangozeiro, filho de Leba – designativo de
origem jeje correspondente ao orixá nagô Exu. Dessa forma, por estar supostamente o governador
envolvido com “bruxarias demoníacas”, explicavam-se todos os problemas sociais e econômicos do
Estado.283
Segundo Rafael, a alcunha de Leba teria sido dada ao Governador pelo pai de santo Chico
Foguinho, e utilizada, posteriormente, nos jornais para se referir ao governador de maneira irônica,
Foi por ocasião da abertura de sua própria casa na rua Santa Cruz, nome pelo qual depois
ficou conhecida a rua do Sopapo, que Chico Foguinho adquiriu maior respeito e
notoriedade. Com a ajuda dos seus irmãos Cesário Tompson, Chico de Têça e Japyassu, este,
um membro cativo e frequentador assíduo do Palácio do Governo e dos poucos que se
manteve fiel a Euclides Malta nos seus dias de derrocada política, conseguiu arrastar o
Governador do Estado para a festa de inauguração de sua nova casa, ocasião em que essa
autoridade teria sido aclamada representante máximo na terra do deus Leba e, portanto, o
Papa do Xangô alagoano.284

281
Ulisses Neves RAFAEL. Xangô Rezado Baixo: um estudo da perseguição aos Terreiros de Alagoas em 1912.
Doutorado em Sociologia e Antropologia. Universidade Federal do Rio de Janeiro, 2004, p. 11. Esta tese é, até o
momento, o trabalho mais completo sobre o Quebra. Poucas referências eram anteriormente encontradas em trabalhos
de Abelardo Duarte e Sávio de Almeida, além da memória e da tradição oral dos terreiros na cidade, muito restrita. Em
2007 foi produzido o documentário 1912: O Quebra de Xangô, de Siloé Amorim. Este documentário foi financiado
pelo programa DOCTV, em convênio da Secretaria do Audiovisual do Ministério da Cultura, a TV Cultura e a
ABEPEC – Associação Brasileira de Emissoras Públicas, Educativas e Culturais. A tese e o documentário ajudaram a
desencadear uma série de pesquisas pontuais nos cursos de Ciências Sociais e de História da Universidade Federal de
Alagoas, com alunos de graduação e pós-graduação.
282
A Liga dos Republicanos Combatentes foi fundada, segundo Rafael, em fins de 1911 e início de 1912 e comandada
por Manoel Luiz da Paz, negro, ex-combatente da Guerra de Canudos. Ali havia perdido uma perna. Seu objetivo teria
sido o de “fornecer suporte físico à campanha de estilo persecutório contra o Governador Euclides Malta”. Na sua sede,
no número 311 da Rua do Sopapo, no bairro da Levada, também se realizavam o “ensaio do tradicional Clube dos
Morcegos, presença cativa nos carnavais de Maceió daqueles primeiros anos do século passado”. Dela também teriam
participado rapazes funcionários do comércio e praças do Batalhão de Polícia do Estado, que tinham deserdado por falta
de pagamento dos soldos. Ficou conhecido entre eles o brado “Rasga”, ao se rasgar a camisa da farda demonstrando a
deserção; posteriormente, foi trocado por “Quebra”. Ref. Ulisses Neves RAFAEL, op. cit., pp. 24-26.
283
Uma série de reportagens sob o nome “Bruxaria” foi publicada pelo Jornal de Alagoas entre 04 e 08 de fevereiro de
1912. É deles a maior parte das informações utilizadas pelo autor Ulisses Rafael.
284
Ulisses Neves RAFAEL, op. cit., p. 29.

192
Foi o terreiro de Chico Foguinho o primeiro atingido pela “turba”, na noite de 01 para 02 de
fevereiro. Aproveitaram das festividades de preparação do carnaval, somadas às homenagens que
ocorriam nos terreiros a Oxum, celebrada no dia 02. Na narração apresentada por Rafael, construída
a partir das notícias da imprensa e outras fontes, ficou-se conhecendo com detalhes a violência
perpetrada contra os terreiros, na sequência em que ela teria ocorrido. Era como uma “procissão”
passando de casa em casa, do bairro da Levada até o Centro da cidade. Sobre a invasão ao terreiro
de Tia Marcelina, descreveu-se nas fontes parte do ritual, os momentos anteriores à entrada dos
invasores,
Já era quase meia noite, a função havia terminado e apenas alguns poucos filhos de
santo permaneciam no lugar, quando de repente, a procissão errante, que agora se compunha
de quase quinhentas pessoas invadiu o recinto, transformando aquilo num verdadeiro
carnaval, formato que certas revoltas populares assumem em alguns eventos históricos.
Móveis e utensílios foram destruídos no próprio lugar onde se encontravam, enquanto outros
tantos paramentos e insígnias usados nos cultos foram arrastados para fora do terreiro, para
arderem na grande fogueira montada ali. Na confusão, alguns dos filhos de santo
conseguiram escapar. Os que insistiram em ficar, acompanhando tia Marcelina, a qual resistiu
ao ataque permanecendo no lugar, sofreram toda sorte de violência física, sendo a mais
prejudicada a própria mãe de santo, a qual veio a falecer dias depois em função de um golpe
de sabre na cabeça aplicado por um daqueles praças da guarnição que dias antes haviam
desertado do Batalhão Policial. Contam que a cada chute recebido de um dos invasores, tia
Marcelina gemia para Xangô (“eiô cabecinha” [kawòó kabiyèsilè – saudação ritual a Xangô])
a sua vingança e, no outro dia, a perna do agressor foi secando, até que ele mesmo secou
todo. 285

Além da violência física, segundo Rafael, houve roubo de “muitos dos objetos utilizados
pelos filhos de santo nos cultos”, “desviados em função do seu valor econômico, como pulseiras e
braceletes de prata, e anéis de ouro cravejados de pedras semipreciosas”. Desses, até hoje “não se
sabe o paradeiro”. Continua Rafael,
Outros objetos como esculturas e fetiches foram conservados e conduzidos para a
sede da Liga dos Republicanos Combatentes, para serem expostos à visitação pública. Com
alguns dos instrumentos que minutos antes serviam ao embalo dos cultos e uma revoada de
alfaias exibidos nas extremidades de varas, a turba desvairada percorreu inicialmente
algumas ruas da Levada, em direção ao centro da cidade, agregando em seu cortejo novos
adeptos, atraídos pelo ruído desusado e gargalhadas zombeteiras, confiante de que se tratava
de uma das prévias dos Morcegos em adiantada hora da noite, quando parte da população já
dormia. A presença de Manoel Luiz da Paz à frente daquele cortejo, com suas indefectíveis
muletas, atestavam a identificação da agremiação.286

285
Ulisses Neves RAFAEL, op. cit., p. 34. “A informação sobre o comportamento de Tia Marcelina foi utilizada de
referência recolhida pelo prof. Luiz Sávio de Almeida, junto a um antigo pai de santo de Maceió, e está exposta no seu
artigo “Uma Lembrança de amor para Tia Marcelina” in Revista de Letras. Maceió: Edufal, 1980, p. 53”.
286
Ulisses Neves RAFAEL, op. cit.. Ainda vale lembrar que os objetos de culto roubados dos terreiros foram doados
pela Liga ao Museu do Comércio que era gerido pela Sociedade Perseverança de Auxílio que, nos anos 1940, doou para
o IHGAL. Hoje elas compõem a Coleção Perseverança. Abelardo Duarte conta que Gilberto Freyre havia mencionado a
Coleção em uma palestra proferida nos EUA na década de 1940; isso ocasionou o interesse de norte-americanos para
adquirirem a coleção, pois o Museu do Comércio iria ser fechado. Foi nesse momento que o IHGAL interviu,
solicitando ao Museu a doação da Coleção para que ela permanecesse em Alagoas. Ref. Catálogo da Coleção
Perseverança, 1974.

193
A onda de violência perdurou ainda por dias, na capital e no interior. O trauma ocasionou,
além do fechamento das casas de culto, a dispersão de babalorixás e ialorixás para outros estados.
Teria provocado mudanças significativas nos rituais, com o surgimento do que seria chamado,
posteriormente, por Gonçalves Fernandes e reutilizado por Ulisses Rafael, de Xangô Rezado Baixo.
Um ritual de mesa para os orixás, sem o uso do tambor, tocando-se apenas com palmas, de modo
muito silencioso.287 O conhecimento do evento do Quebra e o resgate dessa memória tem para a
história das religiões negras em Alagoas uma importância político-cultural, como também uma
importância psíquico-social para a população negra na cidade. O “ajuste de contas” com o passado
seria ainda essencial para a retomada da valorização do indivíduo negro, de sua religiosidade e
culturalidade em Alagoas.288

Fonte: Jornal de Alagoas, 4 de fevereiro de 1912/Laboratório da Cidade e do Contemporâneo – ICS-UFAL

Em pesquisa de campo nos terreiros da cidade, atualmente, percebia-se que nem todos
tinham conhecimento ou memória do fato. Os mais velhos teriam se calado sobre o evento, não
repassando a história para os mais jovens, inclusive não gostando de mencioná-lo. Poucos
guardariam ainda a memória daqueles que vivenciaram o Quebra. Somente em 2008, alguns deles
foram ouvidos e seus depoimentos registrados.289 Mãe Celina (Maria Celestrina da Silva), ialorixá

287
Há um debate entre os pesquisadores sobre esta designação Xangô Rezado Baixo, a ver adiante.
288
No ano de 2012, centenário do episódio, a UFAL, juntamente com a UNEAL (Universidade Estadual de Alagoas),
federações e lideranças afro-brasileiras preparam o evento “Xangô Rezado Alto”. Durante todo o ano haverá
conferências, exposições, manifestações culturais que relembrem o Quebra, somando forças para pedidos de melhoria
para as práticas religiosas afro-brasileiras na cidade. Não foi cogitado, até o momento, nenhum tipo de ressarciamento
aos terreiros dos objetos de culto roubados pela milícia e ainda existentes no Museu do Instituto Histórico e Geográfico
de Alagoas. No dia 01 de fevereiro de 2012, em praça pública, o governador do estado Teotônio Vilela Filho, assinou
um “pedido oficial de perdão histórico”. Para alguns, espera-se que esse ato político seja o inicio de uma nova relação
entre os cultos negros de Alagoas e o governo do estado.
289
Em 2008, o Projeto Gira da Tradição foi desenvolvido pela Fundação Municipal de Ação Cultural da Cidade de
Maceió em parceria com o IPHAN – Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, coordenada pelo historiador
Clébio Correia de Araújo, com apoio de Amaurício de Jesus e Paulo Victor de Oliveira, membros da Casa de Iemanjá,
terreiro jeje-nagô de Pai Célio. Este projeto realizou a gravação em vídeo de 16 entrevistas com os pais e mães de santo

194
nascida em 1919, frequentava os terreiros desde os 14 anos (1923), foi iniciada com 37 anos (1956)
pelo babalorixá Seu Rubilho e pela ialorixá Dona Capitulina. Conta que seu pai de santo,
Tinha raiva da história do quebra-quebra, não gostava de ver falar. Dizia que era um
desrespeito, não pediam licença pra entrar, e entrava quebrando tudo, pisando com os pés,
[ele] alcançou isso, não gostava, tinha revolta. (...) De Tia Marcelina eu não tenho
conhecimento, nem de nada dela... A religião dela era diferente da mãe Capitulina, então a
gente não tomava parte de nada, era guerra de uns saber mais que os outros, ser mais do que
outra, combatia muito contra ela, e a gente [os filhos de santo] ficava quieto.290

Mãe Josefa (Josefa Severiano dos Santos), nascida em 1925, veio do interior do Estado para
Maceió com 13 anos de idade (1938), frequentando os terreiros desde então. Também foi iniciada
por Seu Rubilho. Segundo ela, “pra gente que é da seita, antigamente era tudo escondidinho de
porta fechada”. Ao se lembrar dos antigos contava que,
[um dia] Seu João Trangola a polícia pegou ele. Ele não batia [tambor], ele tocava nas
cabacinhas, e a polícia chegou e levou ele. [mandavam] grite: “eu sou macumbeiro da Ponta
Grossa”, e levava uma lapada. Ia gritando até a delegacia, com a panela [os assentamentos]
na cabeça, aquele sofrimento. (...) Chico Foguinho, Zé Raimundo, João Trangola, tudo era
neguinho, tudo vivia escondido, tocando só naquela cabacinha. Aqui se sofreu muito. Já do
meu tempo pra cá não foi tão perigoso. Mas antes [saíam] gritando “macumbeiro safado,
macumbeiro sem vergonha”, fizeram até comer a obrigação. Aqui foi muito rigoroso. Eu
ainda alcancei, eu conheci os zeladores, eu ia pros centros deles, mas tudo era por debaixo do
pano, fechava a porta, e olhava de um lado pra outro, pra ver se não estava [sendo
vigiado]...291

Viu-se, nos depoimentos de Mãe Celina e Mãe Josefa, que após o Quebra, manteve-se o
culto na cidade mesmo com muitas dificuldades, com alterações das práticas rituais, sob muita
vigilância e repressão. Pai Célio de Iemanjá (Célio Rodrigues dos Santos), nascido em 1962, sobre
isso comentou em entrevista,
Nesse período, acaba-se, extingue-se praticamente o culto ao orixá. É nesse período
que minha avó [Maria Garanhuns] chega aqui, em 1930 que o candomblé está ressurgindo.
Porque o candomblé vai ter uma grande influência do culto ao caboclo, ou seja, para se
cultuar o orixá, eles colocavam a mesa com vários santos da igreja católica, com copos
d’água para qualquer coisa, qualquer dia... E isso perdurou por muito tempo... Eu digo que
ele ressurge em 1923, 1925, ressurge com Dona Balbina de Abalueí, Dona Lucrécia de Oxum
Meji, e outras senhoras do Prado. Ele ressurge mais ou menos no Prado, e quando ressurge
vem outra lambada que é a interferência de Vargas, acabando também com o candomblé.
Então, essas quebras políticas e culturais vão interferir na parte religiosa e obviamente, na
parte cultural.
Como a gente tinha passado de 1912, quase duas décadas, praticamente, sem ter
atividade religiosa, então aquilo se acaba, se apaga, muita gente ficou decepcionada com o
barracão, fechou o candomblé. Não podia se tocar. Eu lembro que a minha avó dizia que a
mãe de santo dela [Dona Maria Teresa] foi feita dentro da mata, ali onde hoje é o Pinheiro.
Levaram ela pra ali e fizeram toda a obrigação num dia só. A obrigação de um mês, pra fazer
em um dia... Chegar de madrugada na mata, sair na boquinha da noite, porque não podia

mais antigos de Maceió, compondo um acervo rico de informações ainda a serem exploradas. Muitos dos nomes que
aparecem no Jornal de Alagoas na série de reportagens de 1912, como Tia Marcelina, Chico Foguinho, João Funfun,
Pai Aurélio, são relembrados pelos informantes. Também há referências de pessoas que constavam na relação de
terreiros apresentados pelo jornalista Oséias Rosas em 1959 e por Abelardo Duarte em 1974.
290
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO. Gravação em vídeo, Maceió, 2008.
291
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO. Gravação em vídeo, Maceió, 2008.

195
fazer, não podia tocar, não podia nada, tudo tinha que ser feito lá. Depois foi liberado, apenas
de tarde. O candomblé ficou com essa marca. Inclusive, o Xambá no Recife só toca de tarde.
Por conta das coisas daqui, ficou ainda essa marca. Eles tocam de 4 horas pra 6 e meia, 7
horas saem de lá pra ir embora.292

Como parte de um processo histórico mais amplo, poder-se-ia afirmar então que o Quebra
de Xangô em Alagoas, no início do século XX, exemplificaria de modo extremo toda a sorte de
violência, repressão e perseguição, desencadeada durante a República Velha e o período Vargas aos
cultos afro-brasileiros. As religiões afro-brasileiras sofreram transformações políticas, econômicas e
sociais que atingiram a cidade de Maceió no período. Vale lembrar que essas primeiras décadas
foram marcadas por uma série de conflitos entre as elites políticas locais, que lutavam para manter o
poder e o controle do Estado. A expansão e a urbanização da cidade se iniciaram a partir dos anos
1930, o que também influenciou a alteração da geografia das periferias da cidade, empurrando a
população para os extremos (“as pontas”) das orlas e cidade alta.
O Quebra-Quebra teria sido também responsável pelo fim de muitos folguedos e
manifestações da cultura negra popular na cidade. Na pesquisa de Ulisses Rafael sempre há
referência de folguedos de carnaval e outros que eram preparados nos terreiros. Cita, por exemplo,
os pais de santo João Catirina e Manoel Inglês, ambos “mestres de maracatu”.293 Em 1974, escrevia
Abelardo Duarte que “desapareceu de vez do carnaval alagoano o maracatu”.294 Esse folguedo teria
deixado de existir ainda na primeira metade do século. Somente na primeira década do século XXI,
em 2009, este folguedo voltou a ser produzido em Maceió. Entre outros grupos, foi criado por Pai
Elias de Airá (Everaldo Geraldo de Melo), o Nação Maracatu Corte de Airá.295

A reestruturação dos cultos no período do pós-Quebra de 1912


A partir de meados dos anos 1920, passado mais de uma década dos acontecimentos de
1912, as atividades religiosas afro-brasileiras em Maceió parecem reiniciar de modo cauteloso.
Seria difícil afirmar categoricamente que o culto havia “acabado” de fato na cidade. Provavelmente,
o fechamento público das casas levou os membros do culto a interiorizarem-se mais. No entanto, há
292
Entrevista com Pai Célio de Iemanjá, Maceió, Casa de Iemanjá, 04/12/2010.
293
Ulisses Neves RAFAEL, op. cit., p. 35.
294
Em Folclore Negro das Alagoas, Abelardo Duarte afirma que em 1951, Théo Brandão tentou reorganizar um
Maracatu, por ocasião da IV Semana do Folclore, mas desistiu, pois, “não havia jeito das baianas do Maracatu
dançarem no ritmo conhecido, só dançavam no ritmo das Baianas”... In Abelardo DUARTE. Folclore Negro das
Alagoas, p. 351. Durante a IV Semana Nacional do Folclore estiveram presentes em Alagoas Edson Carneiro, René
Ribeiro, entre outros pesquisadores, discutindo, por exemplo, a regulamentação dos cultos africanos. Ref. Jornal de
Alagoas – Maceió, quarta-feira, 9 de janeiro de 1952, s/p. (IV Semana Nacional de Folclore, ocorreu de 03 a 10 de
Janeiro de 1952 em Maceió). Debates sobre a regulamentação dos cultos africanos. Manifestaram-se os senhores Théo
Brandão, René Ribeiro, Edson Carneiro e Enio de Freitas e Castro – Plano de pesquisa, o tema de hoje à tarde – Palestra
do Prof. Rossini Tavares – Outras notas.
295
Além do grupo de Pai Elias, há outros grupos percussivos realizando o trabalho de resgates de ritmos musicais
negros que teriam se perdido após o Quebra. Entre eles o Coletivo Afro-Caeté.

196
um debate entre os pesquisadores alagoanos de que, esse “silêncio do Xangô” 296, na verdade teria
se dado somente no que diz respeito às festas públicas e outras manifestações culturais externas não
religiosas, como os maracatus. O que havia sido entendido por Gonçalves Fernandes (1939) e
Ulisses Rafael (2004) como uma “nova forma de culto” (Xangô Rezado Baixo), seria na verdade,
segundo Clébio Araújo (2009) e Paulo Victor Oliveira (2010), um dos aspectos já existente do
nagô. Pelo contexto da repressão, era o ritual que as pessoas tinham condições de manter de forma
mais discreta, por ser feito em suas casas, utilizando os espaços internos das residências, com o peji
“disfarçado” de altar doméstico.
Do ponto de vista afronegro, a invocação do nome da deidade representativa de um
antepassado de um grupo não difere formalmente na religião afro-negro-brasileira da epiclese*
cristã. A constante invocação do Pai (ou ancestral) leva à sua audição do pedido desde o Outro
Lado, e permite a sua intercessão no desdobramento dos fenômenos da vida presente e futura. A
epiclese afro gera um desconforto para a entidade, que a ouve repetidas vezes; vê-se chamado e é
assim levado a interceder. Semelhante vocatório faz parte do vocabulário cotidiano, à semelhança
do cristianismo. Daí as “pontes” óbvias na praça pública, as associações veladas e o sincretismo
positivo. É comum ouvir-se:
- Valha-me Santa Bárbara!
- Salve Oxóssi!
- Oh, meu Xangô!
Etc, como formas que permitem à agência santificadora intervir a cada momento e alterar o
desfecho da crise. Uma interpretação judiciosa requer a elaboração independente e até prévia – no
tempo – da epiclese afronegra, da qual deriva em parte as orações e invocações do Candomblé e da
Umbanda, incluída aí a das orações de fechar o corpo.
Observe-se ainda o hábito do catolicismo medieval ontem, e popular hoje, de estabelecer um
relacionamento material com o santo protetor ou intermediador, submetendo sua imagem a castigos

296
Aqui me refiro ao debate entre Clébio Correia de Araújo e Paulo Victor de Oliveira com os pesquisadores Ulisses
Rafael, Bruno Cavalcanti e Janicléia Pereira. Ver ARAÚJO, Clébio Correia de. O Candomblé nagô em Maceió:
itinerário de uma identidade em construção. Cadernos de Pesquisa e Extensão, v. 1. Arapiraca-UNEAL, 2009, pp.
49-50 e OLIVEIRA, Paulo Victor de. Contribuição à discussão sobre os elementos constitutivos do Xangô de
Maceió. Comunicação, II Encontro Nacional de História – ANPUH-AL, 2010. Conferir também CAVALCANTI,
Bruno César; ROGÉRIO, Janicléia Pereira. Mapeando o Xangô: notas sobre mobilidade espacial e dinâmica
simbólica nos terreiros afro-brasileiros em Maceió. In: CAVALCANTI, Bruno César; ROCHA, Rachel;
FERNANDES, Clara Suassuna (orgs.). Kulé-Kulé – Religiões Afro-Brasileiras. Maceió: NEAB/Edufal: 2008, pp. 09-
30.
*
Na teologia cristã, “Epíclese (do grego antigo: epíklesis, fusão das palavras pí e kaleô: "chamar sobre") é a oração de
invocação que pede a descida do Espírito Santo nos sacramentos. É especialmente importante na missa, sendo proferida
após o canto do Santo, em que o sacerdote pede que o Espírito Santo desça sobre a comunidade e as oferendas do pão e
do vinho”. O Catecismo da Igreja Católica possui vários cânones e instruções sobre a necessidade e o meio de aplicar a
epíclese. Disponível em: http://catecismo-az.tripod.com/conteudo/a-z/e/epiclese.html. Data de acesso: 26/01/2012.

197
ou pela quebra de promessas ao mesmo. Por isto e outras razões, o altar, o peji e o gongá mantém
sempre uma proximidade de fronteira.
Por outro lado, seria parte integrante do nagô além da chamada “sessão de mesa”, com forte
influência da Jurema ou Culto de Caboclo, (também chamado Catimbó em Alagoas e Sergipe) uma
série de práticas de “culto doméstico” que teriam sido mantidas.297 Entretanto, não se deixava de
despachar nas matas, rios e praias, às escondidas, os ebós; de lá tocar com as “cabacinhas” (xerê),
de fazer as obrigações e iniciações, mesmo com o ingome (tambor) “calado”.
Nas fontes da imprensa local, especialmente no Jornal de Alagoas, as notícias sobre os
cultos reaparecem a partir de 1927, através de uma pequena nota, sob o título “Bruxaria”, em que se
fazia menção aos acontecimentos de 1912. Somente a partir de 1936, pelo menos para aquele jornal,
outras informações sobre as religiões negras na cidade são mencionadas. Se considerar-se, tais
notas, entre 1936 até o final dos anos 1950, têm-se a “retomada” forte na cidade dos xangôs. Em
textos profundamente racistas, fala-se continuamente dos terreiros combatidos pela polícia em
várias devassas. E, note-se, embasada na constante reclamação de vizinhos contra o “barulho dos
tambores”, em diferentes bairros de Maceió. Além de ajudar a corroborar a história oral dos
terreiros, essas fontes, problematizariam ainda mais, o processo de reconstituição dos cultos. A
resistência, ou “reincidência” de atividades religiosas parece ter sido mais “barulhenta” do que se
imaginava. Teria havido, tanto o uso de estratégias “silenciosas”, como enfrentamentos e
posicionamentos públicos em defesa das religiões e da tradição negra maceioense.298

297
O pesquisador e candomblecista, Paulo Victor de OLIVEIRA descreve um dos rituais do culto doméstico nagô: “Era
nas sextas-feiras que obrigatoriamente os omorixás (filhos-de-orixá) reuniam-se nos terreiros para o ossé. A água das
quartinhas era trocada (o assentamento de cada orixá é acompanhado por uma quartinha com água) e era oferecido o
arroz, temperado unicamente com mel. Algumas casas colocavam o arroz aos pés do orixá (iessé orixá) ao amanhecer,
outras ao meio-dia. Curvavam-se perante Orixalá, realizando as louvações. Essas louvações consistem de alguns
cânticos específicos para esse tipo de ocasião e de cantigas da roda do xangô, cantadas em compasso mais lento e sem
acompanhamento musical. Apenas com o soar de uma sineta. A princípio utilizava-se um adjá particular, com uma só
boca. Depois que esses instrumentos deixaram de ser fabricados na cidade, foi substituído por um pequeno sino,
chamado campa (corruptela de campanário). Ao entardecer, forrava-se um pano branco no centro do salão
(denominação usual para a sala onde se realizavam as danças), punha-se ali o arroz que estivera iessé orixá, cantavam-
se novamente as louvações e, em seguida, cada omorixá recebia um pouco do arroz, mas tendo antes que realizar uma
ablução numa bacia de água ali colocada para esse fim. Esse tipo de ritual interno e, digamos, silencioso é muito
comum (e foi ainda mais no passado) no xangô maceioense. As pessoas tendem a enxergar o candomblé como uma
religião festiva e teatral, mas esse é um dos aspectos dessa religião, com certeza não o mais importante. As festas são
dispendiosas e exigem que sejam feitos sacrifícios propiciatórios e que se ofereça comida aos presentes. O negro
maceioense sempre se encontrou em condições econômicas mais precárias que seus vizinhos pernambucanos e baianos.
O culto familiar e discreto sempre foi uma opção mais viável. Ou seja, o conceito de “xangô rezado baixo” como uma
alternativa à perseguição, não dá conta de toda a realidade da religiosidade maceioense. OLIVEIRA, Paulo Victor de.
Contribuição à discussão sobre os elementos constitutivos do Xangô de Maceió, pp.3-4. Comunicação, II Encontro
Nacional de História – ANPUH-AL, 2010.
298
As informações sobre este período são muito ricas. Não sendo o foco desta pesquisa, faz-se aqui referência a
algumas das notícias em que se baseiam essas observações, todas elas do Jornal de Alagoas: Maceió, 18 de fevereiro de
1927. Bruxaria; Maceió, 11 de outubro de 1936, p. 8. No silêncio da noite o candomblé de “Oxum” trabalhava;
Maceió, 6 de outubro de 1938, p. 1. Macumba na Avenida da Paz; Maceió, 23 de julho de 1939, p. 12. Na Macumba:
quando gritam: "A polícia!" houve um terror pânico o "médium" emudeceu como por encanto e as mulheres

198
Desde o início do século, a população negra em Maceió manteve um fluxo constante de
migrações entre os interiores e a capital, principalmente acompanhando a rota fluvial do Rio São
Francisco. A maior parte dela sobrevivia (ainda hoje sobrevive) do trabalho nas usinas de cana-de-
açúcar e mais ainda da pesca, do artesanato e do pequeno comércio. As atividades dos artífices, em
barro, madeira, tronco de coqueiro, palha, renda etc. alimentavam o mercado de objetos religiosos.
A tradição oral conta sobre a simplicidade e a rusticidade dos materiais utilizados na sua confecção.
Roupas e objetos rituais, tambores e ornamentos, miçangas, eram feitos pelos negros artesãos de
Maceió e do interior, e vendidos na cidade. O ingome era construído de barrica de bacalhau, que
vinha nos navios, ou de tronco de coqueiro.299 Segundo Mãe Celina,
[O] pai de santo de Rubilho [era] o Zé do Café, negro bem preto, morava no Jaraguá
[bairro portuário], também era o [pai de santo] de Capitulina. A casa [dele] era de palha,
chalé de palha, sapé, simplesinha, panela de barro, prato de barro, alguidar de barro, colher de
pau, piso de barro, nada cimentado. Hoje tem que ter muita coisa. [O] ingome [era] de
coqueiro. Esse preto velho trabalhava, fazia os ingomes de pau de coqueiro, uns maior, uns
menores, [usavam o] couro do carneiro que fazia o sacrifício pra criação, esticava,
preparava... Vendia nas casas deles mesmo, na Levada. Hoje já é falecido. Os da gente foram
feitos aí, o ingome [veio de] Marechal Deodoro, feito de pau de coqueiro, o pilão do
assentamento feito de jaqueira ou sucupira, obra bem trabalhada. Tinha amor, fazia com
perfeição. Hoje não, muda por tigela de louça. (...)
[os objetos de culto] Faziam em Piaçabuçu, depois de Penedo, [em] Carrapicho, [é
um] lugar pequeno, um povoado. [Lá] trabalhavam com barro, quartinha, alguidar, panela de
barro, vinha de canoa, de balsa, passado de Penedo e [depois] vinha nos animais dentro dos
caçoás. Traziam [para] os depósitos. Aqui não tinha tudo. Nós já tínhamos encomendado.
[Pai Rubilho] conhecia o rio São Francisco, levava a lista, ia e trazia. Eu nunca fui, tinha
medo de passar na balsa. Nesse tempo o rio São Francisco era muito cheio. Já pensou se
manifesta de Oxum? Oxum mora no rio, [cai e] nunca mais volta...
[os artesãos] Eles eram curador de pé de toco. Não chamava terreiro nem nada, era
curador de pé de toco. [Eles] sabiam trabalhar no tempo antigo, curava... Curador de pé de
toco... Cada um morava na sua tocazinha, [tinha a] missão, tudo preto velho. Não se falava
Iemanjá, Oxum; não era Caboclo; [ou] Jurema, [era com] silêncio, um cuidado, uma
responsabilidade muito grande. Mas a seita é do principio do mundo, não tem quem acabe
com ela. Nem sequer conhecia trabalhar Caboclo, Preto Velho, Boiadeiro, Jurema hoje está
declarada pra todo mundo, os orixás.300

Tal simplicidade seria o resultado da pobreza econômica vivida pela população negra de
Maceió e no Estado. Para alguns estudiosos, era a marca da influência banto na região – da qual
derivaria a “pobreza” dos objetos, da mítica e do ritual nagô na cidade – caracterizada ainda por um
forte sincretismo católico. Assim, alguns entenderam a religiosidade negra em Maceió, sua mítica e
prática, como inferior àquelas outras da Bahia. Tal tese foi defendida por alguns dos intelectuais

escapuliram pelos quintaes quebrando as cercas; Maceió, 06 de julho de 1946, p. 1. Cercados os macumbeiros no
terreiro da casa 13; Maceió, 23 de junho de 1948, s/p. Macumbas e candomblés. E outras. Esta última referência é um
artigo de A. S. Mendonça, em que se faz uma defesa da liberdade religiosa garantida na Constituição, aprovada naquele
ano.
299
Informação retirada das entrevistas do Projeto Gira da Tradição. Os informantes que falaram sobre o período e
comentaram o tema foram: Mãe Josefa, Mãe Celina, Pai Júlio, Seu Ferreira, Seu Zé Barros, entre outros.
300
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, depoimento em vídeo, 2008.

199
mais conhecidos entre os anos 1930 e 1950 (Alfredo Brandão, Arthur Ramos, Abelardo Duarte) e
ainda reproduzida em discursos antixangô nos anos 1970 e 1980.301
Seria interessante perceber que os chamados “curador de pé de toco” mantivessem a prática
da cura e da confecção de objetos rituais no interior. Sabe-se que uma das práticas religiosas que se
manteve constante, ao longo dos séculos no Brasil, herança das religiões bantu, foi a cura com uso
de ervas e rezas (benzeções). Somada ao culto aos ancestrais e à possesão espiritual, tais práticas
seriam o elo entre o culto da Jurema indígena e o culto aos inkices, orixás e voduns africanos. Esse
substrato bantu, já mencionado em outro momento, parecia manter-se constante, sobrevivendo às
transformações da forma dos cultos e práticas, nas diferentes épocas e tradições em todo o Brasil.
Também seria interessante notar que, em Alagoas, local em que a repressão se deu de modo
violento e sistemático, foi exatamente a pobreza econômica da população que levou à manutenção
de práticas seculares, das artes e artífices, pois a sobrevivência, dependente da vivência
comunitária, manter-se-ia mais forte entre a população negro-indígena. A religião, nesse caso, seria
a força de coesão social e a mediação com a natureza e com o grupo familiar estendido – base de
sustentação material – e com os modos de fazer e viver da tradição. Era sua base de sustentação
psíquica ou espiritual. O processo de urbanização, intensificado nos anos 1940 e 1950, alterou parte
desse quadro. Uma vez que a diminuição das áreas verdes próximas aos terreiros e a proximidade
entre as casas viria a provocar problemas de permanência e convivência dos terreiros nas suas
regiões tradicionais. A capital Maceió sofreu especialmente esse processo. Os bairros da Ponta
Grossa e Ponta da Terra, ainda pouco urbanizados, agregavam grande parte da população negra e,
portanto dos terreiros de Candomblé. A partir de então, cresceu a cidade no sentido do bairro do
Farol e do Tabuleiro, antes locais com matas e matagais, utilizados para os despachos às
escondidas. A orla marítima também começou a ser urbanizada, aumentando o número de casas na
região da atual praia da Jatiúca. A população de pescadores sofreu a partir dos anos 1950 e 1960 a
influência da especulação imobiliária, em busca de espaços para a construção dos grandes hotéis de
luxo. Foram cada vez mais empurrados para regiões distantes das áreas de pesca, sofrendo um
processo de imiserização e favelização na região do Porto do Jaraguá.
Viu-se que, dos anos 1930 até fins da década de 1950, teria se dado o auge da repressão e da
perseguição às práticas afro-brasileiras em Alagoas. Houve então o início das “negociações” com
pessoas ligadas aos órgãos de segurança pública, membros do governo estadual e das famílias das
elites, para a reabertura pública das casas de axé e a liberalização do toque à noite. Talvez tenha

301
Essa percepção negativa e preconceituosa foi criticada e desconstruída desde os anos 1980 em Maceió e em outros
lugares do Brasil. São exemplos os trabalhos de Luiz Sávio de Almeida, Nei Lopes, Wilson Barbosa, Joel Rufino e
outros.

200
contribuído, também, a realização da IV Semana Nacional do Folclore, ocorrida na cidade entre 3 a
10 de janeiro de 1952. Com a presença dos intelectuais, Théo Brandão, René Ribeiro, Edson
Carneiro e outros, discutiram-se, entre outros assuntos, “a regulamentação dos cultos africanos”.302
Este evento inseria Alagoas nos debates nacionais sobre o tema, destacando as atividades realizadas
em outros estados, em especial, Pernambuco e Bahia. Nesses, como se sabe, a relação de
pesquisadores com alguns terreiros, funcionava como ponte de negociação com os órgãos de
segurança, com os serviços médicos higienistas e com as elites intelectuais. Algumas delas,
patronas dos terreiros de maior prestígio.
De acordo com a tradição oral, porém, o que contribuiu para outras tantas mudanças, foi o
fluxo de pessoas entre os estados de Pernambuco, Sergipe, Bahia e Rio de Janeiro. A vinda da
Petrobrás para o Estado seria o motivo principal para essa movimentação. Em termos de ritual,
houve uma diversificação nos tipos de culto praticados. Seu Zé Barros (José Barros Lima) nasceu
em Pilar no ano de 1932 e veio para Maceió em 1950. Comentou em entrevista que, entre 1954 e
1956, com a chegada da Petrobrás, pessoas de Aracaju e de Salvador vinham para Maceió. Eles
teriam trazido o culto Angola, que seria dos “pretos que foram pra lá, os antecessores”, os “fujões”
(fugiram do Quebra-Quebra); eles voltavam para “fazer o santo aqui”. Entre Pernambuco e Alagoas
também teria havido muita interação, com as indas e vindas de pais de santo. Dizia que muitos
vinham fazer o santo em Alagoas, depois voltavam para Pernambuco para abrir terreiros lá. Seu Zé
Barros, por outro lado, contava como os políticos locais voltaram suas atenções para os terreiros,
que nesse período estavam se reorganizando.
Quando eu conheci [a religião], a polícia tinha ordem de fazer funcionar. Pagava-se
10 cruzeiros pra funcionar por mês. Depois foi um tempo que o major Ismar de Góis
Monteiro e dona Rosita de Góis Monteiro andavam [pelos terreiros]. [Dona Rosita] com uns
quadris bonitos, [entrava nos centros] e dizia que podia bater, mas por causa do irmão dela,
pra ele ser eleito. E havia uma política entre o Silvestre [Péricles] e o Ismar. E ela estava com
o Ismar. (...)
Houve muita perseguição... Mãe Alaíde viu quando passou o povo preso pela
polícia, e quando o Ogum Taió da Maria Luiza foi lá na delegacia soltar [eles] e soltou
mesmo. Foi em julho de 1950, o Brasil perdia mais uma copa do mundo...
O Silvestre Péricles ele não chegou a fazer [muita perseguição]. Mas a guarda civil
naquela época judiou muito das pessoas. Conheci uma moça que era filha de um guarda civil,
trabalhava no cartório, o pai dela tinha horror de xangô, e certa vez ele prendeu diversas
pessoas que, quando foi um dia, Xangô chegou nele na casa de Maria Macuca. Ele chegava
lá, tirava o revolver, mandava guardar, e ficava lá, mas ele perseguiu antes. Muita coisa eu só
ouvi falar. E a Federação surgiu depois que a dona Rosita mandou abrir os terreiros, criou-se
[primeiro] na [rua] Soledade.303

302
Jornal de Alagoas – Maceió, quarta-feira, 9 de janeiro de 1952, s/p. (IV Semana Nacional de Folclore, ocorreu de 03
a 10 de Janeiro de 1952 em Maceió). Debates sobre a regulamentação dos cultos africanos. Manifestaram-se os
senhores Théo Brandão, René Ribeiro, Edson Carneiro e Enio de Freitas e Castro – Plano de pesquisa, o tema de hoje à
tarde – Palestra do Prof. Rossini Tavares – Outras notas.
303
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, gravação em vídeo, 2008.

201
O antigo nagô, modificado pelos “anos de silêncio”, recebeu também nos anos 1950 a
influência da Umbanda Branca, vinda do Rio de Janeiro. Além do umbandista Seu Rubilho que,
segundo os informantes, atuava entre Alagoas, Rio de Janeiro e Brasília, teria sido muito importante
a chegada na cidade de Mãe Jurema. Segundo Pai Célio,
(...) houve sim uma grande interferência aqui na década de 50 pra 60. Em 1957 é a
Federação daqui [a primeira], mas acontece uma coisa muito interessante que foi a vinda de
uma ialorixá do Rio de Janeiro. Isso é muito importante de se mencionar sempre em qualquer
trabalho, porque isso mexeu com Alagoas, com Maceió. É uma ialorixá poderosa, poderosa
que eu digo, branca, de nível social elevado. O esposo dela veio comandar o 20º BC que hoje
é o 59º Batalhão de Infantaria Motorizada do Exército. Ela era feita em Umbanda, pronta em
Umbanda. E ela trouxe a Umbanda pra cá, se estabeleceu num bairro popular no Vergel do
Lago, montou a casa de candomblé dela e o marido não gostava... Mas o marido faleceu, e
ela continuou aqui. E aí o que acontece? Ela introduziu em Alagoas a Umbanda do Rio de
Janeiro. E as pessoas, tudo o que é novo, quer conhecer. Muita gente entrou na casa dela, e
saiu e misturou na sua casa a Umbanda com o Candomblé, com o Xambá, então ficou
chamado o “xangô traçado” ou “nagô traçado”. Com essa influência de Mãe Jurema. Ela foi
quem trouxe a Pombagira pra cá. (...)
Então, porque ela saía no jornal nessa época? Por causa do marido dela. Hoje o
marido não é citado, ela não cita nem o nome do marido. Ela tem um problema de audição
terrível (...). Mas ela se fechou muito. E vive muito mais no Rio do que aqui. Ela ainda toca,
mas já está com 80 e tantos quase 90 anos, mas não perde a postura, é uma mulher bonita...
E, isso misturou muito, misturou muito. Hoje, por exemplo, você vai num terreiro, às vezes
fico até triste, em terreiro de nagô, na hora de Nanã você ouve cantar pra Preto Velho. Na
hora de Odé você vê cantando pra Caboclo. Misturou e isso é uma influência da Umbanda.
Até em rituais mesmo. O ritual todo do orixá quem faz é o Preto Velho. Isso é interferência
da Umbanda. Quem sou eu pra dizer que está certo ou está errado? Eu concordo... É a
identidade... Vale mencionar isso nessas falas.304

Teria se dado, assim, com a influência da Umbanda Branca do Rio de Janeiro, a constituição
do chamado rito traçado em Alagoas.305 Essa designação seria muito utilizada pelos sacerdotes e
membros dos candomblés de Maceió ainda hoje, ao se perguntar sobre o rito ou “nação” da casa. A
chegada da Umbanda marcou, por outro lado, um momento diferenciado nas relações de Maceió
304
Entrevista com Pai Célio de Iemanjá, Maceió, Casa de Iemanjá, 04/12/2010. No Jornal de Alagoas, no ano de 1948,
têm-se informações sobre a atuação na cidade de João Lyra do Nascimento, vulgo “Prof. Uoca Rajá”. Este teria fundado
em 01 de setembro de 1947 o Centro Espírita 1ª Tenda de Umbanda, no bairro do Jaraguá. Ficou conhecido por ter sido
acusado de influenciar o suicídio da adolescente Luzinete Ferreira dos Santos. Nas notícias dizia que em sua casa
funcionava o “gabinete indiano de ocultismo e alta magia”. Publicaram-se, como parte do processo contra João Lira, os
estatutos de seu centro. Ref. Jornal de Alagoas – Maceió, 26 de outubro de 1948, p. 1. Macumba em Pajuçara e Poço até
altas horas da madrugada.
305
Há outro debate aqui entre os pesquisadores no que diz respeito à tipologia xangô traçado ou nagô traçado. Oliveira
e Araújo insistem que não haveria uma justaposição das crenças e práticas entre o antigo nagô e a umbanda, o que
Cavalcanti e Rogério chamaram de “umbandização do nagô”, mas sim uma transferência, em alguns casos, “havendo
inclusive troca de linhas espirituais das entidades”. Pai Célio, por outro lado, percebe uma mistura de práticas rituais,
entidades etc que tenderiam a descaracterizar a identidade própria do xambá maceioense, numa outra releitura da
identidade do chamado nagô. Sabe-se como as discussões sobre identidade são frutíferas. Aqui cabe somente pontuar
que, essas migrações e flutuações de identidades e designações, como também das práticas litúrgicas e modos de fazer
da religião ligam-se, profundamente, às condições materiais dadas ao povo de santo na cidade. Algo que outros
pesquisadores já pontuaram seria que, muitas vezes, tais designações também dizem respeito às visões externas à
religião, ou seja, a designação de maior prestígio social em determinados momentos. Como bem afirmou Araújo, ser
umbandista nos anos 50 e 60 em Maceió era mais bem visto do que ser xangozeiro. Nos dias atuais, ter as designações
dos candomblés de nação (keto, jeje, angola etc) parece ser melhor avalizado. Para o negro brasileiro, talvez mais ainda,
ser evangélico hoje represente menos preconceito e maiores chances aparentes de ascensão social do que ser membro
das religiões afro-brasileiras.

202
com as cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Na virada dos anos 1950 e 1960, sabe-se do grande
fluxo de migração no sentido Nordeste-Sudeste. A organização das primeiras federações de culto,
tanto no Sudeste quanto no Nordeste, dar-se-ão em modelos de associação civil que tiveram (e têm
ainda hoje) a função de ordenar e articular as relações dos terreiros com os poderes civis e os órgãos
de segurança do Estado. Tal exigência de organização teria sido essencial para a minimização da
repressão às religiões afro-brasileiras em Maceió, naquele período. Assim, de fins dos anos 1950 até
os anos 1980, tanto as Federações quanto os pais e mães de santo (que se destacavam mais)
procuraram estabelecer “hierarquias” de prestígio e status, baseados em relações construídas com
algumas das instituições, sacerdotes e terreiros do sudeste e com os órgãos de segurança do Estado.
Vários conflitos entre as Federações adviriam dessas articulações.
Deu-se durante o governo de Silvestre Péricles (1947-1951) a assinatura de uma portaria,
liberando o toque dentro das casas. Os primeiros a tocar em casa teriam sido Chico Possidônio306 e
Dona Lucrécia. A primeira federação, Federação dos Cultos Afro-Umbandistas de Alagoas,
portanto, foi fundada após a liberação dos toques, em 1957. Clébio Araújo, baseando-se nas fontes
orais, comentava que,
(...), na mata, o culto coletivo se mantinha, ainda que discretamente no toque do shere e do
abê. Essa situação permanecerá até o governo de Silvestre Péricles, o caçula do clã dos Góes
Monteiro, quando, segundo o Sr. Ferreira, tem início a organização da primeira federação de
cultos afros em Alagoas, toda formada por remanescentes do Quebra, por ele denominados
de negros da costa. [nota de rodapé] Trata-se da Federação dos Cultos Afro-Umbandistas do
Estado de Alagoas. A esse respeito, o Sr. Ferreira faz referência a figuras históricas do
candomblé Nagô, tais como Chico Foguinho, Mestre Amaro, Mestre Simeão, Benedito Brás
Carneiro, Cornélio, Mestre Aurélio, que teriam composto sua primeira diretoria, todos
anciãos de reconhecida autoridade litúrgica, à época.307

Deu-se, com esta primeira Federação, o início da ordenação das práticas dos terreiros
filiados a ela, como também o início de uma formalização burocrática que buscou enquadrar as
casas de axé na cidade. Por exemplo, a transformação dos terreiros em associações civis
filantrópicas, com necessidade de abrir registro e CNPJ em cartório. Demandava dos sacerdotes um
mínimo de alfabetização e condições de custear tais despesas. Ficava a Federação responsável por
certificar o conhecimento litúrgico daqueles que queriam abrir seus terreiros, prestar auxílio e
informações sobre a formalização das casas e fiscalizar a respeito de: (a) cumprimento do horário

306
Conta Seu Zé Barros em entrevista que “ouviu dizer” que o “Chico Possidônio era do Maranhão e que teria sido ele a
trazer o culto nagô para Alagoas”. Não se tem como comprovar, no momento, essa informação. Nenhum outro
informante fez a relação entre Maranhão e Alagoas. Seria interessante, no entanto, uma comparação entre o ritual da
Casa de Nagô de São Luís e o Nagô de Alagoas.
307
Clébio Correia de ARAÚJO. O candomblé nagô em Maceió: itinerário de uma identidade em construção, p. 5.
Segundo Araújo, “Mestre Aurélio, membro da antiga diretoria, sabatinava os solicitantes de licença para funcionamento
de casas de culto, acerca de aspectos litúrgicos próprios do culto Nagô”. Seu Ferreira, de quem Araújo ouviu essas
notícias, contava também que ele, juntamente com esses antigos, fizeram o ebó que “convenceu” Silvestre Péricles a
assinar a liberação do culto afro-brasileiro na cidade. Ref. PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op.cit.

203
permitido para toque – nesse momento no máximo até as 19hs; (b) cumprimento da proibição pelo
Juiz de Menores da presença de crianças nos toques – proibição que se estendeu até a década de
1970; (c) fiscalizar o comportamento dos membros para manter a “moral e os bons costumes”, não
podendo haver consumo de bebidas alcoólicas ou outros tóxicos (maconha), cigarros, pessoas com
armas de fogo etc. Somente os terreiros que tivessem a licença da Federação, pagassem a taxa e
retirassem na delegacia a autorização, poderiam realizar suas festas públicas. Essa primeira
diretoria, segundo Araújo, teria tido seu “poder de atuação” baseado na “tradição”. Ou seja,
formada pelos mais antigos pais de santo da cidade, de maior conhecimento do culto. Diferente da
segunda diretoria, presidida, por Pai Júlio Alexandre, que teve sua posse legitimada “no próprio
poder do Estado”.308
Antes de adentrar tal tema, veja-se a seguinte notícia publicada no Jornal de Alagoas em 13
de maio de 1960, aqui transcrita. Seria exemplar para demonstrar o aumento da presença social dos
cultos na cidade no final dos anos 1950, a preocupação política que tal fato gerou, e ao mesmo
tempo, perceber a manutenção de um discurso irônico e jocoso sobre as religiões afro-brasileiras,
tradicional nas publicações daquele periódico. Eis,
CULTOS AFRO-BRASILEIROS OCUPARAM OS PARLAMENTARES
“Exú baixou” no terreiro, mas não se descobriu o pai de santo

Um voto de regosijo [sic] pela passagem anteontem dos vinte e cinco anos de batina
do Cônego Teófanes Augusto de Barros, deu início, praticamente à sessão plenária do
Legislativo Estadual na tarde ontem. O requerimento granjeou o pronunciamento favorável
de todas as bancadas, sendo aprovado por unanimidade.
(...)
“EXÚ NO PLENÁRIO”
O restante da sessão foi dedicado aos cultos afro-brasileiros, pois, indo à tribuna o
Deputado Henrique Hequelman para se regosijar [sic] com a aprovação do Projeto de Lei que
torna de utilidade pública a Sociedade dos Cultos Africanos de Alagoas, desabou uma
tempestade de apartes que tomou mais de uma hora de debates.
Dizia o Deputado Mendes de Barros, que a Assembléia não fez nenhum favor à
entidade com a aprovação do projeto... Walter Figueiredo se dizia contra tal aprovação por
considerá-la uma discriminação, uma vez que outras entidades e seitas religiosas não são de
utilidade pública.
O Deputado Henrique Hequelman que fora à tribuna para fazer uma “mediazinha”
com adeptos das seitas nagôs, por vezes, esteve em situação um tanto delicada quando dele
era requerido pronunciamentos que não desejava fazer. O Deputado Walter Figueiredo
[disse] que “para estudo” fôra a vários candomblés, o que deu motivo a partir do Deputado
Lamenha Filho, parabenizando aos adeptos da seita por verificar que até ali naquele
parlamento se observava o crescimento do culto.
O debate assumiu em certas oportunidades sérias proporções o que levou os
presentes a pensar que “Exú havia baixado no terreiro”. E foi o Deputado Mendes de Barros
que, considerando a situação que o representante petebista (o orador) estava de azar, sendo
aconselhado um banho de “Sambacaitá”... Felizmente ninguém ficou atuado (não confundir
com autoado), mas os ogans fizeram “oguma-coisa” em favor dos “irmãozinhos” de Orixalá.
Pena é que não tenha soado a melodia dos atabaques e agogôs. Difícil, todavia, foi distinguir
o “Pai de Santo”... O projeto foi de autoria do Deputado Pedro Timóteo... A custo conseguiu
finalizar o orador, requerendo que o Legislativo Estadual suspendesse seus trabalhos no dia

308
Clébio Correia de ARAÚJO, op. cit., p. 8.

204
de hoje, 13 de maio, numa homenagem aos homens de cor de nossa terra. O requerimento foi
aprovado. [...]309

Tinha-se, na notícia, uma clara dissociação entre o “regozijo” apresentado ao Cônego


católico e aquele dado às religiões afro-brasileiras. Além do discurso irônico, (ironia maior ter se
dado tal debate em 13 de maio) deixava-se entrever que o interesse pelos cultos afro-brasileiros
seria de cunho eleitoreiro. Por outro lado, a ironia do repórter demonstrava bastante conhecimento
dos significados de termos próprios da religião, que deram o sentido de suas “piadas”. O Deputado
Lamenha Filho seria o futuro governador do Estado no período militar (1966-1971). Constava que
conviveu bem com membros do culto, escolhendo para funcionário de seu Gabinete o Pai Júlio
Alexandre. Teria sido ele ou os outros deputados identificados na notícia verdadeiros ogãs?310
Uma pesquisa detalhada sobre a reconstituição das religiões afro-brasileiras em Alagoas no
período 1912-1960, ainda está para ser feita. Contribuiu-se aqui com algumas indicações que seriam
essenciais para o entendimento da organização das casas de culto na cidade no período seguinte,
1970-1980. As pesquisas sobre o tema começaram a ser articuladas. Entre o mapeamento dos
terreiros, feitos pelos sociólogos, mais a coleta de fontes escritas e orais feita pelos historiadores,
será possível constituir uma explicação histórica mais articulada sobre o processo.
Assim, a tentativa de reconstituir parte das transformações pelas quais passaram as religiões
afro-brasileiras em Maceió no período pós-Quebra pode ser resumida a partir do quadro abaixo.
Nele foram incluídas as informações coletadas em entrevistas e depoimentos, das fontes da
imprensa maceioense e da bibliografia especializada.

309
JORNAL DE ALAGOAS, 13 de maio de 1960, pág.1 e 5. Arquivo Público de Alagoas. Projeto RELIGIÕES AFRO-
BRASILEIRAS EM NOTÍCIAS: Levantamento e Catalogação de Notícias sobre o Candomblé e a Umbanda na
imprensa maceioense, 1960-2000. Pró-Reitoria de Extensão, Edital Odè Ayé – NEAB, UFAL, 2010-2011.
Coordenação: Irinéia Franco, pesquisadores-bolsistas: Renata Macedo e Alberto Nogueira. O Jornal de Alagoas foi
fundado em 1908 e circulou até 1993.
310
Ogãs (do ioruba ga – chefe, superior) é termo que designa um cargo masculino nos candomblés para homens que
não entram em transe; há vários tipos de ogãs, ou várias funções. Muitos políticos, intelectuais ou homens influentes
recebiam o título como “protetores da casa”, mediando conflitos com a polícia ou dando auxílio financeiro nas festas.

205
Tabela 5: Aspectos Históricos das Religiões Afro-Brasileiras em Maceió (1900 a 1950)
Aspectos 1900-1912 1913-1940 1950
Contextos Sócio-político- República Velha, domínio das República Velha e Era Vargas; Urbanização; migração
econômico oligarquias; base de produção início da industrialização de interna; política
rural base; direitos trabalhistas; desenvolvimentista de
avanço da presença capitalista Juscelino Kubitschek;
internacional no país organização dos
movimentos sociais de
base
Mudanças e dificuldades Forte culturalidade e Auge da violência, repressão e 1957 – Federação dos
religiosidade negra; 1912 – perseguição aos cultos; Cultos Afro-
“Quebra de Xangô” = trauma violência policial e exploração Umbandistas do Estado
histórico financeira de Alagoas (1ª) =
ordenação e fiscalização
dos terreiros filiados;
minimização gradual da
repressão policial aos
cultos por interesses
políticos
Principais características Religião + Folguedos Fechamento das Casas de Axé Reabertura pública dos
populares = terreiros como + “Diáspora” (Pai Célio) de terreiros, mas mantendo
espaços sócio-culturais babalorixás e ialorixás para controle policial
outros estados; (pagamento de propina
Migração da Nação Xambá para funcionar); toques
para Pernambuco; só podem funcionar até
Desaparecimento de folguedos as 19hs
negros no carnaval de Maceió
= perda de sinergia cultural na
cidade
Transformações rituais Ritos identificados: Ritos e práticas: Jurema Toques e despachos nas
Nagô; (Curador de Pé de Toco) + matas às escondidas;
Ijexá; “culto doméstico” nagô = reinicio dos toques e
Congo; sessão de mesa; práticas nas festas públicas na
Angola; matas às escondidas com cidade; chegada da
Xambá toque com cabaças e palmas; Umbanda Branca do Rio
simplicidade de materiais de Janeiro e chegada dos
Angolas; confluência de
rituais e práticas; Xangô
traçado;
Sócio-econômicos e Era Malta – 1900 a 1912 Lutas entre as oligarquias Aproximação dos
Políticos (governo aparentemente não locais pelo controle do poder; políticos com membros
reprime os cultos); conflitos Fluxo migratório entre interior dos terreiros; discursos
entre famílias da oligarquia; e capital e interestadual (PE; políticos da
Fluxo entre África, Bahia e BA; SE e RJ); artesanato “modernização” ;
Pernambuco; produção de religioso com matérias primas Expansão urbana de
objetos sofisticados de culto e simples – rota de produtos via Maceió; bairros da Ponta
arte sacra negra Rio São Francisco Grossa e Ponta da Terra
com a maior
concentração de
terreiros; objetos de
culto começam a ser
trazidos de fora do
Estado, Bahia e Rio de
Janeiro; declínio da
produção de objetos de
culto
´

206
O período da Ditadura Militar
Houve um aspecto de forte controle político-policial e criminalização das religiões afro-
brasileiras em Maceió, pelas elites, perceptível nessa primeira metade do século XX. Na segunda
metade do século, foi constante a presença de militares ou policiais, acompanhando essas religiões e
interferindo nos seus assuntos cotidianos. Nos anos da Ditadura Militar, 1964-1985, havia muitos
militares nas Federações de culto. Durante esse período, deu-se a chegada do ritual jeje na cidade, e
o retorno do xambá e do angola, o que ocasionou nova onda de interrelações e conexões entre os
sacerdotes, os cultos e as práticas. Também explicitou conflitos entre a hierarquia dos cultos, sobre
a legitimidade das linhagens e dos rituais praticados.311 Quer-se aqui, verificar como se deu este
processo de evolução das religiões afro-brasileiras em Maceió, sob a ingerência dos militares.
Exemplificada na atuação das federações de culto e de suas lideranças.
Uma história política sobre o impacto do regime militar no Estado ainda está por ser escrita.
Entende-se que, no que diz respeito às religiões afro-brasileiras em Maceió, a presença dos militares
operava um controle da organização dos terreiros, ao mesmo tempo em que se fazia uma “política
de boa vizinhança” com suas lideranças. Seria exemplar, portanto, a história de Pai Júlio
Alexandre312. Nascido em 1928, foi funcionário da Assembléia Legislativa do Estado e do Gabinete
Civil nos Governos de Lamenha Filho (1966-1971), Afrânio Lages (1971-1975) e Divaldo Suruagi
(1975-1978); sendo eleito funcionário modelo por várias vezes. Seus contatos com o governo
estadual e com os chefes da segurança do Estado, como funcionário público, provavelmente
considerado “homem de confiança”, possibilitou a interferência política para a tomada do poder de
controle da Federação em 1968. Ao longo do período militar, foi favorecido na abertura e

311
Mãe Mirian Iabianã, nascida em Piranhas (AL) em 1935, foi iniciada em 13 de agosto de 1970 por Manoel Falefá
(Manoel Vitorino Costa) na Bahia. Abriu sua casa em Maceió em 8 de dezembro de 1975, da nação Jeje Mina Pôpo.
Conta-se que quando Falefá veio a Maceió, para cuidar da saúde, reuniram-se alguns pais de santo para recebê-lo na
Federação dos Cultos Afro-Umbandista, onde ele proferiu uma palestra. “Nessa ocasião o embate foi inevitável,
inclusive com trocas de farpas e desconsiderações”, já que Falefá “criticava arduamente as práticas Nagôs de seus
iniciados [em Alagoas], acusando-os ora de renegarem sua religião em função da adoração a santos católicos, ora de
praticarem feitiçaria pela utilização de práticas como o banho de sangue, a exposição pública de caveiras de animais
sacrificados, etc”. In Clébio Correia de ARAÚJO, op. cit., p. 9. Mãe Mirian também conta que quando voltou para
Maceió, depois da iniciação, foi “censurada por pais de santo. Se eu saísse na rua, os moleques me atiravam pedras, por
causa da roupa e da cabeça raspada, mas consegui tirar meu resguardo de um ano. Essas pessoas que me censuravam
hoje catulam, raspam e pintam”. In Revista ORIXÁS, Candomblé especial, nº 12, pp. 38-42. Entrevista feita por
Fernando Moretti em março de 2006, com a colaboração de Lincoln D’Oxumaré.
312
Conta Pai Júlio que desde os 14 anos recebia a entidade Seu Zé Pilintra. Depois de passar dois anos no terreiro nagô
de Mãe Maria Rosa, conhecida como Maria Baiana, na Ponta da Terra, fez a obrigação com Seu Apolinário do Recife
(nagô e congo), que vinha para Maceió atender na casa desta mãe de santo. Como não podia ir para Recife com
frequência e não tinha relações de amizade com Seu Apolinário resolveu parar de participar dos terreiros e voltou-se
para o Kardecismo. Nos anos 1950, no centro do Coronel Esmeraldino, presidente da Federação Espírita à época,
conheceu a recém-chegada Mãe Jurema. Segundo Pai Júlio, o marido de Mãe Jurema “era capitão do exército e
amicíssimo do Coronel Esmeraldino que era também do exército”. Fez, então, sua obrigação na Umbanda,
permanecendo com Mãe Jurema “até hoje”. Como funcionário da Assembléia Legislativa, teria sofrido muita
discriminação por frequentar a religião. Quando foi convidado para trabalhar no Palácio, essa situação teria mudado.
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, gravação em vídeo, 2008.

207
manutenção de seu Terreiro. Sua relação de amizade com os Coronéis Adauto, Esmeraldino e
Belarmino também importaria de ser mencionada, uma vez que, tais militares – membros ou não da
religião – mantiveram-se presentes nas diretorias das federações ao longo da década de 1970,
ganhando status e prestígio entre o povo de santo.
Em 22 de setembro de 1967, o Coronel Adauto (Adauto Gomes Barbosa), então Secretário
de Segurança Pública do Estado, coronel e comandante Geral da Polícia, assinou a portaria nº 106 –
67.9.17, que regulamentava o horário de toque dos Cultos “Afro-Umbandistas” e proibia
“terminantemente a cobrança de quaisquer Taxas de Serviço Policial para o pleno funcionamento de
tais Cultos, de parte da autoridade policial da localidade”. Ao mesmo tempo, recomendava “às
citadas autoridades que permitam o seu funcionamento até as 22:00 horas, podendo,
excepcionalmente, e a critério da autoridade policial ser prorrogado o seu horário de
funcionamento”.313 A proibição de cobrança de taxas foi muito bem recebida pelos chefes das casas
de axé que pagavam “propinas” aos policiais para tocar sem serem interrompidos, além da taxa que
se pagava para a Federação. Tal decisão teria ajudado a justificar a interferência militar nela. Então,
entre 1968 e 1969, Pai Júlio Alexandre foi posto no cargo de Presidente da Federação dos Cultos
Afro-Umbandistas de Alagoas. Contava Pai Júlio,
Eu passei pela Federação. Eu fui presidente daquela federação. Só existia uma Federação:
Federação dos Cultos Afro-Umbandistas do Estado de Alagoas. Era na Rua da Assembléia na
Ponta Grossa. Quando eu fui presidente era uma casinha assim de taipa, de biqueira. Eu
ganhei o terreno e construí aquele prédio que tem hoje da federação, que está o Benedito, ele
chama-se de Pai Maciel, mas era conhecido como Biu Olho de Gato... Eu construí aquele
prédio, eu ganhei. Tinha um compadre que tinha uma empresa, eu emprestei com ele Cr$
1.600,00 naquela época, aí eu não tinha dinheiro pra pagar, ele disse: “não compadre, deixa
isso pra lá, eu dei”. Não fui o fundador, já existia na época, quem botou [a federação] foi o
Amaro. Era como se fosse uma ditadura ali, era Amaro, Celestino... Aí o Coronel [Adauto],
ele era secretário de segurança pública e comandante geral da policia, no período
revolucionário que estava no poder, tinha muita força, aí derrubou e me botou como
presidente. Aí todos os diretores da federação eram da polícia. (...) O Coronel Esmeraldino
foi que explicou pra ele [Adauto] como funcionava. Assim, não tem eleição, não tem nada.
Ele [Amaro] vive da Federação, comendo... Ele [Adauto disse] “tá vou mudar”. Os outros
militares foram convidados pelo Coronel Belarmino.314

Teriam composto a direção o Sargento Rafael, o Coronel Esmeraldino como vice-presidente,


o Tenente Rogério, o babalorixá Seu Luiz Cardoso, presidente administrativo e mais outro, que Pai
Júlio não recorda. Essa alteração se justificava então, pela acusação de estar o Seu Amaro
“comendo” da Federação, ou seja, vivendo à custa das taxas pagas pelos terreiros filiados. Essa

313
SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA, Portaria Nº 106 – 67.9.17 de 22 de setembro de 1967. ARQUIVO
PÚBLICO DE ALAGOAS, Fundo Luiz Sávio de Almeida, caixa 01, Religiões Afro-Brasileiras em Alagoas. Xerox do
original. A documentação das Federações doadas pelo professor Luiz Sávio de Almeida ao APA estão em processo de
catalogação, feita pelos estudantes de História na disciplina Estágio em Arquivo sob orientação da professora Irinéia
Franco.
314
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.

208
acusação repetiu-se sempre nos jornais e nas falas, quando do conflito entre as lideranças da
Federação nas décadas seguintes. Segundo ainda Pai Júlio, a situação da religião na cidade teria
melhorado muito, pois, como um “presidente da força”, com a “polícia ao seu lado”, teria
“diminuído a repressão” aos terreiros. Também proibiram através de outra portaria assinada pelo
Coronel Adauto, os despachos nas encruzilhadas, “porque havia muita reclamação da
população”.315
Ocorria assim, uma década após a reabertura oficial das casas de axé na cidade, uma forte
regulamentação e ordenação – por parte das autoridades militares e de cooptação de algumas
lideranças do culto – que procuravam conformar as práticas religiosas negras, de acordo com a
mentalidade “antixangô” das elites, predominante de modo geral na sociedade cristã alagoana.
Durante a prefeitura de Divaldo Suruagi (1965-1970), Pai Júlio montou a I Semana Afro-
Umbandista, no Teatro Deodoro, com apresentação de vários terreiros de Umbanda, Candomblé e
Nagô. Sua intenção era aumentar a visibilidade das religiões afro-brasileiras na cidade, para “acabar
mais com a discriminação e com o preconceito social.” Para isso, a apresentação se deu no teatro
mais tradicional da cidade, palco histórico dos encontros políticos e de lazer das famílias
tradicionais da oligarquia. Com seus contatos, Pai Júlio conseguiu a autorização do Governo do
Estado. Contou com a presença, durante o evento, do Comandante da Polícia, do Prefeito com sua
equipe e de representantes do Governador. A repercussão teria sido positiva, mesmo com a crítica
de alguns religiosos que pensavam estar transformando a “religião em folclore”.
Toda essa movimentação era publicada nos jornais locais. Pai Júlio tinha a principal festa de
sua casa (Festa da Figuera, sua Pombagira) noticiada no Jornal de Alagoas em 22 de agosto de
1970. Por outro lado, no mesmo período (28 de agosto) o citado periódico publicava matérias de
tipo editorial, em que se reclamava do barulho dos atabaques no bairro da Ponta Grossa. Vêem-se
abaixo as notas,
Será hoje a Festa da Figuera na rua Ary Pitongo, 91, Prado. Júlio Alexandre, presidente da
Federação dos Cultos Afro Ubandista [sic] promete muito para a resposta. Convites foram
distribuídos em toda Maceió. Informou Júlio que essa festa se processa todos os anos no dia
24 de agosto e comentada nos meios cultos e afros. A “Festa da Figuera” da rua Ary Pitombo
é comentada como a melhor e mais bem preparada do Estado, o que envaidece a todos os
freqüentadores do Culto. A comemoração está marcada para às 20horas.316 (...)

315
Idem, op.cit.
316
Seu Ferreira conta que Ary Pitongo, nome da rua da casa de Pai Júlio, foi um subdelegado que nos anos 1940 e 1950
perseguia muito os “macumbeiros” na cidade. Ele vigiava e invadia as casas durante as “sessões de mesa”. Aí obrigava
o pai de santo a colocar a mesa na cabeça e sair pela rua gritando: “sou o macumbeiro do Bebedouro” ou, quando não,
“sou o macumbeiro da Ponta Grossa”, e ia o “infeliz” a pé correndo até a 1ª Delegacia. Por conta disso, reuniram-se os
pais de santo mais antigos dali (Amaro, Aurélio, Benedito Calheiros, Chico Foguinho...) e combinaram de “despachar o
homem”. Seu Benedito Calheiros era o mais afamado “bate folha” da cidade (que trabalhava com as entidades de
esquerda - Exu); assim, compraram um caixão de madeira, fizeram um boneco montado com “carnes preparadas”,
botaram um terno branco nele, com uma gravata borboleta, tal como usada por Ary Pitongo e uma placa escrita: “eu sou
o Ary Pitongo”, e foram para a mata enterrar a encomenda. No entanto, enquanto lá estavam os vigias da mata

209
Os ‘pais de santo’, residentes em Ponta Grossa, principalmente na “Coréia” [conhecida
favela], continuam fazendo das suas. Depois de “beberem” o sangue de muita galinha sem
dono, largam a mão no “tambaque”, alguns deles, e a zuada se estende pela madrugada. Se a
gente for contar quantos estão funcionando dessa maneira... Nossa! Não há caderno e lápis
que chegue. A melhor maneira para acabar com isso é uma “chegadinha” do delegado
daquela jurisdição. Se o “homem” não gostar de xangô aí a coisa vai mudar de figura. Pois
muito pai de santo vai baixar na cadeia por abusar na violação da LEI DO SILÊNCIO.
Depois dessa “dica” esperamos que a polícia que sempre, tem atendido este colunista, faça
uma revisão no local. E muita gente vai ficar satisfeita. Vamos sòmente [sic] esperar...317

O que explicaria a diferença de tom no discurso das matérias? Sabe-se que Pai Júlio tinha
boas relações com repórteres do Jornal de Alagoas. No entanto, acompanhando a evolução das
notícias sobre as religiões afro-brasileiras na cidade a partir dos anos 1960, ficava evidente uma
ligeira mudança de discurso e tratamento dado às religiões ao longo do tempo. Nos anos 1960, as
notícias publicadas no Jornal de Alagoas, ao se referir aos terreiros localizados nos bairros de
periferia chamavam-nos “macumba” e “xangô”. Quando são notícias de festas (algumas talvez
tivessem o espaço comprado) eram apresentadas como “umbandismo”, “afro-umbandistas” e
poucas vezes como “candomblé”. Nos anos 1970, com a Federação sob influência dos militares o
tom seria mais positivo, ou menos negativo, somente aos terreiros e aos sacerdotes ligados àquela
entidade. Quando não apresentavam as religiões afro-brasileiras como “folclore negro”.
Em outubro de 1970, porém, uma acusação de “apropriação indébita e estelionato” dirigida
contra os membros da Diretoria da Federação318 alterou novamente sua configuração. De acordo
com Pai Júlio, ele estava a dois anos à frente da Federação,
Aí eu saí, deixei a federação, aconteceu uma irregularidade lá. Eu sei de quem foi não vou
dizer, porque ele era muito meu amigo. Não sei se ele tinha necessidade daquilo, sei lá. Como
hoje tem tanta, né? Hoje é até normal. Terminou meu período, eu não quis mais.319

A acusação foi feita por Paulo Ferreira de Araújo e Ivette de Araújo, ex-interventor e ex-
procuradora da Federação, respectivamente, mais “uma representação de 127 assinaturas de
associados” da Capital e do Interior do Estado. Até mesmo Seu Luiz Marinho, naquele momento
“mestre de obras da Federação” prestou depoimento, como testemunha de acusação. As acusações
eram: (a) desvio de material de construção; (b) falsificação de recibos de pagamento de despesas,

perceberam e foram atrás deles; com a chegada dos vigias, os pais de santo fugiram e deixaram pra trás o caixão. Diz
Seu Ferreira que os vigias levaram o caixão pra delegacia, abriram lá e viram o “boneco”. O resultado não foi positivo.
Depois desse fato, dizia ele, “imagina macumbeiro apanhar, foi uma coisa horrível”. Completava Seu Ferreira: “se pelo
menos tivessem levado junto o caixão”... PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, gravação em vídeo, Seu Ferreira, 2008.
317
Jornal de Alagoas, 22 de agosto de 1970. Afro Ubandista faz festa de “arromba”. Jornal de Alagoas, 28 de agosto de
1970. Xangôs incomodam na Ponta Grossa. Fonte: Hemeroteca do IHGAL.
318
Eram eles Francisco Belarmino da Silva (coronel), Júlio Alexandre Araújo Filho (Pai Júlio - Presidente), Otávio de
Carvalho Pereira (Secretário), José Carlos Rocha da Fonseca (Tesoureiro) e Cornélio Joaquim de Brito.
319
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit. Pai Júlio informa que havia na sua época cerca de três mil filiados na
Federação em todo o Estado de Alagoas.

