RODRIGUES, Lucas. As Formas Do Perene. Dissert. Mestr
RODRIGUES, Lucas. As Formas Do Perene. Dissert. Mestr
RODRIGUES, Lucas. As Formas Do Perene. Dissert. Mestr
AS FORMAS DO PERENE
Os oratórios domésticos devocionais em Minas Gerais e seus antecedentes europeus – estudo
histórico, estilístico e iconográfico (Sécs. XVIII-XIX)
LUCAS RODRIGUES
AS FORMAS DO PERENE
Os oratórios domésticos devocionais em Minas Gerais e seus antecedentes europeus – estudo
histórico, estilístico e iconográfico (Sécs. XVIII-XIX)
Rodrigues, Lucas.
As formas do Perene : Os Oratórios domésticos
R696f
devocionais em Minas Gerais e seus antecedentes
europeus: estudo histórico, estilístico e iconográfico
(Sécs. XVIII e XIX) / Lucas Rodrigues ; orientadora
Letícia Martins de Andrade. -- São João del-Rei,2020.
524 p.
_______________________________________________
Profa. Dra. Letícia Martins de Andrade
Universidade Federal de São João del-Rei
Orientadora
_______________________________________________
Profa. Dra. Silveli Maria de Toledo Russo
Universidade de São Paulo
Membro Titular
________________________________________________
Prof. Dr. Danilo José Zioni Ferretti
Universidade Federal de São João del-Rei
Membro titular
6
AGRADECIMENTOS
Finalizada a dissertação, eis que surge um suspiro de alívio. A conclusão de uma etapa é
sempre uma ocasião para agradecer. O percurso do mestrado foi árduo, difícil e muito solitário,
mas também repleto de lembranças memoráveis. Agradecer sempre é tarefa difícil, pois corremos
o desagradável risco de esquecermos alguém. No entanto, agradecer é preciso.
Agradeço primeiramente à Mariana, minha companheira, que por dias e noites se manteve
ao meu lado ao longo de todo o processo de construção desta pesquisa. Agradeço pelo amor, pelo
afeto, pelo carinho e também pela prestimosa contribuição para com esta pesquisa, sobretudo na
elaboração das tabelas que aqui se encontram. Sou extremamente grato também pela parceria
intelectual que construímos no decorrer de todo o processo, o que certamente me moveu em
direção ao resultado final.
À minha mãe, Vilma, pela vida e pelo afeto sempre sincero, sendo para mim motivação
constante. Às minhas irmãs, Gabrielle e Lidianne, assim como os demais familiares próximos, pela
presença. À Cristina, Clayton e Mateus, pelo apoio e paciência durante o isolamento social (ocasião
em que pude finalizar esta dissertação). Agradeço de maneira especial ao Bruno, um dos meus
irmãos de espírito, pela sempre animadora companhia nos museus e demais espaços culturais em
São Paulo. Ao David, pelo entusiasmo por esta pesquisa. Agradeço também à minha cara amiga
dos tempos de Colégio Metodista, Maristela, pela motivação sempre enérgica. Aos amigos,
familiares e ex-alunos em Bertioga (SP), especialmente ao Josuel Júnior, pelo apoio sempre sincero.
E por fim, agradeço aos amigos de São João del-Rei, que ao longo da graduação e da pós-graduação
estiveram ao meu lado, me apoiando de modo incondicional, em especial Henrique Rodrigues, Ana
Amélia Gimenez, Daniela Angonese, Hugo Garin, Séfora Sutil, Ana Luísa Bernardes, Caique
Rodrigues, Filipe Mariano, Lucas Pereira, Matias Landim, Bárbara dos Anjos e tantos outros.
Com muito carinho, agradeço também à Luciana Giovaninni (cuja gratidão também estendo
à Eleila), amiga de abraço acolhedor e de todas as horas possíveis e imagináveis. Agradeço pelo
companheirismo e pelas trocas, tão significativas e tão ricas ao longo da nossa jornada na História
da Arte Colonial. Saiba que você, enquanto pessoa e pesquisadora, se encontra presente nesta
dissertação, cuja contribuição fora tão importante e singela. Agradeço também a Taína Resende,
minha colega de turma e de tema, verdadeira irmã acadêmica durante o mestrado. Obrigado pela
partilha e pelas trocas generosas. Por fim, agradeço à equipe, alunos e associados do Centro de
Estudos e Pesquisas em História da Arte e Patrimônio da UFSJ, pelos momentos de construção e reflexão.
8
Agradeço também aos meus colegas e alunos do Centro Musical Monsenhor Paiva, em especial à
Maria José Fonseca, pela vibrante força que me fez seguir em frente nos momentos de desânimo.
De uma maneira toda especial, agradeço à minha orientadora, Profª. Drª. Letícia Martins de
Andrade. Te agradeço de maneira sincera pela sua paciência e sabedoria ao me iniciar nos caminhos
da nobre disciplina que Vasari nos legou. Devo imensamente à sua maternal e sempre precisa
orientação, amizade, afeto e carinho. Agradeço também pela sua presença sempre constante e pelos
momentos de partilha profissional e pessoal sempre construtivos, tanto nos momentos de
felicidade como nos momentos de angústia. Por fim, te agradeço por me ensinar a olhar, capacidade
que deve ser inerente a todo historiador da arte. Agradeço também por me motivar e fazer com
que me sentisse capaz, mesmo diante dos abismos que se abriram sob os meus pés. Muito obrigado.
Por fim, sou grato a muitas pessoas e instituições que se mostraram imprescindíveis para a
construção deste trabalho. Agradeço ao Prof. Dr. Danilo José Z. Ferreti (UFSJ), que além de
compor minha banca examinadora na qualificação e na defesa desta dissertação, sempre foi um
sincero entusiasta das conexões entre história e arte colonial. Agradeço muitíssimo pelo apoio,
pelas orientações concisas e pela magistral atuação como meu professor na graduação e na pós-
graduação em História. Agradeço também à Profª. Drª. Silveli Maria de Toledo Russo (BBM-USP),
por compor minha banca examinadora na qualificação e defesa desta dissertação, assim como pela
enorme e significativa contribuição ao longo da construção desta pesquisa. Muito obrigado pela
disponibilidade e preocupação em orientar e indicar os melhores caminhos durante esse processo.
Te agradeço, de modo particular, por me fazer compreender que um mero ‘armário de duas portas’
possui – na sua singeleza – uma constelação de possibilidades.
Agradeço aos docentes do DECIS, Sílvia Brügger, Maria Leônia Chaves de Resende, Afonso
de Alencastro, Wlamir Silva, Cássia Palha, Orlando de Almeida Filho, Ivan Velasco, Josiane Nunes,
Leon Kaminski, Paula Chaves, Alfredo Nava e tantos outros que me formaram e me auxiliaram
em minha passagem pela UFSJ. Sem dúvidas, vocês sempre serão parte de mim e deixo aqui
registrada a minha profunda gratidão por tudo o que me ensinaram. Agradeço também ao
secretário da PGHIS, Aílton Assis, pela paciência sempre constante.
Agradeço ao Museu Regional de São João del-Rei, cujo acervo de oratórios domésticos serviu
de pontapé inicial, sendo fundamental para a expansão desta pesquisa. Agradeço de modo muito
particular aos seus colaboradores, Marlon Gouvêa e Maria Fátima Loureiro Vasconcelos, pela
importantíssima ajuda e atenciosa contribuição na fotografia do acervo e na pesquisa documental.
9
Agradeço também ao Elimar C. Santo, pelo sereno, delicado e pontual auxílio durante minhas
idas ao arquivo do escritório técnico do IPHAN de São João del-Rei. Agradeço especialmente pela
impecável leitura paleográfica de alguns dos ‘garranchos’ Setecentistas com que me deparei.
Agradeço ao Museu de Arte Sacra de São João del-Rei, pelo apoio durante a pesquisa no
acervo artístico e nos documentos. Agradeço de modo particular ao João Pedro Resende, pela
atenção e paciência dispensada, ao Pároco da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar, Pe.
Geraldo Magela, pelo apoio sempre contínuo, ao Marcos Luan, pelo olhar fotográfico sempre
esmerado e pela animação sempre vibrante, e aos demais colaboradores do Museu que me
permitiram perambular por entre os tesouros das irmandades sanjoanenses.
Agradeço também ao Memorial Cardeal Dom Lucas Moreira Neves, cuja vastíssima
biblioteca possibilitou horas de estudo em suas instalações. Agradeço de modo particular aos seus
guardiões, Pe. Ramiro Gregório e Nelson Antunes, pela prestimosa contribuição e confiança.
Agradeço também ao Sandro, ao Jean Abreu e demais funcionários do Memorial que à época me
serviram de companhia.
Agradeço também à Adriana Viegas, da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de São
João del-Rei, pela autorização que possibilitou a análise detalhada e minuciosa do oratório da
família ‘Campos Coelho’, talvez a peça mais instigante que tive contato durante esta pesquisa. Aos
colaboradores da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo, em especial ao Tiago
Carvalho, pela acolhida e paciência sempre generosas. E também aos colaboradores da Catedral
Basílica de Nossa Senhora do Pilar, pela confiança depositada e pelo ar ‘de casa’ que sempre tenho
ao visitar o coração religioso de São João del-Rei.
Agradeço ao Olinto Rodrigues dos Santos Filho (IPHAN – Tiradentes), pelo olhar aguçado
e pelas dicas em torno dos oratórios mineiros. Espero que esta pesquisa contribua na compreensão
desses objetos tão singulares da cultura mineira. Agradeço também ao amigo e ‘tutor cultural’,
Abgar Campos Tirado, pela singela contribuição com esta pesquisa e pelas conversas sempre ricas
e generosas. Sou extremamente grato pelas agradáveis horas diante do piano, que me serviram de
consolo durante os cansaços da vida acadêmica.
Montalvão (autor do blog português ‘Velharias do Luis’), pela generosa disponibilização de fontes
de sua coleção particular para esta pesquisa. Agradeço também à Profª Drª. Sílvia Ferreira (IHA –
Universidade Nova de Lisboa) pela pontual indicação do banco de dados ‘MatrizPix’, ferramenta
primordial para quem deseja conhecer um pouco dos acervos portugueses. E por último, aos
desenvolvedores do banco de dados da casa leiloeira Cabral Moncada, pelos catálogos sempre
excelentes.
Por fim, agradeço a todos aqueles que contribuíram de alguma forma para com esta pesquisa.
Desde já, assumo um mea culpa, caso tenha esquecido alguém.
11
RESUMO
Os oratórios domésticos de caráter devocional manufaturados em Minas Gerais nos séculos XVIII
e XIX, embora se configurem como elementos distintivos da cultura religiosa mineira, ainda não
foram estudados sob a ótica de conjunto. Objetos pertencentes à classe do mobiliário com função
religiosa, os oratórios domésticos em Minas Gerais ainda permanecem figurados como obras
menores e carecem de uma atenção especial da historiografia da arte brasileira, que se volta
especialmente para os grandes monumentos. O presente estudo visa trazer à luz, sob o ponto de
vista da História da Arte, os elementos formais constitutivos dos oratórios domésticos em Minas,
a saber: a conjunção do vocabulário retabulístico com a miniaturização das formas e a integração
das expressões da arquitetura, pintura e escultura que formam o oratório doméstico como uma
“obra de arte total”. Nesse sentido, esta pesquisa visa compreender (num primeiro momento) o
oratório doméstico numa perspectiva histórica, onde buscamos entende-lo em consonância com a
história da vida privada e a história da religiosidade católica, assim como compreender (num
segundo momento) o desenvolvimento dos oratórios domésticos na Europa a fim de estabelecer
os modelos formais (que aqui chamamos de antecedentes europeus) que se fizeram representar nos
oratórios mineiros, possibilitando o entendimento da adequação das formas estrangeiras e o seu
desenvolvimento local. Por último, esta pesquisa busca compreender as representações
iconográficas cultuadas nos oratórios domésticos em Minas, a fim de identificar as predominâncias
iconográficas e as representações do hagiológico cristão como elementos constitutivos da
religiosidade privada e doméstica no Setecentos e Oitocentos mineiro.
PALAVRAS-CHAVE: Oratório doméstico, Antecedentes europeus, Religiosidade
doméstica, Análise Formal, Iconografia
ABSTRACT
The domestic oratories produced in Minas Gerais during the XVIII and XIX centuries, though
treated as important components for the local culture, had not been studied from a global angle.
Seen as an element that belongs to a class of sacred furniture, the domestic oratories in Minas
Gerais are considered as unimportant objects for almost the whole Brazilian art historians, with
ones prefer the great monuments. The objective of this production is to bring a new light, from
another point of view, about the formal elements that distinguish the domestic oratories in Minas
Gerais, namely: the domestic oratories vocabulary in association with a specifics manifestation of
architecture, and paint and sculpture, which ones are responsible for build the domestic oratories
as a "work of art complete". On the whole, this research intends to understand the domestic oratory
from a historical perspective, which is tried to get interpreted in consonance with the history of
private life and the history of catholic godliness, on the other hand, also intends to learn how the
domestic oratories had grown in Europe with the intent to determinate the formal models (which
here we will name as European ancestors) that were portrayed by the oratories produced in Minas
Gerais, allowing us to understand how the international oratories influenced the local oratories.
Finally, this research demand learns the iconography representations that were worship inside the
domestic oratories in Minas Gerais, intending to recognize the iconography's acceptance and the
representation of the Christian hagiology as an important component of private godliness and
home godliness during the seventh and eighth century in Minas Gerais.
KEYWORDS: Domestic oratory, European antecedents, Domestic religiosity, Formal
Analysis, Iconography
13
SIGLAS
LISTA DE TABELAS
Tabela 7. Quantidade de imagens por invocação na Minas colonial (em relação às representações
relacionadas à Paixão de Cristo e às Almas do Purgatório).
Tabela 8. Irmandades religiosas em São João del-Rei e a estimativa de festas devocionais a elas
associadas.
Tabela 11. Invocações cultuadas em oratórios domésticos mineiros (séculos XVIII e XIX) –
Quantificação das representações pictóricas e esculturais.
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................................18
Capítulo 3. O caminho das formas: o oratório doméstico como “obra de arte total” na
Europa.......................................................................................................................................................173
16
Capítulo 4. A forma nas alterosas: o oratório doméstico como “obra de arte total” em Minas
Gerais.........................................................................................................................................................257
CONSIDERAÇÕES FINAIS................................................................................................................468
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS.................................................................................................472
Fontes impressas..................................................................................................................485
Fontes manuscritas..............................................................................................................488
INTRODUÇÃO
O historiador da arte Erwin Panofsky (1892-1968), numa feliz passagem em Das problem des
stils in der bildenden Kunst (O problema do estilo nas artes plásticas), sintetizou indiretamente, na frase
que citamos acima, o mecanismo da arte barroca. Uma arte que atrai o olhar do observador como
a quimera atrai com seus enigmas o homem incauto. Uma arte que embebeda os sentidos, oprime
as consciências e que violenta enternecidamente os sentimentos. Enfim, uma arte que emoldura o
sagrado com formas voluptuosas. Dessas contradições, o Barroco visa, através do mecanismo
óptico, persuadir e convencer.2 Convence, portanto, através do artifício da fantasia, da imaginação,
apresentando aos olhos do observador um grande teatro.3 Nesse aspecto, a sentença de Panofsky
sintetiza exatamente esse mecanismo, tendo em vista que essa arte, unida também ao espírito da
Contrarreforma católica, deseja atingir através do olho, a alma. “A relação do olho com o mundo
é, em realidade, uma relação da alma com o mundo do olho”.
Consciente desse fato, a Igreja Católica pós-Trento compreende que pode atingir com maior
eficácia a alma dos crédulos e incrédulos através da visão. Em sua luta contra a heresia protestante,
a Igreja através do Barroco não limitou seu poder de persuasão somente às imagens e à faustosa
ornamentação dourada dos seus templos, ou ainda aos floreios da oratória abrasadora dos sermões
panegíricos, mas exerceria também influência no recôndito do lar de homens e mulheres, de todas
as classes e condições sociais. Num momento em que a vida privada caminha para a sua
consolidação (um processo que se inicia no século XV, atingindo enorme avanço no XVIII e
consolidando-se plenamente no século XIX), a Igreja impulsiona a devoção doméstica e o
intimismo religioso como observância da vida de oração no conforto do lar. A representação
material dessa religiosidade privada e doméstica é o oratório, que se consagra como objeto de
piedade e culto no mundo cristão.
Embora o oratório doméstico não seja um produto direto do Barroco, foi através desse estilo
artístico que o artefato em questão encontrou vitalidade em sua forma. De origem medieval, o
oratório doméstico no tempo do Barroco possuiu a forma de um armário com duas portas, ou
1 PANOFSKY, Erwin. Le problème du style dans les arts plastiques, p. 188 apud DIDI-HUBERMAN, Georges.
Diante da imagem – Questão colocada aos fins de uma história da arte. São Paulo: Editora 34, p. 187.
2
ARGAN, Giulio Carlo. Imagem e Persuasão – Ensaios sobre o Barroco. São Paulo: Companhia das Letras, 2004,
p. 18.
3
BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador: Edufba, 2012, p. 191-195.
19
Desde o início desta pesquisa, dificilmente observamos uma residência (modesta ou não) em
que não se pudesse localizar na sala de estar um oratório suntuosamente entronizado, ou ainda um
pequeno nicho dependurado no quarto de dormir, na cozinha, ou amparado dignamente sob uma
cômoda. Além desse fato, Minas Gerais possui na contemporaneidade um rico acervo de oratórios
domésticos coloniais sob salvaguarda de vários museus no Estado, entre esses, o Museu do
Oratório em Ouro Preto, o único do país e do mundo dedicado ao tema (o que atesta a sua
singularidade).
No entanto, mesmo se tratando de objetos tão singulares da identidade cultural e religiosa de
Minas Gerais, os oratórios domésticos mineiros de natureza devocional ainda permanecem em um
relativo estado de incompreensão por parte da historiografia da arte brasileira. Contudo, alguns
estudos que nos antecederam devem ser aqui incorporados e devidamente considerados, tendo em
4
Embora no Oriente, sobretudo na cultura japonesa, houvessem oratórios para o culto privado e doméstico.
5
Uma inquietação também compartilhada pela historiadora da arte profa. dra. Leticia Martins de Andrade (UFSJ),
orientadora do presente estudo. Agradecemos de maneira especial pela pronta disposição e entusiasmo em orientar
este trabalho, cuja erudição se mostrou vital para o empreendimento desta pesquisa.
20
vista que se configuram como esforços da historiografia da arte na qual o presente estudo visa se
integrar e colaborar.
Em primeiro lugar, o termo ‘oratório doméstico’ possui data longeva, significando também
‘capela privada’, ‘altar portátil’, ‘altar doméstico’ ou ainda ‘gabinete de oração’. Além de polissêmico,
o termo ‘oratório’ se plasma a outras nomenclaturas, o que dificultou – segundo a nossa visão – as
tentativas de compreensão por parte da historiografia da arte, que não os considerou (até onde a
nossa pesquisa conseguiu verificar) sob a ótica de conjunto. Queremos com isso afirmar que os
oratórios domésticos, enquanto obras de arte, possuem uma trajetória morfológica, estilística e
iconográfica cujos antecedentes podem ser observados em número e forma desde o final da Idade
Média europeia (séculos XIV e XV), embora sua origem formal possa ser vislumbrada já nos
primórdios do cristianismo, quando a Roma pagã se cristianiza sob a pax do imperador
Constantino.
As fontes históricas (consideradas primordiais) que atestam sua existência são os
denominados ‘breves apostólicos de oratório’, licenças expedidas pelo papado ou pelo bispo local
que conferia a um fiel (e por extensão, a sua família) gozar do privilégio de celebrar a Santa Missa
em seu oratório ou capela privada, localizado no interior da residência. Se tais fontes, que são
abundantes, falam-nos muito sobre os oratórios domésticos com função de altar (consagrados,
autorizados e dotados de pedra d´ara), ou seja, relacionados intimamente com a liturgia católica,
tais fontes não nos dizem nada dos oratórios domésticos voltados especificamente para a devoção.
No caso específico desses últimos, as únicas fontes documentais que atestam a sua existência (além
das próprias obras remanescentes) são os testamentos e os inventários post-mortem, onde quase
sempre os oratórios figuram como objetos arrolados ao conjunto do mobiliário ordinário.
Tendo em vista essa relativa escassez de fontes documentais, as definições de ‘oratório’ se
mesclam e se confundem, embora a distinção entre o oratório com função litúrgica e o oratório
com função devocional seja evocada sempre. Nesse sentido, os escritos de caráter jurídico-
teológico6 figuram como fontes primordiais para o entendimento da legislação intrínseca ao
oratório doméstico, assim como de sua história, como veremos no decorrer desta pesquisa.
Contudo, embora os oratórios domésticos não possuam uma ‘historiografia’, ou seja, uma
análise plural e centrada numa ótica de conjunto, eles figuram timidamente num número reduzido
de estudos, alguns desses voltados para as ‘artes decorativas’. Partindo desse aspecto, destacamos
como exemplo o The Metropolitan Museum Journal, revista de caráter científico vinculado ao The
Metropolitan Museum of Art, de Nova York. Em algumas de suas edições (que figuram desde a década
6
A Espanha Setecentista e Oitocentista possui denotado destaque na produção canônico-teológica em torno dos
oratórios domésticos, como veremos no decorrer do primeiro e segundo capítulos da presente pesquisa.
21
de 1970), podemos observar oratórios domésticos (identificados comumente como shrine devotional,
house altar cabinet, domestic altar, triptych miniature) sendo interpretados como objetos de devoção
doméstica que se vinculam ao ímpeto de uma vida privada em ascensão ou consolidação. As
interpretações, no entanto, não avançam para além disso. Comumente, tais definições são
encontradas nas descrições dos objetos, servindo de informação nas ‘fichas catalográficas’ das
referidas peças em catálogos de caráter raisonné.7
Na Europa, tampouco se fala em oratórios domésticos. Figuram poucas exceções. Em
Portugal, no entanto, observamos um promissor início. Numa inovadora publicação da Reader´s
Digest com sede em Lisboa, é publicado um eficiente guia turístico para aqueles que desejam
conhecer o patrimônio histórico e artístico de Portugal, o Tesouros artísticos de Portugal (1976).8 Nesse
guia vigoroso com mais de 600 páginas (que ultrapassa a presumida funcionalidade de guia, se
apresentando na realidade como uma obra de referência), os oratórios domésticos (também
conhecidos como maquinetas em Portugal) figuram timidamente como peças de acervo dos vários
museus portugueses, com informações e descrições que servem como pistas de localização de
certos exemplares no tempo e no espaço da arte portuguesa. Antes disso, uma outra publicação
portuguesa, de caráter introdutório, também se mostraria promissora: o artigo de Luiz Chaves
Capelas, ermidas, oratórios e nichos dedicados ao culto dos santos, em Lisboa Setecentista e seus arrabaldes (1963).9
Na historiografia, no entanto, o oratório doméstico aparece de maneira subliminar como um
‘gabinete de oração’ e vinculado ao ímpeto da devotio moderna medieval que se aprofunda na
Modernidade, como apontado no texto clássico do historiador François Lebrun, As reformas: devoções
comunitárias e piedade pessoal, presente no importantíssimo volume terceiro do História da Vida Privada
(1986), organizado pelo historiador cultural Roger Chartier.10 Em tempos mais atuais, a obra do
historiador da arte Pedro Dias, Mobiliário Indo-Português (2013),11 citaria oratórios devocionais
produzidos nas áreas orientais que tiveram contato comercial com Portugal. Porém, a obra mais
vigorosa e que apresentaria uma introdução modestamente satisfatória dos oratórios devocionais
(junto dos oratórios com função de altar) como elementos da religiosidade privada seria a série,
7
Os volumes 19 e 20 (correspondentes aos anos de 1984/85) do The Metropolitan Museum Journal é um exemplo claro
disso. Ver: Met publications. Disponível em: metmuseum.or/art/metpublications/mma-journals. Acesso aos
05/10/2020. | Raisonné – ‘Razoado’. Catálogo que visa cobrir integralmente ou parcialmente obras de um determinado
artista ou período histórico com critérios de análise científica.
O The Metropolitan Museum of Art é apenas um exemplo disso. O Victoria and Albert Museum (Londres) e o Rijksmuseum
(Amsterdã), entre outros muitos outros, também podem ser considerados exemplos dessa tendência.
8
READER´S DIGEST, Selecções do. Tesouros artísticos de Portugal. Lisboa: Lisgráfica, 1976.
9
CHAVES, Luis. Capelas, ermidas, oratórios e nichos dedicados ao culto dos santos, em Lisboa Setecentista e seus
arrabaldes. Separata do Boletim da Junta Distrital de Lisboa, n. 59-60, 1963.
10
LEBRUN, François. As reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal In: ROGER, Chartier (org.) História
da Vida Privada. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2009.
11
DIAS, Pedro. Mobiliário Indo-português. Moreira dos Cônegos: Imaginalis, 2013.
22
História religiosa de Portugal (2000),12 organizada pelo historiador Carlos Moreira Azevedo, da
Universidade Católica Portuguesa.
Na historiografia brasileira, assim como na historiografia estrangeira, o oratório doméstico
começa a ser inserido de maneira lenta e gradual. No Brasil, os oratórios são interpretados como
elementos de uma tendência familiar denominada ‘privatização da fé’. Essa privatização pode ser
observada na figura do ‘quarto de santo’, um lugar específico da casa onde se instalava um altar
com imagens de santos para as rezas cotidianas (e comuns nas zonas rurais), como apontou
Gilberto Freyre no antológico Casa Grande & Senzala: formação da família sob o regime da economia
patriarcal (1933).13 Depois disso, uma contribuição com foco em Minas Gerais seria preconizada
pelo clássico História das ideias religiosas no Brasil (1968) de João Camilo de Oliveira Torres, quando
destaca a presença do ermitão que andarilha nos sertões das ‘Gerais’ com o seu pequeno oratório
de esmoler dependurado no pescoço.14 No primeiro volume da História da Vida Privada no Brasil:
Cotidiano e vida privada na América Portuguesa (1997), o antropólogo Luiz Mott em seu artigo Cotidiano
e vivência religiosa: entre a capela e o calundu, situou pela primeira vez os nossos objetos de estudo: os
oratórios com função devocional. Aponta o autor que na Bahia colonial figuravam oratórios
domésticos, muitos deles vindos de Minas Gerais, que serviam de apoio para as orações. No
entanto, a parca documentação mobilizada pelo autor faz referência aos oratórios com função
litúrgica, o que não esclarece o papel desses oratórios devocionais mencionados e fartamente
ilustrados no decorrer do texto. Talvez a contribuição mais emblemática em torno dos oratórios
domésticos se encontre no pioneiro estudo do historiador Sérgio Chahon, Os convidados para a Ceia
do Senhor – As missas e a vivência leiga do catolicismo na cidade do Rio de Janeiro e arredores – 1750-1820
(2001), onde o autor pôde explorar um pouco da legislação em torno dos oratórios domésticos
com função de altar.15 Porém, nessas obras que citamos, e em muitas outras que tivemos contato
no decorrer desta pesquisa, o oratório doméstico é ‘mero adereço’ da narrativa, nunca o foco ou a
fonte principal. Além disso, quando são citados, o oratório com função devocional nunca recebe
atenção nas análises, que se voltam especialmente para os oratórios configurados como altares.
Já no campo específico da historiografia da arte brasileira, a sua presença é quase nula até a
virada dos anos 2000. Os oratórios domésticos começam a serem citados, com direito a ilustrações
fotográficas, em manuais de ‘história da arte brasileira’ genéricos e sumários, sendo vinculados
12
AZEVEDO, Carlos Moreira (org.) História religiosa de Portugal. Centro de Estudos de História Religiosa da
Universidade Católica Portuguesa. Casais de Mem Martins, Rio de Mouro: Círculo de Leitores, 2000.
13
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família sob o regime da economia patriarcal. Rio
de Janeiro: José Olympio Editora, 1981.
14
TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil. São Paulo: Editora Grijalbo, 1968.
15
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a Ceia do Senhor: as missas e a vivência leiga do catolicismo na
cidade do Rio de Janeiro e arredores (1750-1820). São Paulo: Edusp, 2008.
23
comumente ao mobiliário com função religiosa. É o caso do História da Arte Brasileira: pintura,
escultura, arquitetura e outras artes (1975), do crítico de arte italiano Pietro Maria Bardi. Nas páginas
dedicadas à Minas Gerais, figura um exemplar de oratório-lapinha, considerado como mero
adereço da religiosidade mineira.16 Por outro lado, dessa vez em Minas Gerais, uma voz de peso
anunciaria a potencialidade do oratório doméstico enquanto objeto de pesquisa: o pesquisador e
teórico de arte colonial mineira, Affonso Ávila. Em seu artigo Pequena iniciação ao Barroco Mineiro,
introdução do emblemático e ainda hoje imprescindível Barroco Mineiro, Glossário de Arquitetura e
Ornamentação (1980), Ávila apontaria objetivamente a importância do oratório doméstico:
Mas não será possível compreender-se a peculiaridade da cultura da Minas colonial sem
antes conhecer um pouco a história religiosa da antiga capitania do ouro e do diamante.
Já no curso das primeiras explorações do território, empreendidas pelos bandeirantes e
por baianos e portugueses, o espírito religioso presidia sempre as longas marchas através
do sertão, conduzindo cada bandeira ou grupo imagens dos santos da devoção particular
de seus chefes e componentes, imagens comumente transportadas em oratórios
portáteis que serviam como altares improvisados nas missas e orações.17
Não seria possível compreender Minas Gerais sem antes compreender a sua religiosidade,
cuja expressão material mais representativa, sem sombra de dúvida, seria o oratório doméstico,
introduzido nas Minas através dos bandeirantes, dos viandantes de várias regiões, assim como dos
portugueses.
No entanto, uma grande contribuição viria não de um historiador da arte, mas de um
conoisseur, o colecionador e pesquisador paulista Eduardo Etzel. Na sua obra mais consistente,
Imagens religiosas de São Paulo, apreciação histórica (1979), Etzel dedicaria um breve capítulo aos
oratórios, contendo este apenas cinco páginas. Tendo a São Paulo colonial como recorte, o autor
apresenta a tese de que os oratórios ‘paulistas’ surgiram apenas na última década do século XVIII,
superabundando no século XIX e progressivamente caindo em desuso no XX. Através de suas
breves considerações, percebemos a destacada importância de Minas Gerais no panorama da
produção de oratórios e, além disso, Etzel realizaria em questão um questionamento que se tornou
primordial para esta pesquisa: “o que se segue a esta internalização da crença, à passagem do
grandioso para o pequeno, para o íntimo e o recôndito, à miniaturização das imagens de barro,
madeira e metal?”18 O pesquisador, infelizmente, não conseguiu responder de todo o próprio
16
BARDI, Pietro Maria. História da Arte Brasileira: pintura, escultura, arquitetura, outras artes. São Paulo:
Melhoramentos, 1975.
17
ÁVILA, Affonso. Pequena introdução ao Barroco Mineiro In: ÁVILA, Affonso; GONTIJO, João Marcos Machado;
MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco Mineiro, Glossário de Arquitetura e Ornamentação. São Paulo:
Fundação João Pinheiro; Fundação Roberto Marinho, Companhia Editora Nacional, 1980, p. 7. [grifo nosso]
18
ETZEL, Eduardo. Imagens religiosas de São Paulo, apreciação histórica. São Paulo: Melhoramentos/Editora
da Universidade de São Paulo, 1979, p. 53.
24
19
ETZEL, Eduardo. op. cit. p. 54.
FERREIRA, Carlos Eduardo Moreira. Apresentação. In ARAÚJO, Emanoel (org.) O universo mágico do Barroco
20
21
GUTIERREZ, Angela. Oratório: presença material da divindade In: GUTIERREZ, Angela. Objetos de fé,
Oratórios brasileiros. 2 ed. Belo Horizonte: Formato, 1994, p.
22
LÓPEZ, María del Pilar. El oratorio: espacio domestico en la casa urbana en Santa Fe durante los siglos XVII y
XVIII. Ensayos, Historia y Teoria del Arte, vol. 8, n. 8, 10 fotos, Bogotá D.C., 2003, Universidad Nacional de
Colombia, pp. 157-226.
26
posteriormente, em uma referência primordial para as pesquisas sobre oratórios domésticos, tendo
em vista a metodologia utilizada (que concatenava princípios da história da arte com a história
cultural e social) e as fontes mobilizadas na construção da pesquisa.