210
como a não apresentação dos gastos feitos do valor dos ingressos do Festival da I Semana
Umbandista; (c) apropriação de dinheiro (Cr$ 1.500,00) de uma subvenção doada pela prefeitura;
(d) extorsão de dinheiro e de víveres (“peru e capão”) de “incautos” no interior do Estado; e, (e)
fazerem “bacanal com mulheres de vida fácil, com dinheiro da Federação”.320 Os acusados negaram
todas elas, mas não puderam comprovar através dos balanços os gastos e a aplicação do dinheiro
doado pela prefeitura. Pelo depoimento de Pai Júlio, houve de fato uma “irregularidade” da qual se
exime.
Após a saída de Pai Júlio, assumiu a diretoria o senhor Luiz Cardoso. O período de sua
diretoria foi lembrado pelos mais velhos como um tempo em que havia muitas atividades na
Federação: escola de alfabetização e de corte e costura, sabonete artesanal, convênio médico e
odontológico, auxílio funerário. Todas essas atividades, realizadas com apoio de voluntários,
tinham algum auxílio financeiro do Estado, mas que não puderam se manter a longo prazo. Outros
conflitos desencadearam a criação da segunda federação. Yvette Araújo (Madrinha Yvette) havia
sido secretária da diretoria do Seu Cardoso. Depois de um “desentendimento” com ele, saiu e abriu
o seu terreiro Centro Áfrico Rainha da Palha, em fevereiro de 1972. Em julho do mesmo ano
inaugurou juntamente com o Pai Paulo Ferreira a Federação Zeladora dos Cultos em Geral do
Estado de Alagoas.321

Membros da Federação Zeladora dos Cultos em Geral do Estado de Alagoas (1972) –


Ao centro com camisa listrada Paulo Ferreira, do seu lado Seu Amaro Avelino, última na ponta do lado esquerdo Yvette
Araújo. Fonte: APA – Fundo Luiz Sávio de Almeida

320
SECRETARIA DE SEGURANÇA PÚBLICA, Delegacia de Roubos, Furtos, Investigações e Capturas, CERTIDÃO
DE INQUÉRITO (s/número), Maceió, 26 de outubro de 1970. Arquivo Público de Alagoas, Fundo Luiz Sávio de
Almeida, caixa 01, em catalogação.
321
No Fundo de Luiz Sávio de Almeida do APA há parte da documentação original da Federação Zeladora dos Cultos
em Geral do Estado de Alagoas, e alguns documentos de outras federações que surgiram na época, como a Federação
Espírita dos Cultos Umbandistas no Estado de Alagoas (21/11/1978) cujo presidente era Lourival Morais de Oliveira, a
Federação dos Candomblés e Umbandista Brasileiro do Estado de Alagoas (22/10/1986) de Alda Ribeiro (surgida de
um racha da Federação dos Cultos) e a Confederação Nacional dos Cultos Afro Brasileiro de Alagoas, sem
identificação de data e presidência. Nos jornais há notícia ainda da Congregação de Candomblé e Umbanda do Estado
de Alagoas (26/04/1980), presidida pelo babalorixá Anedito Fernandes dos Santos (um dos coroados “Príncipes do
Candomblé no Brasil”). Hoje se mantém funcionando as duas primeiras Federações fundadas e mais outras duas:
Federação Umbandista dos Cultos Áfricos de Alagoas e a Federação Umbandista Cavaleiro do Espaço de Alagoas (em
Chã do Pilar).

211
Alguns dos mais antigos membros da primeira Federação migraram para a nova, como Seu
Amaro322 e Otávio Pereira. A atuação de Yvette Araújo destacou-se nos jornais nos anos seguintes.
No entanto, o jornalista Bezerra Neto e o pai de santo Benedito Maciel (que assumiu a Federação
após a morte de Cardoso em 1985) foram os protagonistas do episódio que veio a ser chamado nos
jornais de “Guerra das Federações” e “Crise do Candomblé”; provocado pela visita do babalorixá
Zé Ribeiro do Rio de Janeiro, auto-intitulado “Rei do Candomblé”, a Maceió. Sobre isso comentava
Pai Célio,
(...) Aí vêm as guerras das federações, porque o que acontece: a federação começa a ser um
meio de vida. Como existiam muitos candomblés, a federação passa a ser um meio de vida
pra quem está na direção. Aí a federação perde até o nome, a nomenclatura, você não vai ver
a pessoa dizer eu sou da Federação Zeladora dos Cultos Afro-Umbandistas; eu sou da
Federação do Pai Maciel, eu sou da Federação do Paulo. Como foi se unir a federação do
Paulo? Dona Ivette era secretária da Federação do Cardoso (a primeira)... Até eu me perco
nisso... E a dona Ivette aprendeu tudo e saiu, brigou com o Cardoso e montou a Federação
dela. [a Ivette aparece muito nos jornais na década de 80] Sim, ela tem influência, o primo
dela é o Júlio Alexandre. Pai Júlio por sua vez trabalhava na Assembléia Legislativa,
trabalhava no governo, saiu da assembléia foi trabalhar no gabinete civil, ficou muito tempo
no palácio, tinha parte com repórter, com aquilo outro, então Ivette, queria neutralizar e
acabar com a Federação do Cardoso... Foi a briga das federações....

Os conflitos entre as lideranças, pelo controle das federações e do prestígio político e


econômico que elas representavam, não somente teriam prejudicado as articulações do povo-de-
santo para a melhoria das condições do culto afro-brasileiro na cidade. Mas, também teriam
segundo Pai Célio, enfraquecido a força religiosa (axé) de alguns. Como isso teria ocorrido? Dizia
Pai Célio que,
(...) Com a morte do Cardoso, Pai Maciel toma a federação, e para se autoafirmar ele corre
para o Rio de Janeiro e vai fazer obrigação com Zé Ribeiro, que é o Rei do Candomblé lá. Zé
Ribeiro por sua vez vem pra cá para entronar ele e colocar a coroa de chanceler. Isso tudo eu
vivenciei na barra da saia de vovó, ela me levava pra todo lado... Aí o que acontece: Pai
Maciel se entrona e tal, e começam as guerras: sou rei, sou rainha, sou princesa. Pai Maciel
como chanceler começa a distribuir um monte de títulos pra todo mundo. Vem o Rei do
Candomblé. Aí começam as brigas também no Rio de Janeiro, entre Pai Ribeiro e o Pai
Paiva. Pai Paiva vai pra Brasília estrutura uma federação, já briga com a Federação do Rio, e
por ele estar em Brasília, por ser a capital, diz, eu estou na capital eu sou o Rei do
Candomblé. Pai Paiva é Pernambucano, conheci Paiva, conheci esse povo todo. Deu um rolo
imenso, todo mundo queria ser rei, príncipe, princesa, rei, rainha. Criou-se uma hierarquia
que não existia. Com isso, vem a história da quebra do axé. Pai Maciel enfraqueceu o axé,
acabou com o candomblé, porque só queria ser rei de um lado, de outro, na federação,
misturou tudo. Aí enfraquece o axé. Os outros se isolaram, todo mundo se afastou dele.
Quando caiu a real, caiu a ficha, começaram a morrer alguns. Dessa época só ele está vivo.323

A tensão entre as Federações teria explodido, então, no episódio do “Rei do Candomblé”. Os


jornais de Alagoas acompanharam a repercussão do caso que se iniciou, seguindo a cronologia das
fontes da imprensa, entre 05 e 08 de julho de 1975, quando se deu o anúncio da coroação de Pai

322
Amaro Avelino Costa, “Seu Amaro Preto”, é lembrado por muitos informantes como um dos “antigos negros da
costa”, grande conhecedor do culto nagô.
323
Entrevista Pai Célio, op. cit.

212
Maciel como Rei do Candomblé de Alagoas pelo babalorixá Zé Ribeiro, do Rio de Janeiro. Nesse
momento, Pai Maciel não era ainda o Presidente da Federação dos Cultos Afro-Umbandistas de
Alagoas.324 Tanto a Gazeta de Alagoas quanto o Jornal de Alagoas e o Jornal de Hoje, noticiaram
o clima de “tensão entre as lideranças dos cultos”. Favoreceu esta ampla divulgação do caso a
presença do jornalista Bezerra Neto, como presidente à época da Federação Zeladora dos Cultos
em Geral do Estado de Alagoas325. Este deu entrevistas, apontando como “boatos” a notícia que
seria “contra todos os princípios da seita”. Segundo Bezerra Neto, na Umbanda não existiria tal
hierarquia, e Pai Maciel não possuiria “nenhuma característica de liderança para o exercício da
função, como Babalaô entre os babalorixás. Isto porque, além de leigo no assunto, ele demonstra
ser suspeito, tendo em vista que seus conhecimentos ainda são muito vagos a respeito dos mistérios
das federações e zeladores de culto”.326 Em 28 de janeiro de 1976 saiu novamente na imprensa a
informação da coroação de Pai Maciel como Rei do Candomblé de Alagoas, que desta vez seria
realizada por Pai Edu de Olinda, já coroado lá por Zé Ribeiro, como Rei do Candomblé de
Pernambuco. A data estava marcada para o dia 07 de fevereiro. A partir daí, a confusão estava
montada. Bezerra Neto deslocou-se para Recife onde, entrando em contato com Pai Edu, teria
garantido dele a não realização do coroamento. Também afirmou aos jornais que iria entrar com um
“mandato de segurança” na Justiça, para impedir tal fato. Enquanto isso, a Federação Zeladora, em
assembléia extraordinária, no dia 31 de janeiro, com 21 membros da “seita”, sob orientação do vice-
presidente Francisco Mariano, lançou o protesto formal contra a coroação de Pai Maciel327. Ainda
em fevereiro, no dia 04, a Federação dos Cultos noticiava seu apoio a Pai Maciel e sua resposta às
acusações de não ter competência, ou mais grave, de não ter “dons espirituais”. Dizia-se que, com
“dezenove anos de serviços prestados à Comunidade Alagoana, a sua mediunidade é um dom
absoluto de Natureza Divina”, mereceria, portanto o “devido respeito”. Afirmava-se ainda que com
a autorização de sua Federação, não poderia “jamais se subjugar aos caprichos de outra
Federação”.328
A repercussão negativa impediu a realização da coroação. Na imprensa, no mês de março
(dias 04 e 14), duas pequenas notas “de desforra” foram postas por Bezerra Neto. Nelas se enaltece,
informando a sua eleição para uma cadeira no Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda

324
A partir de agora no texto será apresentada como Federação dos Cultos. Segundo Mãe Lucinha, após a morte de seu
pai carnal, Seu Cardoso em 1985, sua mãe ficou uns dias à frente da Entidade. Depois ficou o senhor Aragão. Após
conflito com a Federação Zeladora, que fez uma série de acusações à justiça Civil, Pai Maciel assumiu a presidência.
325
A partir de agora no texto será apresentada como Federação Zeladora.
326
Gazeta de Alagoas, sábado, 5 de julho de 1975 – Coroação de Babalorixá como Rei da Umbanda gera tensão entre
lideranças dos cultos. Arquivo Público de Alagoas, Acervo Luiz Sávio de Almeida, caixa 01, recortes em catalogação.
327
Jornal de Alagoas, domingo, 01 de fevereiro de 1976 – Rei do Candomblé tem sua coroação condenada. APA –
Acervo Luiz Sávio de Almeida, op.cit.
328
Jornal de Alagoas, quarta-feira, 04 de fevereiro de 1976 – Federação defende Pai Maciel de insultos. APA, op.cit.

213
(CONDU) com tomada de posse no dia 20 de março de 1976. Somente em junho o tema voltaria a
aparecer nos jornais, nos dias 22 e 26.
Continua a luta pela coroação do rei do candomblé. Com a chegada do senhor José Ribeiro,
pai de santo carioca, e que se diz rei do candomblé em sua terra, o assunto que parecia morto
ressuscitou e pelo menos nos terreiros alagoanos é a tônica. (...) Luiz Saturnino Gonzaga
muito irritado disse que a coordenadora do Conselho Nacional Deliberativo da Umbanda que
se encontra hospedada no Hotel Beiriz afirmou não ter conhecimento nobiliárquico
apresentado pelo José Ribeiro em nosso meio. Acredita que ele anda mais numa de vigarista
que outra coisa. Igualmente, o outro babalorixá, Benedito Calheiros, assinalou que todos os
pais de santo de Maceió pedem que a Federação Zeladora dos Cultos em Geral pronuncie-se
e coíba de uma vez por todas essas palhaçadas que cada vez mais maculam e põe em
desprestígio o candomblé. 329

PERDERAM A MANCHETE

Não perceberam os homens da cobertura junina que também dentro de vários terreiros de
candomblé foram bem animados os festejos. Em um deles dava até pra se fazer
sensacionalismo quando o verdadeiro rei do candomblé do Brasil se fez presente. Trata-se do
babalorixá José Ribeiro que vindo do Rio de Janeiro tomou parte na festa, quando anunciou
para o fim do ano a coroação do conhecido “Pai Maciel”. O homem tentou ser coroado no
princípio do ano, mas algumas ceitas [sic] reunidas tiraram-lhe a “coroa”, quando já lhe
colocavam na cabeça. É os colegas perderam a manchete. Ao que parece, o caldo vai
engrossar outra vez.330

No mês seguinte, outra pequena matéria foi publicada no Jornal de Hoje, com a manchete
“Coroar-se” rei do candomblé é crime. Nela, Bezerra Neto fazia novamente a ameaça de
“comunicar oficialmente aos órgãos de segurança e, no último caso, impetrará mandado de
segurança”, caso José Ribeiro fosse a Maceió, coroar o babalorixá Benedito Maciel.331 Assim, em
setembro (18), Pai Maciel informava aos jornais a sua partida no dia 27, para receber no Rio de
Janeiro, “o processo de catulação com o rei do candomblé no Brasil, professor José Ribeiro, a fim
de ter condições de receber a coroa de príncipe do candomblé”. Segundo o Jornal de Alagoas, Pai
Maciel havia dado detalhes de sua viagem “afirmando que a distinção que lhe foi outorgada pelo
Conselho Nacional de Xangô”, representava “um título folclórico”.332
Com menos repercussão, o caso ainda se prolongou na década de 1980. No final, Pai Maciel
foi coroado Comendador do Candomblé de Alagoas. Ocorrendo, como informado por Pai Célio, a
distribuição de títulos e coroas a pais e mães de santo na capital e no interior. A agitação nas
federações continuou nesse período: (a) houve conflitos pelo controle das mesmas (problemas na
legitimidade das eleições); (b) acusações de extorsão aos terreiros do interior; (c) conflito para
assegurar a legitimidade de qual federação realmente representava Alagoas nos conselhos nacionais

329
Jornal de Alagoas, terça-feira, 22 de junho de 1976 – Umbanda outra vez em pé de guerra. Não a Pai Maciel. APA,
op. cit. Jornal de Alagoas, sábado, 26 de junho de 1976 – Perderam a Manchete. APA, op.cit.
330
APA, op. cit. Jornal de Alagoas, sábado, 26 de junho de 1976 – Perderam a Manchete. APA, op.cit.
331
Jornal de Hoje, Maceió, 10 de julho de 1976. Coroar-se rei do candomblé é crime. APA – op. cit.
332
Jornal de Alagoas, sábado, 18 de setembro de 1976. Alagoano vai receber coroa. APA – op.cit.

214
do sudeste; (d) necessidade de defender a tradição religiosa local da chegada de outro “Rei do
Candomblé” (Zé Mendes Ferreira, alagoano residente em São Paulo) que acusava nos jornais o
“xangô alagoano” de ser “catolicismo disfarçado”; (e) lidar com o aumento da violência urbana que
atingiu fortemente o povo de santo nas periferias; (f) criar órgãos próprios de divulgação das
religiões e terreiros, etc.333
Qual a importância desse relato para a história das religiões afro-brasileiras na cidade? A
narrativa dos conflitos protagonizados por parte da hierarquia é importante para o entendimento do
campo amplo de conflitos internos e externos vivenciados por elas. O espaço social dado às
religiões afro-brasileiras ali, foi sendo restringido ao longo do tempo. Fortemente cerceada na
primeira metade do século XX, a retomada pública dos cultos precisou de muita luta e negociações
para se fazer ouvir e ver na cidade. O fato de ter sido publicado em praticamente todos os jornais
locais o embate, sugere que havia, no mínimo, “curiosidade” sobre as organizações e atividades das
federações. Estarem as lideranças das federações, em diferentes atividades públicas, contribuiu
também para isso. Por outro lado, não somente em termos de conflitos, mas também com atividades
culturais, as religiões afro-brasileiras passaram a serem vistas como parte da realidade religiosa
local.
Ainda foi nesse período (1970/1980) que a Festa de Iemanjá no dia 08 de dezembro, nas
praias da cidade, passou a ser noticiada com destaque todos os anos; com um aumento considerável
dos terreiros participantes e da organização de eventos e homenagens durante o dia. A década de
1980, portanto, iniciou-se com a possibilidade de ampliar a visibilidade das religiões afro-brasileiras
na cidade. A situação da população e da cultura negra de modo geral passou a ser mencionada
também, juntamente com as articulações do movimento negro.

A presença religiosa e a visão político-social das religiões afro-brasileiras em Maceió


Apesar dos conflitos, as federações puderam de certo modo, legitimar um discurso de
valorização das religiões afro-brasileiras, sendo sua “voz oficial” junto aos órgãos governamentais e
a imprensa. Esse discurso apropriou-se das possibilidades estratégicas de apresentar a religião como
“folclore”, num processo que vinha ocorrendo desde meados do século em outras partes do Brasil e,
posteriormente, como cultura. Usando a Bahia como exemplo, as autoridades governamentais
percebiam como interessante a possibilidade de explorar a religiosidade negra na cidade, para

333
Todos esses dados estão baseados na documentação das Federações que consta no APA, somada às notícias da
imprensa e às informações orais obtidas com membros da religião na cidade.

215
fomentar o turismo local.334 Daí o destaque à Festa de Iemanjá e o resgate da importância histórica e
artística da Coleção Perseverança do IHGAL.335
A repressão policial, pelo menos em termos “legais”, não podia mais existir. Isto propiciou
uma abertura de falas de defesa dos cultos afro-brasileiros na imprensa, que se mantinha ainda
como veículo principal de difamação das mesmas. Ao mesmo tempo em que se publicava nos
jornais notícias sobre eventos acadêmicos, festivais da cultura e da religiosidade negra na cidade,
utilizava-se forte linguagem pejorativa nos editoriais de reclamação (ainda) sobre o “barulho dos
tambores”. Nas páginas policiais, o sensacionalismo e o racismo exacerbado eram exercitados em
cima de acontecimentos violentos, que ocorriam ao povo de santo nas periferias. Com a
redemocratização, passou-se a publicar também previsões para as eleições e para o ano novo336 e
classificados de divulgação de serviços mágico-religiosos de babalorixás e ialorixás.
Nos anos 1980, portanto, a expansão das religiões afro-brasileiras na cidade de Maceió era
fato. Em pesquisa quantitativa sobre os terreiros e tendas na cidade, os pesquisadores Bruno
Cavalcanti e Janicléia Rogério, apresentaram dados preliminares, a partir de um levantamento feito
pelo NEAB em 1988, num total de 542 terreiros em 26 bairros.337 Esse número expressivo tendeu a
crescer consideravelmente nas décadas seguintes. Seria significativo que na década da
redemocratização, as religiões afro-brasileiras em Maceió ampliaram sua visibilidade pública e as
expectativas de organização como movimento cultural. Também sua mitologia, ideologia e práticas
obtiveram mais divulgação na mídia e através da elaboração de livros, folhetos e outros materiais de
cunho didático. Tal interesse veio acompanhado ainda por um discurso racista, que parte da
imprensa resistia em abandonar. Em 24 de março de 1981, o Jornal de Alagoas, trouxe um artigo de

334
A Federação Zeladora chegou a publicar no seu Jornal Saravá, na sessão chamada Revista de Turismo, a listagem
de todos os terreiros a ela filiados no Estado, em que constava o endereço do Terreiro e o nome do Pai ou Mãe de santo
responsável. Infelizmente, no Fundo Luiz Sávio de Almeida, no APA, tem-se somente algumas páginas deste jornal.
SARAVÁ, Ano 2, Nº 1, julho 77, IGASA.
335
Em 1985 o antropólogo Raul Lody publicou um novo catálogo sobre a coleção Perseverança com apoio da Fundação
Nacional da Arte, MEC/Secretaria de Cultura, intitulado Coleção Perseverança, um documento do Xangô Alagoano.
Nele o autor amplia aquela primeira análise apresentada por Abelardo Duarte em 1974. A presença deste pesquisador
foi divulgada com destaque nos jornais do período. Até o momento, não se tem conhecimento de outro trabalho sobre
essa importante coleção de estatuária e paramentos litúrgicos dos xangôs maceioenses.
336
Também sobre isso houve polêmicas nacionais entre os pais e mães de santo na definição do Orixá que iria reger o
ano 1981. Jornal de Alagoas, 10 de janeiro de 1981 – Babalorixá explica a polêmica sobre o santo. IHGAL –
Hemeroteca, Projeto Religiões Afro-Brasileiras em Notícias, op. cit.
337
O relatório do NEAB dizia respeito ao mapeamento dos sítios e monumentos negros de Alagoas (NEAB/UFAL,
1988). Os pesquisadores informam ainda que, “apesar dos impasses metodológicos do mapeamento, “que não foi
exclusivo sobre a vida religiosa”, os dados do levantamento revelam números realmente impressionantes. O bairro do
Jacintinho, formado nos anos 1950, aparece com 75 terreiros. Outra surpresa significativa é representada pelo
crescimento populacional na parte alta da cidade, o que concorreu para os 71 terreiros citados para o bairro do Tabuleiro
dos Martins. O Vergel do Lago aparece com 64, seguido dos bairros do Farol e da Ponta Grossa, ambos com 42, da Chã
da Jaqueira com 40, do bairro do Poço com 28 e da Chã do Bebedouro com 20”. Bruno César CAVALCANTI;
Janicléia Pereira ROGÉRIO, op. cit., p. 17.

216
Arthur Ramos, originalmente publicado em 1938, no Jornal La Prensa de Buenos Aires. A matéria
intitulada MACUMBA: Religião e Ritual dos Negros trazia a seguinte apresentação,
Em seus consagrados livros, “O Negro Brasileiro”, “O Folclore Negro do Brasil” e “As
Culturas Negras do Novo Mundo”, o antropólogo Arthur Ramos oferece uma exegese psico-
analítica das religiões de origem negro-fetichista sobreviventes, e destranha a ciência
misteriosa dos cultos negros representados, mais ou menos fielmente, nos chamados em
nosso País, macumba, candomblé, catimbó, danças rituais, hoje prato predileto dos turistas. O
trabalho que ora apresentamos, de autoria do renomado cientista nascido no Pilar, foi
publicado no jornal La Prensa, de Buenos Aires, no distante ano de 1938, contudo, sua
validade continua a mesma.338

Esse discurso deslocado do tempo era o máximo de condescendência ofertado pela


imprensa. Por vezes, fôra “reforçado” pelas próprias lideranças nas atividades promovidas em prol
das religiões, mais ou menos nos moldes das atividades desenvolvidas nos anos 1970 pela
Federação dos Cultos. Esta, por sua vez, repetia os modelos de eventos ocorridos na Bahia desde os
anos 1930. No início de 1980, o babalorixá Anedito Fernandes Santos – “príncipe do Candomblé”
coroado por Zé Ribeiro, estabelecido em Coruripe – ajudou a organizar o I Congresso de
Candomblecistas do Norte e Nordeste. Eis um resumo da notícia,
(...) o anúncio foi feito pelo secretário do professor José Ribeiro, jornalista Rubem Brandão,
esclarecendo que o conclave visa irmanar todos os zeladores de candomblés e “terreiros” da
região Norte e Nordeste, com apresentações durante espetáculos públicos e conferências a
cargo do Rei do Candomblé do Brasil. (..) trata também de dar a real imagem da seita à
sociedade, desfazendo opiniões negativas sobre seus princípios e trabalho. (...) Anedito
afirmou ser muito importante para nosso Estado servir de sede para o Encontro, “já que em
termos de cultura negra, Alagoas ainda não deu a sua parcela, fazendo com que a comunidade
participe do candomblé, quer em termos de religião, quer em termos de folclore”. E disse
“além de procurarmos neste conclave levar um pouco de nossa cultura à sociedade e aos
estudiosos, estamos tentando promover uma integração entre aqueles que cultuam os santos
orixás e seguem as suas orientações”. (...) Sobre o acontecimento, o jornalista Rubem
Brandão, disse que contatos serão mantidos com o Governo do Estado, a fim de alcançar
êxito o 1º Congresso de Candomblecistas da Região Norte e Nordeste.339

Haveria, pois, certos discursos das lideranças religiosas que casavam, ou procuravam se
adequar ao discurso folclorista. Talvez fosse visto como a única via de entrada para a aceitação
pública, ou para o fim da perseguição político-policial. No entanto, foi exatamente este o discurso e
a prática que o movimento de reafricanização, alguns anos depois na Bahia, criticou duramente.340
A possibilidade de entender e “participar” do Candomblé como religião e folclore, apareceu como
incongruente e perigosa para o próprio culto, na perspectiva de alguns dos sacerdotes e sacerdotisas
dos terreiros mais antigos. Fato este percebido em todo o Brasil. Ora, viu-se que na primeira metade
do século XX, a culturalidade negra na cidade de Maceió era bastante rica e diversificada. Eis um
problema de interpretação para os estudiosos da cultura negra. A não compreensão da dinâmica

338
Jornal de Alagoas, 24 de março de 1981 – Macumba: religião e ritual dos negros. Hemeroteca – IHGAL.
339
Fonte: APA – Fundo Luiz Sávio de Almeida, Jornal de Alagoas, 04 de abril de 1980. Na foto aparecem o babalorixá
Zé Ribeiro e o jornalista Élio Lessa.
340
Ver esta discussão no capítulo 02.

217
histórica da culturalidade negra levaria à tentativa de enquadrá-la dentro da ideologia e das
categorias do universo da cultura judaico-cristã. O fato desta culturalidade, por mais de 50 anos, ter
sido analisada como folclore, no strictu sensu, deu a idéia de se estar lidando com fatos passados e
míticos, mantidos somente entre uma população pobre sem educação formal. Portanto, sem
capacidade de produzir ou apreciar a “sofisticação da cultura branco-cristã-européia”. O declínio ou
o fim dessas manifestações só poderia ser visto como o movimento do “progresso e do
desenvolvimento”. Mais do que isso, dava-se a “impressão” das religiões afro-brasileiras serem uma
miscelânea sem nexo, tão diversa que os próprios membros não conseguiam concordar em nada.
Para uma ideologia aparentemente homogênea do cristianismo oficial e clerical, chamar tais cultos
de religião era inviável. Paradoxalmente, as religiões ditas universais utilizam argumentos racionais
– e não místicos – para desqualificar as religiões ditas locais ou tradicionais. Por outro lado, para os
mais antigos, ainda apegados às idéias e vivências da primeira metade do século, em que a “seita”
estava relacionada também a uma prática do catolicismo popular, o novo discurso do Candomblé
como religião “espetáculo” também não fazia sentido. O antigo culto nagô teria procurado retomar,
nos anos 1980, a força de sua identidade. Em tempos em que os candomblés de nação iam se
multiplicando, o velho xangô maceioense também procurava seu lugar.
Dessa forma, algumas articulações foram feitas no sentido de criar uma rede em vários
estados de apresentações sobre o candomblé nordestino, com vistas à sociedade brasileira como um
todo. Infelizmente, vários conflitos interpessoais ocorreram, talvez reforçados por essa mesma
divulgação e expansão que representava prestígio e poder. Recorde-se que Zé Ribeiro havia
distribuído coroas para alguns pais de santo de Alagoas, entre eles Maciel e Anedito. Este último,
aproveitando toda a articulação do Congresso, no mesmo ano de 1980, em 26 de abril, anunciou a
fundação de sua Congregação Nacional de Umbanda e Candomblé, sediada em Coruripe. No ano
seguinte (1981), tal como noticiado, “teve seu título cassado pelo senhor José Ribeiro de Souza, Rei
do Candomblé, a pedido da presidente Ivete Araújo, da Federação Alagoana dos Cultos Afro-
Umbandistas [sic]”. Segundo o denunciante, “sr. Márcio Roberto Rocha, (...) o sr. Enedito [sic]
vinha sempre criando problemas com os proprietários de “centros” em Coruripe, obrigando a todos
pagarem uma taxa à sua Entidade, o que provocava grande revolta, tendo havido até apelação junto
à Federação Alagoana dos Cultos para que interferisse no assunto, culminando agora com a sua
cassação”.341 Yvette Araújo, como se sabe, era a presidente da Federação Zeladora e não da
Federação dos Cultos. A quantidade de federações e as designações parecidas sempre geravam
confusão. E talvez fosse uma tática para o controle do meio.

341
Jornal de Alagoas, 13 de fevereiro de 1981 – Príncipe é cassado por rei no município de Coruripe. Hemeroteca,
IHGAL.

218
Logo no início da década de 1980 percebia-se o surgimento das consequências da ação dos
“Reis do Candomblé” em Alagoas. Entre 1980 e 1982, a presença do outro rei – José Mendes –
agitou as lideranças locais. A Federação Zeladora que tanto combateu a coroação de Pai Maciel e a
presença de Zé Ribeiro no Estado, acabou por defender-lhes, quando da chegada de José Mendes.
Talvez tenha influenciado o fato de José Mendes ser alagoano de Utinga e ser lembrado como
“auxiliar de enfermagem na cidade”. Portanto, com uma biografia conhecida dos pais e mães de
santo locais, não muito impressionante. E assim, as suas críticas ao xangô alagoano foram
duramente rebatidas nos jornais,
Afirmando que “nossa Federação não reconhece o Babalorixá alagoano José Mendes, como
Rei do Candomblé no Brasil, nem de lugar nenhum”, a presidente Yvete Araújo, da
Federação Zeladora dos Cultos em Geral do Estado de Alagoas, disse que o “verdadeiro Rei é
o professor José Ribeiro, que conseguiu o título em substituição ao Babalaô Joãozinho da
Goméia, quanto do seu falecimento”. Demonstrando sua insatisfação por saber que, como ela
mesmo afirma, “alguns presunçosos tentam denegrir a imagem do candomblé, pregando um
falso culto e não o verdadeiro”, a Ialorixá Yvete Araújo, afirmou categoricamente, que “com
exceção do professor José Ribeiro que ostenta o título por justa razão, não aceitamos Reis
nem Príncipes em nossa seita, pois as coroas são dadas aos Orixás, verdadeiros Reis do culto
afro-brasileiro”.(...) Ontem à noite reuniu-se a diretoria da entidade, contando com a presença
de grande número de associados, oportunidade em que foi elaborado um documento a ser
enviado ao Conselho Deliberativo da Umbanda CONDU – para uma tomada de posição
contra o “pai de santo” José Mendes.342

A relação entre as Federações tendeu a se deteriorar ainda mais nessa década. Outros
trabalhos poderão futuramente destrinçar estes fatos.343 Interessaria refletir a forma como esses
conflitos expressavam as transformações vividas pelas religiões afro-brasileiras em Maceió e no
Estado de Alagoas. As Federações aproveitar-se-iam do interesse turístico para ampla divulgação de
suas festas do calendário litúrgico anual. As festas mais concorridas, de Iemanjá no dia 08 de
dezembro, de Oxum no dia 02 de fevereiro, de Ogum no dia 23 de agosto, de Exu no dia 24 de
agosto, eram bastante divulgadas. Também a Festa do Inhame para Oxalá em outubro. Passaram a

342
Jornal de Alagoas, 29 de outubro de 1981 – Zeladores da seita africana declaram guerra a J. Mendes. Hemeroteca,
IHGAL.
343
Em 16 de dezembro de 1985 a Ialorixá Yvette Araújo entrou com uma ação na 2ª Vara cível da Capital com o pedido
de dissolução da “SOCIEDADE CIVIL” contra a Federação dos Cultos Afro-Umbandistas de Alagoas. Com a morte do
senhor Luiz Cardoso, sendo aquela federação presidida segundo o documento por uma junta, haveria várias
irregularidades, entre elas: (a) não estar filiada ao CONDU; (b) não convocar eleição após a morte de seu presidente em
desobediência ao próprio estatuto; este mesmo presidente teria estado à frente da federação por 15 anos, “de modo
ditatorial”. Propunha ainda o documento “a nomeação de um interventor” para cuidar do patrimônio, evitando que este
fosse “dilapidado ainda mais pelos incertos e falcatruosos administradores que lá se encontram”. Informações retiradas
de DOCUMENTO ORIGINAL – Fundo Luiz Sávio de Almeida – APA. O CONDU indicou o babalorixá Zé Ribeiro
para assumir as funções de interventor. No entanto, outro grupo liderado por Alda Ribeiro convocou uma assembléia,
na qual Alda foi eleita. Ao tomar conhecimento do fato Zé Ribeiro, em nome do Conselho Federal das Religiões
Espíritas do Brasil, afirmou na imprensa que Alda seria processada, uma vez que ela não teria o direito de convocar a
assembléia. Direito este que caberia somente a Pai Maciel, que tinha recebido “poderes” do Conselho Federal por um
período de três meses, para organizar as eleições. A chapa de Alda teria sido impugnada pela interventoria por ter
membros irregulares inscritos nelas (“é preciso de todos estejam em dia com a Federação para disputar cargos”). As
eleições foram realizadas e assumiu a presidência Pai Maciel, estando lá até hoje. JORNAL DE ALAGOAS, 04 de maio
de 1986 – Eleição de Ialorixá é irregular. Hemeroteca – IHGAL.

219
ser também procuradas as festas das Pombagiras, entidades muito populares e símbolos das novas
mudanças sofridas pelas religiões afro-brasileiras em Alagoas, nas últimas décadas.
Nos anos 1970 a divulgação da Festa de Iemanjá era de responsabilidade da Federação dos
Cultos. Nos anos 1980 a Federação Zeladora estava à frente dela.
Hoje é um dia festivo para aqueles que cultuam os rituais africanos e umbandistas, na cidade
de Maceió. É que nesta data, 8 de dezembro, candomblés e “terreiros” de Umbanda, prestam
homenagem ao Orixá Iemanjá, a rainha das águas do mar, Sra. dos oceanos, e desde logo
cedo, se movimentam sacerdotes e seguidores para a grande concentração ritualística que se
processará durante a tarde a noite, por toda a extensão da orla marítima, principalmente na
praia da Pajuçara. (...) Segundo informou Ivete Araújo, este ano, foi dado uma maior
amplitude às festividades, já que está contando com um maior apoio da Prefeitura Municipal
de Maceió, através da Secretaria de Promoções e Esportes da Municipalidade. Várias
barracas foram instaladas na praia da Pajuçara, para a serventia de comidas típicas e xequeté,
além de possibilitar para o público, a apresentação dos candomblés nos dias 05, 06 e 07, às
vésperas do dia propriamente dito de homenagem a Iemanjá. Além do ritual dos candomblés
e “terreiros”, várias pessoas também irão às praias, oportunidade em que depositarão seus
presentes e rogarão a proteção do Orixá, numa demonstração de fé que todo alagoano tem
pelas forças ocultas, tiram o quebranto e desmancham as demandas.344

A Federação dos Cultos, sob influência de Pai Maciel, divulgava as festas de Oxum e as
coroações a novos príncipes e princesas do Candomblé. A maior visibilidade e “liberdade” dos
candomblés, aparentemente, não se associaram ao movimento negro que, naquele período também
estava se organizando. Durante toda a década, uma série de eventos na cidade marcava a presença
do movimento. Em 25 de novembro de 1985, foi realizado o tombamento da Serra da Barriga, com
a presença do Ministro da Cultura, Aluísio Pimenta. Neste ano, uma série de atividades culturais foi
promovida em toda a cidade. Pai Célio e outros comentaram sobre o distanciamento entre o
movimento político e a religião,
O movimento negro aqui em Alagoas surgiu, organizou-se, estruturou-se com uma referência
muito forte da Bahia. Movimento negro aqui nunca funcionou com a questão religiosa. O
movimento negro aqui era um grupo de negros e negras intelectualizados, mas com uma
vertente da Bahia. Por exemplo, o vinte de novembro, eles não consideravam nenhum
folguedo desses [daqui] trazia o Olodum e o Ilê Ayê, acabou com o vinte de novembro.
Quem entrou como religioso dentro do movimento negro fui eu, há pouco tempo, em 1990. O
Amaurício, depois do Amaurício fechou. Mas em 90 eu entro com a questão religiosa. Mas o
movimento nunca, nunca se uniu sobre a questão religiosa. Pra você ter uma idéia, quem
fazia a oferenda aos ancestrais na Serra da Barriga era Mãe Hilda da Bahia, a dona do Ilê
Ayê, vinha ela fazer. Pai Maciel que um dia, depois de muitos anos ela fazendo, disse: Epa,
chamar outro babalorixá e ialorixá, não admito vim outro fazer isso aqui. O povo do
movimento negro falava até baiano, ia lá pra uma reunião e quando voltava estava falando....
Você vai conversar com algumas figuras do movimento negro elas falam baiano.345

Seria possível que esta indiferença aos cultos locais viria do discurso de forte africanização,
que assumiu o movimento negro nesse período. Nesse caso, a Bahia seria a referência de anti-
sincretismo, com a ideologia de afirmação da identidade negra, aparentemente, mais explícita.

344
Jornal de Alagoas, 8 de dezembro de 1981. Candomblés festejam na praia o orixá Iemanjá com cantos e oferendas.
Fonte: Hemeroteca – IHGAL.
345
Entrevista Pai Célio de Iemanjá, op.cit.

220
Última caracterização importante a ser apontada para este período foi a percepção do
aumento do número de igrejas evangélicas na cidade de Maceió. Tal pode ser acompanhado
também via imprensa. Na década de 1980 várias matérias noticiavam a aberturas de novas igrejas, a
presença de pastores norte-americanos na cidade, inclusive de um comitê evangélico pró-Lula, que
contou com a presença da senadora Benedita da Silva, durante as eleições de 1989.346 O aumento do
número de igrejas evangélicas e neopentecostais nas periferias concorreu diretamente com as
religiões afro-brasileiras. Começaram a surgir conflitos relacionados à intolerância religiosa, porém,
mais fortemente, na década de 1990.
No entanto, outro discurso “antixangô” passou a ser veiculado na imprensa local, num
retorno da “demonização” dos princípios do século. O Jornal de Alagoas de 23 de agosto de 1987,
(data em que até então se vinha noticiando as festas de Ogum e Exu), fez publicar pelo jornalista
Raimundo Gomes, a matéria intitulada O homem que desmanchou o pacto com o diabo. Nela
entrevistou-se o Pastor Batista de Recife Lourival Fernando dos Santos: “ex-pai-de-santo da Bahia,
um famoso babalorixá do final da década de 60 e começo de 70”. Este teria conseguido dar “uma
guinada de 360º no diabo”*. A matéria seguia num forte discurso negativo e preconceituoso, em que
o repórter explorava ao máximo as palavras “diabo” e “mal” e os detalhes do que seriam as
feitiçarias mais macabras.
(...) ele conta nesta entrevista toda a experiência no candomblé e, depois, como servo de
Deus, tentando impedir ou tirar as pessoas do convívio com o diabo. Ele conheceu a
umbanda aos nove anos de idade, quando foi acometido de uma enfermidade que a medicina
não conseguiu diagnosticar. Por meio de tratamento espiritual foi levado a fazer um pacto
com o diabo, transformando-se ainda menor de idade – 16 anos – num pai-de-santo que tinha
como guia de frente o Exu Tranca Rua. (...) O jovem pastor de apenas 32 anos, conviveu com
Mãe Menininha do Gantois, além de outros famosos babalorixás e ialorixás. Mãe Menininha,
segundo ele, tinha vontade de se libertar das garras de satanás. Suas declarações também
desafiam os 910 centros espíritas de todo o País que estão defendendo o direito constitucional
do exercício e prática da mediunidade.347

A página da entrevista foi ilustrada como segue abaixo,

346
Jornal de Alagoas, 14 de dezembro de 1989 – Evangélicos vão apoiar Lula agora. Hemeroteca – IHGAL.
*
Ou seja, o diabo voltou para o mesmo lugar.
347
Jornal de Alagoas, 23 de agosto de 1987 – O homem que desmanchou o pacto com o diabo. Hemeroteca, IHGAL.

221
Legenda:
Acender uma vela numa caveira,
meia-noite, num cemitério. Este é um
dos pactos que os pais-de-santo
fazem com o diabo. Neste momento,
é feito o pedido “geralmente fama e
riqueza”. Em troca, o diabo exige que
a pessoa o tenha como senhor de sua
vida.

Fonte: Hemeroteca – IHGAL

Este exemplo dava o tom dos novos problemas que as religiões afro-brasileiras em Maceió
enfrentaram (e ainda enfrentam) nas décadas seguintes. Como afirmado, o aumento da violência
urbana nas periferias da cidade também impactou negativamente no cotidiano dos terreiros e
aumentou a desconfiança e o pessimismo dos sacerdotes mais antigos em relação ao futuro do nagô.
Aqueles que foram pela via da intelectualização e do movimento de africanização puderam se
posicionar de modo mais livre, mas não menos problemático, em relação ao preconceito que
continuou a atingir a religião. O medo da quebra do axé e da perda dos conhecimentos rituais da
religião parece ter se tornado mais patente a partir daí. As Federações, que passaram a década em
crises e conflitos, deixaram também de ser “confiáveis”, e nas últimas duas décadas pouco se
tornaram foco de atenção. Normalmente, o povo de santo não se referia a elas nas conversas e/ou
não as conhecia.

Uma interpretação histórica das Religiões Afro-Brasileiras em Maceió: 1970-1980


A história das religiões afro-brasileiras em Maceió nas décadas de 1970 e 1980 esteve
centrada na estruturação dos terreiros como sociedade civil, procurando ganhar espaço social e
resgatar algo do espaço cultural perdido na primeira metade do século. Se por um lado, a
formalização desse processo, encabeçado pelas federações de culto, procurou enquadrar numa rede
nacional os terreiros e suas lideranças – para ter condições de exigir demandas junto ao poder

222
público – por outro, buscaram ordenar e criar práticas rituais e comportamentos homogeneizadores,
nos moldes das experiências do Candomblé baiano e da Umbanda do Rio de Janeiro. Os estatutos
de funcionamento das federações foram os exemplos mais claros disso.
O caso das religiões afro-brasileiras de Alagoas talvez faça eco com a história política local.
Desde a emancipação de Pernambuco no século XIX (1817), as oligarquias procuraram formas de
controlar dentro do pequeno espaço geográfico os modos e meios de produção, profundamente
concentrados nas mãos de poucas famílias. Qualquer alteração no quadro de controle do poder e
concentração de renda causava conflitos. Não demoraria que as lutas e as “brigas de família”
(exemplo em Malta e seu sogro barão) extrapolassem os limites da violência pessoal e atingisse a
população durante o século XX. Haveria, segundo Alberto Saldanha, no período do chamado
“populismo” e na sequência dos governos dos anos 1950, uma constante tentativa por parte dos
governadores de desvincular de seus governos, através de discursos de reconstrução da memória
política, a “imagem de violência que teria acometido o governo anterior”. Muniz Falcão (1956-
1961), em discurso de 31 de janeiro de 1957 na Rádio Difusora, “lembra que seus adversários
patrocinam uma campanha, tentando ligar o governo aos incidentes violentos do cenário político”
(vários políticos foram assassinados no Estado por “crimes de mando”, inclusive o deputado
Marques da Silva, dentro da Assembléia, naquele período). Afirmava que, “mais uma vez,
intentaram a intervenção federal para Alagoas, atraindo sobre nós a atenção de toda nação, através
de manobras orientadas sempre no sentido intervencionista. Tais “notícias sensacionalistas”, ao
serem publicadas na Capital da República, “davam a impressão de que o nosso Estado vivia
conflagrado por lutas terríveis, de tal modo que, a certa altura, uma comissão de senadores abalou-
se do Rio de Janeiro para vir até aqui com intenções mediadoras”.348
As políticas de “modernização” que tentaram ser implantadas no Estado (como ampliação
do ensino público, aumento das ruas pavimentadas, aumento da rede de esgotos etc) a partir dos
anos 1950, entraram em choque com uma cultura política local profundamente conservadora.349
Não seria muito, portanto, afirmar que as associações civis, criadas por lideranças afro-brasileiras
(1957, 1972, etc) poderiam expressar focos de resistência e mudança, ou prejudicar a histórica
subalternização e exploração da mão de obra da população afro-descendente. Por estarem tais
federações imersas num ambiente político de constante necessidade de alianças e “re-alianças”, a
força policial-militar era entendida como um fator preponderante na possibilidade de se sobrepor
nas lutas pelo poder local. Ou, por alguma brecha no poder. Concorriam, assim, para garantir os

348
José Alberto SALDANHA. Governadores Alagoanos e os “Tempos de Antes”, p. 67. Revista Crítica Histórica,
CPDHis-UFAL, Ano I, Nº 1, junho/2010, pp. 56-72. Grifo meu.
349
Aqui não quero afirmar que Muniz Falcão de fato representava e tinha os reais interesses em realizar tais mudanças,
mas no geral, essas eram as políticas públicas veiculadas em seus discursos e de outros governadores no período.

223
“protetores” mais fortes. Ora, a intervenção dos militares na Federação dos Cultos (1968-69) e,
posteriormente, a constante referência e contato das federações com os órgãos e conselhos nacionais
de Umbanda e Candomblé, parece confirmar isso. Note-se que o babalorixá Zé Ribeiro foi posto
como “interventor” na Federação dos Cultos pelo Conselho Federal Espírita, quando da morte do
senhor Luiz Cardoso e do processo civil impetrado por Yvette Araújo em 1985. A “vitória” de Pai
Maciel para assumir a Federação dos Cultos deu-se com a interferência e apoio de Zé Ribeiro, em
detrimento da candidatura de Alda Ribeiro. Nesse caso, o discurso de legitimidade era apresentado
no sentido da força política que representava o fato de tal “rei” ser oficialmente vinculado aos
Conselhos Nacionais, entendidos como órgãos superiores às federações locais. Era posto, além
disso, também no sentido da legitimidade do conhecimento religioso e da “verdade” e “pureza” da
linhagem das nações maceioenses.
O destaque que os chamados “reis do candomblé” alcançaram em Maceió poderia muito
estar relacionado a esse ambiente sócio-político díspare e à história de repressão e violência sofrida
pelos xangôs. Se o xangô maceioense “não tem raiz”, seria mais fácil atingi-lo ou conseguir
prestígio em um meio ambiente mais fragilizado. Ou como diziam em uma notícia, “os reis”
pareciam tratar Alagoas como se fosse “terra de ninguém”, “como se aqui não tivesse tradição”.350
Tais fatos estariam relacionados, dessa forma, às articulações de um discurso sobre a relação entre
as linhagens de santo no sudeste e no nordeste e sobre sua legitimidade.
Por exemplo, enquanto em São Paulo e no Rio de Janeiro, no mesmo período (1950-1980),
teve-se a ampliação de candomblés da nação Angola, Jeje e Keto com pais e mães de santo
nordestinos (da Bahia, Pernambuco, Sergipe, etc), na concorrência com a Umbanda iriam marcar
como diferencial sua linhagem, ou seja, com quem e em qual nação foram iniciados. O fato da
“nação” ser da região nordeste, em especial vinda da Bahia, representaria maior poder e
conhecimento mágico-religioso (“de mais raiz”). E o inverso? O que teria possibilitado o impacto
dos pais de santo coroados em Alagoas? Tanto no caso de Zé Ribeiro como no de Zé Mendes, esses
dois babalorixás, reivindicaram para si, as raízes e as tradições de candomblés “famosos”,
respectivamente, o de Joãozinho da Goméia (BA, SP, RJ) e o do Gantois (BA).351 J. Mendes ainda

350
Jornal de Alagoas, 25 de outubro de 1981 – Príncipe do candomblé rebate acusação de rei. Hemeroteca – IHGAL.
Recorde-se que essa expressão também foi utilizada por outro babalorixá, para se referir à cidade de São Paulo nos anos
1960. Ver Capítulo 03.
351
Segundo Pedro Oro, no início de agosto de 1997, “esteve em Porto Alegre José Paiva de Oliveira, de Brasília, que se
diz “Rei do Candomblé do Brasil”, para conferir a Luiz Antonio de Xangô, o título de Ojuobá. Pai Paiva intitulou-se,
em Porto Alegre, Oluô. Afirmou que foi eleito Rei do Candomblé em São Paulo, em 1994, sendo o terceiro rei do
Candomblé, tendo sucedido a José Ribeiro, falecido em 1973. Este, por sua vez, ocupou o cargo desde 1971, data do
falecimento do primeiro rei do Candomblé, Joãozinho da Goméia, aclamado como tal no Rio de Janeiro, em 1955
(Declaração de José Paiva de Oliveira prestada a TV COM, em Porto Alegre, em 5/8/1997). In Ari Pedro ORO,
Neopentecostais e Afro-brasileiros: quem vencerá..., nota de rodapé 21, p. 15. Debates NER, Porto Alegre, ano 1, n. 1,

224
reivindicou para si a própria tradição africana. Segundo ele, foi sagrado Rei (obá) em 1977 “com as
bênçãos dos orixás pelo Rei da Nigéria Baba Ifá Yemi Elebuibon, o primeiro e único representante
da nação jeje no mundo”.352 Filho de santo de Nezinho, neto de santo de Menininha do Gantois,
dizia ainda ser “descendente direto de Zumbi dos Palmares e Ganga Zumba”.353 Como visto, toda
essa linhagem não foi suficiente para fazê-lo bem aceito em Maceió nesse período. Em que pese
qualquer comprovação documental dos títulos, a recepção desses babalorixás em Maceió dependeu
mais das articulações políticas que eles poderiam fazer. Ou seja, sua recepção nas federações de
culto e com os babalorixás e ialorixás de maior influência na cidade, naqueles anos. Falar mal da
tradição local também não foi a melhor estratégia. Desde Manuel Falefá os babalorixás e ialorixás
do culto nagô, principalmente, sofreram com as críticas vindas daqueles de tradição dos candomblés
baianos. Tais críticas, assimiladas por uns e renegadas por outros, penetraram de alguma forma nas
linhas e filiações de santo, pois o discurso anti-sincretismo que esteve se estruturando nesse período
foi ampliado nas décadas de 1990 e 2000.
O aumento da visibilidade e destaque dos Candomblés “de nação” no país, de modo geral,
parecia ter dado o impulso ao processo de africanização (ou reafricanização), iniciante no período
1970-1980. Em Maceió, como visto, a chegada de Mãe Mirian e de outros foi relevante para a
aproximação dos terreiros nagôs com essa perspectiva. Por exemplo, Pai Célio de Iemanjá Ogunté,
recebeu a base de sua formação religiosa com a sua avó carnal Maria Garanhuns, de tradição do
antigo nagô. Com o falecimento de sua avó, somente pode fazer sua obrigação posteriormente.
Segundo ele, “depois de muitas dúvidas” para saber com quem poderia fazer, escolheu o terreiro de
Mãe Mirian. Essa aproximação com a tradição jeje teria possibilitado para Célio, um aumento
considerável de poder religioso, uma vez que ser jeje-nagô tem uma aceitação muito grande no
âmbito do movimento de africanização. Seria visível nos rituais de sua casa, símbolos e
vestimentas, já em estilo africano. Assim, o aumento da linhagem de Célio na cidade (muitos filhos
e netos de santo), iria, nas próximas décadas, criar de modo mais articulado um discurso de anti-
sincretismo, fortificado nas ações culturais e de educação para jovens de sua comunidade-terreiro;

p.10-36. Novembro de 1997. Há uma divergência em relação à data de falecimento de José Ribeiro, uma vez que há
notícias nos jornais sobre suas atividades em Alagoas até meados dos anos 1980.
352
Jornal de Alagoas, 19 de janeiro de 1986 – Rei do candomblé do Brasil é alagoano. Hemeroteca – IHGAL.
353
Jornal de Alagoas, op. cit. J. Mendes é uma figura controversa. Segundo Reginaldo Prandi, “numa de suas andanças
por São Paulo, Nezinho, acompanhado por Rosinha, deu, em 1970, a obrigação de senioridade ao pai-de-santo José
Mendes, o auto-intitulado "Rei do Candomblé", sobre quem Ismael Giroto escreveu sua dissertação de mestrado em
Antropologia (Giroto, 1980). Neste terreiro Giroto foi confirmado ogã. Desligado depois desta casa, com os propósitos
de se estabelecer como pai-de-santo, veio, inclusive, a questionar a fidedignidade de parte da informação oral fornecida
pelo pai-de-santo sobre sua linhagem e registrada em sua dissertação”. In Reginaldo PRANDI, Linhagem e
Legitimidade no Candomblé Paulista, p. 8. Disponível em www.anpocs.org.br/portal/...00.../rbcs14_02.htm, data de
acesso: 12/01/2011. Sabe-se que J. Mendes concorreu ao cargo de deputado estadual em São Paulo nas últimas eleições
de 2010.

225
postas em movimento pelo seu Terreiro, estabelecido como Ponto Cultural pelo Ministério da
Cultura. Tal fato acompanharia o novo movimento de intelectualização, de parte das lideranças dos
xangôs, como também o aumento do número de pesquisadores locais, em torno da religiosidade e
da cultura negra.
A questão da estruturação das federações como associações civis, mas dependentes do
Estado militar, perderam no final da década de 1980, sua relevância em termos de assistência ao
povo de santo. As atividades desenvolvidas no período da presidência do senhor Luiz Cardoso
parecem ter sofrido com a crise econômica daquela década e com as mudanças políticas no governo
do Estado. O setor turístico, grande interessado em explorar a religiosidade negra na cidade, passou
também por crises que se entenderam até os anos 2000. Aparentemente, cobram-se muitos
investimentos nesse setor ainda hoje, principalmente em termos de infra-estrutura e qualificação de
trabalhadores. Os governadores do período da redemocratização, entre eles Fernando Collor de
Mello (1987-1989), mantiveram uma política de dependência de investimentos federais no Estado.
O otimismo gerado pela vitória do alagoano à presidência da República em 1989, refletiu-se no
otimismo das previsões sobre o futuro de Alagoas, nos anos 1990.
Nesse ambiente, os movimentos sociais, entre eles o movimento estudantil e o movimento
negro, não estiveram no período 1970-1980, conectados às necessidades das religiões negras em
Maceió. Havia muitas dificuldades para ampliar quaisquer ações que tivessem a intenção de alterar
estruturas ou minimizar a reprodução do preconceito em torno da religião afro-brasileira. A Igreja
Católica em Alagoas, por sua vez, aparentemente, tinha alguns sacerdotes, leigos e pelo menos um
bispo, articulados com as Ações Católicas e as Pastorais Sociais, dos anos 1950 em diante, mas
mantinha um discurso anticomunista e racista, veiculado pelo seu tradicional periódico O
Semeador.354 No entanto, pode-se inferir pelas poucas notícias em jornais e pesquisas iniciadas por
graduandos e pós-graduandos da UFAL, que os católicos ligados aos movimentos de base populares
e à Teologia da Libertação estiveram mais fortemente envolvidos com os problemas relacionados
aos conflitos de terra na região. Ao que parece, um grupo de Pastoral do Negro esteve articulado
junto às atividades ligadas ao Memorial Zumbi na Serra da Barriga, no município de União dos
Palmares, durante o processo de tombamento nos anos oitenta.
Enfim, a reabertura pública das casas de axé a partir anos 1950, e a sua expansão nas
décadas de 1970 e 1980, sofreu o impacto da urbanização modernizadora na cidade, expressa na
perda gradual de espaços verdes e públicos para manifestação da religiosidade e cultura. Tal

354
O prof. Fernando Antonio Mesquita de Medeiros, da Faculdade de Educação da UFAL, publicou a sua dissertação
de mestrado intitulada O homo inimicus: igreja católica, ação social e imaginário anticomunista em Alagoas.
Maceió: EDUFAL, 2007. Este trabalho centra-se no período da primeira metade do século XX.

226
expansão e aumento da visibilidade também tenderam a perder as condições de articulação mais
próxima entre os terreiros, o que ocasionou uma fragmentação. E a visão dos mais antigos do
aumento do “desrespeito em relação à tradição nagô”, pela “falta de amor aos orixás e aos mais
velhos”. Na memória dos antigos, mesmo com as ocasionais brigas entre pais de santo e mães de
santo, haveria no passado mais “união” e amizade entre as casas. A necessidade de proteção mútua
naquele período talvez seja um dos fatores que contribuíram para isso, além das interrelações
pessoais das famílias alargadas, que viviam em torno dos terreiros.
A memória da violência acometida contra as religiões afro-brasileiras na cidade e no estado
ainda, no período de 1970 e 1980 não teria sido expurgada. Nos jornais dessas duas décadas não
haveria, que se tenha conhecimento, referências diretas aos eventos do início do século. No geral,
falava-se do preconceito e das perseguições, mas sem mencionar detalhes passados. Como
afirmado, foram cobrados nos anos 1990 e 2000 o “silêncio dos intelectuais” sobre o Quebra-
Quebra. Os trabalhos acadêmicos de Abelardo Duarte na década de 1970 e a própria existência da
Coleção Perseverança (testemunha e vítima silenciosa daquele tempo) no IHGAL, tiveram pouco
alcance junto à população negra. Mesmo tendo sua visibilidade ampliada na visita de Raul Lody e
nas exposições realizadas pelo Museu Théo Brandão na década de 1980, ficou restrito ao
conhecimento das classes “cultas”.
A vinda das igrejas neopentecostais para a cidade, a partir dos anos 1970, também iriam
caracterizar outro período na história das religiões afro-brasileiras em Alagoas. Já em 1980 passou a
ser divulgado o discurso evangélico “antimacumba”. Era outro ataque que provocaria conflitos
entre as famílias negras da periferia, através das migrações religiosas de alguns de seus membros
para as recém chegadas igrejas. Tal fato desestruturou parte daquela comunidade que vivia em torno
da religião e dos terreiros de xangô, atingindo parte da sustentação de base material e psico-
espiritual do indivíduo negro em Maceió.
Buscou-se, neste capítulo, por fim, o entendimento do processo da evolução histórica das
religiões afro-brasileiras, para se responder aos problemas referentes à sua capacidade de
reorganização e expansão após a repressão da primeira metade do XX. A importância das
federações de culto para a fixação do lugar social do negro alagoano comprovou-se, inclusive, na
interferência político-policial (militar) sofrida por ela. Infelizmente, a fragmentação dos interesses
políticos e de poder daqueles que estavam à frente das federações não favoreceu a união das casas
de axé e do povo de santo para fazer frente às problemáticas sociais do período.

227
Tabela 6: Aspectos Históricos das Religiões Afro-Brasileiras em Maceió (1960 a 1980)
Aspectos 1960 1970 1980
Contextos Crise política do Ditadura militar; Abertura política; início da
Sócio-político- desenvolvimentismo; Governos clandestinidade dos redemocratização; grave
econômico Jânio Quadros; João Goulart; Golpe movimentos sociais; lutas crise econômica e social
Militar; crise nos movimentos anti-ditadura
sociais; repressão política
Mudanças e Ordenamento e controle político- Novas Federações; Cresce número de
dificuldades policial-militar; cultura negra como Guerra das Federações; Federações;
folclore; Festa de Iemanjá na praia “Reis do Candomblé”; Movimento Negro se
como evento na cidade folclorização da religião articula (Serra da
começa a ser questionada por Barriga/Zumbi dos
lideranças locais Palmares);
Aumento da visibilidade dos
terreiros
Principais Perseguição policial e campanha Fortificação das federações Expansão notável dos cultos
características “anti-macumba” na imprensa local; aproxima os diferentes cultos na capital e interior
uso político com fins eleitoreiros. em nível local e nacional
Transformações Culto traçado = nagô + umbanda Culto traçado + Início do declínio do “nagô
rituais chegada/retomada dos puro”; expansão dos
candomblés de Nação (Jeje; terreiros de nação
Keto; Angola e Xambá); (africanizados);
maior divulgação das festas
públicas;
Sócio-econômicos e Percepção política e social do Intervenção militar direta nas Redemocratização; conflitos
Políticos crescimento dos cultos; Federações de Culto; entre federações para
Atenção dos militares para estruturação dos terreiros e legitimidade frente aos
ordenação dos cultos; Percepção da ordenação das práticas; conselhos nacionais; início
religião como meio para Articulação das lideranças das da articulação do discurso
sobrevivência material nos grandes federações com militares; evangélico de demonização
centros e no sudeste Projetos de assistência ao das religiões negras;
povo de santo; Diminuição do
Percepção das religiões afro- assistencialismo do Estado
brasileiras como produto às federações e povo-de-
turístico a ser explorado santo; crise econômica afeta
fortemente o povo-de-santo

Referências bibliográficas e fontes do capítulo:


(A) Livros e artigos,
ARAÚJO, Clébio Correia de. O Candomblé nagô em Maceió: itinerário de uma identidade em
construção. Cadernos de Pesquisa e Extensão, v. 1. Arapiraca-UNEAL, 2009.
CAVALCANTI, Bruno César; FERNANDES, Clara Suassuna; BARROS, Rachel Rocha de Almeida
(orgs.). Religiões Afro-Brasileiras. Kulé-Kulé, NEAB-AL, Maceió, 2008.
DUARTE, Abelardo. Folclore Negro das Alagoas. Maceió: Edufal, 2008.
OLIVEIRA, Paulo Victor de. Contribuição à discussão sobre os elementos constitutivos do Xangô
em Maceió. Comunicação, II Encontro Estadual de História, ANPUH-AL, 2010.
RAFAEL, Ulisses Neves. Xangô Rezado Baixo: um estudo da perseguição aos Terreiros de Alagoas
em 1912. Tese, Doutorado em Sociologia e Antropologia, UFRJ, 2004.

(B) Fontes
ARQUIVO PÚBLICO DE ALAGOAS (APA)
INSTITUTO HISTÓRICO E GEOGRÁFICO DE ALAGOAS (IHGAL)
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO. IPHAN/Secretaria Municipal de Cultura, Maceió, 2008.
PROJETO RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS EM NOTÍCIA: levantamento e catalogação de fontes
sobre Candomblé e Umbanda na imprensa maceioense, 1960-2000. Proex-UFAL, NEAB, 2010-2011.

228
Capítulo 6 – As Religiões Afro-Brasileiras em Maceió: 1990-2000
Kawòó, kábíyièsilè
(Meus cumprimentos à sua Majestade)
(...)
Nós temos a existência e a boa sorte.
Nós temos a boa sorte e a existência.
Nós temos a existência e a boa sorte.
Nós temos a boa sorte e a existência.
O rei afugentou (os mau feitores), o rei do pilão.
O rei do pilão olha e arremessa (os raios).
O rei do pilão.
Canto ritual de Xangô – tradução de José Flavio P. Barros, in A fogueira de Xangô, p. 124

Nações e Cultos do xangô maceioense


Neste capítulo quer-se entender como se processou o resgate da memória histórica das
tradições do xangô maceioense (“nações”; mitologia; práticas rituais etc), entre os anos 1990 e
2000. Estes teriam sido de busca de afirmação e autonomia para as casas de culto, ao mesmo tempo
em que a crise social e econômica atingiu os ambientes urbanos e, nesse caso, os terreiros e seus
fiéis. Teriam tido as religiões afro-brasileiras a função de despertar a “consciência sócio-política”
em seu meio? O resgate da memória história dos terreiros e suas “nações” foi realizado, nesse
período, através da valorização da tradição oral e das manifestações da cultura afronegra. O olhar
“para o passado” e a avaliação crítica feita sobre ele, foi motivado pela percepção de uma “crise de
mudanças”, pela qual passavam os terreiros. Ou, pelo menos, foi assim sentida pela hierarquia
religiosa mais antiga. Outra preocupação, nesse período, fôra acabar com o “silêncio” a respeito do
racismo e das perseguições sofridas no estado de Alagoas. Fazer a conexão entre a atualidade e as
lutas históricas do negro ali, abriria um espaço de reflexão sobre as suas perspectivas de futuro.
Nesse sentido, parte da tradição oral do xangô maceioense, conta terem sido suas raízes
religiosas fundadas com o Quilombo dos Palmares. A guerra contra Palmares no século XVII teria
sido a primeira perseguição sistemática desencadeada que atingiria a religião. Durante os séculos
seguintes, teriam ocorrido as interrelações entre os grupos escravizados (bantos, nagôs, jejes, malês)
e os indígenas (Caetés, Cariri-Xocó, Xucuru-Cariri e outros). Nesse caso, a confluência entre as
práticas religiosas da tradição africana com a pajelança indígena. Teria também sido no período
posterior a 1850, após a proibição do tráfico, que as casas de axé e os candomblés iriam se
estruturar como locais de culto, no processo de sistematização dos rituais e do panteão. Este teria
ocorrido no final do XIX, de forma bastante dinâmica, com a rota de babalorixás que viajavam entre
Alagoas/África/Bahia.355

355
De modo geral esse processo ocorreu também em outras regiões no Brasil. Segundo Barbosa, foi no período 1850-
1950 que se estruturou os modelos rituais de culto existentes hoje.

229
As “nações”356 rituais existentes e identificadas no período do Quebra-Quebra (1912),
apontadas por Abelardo Duarte em 1974 eram, de modo geral: nagô e ijexá. Pelas entrevistas com
os mais velhos da religião, sabe-se que havia outras, como a xambá de Artur Rosendo, que migrou
para Pernambuco em 1920. Outros, nessa primeira metade do século XX até os anos 1950, se
identificavam como: congo, angola, nagô-congo, nagô. Na predominância do culto de tradição
“africana”, estas teriam sido as “nações” presentes, ou com maior seguimento, em Maceió.
Somavam-se a elas, o culto da Jurema Sagrada e a prática dos “curadores de pé de toco”. Como
visto, entre fins dos anos 1940 e início dos 1950, com a chegada da Umbanda Branca e da nação
Angola, e, posteriormente, nos anos 1970 com a chegada do culto Jeje baiano, configuraram-se as
nações e as linhas existentes atualmente nas religiões afro-brasileiras de Alagoas. Seriam elas, de
acordo com a auto-identificação dos chefes de terreiro: Angola, Jeje, Keto, Linha “Traçada”, Mesa
Branca, Nagô, Toque, Umbanda, Angola/Jeje, Mesa Branca/Nagô, Mesa Branca/Umbanda,
Nagô/Umbanda. Há ainda aqueles que não se definem.357
Os mistérios variam nas religiões afro-brasileiras e em suas “nações”, mas em virtude da
antiguidade das mesmas, tratam de temas bastante conhecidos: (a) as relações de poder e de
comportamento entre as entidades e (b) os atos necessários – diferenciados no tempo – necessários
a captar as energias positivas liberadas por tais entidades. No caso afro-brasileiro, a experiência ou
conhecimento acumulado pelo vidente não é tradicionalmente escrito, mas passado por via
comportamental e oral. Na verdade, escrever e narrar uma experiência mítica não dá acesso a ela,
mas apenas permite o conhecimento de que ela se deu. A verdade profunda é necessariamente uma
verdade lógica, e como tal não pode ser definida, mas vivenciada.
Por exemplo. O iniciado leva o iniciando até defronte uma árvore na floresta ou no terreiro
do candomblé. Ali, em silêncio, entra em transe profundo. As horas passam. O iniciando pode: (1)
cair também em transe profundo; (2) entediar-se e ir embora; (3) por respeito ao iniciado, fingir
concentração e recordar os capítulos da novela das oito. Isso demonstraria que a constituição de

356
Segundo Nei Lopes entende-se por nação: a designação da origem dos africanos trazidos para as Américas como
escravos. Estabelecida, geralmente, a partir do nome da região de onde provinham ou do porto onde eram embarcados,
ela quase nunca esclarece a real identidade étnica desses africanos. Assim, por exemplo, sob a simples denominação
“angola” podem-se encontrar indivíduos dos ambundos, luandas, luangos, dembos, jungas, bangalas, songos, libolos
(rebolos) etc. O uso do vocábulo estendeu-se para qualificar as comprovadas ou supostas origens de cada linha ritual
dentro dos cultos afro-brasileiros. Exemplo: a nação de Queto; a nação Angola etc. “De nação” é expressão usada para
designar determinada linha de culto tida como africana, em relação à outra já abrasileirada. In Nei LOPES. Dicionário
Escolar Afro-Brasileiro, p. 118. Esta definição é bastante esclarecedora para o modo como em Maceió as identidades
de linha ritual ou “nação” são utilizadas.
357
Janicléia Pereira ROGÉRIO. O Xangô em Maceió e suas variadas Nações, p. 4. Ver também Bruno César
CAVALCANTI; Janicléia Pereira ROGÉRIO. Mapeando o Xangô – notas sobre a mobilidade espacial e dinâmica
simbólica nos terreiros afro-brasileiros em Maceió, p. 5. In Kulé-Kulé – Religiões Afro-Brasileiras, NEAB/UFAL,
Maceió, 2008.

230
uma religiosidade afro-brasileira e sua ideologia, necessitaria da experiência de vida que permitiria
ou que expressaria tais atos e relações.
Sem aprofundar os debates teóricos existentes em torno da definição da identidade ou da
elaboração dos discursos de “pureza” e “impureza”, nos modelos que foram estabelecidos pelos
estudiosos, quer-se aqui, apontar como historicamente as autodefinições explicaram a percepção de
diversidade entre os membros dos cultos afro-brasileiros. Se por um lado, os diferenciava e
distinguia, afirmando-se o que se é, sua autoimagem, (justificando, inclusive às vezes, os conflitos
entre os grupos), por outro, foi criada pelos sujeitos uma explicação mítica e ritualística do lugar
dessa diferença dentro da cosmovisão do grupo.358 Ou seja, elaboraram-se explicações sobre o
múltiplo dentro dos cultos, o que facilitou o estabelecimento de aproximações dos modelos rituais
diferentes, e, portanto, de experiências diferentes, no momento de seu contato. Isso seria importante
para se compreender o processo histórico de formação destas religiões em Maceió. Lá, onde a
repressão e a violência contra o negro e o indígena deram-se de modo tão flagrante. Seria preciso
entender que a elaboração cultural realizada por eles, estabeleceu “negociações” para o que se
pretendia e o que se queria fazer. E, para aquilo que seria permitido ou possível de se fazer, dentro
de determinadas condições econômicas, sociais e políticas.
Por exemplo, Pai Benedito Maciel, iniciou sua vida religiosa dentro do culto Nagô e da
Umbanda. Fez obrigação com o babalorixá Zé Ribeiro, no Rio de Janeiro de culto Angola. Em
entrevista ainda se identificava como “juremeiro há cinquenta anos”. Sobre isso explica:
Eu sou neto de caboclo. (...) a minha avó, mãe de meu pai, foi pega no mato pelos caçadores
[...] pelos cachorros. Então, eu represento a tribo Cabo Verde. De Caboclo Cabo Verde, pela
terceira geração, porque sou neto. Agora fiz santo da Costa, né? Aí por esse motivo, traçou-se
né? Agora eu sou muito ouvinte e um pouco visionista. Não sou propriamente um vidente
especialista, mas também vejo um pouco. Eu sou mais é ouvinte, ouço muito, sabe?

A genealogia de Pai Maciel, sua ancestralidade somada aos seus “dons” pessoais de
mediunidade, seriam a explicação de sua prática religiosa diversa e, portanto, de sua identidade e
“nação”. Nas décadas de 1980 e 1990, Pai Maciel ficou famoso em Maceió por suas previsões. O
Jornal de Alagoas, publicou em 8 de dezembro de 1990, uma página especial sobre Iemanjá. O
jornalista, José Mário Buíque, escreveu sob o pseudônimo de Buik Loverllam, um texto muito
elogioso em estilo de crônica, numa perspectiva “espírita” sobre Pai Maciel, Mãe Filó e seu esposo
Pai Biu. Eis alguns trechos interessantes sobre Pai Maciel,
Num instante, Pai Maciel perde a identidade e se torna um espírito de luz do Universo. Tudo
não passa de um instante. De um “transe”. Refeito, enxuga com uma toalha azul o suor frio
que escorre do rosto e se coloca à disposição da equipe de reportagem especial do JORNAL

358
O povo de santo de Maceió usa muito a expressão “rama” para designar a linhagem ou filiação de santo. Assim,
muitas vezes, se é da rama de fulano ou fulana, sendo esse fato, mais importante que a definição específica de uma
“nação”.

231
DE ALAGOAS (José Mário Buíque, Adaílson Calheiros e Denisson Barrozo) para qualquer
consulta. (...) Filiação do repórter logo é descoberta pelos búzios de Pai Maciel. Ouve que é
filho de Nanã Buruquê, que representa a mãe e a avó de toda geração africana transportada
em malditos navios negreiros para o Brasil, à época do Império. O texto se esvai na caneta
que já não contém tinta. Fico impaciente. Impassível, o babalorixá abandona o repórter e
passa a conversar com Adaílson Calheiros. Em seguida, dirima dúvidas de Denisson Barrozo.
A etapa após a entrega de brindes está completa. Terminada, saímos. Lá fora o sol queima o
branco do veículo que utilizamos. Lá fora, o azul se torna mais límpido como nossos
corações. A estrela mais linda do Gantois, Mãe Menininha, com certeza baixou na
luminosidade do sol para nos dar um banho de luz.

Pai Maciel teria apresentado aos jornalistas as narrativas míticas dos orixás, como
explicadoras das experiências históricas dos negros no Brasil. O transe testemunhado marcaria o
poder mágico-religioso do babalorixá e o conectaria às energias espirituais e universais, segundo o
jornalista. O discurso de Buíque procurava traduzir, para seus leitores, a vivência de Pai Maciel
ligando-o aos “símbolos” mais conhecidos das religiões afro-brasileiras. Mãe Menininha, na época
já falecida, aparece referenciada no texto como uma “entidade”. O reforço positivo de discurso
procurava, por fim, relacionar a prática religiosa de Pai Maciel aos valores espiritualistas de outra
tradição.
É verdade. Pai Maciel não passa de um instrumento do candomblé. Instrumento, contudo, de
luz. (...) Quando alguém, em qualquer tempo, dedicar-se a escrever seriamente sobre o
candomblé em Alagoas terá, forçosamente que se deter, com mais vagar, na figura do
babalorixá José Benedito Maciel, o famoso Pai Maciel, que tem seu Palácio de Oxum na Rua
Tiradentes, Ponta Grossa. Lá entre flores, adornos africanos e indígenas, ele se transforma de
um momento para o outro, fazendo-nos a nós cristãos mais imbuídos do sincretismo
religioso, sentir no tempo, a subida de Cristo e seus amados ao monte no qual se fez, de uma
só vez, Moisés e Abrahão. Há, portanto, o Espiritismo. Existe de forma indiscutível até outras
vidas. E, da imortalidade, apenas o amor é capaz de tornar a ponte que une as almas, que
transborda rios da morte e gera a energia da vida. Pai Maciel está, portanto, servindo de
instrumento.359

Tal discurso, como se viu, procuraria criar uma identidade espiritualista para Pai Maciel.
Algo que atualmente poderia ser identificado como de Nova Era. Pai Maciel, através do Candomblé
seria um instrumento dentro de uma perspectiva espírita das religiões. Nela o Cristianismo – com
sua tradição judaico-cristã – e o Candomblé se conectariam, sem contradição, ao Espiritualismo. Tal
fato seria explicado no sincretismo religioso, mas também na “existência indiscutível” da vida após-
a-morte e da imortalidade da alma. Por outro lado, o próprio Pai Maciel cooptaria o repórter, ao
incluí-lo na filiação mítica dos orixás africanos, oferecendo-lhe, portanto, uma identidade dentro do
Candomblé. O exemplo dado de construção de identidade múltipla parecia se adequar ao ambiente
social que vai se processando nas décadas finais do século XX. A onda de influência das religiões

359
Jornal de Alagoas, 8 de dezembro de 1990. Dos mares da vida vem a luz de Mãe Yemanjá. Hemeroteca –
IHGAL. PROJETO RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS EM NOTÍCIAS: levantamento e catalogação de notícias
sobre o Candomblé e a Umbanda na imprensa maceioense, 1960-2000. Pró-Reitoria de Extensão. Proex-UFAL/NEAB-
AL, 2010-2011.

232
espiritualistas, de tradição oriental, era percebida via Umbanda, desde o início do século, na
chamada Linha do Oriente. A partir dos movimentos de contracultura europeus na década de
1960/1970 e com o interesse maior da classe média intelectualizada nas religiões afro-brasileiras em
todo o Brasil, parte desse discurso nova era seria repassado e reabsorvido, em terreiros em todo o
país. Nesse caso, a identidade “de nação” de Pai Maciel não importaria mais como discurso de
“pureza”, mas como discurso de “diverso”. Recorde-se que o xangô maceioense, já havia recebido
críticas de sacerdotes de “tradição baiana” desde os anos 1970, e era desconsiderado pelos
pesquisadores, como de pouca tradição desde os anos 1930. Exatamente porque teria um caráter
“sincrético”. Os babalorixás e ialorixás estabeleceram explicações para afirmar-se e responder às
críticas, consideradas profundamente “injustas” e “ignorantes” da realidade da religião local. Ao
mesmo tempo, haveria na memória dos mais velhos uma perspectiva de que antes (primeira metade
do século XX) havia sim, o “nagô puro”. Este estaria se acabando hoje, por falta de transmissão dos
conhecimentos secretos desta nação.
Veja-se, então, essa questão na perspectiva de membros das religiões afro-brasileiras. E, o
que se afirmava sobre nação e filiação religiosa nessa virada do século XX para o XXI. Seu Zé
Barros (José de Barros Lima), explicou a diferença de nação pelas “famílias” dos orixás e das
entidades e de seus rituais.
Existe o nagô, existe a angola, e existem os orixás, cada um na sua tribo, nos seus costumes,
nos seus rituais. Antigamente se dizia assim: fulano fez o orixá e adoeceu; mas não é que o
orixá tivesse sido feito errado não, era que a nação do orixá da pessoa não era nagô. Mas
depois com a vinda da Petrobrás para o Estado de Alagoas, houve essa transação de pessoas e
hoje tem angola... É porque o pessoal tem aquele tipo de orixá... Cada um tem a sua função,
cada um tem o seu valor. Mas se eu tenho a minha família, sua família é diferente, como é
que pode? O costume da minha família é um e o costume da sua família é outro. São
diferentes, mas não deixa de ter o valor. O orixá tem o seu ritual, é o que ele é. Eu penso
assim, é minha maneira de pensar. Já tem o Caboclo. O Caboclo também tem o ritual dele. Já
tem o Marujo, o Marujo tem o seu ritual. E assim vai.

Seu Zé Barros explicaria, pois, as diferenças de nação, de acordo com as “famílias” dos
orixás e entidades cultuados. Para ele estaria explicada a alteridade, que deve ser respeitada. A
diversidade de ritual atualmente, consolidada em Maceió nas últimas décadas, seria em sua
perspectiva algo bom. Conhecer a origem familiar de seu orixá seria a forma adequada de evitar
problemas para o filho de santo. A diferença ritual vista, por ele, como diferença de “costumes”
reforçaria aquela ideia da vivência diversa dos “mistérios” nas religiões afro-brasileiras. Mais
interessante ainda, a vinculação entre as relações familiares dos orixás e entidades com seus filhos.
Na explicação de Seu Zé Barros, a identidade familiar do orixá é que definiria o pertencimento do
filho. Isso daria uma flexibilidade de constituição das relações que, possivelmente, superariam as
“diferenças étnicas” strito sensu. Ou seja, posso ser descendente de africanos de Angola (bantu),

233
mas ter aqui (no Brasil) meu orixá “nagô” (iorubá). Ou, vice-versa. Concretamente, tais relações
poderiam simplesmente significar negociações no estabelecimento das linhagens. Uma vez que a
acomodação do filho na tradição eleita pode variar também, por motivos afetivos, laços de amizade
e solidariedade entre ele e seu pai ou mãe-de-santo. Continuava Seu Zé Barros explicando.
(...) Houve a transação de pessoas, indo e vindo, pra Sergipe, pra Bahia. E aí, a seita que aqui
em Maceió só se conhecia nagô, então, a angola aí veio pra cá. Porque quem tem o orixá de
Angola, ele é de Angola em qualquer parte, em qualquer tempo. Então, aí se começou a se
familiarizar, pessoas de cada ritual. Que aqui só se conhecia o nagô. Angola, keto, jeje, nagô
já veio de cá, de Salvador, de Sergipe, Aracaju. Com essa transação de gente, quem tinha
naquele ritual, foi fazer naquele ritual e hoje existe, né? Orixá de keto, nagô, malê essa coisa
toda assim. O culto de caboclo eu tenho a impressão que foi daqui do Brasil. No interior
havia muitas pessoas que tinha. Em Aracaju, as seitas de lá, a maioria é angola. Existem
alguns nagôs, mas a maioria foi justamente dos pretos que foram pra lá, os antecessores que
foram pra lá. Eu acho que o certo é hoje, se você tem o seu orixá de nagô, vai cultuar o orixá
de nagô. Se não for angola, você procure saber qual é a nação de seu orixá, pra procurar
cultuar. Porque às vezes você vai e você gasta o dinheiro, perde o dinheiro, fica doente. (...) E
o nagô está desaparecendo, porque quem foi não deixou nada, deixou eu assim com essa
conversa que estou tendo com vocês. (...) Se existe lá muita importância, na Bahia, é porque
o turismo influencia muito lá. Tem turista estrangeiro que vai pra lá somente pra ver e paga
caro pra ver, né? Na Bahia não pode perder, Sergipe também que está vizinha da Bahia. Mas
aqui eu acho que está perdendo, pelo menos o nagô.360

No entanto, segundo Seu Zé Barros, o ritual nagô do xangô maceioense se estaria perdendo,
por falta de transmissão dos conhecimentos. Também perderia na concorrência com a Bahia, que
teria sua importância aumentada e sua existência assegurada, por conta do turismo. A familiaridade
mítica dos orixás, suas qualidades intrínsecas seriam, pois, os elementos determinantes para a
definição da filiação religiosa. Tal acarretaria determinados rituais e obrigações. Essa fala se repete
entre outros babas (pais) e iás (mães) mais antigos. Conhecer as origens e qualidades específicas
dos orixás e entidades seria também obrigação do pai ou mãe de santo ao estabelecer as relações de
parentesco nas linhagens.
Nessa perspectiva, considerando ainda a interrelação entre as nações, tem-se a fala de Mãe
Josefa. Contava ela que o babalorixá Seu Rubilho, pernambucano, vivia da seita, trabalhando no
Rio de Janeiro, Brasília e Maceió. Já tinha a prática de um culto traçado, entre Umbanda e Nagô,
nos anos 1940/1950. Com ele, aprendeu as diferenças que são explicadas por Mãe Josefa, de acordo
com os rituais de iniciação e as oferendas em cada nação. Segundo ela,
Ele [Rubilho] já era Umbanda com Nagô. Minha parte mais é caboclo, Iansã é caboclo, não
cureia, recebe fruta e animal solto na mata. Quando tinha jurema, ia pra mata levar obrigação;
dançavam na mata, fazia terreiro na mata. Quando era filho de caboclo, eles cobriam: cortava
aroeira, pitanga, capim santo, e quando fazia o serviço na mata cobria o filho com as
ramagens tudo e quando ele saia, já saía pronto, fazia o amassi das ervas, dava banho no
corpo todo, e estava feita em caboclo... Tinha feito em orixá e feito no caboclo, por isso a
linha é traçada. Não ia botar nagô num filho que não era nagô. Cantava traçado nas duas
línguas. As casas nagôs cantavam na [língua] africana.

360
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, gravação em vídeo, 2008.

234
Aprofunda-se o entendimento do entrelaçamento das tradições e relação entre as nações
nesta explicação de Mãe Josefa. Os rituais seriam feitos, na medida da necessidade, e da família do
orixá ou entidade de cada filho. O conhecimento dos “mistérios” de cada nação ou de diferentes
nações pode ter servido como estratégia de sobrevivência e de manutenção do culto em longo prazo
em Alagoas. Pelo menos, na primeira metade do século XX. Fazer os rituais na mata, e, nesse caso,
a iniciação, pode ter suas razões míticas, mas também serviu como proteção contra as perseguições
policiais. Para Mãe Josefa, o maior segredo seria o conhecimento das origens, do “fundamento da
seita”. Dizia ela,

(...) O fundamento da seita eu acho que ninguém sabe até agora, precisa descobrir. Acho que
ainda não acharam. Uns dizem que veio da parte dos negros da costa, outros dizem que veio
da parte dos índios e a gente não sabe. Tem uma nação que eu nunca ouvi falar, cabeça
pelada, raspada, [dizem] eu sou do keto... Minha seita só foi essa. Eu conheci o congo, na
beira da lagoa, do Augusto. Os animais são cortados numa bacia do congo. Naquela bacia,
pegava cravo do reino, pegava doce, canela e mel de abelha, bem mel, bota na bacia põe pra
cozinhar, depois bota na bacia, côa e ali vinha e cortavam pro congo. Eles não cureia, bebia e
tomava banho, na linha do congo que eu entrei.361

Curiar* é beber o sacrifício de sangue animal ofertado aos orixás. Segundo conta a tradição
oral, os antigos terreiros nagôs tinham a prática de, na saída do iniciado da camarinha, apresentar no
salão para todos verem a cabeça do animal sacrificado, que ficava ofertado no peji com mel, por
sete dias. Quando o iniciado entrava em transe, cobria-se sua cabeça com uma toalha e davam-lhe
por baixo do pano a tigela com a cabeça do animal para que ele bebesse do sangue com mel. Esse
ritual foi muito perseguido e estigmatizado pela repressão policial. E muito criticado pelas novas
gerações do Candomblé, a partir dos anos 1960-1970. Com o tempo, teria deixado de ser feito, mas
não em todos os terreiros. Como também o chamado “banho de sangue” realizado durante a
iniciação.
Percebe-se nas explicações de Mãe Josefa, tal como dizia Seu Zé Barros, que o ritual
específico para cada orixá e entidade em sua nação estaria de acordo com suas qualidades. Vêem-se
as interrelações na sua entidade Iansã, cultuada como Caboclo. Estas práticas somar-se-iam
também às rezas católicas feitas no início das sessões. Rezava-se, em alguns terreiros, o pai-nosso, a
ave-maria e, ainda ia-se à missa após a primeira saída de iaô. Antigamente, ia-se descalço e vestido
de branco, com o turbante na cabeça. Atualmente, vai-se com roupas brancas, “normais”. Mantêm-

361
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.
*
Segundo Nei Lopes, cureador em alguns terreiros de Umbanda, é a bebida alcoólica preferida de certas entidades. Do
verbo “curiar”, corrente no linguajar umbandista, com o significado de “beber”, e originário do quimbundo ku-dia,
“comer”, correspondente ao umbundo kulya. In ENCICLOPEDIA da Diáspora Africana, op. cit., p. 222. Como foi
discutido no capítulo 1, o sangue é um dos elementos que carrega grande força vital (axé), sendo, portanto, importante
dentro de determinadas linhas de culto.

235
se, o costume de se sentar no fundo da igreja, longe dos olhares curiosos, ou da má vontade do
padre.
As definições das nações e linhas foram estabelecidas tendo em vista a natureza diversa das
entidades que são cultuadas. As diferentes famílias das entidades ou suas qualidades explicariam as
diferenças rituais e de culto. Nas últimas décadas, em que pese todo o movimento de africanização,
mantiveram-se muito fortemente os terreiros que se autodefinem como traçados. No ambiente
repressivo, e com as dificuldades sócio-econômicas vivenciadas pela população mais pobre e
frequentadora dos terreiros, seria compreensível que esta diversidade venha a atender às diferentes
necessidades. Por exemplo, o atendimento direto com os Caboclos, Exus e Pombagiras; estes
sempre foram (e são) muito procurados por questões de saúde e afetivas. Enquanto nos terreiros “de
nação”, o orixá não atende pessoalmente, sendo a consulta feita diretamente com o pai ou mãe de
santo, através do jogo dos búzios. O fato seria que, mesmo nos terreiros “de nação” em Maceió, o
sacerdote-médium receberia Caboclos e/ou Mestres da Jurema. A explicação para isso, como na
fala de Pai Maciel, tratar-se-ia serem essas entidades “heranças recebidas” de uma avó ou pai
carnal. Por isso, dever-se-ia por bem manter seus cultos. Permaneceria assim, a possibilidade de um
atendimento pessoal àqueles que procuram diretamente as entidades, para tratar de seus problemas.
Atualmente, nos terreiros de Maceió, a percepção da diversidade no ritual seria muito forte.
Os sociólogos teriam analisado tal diversidade como parte da diferenciação na oferta de serviços
mágico-religiosos, que ajudariam na concorrência com outras religiões e/ou outros terreiros. No
entanto, a “tradição” hoje não seria aquela de “pura origem africana”. Poder-se-ia afirmar que o
tradicional em Maceió, nos anos 1990/2000 seriam justamente os cultos traçado e o nagô. A
lembrança dos mais antigos remeteria ao início do século XX, pós-Quebra, somando-se à influência
dos “cultos de nação” a partir dos anos 1970. Dever-se-ia ter o entendimento dos cultos
“sincréticos” em Maceió, como aqueles que guardariam, mais fortemente, a memória da construção
histórica das religiões afro-brasileiras em Alagoas. Entende-se como um sincretismo positivo, no
sentido de ser uma elaboração feita entre os agentes da religião, para si mesmos.362 Não significaria,
por sua vez, confusão entre as entidades, ignorância ou desconhecimento, mas, entendimento das
aproximações e diferenças. Nesse sentido, seriam “africanizados”, pois se compreende que – como
gostaria Mãe Stella de Oxóssi, quando afirmou nos anos 1980 –“Santa Bárbara é Santa Bárbara,
Iansã é Iansã”. Lá se diz que Santa Bárbara seria “a protetora de Iansã”. No sentido em que Santa
Bárbara é a instituição que permite a Iansã “rodar” no Brasil (nome de guerra, ou no CODI,
“codinome”).

362
Para aprofundar a distinção e discussão dos sincretismos positivo e negativo remeto a BARBOSA, Wilson do
Nascimento. Cultura Negra e Dominação. Porto Alegre: Unisinos, 2006.

236
Mitologia e Panteão contemporâneo das religiões afro-brasileiras em Maceió
Ao se observar os objetos rituais, indumentárias e estátuas da Coleção Perseverança vêem-
se ali a memória materializada dos orixás cultuados no xangô de fins do XIX e início do XX, em
Maceió. Abelardo Duarte, nos anos 1950, apresentou um pequeno estudo sobre o panteão em
Alagoas, baseado na Coleção Perseverança e em depoimentos orais. Segundo ele, obteve a lista de
um “conhecido babalorixá” e, mesmo que “incompleta”, procurava mostrar os orixás africanos
quanto à sua “identificação com santos católicos em terreiros de Maceió”. Somada à pesquisa de
campo na atualidade, eis um resumo em tabela dos principais orixás cultuados:
Tabela 7: Orixás e Sincretismo Católico em Maceió (1950-2000)
Orixás Sincretismo Orixás dos Santos Orixás no culto Orixás no culto
Católico “velhos católicos traçado (nagô jeje-nagô atual
terreiros” + umbanda)
Omolu São Ogun-taió São Pedro Exu Exu
(Omolum, Sebastião+/São
Homoulu, Lázaro
Omanlu,
Xapanãn)
Xangô São Xangô Santa Ogun Tempo
Jerônimo+/Santa Bárbara
Bárbara
Oxossi São Jorge Ogun-china Oxóssi Ogum
Ogum São Jorge Ogun-meji São Jorge Obaluaê Oxóssi
Mães-d’água: Nossa Senhora Xangô- Santa Xangô Ossãe
Nanã,Iemanjá da bomin Bárbara
e Oxum Conceição/Nossa
Senhora das
Candeias
Ibêje (Bêje) São Cosme e São Xangô-nilê Santo Oxalá Oxumarê
Damião Antonio
Oxalá N. Sr. do Bonfim Xangô-dadá São João Iansã Nanã
Xangô-china Oxum Obaluaê
Azuleiju Iemanjá Euá
Oxun-manrê Obá
Oxun-ekun Almas Iansã
Oyá Santa Exus, Xangô
Bárbara Pombagiras
Baluaiê São Pretos Velhos Ibeji
Sebastião
Obabá N. Sra. dos Caboclos + Logunede
Prazeres Mestres da
Jurema
Yemanjá N. Sra. do Cigano Oxum
Rosário
Omulu São Marinheiro Iemanjá
Lázaro/São (Marujo)
Sebastião
Leba ou Diabo Boiadeiro Oxalá
Legba cristão
Fonte: Abelardo Duarte. Sobre o Panteão Afro-Brasileiro (Divindades africanas nas Alagoas), pp. 69-75.
Parte final da tabela completada através de pesquisa de campo.

237
Como se sabe, o orixá Xangô acabou tendo seu nome identificado com o culto e as casas de
axé na região de Alagoas e Pernambuco, por sua importância no ritual. Abelardo Duarte sobre isso
afirmava;
Enquanto perdura ainda a influência de Xangô, apesar das degradações cada vez maiores dos
seus mitos; enquanto o poderio de Xangô persiste nos atuais terreiros, outros orixás passam
ao esquecimento. É que Xangô não pôde de maneira nenhuma ceder esse poderio no
inconsciente coletivo. É por isso que se verificam, aqui como em outros lugares, com os
rituais conhecidos, a exculpação, e a divinização do herói, que se superpõe ao deus ou aos
deuses, imagens do Pai. Enquanto isto se dá; outros velhos orixás, outrora recebendo todas as
homenagens, com lugar de honra no pegi e tendo oferendas, sacrifícios e cânticos, não são
relembrados em nenhum shiré. Nos atuais Xangôs das Alagoas não são feitas invocações aos
nomes de Xangô-china, Xangô-bomin e outros, por exemplo. Xangô-protetor contra o raio e
as tempestades continua, ao contrário dos demais orixás antigamente venerados, vendo
crescer e dilatar-se cada vez mais o seu prestígio, agora deixando a sua ambivalência nos
terreiros de Maceió para figurar como orixá masculino puro, exclusivo.363

Nos dias de hoje, ao se perguntar aos babalorixás e ialorixás o porquê do nome Xangô dado
ao culto, ouve-se a resposta: “porque é o orixá da justiça”. Pesquisadores questionam se isso seria o
reflexo do sentimento de injustiça vivenciado historicamente pelo povo de santo no cotidiano. A
expressão da devoção a Xangô marcou fortemente a história afro-brasileira em Maceió. Zezito
Araújo, em entrevista, afirmava que atualmente, as festas de Xangô não são tão amplamente
divulgadas como antes, perdendo público em relação às festas de Iemanjá e de Pombagira.364 Teria
ficado Xangô marcado ainda como o “perseguido”, orixá perigoso de um culto “marginal”? A força
da mitologia deste orixá seria verificada por Raul Lody. O antropólogo, nos anos 1980, analisou as
belas esculturas rituais da Coleção Perseverança, em especial, aquelas em que o oxê (machado
duplo) de Xangô, ou a meia lua, apareciam na cabeça do orixá. Sobre a escultura de tombo 165,
afirmou:
Peça de madeira sob forma de imagem católica; Nossa Senhora leva nos braços uma criança
deitada em posição de aleitamento. A figura porta na cabeça o oxê (machado duplo). É objeto
religioso que situa a nítida incorporação da imaginária católica, evidentemente, vista e tratada
sob a ótica do dominado ou do que se dizia dominado. Assim, pela escultura o artesão afro-
brasileiro subleva-se pela afirmação travestida da sua identidade. A escultura é uma
representação do orixá Xangô, do orixá Oxum ou do orixá Iemanjá. Notar que na produção
da imaginária em madeira da Coleção ocorrem muitas peças similares, voltadas para as
representações de Oiá, Xangô, entre outros. Será um estilo do Xangô alagoano trabalhar a
imaginária a partir de um modelo iconológico fundamentado na representação básica de
Xangô? Notar na parte posterior uma espécie de escudo em forma de elipse, onde se vê o
entalhe de um gorro tipo filá.365

363
Abelardo DUARTE. Sobre o Panteão Afro-Brasileiro (Divindades africanas nas Alagoas). Revista do Instituto
Histórico e Geográfico de Alagoas, Volume XXVI, Ano 1948-1950, p. 75. Ainda se tem a referência do culto à serpente
Dã, vodum jeje.
364
Informação verbal através de entrevista com Zezito Araújo, NEAB-AL, em 18/01/2011.
365
Raul LODY. Coleção Perseverança: um documento do Xangô Alagoano. MEC/Secretaria da Cultura; Fundação
Nacional de Arte. Maceió: UFAL/Rio de Janeiro: Funarte, 1985, p. 20. Infelizmente, como afirmado anteriormente, não
há até o momento outros trabalhos sobre a coleção que tenham aprofundado os sentidos de seus objetos. Alguns
religiosos reclamam que a coleção tem sido mal cuidada no IHGAL, por terem envernizado algumas de suas peças.

238
Fonte: (LODY, 1985: 86).

Tem-se que a iconologia de Xangô na estatuária das religiões afro-brasileiras de Maceió no


início do século XX, pode ter tido a influência dos maiores terreiros existentes naquele momento.
Contava a tradição oral que Tia Marcelina, tida como famosa ialorixá na época, era detentora da
coroa de Xangô-Dadá, que teria vindo de África.366 Vale lembrar que muitas das imagens “salvas”
do Quebra-Quebra foram exatamente aquelas com o oxê, que serviria como “comprovação” da
“presença do demônio no culto”. Tanto a meia-lua como o machado duplo remeteriam para o
imaginário cristão das características do diabo com chifres. Não se percebia, atualmente nos
terreiros, a preponderância de imagens com esse grau de “sincretismo” e as mesmas construções ou
representações. No geral, são utilizadas imagens católicas, ou aquelas com as características
tradicionais da Umbanda Branca. Ou ainda, nos terreiros “africanizados”, estatuária africana, vinda
da África ou Bahia.
Essa presença preponderante de Xangô parece ter sido, pelo menos no que diz respeito à
visão pública da religião, alterada por outra entidade: a Pombagira367. Pai João é filho de Oxum com
Oxalá, feito no Nagô em 1979, mantém também uma prática traçada com a Umbanda. Ficou mais
conhecido entre o povo de santo como João da Mirongueira, por causa da fama de sua Pombagira.
Segundo Pai João, o seu pai de santo “não aceitava filho de santo trabalhar com entidade mulher”.
Por isso, não colocava o “orixá fêmea de frente”. Se um filho homem tivesse como “dona do ori”
um orixá feminino como Oxum, Iansã ou Iemanjá etc. esta ficaria em segundo lugar na linha de
culto para aquele filho. Seria o que se chama de ajuntó. Punha-se, então, um orixá masculino como
366
No documentário 1912: O Quebra de Xangô, Pai Maciel, em entrevista, afirma que o orixá de Tia Marcelina era
Ogum Bogum, mas que ao ser atacada durante o episódio ela clamava por Xangô em busca de justiça.
367
A entidade Pombagira (Bombogirà) de origem bantu, seria em África masculina. No Brasil foi associada, talvez por
similaridade de características e funções, ao Exu iorubá. Foi convertida em certa tradição jeje-nagô ao aspecto feminino
de Exu. Na Umbanda recebeu o acréscimo de características ligadas à tradição da ciganaria (que se expressa em sua
vestimenta, trejeitos e adereços), referindo-se também às prostitutas da beira do cais do Rio de Janeiro. Essas
características de “marginalização” ou de personagens marginais, relacionados aos Exus e Pombagiras na Umbanda, são
bastante estudadas.

239
“de frente”. Pai João dizia que seu babalorixá afirmava ser essa “uma regra no espiritismo”. Por
isso, teve dificuldades ao começar a se “manifestar” de Pombagira. Outros pais e mães de santo
também comentaram sobre a presença das Pombagiras nos terreiros, a partir dos anos 1970, quase
sempre com alguma controvérsia. Aparentemente, a presença da entidade Pombagira em Maceió
está mesmo relacionada à chegada da Umbanda Branca, nos anos 1940. Alguns sacerdotes
comentavam o problema de se aceitar a “entidade feminina”, por medo de se ficar “desmoralizado”
como “homem”. Ou seja, ser identificado como homossexual. Por outro lado, as sacerdotisas
também se preocupavam em ficar marcadas como “mulheres fáceis”. Mãe Lucinha, em entrevista,
contava que em sua juventude,
Uma vez por ano tinha festa de Zé Pilintra em 12 de dezembro. Certa vez fui passar na
cozinha e senti... Mas Pombagira era coisa de prostituta, eu era noiva, não podia receber
Pombagira. Tinha 18 anos, noivei com 17. Na casa de avó cantava [pra Pombagira], só não
arriava muito... Era raríssimo [ter Pombagira], na casa de minha avó só duas filhas recebiam,
uma Gira e uma Padilha, depois a minha Cainana. O povo falava que mulher que recebia
achava que era mulher da vida.368

Mãe Celina relacionava a fama das Pombagiras com o comportamento dos filhos de santo e
a “malícia” do povo. A ação dessas entidades, incluindo os Exus, dependeria do modo como seriam
cultuadas e tratadas, como também do modo como fossem “doutrinadas”. Sua fala também seria
interessante, por trazer uma hierarquia das entidades cultuadas.
Primeiro santo do nosso conhecimento, entre pai Rubilho e Capitulina, foi Ogum. Depois nos
escravos Exu Tranca Rua, foi o primeiro Exu da nação do mundo. Ele só tem na entrada do
museu da Bahia, depois vem se deslocando. Obaluaiê [teve] toda vida... Seu Caveira... Daí
vem Odé, Caboclinhos, Obaluaiê, Nanã, Xangô, Iansã, vem Oxum, Iemanjá, aí vem Oxalá
pra tomar conta. Cada um zela do jeito que quer. Já a Pombagira é a malícia do povo. Uns
querem fazer mal aos outros, aproveita as Pombagiras, os Exus. Vê a diferença quando a
gente marca toque de orixá e quando marca pra Exu [na quantidade de participantes]... Não
sou contra ela, ela só faz o mal a quem paga e pede a ela. Se tratar ela bem, faz o bem... O
cavaleiro está sendo doutrinado, como menino na escola, [tem que dizer] não faça mal não; o
povo usa eles pra fazer malícia com os outros; cada casa tem um ritual... No começo não
tinha muito homossexual, antigamente era diferente, tinha respeito a todos... Hoje paga a
federação, pega o documento pra liberar. Vai atrás deles quem quer, cada um vive a sua
vida...369

Mãe Mirian Iabinã, da nação Jeje Mina Pôpo, também relacionava a “fama” da Pombagira,
com o comportamento “desregrado” de alguns,
Quero dizer também para aqueles que se dizem filhos de orixás que procurem moralizar e não
desmoralizar. Por meio da entidade conhecida como Pombajira, muitos se aproveitam para
dar expansão à sua maneira de ser com procedimentos repudiáveis. Usam roupas
exuberantes, sandálias altas, perucas, como se fosse um desfile de moda. Fazem cenas
absurdas e até amorosas. Isso deixa nossa religião à mercê da censura. A Pombajira é muito
poderosa, respeitada, mensageira de fé para as pessoas que ela socorre com seus problemas

368
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.
369
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.

240
(amorosos, conjugais e profissionais). Ela abre caminhos junto a Exu e Ogum. É a grande
370
mensageira do dia-a-dia e de todas as horas. Vamos respeitar a Pombajira, ela merece.

Viu-se que, para Mãe Mirian, os filhos-de-santo teriam uma responsabilidade na


minimização do preconceito em torno da religião. Sua fala teria o sentido de tentar “moralizar” o
comportamento durante as festas da Pombagira. Dada a popularidade dessa entidade, poder-se-ia
afirmar, que suas festas funcionariam muitas vezes como vitrines para a sociedade, já que a
visitação de clientes seria muito concorrida ali. Aqui estaria implícita a tentativa de moralização do
que ela considera um comportamento inadequado de homossexuais no terreiro. Seria esta a
orientação sexual de muitos dos médiuns que recebem as “Giras”. Por outro lado, a proximidade da
entidade com os problemas do “dia-a-dia”, a simplicidade como ela lidaria com os clientes e fiéis,
seria o ponto mais importante. Tal proximidade mitológica de tipos marginalizados proveria
conforto para aqueles que vivem em ambientes violentos, ou sofrem os mesmos preconceitos
identificados àquela entidade.
Como exemplo, tem-se aqui parte do diário de campo371 de um toque em homenagem a
Mestra Maria do Acais372 e a Pombagira Dona Sete Saias no Terreiro de Manuel Xoroquê, em um
bairro periférico de Maceió. Este pertence à nação Angola, mas possui elementos de sincretismo
com a Umbanda e o Nagô. O barracão é bem amplo. Tem-se nele a “roça”, espaço sagrado, local
onde as ervas do “santo” são cultivadas. Entretanto, foi observado o corte de uma árvore e o
podamento de outra existente ali. As paredes são ornamentadas com representações individuais dos
Orixás, que se encontram nas paredes de cada peji. Esta casa cultua os seus “deuses” em quartos
separados, salvo os que “comem no tempo”. Isto é, os Orixás que recebem suas obrigações fora do
barracão, ao ar livre. O toque teve início por volta das 15hs. Inicialmente tocando para Caboclo.
Depois se tocou para os Mestres Boiadeiro e Marinheiro. Por fim, tocou-se para as “Mulheres”, as
Pombagiras. O toque para as “giras” iniciou-se para Maria do Acais. Com a chegada de Maria, a

370
Revista Orixás, Candomblé especial, nº 12, pp. 41-42. Entrevista feita por Fernando Moretti em março de 2006, com
a colaboração de Lincoln D’Oxumaré.
371
Diário de campo, Maceió, 06 de março de 2010. A visita foi feita por representantes do Grupo de Pesquisa da
Cultura Negra, vinculado ao Curso de História da UFAL, a Coordenadora Profa. Irinéia Franco e os alunos de
graduação José Aparecido e Kelliane foram acompanhados da Iá Cota Mãe Ilza, da casa de Nirelegi de Babá Beto do
Ogum, para a casa de Manoel Xoroquê, localizado no Conjunto Habitacional Benedito Bentes II em Maceió.
372
Maria do Acais é uma entidade (Mestra) da Jurema Sagrada. Segundo Ana Laura Ferreira, “é interessante destacar
(...) a história de Maria do Acais, índia que realizou modificações nos rituais com Jurema, filha de um Pajé (Inácio
Gonçalves de Barros) que vivia em um aldeamento indígena em Alhandra-PB. Este caso é citado por Grünewald
(2005), onde esta juremeira inicia trabalhos de mesas com a Jurema, dando consultas individuais. (...) “Numa entrevista
realizada por Siloé Amorim para o documentário “1912: O quebra de Xangô”, o babalorixá Manoel Xoroquê (...)
afirmou receber a entidade Maria do Acais no “Culto da Jurema Sagrada”. Esta entidade aparece pela primeira vez lhe
dando suas referências históricas, ao que pai Xoroquê visita Alhandra e descobre parentes de D. Maria do Acais. Ele
explica que “O povo da jurema sabe que dona Maria do Acais é o grau mais alto da jurema sagrada, que é a senhora
dona da cidade de Alhandra”. In KULÉ-KULÉ. Religiões Afro-Brasileiras. A Jurema, entre a Igreja, dona Irene e a
Rainha do Mar, p. 3.

241
festa tornou-se mais animada, mais “profana”. Ela é debochada, festeira por natureza e firme
quando necessário. Após um bom tempo em terra começou a chamar as “giras” das filhas e filhos.
Observou-se neste momento que a “ordem dos chamados” obedecia a uma hierarquia. A primeira a
ser invocada foi a “Sete” na cabeça de Mãe Zazi, devido ao seu cargo na casa, depois as demais
foram sendo invocadas. O toque foi encerrado por volta das 18:00 horas, com um discurso de Maria
do Acais, falando sobre amizade e o envolvimento de um filho da casa na morte de alguém da
comunidade. O discurso transcrito encontra-se a seguir.
M. A. – Agô!
M. A. – É assim, só foi um saravá primeiro, para não ficar sem. Ai oi…
BARULHO DE FALA…
M. A. – Boqueira “Ewá” (pedido de silêncio).
M. A. – O homem que trazia o padê e a talha ninguém sabe onde é que tá? Já matou os
outros. Ai, agora cadê os amigos que ninguém fez a pergunta? Agora tá sozinho pelo
caminho. Todo mundo venerava, todo mundo queria. E agora quem vai ajudar o coitado?
BARULHO DE FALA…
M.A. – E eu tô pedindo a sua ajuda? (fala pra alguém que se aproxima dela)
M.A. – Agora inventou de matar os outros. Eu dei um samba…
BARULHO DE FALA…
M.A. – E eu não quero saber quem matou, quem deixou de matar. A pessoa só conhece as
pessoas na hora do sorriso. Eu quero ver. Por que eu sou mulher e sou amiga na hora do
sorriso, na hora da tristeza, na hora da precisão. Eu sou Maria do Acais, pra ajudar a quem
precisa o ano todo. Pode procurar. Se Seu Manoel tiver doente em cima de uma cama eu
“desço”. Aqui tem muita gente que me conhece, há muito tempo. E eu não esqueço as caras.
Eu não esqueço as pessoas. E assim como Seu Manoel diz: - uma não cai sem o
consentimento divino. E eu não estou aqui pra falar de fulano e sicrano. O que fez e o que
não fez. Eu estou aqui pra meter o pau não. Quem tem sua cabeça faz o quer.
BARULHO DE FALA…
M.A. – Boqueira “ewá”.
M.A. – As pessoas têm que ser mais amigos de verdade. E não só amigos de farra. Amigo de
verdade é aquele que na hora da precisão tá ali. É dentro. É queijo, é lindo (...) ou vai ou
racha. Mas esse negoço de meu amigo só pra tomar uma, eu não conheço. Eu também sou
amiga na hora da precisão. Eu lamento pelo que aconteceu. Eu lamento também é assim…
pelas amizades. Eu acho que amigo é amigo, colega é colega e conhecido é conhecido. Não
adianta você chegar me abraçar bem cedo, meio dia e de noite. E na hora que eu precisar
você não tá. Então eu só tô oiando quem tem amizade com aquela fia do Oxalá, quem tem
amizade com aquele fio do Xangô. E muita gente tem amizade. Vamos vê quando o cú da
cutia assobiar, todo mundo corre. Na hora do apertadinho só vê todo mundo correr…373

Este exemplo interessaria para perceber a relação da entidade com a comunidade, seus filhos
e clientes. Durante a fala de Maria do Acais o terreiro encontrava-se cheio, com a presença de
clientes “ricos” de fora e dos pesquisadores. A insistência no tema da verdadeira amizade e da
solidariedade parecia ser feito exatamente para dar conta da tensão sobre a prisão de um membro da
hierarquia do terreiro, acusado de assassinato. A fala da Mestra serviria também de lembrete de sua
“vigilância” sobre a comunidade dos filhos-de-santo. Enfim, sua proximidade e familiaridade com
os membros do culto.

373
Diário de campo, Maceió, 06 de março de 2010. Agradeço ao estudante José Aparecido dos Santos a transcrição do
diário. Optou-se por manter a fala popular da Pombagira na transcrição para melhor apreender a sua proximidade com
as pessoas da comunidade.

242
O aumento do culto às entidades Pombagiras acompanhou a consolidação das religiões afro-
brasileiras em Maceió neste período. Para os mais velhos, esse aumento estaria mais ligado aos
interesses por “pagode”, “bebidas”, “festas e farras” do que pela religião em si. Para outros, o fato
dessas entidades lidarem com os problemas mais gerais do cotidiano, próximos da realidade dos
mais pobres, seria o principal motivo de sua popularidade. Realmente as festas públicas e toques
para as Giras e os Exus são em todos os sentidos mais animados e atraentes que os cultos aos velhos
orixás, sérios e mais contidos. Que seja por motivos sagrados ou pelos profanos, neste fim de
século, a Pombagira ganhou um espaço especial em muitos terreiros, inclusive sendo identificada à
própria cidade de Maceió, como na cantiga
Pombagira de Maceió
Pombagira ê a ê
Pombagira de Maceió>bis
Mas ela é a Pomba Gira,
Pombagira de Maceió>bis
Auê, auê, auê
a pombagira é de Maceió
Auê, auê, auê
a pombagira é de Maceió
Aonde mora a pombagira?
Pombagira é de Maceió
Aonde mora a pombagira?
Pombagira é de Maceió.

Festas públicas, movimento e cultura negra religiosa


A partir da década de 1960, foi mais fortemente perceptível o aumento do número de
terreiros e da abertura de casas de culto na cidade. Nos anos 1970 e 1980, as Federações de culto
afro-maceioenses buscaram ampliar a visibilidade da religião na cidade, através de atividades
públicas como: encontros, seminários, apresentações “artísticas” em Teatros e Clubes, maior
destaque para festa de Iemanjá nas praias da capital e, por fim, divulgação para as festas públicas do
calendário litúrgico anual. Nos anos 1990 e 2000, portanto, estavam consolidadas como festas
populares nas periferias e como parte dos eventos sociais da cidade. Como afirmado em outro
momento, as festas públicas não esgotavam a complexidade das religiões afro-brasileiras, mas
seriam bons momentos de percepção do modo como tais religiões seriam vistas na cidade e dos
problemas que as cercariam ainda hoje, como também da forma como o povo de santo lida com
eles.
A religião afro-brasileira é desprovida de reconhecimento pelo Estado, dito este
paradoxalmente liberal, que recolhe impostos dos seguidores da mesma para ignorá-la. Não tem ela
acesso a rede escolar, à rede de saúde e às cerimônias oficiais, como tal. Isto torna praticamente
impossível a catequese própria, por ausência também de instituições estáveis. Tratada apenas como

243
“crendice”, não pode projetar-se para os descendentes de seus seguidores como medida de sua
própria cultura. No contexto oficial, sua leitura é feita de modo secular (antropólogos e sociólogos)
ou sob a visão clerical de outros. Condenada assim à extinção pela arrogância alheia, ela apóia-se
exclusivamente na difusão interna de seus próprios mistérios para sobreviver. No entanto, a
transmissão de seus mistérios requer uma arguição contrária a outras divindades e a livre
interpretação de seu dualismo específico. Ambos este fatos são-lhes negados, pela estrutura vigente
do poder societário adverso.
Exemplo dessa questão seria a insistente construção de uma imagem negativa das religiões
afro-brasileiras de acordo com interesses políticos. No início da década de 1990, a crise política
brasileira explodiu em torno do Presidente Fernando Collor e seus aliados, seguida às denúncias de
corrupção feitas por seu irmão Pedro Collor. Em Alagoas, o apoio político recebido por Fernando
Collor em 1989 à época das eleições, em 1993 após o impeachment, aparentemente, não era tão
amplo. O Jornal de Alagoas, em 30 de dezembro de 1989, publicou uma edição especial sobre a
vitória de Collor, com uma série de reportagens sobre a campanha presidencial, com perfil elogioso
e votos de parabéns das prefeituras e políticos de várias cidades do Estado. Em 26 de março de
1993, uma manchete intitulada Mãe-de-santo prepara festa em Arapiraca, noticiava em outro tom
que: “Maria Cecília, mãe-de-santo alagoana apontada por Pedro Collor como participante das
sessões de magia negra nos porões da Casa da Dinda, vai mobilizar 80 macumbeiros da região do
agreste de Alagoas para um despacho coletivo na cidade de Arapiraca”. Segundo o Jornal, Collor
pretendia retomar via Arapiraca sua carreira política em 1994, “se o Supremo Tribunal Federal
restituir seus direitos políticos cassados pelo Senado”. Porém, para isso ocorrer, seria preciso
arranjar uma reaproximação política entre Collor e o prefeito de Arapiraca Severino Leão, “ex-
amigo de Collor”. A notícia, sempre em tom irônico, afirmava que Maria Cecília, assessora de
comunicação social da prefeitura de Arapiraca, havia recebido a “missão política” de fazer tal
reaproximação. “Os búzios lhe disseram que, para sucesso da tarefa, primeiro teria que fazer uma
limpeza na cidade, para afastar a rejeição a Collor”. O texto encerrava-se com uma fala de
Demuriez Leão, irmão do prefeito: “meu irmão agora não quer saber de Collor, com ou sem magia
negra”.374 Em 30 de março, do mesmo ano, outra manchete foi publicada com os dizeres: “Collor
fez macumba para matar Ulysses”. Segundo o Jornal de Alagoas, o texto era uma compilação de
matéria da Revista Contigo de São Paulo. Nele afirmavam que fora uma “denúncia feita” pelo Ogã

374
Segundo a notícia, o conflito entre Collor e Severino Leão deu-se porque, em 1990, Severino “tinha tudo para eleger-
se deputado federal, mas usando o nome de Collor o deputado Cleto Falcão o convenceu a ser vice de Renan Calheiros,
na chapa para o governo Estadual. Como Collor puxou o tapete de Calheiros às vésperas das eleições, passando a apoiar
o atual governador Geraldo Bulhões, Severino sentiu-se traído”. JORNAL DE ALAGOAS, Maceió, sexta-feira, 26 de
março de 1993, p. A-2. Fonte: Hemeroteca – IHGAL.

244
Gilberto Ferreira, “satanista”, “especialista em magia negra” e “sacerdote de candomblé”, de São
Paulo. A matéria explorou o acidente de 12 de outubro de 1992, sofrido por Ulysses Guimarães, sua
esposa D. Mora, o ex-senador Severo Gomes, a esposa deste e o piloto do helicóptero, no percurso
entre Angra dos Reis e São Paulo. Dava detalhes de como teriam sido feitos os “rituais” que
resultaram no acidente. Todo o sensacionalismo da matéria foi explorado, misturando termos de
suposto Vodu com o Candomblé.375
Estas duas notícias deixavam entrever que alguns ainda insistiam em vincular a imagem
pública das religiões afro-brasileiras em Alagoas como instrumento de manipulação para interesses
políticos, de tempos em tempos. Essa manipulação das religiões populares para fins eleitoreiros não
foi sofrida exclusivamente pelos xangôs. Na última eleição para governador em 2010, Fernando
Collor visitava as cidades do interior, segurando uma imagem de Frei Damião. Porém, o efeito
negativo sobre as religiões afro-brasileiras seria reafirmado historicamente, com o racismo e a
perseguição praticada sobre elas por algumas igrejas neopentecostais e pelo catolicismo.
A força de aglutinação das festas públicas dos xangôs maceioenses parece ter sempre sido
foco de suspeição. Por isso, as federações e os chefes de casas de axé procuraram afirmar o sentido
próprio das festas, na vivência de sua religiosidade. A Festa das Águas celebrada em 08 de
dezembro, por exemplo, foi percebida como um momento também de afirmação da cultura negra
em Alagoas, de valorização do povo-de-santo. Apesar do interesse municipal em angariar turistas,
nem sempre os organizadores conseguiam a melhor estrutura para montar a festa e o apoio logístico
para o deslocamento dos terreiros do interior. Tradicionalmente, a data era de origem católica como
festa de Nossa Senhora da Conceição, sincretizada em Alagoas com Iemanjá. Nos anos 1990 e 2000
a festa continuou sendo promovida com apoio das Federações somada à ação de militantes do que
se poderia chamar de “movimento negro religioso” em Maceió. Porém, alguns chefes de terreiro
não consideravam a festa na praia, o momento ideal para o rito religioso. Preferiam ir de madrugada
entregar os presentes de Iemanjá ou fazer uma festa separada. Segundo Mãe Celina, “nos últimos 15
anos”, ela não vai mais à praia. O problema, segundo ela, seria a “falta de respeito em relação à
religião”. Enquanto se faz o ritual com os cantos e danças, haveria pessoas à volta, “tomando
cerveja”. Também, segundo ela, seria mais perigoso atualmente por conta da violência urbana, pois
se corre o risco de ser assaltado. Pai João também não gosta de ir à praia. Dizia que sua obrigação
com Iemanjá “é simples, ele com ela e seus filhos”, na praia “até gente com cachaça fica se
manifestando de Iemanjá”.376

375
JORNAL DE ALAGOAS, Maceió, terça-feira, 30 de março de 1993, p. A-3. Hemeroteca – IHGAL.
376
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.

245
Mesmo com a crítica dos mais velhos, a festa de Iemanjá seria percebida ainda pelos
visitantes e pelo público como um momento único na cidade. Um dos poucos em que o povo de
santo sai às ruas coletivamente, paramentados, com as cores de seus orixás e seus ingomes.377 Além
dos ritos separados de cada terreiro, alguns organizavam apresentações “artísticas” de suas casas.
Também havia apresentações de grupos de capoeira, afoxés e maracatu. Nas últimas duas décadas
alguns pais e mães de santo se destacaram na cidade e no Estado como articuladores de demandas
para o povo de santo e a cultura negra. Segundo Zezito Araújo, a articulação do movimento negro
nos anos 1980, teria propiciado o ambiente que permitiu a tomada de ação dos religiosos nos anos
1990 e 2000. Pai Célio, Mãe Vera, Mãe Neide, Pai Edu foram mencionados e lembrados como
animadores e divulgadores da cultura negra, junto com os filhos de santo de suas comunidades. Eles
e outros procurariam manter a referência da Festa de Iemanjá como momento de encontro
celebrativo da religião. Seria difícil falar ou descrever essa festa sem imagens. Vêem-se abaixo
algumas fotos:

Festa das Águas, Praia da Pajuçara, Maceió/08-12-2010


Foto: Irinéia Franco

A praia da Pajuçara atualmente é o ponto de encontro dos terreiros. É também o espaço


reservado pela prefeitura para a concentração das oferendas, que são levadas por cada grupo de
jangada, para serem lançadas em alto mar. Nos anos 1960 e 1970, a festa era realizada na praia da
Sereia; depois nos anos 1980 até os dias de hoje passou a ser feita na “praia da avenida”, entre o
porto do Jaraguá e a Pajuçara. Normalmente os terreiros começavam a vir à praia ainda durante a

377
Outras duas festas públicas atualmente consideradas momentos de valorização da cultura religiosa negra na cidade é
o dia 20 de novembro (Dia da Consciência Negra) quando os grupos culturais, terreiros e outras pessoas visitam o
Memorial Zumbi na Serra da Barriga, no município de União dos Palmares. Também a Lavagem das Escadarias da
Catedral, realizada pelo Terreiro de Pai Célio, nos últimos anos tem sido bastante concorrida.

246
madrugada. Havia um fluxo constante de chegada, abertura de roda e toques, louvores e cantos às
orixás e em especial à Iemanjá. Com saída para a entrega dos presentes. A “carga” de entrega para
Iemanjá era quase sempre uma cesta de vime ou em forma de barco, pintado de azul e branca, com
muitas flores naturais e de plástico, espelhos, perfumes, bonecas vestidas de princesa ou rainha com
tiaras. O “axé”, as oferendas rituais, normalmente não ficavam à vista, pois são cobertas com as
outras oferendas. O público também oferecia presentes, mais simples, algumas flores, ou um
pequeno frasco de perfume.

Festas das Águas, Praia da Pajuçara, Maceió/08-12-2010


Foto: Irinéia Franco

As rodas formadas de cada terreiro, com seus toques, eram observadas atentamente por
visitantes, turistas, curiosos, muitos jovens e crianças, as famílias de santo dos terreiros. Também
por pesquisadores da UFAL. A movimentação maior se dava em torno dos terreiros mais animados,
ou seja, aqueles em que ocorriam os transes ou que os ingomes estavam sendo tocados com mais
empolgação.

Festa das Águas, Praia da Pajuçara, Maceió/08-12-2010


Foto: Irinéia Franco

247
Festa das Águas, Maceió/08-12-2010
Foto: Irinéia Franco

A entrega da oferenda no mar, em alguns terreiros, era acompanhada por fogos de artifício e
pelos presentes. Seria considerado o momento mais sagrado, quando se podiam fazer seus pedidos,
para que a mãe ou pai de santo que vai à jangada levasse também sua oferta para ser depositada em
alto mar. Muitos aproveitavam esse momento para entrar na água, benzer-se colocando as mãos
molhadas na fronte e atrás da cabeça. Na jangada só ia o pai ou mãe de santo, com mais um auxiliar
e o jangadeiro. Na praia ficavam os filhos e filhas de santo, alguns ainda em transe de erê. Ficavam
voltados para o mar, aguardando o retorno de seus sacerdotes.

Festa das Águas, Praia da Pajuçara, Maceió/08-12-2010


Foto: Ana Paula Palamartchuk

248
Em 2010 as apresentações culturais dos terreiros foram feitas na Praça de Eventos na
Pajuçara, ao lado da praia. Uma tenda foi montada em um pequeno espaço no chão, o que
dificultava a visualização de todos os grupos. Nela, ao longo do dia ocorreu a movimentação de
diversos grupos, de capoeira, dança afro, grupos de percussão e contou ainda com a fala dos pais e
mães de santo, explicando a mitologia dos orixás e seus paramentos. Nesse momento, se percebia as
diferenças de discurso, principalmente, no que diz respeito ao sincretismo dos cultos traçados e
aqueles terreiros mais “africanizados”.

Mãe Vera
Festa das Águas, Praia da Pajuçara, Maceió/08-12-2010
Foto: Cecília Ipar

Jovens do terreiro de Mãe Vera apresentam os paramentos dos Orixás


Festa das Águas, Praia da Pajuçara, Maceió/08-12-2010
Foto: Cecília Ipar

249
Afoxé da Casa de Iemanjá de Pai Célio
Festa das Águas, Praia da Pajuçara, Maceió/08-12-2010
Foto: Cecília Ipar

No entanto, toda a articulação que foi feita nos últimos anos não conseguiu impedir o
“ataque silencioso” de algumas igrejas evangélicas, que todo ano enviam membros (no geral
jovens) para distribuir panfletos que difamam as religiões afro-brasileiras. Fazem campanha
proselitista para angariar fiéis, aproveitando o grande movimento durante a festa de Iemanjá.
Surpreendeu em 2010 a mudança de discurso, ou tentativa de sofisticar o discurso de demonização,
em um panfleto que procurava atacar, argumentando nos termos da valorização cultural do
Candomblé, que os pais e mães de santo procuraram articular nos últimos anos. Lê-se:

250
Como se viu o pequeno panfleto fôra bastante agressivo ao tentar identificar o 8 de
dezembro com uma “festa pagã”. O sincretismo era posto como um disfarce para a ação maléfica do
diabo. Apesar de cansativo, a insistência nos termos desse discurso causou e causa muitos
problemas. Uma vez que os ataques se dariam de forma dispersa e constante, em diferentes lugares
e no cotidiano, a reação a eles também seria fragmentada. Mesmo a articulação de um “movimento
negro religioso” na cidade teria mais uma função de trabalhos focados no resgate e valorização da
cultura negra, ainda com pouca eficácia para mudanças mais amplas. Ou seja, em termos de
políticas públicas e ações de consciência da população de modo geral. Outra dificuldade, sempre
lembrada pelos próprios pais e mães de santo, seria a falta de união entre as federações, casas de
axés, e povo de santo de um modo geral.

As transformações históricas na perspectiva dos pais e mães de santo


As transformações sofridas pelas religiões afro-brasileiras em Maceió, na segunda metade
do século XX foram analisadas por seus líderes com diferentes olhares. Para os mais velhos as
mudanças se deram tanto em termos de nação ritual e práticas litúrgicas como também em termos
de aceitação social da religião e diminuição da perseguição policial. Porém, sobre a expansão das
casas de axé, haveria muitas críticas à atual “comercialização” da religião, e ao aumento de abertura
de terreiros por pessoas despreparadas. Mãe Josefa (Josefa Severiano dos Santos), explicava várias
diferenças percebidas por ela.

Era muito diferente o nagô, quando cortava pra nagô... A minha parte pega fruta que é
Umbanda, pega todas as qualidades de fruta. E no Nagô, o limpo, não pega fruta, só pega o
dendê e o mel. E, então, o amassi de dar o banho. E eu acho que hoje em dia está tudo
diferente. Não está como era antes. Aquilo quando iaô saía de dentro do quarto quando vinha
com aquele pano coberto na cabeça, o zelador vinha com aquela cabeça de três dias só no
dendê e no mel, tinha deles que passava sete dias no mel e no dendê, aí cobria e ia assim [faz
movimento de balanço com as mãos e canta a cantiga sepa ô, sepa ô, iabá, iobé xorô] aí ele
vinha assim com aquela cabeça, colocava por debaixo do pano pro filho curiá. Antigamente
era assim. Hoje em dia não tem mais não. Até o meu mesmo eu não dou, os filhos que eu
faço eu não dou não, eu dou o axé, o axé eu dou, mas mudou. 378

As transformações no xangô maceioense, segundo Mãe Josefa, seriam perceptíveis na


eliminação, ou pelo menos, na diminuição de determinados rituais referentes à iniciação. Nota-se
que, segundo ela, a mudança não teria impedido o repasse do axé, como força espiritual de
continuidade do culto. No entanto, as manifestações de força das divindades parecem ter diminuído,
juntamente com algumas das regras referentes ao resguardo e às responsabilidades morais em
relação à religião.

378
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit. Mãe Lucinha, por sua vez, afirmou em entrevista que em seu terreiro
ainda hoje fazem a apresentação da cabeça do animal no salão.

251
Antigamente, não sei não, era muito rigoroso antigamente. Se você dava um cágado a Xangô,
se for filho de Xangô, você passava seis meses de resguardo. Era horrível antigamente. Mas
agora [ela ri], meu Deus do céu, agora tá fogo a seita. É tanto um que dá um pinto e já é
zelador. Quando pensa que não, tá no bar bebendo cachaça. Eu não acho que isso esteja certo.
Não é não, não é certo. Se você fosse dar uma obrigação, passava sete dias de resguardo, pra
pegar na galinha, tinha que ter o resguardo. Mas hoje em dia não tem mais não. Eu passei
quarenta dias num quarto trancada, e meu filho pequeno de três meses dando de mamar pra
ele. As cobras entravam assim dentro do peji, e eu gritava: “chegue padrinho, vem tirar essa
cobra daqui”. Ele vinha pegava a cobra [dizia] “mulher, tenha medo não, ela não vai lhe
morder não”. Pegava aquela cobra e colocava bem longe no capim, no outro dia tinha outra
(...) eu tinha medo, e dizia, “não vou mais dormir aqui, me bote no salão, quando chegar
gente me bote pra dentro que eu não quero mais não, ficar no meio das cobras... que chegava
mesmo e ele pegava e botava pra fora.379

Mãe Josefa discorda das mudanças relacionadas ao resguardo e às obrigações dos filhos. A
banalização das obrigações dos zeladores parece, segundo ela, incompatível com sua experiência de
vida, em que teria passado por dificuldades e “medos” no processo de iniciação. A dedicação em
passar por tanto rigor significaria a seriedade com que se tomava aquela prática religiosa e o
convencimento dos valores relacionados a ela. Tal mudança de comportamento dos membros do
Candomblé foi analisada como vaidade.
(...) Antigamente não tinha, hoje em dia o povo quer mais é se amostrar na seita, as roupas
né? Quer se amostrar muito, e cada roupa... Umas botam aqueles arrodeios assim, embaixo
da saia pra ficar aquele mundo, no meio do salão. Eu não gosto daquilo não, visto minha saia
normal. Eu nunca botei uma coisa daquela, eu não sou burra de carnaval. Boto não. Quando
eu me preparei, era um paninho assim, pano ruim que não valia nada, mas estava bem
vestida. Mas hoje em dia, pra ir numa festa só vai se for bonita, mas o povo também só vai
pra olhar a boniteza. Muitos só vão lá pela boniteza. Eu digo: eu pra boniteza não tenho não,
tenho roupa do santo, mas pra boniteza não tenho não.380

A mudança nos trajes, alfaias e paramentos dos orixás e entidades teria acompanhado a
evolução dos materiais a que se teria acesso. Também sugeriria a influência de outras tradições no
xangô local, principalmente, das nações de keto e jeje da Bahia. Junto a isso, tem-se a percepção da
ênfase em outras entidades e na diferença entre a função dos gêneros e suas obrigações.
(...) Antes tinha Pombagira, eu tinha uma que arreia em mim, de começo de infância, mas não
era como é agora. Era difícil aparecer. Antigamente as mulheres nem podia pegar, as
mulheres que fossem tratar as obrigação; só podia tratar se fosse homem, e as mulher tratava
as galinhas, os homens tratavam os pintos, hoje em dia é misturado, é mulher, é homem,
qualquer um vai e pega. (...) Antigamente não tinha muito essas coisas de Pombagira não,
porque lá no terreiro do meu padrinho, não tinha nenhum, nenhum filho de santo dele homem
pegava, nenhum nunca pegou, porque eu nunca vi, não vou mentir, mas hoje em dia é tudo de
saia, né? Os homens. Veste saia e as coisas todas bonitonas...381

A mudança no comportamento dos gêneros soma-se às diferenças em relação às festas


públicas e ao ambiente social. Mãe Josefa parece entender que o preconceito em relação à religião,
principalmente, da parte de evangélicos gerou uma preocupação e um estado de alerta com a
379
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.
380
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.
381
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.

252
vizinhança. A experiência de vida e a prática da religião permitiriam, por outro lado, entendê-la em
um processo de evolução, em que algumas coisas não seriam “certas”.
Está tudo diferente demais, na seita. Eu acho diferente. (...) festa na praia, está tudo mudado,
sei lá, nunca mais fui na praia pra ver, fui mais não. (...) sempre tem gente que não gostava da
seita, agora os evangélicos... Veio uma morar aqui perto de casa, eu pensei: ai meu Deus!
Mas sou eu na minha casa, ela na dela... (...) antes nenhuma criança participava na roda, ou
via fazer matança (...) as coisas da seita tem muita coisa boa e tem coisa que a gente vê que
não dá certo.382

A regulamentação da participação de crianças nas rodas ou nos rituais sacrificiais estavam


relacionadas a restrições do culto, mas, também à proibição das federações nos anos 1950. Por
serem naturalmente curiosas e agitadas, as crianças poderiam tirar a atenção dos adultos dos rituais
e da concentração do transe. Além do perigo nos momentos em que se utiliza a pólvora etc. Por
outros motivos, estes de cunho “moralista”, tal restrição fôra imposta pelas Secretarias de
Segurança Pública em todo o Brasil, naquele período. Inclusive entrando nos estatutos das entidades
federativas e dos terreiros. Para os órgãos de segurança, os terreiros seriam espaços de
“libertinagem”, impróprios para as crianças.
Para finalizar a fala da ialorixá, vê-se a sua avaliação mais rigorosa sobre o problema dos
“falsos transes”.
Eu vou dizer uma coisa pra você, eu. Eu fui uma pessoa que sofreu muito dentro da seita. Eu
fui furada de faca, fui queimada. Fui furada duas vezes. Fui pro pronto socorro. Esse salão
ficou alagado de sangue, e nem vi, nem senti. Cheguei lá fui costurada, costuraram, vim
embora, e ele não saiu incorporado, o miserável, um tal de Exu Sete Facada. Eu tenho um
medo dele... Hoje em dia os cabras saem assim dentro do salão [faz os movimentos de Exu]...
já chegou, já tá com guia...não acredito não, menino. Não acredito! Morro dizendo: eu não
acredito em muitos que se manifestam não, porque muitos é mentira que não tá manifestado.
É safadeza. Eu digo por que muitas pessoas chegavam aqui na minha casa e dizia assim, vou
pra casa da Dona Zefa, vou fazer que estou manifestado pra beber.383

Considera-se a citação de Mãe Josefa importante porque traz em resumo os elementos que
foram mais percebidos como os de mudanças nas religiões afro-brasileiras em Maceió, de meados
do século XX até o início do XXI. Seriam eles: (a) mudança em práticas litúrgicas e nos rituais de
iniciação; (b) diminuição do rigor das regras de limpeza ritual e resguardo; (c) banalização e/ou
menor rigor para a formação do sacerdócio; (d) percepção da festa pública como momento para
exibição de trajes; “folclorização” da religião; (e) aumento do culto a Pombagira e mudança no
papel dos gêneros masculino e feminino na ritualística, com a maior presença percebida de
homossexuais; (d) percepção do aumento da perseguição por evangélicos; (e) mudança na
percepção da força testada do transe. Esses elementos, presentes em outras falas, seriam explicados

382
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.
383
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.

253
pelos sacerdotes como consequência da mudança do tempo, da modernização da vida no cotidiano e
na cidade e da perda da fé por alguns, que acarretaria um desrespeito pela religião.
Segundo Mãe Lucinha, ao comentar essas mudanças, afirma que antes “era mais simples”,
haveria mais fé, as pessoas viviam para “aquele momento” da iniciação, da saída de iaô. Hoje, por
causa da televisão, de outras festas, estaria se perdendo a referência da religião como o momento
mais importante. Para ela, o que teria afetado mais a religião: “foi o povo mesmo, o desrespeito,
porque se eu não respeito você, você não pode me respeitar”. Também haveria “a evolução dos
tempos”, em que “a gente não pode fazer tudo”. Hoje em dia não daria para sair à meia noite “por
uma pinga pra alguém” na encruzilhada, “tem sempre alguém” olhando. Sobre a perseguição de
evangélicos, diz Mãe Lucinha que o mais difícil seria aquela dos frequentadores das religiões afro-
brasileiras que viraram evangélicos. Apesar de, segundo ela, “a aceitação da religião está abrindo,
aqui eu não posso por a guia pra ir trabalhar, existe muito preconceito”. Essa hipocrisia em relação
à religião afro-brasileira seria muito percebida por Mãe Lucinha por causa dos religiosos (padres e
pastores) que “procuram, por baixo dos panos”, dizendo que “estão fazendo pesquisa”, mas “a
pesquisa era do próprio”.384
Para Mãe Celina, de fato, “os crentes” estariam “trazendo o desespero dentro da seita
espírita”, com “a história de dizer que já estão salvos, e que vão se salvar e que todo mundo vai ser
salvo, o pessoal está indo nessa, abandonando o que tem para ir atrás da salvação”.385 Essa situação
deveria ser respondida, segundo Pai Júlio, nos termos que os evangélicos entendem. Para isso os
babalorixás deveriam estar preparados. Dizia ele,
A religião católica sempre predominou no Brasil. Na época se dizia: fulano era protestante, é
bode, porque pentecostal acredita muito, né? Fica naquele “em nome de Jesus”, (faz barulho
de urro) a gente os chamava de bode, “os bodes já chegaram aí”. E tem outra coisa que eu
vou dizer a você, eu sou um babalorixá, mas eu sou evangélico. (...) Eu vou explicar pra
você. Como é que eu vou discutir com um padre ou um pastor se eu não for evangélico,
dentro da minha religião? Quando eu fico sem sono, meia noite, uma hora da manhã, pego a
bíblia e vou ler. Por exemplo. Vou pregar o evangelho agora. Isso eu preguei, ouvi no
palácio. Que eu participei da Cedem foi mais de um ano, fui pra reitoria, dei aula na reitoria,
essas coisas todas. Uma vez eu estava no palácio e não sei como entrou essa coisa de
oferenda. Porque no último livro de Jó você vai ler, Deus fala pro temanita. O que foi que o
Pai Eterno falou? Foi o Pai Eterno. Ele diz assim, tomai sete novilhos, sacrifique em teu
nome e do teu povo, faça como meu filho Jó. Que é o holocausto, isso aí. Aí vem Jesus
Cristo: “Não penseis que vim revogar a Lei ou os Profetas, vim cumprir”. Não estão
pensando que vim acabar com a Lei de meu pai. É a Lei que está. João sentiu isso. Nem rio,
nem um só dia passará sem que tudo aconteça, passarão céus e as terras, mas as minhas
palavras nunca hão de passar. Modéstia a parte. Chame um pai de santo desses pra poder
dizer isso, sabe? Não sabe. Sabe? (...) 386

384
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.
385
Idem, op. cit.
386
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.

254
Para Pai Júlio os pais-de-santo deveriam estar preparados para o debate com os evangélicos,
defendendo a religião dos orixás, inclusive com argumentos bíblicos, se preciso. Esse debate
prolongar-se-ia nas diferentes relações sociais, no trabalho e na família. O embate não se daria,
segundo ele, nos termos dos valores das religiões, mas na interpretação equivocada que certos
cristãos fariam dos textos bíblicos e das proibições impostas por alguns. As relações de amizade,
porém, manter-se-iam.
Mas é isso. Se ele não veio pra acabar, pelo direito, pelo o que Deus falou e o que Jesus
Cristo reafirma era para todas as religiões continuarem a fazer sacrifício. Ele não veio acabar
com a lei do Pai, como é? Não sou eu que estou dizendo não, está aqui... Mostro pro pastor.
[Ele diz] “o senhor tem sua interpretação, a minha igreja tem outra”... (...) eles [os
evangélicos] eram muita minoria. Aí cresceu, né? Por exemplo, a minha irmã era adventista,
era muito católica, mas antes de morrer era adventista. Um dia eu lendo a bíblia, porque o
adventista não come sururu, cascudim, camarão, não come crustáceo nenhum, animais que
tenham os pés fendados, não come bode, não come carneiro, não come peru... Aí eu lendo
Lucas, Jesus fez setenta discípulos, dividiu em dois e mandou pregar o evangelho, na casa
que for bem recebido, coma e beba tudo o que tiver sobre a mesa, porque digno do salário é o
homem. Eu peguei o telefone e telefonei pra minha irmã e pra minha sobrinha. Ela disse,
onde é? Eu disse em Lucas, tal, tal. Tem ali a Testemunha de Jeová no final da rua, tem uma
igreja, o pastor esteve aqui em casa, ele sempre passa por aqui, já me convidou até pra igreja
dele, batista também já me convidou. Eu já cantei na igreja metodista. Tanto aqui, o pastor
me levou pro interior, ele morou bem em frente a essa casa, como no interior. Me levou pra
Arapiraca cantei pra todo mundo lá. Ele me deu um cd evangélico e aprendi os hinos, porque
eu também fui cantor... Fiz de tudo.387

Como visto, Pai Júlio teria criado uma estratégia de resposta aos ataques evangélicos,
principalmente, àqueles referentes ao sacrifício de sangue praticado pelas religiões afro-brasileiras.
Algo que ficaria demonstrado, nas diferentes falas, seria que apesar da perseguição existir, haveria
sempre uma linha tênue. É relacionada aos parentescos e também às proximidades de vizinhança e
amizade, em que evangélicos e católicos frequentam as casas de axé. Seria talvez aquele “espírito
cristão imbuído de sincretismo” que dizia o jornalista Buíque? Infelizmente, de modo geral,
mantém-se ainda uma perseguição, em momentos mais velados e, em outros, mais explícita, aos
xangôs. A polícia continuaria recebendo “denúncias” de barulho de tambores. E as igrejas
evangélicas continuariam demonizando as religiões afro-brasileiras.
Para encerrar essa sessão, acompanha-se a fala de Pai João, que analisava o futuro da
religião afro-brasileira em Maceió.
O futuro da religião hoje, em Maceió, acho que está sendo mais comércio. Tem muita criança
aí, de menor, abrindo terreiro, se veste, compra aqueles colares, compra essas coisas... Às
vezes deixa de uma pessoa vir pra uma casa certa. Eu tô vendo assim, com respeito a todas as
nações daqui de Maceió, tô vendo mais brincadeira e folclore. (...) Acho que de uns dez anos
para cá. Por quê? Por falta de respeito, essas crianças que sai, até deixa de estudarem pra ir ao
mercado comprar coisas pra abrir o peji dentro de casa, não respeitam mais zeladores. O que
está existindo em Maceió é mais festa de Pombagira. O pessoal está dando mais valor a
Pombagira, num toque de santo, ninguém quer vir. Na minha casa eu só bato uma vez pra
Exu no ano, que é o mês de agosto. Fique na minha casa quem quiser. Às vezes eu toco aqui,

387
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.

255
com quatro pessoas, mas minha obrigação é com meu orixá e meus caboclos. Os exus são os
mensageiros da minha casa, os meus guardiões trabalham, mas eles só são festejados uma vez
no ano. Faço uma festa de Cigano, faço o ritual do Exu, mas boto ele na rua, pra ele tomar
conta da minha casa e da encruza que eu moro. A Mirongueira trabalha comigo o ano todo e
sentada aqui, mas festa pra ela também só em agosto.