Na esteira, um outro estudo inovador e importantíssimo viria a lume, dessa vez em solo
nacional. Em Minas Gerais, no ano de 2008, seria defendida a dissertação de mestrado em Artes
Visuais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro, intitulada Oratórios em estilo D. José I: a arte e a
fé nos objetos da vida privada produzidos em Minas Gerais no século XIX, da pesquisadora Maria Alice
Honório Sanna Castello Branco. É a primeira pesquisa cujo foco predominante são os oratórios
mineiros. Embora não tenhamos tido acesso direto à referida dissertação (tendo em vista a sua
inexistência nos bancos de dados oficiais), através dos artigos que travamos contato pudemos
constatar a qualidade das reflexões desenvolvidas pela autora. Entre os artigos publicados pela
pesquisadora, destacamos dois: Oratórios Mineiros D. José I: O tema cristológico nos objetos de devoção
familiar produzidos entre o fim do século XVIII e início do XIX (2008) e Os oratórios mineiros em estilo D. José
I e a utilização do vidro plano no Brasil: a importância da análise dos materiais na datação das obras religiosas
(2009), textos que consideramos fundamentais para esta pesquisa.
No primeiro, a autora realiza um estudo iconográfico, indicando a peculiaridade do tema
cristológico em sua representabilidade. A partir do seu estudo, pudemos observar nesses típicos
oratórios mineiros a mobilização de fontes canônicas (escriturísticas) e apócrifas durante a
concepção plástica da iconografia cristã. Além disso, situou tais oratórios como obras de arte
vinculadas diretamente a oficinas regionais situadas em pontos específicos da antiga Capitania,
chegando a serem exportados para outras localidades. Já no segundo texto, a autora estabelece a
datação de tais oratórios como sendo exclusivamente do século XIX. Sua tese é defendida através
do estudo do uso do vidro plano no Brasil colônia, cujo consumo para fins artísticos só viria a
ocorrer nos primeiros anos do século XIX. Como poderão constatar nesta pesquisa, concordamos
com a tese defendida pela autora, o que nos aponta a vitalidade do estilo D. José I (rococó
português) ao longo do século XIX em Minas, constituindo-se como um tardo-rococó, como já
apontado pela historiografia do estilo, sobretudo na obra O Rococó religioso no Brasil e seus antecedentes
europeus (2003) da historiadora da arte Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira.
A pesquisa de Maria Alice Castello Branco possui, portanto, um caráter de excepcional
mestria, identificando os oratórios domésticos como obras de arte intrinsecamente ricas em termos
históricos, morfológicos e iconográficos. Além disso, soube indicar um caminho metodológico,
apontando que a interdisciplinaridade seria uma das possibilidades de leitura dos oratórios, tendo
em vista a sua complexidade.
27
Não muito tempo depois, surgiria a pesquisa mais abrangente, erudita e primordial para o
estudo dos oratórios domésticos no Brasil. Defendida primeiramente como tese de doutoramento
na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP) em 2010, e
posteriormente transformada em livro em 2014, viria a luz a obra Espaço doméstico, devoção e arte. A
construção histórica do acervo de oratórios brasileiro – séculos XVIII e XIX, da pesquisadora Silveli Maria
de Toledo Russo. Essa pesquisa, como poderão observar no decorrer do presente trabalho, serviu
como a nossa principal referência bibliográfica, figurando não somente como inspiração, mas como
verdadeiro roteiro para o estudo aqui empreendido.
Tendo a São Paulo colonial como pano de fundo, Silveli Russo realizaria no seu estudo um
percurso de notável erudição. Mobilizando fontes manuscritas, impressas e literárias, somados às
próprias fontes tridimensionais (os oratórios domésticos) e a uma bibliografia abrangente, a
pesquisadora descortinaria os véus nebulosos da dúvida em torno do significado, da historicidade,
das dinâmicas sociais envolvidas e da legislação eclesiástica diretamente relacionados aos oratórios
domésticos na América Portuguesa. Demonstrou, de modo conciso e bem fundamentado, que o
oratório doméstico não se constituía somente como objeto de culto devocional, mas servindo
também como polo de orientação para a liturgia. Esse fato não ocorre somente a partir da ausência
da Igreja enquanto instituição no vasto território da colônia, mas sobretudo como elemento de
distinção social, tendo em vista a onerosidade econômica dispensada no processo da conquista do
privilégio de possuir um altar doméstico consagrado e apto para as celebrações eucarísticas.
Além disso, a pesquisadora delineou, de maneira exemplar, os agentes em torno da política
religiosa, demonstrando os aspectos simbólicos, políticos, econômicos e sobretudo religiosos
enquanto representação de uma sociedade de corte e de Antigo Regime, que viam no oratório
doméstico um símbolo de distinção. Nessa perspectiva, a autora também incorporara os agentes
populares, sendo eles homens livres pobres e negros escravos e forros, que participavam dos ritos
católicos nos oratórios sob tutela dos potentados ou ainda através dos seus próprios oratórios, cuja
talha e imagens demonstravam materialmente a condição social dos seus proprietários.
Por fim, a autora insere os oratórios domésticos no contexto tridentino, além de compilar os
testemunhos pertinentes da construção material da religiosidade doméstica, configuradas como
fontes primordiais para a compreensão da atmosfera religiosa colonial nos séculos XVIII e XIX.
No campo restrito da história da arte, a autora lança algumas bases introdutórias, como a linguagem
ornamental da talha que possui vocabulário arquitetônico (assinaladas como ‘simulações
28
retabulares’) e a importância das imagens, que através da pintura e escultura tornavam presente o
sagrado.23
Acreditamos que a pesquisa empreendida pela pesquisadora pode ser considerada obra
basilar da temática, figurando como referência primordial para pesquisadores que desejam absorver
o contexto e o conteúdo expressional-simbólico dos oratórios, tendo em vista o expressivo acervo
reunido.
Em termos de acervo, logo em seguida a publicação da tese de Silveli Russo, os oratórios
domésticos começam a figurar como obras de arte de denotado interesse dos colecionadores de
arte sacra colonial. Em 2011, ocorreria no Museu de Arte Sacra de São Paulo a exposição Oratórios
barrocos – arte e devoção na Coleção Casagrande (2011), com curadoria do historiador Percival Tirapeli.
A exposição em questão revelaria a um público abrangente (e também especializado) a riqueza dos
oratórios domésticos, identificando-os como objetos de denotada potencialidade de pesquisa. O
sucesso e fama da Coleção Casagrande, pertencente ao jurista Ary Casagrande Filho, atingiria os
holofotes, contudo, na exposição Barroco Ardente e Sincrético, realizada em 2018 no Museu Afro Brasil
em São Paulo, junto de outras obras de excelente qualidade e importância histórica, sob a curadoria
do artista plástico Emanoel Araújo. Pensamos que a exposição Barroco Ardente e Sincrético (2018)
tentara repetir, de certa maneira, a experiência inovadora da exposição O universo mágico do Barroco
Brasileiro (1998), o que definitivamente não ocorrera. No entanto, os oratórios domésticos entrariam
de vez no vocabulário da arte colonial, aparecendo pontualmente em estudos e publicações.
Em seguida, alguns trabalhos de pesquisa em torno dos oratórios domésticos figurariam
alguns anos depois. Em 2014, Viviane da Silva Santos defenderia sua dissertação de mestrado em
Desenho, Cultura e Interatividade pela Universidade Estadual de Feira de Santana (UEFS),
intitulada Santo de casa faz milagre: desenho e representação dos oratórios populares domésticos em Feira de
Santana (2014). Em seu estudo, a autora realizaria um trabalho de identificação e valoração dos
oratórios de cunho popular pertencentes à casas, fazendas, antiquários e museus em Feira de
Santana, BA. Defendendo seu valor enquanto objetos da cultura popular, a autora busca resgatar
aspectos da religiosidade popular através desses oratórios, além de tentar formar uma síntese
morfológica através do seu design gráfico. No entanto, sua pesquisa se concentra mais em aspectos
histórico-sociais e culturais do que na morfologia artística dos oratórios. Contudo, o estudo em
questão contribuiu no sentido dos chamados ‘antecedentes’ históricos, sem, no entanto, recorrer
diretamente às fontes primárias que o atestam. Além disso, a contribuição africana e indígena
23
RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte. A construção histórica do acervo de
oratórios brasileiro – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Alameda, 2014.
29
recebera atenção, o que atesta a presença de elementos culturais nos oratórios que os estabelecem
como obras híbridas e essencialmente mestiças.24
Interessante destacar também os estudos de Luiz Alberto Ribeiro Freire, com os oratórios
denominados ‘maquinetas’, manufaturados em oficinas conventuais femininas na Bahia do final do
século XIX e início do XX. Peças muito representativas da arte conventual, tais oratórios
apresentam, em sua forma e expressividade artística, o universo do feminino, evidenciando a
participação das mulheres no campo da produção artística, além de também demonstrar o processo
criativo de tais maquinetas, cujas soluções plásticas evidenciam a capacidade técnica e os processos
de concepção artística com materiais não tradicionais e tidos por efêmeros, como o papel laminado.
Destacamos aqui um dos melhores artigos que definem, com precisão, tais maquinetas: As
maquinetas do recolhimento dos humildes: definição, notícias, iconografia e tipologia (2011).25
Outra grande contribuição em torno dos oratórios domésticos, por fim, ocorreria em tempos
atuais, dessa vez na Espanha. Em 2016, seria defendida na Universidade de Sevilha a tese doutoral
Estudio de los oratorios domesticos y capillas privadas en los siglos XVII y XVIII a través de la documentación
conservada en el Archivo General del Arzobispado de Sevilla (2016). A autora, Rosalía Maria Vinuesa
Herrera, trazia a luz uma importante e inédita documentação de teor canônico-jurídico-teológico,
escritos e publicados na Espanha Seiscentista e Setecentista e conservada na Biblioteca Nacional
Espanhola, assim como no Archivo General del Arzobispado de Sevilla. Além disso, a pesquisa
estabeleceria formalmente a possível origem simbólica do oratório na arte Antiga, explorando
também a complexa teia de processos de ordem jurídico-canônica em torno dos oratórios
domésticos, assim como as disputas teológicas e morais no que concerne ao privilégio da ‘bula da
Santa Cruzada’. Algumas das fontes apresentadas por Rosalía Herrera em sua tese foram
incorporadas no presente estudo e lidos nos originais, tendo em vista sua importância como
testemunho histórico pertinente ao contexto da América Portuguesa.
Mais recente ainda é o trabalho de David Prado Machado, A privatização da fé: Capelas domésticas
nas Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX (2019), tese de doutoramento defendida no Programa de
Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Em sua tese, o autor identifica a singularidade da América Portuguesa, e em particular de Minas
Gerais, onde as capelas domésticas figuraram como braços auxiliares das igrejas paroquiais,
24
SANTOS, Viviane da Silva. Santo de casa faz milagre: desenho e representação dos oratórios populares
domésticos em Feira de Santana. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Desenho, Cultura e
Interatividade da Universidade Estadual de Feira de Santana, Feira de Santana (BA), 2014.
25
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As maquinetas do recolhimento dos humildes: definição, notícias, iconografia e
tipologia. In: GERALDO, Sheila Cabo; COSTA, Luiz Cláudio (orgs.). Anais do Encontro da Associação Nacional
de Pesquisadores em Artes Plásticas [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro, ANPAP, 2011.
30
prestando o devido amparo ao fieis instalados em fazendas distantes dos centros urbanos. 26 O
trabalho em questão nos auxiliou, de modo tardio (tendo em vista a sua publicação), a diferenciar
e precisar com maior eficácia os termos ‘oratório’, ‘ermida’ e ‘capela’, o que permitiu conceituar os
nossos objetos de modo mais conciso e objetivo. No entanto, como veremos no decorrer deste
trabalho, os termos se confundem, tendo em vista o vocabulário do oratório devocional como peça
artística que visa miniaturizar as formas tanto de retábulos como de edifícios religiosos
propriamente ditos.
Após esse breve, mas necessário levantamento bibliográfico acerca do tema dos oratórios
domésticos, realizaremos aqui a descrição do percurso desta pesquisa, além de apresentar
rapidamente as nossas fontes, metodologia e as principais contribuições que desejamos agregar ao
tema em questão.
De antemão, o foco desta pesquisa está direcionado para os oratórios domésticos de cunho
devocional. Em suma, trabalharemos com artefatos, que são, primordialmente, objetos artísticos
móveis. Num primeiro momento, a presente pesquisa possuía o seu recorte temporal e espacial na
São João del-Rei dos séculos XVIII e XIX. Inicialmente, iríamos trabalhar com os acervos de
oratórios devocionais pertencentes ao Museu Regional, ao Museu de Arte Sacra e às igrejas das
Ordens Terceiras de São Francisco de Assis e Nossa Senhora do Monte Carmelo, todos eles na
cidade de São João del-Rei. No entanto, conforme fomos adicionando outros oratórios para fins
de comparação estilística e iconográfica, percebemos que a nossa visão deveria ser ampliada. A
amplitude, no entanto, se mostrou complexa, tendo em vista a vastidão do território da antiga
Capitania de Minas e o numeroso acervo de oratórios de cunho devocional. Contudo, o desafio
fora superado. Fazem parte desta pesquisa os seguintes acervos:
26
MACHADO, David Prado. A privatização da fé: Capelas domésticas nas Minas Gerais dos séculos XVIII e
XIX. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo. Escola de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2019.
31
Acervo particular 07
SUBTOTAL 13
Museu de Arte Sacra da Paróquia de Nossa
03
Resende Costa, MG Senhora da Penha de França
SUBTOTAL 03
Capela de Nossa Senhora da Penha de França 01
Bichinho (Prados) MG
SUBTOTAL 01
Museu Municipal de Barbacena 01
Barbacena, MG
SUBTOTAL 01
Museu do Oratório 113
Museu da Inconfidência 61
Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar 01
Ouro Preto, MG
Igreja de Nossa Senhora do Carmo 01
Casa dos Contos 02
SUBTOTAL 178
Igreja de Nossa Senhora do Carmo 01
Mariana, MG
SUBTOTAL 01
Museu do Diamante 13
Diamantina, MG
SUBTOTAL 13
Museu Regional do Serro “Casa dos Ottoni” 09
Serro, MG
SUBTOTAL 09
Museu do Ouro 02
Sabará, MG
SUBTOTAL 02
Museu de Arte Sacra de São Paulo 02
Museu Paulista da Universidade de São Paulo 02
Acervo do Palácio do Governo do Estado São 01
Paulo – São Paulo
Acervo do Palácio do Governo do Estado de São 01
São Paulo, SP Paulo – Campos do Jordão
Coleção Ary Casagrande Filho 09
Coleção Ladi Biezuz 02
Coleção particular 01
Casa Guilherme de Almeida 01
SUBTOTAL 18
TOTAL DE ORATÓRIOS PESQUISADOS 265
Imagens têm sido utilizadas com frequência como um meio de doutrinação, como
objetos de cultos, como estímulos à meditação e como armas em controvérsias. Portanto,
elas também são um meio através do qual historiadores podem recuperar experiências
religiosas passadas [...]27
27
BURKE, Peter. Testemunha ocular. O uso de imagens como evidência histórica. São Paulo: Unesp, 2016, p.
79 [ebook]
28
RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op. cit. p. 32-43.
MACHADO, David Prado. op. cit. p. 13-25.
29
Desenvolvemos melhor o conceito no terceiro capítulo desta pesquisa, no entanto, a obra biografia de Bernini escrita
por Domenico Bernini nos serve de introdução ao conceito. Ver: BERNINI. Domenico. The Life of Gian Lorenzo
Bernini. Tradução crítica e comentada para a língua inglesa por Franco Mormando. Pennsylvania: The Pennsylvania
State University Press, 2011.
33
aspectos da história da arte, a Análise Formal que se atém à forma e conteúdo das obras de arte.
No entanto, no momento da organização deste estudo, preferimos inserir a análise histórica em
primeiro lugar, servindo de ‘contexto histórico’, e a análise formal em segundo lugar, onde
analisamos pormenorizadamente as nossas fontes primárias.
O presente estudo, portanto, concatena princípios metodológicos da história da cultura com
os princípios da história da arte, que aqui são privilegiados. O nosso título, As Formas do Perene, se
refere ao princípio primeiro desta pesquisa, que é evidenciar e demonstrar, através da forma artística
dos oratórios domésticos, o simbolismo religioso, místico, transcendental e sagrado dessas obras.
Partindo desse princípio, retornamos à formulação de Panofsky que introduziu o nosso estudo. Os
indivíduos que se postavam diante desses oratórios buscavam se conectar com o sagrado, sendo
estimulados visualmente através de suas formas. Há uma interação entre observador e obra, que
no contexto ocorria através dos momentos de oração. Essa interação era sensível, abrasadora,
persuasiva e sobrenatural, aspectos que são representações pessoais superdimensionadas através
do mecanismo óptico do Barroco religioso, o qual os oratórios domésticos aqui analisados se filiam
estilisticamente. Os indivíduos, abrasados de ‘amor e temor’ diante dos oratórios, contemplavam o
perene, ou seja, o eterno, o inacabável, o incomensurável que, embora tão distante, também se
mostrava próximo através das imagens, numa dinâmica devocional pautada pela proximidade,
afetuosidade, intimidade e troca. Não só as próprias obras demonstram essa dinâmica complexa,
como as fontes escritas assim também o atestam, como veremos.
Já o nosso subtítulo, Os oratórios domésticos devocionais em Minas Gerais e seus antecedentes europeus
– estudo histórico, estilístico e iconográfico (Sécs. XVIII e XIX), se refere, primeiramente, ao entendimento
de que os oratórios mineiros possuem uma vinculação estilística e estética predominantemente
europeia, via Portugal. É sempre ‘espinhoso’ trabalharmos com arte colonial mineira, tendo em
vista as disputas de caráter regionalista em torno do já ultrapassado conceito de ‘barroco mineiro’.
Não entraremos nesse debate, talvez já superado pela historiografia atual. No entanto, se fez
necessário voltar o nosso olhar para as obras europeias, a saber, os oratórios domésticos de cunho
devocional que se encontram totalmente pulverizados nos acervos artísticos de museus e igrejas do
Velho Mundo. Nesse ponto, o presente estudo buscou, de maneira original, compreender
primeiramente os antecedentes europeus dos oratórios, a fim de estabelecer uma cronologia
possível desses objetos nos momentos da história da arte europeia. Partindo do final da Idade
Média (século XIV), buscamos compreender a sua possível origem nos retábulos do Gótico
Flamejante, identificando as suas respectivas versões no Renascimento, no Maneirismo, no
Barroco, no Rococó e no Neoclássico, demonstrando também a sua ‘evolução’ e fixação tipológica:
de um tríptico Gótico a um pequeno ou médio nicho ou armário com duas portas.
34
Através dessa digressão, pudemos compreender a assimilação das formas europeias e o seu
desenvolvimento em Minas Gerais, onde através da localização das semelhanças e das diferenças,
pudemos estabelecer até onde a criatividade local pôde se manifestar de modo original. Sendo
assim, organizamos este trabalho em duas partes: a primeira parte (Parte I – Análise histórica)
contendo dois capítulos, e a segunda parte (Parte II – Análise Formal) contendo três capítulos.
No primeiro capítulo, intitulado O oratório doméstico: conceito, usos e função social na história,
buscamos compreender o significado do termo ‘oratório’, explorando o conceito através dos
escritos e tratados jurídico-eclesiásticos e vocabulários de época. De modo particular, buscamos
também estabelecer (de acordo com o consenso já estabelecido pela historiografia do objeto) um
marco de origem dos oratórios domésticos, explorando sua utilização e ‘evolução’ simbólica e
artística através da história da vida privada e da história da religiosidade católica. Nesse capítulo,
amparado em fontes literárias e visuais, ainda em consonância com uma bibliografia específica,
vinculamos o oratório doméstico ao impulso da vida privada através da devotio moderna medieval, e
também como elemento de distinção social na Modernidade. Além disso, no campo da história da
arte, buscamos compreender sua possível origem na arte Antiga e Medieval, desembocando na sua
‘fixação’ tipológica na Modernidade e no conceito de oratório desenvolvido nos séculos XVIII e
XIX no mundo português. Por fim, esse capítulo introduzirá as tipologias, usos e função social dos
oratórios na América Portuguesa, explorando as tipologias de oratórios encontrados sobretudo em
Minas Gerais que serão analisados posteriormente no decorrer dos capítulos subsequentes.
No segundo capítulo, intitulado A ecclesiae domesticae: os oratórios domésticos e a religiosidade em
Minas Gerais, realizaremos um breve debate historiográfico em torno do tema da religiosidade
católica nos séculos XVIII e XIX, com especial ênfase na Minas Gerais colonial. Nesse capítulo,
abordaremos o tema da religiosidade católica em Minas através dos oratórios, que aqui serão
considerados como chaves interpretativas da religiosidade privada e doméstica. Assim como no
primeiro capítulo, abordaremos os oratórios devocionais junto aos oratórios orientados para a
liturgia, tendo em vista que ambos são parte constitutiva dessa religiosidade que buscamos
compreender. No entanto, o grande foco será dado aos oratórios devocionais, nossos objetos
analisados. No decorrer desse capítulo, também analisaremos documentos manuscritos e
impressos, somados à bibliografia específica, a fim de compreender o papel que os oratórios tinham
no imaginário religioso e nas práticas sociais, explorando também certas peculiaridades regionais
que figuram como exemplos de uma possível ‘tendência geral’: é o caso da antiga Vila de São João
del-Rei, que exploraremos em particular.
No terceiro capítulo, intitulado O caminho das formas – o oratório doméstico como “obra de arte total”
na Europa, passamos da análise histórica para a análise formal dos nossos objetos. Nesse capítulo
35
em especial, iremos direcionar o nosso olhar para as obras europeias. Assim como nos capítulos
anteriores, dessa vez realizamos um esforço em estabelecer os antecedentes europeus dos oratórios
domésticos através da análise comparativa, inserindo as obras pretéritas numa cronologia que
perpassará desde os retábulos do Gótico Flamejante do final da Idade Média aos oratórios
domésticos propriamente ditos no Renascimento, no Maneirismo, no Barroco e Rococó, com
especial ênfase nas obras portuguesas. Além desse trajeto, lançaremos mão do conceito belloriano
de Bel Composto, ou seja, a harmoniosa conjunção entre arquitetura, pintura e escultura que sintetiza
a ideia de uma ‘obra de arte total’ que observamos nos oratórios. Partindo do referido conceito, a
análise das obras europeias se baseará nas partes que constituem o todo, sendo elas: o vocabulário
arquitetônico e ornamental e a expressão pictórica e o uso da escultura. Por fim, nesse capítulo,
buscamos compreender os oratórios domésticos partindo do ponto de vista da ‘história dos estilos
artísticos’, a fim de estabelecer conceitualmente os oratórios domésticos europeus como
antecedentes dos oratórios produzidos em Minas Gerais, cuja forma primordial fora assimilada
através de Portugal sob a estética do Barroco e do Rococó religioso.
No quarto capitulo, intitulado A forma nas alterosas – o oratório doméstico como “obra de arte total”
em Minas Gerais, daremos sequência ao capítulo anterior. Buscamos nesse capítulo estabelecer a
possível história da manufatura dos oratórios domésticos devocionais em Minas Gerais nos séculos
XVIII e XIX, partindo da história da talha em madeira na Minas Gerais colonial e imperial.
Inserindo os oratórios no universo da produção artística em Minas, buscamos evidenciar a sua
presença através de documentos e da literatura historiográfica. Em consonância com o capítulo
anterior, buscaremos através do conceito de Bel Composto compreender os oratórios domésticos
manufaturados em Minas Gerais através das suas partes constitutivas, sendo elas as expressões
arquitetônico-ornamentais, a pintura e a escultura. Tal postura metodológica, assim como no
capítulo anterior, busca evidenciar o simbolismo da forma dos oratórios domésticos através da
ideia de ecclesiae domesticae (igreja doméstica), onde a miniaturização das formas impulsiona o sentido
de um pequeno templo instalado em ambiente doméstico, em suma, atendendo à sua função
primordial de ‘morada do sagrado’.
Por fim, no quinto e último capítulo, intitulado A corte celeste – a iconografia cristã nos oratórios
domésticos em Minas Gerais, exploramos a dimensão da devoção aos santos católicos na Minas colonial
através da quantificação das imagens pictóricas e esculturais encontradas nos oratórios domésticos.
A abordagem metodológica adotada nesse capítulo será iconográfica e iconológica, ou seja,
assumirá a descrição e identificação das iconografias cristãs cultuadas e o seu simbolismo intrínseco.
Nesse sentido, mobilizaremos fontes literárias e visuais para compreendermos o sentido simbólico,
teológico e moralizante nas iconografias representadas nos oratórios domésticos. Partindo disso,
36
- PRIMEIRA PARTE -
Análise histórica
38
39
30 O termo oratório, se aplicado à arquitetura, remete a uma construção modesta cuja função é a de orar; se aplicado à
objetos móveis, um pequeno armário ou nicho cuja função é a de guardar itens relacionados a práticas devocionais e,
se aplicado à música, trata-se de um estilo de música sacra amplamente executado no período barroco, o exemplo
clássico: A paixão segundo São Mateus de J. S. Bach. O termo oratório – no campo musical – advém da Congregação
do Oratório, fundada em 1565 por S. Filipe Néri. Ver: HERRERA, Rosalía Maria Vinuesa. Estudio de los oratorios
domesticos y capillas privadas en los siglos XVII y XVIII a través de la documentación conservada en el
Archivo General del Arzobispado de Sevilla. Tese doutoral. Universidade de Sevilha, 2016, p. 14.
31 Disertacion Apologetica a favor del privilegio, que por costumbre introducida por la Bula de la Santa
Cruzada goza la nacion Española en el uso de los Oratorios Domesticos, leida en la Real Academia de
Buenas Letras de Sevilla, en 25 de Octubre de 1771. Por el Dr. D. Francisco de Paula Baquero, Cura mas Antiguo
de el Sagrario de la dicha Ciudad, Examinador Synodal de su Arzobispado, Comisario, y Revisor de Libros del Santo
Oficio, Academico Numerario, y Censor de dicha Real Academia. La publica un amigo del autor. Con las licencias
necesarias. En Sevilla por D. Josef Patrino en calle Genova. | BNE (Biblioteca Nacional da Espanha).
32 Disertacion Apologetica, p. 5. | BNE [tradução e interpretação nossa]
33 Disertacion Apologetica, p. 5. | BNE [tradução e interpretação nossa]
34 Disertacion Apologetica, p. 6. | BNE [tradução e interpretação nossa]
35 Disertacion Apologetica, p. 6. | BNE [tradução e interpretação nossa]
40
Quando rezardes, não façais como os hipócritas, que gostam de rezar em pé nas sinagogas
e nas esquinas para se exibirem ao povo. Asseguro-vos que já receberam seu pagamento.
Quando fores rezar, entra no teu quarto, fecha a porta e reza a teu Pai em segredo. E teu
Pai, que vê o escondido, te pagará.37
A característica discrição da postura orante do cristão indica sua necessidade de ter como
prática o secretismo e a modéstia na prática da oração, a fim de que não fosse confundido com os
hipócritas e fariseus. Tal atitude seria ainda mais encorajada na Igreja Primitiva, cuja perseguição
imperial não permitia que o culto cristão obtivesse uma dimensão pública. Porém, ao mesmo tempo
em que Cristo pareceu privilegiar uma postura de foro íntimo, ele acrescenta: “Pois onde há dois
ou três reunidos em meu nome, aí estou eu, no meio deles”.38
Tendo como pressuposto essa aparente contradição, percebemos justamente nela a
fundamentação da dupla identidade do culto cristão, sendo elas a contemplativo39 – de foro íntimo e
privado – e a liturgia – de foro compartilhado e público.40 Nesse sentido, não gostaríamos aqui de
41 DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa. São Paulo: Paulinas, 1990.
42 De acordo com o Catecismo da Igreja Católica, no capítulo IV, Artigo 1 – 1674: o sacramental é uma representação
iconográfica do sagrado, “torna visível uma realidade invisível”. Essa representação é apresentada como sinal material
que remete diretamente ao divino como, por exemplo: medalhas, cruzes, etc.
43 MOTT, Luis. op. cit. p. 156
44 Eccleasiae domesticae – (latim) Igreja doméstica. Nomenclatura que nasce nos primórdios do cristianismo, indicando a
presença de um pequeno tabernáculo ou altar acomodado na habitação privada. A ideia de ecclesiae domesticae será vital
para a compreensão da forma artística dos oratórios, como veremos adiante.
45 Disertacion Apologetica, p. 6-20. | BNE [tradução e interpretação nossa]
42
A narrativa estabelecida pelo Padre Baquero em sua Disertacion Apologetica (1771) localiza na
Igreja Primitiva a origem dos oratórios domésticos. Embora a função desses oratórios domésticos
se resumisse ao exercício dos ofícios religiosos, pensamos que também servissem como local de
meditação e oração pessoal. Desses oratórios com função litúrgica é que se originaram os oratórios
com função devocional, os nossos objetos estudados. Partindo do pressuposto que esses oratórios
figuravam como pequenas capelas, servindo de pequeno templo, pensamos que a sua forma
artística fizesse alusão à arquitetura do seu tempo. No entanto, os cristãos primitivos não possuíam
uma arquitetura ainda consolidada. Com o cristianismo se tornando a religião oficial do Império
Romano sob a pax do imperador Constantino, a Igreja se apropriaria dos prédios romanos (como
a basílica, por exemplo) para servirem de templo (Eklésia), por isso, pensamos que a forma artística
do oratório doméstico dos cristãos deveria possuir antecedentes formais pagãos.
Concordamos com a historiadora Rosalía Herrera, em seu Estudio de los oratorios domesticos y
Capillas privadas (2016) quando afirma que o oratório doméstico dos cristãos pode ser considerado
uma sobrevivência dos antigos templos domésticos da Roma pagã, como o lararium.46 O templo
doméstico - enquanto expressão da religiosidade de cunho familiar – pôde ser observado na Roma
Antiga através do uso do lararium.
O lararium, comparado (em termos funcionais e formais) ao moderno oratório dos cristãos,
nos sugere chaves interpretativas da natureza atemporal que uma igreja doméstica oferece, como
dinâmica de culto familiar: a natureza de guarda da imagem (simulacro ou representação do divino)
e do aspecto formal (de arquitetura miniaturizada do templo).
46 HERRERA, Rosalía Maria Vinuesa. Estudio de los oratorios domesticos y capillas privadas en los siglos XVII
y XVIII a través de la documentación conservada en el Archivo General del Arzobispado de Sevilla. Tese
doutoral. Universidade de Sevilha, 2016, p. 22-23.
47 Reprodução original em espanhol: “Gracias a las evidencias arqueológicas de Pompeya [...] es posible encontrar los llamados
“lararios”, pequeños templos o retablos (que podíam ser construcciones em forma de nicho, edificios adosados al muro de la casa o simplemente
pintados en la pared) donde se encontraba la reproduccíón plástica de los lares, y en muchos casos, de los penates y el genio, en mutua
compañia. También se sabe que estas construcciones se utilizaban como relicarios donde se guardaban otros objetos de valor [...]
Generalmente, la ubicación de los lararios era el peristilo o el atrio de las casas romanas, donde pudieran ser vistos. JOHNSON, Paulo
Donoso. El culto privado en la religión romana: Lares y penates como custodios de la Pietas Familiaris. Revista
electrónica Historias del Orbis Terrarum. N. 3. Santiago, 2009, p. 14. [tradução nossa] [grifo nosso]
43
No caso da religiosidade doméstica romana, o sacerdócio do culto familiar era regido pela
figura do Pater Familiae, cuja função primordial era a de dirigir as súplicas e libações dos membros
da família, assim como nunca permitir que o fogo do lararium se apagasse, além de no altar depositar
as oferendas, a fim de honrar os antepassados da família e garantir a proteção da casa. A extinção
do fogo do lararium representaria o declínio da própria família.48
Segundo Paulo Johnson, em seu artigo El culto privado en la religion romana (2009), o Pater
Familiae, enquanto chefe e patriarca da família romana, regia o culto doméstico da casa, com hinos,
orações e liturgia própria. A ação ocorria perante os antepassados da gens, os Lares. Se traçarmos
um paralelo - considerando de antemão suas diferenças temporais e contextuais - do lararium e do
oratório doméstico, podemos observar que o templo doméstico simboliza a guarda da piedade
(pietas) familiar. As representações sagradas sob custódia familiar são hospedadas em nichos cuja
forma se assemelha ao templo, à casa do deus (no mundo pagão) e à Igreja (no mundo cristão).
Porém, as diferenças formais aqui se acentuam, já que o lararium, por natureza, é um artefato que
serve a uma religião que é originariamente doméstica, ao contrário do cristianismo.