A crítica de Pai João, às atuais transformações do xangô, e às perspectivas futuras, estaria


aliada ao impacto da mudança nas relações entre zeladores e filhos-de-santo e da atenção aos cultos
aos orixás. O interesse maior pela entidade Pombagira, percebida, praticamente, em todas as falas
demonstraria uma realocação mítica dos arquétipos que mais identificariam os clientes e novos
sacerdotes. Para a hierarquia mais antiga, os interesses são bem claros. Como também os
responsáveis por essas inovações. Expressaria alterações no âmbito das relações de gênero e
também da liberdade sexual.
Porque o povo dá tanto valor a Pombagira? Por cachaça, cerveja, muita roupa, muito
molengodengo, é isso que o pessoal quer. Se eu estiver errado vocês aí me desculpem. É isso,
ninguém dá valor ao santo, ninguém tem amor ao santo. Você ouve: “oh, vou inaugurar o
terreiro, amanhã já vai ter festa de Pombagira”. Aí você vê a casa encher, vem gente de todo
tipo; travesti, tudo vestido de Pombagira, tem umas que chegam até de carro, pronta de casa.
E no candomblé não existe isso. Antigamente não tinha tanto homossexual frequentando, se
tinha era tudo direitinho, tudo na sua que ninguém percebia que era homossexual, mas hoje
em dia tem os piores. Não menosprezando ninguém, mas hoje em dia tem mais isso. Teve
aqui um toque de Ogum que chegou aqui um que eu fui obrigado a botar ele pra fora. Ele já
veio vestido de Pombagira. Disse: “isso aqui na minha casa não, você vai dançar sua
Pombagira, seu pagode lá nas encruza, ou lá nas canas, mas aqui não”. E não deixei entrar.
Meu santo tem que respeitar, numa festa de Ogum o cara já veio vestido de Pombagira?! É
isso que está tirando a fé do povo, a crença, o respeito. Aqui na minha casa são quatro
pessoas, mas tem que pisar direitinho. Fico com uma pessoa, mas que seja certo, rígido no
santo. Por isso que hoje eu estou aqui, com Deus e meu santo.388

Seria bastante significativo entender a fala de Pai João dentro do ambiente de


transformações que passou o culto nagô em Maceió. De uma geração mais nova, Pai João iniciado
no antigo rito nagô, aproximou-se da Umbanda, por conta de sua Pombagira Mirongueira. Hoje
pratica o já “tradicional” culto traçado. Para ele, dos anos 1990 para cá, o aumento do culto a
Pombagira estaria concorrendo com as casas de axé mais antigas, ou mais “tradicionais”. O
relaxamento do comportamento, ou o comportamento mais liberal dos homossexuais e de outros
traria como contraparte um desrespeito e perda de fé nos orixás (“santos”).
Aparentemente, duas situações surgiriam da análise das falas e da pesquisa de campo nos
terreiros. Tem-se, atualmente: (a) os terreiros antigos do nagô e o culto traçado sofreram mais com
a perda de membros, morte de sacerdotes e diminuição da sua representatividade; os seus sacerdotes
pensam estar esse culto morrendo na cidade; (b) os terreiros de nação, ou africanizados, que
assumiriam uma postura e um discurso de afirmação e resgate da cultura negra e religiosidade; estes
realizam e apóiam ações educacionais e culturais em suas comunidades. Seus sacerdotes, em geral

388
PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO, op. cit.

256
intelectualizados, têm participado das funções nos órgãos públicos ligados às questões étnico-
raciais; ou estão se posicionando como representantes das casas de axé, junto aos órgãos nacionais,
conselhos, secretarias, universidades etc. E (c), os terreiros que, sem que necessariamente estejam
desligados das “tradições locais”, têm surgido nas periferias, atendendo necessidades particulares,
ou cumprindo funções parecidas com igrejas evangélicas menores. Cultuariam com maior ênfase os
Exus e as Pombagiras, por serem essas as entidades mais procuradas pelos clientes. Lidariam,
especialmente, com questões financeiras, amorosas e de solução de conflitos (demandas).
Atualmente, seriam os terreiros em que haveria uma vigilância maior da polícia, e que a população
marginalizada frequenta. De fato, nas pesquisas de campo, até mesmo os pesquisadores seriam
aconselhados a não irem a determinadas casas.
Tem-se, então, que na percepção de babas e iás de Maceió, nas duas últimas décadas, houve
um avanço na aceitação e presença da religião na cidade, mas também, teria ocorrido uma perda da
fé nos orixás e um enfraquecimento das relações interpessoais nas comunidades-terreiros. Seria
mais difícil hoje manter o interesse dos filhos e a coesão do grupo, tanto pelas atrações da vida
moderna, como pelo aumento do número de terreiros que concorreriam entre si. O fechamento de
casas tradicionais, com a morte de seus babalorixás ou ialorixás, parecia ser também uma das
principais causas dessas mudanças.

Uma interpretação histórica das Religiões Afro-Brasileiras de Maceió: 1990-2000


Uma séria consequência destas transformações seria a possibilidade de perda ou quebra do
axé389 alagoano, num processo que viria ocorrendo durante todo o século XX, mas que teria se
intensificado nas últimas duas décadas. Isso significaria o enfraquecimento do culto e do poder
mágico-religioso das religiões afro-brasileiras, das famílias de santo e da ancestralidade dos orixás e
entidades ali cultuadas. Seria o fim, portanto, de uma identidade coletiva específica da religião
negra. Deve-se considerar aqui, para análise, uma fala de Pai Célio de Iemanjá, quando lhe foi
perguntado, se, num sentido “religioso”, o axé poderia acabar. Dizia ele,
Sim, pode quebrar, pode acabar, pode enfraquecer. Tudo isso. Por quê? Veja bem, o axé é a
continuidade. O símbolo do candomblé, o símbolo do axé, é uma serpente mordendo seu
próprio rabo, que é o símbolo de Dãhn. Por quê? Para lhe perpetuar. Se a serpente não
consegue morder a cauda, não vai perpetuar, entendeu como é? Então, ou seja, eu tenho
candomblé. O que acontece muito em Alagoas? A quebra de alguns axés de Alagoas. O
babalorixá ou ialorixá vão ficando velhinhos, os filhos vão se afastando da casa, e ele
sozinho, uma andorinha só não faz verão. E isso enfraquece o axé até acabar. Eu conheço
ialorixás, babalorixás que morreram de desgosto. O voltar pra si, o si trancar, o não querer

389
O Axé, como visto no capítulo 01, é definido como a força ou energia vital existente em todas as coisas; nos seres
humanos, animais, plantas, objetos etc. Tudo existente seria impregnado de axé. O poder do pai ou mãe de santo, (do
feiticeiro africano) seria saber manipular essa energia e utilizá-la como elemento de equilíbrio ou desequilíbrio das
forças sociais, naturais e psíquicas.

257
nem atender a porta. Mãe Maura de Xangô, e outras, e outras... Outra coisa, além disso, a
influência da família. O que acontece, uma senhorinha de idade não tem mais aquele... O
patriarca, ou matriarca da casa envereda por outro caminho religioso, vai ser um
neopentecostal da vida [...] isso quebra o axé, enfraquece o axé, na proporção que você não
alimenta, não faz obrigação, não faz oferenda, não faz esse feedback... O axé vai cobrando,
vai cobrando, vai cobrando... Orixá é uma energia e essa energia se desprende, e a pessoa fica
sozinha lá... Se a energia está sendo alimentada, então vai haver a mordida da cobra e vai se
perpetuar. A energia vai se fortalecer. Então, por exemplo, o que ocorre aqui, na nossa casa.
Já tenho mais de oito filhos de santo com casa aberta, tudo ali gera energia, cada um leva seu
santo, vai fazer sua casa. Não tem o dom? Tem. Meu pai, eu tenho condições? Tem. Então eu
vou lá, eu ajeito, eu faço para que isso se perpetue, esse axé vai se perpetuar. Vai haver essa
energia pra se movimentar. Então, existe isso, essa quebra de axé.390

A explicação de Pai Célio problematizaria novamente a experiência histórica das religiões


afro-brasileiras em Alagoas. A partir de fins da década de 1980, teria se iniciado um processo de
fechamento de alguns dos terreiros mais antigos. Haveria o enfraquecimento das relações de filiação
religiosa do antigo culto nagô. Com isso, surgiria a dificuldade para manter a continuidade da
alimentação do axé de algumas famílias de santo, por motivos, entre outros, sócio-econômicos.
Uma vez que o terreiro (casa de axé) seria patrimônio particular dos sacerdotes ou sacerdotisas e
nesse caso seria herança familiar. Também se daria pelo aumento de influência da pregação
“antimacumba” de algumas igrejas neopentecostais, com a migração religiosa sentida a partir dos
anos 1990, principalmente, entre os mais pobres. Estes seriam a massa de frequentadores e
membros dos candomblés. A crise sócio-econômica e política pós-ditadura militar criou um
ambiente de insegurança social, com altos índices de desemprego. A pregação neopentecostal
apostou fortemente num discurso de melhoria das condições materiais de vida, a partir do abandono
de qualquer relação com as forças consideradas “demoníacas” (Candomblé; Umbanda etc) ou as
“idolatrias” (catolicismo; culto aos santos) em favor da “aceitação de Jesus”.
A fonte de poder religioso do axé seria a “alimentação”, a “movimentação da energia vital”
presente no culto, nas práticas religiosas (obrigação, oferenda, iniciação etc), que manteriam a
imantação energética necessária para seu pleno funcionamento e reprodução. A morte dos
sacerdotes e o fechamento das casas seria, segundo Pai Célio, uma situação tristemente frequente
nos últimos vinte anos em Maceió.
Além do mais, o que acontece? O Babalorixá ou Ialorixá vem a falecer e os filhos, quando
saiu o caixão, saiu o ebó, o carrego, acabam com tudo que “a casa é minha”. Aí acaba com a
casa, vende a casa, acabou-se. (...) Quer dizer: isso é comum em Alagoas. Para você ter idéia,
quando eu era criança, neste bairro, existiam cerca de quarenta, quarenta e cinco terreiros
neste bairro da Ponta da Terra. O bairro tem uma rua principal ali adiante que é a rua mista e
tem as ruas paralelas, em cada rua paralela dessas existiam no mínimo cinco casas de
candomblé. E isso eu estou acompanhando, que eu me criei desde criança até agora com
quarenta e tralálá, e hoje me pergunte quantos candomblés tem nesse bairro? Tem três
candomblés. É de cortar o coração, o que eu vi aqui. Vou citar alguns dos que eu vi acabar:
Dona Maria do João Grilo, Seu João Grilo, Seu Zequinha, Dona Quiminha, Seu Edinho,
Dona Maria de Oxalá, Dona Maria do Chafariz, Mãe Maura de Oxum, Mãe Maura de Xangô,

390
Entrevista com Pai Célio de Iemanjá, op.cit.

258
Dona Edite, Seu João Aleijado, Seu Armandinho de Ogum, doze até agora, se eu for
relacionar só daqui do bairro da Ponta da Terra... Dona Bizé... Todas essas pessoas faleceram
e as famílias disseram: amanhã tire tudo o que for de macumba que eu vou vender a casa!391

Tem-se aqui, o exemplo das dificuldades enfrentadas pelo povo de santo para a continuidade
de sua religião na cidade. Tal situação, aparentemente predominante, teria seu contraponto na
própria história de Pai Célio. Segundo ele, passou pela mesma situação quando do falecimento de
sua avó Maria Garanhuns.
(...) a minha família mesmo, quando minha avó faleceu, meu pai disse, não quero mais saber
de macumba aqui, o candomblé terminou com minha mãe. Eu disse: o senhor que pensa
assim, mas eu não penso assim. O candomblé terminou com sua mãe, a minha avó, mas vai
prosseguir comigo! Que ela me entregou uma grande responsabilidade. “Você não vai tomar
conta de candomblé não, você só tem 14 anos de idade”. Eu disse vou sim! Chamei a Quina:
a senhora não é mãe de santo mais velha da casa? É. Topa levar o candomblé? Topo. Vamos
alugar uma casa? Vamos. Aluguei uma casa, botei o terreiro, botei o candomblé, e o resultado
está aqui hoje. Minha avó era xambá. Então eu vivenciei, eu cresci, eu nasci dentro de uma
casa de candomblé. E minha avó era assim, muito... A visão dela era muito diferenciada das
pessoas, ele dizia: você vai ter que estudar, vai ter que ser alguém na vida, mas a sua religião
é uma coisa e sua vida é outra, o candomblé é religião, não é meio de vida, vai-se embora
estudar, não sei o que, me incentivava muito. Então, eu tenho muito dela, que foi o que eu
vivenciei.392

O contraponto ao processo desagregador dos terreiros, presente na história pessoal de Pai


Célio, seria esclarecedor por trazer o tema da continuidade versus as transformações pelas quais
passaram as religiões afro-brasileiras em Alagoas, nessa segunda metade do século XX. Sua
geração e sua condição social e de formação intelectual permitiram-lhe a continuidade do
candomblé de sua avó, mas em outros termos. Sua própria formação religiosa foi se adequando,
como visto anteriormente, com a influência dos terreiros “de nação”, que começaram a se instalar
na cidade, como o jeje mina pôpo de Mãe Mirian. O entendimento do Candomblé como religião e
não “meio de vida” teriam lhe dado condições de fugir do ciclo de dependência econômica nas
atividades sacerdotais. Manteve-se a ação das atividades oraculares e outras, tradicionalmente
cobradas no atendimento aos clientes. Mas, percebe-se que, nas transformações históricas
vivenciadas e sofridas, o caminho da “africanização” e da afirmação cultural do Candomblé parece
ter sido a solução encontrada por Pai Célio e outros sacerdotes.
Tal problemática histórica, ao relacionar as transformações sofridas, as continuidades
ameaçadas e a “busca de soluções” do povo de santo de Maceió, deveria ser entendida na
perspectiva da existência de uma “dinâmica própria das culturas afro-brasileiras”, como apresentada
por Barbosa & Santos (1994) e por Luz (2000), e/ou do movimento do axé (continuidade-mudança)
refletidos em outro momento.

391
Entrevista com Pai Célio de Iemanjá, op.cit.
392
Idem, op. cit.

259
Seguindo a percepção da importância do corpo na culturalidade africana, Wilson do
Nascimento Barbosa trabalhou, a respeito da dinâmica cultural afro-brasileira, o conceito de ginga.
Apresentava-o como uma “metodologia da cultura” do negro brasileiro, o “elo perdido” que ligaria
todas as culturas negras e sua cosmovisão, ao redor do mundo. Este conceito levaria ao
entendimento dos movimentos internos da cultura na dinâmica de criação de um espaço de vida na
diáspora e no ambiente de escravidão. Segundo Barbosa, “a ginga é um movimento de avanço e
recuo, um negaceio feito com o corpo, uma forma de deslocamento reto ou circular; este
movimento de dança varia de ritmo e velocidade”, e seria mais conhecida através da prática da
capoeira. Haveria dois tipos de ginga: a sagrada e a profana. A principal diferença entre elas seria
formal: “a ginga profana é retilínea, enquanto a ginga sagrada é circular, baseada nos princípios das
forças centrífuga e centrípeta”. No Brasil elas estariam muito enlaçadas nas diferentes
manifestações da cultura negra. Por exemplo, o uso dos instrumentos musicais, o atabaque, o
tambor e o berimbau (chamado gungo) teriam uma função “abertamente alucinatória”. Visaria
desligar os “ouvintes dançarinos da realidade circundante, e introduzi-los no reino comum do
sonho, no processo de potenciação da mente coletiva”. Para Barbosa, esta via permitiria à cultura
negra se recriar no Brasil.
(...) a cultura negra se recria, levanta das cinzas, e oferece-se como uma festa ao corpo
entreaberto daqueles que a assumem. Através do movimento rítmico é possível “retornar” a
uma culturalidade reprimida, e “assenhorear-se do passado”. (...) A percepção da ginga como
elo comum, (ponto-de-partida, perdido em suas implicações), da unidade entre corpo e
espírito da comunidade do negro brasileiro, permite integrar a capoeira, o candomblé, a
umbanda, a quimbanda, o samba etc, num movimento cultural único. Esta afirmação do
movimento negro como uma psicologia e uma ideologia sociais que se percebem a si
mesmas, define sua identidade, sua modernidade, como ponto-de-partida para sua marcha
como processo de consciência.393

Pode-se afirmar, a partir da reflexão do autor, que a ginga seria o movimento das energias
vitais (axé) presente na cultura africana e consequentemente, herdada na afro-brasileira. Acumular-
se-ia no corpo visível do ser humano e seria, ao mesmo tempo, emanação da força vital presente em
tudo. A corporalidade seria assim, expressão do dinamismo específico dessas culturas e pode ser
vista, por exemplo, na cosmovisão das religiões afro-brasileiras. Os deuses e ancestrais dançam e se
expressam através da ginga sagrada. Ali, no espaço do terreiro, os vínculos espirituais ligar-se-iam
e configurar-se-iam em uma parentela, de sangue e espiritual. Essa família de santo e os diferentes
graus de hierarquia nas comunidades-terreiro possuem mecanismos específicos para a transmissão
do conhecimento mágico-religioso. O segredo (os “mistérios” da religião) e o cuidado com sua
transmissão ligam-se às habilidades pessoais e ao compromisso de vida real daqueles que irão

393
Wilson do Nascimento BARBOSA, Ginga e Cosmovisão. In BARBOSA, Wilson do Nascimento & SANTOS, Joel
Rufino. Atrás do Muro da Noite (Dinâmica das Culturas Afro-Brasileiras), pp. 31-63.

260
aprender a manipular as energias vitais e auxiliar na mediação com os deuses. Por isso, tornar-se-ia
essencial que esta ancestralidade recriada nos terreiros componha-se da memória histórica do
grupo, da tradição e linhagem que liga as práticas mágico-religiosas desse terreiro à herança
africana, preservada a duras penas desde o século XVI, no caso brasileiro. Isso garantiria o poder e
a força desta cosmovisão e sua atuação no mundo. Retomar essa linha de ancestralidade até o
Quilombo dos Palmares seria, portanto, de uma força (axé) imensa.
Entende-se, portanto – ao aplicar essa teoria ao caso aqui analisado – que o impedimento de
transmissão e perpetuação dos conhecimentos religiosos, quando da morte de seus sacerdotes e/ou
dos ataques neopentecostais, representaria um duro golpe (quebra, término) ao axé e à identidade
negra maceioense. Porém, na própria ginga, como “metodologia da cultura”, encontrar-se-ia “um
elemento desviacionista, um elemento diferenciador, um componente de surpresa”. Para Barbosa, o
“objetivo da ginga, quando a gente se move, não é apenas encontrar os meios de aumentar a própria
força. A ginga não é apenas acumulação das forças. A ginga é a busca de solução, é mover-se para
obter uma saída surpreendente. Este elemento de imprevisibilidade, de complexidade, de desviação,
de surpresa que sucede o óbvio, é, de fato, a essência da ginga”.394
Marco Aurélio Luz afirmava, por sua vez, a existência de “princípios e valores da harmonia
social” presentes na cultura negra na África e na diáspora. Segundo ele, o “processo histórico
negro-africano” seria caracterizado por “uma linha de continuidade ininterrupta de determinados
princípios e valores transcendentais”, capazes de “engendrar e estruturar identidades e relações
sociais”. Esses princípios “caracterizam a afirmação existencial do homem negro e constituem a sua
identidade própria”. Para Luz, esses princípios garantiriam a “expansão de valores civilizatórios,
mesmo quando ameaçados pelas conjunturas históricas mais desfavoráveis”.
A luta contra a escravidão e o colonialismo resulta, em última instância, exatamente da
afirmação existencial do homem negro, que implica na continuidade transatlântica de seus
princípios e valores transcendentes. Na Afro-América, especialmente no Brasil, o legado
africano se expandiu de tal forma que hoje vivemos da mesma maneira os princípios e
valores desta tradição civilizatória, apesar de algumas transformações que, todavia, não
alteram em sua totalidade a dinâmica constituinte de um mesmo continuum. Não estamos,
evidentemente nos referindo ao Estado brasileiro que se sustenta através de uma sociedade
oficial de características europocêntricas e neo-coloniais, mas especificamente à vertente
civilizatória negro-brasileira que abrange a maioria da população do país. O legado dos
valores africanos que permitiu uma continuidade transatlântica está consubstanciado nas
instituições religiosas. São dessas instituições que se irradiam os processos culturais
múltiplos que destacam uma identidade nacional.395

A ideologia negro-africana entenderia a existência social, natural e sobrenatural como uma


rede de interligações. Assim, a capacidade de interligar e distinguir os elementos das práticas
religiosas das tradições que em Maceió surgiram e/ou foram recriadas, permitiria desenvolver

394
Idem, p. 32.
395
Marco Aurélio LUZ. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira, pp. 31-32.

261
soluções adequadas ao novo contexto histórico de fins do século XX e início do XXI. Tais
transformações vistas, por um lado, como o enfraquecimento de tradições e modelos de culto
anteriores, por outro, poderiam ser percebidas como estratégias de continuidade e reprodução de
“novos” modelos de culto e “novas” linhagens. Este “novo” não representaria a eliminação total do
“velho”, mas dialeticamente, sua transformação, no stricto sensu. Vale lembrar que o símbolo
oroboro (ouroboros; uróboros), utilizado por Pai Célio como metáfora explicativa do axé, – na
representação da serpente sagrada jeje Dãhn – é a “serpente emblemática do antigo Egito e Grécia,
com sua cauda na boca, continuamente devorando a si mesma e renascendo”. Como símbolo
gnóstico e da alquimia, “expressa a unidade de todas as coisas, material e espiritual, que
perpetuamente mudam de forma em um ciclo eterno de destruição e recriação”.396 A preocupação
para a não ruptura desse ciclo (cobra mordendo sua cauda), significaria manter a movimentação
energética, as condições para produção e reprodução da cultura negra local. Seria preciso perceber,
portanto, se, as transformações ocorridas, impediram ou não o fluir do axé.

Oroboro apresentado como o símbolo do movimento infinito

Vê-se como esse processo teria se dado a partir dos elementos das transformações históricas
apontadas acima, iniciadas na década de 1970 e intensificadas nos anos 1990 e 2000. O
entrelaçamento de motivos internos e externos às religiões explicaria algo dessas mudanças:

(a) Mudança em práticas litúrgicas e nos rituais de iniciação: Durante a primeira metade do
século XX, entre os anos 1912 a 1940, ocorreram mudanças nas práticas litúrgicas e nos rituais de
iniciação motivadas pelas perseguições policiais e políticas. Tais motivos, externos à religião e seus
adeptos ajudaram a estabelecer os modelos de culto chamados “tradicionais” atualmente. Na
segunda metade do XX, as motivações internas da vivência e experiência da religião negra no
Brasil e em Alagoas deram-se através da ampliação dos modelos de culto na cidade, pela migração
de sacerdotes e interação entre a Umbanda e o Nagô/Xambá. As transformações nas práticas
396
ENCYCLOPEDIA of Word Religions. Ouroboros, p. 833.

262
litúrgicas em Maceió neste período estariam relacionadas ao aumento dos terreiros “de nação”, o
que levou a uma recriação de linhagens de culto, para iniciação e obrigação. Essa mistura, já
experimentada entre o Nagô/Xambá e a Umbanda desde os anos 1950, seria ampliada com as
tradições jeje, angola e outras. Entende-se que a capacidade operativa de relacionar práticas
diferenciadas estaria dentro da perspectiva da dinâmica cultural negra. E atenderia às necessidades
específicas dos indivíduos ou do grupo da comunidade-terreiro. Talvez tenha sido motivada por
ambições pessoais de aumento de filiação e clientela; ou como estratégia de sobrevivência e política
para valorização da designação mais aceita nesse período. Importaria entender, no entanto, que a
capacidade criadora posta em xeque pela tensão entre as relações estabelecidas, culminou em
aumento de articulações, no que diz respeito ao conhecimento ritual. O mesmo ocorreu na busca de
referências sobre a herança cultural negra local e africana.

(b) Diminuição do rigor das regras de limpeza ritual e resguardo: Este aspecto das mudanças
ocorridas seria perceptível em todo o Brasil, desde os anos 1930. A urbanização e a estruturação das
relações capitalistas de trabalho nas cidades as teriam motivado no sentido do tempo vivido para as
atividades rituais e o tempo dedicado ao trabalho formal (transformação na percepção das
temporalidades). Da mesma forma, teria influenciado o menor rigor na formação do sacerdócio,
explicando a percepção da banalização deste.

(c) Banalização e/ou menor rigor para a formação do sacerdócio: A figura do antigo nganga
(médico-mago-sacerdote) teria sumido nas últimas décadas, havendo em Maceió somente a
memória de antigos babalorixás e ialorixás de grande poder. A maioria deles, famosos no período o
Quebra-Quebra. Por que teriam sumido? Pela contração da base numérica e cultural afro no Brasil?
Talvez sim. Parece-me, no entanto, que a capacidade de elaboração mágico-religiosa dos sacerdotes
foi, nessa última década, substituída por suas articulações sociais e políticas, e por sua capacidade
de posicionamento em defesa da religião afro-brasileira. É certo, que nem todos os pais-de-santo
cumprem essa tarefa. A fama de ser poderoso(a) “bate folha” parece ter sido negativada, em alguns
meios, em função da intelectualização dos sacerdotes e sacerdotisas. O respeito e a veneração, pelo
conhecimento religioso dos mais velhos na religião, ainda permanecem. As dificuldades apontadas
para a transmissão desse conhecimento parecem, no entanto, difíceis de serem superadas. O
crescimento do número de terreiros, a maior abertura e a variedade de cultos, além do controle
formal via federações, modificou também a formação sacerdotal. O Candomblé e a Umbanda como
“modos de vida” parecem atraentes para parte dos jovens das periferias e de migrantes nordestinos
nas cidades grandes, que encontram problemas para entrar no mercado de trabalho formal pela falta

263
de vagas. Muitas vezes, sem uma especialização para o mercado, utilizam-se da tradição e dos
conhecimentos de sua formação cultural de origem, percebidas como valorizadas no mercado
religioso das capitais. O uso das mídias impressas e, posteriormente, eletrônicas, facilitou a
divulgação dos serviços mágico-religiosos prestados para a clientela de classe média. Esta passou a
frequentar e a se interessar mais pelas religiões afro-brasileiras desde os anos 1960.

(d) Percepção da festa pública como momento para exibição de trajes; “folclorização” da religião:
Sabe-se que o uso (ou abuso) das religiões negras como folclore data de fins do século XIX e
primeira metade do século XX. Até meados da década de 1970, viu-se forte vinculação entre os
estudos de folclore e as religiões afro-brasileiras, principalmente, por conta da valorização da
cultura baiana e da indústria turística desenvolvida naquele estado. Ela soube explorar amplamente
sua cultura negra local. Essa relação foi fortemente intensificada no impulso dado às artes
(plásticas, dança, música, teatro, etc) que foram, no período, influenciadas pela mitologia e pela
estética negra. Esse aspecto artístico foi assumido pelo Movimento Negro nascente desses anos,
somando a um movimento cultural negro mais amplo, relacionado à revalorização da memória e da
herança africana (africanização) das últimas décadas do século XX. Assim, para os terreiros das
várias nações, um processo de culturalização da religião serviu tanto como discurso contrário à
repressão histórica sofrida, como também uma forma encontrada de valorizar e retirar o sentido
folclórico dado pelos intelectuais da elite. Existiria aí, um paradoxo. Como “folclore”, as religiões
afro-brasileiras e outras manifestações da culturalidade negra seriam vistas como estáticas e presas
ao passado tradicionalista e escravista do país; produzidos por marginalizados, “bárbaros”.
Enquanto “cultura”, fôra apropriada pelos intelectuais e pela classe média, dissolvido de seu sentido
contestador antiordem e, por isso mesmo, podendo ser utilizadas nas mais variadas situações. A
percepção das lideranças mais antigas enxergaria exatamente o auge desse processo e identificariam
como negativo este aspecto. Tal rebaixaria a religiosidade em seus elementos diferenciadores, por
exemplo, em relação ao Catolicismo ou outras religiões. A ênfase na estética, na música, ou seja,
nos elementos das festas públicas, espetaculares, do ponto de vista branco-cristão, impediria o
entendimento do sagrado mais profundo das religiões negras. O discurso da cultura avançou,
portanto, para um discurso de auto-afirmação religiosa. Ele daria conta da valorização da religião,
colocando-a em patamar de idêntico valor com as outras tradições existentes no Brasil. Em Maceió,
como visto, a forte vinculação dos terreiros como espaços de produção cultural negra, fez com que
se precisasse avançar na divulgação de seu valor inerente, mas enfrentando as mesmas dificuldades
de aceitação e entendimento.

264
(e) aumento do culto a Pombagira e mudança no papel dos gêneros masculino e feminino na
ritualística, com a maior presença percebida de homossexuais: O avanço da luta pelas liberdades
individuais nas cidades grandes e os movimentos feministas e GLBT (Gays, Lésbicas, Bissexuais e
Transexuais), a partir da década de 1970, auxiliaram no aumento visível do número de
homossexuais e lésbicas que vivem de modo mais livre, principalmente, nas grandes cidades. As
religiões afro-brasileiras não possuem um discurso sistemático oficial antigay, como existe em
outras tradições religiosas. Sem um código moral dicotômico – mesmo a haver repressões veladas –
criaram-se maiores espaços para o sacerdócio feminino e masculino, independente da orientação
sexual. Ocorre, portanto, possibilidade de se subir na hierarquia sacerdotal de modo mais
democrático. Tal fato tem sido na última década destacado por babalorixás e ialorixás, como
elemento diferenciador da religião, o que a favoreceria politicamente. Por outro lado, surgiram
também novos estudos, que procuraram entender melhor a relação entre a homossexualidade e o
sacerdócio afro-brasileiro. Como visto em Maceió, a percepção do aumento do culto à Pombagira,
para alguns, estaria associado ao aumento da participação dos homossexuais nos terreiros. Estes se
tornariam espaços para uma sociabilização melhor “protegida” contra os preconceitos sofridos,
principalmente, nas periferias.

(d) percepção do aumento da perseguição por evangélicos: Sabe-se que foi a partir dos anos 1970
que ocorreu a fundação das principais igrejas neopentecostais brasileiras. Nascidas sob a proteção
da então Ditadura Militar, realizam uma evangelização com base no combate à “macumba”. A
demonização das religiões afro-brasileiras e espíritas tornou-se nas últimas décadas o modus
operandi de grandes e pequenas igrejas. Estas surgiram no bojo da expansão do Candomblé e da
Umbanda nos grandes centros. Daí competiriam diretamente com os terreiros, no atendimento às
demandas espirituais e materiais da população mais pobre. De fato, o aumento do desemprego, a
insegurança social e a perda das relações comunitárias levaram à busca por novas soluções mágico-
religiosas para tais problemas. O combate ao “inimigo” (Demônio) responsável por todos os males
sociais e pessoais externalizou-se, identificando-o nas religiões negras. Várias análises trataram
desta relação, abertamente violenta nas últimas décadas. Deve-se ter em mente o racismo intrínseco
dessa problemática, pois, mesmo sem identificar o negro como o sujeito primeiro das religiões afro-
brasileiras, ficaria implícito no processo de branqueamento, a negativação que seria feita aos
símbolos e práticas negras destas religiões. Em Maceió, a preocupação com a ação dos evangélicos
foi explicada pelos sacerdotes como um dos maiores problemas enfrentados pelos terreiros.
Também como uma das causas para a diminuição do número de seus frequentadores. O negro que
quer “subir na vida” deve “branquear-se” também através do neopentecostalismo.

265
(e) mudança na percepção da força testada do transe: O transe religioso seria um dos momentos
mais importantes do culto, porque nele se provaria a presença e a força vital (axé), das divindades e
de seus “cavalos”. Este poder seria cercado de regras de iniciação e obrigações, voltadas para o
desenvolvimento pessoal e coletivo do grupo, que cultua aquela divindade; e para a manutenção de
seus axés. Por isso, a acusação de fingir o transe seria muito séria, causando conflitos entre os
membros da religião, ao se perceber a sobreposição de interesses econômicos à religiosidade. Essa
problemática, em Maceió, como visto, comporia os motivos para a perda do conhecimento religioso
e a diminuição da força vital dos cultos.

(f) fechamento de casas de axé devido à morte dos sacerdotes; problemas para a continuidade de
linhagens de santo “tradicionais” (fim do antigo culto nagô; risco de perda de axé): Como
afirmado anteriormente, a sociedade capitalista urbana tendeu a desvalorizar a cultura comunitária,
levando a uma desagregação das relações interpessoais de solidariedade nos grupos. Causaria, por
outro lado, problemas para a reprodução dos modelos de culto, das práticas e da ideologia e das
práticas religiosas afro-brasileiras – coletiva e partilhada – nesses ambientes. A partir da década de
1960, ocorreu maior circulação de sacerdotes nordestinos de diferentes tradições para o sudeste.
Nos novos ambientes, surgiriam dificuldades no repasse do conhecimento mágico-religioso por
“desconfiança”. E também pela pouca segurança, no caso das perseguições policiais e evangélicas
aos terreiros. Não se poderia falar tudo para todos. Foi perceptível, nas falas das lideranças de culto,
a preocupação com a continuidade de determinadas nações, nesse ambiente urbano mais
competitivo. O patrimônio material acumulado pelo grupo, liderado por pais e mães de santo,
tornar-se-ia motivo de conflito entre os filhos carnais e os filhos de santo. Eis um exemplo da
contradição entre o modelo de vivência coletiva das religiões afro-brasileiras e o individualismo do
modo de vida capitalista. Por outro lado, o atraso no Estado em relação à valorização do patrimônio
material afro-brasileiro, não teria dado as condições políticas para se tentar proteger o culto, via
tombamento dos terreiros. O Quebra de Xangô (1912) também foi responsável pela perda de
patrimônio cultural material, precioso para os negros em Alagoas. As lutas encabeçadas a partir dos
anos 1980 parecem ter um longo caminho de recuperação, iniciado com o tombamento da Serra da
Barriga (1985), seguindo, nas últimas décadas, com foco na educação anti-racista e na tentativa de
retomada da culturalidade negra.
A experiência esotérica é essencial para as práticas da religião afronegra. O pai ou mãe de
santo deve receber a inspiração dos antepassados ou dos orixás. Esta revelação se dá sob a forma de
(a) sonhos indicadores ou esclarecedores; e (b) percepção intuitiva, uma forma de iluminação que o
iniciado recebe subitamente, com a explicação de procedimentos ou caminhos, acerca daquilo que

266
andava se inquirindo, ou não. É falso supor que a formação esotérica seja uma característica
exclusiva do cristianismo ou das religiões ditas universais. O caráter exotérico do cristianismo não
pode ocultar a importância, na estruturação destas religiões cristãs, do segredo, do misticismo e da
interpretação revelada.
Aqui se encontra importante parte da perda de poder das religiões afro-brasileiras no
contexto 1970-2010: (1) a redução do espaço dos terreiros; (2) a quase desaparição das “casas de
assentamento” para cada orixá; (3) a redução drástica do tempo de internação dos iniciandos; e (4) o
“contato”, com o tempo de isolamento, entre a deidade, ou orixá, e o iniciando; consequentemente
(5) a perda do conhecimento revelado. Ou seja, tem ocorrido uma redução da elaboração e vivência
esotérica da religião.

Tabela 8: Aspectos Históricos das Religiões Afro-Brasileiras em Maceió (1990 a 2000)

Aspectos 1990 2000-2010


Contextos Sócio- Crise política e institucional Manutenção de certo equilíbrio
político-econômico (impeachment); crise econômica, plano econômico de ordem liberal,
real, globalização; perdas salariais e de fortificação democrática (Era Lula);
direitos trabalhistas percepção de melhorias setoriais para
classe média e mais pobres; crise
econômica mundial
Mudanças e Enfraquecimento da influência das Pouca relevância na ação das
dificuldades federações; ação educativa e política do federações de culto; movimento negro
NEAB-UFAL = cultura negra sendo perde força política; valorização da
revalorizada; cultura negra via lei 10.639/2003 e
Ações Afirmativas na UFAL; religião
= cultura, luta para afirmação do
sentido religioso dos cultos
Principais Menor visibilidade às ações das Fechamento de terreiros antigos por
características federações nos meios de comunicação; conta da morte de lideranças –
mantém-se destaque à Festa de problemas para renovação da
Iemanjá; hierarquia; forte comercialização da
religião
Transformações “Culto traçado” torna-se o mais Lideranças jovens com maior
rituais “tradicional” por guardar elementos do liberdade para alterações nos rituais;
antigo nagô; lideranças mais antigas na lideranças antigas criticam a
cidade começam a se fechar; forte comercialização da religião e má fé;
sincretismo ocultista via influência da parte dos rituais antigos mantém-se
umbanda diluídos nos terreiros “tradicionais”
Sócio-econômicos e Volta-se a identificar os cultos afros Perseguição de evangélicos; imprensa
Políticos com o uso político mal intencionado; local ignora os cultos; notícias sobre
relação entre Collor e mães-de-santo rituais de magia negra e violência
(velho discurso com nova roupagem); envolvendo membros do culto; falta
dificuldade de eleger representantes de representação política vista como
políticos; Dificuldades para conseguir grande problema; Início da percepção
apoio de políticos locais aos terreiros; do uso da religião como cultura pode
trazer ganhos sócio-econômicos aos
membros dos terreiros – terreiros
como agências culturais e econômicas

267
Bibliografia e Fontes do Capítulo
(A) Livros e referências:
1. BARBOSA, Wilson do Nascimento & SANTOS, Joel Rufino. Atrás do Muro da Noite
(Dinâmica das Culturas Afro-Brasileiras). Brasília: Fundação Palmares/MinC, 1994.
2. BARBOSA, Wilson do Nascimento. Cultura Negra e Dominação. Porto Alegre: Unisinos,
2002.
3. Kulé-Kulé – Religiões Afro-Brasileiras, NEAB/UFAL, Maceió, 2008.
4. LOPES, Nei. Dicionário Escolar Afro-Brasileiro. São Paulo: Selo Negro, 2006.
5. LUZ, Marco Aurélio. Agadá: dinâmica da civilização africano-brasileira. Salvador:
EDUFBA, 2000.
6. MERRIAM-WEBSTER´S ENCYCLOPEDIA of Word Religions. Springfield,
Massachusetts: Meriam-Webster Inc., 1999.

(B) Fontes:
1. APA – Hemeroteca e Acervo Sávio de Almeida
2. Catálogo COLEÇÃO PERSERVERANÇA (IHGAL, 1974)
3. Documentário: 1912: O Quebra de Xangô. Siloé Amorim, 2007.
4. Entrevista com Pai Célio de Iemanjá
5. Entrevista com Zezito de Araújo
6. IHGAL – Hemeroteca
7. LODY, Raul. Coleção Perseverança: um documento do Xangô Alagoano.
MEC/Secretaria da Cultura; Fundação Nacional de Arte. Maceió: UFAL/Rio de Janeiro:
Funarte, 1985.
8. PROJETO GIRA DA TRADIÇÃO. IPHAN e Secretaria Municipal de Cultural, Maceió,
2008.
9. PROJETO RELIGIÕES AFRO-BRASILEIRAS EM NOTÍCIAS: levantamento e
catalogação de notícias sobre o Candomblé e a Umbanda na imprensa maceioense, 1960-
2000. Pró-Reitoria de Extensão. Proex-UFAL/NEAB-AL, 2010-2011.
10. REVISTA ORIXÁS. Candomblé e Umbanda. São Paulo: Minuano, 2006.

268
Capítulo 7: As Transformações Históricas nas Religiões Afro-Brasileiras no Brasil
Contemporâneo
(..)
Fui escravo, falar de açoite nem dá.
Meu lamento ainda ecoa no ar.
Mas quebrei a corrente,
Ninguém manda na gente,
Nunca mais ninguém vai mandar.
Sou meu senhor,
Meu dono e rei,
Na força de Oxalá.
Da minha cor,
Me orgulharei,
Sempre, oh Mãe-África!

Negro, negro,
Mas não sou mais de lá.
Brasil já é meu gongá!
Gongá – Sérgio Santos/Paulo César Pinheiro
CD Áfrico – Quando o Brasil resolver cantar – Sérgio Santos (2001)

Análise conjuntural das religiões afro-brasileiras no Brasil, 1970-2000


A segunda metade do século XX no Brasil apresentou rápidas mudanças nos âmbitos social,
político e econômico. De modo geral, a sociedade brasileira modernizou-se nos grandes centros que
sofreram um processo de urbanização e industrialização de forma mais acentuada. As elites e seus
intelectuais – que já vinham construindo uma imagem e identidade eurocêntrica há certo tempo,
pelo menos desde 1930 – intensificaram a concretização de um modelo de sociedade baseada
naquele modo de produção e em sua cultura (norte-americana/europeia), difundidos dos centros às
periferias.
Dessa forma, as culturas e os modos de vida que não expressassem esse ideal eram
perseguidos, inferiorizados e aniquilados. Eram postos como “entraves ao progresso e ao
desenvolvimento”, quando não, um amontoado de “superstições” provindas da “ignorância” da
população. Estava nesse cenário, portanto, colocado o embate entre as diferentes “etnoculturas”,
quais sejam, as africano-indígenas e a branca-europeia.
Segundo Barbosa, “de tempos em tempos volta ao debate o lugar do grupo étnico-cultural
dentro da sociedade dominante, e as óticas que atravessam tal debate se cifram no (1)
uniculturalismo assimilativo ou no seu oposto (2), o multiculturalismo associativo”.397 Essa
percepção de um embate entre etnoculturas, presente no período contemporâneo, cumpriria a tarefa
de esclarecer a existência do elemento étnico como parte componente da elaboração da dominação
econômica e cultural que foi estabelecida no país desde o século XVI. Uma vez que,

397
Wilson do Nascimento BARBOSA. Cultura negra e dominação, p. 13.

269
O uniculturalismo é uma concepção aparentemente mais antiga, porque ela quase chegou a
obter a unanimidade das opiniões oficiais no mundo ocidental. Na verdade, o uniculturalismo
ganhou força junto com o surgimento do colonialismo moderno, a partir do movimento das
Cruzadas e seu apogeu, as chamadas “Grandes Navegações e Descobertas”. Com a conquista
de outros povos, ou pelo menos de muitos deles, e a difusão do colonialismo, a subjugação de
comunidades, que tinha por objetivo obter adesões para os sistemas dominantes, passou a
assumir um caráter de exploração econômica direta, escravidão e eliminação física e cultural
sistemática dos oponentes. Na visão do uniculturalismo, a cultura dominante se confunde
com sua própria ideologia social. Apenas uma cultura é correta, melhor que as outras em
todos os aspectos e expressa as oportunidades do futuro. Sendo uma cultura todo-poderosa
porque é certa, ela se atribui o direito de constituir-se um parâmetro para as outras culturas,
determinando quais as práticas e as teorias que devem sobreviver. A unicultura passa, pois,
da posição de dominante para aquela de ser a única cultura possível. Ao se atribuir uma
centralidade, ela avança para ler-se como exclusividade, negando finalmente o direito à
existência das outras culturas. Portanto, pode-se dizer que a uniculturalidade é o lugar onde
chegam as culturas dominantes. Elas primeira subjugam outras culturas, as dominam,
adaptam parte delas aos seus interesses. Finalmente, não podendo parar aí, seu dinamismo as
leva a destruir tais culturas subjugadas, incorporando as populações nelas antes existentes sob
formas inferiores do ser social da unicultura. Esse processo dá-se por meio de uma luta feroz
e, às vezes, aberta.398

Tal luta à culturalidade negra no Brasil, acumulada ao longo da história, expressou-se


especialmente: (1) nas perseguições e devassas perpetradas entre o pós-abolição e a República Nova
em que a criminalização, inferiorização e assimilação da cultura negra tornaram-se “paradigma” de
ação do Estado; (2) através da cooptação política das lideranças federativas, durante o período do
desenvolvimentismo e da Ditadura Militar (1950-1980), esvaziando a força política aglutinadora
que teria tal movimento; e, (3) na difamação (“demonização”) e oposição política (por vezes ainda,
sob força policial), a partir das lutas e conquistas dos movimentos negro e negro-religioso dos anos
1970 à atualidade. Obstacularizam a aplicação de políticas públicas e alteração do quadro de
desigualdade étnico-racial. Esses três momentos influenciaram as transformações das religiões afro-
brasileiras e o modo como seus adeptos enfrentaram as situações de racismo e de perseguição nos
ambientes urbanos durante a segunda metade do século XX.
A partir da abertura política do regime militar (1978 em diante), a articulação em nível
nacional que o Movimento Negro Unificado passou a liderar expressava uma luta secular dos
negros brasileiros por direitos de cidadania, reconhecimento e respeito à sua cultura. Nesse sentido,
entende-se que a contraposição às suas demandas de maior impacto (criminalização do racismo,
ensino de história da África e cultura negra, revisão historiográfica do papel do negro na formação
econômica, política e social, fim das perseguições policiais às religiões afro-brasileiras; políticas
públicas de ressarcimento à escravidão etc) foram bloqueadas por décadas nas Câmaras e Senado,
sendo algumas delas tornadas projetos de lei somente na primeira década do século XXI. Tal

398
Wilson do Nascimento BARBOSA, op. cit., pp. 13-14.

270
“vagareza” somente explicitaria aquele embate entre a “unicultura assimilativa” do capitalismo e a
“multicultura associativa” que inclui as criações negras.
Um exemplo esclarecedor pode ser visto no direito de associação livre. Como se sabe, as
“instituições” negras como legítimas representantes dos seus, estiveram sobre intensa
regulamentação dos órgãos de segurança pública. No caso das religiões, além da regulamentação
policial, durante as primeiras décadas do século XX, foram controladas também pelos serviços de
“higiene mental”. Os estereótipos construídos pela repressão dessas décadas (“criminosos”;
“supersticiosos”, “doentes” etc) ainda não foram superados, pois alimentam a ideologia racista que
justifica a subalternização da população negra e sua exploração como mão-de-obra barata.
Os anos 1950 e 1960 foram períodos em que a crise política do desenvolvimentismo nos
países da América Latina atingiu o máximo. Estava contraposta aos movimentos sociais que se
articulavam, tendo como modelo a experiência do socialismo real da URSS e, mais fortemente, a
Revolução Cubana (1959). Apesar de não haver uma atividade diretamente vinculada a esses ideais
– com exceção da participação de intelectuais negros e militantes nos grupos de esquerda – uma
auto-afirmação como religião deu-se já nesse período nos cultos afro-brasileiros, a partir da saída
às ruas em manifestações (Procissão de Ogum; Festa de Iemanjá etc). Estas expressavam
claramente uma celebração religiosa própria, independente das sanções do Estado ou da Igreja
Católica. Havia aí elementos de contestação contra a repressão policial, e, por outro lado, marcava o
fim do período de clandestinidade, quando acordos passaram a ser estabelecidos entre os grupos
religiosos afro-brasileiros e as elites políticas que buscavam apoio eleitoral.
A maior exposição pública das religiões afro-brasileiras confirmou sua expansão em número
de adeptos. Nesse sentido, manteve-se ainda uma distinção entre a Umbanda Branca, que se
federalizou em nível regional e nacional, com lideranças intelectualizadas e o Candomblé, ainda
considerado como folclore. A ocorrência nacional desses fatos parece indicar que havia uma
consciência maior dos direitos de livre associação e existência. Isso no momento em que a repressão
e a criminalização do período Vargas ia sendo substituída pelas políticas de modernização desde o
governo Kubitschek até o golpe militar de 1964.
Porém, a partir daí, o movimento federativo, que tinha o caráter de articulador das demandas
das religiões afro-brasileiras – talvez fosse o mais próximo em termos de maior agregação da
população negra nas periferias – sofreu com a infiltração e a intervenção do regime militar. Ao
“paternalizar” as federações, os governos militares e seus políticos (partido Aliança Renovadora
Nacional - ARENA) usaram-nas como carro chefe de propaganda das “liberdades democráticas” e
do assimilacionismo da “democracia racial”. Assim, controlavam-se quaisquer elementos
contestadores da ordem política e econômica que pudessem estar presentes naquelas religiões. Teria

271
sido nesse período, entre 1965 e 1975, que o Candomblé e a Umbanda se articularam de modo mais
próximo nas diferentes federações em todo o Brasil. Inclusive passou pela etapa de
internacionalização, com abertura de terreiros e tendas em outros países da América Latina e
Estados Unidos da América. Tal proximidade teria possibilitado uma primeira preocupação em
sistematizar e diferenciar os cultos, uma vez que as exigências burocráticas impostas pelas
federações acompanhavam os modelos de associação civil. Eles se aproximavam muito dos antigos
modelos de irmandades religiosas católicas. De qualquer forma, estava posto o “enquadramento”
das religiões afro-brasileiras, necessário para a “permissão oficial” de sua prática religiosa. O poder
político que as federações gozaram nesse período criou uma “elite” na hierarquia afro-brasileira
daqueles que as presidiam. O aumento de prestígio dava-se no aumento de patrimônio e dinheiro
circulante, que sustentavam essas lideranças.
O conflito pelo poder das federações foi apresentado nos episódios de disputa entre os
chamados “Reis do Candomblé”. Tais títulos que tinham uma função de legitimar a atuação de
determinados pais-de-santo, parecem surgir a partir do uso que deles fez Joãozinho da Goméia e
seus “herdeiros”, responsável por divulgar nos meios de comunicação os elementos estéticos e
lúdicos do Candomblé Angola. A titulação foi repassada para outros (José Ribeiro e Pai Paiva) ou
assumida por conta própria (José Mendes). O que interessa é que, aqueles da hierarquia das
federações que passaram a disputar os títulos de “realeza” foram duramente criticados pelas
lideranças. Estas buscaram, a partir de 1979, articular-se com o movimento negro, que ia retomando
um papel de organizador das demandas da população negra, com o “afrouxamento” do regime
militar. As críticas eram no sentido do erro de “folclorizar” e transformar em “espetáculo” as
religiões, servindo de alimento à indústria do turismo.
O modo para dissociar-se dessas práticas foi posta a partir da chamada “africanização” ou
“reafricanização”. Percebe-se aí a vinculação entre o aumento da participação política dos
militantes negros e a afirmação da autonomia religiosa, contraposta ao sincretismo católico. Essa
força de auto-afirmação, que surgiu da atuação de certa liderança religiosa (principalmente baiana),
ajudou no aumento do prestígio do Candomblé em detrimento da Umbanda, nesse período. O
movimento umbandista, mesmo apoiando aspectos do processo de africanização, passou por sua vez
pela afirmação de outros elementos de referência orientais e das ciências ocultas que lhe facultava
uma identidade também própria. No entanto, seria importante distinguir nesse movimento os
terreiros que estariam participando desses processos. Ou seja, aqueles do Candomblé considerados

272
de maior prestígio pela antiguidade e tradição399 (principalmente os baianos de rito keto) e a
Umbanda do Rio de Janeiro e São Paulo (tendas originárias ou mais antigas). Foram eles que
encabeçaram as transformações apresentadas. A maioria dos pequenos terreiros e tendas, por todo o
Brasil, mantiveram suas práticas sincréticas tradicionais. O Xangô em Alagoas passou pelo mesmo
processo, mas de modo singular. Devido à sua história de repressão, houve uma diferença de vinte
anos para receber as influências das mudanças gerais que vinham ocorrendo em outras partes do
país400. Ou seja, os terreiros e lideranças que se fixaram nos grandes centros – na passagem das
transformações advindas com a modernização capitalista – passaram ou a disseminar as mudanças,
para se adequarem aos novos ambientes; ou a confrontar alterações que pareciam atingir os
elementos considerados mais importantes. Isto dentro das estruturas religiosas de suas tradições (a
harmonia no coletivo religioso, o respeito a hierarquia, por exemplo). Viu-se que, aqueles que
souberam flexibilizar, ou melhor, ressignificar-se (africanizar, por exemplo) dentro das mudanças,
teriam sofrido menos o impacto dissociador do capitalismo urbano. Além disso, adequaram-se
também às lutas ideológicas e políticas contra aqueles (elites, igrejas) que os combatiam
cotidianamente. Vê-se aí um movimento dos centros de poder político às periferias, mas também
dos centros de poder religioso das periferias (Nordeste) aos centros periféricos religiosos, nesse
caso, o Sudeste.
Este contexto de lutas políticas dos movimentos negro e negro-religioso teve certo
reconhecimento no tombamento da Serra da Barriga em 1985. Este fato político pode ser melhor
entendimento tendo em mente o processo de “democratização” da sociedade brasileira com o fim do
regime militar. Segundo Maria D’Alva G. Kinzo, “não foi apenas o regime militar que, no Brasil,
teve traços peculiares. Também singular foi seu processo de democratização”. Este teria se dado
como uma “longa transição”.
Tratou-se do caso mais longo de transição democrática: processo lento e gradual de
liberalização, em que se transcorreram 11 anos para que os civis retomassem o poder e outros
cinco anos para que o presidente da República fosse eleito por voto popular. Para propósito
analítico, pode-se dividir este processo em três fases. A primeira, de 1974 a 1982, é o período
em que a dinâmica política da transição estava sob total controle dos militares, mais
parecendo uma tentativa de reforma do regime do que os primeiros passos de uma transição
democrática de fato. A segunda fase, de 1982 a 1985, é também caracterizada pelo domínio
militar, mas outros atores – civis – passam a ter um papel importante no processo político. Na
terceira fase, de 1985 a 1989, os militares deixam de deter o papel principal (apesar de

399
Tradição esta, como se sabe, estimulada ou inventada a partir da atuação dos intelectuais da Escola Nina Rodrigues e
outros. Para os membros dos terreiros, a tradição vincula-se à ancestralidade, às origens dos rituais, numa genealogia de
filiação religiosa que remeteria no final à África.
400
Recorde-se que com o Quebra de Xangô (1912), os cultos voltaram a se reestruturar entre 1925 e 1950, quando a
Umbanda Branca chega à Maceió. Mesmo vivenciando toda a crise dos “Reis do Candomblé” nas décadas de 1970 e
1980, o Xangô maceioense somente participará de modo mais próximo do movimento de africanização nos anos 1990 a
2010.

273
manterem algum poder de veto), sendo substituídos pelos políticos civis, havendo também a
participação dos setores organizados da sociedade civil.401

As lutas por reconhecimento da importância histórica dos negros foi somente elevada a
nível nacional como parte do processo político da “longa transição democrática”. Talvez, esperava-
se “apaziguar a família brasileira”, reforçando os símbolos que expressassem a tão almejada
“integração nacional”. O peso da movimentação política que se reestruturava com a “abertura”,
pode negociar a elevação da Serra da Barriga como símbolo da busca por real emancipação para os
negros. Tal relação contraditória, não pode, por sua vez, esvaziar o sentido positivo que a elevação
da Serra da Barriga abriga, pois representava para o movimento negro algo na luta histórica anti-
racista no país e o protagonismo negro nela. Por outro lado, com a mudança de foco, da mobilização
para a partidarização – do enfrentamento ao regime para a participação organizada em partidos –, as
lideranças religiosas afro-brasileiras entenderam que o importante era eleger representantes nas
câmaras municipais, estaduais e federais para melhor se defenderem contra os ataques (mais
organizados) das igrejas neopentecostais. Também para conseguir a garantia de legitimidade como
religião. Note-se que tais igrejas também passaram na transição política a articular candidatos que
vieram a compor a chamada “bancada evangélica”. Isso possibilitou, entre outras coisas, a aquisição
de concessões para estações de rádio e TV, que fizeram a divulgação em massa de sua ideologia
religiosa, e, em consequencia, também com a difamação das religiões afro-brasileiras.
A concepção de uma religião como uma proteção exclusiva de si e dos seus, capaz de
facultar a impunidade da consciência diante de crimes cometidos contra outros diferentes, é
certamente o que há de pior. E as religiões afro-brasileiras nunca deixaram de estar sob ataque
contextualmente de ódio, gerado pelas forças de dominação. A grosseria com que quase sempre é
feita a defesa de um Deus-em-si, monopolista e justificador da opressão do próximo, pouco tem a
ver com o Deus cristão. Trata-se antes de ideologia aberta de exploração e de racismo, cuja pobreza
espiritual vê-se na constante repetição de seu discurso; e na demonização do próximo.
Não importa quanto semelhante prática seja estúpida, ela produz – é óbvio – os frutos
desejados por sua política racista. E os frutos basicamente são: (a) o bloqueio e marginalização do
outro; (b) o monopólio de benesses públicas; (c) a eliminação das forças potenciais concorrentes.
O sistema de monopólio do poder, o ruído da situação colonial e da herança escravista,
apesar de embelezado com discursos democráticos e liberais deixa entrever por toda parte sua
natureza étnica.

401
Maria D’Alva G. KINZO. A Democratização Brasileira: um balanço do processo político de transição, pp. 4-5. In
São Paulo em Perspectiva, 15(4), 2001.

274
Entende-se assim, o porquê do problema da representação política própria ter-se tornado um
dos temas que mais preocupavam as lideranças afro-brasileiras entre o fins da década de noventa e
primeira de 2000. Teria ficado claro para estas que a entrada no “jogo político” seria o único
caminho, ainda que difícil, que legitimaria suas demandas e daria força ao enfrentamento de seus
“inimigos”. O aspecto de “politização” que a organização dos terreiros e tendas poderia agregar foi
percebido mais amplamente a partir dos anos 1990, junto à defesa contra ataques e preconceitos
ainda resistentes na estrutura social brasileira. Nesse processo de transição, as federações perderam
parte de seu poder político e econômico, apesar de se manterem com o controle da abertura e
fiscalização dos terreiros e tendas. Por outro lado, assumiram um discurso mais crítico, e em defesa
dos direitos das religiões afro-brasileiras, ao perderem sua antiga vinculação com o regime militar.
Como a democratização deu-se em uma “longa transição”, o papel das organizações afro-
religiosas, na busca por melhorias da situação objetiva das religiões negras e seus adeptos,
prolongou-se por toda a segunda metade do século XX. Até o momento sem ter alcançado plenas
garantias. A Constituição de 1988 introduziu “penalidades rigorosas” para a discriminação dos
negros e das mulheres, as chamadas “minorias”.402 No entanto, a aplicação da carta constitucional e
de outras políticas públicas, voltadas para a população negra, arrastou-se até os anos 2000, quando a
Lei 10.639/2003 e outras leis estaduais foram votadas, incluindo-se cotas para negros nas áreas de
educação e no mercado de trabalho. As dificuldades para fazer valer a legislação existente têm sido
constantes e transparece ainda o racismo em diferentes setores públicos e privados.
A última etapa analisada para as transformações históricas nas religiões afro-brasileiras,
entre fins dos anos 1990 até 2010, é aquela em que a manutenção de certo equilíbrio econômico
conjugou-se com a continuidade do processo democrático. Utilizando-se da análise de Kinzo, o país
“ampliou significativamente as condições de contestação pública e participação política. Porém,
tampouco há como negar que existam problemas no que se refere tanto à “qualidade” da
contestação pública e da participação do cidadão quanto ao funcionamento efetivo do processo
decisório democrático”.403 Mais importante ainda, seria para a autora a “questão social, isto é, o
problema da pobreza e da desigualdade”. Ou seja,
Não resta a menor dúvida de que extremas desigualdades sociais são um fator que constrange
a consolidação da democracia, especialmente no que se refere è efetiva participação política
de todos os cidadãos. Os elevados índices de pobreza e de concentração de renda no Brasil
são um legado do passado que os governos pós-regime militar não tornaram menos agudo, a
despeito de avanços na área da educação. Em segundo lugar, há problemas referentes à
representação política e ao processo de decisão democrático. A estrutura institucional
brasileira possui vários aspectos que dificultam o funcionamento do sistema democrático-
representativo. Entre eles, vale destacar a tão debatida questão partidária, que se resume na
existência de um sistema partidário que é, por um lado, altamente fragmentado e, por outro,

402
Maria D’Alva G. KINZO. Op. cit., p. 8.
403
Idem, op. cit., pp. 9-10.

275
pouco nítido no que tange às opções oferecidas ao eleitor no processo eleitoral. Trata-se de
um contexto político que dificulta enormemente a capacidade do eleitor de fixar as legendas,
distinguir quem é quem na competição e criar identidades partidárias. Quanto à questão da
representação política, este é um contexto que possibilita a eleição de representantes pouco
comprometidos com seu partido e com os eleitores que os elegeram, mesmo porque muitos se
elegeram com os votos excedentes dos candidatos mais votados, os quais podem ser de um
outro partido pertencente à coligação eleitoral.404

As dificuldades da estrutura institucional apresentadas pela politóloga são percebidas nos


problemas enfrentados para a eleição de representantes políticos dos movimentos negros e das
religiões afro-brasileiras, cuja fragmentação de interesses não permitiu resultados favoráveis. Em
que pese o esforço para reconhecimento e a conquista de símbolos culturais como patrimônios
nacionais, mantém-se as perseguições ideológicas (e religiosas) e a repressão à chamada
“macumba”, prática sincrética dos terreiros menores, presentes nas periferias urbanas em todo o
país. No caso da crise social brasileira, os mais afetados são os negros e seus descendentes. Nesse
sentido, são a maioria dos membros das religiões afro-brasileiras. Estes vivem em situação de
pobreza ou criminalidade. As limitações da democracia brasileira parecem se intensificar, portanto,
no que se refere aos direitos desta população. Lembrava tal fato o prof. Barbosa em 2009, a partir
de uma notícia publicada naquele ano pela Folha de São Paulo, cuja manchete era: “Renda do negro
é metade da renda do não-negro”. Baseava-se aquela notícia em dados coletados pelo SEADE e
DIEESE para a cidade de São Paulo. O questionamento e a resposta levantados pelo professor estão
no que se segue:
Como é que trabalhadores desempenhando as mesmas funções, um ganha dois reais e outro
um? Não tem uma explicação. Não tem uma explicação de classe, não tem uma explicação
política para isso. Só tem uma explicação: estrutural. Por quê? Porque a sociedade brasileira é
montada, foi e existe por causa da superexploração do negro. O negro é sempre a mão-de-
obra primeira a ser alijada no mercado de trabalho, a última a ser procurada e a pior
remunerada. Consequentemente, nós podemos dizer que a estrutura do capitalismo no Brasil
está montada em cima da exploração do negro. Portanto, ela não é uma estrutura social. Ela é
uma estrutura étnica. (...) Por que no Brasil os negros são os trabalhadores? Porque eles
foram trazidos da África para serem trabalhadores. Os indígenas foram apanhados nas aldeias
para serem trabalhadores. Aquele que não queria ser trabalhador era eliminado fisicamente.
Na verdade, não fazia muito sentido tratar da mesma forma fenômenos que mal acontecem e
fenômenos persistentes, que se alteram muito pouco ao longo do tempo. Fenômenos cujos
efeitos se desdobram, acarretando similaridades, certamente expressam uma longa duração
no tempo, ou seja, caracterizam uma estrutura. Nesse caso, tanto a prática do racismo quanto
a inoperância, a antecedência e até a organização do racismo por parte do Estado indicam
uma situação mais profunda, que não deve ser compreendida ou tratada de modo superficial.
As estruturas são capazes de se expressar como forças persistentes também no quadro da
mentalidade, particularmente como uma forma ativa de ideologia social.405

A desconstrução da estrutura de exploração do negro não se daria, portanto, como tarefa


simples. Os ganhos contabilizados em mais de um século de lutas políticas e embates físicos são

404
Idem, op. cit., p. 10.
405
Wilson do Nascimento BARBOSA. A Discriminação do negro como Fato Estruturador do Poder, pp. 71-72. In
SANKOFA – Revista de História da África e de Estudos da Diáspora Africana. Nº 3, junho/2009, pp. 71-103.

276
poucos e, normalmente, apresentam uma série de limitações estabelecidas no jogo político das
elites. Em termos de luta ideológica, a intelectualização das lideranças negras proporcionou uma
tomada para si das explicações sobre a própria história. Os resultados dessa última etapa do
processo histórico ainda estão para ser analisados. Afirma-se, no entanto, que o movimento de
mudanças seria irreversível, uma vez que entre os adeptos das religiões afro-brasileiras, eles
mesmos ao avaliarem sua história, enxergavam novas posturas a respeito do entendimento de seu
lugar social. A luta anti-racista levada a partir daí avançou na última década, mesmo que de modo
tímido.
Internamente, para as religiões afro-brasileiras, essa etapa de maior reconhecimento e
afirmação religiosa e cultural, caracterizou-se por uma aceleração de mudanças nas práticas rituais e
a simplificação de certos ritos. Como, por exemplo, a iniciação. Ao mesmo tempo em que se
adaptou para adequar-se ao ambiente urbano capitalista, lutou-se para manter ou “criar” uma
“tradição” de raízes e linhagens que remetiam ainda ao período de fins da escravidão, no século
XIX. Sendo os terreiros, principalmente os Candomblés, herdeiros daqueles modelos de cultos
existentes entre 1850 e 1950, a reinvenção de elementos do culto “modernos” se chocou com a
prática e a memória da hierarquia mais antiga ainda atuante. A nova geração de sacerdotes e
sacerdotisas, nascidos a partir dos anos 1960, tem trabalhado de modo a assumir como “normal” ou
pelo menos “não problemática” as mudanças rituais que melhor se adequam aos novos tempos. Isto
se passaria, por outro lado, também através de uma tomada de consciência da historicidade da
religião; força da ancestralidade e marca de distinção do processo criativo da afrocultura. Tradição
e inovação não seriam contrapostas nesse caso, mas etapas de um processo histórico continuado. O
reconhecimento de si mesmo (e dos seus) na história seria a afirmação da identidade coletiva,
construída no tempo e no espaço.

Interpretação das transformações históricas em São Paulo e Maceió, 1970-2000


Tendo esse quadro geral em mente pode-se, a partir dele, identificar as transformações
particulares que se deram nas religiões afro-brasileiras em São Paulo e Maceió. Essas duas cidades
serviram de estudos de caso, pois explicitavam os detalhes dos processos amplos, apontados
anteriormente. Representariam o ambiente contrastante do desenvolvimento social e político
brasileiro, em que o “centro” e a “periferia” se contrapõem e se complementam, assumindo
características de um e de outro, conforme o lugar do qual se olha.
Em termos religiosos, na cidade de São Paulo, viu-se que o Cangerê (“macumba paulista” –
Bastide) foi o modelo de culto mais antigo, identificado nas fontes históricas até o momento (de fins
do XIX e início do XX). Este sofreu a influência da Umbanda, vinda do Rio de Janeiro a partir dos

277
anos 1930. Sofreu, por outro lado, grande influência dos cultos afro-baianos dos ritos angola, jeje-
nagô e ketu, principalmente, a partir dos anos 1950, intensificando nos anos 1970 até a atualidade.
Muitas das mudanças que as religiões afro-brasileiras em São Paulo sofreram, devem-se tanto ao
seu ambiente amplamente urbanizado e modernizado, quanto às relações estabelecidas entre seus
terreiros e tendas e aqueles da Bahia e do Rio de Janeiro, mais fortemente.
A partir dos anos 1990, viu-se que o candomblé jeje-nagô de São Paulo passou mesmo a
irradiar certa “tradição”, ao expandir linhagens de filiação religiosa para o interior do Estado e
centro-oeste do Brasil. Até mesmo um reforço, em direção à fronteira Sul, aos Estados Unidos e à
Europa. A Umbanda paulista, por sua vez, havia participado amplamente das articulações nacionais
do seu movimento religioso, mantendo com o Rio de Janeiro uma proximidade maior. Teria
conseguido também, nas décadas de 1960 e 1970, ser a articuladora política entre terreiros e tendas,
com os órgãos de segurança pública. Entre 1970 e 2000, foi possível verificar o surgimento de redes
e relações ampliadas entre diferentes terreiros e tendas da cidade de São Paulo. Apesar de tais
relações não serem novidade em termos religiosos, no modo como as articulações contemporâneas
se estabeleceram, percebe-se um maior envolvimento e discurso político, no sentido de fortificar
demandas e criar identidades de solidariedade frente aos novos embates. Uma vez que a proibição
oficial aos cultos terminou, a luta nessas últimas décadas girou em torno da busca por
“reconhecimento” e “respeito”.
Na cidade de Maceió, por sua vez, identificou-se uma tradição religiosa também antiga
(provavelmente de c. 1850-1912) dos cultos Nagô e Congo-Angola, bastante africanos, ainda que
sincréticos. Isso porque, numa sociedade de “apartheid”, eram seus sacerdotes filhos e netos de
africanos. Também mantinham relações comerciais e religiosas com África, Pernambuco e Bahia. A
brusca ruptura do seu processo naquela cidade devido ao episódio do Quebra de 1912, fez com que
a retomada das práticas religiosas se desse com adaptações entre o culto doméstico nagô, junto a
outros elementos da Jurema e do espiritismo e catolicismo popular. Tal elaboração ajudou a manter
viva a religiosidade afro-brasileira, durante o período duro da repressão que se prolongou de 1912
ao governo Vargas (1937-1945), encerrado somente na abertura pública dos toques no final dos
anos 1950. Somente a partir daí, uma “abertura” maior aos movimentos que ocorriam na Bahia e no
sudeste chamaram a atenção de forma mais acentuada. Isso não significa afirmar que houvesse um
enclausuramento ou “congelamento no tempo” das religiões afro-brasileiras maceioenses. Viu-se
que a mobilidade de seus sacerdotes foi constante, mas suas tradições vincularam-se de forma mais

278
acentuada a uma experiência própria, mais próxima em relações de troca e filiação com o xangô
pernambucano e os cultos angolas de Sergipe do que aqueles baianos e sudestinos406.
A chegada da Umbanda Branca do Rio de Janeiro deu-se em fins dos anos quarenta e início
dos cinquenta, tornando-se, pois um fato importante para o entendimento das mudanças nas décadas
seguintes (culto traçado). Somou-se a isso, o embate com os ritos keto baianos nos anos 1970
(exemplificados nas visitas à cidade de Manuel Falefá e José Mendes) e certa (re)africanização
apontada em meados dos anos 1990407. A situação sócio-econômica do Estado de Alagoas também
contribui para a diferenciação que explicitaria as contradições do modo de produção capitalista no
Brasil. Ou seja, a injustiça social, a má distribuição de renda e dos desmandos políticos ainda
vinculados às famílias tradicionais que tem dominado o poder local. A estruturação em federações
iniciou-se concomitante com o movimento nacional, sendo ali fundada sua primeira em fins dos
anos 1950. No entanto, sua autonomia foi retirada durante a Ditadura militar, com a intervenção dos
coronéis do Exército e da Polícia Militar nela. Novas federações, articuladas durante os anos 1970,
e através da abertura política em meados dos anos 1980, estabeleceu certa fragmentação nas
relações de poder dos terreiros maceioenses. Isso teria levado aos conflitos exemplificados com os
“Reis do Candomblé”. A fragmentação do poder político e religioso das federações diluiu a força de
articulação dos terreiros nesse período. Porém, ajudou a visibilizar as religiões negras na cidade.
Depois de cinquenta anos de “silêncio” (interiorização) e clandestinidade, a retomada das festas
públicas nas praias da cidade deve ser valorizado como fato de transformação nas relações sociais
que foram estabelecidas a partir daí. Nesse sentido, apesar de todo debate das problemáticas das
“origens” do movimento negro em Maceió, ações iniciadas com a articulação do NEAB (Núcleo de
Estudos Afro-Brasileiros) propiciaram o estabelecimento também de outras demandas.408
Se, em São Paulo, a exploração capitalista deu-se através da desapropriação de terras e da
estruturação de um mercado de trabalho discriminatório e excludente, em Maceió a força de
trabalho da população foi – em alguns casos ainda é – explorada nos moldes de uma “escravidão
moderna”. Os postos de trabalho formais ou os melhores remunerados são dominados pelas elites, a
detentora dos meios de produção (terra, usinas e fábricas) e a outra burocrática, formada pelo

406
Recorde-se que neste caso, a tradição oral do xangô maceioense afirma ser ele a força religiosa maior na região,
origem evocada a partir da memória do Quilombo dos Palmares.
407
Estes babalorixás acusaram o xangô maceioense de ser “sincretismo disfarçado” ou “bruxaria”.
408
As polêmicas em torno da criação do NEAB referem-se a ter sido este núcleo criado de “cima pra baixo” a partir da
Universidade Federal de Alagoas e alguns intelectuais do movimento negro, sem um trabalho de base. Ou melhor, sem
ser o fruto de um movimento de base, de consciência negra. Sobre isso, alguns debates passaram a ser feitos agora nos
anos 2000. Espera-se que em breve, novos estudos surjam sobre o tema. Mesmo levando em conta esse problema, o
NEAB acabou por ser uma ponta de lança para as discussões em nível nacional e para visibilizar a questão étnico-racial
no Estado. Principalmente hoje, no que diz respeito à educação étnico-racial e às políticas de ações afirmativas (PAAF).
Novamente, apesar de toda resistência de alguns, o chamado PAAF da UFAL tem se destacado como modelo de
aplicação de tais políticas em nível universitário no país.

279
funcionalismo público estadual e federal e sua clientela. O subemprego sustenta boa parte da
população na capital e nos interiores. A pesca, a produção artesanal, o corte da cana, o comércio
informal, voltado para o turismo nas diferentes praias e o trabalho doméstico, indicam relações de
trabalho estabelecidas sem garantias formais, ou poucas. Fazem com que esta população esteja
sempre “desenrolando” o seu sustento. Ao longo da história brasileira, a migração interna da
população negra dava-se sempre em conformidade com as necessidades de mão-de-obra do modelo
dominante de produção econômica. As dificuldades em conseguir fixar-se, o impedimento de
acesso à terra e aos meios de produção etc mantiveram a população negra como uma mão-de-obra
flutuante (“exército industrial de reserva”), à disposição da exploração de sua força de trabalho
pelas elites no Sudeste ou Nordeste. A precariedade da assistência do Estado parece se expressar no
aumento da violência urbana e da militarização policial, reforçada nos últimos anos nas duas
cidades estudadas. Como indicam vários estudos, o impacto repressivo sobre a população negra é
muito grande, principalmente, entre os jovens nas periferias urbanas.409
Colocados como exemplos de “desenvolvimento” e “subdesenvolvimento” os contextos das
duas cidades se aproximavam nos moldes da exploração estrutural apontada acima por Barbosa. As
elites, econômica e política de Alagoas, identificavam-se com as de São Paulo – inclusive em sua
filiação partidária. Estas defendem ainda hoje os seus interesses, controlando e explorando a mão de
obra de suas populações. Donas de um discurso “progressista” e “liberal”, suas práticas, no entanto,
demonstram a profundidade do seu racismo, uma vez que subalternizam negando o direito de
existência e a dignidade de ser e viver diferente da “unicultura assimilativa”. Em Alagoas não há
sequer “políticas assimilativas”. Negar a existência da desigualdade, a partir da condição étnico-
racial da população, é o primeiro argumento do discurso racista, vinculado pelas mídias impressas e
televisivas, controladas pelas mesmas poucas famílias. Os meios de comunicação cumprem a
função de desinformar, atacar e reforçar os estereótipos racistas, secularmente divulgados pela
ideologia religiosa dominante. Aproveitam ainda para criminalizar qualquer movimento social de
cunho reivindicativo. A modernização e o processo de democratização, ao invés de eliminar e
rejeitar o discurso racista, alimenta-o e o reproduz, como foi verificado nesta pesquisa.
Os já apontados processos de urbanização e modernização capitalista, intensificados a partir
dos anos cinquenta, e as crises geradas por eles, levaram a população negra a migrar em busca de
409
O problema do aumento da violência no Brasil tem sido muito debatido nos últimos anos em diferentes abordagens.
Sobre isso ver Júlio Jacobo WAISELFISZ. Mapa da Violência 2010. Anatomia dos homicídios no Brasil. Instituto
Sangari, 2010. Nele apresenta-se, por exemplo, os números para a taxa de homicídio por unidade da federação. Alagoas
em dez anos (1997 a 2007) saltou da 14ª para a 1ª posição, com taxa de 59,6 em 100.000 habitantes na população total,
e continua considerado em 2011 o estado mais violento do Brasil. Sua capital, Maceió, foi da 9ª para a 1ª posição. São
Paulo por sua vez, saiu do 5º lugar para o 25º, de 39,1 para 17,1, nas mesmas variáveis. A capital São Paulo foi da 4ª
para a 26ª posição. Idem, op. cit., pp. 22-27. Nesses dados, o autor apresenta também um índice de vitimização negra,
nele para jovens entre 15 e 24 anos, Alagoas encontrava-se em 3º lugar e São Paulo em 24º.

280
trabalho, contribuindo para o aumento da “diáspora” de sacerdotes das religiões afro-brasileiras e a
disseminação de seus cultos. Formaram-se “rotas do sagrado”, em fluxos de indas e vindas entre
Bahia-Rio de Janeiro-São Paulo/ Alagoas-Pernambuco-Sergipe-Bahia-São Paulo-Rio de Janeiro,
somente para fixarem-se os caminhos preferenciais dados. Aí se incluem também suas relações
históricas e contemporâneas com o continente africano. O destaque a esta rota seria importante para
se entender, principalmente, aquelas falas que remetiam aos problemas da continuidade e da
reprodução dos cultos, de acordo com as tradições de origem. A mudança geográfica, o problema
do espaço social para a vivência religiosa foi posto, portanto, como elemento de marcação para
parte das alterações iniciadas na década de 1950 e intensificadas nesta última de 2000. A mudança
temporal, por sua vez, vista na percepção das diferenças apontadas entre “o antes e o hoje” nas
religiões afro-brasileiras, problematizou o protagonismo de seus adeptos e lideranças em relação ao
seu ambiente econômico, social e cultural. A expressão utilizada para se referir ao todo deste
processo foi dada pelos sujeitos históricos, ao manifestarem a preocupação com “a perda, o
enfraquecimento ou a quebra do axé”. Este “pano de fundo” perpassaria todas as questões e
demandas apresentadas; estando ora mais implícito ora mais explicitado, nas vivências das
comunidades-terreiro de São Paulo e Maceió.
Inicialmente, pode-se afirmar que em São Paulo entendia-se tal preocupação como o não
conseguir se reproduzir por conta das adaptações necessárias, feitas para a manutenção dos cultos
ali, diferentes dos locais de origem, as casas matriz nordestinas. Uma delas refere-se (1) às relações
estabelecidas com os espaços e as instituições públicos, sagrados e profanos na grande cidade, que
teriam também criado dificuldades nesse sentido. Viu-se que o embate com as diferentes igrejas, a
clandestinidade imposta, o acesso às áreas verdes, a livre manifestação em praças públicas, os
toques nos terreiros, o uso dos cemitérios e vias para cumprimento de obrigações rituais – todos
esses elementos – geraram conflitos entre os membros das religiões afro-brasileiras e suas
vizinhanças. Ou com os poderes oficiais públicos e religiosos.
A intensificação da urbanização e a perda de espaços naturais dificultavam a realização de
determinados rituais de iniciação, sacrifícios e oferendas. Foi colocado que a partir dos anos 1990,
algumas tentativas de democratizar os espaços públicos para o uso das religiões afro-brasileiras
foram apresentadas, sem ocorrer o impacto e a aplicação de tais projetos. Não houve forças políticas
capazes de vencer o “controle do sagrado”, exercido pela Igreja Católica e demais denominações
cristãs, no que se refere, por exemplo, à questão das oferendas realizadas nos cemitérios da grande
São Paulo. Ainda sobre o embate com o catolicismo, viu-se que a tentativa, nos anos 1970, de
introduzir “tradições” do Candomblé baiano na cidade, não foram também bem recebidos. A
resistência da igreja local em relacionar-se com os cultos afro-brasileiros, nos moldes da relação

281
estabelecida historicamente no Nordeste, foi constante, apesar de alguns avanços notados nos
últimos anos. A subordinação parece ser mantida, mesmo no discurso “ecumênico” mais
progressista.
Estes problemas teriam sido patentes para os Candomblés, uma vez que a Umbanda tendeu a
se adaptar mais facilmente, devido às suas origens. Porém, mesmo com as necessidades de espaço
físico diferenciados, a Umbanda em São Paulo também necessitou das áreas verdes e do acesso às
folhas sagradas. O Vale dos Orixás e outros parques semelhantes procuraram suprir parte dessa
demanda dos cultos afro-brasileiros, oferecendo uma opção de escape às pressões da cidade. Seus
zeladores e sacerdotes procuraram, por outro lado, suprir as faltas de alguns materiais do culto, com
a criação de comércios específicos e lojas de artigos próprios. Sobre a perda do espaço social para
os cultos em São Paulo, deu-se na falta do reconhecimento dos direitos de organização própria das
religiões afro-brasileiras.
Em Maceió, esse aspecto da “ameaça ao axé” foi identificada pelas lideranças no
fechamento das casas antigas com o falecimento dos sacerdotes mais velhos. Houve
descontinuidade de reprodução desses “axés” e suas linhagens de filiação. Isso “quebraria” a
transmissão dos conhecimentos específicos do culto nagô, apontado como o mais ameaçado de
extinção. Sua tradição tendeu a se manter diluída, nos chamados “cultos traçados”
(nagô+umbanda/nagô+angola etc). O uso dos espaços públicos foi nesse período mais
“democratizado” para as manifestações religiosas, mantendo-se, no entanto, sob controle e
fiscalização dos órgãos públicos. A atuação do movimento negro em Maceió, nos anos 1980,
conseguiu abrir brechas para a afirmação da religiosidade, juntamente com o trabalho que vinha
sendo realizado pelas federações de culto. Estas, apesar de suas divergências, procuraram, pelo
menos até fins dos oitenta, manterem-se ativas na promoção de atividades com visibilidade dos
cultos locais. Entretanto, a partir dos anos 1990, perderam o protagonismo relacionado aos eventos
públicos e liderança política. Tal foi sendo assumido por terreiros de maior prestígio e movimentos
culturais negros.
Os espaços verdes, apesar de não terem sofrido tanto em comparação com São Paulo, já
sentem a refrega da expansão urbana. Isso levou algumas lideranças de culto a se manifestarem com
preocupação, principalmente, em relação à poluição nas praias e ao corte das matas. Estas, como se
sabe, sempre foram a proteção (de forte axé e esconderijo) dos cultos afro-brasileiros, em toda a
história e em diferentes lugares; espaço sagrado, morada dos orixás e entidades. O controle político-
militar exercido sobre as matas fora estratégico para a luta contra os quilombolas, os cabanos e
outros “rebeldes”. Na apropriação da riqueza feita pelas elites ao longo do tempo, controlar as
matas significou também controlar as forças de reação e impedir a existência de outros modos de

282
vida e de sobrevivência que pudesse significar um “trabalho” realmente livre, vivendo para si
mesma.
Outros pontos apresentados foram a não valorização da herança espiritual negra na cidade, a
perda de adeptos para as igrejas neopentecostais, e o problema na mudança dos valores morais e
comunitários – perda da fé nos orixás e a diminuição da participação nos cultos, devido às
“distrações da vida moderna” (TV, bares). Os terreiros mais antigos de Maceió sentiram nos últimos
quarenta anos a fragmentação das relações comunitárias nos seus espaços. A coesão do grupo seria
prejudicada, para alguns, pela falta de comprometimento com as obrigações rituais. Para outros,
pela falta de tempo no cumprimento das obrigações. Parece surgir daí, o mesmo entendimento que
se teve em São Paulo, para a necessidade de adaptar-se às novas condições. Se, em São Paulo, a
chegada do candomblé nordestino surgiu se adaptando, em Maceió, as necessidades de mudança
pareceram se infiltrar nos terreiros lentamente, até os anos 1980. De forma mais acelerada, deu-se a
partir dos anos 1990. A desvalorização da herança religiosa (não continuada pelas famílias dos pais
e mães-de-santo falecidos) parece indicar em Maceió, a perda do esforço (pessoal e econômico)
para manter o culto. Perdia para as “facilidades” de outras experiências religiosas. Muitos dos
familiares que não deram continuidade aos terreiros passaram por um processo de conversão às
igrejas neopentecostais. Estas concorreram diretamente nas periferias com uma ofensiva às religiões
afro-brasileiras, estratégia generalizada em todos os lugares em que se alojaram. Já a questão da
socialibilidade poderia ser avaliada a partir das mudanças das experiências das novas gerações. Elas
receberam outras influências da educação formal – que desvaloriza e rejeita sua herança cultural –
ou das atrações dos meios de comunicação e do “lazer capitalista”. No entanto, o mesmo processo
(modernização) estaria ocorrendo também em toda a “África negra”: (a) o embranquecimento; (b) a
desafricanização da família negra; e, (c) a assunção de valores capitalistas e de tal ideologia social.
Esses elementos, no Brasil, levariam à desagregação do Candomblé, com impacto maior que os
ataques do pentecostalismo, dos meios de comunicação etc. Afirmar isso significa entender que não
havia, pelo menos até 2003, um esforço de continuidade da manutenção dos valores afro-brasileiros,
apresentados desde cedo às crianças. A aplicação das leis de ensino de história africana e afro-
brasileira ainda está em processo, sofrendo críticas e avaliações.
(2) Tem-se, pois, a transformação que tem causado transtornos às religiões afro-brasileiras: à
“perseguição dos evangélicos”. Tanto em São Paulo como em Maceió – sabe-se que foi uma
generalização em todos os ambientes brasileiros e estrangeiros, em que ocorreu a expansão
neopentecostal, desde os anos 1970 – tal situação despertou diferentes reações por parte das
lideranças afro-brasileiras. Desde revidar com confrontos mais abertos, até aqueles que esperaram
conseguir manter uma disputa teológica para garantir os espaços próprios. Das muitas análises que

283
surgiram vale lembrar a do impacto negativo nas religiões afro-brasileiras. Tem sido sentido
fortemente nas últimas décadas e as reações parecem lentas, comparadas ao seu inverso. Ou seja, o
maior acesso aos meios organizados de propaganda e pregação por parte dos neopentecostais
impediria respostas rápidas ou com a mesma eficiência dos afro-brasileiros. Em São Paulo e Maceió
têm se contato com a aplicação da Lei 10.639/2003 nas escolas para auxiliar no combate ao racismo
e à intolerância, para fixar um espaço cultural à religião negra.
(3) Relacionado às mudanças de visibilidade das religiões afro-brasileiras surgiu também
certa percepção do processo de folclorização da religião negra. Foi acelerada, na visão das
lideranças, a partir dos anos 1970. Em São Paulo, percebia-se tal perspectiva mais fortemente nas
falas que remetem a esse período (1970 e 1980), dos mais velhos. Os sacerdotes e sacerdotisas mais
novos pareciam não identificar o problema da mesma forma; ou a reforçar outros aspectos das
mudanças, como se viu na questão da transmissão dos conhecimentos. Em Maceió, também foram
as lideranças mais antigas aquelas que reclamaram da “carnavalização” da religião. Julgam
expressada na exibição de trajes mais elaborados nas festas públicas e da interferência “profana”
(bebidas, farra) nos rituais sagrados. Pensa-se que tal “folclorização”, para os mais velhos, remetia,
às vezes, ou ao movimento de africanização, ou às atividades de apresentação artísticas que
passaram a ser correntes nesse período. O esforço de visibilização das religiões afro-brasileiras,
dependendo do olhar, parecia reforçar a idéia das elites de que tais manifestações estariam longe de
ser “sagradas” ou “religiosas”. A dificuldade de entrar na estrutura religiosa do Outro, ou a simples
negação de seu valor sagrado, deu margem a muitos “abusos”. Seriam o contrário dos valores afro-
brasileiros, principalmente, para aquele movimento anti-sincretismo que passou a se colocar em
1983. Avanços e recuos – recordem-se do movimento do axé e da ginga– entre auto-afirmação e
subordinação indicariam que tal elemento de transformação histórica lidava com as mudanças das
gerações, momento em que os mais jovens assumiam a liderança. Houve uma tomada de decisões
no modo como as religiões afro-brasileiras deveriam se inserir mais livremente nas cidades.
(4) Com isso, conflitos internos a respeito do acesso aos “segredos dos cultos” e a
transmissão dos conhecimentos apareceram também como preocupantes, para os adeptos das
religiões afro-brasileiras. Em São Paulo, essa questão foi posta no relacionamento entre os
iniciandos e a hierarquia sacerdotal. Ali as relações de confiança e respeito intermediam o repasse
do conhecimento. Os jovens reclamavam, tanto na Umbanda quanto no Candomblé, dos sacerdotes
que negavam acesso aos conhecimentos. Para alguns, isso expressava somente controle de poder e
risco de perda de força (axé). Para outros, significava levar em conta a estrutura da religião afro-
brasileira, sua oralidade e necessidade de compromisso para que os conhecimentos fossem
repassados. Por outro lado, no embate das gerações, o acesso aos materiais de consulta, livros

284
acadêmicos, informações vinculadas na internet e outros, pareciam dissipar a idéia da existência
ainda de segredos, o que levou os jovens a questionarem a qualidade das informações passadas por
seus superiores. Pode-se dizer que a redução dos prazos para o fiel incorporar-se como parte ativa
dos terreiros gerou também uma expectativa de formalização da passagem dos segredos e da
obrigatoriedade generalizada de tal passagem.
Em Maceió, por sua vez, o repasse dos conhecimentos teria sofrido mudanças por conta da
maior “banalização” e/ou menor rigor na formação do sacerdócio afro-brasileiro. Para os mais
velhos, a intenção de muitos em comercializar a religião teria levado a uma situação de desrespeito
a preceitos com aceleração do tempo de iniciação. Nas duas cidades, viu-se a preocupação – que por
sua vez também seria uma resposta às acusações – com o charlatanismo, a falsidade e o uso das
religiões como meio de aplicar golpes. Em São Paulo, foi tentado por algumas federações exigir
fiscalização dos órgãos municipais contra os charlatães. Imagine a Igreja Católica pedindo à
prefeitura local para avaliar seus procedimentos... Em Maceió, tal comércio ambulante de videntes
não existia abertamente em vias públicas, apesar da corrente distribuição de panfletos no centro da
cidade. Afirmou-se, em outro momento, que a crise econômica, o aumento do desemprego, além da
falta de perspectivas profissionais, teria levado alguns a vender serviços mágico-religiosos. Isso de
modo independente das relações estabelecidas nos terreiros. Muitos pais e mães-de-santo iniciaram
sua carreia sacerdotal a partir do atendimento individual a uma clientela de classe média e alta.
Atrair clientes e seus filhos daria condições para a abertura de casas maiores, ou a estruturação dos
terreiros ou tendas.
(5) Partindo daí, tradição versus inovação tem sido apresentada nas mudanças e adaptações
realizadas nos rituais afro-brasileiros. Em São Paulo, a mudança de relação teria se dado, como
afirmado acima, por necessidade. O ambiente urbano não permitia a reprodução idêntica dos rituais
semi-rurais nordestinos, principalmente, para o Candomblé. Portanto, a iniciação e o papel dos
gêneros nos rituais foram destacados como soluções de adaptação. Sobre a iniciação, a partir dos
anos 1970, percebeu-se uma diminuição de seu tempo de recolhimento ritual; quanto aos gêneros a
maior participação de homens, segundo suas lideranças, deu-se pelo risco da “perda de axé”. Em
Maceió, a diminuição do rigor da regras de limpeza ritual e resguardo deviam-se também às
adaptações da vida moderna. O “axé” continuaria sendo passado na iniciação, mas de “modo”
diferente. Ou seja, pais e mães-de-santo passaram a selecionar dos rituais aprendidos no seu tempo
aqueles que lhes pareciam ser essenciais para transmitir aos filhos. Estavam conscientes de que isso,
às vezes, dava permissão para que o filho reproduzisse outras tantas alterações. Tanto em São Paulo
como em Maceió, a autonomia dos sacerdotes e sacerdotisas em suas casas, apesar de causar tais
diferenças que se acentuaram nessas décadas, ainda seria algo a ser respeitado. Não haveria

285
soluções consensuais entre eles. Também para a Umbanda, a tentativa de integração de rituais, em
modelos específicos, dominou os debates rituais, ao longo do século XX. Já em Maceió, destacou-
se nas mudanças rituais, para certa liderança, a percepção do aumento do culto à entidade
Pombagira, reflexo do aumento da participação de homens nos rituais, em um movimento de
mudança no papel dos gêneros no culto. A presença dos homossexuais foi diretamente identificada
ao culto daquela entidade, popularizada a partir da influência da Umbanda. Tem tido muita presença
nos cultos traçados. De todas as mudanças rituais, algo preocupante seria a percepção da
diminuição da força testada do transe. Ou seja, o enfraquecimento das tradições e muitas inovações
nos rituais, levariam a uma perda de força religiosa e de contato com os orixás e entidades. São
exemplificados nos “transes falsos”. Esta é essa uma questão moral que muito incomoda os
religiosos.
De modo geral, tanto em São Paulo como em Maceió, as maiores críticas às mudanças
rituais vieram das lideranças mais velhas. Estas demonstravam dificuldades em aceitar certas
mudanças, refletindo, por vezes, preconceitos; por exemplo, em relação à presença de homossexuais
ou transsexuais. Sua participação é aceita desde que “comportando-se direitinho”. Os mais jovens
assumiram a presença homossexual como algo a ser publicizado a favor das religiões afro-
brasileiras, principalmente, no Candomblé. É religião de tolerância e acolhimento ao “diferente”.
De fato, a presença de homossexuais nos cultos afro-brasileiros sempre existiu. Assim também
como em qualquer outra religião. A diferença estaria na maior liberdade de expressão dada à opção
sexual nas últimas décadas. Ocorre hoje a inclusão na hierarquia afro-brasileira de qualquer pessoa,
independente de gênero e sexualidade. Também teria mudado o posicionamento político das
chamadas “minorias”, identificadas a partir dos anos oitenta (mulheres, negros, gays etc.). Foi o
movimento social desde temáticas de luta dos movimentos parciais, da oposição aberta contra o
capitalismo e contra a Ditadura militar, para a defesa da democracia. Aqui se incluíram na pauta as
questões de gênero, cultura, povos indígena e religiosidade, sem maiores alterações no modo de
produção e na estrutura do sistema social. Postas como demandas a partir da Constituição de 1988,
certas lideranças afro-brasileiras fizeram do papel político representativo uma das tarefas de seu
sacerdócio.
(6) Isso remete à última transformação histórica destacada para as religiões afro-brasileiras
em São Paulo e Maceió: o aumento de ações de valorização e resgate da memória e história da
presença religiosa negra nesses locais. As falas das lideranças religiosas nas duas cidades se
aproximavam muito. Havia a diferença de se ter uma afirmação da necessidade de participação
política partidária mais explícita em São Paulo. Em Maceió, a estratégia de luta eleita parece ser
mais cultural e de demanda por políticas públicas, voltadas para o resgate étnico e para a educação

286
étnico-racial. Como afirmado acima, a “longa transição” do processo de democratização após o fim
do período militar, somou-se ao processo global de auto-afirmação e valorização das populações
africanas e negras. Foi desde os anos 1960 que as lutas anti-racistas nos países africanos e da
diáspora acirraram-se: pelos direitos civis nos EUA, de independência dos países africanos – em
especial, Angola, Moçambique; contra o apartheid na África do Sul. Houve os movimentos nas
artes, da politização das demandas dos movimentos negros no Brasil, entre outros. Parece inegável
que esse longo e difícil processo de emancipação das populações negras no mundo tenha se
refletido, especialmente, nas diferentes religiões de matriz africana, por toda a parte.
Em cinquenta anos, aproximadamente, as religiões afro-brasileiras passaram por
transformações históricas que alteraram suas designações de cultos, estrutura ritual e litúrgica, as
relações com o meio social. Viram-se refletidas as questões étnico-raciais (etnoculturas), e, aí em
especial, se explicitou a denúncia contra o racismo estrutural. Alteraram-se também as formas de
ataque do “uniculturalismo assimilativo”, em que a perseguição político-religiosa, através da
repressão policial e da criminalização foi trocada por uma perseguição religiosa e de
subalternização política. As dificuldades para se garantir os direitos de livre expressão e de uso dos
espaços públicos mantiveram-se na desvalorização, via instituições públicas, da herança cultural
negra.
Vêem-se dois exemplos atuais, ocorridos no ano de 2011: (a) a derrubada final em 07 de
outubro da casa em São Gonçalo, onde se deu o nascimento da Umbanda; a prefeita evangélica
daquela cidade negou-se a assumir, junto com a prefeitura, responsabilidade pela situação do
prédio. Sem embargo para seu tombamento, apesar da mobilização e das demandas apresentas pelas
federações de culto e seus representantes.410 E, (b) a entrada na Assembléia Legislativa de projeto
de lei que prevê a proibição do sacrifício de animais em rituais religiosos no Estado de São Paulo.
“O projeto nº 992/2011 foi apresentado na Assembléia Legislativa no dia 11 de outubro. A
proposta, de autoria do deputado Feliciano Filho (PV), vem causando polêmica entre praticantes de
religiões de origem africana e defensores dos animais”.411
A recorrente polemização em torno dos sacrifícios nas religiões afro-brasileiras intensificou-
se em São Paulo com a existência de tal projeto. Traz uma série de debates e respostas dos
religiosos. O autor do projeto, o deputado Feliciano Filho (Partido Verde) seria “cristão e

410
Diferentes notícias vinculadas em jornais eletrônicos informavam o fato, no período de 04 a 11 de outubro de 2011.
Berço da Umbanda é destruído em São Gonçalo. Extra Globo, 04/10/2011. Disponível em
http://extra.globo.com/noticias/religiao-e-fe/berco-da-umbanda-destruido-em-sao-goncalo-2716043.html. Data de
acesso: 11/11/2011.
411
Jornal Cidade. Pai Henrique explica sacrifício de animais em ritos religiosos. 30/10/2011. Disponível em
http://jornalcidade.uol.com.br/rioclaro/intervalo/religiao/83326-Pai-Henrique-explica-sacrificio-de-animais-em-ritos-
religiosos. Data de acesso: 11/11/2011.

287
vegetariano”. Sobre isso, uma notícia informava, que “o projeto de lei 992/2011 proíbe o sacrifício
de animais em práticas de rituais religiosos no estado de São Paulo”. Prevê multa de “300 Ufesp
(Unidade Fiscal do Estado de São Paulo) ou 5,2 mil para cada infração, dobrando de valor em caso
de reincidência”. 412 A proposta provocou protestos. O presidente do Fórum de Sacerdotes do Estado
de São Paulo e do Instituto Nacional de Defesa das Tradições de Matriz Afro-Brasileira, Tata
Matâmoride, teria afirmado segundo a notícia:
"Já entramos em contato com o presidente da Assembleia para informar que esse projeto é
inconstitucional." Ele cita o artigo V da Constituição, que estabelece que "é inviolável a
liberdade de consciência e de crença, sendo assegurado o livre exercício dos cultos religiosos
e garantida, na forma da lei, a proteção aos locais de culto e a suas liturgias".413

Já o autor do projeto, Feliciano Filho respondia que,

(...) reconhece que a ideia é polêmica, mas afirma que "a liberdade de culto vem depois do
crime de crueldade". Ele estima que os contrários ao projeto são uma minoria. "Não sei de
onde virá a pressão, só sei que é uma minoria. Tem de valer o interesse da sociedade. Não
pode valer o interesse de classe. Não queremos cercear a liberdade de culto", afirma. O
deputado está convencido de que a proposta, que começa a ser analisada pela Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ), deverá ser aprovada e afirma que vai tentar ouvir as pessoas que
podem sentir-se afetadas pela proposta. "A gente vai tentar porque tem muitos projetos em
andamento, quando [o projeto] estiver mais perto da ordem do dia. Mas a proposta não tem
vícios de iniciativa e é constitucional", afirma.414

A fala de Filho traz uma construção de discurso, em que as práticas religiosas afro-
brasileiras afetariam o “interesse da sociedade”. Tal “inversão democrática” baseia-se no
desconhecimento e desvalorização da prática cultural alheia. Procurava impor, através de leis
coercitivas um padrão de cultura e comportamento, além de uma ideologia religiosa. A notícia
encerrava afirmando que,
Tata Matâmoride, que também é conselheiro do Fórum Interreligioso da Secretaria de Estado
da Justiça e do Comitê de Cultura de Paz da Assembléia Legislativa, afirma que a proposta
revela "hipocrisia". "Todo mundo fica defendendo animalzinho, mas ninguém deixa de usar
sapato de couro", afirma. De acordo com ele, caso propostas como essa sejam válidas, deve
haver também a restrição ao sacrifício de animais no Natal. O religioso diz que iniciativa
igual não prosperou em Piracicaba, no interior de São Paulo, onde foi vetado em 2010 pelo
prefeito Barjas Negri. "Já houve iniciativa igual em Piracicaba, mas não colou, porque não é
competência do estado legislar sobre esse assunto", diz.415

O discurso fortemente ideológico por trás de tais propostas é mais que hipócrita. Revela o
tratamento profundamente desigual entre as religiões no Estado brasileiro. Seria, no mínimo, um
desserviço à democracia. No máximo, um ataque direto às religiões afro-brasileiras.

412
Portal Globo. Projeto de lei proíbe sacrifício de animais em rituais religiosos em SP. São Paulo, 18/10/2011.
Disponível em http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2011/10/projeto-de-lei-proibe-sacrificio-de-animais-em-rituais-
religiosos-em-sp.html. Data de acesso: 11/11/2011.
413
Portal Globo. Projeto de lei proíbe sacrifício de animais em rituais religiosos em SP. Op. cit.
414
Idem, op.cit.
415
Idem, op.cit.

288
Sobre o caso da Umbanda, a narrativa de uma dessas notícias detalhava a repercussão
daquele fato, e seria interessante por explicitar mais a atualidade e o prolongamento no tempo das
relações conflituosas entre as religiões afro-brasileiras e as esferas sociais e políticas. Eis,
A estrutura metálica já está pronta para receber o telhado do novo galpão que vai ocupar o
número 30 da Rua Floriano Peixoto, em Neves, São Gonçalo. Dentro do terreno, uma casinha
centenária aguarda a demolição marcada, segundo o proprietário, ainda para esta semana.
Poderia ser uma simples obra, não fosse um detalhe: a casa rosa, com a pintura já castigada
pelos anos, é a última testemunha do nascimento da umbanda. Foi no imóvel — que ocupava
o centro de uma chácara, no início do século 20 —, que Zélio Fernandino de Moraes, então
com 17 anos, dirigiu a primeira sessão da religião. Era 16 de novembro de 1908. A umbanda
é a única manifestação religiosa 100% brasileira. — A demolição nos deixa muito
decepcionados, pois perdemos uma referência da chegada da mensagem do Caboclo das Sete
Encruzilhadas — diz Pedro Miranda, presidente da União Espiritista de Umbanda do Brasil,
em referência à entidade que orientou Zélio a fundar a religião. 416

Segundo a notícia, “há mais de cem anos com a família de Zélio”, o imóvel foi vendido
recentemente, para o militar Wanderley da Silva. Este pretenderia “transformar o local em um
depósito e uma loja”.417 Continuava a nota afirmando que, de acordo com o Iphan (Instituto do
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional), “nunca houve um pedido de tombamento do imóvel”. A
antiga casa não era também protegida pelo governo estadual ou pela Prefeitura de São Gonçalo. O
impacto no meio umbandista foi grande. Deixaria entrever as dificuldades de articulação política. A
“peregrinação” por espaços de culto parecia indicada, ainda segundo a nota, as andanças da tenda
de Zélio de Moraes. Segue,
(...) O terreiro de Zélio de Moraes — que recebeu o nome de Tenda Espírita Nossa Senhora
da Piedade — funcionou por pouco anos em São Gonçalo. Os primeiros umbandistas
mudaram-se logo para o Rio de Janeiro. Primeiro, o centro funcionou na Rua Borja Castro,
na Praça Quinze. A rua foi extinta, na década de 1950, para a construção da Perimetral. Dali
foram para a Avenida Presidente Vargas. O imóvel também foi demolido, dessa vez para dar
lugar ao Terminal Rodoviário da Central do Brasil. Uma nova mudança e mais uma
demolição. A casa 59 da Rua Dom Gerardo, em frente ao mosteiro de São Bento, virou um
estacionamento. — Tudo acabou, eram prédios muito antigos. Lamento que o último registro
também vai desaparecer. Mas o mais importante é que os ensinamentos do meu avô se
perpetuem — pediu a neta de Zélio, Lygia Cunha, que hoje preside a Tenda Espírita Nossa
Senhora da Piedade. O terreiro agora funciona em uma sede própria, em Cachoeiras de
Macacu, no interior do estado.418

O reconhecimento dos valores e das criações culturais e religiosas negras como patrimônios
de importância nacional não se dá, ainda hoje, no mesmo nível de valoração de outras religiões nas
cidades, em especial, das cristãs. Nesse sentido, têm-se historicamente situações de insegurança na

416
Disponível em: http://extra.globo.com/noticias/religiao-e-fe/casa-onde-foi-fundada-umbanda-em-sao-goncalo-sera-
demolida-esta-semana-2682118.html#ixzz1dPtI74Fe. Data de acesso: 11/11/2011.
417
Berço da Umbanda é destruído em São Gonçalo. Extra Globo, 04/10/2011, op.cit.
418
Berço da Umbanda é destruído em São Gonçalo. Extra Globo, 04/10/2011, op.cit. A notícia encerrava informando
que: “Antes de ser vendida, a casa onde nasceu a Umbanda abrigou uma capela católica. A última moradora do imóvel,
uma descendente de Zélio que é muito católica, cedeu o espaço para os devotos. Quem administra a igrejinha — que
também mudou de endereço — é dona Geraldina dos Santos, de 74 anos. — Não tenho preconceito, não. Todos somos
filhos de Deus. Se a religião nasceu lá, a casa devia ser preservada. É importante — disse”.

289
manutenção das casas de culto e das práticas religiosas. Se os desafios continuam sérios, suas
lideranças têm tomado posições mais afirmativas. Átila Nunes e Átila Nunes Neto, da Tenda
Espírita Fraternidade da Luz – Casa do Caboclo Sete Encruzilhadas escreveram um manifesto de
repúdio à demolição e à atuação da prefeita Aparecida Panisset. Nele analisavam o significado
desse acontecimento para a Umbanda, comparando sua história a das outras religiões.
Resumidamente, aqui se destaca os pontos considerados mais esclarecedores da posição dos
sacerdotes.
(...) Esse episódio encerra várias lições para todos nós, umbandistas. Existem dezenas de
terreiros de Umbanda e Candomblé que têm história. E que devem ser preservados, não pelo
simples fato de serem terreiros, mas, sobretudo, pelo seu significado cultural. O maior
exemplo de preservação de templos históricos vem da Igreja Católica, que – com a ajuda
governamental – mantém intactas igrejas centenárias, algumas tombadas e reconhecidas
como patrimônio mundial pela Unesco. Em todo o Brasil, temos terreiros que são conhecidos
por denominações diversas: Umbanda, Candomblé, Catimbó, Xangô, Batuque, Jurema etc,
conforme o Estado de origem. Alguns têm quase 100 anos. E devem ser preservados através
de um movimento que parta de nossos irmãos em cada estado brasileiro. Como foi a Casa de
Menininha do Gantois, na Bahia. De quem é a responsabilidade nesse episódio de São
Gonçalo, em que o centro onde Zélio de Moraes anunciou a criação da Umbanda, foi
demolido em abril [sic] deste ano? 419

No manifesto, os autores, indicavam que a filiação religiosa da prefeita havia sim,


influenciado a sua decisão de não interferência à demolição. Diziam que, a mídia de São Gonçalo
havia “denunciado os benefícios governamentais” destinados pela prefeita para os “neopentecostais
gonçalenses: igrejas, funcionários, carros e contratação de religiosos”. Ela ainda teria ameaçado
“proibir a tradicional procissão e o tapete de sal de Corpus Christi”, tradições católicas. O manifesto
encerra fazendo um resumo do processo histórico da Umbanda e das religiões afro-brasileiras, das
dificuldades encontradas e superadas.
Nenhuma outra religião no Brasil foi mais perseguida, humilhada, vilipendiada e agredida do
que a Umbanda. Nenhuma! Primeiro, foram os colonizadores que impingiram o sincretismo
religioso aos escravos. Depois, vieram as proibições aos cultos, que partiam de ordens das
autoridades, chegando ao cúmulo das invasões pela polícia dos terreiros, com médiuns
presos, atabaques e símbolos religiosos destruídos. Depois, na década de 80, grupos de ditos
neopentecostais, na verdade, membros de seitas eletrônicas, fizeram de tudo para destruir a
Umbanda, notadamente no Rio de Janeiro. A certeza de que seriam vitoriosos era tão grande,
que partiram para cima da Igreja Católica, chegando a exibir na TV imagens de "bispos"
chutando a imagem de Nossa Senhora da Aparecida. Não conseguiram nos destruir. Não
fecharam os terreiros. Não calaram nossos atabaques. A Umbanda continua. Sem dízimo.
Sem recursos. Sem emissoras de Rádio e TV. Sem ajuda do governo. Nada. Continua graças
à fé nos espíritos de luz. Por isso, a demolição da casa onde Zélio de Moraes anunciou a
Umbanda, é apenas mais um episódio – doloroso, é verdade – na caminhada da nossa
religião. Daqui a um ano, a hoje prefeita Aparecida Panisset deixará a prefeitura de São
Gonçalo. Pode até conquistar um ou outro cargo político. Mas, seu destino final está
traçado: o ostracismo, o mais absoluto esquecimento. Daqui a mais alguns anos, ninguém
se lembrará de quem foi Aparecida Panisset. Em São Gonçalo, um ou outro se lembrará da
ex-prefeita. Não deixará boas lembranças. Nenhum legado administrativo. Ou grande obra.

419
Demolição do berço da Umbanda. Disponível em
http://www.tefl.com.br/site/index.php?option=com_content&view=article&id=235:demolicao-do-berco-da
umbanda&catid=43:textos-tefl&Itemid=124. Data de acesso: 11/11/2011. Grifos do texto.

290
Nada. Ninguém no Estado Rio de Janeiro, e muito menos do Brasil, se lembrará de uma
prefeita, que num dos municípios com maior desigualdade social do Estado do Rio de
Janeiro, foi denunciada por proibir a procissão de Corpus Christi e demolir a primeira casa de
Umbanda. Aparecida Panisset desaparecerá no resíduo da História. A Procissão de Corpus
Christi e a Umbanda continuarão vivas. Vivas na memória e nos corações dos brasileiros.
UMBANDA UNIDA, UMBANDA FORTE! Átila Nunes e Átila Nunes Neto.420

O discurso do valor cultural como justificativa para a preservação das heranças afro-
brasileiras ainda parece ser o melhor argumento. Talvez o melhor aceito na sociedade em geral.
Nesse manifesto estão dadas aqueles elementos destacados na pesquisa: a valorização cultural, o
resgate da memória histórica e a valorização do indivíduo e do coletivo negros. Trazia, por fim, a
indicação da continuidade no tempo das religiões afro-brasileiras, de sua capacidade de auto-
regeneração. Todas as transformações históricas indicadas, no período de 1970 aos anos 2000,
expressaram os modos de reprodução das religiões afro-brasileiras como “recriações continuadas”.
Os modelos de culto foram ressignificados, com a inclusão de novos elementos e explicações. Neles
o “mítico” e o “moderno” encontravam-se na reelaboração dos sentidos e significados dos
elementos dos cultos e das experiências históricas afro-brasileiras. Nesse sentido, o medo da perda
do axé ou de seu enfraquecimento e a denúncia daquilo que lhe afeta. Expressavam, de fato, os
conflitos, as lutas para a manutenção e o direito de existir como religião no Brasil. Aqui, resgata-se,
a fala de Cidália de Iroko, ao afirmar que “o axé nunca se quebra, quem se quebra são as pessoas”.
Parece que as religiões afro-brasileiras, historicamente, puderam-se desenvolver na dialética da
criação/destruição, procurando garantir a continuidade de sua herança etnocultural.
A essência da culturalidade negra teria permitido seu enraizamento na diáspora. O
“multiculturalismo associativo”, para usar a expressão de Barbosa, daria respaldo a tal variação no
tempo e no espaço. Por todo o Brasil, portanto, no período aqui analisado, as religiões afro-
brasileiras afirmaram-se como detentoras do direito à livre associação e existência, suas lideranças
passaram a enxergar seu protagonismo na história e a exigir tratamento de igualdade e,
principalmente, de respeito como religiosos. O prolongamento dos problemas ainda enfrentados
estaria vinculado, como visto, na estrutura capitalista de exploração do negro, sob as ordens de um
Estado racista. Estas se apresentam na fascistização das relações com os movimentos sociais ou,
com aqueles que lhes são contrários.
As experiências históricas das religiões afro-brasileiras, em São Paulo e Maceió, no período
contemporâneo destacado, se aproximaram e se distanciaram na medida em que tais cidades seriam
exemplos do “progresso” e do “atraso”. Independentemente de se estar no Sudeste ou no Nordeste,
o Estado brasileiro tratou, como já disse alguém, “a patas de cavalo” a população negra e sua

420
Demolição do berço da Umbanda, op. cit.

291
cultura. A má distribuição de renda mantém o tão conhecido “fosso” entre as classes sociais no país.
Para a população negra, o “abismo social” parece pouco ter sido mitigado nas últimas décadas.
Enquanto prevalecer as estruturas de Estado que permitem a reprodução da prática e da ideologia
racista, muito “axé” será necessário ainda, para superar tal quadro.

Auto-afirmação e valorização como perspectivas projetivas para as religiões afro-brasileiras


A luta para a desconstrução do racismo estrutural e sua ideologia, parece-me, portanto, o
grande “turning point”, a ser considerado na segunda metade do século XX. Foi o “momento de
virada” do paradigma de posicionamento da população negra, africana e da diáspora. Não que esta
luta não vinha se tanto há muitos séculos. Ela se deu sempre nas mais diferentes situações, da
escravidão, do colonialismo e do neocolonialismo, do século XV à atualidade. O que mudaram
foram as condições em que agora se apresenta. O estudo das religiões afro-brasileiras, neste
período, ajudou a esclarecer tal virada. Sentiram elas fortemente as mudanças advindas do novo
momento histórico. As religiões foram duramente perseguidas e sofreram especialmente o impacto
do conflito entre as etnoculturas. Isso porque são as portadoras dos valores comunitários, do
fundamento da ideologia negra e as aglutinadoras dos seus produtores culturais.
O destaque a esses elementos torna-se importante. Segundo Nkolo Foé, por muito tempo,
para o “universalismo moderno” europeu, o “pertencimento do negro à espécie humana não era uma
evidência”. O mesmo seria para a “possessão da razão, da capacidade de criar a cultura e da
civilização”. Tais considerações foram feitas, segundo Foé, “no cerne do Iluminismo como
evidenciado por filósofos desta época, David Hume e Immanuel Kant”. Estes teriam afirmado a
“inferioridade congênita do Negro”.421 Os reforços ideológicos das filosofias modernas serviram
como instrumentos de dominação do continente africano. A exclusão do “ser negro” do gênero
humano e “mesmo da história” teria se dado articulada com o avanço capitalista. Para Foé, “esta
questão está relacionada com a maneira como o capitalismo imobiliza a história dos povos vencidos
ou a maneira como este regime obriga as nações exploradas a executar tarefas repetitivas”. Assim, a
“exploração dos vencidos” não seria possível sem a “imobilização da cultura indígena e sem a saída
do vencido da história anterior”. Isto seria, para Foé, o que “Aimé Césaire chamou de a perda da
iniciativa histórica”.422
Assim, a “retomada da iniciativa histórica” foi apresentada por Foé como a “solução” para o
problema do “negro como bloco histórico oprimido ou como humanidade explorada”. Daria a

421
Nkolo FOÉ. A questão negra no mundo moderno, p. 60. In Sankofa. Revista de História da África e de Estudos
da Diáspora Africana. Ano IV, nº 8, Dezembro/2011, pp. 59-82.
422 422
Nkolo FOÉ. A questão negra no mundo moderno, p. 63.

292
perspectiva da “construção na África de uma grande potência política, econômica, científica,
tecnológica, cultural e militar”. A afirmação do africano como “homem histórico”, seria para ele, o
caminho da “libertação” do continente.423
As reflexões atuais de Foé podem ser retomadas conjuntamente, com outras feitas por
pensadores brasileiros. Abdias do Nascimento, ainda nos anos 1980, chamava a atenção para a
“antiguidade da “memória afro-brasileira”. Esta serviria segundo Nascimento, para a “revisão
crítica das definições e dos julgamentos pejorativos” que pesavam “há séculos sobre os povos
negro-africanos”.424 As condições de exploração do trabalho dos negros e indígenas, durante a
escravidão e também no pós-abolição, teria gerado, para Nascimento, “a necessidade urgente para o
negro de defender sua sobrevivência e assegurar sua existência de ser”. Resultaram daí, os
quilombos. Estes, por sua multiplicação e constância teriam sido “um autêntico movimento, amplo e
permanente”. Foi a organização dessas “sociedades livres” um verdadeiro movimento de resistência
dos africanos escravizados que se recusavam “à submissão, à exploração e à violência do sistema
escravista”. A este movimento Nascimento chamava de quilombismo. Se estruturava em “formas
associativas que tanto podiam estar localizadas no seio das florestas de difícil acesso, facilitando
sua defesa e sua organização econômico-social própria, como também podiam assumir modelos de
organizações permitidas ou toleradas, frequentemente com ostensivas finalidades religiosas
(católicas), recreativas, beneficentes, esportivas, culturais ou de auxílio mútuo”.425 Para
Nascimento, essa “rede de associações” (irmandades, confrarias, clubes, grêmios, terreiros, centros,
tendas, afochés, escolas de samba e gafieiras) foram e “são os quilombos legalizados pela sociedade
dominante”; junto aqueles outros que seriam “ilegais”. Porém, os dois tipos formavam uma
“unidade única” de “afirmação humana, étnica e cultural, a um tempo integrando uma prática de
libertação e assumindo o comando da própria história”. Abdias do Nascimento indicava na teoria do
quilombismo a “práxis afro-brasileira”.426
Tal força de aglutinação funcionou como “estratégia e tática” para o povo afro-brasileiro. O
quilombismo, funcionava, segundo Nascimento, por ser fator capaz de “mobilizar
disciplinadamente”, por seu “profundo apelo psicossocial”, cujas raízes estariam “entranhadas na
história, na cultura e na vivência dos afro-brasileiros”. A importância disso se expressaria na

423
Nkolo FOÉ. A questão negra no mundo moderno, p. 78.
424
Abdias do NASCIMENTO. Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da população
afro-brasileira, pp. 202-203. In NASCIMENTO, Elisa Larkin (org.). Sankofa 4. Matrizes africanas da cultura
brasileira. Afrocentricidade: uma abordagem epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009.
425
Abdias do NASCIMENTO. Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da população
afro-brasileira, p. 203.
426
Idem, op. cit.

293
“continuidade dessa consciência de luta político-social” que se estenderia por todos os lugares onde
existe população de origem africana. Para Nascimento, por fim,
O modelo quilombista vem atuando como ideia-força, energia que inspira modelos de
organização dinâmica desde o século XV. Nessa dinâmica quase sempre heróica, o
quilombismo está em constante reatualização atendendo a exigências do tempo histórico e
situações do meio geográfico, circunstância que impôs aos quilombos diferenças em suas
formas organizativas – porém, no essencial se igualavam. (...) Percebe-se o ideal quilombista
difuso, porém consistente, permeando todos os níveis da vida negra e os mais recônditos
meandros e/ou refolhos da personalidade afro-brasileira. Um ideal forte e denso que, via de
regra, permanece reprimido pelas estruturas dominantes e, outras vezes, é sublimado pelos
vários mecanismos de defesa fornecidos pelo inconsciente individual ou coletivo.427

O ideal quilombista de “luta político-social” seria parte importante da alavancada das ações
realizadas pelo movimento negro e negro-religioso, nos últimos trinta anos. Foé e Nascimento
apostavam na consciência emancipadora do sujeito histórico africano e afro-brasileiro e na
capacidade organizativa existente na sua cultura. O lugar das associações religiosas negras
destacava-se, portanto, como espaços em que este ideal era vivenciado no cotidiano. O perigo delas
para a ordem escravista e capitalista explicitava-se em sua força intrínseca. A identificação e a
ligação, entre as populações africanas e afro-brasileiras (entre outras), seriam claramente perigosas
formas de resistência.
Ressalta-se aqui, o olhar “desde dentro” da cultura e das religiões negras. Marco Aurélio
Luz, explicava sua estrutura de valores próprios. Segundo Luz,
O que torna comum a todas as culturas negras e caracterizam uma estrutura de valores
invariantes na continuidade do processo civilizatório africano nas Américas são as
instituições religiosas, das quais se irradia uma linguagem que estrutura uma identidade, pela
qual o negro luta e afirma sua existência própria. Essas instituições são constituídas pelo
culto aos ancestrais e aos ancestres, pelo culto às forças cósmicas que governam o universo,
pela percepção de mundos visíveis e invisíveis, ou seja, existência concreta e existência
genérica, caracterizados por uma tensão dialética permanente, pelo conceito de oferenda e de
forças vitais circulantes, pela manifestação das entidades e finalmente pelo conceito de Deus,
ou da existência infinita.428

Para Luz, o “mundo negro, com sua ordem de valores próprios”, caracteriza-o como uma
“ordem sócio-comunitária que visa acumular gente”. Teria como objetivo o “fortalecimento do ser
humano, para que cumpra seu destino, e reforce a contínua circulação da força vital através das
oferendas e homenagens aos ancestrais e às forças cósmicas que governam o mundo”. Estes valores
estariam em contraposição aos “valores dos brancos”. A partir do “Renascimento e da ascensão
sócio-econômica da burguesia, erige a acumulação de bens e cada vez mais abstratamente, a

427
Abdias do NASCIMENTO. Quilombismo: um conceito emergente do processo histórico-cultural da população
afro-brasileira, p. 204.
428
Marco Aurélio LUZ. Agadá. Dinâmica da civilização africano-brasileira, p. 563.

294
acumulação do ouro, do dinheiro”, ou aquela “representada na escrita contábil”, como “valor
unívoco equivalente geral a todos os valores”.429
Eis aqui um ponto de dissenso entre os autores. Para Foé, em seu artigo citado, a insistência
no “vitalismo” e no “culto aos ancestrais”, seria um dos erros do movimento da Negritude e da
Etnofilosofia. Estes serviriam como uma “ratificação ideológica da exclusão do negro na História”.
Argumentava Foé que “numa situação de dominação, o capitalismo se caracteriza pela
especialização das tarefas”. Seria assim que, “este regime expulsa os povos vencidos da história
universal e os relega na particularidade”. Segundo Foé, “a Negritude e a Etnofilosofia não foram
capazes de apreender este aspecto do capitalismo”. Uma vez que refletiriam “de um ponto de vista
cultural, a particularidade característica de um universo dominado, explorado, e excluído da história
universal” dar-se-ia o “sentido da rejeição da razão e do universalismo, o elogio da intuição, da
emoção, do instinto”.430 Foé analisa tais elementos como o “culto da diferença e a reinvidicação da
essência negra”. Representariam a Negritude (“doutrina da servidão”) e a Etnofilosofia um
“sintoma de uma crise cultural profunda ou um índice de que o povo africano já perdeu a iniciativa
histórica”.431
A crítica de Foé estaria fincada na preocupação da situação de exploração do capitalismo no
continente africano na atualidade. No debate com outros autores, Foé contrapõe-se às perspectivas
pós-modernas, segundo ele, “presentes na doutrina da negritude”. Estaria colocado, para ele, “a
questão da ruptura do laço entre o poder de explicação do mundo e a capacidade de transformar este
mundo”.432 Assim, compreende-se melhor sua perspectiva na assunção da “iniciativa histórica”,
para a inclusão do continente no jogo mundial das potências. O que não fica claro, seria a
incompatibilidade, vista por Foé, entre os elementos da essencialidade africana e a capacidade de
tomar a iniciativa histórica para as mudanças. Sem reproduzir as críticas feitas por ele, pertinentes
por sua vez, aos autores pós-modernos; para isso, remete-se ao artigo; quer-se insistir aqui que: a
elaboração de uma teoria explicativa sobre a luta africana e afro-brasileira, contra o capitalismo e a
favor da emancipação dos povos negros, necessitou da retomada de uma visão interna, valorativa e
afirmativa das esssencialidades africanas e afro-brasileiras. Serviram para por – pelo menos em
termos de discurso – em pé de igualdade as populações negras em relação às branco-europeias, num
campo específico de debates. O valor intrínseco da cultura e da história africana foi rompido, ou
melhor, interrompido pelo colonialismo à força das armas. O espalhamento da ideologia racista foi,
por séculos, fortificado pelas religiões cristãs, com suas máquinas evangelizadoras massacrantes, e

429
Marco Aurélio LUZ. Agadá. Dinâmica da civilização africano-brasileira, p. 564.
430
Nkolo FOÉ. A questão negra no mundo moderno, p. 64.
431
Nkolo FOÉ. A questão negra no mundo moderno, pp. 64-65.
432
Idem, op. cit., pp. 68-69.

295
na força da cultura capitalista, consumidora de bens. Entende-se que a capacidade de criar “trabalho
especializado”, como diria Foé, desarticulou à força, as bases materiais capazes de resistir a ele. A
reconstituição dessas bases e dos seus valores e ideologia, só poderiam, porém, ser feitos ao se olhar
criticamente para o passado, vislumbrando o futuro. Por isso, afirma-se a visão projetiva
vislumbrada nas culturas africanas e afro-brasileiras através de sua auto-afirmação e valorização.
Ora, este debate problematiza, por outro lado, a percepção de muitos jovens negros que,
cotidianamente bombardeados pelas mídias e pela educação racista, rejeitam suas raízes culturais e
não vêem nelas, fatores que irão ajudá-los a “melhorar de vida”. Quanto não são os produtos
culturais negros “pasteurizados” pela indústria cultural, e nisso mesmo, desvalorizados ou postos
como inferiores em termos de qualidades “artísticas”. A religião negra seria, por sua vez,
negativada ao extremo como “demoníaca” e “atrasada”.
Sugere-se dessa forma, a insistência naquela capacidade de luta político-social do
Quilombismo (Nascimento), como também na introdução de uma “iniciativa histórica” (Foé). Esta
última se daria de forma mais orgânica, a partir do olhar interno dos valores culturais negros (Luz).
A dialética de mudança está presente exatamente na ideologia afronegra, como demonstrado neste
trabalho (ginga, axé). Seria na valorização de si e dos seus, na auto-afirmação dos modelos de vida,
essencialmente diferenciados do capitalismo, que se processariam as condições de aglutinação de
forças políticas para as transformações históricas, favoráveis aos povos africanos e afro-brasileiros.
Segundo Barbosa, “o negro está de pé”! Isso porque tem contribuído para “construir a
pedagogia da diferença no Brasil”. E, “longe de excluir os direitos dos outros, o movimento negro
tem-se batido por um debate crítico dos defeitos de nossa sociedade, de suas práticas racistas, das
vantagens unilaterais concedidas às elites ou à etnocultura dominante”. Expressaria esta luta,
segundo ele, “uma proposta libertadora para todos e não apenas para si próprio”.433 A dinâmica
libertadora assumida, então, pelos movimentos negro e negro-religioso, foi indicada como presente
naqueles elementos culturais e na força associativa dos terreiros etc. A historicidade está ali e, por
isso, não são presas ao passado escravista e de dominação. Na força da continuidade-mudança (axé)
estabelecem o elo entre as heranças valiosas do passado africano e afro-brasileiro, com os desafios
atuais do racismo e as miragens do futuro que se busca construir. Como na epígrafe deste capítulo,
o negro africano e brasileiro pode afirmar-se: “sou meu senhor, meu dono e rei, na força de
Oxalá”.

433
Wilson do Nascimento BARBOSA. Cultura negra e dominação, p. 131.

296
Conclusão
Esta pesquisa defendeu, como ideia central que, a compreensão da história das religiões
afro-brasileiras, entre 1970 e 2000, deve levar em conta seus elementos internos, ideológicos e
epistemológicos. A sua profundidade explicativa para a sociedade e o cosmos, apreendida a partir
das mitologias afronegras e das práticas comunitárias, funcionaria como elemento de grande valor e
auto-afirmação, na luta anti-racista no país. A cultura brasileira e sua identidade seriam melhor
apreendidas a partir do processo histórico das religiões negras. Os impactos das mudanças na
sociedade, da modernização e urbanização nos grandes centros, atingiram a organização dos
terreiros e suas práticas litúrgicas, naqueles modelos estabelecidos entre fins do século XIX até os
anos 1950. Resultaram, mais fortemente nas décadas seguintes, em uma série de adaptações e
mudanças que lidaram com os desafios postos para a manutenção do “axé”, da continuidade das
linhagens de filiação religiosa e seus cultos. Porém, a busca por um espaço social e de garantias
contras as perseguições e devassas das décadas anteriores, teve um impacto maior ainda na tomada
de decisão das lideranças religiosas. Principalmente, no modo como se dariam as articulações
políticas e o estabelecimento de redes de apoio entre os diferentes terreiros e tendas. A intenção
dessas era criar condições de se sobrepor aos problemas advindos do ambiente capitalista urbano.
Confirmou-se, por outro lado, a hipótese de que a vida comunitária nas periferias
estabeleceu as bases de sobrevivência material e de disseminação ideológica das religiões populares
no Brasil. No caso das religiões afro-brasileiras, estas possuem um “valor em si” inegável como
religião no stricto sensu. São formas burocráticas de ligação com o sagrado e os deuses. Possuem as
estruturas mitológicas, ritualísticas e ideológicas responsáveis pela geração de sinergia no grupo,
através do canto, da imantação, do transe, da cura, da louvação, dos sacrifícios etc. A ética
comportamental dessas religiões, baseada nas relações entre os humanos, os deuses e os espíritos
antepassados, e principalmente, entre os membros da “família-de-santo”, favorecem a troca de bens
para a sustentação da vida material dos mais pobres. Sustentam, mais ainda, a saúde psíquica e
indicam um lugar favorável de valor e de direito do negro brasileiro.
O enfrentamento cotidiano do racismo destacou-se nas respostas elaboradas sobre a história
das religiões negras, feita por suas lideranças e seus membros. Viu-se nas mágoas ainda presentes,
na revolta em relação às injustiças vividas e na preocupação com a continuidade do “axé”. Mas,
também estava presente nas saídas e festas públicas, nas tentativas de promoção das religiões junto
aos órgãos públicos, na busca de justiça nos tribunais e na auto-afirmação do sujeito. Como
cidadãos com direitos inalienáveis, os religiosos afro-brasileiros indicaram um aumento de
conscientização do seu lugar social. As transformações históricas foram entendidas como
problemáticas, mas ao mesmo tempo, irreversíveis. Caberia, portanto, aos membros das religiões

297
afro-brasileiras saberem diferenciar o que seria importante nelas. O que se manter como força de
continuidade da religião e aquilo que, poderia e deveria, ser mudado para garantir essa mesma
continuidade.
Tanto como quaisquer outras religiões, os religiosos afro-brasileiros afirmaram ser o
Candomblé, a Umbanda ou outra tradição afronegra, capazes de ajudar os indivíduos a “melhorar de
vida” na sociedade. São elas portadoras de valores de sociabilidade, em que os esforços de
solidariedade pelo avanço dos sujeitos no grupo retornam como força e avanço do coletivo. O
processo educativo das crianças e jovens foi entendido e assumido, dessa forma, como estratégias
combinadas entre a pedagogia da cultura negra, das artes, da música, da dança, com o uso das
tecnologias da informação, dos espaços de promoção cultural e do resgate da memória histórica
local e da África.
A história ou a historicidade, não estaria, portanto, fora da ideologia e da prática religiosa
afro-brasileira. Os orixás, como “forças dinâmicas da história” (Nascimento) alimentariam as
ideações referentes às explicações da ontologia do ser social. Esse ponto insistido e reforçado em
vários momentos neste trabalho, redimensionaria para o estudioso da história afro-brasileira o local
de onde se fala e se produz a história. Esta, como afirmado por Lindoso, se dá “na vida social”. Os
sujeitos históricos afro-brasileiros, passaram de modo mais amplo, a escrever e refletir a própria
história. Esse fato tem incomodado muito alguns âmbitos “acadêmicos”. As universidades públicas
e privadas, resistem em suas estruturas: (a) através das grades curriculares “tradicionalistas”; (b) e,
através do apoio dado em forma de bolsas e outros fomentos, a determinados temas de pesquisa em
detrimento de outros. A “obrigatoriedade” das leis federais e estaduais parece ainda ser entendida
como uma intromissão de “esquerdismos” no mundo do “conhecimento”. A noção de
“obrigatoriedade” negativa a real necessidade social das políticas de ação afirmativa. Estas são
atacadas sem piedade na mídia, com reforço dos mais “conceituados intelectuais” de best sellers.
Esta pesquisa pode verificar, por outro lado, que a valorização e auto-afirmação das religiões
afro-brasileiras compuseram um quadro favorável de esforço coletivo dos terreiros e suas lideranças
por espaço social e cultural. Isso significa que, nos últimos trinta anos, as religiões afro-brasileiras
não puderam mais ser invisibilizadas. Os ataques das igrejas evangélicas e de seus políticos, a
demonização e a tentativa de interferir nesses avanços, são os desafios de maior atualidade. A
consciência desta problemática cresceu junto às ações das federações de culto e redes de templos
que procuram apoio jurídico e político para tal enfrentamento.
A Igreja Católica parece ter mantido, no período estudado, uma relação baseada na
subalternização das religiões afro-brasileiras. Oficialmente favorável ao “fim do sincretismo”
mantém ainda hoje, uma dificuldade congênita em relacionar-se com tais religiões em pé de

298
igualdade. Poucos teólogos, agentes de pastorais leigos e fiéis conseguiram passar pelo processo de
“conversão” a “causa dos pobres” e do negro no Brasil. A proximidade de discursos entre os
movimentos de base católicos e o movimento negro no período de fins da Ditadura militar até a
abertura política, expressaria o eco das lutas das esquerdas por uma sociedade não baseada no
modelo de produção capitalista. Por um período, a Pastoral do Negro, no campo católico, teria
procurado aproximar as duas frentes de luta. Porém, as dificuldades em se aceitar a “verdade do
Outro”, teria mantido certa limitação de perspectivas. Seria um tema a ser estudado em outro
momento.
Quanto às religiões afro-brasileiras, estas não rejeitaram ou negaram aos católicos e cristãos
suas “verdades de fé”. No movimento da africanização e do anti-sincretismo, afirmou-se, tão
somente, o direito de existir em suas próprias bases e o respeito às suas práticas religiosas. A
hierarquia afro-brasileira, mais antiga, por sua vez, manteve, nessas décadas, uma experiência
religiosa e um pertencimento de fé duplo ou, “múltiplo”. As religiões populares católica, afro-
brasileira e espírita funcionaram com o entrelaçamento das forças espirituais e de coesão nos
ambientes das periferias urbanas. Ali o peso da solidariedade e mesmo os conflitos entre as diversas
casas estabeleciam as diferenças internas, mas criavam também as identidades de irmandade que
possibilitavam, entre outras coisas, criar associações que pudessem defender os seus interesses.
A importância das federações de culto foi apresentada, neste trabalho, ao se destacar suas
ações de defesa pública das religiões afro-brasileiras. O complexo conflito étnico-social e a
perseguição do Candomblé e da Umbanda em todo o país, ajudariam a explicar as contradições
internas dessas instituições. Algumas vezes cooptadas pelo poder político-econômico das elites, por
outras antagonistas de tais interesses. Teriam conseguido, mesmo que de forma limitada,
estabelecer canais de negociação com os poderes públicos e as elites políticas. Para os terreiros
menores, nas periferias, foram proteção, e, também, mais uma estrutura de dominação. O fato é que,
ao burocratizar mais as relações dos terreiros e tendas entre si e com o espaço social macropolítico,
deram as bases para a articulação política que poderia vir a ser uma força de proposição para os
interesses da população negra. Parecer ser esta a etapa em que se encontram as federações, pelo
menos nos casos estudados.
Portanto, em São Paulo e Maceió, atualmente esta seria a função destacada das federações.
Estabelecer um campo de luta para as demandas afro-brasileiras. O chamamento pela “união dos
terreiros” para a eleição de representantes foi apresentado continuamente. No entanto, os ambientes
urbanos de São Paulo e Maceió apresentavam graus diferenciados de desenvolvimento econômico e
social. A interferência político-militar nas federações, entre os anos 1970 e 1980, mesmo com
táticas semelhantes indicavam objetivos imediatos diferentes. Em São Paulo a intenção era

299
desarticular a interferência da esquerda nos terreiros e tendas, ou pelo menos, preveni-la, e alcançar
ao mesmo tempo, apoio popular. Em Maceió a interferência direta visava desarticular uma
organização negra independente, que pudesse expressar qualquer tipo de resistência ao regime e ao
governo local. Na evolução das religiões afro-brasileiras nesses espaços, as interferências dos
militares nas federações indicaram, portanto, situações de conflito social e étnico.
Pode-se comprovar que a relação das religiões nos espaços geográficos do Nordeste e do
Sudeste, fortificou, entre os anos 1970 e 2000, uma “rota do sagrado”, prolongada até a África e
outros países das Américas e Europa. As trocas simbólicas e materiais, proporcionadas por tal rota,
exemplificariam outro modo de prolongamento no tempo e de dispersão do “axé” das casas
brasileiras. A plasticidade dessas trocas, o “ir e vir” dos sacerdotes e sacerdotisas, expressou-se
como estratégias das religiões afro-brasileiras. Estas utilizaram sua experiência histórica de
adaptabilidade em diferentes condições sociais, econômicas e políticas para fincar raízes e
disseminá-las pelo mundo. A diversidade dos ambientes sociais, do Nordeste e do Sudeste, deu o
tom das mudanças e adaptações mais sentidas pelos religiosos afro-brasileiros. Entendidas no
cotidiano, por um lado, como “perigosas” para a religião, indicavam, por outro lado, novos meios
de atender às necessidades dos mais pobres nas periferias, e da classe média, sua cliente.
Tal como em África, ao se confrontarem com os desafios do colonialismo e do pós-
colonialismo, os “sacerdotes-médicos-magos” procuraram, dentro das adaptações realizadas, manter
os elementos dos cultos mais importantes: (a) a louvação e o sacrifício aos orixás e entidades –
força da ancestralidade e da memória histórica do grupo; (b) a cura física e psíquica dos indivíduos;
e, (c) os oráculos como veículos de ligação entre o mundo humano e o espiritual. O estudo
comparativo entre a evolução das religiões africanas e afro-brasileiras aproximava os dois
continentes. A comprovação da concomitância de desenvolvimento de certos elementos dos cultos
(“terapias do tambor”, por exemplo), necessitaria de outros dados para o entendimento deste
processo em longo prazo. Para alguns pesquisadores, estas proximidades se iniciariam no período
colonial, e se entenderiam até hoje.
As problemáticas, gerais e específicas, postas como guia para esta pesquisa, foram
respondidas. Questionava-se, (1) o modo como as religiões afro-brasileiras conseguiram manter
seus espaços sagrado-profanos, no ambiente desagregador do capitalismo. (2) Como enfrentavam
as tentativas de desarticulação dos espaços comunitários em ambiente mercadológico e em
constante defesa dos ataques de outras religiões. (3) Como as transformações sócio-religiosas foram
percebidas por seus sacerdotes e membros. (4) Como a percepção do ritual se dava como abertura à
alteridade. Estaria a ancestralidade ligada à preservação da memória histórica? E, por fim, (5) qual a

300
importância dada pelos candomblecistas e umbandistas aos discursos de valorização étnica dos
movimentos negros.
Como visto a solução para os problemas da manutenção das religiões afro-brasileiras nos
espaços desagregadores deu-se na adaptação e elaboração de estratégias em que certos rituais e
práticas foram simplificados (iniciação, tempo de resguardo, papel dos gêneros, fortificação de
certas entidades, como a Pombagira etc.). Também o enfrentamento às perseguições religiosas e às
desarticulações do ambiente mercadológico, deu-se ao buscar a criação de federações de culto e
associações que pudessem buscar representatividade política e cobrar as autoridades públicas.
Todas as mudanças que afetaram as religiões foram percebidas para os sacerdotes como desafios e
riscos de perda de axé. Para alguns deles, a própria realidade da religião permitira a sobrevivência e
reprodução em longo prazo. Para outros, o perigo real da “quebra do axé” somente poderia ser
vencida com a mudança no quadro social, do lugar da religião afro-brasileira e do negro. Ou seja, a
continuidade-mudança, dada às religiões afro-brasileiras, necessitaria vencer ainda o racismo. Para
isso, entendiam como importante a valorização da culturalidade negra, das experiências
comunitárias nos terreiros e tendas, onde a memória histórica africana pudesse ser invocada e
preservada. Finalmente, soma-se nessas proposições, o entendimento da importância, não somente
dos discursos de valorização e auto-afirmação, mas também das ações afirmativas, e propostas
políticas de combate ao racismo e à exclusão.
Quer-se, com isso, afirmar que as preocupações iniciais da pesquisa, ao entrar em contato,
com as fontes e a realidade social das religiões afro-brasileiras, foram confirmadas como os pontos
nevrálgicos da história contemporânea do negro no Brasil. Intentava-se ver as possibilidades de se
escrever uma história de tais religiões em que seus agentes fossem considerados como sujeitos
explicadores dos processos estudados. Isso não quer dizer, uma amarra da crítica. O
comprometimento em desvelar e ajudar a desconstruir o racismo estrutural do Estado brasileiro,
compõe junto aos pressupostos teórico-metodológicos o ferramental do “ofício do historiador”
contemporâneo. Os tempos vividos por minha geração estão em constante diálogo com a memória
da Ditadura militar, com as promessas de desenvolvimento econômico neoliberal e com a
problemática da exploração crescente da classe trabalhadora. O aumento da riqueza no país, na
última década, ou, pelo menos, o crescimento econômico destacado pelo governo, parece se dar
junto ao avanço da “direita”. Ou exatamente, em resposta a ele. A violência dos governos estaduais,
só para ficar-se no exemplo de São Paulo e Alagoas, expressam uma retomada de militarização e
fascistização política, por vezes apontadas neste trabalho. A ofensiva desses governos sobre os
movimentos sociais, estudantis e populares, não mais se dá ao trabalho de esconder o ódio racial das
elites pelo povo. Ao negar ao seu povo a distribuição equitativa da produção, dos valores gerados de

301
seu trabalho, condena-o à dependência dos esquemas clientelistas e de corrupção. O descrédito às
instituições democráticas no país, seria outra consequência da exploração.
A população afro-descendente, em proporção numérica, seria a maior vítima desses
desmandos. Foi, em vários momentos do passado, e pode novamente vir a ser, uma grande força
política de transformação histórica. Está, atualmente, representada em diferentes movimentos e
setores da sociedade brasileira. A dinâmica da culturalidade negra no Brasil e a memória africana,
ao serem promovidas continuamente, como “força vital” (“axé”), projetará no futuro a sociedade de
direito e de respeito que se busca.

302
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ANEXO 1 – DIÁRIOS DE CAMPO E ENTREVISTAS

Disponibiliza-se aqui parte do material de pesquisa colhido durante as pesquisas de campo


entre 2008 e 2011. Os interessados podem contatar por email para maiores esclarecimentos ou
acesso a outros: [email protected]
(1) Diário de campo – 27/09/2008
Festa da Oxum do Pai Juvenal no Ilê Axé Odé... (Rito Ketu) – 36 anos de raspado.
Ribeirão Pires – SP.
Saímos da Vila Formosa, zona leste de São Paulo, às 20:45hs. Passamos na casa de Ligia (irmã de santo de
Ana) e a esperamos ela terminar de se arrumar. Levamos no carro duas crianças (gêmeos, menino e menina de 14 anos)
filhos de uma vizinha de Lígia que também é iniciada. Esta levou uma boneca para presentear Oxum.
Durante o percurso tentei entrevistar Ana na medida do possível. Passamos em Mauá para dar carona a outra
irmã de santo (D´Ogum) mas não a encontramos. Ana me contou que o Terreiro que estávamos a caminho está somente
ha um ano e meio em Ribeirão Pires em uma chácara que o Pai Celso de Oxóssi comprou para lá construir sua casa e
roça. Antes, por 12 anos a roça era em Mauá, mas havia muitos problemas com vizinhos que chamavam a polícia
quando havia toque.
O caminho até Ribeirão Pires foi longo, passando pela periferia de SP e grande SP. Atravessamos a Serrinha.
Ana me disse que esse era um antigo caminho que levava a baixada. Chegamos à chácara às 22:15hs. O caminho de
entrada é uma ladeira calçada com palmeiras e árvores pintadas de branco pela metade no caule. Todas as construções

309
são pintadas de branco. Há uma garagem à esquerda da casa que já estava cheia de carros. Já ouvimos na chegada o som
dos atabaques e de cantos.
1) A casa principal onde vive o Pai Celso, Pai Juvenal, um filho deles e mais algumas pessoas, familiares de
sangue e de santo. Há um pequeno alpendre com vasos de plantas, uma sala ampla ligada a uma cozinha (meio
vazia, só há um freezer, pia e algumas coisas no chão, restos de construção ou reforma). Também ligados à
sala dois quartos com portas.

2) Saindo do alpendre em frente um caminho de pedra leva a uma cozinha e banheiro externos. Dois cachorros
estavam por perto, um filhotinho e um maior.