À título de comparação, uma configuração parecida pode ser também observada nos altares
dedicados à deusa Nealênia (Nehalennia) [figuras 3-4]. Semelhantes aos larários, esses altares
consagrados à deusa Nealênia (uma divindade de origem incerta, talvez celta ou germânica)
possuem a forma de nicho, dotados de um vocabulário morfológico intrinsecamente arquitetônico.
No interior desses nichos (formatados em alto relevo com denotada profundidade volumétrica), a
deusa é acomodada, sendo venerada através de sua representação plástica cuja iconografia faz
alusão a elementos do cotidiano familiar, como por exemplo o característico cesto com frutos e
pães, relacionados intimamente aos cultos familiares que ocorriam no Yule, na Suécia.49
O que nos interessa nesses altares pagãos (tanto os lararium como os altares de Nealênia) é a
característica forma de templo, evocando na miniaturização das formas a casa, moradia e guarda
do deus, ou a representação deste. A tendência de miniaturizar formas arquitetônicas, tornando
diminuto, portátil e manipulável um templo ideal, acompanhou toda a arte dos oratórios
49
DAVIDSON, H. R. Ellis. Gods and Myths of Northern Europe. Londres: Penguin Books, 1998, p. 134.
Yule – Comemoração pagã característica do Norte europeu e antecessor ao cristianismo, onde se celebrava o Solstício
de Inverno, ocorrendo como a primeira festa sazonal entre os dias finais do mês de dezembro aos primeiros dias de
janeiro. Posteriormente, fora apropriado pela Igreja com as comemorações do Natal.
45
domésticos cristãos, assim como os pagãos faziam. O oratório doméstico - enquanto templo
doméstico e epicentro da religiosidade doméstica cristã - começa a figurar primeiramente na baixa
Idade Média, adentrando a Modernidade, sobretudo a partir dos séculos XIV e XV, o que pode ser
observado como tendência através das fontes iconográficas, fontes literárias e obras artísticas do
período do Gótico Tardio. A catolicidade, na Idade Média, foi marcada por um profundo
sentimento de coletividade e desapego material. De acordo com Le Goff, “para a maioria, não só
nenhum interesse material os retinha em suas casas como o próprio espírito da religião cristã os
impelia à estrada”.50 O cristão medieval tinha como cotidiano as peregrinações e as práticas
devocionais – assim como a Missa – num profundo espírito público e compartilhado: a identidade
do cristão é a de orar na comunhão da Igreja, constituindo um só corpo51. Segundo Hauser:
50 LE GOFF, Jacques. A civilização do Ocidente Medieval. São Paulo: Edusc, 2005. p. 127
51 Embora a historiografia aponte a tendência coletivista da religiosidade do homem medieval, a historiografia mais
recente tem apresentado exemplos contrários, como os santos místicos, a vida eremítica e os reformadores que viam
na religiosidade pública um mal para a vida espiritual.
52 HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 268.
53 LEBRUN, François. As reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal. In. CHARTIER, Roger (org.). História
Hucitec, 1998, p. 46 apud RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte: a construção
histórica do acervo de oratórios brasileiro, séculos XVIII-XIX. Tese de doutorado. São Paulo: FAU-USP, 2010,
p. 67-68.
55 KARNAL, Leandro. op. cit. p. 46.
46
e perpassa todo o século XV e XVI – temos nomes como Tomas de Kempis (1380-1471) autor do
afamado De Imitatione Christi56, Francisco de Osuna (1497-1541) autor de Terceiro Abecedário, e talvez
a figura mais célebre do movimento, a carmelita Teresa de Ávila (1515-1582), autora do Camino de
Perfección e muito conhecida através de sua autobiografia, Livro da Vida.
Será, sobretudo no século XV – no contexto da devotio – que os objetos de culto litúrgico
começam a figurar como fetiche dos fiéis. Os objetos de culto, sobretudo aqueles que tinham como
função a guarda ou suporte de uma representação sagrada, eram produzidos a partir de uma
armação arquitetônica, invocando frontões e elementos decorativos que citavam o vocabulário
formal do período. Uma tendência produtiva que podia ser observada nos cálices, custódias e
monumentos funerários que miniaturizavam os motivos arquitetônicos, como veremos adiante.
Apresentam-se tais objetos como por exemplo os la paix – placas de madeira, prata ou mármore
que passaram a fazer parte da missa, substituindo o beijo da paz que era dado de boca em boca57 –
que no geral, eram emoldurados com soluções arquitetônicas e de grande apelo fetichista dos fiéis.
A forma arquitetônica de uma pequena igreja em tais objetos de culto pode ser entendida
como uma evolução do gosto burguês pelas coisas do cotidiano doméstico e pela devoção aos
santos sempre crescentes onde temos uma espécie de ‘tirania’ arquitetônica gótica nos objetos de
culto e também de peças de mobiliário no fim da Idade Média58. Outra hipótese é a excessiva
familiarização do povo para com os santos, quando estes eram figuras tão essenciais, tão materiais
e tão familiares na vida religiosa cotidiana59. Hauser explicita:
56 Imitação de Cristo
57 HUIZINGA, Johan O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac Naify, 2013. p. 67
58 BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV- XVIII. Vol. 1. As estruturas
nesse período (séculos XIV e XV) uma progressiva divisão das artes no sentido de sua função e
uso privado como por exemplo os retábulos utilizados nas igrejas. Falamos anteriormente em
‘fetiche’61 e tal termo explica o desejo veemente de uma burguesia ascendente em decorar e tornar
nobre o ambiente doméstico, luxo que pertencia a uma nobreza aristocrática e ao clero. Em tal
perspectiva, Hauser conclui:
E segue:
Isso significou não só a vitória do barato, do “mais democrático”, mas, ao mesmo tempo,
a das formas mais íntimas, espiritualmente mais consentâneas com a classe média. A
pintura torna-se independente da arquitetura primeiro na forma do painel, e só como tal
passa a fazer parte do mobiliário portátil da residência da classe média. 63
Tendo como fato notório a evolução dos modos produtivos e simbólicos das artes no
período gótico, aliado a uma religiosidade em franca mudança de postura (do foro público para o
íntimo) podemos elencar como tendência a adaptação das monumentais obras de pintura, escultura
e arquitetura da época para o ambiente doméstico, tendo como técnica a diminuição das
proporções arquitetônicas, sobretudo ornamentais, estando presentes no mobiliário cotidiano.
O oratório doméstico, durante a já citada ascensão burguesa e vivência da devotio moderna
generaliza-se como sintoma da espiritualidade renovada, representando materialmente o ‘novo
modo’ de orar. A contradição teológica do ser cristão na esfera do público e do privado – citada
anteriormente – concentra-se agora na figura do oratório enquanto local de privatização e
individualização da fé. O final da Idade Média teve como tendência uma religiosidade
marcantemente exteriorizada e marcada sobretudo por espasmos de devoção passional e apatia
total para com o sagrado64. A postura da devotio moderna perante essa dicotomia se firmou naquilo
61 Utilizamos o termo ‘fetiche’ a partir do sentido de desejo pela mercadoria, por tratarmos da ascensão burguesa e o
desejo desta de possuir mobiliário afim de denotar status.
62
HAUSER, Arnold. op. cit. p. 270.
63
HAUSER, Arnold. op. cit. p. 270.
64 HUIZINGA, Johan. op. cit. p. 287.
48
que Johan Huizinga determinou como um excessivo pietismo65 e o oratório doméstico, imerso
nesse contexto, é utilizado como elemento material representativo de tal pietismo.
O século XV apresenta essa forte emoção religiosa de uma forma dupla. Ela se revela,
por um lado, naqueles momentos veementes, quando um pregador itinerante
periodicamente comove toda uma multidão com suas palavras, inflamando todo o
combustível espiritual como um feixe de galhos secos. Essa é a expressão espasmódica
daquela comoção frente a Cristo: passional, intensa, mas altamente transitória. Por outro
lado, algumas pessoas conduzem a sensibilidade pelas veredas da eterna tranquilidade,
transformando-a em nova forma de vida, a da introspecção. É o círculo pietista dos que,
conscientes de serem inovadores, chamam a si mesmos de devotos modernos, ou seja, o
povo contemporâneo da devoção.66
Os oratórios, assim como os outros objetos de devoção desse período, figurarão como canais
diretos de acesso ao divino. “Ó como é saudável, como é agradável e suave ficar só, em silêncio e
conversar com Deus”67 exclama o monge pietista diante do crucificado em sua cela. A recorrente
interiorização dos momentos de oração no findar da Idade Média auxiliou até mesmo na evolução
do mobiliário das casas, tendo no século seguinte uma adaptação do mobiliário integrado das
residências para com o novo estilo de orar.
A tendência individual, de acesso direto ao divino, pôde até mesmo ser comparada ao ‘modo’
dos protestantes no século XVI:
[...] VICE-REI: O que pretendiam esses tristes reformadores, senão fazer a parte de Deus,
reduzindo a química da salvação entre Deus e o homem a esse movimento de fé, a essa
transação pessoal e clandestina, num gabinete exíguo [...]? Pois o protestante reza
sozinho, mas o católico reza na comunhão da Igreja.68
Neste excerto da obra de Paul Claudel, “O sapato de cetim” temos uma menção ao contexto da oração do católico. A
peça em si é, nas palavras de William Pianco, uma alegoria religiosa, onde Claudel, através de pesquisa histórica,
localizou o seu romance no mundo ibérico na passagem do século XVI para o XVII. Portanto, a menção ao “gabinete
exíguo” situa-se historicamente no período por nós tratado, embora o próprio romance seja do século XIX. Ver:
Alegorias e deslocamentos em O sapato de cetim de Manoel de Oliveira, William Pianco. In: Revista Livre de
Cinema. p. 84-99. v. 3, n. 2, mai/ago, 2016.
69 Como veremos mais adiante, o oratório vai assumindo formas das mais complexas, desde o tradicional nicho às
imitações exatas de arquitetura nos aspectos externos e internos da talha, tornando-se verdadeiros retábulos ou altares
em miniatura.
49
Para facilitar a oração individual e a prática da meditação, difunde-se nos meios devotos
o uso do genuflexório pessoal, definido em 1690 por Furetière como um “encosto em
forma de estante para apoiar-se o livro de orações”, e Furetière acrescenta: “Às vezes
chamam-se de genuflexórios pequenos oratórios de quarto ou de gabinete”. 70
Figura 8. Joos Van Cleve. Anunciação. 1525. Óleo sobre tela. The
Metropolitan Museum of Art, Nova York
O oratório apresentado nessa cena nos remete ao tradicional nicho, contendo duas pequenas
portas laterais, revelando a cena central. O nicho contém um coroamento com elementos
decorativos ao estilo do gótico tardio.
Curiosamente, Joos Van Cleve interpretou em detalhes os pequenos trípticos que circularam
nessa época como nichos devocionais. No destaque de sua Anunciação [figura 10] Van Cleve pode
ter citado um dos próprios trípticos que fez entre os anos de 1518-19 [figura 11] cuja paleta e
disposição de personagens apresenta certa similaridade com o oratório retratado.
Figura 11. Joos Van Cleve. Tríptico com cena do Descendimento da Cruz com
São João Batista e Santa Margarida de Antioquia. 1518-1519. Óleo sobre
madeira. National Galleries Scotland.
Será no período gótico, sobretudo em sua última fase, o gótico flamboyant (flamejante) entre
os anos de 1350 a 1450 que a tendência da miniaturização parece ocorrer com maior frequência e
estilização. A tendência da miniaturização pode ser observada tendo em vista o número de
molduras de quadros ou retábulos e, sobretudo, objetos de culto, tais como as custódias. Em sua
base, armação e coroamento as custódias replicam, de forma miniaturizada, o estilo arquitetônico
do gótico, com pequenas torres, pináculos e elementos decorativos que são encontrados em larga
escala nos monumentos do período. Olhando para Portugal, nesse período, temos uma custódia
53
cuja forma representa de maneira ímpar a miniaturização minuciosa e expressiva, a Custódia de Belém
ou dos Jerônimos [figura 12]
Figura. 12. Gil Vicente (atribuição). Custódia de Belém (ou dos Jerônimos). 1506. Ouro
e esmaltes. Museu Nacional de Arte Antiga, Lisboa.
Outros relicários da época, em sua estrutura, miniaturizam a arquitetura das catedrais góticas,
cujos elementos estruturais e ornamentais que são replicados se concentram em alguns pontos de
destaque do edifício, tais como: torres, cruzes, arcobotantes, colunas, pilastras, nichos e
ornamentos diversos. É sabido que a tendência de replicar fórmulas arquitetônicas em pequenas
dimensões não é criação gótica, tendo em vista obras anteriores e posteriores ao período, porém
será no gótico – sobretudo tardio – que a miniaturização é utilizada a níveis de interpretação
exacerbadamente minuciosa dos detalhes, ultrapassando obras pretéritas.
Tal tendência será denominada, nas palavras de Bazin73 como a “tirania da arquitetura” para
com objetos de escala diminuta. Um exemplo disso, no âmbito do gótico internacional, as caixas
relicários74 apresentam, em sua forma, a representação, esquematização e ornamentação totalmente
coerentes com o estilo das grandes catedrais da época como pode se observar no relicário de Saint-
Taurin [figura 13].
73 BAZIN, Germain. Histoire de l´Art – de la préhistoire a nos jours. Paris: Garamond, 1953. p. 147.
74 Caixa relicário – Cofres onde se depositam relíquias dos santos, tais como pedaços de ossos, dentes, roupas e afins.
54
As motivações históricas por trás de tal tendência artística certamente nos escapam, porém,
a hipótese do gosto pelas proporções delicadas e diminutas de obras para o âmbito doméstico já
evidente nos séculos XIV e XV pode-nos servir de relativa explicação75
Os oratórios domésticos nos séculos XIV e XV são, em grande parte, trípticos. Porém, os
nichos devocionais apresentam já nesse período os primeiros sinais da talha em madeira. Nos
modelos que temos das duas centúrias, o modelo tríptico (emolduramento em madeira e cena
retratada em pintura) começa a dar lugar à forma das pequenas caixas, adicionando ao tradicional
tríptico uma profundidade. É a partir dessa transposição da forma que o termo “oratório” pode
ser aplicado de maneira deliberada, já que o tríptico – enquanto retábulo – tem tipologia autônoma.
Podemos, porém, considerar que o oratório descenda diretamente do retábulo gótico, atingindo ao
75Sobre esse aspecto – o gosto pela arte, pelo colecionismo, por vezes ligado à esfera doméstica – Johan Huizinga em
O outono da Idade Média nos diz que: “Na Idade Média a arte ainda não era considerada uma coisa bela em si. Na sua
grande maioria, era arte aplicada, mesmo nos casos em que consideraríamos obras independentes. O motivo para se
desejar uma obra de arte está no seu propósito, na sua utilidade para alguma forma de vida. Os primeiros germes de
um amor à arte por si aparecem com um crescimento descontrolado da produção artística: soberanos e nobres vão
amontoando objetos artísticos, formam coleções; nesse instante então passam a ser inúteis, são itens de luxo, elementos
preciosos do tesouro real. A partir daí se criou o sentido artístico de fato, que vai amadurecer no Renascimento. ”
HUIZINGA, op. cit. p. 417-418.
55
76O retábulo gótico – assim com os posteriores – tinha a representação do orago (tema central) e outros santos através
da pintura. Os retábulos posteriores, sobretudo no mundo ibérico, têm como dominante o mundo da talha em madeira.
Tal progressão no retábulo ocorreu também nos oratórios e, por dedução lógica, vemos nos retábulos góticos a origem
dos oratórios.
56
atinge uma profundidade de 7cm [figura 16] para comportar as unidades de estatuária, o que indica
um processo de talha minucioso e delicado.
O objeto em questão pode ter sido um nicho devocional de alcova, hipótese que não se
justifica somente pelas dimensões, mas também pelo gancho [figura 17] conjugado ao coroamento,
podendo ser fixado na parede à vista do seu dono.
O século XVI, o cinquecento, palco das navegações, das descobertas científicas e sobretudo
dos conflitos religiosos, foi marcado pela Reforma Protestante e pela resposta da Igreja Católica a
ela: o Concílio de Trento. O concílio gravou nos seus dias o rol dos mais importantes episódios na
História da Igreja77 e a sua execução foi mais uma consequência do pensamento dos reformadores
antigos do que uma despertar da Igreja em seu tempo, embora a reforma luterana tenha sido um
fator necessário para o melhor despertar dos riscos que a Igreja corria caso não se reformasse78. O
concílio ecumênico, na Sessão XXV, ocorrido nos dias 03 e 04 de dezembro de 1563 afirma no seu
77
SILVA, Jamerson Marques. Concílio de Trento: uma trama de crises e decretos nos passos de uma ecclesia semprer
reformanda. Revista eletrônica Espaço Teológico. Vol. 9, n. 16, jul/dez, 2015, p. 130.
78 SILVA, Jamerson Marques. op. cit. p. 130-150.
57
Decreto sobre o Purgatório, no parágrafo 984 acerca da Invocação, a veneração e as relíquias dos Santos, e as
sagradas imagens:
Manda o Santo Concílio a todos os bispos, aos encarregados do ensino e aos que mantém
cura, que instruam diligentemente os fiéis, sobretudo no que diz respeito à intercessão e
invocação dos Santos, à veneração das suas Relíquias e ao uso legítimo das imagens,
segundo o costume da Igreja Católica recebido dos primórdios do Cristianismo,
conforme o consenso dos Santos Padres e os decretos dos sacros Concílios. Ensinem-
lhe que os santos reinam juntamente com Cristo e oferecem a Deus suas orações pelos
homens, que é bom e útil invocá-los com súplicas e recorrermos às suas orações, ao seu
socorro e auxílio, para obtermos benefícios que a Deus devem ser pedidos por
intermédio de Seu Filho Jesus Cristo Nosso Senhor, único Redentor e Salvador Nosso
[...].79
Justamente no embate entre protestantes e católicos acerca das imagens sagradas, a Igreja
Católica reafirma e reforça o culto às representações escultóricas ou pictóricas dos santos, como
legítimos canais de ligação entre Deus e o homem. É sobretudo nesse período que a relação entre
o fiel e a representação do sagrado atingirá níveis de elevada carga simbólica, carga tal que se fará
presente – sobretudo – na mística dos santos contemporâneos do concílio80.
Uma questão importante que nos escapa, certamente, ao tratar da conjunção entre o culto
aos santos e as suas representações materiais – as imagens – é a da hierofania81, ou seja, a da
manifestação do sagrado. O oratório doméstico, se não interpretado apenas como um objeto
histórico de devoção privada próprio do mundo cristão, mas como um guardião do sagrado, ou
seja, uma custódia, um armário que hospeda o sagrado – ou a sua representação, a imagem, ou
relíquias – deve ser pensando como um fenômeno histórico autônomo que, mesmo vinculado ao
desejo de uma individualidade em um certo momento da história ocidental (como vimos
anteriormente) é dotado de uma carga simbólica que transcende o âmbito onde o mesmo se
desenvolveu.
79 “Concílio Ecumênico de Trento” (Sessão XXV, parágrafo 984 de 1563). MONTFORD, Associação Cultural.
Disponível em: http://www.montford.org.br/bra/documentos/concilios/trento Acesso aos: 26/07/2019 às
15:29:07h
80 Tal “mística” pode ser ainda um reverbero da devotio moderna, que encontrou no tempo durante e pós concílio de
Trento o seu auge. A devotio inicia-se na baixa Idade Média em âmbito flamengo no século XV, perpassa o mundo
ibérico no século XVI e migra para a França no século XVII. Ver: LEBRUN, François. As reformas: devoções
comunitárias e piedade pessoal. In CHARTIER, Roger (org.) História da Vida Privada. Vol. 3. São Paulo:
Companhia das Letras, 2009
81 De acordo com Mircea Eliade, o termo hierofania é cômodo, pois não exprime algo além do que está contido em sua
etimologia. Ver: ELIADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992. p. 13.
58
hierofanias, porque “revelam” algo que já não é nem pedra, nem árvore, mas o sagrado,
o ganz andere. Nunca será demais insistir no paradoxo que constitui toda hierofania, até
a mais elementar. Manifestando o sagrado, um objeto qualquer torna-se outra coisa e,
contudo, continua a ser ele mesmo, porque continua a participar do meio cósmico
envolvente. Uma pedra sagrada nem por isso é menos uma pedra; aparentemente (para
sermos mais exatos, de um ponto de vista profano) nada a distingue de todas as demais
pedras. Para aqueles a cujos olhos uma pedra se revela sagrada, sua realidade imediata
transmuda se numa realidade sobrenatural. Em outras palavras, para aqueles que têm uma
experiência religiosa, toda a Natureza é suscetível de revelar-se como sacralidade
cósmica.82
Aconteceu-me, estando um dia no oratório, ver certa imagem trazida e guardada ali para
uma festa que se ia celebrar no mosteiro. Representava Cristo muito chagado. Inspirava
tanta devoção que, só de vê-lo em tal estado, fiquei muito perturbada. Mostrava ao vivo
o que passara por nós. Foi mal o sentimento de ser tão mal agradecida para com aquelas
chagas, que se me partia o coração. Lancei-me a seus pés, derramando muitas lágrimas e
suplicando-lhe que me fortalecesse para nunca mais o ofender.83
82
ELÍADE, Mircea. O sagrado e o profano. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 13.
83
JESUS, Santa Teresa de. O livro da vida. São Paulo: Editora Paulus, 2016, p. 64.
59
Figura 18. Anônimo. Nicho de devoção privada com o tema do ‘Christ as the
Man of Sorrows’. c. 1524-1540. Rijksmuseum, Amsterdã.
A propósito da passio, a principal devoção da paixão de Cristo era o das Arma Christi, devoção
que se popularizou na baixa Idade Média e se expandiu séculos adentro.
84 ALSTON, George Cyprian. Way of the Cross. In: The catholic Encyclopedia, vol. 15, Nova York: Robert Appleton,
1912. 24 jan. 2016. Disponível em: http://www.newadvent.org/cathen/15569a.htm. Acesso em: 26 jul. 2019.
60
simbólico, pela representação do sagrado e pelo fato de ser canal por onde ele se manifesta, desde
o lararium da Roma Antiga até o oratório tridentino de Santa Teresa d´Avila.
Porém, o oratório doméstico propriamente dito – originado dos modelos que vimos no
decorrer deste tópico – ainda permanece em obscuridade, tendo em vista a inexistência de um
modelo formal para o objeto. Nesse aspecto, o universo da arte ibérica - sobretudo em Portugal -
contribuiu para a sedimentação do aspecto formal de um artefato complexo.
1.2. O oratório doméstico no mundo português e o conceito do artefato nos séculos XVIII e XIX
Os oratórios domésticos produzidos nos séculos XVIII e XIX podem ser considerados os
mais emblemáticos e notáveis, no sentido de que a sua produção é intrínseca ao desenvolvimento
da arte no campo da talha. O Barroco – em sua forma plástica – deu vasão ao espírito criativo de
artistas e artífices que puderam ter no oratório doméstico um local privilegiado no emprego de
formas arquitetônicas e decorativas em miniatura. Além disso, o oratório doméstico nessas duas
centúrias parece estabelecer-se definitivamente em sua forma, símbolo, uso e função social. É
também nesses dois séculos que as tipologias dos oratórios domésticos se fixam, tendo funções
precisas e práticas culturais bem orientadas.
Será no século XVIII que o hábito de morar passa por uma inovação. A vida privada e a
religiosidade unem-se radicalmente no sentido de que as práticas em torno de ambos se concentram
85
BRAUDEL, Fernand. op. cit. p. 276-277.
62
no conforto do lar. O oratório doméstico, nessa perspectiva, segue o mesmo rumo do mobiliário
secular.
O tipo mais corrente consistia numa estrutura de três painéis (tríptico): o painel central,
de maiores dimensões, apresentava a cena iconográfica principal; nas abas laterais, ou
volantes, representavam-se os Santos ou cenas complementares daquela. O retábulo
abria-se em exclusivo durante as funções religiosas; quando estas terminavam, os volantes
fechavam-se sobre o painel central, cobrindo-o inteiramente, mostrando então o reverso
com decoração mais simples, eventualmente a “grisaille”. O conjunto apoiava-se sobre
uma base retangular, a predella (predela), geralmente com pinturas miniaturais, que
reproduziam também cenas ou Santos relacionados com o tema principal. 88
87 ROQUE, Maria Isabel Rocha. Altar Cristão. Evolução até a Reforma Católica. Lisboa: Universidade Lusíada
Editora, 2004. p. 42.
88
ROQUE, Maria Isabel Rocha. op. cit. p. 42.
89 ROQUE, Maria Isabel Rocha. op. cit. p. 44.
64
internacional, colocando-se a par das transformações ocorridas com a devotio moderna. Nesse
sentido, o tríptico mais uma vez pode ter sido objeto de desejo dos fiéis que cada vez mais se
aproximavam dos seus santos de devoção. Não bastava ir à Igreja para diante do altar rezar, mas
deseja-se perto dos santos ficar. A partir de tal evidência podemos inferir que o tríptico tenha sido
adaptado para o âmbito doméstico com função de oratório, à exemplo do tríptico da Natividade
que vimos anteriormente.
Uma outra hipótese que pode sustentar tal tese é o da iconografia dos trípticos enquanto
Biblia Pauperum. O argumento da ‘bíblia dos pobres’, ou seja, as imagens sacras com fundamento
pedagógico (a história sagrada traduzida em imagens para a compreensão dos católicos sem
alfabetização) explicam, de certa forma, a adaptação dos retábulos tripartidos em oratórios
domésticos, afim de que o fiel se instruísse acerca da vida de Jesus, da Virgem e dos seus Santos de
devoção através do material iconográfico representado em pintura ou talha. O tríptico enquanto
oratório doméstico teria em sua forma e conteúdo um precioso meio de impulsionar a oração. De
acordo com Isabel Roque:
90
ROQUE, Maria Isabel Rocha. op. cit. p. 44.
65
Dotado com imaginária representando a Virgem com o Menino Jesus ao centro, ladeada por
putti, o oratório concentra – nas portas laterais e no seu coroamento – talha em marfim e madeira.
O altar portátil em questão pode nos dar pistas quanto ao modelo formal de um oratório doméstico
que figurou nos séculos seguintes. Em sua disposição e forma temos: uma base central que suporta
a estrutura cujo modelo é de uma caixa ao centro, com profundidade, abrigando o orago principal
(podendo ser acompanhado da representação escultórica de outros santos), ladeada por duas portas
que contêm, geralmente, representações pictóricas de iconografias diversas, podendo estas terem
uma relação direta com o orago principal cultuado ou invocações aleatórias que talvez não possam
estar figuradas por estatuária devido ao tamanho da peça em si. No caso do altar portátil de D. Manuel
[figura 22] e do Tríptico da Natividade [figura 21] temos uma definição formal bem delimitada em
âmbito português – algo já visto anteriormente em âmbito alemão, como o oratório de Sant´Ana
com os infantes [figuras 14-15] – que se tornou a fórmula clássica de pequena capela:
66
Coroamento
Pináculos e putti
ladeando o brasão do império
português
Base ou Peanha
Embora o modelo acima faça menção aos trípticos góticos em nichos devocionais anteriores
ao século XVI uma característica é notável: a questão da profundidade da caixa, que pode evidenciar
uma funcionalidade de guarda de objeto, de pequeno armário. Em âmbito português o oratório de
D. Manuel – até onde as pesquisas puderam alcançar – parece figurar como o primeiro oratório cuja
tipologia se afasta da funcionalidade do tríptico91, embora permaneça a sua forma que é tripartida.
Além disso, é partindo do altar portátil de D. Manuel que reforçamos a tese de que o oratório
doméstico se define como tal quando a talha predomina em Portugal.
Robert Smith no antológico A talha em Portugal delimita como marco temporal o predomínio
da talha em madeira de 1500 a 1800. Smith chega a estabelecer analogamente a importância da talha
em madeira em Portugal assim como o mármore o é na Itália e a pedra o é na França92. Um aspecto
importantíssimo acerca do ofício dos entalhadores em Portugal trata-se da conjugação de tarefas
no processo criativo dos retábulos. Smith demonstra que:
A respeito da formação e organização dos entalhadores [...] de Lisboa, temos alguns
esclarecimentos mercê dos regimentos [...]. Aplica-se aos sambladores, entalhadores e
imaginários sendo cada uma das três categorias classificada pela Casa dos Vinte e Quatro,
que até 1834 foi o grêmio geral dos ofícios da capital, como Carpinteiros de Marcenaria.
Segundo os exames estabelecidos nos regimentos, havia pouquíssima diferença entre os
ensambladores e os entalhadores, ambos construtores de retábulos, os quais eram
obrigados ao conhecimento das obras arquitectônicas e à capacidade de entalhar nos
padrões decorativos previamente estabelecidos. 93
91 Reiteramos que, em âmbito português, o oratório de Dom Manuel I configura-se como um protótipo do oratório
moderno que conhecemos nos séculos XVIII e XIX: um pequeno armário cuja função é a guarda da imagem de
devoção. Até onde esta pesquisa pôde alcançar, sustentamos a ideia do referido objeto ter sido – provavelmente - um
protótipo do oratório enquanto pequeno armário, já que ainda não se localizaram em Portugal, oratórios dessa tipologia
que sejam anteriores ao século XVI, sendo, portanto, o mais antigo localizado que pudemos localizar.
92 SMITH, Robert C. A talha em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962. p. 7.
93 SMITH, Robert C. op. cit. p. 11.
67
E prossegue:
Ao demonstrar uma conjunção de ofícios no campo da talha, Smith leva-nos a crer que os
produtores de retábulos também se dedicavam a obras menores, como os oratórios domésticos
que, em Portugal, são chamados comumente de maquinetas. A partir dos registros, Smith
demonstra que os mesmos artífices realizavam obras menores como arcazes, mesas de refeitório,
grades, estantes de coro, forros de salas, guarda-roupas e oratórios, sendo estes de ‘molduras
soberbas’95. A partir de tal relação, podemos estabelecer a ligação do oratório doméstico não
somente com os retábulos, mas também ao mobiliário integrado de natureza civil e\ou religiosa.
Além disso, a estrutura dos retábulos nas igrejas é expressivamente arquitetônica, estrutura tal que
pode ser encontrada nos oratórios, cuja citação arquitetônica encontrará no século XVIII a sua
maior expressão ao lado da ornamentação.
Outro aspecto interessante acerca do processo criativo dos retábulos em Portugal (algo que
ocorre também no Brasil Colonial) é a inspiração a partir do risco que é feito não somente pelo
entalhador, mas também pelo arquiteto e pelo pintor.96 A partir de tal fato, uma fonte de inspiração
direta – além dos próprios retábulos que serão adaptados em escala diminuta em oratórios – pode
advir das pranchas de gravuras de tratados de arquitetura e ornamentação, ambos utilizados por
pintores, sobretudo em âmbito colonial.
Disso tudo podemos observar a ausência de definição do oratório doméstico em âmbito
português. Até o momento, o oratório doméstico configura-se como muitas coisas: pequeno
relicário, nicho devocional, tríptico, até mesmo maquineta. Apenas no século XVIII que pela
primeira vez o termo “oratório” será definido em âmbito nacional através do “Vocabulário Portuguez
e Latino”, publicado entre os anos de 1712 e 1728 pelo padre Raphael Bluteau.
Sobre o verbete: “Oratório”:
Especie de Capella pequena, em que com licença do Pontifice, & do Prelado se pode
dizer Missa. Sacellum domesticum. Contra o parecer Joaõ Gerardo Vossio, que reprova
como barbara a palavra Oratorium, mostra o P. Boldonio, na sua Epigraphica, pag. 253.
que o dito vocabulo foy introduzido desde a Igreja primitiva, como consta da Historia da
Consagração da Basilica Lateranense, em que aos cinco dos Idos de Novembro se rezão
publicamente as palavras, que se seguem: Nam et sijam ab Apostolurum tempore loca fuerint
Deo dicata, quae à quibusdam oratoria, ab alus Ecclesiae dicebantur [...] E para mais abonar o uso
desta palavra, continua o dito Autor dizendo: Cuius quidem testimonium, & auctoritas, cum
nisi per summan temeritatem infringi valeat, illud consequens esse facit, ut cum Apostolorum tempus in
bonum inciderit saeculum, bona proinde vox oratorium cenferi debeat, & rite translata ad sacrum
orationis locum. Nam de eius origine, nimirum ab orationis adjectivo, nemo plane congreditur: quin ab
eo vim nostrae conjecturae intendimus , ut si ab Auditorius, (de quo thesaurus linguae latina) supsit
Quintilianus Auditorium, pro loco, in quem convenitur, Audiendi causa, nihil est cur servata
analogiae lege, non eliam oratorium admittabur, pro loco orationi dedicato. (Fez em tua propria casa
hum oratorio. Mon. Lusit. Tom. I. fol. 47. col. I).97
97 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, áulico, anatômico, architectonico, bellico, botânico,
brasílico, comico... Autorizado com Exemplos dos Melhores Escritores Portuguezes, e Latinos, e oferecido a El-Rey
de Portugal, D. João V. Pelo Padre D. Raphael Bluteau, Clerigo Regular, Doutor na Sagrada Theologia, Prêgador da
Rainha de Inglaterra, Henriqueta Maria de França, & Calificador no Sagrado Tribunal da Inquisição de Lisboa.
Coimbra, no Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu, com todas as Licenças Necessárias. Ano Domini 1713, p.
99. | BBM/USP.
98 Sacelo – Na Antiga Roma, pequena capela, templo ou santuário. HOUAISS (2001).
99 SMITH, William. Dictionary of Greek and Roman Antiquities. [S.I] Little, Brown and Company, 1870 p. 843.
100 ULRICH, Roger. B. Roman Woodworking. Yale, Universiy Press, 2008 p. 228
101 CURL, James S. A dictionary of Architecture and Landscape architecture. Oxford: Oxford University Press,
2000.
102 RUSSO, Silveli M. T. Espaço doméstico, devoção e arte: a construção histórica do acervo de oratórios
brasileiro, séculos XVIII e XIX. 2010. 2. V. Tese (Doutorado) – Faculdade de Arquitetura e Urbanismo,
Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010. p. 38
103 Mais uma vez, eis aqui explicitada a contradição que se encontra no cerne da religião cristã: a dualidade entre público
e privado.
69
pedra:104 sendo assim, o oratório doméstico com função de altar (ecclesiae domesticae, templo, saccellum)
adquire um status ainda mais sublime e perene: é o próprio Cristo que se faz presente na casa.105
Bluteau, no mencionado verbete, prossegue afirmando que o termo “oratório” foi
introduzido “desde a igreja primitiva”, corroborando a hipótese de que a transformação do saccellum
pagão em oratorium cristão ocorreu de maneira deliberada, e depois ratificada linguisticamente,
tornando o termo distintivo de um artefato ou construção cristã dedicado à oração.
As definições prosseguem:
Oratorio. Especie de Ermida, ou Capella publica, que (como advertio Domingos Macro
no seu Hierolexicon, verbo Oratorium) não se pode erigir sem licença do diocesano. (Ao
Mosteyro da Serra da Ossa (?) annexou os oratorios, que tinha fundado, a saber, de
Mendoliva, hoje Ermida de S. Bras, &c. [...].106
Neste ponto, nos é apresentada mais uma característica funcional do oratório: uma ermida
ou capela pública. Temos a partir de tal definição um impasse: não seria o oratório um objeto
essencialmente ligado ao âmbito doméstico? Assim como o saccellum (como vimos anteriormente),
o oratório também equivalia a uma construção modesta e de caráter público, o que significa que o
oratório, no século XVIII, era entendido não apenas como um altar doméstico ou local dedicado
à oração, mas também como uma pequena e modesta capela que se insere na dinâmica de uma
religiosidade comunitária e, provavelmente, urbana. Em terras lusitanas, as capelas do passo ou
passinhos (mais conhecidos pelo último nome no Brasil), assim como as pequenas capelinhas de rua
e ermidas, figuram em relativo número pelas ruas, sobretudo nos centros velhos das cidades lusas
como Guimarães e Braga.
Outros tipos de oratório ainda são definidos.
O oratório-nicho, conforme a descrição de Bluteau, mais uma vez nos relata uma série de
desdobramentos formais do artefato que torna ainda mais complexa a tentativa de o definir. A
caracterização do oratório enquanto “armário com duas portas” coincide com o objeto que temos
observado nesta análise desde os seus primórdios em período medieval, onde o identificamos como
um desdobramento do tríptico gótico, adquirindo forma autônoma. Além disso, em âmbito
104 HANI, Jean. O simbolismo do Templo Cristão. Lisboa: Edições 70, 1981 p. 111
105 O oratório doméstico assume tal característica se, tendo função de altar, for dotado de Pedra d´Ara.
106
Vocabulario Portuguez e Latino. p. 99-100. | BBM/USP
107
Vocabulario Portuguez e Latino. p. 100. | BBM/USP
70
português, o oratório parece privilegiar a figura do Cristo Crucificado como iconografia central,
acompanhado de outras imagens de santos, sendo guardados num armarium. A palavra armarium
delimita neste momento uma evolução do oratório enquanto objeto: uma peça de mobiliário. Nos
séculos XVII e XVIII temos um aprofundamento e certa radicalidade da vida privada108 e
possivelmente a espiritualidade diante do oratório tornou-se tão cotidiana que o mesmo acabou
por ser incorporado à mobília da casa, sendo introduzido de vez ao ambiente doméstico. É o caso
do oratório sob cômoda ou papeleira [figura 23] em que o nicho de oração é conjugado ao móvel
de utilização cotidiana, móveis estes que são adequados para quartos de dormir ou escritórios. Tais
modelos conjugados, além de serem contemporâneos da ‘radicalização da vida privada’ (unindo as
esferas do secular e do sagrado) são também baseados em modelos gravados difundidos a partir
dos álbuns de gravuras de mobiliário a exemplo de Franz Xaber Haberman [figura 24] e o
emblemático The Gentleman and Cabinet-Maker´s Director de Thomas Chippendale, gravuras inglesas
muito difundidas no século XVIII em Portugal na corte de Dom José I.
Figura 23. Oratório sobre cômoda. Séc. XVIII. Museu Nacional de Arte
Antiga, Lisboa.
Figura 24. Franz Xaber Habermann. Prancha N. 163. Séc. XVIII. Victoria
and Albert Museum, Londres.
LEBRUN, François. As reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal. In CHARTIER, Roger (org.) História
108
Como vimos anteriormente com as definições do Pe. Rafael Bluteau no seu Vocabulário
Portuguez e Latino, o oratório possui várias definições que são aplicadas em determinados contextos
e a determinados objetos muito específicos em sua forma e função social. O trânsito dos oratórios
domésticos de Portugal para o Brasil não é fácil de rastrear e o mapeamento de tais importações
ainda nos é fato obscuro – praticamente irrealizável até o momento – pelo fato da parca e
praticamente inexistente documentação que fundamente uma História da vinda do objeto via
ultramar.
O que nos resta – e isso em si já significa muito – é observar o acervo numeroso de oratórios
no Brasil que, através de uma análise formal do estilo, podemos estabelecer relações entre estes e
os modelos encontrados não apenas na metrópole portuguesa, mas no mundo ibérico como um
todo. A partir da história do objeto pudemos observar a sua evolução em consonância com a arte
retabilística, do tríptico gótico à arte da talha dourada em ambiente expressivamente barroco onde
o oratório, assim como o retábulo, teve produção massificada.
Portanto, partiremos agora dos oratórios utilizados na Capitania de Minas Gerais nos séculos
XVIII e XIX, centúrias em que a produção e utilização de tais objetos foi a mais expressiva, tendo
em vista o numeroso acervo de oratórios em coleções públicas e privadas na atualidade. Ao
109Sobre os retábulos portugueses no século XVIII é possível ver oratórios, chamados de maquinetas, conjugados ao
camarim dos retábulos, servindo de suporte e guarda da iconografia – sobretudo escultura – do orago principal. Dois
exemplos: um é o retábulo principal de Nossa Senhoras das Mercês, na Igreja de mesmo nome em Évora e o Altar de
Nossa Senhora da Soledade, na Igreja de São Francisco no Porto. No Brasil, oratórios conjugados ao retábulo, na
mesma disposição (no camarim guardando a imagem principal) pode ser observado na Igreja de Nossa Senhora do
Rosário em Santos, São Paulo. O modelo é usual e recorrente pelas igrejas do século XVIII e XIX no Brasil.
72
analisarmos os modelos que aqui dispomos, podemos estabelecer relações entre os oratórios
coloniais e seus possíveis antecedentes Europeus.
Em termos funcionais, os oratórios domésticos (de acordo com a literatura do mobiliário
luso-brasileiro) são delimitados na tipologia de móveis de guarda, sendo agrupados posteriormente
em uma subcategoria como mobiliário religioso, de culto ou de devoção110. Interessa-nos mais a
definição de López (2003) que o caracteriza como um objeto ou lugar de culto divino de caráter
público, semipúblico e privado.111
110 Acerca das definições sobre a natureza do oratório como peça de mobiliário, ver: CANTI, Tilde. O móvel no
Brasil: origens, evolução e características. Lisboa: Fundação Ricardo do Espírito Santo Silva, Editora Agir, 1999.
FLEXOR, Maria Helena Ochi. Mobiliário Brasileiro: Bahia. São Paulo: ESPADE, 1978.
SOUZA, Maria da Conceição Borges de; BASTOS, Celina. Normas de inventário: Mobiliário. Instituto Português
de Museus. Lisboa: IPM, 2004.
111 “Si se entiende como oratorio el lugar destinado al culto divino, se pueden reconocer tres tipos: los públicos, los semipúblicos y los privados.
En los primeros, lo característico es la posibilidad de que todos los fieles, a partir de su legítimo derecho, asistan al desarrollo de los oficios
divinos. Los segundos son los que prestan sus servicios a una comunidad o congregación particular, no estándole permitida la entrada a
cualquiera. Y los privados o domésticos son los que se erigen en casas particulares para el servicio de una persona o familia y que en algunos
casos pueden adquirir las características de los semipúblicos’. LOPEZ, Maria del Pilar. El oratório: espacio domestico en la casa
urbana de Santa Fe durante los siglos XVII y XVIII. Ensaios. Historia y Teoria del Arte, vol. 8, Nº 8, 2003.
112 HERRERA, Rosália María Vinuesa. Estudio de los oratorios domésticos y capillas privadas en los siglos XVII
y XVIII a través de la documentación conservada en el Archivo General del Arzobispado de Sevilla. Tese
doutoral. Departamento de História da Arte, Universidade de Sevilha. 2016, p. 17
113 É importante ressaltar que a tipologia ‘oratório-ermida’ é o oratório público por excelência, porém, a tipologia
Ainda que é cousa muito pia, e louvável edificarem-se Capellas em honra, e louvor de
Deos nosso Senhor, da Virgem Senhora Nossa, e dos Santos, porque com isso se exercita,
e afervora a devoção dos fieis, e se segue a utilidade de haver nas grandes, e dilitadas
Parochias lugares decentes, em que comodamente se possa celebrar; como convêm muito
se edifiquem com tal consideração, que, erigindo-se para ser Casa de Oração, e devoção,
não o sejão de escandalos pela pouca decência, e ornato delas, ordenamos, e mandamos,
que querendo algumas pessoas em nosso Arcebispado fundar Capella de novo, nos dem
primeiro conta por petição, e achando Nós por vestoria, e informação, e que se obrigão
a fazel-a de pedra, e cal, e não somente de madeira, ou de barro, assignando-lhe o dote
competente ao menos de seis mil réis cada anno para sua fabrica, reparação, e
ornamentos, lhe condeceremos licença, fazendo-se de tudo autos, e escripturas, que se
guardarão no Cartorio da nossa Camara.114 (VIDE, 1853, p. 254 - 255)
114 VIDE, Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas pelo
Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide: propostas, e aceitas em o Synodo
Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. S. Paulo: Na Typographia 2 de
Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853, p. 254-255. | BSF/DF
115 CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Vol. 1. 2ª edição – Revista e Aumentada. Belo
Senhora da Piedade e Bom Despacho que alguns devotos haviam construído afim de que os presos
pudessem assistir a Missa aos domingos e dias santificados.116
Tal anedota nos permite associar mais uma vez a função social do oratório enquanto altar,
seja numa dimensão pública ou privada. Para se construir um oratório com função de altar o trâmite
era burocrático e regido por documentos bem específicos: a solicitação do requerente e a
autorização oficial através do Breve Apostólico de Oratório.
Figura 25. Capela do Passo (passinho) do Largo das Mercês. Séc. XVIII.
São João del-Rei, Minas Gerais. Foto do autor (2017).
Figura 26. Oratório-ermida ou Capela da Cadeia, dedicada a Nossa
Senhora da Piedade (com função de altar) de uso público. c. 1740. São João
del-Rei, Minas Gerais. Foto do autor (2018).
O Breve Apostólico de Oratório trata-se de uma autorização oficial de autoridade eclesiástica que
concede a licença do requerente em construir ou habilitar o oratório (público, semipúblico ou
privado) a ser digno de celebrar os sacramentos, sobretudo a Missa. Esses documentos, em
consonância com a matéria disciplinar das Constituições Primeiras, elencavam em certos casos
especificidades estruturais, ornamentais e sociais em torno do oratório habilitado com função de
altar. Além disso, havia uma recorrente preocupação por parte das autoridades eclesiásticas do
A “Ordem Circular do Arcebispo de Lacedemonia” demonstra o rigor com que era tratada a matéria
da celebração da Eucaristia, em consonância com a disciplina conciliar de Trento. Em âmbito
colonial, as Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia também o demonstram ao insistir nos
termos como ‘decoro’ e ‘decência’ são recorrentemente utilizados, denotando a importância da
nobreza do espaço que se destina ao sagrado, à ornamentação deste e sobretudo aos sujeitos que
se tornam guardiães deste espaço.
Em síntese, os oratórios públicos podem ser definidos como estruturas arquitetônicas em
escala diminuta que são incorporados aos centros urbanos e parte constitutiva do casario.
Destinam-se para o exercício público da religiosidade e estão submetidos, desde o princípio, a uma
burocracia civil e eclesiástica que efetiva a sua existência material. Estão ligados, especialmente, à
tipologia do oratório-ermida, que se refere ao universo da construção arquitetônica.
Os oratórios semipúblicos são assim denominados pela sua dupla característica: indica uma
natureza pública, portanto coletiva, mas também privada, indicando, portanto, um uso
compartilhado de certo grupo seleto e autorizado. São erigidos “en beneficio de alguna comunidad o grupo
de fieles, sin estar permitido a los extrãnos entrar en él”119.
Nesta classificação, temos uma tipologia específica que necessita, em sua forma, estar
adequada ao uso coletivo, portanto, o oratório em si é interpretado como um artefato de grandes
proporções. Além disso, ao contrário do oratório público, o oratório semipúblico se enquadra no
mundo do mobiliário integrado a uma estrutura arquitetônica. É o caso do oratório-armário.
Como vimos anteriormente, o oratório-ermida trata-se de uma construção arquitetônica de
proporções humanas. O oratório-armário, em sua forma, remete ao oratório-ermida imitando sua
forma arquitetônica: duas portas que, quando abertas, ladeiam o nicho central, há presença de altar
com Pedra d´Ara e o nicho central, dotado de imaginária ou representações pictóricas, é
frequentemente constituído de talha em madeira.
Figura 27. Oratório-armário (com função de altar e dotado de pedra d´ara). Séc.
XVIII. Madeira dourada e policromada. 319x179cm. Proveniente da
Capela da Fazenda São Matias ou da Feiticeira de Ilha Bela, São Paulo –
SP. Museu de Arte Sacra de São Paulo, SP. Fonte: MAS/SP.
Tais oratórios possuem a função de altar privado em duas esferas: servem a uma irmandade,
confraria ou altar privado de uso exclusivo de eclesiásticos ou servem a uma família, sendo inseridos
em âmbito doméstico. Cabe ressaltar que o oratório-armário se construído numa sacristia, por
exemplo, terá – em termos práticos – a mesma serventia dos retábulos laterais, servindo de suporte
para um orago ou devoção representada em imaginária ou pintura e dotada de altar com Pedra
d´Ara e, portanto, habilitado para a celebração da Eucaristia. O trâmite burocrático para a feitura
desta tipologia é o mesmo do oratório-ermida, como anteriormente falamos.
A prática religiosa em torno de tal tipologia nos parece ser usual e comum em Portugal,
tomando como exemplo o oratório-armário de embutir na parede que servia como altar
semipúblico na sacristia da Igreja da Misericórdia em Braga [figura 28]. Tal tipologia, no Brasil, é
comumente utilizada a partir do século XVIII, sendo um oratório próprio das habitações rurais –
casas de Fazenda – ou habitações urbanas de grande vulto e cujos proprietários detinham grande
fortuna120, como o caso do oratório-armário de uma fazenda nas redondezas da Vila de São João
del-Rei que atualmente se encontra sob custódia do Museu Regional de São João del-Rei [figura
29].
Figura 28. André Soares. Oratório-armário (com função de altar e dotado de pedra
d´ara) de uso semipúblico. 1741. Sacristia da Igreja da Misericórdia, Braga –
Portugal. Foto gentilmente cedida por Eduardo Pires de Oliveira.
Figura 29. Oratório-armário (sem função de altar) de uso privado. Séc. XVIII.
Madeira entalhada, policromada e com douramento. Museu Regional de
São João del-Rei, São João del-Rei – Minas Gerais. Foto do autor (2018)
(aberto).
120MOTT, Luis. Cotidiano e vivência religiosa: Entre a capela e o calundu In: NOVAIS, Fernando A; SOUZA, Laura
de Mello e. História da vida privada no Brasil: Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. Vol. 1. São
Paulo: Companhia das Letras, 1997, p.171
78
O armarium, conforme definiu Bluteau, é a tipologia que tornou possível enquadrar o oratório
como mobiliário através das características formais que o afasta definitivamente do gênero
construtivo. Como observamos no oratório-armário acima [figura 29] o mesmo possui a forma
de um armário vertical, em madeira, com a base larga, emoldurada e escalonada em frisos; gavetão
inferior – para guarda de objetos litúrgicos ou, no caso, de livros de oração e objetos devocionais
– em almofada de borda emoldurada com par de suportes metálicos para puxadores. Ao centro
com porta de duas folhas, tendo cada uma pares de almofadas retangulares, de bordas frisadas,
com batente ao meio e dobradiças em metal. Internamente possui no verso de cada almofada,
pintura de compoteiras com buquê de flores vermelhas e demais elementos fitomórficos. Na parte
superior temos a presença de uma cimalha larga e escalonada em frisos, com uma faixa azul ao
centro; arremate em forma de frontão curvo, com tarja central em dois “esses” terminados em
volutas, com conchas nos cantos, e tarja central em dois “cês”, inferiormente arrematada por duas
palmas e, superiormente, por palmeta joanina e o centro com relevo de três cravos121.
A comparação entre o armário [figura 30] e o oratório-armário [figura 32] aqui estabelecida
se concentra mais na questão externa do que interna, já que as soluções aqui (no Brasil) encontradas
tendem sempre ao mais simples, salvo exceções. Além disso, a diferença substancial entre o armário
e o oratório-armário, além de sua função, evidencia-se também pela estrutura retabular interna
[figura 34] que preenche todo o nicho central. O nicho central possui uma estrutura com
sustentação em par de pilastras douradas, de bases emolduradas com fustes em duas mísulas
sobrepostas, revestidas por acantos e concheados que os armários sem função de oratório não
possuem. Isso evidencia certamente uma troca, ou mesmo simbiose de elementos do mobiliário
civil e dos retábulos. Em ambos, a estrutura externa cita elementos arquitetônicos, porém o oratório
121 Alguns dos termos técnicos foram retirados da Ficha de Identificação e Inventário Museológico/IPHAN/13ª SR.
Nº 284. | AMR/SJDR
122 Bauernmalerei – em tradução livre: ‘pintura campestre’. O estilo pictórico possui como origem a Alemanha do século
XVIII e é identificada como uma pintura primordialmente decorativa. De pinceladas leves e soltas ao gosto do rococó,
tal estilo é comum em peças de mobiliário, servindo de decoração justamente às portas almofadadas de armários,
arcazes e oratórios domésticos. O repertório do estilo bauer se concentra no uso de compoteiras, vasos e jarros com
flores.
BRANDÃO, Angela. Das pontes aos castiçais: a produção do mobiliário artístico em Minas Gerais no século XVIII e
os ofícios mecânicos. Revista Científica – FAP, Curitiba, v. 4, n. 2 p. 50-66, jul/dez. 2009, p. 58.
79
‘potencializa’ o partido arquitetônico já que o artefato pressupõe suprir, imitar ou até mesmo
‘privatizar’123 um retábulo, tendo este ou não função de altar.
123Privatizar – No sentido de tornar privado algo que é público. No caso, a tendência – já trabalhada nesse capítulo –
de imitar, miniaturizar ou citar elementos arquitetônicos, escultóricos e pictóricos das Igrejas nos nichos devocionais
privados, a fim de construir e possuir uma ecclesia domesticae.
80
Concluímos, portanto, que tal tipologia será a definidora por excelência de um artefato que
serve única e exclusivamente para um uso semipúblico. As proporções, a função e sobretudo a
ornamentação serão elementos definidores do oratório-armário enquanto um local de oração
compartilhado. Trabalhamos aqui com o oratório-armário com altar que se enquadra facilmente na
delimitação funcional do uso compartilhado, porém, e o oratório de cunho apenas devocional?
Como vimos, o oratório sem altar [figuras 32-33-34] embora de uso privado – da família –
é, certamente um objeto para ser visto e utilizado por um grupo seleto e previamente autorizado.
Em casas de fazenda, como já citamos, era comum a construção de ermidas e pequenas capelas na
área de convívio da propriedade ou os chamados ‘quartos de santo’124. Porém, no caso do oratório-
armário, os mesmos eram embutidos125 nas paredes das residências.
De acordo com Luiz Mott, a casa de moradia é o locus privilegiado para o exercício da
religiosidade privada dos católicos126 e, portanto, os devotos concorrem entre si para obter o melhor
oratório, a melhor imagem devocional ou mesmo ter um oratório com altar que, por si só já
evidencia um privilégio por vezes baseado em fatores econômicos e de distinção social. Portanto,
nem sempre um oratório de natureza semipública deverá, a piori, ser dotado de altar. Isso indica
que não apenas o culto cristão (a Eucaristia, sobretudo) gozava do privilégio de ser celebrado em
público, mas os momentos de oração enquanto prática devocional também poderia gozar da
natureza pública, embora o objeto em torno do qual se realizasse a ação fosse de âmbito privado.
Partindo de tal relação dicotômica entre público e privado, temos uma especificidade
particular nos oratórios semipúblicos, indicando-nos um objeto que, embora seja de uso coletivo a
posse do mesmo é particular. Falamos aqui dos oratórios de rua que, assim como o oratório-
armário (tratado anteriormente), é de posse privada, mas de uso público ou coletivo.
de família que morava ali pelas vizinhanças tomava o capote, chamava toda a gente de casa, filhos,
filhas, escravos e crias, e iam fazer oração ajoelhando-se entre o povo diante do oratório127.
Figura 36. Oratório de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Séc. XVIII-XIX. Ouro
Preto. Foto do autor (2019).
Figura 37. Detalhe. Oratório de Nossa Senhora do Bom Sucesso. Séc. XVIII-
XIX. Ouro Preto. Foto do autor (2019).
127ALMEIDA, Manuel Antônio de. Memórias de um sargento de milícias. Rio de Janeiro: O Globo/Klick, 1997,
p. 87.
83
Importante ressaltar que tais oratórios, embora com visão e acesso pelo lado de dentro de
casa, não se configuravam totalmente como oratórios de uso estritamente doméstico. Os nichos
domésticos, assim como os semipúblicos, figuram como os artefatos principais da religiosidade
católica da colônia, permanecendo até o início do século XX como prática religiosa e cultural, nesse
sentido, o princípio da distinção social e poder econômico se faz apresentar a partir da
ornamentação dos oratórios sobretudo de uso privado.
Partindo de tal tese, a distinção social e a concorrência, por vezes de caráter estético no que
tange aos objetos de culto privado, proliferou pela Capitania do Ouro uma gama de oratórios, mais
singelos em termos de proporção, mas de soluções formais que circulam entre o erudito e o
popular. Tais oratórios não necessitam de aprovação eclesiástica, portanto, serão estes que mais
aparecem nos acervos mineiros e em todo o Brasil: os oratórios privados.
Os oratórios privados são artefatos de uso essencialmente devocional e particular, feitos para
“casas particulares para utilidad sólo de una família o de una persona privada”128. De acordo com Juan
Bautista Ferreres (1861-1936) em Los oratórios y el altar portátil. Según la vigente disciplina concordada com
el novísimo Sumario de oratórios concedido em la Cruzada. Comentario histórico-canónico-litúrgico:
128 HERRERA, Rosália Maria Vinuesa. Estudio de los oratorios y capillas privadas en los siglos XVII y XVIII a
través de la documentación conservada en el Archivo General del Arzobispado de Sevilla. Tese doutoral.
Departamento de História da Arte, Universidade de Sevilha, 2016, p. 18.
129 A tradução para o português foi realizada por Silveli Maria de Toledo Russo em sua tese doutoral: “Espaço
doméstico, devoção e arte: A construção histórica do acervo de oratórios brasileiro, séculos XVIII e XIX”
defendida na Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo em 2010. Segue a citação original
no espanhol: “La palabra oratorio, en sentido lato, significa un lugar, relativamente pequeño, dedicado a la oración y culto de Dios. En
este sentido [...] cualquiera puede tener en su casa un oratorio, destinando para ello uma habitación, poniendo en ella cuadros, estatuas,
84
O ‘pequeno oratório’ que resguarda em seu interior ‘quadros e estátuas’ referido por
Ferrreres é o artefato que mais representa a religiosidade católica em Minas Gerais e que
superabunda nas coleções privadas e acervos públicos. Tal acervo se constitui como numeroso
devido ao fato de que foi no oratório privado que a religiosidade popular mineira se manifestou da
maneira mais abrangente e diversa, sendo realizadas em torno do mesmo práticas culturais que
tinham como foco o exercício da piedade doméstica e familiar.
A tipologia, ou tipologias dos oratórios domésticos de natureza privada são várias, cada uma
com função social e forma estilística determinada. Além disso, forma e função são categorias
interdependentes, pois, a forma será subordinada da função e vice-versa. Tendo em vista os
numerosos tipos, formas e funções, elencaremos aqui os principais oratórios que figuram nos
acervos mineiros. Para isso classificamos os oratórios em duas categorias e cinco subcategorias130:
a) Oratórios domésticos
b.a) Miniaturas
b.b) De Algibeira
Iniciando pela categoria dos oratórios domésticos (aqueles que são próprios do ambiente
familiar) de cunho devocional, figura na subcategoria ‘Oratório de Salão’ a tipologia do oratório-
ermida.
altar sin ara, etc., donde podrá recogerse él y toda su familia a meditar, rezar el santo rosario, hacer alguna novena, etc. Para esto no se
necesita ningún permiso especial de la autoridad eclesiástica”. FERRERES, Juan B., S.I. Los oratorios y el altar portátil, según
la vigente disciplina concordada con el novísimo Sumario de oratorios concedido en la Cruzadacomentario
histórico-canónico-litúrgico. 2ª ed. Barcelona: Administración de Razón y Fé, 1916, pp. 9-11.
130 Esta classificação é utilizada atualmente pelo Museu do Oratório, do Instituto Cultural Flávio Gutierrez com sede
em Ouro Preto, Minas Gerais. Tal classificação foi utilizada nesta dissertação com algumas adaptações.
131 Os oratórios itinerantes (ou de viagem) foram elencados como privados por serem artefatos pertencentes a um
indivíduo ou ordem religiosa. A prática cultural em torno destes, porém, evoca características que os implicaria como
objetos de natureza semipública. Achamos por bem não adentrarmos no debate conceitual em torno do público-
privado e elencamos tais oratórios como objetos de cunho privado.
85
Portuguez e Latino que cita a tipologia do oratório de salão (ou armarium) cuja iconografia
potencialmente dominante é justamente a da devoção ao Cristo Crucificado132.
A seguir, temos como proposta algumas nomenclaturas a fim de tipificar o objeto tendo
como base a sua forma. Temos na categoria (de salão) algumas tipologias:
Os oratórios de alcova (do quarto de dormir) são os artefatos devocionais de caráter ainda
mais intimista, evidenciando a prática das orações matutinas e noturnas do cristão em consonância
com o devocionismo pessoal. Figuram como oratórios de alcova os emblemáticos e recorrentes
oratórios-bala [figura 40] que são portáteis e, em forma de bala de cartucheira, servindo de nicho
para uma ou mais peças de imaginária sacra. Além deste, as maquinetas são os oratórios intimistas
que mais aparecem nos acervos públicos e particulares.
88
A maquineta – equivalente a oratório, em Portugal – diz respeito a uma tipologia que tem
como característica principal a forma de uma caixa quadrada ou retangular (tanto na horizontal
quanto na vertical) com o uso do vidro plano e fino para proteção das imagens sacras. Tais oratórios
são exclusivos em representar – majoritariamente – cenografias complexas e em gerúndio,
abordando nos programas iconológicos as cenas da Paixão de Cristo ou da Natividade. Além disso,
a forma de tais maquinetas pode variar, partindo de soluções simples e pouca ornamentação às
mais exuberantes cuja talha ornamental poderá citar vocabulário joanino ou mesmo rocaille. Embora
essa tipologia também apareça na categoria dos ‘oratórios de salão’, na categoria dos ‘oratórios de
alcova’ a maquineta figura como os típicos ‘oratórios-lapinha’, objetos dotados de um intimismo
maior. Tais ‘lapinhas’, herdeiras diretas das maquinetas envidraçadas de Portugal, possuem bases
iconográficas intrinsecamente populares e concebidas sob a influência de fontes extra-bíblicas, por
isso, pensamos que tais lapinhas eram acomodadas nas alcovas, tendo em vista seu caráter pouco
ortodoxo em relação aos ditames rígidos de Trento. Veremos nos próximos capítulos
(especialmente o quarto capítulo desta dissertação) o sentido de sua peculiar iconografia, o que
contribui no entendimento de que tais exemplares poderiam ser destinados às orações no íntimo
das alcovas, não nas áreas de maior circulação da casa.
símbolo da sabedoria feminina e também dos mineiros, a Santo Antônio, Santa Bárbara, as
invocações várias de Nossa Senhora e afins; todas elas ligadas intimamente aos dilemas do cotidiano
da família e das preocupações várias numa sociedade marcantemente estratificada, corporativa e
escravocrata como a Minas colonial.
Os oratórios itinerantes (ou de viagem) são os objetos de que mais temos relatos na
Historiografia, sobretudo pela prática cultural que em torno deles se consolidou: a oração, a esmola
e a veneração públicas. Considero os oratórios itinerantes de uso doméstico, particular e até mesmo
estritamente individual, pessoal. Tais oratórios servem a um indivíduo que deseja proteção, quase
como amuleto (como é o caso dos oratórios miniaturais), àqueles que viajam, como os oratórios
90
de algibeira e aqueles que pertencem a uma irmandade, ordem terceira ou confraria religiosa com
função de angariar fundos por meio de esmolas.
O oratório - como insistentemente tratamos no decorrer deste capítulo – nada mais é do que
a privatização da fé católica, o anseio de tornar presente o sagrado, o divino, através de simulacros;
a representação simbólica do santo de devoção, dos personagens da História Sagrada e a moralidade
e virtudes a eles intrínsecas são desejadas e trazidas até o fiel da maneira mais intimista e pessoal
possível. Tal desejo pode ser observado através dos oratórios miniaturais como os oratórios
pingente.
O oratório pingente [figura 41] é uma peça ligada ao vestuário, servindo de acessório com
função religiosa. É o mesmo sentido do uso de crucifixos e medalhas, objeto de fetiche dos fiéis.
Tais oratórios em miniatura, adaptados como colares, não são fáceis de interpretar. Não falamos
aqui de interpretação estilística ou iconológica, mas da dimensão simbólica do oratório enquanto
amuleto.
Patuá – Amuleto confeccionado de um pedaço pequeno de tecido com a cor que corresponde a um determinado
133
Orixá. É um amuleto ligado ao Candomblé. É bordado com o nome do Orixá e mesclado com um preparo de ervas e
91
[...] o fiel sente que a salvação é possível e, sobretudo, é capaz de trazer os benefícios
necessários para a sua vida, numa relação funcional com a santidade, nos momentos de
maiores dificuldades materiais ou emocionais. [...] a comunicação com o sagrado se
intensifica na busca de graças e milagres que caracterizam em grande parte o caráter
utilitário da religiosidade popular e a relevante importância ocupada pelas constelações
devocionais, onde as santidades transcendem o abstrato para encarnar-se na imagem
daquele que representa.134
O fiel elege o santo, se sente eleito por ele e com ele realiza uma sacralização da vida
cotidiana135. Essa relação íntima, profunda e familiar com o santo de devoção não é apenas um
desdobramento da propagação do culto aos santos, como prática própria do catolicismo tridentino
e essencialmente barroco, mas pela necessidade da referência do sagrado num plano mais humano
e próximo da sua realidade, principalmente que tenha experimentado uma experiência humana –
parecida com a do devoto – para assim rogar com mais eficácia a um Deus que é distante136, por
vezes austero e intransigente, como o Deus da contrarreforma.