3) Saindo pelo lado direito da casa principal, muitas plantas, árvores, percebe-se que se está em cima da serra. Há
um canteiro grande, alto, em cima dele 4 assentamentos. Vasos grandes de barro com alça, ornados com panos
de diferentes cores. Pude identificar um azul e branco (Oxóssi), um colorido de amarelo, laranja e tons de
marron e vermelho (Oxumaré?), um branco (Oxalá) e outro que não pude identificar.

4) No fundo, ao lado esquerdo o roncó, com duas portas de divisão, dando duas entradas independentes. Na
parede haviam peles de cabras esticadas.

5) A frente, ao fundo, o barracão também pintado de branco. Seguindo pelo lado direito do barracão há mais uma
construção com tanques para lavar roupa, uma sala grande que servia de sala de jantar e uma cozinha. O
barracão tem duas portas de entrada sem janelas. Estava todo enfeitado com hortênsias e folhas de palmeira.

Ao entrar no barracão o toque já havia começado. Todos vestidos de branco. Um número maior de mulheres na
roda, alguns jovens, uma menina de uns 7 anos. Giravam virados para o centro da roda onde estava o mastro
(axé) todo enfeitado de flores amarelas, vermelhas e ramos verdes. Um grande pilão de madeira ao lado do
mastro, ao chão um cesto encoberto com pano branco. O mastro liga-se ao teto. Pendurado bem próximo ao
mastro no teto um grande vaso, não se pode ver seu conteúdo, vê-se algumas plantas. Pensei ser um
assentamento ou o assentamento do axé do terreiro.
O toque era em ritmo tranqüilo. Os rodantes dançavam tranquilamente, cantando cantigas para cada orixá. Em
alguns momentos se ajoelhavam em direção ao centro ou tocavam com os dedos o chão do terreiro (era piso
azulejado) e a cabeça. Às vezes se cumprimentavam beijando a mão e o resto de companheiros que chegavam.
No centro da roda, ao lado do mastro, estava a mãe-pequena (de Oxóssi) com salto alto, tocando um tipo de
chocalho ou sineta. Percebi alguns jovens iaôs (três rapazes, um de Oxum, estava com bata amarela e muitos
colares e anéis de ouro; outro todo de branco com um grande colar azul ao pescoço, Ogum; e um bem
magrinho e pequeno, todo em branco, não consegui identificar o orixá dele) que pude identificar por dançaram
descalços, sempre cumprimentando os mais velhos de cabeça baixa ou se prostrando ao chão.
A cada chamada de orixá mudavam a coreografia – algumas vezes voltadas para o centro, outras vezes seguia
em roda indiana, rodando em sentido anti-horário.
Os visitantes até esse momento eram 20 pessoas, umas 7 crianças (pré-adolescentes e pequenos), alguns casais.
Um casal trazia cada um pendurados no ombro tecidos bonitos; uma senhora de uns 50 anos também trazia um
tecido assim pendurado ao ombro. Percebia-se que alguns eram parentes dos rodantes e também alguns pais e
mães de santo de fora. Ao final desse toque entra Pai Celso com um menino e uma moçinha de Oxum. Eles
dançam, fazem reverência para o centro do terreiro, param em frente aos atabaques, pára a música. Pai Celso
apresenta os jovens como novos de Oxum que se celebrava nesse dia. Ele lhes desejou bênçãos e eles
receberam palmas da comunidade. Em seguida muda-se o toque para Oxum. Os atabaques tocam mais rápido.
São tocados com varinhas – o maior era tocado com 1 varinha e mão, o segundo com duas varinhas e o terceiro
com mão. Os jovens dançam.
No final desse toque fez-se um intervalo. Salgadinhos foram distribuídos aos presentes. Havia três cadeiras ao
lado dos atabaques. Pai Celso sentou-se na sua cadeira, a do centro. É a mais alta, em madeira preta com um
tecido verde no assento, ornada no espaldar com estatuetas africanas; as menores no mesmo estilo estavam
uma de cada lado desta. Do seu lado sentou-se um pai de santo visitante.
Fui apresentada a eles por Ana. Também fui apresentada ao babalaô Luiz Antonio de Ogum e sua esposa a
Ialorixá Soninha de Oxumaré. Eles têm terreiro em São Bernardo. Nesse momento a maioria dos rodantes
havia saído do barracão. Voltam aos poucos e se posicionam para o recomeço do toque. Ao se recomeçar pai
Juvenal, todo de branco, entra. Reverencia o centro do terreiro e se prostra ao chão. Dança, cumprimenta os
tambores e ao pai Celso. A gira continua em ritmo mais acelerado. Alguns iaôs dão sinal de entrar em transe. O
rapaz de Ogum em especial de conduzido para fora. Alguns dos pais de santo convidados, entram na roda com
pai Juvenal e pai Celso, cada um vão 1 por 1 pegando os chocalhos que estavam cesto coberto com pano
branco ao lado do pilão. O som dos chocalhos torna mais bonito o toque, com diferentes variações de ritmo e
rapidez. Vai se intensificando até pai Juvenal entrar em transe. Nesse instante todos os rodantes entram em
transe, inclusive iaôs.

310
É lindo!
Pai Juvenal é conduzido pelas equedes para fora – para a quartinha – para vestir sua Oxum. Os rodantes em
transe ficam distantes dos tambores em transe e sendo cuidados pelas equedes. Aí começa o toque para cada
um dos orixás presentes. Vão sendo chamados, penso que por ordem hierárquica do rito: 1º. Oxóssi; 2º
Oxumaré; 3º Ogum; Iemanjá, Logunedé, Euá, Iansã... Não consegui marcar todos. Cada um com sua
coreografia, um de cada vez são guiados por uma equede, cumprimentam os tambores, alguns se jogam ao
chão, outros gritam. Um ou outro insistem em dar mais voltas na roda, e são aos poucos conduzidos para fora.
Esse toque para todos durou cerca de 50 minutos. Os ogãs tocando se revezavam às vezes. As cantigas vinham
uma atrás da outra.
Quando o último orixá dança. Dá-se novo intervalo. Nesse ínterim converso com Rosangela (rodante) de
Iemanjá. Ela não pode participar por estar com crise de labirintite. Ela me aponta as pessoas entre rodantes e
ogãs e me conta que está na casa de pai Celso há treze anos. Seu marido e filhos também são iniciados. Viu
muita gente crescer dentro do terreiro. Comenta de Elisangela, já “velha de santo”, na verdade jovem. Seus
filhos também, o menor, foi raspado com um ano no braço do pai. Diz que o terreiro é uma família, todos
cuidam da vida e do bem estar uns dos outros.
Ao recomeçar o toque noto a maior presença de visitantes e chegam mais chefes de terreiro. Estes entram
agora na roda que fica mais colorida. Com um toque mais rápido e ao som de fogos de artifício entra Oxum,
toda vestida, segurando um buquê de flores. Palmas e gritos de alegria a cumprimentam. Ela faz reverência ao
centro, dança, dança, faz alguns gestos, seu buquê é colocado na cadeira mais alta. Junto com ela também
vestidos estão Oxóssi e Oxumaré, donos da casa. Oxum é muito celebrada na roda; recebe cumprimentos,
alguns se prostam aos seus pés, ao passar perto do público alguns lhe tocam as vestes e se benzem.
Logo Oxóssi e Oxumaré sentam para tomar rum. Oxum continua dançando. O toque segue. Quando Oxum
senta Oxóssi começa a dançar, ele sai, vai Oxumaré. Enquanto este dança Oxum se levanta e começa a abraçar
e abençoar os visitantes. Abraça, recebe cumprimentos e presentes. Também ganho seu abraço e peço a benção
– ouço um zumbido vindo dela, parece corrente elétrica. Oxossi volta – dessa vez Pai Celso dança também,
Oxum dança junto com eles. De repente Pai Celso entra em transe o que desencadeia novos transes de
rodantes; ouve-se Exu, Iansã, Ogum. As equedes ficam atrapalhadas com muitos para ajudar. Os iaôs que
entram em entram são despertos para ajudar com os mais velhos. O ritmo acelera. Um dos transes mais bonitos
é de uma moça de Iansã – ela joga seu corpo para baixo (o torço) tocando o chão, dando um giro. Um pai de
santo convidado também entra em transe. Já era umas 3 horas quando se faz o último intervalo.
Volta o toque. Oxum entra novamente, novos fogos de artifício. Dança muito satisfeita. Pai Celso volta
também, não mais em transe. Oxum é o centro das atenções, dança-se muito. Os outros rodantes ficam em sua
volta, batem palma, gritam, fazem-lhe festa. Chega uma hora que toque pára, mas Oxum não quer parar, até
que um pai convidado começa-lhe a dizer: “ta bom, ta bom”. Ela recebe seus presentes nos braços, inclusive a
boneca, dança mais, cumprimenta o centro do terreiro, ao sair fogos explodem novamente, muitos aplausos, ela
vai junto com todos os outros. Continua o toque. Pai Celso volta com mais alguns que se acocoram voltados
para o centro, ele canta batendo palmas e encerra. Os tambores calam. São 4:08 hs. Começam conversas,
brincadeiras, um pai de santo convidado diz: “agora vamos comer”.
Na casa principal ficam os pais do terreiro e seus convidados importantes. Na cozinha nos fundos do barracão
os filhos e iaôs. Notei que a comida dos convidados era diferente dos outros, menos apetitosa na verdade.
Havia para os filhos e iaôs costeletas assadas o que não tinha na casa principal. Penso que pode ter a ver com
tabu alimentar de Oxum. Cumprimentei os donos da casa e conversei um pouco com Mãe Regina (ela vai me
levar em um rito Angola) e consegui carona com Mãe Fabíola de Iemanjá. Ana ficou para ajudar na
arrumação.
Voltando com Mãe Fabíola e suas duas filhas – também iniciadas – fomos conversando. Ela contou-me que
tem 25 anos de Candomblé sendo 17 de raspada. Foi iniciada na Bahia no Axé Oxumaré – rito queto. Falou de
sua árvore genealógica e da de Pai Celso. Disse que conhece muitas casas em SP desde “biqueras” até casas
grandes. Comenta também sobre muitos problemas por conta de perseguição e ofensas por parte dos
evangélicos, crentes. Na zona leste conta um episódio de, ao estar em sua casa em um toque receberem
pedradas jogadas por crentes. Fala que há um grande problema também de muitos não serem sérios, há muito
comércio o que prejudica a percepção que as pessoas têm da religião. Para ela a tradição sofre muito em SP –
por conta da busca por praticidade que tem na cidade – perde-se axé. Comenta sobre a diferença na iniciação
na Bahia e daqui, a relação entre os iniciados e a hierarquia. Apesar do tom informal é interessante seu
comentário a respeito do racismo, que a seu ver é o motivo das perseguições às religiões afro. Menos à
Umbanda, por ser mais “calma” e ao kardecismo que é de branco. Ela mesma é branca, e também recebeu
ofensas por ser candomblecista, chamaram-na macumbeira. Comenta sobre o Pe. Marcelo Rossi (MRCC) que
a seu ver é um macumbeiro enrustido, fala das religiões pentecostais que usam os ritos afros. E também sobre
o fato de ter muitos homossexuais nos terreiros. Diz ela: “para onde é que eles poderiam ir? Para a Igreja para
serem exorcizados?” diz ainda que de cada dez pais-de-santo um não é mulher.

311
Interessante que em sua família de sangue há já 4 gerações de “macumbeiros”. Sua avó cultuava voduns, sua mãe foi
umbandista, ela e os filhos de candomblé. Diz que seu filho menor diz para todo mundo ouvir que é filho de Xangô e se
alguém disser que não, ele ameaça “quebrar-lhe a cara”! compara muito Bahia e SP. Penso que serve como legitimação.
Fala da rivalidade entre os terreiros e do Candomblé com a Umbanda. Diz que o seu pai-de-santo tenta a 15 anos juntar
os terreiros para organizar alguma coisa contra a discriminação. Ela falou que em São Bernardo se a polícia pega
alguém colocando ebó na rua é preso. Ao falar sobre a iniciação compara o orixá novo a um bebê que ao nascer precisa
ser cuidado, alimentado, banhado, vestido. E da dificuldade aqui em SP em que esse ritual é feito às pressas. Perde-se
axé. Conta histórias de orixás que deram surras em seus filhos teimosos que não cumpriram as obrigações e o tempo de
iniciação. Mas que é difícil hoje em dia ver essas coisas por aqui. Ainda sobre preconceito conta que o dono de um
imóvel que ela alugava ao saber que ela é candomblecista disse-lhe que “se soubesse que ela é macumbeira não lhe teria
alugado”. Elas me deixaram em um ponto em São Bernardo onde eu pude pegar um ônibus para SP.

(2) Diário de campo - Palestra, desenvolvimento e gira na Tenda de Umbanda Nossa Casa
São Paulo, Lapa, 26/07/2009

Fui convidada por Diego Oliveira dos Anjos para fazer uma pequena palestra na Tenda de Umbanda Nossa
Casa, onde ele é filho e médium em desenvolvimento. A Tenda Nossa Casa localiza-se no bairro da Lapa em São Paulo.
No térreo de um pequeno sobrado alugado.
A palestra decorreu como um debate interessante. Em seguida pude assistir ao desenvolvimento e a gira.
Normalmente, não há visitas ou pessoas que fora que assistem aos desenvolvimentos. Por causa disso, um casal de
amigos da casa e eu éramos os únicos de fora. Onze pessoas formavam a corrente daquela noite. Todos estavam
vestidos de branco, descalços ou de meia. A sala era pequena, com carpete marrom claro, dois bancos brancos
encostados à parede. Em frente o congá, enfeitados com flores, velas, e imagens das entidades sincretizadas. Na parede
a direita uma imagem do exu Sr. Zé Pilintra.
No meio da roda havia um copo de água e uma vela acesa, podiam-se ver os sinais de um ponto riscado, mas já
quase apagado. O primeiro canto é iniciado para Exu acompanhado por palmas.
“Tem morador, de certo tem morador,
Na porta onde o galo canta,
De certo tem morador”.
Em seguida vão chamando os exus, seguindo a trova, alternando o nome do exu.
“Lá na porteira, eu deixei a sentinela (bis)
Eu deixei Seu Tranca Rua tomando conta da cancela (etc.)

Não consegui registrar todas as músicas. Consegui acompanhar seus movimentos, com as mãos para baixo e
olhos fechados. Em seguida, em seqüência cantou-se para o exu das Almas, o hino da Umbanda e o canto de abertura.
Nesse último fazem toques nos pulsos invertendo as mãos. Todos pegam suas guias que estavam embrulhadas em
toalhas brancas, cada um pega a sua, faz-se silêncio. Ajoelham-se com um joelho ao chão, colocam as guias. Rezam o
salmo: “O senhor é meu pastor”.
Depois levantam e iniciam canto para Zambi. A mãe-de-santo Mara se prostra para o congá. Coloca a toalha
branca no chão para apoiar a cabeça, com o corpo para trás. Levanta-se e em seqüencia, de acordo com a hierarquia da
casa, todos vão se prostrar e beijam o congá. Após terminarem iniciam-se os cumprimentos entre si, com beijo na mão.
E novo canto:
“Vocês que são filhos de Pemba
Vocês que são filhos de fé,
Bate a cabeça e peça a Zambi o que quiser”.

Todos batem palmas e cantam Cachoeira da Mata Virgem para Xangô, palmas e falam: salve o ponto.
Em seguida preparam a defumação. O pai da casa sai para buscar o incensário, todos fazem silêncio. Ao voltar
inicia o canto de defumação. Ele defuma o congá e todos da roda. Cada um faz gestos com as mãos para trazer a fumaça
para si, defumam suas guias, giram em torno de si mesmo, no sentido horário, para receber a defumação em todos os
lados. Depois o pai defuma todos os cantos da sala e os presentes. Enquanto isso, todos cantam com palmas:
“Mata queimou, cheirou guiné,
Vamos defumar, filhos de fé.
Defumaê ô babá
Defumaê ô babá”

Repetem-se, palmas e salve o ponto.


Outros cantos seguem. O Hino de Umbanda para defumação. Ajoelham e cantam para Pemba Zambi. Uma
filha sai da roda e traz um pouco de giz em pó e o espalha sobre a cabeça de todos. Salve Pemba.

312
Começa ciclo de cantos para os orixás. Mara fala que irão fazer uma homenagem a Nanã que representa
transmutação e os antepassados. Mara pega o chocalho para acompanhar o ritmo, cantam com os olhos fechados.
Primeiro para Oxalá, depois Iemanjá, palmas. Mara vira-se para o congá e puxa o canto para Ogum, depois Oxum,
“Vi mamãe Oxum na cachoeira, colhendo lírios para enfeitar nosso congá”.
Segue o canto para Xangô, se movimentam lentamente com olhos fechados. Para cada orixá muda o canto com
chocalho, palmas e movimentos com mãos à cabeça.
Iansã: “Deixa a gira, girar... Saravá Iansã”
Oxossi: “Oxóssi mora na raiz da gameleira, Ogum mora na Lua, Xangô lá na pedreira”. De Oxóssi canta-se para os
Caboclos.
Em seguida, salve as crianças. Cantam para Cosme e Damião.
“Cosme e Damião, a sua casa cheira,
Cheira cravo,
Cheira rosa,
Cheira flor-de-laranjeira”.
Em seguida, para Oxalá e Omolu, “Atotô Baluaiê”.
Começa o batuque e palmas. O atabaque é tocado por Mara. Fala mais um pouco sobre Nanã Buruku. Todos dizem
Saluba Nanã, o canto é mais lento com batuque.
“Saravá Nanã Burukê
Na ponta da fita tem dendê
Vamos saravá Nanã Buruké”
Cantam batendo palmas sincopadas.
Em seguida, Mara veste suas guias e faz-se silêncio. Salve caboclos, palmas. Cantam para os caboclos. “Filho
de Oxossi, vem no terreiro para...”
Mara recebe a entidade do Sr. Pena Roxa. Uma filha busca cigarro para ele. Diz salve e começa a falar,
conversa com os filhos do terreiro. Pergunta se estão bem. O pai pequeno, então, entra em transe, e chega o Caboclo
Rompe Mata. Acendem cigarro para ele. Todos dizem Salve Rompe Mata. Pena Roxa pede toco. Rompe Mata também
pede para sentar. Todos sentam no chão, menos as entidades. As entidades conversam entre si e depois se dirigem aos
filhos.
Esse é o momento do desenvolvimento. De quinze em quinze dias Mara faz com seus médiuns o
desenvolvimento. As entidades de manifestam e respondem questões e dúvidas de seus filhos sobre o processo de transe
e outros. Inicia dizendo que nesse dia trabalharão na força dos caboclos. Com o propósito sempre de servir e evoluir,
tanto o médium quanto a entidade.
Um dos filhos pergunta para qual entidade dar passagem, quando no início do transe sentir duas entidades, o
caboclo e o Tranca Rua, por exemplo. Diz que na última gira em que esteve tocando para os caboclos ele sentiu que o
Tranca Rua queria se manifestar. Pena Roxa diz que ele faltou no último desenvolvimento. O filho responde que nem
sempre consegue o dinheiro para vir todos os sábados. Pena Roxa responde então que ele deve estudar, rezar de onde
estiver, trabalhar. Não quer dizer deixar a entidade se manifestar onde quiser, mas estudar para firmar a entidade, assim
controlar o afastamento e a aproximação. Outra filha diz que também tem esse problema parecido, com a entidade
Verinha (erê) e a Baiana. Verinha parece ser muito persistente. Pena Roxa diz que exu e erê são entidades próximas do
plano material por isso sua incorporação acontece com mais permanência.
Outra pergunta: Por que sinto dor-de-cabeça depois da incorporação?
Pena Roxa responde que é por causa das energias suscetíveis. Os médiuns são muito sensíveis às energias. Por isso, no
desenvolvimento só devem vir os filhos da casa para não ter a energia misturada com energias de fora. Ele diz que é
diferente do que teve hoje que foi palestra, mas não é para fazer assistência no dia de desenvolvimento. Diz que bater
palmas, por exemplo, serve para limpar as energias que estão à volta. É um ritual para preparar.
Outra filha pergunta sobre as entidades que não se identificam. Por quê? Pena Roxa responde que elas ainda estão em
crescimento, se adaptando ao médium. O ori é como se fosse o portal da casa que recebe a energia que é a entidade. Há
diferentes energias e vibrações do corpo. Os orixás do fogo e da água têm diferentes vibrações. Deve-se ter a
sensibilidade de perceber a energia, com o tempo o médium vai perceber essa mudança de energia. É uma adaptação.
Uma filha diz que sente as mãos e pés gelados e que outras vezes sente as mãos suando. Outra filha comenta que sente
que às vezes a energia se acumula na cabeça quando o orixá ou entidade vai falar, ou às vezes parece que a energia
desce para os braços e pernas na hora de se movimentar. Pena Roxa diz que é assim, compara com o nascimento de um
bebê. Nenhum bebê já nasce dizendo o nome dele e dos pais e onde mora. É preciso adaptação da entidade no corpo do
médium. Chegará um momento em que o médium não sentirá mais os incômodos. Brinca dizendo que uma hora não se
sente mais nada. Para aqueles que têm mais dificuldades, Pena Roxa diz que vai conversar com as entidades deles hoje
assim que elas chegarem.
Pena Roxa faz um pequeno discurso falando sobre a importância do aprendizado, da busca pelo conhecimento, da busca
pela melhoria na vida e que é importante que tudo o que aprendemos, possamos passar pra frente ensinando. Vira-se pra
mim, e me pergunta, não é assim? Eu respondo que sim.

313
Então, pergunta aos filhos se há mais alguma coisa. Começam as conversar sobre o cotidiano da casa. Diz que
no próximo lugar (casa) que forem se instalar não deve haver esse chão de carpete, deve ser outro. Vira-se para Rompe
Mata e pergunta por que o cavalo dele estava cantando tão bonito nesse dia, Rompe Mata responde que estava espiando
o filho e que sempre é bem vindo e bem recebido nesse terreiro, por isso o cavalo cantava bonito. Alguém brinca
dizendo que já era Rompe Mata que estava cantando.
Todos brincam e riem.
Pena Roxa diz que nesse dia irão fazer a limpeza de ori para melhorar as incorporações. Ele havia pedido no
último desenvolvimento que todos trouxessem um pedaço de sabão da costa, uma toalha branca, um sebo branco (vela).
Diego sai para buscar uma gamela com água e uma cabacinha cortada usada como cuia. Outra filha traz pires que
coloca em baixo do congá. Nem todos irão fazer a limpeza, somente cinco. Enquanto tudo é preparado Pena Roxa
explica o processo e que os filhos devem levar o sabão da costa para casa e usar todos os dias para lavar a cabeça até
acabar o sabão. Diz que o cabelo fica duro, então, podem no dia seguinte lavar com shampoo normal. Explica como
será a lavagem do ori. Diz que quando forem colocar a vela no congá, devem rezar para os protetores, fazendo seus
pedidos, com alegria. Um por um então se ajoelham em frente a Pena Roxa, com a cabeça abaixada no rumo da gamela.
Pena Roxa pega o sabão da costa, passa um pouco na cabeça do filho, pega um pouco de água da gamela com a cuia de
cabaça e enxágua duas vezes, em seguida pega a toalha branca coloca na cabeça do filho, a mãe pequena entrega-lhe a
vela acesa. Ele faz uma cruz com a vela acesa na frente da cabeça do filho, três vezes, em silêncio, faz uma pequena
pausa no final. Entrega a vela acesa para o filho, esse se levanta, com a toalha ainda na cabeça, vai até o congá e coloca
sua vela acesa embaixo no seu pires respectivo. Depois o filho volta pra a roda, senta-se ainda com a toalha na casa,
concentrado. Um por um, os cinco fazem a lavagem. Faz-se muito silêncio nesse momento. Quando termina, Pena Roxa
diz para pai do terreiro levar a gamela e devolver para a terra a água. Pena Roxa diz que já podem tirar a toalha e
guardar seu sabão da costa. Pede que no próximo desenvolvimento todos levem uma semente de obi, não o seco, aquele
que fica na água. A Mãe pequena do terreiro anota em um papel o pedido de Pena Roxa.
Diz que agora eles vão fazer o trabalho do dia. Todos então saem para pegar pequenas lousas, uma filha traz
um saquinho com pembas (giz branco gordinho) e distribui aqueles que vão fazer o desenvolvimento. Todos ficam em
pé. Pena Roxa pega o chocalho e canta para os caboclos, passa o chocalho em cada um dos da roda, todos estão de
olhos fechados. Poucos cantam nessa hora. Esperam a vinda das entidades. Chamam os caboclos. Pena Roxa vai se
aproximando de alguns deles, coloca a testa na testa, põe a mão na nuca do filho. Percebo a respiração de alguns se
acelerando. O transe vai se dando. Rompe Mata bate no peito e se movimenta. Transe vai se dando para todos, fica
somente uma menina cantando.
“Caboclo, caboclo
Vem com sua pena,
Em nome da Virgem Maria”
Todos entram em transe.
Rompe Mata roda em torno de todos. O visitante puxa um canto do Caboclo Rompe Mata da Jurema.
Diego é levado para o centro da roda e ainda está trabalhando no transe. A menina busca o livro de cantos para cantar
outros.
Alguns se movimentam com braços e cabeça. Transe de Diego se dá, começam-se os cumprimentos, batendo os pulsos,
em todos da roda. Lembra a ginga. Menina vai acendendo cigarros para os caboclos presentes. Pena Roxa vai saldando
a todos. As lousas são postas na frente das entidades. Pena Roxa vira-se para o congá e desenha seu ponto na frente
deste. Rápido e com o traço firme. Nesse momento canta-se “Caboclo firma seu ponto”. O transe não firma para todos.
Pena Roxa vai dando um giz na mão de cada um que está em transe. Enquanto isso, esses vão se curvando ou agacham
para ir desenhando na lousa, outros cânticos acontecem. Quando terminam Pena Roxa vai um por um conversando com
os caboclos, pergunta o nome deles, e sobre o desenho. Alguns fazem o ponto, outros alguns riscos, um deles não
consegue desenhar. Depois que conversa com cada um, pede que eles limpem o ponto com a toalha. Alguns ficam
ajoelhados com a cabeça baixa.
A Mãe pequena sai do transe. Cantam.
“caboclo, firma seu ponto,
Na pontinha do cipó,
A meia-noite na lua,
Ao meio-dia no sol”.
Pena Roxa pede para recolherem as lousas e pede cigarro, puxa canto para despedir os caboclos.
“Caboclo apanha sua flecha, pega seu bodoque,
O galo já cantou,
O galo já cantou na Aruanda,
Oxalá já chamou para sua banda”.

Cada um vai para o centro virado para o congá. Pena Roxa põe a mão na cabeça dos que saem do transe. Pergunta se
está bem. Pena Roxa conversa sobre o controle do transe e conversa com algumas entidades.
Então, o canto vira para o Erê.

314
Alguns que haviam saído do transe de caboclo e outros que não estavam em transe caem no chão. Batem palmas com
rosto risonho. Pedem balas. Nessa hora cantam “Pisa na Umbanda”. Percebo que em alguns o transe não é de erê. A
moça visitante é levada para o meio e cai no erê. Chora. Erês conversam e brincam entre si. Um erê diz pra moça não
chorar.
“Papai me manda um balão,
Tem doce lá no jardim”
Alguns pedem brinquedos e chupeta.
“Lá no céu tem três estrelas”
Há um guarda-roupa com vários bichinhos de pelúcia em cima. Os erês escolhem seus brinquedos preferidos.
Após alguns minutos, começa o canto de despedida.
“Voa, voa andorinha,
Leve esses anjinhos pro céu,
Andorinha, que voa, voa,
Leva esses anjos pro céu”.
Batem palmas.
Todos vão saindo do transe, levantam-se e auxiliam no canto.
Pena Roxa pergunta se todos estão bem. Um rapaz responde dizendo que sente dores na região lombar, próximo dos
rins. Pena Roxa chama a moça visitante para o centro e pergunta para ela, quantas vezes já lhe disseram para ela fazer
sua obrigação. Responde que muitas vezes, mas ainda está pensando e não se decidiu, mas que já está perto de se
decidir. Depois fala para o rapaz que sente dores para tomar um banho com sete folhas de cana, manda-o bater cabeça.
Pergunta para outro rapaz que não entrou em transe o que se passou. Depois fica no centro com rapaz das dores, com a
mão em sua cabeça, ele demonstra que irá entrar novamente em transe, Pena Roxa então sai com ele pela porta e vão
para o quintal, lá conversam. Todos ficam em pé, esperando-os, faz-se algum silêncio.
Pena Roxa volta e puxa um canto para Oxalá, põe toalha branca na cabeça desse rapaz enquanto todos cantam.
Segura-lhe as mãos, ele com a cabeça baixa.
“Atoto, é orixá,
Atoto, baluaiê,
Atoto, é orixá
Meu pai Oxalá é o Rei,
Venha me valer,
É o velho omolu atotô, baluaiê.
Atoto babá”.
Descobre a cabeça do rapaz e pergunta-lhe se está melhor. Ele diz que sim, sai com ele para beber água. Leva
outra moça para o centro e segura-lhe a cabeça, põe uma toalha branca na sua cabeça, recomeça o cântico. Todos se
ajoelham. Moça dança na roda, com o corpo curvado, penso que está incorporada com Oxalá velho.
Depois pergunta se todos estão bem, diz que vai se despedir. Então, a mãe pequena entra em transe de Oxum,
levam-na para o centro, cantam para Oxum, Oxumaré, ela dança muito bonito, movendo as mãos ao redor do rosto e
acima da cabeça. Todos se ajoelham para Oxum. Depois Pena Roxa sai com Mãe Pequena e conversa com ela no
quintal. Voltam.
Pena Roxa pergunta se pode se despedir.
Cantam:
“Caboclo, apanha sua flecha
Apanha seu bodoque, etc...”
Então, Pena Roxa sai pela porta, faz gestos com as mãos ao peito, volta, se curva para o congá. Batem palma.
Ela canta baixinho, num zumbido melodioso. Mara tira suas guias e se ajoelha. De repente, entra em transe de erê,
reclama de não comeu, e que quer doce. O pai pequeno, que já havia saído de transe, também entra em transe de erê.
Brincam bastante, pedem doce e bala, conversam com os filhos. Depois Fernandinho (erê de Mara) diz que vai embora,
porque nesse terreiro ninguém canta. Luquinhas (erê do pai-pequeno) só quer saber dos doces. Cantam para eles irem. O
fim do transe do pai-pequeno é muito agitado. Ele se retorce no chão, fica muito vermelho. Todos esperam os erês irem
embora.
Quando parece que todos estão já fora do transe, Verinha, erê de uma das filhas, começa dar risadinhas. Depois
não é mais ela, Mara põe a mão na cabeça dela, pergunta-lhe o nome. Diz: Verinha. Ela responde: Não sou Vera.
Pergunta Mara, quem é você. Ela responde: Eu não sei. Mara pede então para ela ir em paz, e voltar outro dia. Todos
cantam Andorinha, andorinha...
Ajoelham-se. Mara brinca perguntando se vai conseguir encerrar a gira.
Rezam o Pai-Nosso, batem palmas e fecha a gira, levantados, batendo os pulsos e depois batendo palmas.

(3) Diário de Campo: Maceió [Transcrição de José Aparecido dos Santos]


Maceió, 06 de marco de 2010. Hoje os representantes do Grupo de Pesquisa da Cultura Negra, vinculado ao
Curso de Historia, a Coordenadora do grupo a Prof. Ms Irinéia Franco, os alunos de graduação Jose Aparecido e

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Kelliane. Acompanhados da Ia Cota da casa de NIRELEGI (Babá Beto do Ogun), Mãe Ilza. Foram para a casa de
Manoel Xoroquê, localizado no Conjunto Habitacional Benedito Bentes II.
Por falta de detalhamento não será dita aqui a localização exata, pois isso foi uma falha que deve ser corrigida
na próxima pesquisa de campo. Não houve uma pré- seleção do terreiro, fomos, pois o aluno Jose Aparecido havia sido
convidado para esta festa. Na verdade foi apenas um toque em homenagem a Dona Maria do Acais e “Dona Sete”.
Maria do Acais é bastante conhecida nos cultos da Jurema no Nordeste Brasileiro, principalmente no interior dos
Estados. Maria do Acais estava na cabeça do dono da casa. Já a segunda homenageada a “Sete” ficará sem
especificação, pois não foi possível identificar em qual Falange. Ela estava na cabeça da mediun, a conhecida mãe Zazi,
grande sacerdotisa nos dias atuais no meio candomblecista alagoano. Classifico de candomblecista devido ao fato da
casa ser/ou pertencer à Nação Angola. Literalmente os ritos da casa são executados nos fundamentos desta nação. No
entanto, evidencia-se constantemente o sincretismo católico, como também a mistura com Umbanda e Nagô. Ressalto
aqui não queremos buscar o purismo das nações e nem questionar os fundamentos da casa, e sim buscar informações
que nos possibilite entender a estruturação desses cultos no tempo presente.
Entre os terreiros já visitados pelo graduando, este é o maior que ele já viu aqui em Maceió. A respeito do
tamanho o barracão é bem amplo, não ousa-se aqui usar de recursos matemáticos para ariscar uma medição aproximada.
Como detalhamento destaca-se a existência da roça, espaço sagrado, pois é o local onde as ervas do “santo” são
cultivadas. Entretanto, foi observado o corte de uma arvore e o podamento de outra existente naquele ambiente sacro,
ficando o questionamento sobre a preservação da natureza pregado por esta religião. As paredes são ornamentadas com
representações individuais do Orixás, que encontram-se nas paredes de cada peji. Uma vez que esta casa cultua os seus
“deuses” em quartos separados, salvo os que comem no tempo, isto é, o Orixá que recebe suas obrigações fora do
barracão, ao ar livre.
A princípio nos sentimos deslocados, pois não conhecíamos a casa, a não ser o “Cidao” que conhecia algumas
pessoas. Mas era possível ver as pessoas nos olharem com aquela expressão: “quem são estes”. Provavelmente por que
os quatros estavam lá pela primeira vez, mas isso não impediu que em pouco tempo já estivessem sentindo “em casa”.
O toque teve inicio por volta das 15.00 hs. Inicialmente tocando para Caboclo, depois tocou-se para os mestres,
boiadeiro e Marinheiro, por fim tocou-se para as Mulheres, as Pomba giras. O toque para as giras teve início tocando
para a Maria do Acais, esta não demora e “ vem a terra”. Com a chegada de Maria, a festa torna-se mais animada, mais
profana. Ela é debochada, festeira por natureza e firme quando necessário. Após um bom tempo em terra ela começa
chamar as giras das filhas e filhos. Observou-se neste momento que a “ordem dos chamados” obedece uma ordem
hierárquica . A primeira a ser invocada foi a “Sete” na cabeça da Zazi, devido ao seu cargo na casa, depois as demais
foram sendo invocadas. Muito embora houve entidades que vieram a Terra sem o intermédio da Maria do Acais.
O toque foi encerrado por volta das 18:00 horas, com um discurso de Maria do Acais, falando sobre amizade e
o envolvimento de um filho da casa na morte de alguém da comunidade.
O discurso transcrito encontra-se a seguir.
Transcrição do Discurso da Mestra Maria do Acais, no toque ocorrido no dia de Manoel Xoroquê no dia 06 de
marco de 2010.

M. A. – Agô!
M. A. – É assim, só foi um saravá primeiro, para não ficar sem. Ai oi…
BARULHO DE FALA…
M. A. – Boqueira “ewá”( pedido de silêncio).
M. A. - O homem que trazia o padé e a talha ninguém sabe onde e que tá? Já matou os outros. Ai agora cadê os
amigos que ninguém fez a pergunta? Agora ta sozinho pelo caminho. Todo mundo venerava, todo mundo queria. E
agora quem vai ajudar o coitado?
BARULHO DE FALA…
M.A. - …e eu tô pedindo a sua ajuda?
M.A. - Agora inventou de matar os outros. Eu dei um samba…
BARULHO DE FALA…
M.A. – E eu não quero saber quem matou, quem deixou de matar. A pessoa só conhece as pessoas na hora do
sorriso. Eu quero ver. Por que eu sou mulher e sou amiga na hora do sorriso, na hora da tristeza, na hora da precisão. Eu
sou Maria do Acais, pra ajudar a quem precisa o ano todo. Pode procurar. Se seu Manoel tiver doente em cima de uma
cama eu “deço”. Aqui tem muita gente que me conhece, a muito tempo. E eu não esqueço as caras. Eu não esqueço as
pessoas. Eu.. E assim como seu Manoel diz: - uma não cai sem o consentimento divino. E eu não estou aqui pra falar de
fulano e cicrano. O que fez e o que não fez. Eu estou aqui pra meter o pau não. Quem tem sua cabeça faz o quer.
BARULHO DE FALA…
M.A. Boqueira “ewá”.
M.A. – As pessoas tem que ser mais amigos de verdade. E não só amigos de farra. Amigo de verdade e aquele
que na hora da precisão tá ali. É dentro. É queijo, é lindo…( impossível transcrever devido a qualidade do áudio)… ou
vai ou racha. Mas esse negoço de meu amigo só pra tomar uma, eu não conheço. Eu também sou amiga na hora da
precisão. Eu lamento pelo que aconteceu. Eu lamento também é assim…pelas amizades. Eu acho que amigo é amigo,

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colega é colega e conhecido é conhecido. Não adianta você chegar me abraçar bem cedo, meio dia e de noite. E na hora
que eu precisar você não ta. Então eu só to oiando quem tem amizade com aquela fia do Oxalá, quem tem amizade com
aquele fio do Xangô. É muita gente tem amizade. Vamos vê quando o cu da Cutia assobiar, todo mundo corre. Na hora
do apertadinho só vê todo mundo correr…
O resto da gravação ficou sem áudio, devido a problemas no equipamento de gravação.

ENTREVISTAS
(1) ENTREVISTA NA CASA DE IEMANJÁ NO DIA 04/12/2010 - PAI CÉLIO de Iemanjá Ogunté (Célio
Rodrigues dos Santos)
“Eu digo sempre que Alagoas tem umas particularidades. No que diz respeito aos anos 70 não dá pra entender
se a gente não ver 1912. Houve três grandes marcos históricos, eu também sou professor de história, sou pesquisador
também. E nas minhas pesquisas eu percebo três grandes marcos históricos que vai definitivamente mostrar a questão
do candomblé hoje em Alagoas. Primeiro marco, eu digo vou 1695 com a extinção total da cidade do quilombo dos
Palmares; que hoje nós éramos pra ser o maior pólo banto do mundo, tirando Moçambique, Congo e Angola. Nós
éramos pra ser o maior pólo banto do Brasil, do mundo. E, o Brasil deve muito isso porque hoje nós falamos muito mais
banto que brasileiro; toda a linguagem banto abrasileirou-se. Principalmente terreiro de candomblé. Então, o que
acontece? Eu acho que isso foi um corte terrível que não cortou apenas o cordão umbilical de Zumbi e de todos os
quilombos que faziam parte da Cerca Real dos Macacos, quebrou, de fato extinguiu toda a manifestação histórico-
cultural, religioso, etc. A gente enquanto povo, enquanto população, acabou-se, onde se ouvia bater um tambor, ia lá e
acabava com todo mundo. Isso se repete em 1817 porque Alagoas torna-se uma comarca, torna-se um estado, mas com
todo um respaldo, um aculturamento pernambucano. Eu digo que Alagoas se emancipou mas continuou como quintal
cultural de Pernambuco. Inclusive em algumas pesquisas que eu venho fazendo vejo que o maracatu é nosso, vai pra lá
com outra roupagem, o frevo começa a se estruturar aqui, vai pra lá com outra roupagem, entendeu como é? Por que?
Porque como a vida era basicamente Recife e Olinda, Recife era muito mais comércio, a parte cultural era aqui, então
em 1817 teve esse quebra, esse racha, e a gente ficou meio sem identidade, e agora como é? Isso vai se proliferar por
muito tempo, eu digo até hoje. Hoje, principalmente o povo negro, ou tem vínculo com Pernambuco ou tem vínculo
com a Bahia. Ou querem falar baianês, ou quer ser pernambucano.
Isso é muito forte, isso levou a essa quebra de cultura, de tradição, inclusive de religiosidade. Aí vem outra
marca muito séria que é 1912. Então, quando a gente se restabelece de 1817 e começamos a criar uma identidade
cultural, começamos a estabelecer uma identidade religiosa. Pra você ter uma idéia, nós somos o único estado do Brasil
que temos o privilégio de ter a nação Xambá. O Xambá nasce se fortalece e se estrutura aqui em Alagoas, e o que
acontece? A gente perde a identidade de Xambá. Hoje ninguém do Xambá se diz Xambá, diz que “sou nagô traçado”,
sou nagô com umbanda, sou não sei o que e, na realidade, eles praticam xambá. Eles perdem essa identidade, isso é
muito sério, eu vou dizer por que, por causa de 1912. Olha quantas marcas históricas que vem atrapalhando a
religiosidade. As pessoas costumam ver o candomblé isolado, e ele não é isolado. Ele está em interação com a
sociedade, com a comunidade. O que você acabou de ver ali, os meninos da comunidade, entrar com a roupa do afoxé, a
movimentação, vieram, deixaram as coisas e foram embora. Isso é interação, é uma forma do candomblé interagir com
a sociedade, com a comunidade. As pessoas não vêem isso, vêem o candomblé como separado. E isso é fruto do que?
De toda essa historicidade que eu estou lhe contando. Em 1912, toda essa estrutura de formação, de ideologia, de
identidade. Antes de 1912 existiam os terreiros de candomblé aqui, se você visitar a coleção perseverança você vai ver
isso, a coisa mais linda do mundo. Uma menina do IPHAN que está fazendo uma pesquisa disse: Célio, essa é a única
coleção completa, estruturada, organizada do Brasil. Em canto nenhum do Brasil tem uma coleção dessa. E está ali se
acabando, porque estão pintando os bonecos de verniz, estão pintando as peças de verniz, então estão estragando.
[comentários sobre o IHGAL]
Então, em 1912 está tudo estruturado e por uma questão social, econômica e política nasce o Quebra. Uma
ideologia de prejudicar aquele indivíduo político, o outro queria assumir então, não encontrou nenhuma brecha. A única
brecha que ele encontrou foi por ele ser do candomblé. Então, por ele ser do candomblé começaram a meter o pau nele.
Resultado: jogou ele contra a sociedade, botou ele como um bruxo, a sociedade não gostou do cidadão e ele foi expulso
daqui. E volta pra onde? Pra Pernambuco. Aí a massa dominante disse: vamos inventar uma estrutura pra acabar com a
macumba, com o candomblé. Aí se formou a Liga Republicana, milícia particular, que teve como objetivo adentrar e
acabar com as Casas. Eles foram muito estratégicos, antes deles irem foram pesquisar o local, eles foram pesquisar os
dias de culto, e escolheram um dia emblemático que era 02 de fevereiro, na Bahia é Iemanjá, mas aqui é Oxum, a deusa
dos rios, fontes e regatos. Como em 02 de fevereiro estava todo mundo tocando pra Oxum, eles sabiam disso aí, nítido,
então invadiram as casas de axé, quebraram. E a perseguição não foi só no dia 02, ela prosseguiu. Não só também na
Capital, foi pro Interior. Aí o que acontece? O que eu chamo como pesquisador da Diáspora do Candomblé Alagoano.
Eles vão embora, saem daqui, se estabelecem no Recife, em alguns interiores mais distantes, etc, e aí vão praticar os
cultos lá. Então muitos babalorixás, ialorixás migraram daqui para Recife. O que ocorreu em 1817 volta-se a unir em
1912, 1913, 1914, 1915 eles chegam lá se estabelecem e em 1920 já inauguram os candomblés de origem Xambá que é

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a mesma origem do daqui. Aí em Recife ficou dois grandes seguimentos, o nagô que tem ramificação no Sitio de Pai
Adão e o Xambá que veio de Maceió.
Nanã de Aracaju é Angola, eu não a conheci, mas conheço a ialorixá que ficou tomando conta da casa, e todo o
ritual dela é Angola. É a Dona Marisete. Mãe Nanã é Amanádeui, é Angola. Conheci vários filhos de santo dela, mas
acredito eu, que alguns babalorixás, ialorixás do xambá migraram se não pra Sergipe, pra fronteira Penedo, Coruripe.
Porque eu digo isso? Porque até hoje eu tenho contato com babalorixás de Piabuçu e vejo que os cultos lá é bem
parecido com o xambá. E, obviamente, houve pessoas daqui que migraram pra lá nesse período. Não tenho isso
comprovado... Só oralmente, não em papel. [conferir com informação de Vagner Silva]
E aí, o que acontece? Nesse período, acaba-se, extingue-se praticamente o culto ao orixá. É nesse período que
minha avó chega aqui, em 1930 que o candomblé está ressurgindo. Porque o candomblé vai ter uma grande influência
do culto ao caboclo, ou seja, para se cultuar o orixá, eles colocavam a mesa com vários santos da igreja católica, com
copos d’água para qualquer coisa, qualquer dia... e isso perdurou por muito tempo... Eu digo que ele ressurge em 1923,
1925, ressurge com Dona Balbina de Abalueí, Dona Lucrécia de Oxum Meji, e outras senhoras do Prado, ele ressurge
mais ou menos no Prado, e quando ressurge vem outra lambada que é a interferência de Vargas, acabando também com
o candomblé. Então, essas quebras políticas e culturais vão interferir na parte religiosa e obviamente, na parte cultural.
Como a gente tinha passado de 1912, quase duas décadas, praticamente, sem ter atividade religiosa, então
aquilo se acaba se apaga muita gente ficou decepcionada com o barracão, fechou o candomblé. Não podia se tocar. Eu
lembro que a minha avó dizia que a mãe de santo dela foi feita dentro da mata, ali onde hoje é o Pinheiro. Levaram ela
pra ali e fizeram toda a obrigação num dia só. A obrigação de um mês, pra fazer em um dia... Chegar de madrugada na
mata, sair na boquinha da noite, porque não podia fazer, não podia tocar, não podia nada, tudo tinha que ser feito lá.
Depois foi liberado, apenas de tarde. O candomblé ficou com essa marca. Inclusive, o Xambá no Recife só toca de
tarde. Por conta das coisas daqui, ficou ainda essa marca. Eles tocam de 4horas pra 6 e meia, 7 horas saem de lá pra ir
embora.

Uma pergunta teológica, eu tenho ouvido muito em São Paulo que essas mudanças todas enfraquecem o axé. O
axé pode acabar? Pode-se quebrar aquela energia?
Sim, pode quebrar, pode acabar, pode enfraquecer. Tudo isso. Por quê? Veja bem, o axé é a continuidade. O símbolo do
candomblé, o símbolo do axé, é uma serpente mordendo seu próprio rabo, que é o símbolo de Dãhn. Por quê? Para lhe
perpetuar. Se a serpente não consegue morder a calda, não vai perpetuar, entendeu como é? Então, ou seja, eu tenho
candomblé. O que acontece muito em Alagoas? A quebra de alguns axés de Alagoas. O babalorixá ou ialorixá vão
ficando velhinhos, os filhos vão se afastando da casa, e ele sozinho, uma andorinha só não faz verão. E isso enfraquece
o axé até acabar. Eu conheço ialorixás, babalorixás que morreram de desgosto. Voltar pra si, o si trancar, o não querer
nem atender a porta. Mãe Maura de Xangô, e outras, e outras... Outra coisa, além disso, a influência da família. O que
acontece, uma senhorinha de idade não tem mais aquele... o patriarca, ou matriarca da casa envereda por outro caminho
religioso, vai ser um neopentecostal da vida [isso aconteceu com Mãe Netinha, ela faleceu e o filho que era o herdeiro
virou evangélico, a filha não quer mais] isso quebra o axé, enfraquece o axé, na proporção que você não alimenta, não
faz obrigação, não faz oferenda, não faz esse feedback... O axé vai cobrando, vai cobrando, vai cobrando... Orixá é uma
energia e essa energia se desprende, e a pessoa fica sozinha lá... Se a energia está sendo alimentada, então vai haver a
mordida da cobra e vai se perpetuar. A energia vai se fortalecer. Então, por exemplo, o que ocorre aqui, na nossa casa.
Já tenho mais de 8 filhos de santo com casa aberta, tudo ali gera energia, cada um leva seu santo, vai fazer sua casa.
Não tem o dom? Tem. Meu pai, eu tenho condições? Tem. Então eu vou lá, eu ajeito, eu faço para que isso se perpetue,
esse axé vai se perpetuar. Vai haver essa energia pra se movimentar. Então, existe isso, essa quebra de axé. Além do
mais, o que acontece? O Babalorixá ou Ialorixá vem a falecer e os filhos, quando saiu o caixão, saiu o ebó, o carrego,
acabam com tudo que a casa é minha. Aí acaba com a casa, vende a casa, acabou-se. Ocorreu isso agora a pouco com
um babalorixá muito famoso daqui de Maceió, uma pessoa com um axé muito legal, Pai Cícero Romão de Oliveira
Lopes, foi professor do Estado, do município, foi diretor geral do CAGP. Com o falecimento dele, a mãe dele disse, tire
tudo! O que não tirou quebrou, sacudiu no lixo e vendeu a casa. Quer dizer: isso é comum em Alagoas. Para você ter
idéia, quando eu criança, neste bairro, existia cerca de 40, 45 terreiros neste bairro da Ponta da Terra. O bairro tem uma
rua principal ali adiante que é a rua mista e tem as ruas paralelas, em cada rua paralela dessas existia no mínimo 5 casas
de candomblé. E isso eu estou acompanhando, que eu me criei desde criança até agora com 40 e tralálá, e hoje me
pergunte quantos candomblés tem nesse bairro. Tem três candomblés. É de cortar o coração, o que eu vi aqui. Vou citar
alguns dos que eu vi acabar: Dona Maria do João Grilo, Seu João Grilo, Seu Zequinha, Dona Quiminha, Seu Edinho,
Dona Maria de Oxalá, Dona Maria do Chafariz, Mãe Maura de Oxum, Mãe Maura de Xangô, Dona Edite, Seu João
Aleijado, Seu Armandinho de Ogum, doze até agora, se eu for relacionar só daqui do bairro da Ponta da Terra... Dona
Bizé... Todas essas pessoas faleceram e as famílias disseram: amanhã tire tudo o que for de macumba que eu vou vender
a casa! Tire tudo que eu vou dividir aqui vou fazer três quartinhos pra minha filha, dois quartinhos pro meu neto, três
quartinhos pra não sei quem... e acaba-se... a minha família mesmo, quando minha avó faleceu, meu pai disse, não
quero mais saber de macumba aqui, o candomblé terminou com minha mãe, eu disse: o senhor que pensa assim, mas eu
não penso assim. O candomblé terminou com sua mãe, a minha avó, mas vai prosseguir comigo! Que ela me entregou
uma grande responsabilidade. Você não vai tomar conta de candomblé não, você só tem 14 anos de idade. Eu disse vou

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sim! Chamei a Quina: a senhora não é mãe de santo mais velha da casa, é. Topa levar o candomblé? Topo. Vamos
alugar uma casa? Vamos. Aluguei uma casa, botei o terreiro, botei o candomblé, e o resultado está aqui hoje. Minha avó
era xambá. Então eu vivenciei, eu cresci, eu nasci dentro de uma casa de candomblé. E minha avó era assim, muito... a
visão dela era muito diferenciada das pessoas, ele dizia: você vai ter que estudar, vai ter que ser alguém na vida, mas a
sua religião é uma coisa e sua vida é outra, o candomblé é religião, não é meio de vida, vai-se embora estudar, não sei o
que, me incentivava muito. Então eu tenho muito dela, que foi o que eu vivenciei. Então, tem muito disso.

É a percepção da diferença do sacerdócio, né? É vocação, não é profissão? Sim, correto. [interrompe filho de santo
com recado]
Anos 1970 – transformações de lá pra cá.
Então 1970, vamos frisar isso. O candomblé aqui já estava estruturado, já passou por tudo isso. E houve sim uma
grande interferência aqui na década de 50 pra 60. Em 1957 é a federação daqui, mas acontece uma coisa muito
interessante que foi a vinda de uma ialorixá do Rio de Janeiro, isso é muito importante de se mencionar sempre em
qualquer trabalho porque isso mexeu com Alagoas, com Maceió. É uma ialorixá poderosa, poderosa que eu digo,
branca, de nível social elevado, o esposo dela veio comandar o 20º BC que hoje é o 59º Batalhão de Infantaria
Motorizada do Exército. Ela era feita em Umbanda, pronta em Umbanda. E ela trouxe a Umbanda pra cá, se estabeleceu
num bairro popular no Vergel do Lago, montou a casa de candomblé dela e o marido não gostava, blá, blá, blá... Mas o
marido faleceu, e ela continuou aqui. E aí o que acontece? Ela introduziu em Alagoas a Umbanda do RJ. E as pessoas,
tudo o que é novo, quer conhecer. Muita gente entrou na casa dela, e saiu e misturou na sua casa a umbanda com o
candomblé, com o xambá, então ficou chamado o xangô traçado ou nagô traçado. Com essa influência de Mãe Jurema.
Ela foi quem trouxe a Pombagira pra cá. [comento sofre a foto dela nos jornais da minha pesquisa, Célio gostaria de ver
o material, tenho que repassar]
Então, porque ela saía no jornal nessa época? Por causa do marido dela. Hoje o marido não é citado, ela não cita nem o
nome do marido. Ela tem um problema de audição terrível, não faz entrevista, mas se você quiser ir lá eu levo lá, pra
você conversar com ela. Mas ela se fechou muito. E vive muito mais no Rio do que aqui. Ela ainda toca, mas já esta
com 80 e tantos quase 90, mas não perde a postura, é uma mulher bonita... E, isso misturou muito, misturou muito.
Hoje, por exemplo, você vai num terreiro, às vezes fico até triste, em terreiro de nagô, na hora de Nanã você ouve cantar
pra Preto Velho. Na hora de Odé você vê cantando pra caboclo. Misturou isso é uma influência da umbanda. Até rituais
mesmo. O ritual todo do orixá quem faz é o Preto Velho. Isso é interferência da umbanda. Quem sou eu pra dizer que
está certo ou está errado? Eu concordo... e a identidade...vale mencionar isso nessas falas.
[questão: umbanda daqui diferente da umbanda branca – análise de Clébio, influência banto]
O culto banto, assim, a umbanda vem com esse traço muito forte banto. Entendeu? Eles chamam as pessoas de
cambona, porque no Rio uma das primeiras casas que chega lá e se estabelece é o Bate Folha, e isso se populariza,
depois é que os terreiros de ketu da Bahia vão migrando pra lá, como o Opô Afonjá... Mas, o banto é muito forte por
causa disso, a fala, a linguagem, os ditados populares...
[e tem também as federações]
Sim, elas nascem nesse período. Silvestre Péricles. É nesse governo que nasce... Silvestre queria ser o bonzinho, mas
disse não, vamos fazer as federações. Mas vou me livrar [dos pais de santo]... dessas federações... ditadura mesmo.
Então ele coloca o Coronel Belarmino, pra presidente. Então, são essas coisas que o governo tenta formar, passar,
idealizar, mostrar, mas com interferência dele. Vai se formar as federações, ótimo, mas os cultos só podem ser até as
19hs. Porque o tambor atrapalha o vizinho. Vai fazendo essas coisas que atrapalham. A federação nasce acho que em
1957, a primeira federação, e aí vêm as guerras das federações, porque o que acontece: a federação começa a ser um
meio de vida. Como existiam muitos candomblés, a federação passa a ser um meio de vida pra quem está na direção. Aí
a federação perde até o nome, a nomenclatura, você não vai ver a pessoa dizer eu sou da Federação Zeladora dos Cultos
Afro-Umbandistas, eu sou da Federação do Pai Maciel, eu sou da Federação do Paulo, como foi se unir a federação do
Paulo? Dona Ivette era secretária da Federação do Cardoso (a primeira)...até eu me perco nisso... e a dona Ivette
aprendeu tudo e saiu, brigou com o Cardoso e montou a Federação dela. [a Ivette aparece muito nos jornais na década
de 80] Sim, ela tem influência, o primo dela é o Júlio Alexandre, Pai Júlio por sua vez trabalhava na Assembléia
Legislativa, trabalhava no governo, saiu da assembléia foi trabalhar no gabinete civil, ficou muito tempo no palácio,
tinha parte com repórter, com aquilo outro, então Ivette, queria neutralizar e acabar com a Federação do Cardoso... a
briga das federações....
[e ainda tem o caso do Rei do Candomblé]
Justo. Deixa eu te falar, com isso o que acontece, com a morte do Cardoso, Pai Maciel toma a federação, e pra se
autoafirmar ele corre pro Rio de Janeiro e vai fazer obrigação com Zé Ribeiro, que é o Rei do Candomblé lá. Zé Ribeiro
por sua vez vem pra cá pra entronar ele e colocar a coroa de chanceler [risos, comentários] isso tudo eu vivenciei na
barra da saia de vovó, ela me levava pra todo lado... aí o que acontece: Pai Maciel se entrona e tal, e começam as
guerras: sou rei, sou rainha, sou princesa. Pai Maciel como chanceler começa distribuir um monte de títulos pra todo
mundo. Vem o Rei do Candomblé. Aí começam as brigas também no Rio de Janeiro, entre Pai Ribeiro e o Pai Paiva.
Pai Paiva vai pra Brasília estrutura uma federação, já briga com a Federação do Rio, e por ele estar em Brasília, por ser
a capital, diz, eu estou na capital eu sou o Rei do Candomblé. Pai Paiva é Pernambucano, conheci Paiva, conheci esse

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povo todo. Deu um rolo imenso, todo mundo queria ser rei, príncipe, princesa, rei, rainha. Criou-se uma hierarquia que
não existia. Com isso, vem a história da quebra do axé. Pai Maciel enfraqueceu o axé, acabou com o candomblé, porque
só queria ser rei de um lado, de outro, na federação, misturou tudo.. aí enfraquece o axé. Os outros se isolaram, todo
mundo se afastou dele. Quando caiu a real, caiu a ficha, começaram a morrer alguns. Dessa época só ele está vivo. Era
bom você falar com ele. [vários comentários]
[sobre o discurso repressor das elites]
Além da repressão, ela faz outro discurso dizendo que é boazinha que aceita, mas é eles lá e eu cá. Vê-se muito isso no
governo do Silvestre Péricles, com a criação da federação... Coisa de pobre... E isso estava nos bairros da periferia,
Ponta da Terra e Ponta Grossa. Porque é ponta? Porque é o final. Não existia Ponta Verde, não existia Jatiúca, não
existia Stella Maris, não existia nada disso não, aqui era o único bairro era Ponta da Terra, o ônibus só ia até ali na Praça
dos Lions, pra lá era coqueiro, areia, aqui era o final. Então os dois bairros populosos, e de religião de matriz africana
era as extremidades de Maceió. Tabuleiro não existia, era só mato e mata, o Farol era até o Exército. Maceió era assim,
norte e sul. Então, o sul era Ponta Grossa. O Vergel vem nascer no período da Segunda Guerra Mundial, daí o nome das
ruas serem todas dos coronéis, o nome das batalhas, o nome do até do avião, aquele Paner. Aí Vergel nasce depois da
Ponta Grossa, entendeu como é? É um marco muito interessante isso. Aí a elite morava onde: Centro e Farol, que é o
centro da cidade e o Farol subindo. Tudo o que ocorria era nos extremos. As extremidades eram as coisas de pobre. E
onde estava o pobre, estava o problema, né? Na realidade não era, onde estava o pobre é que estava a cultura, porque
era nos terreiros de candomblé que surgiram os maracatus, aliás, que conservaram o maracatu, que se conservaram as
baianas, as taieiras, os folguedos. Alagoas é o estado do Brasil com o maior número de folguedos e todos eles de matriz
africana, com exceção do pastoril e do guerreiro que é uma mistura de tudo. Mas todos eles, taieira, baiana, cambinda,
quilombo... Tudo isso era onde? Dentro dos terreiros de candomblé. O côco. E aí o que acontece? Com essa repressão
acaba com a questão cultural... Pergunta hoje: você sabe o que é cambinda? A cambinda eu vi muito, dançavam no
terreiro do seu Gonçalo, outro que morreu também, as cambindas do Seu Gonçalo, as Baianas do Pai Paulo... Eles vão
morrendo, vai acabando a cultura, o lado cultural e o lado religioso.
[o movimento negro ajudou a dar uma segurada nisso?]
Não. O movimento negro aqui em Alagoas surgiu, organizou-se, estruturou-se com uma referência muito forte da
Bahia. Movimento negro aqui nunca funcionou com a questão religiosa. O movimento negro aqui era um grupo de
negros e negras intelectualizados, mas com uma vertente da Bahia. Por exemplo, o vinte de novembro, eles não
consideravam nenhum folguedo desses trazia o Olodum e o Ilê Aê, acabou com o vinte de novembro. Quem entrou
como religioso dentro do movimento negro fui eu, há pouco tempo, em 1990. O Amaurício, depois do Amaurício
fechou. Mas em 90 eu entro com a questão religiosa. Mas o movimento nunca, nunca se uniu sobre a questão religiosa.
Pra você ter uma idéia, quem fazia a oferenda aos ancestrais na Serra da Barriga era Mãe Hilda da Bahia, a dona do Ilê
Aê, vinha ela fazer. Pai Maciel que um dia, depois de muito anos elas fazendo, disse: epa, chamar outro babalorixá e
ialorixá, não admito vim outro fazer isso aqui.. o povo do movimento negro falava até baiano, ia lá pra uma reunião e
quando voltava estava falando .... você vai conversar com algumas figuras do movimento negro elas falam baiano.

(2) Entrevista com Dalmo Ribas (Babalorixá) (São Paulo, 01 de agosto de 2011 – Vila Madalena)

1. Experiência pessoal do pai-de-santo – tomada de consciência na aproximação com a umbanda:


É uma experiência meio singular porque de certa forma combina militância política com psicologia e religião. Então faz
uma imbricação interessante. Eu acho que a tomada de consciência...a formação da nossa consciência, ela nunca é plena
e nem será, é um eterno processo de elaboração. E a gente vai se dando conta das coisas. Não sei se você se recorda lá
[sua dissertação de mestrado] num determinado momento em que eu me manifesto quase que a título de um lamento:
“puxa vida, a época em que eu tinha uma proposta política tão avançada, eu e o grupo do qual eu fazia parte era muito
pouco ouvido; então, de repente aparece a religião como uma fenda, uma fissura através da qual você podia penetrar e
chegar próximo do povo, não com o intuito de doutriná-lo, conscientizá-lo com aquele propósito que havia enquanto
militante político. Mas, no sentido de me integrar a cultura, a realidade do povo de uma maneira mais efetiva, poder
participar e contribuir dessa formação civilizatória de uma nação brasileira. Eu tenho contato ainda com o PC do B, não
sei se isso eu deixei constar e mencionar na dissertação [menciona]. Eu ainda tenho, mas é assim, uma proximidade
afetiva mais que de militante partidário. E, lá no PC do B tem um historiador, colega seu, Augusto Bonicoli, ele é uma
pessoa ligada a UNICAMP, muito preocupado... é da área de história e é muito preocupado com o resgate da história a
partir dos movimentos sociais. Ele vê esses movimentos sociais com uma amplitude maior do que aquela que já foi
critério para militantes de 20, 30, 40 anos atrás. Quando poderia, por exemplo, ocorrer que a formação da procissão de
São Jorge tivesse a ver com todo um movimento de afirmação cultural, étnica do povo? Isso passava desapercebido.
Então, vamos falar de movimentos sociais: Balaiada no Maranhão, Sabinada não sei aonde, Canudos, a guerra do
Contestado... mais ou menos aquilo que já estava consagrado dentro da História. Mas, essa parte, essa capilosidade
molecular, isso não era muito visto porque você tinha o crivo da ideologia. Então, tudo você vai analisar, as
mobilizações sociais, o movimento social como aquilo que envolva as categorias de análise de uma determinada

320
corrente ideológica. Então, é o estudo da relação de poder, dominados-dominadores, como se faz a exploração, a mais-
valia, a forma de propriedade, os métodos de produção. É o homem econômico, que acaba se colocando acima de outras
dimensões da natureza humana, como, por exemplo, essa religiosa que equivocadamente pode ser vista como a famosa
frase do Marx, que é o “ópio do povo”. Mas, eu estava lendo Freud outro dia, naquele O Mal Estar da Sociedade
Contemporânea e ele previa o fim das religiões. “É alguma coisa que tem a ver com o pensamento mágico do povo, mas
isso aqui dentro de mais algum tempo as pessoas serão mais racionais, mais lógicas, mais saudáveis”, e não contra a
religião, mas... quando o que a gente observa as coisas não se dão dessa forma. Se a gente pegar por exemplo, essa
presença do movimento islâmico hoje no mundo, o componente religioso é muito forte. É quase que preponderante em
relação às outras contradições que possam existir mesmo entre eles dentro da mesma crença. Mas, assim, em alguns
aspectos a questão econômica fica quase que posta de lado. E, dentro de uma concepção marxista esse será sempre o
motor, enquanto contradição, para fazer com que a história se desenvolvesse. Quando eu falo assim eu estou me
referindo àquela ideia do mundo escravagista que depois passa pra ser feudal, socialista, comunista e existe um
determinismo histórico. Ou seja, um dia sem religião o paraíso estará na terra. Também é a busca do paraíso. Então,
acho bonito, Irinéia, que hoje essas coisas todas estão podendo serem vistas com outras lentes. E não vejo que se
estabeleça uma etnomina, um bater de frente entre elas. Mas sim uma imbricação e uma complementariedade. Isso que
me encantou nas Ciências da Religião que foi uma disciplina que num primeiro momento eu olhei com muita
desconfiança: que é isso? E quando eu me aproximei e percebi que existia uma interface nesse estudo que compreendia
a religião vista pela sociologia, pela antropologia, pela história, pela psicologia, e até pela teologia, nossa! Isso aqui é
muito interessante. Porque, aparentemente, é um caleidoscópio, só um jogo de espelhos, mas quando você penetra
nisso, recupera o sentido filosófico da religião. E a partir desse esforço você começa a reformatar conceitos, criar novos
conceitos, o que equivale dizer, você se permite ver o mundo de uma maneira investigativa, indo na direção de uma
compreensão que seja maior, mais integrada.

[comentários meus...]

2. até por conta do que se contrapõe a essa perda da cientificidade é de uma cientificização tão grande que merece
contestação dentro do próprio campo do conhecimento, dessa maneira de valorização da ciência, isso não é
tranquilo. Quando você vê a ciência dessa forma conspurcada, como se costuma lembrar: “positivismo”. A
maneira linear de ver e entender as coisas, o cartesianismo e essas coisas todas. Tudo isso já foi execrado,
contestado, mas é praticado. Quando eu estava falando pra você de imbricação de vários campos de
conhecimento pra chegar a uma maneira nova de olhar as coisas e, com isso, ampliar o conhecimento, a
compreensão, na mesma hora o que me ocorre, como alto censura: tomara que ela não esteja pensando que eu
veja a produção do conhecimento como um enfoque cartesiano, de compreensões provisórias que depois vão
se ampliando, até um dia chegar a um entendimento de tudo. Ou seja, o homem é cognoscível.
3. [comentários meus, discussões sobre o partidão e questão do negro – fazer a historia da religião a partir de
quem viveu, a partir da religião] (…) [critica o “samba de branco” de intelectuais que trabalham a religião
negra no Brasil] “não conseguem ver nobreza epistemológica no sincretismo”. (...) Fiz questão de terminar a
dissertação como pai-de-santo nas conclusões. Foi feita pra resgatar a questão do Pai Jamil, pra ser um
primeiro degrau para depois outras pessoas se interessarem pelo assunto. Ainda dentro desse momento
apoteótico da procissão de São Jorge, foi intencional. Eu alucinei pra provocar.
“E como será daqui a 12 mil anos”? Vamos ficcionar então. Acabou a procissão de S. Jorge daqui a 12 mil anos? Que
nada, tá lá um Pretro Velho, tá lá o Caboclo... entende? Como forma de impedir que o homem se reparta.

Primeiro terreiro que teve contato, “Caboclo Sete-Pedras” em Embu-Guaçu: Ela [mãe-de-santo Mãe Clara]
utilizava uma terminologia de candomblé, mas era Umbanda. Se você visitar terreiros em São Paulo, vai se dar
conta da profusão de informações que existe. Dada a natureza, a singularidade de cada um dos terreiros. Então,
você encontra desde um terreiro mais católico, mais cristão, até um terreiro que se coloca numa posição mais
kardecista, mais científica, que faz questão de se identificar como “umbanda branca”. Mas umbanda branca
não num sentido que não possa ser participada por negros, mas é umbandaa branca porque “não faz mal aos
outros”. Não lida com a esquerda. Uma coisa assim: nós não negamos que exista a esquerda, mas a nossa é
branca”. Nós somos do bem. E essa umbanda que é mais de bairro, de periferia, que se rege por outros
princípios éticos que não essa ética burguesa e hipócrita que acaba dissimulando uma porção de contradições
que existem. Então, o terreiro Caboclo Sete Pedras foi meu primeiro contato que tive com terreiro de umbanda;
nunca tinha participado de um trabalho de umbanda. Tinha curiosidade mas não sabia como as coisas se
passavam lá. Então, eu chego nesse terreiro meio que por acaso. E hoje o lugar onde existia está um pouco
mais urbanizado, mas na época era semi-rural, o tal do território “rurbano” que o Jaime Lerner fala, não é
urbano mas não é rural. É aquela fronteira entre uma coisa e outra. Mas havia ali muitos sítios, ainda existem.
Então, o pessoal tem uma consciência mais rural. É dentro desse contexto que aparece o terreiro da Mãe Clara
Marques Guimarães. Ela era uma empregada doméstica, era uma filha de Xangô que tinha Iansã também. Ela
tinha um temperamento forte. O que eu chamo de temperamento forte? Ela era muito solidária, muito amável e

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dóciel e em determinados momentos ela era dura, enérgica, hostil com quem não fechasse com ela. Então, era
uma boa política de convivência você cair nas graças da Mãe Clara. E eu tive essa oportunidade, embora ela
nunca tenha aprendido meu nome tal como eu me chamo, eu sou o Dalmo, e por mais que ela se esforçasse ela
me chamava o “Dálmata”. Mas eu não tinha um tratamento de cachorro, mas ela me chamava de Dálmata.
Assim como nunca consegui deixar de prestar atenção quando Mãe Clara referia-se a Iemanjá como sendo
“Iemanjárr”, do manjar. E, assim, uma série de outras incorreções que revelavam... [toca o telefone] e Mãe
Clara recebia o Caboclo Sete Pedras. Ela num dado momento deixa de ser empregada doméstica e se
aprofunda nos conhecimentos dela de umbanda tendo ido buscar novos conhecimentos através de uma
militância umbandista que lhe conferisse num dado momento a condição de ialorixá, de mãe-de-santo. Então,
eu sei que ela andou na região do ABC, lá com o Pai Linhares, fez um curso de formação aqui com o Pai Jamil
e andou por muitos terreiros e teve esse auto-didatismo, fez a sua própria formação de mãe-de-santo. Num
dado momento ela cria o seu próprio terreiro que era num lugar muito simples, porque tinha sido originalmente
uma cocheira de gado, um lugar de ordenha. Depois a primeira adaptação nesse prédio, de ordenha a alguma
outra coisa habitada por humanos, foi usado como casa de tolerância, lugar de encontro de prostitutas; depois
sabe-se lá o que que fez com que o endereço ficasse desocupado, posto pra alugar e, ali, a Mãe Clara alugou e
fez o terreiro do Caboclo Sete Pedras. Eu inha na época 39 anos, nasci em 1944. Ela estava lá, ainda estava em
formação, já deveria estar lá a uns cinco ou seis anos na época em que eu conheci. Acho que ela chegou no
Embu-Guaçu por volta de 1975, 76, por aí. Aí ela monta na cidade uma casa de umbanda que vendia produtos
religiosos, artigos religiosos. Então existe uma interação entre a prática da umbanda como função religiosa
nesse terreiro e, existir na cidade uma loginha que vende produtos que atendem os pedidos que são feitos pelos
guias quando em consulta. Então, digamos um Caboclo pede “eu quero que você me traga um charuto, uma
garrafa de pinga, e alguma coisa”, aonde que era o lugar mais apropriado pra obter aquilo que estava sendo
pedido? Na casa da própria Mãe Clara que chamava Casa de Umbanda Caboclo Sete Pedras. Vendia artigos de
umbanda mas também arma, munição, numa época em que isso era liberado, aviamento, pólvora, utensílios
domésticos, foi diversificando. Era um bazar. Mas nunca algo que dissesse assim, graças a isso ela enriqueceu,
ou afastou-se do povo, pelo contrário, ela era sempre muito atenta e se mobilizava pra ajudar as pessoas, pra
arranjar emprego pra um, casa pro outro, havia todo um aparato de atendimento social que normalmente não
existe por si. Pela própria maneira dela ser, esse atendimento, esse encaminhamento pra recursos acaba
acontecendo com Mãe Clara. Então, sei lá, um povo muito pobre, era um lugar frequentado por carroceiros,
empregadas domésticas, pessoal da construção civil, tinha policial, tinha prostituta, tinha travesti, era assim,
um lugar perfeitamente de acordo com a biodiversidade da serra do mar que estava ali pertinho. Embu estava
na francha da terra do mar.
[explicação sobre a geografia do Embu – pouca interação entre o Embu das Artes (ricos) e o Embu-Guaçu, (Cipó,
Marzilaque, Itanhaém) pobre, alto incidência de crimes, problemas urbanos – expansão urbana e terreiros]
[terreno onde se colocaliza a Tenda de Pai Jamil foi da família do Oswald de Andrade]
(…) um dia o Pai Jamil me pede: precisaria regularizar, regulamentar lá na secretaria de patrimônio do Estado, nosso
terreiro pra gente poder obter a insenção de pagamento de IPTU, que é concedido aos templos religiosos. Aí eu vou lá
nesse departamento da prefeitura que fica lá no edificio Andraws, e nos assentamentos consta lá, proprietário: Banco do
Brasil. Isso me surpreendeu muito, a escritura do terreiro. Quando fui ver a escritura descubro que tinha sido permutada
pelo Banco do Brasil e que o proprietário original era o pai do Oswald de Andrade. E depois, o Oswald fica a frente dos
negócios do pai e é justamente quando naufraga toda a fortuna do pai. Aquilo ficou por algum tempo como disputa
jurídica em torno de uma hipoteca, de um dinheiro que a caixa econômica federal havida dado para o Oswald de
Andrade, aí a hipoteca não foi resgatada, daí o Banco do Brasil compra a dívida da Caixa num leilão. O Pai Jamil
precisava comprar um terreno aqui na região e que fosse a um preço acessível, então, onde está a av. Sumaré era um
riozão, isso eu conheci, quando era menino, era mata pra um lado e mata pro outro, ela tem 30 anos. Aonde fica a
estação Sumaré do metrô havia um grande lixão há quarenta anos atrás, 50 anos, era depositado com as carroças de lixo
puxado a burro, e iam até lá e jogavam lixo ali, e parte desse lixo era incinerado a céu aberto. Então, imagine a
quantidade de urubus que havia na região, etc. Existia um lixo do lixo, um lixo pior que não era industrial nem urbano,
doméstico. Era o lixão pro lado de cá do rio aonde os restos das exumações do cemitério do Araça, o da Consolação, o
cemitério São Paulo era depositado, e também o hospital das Clínicas que estava iniciando as atividades dele, também
juntava restos de cirurgia e coisas do gênero e jogava nesse lugar. Era um lixo maldito. E o corretor estava vendendo
aquilo, vendeu por um preço muito barato. Pai Jamil conta quando fez as fundações pra construção, tinha pedaços de
maxilar, fêmur, tampa de caixão, resto de terço, lençol de cirurgia do hospital das Clinicas, tinha de tudo. Era um aterro
sanitário, e quando ele acaba de construir o terreiro dele que tinha acesso pelo meio de um matagal pra chegar ali
naquele lugar, vem uma contestação do Banco do Brasil dizendo que o terreno que o pai Jamil comprou não era aquele
que ele estava, era mais pra cima. Mais próximo aqui aonde está a av. Sumaré, e ele construiu na baixadona. Aí tem
todo um trâmite com o BB que entendeu a situação e achou um meio de permutar. Na verdade aquele terreno é muito
engraçado... você gosta de histórias? A história é feita de causos... [conta sobre a família do Oswald e história da
expanção urbanda da cidade de São Paulo] “supostamente aquele terreno do Pai Jamil é um terreno que nunca teve
outro proprietário senão a União. Porque quem que era a D. Escolástica que ficou dona daquela área toda? Aquilo nunca

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chegou a ser assim um lugar que tivesse sido objeto de agricultura, de alguma coisa. A região de Pinheiros era formada
por pinheiros mesmo. E era um lugar ermo, uma fazenda. Só que um fazendão. O que eu acho interessante é que o
terreiro do Pai Jamil é um terreiro de Obaluaiê. Obaluaiê é um orixá cuja expressão mais restrita dele é o cemitério.
Então, o cemitério da Consolação é um campo de Obaluaiê. Obaluaiê é quem recebe os mortos. Obaluaiê e Nanã
Buruquê... quem tomam conta dessas aparentes ocasionalidades. No meu entender existe um outro traçado que é
invisível a nossa percepção lógica das coisas. O lugar onde vai se formar o cemitério de Obaluaiê é exatamente a casa
de Obaluaiê, exatamente em cima do terreno que foi um cemitério. E os mortos da Marquesa [refere-se à Marquesa de
Santos] que ela se preocupou em fazer um cemitério lá, foram trazidos pra cá. Olha que engraçado. Isso tudo tem a ver
com a força do terreiro. Então é um axé fora do comum. Você poder construir um terreiro num lugar como aquele.
Extremamente privilegiado, um lugar virgem que foi transformado num cemitério e depois foi transformado num
templo. E tem essas coisas...

(5) pergunto sobre o axé – se quebra ou não: O axé não acaba, a gente pensa que acaba. Toda essa história que
eu estou te contando é pra você ver que coisa mais estranha. Quando que eu fui descobrir todas essas coisas...
Por isso, que eu resolvi fazer a dissertação pra ter um lugar assim mais formalizado, aí no caso seria o contexto
acadêmico, pra deixar só consignado o assunto, pra que depois alguém venha. No dia da arguição, tinha um
sociólogo que fazia parte da banca, bem chato, que num dado momento, no contexto foi muito indelicado, mas
em resumo me perguntou: pra quem que você escreveu isso? Ocorreu-me uma imagem legal na hora que foi o
seguinte: “isso que você está vendo não é uma dissertação de mestrado, isso aqui é um bilhete que eu coloquei
dentro de uma garrafa e joguei ao mar, então, isso que você está achando extravagante quando eu falo do que
será o mundo daqui a 12 mil anos, é pra alguém lá encontrar isso e abrir como se fosse uma cápsula do tempo e
ali tem coisas, informações, de coisas que vão se perdendo”. Então, acho que o axé ele nunca acaba, a gente
pensa que ele acabou, pensa que acabou, mas não acaba. O cemitério... eu quis pesquisar a casa. Então fui
morar na casa do Pai Jamil. Ele me autorizou a morar lá. Eu fiquei durante 7 meses morando lá. Em parte
sentindo a casa. Ou seja, era uma relação silenciosa. Sentindo o axé da casa. E que me levava a uma reflexão
muito interessante, muito profunda, a respeito dessas coisas todas. E, por outro lado, foi o momento que eu tive
de mexer nos guardados. Em armário cheio de fotografias, em jornais, em coisas da época, que falavam de
pessoas que passaram por ali, etc, etc, etc. Então, porque que eu estou falando isso? Aparentemente, essas
coisas não formam nenhuma conexão entre si, não formam. Mas, a gente vê que existe uma linha azul como
seria poeticamente: invisível aos olhos mas visível ao coração, que vai cozendo essas coisas todas. Do Oswald
de Andrade pra cá e do Oswald de Andrade pra trás. O que que é a Semana de 22? Que tem toda essa força,
essa expressão? Uma coisa que ele vai buscar na Europa e repete aqui. Não vamos esquecer que era no
centenário da independência, o país estava se achando, era o momento de sancionar a existência de uma cultura
brasileira. E, nesse momento, o que acontece? Essas coisas todas se dão e cem anos antes tinha toda aquela
tessitura da história da cidade que envolvia o imperador que proclamou a independência do Brasil, que cria a
monarquia brasileira e que era o namorado da Marquesa de Santos.... Então, eu acho que pra gente fazer
história a gente tem que mergulhar na fantasia também, porque é através dela que ela se mostra muitas vezes.
Você tem que ter o que você vê e você tem que ter o que você sente, e que chega até você como informação
objetiva, mas que a percebe como informação objetiva, você tem que ter outro tipo de sensibilidade. Você
pode se perguntar, ele não fez história, porque que ele gosta dessas coisas? É a chamada história oral...
[comenta sobre o avô que lhe contava história da cidade] [me entrega os exemplares do Aruanda]
(6) Sobre terreiro da Mãe Clara e militância política: “é muito maluco essas confluências todas; aonde eu fui
encontrar o terreiro da Mãe Clara era um lugar estratégico pro partido em função da guerrilha; tinha duas
guerrilhas... o PC do B tinha preparado a guerrilha lá no Araguaia, onde meu irmão participou da guerrilha,
morrendo em combate, e tinha aqui pro lado do Vale do Ribeira que era aonde eu participava, eu fazia parte da
“quinta tarefa”, então a chamada quinta tarefa eram as tarefas militares. Quem compra um sitio e vai morar
nele é um jornalista chamado Armando Gimenes que se definia como um ateu, mas que gostava muito de
umbanda. Tem entrevistas na época que são divulgadas, recortes que são divulgados defendendo a umbanda
pelo jornal Diário da Noite, um dos diários associados, onde ele é o redator chefe. Então, naquele cantinho lá
do Cipó era onde a gente no sitio fazia treinamento militar. E quem capitaneava isso era o Armando Gimenes.
Aí vem a prisão do Gimenes e começa o movimento da Anistia, e essas coisas todas, na década de 1970, 75,76,
que é quando eu faço os primeiros contatos lá com a Mãe Clara. E o prefeito da cidade era o Antonio Carlos
Cravo Roxo que era um ex-motorista de caminhão, um homem assim de origem intelectualmente simples, e
que era muito próximo da Mãe Clara, e que tinha como chefe de gabinete, pra minha surpresa, o Armando
Gimenes, que já tinha sido preso, tinha cumprido pena etc e estava trabalhando, já tinha sido execrado de todo
o território jornalístico, estava trabalhando como o braço direito do Antonio Carlos Cravo Roxo. Então, isso
me instigou mais ainda a ficar lá no Embu-Guaçu. Sabe porque chama Cipó? [explica a rota dos jesuítas,
M´Boy-Mirim tupi-guarani, emboabas, “aqueles que moram longe”, em relação ao Patio do Colégio etc,
aldeamento dos tupis-guaranis na região]
(7) referências sobre a perseguição dos terreiros e estratégias de manutenção dos cultos – até quando vai o

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sentimento de perseguição?: Até os militares, quando a Igreja Católica através da teologia de libertação
rompe com a prisão de Frei Tito, Frei Betto, aquele massacre todo, e ela muda de posição... A igreja não, D.
Angelico Sandalo, D. Paulo Evaristo Arns. D. Paulo, essa figura maravilhosa, mas ele nunca foi da teologia de
libertação, ele sempre foi de vanguarda, mas assim, o sonho de D. Paulo era pacificar todo mundo. Eu falo
porque o conheci pessoalmente, e uma vez ele me propôs isso. Eu o conheci no movimento da Anistia; eu
estava com uma comissão do ICBA e aí nós estávamos discutindo esse negócio e tal, e a realização de um
culto ecumênico que juntava representantes da Igreja Metodista, do Reverendo Jaime Wright, a Monja Coen,
esse pessoal luterano também aqui de São Paulo que se articulava ecumenicamente e dava apoio a Igreja
Católica pra realização... pra pedir anistia. Num dado momento, D. Paulo volta-se assim pra um grupo restrito,
éramos umas 12 pessoas conversando, mas quando estava um petit comitê dentro do petit comitê ele coloca
que: “olha por mim esse culto juntava todo mundo, vencidos e vencedores, militares e contestadores do regime
e pacificava a família brasileira”. Proposta de D. Paulo. Complicado, mas assim, hoje se eu falo uma coisa
dessas eu sou massacrado. Mas assim, é meu ponto de vista também. Eu não tenho revanchismo. Eu acho que
quando falam da Comissão da Verdade, essa comissão quer mostrar meia verdade, não quer mostrar toda a
verdade. Porque a época na luta armada, houve desaparecimentos políticos, houve tortura, houve tudo isso,
mas assim, o lado de cá, o nosso também não era bonzinho. Até certo ponto, você tem que entender a barbárie
humana. E tem que falar: chumbo trocado não dói. E tem que entender que justamente esse espírito conciliador
é que acabou prevalecendo... tem uma história essa Anistia, Sarney, Collor de Mello, Itamar, FHC, Lula e
Dilma... agora, com 81 anos botar o brilhante Ustra na cadeia? Sabe? Falta alguém em Nuremberg... a mim não
engrandece em nada. Meus companheiros que morreram no Araguaia... bola pra frente, que isso... tem que ser
habilidoso na hora de trabalhar com política, aí tem que ser dialético, saber lidar com as contradições. Eu vejo
muito isso, porque eu faço parte do partido ainda, nunca deixei de participar do partido, mas sem a necessidade
de concordar com o partido. E hoje o partido numa condição com o CEDEM (Centro de Documentação e
Memória), quem está a frente desse projeto é o Augusto Boricoli, historiador. (…) A igreja católica se afasta e
eles [os militares] buscando uma legitimação popular se aproximam da umbanda. E, vem daí um certo, uma
certa deferência, cortesia em relação ao movimento umbandista. Então, começa o general que está ligado a
formação, em 1957, General Braga Moreira, que na verdade era coronel e quando entra pra reforma vira
general, então, o general Braga Moreira se junta com um pessoal do RJ e formam a União de Tendas de
Umbanda, o que veio a ser a União de Tendas de Umbanda e Candomblé do Brasil que é onde você foi. E
nessa época, olha que engraçado, falei que era militante no Vale do Ribeira, que era uma das possibilidades de
guerrilha. Mas porque que eu fui pra lá? Porque meu pai morava lá há muitos anos, e lá eu conheci a família
Paiva, conheci o Rubens Paiva, e conheci a intimidade religiosa do Rubens Paiva com a Umbanda. Negócio
muito interessante, porque quando eu tinha 17 anos, meu pai pede pra eu fazer … sempre participei de
política... pede pra eu fazer panfletagem, distribuir material de propaganda; eu fiz distribuição do filho do
Jaime de Almeida Paiva que era o Rubens Paiva, que eu conheci exatamente por conta disso. Ele combinou
comigo de eu ir pegar um material com ele, estava na parte da frente de um fusca que o Rubens Paiva abre, me
entrega esse material e na porta estava escrito “leia a Tribuna Umbandista”. Então, é uma historia interessante.
O Rubens Paiva depois que veio a ser... meu primeiro voto foi no plebicito do sim ou não do João Goulart, eu
ia completar 18 anos, mas eu já tinha militância; distribuição de folhetos pro Rubens Paiva, que foi quem foi
denunciar forte o IBAD, o IPES e toda aquela conspiração que deu base para o golpe. É, por isso, que eles
ficaram com um ódio mortal do Rubens Paiva; ele criou uma comissão parlamentar de inquérito para apurar as
infiltrações da CIA dentro do IBAD (Instituto Brasileiro de Ação Democrática) e a cruzada anti-comunista do
Pena Boto, Almirante Pena Boto; que é aonde nasce esse complexo industrial militar aqui em São Paulo, que
dá sustentação pro golpe de 31 de março. E porque que eu sabia disso? Porque desde os 14 anos fui trabalhar e
era a princípio office boy e depois arquivista da Companhia Ultragás. Que era o Sr. Perri Higel, sr. Ernesto
Higel que tinha como braço direito o sr. Hen Boisse, eu trabalhava a dois metros do Boisse. Todas as doações
que eram feitas pro IBAD e por IPES passava pelas minhas mãos e eu arquivava, classificava; já tinha 16 anos,
não era mais boy, era arquivista, eu falava: “filhas da puta”! No dia do golpe, os caminhões da Ultragás
carregavam soldados na rua aqui em São Paulo e dos prédios as pessoas jogavam papeizinhos. E eu já era
próximo do PC e recebi instruções pra buscar armas nas Classes Laboriosas que ficava atrás do Sindicato dos
Metalurgicos na rua Tabatinguera, quando cheguei lá, só tinha polícia. Daí o maior sentimento de impotência,
puta merda, nunca imaginava que fosse acontecer aquilo tudo... Aí eu fiz o que quem não foi preso fez, enfiou
a viola no saco e depois entro no final de 65, 66 na USP pra começar o movimento estudantil e participar das
passeatas, toda aquela história. [...fala sobre o avô... história de vida; sobre a cidade de São Paulo]
(8) Sobre os reis do candomblé e a relação com África: Pai Jamil tem uma árvore genealógica que foi
transmitida só na história oral. Então, Pai Jamil tem um pai de santo só na Umbanda, o Pai Jaú que era filho de
não sei quem lá no RJ. Foi quem trouxe a umbanda pra SP, Sr. Euclides Barbosa, que é o Pai Jaú. Ele foi
jogador da Portuguesa, depois jogou no Vasco, na seleção brasileira, voltou pro Corinthians e, foi quem
consagrou o Corinthians com a fama de macumbeiro etc e tal. Era o pai do Pai Jamil. Mas o Pai Jau veio do
candomblé pra umbanda, e o Pai Jamil fez uma coisa que nenhum deles fez, não ignorou umbanda e

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candomblé, como se fosse um antagonismo. Ele se colocou como sacerdote da umbanda cedo – com 18 anos já
era pai-de-santo, essa casa que frenquentamos é da década de 50 – e vai trabalhar com o candomblé, na nação
jeje-marrim, através de um pai-de-santo que tinha na baixada fluminense, muito famoso, que era o Tata
Famotinho. O Tata Famotinho é o pai-de-santo do Pai Jamil no candomblé. O Tata Famotinho era filho de
santo da dona Maria Angorense, a dona Maria Angorense era de Cachoeira de São Felix na Bahia, numa
função muito reconhecida, porque ela tinha sido criada num terreiro de um negro muito velhinho chamado Seu
Ventura, o Negro Ventura, de Cachoeira de São Felix. Ele chegou lá, conta a tradição, que ele era um
sacerdote africano que veio pra cá e se nega a ser escravo; ele foge e se esconde na Cachoeira de São Felix, aí
ele cria um quilombola e a partir daí surge a tradição da nossa casa. O negro Ventura cria a Maria Angorense,
que cria o Tata Famotinho, o Tata Famotinho cria o Pai Jamil, o Pai Jamil me cria e assim vai passando. […] o
Pai Jamil sempre foi muito cortejado pelos intelectuais da esquerda, mas assim, vendo-se a umbanda como
algo marginal que não devesse ser considerado, como se fosse lunpen, por exemplo, lidei muito com o Arruda
Câmara. Ele era natural da Bahia. Era um intelectual marxista de primeira linha e ficou como secretário geral
do partido durante uns 12 anos e tinha sido preso, foi torturado, e tinha paixão pela umbanda, muito próximo.
Não que ele dissesse que acreditava naquilo tudo, eu acredito, ele não dizia que acreditava, mas achava, por
conta da intimidade que tinha com Jorge Amado, que traz aquela figura do Pai Jubiabá, do terreiro como uma
agência social, de prestar serviços pra população. […] o que pensa de África? A diáspora africana ela se dá,
começa lá em Portugal mesmo antes do descobrimento do Brasil, a escravidão do negro, na América central,
Brasil e do Sul. Dizem os estudiosos que hoje o que existe de preservação de cultos africanos, aonde existe a
preservação é aqui, porque lá as coisas estão muito distante do que a gente imagina, essa África que a gente
tem na cabeça, é uma que tem uma historização através do relato de bisavô pra avô, pra filho, pra neto etc. A
ideia que temos da África é muito complicada, nós não sabemos nada da África. Em João Pessoa eu estava
vendo as medidas das distancias, SP está mais distante da África do que a costa africana de lá, não sabemos
nada do que existe. Então, eu acho que a cultura negra foi muito mais preservada do que a cultura índia aqui no
Brasil. Ela foi melhor assimilada. Mas, hoje dá pra dizer assim que a nossa negritude é muito mais autêntica do
que a negritude africana. […] esse pessoal [cursos de iorubá, africanos] nem chega no terreiro, porque é um
pessoal que se relaciona com uma elite pseudo-intelectual pragmática que vai lá e resolve pagar trabalhos
caríssimos e não sei o que. Não tem a ver conosco. Assim, parte mais de um folclore do que outra coisa. Eu
acho que é mais folclórico. É que nem, vou fazer um paralelo, tem aparecido muito lamas aqui no Brasil. Não
tem? Então, tem uns lamas assim, “eu era psicólogo, tinha um consultório bem sucedido, depois me converti
ao hinduísmo, cheguei lá e descobri que na última encarnação tinha sido o lama não sei o que”. E daí traz o
hinduísmo pra cá, tem todo um reconhecimento, mas não tem penetração popular. Fica no plano de elite. Do
ponto de vista das ciências da religiões é o budismo brasileiro, e quem se acerca do budismo brasileiro? Quem
participa? Esses que tem contato com os mestres de fora, que fazem workshop, que tem um sitio ambientado
como se estivesse na Índia etc é um pessoal quando se contabiliza no Nepal, vai morar nos EUA e compra dez
Mercedes. Na umbanda acontece isso também, onde tem dinheiro esse pessoal se locomove. […]

ANEXO 2 – LISTAS DE NOTÍCIAS – IMPRENSA PAULISTA E MACEIOENSE


Folha da Noite/Folha da Manhã/Folha de São Paulo - 1921-2000 - http://acervo.folha.com.br/

1921 – (11/11) – Teatro Boa Vista, Companhia Amélia: quadro “No Reino da Macumba”

1923 – (06/02) – Cantigas de carnaval (sambas fazem referencia à macumba)


1923 – (05/03) – idem.
1923 – (07/03) – idem.
1923 – (07/04) – idem.

1927 – (11/10) – Perigosa macumba no Rio


1927 – (21/10) – Nos domínios do “Enchú”
1927 – (24/10) – Nos domínios de Enxú (Folha da Noite)
1927 – (1/11) – Nos domínios do “Enxú”
1927 – (4/11) – Nos domínios de Enxú
1927 – (5/11) – Quando ia no melhor a “macumba”

1929 – (17/08) – Surra formidável por causa de uma “macumba” (Estação Quintino Bocaiúva, próximo a Uberaba)
(em outras notícias usa-se palavra macumba no sentido de bagunça – referência à reuniões políticas)
1929 – (13/12) – Repressão ao falso espiritismo (sobre RJ)

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1930 – (09/06) – Editorial: fala sobre samba, escravidão, música e dança no carnaval: código de postura da Câmara de
São Paulo de 1533 e 1623: “penas a todo homem christão branco que não seja negro de fóra que se achar em aldea de
negros foros ou cativos bebendo e bailando no meio do dito jentio”...

1931 – (01/01) – Desabafos de Juca Pato – Poema Cangerê; racista e preconceituoso


1931 – (21/01) – Folha da Manhã, p. 2 – Ainda o Templo da Macumba do Rio das Pedras – um crime de há cinco
anos que toma vulto com a descoberta de misteriosos subterrâneos.[muitas notícias em 1931 relacionam macumba com
musica mais tocadas nas rádios, apresentações de teatro e cinema – Filme Doce como Mel é muito comentado]

1933 – (27/10) – Folha da Manhã, p. 9. No Theatro Boa Vista, Clube dos Artistas Modernos, jantar com a apresentação
de candomblé, macumba e samba. / Também Theatro da Experiência no mesmo período.

1935 – (04/05) – Folha da Manhã: Antro de baixo espiritismo varejado pela policia: “A Delegacia de Costumes deu
ordens severas aos inspectores para que localizem os antros do baixo espiritismo. Hontem à noite, o dr. Furtado de
Mendonça, em companhia de vários inspectores, deu uma batida no centro espírita “Estrella do Oriente” à Rua Ité 12,
dirigido por Laura Brígida Ferreira da Costa e que funcionava desde dezembro de 1923, clandestinamente. Na ocasião
da batida policial foram presas as seguintes pessoas que se entregavam à pratica da “macumba”: Elvira de Jesus, Dario
Francisco Toito, Abel Francisco Valério, José Santos Guerra, Juvenal Tavares e Justiniano Pereira. Foi appreendida
enorme quantidade de drogas, receitas, santinhos etc. Laura Brígida Ferreira que está presa, será processada”.
1935 - (06/10) – Suplemento Folha da Manhã, III Seção, VIII páginas: capa – Batuque – Poemeto de Mário Donato
(Para a “Folha da Manhã”) = poema descreve um batuque, e a dança de uma moça em estado de santo – mistura
sensualidade com doença

1936 - (27/01) – Folha da Manhã – Campinas: “Macumbeira as voltas com a policia” – Emilia Carvalho, parda, 40
anos de idade – chamam-na “velha bruxa”, “Bruxa Rajada ou Pintada”.
1936 – (07/05) – Folha da Manhã, p. 10 – Feiticeira presa em flagrante. Maria Felizarda – presa durante sessão,
“bugigangas” transportadas para delegacia de costumes
1936 – (16/06) – Folha da Manhã, Primeira Secção: Mais um macumbeiro detido: Ulysses de Almeida Rosa, em Uma
– “Apesar de protestar a sua inocência, pois que Ulysses affirma que pratica o curandeirismo por ter compaixão dos que
tinham o “diabo no corpo” e dos que era victimas de “maus olhados” (...) recolhido ao xadrez aguarda processo de sua
“delectuosa atividade”.
1936 – (16/07) – Macumba, hoje na Radio Diffusora
1936 – (15/09) – Prisão de macumbeiro: Em São Miguel – Domingos Serrapilha
1936 – (06/10) – Folha da Noite, página 2. Da Cidade Maravilhosa (Rio, 5 - da Sucursal do Rio, Especial para a Folha
da Noite) – sobre relação da policia com os terreiros de “macumba” e o fornecimento de alvarás de funcionamento;
relaciona as macumbas com o jogo do bicho; indica umbanda e cabo eleitoral que favorece os terreiros
1936 – (20/10) – Folha da Manhã, p. 5: Prisão de um macumbeiro – “Inspectores da Delegacia de Costumes
prenderam em flagrante o macumbeiro Luiz Tommas, residente em Guarulhos e mais conhecido pela alcunha de
“Vovô”. Por ser reincidente na prática da macumba, “Vovô” está sendo processado.”
1936 – (25/11) – Folha da Manhã, p. 10: Foi detido um macumbeiro. Villa Formosa, João Aurelliano, “com várias
passagens”

1937 – (04/12) – Folha da Manhã, p. 4: Conferência sobre “Espírito e Macumba”. Antenor Ramos pronunciará, na
sede da Synagoga Espírita Nova Jerusalém, as 20:30hs na Rua Casimiro de Abreu.
[1938 – rádio, teatro, apresentações]

1939 – (27/02) – Folha da Noite, p. 3: A policia campineira surpreendeu uma sessão de baixo espiritismo” – a
prisão de cerca de 30 pessoas – Appreensão do material da macumba – Detidos os responsáveis (com foto) – ilegível
1939 – (09/04) – Folha da Manhã, página III: O Baixo Espiritismo (Syncretismo Fetichista) (Para a Folha da Manhã)
Moreira Machado
1939 – (26/04) – Folha da Manhã, página 4: Macumba varejada pela polícia – “falso centro espírita Joana D´Arc”,
rua Ferreira Alvandro, nº 8, José do Carmo.
1939 – (01/08) – Folha da Manhã, primeira secção. Secção Livre (Aos meus amigos e a quem possa interessar) – carta
de Jose Naso Junior datada de 31 de julho de 1939, defendendo-se como astrólogo – “Ciência não é charlatanice.
Astrologia não é cartomancia ou macumba!”
1939 – (05/08) – Folha da Manhã, p. 11. Campinas – Diligência Policial – prisão de várias pessoas, “chefe da arapuca”
Sebastião Gregório de Silos
1939 – (07/10) – Folha da Manhã, p. 4. Um sitiante lesado em 30 contos de réis por dois macumbeiros. –
convenceram-no que conseguiriam achar ouro em seu sítio

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1940 – (28/02) – Folha da Noite, p. 5. Installou um mundo aberto para iludir incautos com magia negra. Falso
sargento desmascarado e preso pela polícia – appreendido farto material de macumba – processo contra o mallandro.
[tem imagem de um ponto; interessante indica uma prática de filiação baiana nagô e jeje, além da “ubanda”; presença
de outros policiais no culto] Odayr de Oliveira
1940 – (14/08) – Folha da Noite, p. 2. Macumbeiros (de um observador policial)

1941 – (11/01) – Folha da Noite, p. 10. Agoniza a macumba em São Paulo. Das impressionantes pompas de outros
tempos, à vulgaridade atual. “Candoblés que se transformam em “sessões” espíritas. Enérgica ação repressiva da
Delegacia de Costumes, durante o ano de 1940 – cincoenta “macumbeiros” processados. [tem fotos ¾ das pessoas
presas, homens e mulheres – texto de Hermillio de Oliveira Pacheco – qualidade muito ruim, difícil de ler]
1941 – (17/01) – Folha da Noite, p. 7. Tenaz perseguição ao baixo espiritismo e à macumba – Continuando em sua
campanha profilática, a Policia trata de extirpar esse mal. [texto ilegível, tem fotos das pessoas]
1941 – (22/02) – Folha da Noite, p. 1. Horripilante o recém-nascido foi sacrificado na macumba (reportagem na
última página) [não tem]
1941 – (01/04) – Folha da Manhã, p. 4 – Iniciada pela polícia carioca severa campanha contra o baixo espiritismo –
aumenta o número de vítima da influência dos mistificadores – foram presos 85 macumbeiros [Major Felinto
Muller; associa loucura a macumba; “campanha relâmpago”]
1941 – (02/08) – Folha da Manhã, p. 10. Preso um casal de macumbeiros. [Estanislau Pilar e Maria Jose Pilar,
apreendeu o tambor]
1941 – (24/10) – Folha da Noite, p. 2. O casal “endireitava” a vida dos semelhantes e acabou entortando
definitivamente a própria vida. [sobre o casal Agenor Vicente Fabregas e Francisca Vianna Fabregas; acusados de
charlatanismo.
1941 – (29/11) – Folha da Noite, p. 4. Vamos Saravá – marcha-macumba para cantar no carnaval (letra de Nassara e
Frazão, gravação em disco de Ciro Monteiro)

1943 – (28/01) – Folha da Manhã, p. 4. Movimento da Delegacia de Costumes em 1942. [dão números de prisões por
categorias; exercício ilegal da medicina: 4, baixo espiritismo 3]

1944 – (29/07) – Folha da Manhã, p. 7. Movimento Espírita. Palestra Espiritismo e Macumba, na Federação Espírita
do Estado de São Paulo, rua Maria Paula, 158, palestra de Antenor Ramos.
1944 – (29/10) – Folha da Manhã, p. 4. Federação Espírita de Umbanda. [da sucursal do Rio] Rio, 28. O Ministro da
Justiça exarou despacho mandando arquivar o requerimento da Federação Espírita de Umbanda desta capital,
solicitando ser reconhecido órgão consultivo do poder público.

1946 – (27/01) – Folha da Manhã, p. 4. Macumba em plena praça Tiradentes.


1946 – (19/07) – Folha da Noite, p. 3. A policia acabou com a macumba a tiros. Três homens feridos num terreiro do
Rio. [a policia chegou atirando no terreiro]

1947 – (27/09) – Folha da Manhã, p. 7. Prisão de macumbeiro. Josimo Pereira da Silva, 27 anos, pardo, no bairro do
Carandiru.

1948 – acusam Adhemar de Barros de estar sob influência do baixo espiritismo e da macumba.
1948 – (21/11) – Primeiro Caderno, p. 5. Primeira Feira Folclórica de SP. [destacam macumba e capoeira baiana,
além das comidas]
(25/12) – destacam que haverá “perfeitas representações de macumba” que as pessoas pensam que conhecem, mas que
na realidade “poucos sabem o que realmente seja”, mesma notícia em 29 e 30; inauguração em 06/01/1949
1949 – (19/01) – Primeiro Caderno, p. 2. Semana da Macumba na Feira Folclórica. “terreiro” com pais-de-santo da
Bahia e Rio de Janeiro – texto elogia o folclore negro
1949 – (25/09) – Primeiro Caderno, p. 16. Coluna social – Macumba (assinado por Helen) – sobre elite que freqüenta
macumba no Rio de Janeiro.

1950 – (12/02) – [inicia uma fala elogiosa sobre os aspectos folclóricos afro-brasileiros, para os turistas estrangeiros
verem – Teatro Folclórico, Rio de Janeiro]
1950 – (02/07) – Segundo Caderno, p. 10. Crônica do Rio. Duas festas diferentes. [ texto de Maluh Ouro Preto, fala
de uma festa na casa de Abdias do Nascimento com artista do Teatro Experimental do Negro – elogioso]
1950 – (13/07) - Primeiro Caderno, p. 4. Katherine Dunham e sua companhia negra. [sobre bailarina e espetáculo em
SP, elementos da “macumba” expressos – texto de Ricardi, elogioso]
1950 – (29/07) – Primeiro Caderno, p. 5. Varejada uma macumba em São Miguel: Km 11 da Estrada da Morte em
São Miguel. (...) “preta Euclidia Gonçalves dos Santos, 55 anos, solteira, vulgo “Mãe Euclidia”. A policia surpreendeu
Euclidia dirigindo uma sessão de baixo espiritismo, na presença de numerosas pessoas, que contritas e genuflexas,

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acompanhavam os rituais. Todos os participantes da sessão foram conduzidos para a Delegacia das Contravenções
penais e ali autuados. Com Euclidia viviam dez crianças, todas limpas e bem tratadas, que a macumbeira afirmou estar
criando. Positivando-se essa alegação, o titular da referida delegacia restituiu a macumbeira à liberdade. O processo,
entretanto, correrá seus trâmites legais.
1950 – (06/08) – Quarto Caderno, p. 7. As origens do samba. [assina o texto G.P.R. – fala sobre a influência africana
na origem do samba, etimologia da palavra bantu – texto informativo – indica a conquista internacional do gênero, cita
Oneyda Alvarenga e Mario de Andrade]
1950 – (20/08) – Primeiro Caderno, p. 8. Centro de Macumba varejado. “Na tarde de anteontem, uma caravana da
Delegacia de Contravenções Penais varejou, na Rua Tuiuti, proximidades de um local onde o rio Tietê faz pronunciada
curva, o terreiro de antigo macumbeiro, conhecido pela alcunha de “Índio Botucudo” e cujo verdadeiro nome é Virgilio
Custodio de Andrade. “Índio Botucudo” encontrava-se, na ocasião da visita policial, dormindo no seu barracão. Ali foi
despertado e preso. Confessou praticar o baixo espiritismo, mas sem exigir dinheiro; aceitava, contudo, o que lhe davam
de esmola. Declarou ter 64 anos e ser pai de uma dezena de filhos. Quando o macumbeiro se dirigia para o carro de
presos, certo número de homens, mulheres e crianças, pós-se de joelhos a chorar, no terreiro da macumba. No barracão
de Virgilio foram apreendidas, entre outras coisas, cerca de quinhentas cartas de pessoas que solicitavam a intercessão
de “Índio Botucudo” para obtenção de emprego, dinheiro, etc. O contraventor foi recolhido à prisão do D.I.
1950 – (08/12) – Primeiro Caderno, p. 4. [notícia da estréia do Teatro Folclórico Brasileiro – artistas negros]

1951 – (28/01) – Vida Social, p. 1. Um espetáculo do Teatro Folclórico Brasileiro. [sobre apresentação destinadas a
norte americanos organizada pela Folha – bla, bla, bla – folclore, alma selvagem, interessante referência a Josephine
Baker “quando eu era uma negrinha no Alabama, não tinha roupa e para não passar frio no inverno eu dançava,
descobri que a dança me aquecia e me subia um fogo na cabeça como um vinho bom”. Repórter reclama de não
referencia as raças lusa e indígena – “assentaria melhor ao rótulo do grupo”]
1951 – (07/02) – Folha da Noite, p. 2. Nos bastidores da Policia – Mandingas de Macumba. [texto ilegível]

1952 – (14/08) – Primeiro Caderno, p. 4. Antigo futebolista detido pela Delegacia de Costumes. Pedro Grané, 55
anos.
1952 – (20/08) – Primeiro Caderno, p. 3. [Noticia vinculado junto com outras sobre a Câmera dos Deputados Federais
no Rio (capital federal)]. Um caso de macumba. Dentre os discursos proferidos no expediente, merece registro, pelo
seu ineditismo, a reclamação formulada pelo deputado baiano Sr. José Guimarães. Depois de se referir a uma notícia
divulgada por um matutino carioca sobre uma festa realizada no “terreiro” do conhecido “Babaldô” (sic) Joãozinho da
Goméia, na cidade fluminense de Duque de Caxias, a que estiveram presentes altas autoridades do governo federal,
como o general Ciro de Rezende, chefe de Policia do Distrito Federal, além de deputados e senadores, o orador indaga
do governador da Bahia, sr. Regis Pacheco, se de fato ele enviara um seu representante oficial, como declarava a
noticia. Não era possível – acentuou – que o governo de seu Estado se fizesse representar oficialmente em tais
solenidades.
1952 – (09/11) – Vida Social, p. 7. Lançamento da Moda Brasileira. [estilista Clo Prado, lança vestido chamado
“macumba” inspirado em seus motivos]
1952 – (04/05) – Primeiro Caderno, p. 12. Federação Espírita do Estado de São Paulo. Umbanda, Terreiro e outras
práticas. [assinado em 02 de maio de 1952, esclarecimento da Federação, distinguindo-se e condenando – parte ilegível]

1953 – (31/01) – Primeiro Caderno, p. 2. Ganham expansão em São Paulo os cultos primitivos e exóticos. Trata-se
de fenômeno religioso-social, que pode ter desastrosas conseqüências, diz às Folhas, o comandante Edgard Armond,
diretor Geral da Federação Espírita do Estado. [comentários bastante racistas sobre os imigrantes nordestinos, sua
religião etc – idéia de que cada um tem uma religião de acordo com seu grau de evolução – texto grande, deveria ser
transcrito, mas dá preguiça]
1953 – (27/03) – Primeiro Caderno, p. 8. Histórias de Sherlock – Mandingas de Macumba. [conto que menospreza e
ironiza as crenças em mandingas – duas “pretas” mãe e filha procuram delegado por conta de “mandinga” – preconceito
extremo]
[referências em 1953 de coreografia brasileira sobre macumba apresentada na Europa (Bruxelas e Londres) coreógrafo
Gilberto Brea – “Macumba de Exu”]
1953 – (27/09) – Assuntos especializados, p. 8. Santos. Jesus, a chave de Umbanda. [21/08/1948 fundado no Rio de
Janeiro – Nova Lei Espírita, Jesus a chave de umbanda; em Santos em 28/03/1949]

1954 – (12/02) – Primeiro Caderno, p. 5. Terreiro de Macumba na rua Altinópolis. [Água Branca, em SP – denúncia
de vizinhos incomodados com o toque as sextas-feiras “vestidos exoticamente”, pede atuação da polícia]
[vários anúncios de um Circo Piolim, - comédia “Macumba” – Suplemento feminino em busca da Felicidade Frederico
Kosin responde: “o tempo da macumba passou” gente instruída não vai em busca de respostas nela]

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1954 – (16/06) – Primeiro Caderno, p. 4. Os macumbeiros foram parar na cadeia. [na rua Teresinha, 6, no Cangaíba
– fala da prática da macumba e candomblé – lista nomes das pessoas presas com seus respectivos endereços, cita muitas
mulheres com crianças no colo – apreensão de objetos de culto, caderno com a lista de valores doados]
1954 – (22/07) – Primeiro Caderno, p. 2. Imprensa em Revista – Godin da Fonseca. Proclama Luís Martins no
Estadão que o Rio é a capital da Macumba. [faz referência ao Jornal da Umbanda, aos despachos em várias esquinas
na cidade; as Quimbandas como “magia negra” – mesmo não acreditando seria preciso “respeitar”]
1954 – (29/08) – Primeiro Caderno, p. 10. Retrata-se o Brasil na exposição de artes e técnicas folclóricas. [no parque
do Ibirapuera, texto de Paulo Afonso Grisolli, - foto de “complicados apetrechos da macumba paulista foram
cuidadosamente coletados para a exposição” – no dia 26/09 outra reportagem de capa expõe mais detalhes da
exposição, fotos de orixás Omolu, culto jeje – “brutalidade mística da macumba, envolta em mistérios, em terrores, em
excessos diabólicos ali está posta na pobreza de um quadro rico” do mesmo jornalista idiota]
[outro idiota dando conselhos – diz que grafologia é muito diferente da macumba – contravenção]

1955 – (12/01) – Folha da Noite, Primeiro Caderno, p. 1 e p.8. A policia “baixou” no centro e acabou com a sessão
de macumba – apreendida grande quantidade de “material” empregado no “serviço” – Médiuns e “clientes”
foram parar na delegacia. [foto das imagens de santos e caboclos, fotos de Pai Jacó, na av. Mandaqui, 32, bairro do
Limão – através de denúncia]
1955 – (21/01) – Primeiro Caderno, p. 8. Disposta a policia a acabar com os terreiros de Macumba. – A delegacia de
Costumes que até agora negligenciava o problema vai começar rigorosa campanha – a prática do baixo espiritismo
atingiu proporções alarmantes. [texto ilegível]
1955 – (24/01) – Primeiro Caderno, p. 9. Historias de Sherlock. A Macumba ia em meio... [texto de Raimundo de
Meneses]. [texto grande como crônica, mostra a entra da policia em um terreiro de umbanda na Vila Maria – ironiza os
ritos e cantos, transcreve uns versos, está ruim de ler, pouco legível, mas tem um “suposto” dialogo entre o pai-de-santo
e o policial onde explica o que é umbanda e mesa branca]
1955 – (26/01) – Segundo Caderno, p. 7. A Macumba venceu Barbosinha. [texto ilegível, sobre jogador do Palmeiras]
1955 – (12/02) – Segundo Caderno, p. 8. Mais velhas que o futebol a superstição e a macumba. [texto de A. Mendes,
sobre a relação do futebol com a “macumba”, ruim de ler, ilegível]
1955 – (31/07) – Assuntos Gerais, p. 10. Roteiro da Praia Grande III – Umbanda Branca, um espetáculo pouco
frequente à beira mar. – adeptos de estranha seita praticam seus rituais sob os olhares curiosos dos profanos. [sobre
Irmandade Espiritual Estrela do Mar, Rua Bresser, 204 – dirigem-se para Praia Grande – texto preconceito – diz que é
branca, segundo fiéis, por não se dedicar a prejudicar os outros]
1955 – (16/09) – Primeiro Caderno, p. 8. Ganham popularidade os terreiros de Umbanda. – centros de atração até
para “gente bem” – os bailarinos procuram encontrar harmonia em ritmos bárbaros e frenéticos - a reportagem
surpreende uma tenda em pleno funcionamento na Av. Tiradentes. [texto de Hermilo Pacheco; texto ilegível, com
fotos]

1956 – (12/08) – Primeiro caderno, p. 1. Choque armado entre policiais e fanáticos em Inhaúma, Minas Gerais,
provoca 7 mortes – teriam os policiais reagidos para não serem massacrados pelos adeptos da estranha seita. [em Serra
Grande, próximo a Sete Lagoas – Davi Damião “profeta” e um militar soldado Geraldo Enes de Oliveira, acusados de
prática de curandeirismo e macumba – texto grande, continua página seguinte que eu não encontrei, detalhes do
acontecimento – denunciados pelo padre, o cura de Inhaúma Antonio Nacif Salomão]

1957 – (20/01) – Assuntos Especializados, p. 7. Cinco aéreas econômicas brasileiras retratadas na Exposição de
Artes e Técnicas Populares. [Pavilhão Garcez no Ibirapuera; feira inclui bonecos vestidos como orixás “candomblé da
Bahia”, “representando as energias produtivas da natureza” – tom do texto é que todos são elementos rústicos, de um
Brasil rural]
1957 – (08/02) – Segundo Caderno, p. 4. Três pragas estão arruinando o Brasil: cachaça, burocracia e macumba. –
500 milhões de litros de cachaça por ano – nos terreiros de Umbanda os orixás querem dinheiro – a máquina emperrada.
[texto de João José, racista ao extremo, terrível, descreve os males e uma sessão assistida no Bresser]
1957 – (27/08) – Segundo Caderno, p. 4. Folha Literária, Maria de Lourdes Teixeira. África, de Herculano Pires.
[texto ilegível – poema legível]
1957 – (29/09) – Atualidades e Comentários, p. 4 – Teatro. Valorização dramática da cultura negra em Sortilégio.
Será apresentada no Municipal a última peça de Abdias do Nascimento – o tema central deste “mistério negro”. [texto
de JJ de Barros Bella – sobre estréia de Abdias como autor – elenco do Teatro Experimental do Negro]
1957 – (03/12) – Assuntos Gerais, p. 8. Com a Delegacia de Costumes. [resposta da folha a uma carta de leitor
reclamando de macumba no seu prédio na av. Eduardo Coutching – jornal encaminha a delegacia]
1957 – (07/09) – Assuntos Gerais, p. 2. Preso pelo exercício ilegal da medicina Presidente da Federação
Umbandista. [Rua Paschoal Moreira, 449 – sede da Federação, foi preso Alfredo da Costa Moura – crime de
estelionato, 150 pessoas no local para consulta, apreendidos livros de registros das tendas de umbanda da capital e do
litoral]

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1957 – (08/09) – Assuntos Gerais, p. 2. Dos Estados. Os vereadores de Porto Alegre rejeitaram veto do prefeito à
doação de terreno aos umbandistas. [construção de um hospital da União de Umbanda do Rio Grande do Sul –
Campanha de D. Vicente Scherer contra a doação]
1957 – (22/09) – Assuntos Gerais, p. 10. Curandeiro preso em flagrante. [Felix Nascentes Pinto, 57 anos, tenda de
Umbanda Luz e Verdade, Rua Maria Marcolina 495; solto após pagar fiança de 2000 cruzeiros, saiu com quatro
advogados].

1958 – (04/07) – Assuntos Gerais, p. 6. Centro de Estudos Afro-Brasileiros. [em preparação do III Congresso Afro-
Brasileiro a ser realizado em SP em 1959; dá nome dos intelectuais envolvidos; aponta organização da Semana Nina
Rodrigues no dia 17; atividades na Biblioteca Municipal; estudos sobre o negro no Brasil; haverá apresentação de
candomblé e “fatos folclóricos do negro”] noticia também reproduzida no dia 06/07; 10/07; 13/07
1958 – (17/07) – Assuntos Gerais, p. 8. Noite Afro-Brasileira. [durante a Semana Nina Rodrigues, na Biblioteca
Municipal, conferências sobre Nina Rodrigues e Arthur Ramos, poemas do poeta negro Carlos Assunção; manjares
típicos; apresentações de candomblé e “exposição de um fetiche”]
1958 – (09/07) – Assuntos Gerais, p. 8. Surge no Maranhão versão moderna do “Conselheiro”. Um novo enviado
do céu, senhor das terras e das almas de Nazaré. [texto de Audalio Dantas, com fotos, reportagem grande, reproduz
cantigas] sobre Padrin José Bruno fundador do Arraial de Nazaré (José Bruno de Morais) – sincretismo (católico-
umbanda) igreja e terreiro – templos separados, há toques de tambor. Repórter diz que Padrin informa que seguem a lei
da umbanda, mas lá é diferente, é “undina”.
1958 – (12/08) – Primeiro Caderno, p. 1. Huxley num ritual de Macumba. [no Rio, foto dele abraçando o pai-de-
santo]
1958 – (09/09) – Folha da Noite, p. 19. Apresentação no Teatro Municipal do Rio do Oratório fetichista
“Candomblé” – obra de autoria do maestro José Siqueira – escrita para ser apresentada no aniversário de 70 anos da
abolição – “preparadas por um dos mais famosos pais-de-santo da Bahia Neive Branco.
1958 – (15/09) – Folha da Noite, p. 32. Nos terreiros de umbanda, caboclos são recebidos com incenso e alfazema.
[texto de Paulo de Tarso] descreve com fotos um ritual da umbanda, a modo de introdução, como uma novidade que
está crescendo no Brasil. Transcreve ponto de abertura que ouvi na tenda de Pai Jamil.
1958 – (18/09) – Primeiro Caderno, p. 6. Ameaçado de extinguir-se o Teatro Popular Brasileiro – faltam recursos
para prosseguir na obra de divulgação de nossas tradições populares – Solano Trindade, fundador do TPB, confessa-se
desanimado.
1958 – (01/10) – Folha da Noite, p. 8. “Desde setembro de 1938, a humanidade está envolvida por um novo
“karmico” – Homenagem dos umbandistas de S. Paulo ao seu presidente Sr. Alfredo Costa Moura – Nas tendas de
Umbanda os espíritos dos índios velhos que habitaram o Brasil são recebidos festivamente e dão conselhos – a respeito
de sua vocação umbandista o Sr. Costa Moura tem uma resposta que não agrada a todos. [maior parte do texto está
ilegível, fotos de concentração de tendas na Mooca, cerca de 60 tendas, 2000 pessoas – transcreve oração a Zambe]
republicado em 02/10

1959 – julho-agosto – caso de mulher encontrada morta na praia de santos; várias notícias indicam relação com
“macumba” – sensacionalista; há notícias de grupos de balé soviético recebendo aulas de candomblé, como também
apresentação para artistas chineses; reunião da ABPC em Salvador, onde cientista japonês fotografa candomblé;
intelectuais falando sobre medicina e considerando os conhecimentos do candomblé;
1959 – (08/01) – Assuntos Gerais, p. 6. Praticantes do baixo espiritismo acusados de praticar homicídios.
[acusações contra Tenda de Umbanda São Judas Tadeu de Cesarina Martins do Nascimento, continua em 09/01 –
Interrogada macumbeira acusada de homicídios e em 10/01 – A mcumbeira acusou o ex-amasio de ter assassinado a
filha de 8 anos]
1959 – (15/05) – Folha da Noite, p. 6. Terreiro de Umbanda Mãe Maria das Missangas, filiado à Liga Umbandista
de S. Jerônimo do Estado de S. Paulo. – convocatória para assembléia ordinária, bairro Burgo Paulista.
1959 – (01/10) – Primeiro Caderno, p. 2. Jorge Amado é obá de um terreiro de macumba.
1959 – (15/10) – Primeiro Caderno, p. 6. Seviciado durante sessão de umbanda.
1959 – (23/10) – Primeiro Caderno, p. 12. “Exu Vira Mundo” vendeu a confissão de homicídio por petrechos de
macumba. / p. 1 – Macumba na policia se para resolver crime. A policia solucionou o crime de Exu Vira Mundo
em uma sessão de macumba. [mãe que teria assassinado os filhos pequenos por estar “com macumba na cabeça” –
policial imita [conhece termos e liturgia] uma sessão e negocia a confissão com “Exu Vira Mundo” em troca de “ebó” –
texto sensacionalista ao extremo, reproduz o dialogo entre o policial e o “Exu”]

[Teatro Popular Brasileiro do Solano Trindade sempre tem apresentações, noticias ao longo dos anos 1950/1960]
1960 – referencias de práticas de “macumba” em apartamentos
1960 – (09/12) – Primeiro Caderno, p. 4. Os Umbandistas reverenciam Iemanjá, a rainha do mar. [praia grande –
descreve ritual – usa termo errado “médio” para entidade]

330
1961 – (27/04) – Ilustrada, p. 3. “Vozes da África”. [crítica teatral do espetáculo de Solano Trindade]
1961 – (16/07) – Assuntos Diversos, p. 1 – Pai Preto no Congresso de Umbanda. [no Rio II Congresso Nacional de
Umbanda]
1961 – (18/08) – Primeiro Caderno, p. 8. Iº Congresso Umbandista do Estado de São Paulo. Codificação
Doutrinária – Unificação. 8 a 10 de dezembro, promovido Liga Umbandista São Jerônimo do Est. De São Paulo,
Primado de Umbanda do Estado de São Paulo. [seguindo determinação do II Congresso Nacional – transcrever se for
usar]
[várias notícias de violência e prisão de pais de tendas umbandistas]
1961 – (19/11) – Ilustrada, p. 1 e p. 4. De Oxalá. [sobre festa do Bonfim na Bahia, pequeno texto sobre foto]
1961 – (10/12) – Assuntos Diversos, p. II. Umbandistas fazem congresso. [Santos na praia José Menino; festa pra
Mamãe Oxum e Iemanjá]

1962 – (29/01) – Primeiro Caderno, p. 6. Tomou posse a diretoria da União Brasileira de Umbanda. [Federação
Umbandista do Estado de S.P (FUESP), Rua Paschoal Moreira, 449, Alto da Mooca, presidente Alfredo Costa Moura –
articulação com outros estados (RS, MG, MT, Guanabara, São Paulo, Paraná), fins de organização de partido político
umbandista; foto de Caboclo Serra Negra]
1962 – (30/01) – Primeiro Caderno, p. 6. Tenda de Umbanda em Vila Medeiros provoca queixas; os dirigentes
contestam. [confusão entre vizinhos e a Tenda Oxoce da Mata; campanha para fechar a tenda, ameaças de um sargento
de policial que morava na localidade; reclamações de barulho que não procediam; os dirigentes do centro também eram
funcionários da Secretaria de Segurança Publica]
1962 – (19/04) – Primeiro Caderno, p. 9. Tenda de Umbanda não é proibida. [sobre processo contra Deise Jurdelina
de Castro Freire, Tenda de Umbanda Filhos de Tupã, Rua Safira, 18, Jabaquara – ganhou liberação, provada que não
praticava atos “ilícitos”]
1962 – (07/06) – Segundo Caderno, p. 4. O pintor de Embu é Exu no candomblé. [texto ilegível]
1962 - (03/08) – Segundo Caderno, p. 4. Santa Bárbara ou Iassan? (sic) [texto de Oliveira Ribeiro Neto sobre o filme
o Pagador de Promessa de Glauber Rocha]
1962 – (17/10) – Primeiro Caderno, p. 7. Para cada orixá a roupa é diferente. [aula de Solano Trindade sobre
candomblé no Museu de Arte de São Paulo, curso de Danças Folclóricas; explica mitologia, cores e estilo de dança,
além da hierarquia e relação entre orixás e santos]
1962 – (22/11) – Primeiro Caderno, p. 8. Candomblé para Juscelino ver. [ilegível, sobre Rio]
1962 – (06/12) – Festa de Mamãe Oxum na Praia Grande (da Cruzada Espírita Umbandista; na mesma noticia tem as
palavras espírita umbanda candomblé)
1962 – (11/12) – Primeiro Caderno, p. 6. Filhos e pais de santo vão ao teatro: Candomblé. [RJ – Orquestra Sinfônica
Brasileira apresenta a peça Candomblé do maestro Siqueira; cantores são membros de terreiro] notícia repete em 14/12

1963 – (04/02) – Ilustrada, p. 2. A Festa do Iemanjá. [festa no Embu no dia 02/02 – organizada por Solano Trindade]
1963 – (05/02) – Primeiro Caderno, p. 1. 13 anos de Teatro Popular Brasileiro. [foto festa no Embu, presença do
Teatro Experimental do Negro, e outros]
1963- (21/02) – Primeiro Caderno, p. 1. O Museu de Folclore conta a história do Brasil quase ao vivo. [texto de
Domingos De Luca Jr; ilegível, foto de bonecos vestidos de orixás]
1963 – (08/11) – Ilustrada, p. 12. Candomblé ajudou o Bahia a vencer o Botafogo. [sobre vitória do Bahia em jogo
no RJ – presença dos Filhos de Gandhi na arquibancada, instrumentos de terreiro e cantos teriam influenciado segundo
o cantor Jamelão]

1964 – (09/01) – Primeiro Caderno, p. 9. Candomblé e macumba. [RJ – decoração do carnaval será sobre essa
temática]
1964 – (19/02) – Primeiro Caderno, p. 8. Espíritas querem maior aproximação com a Umbanda. [texto a ser
transcrito – mesmo presidente comandante Edgard Armond que esculhambava os umbandistas nos anos 1950, pensa em
aproximação nos moldes do ecumenismo da igreja católica, mas sem fusão... umbanda ainda tem rituais primitivos;
nota-se crescimento vertiginoso e pensam por bem aproximar-se]
1964 – (27/02) – Segundo caderno, p. 6. Protetor falhou e o pai-de-santo foi preso. [ironiza prisão de Eugenio de
Almeida Rosa, seu Caboclo Jaraguá não o avisou da chegada da policia; Tenda Espírita de Umbanda, Luz, Caridade e
Verdade, Rua Mirtes, 28, Parque São Lucas – acusação de curandeirismo]
1964 – (24/04) – Primeiro Caderno, p. 1. Homenagem a S. Jorge. [foto grande, fala das homenagens no RJ e SP – nas
tendas de umbanda e espírita – sincretizado com Ogum]
1964 – (11/05) – Primeiro Caderno, p. 6. Jornalistas alemães viram candomblé. [apresentação no consulado alemão,
com artistas – é mais dança folclorizada]
1964 – (08/12) – Quarto Caderno, p. 4. Festa a Iemanjá. [no Embu, do TPB de Solano no barraco do escultor
Claudionor Assis]

331
1964 – (15/12) – Primeiro Caderno, p. 1. Umbanda foi a Praia Grande reverenciar Iemanjá [sobre festa, foto grande
mostra um Obaluaiê; (16/12) – Umbanda foi à praia por Iemanjá, Rainha das Águas.

1965 – (12/03) – Ilustrada, p. 4. Candomblé no Blota Jr Show. [ilegível]


1965 – (13/03) – Ilustrada, p. 4. Rituais e Candomblés da Bahia no dia 19 no Arena. [conjunto folclórico Malungo
de Wilson Morais e Marta Luiza]
1965 – (19/03) – Primeiro Caderno, p. 7. Homenagem ao Dia da Umbanda. [Cruzada Federativa de Umbanda do
Estado de São Paulo, convida para jantar comemorativo, dia 20, inscrição com o jornal a Tribuna Umbandista]
1965 – (04/04) – Folha Feminina, p. 4. Passado, presente, ladainha e candomblé. [texto de A. Carvalhaes, turístico,
com fotos]
1965 – (26/04) – Primeiro Caderno, p. 1. Umbanda comemora S. Jorge. [terreiro do Jaçanã]
1965 – (11/05) – Quarto Caderno, p. 4. Candomblé para os ucranianos. [presença de bailarinas ucranianas assistindo
ao grupo Malungo]
[grande quantidade de clubes, bares e restaurantes, além das apresentações teatrais e na TV de rituais do candomblé –
Bahia como autentico e folclore; também muitos pacotes turísticos são anunciados]

1966 – (14/05) – Primeiro Caderno, p. 7. 13 de Maio teve balé, música e umbanda.


1966 – (28/08) – Primeiro Caderno, p. 16. Ciclo de estudos sobre rituais afro-brasileiros. [Sociedade de Psicologia de
São Paulo]

1967 – (30/01) – Segundo Caderno, p. 4. Dia de Macumba com o Malungo. [reportagem grande sobre apresentação
no teatro Arena do grupo Malungo, muitas fotos]
1967 – (15/08) – Primeiro Caderno, p. 9. Santos dá festa de umbanda e candomblé. [sobre festa de Iemanjá na Praia
da Gonzaga – ilegível]
1967 – (24/04) – Primeiro Caderno, p. 6. Umbandistas celebram S. Jorge [texto ilegível]
1967 – (01/12) – Turismo, p. 2. Capoeira briga assim. [texto sobre Mestre Pastinha e capoeira; parte ilegível]

1968 – (19/01) – Primeiro Caderno, p. 1. Perdeu o marido no terreiro. [RJ – mulher que reclama de ter perdido
marido pra outra em terreiro de candomblé, ameaçada de morte por Ogum Ronda]
1968 – (20/03) – Primeiro Caderno, p. 8. Cruzada Espírita faz homenagem ao Dia de Umbanda.
1968 – (03/04) – Primeiro Caderno, p. 15. Associação do Negro promove curso para festejar 80 Anos da Abolição.
[curso de sociologia africana na USP, prof. Castro Solomenho – “integrar o negro e não combater o branco”]
1968 – (04/04) – Primeiro Caderno, p. 1. Umbanda fez ontem a festa de S. Jorge. [informações gerais sobre o culto ao
santo no Brasil]
1968 – (29/04) – Primeiro Caderno, p. 5. Cem mil umbandistas homenagearam S. Jorge. [discurso do General
Nelson Braga contra o materialismo ateu, Jamil critica as entidades que não quiseram participar do “saneamento da
religião”] em 29/04 – Umbanda homenageou S. Jorge [número cai pra mais de cinco mil, no Ginásio do Pacaembu]
1968 – (07/06) – Turismo, p. 23. Ritual sagrado de Yawô. [fala que é sagrado, explica e é apresentado no bar
Quitandinha]
1968 – (06/12) – Ilustrada, p. 5. Festa para Iemanjá. [no Embu]

1969 – (21/04) – Primeiro Caderno, p. 4. Sete mil umbandistas festejam Ogum. [União das Tendas Espíritas e
Umbandistas do Est. de São Paulo] (…)
Umbandistas mais ortodoxos criticavam a presença de adeptos do Candomblé. Com suas roupas exóticas de forte
colorido e os panos-da-costa, ajeitados à cabeça, ao estilo das negras africanas. Alguns homens dessa corrente
ritualística vestiam trajes de cores berrantes crivados de lantejoulas, levando turbantes indianos à cabeça. Também na
maneira de dançar eram criticados os adeptos do candomblé, por acharem os umbandistas mais conservadores que “não
se deve misturar as coisas. Ou bem se é umbandista ou bem se é outra coisa”. Outros eram ainda criticados pelos
excessos, como alguns chefes de Terreiro vestidos com capas luxuosas e macacões aplicados com pedrarias que
despertavam a atenção geral. “Isso aqui não é exatamente um desfile de carnaval” - comentou um umbandista purista.
(notícia destaca a presença de turistas argentinos) (Folha de São Paulo – 21 de abril de 1969)
1969 – (22/04) – Primeiro Caderno, p. 11. Comemorações do Dia de Ogum, reúnem dois mil umbandistas.
[Federação Umbandista do Estado de SP – Mooca – também faz referencia às comemorações em Guarulhos]
1969 – (15/05) – Ilustrada, p. 1. Casamento umbandista na festa do preto velho. [Sociedade de Pesquisa em Ciências
Ocultas, Alameda Eduardo Prado, 167, terceira sobreloja; Kabala Oriental, Terreiro do Oriente – sincretismo budismo-
umbanda; texto grande descreve ritual, explica linhas, transcreve cantigas; terreiro existia há 22 anos]
1969 – (18/05) – Caderno especial, p. 42. A história dos santos que perderam o lugar. [retirada dos santos do
calendário litúrgico]

332
1969 – (20/08) – Primeiro Caderno, p. 10. Umbandistas escolhem a bíblia que vai nascer. [sobre articulações do
congresso nacional na Guanabara, entrevistam pai-de-santo em SP que não sabe nada disso, sobre o boom do comércio
de artigos de umbanda]

DÉCADA DE 1970

1970 – (24/05) – Primeiro Caderno, p. 9. Crise dos charutos um assunto que anda de boca em boca. [crise do
mercado de charutos, referencia a venda de charutos em SP e RJ para as macumbas, valores, “a maioria dos
comerciantes de charutos afirmam de dentro de 50 anos não haverá mais quem goste de charutos, e se houver mercado,
será só para os centros de baixo espiritismo, pois hoje é tão difícil se encontrar alguém fumando charuto quanto quem
use gravata-borboleta”.]

Candomblé tem casa em São Paulo (Folha, 06 de julho de 1970)


Waldomiro de Xangô

1971 – (31/05) – Primeiro Caderno, p. 6. Macumbeiro fulmina cunhada. [sobre briga entre irmãos, um macumbeiro
na Bahia teria “matado” a cunhada: “A gora Leodicio está cada vez mais preocupado porque seu filho também começou
a apresentar sintomas estranhos. Ele já levou o garoto a diversos terreiros aqui em São Paulo, nos quais já gastou já
gastou mais de 200 cruzeiros na tentativa de anular o “despacho” do irmão. Sem nada conseguir afirmou desiludido ao
delegado que a macumba em São Paulo é fraca, “por isso não dá pra anular despachos feitos na Bahia, bem mais
fortes”.
Homenagem a Médici e a Natel (Folha, 01 de junho de 1971)
O Presidente Garrastazu Médici, as Forças Armadas e o Governador Laudo Natel serão homenageados dia 06 próximo
no ginásio do Ibirapuera durante a Festa de São Jorge Ogum que será realizada pela União das Tendas Espiritas de
Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo. (…)

Umbanda homenageia Ogum hoje no Ibirapuera (Folha, 6 de junho de 1971)


(sobre a Festa – União das Tendas de Pinheiros – explicações católicas e umbandistas sem referencia ao orixá)

O povo junto de Médici na data da Abolição (Folha, 14 de maio de 1972)


(ver parte da fala Frederico Penteado Jr. Presidente do Clube dos 220 – materia grande que dá pra explorar bem)

A preocupação da Igreja com o trabalho de Satã (Folha, 27 de novembro de 1972)


(visão geral do catolicismo e kardecismo, indica relação direta do culto a satã com os cultos afro-brasileiros)
(…)
“Para os espíritas, seguidores de Allan Kardec, conta o paulista José Coutinho da Federação Espírita de São Paulo, o
Diabo não existe, o que existe são pessoas que vivem nas trevas […] que quando morrem reencarnam e continuam
praticando a maldade. (…) Para o espírita Coutinho da Silva, […] alto e nem baixo, somente o espiritismo que chamam
vulgarmente de “baixo espiritismo” […] e outras religiões que utilizam a maldade e outras práticas ou […] doração
espírita. Entre elas coloca a Umbanda, a Quimbanda, Candomblé, Macumba e outras práticas fetichistas. Já para os
quimbandistas, o Diabo existe e é uma das personagens centrais do culto. É invocado por várias denominações como
Gira, Exu de Encruzilhada, Tranca-Ruas, Exu Caveira, entre outros. A própria denominação Quimbanda significa “Mau
Sinal”. Dedica-se a pratica litúrgica voltada para o mal. Seus fiéis utilizam-na para vingar desafetos espalhar doenças,
mortes, além de outros trabalhos voltados para o mal”. (...)
(associam uma igreja satânica nos estados unidos com uma “associação de bruxos e curandeiros” no Quênia, com 5000
adeptos)

Louvor a São Jorge (Folha, 21 de abril de 1973)


Jamil Rachid, presidente da União das Tendas Espíritas e Candomblé de São Paulo, e Jaime Alcântara, da mesma
entidade, chegarão amanhã em Congonhas, procedentes da África do Sul, onde convidaram autoridades da Nigéria,
Gana e de outros países africanos, para participarem da Festa de São Jorge. A festa de São Jorge será realizada a 20 de
maio no Ginásio do Ibirapuera, com a participação de cerca de 25 mil pesssoas.

Vice-Rei (Folha, 31 de julho de 1973)


Em uma das maiores concentrações de umbandistas que se tem notícia até hoje, marcada para o dia 24 de agosto, em
Recife, Eduin da Silva (sic), “pai de terreiro” em Olinda será coroado Vice-Rei do candomblé do Brasil. A cerimonia
será presidida pelo babalorixá José Ribeiro, tido como a maior autoridade dos cultos afro-brasileiros, no momento. As
informações do Recife dizem que o acontecimento terá grande repercussão, atraindo não só os umbandistas, mas
também curiosos de todo o nordeste. Não há confirmação ainda de uma caravana do Parque São Jorge.

333
Exus, pragas, bênçãos católicas: as religiões e crenças populares lutam também pelo ambicioso campeonato / E a
ciência perde o jogo para a magia (Folha, dezembro de 1974)
(faz relação entre as religiões afro-brasileiras e o futebol, preconceito em diferentes níveis – Pai Jau; Corintians; Pai
Edu veio de Olinda)

Feitiços de amor fiel, e outras lições populares (Folha, 22 de agosto de 1975)


(associa o dia do folclore com o candomblé – informa aumento de número de casas que vendem produtos; sempre posto
como misticismo, superstição)

Na Umbanda, participação ativa (Folha, domingo, 4 de janeiro de 1976, Vida Social, p. 40)
(sobre o papel da mulher na religião e na sociedade)
“A Umbanda respeita muito a mulher e apóia sua emancipação em várias alas. Jamil Rachid presidente do Superior
órgão de Umbanda e Candomblé do Estado de São Paulo e da União das Tendas Espíritas e de Umbanda e Candomblé
do Estado de São Paulo, define a Umbanda e fala sobre suas personagens.
(…) achamos importante a participação da mulher na sociedade, pois complementa a ação dos homens. Na época atual,
a mulher evoluída ajuda o seu companheiro, vive ao seu lado, vibra em todos os sentidos.
Sabemos que as necessidades atuais das famílias foram bastante aumentadas. Novos produtos foram lançados,
considerados indispensáveis como: televisão, geladeira, automóveis, etc e, às vezes, o homem sozinho, preocupado com
a instrução dos filhos (também uma necessidade), não consegue ganhar o suficiente para fazer frente às necessidades. A
umbanda respeita muito a mulher e apóia a sua emancipação em várias alas. Considera a sua inteligência e a simboliza.

Raja Yoga Superior tema de curso (Folha, 5 de abril de 1976, Ilustrada, p. 5)


O corpo fechado, na terminologia dos terreiros de Candomblé ou de Umbanda, é ingênua crendice popular ou pode ser
explicado fisicamente pelas irradiações químico eletromagnéticas do corpo humano? Essa energia magnética pode ser
desenvolvida à ponto de permitir a pessoa erguer em torno de si uma barragem magnética protetora contra vibrações
destrutivas, partindo da mente inimiga? Na resposta a essas perguntas estaria contida a explicação de alguns dos
mistérios iniciáticos dos antigos sacerdotes sumérios (mais de 12 mil anos antes de Cristo), egípcios, assírios e caldeus?
(…)

Festa de Ogun no Ginásio do Ibirapuera (Folha, 30 de maio de 1976, Local, 3º caderno, p. 23)
(...)
Até agora já foram confirmadas a presença das representações do Rio Grande do Sul, Santa Catarina, Paraná, Mato
Grosso, Minas Gerais e Espírito Santo, além de uma representação umbandista do Uruguai. Um dos pontos altos dos
festejos será a apresentação da Embaixada do Senegal, com seus trajes e danças típicas.

Rio, às suas ordens – Dirceu Ezequiel – O folclore como atração (Folha, 11 de junho de 1976, Turismo, p. 34)
(apresenta uma definição incorreta da umbanda e candomblé, generalidade, preconceito) (…) A autenticidade desses
cultos, em seu curioso primitivismo, tem sido mantida, apesar das causas que lhes determinam transformações, como é
o caso das “divindades” que sofreram mutações quer por influencia indígena ou europeia e nesse caso, muito pela
dissimulação a que o negro se via forçado para continuar suas praticas – identificando seus “orixás” com os santos
católicos. Alguns exemplos seriam Ogum, que é São Jorge na Umbanda e Santo Antônio, no Candomblé; Iemanjá –
Rainha das águas – para a Umbanda se identifica com NS da Conceição, sendo NS do Rosário no Candomblé; Oxalá
referenciado como Jesus Cristo na Umbanda, é, para o Candomblé o Senhor do Bonfim. A vestimenta branca é própria
da Umbanda, enquanto o Candomblé apresenta as cores azul, amarelo, verde, rosa e branco. Na incorporação das
entidades para os “despachos” ou “trabalhos de demanda”, as vestes vermelho e pretas são comuns aos dois cultos, bem
como a pólvora, a cachaça e o sacrifico de animais. Os atabaques – semelhantes ao bangô – são comuns, variando os
“pontos” (cânticos) de saudação às entidades próprias de cada um. A localização dos “terreiros” é obtida junto a
qualquer motorista de táxi.

MDB apresenta seus candidatos: Montoro entende que cada partido terá direito a mais 12 (Folha, quinta-feira, 7
de julho de 1976, Primeiro Caderno, p. 5)
(…)
Sérgio Vicente Domenico, 26 anos, industrial gráfico. Área eleitoral: Conselho Regional Espírita de Umbanda e
Candomblé em São Paulo e outras associações espíritas.