Acerca do artefato propriamente dito, embora tenhamos estabelecido uma correlação entre
o oratório pingente e o patuá afro-brasileiro, no sentido da forma de adaptação e privatização do
sagrado (o santo – orixá – é ‘preso’ ou acompanha o fiel através do simulacro, protegendo-o) em
âmbito europeu e cristão o oratório pingente já figura como uma joia de uso cotidiano e ligada a
um anseio devocional, como o pingente da Pietà [figura 42] de fatura alemã.
Figura 42. Oratório-pingente com Pietá. Séc. XIX. Fatura Alemã ou Francesa. Ouro,
cristais, rubis e pérolas. The Metropolitan Museum of Art, Nova York.
substâncias que estão ligadas ao mesmo. Um patuá pode ser também um colar com a efígie de vários orixás, santos e
afins.
134 CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São Paulo: Martins
O pingente da Pietà acima [figura 42] com a iconografia da Mater Dolorosa remete-nos aos
relatos da Paixão de Cristo, (especificamente do momento do ‘descendimento’ da cruz e o depósito
do corpo de Cristo no colo da mãe) narrativa de muito prestígio entre os católicos nos séculos
XVIII e XIX. A devoção à Paixão, como vimos anteriormente neste capítulo, figura como central
desde a Idade Média, os sermões e serviços religiosos referentes à Paixão são ‘arrebatantes’ para os
fiéis da época. No caso do Brasil colônia, os Sermões do Pe. Antônio Vieira podem ser citados
como exemplos do impacto do ‘programa iconológico’ da Paixão no cotidiano dos fiéis:
Assim como Deus vos fez herdeiros de suas penas, assim o sereis também de suas glórias,
com condição, porém, que não só padeçais o que padeceis, senão que padeçais com o
mesmo Senhor, que isso quer dizer compatimur137. Não basta só padecer, mas é necessário
padecer com Cristo, como São João.138
No caso do oratório pingente com a imagem do Menino Jesus dentro do pequeno nicho
[figura 41] o apego religioso ao tema da infância, assim como o da Paixão, é amplamente invocado
nas devoções domésticas, tanto em oratórios domésticos como no próprio cancioneiro da época,
como podemos observar no Vilancico (composição musical poética) atribuído a Antônio Marques
Lésbio de cerca de 1730:
137 O termo latino ‘compatimur’ citado refere-se à passagem: Haeredes quidem Dei, cohaeredes outem Christi: si tamen compatimur
ut te conglorificemur – “Herdeiros verdadeiramente de Deus, e co-herdeiros de Cristo, se é que todavia nós padecemos
com ele, para que sejamos também com ele glorificados” (Rom. 8, 17)
138 VIEIRA, Antônio, pe. Sermão XIV (1633). Edição de referência: Sermões. Vol. V. Erechim: EDELBRA, 1998, p.
274.
93
139 LÉSBIO, Antônio Marques (atrib.) Obras pertencentes ao Grupo de Mogi das Cruzes. 1730. Edição de Paulo
Castagna. Música Brasilis. Disponível em: https://musicabrasilis.org.br/partituras/anonimo-obras-pertencentes-ao-
grupo-de-mogi-das-cruzes-matais-de-incendios
140 E aqui queremos dizer, sensual.
141 ANDRADE, Solange Ramos de. op. cit. p. 7
94
Por último, e não menos importante, os oratórios itinerantes que pertenciam às irmandades,
confrarias e ordens terceiras com a finalidade de angariar fundos para obras de misericórdia, ereção
de capelas, igrejas ou esmolas para a festividade do santo de devoção daquela irmandade: o oratório
de ermitão (ou esmoler).
A irmandade, ordem terceira ou confraria tinha sempre em sua posse o oratório com a
imagem primitiva de seu orago, junto de sua imagem principal que ficava no trono da capela-mor.
Através da iconografia que dispomos, tais como a aquarela de Jean Baptiste Debret, Primeiras
142Observamos, porém, que o oratório-bala não se trata de uma tipologia especificamente miniaturizada e voltada para
as viagens, tendo em vista o numeroso acervo de oratórios desta tipologia que são oratórios de uso doméstico, em
salões etc. Portanto, percebemos que os oratórios, sobretudo domésticos, podem ser adaptados – a partir de suas
dimensões – aos inúmeros contextos.
95
Ocupações da Manhã [figura 47] e Largo da Glória de Henry Chamberlain [figura 48] temos a figura
do ‘ermitão’ no primeiro e do ‘andador’ no segundo.
de uma obra pia a que estão devotados de maneira pessoal, devido a uma promessa que o mesmo
realizou como voto religioso de vida.
Embora o princípio da vida eremítica seja o ascetismo, o ermitão das Minas do Ouro é
reconhecido pela prática do ‘esmoler’, tendo sempre como função primordial o cuidado com uma
ermida ou oratório com altar. A prática da esmola é o distintivo do ermitão em Minas Gerais:
É pela esmola, que começa recolhendo de porta em porta, para uma destinação superior, que
tem princípio a vida do eremita mineiro. É quando ele se retira da comunidade dos homens. Aliás,
estamos usando o termo “eremita” no seu sentido mais genérico, que assim abrange também os
eremitas propriamente ditos – os solitários clássicos, isto é, os ascetas que vivem na solidão – como
os “ermitães”, que serão, segundo o direito eclesiástico corrente, os anacoretas postos no zelo das
ermidas. [...] Esses sarabaítas andejos também vagam, às vezes, pelos caminhos peregrinando de
capela em capela, de arraial em arraial.
[...] geralmente revestidos de uma espécie de samarra, preta, marrom ou azul, de grosso
e rústico burel, atada com uma corda à cintura, à franciscana, calçados de sandálias de
couro ou simplesmente descalços. Cobrem-se com rústicos chapéus desabados e se
arrimam em bordões robustos, para as longas caminhadas no sertão. “Deixam crescer a
barba” – descreve o Barão de Eschwege – e frequentemente descuram a cabeleira”.143
[...] uma pequena caixa, com relicário envidraçado, contendo uma imagem do santo de
sua devoção, que os fiéis beijam piedosamente, tirando o chapéu ou dobrando o joelho
[...] E quando recebem os óbolos – dinheiro, alimento, donativos em espécie, etc. –
destinados à obra pia a que estão devotados, quase sempre por força de uma promessa.
Essas promessas resultam de uma conversão, de uma cura milagrosa, de um obséquio
alcançado.144
A figura do ermitão com o seu oratório de esmoler foi recorrente nas histórias e lendas que
envolvem as religiosidades locais e, geralmente, tais ermitães tinham como ‘obra pia’ alguma grande
obra social de cunho assistencialista ou de propagação de culto como o chamado ‘Irmão Moreira’,
que fundou a Casa da Caridade e a ela anexa uma capela com a invocação de São João de Deus em
1783, atualmente a Santa Casa de Misericórdia e Capela de Nossa Senhora das Dores de São João
del-Rei145. O mesmo exemplo é visto através da atuação do Irmão Lourenço, fundador do atual
143 TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda,
1968, p. 91.
144 TORRES, João Camilo de Oliveira. op. cit. p. 91-92.
145 O irmão Moreira chama-se Manoel de Jesus Fortes, personagem singular do Setecentos nas tradições orais de São
João del-Rei. Há um retrato seu em traje de ermitão com um oratório de esmoler pendido ao pescoço, pintado à óleo
97
Seminário do Caraça, uma espécie de mosteiro leigo na época, sendo deixado em testamento a D.
João VI para ali instalar um colégio após a decadência do local146.
por Venâncio José do Espírito Santo no século XIX. Ver: GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei – Século XVIII
– História Sumária. São João del-Rei, Edição do Autor, 1996, p. 114-116.
146 TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil. São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda,
1968, p. 93.
147 OLIVEIRA, Monalisa Pavonne. Fé e distinção: um estudo da dinâmica interna e do perfil de irmãos da
Irmandade do Santíssimo Sacramento da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar do Ouro Preto (século
XVIII). Tese de doutorado pelo Programa de Pós-Graduação em História, Instituto de Ciências Humanas,
Universidade Federal de Juiz de Fora, 2016, p. 49.
148 OPA – Veste talar, sem braços, que corresponde ao ‘hábito’ ou veste distintiva de membros de Irmandades e
Confrarias, cuja cor era própria do orago de devoção ao qual a irmandade era devota.
98
2.1. Considerações teóricas e metodológicas acerca da abordagem sobre o catolicismo em Minas Gerais e cultura
material religiosa
Nessa etapa do nosso estudo, ao voltarmos o nosso olhar para religiosidade católica na Minas
colonial (séculos XVIII – XIX), se faz necessário estruturar alguns princípios teóricos e
metodológicos acerca da abordagem do fenômeno. A historiografia brasileira tem tratado do tema
– o catolicismo em Minas Gerais – a partir de variados pontos de vista, desde os estudos com viés
mais econômico e voltado principalmente para o ciclo do ouro (em consonância com a
urbanização, a produção artística e o enriquecimento/declínio das irmandades religiosas), aos
estudos culturais que se voltam para as dinâmicas sociais e simbólicas do fenômeno confrarial.
149 A ‘turma paulista’ que aqui citamos trata-se das célebres figuras do movimento modernista, como Oswald de
Andrade, Mário de Andrade, Tarsila do Amaral e outros, que buscaram formar um novo panorama na cultura brasileira
partindo das raízes nacionais. Ao buscar tais ‘raízes’, parte dessa ‘turma paulista’ viaja para Minas Gerais a fim de buscar
o Brasil ‘original’ e a partir daí construir uma nova estética nas letras, nas artes plásticas/visuais, na música. Uma das
grandes ‘descobertas’ dos modernistas foi a figura de Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, tido como o ‘artista
maior’ e representação do Brasil mestiço. O ícone torna-se símbolo da cultura nacional. A respeito do contexto
histórico e do fato mencionado, ver:
GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano: O paraíso barroco e a construção do herói nacional.
São Paulo: Editora José Olympio, 2012.
150 GUSMÃO, Eduardo. Uma religião sem caráter. Textos & Debates – Revista de Ciências Humanas da
forte caráter conservador, Diogo de Vasconcellos busca enaltecer a relevância central da Igreja na
formação da sociedade mineira, sendo a expressão da ‘catolicidade’ o fio condutor da história de
Minas Gerais.151
Outras obras da historiografia e das Ciências Sociais, clássicas, também serviram de modelo
para a escritura da história de Minas Gerais no que concerne ao tema da religiosidade católica.
Talvez a obra fundamental dessa historiografia seja Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda.
Nela, nos é apresentada uma das teses fundantes e que se tornou a matriz para interpretar o
fenômeno da religiosidade católica em Minas Gerais: a tese do ‘catolicismo de superfície’.
Essa ‘tradição’ iniciada com Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda teve vida
relativamente profícua na historiografia acadêmica. Um exemplo da ‘continuidade’ da tese do
catolicismo epidérmico e superficial seguiu com Thales de Azevedo. Sua obra O catolicismo no Brasil:
um campo para a pesquisa social (1955) também apostou no enquadramento das devoções e do culto
aos santos, culto tão familiar em Minas Gerais (assim como em toda América Portuguesa), como
expressão desprovida de profundidade, não se atendo ao que é essencial da fé católica.154
151 VASCONCELLOS, Diogo de. História da Civilização Mineira – Bispado de Mariana. Coleção Historiografia
de Minas Gerais: Série Alfarrábios. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014.
152 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004.
153 PRADO JÚNIOR, Caio. Evolução política do Brasil. São Paulo: Brasiliense, 1991.
154 AZEVEDO, Thales de. O catolicismo no Brasil, um campo para a pesquisa social. Bahia: EDUFBA, 2002
155 Nesse aspecto, a tendência é, de certo modo, iniciada em outra obra de João Camilo de Oliveira Torres, O homem
e a montanha, de 1943, que versa sobre a influência da situação geográfica na formação do chamado “espírito
mineiro”.
103
tradição iniciada com Diogo de Vasconcellos, porém, avança um pouco na questão da religiosidade
católica. Para Torres, a fé católica e a ortodoxia eclesial são elementos distintivos da História
nacional, formadora da identidade e alça a presença da Igreja como elemento de “salvação” da
História e do país.156 No entanto, mesmo tratando de religiosidade com certo tom ‘apologético’,157
certos aspectos da tese do catolicismo ‘de superfície’ ainda fazem eco em algumas de suas análises,
principalmente quando trata do papel dos ermitãos em Minas Gerais, por exemplo.158 Porém, com
História das Ideias Religiosas é que se inaugura, de certa forma, um certo ‘cuidado’ ao tratar da
religiosidade no Brasil colônia.
No campo das manifestações barrocas e das artes visuais em Minas Gerais nos séculos XVIII
e XIX, a historiografia mineira consegue dar um passo importante no entendimento da
religiosidade colonial mineira: surge Affonso Ávila. Nas décadas de 1970 e 1980, o poeta e ensaísta
mineiro reúne a crescente ‘primeira geração’ de historiadores da arte do Brasil, e estando a frente
do Centro de Estudos Mineiros da Universidade Federal de Minas Gerais lança a primeira edição
da Revista Barroco159. A publicação e as subsequentes edições da Revista Barroco, embora com foco
na produção artística da Minas colonial, foi também espaço de articulação de novas conceituações
acerca do papel da religiosidade católica.
Nesse contexto de renovação é que surge a obra Resíduos Seiscentistas em Minas (1967) e o
célebre O lúdico e as projeções do mundo barroco (1971). A obra O lúdico e as projeções do mundo barroco trata
das festividades religiosas da Minas colonial como expressão de uma sociedade e de um indivíduo
lúdico, que joga, que brinca, mas que também se angustia: eis o homem barroco160. O aspecto
central da obra – as festas religiosas – foi justamente o mais enquadrado como exterioridade pelos
‘clássicos’ da historiografia ao tratar das manifestações barrocas no período colonial, como aponta
por exemplo Sérgio Buarque de Holanda quando diz que a religiosidade dos colonos era “menos
atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior”.161
Será nos idos dos anos 1980 que o tema da religiosidade colonial parece triunfar na
historiografia. Laura de Mello e Souza lança O diabo e a terra de Santa Cruz: feitiçaria e religiosidade
popular no Brasil Colonial (1986) com material ainda inédito. Em consonância com a História Cultural,
156 TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil (A Igreja e a Sociedade Brasileira).
São Paulo: Editorial Grijalbo Ltda, 1968.
157 Ou seja, de defesa do catolicismo como verdade revelada.
158 TORRES, João Camilo de Oliveira. op. cit. p. 91-94.
159 PORTES, Bruce Souza. Barroco, queijo e goiabada – A construção conceitual de um barroco mineiro:
Affonso Ávila e a revista Barroco – 1969 a 2000. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História.
Universidade Federal de São João del-Rei. 2016, p. 96.
160 ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991.
161 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 150.
104
tendo como representantes os estudos inovadores de Roger Chartier e Carlo Ginzburg, Laura de
Mello e Souza utiliza de conceitos como o de “circularidade cultural” e “religiosidade popular”,
sendo categorias analíticas que, de certa maneira, revolucionaram o modo de interpretar as
manifestações religiosas da América Portuguesa. A partir de O diabo, ideias como ‘hibridismo’,
‘mestiçagem’ e ‘sincretismo’ começam a aparecer nas análises das manifestações religiosas coloniais,
implicando no reconhecimento da religiosidade como representação da circularidade étnica e as
relações de convívio entre linguagens que, antes opostas, agora se complementavam162. Porém,
ainda podemos perceber a ideia de ‘superficialidade’ na obra da historiadora, enquadrando certos
aspectos da religiosidade na velha tese.
A influência de Os leigos e o Poder nos estudos a posteriori foi marcante e a atenção dispensada
aos arquivos eclesiásticos das paróquias e antigas igrejas-matrizes das vilas e arraiais conferiu
importância aos acervos. Nunca se evidenciou tanto o papel das irmandades na história de Minas
Gerais e sua atuação se tornou um aspecto primordial de entendimento da religiosidade católica na
capitania. Porém, ao passo que Boschi contribui para a historiografia de Minas Gerais, observamos
a replicação da tese do ‘catolicismo de superfície” como caráter indissociável das manifestações
religiosas.
À guisa de conclusão desse breve balanço historiográfico, verificamos cada vez mais a
presença de estudos sobre as diversificadas dimensões da religiosidade católica no período colonial.
Na década de 1990, Riolando Azzi, Sérgio Chahon, Ronaldo Vainfas, Luiz Mott e outros tantos
autores se dedicaram-se especificamente à História da Igreja, da religiosidade doméstica, da vida
privada (e os intercâmbios com religião) e práticas religiosas coloniais. Nessa mesma década, não
poderíamos deixar de citar o pioneiro e importantíssimo trabalho da historiadora Adalgisa Arantes
Campos, A terceira devoção do Setecentos mineiro: o culto a São Miguel e Almas (1994). Certamente, um
estudo que já nascera como um clássico. Republicado como livro tem tempos mais recentes sob o
título, As irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no Setecentos Mineiro (2013),
162 SOUZA, Laura de Mello e. O diabo e a terra de Santa Cruz. São Paulo: Companhia das Letras, 1986.
105
Adalgisa mobilizaria uma extensa documentação nos arquivos mineiros e portugueses, assim como
analisando as representações artísticas do período (século XVIII) produzidas na antiga capitania e
igualmente na outrora metrópole portuguesa, a extensão e importância cultural do culto a São
Miguel a às Almas do Purgatório, as “benditas”.163 A autora nos apresentaria, através das obras
artísticas e dos documentos, o significado histórico, artístico e social do culto a São Miguel e às
Almas, demonstrando o modo de organização das irmandades, do culto e da política confrarial.
Exploraria também o sentido simbólico e teológico desse culto tão popular na Minas Setecentista,
além de também abordar questões importantes, como a política dos ofícios, procissões e
sepultamentos, demonstrando o elevadíssimo grau de interpenetração entre a Igreja e o Estado
Português.164
Pois bem. Após esse breve balanço historiográfico, delimitamos nesse momento a nossa
postura conceitual e metodológica no estudo da religiosidade católica em Minas Gerais e a cultura
material religiosa que serviu de apoio para o exercício da mesma. De antemão, entendemos que a
tradição historiográfica e os clássicos não devem ser ignorados, mas antes, problematizados e
ressignificados. Nesse sentido, nos utilizaremos dos clássicos para embasar dados e contextos no
que tange à abordagem da temática da religiosidade católica em Minas Gerais. Porém, consideramos
em particular a tese do “catolicismo de superfície, epidérmico e exterior” uma categoria
ultrapassada e superada pela atual historiografia, não cabendo como categoria analítica para o
presente estudo.
163
CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto e iconografia no
Setecentos mineiro. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2013, p. 37-38.
164 CAMPOS, Adalgisa Arantes. op. cit. p. 17-26.
106
estudar a história do catolicismo popular brasileiro deve procura-lo no seu próprio espaço vital”165
pois:
[...] que, no âmbito da historiografia brasileira, remonta pelo menos a Sérgio Buarque de
Holanda. Para ele, o brasileiro vive uma “religiosidade de superfície, menos atenta ao
sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior, quase carnal em
seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda verdadeira
espiritualidade”. Ninguém parece ter se dado conta de que a palavra “exteriorismo” só
aparece no discurso elaborado pelas elites (eclesiásticas, intelectuais) sobre a religião do
povo, mas nunca na fala do próprio povo166.
Partindo dessa perspectiva, a religiosidade católica em Minas Gerais não pode ser
interpretada como uma manifestação somente apegada à pompa e ao exterior, pois até mesmo a
dita ‘pompa’ possui um significado para a sociedade em seu tempo e espaço. Considerar tais
manifestações como simples ‘exteriorismo’ resultaria num anacronismo grosseiro, já que “toma por
pressuposto a ideia de que determinadas práticas religiosas são marcadas pela escassez e mesmo
ausência de conteúdo”167.
165 MATA, Sérgio da. Chão de Deus – Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais,
Brasil. Séculos XVIII-XIX. Berlin: Wiss, Verl. 2002, p. 83-84.
166 MATA, Sérgio da. op. cit. p. 84.
167 MATA, Sérgio da, op. cit. p. 84.
107
Portanto, para o estudo dos oratórios enquanto objetos de cultura material religiosa, é
possível:
[...] compreender que tanto numa coleção particular, quanto numa coleção
institucionalizada de museu, o oratório representa um símbolo que fornece informações
sobre os objetos religiosos, ora de uso devocional, ora de uso litúrgico, ainda que tenham
que perder os préstimos para os quais foram concebidos 169.
Nisso, observamos que os estudos dos objetos de cultura material, principalmente de uso
religioso, possuem uma importância vital, no sentido de que podemos compreender “os
fenômenos sociais a partir de sua materialidade (corporal, objetual), e não unicamente pelo sistema
de signos”.170 Porém, não deixamos de lado a questão iconológica, pois a leitura e interpretação da
iconografia cristã nos aponta, justamente, os aspectos sociais e a historicidade dos objetos que
estudamos. Para isso, nos utilizamos de Erwin Panofsky pois estudar os oratórios domésticos em
Minas Gerais como imagem é apreender o seu significado intrínseco, e este:
[...] é apreendido pela determinação daqueles princípios subjacentes que revelam a atitude
básica de uma nação, de um período, classe social, crença religiosa ou filosófica –
qualificados por uma personalidade e condensados numa obra. [...] A descoberta e
interpretação desses valores “simbólicos” (que, muitas vezes, são desconhecidos pelo
próprio artista e podem, até, diferir enfaticamente do que ele conscientemente tentou
expressar) é o objeto do que se poderia designar por “iconologia” [...].171
Sendo assim, o estudo do papel dos oratórios domésticos no panorama geral da religiosidade
católica na Minas colonial possui relevância, no sentido de que o entendimento dos objetos de
cultura material como chaves para a compreensão da história demonstra ser promissor pois “todo
168 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte – A construção histórica do acervo de
oratórios brasileiro, séculos XVIII-XIX. São Paulo: Editora Alameda, 2014, p. 21-23.
169 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op. cti. p. 22.
170 RUSSO, Silveli Maria de Toledo, op. cit. p. 23.
171 PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 52-53.
108
objeto material tem uma trajetória, uma biografia, e para traçar e explicar as biografias dos objetos
faz-se necessário examiná-los nas diversas modalidades e efeitos de apropriação de que fizeram
parte”.172
2.2. O catolicismo em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX – um breve panorama
Para compreendermos o fenômeno da religiosidade católica nas Minas Gerais nos séculos
XVIII e XIX, devemos voltar o nosso olhar para os fatores principais que determinaram o
estabelecimento do catolicismo no território aurífero: a ausência de ordens religiosas e a ação do
sistema associativo leigo. Ambos foram abundantemente tratados pela historiografia brasileira,
principalmente no que tange ao sistema do Padroado Régio e a política colonizadora e civilizatória
das Irmandades leigas em Minas Gerais. Além disso, na tentativa de apreender as características
formais da vida religiosa na antiga Capitania, necessitamos aqui neste capítulo determinar como
foco de nossa análise três características distintas de tal vivência religiosa, sendo:
(3) a presença de fatores materiais que pertenciam a uma dinâmica de culto católico,
favorecendo práticas religiosas que se tornavam concorrentes e ao mesmo tempo complementares
à ‘religiosidade oficial’.
Empregamos o termo plural ‘fatores materiais’ para nos referirmos à cultura material, no
sentido de que a mesma se constitui como uma série de objetos que possuem uma representação,
uma “sequência de signos metacríticos cujo sentido mantém-se disperso por toda uma variedade
de atribuição e apropriação, sendo permanentes enquanto significantes, mas necessariamente
fluidos enquanto significados”.173 Nesse caso, refiro-me aos objetos deste estudo, os oratórios
domésticos, como objetos de cultura material, testemunhas oculares da devoção de homens e
mulheres no Setecentos e Oitocentos mineiro.
172 MENESES, Ulpiano Bezerra de. Memória e Cultura Material: documentos pessoais no espaço público. Apud
RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte... São Paulo: Editora Alameda, 2014, p. 26.
173 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op. cit. p. 22
109
Numa terra antes habitada pelo gentio175, a Igreja se fez presente a partir da instituição das
irmandades, confrarias e ordens terceiras, tendo essas edificado seus templos, ermidas, capelas e
desenvolvendo ao redor destas as primeiras vilas e arraiais. A institucionalização de tais irmandades
e o desenvolvimento e estruturação da sociedade mineira são dois fenômenos que caminham
juntos, elos indissociáveis e interdependentes.176
De acordo com Boschi, o Estado Português impôs, como política religiosa e administrativa,
a proibição de entrada e fixação de ordens religiosas (congregações) no território mineiro, o que
fez com que os leigos se organizassem em organismos que possuíssem poder e autonomia de
contratar religiosos para os ofícios divinos e a construção de templos em honra aos seus oragos
nos séculos XVIII e XIX.177 Essa proibição foi motivada pela concepção das autoridades
portuguesas de que os religiosos regulares “eram responsáveis pelo extravio de ouro, e por insuflar
a população ao não pagamento de impostos”.178
[...] fortalecer a saúde financeira do Estado Português, mas não pelos motivos
oficialmente alegados. Em Portugal a Igreja detinha um enorme poder econômico, e por
vezes ameaçava sobrepujar o da própria Coroa. Numa sociedade em que a maior
preocupação em vida era (ou deveria ser) a salvação após a morte, uma gigantesca
quantidade de bens acabava por reverter-se à Igreja, administradora que é dos bens de
salvação.179
174 FRANCO, Suely Campos. Elementos residuais da alma barroca luso-brasileira em uma cidade da Minas colonial: A
Igreja Católica em São João del-Rei/Minas Gerais/Brasil. VIII Congresso Luso-Brasileiro de Ciências Sociais.
Coimbra. Setembro de 2004. p. 3.
175 Para a questão da população autóctone de Minas Gerais, ver: RESENDE, Maria Leônia Chaves de. Brasis
Coloniales: o gentio da terra nas Minas Gerais Setecentista (1730-1800). Preparared for delivery at the 2001
meeting of the Latin American Studies Association, 2001, Washington DC, September, 2001.
176 BOSCHI, Caio. Os leigos e o poder: Irmandades Leigas e Política Colonizadora em Minas Gerais. São
contos”.180 Fica claro, portanto, que a proibição das Ordens em Minas teve como consequência
uma débil presença institucional da Igreja, o que fez com que a religiosidade formatada na antiga
Capitania fosse organizada pelos leigos através de suas irmandades, confrarias e Ordens
Terceiras181.
Aliás, não apenas a proibição de Ordens Religiosas imperava por decreto nas Minas, mas
também havia um relativo controle da entrada de indivíduos que no território desejava se
estabelecer. A própria geografia, com topografia acidentada,182 em consonância com as restrições
administrativas foram obstáculos consideráveis para a proto-urbanização da Capitania. Porém,
devemos levar em consideração que tais obstáculos não podem ser “superestimados” pois o surto
imigratório de outras capitanias e de Portugal para as Minas foi considerável “após as primeiras
descobertas de ouro no final do século XVII”.183
Tratando dos indivíduos que se estabeleceram nas Minas, toda sorte de gente buscou o
enriquecimento com a descoberta do ouro e, logo depois, dos diamantes. A busca pela riqueza foi
empreendida por baianos, paulistas e principalmente portugueses reinóis. Tais indivíduos
importaram costumes e práticas culturais de cunho marcantemente religioso. Tal religiosidade é o
que nos interessa.
O marco fundacional dos primeiros povoados e vilarejos mineiros foi em torno das igrejas,
sobretudo das capelas primitivas (que cederiam lugar para as opulentas igrejas matrizes em época
oportuna).
Embora simples em sua arquitetura, as primitivas capelas foram o núcleo e o eixo vital
dos arraiais, e delas emanaram as normas de comportamento para as pequenas
comunidades. E, assim, por seu elemento catalisador, desde o início, necessitaram de
bases mais sólidas. Guardadas as proporções, os primeiros templos da região fugiram à
fragilidade e à instabilidade das construções coevas. Como estas, eles também eram de
taipa, pau-a-pique ou adobe, mas recebiam reforços de madeira de lei, tornando-se, por
isso, os únicos elementos estáveis naquela sociedade embrionária 184.
Tais capelas são importantes no campo do simbólico justamente pelo seu caráter
permanente, pois representavam segurança para aqueles que se fixavam nas Minas. Aliás, a origem
“isolamento do homem mineiro”, embora a tese do ‘isolamento’ não seja mais sustentável na historiografia atual. No
entanto, é interessante considerar alguns aspectos dessa tese. Para essa questão, ver: TORRES, João Camilo de Oliveira.
O homem e a montanha – Introdução ao estudo das influências da situação geográfica para a formação do
espírito mineiro. Coleção Historiografia de Minas Gerais, Série Alfarrábios. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011.
183 MATA, Sérgio da. op. cit. p. 81.
184 BOSCHI, Caio. op. cit. p. 21-22.
111
da vila e pequenos arraiais em torno de um edifício religioso nos indica o papel central que a religião
teve na formação social, urbana, cultural e espiritual dos mineiros. Será justamente pela ação direta
de tais indivíduos, leigos reunidos em irmandades, que serão construídos os principais locais de
sociabilidade, como os oratórios públicos e as capelas, assim como os locais de assistência, como
as Casas de Misericórdia.
Sobre esse aspecto ‘leigo’ da religiosidade, o papel dos portugueses que se estabilizaram em
Minas foi importante, pois sua presença na Capitania conferiu à religiosidade um aspecto
marcantemente luso. Observamos que
O caráter marcadamente lusitano da religião e da cultura do povo mineiro tem suas raízes
na corrida do ouro setecentista. Calcula-se entre 8.000 e 10.000 o número de aventureiros
que embarcavam anualmente do Reino para as Minas, razão pela qual medidas restritivas
foram tomadas já a partir de 1709. Daí – constata [...] serem os mineiros, dentre os vários
grupos regionais das nossas populações, talvez aquele em que mais se conservam os
aspectos lusitanos de nossa cultura187.
de exemplo no campo das artes, tivemos não apenas simples aventureiros, mas também pessoas
com ofício como Antônio Pereira de Souza Calheiros, Pedro Monteiro de Souza, Francisco de
Lima Cerqueira e muitos outros que, saídos principalmente da cidade de Braga, se estabeleceram
em Minas Gerais, trazendo conhecimentos técnicos e os estilos artísticos Barroco e Rococó na
arquitetura civil e religiosa.188 Foram tais homens que, junto à mão de obra local, erigiram os
opulentos templos que hoje povoam a paisagem das Minas, assim como socializaram seus saberes
a partir do estabelecimento de oficinas locais ou itinerantes189.
Uma questão importante e de denotada relevância para a nossa análise é levantada pelo
historiador Sérgio da Mata em sua obra Chão de Deus, a respeito do caráter lusitano da religiosidade
mineira, quando diz:
Como e porque Minas manteve durante tanto tempo este perfil, a despeito da presença
de brasileiros vindos de outras capitanias bem como um percentual elevado de escravos
e negros livres? Um primeiro marco no processo de auto-definição da cultura mineira se
deu provavelmente por ocasião das escaramuças travadas entre paulistas e “emboabas”
pelo controle da mineração no Rio das Mortes em 1709. A derrota dos paulistas [...]
parece assinalar a afirmação do modelo civilizacional lusitano nos momentos iniciais da
história da capitania190.
Somado a esse aspecto, um outro também se apresenta como definidor do caráter luso da
religiosidade mineira, pois
[...] sabe-se que a grande maioria (dos portugueses) adveio de províncias do norte do
Reino [...] onde desde os primórdios da formação da nacionalidade portuguesa,
desenvolveu-se um catolicismo profundamente marcado pela experiência da guerra de
Reconquista. Um catolicismo, portanto, inclinado à rejeição de qualquer forma de
alteridade religiosa. Pouco permeável simbolicamente 191.
188 OLIVEIRA, Eduardo Pires de. Minho e Minas Gerais no Séc. XVIII. Braga: Edição do Autor (com apoio da
Câmara Municipal de Braga), 2016.
189 Para um maior aprofundamento da questão do estabelecimento de oficinas – ou mesmo ‘escola – artística de caráter
regional, ver: SILVA, Kellen Cristina. O Caminho das Flores: Estudo iconológico sobre a “Escola de Artes do
Rio das Mortes” e o modelo intencional de encomenda – Minas Gerais (c. 1785-1841). Tese (doutorado).
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas – Universidade Federal de Minas Gerais, 2018.
190 MATA, Sérgio da. op. cit. p. 82.
191 MATA, Sérgio da, op. cit. p. 82.
192 MATA, Sérgio da, op. cit. p. 82.
113
***
Ao utilizarmos o termo ‘piedade’, o usamos de acordo com o seu sentido no século XVIII,
tratando-se de “devoção e respeito a Deus e às coisas sagradas197”. Tal piedade, aliada ao decoro,
Português moderno as mesmas se organizavam de acordo com a estratificação social e as posições hierárquicas,
clientelares e principalmente ligadas à nobreza ou pureza do sangue. A herança medieval, no que condiz ao culto dos
santos, fora reforçado por decreto no Concílio Tridentino, o que faz com que o Império Português, da metrópole às
colônias, seja marcado pelas efusivas manifestações em honra da numerosa corte celeste.
CAMPOS, Adalgisa Arantes. O mecenato dos leigos – Ordens terceiras, irmandades e religiosidade popular. In: Arte
Sacra no Brasil Colonial. Belo Horizonte: Editora c/Arte, 2011.
196 A concepção do barroco não apenas como periodização da arte europeia, mas como uma expressão do homem nas
artes, no pensamento e na mentalidade é defendida nas obras de referência: MARAVALL, José Antonio. A cultura
do barroco. São Paulo: Edusp, 2009 e ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo:
Editora Perspectiva [Coleção debates], 1971.
197 BLUTEAU, Raphael. Vocabulario Portuguez e Latino, áulico, anatômico, architectonico, bellico, botânico,
brasílico, comico... Autorizado com Exemplos dos Melhores Escritores Portuguezes, e Latinos, e oferecido a El-Rey
de Portugal, D. João V. Pelo Padre D. Raphael Bluteau, Clerigo Regular, Doutor na Sagrada Theologia, Prêgador da
Rainha de Inglaterra, Henriqueta Maria de França, & Calificador no Sagrado Tribunal da Inquisição de Lisboa.
114
serviu de aparato ético para as manifestações religiosas, assim como também serviu como doutrina
no campo da empresa do urbanismo, da arquitetura e das artes (sobretudo religiosa) em Minas198.
[...] se expressaria por atos externos, pelo culto aos santos e não por reflexões dogmáticas;
muito mais por procissões e ritualismos que por introspecção espiritual. A magnificência
das cerimônias religiosas não se opunha uma religião consistente e aprofundada na fé.
Acrescente-se ainda que, a religião em Portugal, desde as origens como nação
independente, fora uma fusão de elementos étnicos diversificados (romanos,
muçulmanos, judeus, etc). Etnia tão diversificada geraria uma religião essencialmente
sincrética e eclética. O resultado foi uma religião exteriorista, epidérmica, caracterizada
por um ‘ritualismo festivo’, tão ao gosto da época [...].201
[...] menos atenta ao sentido íntimo das cerimônias do que ao colorido e à pompa exterior,
quase carnal em seu apego ao concreto e em sua rancorosa incompreensão de toda
verdadeira espiritualidade; transigente, e por isso mesmo que pronta a acordos, ninguém
pediria, certamente, que se elevasse a produzir qualquer moral social poderosa.202
Coimbra, no Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu, com todas as Licenças Necessárias. Ano Domini 1713, p.
500. | BBM/USP
198 BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila
Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese doutoral. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo.
São Paulo, 2009.
199 VIDE, Sebastião Monteiro da, Arcebispo. Constituições primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e
ordenadas pelo Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide: propostas, e aceitas
em o Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de 1707. São Paulo: Na
Typographia. 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes. Reimpressão de 1853. p. 257 | BSF/DF
200 MATA, Sérgio da. Religionswissenschaften e crítica da Historiografia da Minas Colonial. Revista de História. FFLCH-
Tais interpretações, porém, devem ser analisadas sob o prisma dos preconceitos dos
viajantes, principalmente protestantes, que tanto em Portugal como na América Portuguesa
interpretaram as manifestações religiosas como atos de ignorância, superstição e obscurantismo,
não se tratando de uma religião com profundidade e elevada interioridade.203 Além disso, a própria
historiografia brasileira na primeira metade do século XX, apropriando-se da crítica dos viajantes e
cronistas do período colonial, reiteraram a tese do catolicismo epidérmico e de superfície como
podemos observar em Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda e Casa Grande & Senzala:
Formação da família brasileira sob o regime da economia patriarcal de Gilberto Freyre, como vimos
anteriormente no início deste capítulo.
É a partir das categorias distintivas: hipérbole, fausto, pompa e persuasão que conseguimos,
de certa maneira, apreender o caráter distintivo da religiosidade mineira dos séculos XVIII e XIX.
Será, principalmente no Setecentos, que Igreja e Estado, sob o comando e patrocínio das
associações leigas, utilizarão das categorias distintivas acima mencionadas para demarcar posição e
exercer a fé católica a partir dos dois aspectos já mencionados e deveras importante para esta
análise: a piedade/decoro e o culto aos santos.
203 Tal discussão pode ser observada na dissertação de mestrado de Aparecido Barbosa, defendida no Centro de
Ciências Humanas e Sociais Aplicadas da Pontifícia Universidade Católica de Campinas em 2017, com o título:
Religião e cultura no Brasil oitocentista. Um estudo a partir dos relatos de viagens de Auguste de Saint-
Hilaire (1808-1853). Observa-se, porém, que a crítica não vinha apenas dos protestantes, mas até mesmo entre os
católicos, como observado – no caso do Brasil – no moralista Nuno Marques Pereira, autor do Compêndio narrativo do
peregrino da América, de 1728.
204 LEITE, Ilka Bonaventura. Antropologia da viagem – escravos e libertos em Minas Gerais no século XIX.
Tal aspecto lúdico e teatral foi designado por Affonso Ávila como ‘festa barroca’,
manifestação tridentina por excelência. É a ‘festa barroca’, onde a dicotomia entre sagrado e
profano é adocicada pelo elemento do lúdico e da persuasão. A piedade/decoro religiosos, que nas
Constituições evocam uma ideia de austeridade e compenetração no ofício divino, na realidade é
contraditoriamente pautada pelos arroubos efusivos de secularismo, onde, por exemplo,
personagens excêntricos como ‘bufões’207 com suas espalhafatosas coreografias faziam companhia
ao Santíssimo Sacramento que porventura desfilasse em procissão. Tal cenário deveras interessante
ocorreu no ano de 1733 em Vila Rica, nas festividades que ficaram conhecidas como Triunfo
Eucarístico.
No longo cortejo, para o qual se abriu uma nova rua ligando os dois templos, viam-se
em ricos trajes de gala as diversas irmandades de brancos, pardos e negros já existentes
então em Vila Rica e, em torno delas e seus estandartes e santos padroeiros, uma
complexa trama coreográfica em que se mesclavam grupos de dançarinos, conjuntos
musicais, carros de triunfo, personagens a cavalo, alegorias mitológicas, cartazes com
poemas alusivos ao acontecimento, etc., buscando cada figurante realçar mais a sua
original indumentária feita de seda, veludo ou damasco e adornada de ouro e pedraria. A
arquitetura e a escultura do efêmero salientavam-se nas ruas ornamentadas de arcos,
mastros, guirlandas e outros artefatos plástico-visuais, com as casas vistosamente
alcatifadas de colchas e cortinas nas janelas, sendo que à noite o ambiente ganhava uma
atmosfera feérica, seja pelas luminárias acesas por toda a vila, seja pelos castelos de fogos
e jogos pirotécnicos208.
O Triunfo Eucarístico de Vila Rica, que marcou a solene e piedosa transladação do Santíssimo
Sacramento da Igreja de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos para a recém-inaugurada Igreja
Matriz de Nossa Senhora do Pilar, foi marcado justamente pelo júbilo e vivacidade ‘carnavalescos’
que, numa análise mais descuidada, poderia indicar uma insuficiente piedade e reverência. Tal
festividade (tridentina por excelência, no quesito da ênfase e devoção generalizada pelo Santíssimo
Sacramento, e por definição expressivamente Barroca, no sentido da forma artística manifestada
através da hipérbole discursiva e iconográfica) demarca, através do peso visual efusivo e explícito
caráter festivo, uma manifestação religiosa de cunho ‘popular’, porém contraditoriamente
demarcadora de posições e estratos sociais altamente hierarquizados.
Nas palavras do narrador das festividades do Triunfo Eucarístico, Simão Ferreira Machado,
a majestosa procissão nada tinha de exterior ou profana, mas um verdadeiro “desígnio da
providência divina, recompensa da fé, que ensina, serem dádivas de Deos as riquezas, e todos os
bens temporaes”.209 De acordo com Affonso Ávila,
[...] observa Werner Weisbach que a Companhia de Jesus, no seu ministério contra
reformista, empregou eficazmente como meios de propaganda “a satisfação do gosto e
da suntuosidade” e que nas “festividades religiosas da Ordem se desenvolvia um
magnífico fausto com todo gênero de ostentação”. Entre essas festividades, ganhavam
especial relevo as procissões, que ensejavam à Igreja uma fulgurante demonstração de
prestígio temporal e aos fiéis a expressão de certo desprendimento pelos bens e riquezas,
prodigamente ofertados para maior brilho de tais solenidades religiosas.211
No caso específico das festividades do Triunfo Eucarístico, por tratar-se de uma solenidade
voltada para a exaltação do Santíssimo Sacramento, o intuito de causar comoção e espanto através
do fausto e da ostentação não se destina somente aos católicos, mas sobretudo aos não católicos,
aos hereges e principalmente aos protestantes que negavam o dogma da transubstanciação durante
a Reforma212. Sendo assim, a pompa católica não se justifica como exterioridade, mas como
devoção pautada pelos arroubos efusivos de um barroquismo que se manifesta não apenas nas
artes, mas também nas mentalidades213.
209 MACHADO, Simão Ferreira. Triunfo Eucharistico, Exemplar da Christandade Lusitana [...] In: ÁVILA,
Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971. p. 115
210 ÁVILA, Affonso. op. cit. p. 115
211 ÁVILA, Affonso. op. cit. p. 115-116
212 ÁVILA, Affonso, op. cit. p. 116
213 VILLARI, Rosário. O homem barroco. Lisboa: Editorial Presença, 1995.
118
[...] um clima fúnebre e algo etéreo; um tempo suspenso entre a vida e a morte, foi criado
na igreja, por dois coros, dois rabecões e um cravo [...] O contraste da sombra, da vida e
da morte, tão ao gosto do barroco, ficava evidenciado pelo jogo de claro/escuro. Durante
as exéquias de D. João V em São João del-Rei, o mausoléu fúnebre então construído e a
Igreja onde se realizou a missa foram cobertos de “poemas e inscrições dísticos, epitáfios
e esqueletos que, ao mesmo tempo que todo o corpo deste templo, horrorizava a vista
para estimulo da dor”.214
O caráter hiperbólico da dor enquanto sentimento real pela perda do monarca é denotado
ainda mais pelo caráter cenográfico da solenidade.
Os altares foram cobertos de cortinas negras, com fitas de veludo acentuando a escuridão.
Antes de iniciar o serviço, os altares foram iluminados e no mausoléu se acendeu uma
pira de luzes, “que vomitavam incêndios de um amor penalizado, ateados no sentimento,
sem os poder apagar o pranto, pretendiam desafiar as estrelas do céu, pelo sol que nos
roubara”215.
214 FURTADO, Júnia Ferreira. Desfilar: A procissão barroca. Revista Brasileira de História. São Paulo. V. 17, nº 33.
1997, p. 257-259.
215 FURTADO, Júnia Ferreira. op. cit. p. 259.
119
O breve tratamento destes dois exemplos (que poderiam também estar ao lado da igualmente
‘magnífica, pomposa e pitoresca’ festividade do Áureo Trono Episcopal que ocorreu com grande
fausto e pompa em Mariana, por ocasião da criação do bispado em 1748) serve-nos de panorama
para entender o fenômeno da religiosidade católica em Minas Gerais a partir da sua predileção pelas
formas propagandísticas da fé. Além disso, observamos que as manifestações de fé se uniam
também às representações de uma sociedade estamental de Antigo Regime, que se fazia presente
(e se fazia representar) na dimensão pública do culto divino. Por isso, a organização da sociedade
mineira em irmandades e Ordens Terceiras “se faz como que resultante da segregação racial da
sociedade”,216 além é claro, da segregação econômica, o que faz com que os indivíduos pertencentes
a essas associações realizem competições “entre si religiosa e esteticamente”,217 a fim de garantir o
seu lugar na sociedade.
Junto ao ‘decoro’ ritualístico – com forte estética hiperbólica – o culto aos santos (como
citamos anteriormente) foi o principal fator de propulsão para a vida religiosa em Minas Gerais.
Além disso, a fé nos santos (enquanto companheiros divinos) se mostrou essencial num contexto
de dificuldades cotidianas, como no período colonial. Nas palavras de Thales de Azevedo, a
religiosidade católica era essencialmente:
[...] não expiatória, mas propiciatória e impetratória; uma religião de santos, não tanto de
sacramentos; uma religião “privatizada” em capelas e oratórios domésticos e menos
centralizada em uma igreja matriz; uma religião na qual se “recebe” o batismo e o
matrimônio, mas em que esses sacramentos conservam pouco de sua função social; os
conceitos de pecado e culpa, salvação e danação, céu e inferno são pouco cultivados, o
que lhes confere um débil poder prescritivo; os santos não funcionam tanto como
exemplos de vida moral, mas como amos diante de uma forma religiosa que corresponde
aos que lutam cotidianamente pela sobrevivência [...].218
Cabe alertar acerca da postura de Thales de Azevedo, quando qualifica (junto com a
historiografia de seu tempo) a religiosidade católica como ‘exterior’, pois o autor vai de encontro
ao pensamento dos primeiros ensaístas do catolicismo popular e colonial do Brasil, como citamos
anteriormente. Porém, a característica principal do catolicismo popular e colonial – para Azevedo
– em ser uma ‘religião dos santos’, explica o surto artístico e o uso deliberado das imagens sacras
em âmbito sagrado e profano, principalmente em ambiente doméstico.
216 ÁVILA, Cristina. A palavra no espelho – Os reflexos da imagem no barroco mineiro. Belo Horizonte: Instituto
Cultural Amílcar Martins, 2016. p. 21.
217 ÁVILA, Cristina. op. cit. p. 21
218 AZEVEDO, Thales de. O catolicismo no Brasil, um campo para a pesquisa social. Bahia: EDUFBA, 2002,
p. 185.
120
A sociedade mineira nos séculos XVIII e XIX tinha como predominância o aspecto religioso
da vida e do cotidiano, e tal predominância abrangia todas as camadas sociais e raciais219. O culto
aos santos aparece como fator de necessidade para a época, onde os santos não serviam apenas
como modelos de virtude, mas a sua própria vida – representada iconograficamente – tornava-se
símbolo de reconhecimento do fiel para a sua ‘especialidade’ na vida prática do suplicante. Disso
temos as prevalências iconográficas no território mineiro, fruto da devoção que não é desligada da
dinâmica do cotidiano. Sant´Ana como protetora das mães, mas também dos mineiros, Santo
Antônio para achar os bens perdidos, as diversas invocações de Nossa Senhora que atendiam nos
momentos de alegria e tristeza, assim como demarcava a proteção nos processos de nascimento e
morte. Além disso não podemos esquecer dos papéis sociais que as devoções exerciam, como no
caso dos negros escravos ou libertos que tinham como patrona Nossa Senhora do Rosário, seguida
dos santos negros como São Benedito, Santa Efigênia e Santo Elesbão, parceiros de vida e auxílio
nas dificuldades do cativeiro e do pós-abolição.
Cristo, Nossa Senhora e os santos já não aparecem como entes privilegiados e eximidos
de qualquer sentimento humano. Todos, fidalgos e plebeus, querem estar em intimidade
com as sagradas criaturas e o próprio Deus é um amigo familiar, doméstico e próximo –
o oposto do Deus “palaciano”, a quem o cavaleiro, de joelhos, vai prestar sua
homenagem, como a um senhor feudal.220
O intimo trato entre fiel e santo também adquiriu em Minas Gerais – embora tenha sido
tendência observada em toda América Portuguesa – níveis de exacerbado personalismo das
representações sagradas. De origem ibérica, o modo de vestir anacronicamente os santos com
roupas contemporâneas contribuiu para com a imaginação dos fiéis no modo de se relacionar com
os mesmos. As notáveis imagens de vestir [figuras 52-53], articuladas e providas de vestimentas
de tecido, produziam na época uma sensação de realismo que as tornou populares. De tamanhos
variados, as imagens de vestir atendiam às procissões por serem leves e dinâmicas (assim como as
imagens de roca) e também para os oratórios particulares, pela singeleza, principalmente por
possuírem um valor mais modesto em relação à imaginária talhada em madeira maciça.
219 Tese principal da obra: OLIVEIRA, Pedro. Religião e dominação de classe: gênese, estrutura e função do
catolicismo romanizado no Brasil. Petrópolis: Vozes, 1985.
220 HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 149.
121
Tais imagens, por possuírem um corpo desnudo [figura 53] e necessitando especialmente
dos cuidados do seu proprietário, tornaram-se motivos de galhofa em inúmeras ocasiões. Pensando
nessas imagens tão ‘humanizadas’ não apenas como representação, mas manifestação221 do sagrado,
implica interpretá-las como seres dotados de poder e capacidade de sentir. Embora para nós seja
absurda tal ideia, na colônia os católicos menos ‘ortodoxos’ na interpretação da fé utilizavam de
tais imagens, por exemplo, em ‘cópulas sacrílegas’ ou até mesmo as agrediam fisicamente.222 Ora, a
irreverência para com o sagrado podia indicar “quem sabe um desejo efetivo de humanizar Deus e
torná-lo mais próximo”.223
E as antigas [imagens] que se costumão vestir, ordenamos seja de tal modo, que não se
possa notar indecencia nos rostos, vestidos, ou toucados: o que com muito cuidado se
guardará nas Imagens da Virgem Nossa Senhora; porque assim como depois de Deos
não tem igual em santidade, e honestidade, assim convêm que sua Imagem sobre todas
seja mais santamente vestida, e ornada. E não serão tiradas as Imagens das Igrejas, e
levadas a casas particulares para nelas serem vestidas, nem o serão com vestidos, ou
ornatos emprestados, que tornem a servir em usos profanos. 225
221 E aqui podemos mais uma vez pensar em hierofania: a manifestação do sagrado através da matéria-prima.
222 VAINFAS, Ronaldo. Moralidades Brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade escravista. In:
NOVAIS, Fernando A; SOUZA, Laura de Mello e. História da vida privada no Brasil: Cotidiano e vida privada
na América Portuguesa. Vol. 1. São Paulo: Companhia das Letras, 1997. p. 248.
223 VAINFAS, Ronaldo. op. cit. p. 249
224 Constituições Primeiras. p. 256. | BSF/DF
225 Constituições Primeiras. p. 256. | BSF/DF
122
A preocupação para com a imaginária sacra se dava justamente pelos delitos sempre
crescentes dos colonos, índios e escravos, todos delatados na Inquisição. O zelo especial para com
as imagens de Nossa Senhora nessa época, por exemplo, deve-se justamente por esta ser
“especialmente sexualizada, quando não cobiçada”.226
Embora tais ‘heterodoxias’ façam parte da dinâmica religiosa de caráter popular, elas podem
ser consideradas exceções. No panorama geral, o culto aos santos ocupa uma imensa importância
na vivência cotidiana do catolicismo em Minas Gerais. Ora, “o cotidiano é estruturalmente marcado
pela devoção a eles”.227 Sendo assim, a posse de imagens de santos, desde os mais populares aos
mais eruditos, atendiam ao anseio de estar perto dos seus amigos celestiais, exemplos de moralidade
e protetores contra as intempéries e dissabores da vida terrena. Ao desviarmos o nosso olhar, não
mais se atentando para o que ocorre ‘aos olhos de todos’ (ou seja, as manifestações públicas e
coletivas da religiosidade) mas para o recolhimento do lar, a função dos santos parece alcançar
níveis de elevada importância na vida cotidiana dos fiéis. É nesse caso que os oratórios domésticos
figuram como igrejas domésticas, pequenos edifícios, retábulos e armários que abrigam a corte
celestial pessoal de cada indivíduo ou de um grupo, nesse caso, a família.
2.3. Devoção e piedade privatizadas: os oratórios domésticos em Minas Gerais – aspectos históricos, religiosos e
iconográficos
Como vimos no capítulo anterior, o oratório doméstico serviu aos anseios devocionais de
caráter cada vez mais intimista e particular. Nesse sentido, o ambiente doméstico serviu como
ecclesiae domesticae e o oratório o seu altar. Ao mesmo tempo, o oratório ‘performou’ inversamente,
sendo ele próprio a ecclesiae domesticae, um templo miniaturizado e acomodado em ambiente
doméstico. Diante do expressivo acervo de oratórios em Minas Gerais, observamos que os mesmos
demonstram ser um inequívoco indício de uma religiosidade forte e coerente com o seu tempo,
sobretudo no que concerne ao ‘culto dos santos’ tão popular e tão caro ao mundo católico,
sobretudo colonial.
O oratório doméstico, enquanto artefato, possui uma função ligada diretamente às práticas
religiosas, como a oração. A sua função? Sustentar visualmente a devoção do fiel que ora. A
influência lusitana em torno do oratório doméstico pode ser observada em Minas Gerais (aliás, na
América Portuguesa como um todo) através das escolhas iconográficas, principalmente.
[...] a infanta seguia passo a passo a liturgia da Paixão, identificando-se ao Cristo sofredor
através de gestos físicos de flagelação e dor; preparara-se para a morte recriando de
diferentes formas a agonia de Cristo; toda a vida contempla os passos, sinais e
instrumentos da Paixão: coroa de espinhos, oração no horto, agonia. Chora
abundantemente, cai no chão, e geme, repetindo as palavras de Cristo, quando ouve ou
lê a Paixão, que tem representada no seu quarto preferido, centro do oratório privado. 228
228 AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) História religiosa de Portugal. Centro de estudos de História Religiosa da
Universidade Católica Portuguesa. Vol. 1. Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, 2000, p. 502.
229 AZEVEDO. Carlos Moreira. op. cit. p. 474.
230 AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) História religiosa de Portugal. Centro de estudos de História Religiosa da
Universidade Católica Portuguesa. Vol. 2. Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, 2000, p. 355.
231 Embora a iconografia da Sagrada Parentela esteja ligada ao tema da Infância, a parentela aparece subliminarmente
no momento da morte de Cristo. Podemos considerar que a Sagrada Família não estivesse reunida apenas no momento
da alegria, mas principalmente no momento da desgraça, embora cronologicamente a cena não faça sentido já que
Sant´Ana e São José não façam parte da narrativa da Paixão.
124
Museu do Oratório 21
Museu da Inconfidência 20
232
Consideramos nessa tabela as imagens do Cristo crucificado e de temas relativos à Paixão que foram manufaturas
em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX. No entanto, mesmo sendo produzidas em Minas, consideramos na tabela
os acervos paulistas, tendo em vista que possuem peças de procedência mineira e extremamente pertinentes para a
presente pesquisa.
125
TOTAL 84
Peças portuguesas
Peças mineiras
Figura 56. Oratório-lapinha (D. José I) com
crucificado, Nossa Senhora da Conceição, São
José de Botas, Sant´Ana Mestra e São Francisco
de Paula (?). Séc. XIX. Madeira recortada,
entalhada e policromada. Pedra talco
(imagens). Minas Gerais. Coleção
particular.
A iconografia das ‘almas do purgatório’ também apareceria junto a Nossa Senhora do Carmo, atendendo ao espírito
233
do Concílio Tridentino que evidenciou o papel da Virgem Maria na salvação das almas. Ver: CAMPOS, Adalgisa
Arantes. As irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: Culto e iconografia no Setecentos mineiro.
Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2013.
126
dia do julgamento a fim de avaliar o mérito ou demérito de suas ações em ordem à sentença
derradeira da justiça divina.234 De acordo com Célio Macedo Alves, a devoção à São Miguel e às
Almas
[...] está vinculada às irmandades para resgate das almas do purgatório, daí o nome São
Miguel e Almas, tão comum em Minas Gerais. As irmandades das Almas tiveram na sua
difusão um estímulo muito grande da Igreja, e sua importância se igualava às irmandades
do Santíssimo. Aliás, dentro de uma hierarquia de poderes, medida pela posição que cada
uma assume dentro da igreja, tem-se, em primeiro plano, a irmandade do Santíssimo e
depois das Almas.235
234 AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) História religiosa de Portugal. Centro de estudos de História Religiosa da
Universidade Católica Portuguesa. Vol. 2. Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, 2000, p. 588.
235 ALVES, Célio Macedo. Um estudo iconográfico. In. COELHO, Beatriz. Devoção e arte – Imaginária religiosa
em Minas Gerais. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2017. p. 73.
236 GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei – Século XVIII. História sumária. São João del-Rei: Edição do Autor,
1996, p. 107.
237
De acordo com Adalgisa Campos, esses oratórios públicos, denominados ‘Alminhas’, possuíam formas
arquitetônicas cujo nicho central apresentava, comumente, a cena do purgatório. Essa cena era composta pela figuração
de três pessoas de ambos os sexos, por vezes até possuindo características sociais (monges, padres, carpinteiros,
moleiros e pessoas do povo num geral) mergulhadas até a altura do peito ou dos quadris num fogo vívido de cores
claras, possuindo semblantes piedosos e repletos de aparente contrição. Essas são as ‘almas benditas’, e seu penar difere
dos tormentos do inferno, onde o fogo destruidor da alma causa tormentos horripilantes, cujas cenas artísticas
povoaram muitas igrejas, sobretudo na América Espanhola. Essa representação das almas do purgatório era sempre
conjugada à figura do Arcanjo São Miguel ou ainda à Nossa Senhora do Carmo. O elemento mais curioso, contudo,
seria a frase de efeito “Ó vós que ides passando, lembrai-vos de nós que estamos penando”. Pensamos que seria esse,
possivelmente, o tipo de oratório que o Largo da Prainha de São João del-Rei possuía, o que atesta a forte presença
lusitana nas Minas e também o grande apelo à devoção das Almas. Ver: CAMPOS, Adalgisa Arantes. op. cit. p. 57-79.
127
O culto às almas em São João del-Rei se mostrou extremamente popular e de ampla adesão
da população, tendo em vista os ‘cofres das almas’ presentes nas casas de comércio e ao lado do
próprio retábulo de São Miguel e Almas na Matriz de Nossa Senhora do Pilar. Tais cofres são
identificados como pequenas caixas trancadas à chave onde se depositavam valores para sufrágio
das almas e atualmente em São João del-Rei tais ‘cofres’ se localizam nos bairros do Tijuco e Centro
e sua fatura é do século XX, o que nos indica uma possível manutenção da prática cultural em
torno de tais cofres.
O poeta e historiador Alexandre José de Melo Morais Filho bem observou já no final do
século XIX que
Ninguém há por aí que não tenha visto à porta de certas igrejas, dentro de tabernas e, nas
ex-províncias do Brasil, em várias boticas, a caixinha das almas, com figuras pintadas ao
alto, brancas e negras, com olhos de brasa e boca de fogo, levantando os braços no meio
de labaredas vermelhas, listradas de amarelo... E o que representam elas? As almas do
purgatório que pedem sufrágios; as vítimas do pecado, que imploram, para aliviar-lhes as
penas, a piedosa lembrança dos vivos. E os pobres escravos, as crianças e os velhos, as
mulheres e os devotos, deixavam cair pela abertura do cofre trancado a esmola escondida,
não sendo raro colocarem sobre o mesmo frutas e ovos, que eram comprados pelos fiéis,
entrando desde logo o dinheiro para a caixinha votiva. Isto enquanto ao simbolismo da
arte, à liberalidade cristã, que semeava a esmola para desabrochar em responsos e missas
pelas almas do purgatório.238
MORAIS FILHO, Alexandre José de Melo. Festas e tradições populares do Brasil. Brasília: Edições do Senado
238
possuiu um oratório de esmoler [figura 59] com a curiosa iconografia das ‘almas do purgatório’
que representa devidamente a preocupação para com o refrigério da alma dos defuntos que
aguardam a entrada no paraíso.239 O referido ermitão o utilizou sobretudo para o levantamento de
fundos para a construção da Igreja do Bom Jesus de Matosinhos, o que nos faz pensar no modo
‘persuasivo’ que o ermitão dispunha para angariar tais valores. Infelizmente, nesse caso sobram as
especulações, porém é notório o peso iconográfico que a imagem das almas possuía e a partir desse
fato verificamos que é rara a utilização de tal iconografia como devoção em Minas Gerais, embora
houvesse irmandades devotadas a tal.
Cabe citarmos que a tal iconografia no oratório de Congonhas também está atrelada à
imagem de São Miguel, sendo assim condizente com o culto celebrado também em terras lusas.
239BOTELHO, Thiago de Pinho. Milagre que se fez... Um estudo dos 36 ex-votos ofertados ao Senhor Bom
Jesus de Matosinhos em Congonhas – MG. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes.
Escola de Belas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2013, p. 39-40.
129
Partindo dos dados coletados durante a década de 1980 por Caio Boschi – fruto de intensa
pesquisa durante o seu doutoramento que originou a obra clássica Os leigos e o poder (Irmandades leigas
e política colonizadora em Minas Gerais) – observamos a presença maciça de irmandades devotadas às
representações do Cristo Crucificado (e narrativas da Paixão) e às Almas do Purgatório, como
observamos abaixo:
NÚMERO DE
DEVOÇÃO (ORAGO)
IRMANDADES
240Dados coletados originalmente por Caio Boschi e retirados como citação da obra original: BOSCHI, Caio César.
Os leigos e o poder (Irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais). São Paulo: Editora Ática,
1986. p. 185-233.
130
Tabela 7. Quantidade de imagens por invocação na Minas colonial (em relação às representações
relacionadas à Paixão de Cristo e às Almas do Purgatório).
TOTAL 320
Fonte: ALVES, Célio Macedo. In: COELHO, Beatriz. Devoção e Arte [...], 2017
241 Dados apresentados originalmente na obra Devoção e arte – Imaginária religiosa em Minas Gerais, tendo Beatriz Coelho
(UFMG) como organizadora. A relação pode ser acessada no ensaio de autoria de Célio Macedo Alves, Um estudo
iconográfico, disponível na obra citada.
131
tempo temos algumas devoções com menor número, porém, juntas formam um acervo expressivo
e denota a circulação das iconografias (principalmente da Paixão de Cristo) entre os fiéis.
Apenas nas duas menções acima citadas, podemos observar a presença do oratório em dois
contextos específicos: o primeiro, no quarto de uma mulher, indicando o papel da devoção na
intimidade da alcova (principalmente do gênero feminino). No segundo, observamos a realização
de um sacramento (um matrimônio) perante um oratório improvisado que serviria de altar para se
sacramentar a união dos nubentes. Nisso, temos a indicação do objeto como representação da
Igreja, mais uma vez o oratório figurando como ecclesiae domesticae (igreja doméstica).
242 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte: A construção história do acervo de
oratórios brasileiro – Séculos XVIII e XIX. São Paulo: Alameda, 2014. p. 329.
243 RUSSO, Silveli Maria de Toledo, op. cit. p. 329.
132
Sobre uma cômoda antiga, de pau-santo, com puxadores de metal e coberta com um
oleado já puído e gasto, equilibrava-se um oratório de madeira, caprichosamente
trabalhado e cheio de uma porção variadíssima de santos; havia entre eles, feitos de casca
de cajá, de gesso, de terra vermelha e de porcelana. O Santo Antônio de Lisboa, vindo
de encomenda, com o pequeno ao colo, lá estava, muito rubicundo e lustroso; a Santa
Ana, ensinando a filha a ler; um São José de cores cruas, detestavelmente pintado; um
São Benedito, vestido de frade, pretinho, de beiços encarnados e olhos de vidro; um São
Pedro, cujas proporções o faziam criança ao lado dos outros, uma miuçalha de santinhos
pequenitos e caricatos, que a gente não podia ver sem rir e que se escondiam na peanha
dos grandes; e, finalmente, um grande São Raimundo Nonato, calvíssimo, barbado feio,
e com um cálice na mão direita. Ao fundo do oratório litografias de carregação
representavam Santa Filomena, a fugida de São José com a família, Cristo Crucificado e
outros assuntos religiosos. Havia ainda sobre a cômoda dois castiçais de latão,
guarnecidos de papel redondo, com as velas de cera meio gastas; um grupo de ‘biscuit’
representando a Mater Dolorosa e um Menino Jesus, fechado numa manga de vidro, por
causa das moscas. Encostadas à parede, uma palma de pindoba benta, a qual, segundo a
voz do povo, tinha a virtuosa propriedade de apaziguar os elementos em dias de
tempestade, duas outras palmas casquilhadas, enfeitadas de pano e malacacheta,
guarneciam os lados do oratório.244
Essa passagem de O mulato possui uma descrição cirúrgica do espaço destinado à oração,
constituindo-se como sede da devoção pessoal da personagem. Os santos que compõem a ‘corte
celeste’ desse oratório são descritos com minúcia, de seus nomes a composição artística da imagem
descrita (como cores, posições anatômicas, feições e afins). Além disso, um dado curioso e deveras
interessante é a citação às litografias (ou litogravuras) que se encontram coladas no fundo do
oratório. Sobre esse tema (que será desenvolvido no quarto capítulo desse estudo) sabemos que
tais gravuras de santos, chamados comumente de santinhos (ou registo – registro – de santo em
Portugal) foram populares nos séculos XVIII e XIX por serem objetos de devoção dos católicos e
também fonte de inspiração para artistas que replicavam modelos e formas no campo da talha e da
pintura.245
Durante a descrição, observamos também que o autor (no caso, Aluísio Azevedo) une o
descritivo ao analítico, citando saberes de religiosidade popular de sua própria época como a
presença da ‘palma de pindoba’ que quando usadas conseguiam apaziguar “os elementos em dias
244 AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. (1881) São Paulo: Martins Editora/Instituto Nacional do Livro/MEC, 1975. p.