Bonifácio reitera complô: o líder defende programa de ação anticomunista (Folha, terça-feira, 17 de agosto de
1976, Primeiro Caderno, p. 4)
(…) José Bonifácio (líder da maioria na Câmara Federal, da Arena de Minas Gerais)

334
Bonifácio considerou “ingenuidade de governos anteriores a criação da cadeira de Educação Moral e Cívica nas
escolas”. “Afinal – acrescentou o líder – o comunismo também tem sua ética e, a pretexto de ensinarem esta disciplina,
os professores podem dar um curso completo de marxismo, sem incidirem em qualquer dispositivo penal”. Insistindo
que foi bobagem criar essa cadeira, porque – como disse – a moral é muito flexível, Bonifácio defendeu duas
alternativas: ou volta o ensino de religião (“não o catecismo, mas qualquer religião, e também não se trata de
candomblé, pois isso é folclore”) ou a instituição de uma cadeira obrigatória em todos os colégios civis ou militares e
faculdades: Constituição do Brasil”. “Nestas condições amarraríamos os mestres a um tipo de ensinamento essencial,
em vez de abrir o leque, como no caso da cadeira de Educação Moral e Cívica”. (...)

Macumba baiana, mas não para turista ver (Folha de São Paulo, quinta-feira, 11 de novembro de 1976, Ilustrada, p.
6) A Federação Baiana de Culto Afro-Brasileiro está disposta a mudar a imagem dos terreiros em todo o estado, visando
principalmente a evitar a exploração turística dos cultos afro-brasileiros e preservar uma imagem de respeito ao
candomblé, uma religião e não forma de ludibriar pessoas, como ocorre em Salvador em muitos casos.
Segundo o presidente da Federação Antonio Monteiro a entidade pretende cadastrar até o final deste ano todos os
terreiros existentes na Bahia, a fim de poder exercer maior fiscalização sobre eles, de mode que possam manter o que
ainda existe de religiosidade no candomblé. Em Salvador, já existem cadastrados cerca de trezentos terreiros, desses,
apenas duzentos, conformo Antonio Monteiro, “podem ser considerados autênticos”. Em sua opinião, “há necessidade
de um basta aos que, usando de má-fé, “transformam o candomblé, que é uma religião, em meio de obter lucros”.
“Existe muita gente ganhando dinheiro para bater candomblé fora de tempo, somente com o intuito de promover shows
para turistas”, denuncia, lembrando que isto tem contribuído para criar uma imagen negativa em torno dos cultos afro-
brasileiros praticados na Bahia. Como exemplo, comentários recentes surgidos em Salvador dão conta de que “Mãe”
Menininha do Gantois teria recebido 80 mil cruzeiros para “fazer o santo” da cantora Gal Costa.
Com o cadastramento dos terreiros, os dirigentes da Federação Baiana de Culto Afro-Brasileiro acreditam poder
fiscalizar com mais eficiência as condições de prática de culto, prometendo “advertir e fechar aqueles que não
obedecerem às exigências da entidade”. Para tanto, contam com a colaboração da Secretaria de Segurança Pública.
A federação pretende também evitar a apresentação e uso, em festas populares, de objetos e símbolos referente aos
cultos afro-brasileiros, incluindo indumentárias características ou exibições de cerimônias sagradas de seus rituais. Esta
proibição será extensiva a espetáculos artísticos e exibições de qualquer espécie, mesmo que de natureza folclórica. (Do
correspondente de Salvador).

Festa de Iemanjá pode atrair 500 mil pessoas (Folha, 1 de dezembro de 1976, Primeiro Caderno, p. 21)
(Praia Grande, notícias dos preparativos, informe mais de 10 anos de festa, inauguração da estátua de Iemanjá na frente
da praia – federações regionais)

Lojas de Umbanda vendem mais (Folha, 3 de dezembro de 1976, Primeiro Caderno, p. 16)
A coincidência dos festejos de Iemanjá e o jogo do Corinthians, domingo no Rio de Janeiro, representa “apenas um
sinal dos deuses, dado depois de 22 anos, anunciando que, finalmente, o Corinthians ganhará um campeonato”,
sustentam muitos umbandistas, principalmente, os adeptos do candomblé nagô, gege, banto e outros cultos. (...)

Duque, o místico que desmistificou o Corinthians (Folha, 6 de dezembro de 1976, Esportes, p. 19) (relação crença e
futebol – aponta crescimento dos cultos afro-brasileiros)

Igreja vs. Candomblé – Crise Igreja-Candomblé – Espíritas-católicos à brasileira – Padre não quis ver Xangô
(Folha, sábado, 12 e 13 de fevereiro de 1977, Primeiro Caderno, Local, p.1,13 e 22)
O pai-de-santo Caio Aranha (na foto, em seu terreiro Aché Ilê Obá) pergunta: por que a estátua de Xangô (pesa 200
kilos) que para os católicos é São Jerônimo, não pode entrar na igreja do largo Paissandu, se no Brasil os fiéis
costumam participar dos dois cultos? O bispo auxiliar d. José Thurler, da Arquidiocese de São Paulo, que proibiu a
realização da missa que comemora a inauguração do maior terreiro de candomblé do Brasil, marcada para as 10 horas
de hoje, não deu explicações. Apenas advertiu: “Se o capelão Rubens de Azevedo celebrar essa missa terá que arcar
com as conseqüências” (p.1). (…) (comentários preconceituosos sobre Exu, texto exemplar, pode ser bem explorado)

Um encontro de reis e raízes (Folha, 24 de março de 1977, Ilustrada, p. 5)


Embora possuam grandes divergências em vários campos, Brasil e África tem procurado estabelecer suas relações. Um
mês depois do comentado Festival de Arte Negra da Nigéria, chegou a vez do Brasil, de uma forma indireta, retribuir. A
partir de hoje, inicia-se em São Paulo o I Ciclo Transcultural do Candomblé, que se estenderá até o dia 9 de abril,
culminando com a sagração do professor José Mendes Ferreira como “Baba Ifá do Brasil”, a partir de então consagrado
como “rei do candomblé brasileiro”. (…)

Brasil e África mais próximos (Folha, 30 de março de 1977, Ilustrada, p. 44)

335
Yemi Elebu Ibon, o Baba Ifá da África, Rei do Candomblé e Chefe da Casa Cultural da Nigéria, desembarcou
anteontem em Viracopos para uma estadia no Brasil que vai se prolongar por 40 dias. Ele veio para fazer a entrega do
Centro Real da Religião Africana ao prof. José Mendes Ferreira, que o aguardava no aeroporto, juntamente com um
grupo de pessoas devidamente trajadas com roupas africanas, o que despertou a curiosidade de todos que estavam no
aeroporto. (…) No dia 16 de abril em outra cerimônia, Babá Ifá estará fazendo as confirmações sacerdotais de um
grande número de babalorixás e yalorixás do Brasil. Depois de São Paulo, ele deverá visitar os estados de Alagoas,
Maranhão, Recife e Rio Grande do Sul.

Candomblé – o Rei chegou (Folha, 7 de abril de 1977, Ilustrada, p. 29)


(matéria mais ampla, explicativa, avaliam o candomblé em são paulo em termos numéricos)

Homenagem a São Jorge levou 5 mil ao Ibirapuera (Folha, 30 de maio de 1977, Local, p. 8)
(…) Essa foi a vigésima festa que São Jorge teve fora do dia a ele dedicado. Os promotores do encontro não
esqueceram de prestar homenagem também ao presidente Geisel, “como chefe supremo das Forças Armadas, de que
São Jorge é patrono”. Deputados estaduais e representantes da Secretaria do Turismo do Estado participaram da reunião
no Ginásio do Ibirapuera, juntamente com o Arcebispo de Porto Alegre dom Pedro Braga dos Reis, e o embaixador do
Senegal Edmund King. O arcebispo – também membro da Ordem dos Cavaleiros de São Jorge – negou a cassação do
santo: “quando o papa canoniza um santo, é para ser santo até quando existir Deus, não podendo ter havido perda da
santidade de São Jorge”.

Um curso de Yorubá em São Paulo (Folha, 10 de janeiro de 1978, Ilustrada, p. 43)


(…) Hoje, avisa Heitor, quem estuda ou frequenta os terreiros de umbanda e candomblé precisa conhecer Yorubá para
não se deixar enganar pelos “picaretas” que abrem uma porta e, põem lá na placa: “Centro de Estudos Africanos” e todo
mundo acaba aceitando.

Anúncio com Mãe Menininha causa novos protestos (Folha, 18 de maio de 1978, Ilustrada, p. 42)
(anúncio das Máquinas Olivetti, usam imagem de Mãe Menininha – polêmica)

Religião, a fuga para as neuroses dos paulistanos (Folha, domingo, 13 de agosto de 1978, Local, 3º caderno, p. 30)
(analisa vida moderna e atração pelas “seitas”; Procópio Ferreira Camargo, Cebrap)

Cultura africana para brasileiro ler (Folha, sexta-feira, 18 de agosto de 1978, Ilustrada, p. 41)
(resenha de livro lançado – curso de yorubá – centro cultural Tema – USP)

Principe africano só fala de candomblé (Folha, sexta-feira, 24 de novembro de 1978, Primeiro Caderno, p. 44)
O principe Baba Clement Tund Muwybee, da Nigéria, que se encontra em São Paulo desde segunda-feira, disse ontem
que sua visita tem como principal objetivo um maior contato com as autoridades brasileiras “para transformar o
candomblé daqui em religião autêntica, sem deturpações”. (…) Expressando-se ora em sua língua, ora em inglês, o
príncipe se dispôs a falar de qualquer assunto que não fosse política, em atenção à determinação do embaixador da
Nigéria no Brasil. Segundo esclareceu José Mendes, todo africano que vier ao Brasil será preso se falar sobre política,
de acordo com o regime militar lá vigente. Dessa forma, Baba Clement se limitou aos assuntos referentes ao
Candomblé, evitando inclusive falar do relacionamento econômico entre os dois países. (…)
Baba Clement afirmou que os nigerianos gostam muito dos brasileiros “mas estou tendo alguma dificuldade junto às
autoridades para a oficialização do candomblé no Brasil”. Queremos acabar com o excesso de casas registradas mas que
não têm competência, que apenas enganam o povo”. Revelou que pretende se encontrar com o governador Paulo Egídio
e que vários ofícios foram já enviados a outras autoridades estaduais e federais pela moralização do Candomblé no país.
Ainda antes do início da conferencia ele deseja ir a Brasília, onde seu contato será com o embaixador da Nigéria no
Brasil e, posteriormente, irá a Bahia verificar os Candomblés baianos.
Anunciou também a vinda no ano que vem de seu pai Baba Bogunbé, mais conhecido por Ifá Gbemi, “para ver o
carnaval brasileiro que lá na Nigéria é muito comentado”. Baba Bogunbé preside as três mil tribos nigerianas hoje
governadas por 12 reis.

DÉCADA DE 1980

Umbanda, candomblé e a festa de Iemanjá, os ritos da cidade (Folha, 11 de janeiro de 1980, Turismo, p. 26)
(texto repetido de edição anterior – FSP, 11 de junho de 1976)

Um grande babalaô: como os não católicos veêm a visita de João Paulo II (Folha, 29 de junho de 1980, p.9)
Para o candomblé, a visita de João Paulo 2º ao Brasil é muito importante e benéfica. Pelo menos essa é a opinião do pai-
de-santo Vicente Vita, chefe de um terreiro da linha Angola no bairro de Santa Terezinha, na Zona Norte de São Paulo.

336
Com 73 anos, Vicente Vita (conhecido no candomblé como Obágodô, a divina (sic)), lembra que já foi católico “de
batismo e crisma” e que respeita muito todas as outras religiões, assim como faz questão que “respeitem a minha”.
No seu entender os orixás, babalaôs – entre eles inclui o Papa – são pessoas que muito se destacam por seu prestígio e
respeitabilidade. Assim, o Papa como sacerdote maior de uma religião de muitos adeptos, deve estar preocupado com
sua missão de “chefe de terreiro”. E a principal função de um babalaô, diz Vicente Vita, é buscar a felicidade das
pessoas.

Papa, este “idólatra”: O pastor Israel Rodrigues Pereira, da Assembléia de Deus, não está satisfeito com a visita do
Papa João Paulo 2º ao Brasil. Para ele, o Papa vem trazer a miséria e analfabetismo ao país: “Encaro essa visita como
uma maldição ao nosso país. Onde domina a Igreja Católica, domina o atraso, a miséria, a feitiçaria”.
É facil reconhecer um lugar onde predomina a religião católica, assegura o pastor. “Onde impera o Evangelho reina a
paz e a prosperidade. É o caso da Inglaterra”. Ele tem certeza que o subdesenvolvimento da África e da América Latina
se deve a maioria católicas desses lugares. A ponto de ser tolerante até com os comunistas ao afirmar que a URSS é
abençoada por Deus, “pois lá não se vive aos pés do Papa”, mesmo que a população seja “ignorante e pecadora porque
não crê em Deus”. Pastor há 40 anos, responsável por um templo na Praça Clóvis, Israel Rodrigues Pereira procura
versículo do Apocalipse para justificar suas críticas ao catolicismo em geral e ao Papa em particular: “A idolatria é
atraso para toda a humanidade. A Igreja Católica é a cabeça da idolatria. E o Papa é a cabeça da Igreja Católica.

Anúncio – O Babá Messias (Folha, 16 de agosto de 1980, Exterior, p. 7)


O Baluarte pai-de-santo Messias, vindo da Bahia e residente aqui em São Paulo, à Rua B, nº 75 – km 29 – Raposo
Tavares – de malas prontas, retornará ao exterior a convite de pessoas importantes de outros países. Irá cultuar seus
trabalhos de candomblé que dá forças sobrenaturais. Mas, antes de embarcar, irá inaugurar sua rica mansão de veraneio
na praia de Mongaguá, que lhe foi presenteada. Estarão presentes filhos de santo, parentes, amigos, clientes políticos e
pessoas de alta importância. Sua viagem será à África, novamente para rever BABA Alabá, pessoa grande de Ifé e todos
os amigos de Santo na terra africana. O Babá Messias deixou aqui uma mensagem a todos do Brasil:

- OKÚ AÇÃ, FUM ONIMÃ Tá Mi Obirim, Tá Mi Okorim, Om Om Brasil Ké aki sy fé, funorixa okoba – ni fumafé.
23. Boa tarde ao povo do Brasil, homens e senhoras que Oxalá dê forças a todos. Foto: Emanuel Silva / Texto:
Marta Pinheiro

Direto com o cosmos – Alexandre Kadunc (Folha, 2 de dezembro de 1980, Ilustrada, p. 26)
(coluna de Kadunc sobre política e sociedade) De abril de 64 a dezembro de 78 confesso que bebi. Fiquei
completamente curado ao primeiro minuto de 1979 quando caiu o AI-5. (…) Noite de Saravá no Tremembé: fui
honrado com convite para apadrinhar nova mãe de santo no terreiro de Ogum Rei. Oito horas seguidas de belíssimas
cerimônias e ao final “baixou” imponente a Rainha das águas, Iemanjá. Aliás, anotem bem: nas próximas eleições,
muitos candidatos vão capitalizar milhões de votos de simpatizantes e adeptos da umbanda e do candomblé. O Jânio
Quadros, como foi o velho Ademar de Barros, é chegado em terreiros. E o Olavo Setúbal conhece muito bem o peso
dos redutos místicos afros. (…)

Juiz de Menores afasta direção de Educandário (Folha, 11 de dezembro de 1980, Interior, p. 22)
Jundiaí – (Ile Nagô de Pai Odé – denúncia de irregularidades num ofarnato presidido por um umbandista em Várzea
Paulista)

Nas ondas de Iemanjá (Folha, sexta-feira, 12 de dezembro de 1980, Opinião, p. 2) (assina RK, editorial sobre festa de
Iemanjá na Praia Grande, compara com os últimos 10 anos, percepção da participação da classe média, - associa com
crise econômica e teologia da libertação da Igreja Católica; ironiza os cultos)

Os búzios não mentem jamais – Waldomiro de Xangô (Valdomiro Costa Pinto, baiano) joga os búzios: um mau ano
para o Brasil (Folha, 4 de janeiro de 1981, Folhetin, p. 3 e 4) – texto de José Paulo Borges
(previsões de política e economia; perfil do babalorixá)
Entre o reino dos orixás e o mundo dos homens – uma pesquisa universitária revela um fascinante universo de
milagres possíveis (pesquisa de José Guilherme Magnani, sobre a relação entre umbanda e cura, p. 4)

Os caminhos da saúde (Folha, domingo, 22 de março de 1981, Folhetim, p. 4)


(sobre as crendices do brasileiro em relação à saúde – trecho sobre candomblé gege na Bahia)

Festa de São Jorge reúne umbandistas (Folha, segunda-feira, 27 de abril de 1981, Local, p.9)
(sobre 24ª festa de S. Jorge – homenagem ao Presidente Figueiredo; presença de argentinos e uruguaios; vice-
governador José Marin, prefeito Reinaldo de Barros e outros políticos)

337
Na última “integração” muita festa e pouco povo (Folha, domingo, 10 de maio de 1981, Local, 2º caderno, p. 22)
(governador Paulo Maluf e prefeito Reinaldo de Barros - “governo da integração” - presença de 15 tendas de umbanda
– descrição da “festa”, pedidos ao governador, Maluf irritado)

Surgem novos cultos a cada dia – o crescimento das seitas religiosas (Folha, domingo, 19 de julho de 1981)
(primeira reportagem da série sobre o aumento de seitas religiosas no Brasil, em especial, São Paulo, por Ricardo
Kotischo - já indica no texto a guerra a IURD com a umbanda e o candomblé – analise tipicamente classe média
intelectualizada)

Negros paulistas preparam 2º Encontro e promovem debates (Folha, sexta-feira 31 de julho de 1981, Agenda
Especial, p. 19) (resumo de atividades e pequeno histórico do MNU) (…) Naquele momento em todo o país noticiava-
se com certa freqüência atos de violência policial considerados marcadamente racistas pelos grupos e os locais de
reunião da comunidade negra, como centros de umbanda e candomblé, escolas de samba e associações recreativas,
passavam a ser alvos constantes de batidas policiais. Somente nnos três últimos meses de 1980 a imprensa de Campinas
(SP) por exemplo, divulgou notícias referentes ao espancamento e prisão de quinze negros, todas ocorridas na região.
(…)

Movimento negro cresce na Bahia: jornais e escolas mantem viva cultura africana (Folha, 6 de agosto de 1981,
Agenda – Especial, p. 17) (sobre ações do MNU na Bahia) Salvador (BA) tem aproximadamente dois mil terreiros de
candomblé, para uma população de dois milhões de habitantes. A importância da religião africana, presente em todos os
estratos sociais, diferencia marcamente a luta da população negra contra a colonização cultural. (..) A campanha
rotineira de desmoralização dos cultos africanos desencadeou o surgimento do Comitê de Defesa da Religião e Cultura
Afro-Brasileiras. “O movimento visa sensibilizar a comunidade negra e toda a sociedade baiana que está sendo atacada,
baseado no próprio direito constitucional de liberdade religiosa – denuncia Papa Léguas, vendedor. “Basicamente a
Igreja Católica e a Protestante Evangélica vem agindo contra o candomblé, numa atitude totalmente racista”. D. Avelar
Brandão, arcebispo de Salvador, alegou recentemente recear a aproximação dos negros com as religiões africanas,
porque vê o perigo da africanização da Bahia. Como se a Bahia não fosse uma região de cultura africana”.

Iemanjá reúne 150 mil na praia do Gonzaga (Folha, 17 de agosto de 1981, Local, p. 12)
(Santos – sobre festa)

O Povão lá de cima (Folha, sábado, 3 de outubro de 1981, Ilustrada, p. 24)


(coluna de Alexandre Kadunc – sobre exus, pombagiras e eguns, associa as entidades de esquerda com a esquerda
política – defesa – há outras colunas desse cara, que indicam que ele é do babado)

A consciência negra e a comunidade – representantes negros discutem o MNU (Folha, domingo, 22 de novembro de
1981, Folhetim, pp. 4-11) inclui – cultura negra e comunicação; racismo é crime; a luta continua e a hora e a vez do
cinema negro, e agora falamos nós, especial com entrevistas de integrantes do movimento negro

Com Orum-Ayé Vai-Vai mostra visão do mundo (Folha, domingo, 14 de fevereiro de 1982, Local, 2º Caderno, p.
19) (Sobre samba-enredo da Vai-Vai, pequeno histórico da escola de samba, explicação sobre concepções iorubás de
mundo e existência, definições remontadas para o sentido desejado – Orum; Ayé; Olorum; Xangô e Aruanda –
valorização do negro em compasso com ações dos movimentos negros)

Os negros e os partidos (Folha, 13 de junho de 1982, Folhetim, pp. 10-11)


(como os partidos entendem as demandas do movimento negro e suas propostas – resultados de um debate público
organizado pela Folha de São Paulo – Abdias participou pelo PDT)

Centro homenageia Oxossi (Folha, sábado, 3 de julho de 1982, Comunidade, p. 10)


O Centro de Candomblé Afro-Brasileiro Ketu de Orodecy promove hoje, às 21horas, festa e ritual religioso em
homenagem a Oxossi, o deus africano da caça. A solenidade inclui danças, distribuição de bebidas e churrascada. O
centro fica na rua Ilha do Santo Aleixo, 11, em Morro Grande, Freguesia do Ó.

A Estrela mais linda do Gantois (Folha, domingo, 15 de agosto de 1982, Ilustrada, p. 66)
(perfil de Mãe Menininha por Miguel de Almeida – faz referencia ao caso da máquina de escrever)

Negros encerram encontro (Folha, sábado, 28 de agosto de 1982, Comunidade, p. 12)


(sobre 3º congresso de cultura negra das Américas, na PUC-SP, encerrado no dia 27/08/82 – Abdias foi o presidente do
encontro – gente de todas as américas – deliberação de articulação de órgão internacional – polêmica sobreo o filme Ilê
Xeroquê de Raquel Guerber por mostrar cena religiosa do candomblé) (…) Uma das posições defendeu o fim da

338
clandestinidade das religiões: “Esta é uma das formas de não sermos confundidos como macumbeiros. É importante
mostrarmos nossos ritos, a nossa história que não é folclore”.

Engano leva ao resgate de uma caveira (Folha, quinta-feira 11 de novembro de 1982, Policia, p. 18)
(sobre o encontro de um crânio em uma construção no Brás – detalhes sobre o inquérito)
(…) MACUMBA. Na delegacia, Everaldo da Silva Reis, de 28 anos, explicou que a “caveira foi retirada do cemitério
pela carioca Marcília de Souza com a ajuda do coveiro”. (…) “Marcília ia usar o crânio para fazer macumba”, afirma
Maria da Conceição, que aluga os quartos nos fundos da pensão para cultos de candomblé do pai-de-santo Ailton Alves.
(…)

Umbandistas contestam uso político da religião (Folha, domingo, 9 de janeiro de 1983, Local, 3º Caderno, p. 24)
(debate sobre o filme “Umbanda” do antropologo Peter Fry, no auditório da Folha – Umbanda posta como questão
cultural, presença de Jamil Rachid; Lísias Negrão; público diverso de outras religiões; indica a exportação da religião
para a América Latina; cobrir espaço falho na mídia que noticiaria somente as festas e grandes eventos da religião)

Salve Iemanjá, senhora das águas (Folha, quarta-feira, 2 de fevereiro de 1982, Ilustrada, p. 27)
(Ronaldo Antoneli, sobre culto de Iemanjá e Umbanda – há mistura com elementos do candomblé)

Grupo Afoxé faz festa à Mãe Oxum (Folha, sexta-feira 13 de maio de 1983, Local, p. 21)
Hoje, dia em que se comemora a libertação dos escravos, o grupo Afoxé Filhos da Coroa de Dadá fará uma homenagem
à Mãe Preta Oxum. A festa será no Largo do Paissandu a partir das 20 horas. Participarão da homenagem tendas de
umbanda e candomblé, escolas de samba e blocos e haverá ainda um desfile de penteados e trajes afro-brasileiros
organizados pelo Grupo Zumbi.

Rito Candomblé (Folha, segunda-feira, 29 de agosto de 1983, Geral, p. 9)


Com danças, orações e muita comida, os filhos de santo do candomblé “Que Cogi Nifan” celebraram anteontem o
“Obaluwyê”, considerado o “Santo da Medicina”. O pai-de-santo Walter de Logun Edé explicou ser este “um dos mais
antigos ritos tradicionais africanos, vindo para o Brasil com os escravos”. Para atrair a benção do “Obaluwyê” e pedir
sua proteção contra doenças, todo ano é celebrado esse ritual de agradecimento e louvor, quando são oferecidos
diversos tipos de comida à entidade.

Zumbi vivo (Folha, 18 de novembro de 1983, Tendências/Debates, Opinião, p. 3) (texto de Abdias do Nascimento –
crítica à ilusão da democracia racial)

Homenagem a Ogum (Folha, sábado, 2 de junho de 1984, Geral, p. 17)


Um padre católico, cujo nome não foi revelado, deverá abrir hoje as homenagens ao deus africano Ogum, com uma
missa completa no terreiro de candomblé Ogum Megegê, na Vila Prudente, iniciada às 21 horas. A fesa de Ogum
começa logo depois da missa, às 22 horas, e termina ao amanhecer, com uma feijoada e chope. A informação é do pai
de santo responsável pelo terreiro, Carlinhos de Ogum que alegou não poder dar o nome do padre “por causa do
Vaticano”. O cenário para a missa não deixa de ser inusitado: o terreiro ladrilhado com uma gruta num dos cantos onde
imagens católicas se misturam com as de candomblé. Na cavidade superior da gruta, está uma imagem grande de Jesus,
em pé, com os braços abertos, lembrando o Cristo Redentor no Corcovado. Na de baixo uma imagem de Santo Antônio
de Pádua, com o Menino nos braços. Aos pés de Jesus, de cócoras, a estatueta do preto velho Pai José da Angola. E, no
chão, uma estátua de Iemanjá.

1984 – (20/05) – Terceiro Caderno, p. 32. – Pai Jaú dá força: “aquela camisa é amor e raça” [foto onde segura um
quadro de S. Jorge]

A mãe de todas as casas: tombamento da Casa Branca do Engenho Velho (Folha, 30 de setembro de 1984,
Folhetim, p. 10-11)

Teólogos e pais de santo vão debater cultura negra na Bahia (Folha, segunda-feira 22 de outubro de 1984, Política,
p. 4)
(sobre encontro da Associação Ecumênica de Teólogos do Terceiro Mundo – primeira vez com a participação de pais
de santo junto com teólogos católicos e evangélicos)

Memória de Zumbi é celebrada hoje por padres e pais de santo (Folha, domingo, 18 de novembro de 1984, 1º
Caderno, Política, p. 12)
(comemoração no Largo do Paissandú – organizada pela Pastoral do Negro – fala de padre do curso de Teologia da
Arquidiocese)

339
Sacerdotes nigerianos na Folha (Folha, sexta-feira 30 de novembro de 1984, Ilustrada, p. 48)
(sobre 2º Projeto Zumbi – Abimbola – Universidade de Ifé)

Iemanjá, a Rainha das Águas, é festejada na Praia Grande (Folha, sábado, 8 de dezembro de 1984, Geral, p. 20)
(sobre festa, mudança de data por conta do pagamento dos salários)

Poucos umbandistas comparecem à festa de Iemanjá na Praia Grande (Folha, segunda-feira 10 de dezembro de
1984, Geral, p. 13)
(sobre a baixa na festa, comentários de comerciantes, membros da federação, mudança da data pela prefeitura
prejudicou evento)

No Vale dos Orixás, surge o promissor marketing da fé (Folha, domingo 27 de janeiro de 1985, Economia, p. 34)
(texto de Nelson Blecher sobre o Vale dos Orixás – parque em Juquitiba – associa número de adeptos da umbanda e
candomblé com o potencial de exploração mercadológica)

Grupos de “baianas” purificam escadarias da praça do Bixiga (Folha, segunda-feira 4 de fevereiro de 1985, Geral,
p. 12)
(Candomblé Filhos de Nazaré lavaram a escadaria da praça Dom Orione no bairro do bixiga – fala de filhas de santo –
governo de Tancredo – organizado por um grupo de amigos do bairro “Cães Etílicos, fala anti-ditadura)

Preconceito racial no Brasil (Folha, 12 de março de 1985, Tendências/Debates, Opinião, p.3)


(sobre discriminação sofrida por duas moças negras em um restaurante no Rio, texto de Fay Haussman)

Políticos não admitem mas buscam no Além as forças para a vitória (Folha, domingo 21 de julho de 1985, Política,
1º Caderno, p. 8)
(sobre “superstições” dos candidatos – Agnaldo Timóteo diz-se “ter sido eleito com a força dos orixás”, recebe passe
contra mal olhado)

Dez mil acompanham o enterro de Mãe Menininha (Folha sexta-feira 15 de agosto de 1986, Mortes, p. 18)
(detalhes do velório e fala de artistas e políticos)

Frade acusa Igreja Católica de “racista” (Folha, quarta-feira 20 de maio de 1987, Política A-4)
(das sircusais do Rio e Brasília) O frei franciscano David Raimundo dos Santos, 35, da igreja São João Batista, em São
João do Meriti, na Baixada Fluminense (40 km do centro do Rio) – um dos coordenadores da Comissão dos Religiosos,
Seminaristas e Padres Negros no Rio, acusou a Igreja Católica no Brasil de “racista”. Ele disse à Folha que no mês de
agosto será feito um encontro com religiosos negros de todo o país para discutir “mais de vinte casos de religiosos
negros que sofreram discriminação por parte da Igreja Católica”. (…)

Tutu participa do primeiro ato ecumênico de sua visita (Folha, quinta-feira 21 de maio de 1987, Política A-6)
(sobre celebração na Sé, presença de pais e mães de santo da Casa de Angola da Goméia de Mairiporã)

Negros de SP comemoram Dia da Consciência (Folha, segunda-feira 21 de novembro de 1987, Cidades C-3)
Maracatu, Candomblé, Capoeira, Reaggae e muito Pagode animaram a festa que reuniu cerca de 7 mil pessoas ontem na
Praça da Sé, no centro de São Paulo, para a comemoração do Dia Nacional da Consciência Negra. Comemorado no dia
20 de novembro desde 1977, o evento é promovido pelo Movimento Negro Unificado. Ontem, estiveram presentes na
Sé líderes religiosos de várias igrejas e cultos, inclusive o cardeal-arcebispo de São Paulo, dom Paulo Evaristo Arns.
Para Mãe Silvia de Oxalá, do Candomblé, faltou divulgação do evento porque o preconceito contra a cultura negra
ainda existe. “O negro só mudou da senzala para a favela”, diz ela.

Bispos negros querem criar rito católico afro-brasileiro (Folha, domingo 23 de abril de 1989, Política, p. A-12)
(texto de Dermi Azevedo – sobre propostas da pastoral do negro em integrar elementos das religiões africanas em
rituais católicos)

Freire, do PCB, faz visita a Candomblé (Folha, sábado, 20 de maio de 1989, Política, A-8)
(candidato a presidência Roberto Freire visita a Casa Branca do Engenho Velho em Salvador)

DÉCADA DE 1990

Em diferentes matérias em 1990 e 1991, referente à espetáculos usam muito a expressão “macumba pra turista”...

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Negros não querem cultura afro entre católicos (Folha, segunda-feira 9 de abril de 1990, Cidades C-5)
(repercussão no movimento negro às propostas da pastoral do negro de inclusão de elementos africanos em rituais
católicos – sobre Rio de Janeiro)

Estado tomba terreiro de candomblé de SP (Folha, quinta-feira 3 de maio de 1990, Cidades/Mortes, p. C-4)
(tombamento do Aché Ilê Obá de Mãe Silvia de Oxalá – Terreiro de Xangô do Jabaquara)

Candomblé ganha minisérie na Manchete (Folha, terça-feira 9 de outubro de 1990, Ilustrada, E-3)
(sobre minisérie, atores, trama etc)

1991 – (12/08) – Segunda-feira, SP nordeste, oitavo caderno, p. 1. Criminosos de Ribeirão Preto apelam para a fé no
confronto com a polícia. (relaciona vários pequenos depoimentos de presos e acusados e sua relação com a proteção de
santos e de entidades; fala muito sobre a crença em candomblé e umbanda - explicita a vida da periferia e dos pobres
com a fé nas religiões afro-brasileiras)

1991 – (11/110 – Segunda-feira, SP norte, caderno 8, p. 4. Igrejas pentecostais têm crescimento na região. (sobre Rio
Preto – indica combate a macumba – na mesma página notícia sobre carismáticos católicos na cidade)

Candomblé tem programa anti-HIV (Folha, quinta-feira 28 de maio de 1992, Cotidiano, p. 3)


(sobre medidas tomadas por pais e mães de santo de São Paulo para evitar contaminação nos terreiros)

Mãe de santo teme a repercussão do caso (Folha, quinta-feira 16 de julho de 1992, Cotidiano, p. 3)
(sobre “onda” de sacrifico e sequestro de crianças em diferentes estados, fala de Mãe Silvia de Oxalá)

Polícia investiga venda de cadáveres (Folha, sexta-feira 17 de julho de 1992, Cotidiano, p. 1)


(falam sobre oferendas encontradas nos cemitérios, zona leste de São Paulo, também sobre venda de cadáveres para
pais-de-santo e estudantes de medicina)

Erundina cria 4 'macumbódromos': prefeitura irá abrir licitação para construir centros de despachos em
cemitérios públicos (Folha, domingo 19 de julho de 1992, p. 1)
(sobre os espaços que seriam criados em diferentes cemitérios na cidade, repercussão entre católicos e candomblecistas)

Entidade pede que polícia tire 'falsos pais-de-santo' das ruas (Folha, quinta-feira 19 de novembro de 1992,
Cotidiano, p. 3)
O secretário adjunto de segurança pública do Estado Paulo Tarso de Mendonça, 57, disse no final da tarde de anteontem
que a polícia “vai verificar” a situação das pessoas que jogam búzios e praticam outras formas de advinhação nas ruas
de São Paulo. Ele havia acabado de receber em seu gabinete o pai-de-santo Walmir Damasceno, que lhe pediu ação
policial contra o que chama de “comércio da adivinhação”.
Damasceno, 30, presidente da Federação Nacional de Tradição e Cultura Afro-Brasileira, disse que o objetivo do pedido
é impedir a ação dos “falsos pais e mães-de-santo” no centro da cidade e nos shoppings. Ele explicou que os búzios só
podem ser jogados em terreiros de candomblé, de acordo com os preceitos da religião. (…)

Cem anos de Mãe Menininha do Gantois (Folha, 3 de fevereiro de 1994, Ilustrada, p. 5)


(texto de Jorge Amado sobre ialorixá)

Bispo Macedo faz campanha anti-Lula (Folha, segunda-feira 8 de agosto de 1994, Especial, p. 5)
“Jornal da Universal afirma que petista se consulta com “exus” e que seu governo significaria o “caos”
(texto de Claudia Trevisan, sobre campanha da IURD contra a candidatura de Lula a presidencia)

Religião interfere no voto do eleitor (Folha, domingo 28 de agosto de 1994, Especial, p. 4)


(sobre pesquisa da Folha que relaciona religião com intenção de votos)

Acusados de racismo são absolvidos pela justiça (Folha, domingo 28 de agosto de 1994, Especial, p. 4)
(sobre absolvição de todos os casos de acusados de racismo em São Paulo)

Representantes de cultos africanos defendem uso de pólvora em ritual (Folha, 3 de fevereiro de 1995, São Paulo, p.
3) (sobre acidente em loja de artigos de umbanda em Pirituba)

Máquina destrói vestígios de quilombo (Folha, 11 de novembro de 1995, p. 3)

341
(sobre União dos Palmares, AL; destruição de patrimônio material)

1995 (18/06) – Domingo, Mais, p. 5. A sublimação do medo racial. Debate sobre a homossexualidade de Zumbi
desvia a atenção do significado revolucionário de Palmares. (texto de Fernando Conceição – especial 300 anos
Zumbi – debate com Mott a questão da homossexualidade de Zumbi, usa interpretação da etimologia das palavras na
argumentação de Mott)

Zumbi de norte a sul (Folha, domingo 26 de novembro de 1995, Mais, p. 5) (texto de Michael Turner – sobre 300 anos
de Zumbi, relação entre Brasil e EUA)

1996 – (20/05) – são Paulo, p. 3. Conferência reúne 800 esotéricos. (no Amazonas, informa workshops, com
estrangeiros organizando, presença de santo daime e umbanda, uso de tecnologias, terapia transpessoal)

1996 – (27/07) – Folha sudeste, p. 7. Duas pessoas se queimam durante ritual de umbanda em Piracicaba.

1997 – (20/11) – quinta-feira, opinião, p. 1. Ação afirmativa, uma necessidade (Helio Santos) X A verdadeira
cultura negra (Olavo de Carvalho)

1996 – (20/12) – Umbandista é orientado. (sobre surto de AIDS, orientação das religiões afro-brasileiras para o
cuidado com tatuagens e cortes nos terreiros)

1996 – (22/12) – São Paulo, p. 3-4. Paulistano põe crenças no liquidificador. Fé aumenta e religiosidade diminui.
Água e floresta atraem os cultos africanos. (tem mapa religioso da cidade e resumo das diferentes religiões, há
números de adeptos para o período na cidade, é útil; ilegível)

1997 – (19/01) – Mais, p. 5. Igrejas disputam alma do brasileiro. (Peter Burke – para a Folha – sobre católicos e
evangélicos – somente cita obra de Prandi Herdeiras do Axé – crescimento evangélico, católicos “espremidos” entre
evangélicos e afro-americanos – usa livro de David Lehman, Struggle for the spirit)

1997 – (24/10) – Folha de São Paulo, p. 15. Brasil exporta religiões para o MERCOSUL. Umbanda se populariza
na Argentina e no Uruguai, com a Igreja Universal no encalço de seus “demônios”. (sobre pesquisa de Ari Pedro
Oro, UFRS, ANPOCS – exporta também a “guerra religiosa”)

1998 – (21/01) – Mundo, p. 13. Cultos afros são barrados de encontro ecumênico. (sobre visita de JPII a Cuba,
recebe cristãos e judeus, mas não adeptos da santeria)

1998 – (11/04) – Brasil, p. 8. Igrejas disputam fiéis nas prisões. (Casa de Detenção de São Paulo; tabela com número
de adeptos, há numero para umbanda mas não para candomblé)

1998 – (27/12) – Brasil, p. 6. Pentecostais da AL vêem o demônio de formas diversas. Evangélicos usam internet
como arma.

1998 – (30/12) – Informática, p. 5. 110 sites selecionados. (sobre sites místicos)

1999 – (06/06) – Mais, p. 5. Competição espiritual no mercado livre da fé. (Andrew Chesnut pesquisa o declínio do
catolicismo e o aumento do pentecostalismo)

1999 – (27/11) – Mundo, p. 16. Umbanda vive ascensão no Uruguai. Mãe-de-santo vê relação entre aumento do
número de adeptos e o crescimento da esquerda no país.

Filho de Oxalá, católico e com fé na reencarnação – entrevista com Agenor Miranda (Folha, domingo 26 de
dezembro de 1999, Especial, p. 6)

DÉCADA DE 2000
Adeptos do candomblé poderão dar aos filhos nomes de origem africana (Folha, 10 de janeiro de 2001, Cotidiano,
p. C6) (sobre tribunal de justiça de SP que autorizou aos adeptos do candomblé o uso de nome de origem africana para
os filhos)

2000 – (30/03) – Brasil, p. 1. TSE proíbe propaganda em templos religiosos.

342
2000 – (09/04) – domingo, mundo, p. 26. Argentinos adotam culto afro-brasileiro. (sobre outros países do
MERCOSUL, fala sobre repressão e expansão)

2000 – (07/07) – Cotidiano, p. 1. Manifestação pede o fim da impunidade. (Basta! Eu quero paz... na praça da Sé,
contra a violência)

Pais e mães de santo terão aposentadoria (Folha, terça-feira 12 de setembro de 2000)


(texto de Marcos Vita – de Salvador – essa notícia tem também no Jornal de Alagoas)

Notícias da Imprensa sobre o Candomblé e a Umbanda - (Alagoas – 1960-2000)434

1960
1. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 19 de janeiro de 1960. “Falou sobre Xangôs e Macumbas o professor
Estácio de Lima.” (JA 19.01.1960 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 31 de janeiro de 1960. Igreja e tradição: Um templo centenário no
coração de S. Paulo - N.S do Rosário a “Iemanjá” dos negros crentes mensagem de fé sob o horror do
cativeiro. (JA 31.01.1960 02)

3. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira 23 de março de 1960. Parentes da noiva de Ossano não pretendiam ver
o enlace. (JA 23.03.1960 03)

4. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 28 de abril de 1960. Terreiros de Macumba estão perturbando os
hospitalizados. (JA 28.04.1960 04)

5. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 13 de maio de 1960. Cultos Afro-brasileiros ocuparam os


parlamentares. “Exu baixou” no terreiro, mas não se descobriu o pai de santo. (JA 13.05.1960 05)

6. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 15 de julho de 1960. Macumba prejudica o hospital. (JA 15.07.1960 06)

7. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 02 de agosto de 1960. Dorothy Dandrigge apela para o “pai de santo.”
(JA 02.08.1960 07)

1961
1. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 12 de novembro de 1961. Ameaças ao culto de orixá: Santos, p.1. (JA
12.11.1961 01)

1963
1. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 29 de agosto de 1963. ‘Pai de santo’ foi desencarnando na base de
foiçada. (JA 29.08.1963 01)

1965
1. Jornal de Alagoas. Maceió, 06 de fevereiro de 1965. São Sebastião foi festejado no mais puro ritual santo. (JA
06.02.1965 01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 31 de julho de 1965. “Pai de Santo” infelicitou cinco menores, todas irmãs,
p.5. (JA 31.07.1965 02)

1966
1. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 25 de janeiro de 1966. Sangue no terreiro de Macumba um morto e
vários na polícia, p.6. (JA 25.01.1966 01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, 28 de janeiro de 1966. Lavagem do Bonfim mantém a sua tradição de outrora. (JA
28.01.1966 02)

1967
1. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira 01 de março de 1967. Rainha Umbaja não recebeu homenagem e “pai-
de-santo diz: Náutico ganha castigo, p.5. (JA 01.03.1967 01)

434
Resultado parcial do Projeto de Extensão Odè Ayé Edital 2010-2011 – Religiões Afro-brasileiras em notícias:
levantamento e catalogação de notícias da imprensa maceioense sobre o candomblé e a umbanda (1960-2000).

343
2. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 13 de julho de 1967. Esfaqueado em terreiro de xangô, p.5. (JA
13.07.1967 02)
3. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 14 de julho de 1967. Ladra e mãe de santo cúmplices nos roubos, p.5.
(JA 14.07.1967 03)

1970
1. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 22 de agosto de 1970. Afro umbandistas faz festa de “arromba”, p.5. (JA
22.08.1970 01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 29 de agosto de 1970. Xangôs incomodam em Ponta Grossa, p.5. (JA
29.08.1970 02)

1972
1. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira (?) 04 de maio de 1972. CSA anuncia macumba pra intimidar
Orlandinho / Macumba é jôgo sujo do CSA diz Orlandinho. (JA 04.05.1972 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 01 de junho de 1972. O Exu. (JA 01.06.1972 02)

3. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo, 05 de novembro de 1972. Pai de Santo deixa Xangô pelo teatro e
destaca-se na arte. (JA 05.11.1972 03)

4. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 10 de dezembro de 1972. Milhares viram exibição de 80 centros
umbandeiros as homenagens a Iemanjá. (JA 10.12.1972 04)

1973
1. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 15 de junho de 1973. Igreja vai estudar a umbanda, p.2. (JA 15.06.1973
01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 20 de setembro de 1973. Caboclo castiga filhas de santo que erram no
terreiro, p.2. (JA 20.09.1973 02)
3. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 07 de dezembro de 1973. Umbandistas de todo o Estado reúnem-se na
avenida para homenagear à Iemanjá, p.5. (JA 07.12.1973 03)
4. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 08 de dezembro de 1973. Maceió faz festa hoje para Iemanjá, p.8. (JA
08.12.1973 04)
5. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 11 de dezembro de 1973. Homenagens a Iemanjá foram muitas, p.1. (JA
11.12.1973 05)

1974
1. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira 31 de Julho de 1974. Doméstica “pegou espírito” e ateou fogo às
vestes. (JA 31.07.1974 01)

1975
1. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 24 de junho de 1975 Seguidores do Umbandismo em Maceió
protestaram ontem a noite sua homenagem ao Deus trovão, p.1º caderno. (JA 24.06.1975 01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, 05 de julho de 1975. Título de Rei e Coroa gera guerra na Umbanda. (JA
05.07.1975 02)
3. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 09 de setembro de 1975. Umbandistas realizam festividades, p.5. (JA
09.09.1975 03)

1976
1. Jornal de Alagoas. Maceió, 28 de janeiro de 1976. Babalorixá anuncia sua coroação de Rei em Al. (JA
28.01.1976 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, 01 de fevereiro de 1976. Rei do Candomblé tem sua coroação condenada. (JA
01.02.1976 02)

3. Gazeta de Alagoas. Maceió, 04 de março de 1976. Tomando Posse / Cobrador de araque. (GA 04.03.1976 03)

4. Gazeta de Alagoas. Maceió, 14 de março de 1976. Que obteve. (GA 14.03.1976 04)

344
5. Jornal de Alagoas. Maceió, 22 de junho de 1976. Umbanda outra vez em pé de guerra. Não a Pai Maciel. (JA
22.06.1976 05)

6. Diário de Pernambuco. Maceió, 09 de julho de 1976. Babalorixá carioca é tido como vigarista. (DP 09.07.1976
06)

7. Jornal de Hoje. Maceió, 10 de julho de 1976. Coroar-se rei do candomblé é crime. (JH 10.07.1976 07)

8. Jornal de Alagoas. Maceió, 26 de julho de 1976. Perderam a manchete. (JA 26.07.1976 08)

9. Jornal de Alagoas. Maceió, 09 de setembro de 1976. Alagoano é escolhido para príncipe do Brasil por
conselho de Xangô. (JA 09.09.1976 09)

10. Jornal de Alagoas. Maceió, 18 de setembro de 1976. Alagoano vai receber coroa. (JA 18.09.1976 10)

11. Diário de Pernambuco. Recife, 27 de novembro de 1976. Rei do Candomblé esteve visitando centros. (DP
27.11.1976 11)

12. Diário de Pernambuco. Recife, 27 de novembro de 1976. Candomblé: um culto deturpado no Brasil. (DP
27.11.1976 12)

13. Diário de Pernambuco. Recife, 27 de novembro de 1976. Despacho com ossada humana. (DP 27.11.1976 13)

1977
1. Jornal de Alagoas. Maceió, s/d. Federação de Umbanda está com duas diretorias. (JA s/d 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, 26 de agosto de 1977. Será julgado réu que matou pai-de-santo. (JA 26.08.1977
02)

1979
1. Jornal de Alagoas. Maceió, 19 de junho de 1979. Doméstica espancada na localidade de Campestre. (JA
19.06.1979 01)

1980
1. Jornal de Alagoas. Maceió, 04 de abril de 1980. Príncipe do Candomblé no Brasil entrevistado pelo jornalista
Élio Lessa (foto). (JA 04.04.1980 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, 04 de abril de 1980. Candomblecistas farão 1º congresso em Maceió. (JA
04.04.1980 02)

3. Jornal de Alagoas. Maceió, 10 de abril de 1980. Babalorixá vai reunir imprensa. (JA 10.04.1980 03)

4. Gazeta de Alagoas. Maceió, 16 de maio de 1980. Travesti feiticeiro usava cadáver para fazer macumba. (GA
16.05.1980 04)

5. Jornal de Alagoas. Maceió, 17 de maio de 1980. Fiscalização dos cultos. (JA 17.05.1980 05)

6. Jornal de Alagoas. Maceió, 17 de novembro de 1980. Rei do Candomblé acha que Papa do Diabo é um louco.
(JA 17.11.1980 06)

1981
1. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 01 de janeiro de 1981. Babalorixá prevê muita desgraça. (JA
01.01.1981 01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 01 de janeiro de 1981. Degolaram agricultor macumbeiro. (JA
01.01.1981 02)
3. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 01 de Janeiro de 1981. 1981 – concludentes revelações do rei do
candomblé no Brasil. (JA 01.01.1981 03)

4. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 10 de janeiro de 1981. Babalorixá explica a polêmica sobre santo. (JA
10.01.1981 04)

345
5. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 11 de janeiro de 1981. “Pai de Santo” levado para o instituto penal. (JA
11.01.1981 05)

6. Tribuna de Alagoas. Maceió, quarta-feira 14 de janeiro de 1981. Mãe de santo é seqüestrada, torturada e morta.
Ano II, nº 310. (TA 14.01.1981 06)

7. Jornal de Alagoas. Maceió, 15 de janeiro de 1981. Babalorixá quer a sua coroa e vai à justiça. (JA 15.01.1981
07)

8. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 15 de janeiro de 1981. Assassino de mãe de santo é identificado pela
polícia. (JA 15.01.1981 08)

9. Tribuna de Alagoas. Maceió, quinta-feira 15 de janeiro de 1981. Assassino acusa pai de santo como mandante
do crime. (TA 15.01.1981 09)

10. Tribuna de Alagoas. Maceió, quinta-feira 15 de janeiro de 1981. Pai de santo foi quem mandou torturar. (TA
15.01.1981 10)

11. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 16 de janeiro de 1981. Matador de Doralice é capturado. (JA
16.01.1981 11)

12. Gazeta de Alagoas. Maceió, sexta-feira 16 de janeiro de 1981. Polícia prende estudante que assassinou a filha
de santo. (GA 16.01.1981 12)

13. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 16 de janeiro de 1981. “Pai de santo” está recolhido no xadrez. (JA
16.01.1981 13)

14. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 17 de janeiro de 1981. Piaçabuçu já tem casa de Abaça regida por Breno.
(JA 17.01.1981 14)

15. Gazeta de Alagoas. Maceió, sábado 17 de janeiro de 1981. Assassinos trocam acusações e ambos culpam pai
de santo. (GA 17.01.1981 15)

16. Jornal de Hoje. Maceió, sábado 17 de janeiro de 1981. Babalorixá tirou 100 mil da conta de filha assassinada.
(JH 17.01.1981 16)

17. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 18 de janeiro de 1981. Pai de santo levado para instituto penal. (JA
18.01.1981 17)

18. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 20 de janeiro de 1981. Babalorixás: “Não admitimos maldade nem a
violência.” (JA 20.01.1981 18)

19. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira 21 de Janeiro de 1981. Polícia apura desabamento de “Xangô” em
Ponta Grossa. (JA 21.01.1981 19)

20. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 13 de fevereiro de 1981. Príncipe e cassado por rei no município de
Coruripe. (JA 13.02.1981 20)

21. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 19 de fevereiro de 1981. Matadores de “mãe de santo” serão ouvidos.
(JA 19.02.1981 21)

22. Jornal de Alagoas. Maceió, 07 de março de 1981. Menor e raptada por “mãe de santo” que já está detida. (JA
07.03.1981 22)

23. Tribuna de Alagoas. Maceió, 07 de março de 1981. Mãe de santo seqüestra menor no Jacintinho. (TA
07.03.1981 23)

24. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 24 de março de 1981. Federação promoverá a Iª semana dos cultos afro-
brasileiros. (JA 24.03.1981 24)

25. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 24 de março de 1981. Macumba: religião e ritual dos negros brasileiros.
(JA 24.03.1981 25)

346
26. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 26 de março de 1981. “Pai de santo” diz que CSA vai ganhar no jogo
em Salvador. (JA 26.03.1981 26)

27. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 03 de abril de 1981. Federação ultima detalhes para a semana dos
cultos. (JA 03.04.1981 27)

28. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 17 de abril de 1981. Nos candomblés os adeptos fazem a páscoa dos
orixás. (JA 17.04.1981 28)

29. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 23 de abril de 1981. Federação encerra com êxito a Iª semana afro-
brasileira. (JA 23.04.1981 29)

30. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 08 de maio de 1981. Seguidores da Umbanda prestigiam no dia 13 o
Preto Velho escravo. (JA 08.05.1981 30)

31. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira 13 de maio de 1981. Terreiros lembram hoje preto velho. (JA
13.05.1981 31)

32. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 29 de maio de 1981. Pai de santo enforcado pelo exu “Zé Pilintra.” (JA
20.05.1981 32)

33. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 30 de maio de 1981. Suicídio dentro do xangô é investigado. (JA
30.05.1981 33)

34. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 13 de junho de 1981. Macumbeiro era sugador de sangue. (JA 13.06.1981
34)

35. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 13 de junho de 1981. “Pai de santo” sugava o sangue de crianças. (JA
13.06.1981 35)

36. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 16 de junho de 1981. Policia apura sessão macabra. (JA 16.06.1981 36)

37. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 05 de julho de 1981. Ênio levou fé no pai-de-santo e a sua bola murchou.
(JA 05.07.1981 37)

38. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 12 de julho de 1981. Pai de santo pretende gravar canto da seita com LP
de 12 músicas. (JA 12.07.1981 38)

39. Gazeta de Alagoas. Maceió, 01 de agosto de 1981. Filho de santo quase era eliminado por babalorixá. (GA
01.08.1981 39)

40. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira 16 de setembro de 1981. “Pai Maciel” viaja ao sul em nome da seita.
(JA 16.09.1981 40)

41. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 18 de setembro de 1981. Museu expõe desenhos de trajes cerimoniais.
(JA 18.09.1981 41)

42. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 19 de setembro de 1981. Candomblés dão festa para Cosme e Damião. (JA
19.09.1981 42)

43. Gazeta de Alagoas. Maceió, quarta-feira 21 de outubro de 1981. Rei do Candomblé diz que espiritismo está
sendo comercializado. (GA 21.10.1981 43)

44. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 25 de outubro de 1981. Príncipe do candomblé rebate acusação do rei.
(JA 25.10.1981 44)

45. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 27 de outubro 1981. “Pai Maciel” poderá assumir a seita africana na
Paraíba. (JA 27.10.1981 45)

46. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 29 de outubro de 1981. Zeladores da seita africana declaram guerra a J.
Mendes. (JA 29.10.1981 46)

347
47. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 03 de Novembro de 1981. Rei do candomblé apresenta seus documentos
de sagração. (JA 03.11.1981 47)

48. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 08 de Dezembro de 1981. Candomblés festejam na praia o orixá
Iemanjá com cantos e oferendas. (JA 08.12.1981 48)

49. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 10 de Dezembro de 1981. Chuvas prejudicam festa de Iemanjá na
Praia da Pajuçara. (JA 10.12.1981 49)

50. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 31 de Dezembro de 1981. Babalorixá prevê para 82 a paz no mundo e
farturas. (JA 31.12.1981 50)

1982
1. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 23 de abril de 1982. Candomblé faz festa e exalta deus da guerra, p.1.
(JA 23.04.1982 01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 19 de agosto de 1982. Semana destaca babalorixá que é ensaiador de
baiana/Entre terreiro e folguedo, p.6. (JA 19.08.1982 02)
3. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 06 de setembro de 1982. Este é babalorixá-{classificados, consultas},
p.B-7. (JA 06.09.1982 03)
4. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 07 de outubro de 1982. Babalorixás vão ao Abi-Ackel protestar do
“Painho” da TV, p.2. (JA 07.10.1982 04)
5. Jornal de Alagoas. Maceió, 10 de outubro de 1982. Povo condena movimento contra Painho. (JA 10.10.1982
05)
6. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 11 de novembro de 1982. Religiosidade popular numa semana de
estudos, p.7. (JA 11.11.1982 06)
7. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira 08 de dezembro de 1982. Maceioense faz homenagem a iemanjá, p.1.
(JA 08.12.1982 07)
8. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 18 de dezembro de 1982. Pai Maciel vê 1983 como ano importante, p.2.
(JA 18.12.1982 08)
9. Jornal de Alagoas. Maceió, 18 de dezembro de 1982. Alagoas é berço da nação africana. (JA 18.12.1982 09)

1983
1. Jornal de Alagoas. Maceió, 12 de março de 1983. Seita diabólica pratica tortura nos seus adeptos. (JA
12.03.1983 01)

1984
1. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira, 05 de Julho de 1984. Macumbeiro mostra como ganhar no jogo do
bicho. (JA 05.07.1984 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira, 05 de Julho de 1984. Quadrilha rouba caveiras e vende para
feiticeiros. (JA 05.07.1984 02)

3. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira, 06 de Julho de 1984. Azar no jogo do bicho: cambistas presos após
denúncia de macumba. (JA 06.07.1984 03)

4. Jornal de Alagoas. Maceió, 16 de Agosto de 1984. Macumba no telhado- diarista denúncia a vizinha que é
bruxa. (JA 16.08.1984 04)

5. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado, 29 de Dezembro de 1984. “Pai Maciel” prevê melhorias no setor
econômico do país. (JA 29.12.1984 05)

1985
1. Jornal de Alagoas. Maceió, 11 de janeiro de 1985. Antropólogo pesquisa coleção afro-brasileira de alagoanos.
(JA 11.01.1985 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, 20 de janeiro de 1985. Objeto afro-brasileiro é estudado em Alagoas. (JA
20.01.1985 02)

348
3. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo, 14 de Abril de 1985. Candomblé presta homenagem a Oxum. (JA
14.04.1985 03)

4. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira, 31 de maio de 1985. Mãe Menininha recebe alta de hospital após crise
cardiovascular. (JA 31.05.1985 04)

5. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo, 02 de junho de 1985. Em 10 anos surge grande acervo cultural. (JA
02.06.1985 05)

6. Gazeta de Alagoas. Maceió, terça-feira, 18 de junho de 1985. Irmã Jurema morre: suicídio ou assassinato? (GA
18.06.1985 06)

7. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 04 de agosto de 1985. Candomblé realiza festa em Feira Nova. (JA
04.08.1985 07)

8. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 19 de outubro de 1985. O Xangô alagoano na coleção perseverança. (JA
19.10.1985 08)

9. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira, 20 de novembro de 1985. Dia da consciência negra. Os negros e o
racismo no Brasil de hoje. (JA 20.11.1985 09)

10. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira, 22 de novembro de 1985. Ministro garante que implantará Memorial
Zumbi. (JA 22.11.1985 10)

11. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira 27 de novembro de 1985. Candomblé alagoano de luto. (JA
27.11.1985 11)

12. Jornal de Alagoas. Maceió, 04 de dezembro de 1985. Orientação espiritual, p.A-7. (JA 04.12.1985 12)

13. Jornal de Alagoas. Maceió, 05 de dezembro de 1985. Orientação espiritual. (JA 05.12.1985 13)

14. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 27 de dezembro de 1985. Maciel e seus búzios anunciam mais petróleo
para o Estado, p.A-7. (JA 27.12.1985 14)

1986
1. Gazeta de Alagoas. Maceió, 19 de janeiro de 1986. Rei do Candomblé no Brasil é alagoano. (GA 19.01.1986
01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 21 de fevereiro de 1986. Babalorixás fazem festa em Feira Nova, p.B-8.
(JA 21.02.1986 02)
3. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 07 de março de 1986. Festa no Jacintinho coroa nova princesa do
Candomblé, p.B-8. (JA 07.03.1986 03)

4. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 04 de maio de 1986. Eleição de ialorixá é irregular, p.A-2. (JA
04.05.1986 04)
5. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 17 de maio de 1986. Umbandistas festejam hoje o preto velho, p.B-8. (JA
17.05.1986 05)
6. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 12 de julho de 1986. Mãe estrangula filho possuída pelo demônio, p.B-10.
(JA 12.07.1986 06)
7. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 12 de julho de 1986. Pai de santo já previa que o menino não escaparia da
morte, p.B-10. (JA 12.07.1986 07)
8. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 12 de julho de 1986. População revoltada quase lincha a mãe criminosa,
p.B-10. (JA 12.07.1986 08)
9. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 13 de julho de 1986. Curandeiro afirma: menino era possuído pelo
demônio, p.1. (JA 13.07.1986 09)
10. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 17 de agosto de 1986. De luto, candomblé ainda chora a morte de Mãe
Menininha, p.A-8. (JA 17.08.1986 10)
11. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 17 de agosto de1986. Maciel: cumpriu sua missão, p.A-8. (JA 17.08.1986
11)
12. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 07 de setembro de 1986. Macumba não existe, p.A-6. (JA 07.09.1986 12)

349
13. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 15 de novembro de 1986. Pai Maciel prevê confusão e desordem na eleição,
p.A-9. (JA 15.11.1986 13)
14. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 30 de novembro de 1986. Maceió condena a apartheid, p.1. (JA
30.11.1986 14)
15. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 30 de novembro de 1986. Maceió fará comício-show contra o racismo
africano, p.A-2. (JA 30.11.1986 15)
16. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira 03 de dezembro de 1986. Protesto contra o “Apartheid” conta com o
apoio da prefeitura, p.A-2. (JA 03.12.1986 16)
17. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-fera 11 de dezembro de 1986. Lei proíbe os despachos de umbandistas, p.1.
(JA 11.12.1986 17)
18. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 25 de dezembro de 1986. Negros em NY reagem e agridem
adolescente branco, p.A-15. (JA 25.12.1986 18)
19. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 30 de dezembro de 1986. Cabeleireira que é repreendida acusou pai-de-
santo, p.1. (JA 30.12.1986 19)

1987
1. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 03 de fevereiro de 1987. Pai-de-santo estupra garçonete numa sessão,
p.A-10. (JA 03.02.1987 01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, 04 de março de 1987. Federação acusa entidade do culto de charlatanismo. (JA
04.03.1987 02)
3. Jornal de Alagoas. Maceió, 04 de março de 1987. Federação dos Cultos em Geral (nota oficial). (JA
04.03.1987 03)
4. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 17 de abril de 1987. Biu do Xangô, p.A-10. (JA 17.04.1987 04)
5. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo, 14 de junho de 1987. “Escrava” Rosa faz 100 anos, p.A-1. (JA
14.06.1987 05)
6. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo, 14 de junho de 1987. Mulher mais velha de Pão-de-Açúcar é filha de
escravos e tem 100 anos, p.A-5. (JA 14.06.1987 06)
7. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo, 23 de agosto de 1987. O homem que desmanchou pacto com o diabo,
p.A-6. (JA 23.08.1987 07)
8. Jornal de Alagoas. Maceió, 11 de dezembro de 1987. Lei proíbe despachos de Umbandistas, p. 1. (JA
11.12.1987 08)

1988
1. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 02 de julho de 1988. Adeptos de religiões afro-brasileiras vão realizar um
encontro. (JA 02.07.1988 01)

2. Jornal de Alagoas. (Jornal dos Caetés) São Miguel dos Campos, quarta-feira, 24 de agosto de 1988. Políticos
apelam para os orixás nestas eleições. (JA 24.08.1988 02)

3. Jornal de Alagoas. (Jornal do Norte) Porto Calvo, quinta-feira 01 de setembro de 1988. Axé organizado. (JA
01.09.1988 03)

4. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo 06 de novembro de 1988. Místicos prevêem resultados da eleição. (JA
06.11.1988 04)

1989
1. Jornal de Alagoas. Maceió, quarta-feira, 04 de janeiro de 1989. Babalorixá alagoano prevê a queda de Sarney.
(JA 04.01.1989 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, 17 de janeiro de 1989. Pai Léo prevê quem será o presidente, p.A-12. (JA
17.01.1989 02)

3. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira, 01 de abril de 1989. Espíritas realizam festejos, p.A-5. (JA 01.04.1989
03)

4. Gazeta de Alagoas. Maceió, quinta-feira, 31 de agosto de 1989. “Babalorixá” morto a porta de sua casa, p.20.
(GA 31.08.1989 04)

5. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira 31 de agosto de 1989. Pai de santo é executado a tiros, p.A-8. (JA
31.08.1989 05)

350
6. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 01 de setembro de 1989. Feitiço provocou o assassinato do pai “biu”,
p.A-8. (JA 01.09.1989 06)

7. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 13 de outubro de 1989. Em pauta a superstição da sexta-feira 13. (Pai
Maciel recomenda muita prudência), p.A-3. (JA 13.10.1989 07)

1990
1. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 23 de janeiro de 1990. Feiticeiro encontrado morto e a amante sumiu,
p.A-1. (JA 23.01.1990 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, terça-feira 23 de janeiro de 1990. Feiticeiro achado morto ao lado da estátua do
demônio, p.A-8. (JA 23.01.1990 02)

3. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 21 de julho de 1990. Morte de pai de santo está ligada a suas atividades,
p.B-8. (JA 21.07.1990 03)

4. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado 04 de agosto de 1990. Babalorixá também (...) (JA 04.08.1990 04)

5. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira 28 de novembro de 1990. Pai Maciel, p.B-1. (JA 28.11.1990 05)

6. Jornal de Alagoas. Maceió, sábado, 08 de dezembro de 1990. Caderno 2. Dos mares da vida vem a luz de mãe
Yemanjá, p.B-1. (JA 08.12.1990 06)

1991
1. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira, 05 de julho de 1991. Umbanda já conta com seu candidato à câmara,
p.A-3. (JA 05.07.1991 01)
2. Jornal de Alagoas. Maceió, quinta-feira, 31 de outubro de 1991. Pai Maciel é ameaçado de morte. (JA
31.10.1991 02)
3. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo, 29 de dezembro de 1991. Previsões para 92 são otimistas, mas pessoas
estão descrentes. (JA 29.12.1991 03)

1992
1. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo, 02 de agosto de 1992. Pais-de-santo fazem festa de desagravo, p.A-4 . (JA
02.08.1992 01)

1993
1. Jornal de Alagoas. Maceió, sexta-feira, 26 de março de 1993. Mãe de santo prepara festa em Arapiraca, p.A-2.
(JA 26.03.1993 01)

2. Jornal de Alagoas. Maceió, 30 de março de 1993. “Collor fez macumba para matar Ulysses’’, p.A-4. (JA
30.03.1993 02)
3. Jornal de Alagoas. Maceió, domingo, 13 de julho de 1993. Macumbeiro é morto com esposa a tiros, p.B-1. (JA
13.07.1993 03)

1994
1. Gazeta de Alagoas. Maceió, quarta-feira 12 de janeiro de 1994. Rei do candomblé escolhe a Serra da
Barriga para ritual, p. A-5. (GA 12.01.1994 01)
2. Gazeta de Alagoas. Maceió, sexta-feira 20 de agosto de 1994. Religiões afro de Alagoas fazem encontro
integrado. (GA 20.08.1994 02)
3. Gazeta de Alagoas. Maceió, domingo 09 de outubro de 1994. Presença de traços culturais africanos nas
religiões nas religiões afro-brasileiras da atualidade, p.B-4. (GA 09.10.1994 03)
4. Gazeta de Alagoas. Maceió, domingo 13 de novembro de 1994. Um ano de impunidade: caso do menino
morto em ritual de magia negra empanca na justiça, p. A-6. (GA 13.11.1994 04)

1995
1. Gazeta de Alagoas, Maceió, domingo 01 de janeiro de 1995, Búzios: 95 será o ano das crianças regidos por
orixás. Tarôs prevêem ano de justiça e paz, p.A-8. (GA 01.01.1995 01)

351
2. Gazeta de Alagoas. Maceió, domingo 14 de maio de 1995. Juiz liberta macumbeiro que matou e esquartejou
menor em ritual satânico, p. A-6. (GA 14.05.1995 02)
3. Gazeta de Alagoas. Maceió, sábado 09 de dezembro de 1995. Nota sobre a Umbanda, p.1. (GA 09.12.1995
03)

1996
1. Tribuna de Alagoas Maceió, domingo 22 de setembro de 1996. Macumbeiros matam meninas e são presos.
(TA 22.09.1996 01)

2. Tribuna de Alagoas. Maceió, domingo 12 de novembro de 1996. Mãe-de-santo mata mulher em ritual satânico,
p.13. (TA 12.11.1996 02)

3. Tribuna de Alagoas. Maceió, domingo, 22 de dezembro de 1996. Búzios anunciam ano venturoso, p.13. (TA
22.12.1996 03)

4. Tribuna de Alagoas. Maceió, quinta-feira, 25 de dezembro de 1996. Pistoleiros matam pai- de –santo, p.12.
(TA 25.12.1996 04)

1997
1. Tribuna de Alagoas. Maceió, sábado 15 de fevereiro de 1997. O reinado do Candomblé, {tribuna 2} p.1. (TA
15.02.1997 01)
2. Tribuna de Alagoas. Maceió, quarta-feira 02 de julho de 1997. Pai de santo é acusado de ter estuprado a
vizinha, p.3. (TA 02.07.1997 02)
3. Tribuna de Alagoas. Maceió, quarta-feira 15 de outubro de 1997. Babalorixá é acusado de tentar matar três
irmãos, p.12. (TA 15.10.1997 03)
4. Tribuna de Alagoas. Maceió, quinta-feira 20 de novembro de 1997. Comemorações em Alagoas lembram
Zumbi, p.9. (TA 20.11.1997 04)
5. Tribuna de Alagoas. Maceió, domingo 28 de dezembro de 1997. Místicos anunciam previsões para 1998, p.7.
(TA 28.12.1997 05)

1998
1. Tribuna de Alagoas. Maceió, sábado, 06 de junho de 1998. Evento Afro comemora o “Boi Itá Odè,” p.3. (TA
06.06.1998 01)

2. Tribuna de Alagoas. Maceió, quinta-feira, 28 de maio de 1998. (Folclore/ religião) Mestre Zome em vídeo, p.3.
(TA 28.05.1998 02)

1999
1. Tribuna de Alagoas. Maceió, sábado, 11 de abril de 1999. Babalorixá usava bebês em ritual de magia negra,
p.6. (TA 11.04.1999 01)
2. Tribuna de Alagoas. Maceió, quarta-feira, 01 de setembro de 1999. Vozes D’África: Rei do candomblé no
Brasil fala da importância da cultura afro, p.1. (TA 01.09.1999 02)
3. Tribuna de Alagoas. Maceió, sexta-feira 22 de outubro de 1999. Vidente prevê epidemia em AL, p.8. (TA
22.10.1999 03)

2000
1. Tribuna de Alagoas. Maceió, quinta-feira 30 de março de 2000. Uganda perplexa com seita, p.11. (TA
30.03.2000 01)
2. Tribuna de Alagoas. Maceió, quinta-feira 06 de abril de 2000. Seita era rica em dinheiro e adeptos p.11. (TA
06.04.2000 02)
3. Tribuna de Alagoas. Maceió, quarta-feira 13 de setembro de 2000. Aposentadoria para pais e mães de santo,
p.10. (TA 13.09.2000 03)
4. Tribuna de Alagoas. Maceió, sábado 09 de dezembro de 2000. Umbandistas prestam homenagem a Iemanjá,
p.7. (TA 09.12.2000 04)
5. Tribuna de Alagoas. Maceió, domingo 24 de dezembro de 2000. Orixás recebem flores e frutas, p.16. (TA
24.12.2000 05)

352
ANEXO 3 – FOTOGRAFIAS

As fotos foram feitas durante a pesquisa de campo entre os anos 2008 e 2011, em São Paulo
e Maceió. Aqui se têm algumas.

SÃO PAULO
TERREIRO ILÊ AXÉ ODÉ – Ribeirão Pires, São Paulo
27/09/2008

Mastro de marcação do centro onde está assentado o Axé do Terreiro –


Junto ao lado Pilão de Oxalá

Assistência e sacerdotes visitantes Marcela, sete anos, iniciada

353
Oxóssi Ogum

Oxum, ao fundo iaô Oxum, dançando

354
SÃO PAULO
ILÊ ALAKETU AXÉ XANGÔ – Osasco
26/10/2008

Assentamento do Axé do Terreiro, pilão de Oxalá, cadeira e opaxorô

Filha de Pai Sidney, iniciada

355
Orquestra ritual, com atabaques Pai Alexandre de Oxaguiã

Oxalá batendo no chão o opaxorô no ritmo dos atabaques

356
Orixás seguindo Oxalá (Oxalufã)

Orixás seguindo Oxalá (Oxalufã)

357
SÃO PAULO
TENDA DE UMBANDA NOSSA CASA, Lapa

Gongá – altar Oração para abertura da gira

Caboclo Pena Roxa tocando atabaque Limpeza de ori

Mamãe Oxum

358
MACEIÓ
CASA DE MANOEL XOROQUÊ, Conj. Benedito Bentes II
06/03/2010

Entrada

Assentamento do axé do terreiro Filhas de santo aguardando o início do toque em frente ao


assentamento de Oxalá

359
Portas dos pejis dos orixás com pinturas representando cada um

Dança do Caboclo

Pai Manoel Xoroquê defumando, ao fundo orquestra ritual

360
MACEIÓ
CASA DE IEMANJÁ, Pajuçara
07/01/2010

Pai Célio

Nanã

361

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