140 apud RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte... São Paulo: Alameda, 2014. p. 330-
331.
245 LIMA, Luís Augusto de. Augusto de Lima Júnior e sua coleção de gravuras de Nossa Senhora. In: JÚNIOR,
Augusto de Lima. História de Nossa Senhora em Minas Gerais. Belo Horizonte: Autêntica Editora: Editora PUC
Minas, 2008, p. 27.
133
de tempestade”. A passagem, portanto, nos indica a presença do oratório como um objeto que
denota o status social de seu dono, com qualidades artísticas eruditas, mas que também está sujeito
aos elementos da religiosidade de cunho popular.
No século XVIII, as fontes são mais escassas, porém, ricas em detalhes. O oratório
doméstico nessa centúria aparece, principalmente, em habitações rurais. Além disso, é diante do
oratório que se realiza o exercício cotidiano da religião católica, além de ser palco de ‘manifestações’
místicas dos seus donos. Quem nos oferece tal visão é o emblemático (e igualmente curioso)
Compêndio Narrativo do Peregrino da América (1728) do português Nuno Marques Pereira. O dito
‘peregrino’, ao longo de sua viagem, observa e narra as coisas que vê pelo caminho. Em certas
passagens, o oratório figura como elemento central do exercício piedoso. Numa ocasião, estando
de pouso numa fazenda de certo homem abastado, testemunhou horrorizado os folguedos e ritos
dos escravos durante a noite. Ao amanhecer, indaga o fazendeiro acerca da ilicitude de tais “atos
nefandos” em sua propriedade. Além disso, o peregrino enquadra os rituais dos negros como
“superstições da gentilidade” (e claro, feitiçaria). Fazendo isso, observa que prontamente: “[...] o
dono da casa, posto de joelhos diante de uma imagem de Christo Senhor Nosso, que estava num
Oratório na mesma varanda, (começa) a dizer em altas vozes: Senhor Deos, misericórdia”.246
Tão logo o fazendeiro e o peregrino terminam suas orações diante do oratório, em meio à
“ladainhas e cânticos”, o senhor ordena que os escravos tragam os objetos utilizados nos folguedos:
Acabado este grande ato, disse eu ao dono da casa: que mandasse vir todos os
instrumentos, com que obravam aqueles diabólicos folguedos. O que se pôs logo em
execução e, mandando vir para o terreiro; e no meio dele se fez uma grande fogueira, e
nela se lançaram todos. Ali foi o meu maior reparo, por ver o horrendo fedor, e grandes
246PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América em se tratam varios Discursos
Espirituais, e moraes, com muitas advertências, e documentos contra os abusos, que se achao introduzidos
pela malicia diabólica no Estado do Brasil. Dedicado à Virgem da Vitoria, Emperatris do Ceo, Rainha do
Mundo, e Senhora da Piedade, Mãy de Deos. Autor Nuno Marques Pereira. Lisboa Occidental. Na Officina de
Manoel Fernandes da Costa, Impressor do Santo Officio. Ano de 1728. Com todas as Licenças Necessarias. p. 122 |
BBM/USP [grifo nosso]
134
estouros que davam os tabaques, botijas, canzas, castanhetas, e pés de cabra, com um
fumo tão negro, que não havia quem o suportasse [...].247
Nessa passagem, podemos observar a dicotomia entre ‘religiosidade oficial’ (as orações no
oratório) e ‘religiosidade marginal’ (o folguedo) e a violência simbólica que envolve o processo de
destruição dos objetos dos escravos, tomados por ‘diabólicos’. Desse aspecto, compreendemos que
a presença dos objetos, da materialidade, se apresenta como parte da religiosidade. A descrição do
peregrino (mesmo que de maneira aparentemente despropositada) faz questão de enfatizar um objeto
de fé e a partir dele realizar a destruição de outro. Nesse sentido, o oratório (enquanto símbolo e
artefato da ‘verdadeira religião’) é colocado como ponto de referência para o exercício da fé que é
permitida. Por tal centralidade, o oratório doméstico também é adaptado para os indivíduos
escravizados, servindo de sede e elemento material da religiosidade assumida ou dissimulada. Um
exemplo disso, no próprio Compêndio Narrativo, pode ser notado:
[...] em certa Villa; o qual sendo cativo, tinha sua casa na Fazenda de seu senhor, muy
limpa, e asseada, e na varanda tinha um nicho feito, e nele um altar, onde estava colocada
uma imagem de Christo, e outra da Senhora do Rosário, com outros santos. E todos os
dias cantava o Terço de Nossa Senhora com sua mulher, e filhos: e depois se assentava
em um assento, e exortava aos demais que vivessem bem, e que sofressem o trabalho
temporal; porque maiores são as penas da outra vida [...].248
Logicamente que os escravos possuíam seus próprios oratórios, dissimulando no seu uso o
culto à sua própria crença. Porém, o oratório assimilado enquanto sede de piedade católica pelos
escravos também serve de refúgio e vivência (assim como resistência) ao seu estado servil. Não
cabe nesse estudo aprofundar tal questão, porém é interessante notar a ressignificação e
apropriação do oratório por parte dos escravos e a sobrevivência de tais objetos nos acervos
contemporâneos, catalogados como ‘oratórios afro-brasileiros’ por possuírem ornamentação que
se configura como mais uma tipologia dentro do universo dos oratórios devocionais em Minas
Gerais.249
Casa dos Contos, ambos em Ouro Preto, assim como no Museu Afro Brasil, em São Paulo) há a presença de oratórios
classificados como ‘Afro-brasileiros’. Tais oratórios ‘afro’ se constituem como pequenas capelinhas e nichos que
contém representações (em imaginária, principalmente) do universo católico, prevalecendo a iconografia de Nossa
Senhora do Rosário e santos negros, como Santa Efigênia, São Elesbão, Santo Antônio de Noto [...]. Porém, na talha
e na pintura ornamental, tais oratórios possuem certas características específicas. Na pintura, há elementos decorativos
que remetem ao geometrismo tribal, assim como efeitos da talha em madeira que aludem à ornamentação de objetos
de culto atribuídos às religiões de matriz africana. Sobre esse aspecto, de maneira mais sucinta, ver o quinto capítulo
deste estudo.
135
Sucedeu pois, que estando a mulher deste fidalgo em seu Oratório encomendando-se a
Deus, lhe apareceu de repente a figura de um homem mui espantosa, ardendo em vivas
chamas de fogo, a qual trazia a seus ombros outra pessoa rodeada das mesmas chamas.
Ficou a mulher grandemente atemorizada com esta visão.250
Porém, aquele, que vinha aos ombros, lhe disse: Não temas, que sou teu marido. Este,
que me traz aos ombros, é o meu Confessor: o qual assim como em vida me sofria as
minhas culpas, sem me repreender delas, e sem me dar penitências medicinais, para
apartar-me dos vícios, antes condescendendo com meus pecados, com que [...] me trouxe
ao inferno; agora na morte justamente mandou Deus, que ele seja participante das penas,
que me atormentam: e assim padece as mesmas, que eu padeço.252
Nesse episódio, podemos considerar que o oratório, enquanto símbolo e sede do divino,
também pode ser palco de comunicações místicas, visões e experiências religiosas que extrapolam
a materialidade e o mundo físico. Assim como a igreja, enquanto casa de Deus, pode servir de palco
para ‘manifestações religiosas’, a igreja doméstica também o é. Igualmente emblemática é a
estratégia discursiva do autor do Compêndio Narrativo ao tratar de moral cristã se utilizando de um
cenário totalmente familiar aos seus leitores.
Passando para o século XIX, a presença dos oratórios domésticos em fontes escritas se
apresenta mais dinâmico. Ao tomarmos os apontamentos de Henry Walter Bates em O naturalista
no Rio Amazonas (1848-1859) observamos a descrição do mesmo sobre a vinda de uma imagem de
Nossa Senhora da Conceição aos arredores. Segundo Bates:
A festa era em honra de Nossa Senhora da Conceição. Quando souberam que Pena tinha
abordo uma imagem da santa, mais bonita que a sua, foram nas canoas busca-la.
Marcelino tomou conta da imagem, cobrindo-a com uma tolha branca, caprichosamente
bordada. Ao desembarcar com a imagem, formou-se uma procissão do porto para a casa,
dando-se salvas com duas espingardas lazarinas, e depois a santa foi posta com toda
devoção no oratório da família. Cantou-se a noite a ladainha, seguida de cânticos, e todos
se reuniram para cear, sentando-se em torno da grande esteira, posta no terreiro em frente
de casa.254
254 BATES, Henry Walter. O naturalista no Rio Amazonas (1848-1859). Vol. 1. São Paulo: Companhia Editora
Nacional, 1944, p. 327 apud RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op. cit. p. 336.
255 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op. cit. p. 75.
256 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op. cit. p. 75-90
137
Um caso in loco desse tipo de oratório em Minas Gerais (no território que nos séculos XVIII
e XIX fazia parte da antiga Comarca do Rio das Mortes) que pudemos registrar e observar a
disposição acima mencionada, se encontra na sede da fazenda ‘Gerais do Barro’, na zona rural de
Antônio Carlos, que pertenceu ao bracarense Francisco Gomes da Costa (com fundação em 1778).
O oratório com função de altar encontra-se contíguo à fachada da casa-grande, do lado direito
[figura 60] e atualmente (com a decadência da família e venda da propriedade a terceiros) o
oratório [figura 61] conta ainda com o seu altar, crucifixo e uma imagem de Santo Antônio de
Pádua originais, porém, com grande defasagem do que, na época, poderia ser ter sido um oratório
com retábulo, mesa do altar e imaginária de acordo com o ‘decoro’ e ornamentação exigidos pelas
Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia.
Retornando aos relatos dos viajantes, Jean-Baptiste Debret em sua Viagem Pitoresca e Histórica
ao Brasil (1816-1839) aponta o oratório doméstico com função de altar como o local propício para
a reunião familiar, tendo em vista que é diante do mesmo que se celebra os ritos de preceito cristão,
tal como o batismo. Ele relata que “entre os ricos [...] o batismo é administrado no oratório da casa
por um eclesiástico amigo da família”.258 A observação “entre os ricos” nos confirma a questão de
que a posse de um oratório com função de altar denotaria a distinção social e econômica do
proprietário, como vimos anteriormente. Além disso, Debret nos brinda com a descrição do
referido oratório:
E conclui afirmando que, a celebração do batismo “constitui um pretexto para uma reunião
brilhante, realizando-se por isso somente à tarde. As visitas feitas ao recém-nascido permitem uma
alegre noitada que termina por um magnífico chá”.260 Um exemplar de oratório aparentando um
armário pode ser observado no acervo em exposição permanente do Museu do Oratório em Ouro
Preto, MG [figura 62] onde notamos coincidentemente uma reconstituição da cena de um batismo
258 DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1816-1839). Vol. 3. São Paulo: Martins
Editora, 1940, p. 191.
259 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit. p. 191.
260 DEBRET, Jean-Baptiste, op. cit. p. 191.
139
com presença de sacerdote, sendo realizado perante um oratório doméstico com as mesmas
características apontadas por Debret [figura 63].
1 - Varanda, galeria, entrada da casa – ‘protyrum’ dos antigos, o que significa: na frente
das portas. 2 – Oratório; ‘ararium’ dos romanos, descrito por Plínio como colocado
numa parte mais escondida da habitação, ao passo que aqui o altar é colocado de
maneira a que os assistentes vindos da vizinhança e os escravos que ficam do lado
de fora possam ver o oficiante. Pois possuir um oratório servido regularmente por
um capelão constitui um luxo muito honroso para um proprietário de chácara no
Brasil. 3 – Sala, de visitas: ‘tablinum’ ou ‘exedra’, no qual os antigos se reuniam para
conversar [...]. 4 – Sala de jantar, parte abrigada e fresca no peristilo do ‘atrium’;
corresponde ao ‘triclinum’ dos antigos que aí comiam deitados enfileirados em torno de
uma mesa. 5 – Área, pátio descoberto cercado de um pórtico; os romanos a chamavam
de ‘impluvium’, porque as águas dos telhados para aí corriam e eram conservadas numa
cisterna [...].261
estudo, inicialmente, identificamos o oratório como ressonância dos cultos domésticos pagãos e é
certamente intrigante como o cristianismo soube reaproveitar elementos da cultura pagã
(principalmente de Roma, que virou sede do Cristianismo) para que a acomodação da nova fé aos
povos recém convertidos fosse mais efetiva.
Além disso, o autor ainda descreve precisamente o modus operandi do exercício da religiosidade
em torno do oratório doméstico em contexto rural. A missa e os demais serviços cultuais ou
devocionais atendem não somente aos senhores e serviçais da casa-grande, mas estende-se também
à senzala e à escravaria, exercendo-se, portanto, uma religiosidade com forte caráter compulsório262.
Por fim, tratando do objeto central desse estudo – o oratório doméstico com função
devocional – o viajante inglês John Luccock em suas Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do
Brasil também evidencia o papel central do oratório na devoção diária e também reguladora dos
hábitos cotidianos, como dormir ou se alimentar.
De regresso de curto passeio [...] encontrei a família toda rezando [...] Ficaram de par em
par abertas as portas do oratório e exposto o crucifixo até justo o momento de servir-se
da ceia no mesmo cômodo: o dono da casa aproximou-se então com grande seriedade e,
após ter feito profunda reverência à imagem, cerrou-lhe as portas.263
Nesse momento, o nosso olhar se dirige para as fontes documentais da Capitania de Minas
dos séculos XVIII e XIX. A utilização dos documentos históricos, como fontes, nos auxiliará a
identificar e compreender o oratório doméstico no contexto do exercício da religiosidade católica
262 VALENTE, Ana Lúcia Eduardo Farah. As irmandades de negros: resistência e repressão. Dossiê: Religião e Cultura.
Horizonte. Belo Horizonte, v. 9, n. 21, abr/jun. 2011, pp. 202-219.
263 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. 1808-1818. São Paulo: Editora
na Minas colonial, assim como seus usos e sentidos em situações específicas. Faremos aqui um
exercício de interpretação de dados que se apresentam dispersos, no intento de construir um
panorama explicativo mais geral da dinâmica religiosa e social que envolve os oratórios domésticos.
Os documentos utilizados são inventários, testamentos (anexados a inventários post-mortem),
relatórios de receita, petições, requerimentos e representações oficiais.265 Os inventários, assim
como os relatórios de faturamento de receita, apresentam dados ‘brutos’, oferecendo uma
perspectiva quantitativa dos oratórios e possibilitando indagações como: qual era o processo de
aquisição de oratórios? Quem podia tê-los? É uma questão de classe social? É uma questão
econômica? Já os testamentos, assim como as petições, requerimentos e representações oficiais,
por possuírem uma redação mais dinâmica, nos oferecem alguns elementos que possibilitam inferir
sobre a importância do oratório no contexto do público e do privado, principalmente os oratórios
domésticos devocionais pertencentes ao contexto familiar, onde seus proprietários os identificam
como bens que possuem relevância para serem herdados.
É importante frisar que as nossas principais fontes são os oratórios in persona nos acervos
particulares e institucionais. Porém, não poderíamos nos furtar de analisar a presença dos oratórios
nos documentos escritos, aperfeiçoando, portanto, a nossa compreensão para com um objeto que
possuiu um papel recorrente e muito específico na religiosidade mineira nos idos da colônia e
Império, como temos visto. Partindo de um panorama mais geral, é imprescindível observar a
presença de oratórios domésticos a partir de suas duas naturezas: a cultual e a devocional. Como já
citado anteriormente, o oratório cultual é destinado à celebração dos sacramentos, principalmente
o do sacrifício da Eucaristia na Missa. Para isso, o oratório deve conter altar com pedra d´ara
consagrada e ser aprovado pela autoridade eclesiástica. Trata-se de um privilégio, como veremos.
Já o oratório de natureza devocional, é mais ‘espontâneo’. Dirige-se à guarda de imagens sagradas,
com o propósito de se exercitar a devoção e piedade católica, objeto com o propósito de estimular
a oração e não necessita de aprovação eclesiástica. Todos podem tê-lo em casa. Trata-se de um
objeto de caráter intrinsecamente popular.266
Tendo isso em vista, veremos que a documentação que trata somente de receita, citará com
totalidade os oratórios de natureza cultual. Já nos inventários e testamentos, tanto os oratórios de
natureza cultual como os de uso devocional aparecem citados como bens móveis inventariados e
265 Porém, utilizamos também outras fontes manuscritas e impressas, nacionais e internacionais, sendo algumas já
utilizadas em estudos acadêmicos, outras ainda inéditas, possibilitando uma análise mais ‘encorpada’ da presença dos
oratórios no universo das fontes escritas.
266 A especificidade dos oratórios domésticos, assim como a separação conceitual das duas naturezas do objeto (cultual
e devocional) foi concebida no século XIX pelo padre jesuíta Juan Bauptista Ferreres, conforme citamos no capítulo
anterior desse estudo. Para isso, indicamos a obra de Silveli Russo, Espaço doméstico, Devoção e Arte... (amplamente citada
nesse estudo) como referência primordial para o entendimento legal do oratório.
142
repassados de seus donos para outros, sendo necessário observar outros objetos citados, assim
como as descrições, para identificar um e outro. Os casos aqui trabalhados serão poucos e pontuais,
porém elucidativos.
Para isso, precisamos nos ater à descrição das dimensões do objeto fornecida pelo escrivão.
Trata-se de um oratório ‘grande’ ou ‘pequeno’? Após tal observação, devemos buscar os elementos
que são complementares ao oratório, por dedução lógica. Um oratório deve, a priori, conter imagens
pequenas ou de vulto, assim como pequenos castiçais, ‘registos’ de santos (gravuras) e outros
objetos correlatos. A partir disso, identificamos um oratório de natureza devocional, que servia
apenas à piedade pessoal. Em direção oposta, caso se observem objetos ligados ao oratório como
missais, livros de oração/litúrgicos, imagens de vulto (principalmente o Cristo Crucificado, Nossa
Senhora das Dores e São João Evangelista), assim como alfaias e demais utensílios utilizados
normalmente no exercício dos ofícios litúrgicos (como a Missa), poderemos identificar o referido
oratório como um objeto de natureza cultual (principalmente se este for dotado de mesa com ara
(pedra d´ara).
pertencia267. Por isso, o nosso repertório de fontes documentais constitui um núcleo pequeno,
porém significativo em termos interpretativos.
O documento parece ser uma tentativa de consolidação de dados a ser enviada à Coroa
pelo ouvidor Caetano Costa Matoso. Visava, em decorrência de suas atribuições, fornecer
subsídios para responder a solicitação régia de informações sobre o rendimento do
bispado. Ocupa posição chave na disputa entre a jurisdição real e a episcopal, traduzindo
o esforço de controle e vigilância sobre os recursos financeiros da Igreja. 268
Tal postura de vigilância e controle da Coroa Portuguesa sobre a diocese de Mariana (talvez
ainda em decorrência da querela acerca da proibição das ordens religiosas no território) possibilitou
o registro das atividades que geravam receita para o bispado. Dessas receitas, interessa-nos o
rendimento das visitas pastorais, pois são justamente elas que apontam a presença do oratório
doméstico, de uso privado.
De antemão, ao analisarmos o fólio que diz respeito aos Rendimentos do Bispado de Mariana, das
chancelarias que se pagam na Câmara e nas Comarcas de Vila Rica, Sabará, Rio das Mortes, Rio Verde, Pitangui
e Serro do Frio nos anos de 1750 a 1753, observamos as seguintes menções:
267 Postura semelhante ocorre na micro-história italiana. Talvez o caso mais singular de tal postura metodológica seja
a de Carlo Ginzburg em suas obras de referência: O queijo e os vermes (O cotidiano e as ideias de um moleiro perseguido pela
Inquisição e Os andarilhos do bem (Feitiçarias e cultos agrários nos séculos XVI e XVII). A partir de documentos que possuem
a característica narrativa, como um processo jurídico (fontes utilizadas por Ginzburg nas obras citadas), podemos
compreender, de certa maneira, o universo simbólico, religioso e social do autor do documento e aqueles (ou aquilo)
a que se refere o mesmo. No caso dos testamentos (de uma maneira mais restrita, logicamente) podemos obter
resultados análogos.
268 CÓDICE COSTA MATOSO. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das Minas na América
que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em
fevereiro de 1749, & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e
Culturais, 1999, p. 99.
144
a) Leva de procurações pela visita de cada oratório privado 6 oitavas de ouro, não sem
escândalo do cap. fin. de Censib., e não se lhe põe o número por não haver certeza dele.269
b) Somam os rendimentos da visita, tiradas as procurações dos oratórios privados, a que
se fez a conta, salvo o erro.......................................................................................8, 648,000. 270
c) De procurações de oratórios, um em cada comarca, a 7, 500 de cada um,
somam.............................................................................................................................45,000.271
d) De procurações pela visita de cada oratório particular 6 oitavas de ouro, não sem
escândalo dos que sabem a proibição do cap. fin. de Censib., e por se não saber o número
certo de oratórios não se abona por junto a importância da visita deles.272
e) Somam-se os rendimentos da visita, exceto as procurações pelos oratórios privados,
o que não se fez conta..............................................................................................8, 648,000.273
Primeiro, o valor. Seis oitavas de ouro, na década de 1750, equivaliam a 1200 réis (já
descontado o quinto) sendo uma quantia relativamente considerável para a época.274 Tal quantia
nos leva a considerar que um gasto dessa proporção com uma ‘procuração de oratório’ evidencia
certamente um empreendimento dirigido às classes mais abastadas economicamente. Ao
compararmos o valor da procuração de oratório com o valor dos próprios oratórios nessa época
(que estavam entre a casa dos 20 a 30 mil réis275) percebemos que o processo de aquisição dos
oratórios era dispendioso, portanto, dirigido a um estrato social economicamente privilegiado.
Lembramos que tal contexto se refere aos oratórios domésticos com função de altar a fim de
269 [fl. 397] – Fólio dos Rendimentos do Bispado de Mariana In. CÓDICE COSTA MATOSO. Coleção das notícias
dos primeiros descobrimentos das Minas na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo
ouvidor-geral das do Ouro Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. Belo Horizonte:
Fundação João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999, p. 713. [grifo nosso]
270 [fl. 397] – CÓDICE COSTA MATOSO. op. cit. p. 714. [grifo nosso]
271 [fl. 405] – CÓDICE COSTA MATOSO. op. cit. p. 764. [grifo nosso]
272 [fl. 420] – CÓDICE COSTA MATOSO. op. cit. p. 764. [grifo nosso]
273 [fl. 420] – CÓDICE COSTA MATOSO. op. cit. p. 764. [grifo nosso]
274 Dados obtidos na referida bibliografia:
SIMONSEN, Roberto C. História Econômica do Brasil, 1500-1820. Brasília: Edições do Senado Federal, Vol. 34,
2005.
CARRARA, Angelo Alves. Amoedação e oferta monetária em Minas Gerais – as casas de Fundição e Moeda de Villa
Rica. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 26, n. 43, jan/jun 2010, pp. 217-239.
275 Levantamento realizado em inventários da antiga Comarca do Rio das Mortes entre os anos de 1750 a 1790. Arquivo
celebração da missa, pois só estes contam com um processo burocrático organizado pelas
autoridades eclesiásticas do bispado.
Segundo, a questão teológica. O fator mais interessante nesses dois excertos se apresenta
numa observação curiosa: “[...] não sem escândalo do que sabem a proibição no cap. fin. de Censib
[...]”. À que proibição estaria se referindo o ouvidor-geral? Em primeiro lugar, a citação ao “cap. fin.
de Censib” é extremamente vaga, pois trata-se de abreviações latinas que podem ser encontradas em
outros documentos da época. Em segundo lugar, o próprio ouvidor não menciona a que
documento ou decreto ele se refere, possibilitando que se considere pensar de que se trata de um
contexto, ao que parece, ser de conhecimento geral na época. Temos uma hipótese, que
sustentaremos a seguir.
Num outro excerto documental, proveniente do mesmo fólio dos “Rendimentos do Bispado de
Mariana” do Códice Costa Matoso temos um registro curioso. A partir da folha 402, o ouvidor-geral
parece criticar as taxas irregulares cobradas pela Igreja pelos serviços prestados. Entre tais serviços
prestados, há a descrição dos pagamentos que se fazem às autoridades que realizam as visitas
apostólicas aos “[...] oratórios (que) se paga o mesmo, e poderão ser até 20 [...]”,276 isso quando
compara que tais visitas a oratórios privados possuem o mesmo valor das visitas apostólicas às
capelas, se pagando “[...] para o prelado [...] 5 oitavas e 1 para o secretário [...]”.277 Disso,
percebemos que a visita a oratórios privados possui a mesma importância da visita às capelas de
culto públicas. Porém, em outra parte do mesmo fólio, o ouvidor-geral demonstra (diante dos
números) ligeira preocupação acerca da matéria dos oratórios.
276 [fl. 402] – Fólio dos Rendimentos do Bispado de Mariana. CÓDICE COSTA MATOSO. p. 722. [grifo nosso]
277 [fl. 402] – Rendimentos do Bispado de Mariana. CÓDICE COSTA MATOSO. p. 722.
278 [fl. 400] – CÓDICE COSTA MATOSO. p. 717. [grifo nosso]
146
De acordo com Sérgio Chahon, o decreto firmado na 22ª sessão do Concílio de Trento
estipulou que os bispos de suas respectivas dioceses cuidassem para que não se celebrasse o santo
sacrifício “por seculares ou regulares”, quaisquer que sejam, em casas de particulares nem
absolutamente fora da Igreja.279 Nas Constituições Primeiras, de Monteiro da Vide, lê-se que “é mais
conveniente não celebrar do que dizer missa em lugar não sagrado e destinado pela Igreja a este
santo sacrifício”.280 Sendo assim, as Constituições só permitiam a celebração da missa em recinto
doméstico caso fosse realizada em casa de enfermos necessitados de receber o viático, por estarem
inviabilizados de se dirigir à Igreja mais próxima281.
Assim sendo, tendo em vista tal proibição, os oratórios domésticos convertidos em altar
deveriam ser raros e autorizados pela Igreja em situações excepcionais. Porém, a utilização de
oratórios com função de altar parece estar se multiplicando, para “escândalo daqueles que sabem
da proibição”. A tendência da utilização de oratórios com função de altar em Minas Gerais parece
se expandir e se generalizar por todo o território, com as mais variadas motivações, como podemos
observar nessa petição feita em nome do contratador de diamantes na comarca do Serro do Frio:
Excelentíssimo reverendíssimo
Diz o contratador do atual contrato dos diamantes que para bom regímen do
mesmo e consolação espiritual das pessoas, que o administram e nele laboram se lhe faz
preciso haver oratório em cada um dos serviços que se estabelecerem, segundo o tempo
e demora que neles houver; para nele se dizer missa e satisfazerem os preceitos da Igreja;
mercê que Vossa Excelência e seus excelentíssimos antecessores têm concedido aos mais
contratadores pretéritos; como também que nos hospital dos enfermos do mesmo
contrato, se use da mesma graça; e porque não pode continuar nela sem especial licença.
Pede a Vossa Excelência reverendíssima lhe faça mande conceder-lhes.
Espera Receber Mercê.282
A partir dessa petição em nome do contratador de diamantes (século XVIII, sem data
precisa) verificamos que as solicitações de oratórios, a fim de se realizar missa para “consolação
279 CHAHON, Sérgio. Os convidados para a ceia do Senhor: as missas e a vivência leiga do catolicismo na
cidade do Rio de Janeiro e arredores (1750-1820). São Paulo: Edusp, 2008, p. 45.
280 CHAHON, Sérgio, op. cit. p. 45.
281 CHAHON, Sérgio. op. cit. p. 45.
282 Documento avulso, digitalizado. Proveniente de Minas Gerais, Comarca do Serro do Frio. Século XVIII. [p. 1].
espiritual das pessoas” (assim como em hospitais e cadeias) possuíam a função de suprir a ausência
de igrejas em locais com maior dificuldade de acesso, assim como em locais onde a urbanização
não era presente. No entanto, uma petição parecida ao do contratador de diamantes ocorreria num
dos mais dinâmicos centros urbanos da capitania no Setecentos: Vila Rica. Os oficiais da Câmara
de Vila Rica realizam uma representação oficial ao monarca, onde solicitam a designação de um
sacerdote para assumir o posto de corregedor do oratório da Câmara, a fim de que rezasse ali missa
“para as pessoas da referida Câmara”.283 Nesse aspecto, é observável que o uso de oratórios com
função de altar em ambiente urbano, que contava com templos em franca atividade religiosa,
também ocorria. Se levarmos em consideração o que previam as Constituições Primeiras, como vimos
anteriormente, essa questão possuía uma problemática deveras complexa, tendo em vista a
proibição explícita do bispado. Contudo, em detrimento da legislação eclesiástica, ela ocorria,
sobretudo nas residências mais abastadas ou instituições de representação do Estado, como as
Câmaras.
É sabido que o uso dos oratórios privados foi difundido nos altos círculos de poder,284 e
também fica evidente o paralelo entre o oratório diante do qual se realizavam exercícios e orações,
e o altar. Essa aproximação entre religiosidade privada e pública (pois o altar e a Missa possuem
natureza explicitamente pública, amparada nas Constituições Primeiras, como vimos) podia até mesmo
gerar um ‘espírito de concorrência’ para com os ofícios realizados nos templos católicos. Tal
aspecto fez com que se criticasse com ênfase o uso dos oratórios para celebração da missa, mesmo
que a residência não possuísse uma distância considerável de um templo, pois “a condescendência
de se permitirem todos os atos públicos em oratórios particulares, tem posto os templos vazios”,
segundo notou um aristocrata baiano em meados do século XVIII.285
Porém, a fala acima transcrita não representa de todo o panorama, porém, nos chama atenção
o fato de que o privilégio de celebrar Missa em oratório privado, privilégio esse de uma elite, está
imerso num contexto que ultrapassa os limites geográficos do nosso estudo. Embora o privilégio
do oratório com função de altar existisse, as missas neles se realizavam em caráter muito
283
Cx. 81. Doc. 19. Conselho Ultramarino/Minas Gerais. 1763. |AHU
284 CHAHON, Sérgio. op. cit. p. 42.
285 E ainda acrescenta: “[...] sendo um dos primeiros artigos para mostrar o grande caráter da pessoa e distinção de sua
nobreza, o não procurar igreja para ouvir missa, mas sim seu oratório, e isto é mais vulgar nos nacionais do que nos
da Europa, para falar a verdade”. Fala do capitão Domingues Alves Branco no manuscrito Memória, tópico: “Abusos
que se têm introduzido na Bahia, 1780 – Biblioteca Pública do Porto, Portugal. Originalmente citado por MOTT, Luiz.
Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: SOUZA, Laura de Mello e Souza; NOVAIS, Fernando
A. História da Vida Privada no Brasil – Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. São Paulo: Companhia
das Letras, 1997, p. 161.
148
A Bula da Santa Cruzada foi um documento pontifício que remonta à Península Ibérica no
período da Reconquista, valendo para a sociedade portuguesa a partir da dita União Ibérica (1580-
1640).286 A Bula era, primeiramente, endereçada ao monarca espanhol, visando auxiliar no processo
de luta contra o invasor infiel. Concedia indulgências a todos os que nela tomassem parte por
intermédio de obras de caridade ou esmolas, sendo no Ultramar (principalmente na América
Portuguesa) difundida como meio de propagação e manutenção da fé católica.287 Segundo o
conteúdo contido na referida bula, os habitantes da urbe teriam a possibilidade de transpor para
dentro de suas casas a liturgia eucarística nos seus oratórios privados, sendo as cláusulas (da bula)
renovadas inúmeras vezes em âmbito colonial, tendo em vista as arrecadações obtidas através das
esmolas dos fiéis (segundo as suas posses) para a libertação dos cristãos aprisionados no norte da
África.288 Com tal determinação, o privilégio revogava a própria interdição do Concílio de Trento,
expressas para o Brasil através das Constituições Primeiras, conforme vimos.
Para Sérgio Chahon, a Bula da Santa Cruzada parece ter sido publicada tardiamente no Brasil
(apenas no século XIX), destacando que o bispado do Rio de Janeiro advertia a necessidade de
garantir as mercês facultadas pela Bula.289 No entanto, discordamos dessa afirmação. Constatamos
que na Capitania das Minas, a Bula já circulava no território através de uma festa marcada pela
pompa. No ano de 1747, já havia menção à dita Festa da Bula da Santa Cruzada, identificada através
de um pagamento realizado pela Câmara da Vila de São João del-Rei no valor de 32 oitavas de ouro
ao ouvidor-geral da Comarca.290 Mais tarde, em 1788, em acórdão da data de 24 de setembro do
corrente ano, são autorizados os pagamentos das propinas (pagamento referente à participação de
autoridades político-administrativas em atos religiosos) no valor de 96 mil réis a cada membro da
Câmara de São João del-Rei. Para a referida festividade da Publicação da Bula a propina tinha o valor
de 5 mil réis.291
São João del-Rei, até onde pudemos constatar (até que outros documentos venham a lume),
talvez tenha sido a única vila da capitania a celebrar com pompa a festa da publicação da bula. No
286 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte: A construção histórica do acervo de
oratórios brasileiro – séculos XVIII-XIX. São Paulo: Alameda, 2014, p. 87.
287 NAZ, Raoul. Dictionnaire de droit canonique. Citado originalmente por RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op.
cit. p. 87.
288 CHAHON, Sérgio. op. cit. p. 46.
289 CHAHON, Sérgio. op. cit. p. 47.
290 CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Vol. II. 2ª ed. Belo Horizonte: Imprensa Oficial
entanto, a presença da bula também pode ser observada em outras localidades da capitania, através
da documentação remanescente. Na documentação analisada no Arquivo Histórico Ultramarino,
podemos observar algumas menções à bula. Em 1753 na sede do bispado, em Mariana, seria
despachada para Portugal uma representação de oficiais da Câmara, solicitando que se regularize
as cobranças de esmolas da Bula.292 Num outro interessantíssimo documento, vemos um
requerimento do procurador da Bula da Santa Cruzada da Capitania de Minas, solicitando ao
monarca D. João V a mercê de ordenar que na alfândega do Rio de Janeiro não se inovasse a
respeito do despacho da marca e bilhete das caixas das bulas com destino a Minas, 293 o que
demonstra certos aspectos do aparato burocrático em torno da bula, assim como em outro
interessante registro, infelizmente sem data, onde um procurador da Bula da Santa Cruzada de
Minas solicita ao monarca a manutenção dos privilégios dos tesoureiros e outros oficiais da bula,294
o que ressalta ainda mais a figura do aparato burocrático em torno da bula, além de certa tensão
em relação ao poder régio.
A partir desses registros, fica constatado que a Bula da Santa Cruzada circulou na colônia
desde o século XVIII, com pompa e circunstância. De acordo com Silveli Russo, como apontado
por Fortunato de Almeida, a festividade da Bula era anunciada no Reino com majestosas
procissões, tornando públicas “as indulgências e graças que desfrutavam todos os que as
logravam”.295 Sendo assim, a prática do lucro de indulgências com a referida Bula, assim como a
partir dela o hábito de utilizar oratório doméstico convertido em altar, era corrente. Porém, como
dissemos anteriormente, a própria Bula contradizia a normatização da religiosidade sob a vigência
de Trento. Temos daí uma aparente controvérsia.
292
Cx. 63. Doc. 67. Conselho Ultramarino/Minas Gerais. 1753. | AHU
293
Cx. 54. Doc. 60. Conselho Ultramarino/Minas Gerais. 1749. | AHU
294
Cx. 8. Doc. 7. Conselho Ultramarino/Minas Gerais. [s/d]. | AHU
295 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op. cit. p. 88.
150
Trento, destaca alguns pontos importantes. Desses pontos, selecionamos quatros críticas, que
seguem.
Primeira crítica: de acordo com “los breves ordinarios Pontificios de Oratorio domestico” é autorizada
a celebração da missa, em oratório privado, todos os dias exceto nas festividades da Páscoa e demais
festas litúrgicas ao longo do ano. Porém, a Bula da Santa Cruzada autoriza a celebração da missa
em qualquer dia do ano, mesmo nas datas proibidas. Tal contradição (e as práticas oriundas dessa
contradição) é interpretada pelo clérigo como um abuso.296
Segunda crítica: a dicotomia entre público e privado. A Missa é entendida como bem de
todos, sendo assim, de natureza pública. A celebração nos oratórios, portanto, também deveria ser
pública. Porém, o caráter privado do oratório impede que a celebração eucarística mantenha a sua
natureza original, sendo assim, o uso de tais oratórios se constitui como um privilégio destinado às
elites e famílias de nobre linhagem, não a todos os ‘filhos de Deus’ (não se realiza uma crítica direta
a tais elites).297
296 ERICE, Don Juan Josef de. Controversia Moral sobre el uso de los Oratorios domesticos. Em atencion a los
breves Pontifícios, y Bula de la Santa Cruzada. Escrita por Don Juan Josef de Erice, Abad de la Iglesia
Parroquial del Lugar de Larraya, Obispado de Pamplona. Año de 1788. Com licencia: En Pamplona por Antonio
Castilla, Impresor. p. 1. Arquivo-Biblioteca da Catedral de Santiago de Compostela | ABCS
297 Controversia Moral. p. 24-32. |ABCS
151
Não cabe a esse estudo aprofundar os diversos temas e a vasta argumentação do autor da
Controversia Moral,300 porém, notamos a semelhança dos problemas inerentes ao uso de oratórios
privados com função de altar que ocorrem na Espanha com o que ocorria na colônia lusitana.
Silveli Russo aponta que na São Paulo colonial muitas questões dessa natureza também ocorriam.
Tratando dos ‘preceitos’, temos, por exemplo, uma pastoral reclamatória do vigário Paulo de Souza
Rocha (impressa em 1796) chamando a atenção quanto ao “costume perverso” de buscar satisfazer
os preceitos da Igreja (no contexto das ‘desobrigas quaresmais’) em oratórios particulares, ato
reprovado pelo Concílio Tridentino e Constituição que se observa no bispado.301 Sobre esse
contexto, nota-se:
o estudo já citado: HERRERA, Rosália María Vinuesa. Estudio de los oratorios domésticos y capillas privadas en
los siglos XVII y XVIII a través de la documentación conservada en el Archivo General del Arzobispado de
Sevilla. Tese doutoral. Departamento de História da Arte, Universidade de Sevilha. 2016.
301 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op. cit. p. 89.
302 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. op. cit. p. 90.
152
Assim sendo, nesse contexto, a Bula da Santa Cruzada adquire um caráter anacrônico,
contradizendo as próprias determinações tridentinas expressas nas Constituições Primeiras. O que
podemos entender diante do exposto, é que o oratório doméstico com função de altar possuía não
apenas um considerável valor econômico que lhe era inerente (tendo em vista os valores do oratório
enquanto obra de arte e o processo burocrático exigido para a sua obtenção) mas também um valor
simbólico igualmente importante.
Acerca de tais testamentos, trazemos a essa análise apenas dois excertos.304 Em primeiro
lugar, devemos notar que a maioria dos testamentos são iniciados com uma espécie de súplica por
parte do testamentado, como notamos no inventário post-mortem de João Lopes Loureiro, de 1754:
Peço e rogo a gloriosa sempre Virgem Maria Nossa Senhora queira por mim interceder
[não legível] [...] e o bem-aventurado São João [...] santo do meu nome, ao anjo da minha
guarda, e o bem-aventurado São Francisco e a todos os santos e santas da corte do céu
peço [que] sejam meus advogados diante da divina majestade [...] para [ter ou haver/de
mim/para mim] misericórdia [...].305
303 Fica patente que a maioria dos homens e mulheres inventariados eram pertencentes às classes mais abastadas,
porém, os menos favorecidos economicamente também recorriam aos serviços de um testamenteiro. Esse fato indica
que havia uma necessidade de esforço por parte de pessoas menos favorecidas em resolver suas pendências, assim
como os ricos, pois o momento da escritura de um testamento propiciava um momento íntimo para dispor dos bens,
solicitar ritos fúnebres e afins. Além disso, a maioria dos testamentos no período colonial demonstram o apego
sentimental aos santos, como auxílio no momento da passagem da vida terrena para a vida espiritual. Nesse sentido, a
história das devoções e da religiosidade popular (principalmente do culto aos santos) tem nos testamentos um universo
rico em detalhes. Ver em: JURKEVICS, Vera Irene. Os santos da Igreja e os santos do povo: devoções e
manifestações de religiosidade popular. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em História da
Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2004.
304 Os dois excertos aqui trabalhados foram lidos no original para essa pesquisa. Porém, a consulta a esses inventários
se deu por meio da preciosa indicação da Profa. Sílvia Brügger e citados originalmente na obra: BRÜGGER, Sílvia
Maria Jardim. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João del-Rei – Séculos XVIII e XIX). São Paulo:
Annablume, 2007.
305 Inventário post-mortem de João Lopes Loureiro, 1754. | AIPHAN/SJDR [grifo nosso].
153
A partir disso, observamos que o ‘universo simbólico’ desses homens e mulheres (em
referência aos indivíduos inventariados na Comarca do Rio das Mortes, por exemplo306) está
centrado no culto aos santos. O oratório doméstico, como objeto integrante do culto aos santos
(lhe servindo até mesmo como sede de tal culto) também aparece relacionado entre os bens
inventariados, possuindo denotado status. No testamento de Felícia Barbosa, é legado a Maria
Bárbara (enjeitada e criada como filha pela testamentada) um imóvel e junto dele:
[...] Declaro que também deixo à minha enjeitada Maria Bárbara o meu oratório e
imagens e a cômoda aonde está o oratório, com a condição de mandar dizer quatro
missas por minha alma, de que apresentará certidão a meu testamenteiro. 307
[...] pelos bons serviços que tenho recebido de minhas duas filhas solteiras, Messias e
Mariana, e pela caridade com que me têm tratado nesta minha prolongada moléstia, é
minha última vontade que lhes fique pertencendo a minha terça para ambas em igual
parte, e quero que seja a mesma feita no valor de uma morada de casas que possuo em o
Morro das Mercês desta Vila e juntamente em um oratório com suas imagens; e no
caso que minha terça não chegue para o valor das ditas casas e oratório, serão obrigadas
à reposição dos mais herdeiros.308
Podemos, a partir dos dois excertos acima transcritos, perceber que o oratório doméstico ‘e
suas imagens’ são relacionados diretamente com a moradia, portanto, herdados juntos. O que
reforça, de fato, o caráter do ambiente doméstico como sede de religiosidade. O culto aos santos
(enquanto elemento de piedade e espiritualidade católica) possui no oratório um destaque através
‘das suas imagens’, por isso, um e outro sempre estão juntos. Estão relacionados intimamente.
Além disso, no primeiro excerto (de Felícia Barbosa) a condição para herdar o oratório é a de
“mandar dizer quatro missas” pela alma da testamentada, o que denota a preocupação pelo sufrágio
da alma e refrigério da mesma no além. Nisso, observamos o oratório como um bem de denotado
interesse em ser legado, sobretudo como objeto de devoção e com forte carga afetiva.309
306 Segundo estudos, a maioria dos inventários do século XVIII na Comarca do Rio das Mortes apresenta como
tipologia a menção aos santos, entre eles o citado João Lopes Loureiro que trouxemos (e citado originalmente) no
artigo que segue: NIERO, Lidiane Almeida. Religiosidade Mineira: Devoção aos Santos na Comarca do Rio das Mortes
no Século XVIII. Sacrilegens – Revista dos alunos do Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião
da UFJF, Juiz de Fora, v. 11, n. 1, jan/jun 2014, pp. 124-138.
307 Cx. 507. Inventário post-mortem de Felícia Barbosa Silveira, 1817. |AIPHAN/SJDR [grifo nosso].
Citado originalmente em: BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João del-
Rei – Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007, p. 209.
308 Cx. 148. Inventário post-mortem de Maria Josefa de Magalhães, 1810. |AIPHAN/SJDR [grifo nosso]
Citado originalmente em: BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. op. cit. p. 168.
309 Desse contexto, surgem expressões tradicionais como “da minha avó, da minha mãe” evidenciando as imagens
devocionais e oratórios como bens tradicionais de herança e permeados de valor afetivo. Um exemplo disso ocorre
154
Declaro que há mais de 60 anos possuo um Santuário que minha mãe trouxe de Portugal,
o qual compõe-se de um calvário, com 1.ª Imagem do Senhor Crucificado, de N. Sra., S.
José, Madalena e 2 serpentes, para cujo santuário mandei fazer um oratório de cabiúna
ovado em 3 faces, que admitindo vidraças, se lhe puzeram cortinas de damasco, tendo
aquela imagem muitas indulgências que lhe concedeu O Senhor Bispo, em razão de sua
perfeição como consta de uma autêntica que conservo, por ele assinada, cujo oratório,
Imagens, e 4 castiçais de casquinha fina que para ele comprei, passará por morte
de minha mulher, para a Igreja do Carmo desta Villa.310
O oratório fora especialmente feito para servir de pequena capela ou nicho para guardar as
imagens portuguesas, possuidoras de indulgências, trazidas por sua mãe. Assim como nos trechos
de testamento anteriores, o oratório também é testado como herança, dessa vez para a Ordem do
Carmo de São João del-Rei, o que demonstra também uma certa reverência tendo em vista que as
imagens do referido oratório possuem indulgências, ou seja, deveriam estar expostas publicamente
(mesmo que seja para um pequeno grupo311).
Tais fragmentos nos mostram o caráter espiritual que os seus donos conferiam aos oratórios,
possuindo sempre uma carga afetiva, simbólica e principalmente religiosa. Partindo do aspecto da
religiosidade, o oratório doméstico como sede de devoção (e com forte carga afetiva, como visto)
contém ainda um aspecto pouco explorado: a espiritualidade. Campo emergente na pesquisa
histórica, a espiritualidade como conceito pode ser utilizada para compreender o oratório
doméstico como objeto privilegiado da religiosidade doméstica. É o que tentaremos fazer a partir
daqui.
com oratórios encontrados em casas de caboclo no interior de São Paulo, ver o relato em: ETZEL, Eduardo. Imagens
religiosas de São Paulo, apreciação histórica. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1971, p. 107.
310 Excerto do testamento (testado em 1834) do Dr. Gomes da Silva Pereira (1739-1839). In: CINTRA, Sebastião de
Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Vol. II. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982, p. 355-356. [grifo nosso]
311 Interessante observação acerca desse fragmento (do testamento citado) foi feita pelo memorialista são-joanense,
Sebastião de Oliveira Cintra. Em 1972, fora lançado um calendário com 12 registros fotográficos de peças artísticas do
barroco brasileiro. Na terceira foto, havia a seguinte legenda escrita pelo restaurador Prof. Edson Motta: “Calvário –
grupo em madeira – Século XVIII – Igreja do Carmo de São João del-Rei, Minas Gerais – Euforia do Barroco Brasileiro” 311.
Atualmente, na referida Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo de São João del-Rei, há dois
grupos escultóricos cuja iconografia parecem tratar das imagens do oratório doado pelo Dr. Gomes da Silva Pereira.
Pelas dimensões das peças, podemos imaginar igualmente as dimensões do oratório que, infelizmente, não chegou até
nós.
155
Ao longo do presente capítulo (o que também pode ser observado no capítulo anterior, assim
como nos próximos), podemos perceber a destacada presença da antiga Vila de São João del-Rei
no que condiz à presença dos oratórios domésticos na história da religiosidade católica em Minas.
Embora tenhamos como recorte a Capitania de Minas Gerais no Setecentos e Oitocentos, a antiga
cabeça da Comarca do Rio das Mortes possui obras artísticas e fontes iconográficas e documentais
(além de certas especificidades) ainda bem preservadas, que em muito colaboram para a
compreensão do ‘contexto geral’.
Uma dessas ‘questões específicas’ se refere a já citada Bula da Santa Cruzada. Embora a
cobrança da Bula, assim como o seu uso enquanto privilégio fosse generalizado pelas Gerais, como
apontamos através da documentação levantada, talvez São João del-Rei tenha sido uma das únicas
vilas em que se celebrava com pompa e circunstância a chamada ‘festa da bula’, como vimos
anteriormente. Além disso, no início do século XX, São João del-Rei seria referenciada como a
terra “de tantos oratórios”,312 o que nos leva a conjecturar a expressiva quantidade de oratórios que
a antiga vila deveria possuir desde o já distante século XVIII.
A iconografia relativa ao uso dos oratórios domésticos fora produzida, sobretudo, no Rio
colonial e Imperial, como pudemos observar anteriormente ao analisarmos as aquarelas produzidas
por viajantes, como Jean Baptiste Debret, Henry Chamberlain e outros. Contudo, São João del-Rei
possui o privilégio de ter sido cenário de uma dessas cenas cotidianas registradas por viajantes
estrangeiros, sendo talvez a única iconografia de época que atesta a presença de oratórios no
cotidiano das Minas.
312
Constatação emitida pelo crítico literário, dramaturgo e fundador (um dos) da Academia Brasileira de Letras, Arthur
Azevedo, no artigo “Um artista mineiro” publicado na Revista Kósmos em 1904. O artigo em questão será
devidamente explorado no quarto capítulo do presente estudo. Revista Kósmos. Anno I, n. 2, 1904. | ABN/RJ
156
Figura 65. Johan Moritz Rugendas. Vista do Matozinhos. Séc. XIX. Aquarela sobre papel. Fonte: Creative Commons.
Johan Moritz Rugendas (1802-1858), naturalista europeu, quando esteve em São João del-
Rei na primeira metade do século XIX, registrou uma cena emblemática. Em sua aquarela, as cores
leves e em gradação tonal revelam a virtuose do naturalista na representação da perspectiva
atmosférica. É um ar leve, sublime, recortado com uma paisagem idílica das montanhas, tão
características das Gerais. Como observador da natureza, consegue precisar traços da vegetação e
os acidentes geográficos, como as depressões causadas pela erosão do solo. Igualmente, como bom
observador dos costumes, Rugendas representa o subúrbio do Matozinhos, uma das entradas para
a Vila de São João del-Rei. Em primeiro lugar, a urbanização é tímida. Num rarear de casas
tipicamente coloniais, temos duas aberturas que formam largas avenidas. Predominam, porém, as
torres da igreja do Senhor Bom Jesus de Matozinhos, demarcando a devoção predominante
naquelas terras. O Matozinhos do século XIX é uma chácara, com ar tipicamente rural.
Em meio aos carros de boi, uma cena perturba a pacatez representada. Ao lado de um sôfrego
jumentinho, temos um homem com chapéu de abas largas, botas de cano alto e com vestes sóbrias.
Carrega em suas mãos um pequenino armário, com as portinhas abertas. À sua frente, um homem
negro, descalço, se inclina como que em reverência diante do pequeno armário. Sua mão direita
parece depositar algo no diminuto objeto, ou mesmo tocá-lo. Ao lado dos dois homens, um
terceiro, montado a cavalo, retira o chapéu ao vislumbrar a cena, como que em respeito.
reforçado pelo homem a cavalo que retira cortês o chapéu, representa o caráter popular do uso dos
oratórios como elemento material da fé católica que supera barreiras institucionais. Uma fé que se
coloca na estrada, em viagem, alimentando o ímpeto devocional de homens e mulheres que
buscavam conforto na lida cotidiana.
Uma das peculiaridades de São João del-Rei, que pudemos rastrear na documentação
levantada, gira em torno da figura do ermitão com o seu oratório de esmoler. Ao adentrarmos no
consistório da Irmandade das Misericórdias (Santa Casa), podemos observar três retratos pintados
à óleo pelo pintor Venâncio José do Espírito Santo, representando os irmãos eremitas José
Carneiro Vieira, Francisco Moreira da Rocha e Manoel de Jesus Fortes.314 Todos os retratados
possuem dois elementos em comum: o hábito de eremita e o oratório de esmoler (uma caixinha)
dependurado no pescoço. Um desses irmãos, Manoel de Jesus Fortes, além de fundador da Santa
Casa de Misericórdia de São João del-Rei em 1783, fora também fundador de outra Santa Casa no
Arraial do Tijuco (Diamantina) em 1790.315 A partir desses três retratos, é possível considerar que
tais ermitãos faziam parte da religiosidade de São João del-Rei, sendo corriqueiros no cotidiano da
vila, como a própria aquarela de Rugendas [figura 65] pôde demonstrar.
Além destes, um outro ermitão figurou em São João del-Rei no Setecentos: Amaro dos
Santos. O caso específico do ermitão Amaro dos Santos nos possibilita compreender o mecanismo
de ‘criação’ de um ermitão e as motivações que levavam indivíduos a esmolarem pelo território
mineiro. No processo de edificação de uma igreja ou capela, era necessário levantar os fundos
necessários para o empreendimento. Em muitos casos, a figura do ermitão era essencial para o
levantamento desses fundos, através do ato da esmola em vias públicas, como ocorreu com o
313 Sobre a disposição geográfica observada por Rugendas no século XIX, parece que já havia (tendo em vista o traçado
registrado pelo naturalista na altura da igreja do Bom Jesus de Matozinhos) uma disposição para a abertura de estradas
largas. O traçado seria hoje, no século XXI, a representação das avenidas Sete de Setembro e Josué de Queiroz,
contíguas à praça da Igreja do Bom Jesus de Matozinhos (com outro templo, tendo em vista a demolição da igreja
original [como representada por Rugendas] na segunda metade do século XX). Interessante notar a consolidação da
malha urbana a partir de um traçado já existente no século XIX.
314
Os referidos retratos se encontram ilustrados no Caderno Visual desta dissertação.
315
GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei – Século XVIII – História Sumária. São João del-Rei, Edição do
Autor, 1996, p. 114-116.
158
Além de possuir o caráter exigido, o mesmo deveria possuir uma “carta de ermitania” passada
pela autoridade eclesiástica, morar junto da ermida que era responsável e usar não hábitos, mas
“roupetas pardas compridas, ou de outra cor honesta”.317 Amaro dos Santos, antes de se tornar
ermitão, deveria ser um homem de posses, doando o que possuía para a edificação de uma capela
(ermida) dedicada à Nossa Senhora de Nazaré. Na petição realizada pelo padre João da Fé de S.
Jerônimo Gurgel do Amaral em 25 de Maio de 1742, podemos observar o contexto do referido
ermitão.
Diz Amaro dos Santos que o supplicante, por razões espirituaes que o moveo, prometteo
servir a N. S. de Nazareth em sua capella do Ribeiro Fundo, oito léguas distante da villa
de S. João d´El-Rey, districto da mesma freguezia, e pela pobreza da dita capella tem no
316
Constituições Primeiras. p. 232 | BSF/DF
317
Constituições Primeiras. p. 232 |BSF/DF
318
Almanak Administrativo, Civil e Industrial da Provincia de Minas Geraes do Anno de 1874 para servir no
de 1875, organisado e redigido por Antonio de Assis Martins. Propriedade da Provincia. Ouro Preto. Typographia
de J. F. de Paula Castro. 1874, p. 229. | ABN/RJ
159
ornato d´ella gasto os bens que possuía, e porque deseja servir a mesma Senhora por toda
a sua vida em habito de seu ermitão, e para o poder fazer – P. a V. S. lhe faça mercê
conceder licença para usar do dito habito em atenção ao referido. E. R. M. – Passe
provisão na forma costumada. Rio, 8 de Fevereiro de 1746. – Dr. Moreira.319
Após a petição de Amaro dos Santos, passada pelo vigário colado do Pilar (padre João Faria
da Fé), em resposta viriam duas autorizações: uma do poder eclesiástico e outra do poder régio.
Da parte do bispado do Rio de Janeiro (que ainda atendia a Capitania das Minas, tendo em vista a
inexistência do bispado de Mariana), o bispo D. João da Cruz expediria a licença em oito de
fevereiro de 1746. Da parte do poder régio, o monarca D. José I (através do seu Conselho
Ultramarino) expediria a licença somente em 1757.320 A autorização eclesiástica frisava o cuidado e
o asseio que Amaro dos Santos deveria possuir para com a capela de Nossa Senhora de Nazaré,
considerada a sua ermida. No entanto, a autorização régia nos fornece elementos mais
interessantes. O monarca português o autorizava, através da licença expedida, a esmolar com a
‘caixinha’ com a referida imagem de N. S. de Nazaré, esmola essa que deveria ocorrer por toda a
capitania. Através da documentação, podemos observar que o poder régio, sob o regime do
Padroado, versava sobre muitas questões relativas à fé, sobretudo se essas questões envolviam
recursos financeiros. Portanto, tanto a Igreja como o Estado Português controlavam as atividades
dos ermitãos, onde um (a Igreja) disciplinava o lado espiritual e canônico e o outro (o Estado)
controlava a atividade com finalidade financeira. Aliás, é interessante observar até que ponto a
interpenetração entre Igreja e Estado ocorria na América Portuguesa, assim como em todo o
Império Português, tendo em vista que as Constituições Primeiras não falavam nada acerca dos
oratórios de esmoler, mas sim o monarca que detinha o poder de autorizar ou não o uso da
‘caixinha’ (oratório de esmoler) para a esmola peregrina.321
Uma outra peculiaridade de São João del-Rei, dessa vez no espaço urbano da vila, são as
menções a vários oratórios públicos que compunham a vivência da religiosidade. Embora Vila Rica,
nesse mesmo período, possuísse igualmente vários oratórios públicos, São João possuiu
monumentos cuja especificidade devocional (e iconográfica) é atestada.
319
Almanak Administrativo, Civil e Industrial da Provincia de Minas Geraes. p. 229-230. | ABN/RJ
320
Almanak Administrativo, Civil e Industrial da Provincia de Minas Geraes. p. 229-232. | ABN/RJ
321
A íntegra dos documentos referente ao processo do ermitão Amaro dos Santos pode ser consultada nos Anexos
desta dissertação.
O pequeno arraial de Ribeiro Fundo, cuja capela é dedicada à Nossa Senhora de Nazaré, corresponde ao atual
município da Conceição de Barra de Minas, antigo distrito de São João del-Rei.
160
vila de São João del-Rei. Junto aos templos das Irmandades e Ordens Terceiras, os oratórios
públicos (somados às Capelas do Passo) figuravam como locais de sociabilidade e complementares
aos templos ‘oficiais’ do culto cristão. Além disso, integravam a urbanização da Vila com sua
arquitetura, sempre contíguas às casas, aproveitando de seus alicerces.322
No Códice Costa Matoso, o ouvidor-geral, quando registra a história da São João del-Rei
Setecentista, assim descreve:
Subiu o Arraial Novo do Rio das Mortes a vila de São João del-Rei, a qual consta de
presente de quinhentos fogos com pouca diferença, ornada de três igrejas, quatro capelas,
três oratórios que a enobrecem, a matriz de invocação de Nossa Senhora do Pilar, nossa
sempre protetora [...] Na mesma rua, defronte da cadeia, está o oratório de Nossa Senhora
da Piedade, em que se diz missa aos presos. Na rua da Prainha está o oratório das almas,
em que aquela vizinhança canta em louvor da Mãe de Deus suas ladainhas. [...] e no
arrabalde onde chamam o Barro Vermelho está o oratório de Nossa Senhora da
Conceição, monumentos todos eretos pela católica devoção deste povo e por ele com
zelo assistidos e com notável asseio tratados. 323
Dos referidos oratórios públicos citados pelo ouvidor, apenas um conseguiu se manter até o
nosso tempo: o oratório de Nossa Senhora da Piedade. Segundo a tradição oral, o oratório da
cadeia era administrado pela Irmandade de São Miguel e Almas, com sede da Matriz de Nossa
Senhora do Pilar. Curioso notar que o oratório da rua da Prainha, com o epíteto ‘das Almas’, por
lógica também deveria ser mantido pela referida irmandade. Tais informações corroboram
(independentemente de sua veracidade) com a tese já consagrada de que as irmandades leigas, como
patrocinadoras e difusoras da piedade cristã, foram imprescindíveis para a devoção aos santos na
Minas colonial.324 A partir disso, podemos notar a influência da religiosidade institucional nos
oratórios, embora seja evidente, posto que se tratam de edificações públicas. Porém, e nos oratórios
que são estritamente privados, no âmbito do lar?
A devoção difundida pelas irmandades era amplamente dirigida ao povo através das festas
religiosas, sobretudo. A religiosidade católica em São João del-Rei, de maneira particular, é marcada
322
Problematizamos, contudo, o uso do termo oratório em Minas Gerais, tendo em vista a recorrente generalização
do termo. Geralmente, consideravam oratório (público) uma pequena ermida ou capela. O critério para receber o título
de oratório era justamente as dimensões, mesmo se tratando de uma obra arquitetônica. O oratório deveria ser
pequeno. É o que consta, por exemplo, no Almanak Administrativo, Civil e Industrial da Provincia de Minas Geraes de 1864
quando afirmam ao se referir às dimensões de uma capela: “A capella da Ponte Nova é tão pequena que merece mais
o título de ermida ou oratório do que templo, e não tem patrimônio”. Nesse sentido, infelizmente não podemos
elucidar satisfatoriamente se todos os oratórios públicos de São João del-Rei se tratavam de oratórios públicos de fato,
tendo em vista que não existem mais. Ver: Almanak Administrativo, Civil e Industrial da Provincia de Minas
Geraes. Para o anno de 1864, organisado e redigido por A. de Assis Martins e J. Marques de Oliveira. Rio de
Janeiro. Typographia da Actualidade, 1864, p. 399. | ABN/RJ
323 CÓDICE COSTA MATOSO. op. cit. p. 285, 286, 287.
324 CAMPOS, Adalgisa Arantes. O mecenato dos leigos – Ordens terceiras, irmandades e religiosidade popular. In:
principalmente pelo efusivo calendário religioso que orbita (até a atualidade) em torno das datas
festivas das irmandades, confrarias e ordens terceiras, conforme vemos na tabela que segue:
Tabela 8. Irmandades religiosas em São João del-Rei e a estimativa de festas devocionais a elas
associadas.325
325 Festas religiosas promovidas desde o século XVIII até a presente data
326 Levantamento realizado nos livros de Receita e Despesa das irmandades de São João del-Rei (de 1770 a 1970)
Arquivo Eclesiástico da Catedral Basílica de Nossa Senhora do Pilar (SJDR)
Arquivo da Ordem Terceira do Carmo de São João del-Rei.
Arquivo da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de São João del-Rei.
Arquivo da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São João del-Rei.
Sobre festas religiosas, cabe um adendo: É necessário deixar claro que a tabela acima trata-se de uma estimativa
fundamentada em documentação, porém, não é objetivo do presente estudo rastrear a totalidade das festividades.
Provavelmente havia outras festas ligadas às associações religiosas que não estão listadas. E havia também festas não
ligadas a essas associações. À título de ilustração, algumas fontes encontradas mostram registros e menções a
festividades religiosas, porém, sem identificação das associações leigas que as realizavam, como por exemplo, a festa
da Bula da Santa Cruzada (século XVIII). Interessante notar que também havia festas ‘menores’, porém, muito
significativas no universo devocional da Minas Colonial e Imperial como, por exemplo, as festividades em honra a
Santo Antônio, São João, São Pedro e Sant´Ana, conforme curioso e revelador anúncio de venda de material
pirotécnico para as referidas solenidades no periódico ‘Arauto de Minas’, em 1877.
Ver: Cópia digitalizada. ‘Arauto de Minas’, edição de 17/06/1877, n. 15. |ABN/RJ (Gentilmente cedida por Mariana
Alves de Araújo).
162
Além disso, muitas festas religiosas também eram consideradas festas régias (como por
exemplo, Corpus Christi) e por isso contavam com patrocínio e participação de autoridades político-
administrativas da vila.327 Como tratamos ao longo desse capítulo, as irmandades e confrarias
religiosas possuíram a função de animar a devoção aos santos através do culto público e das festas
religiosas, que junto ao Estado Português (por meio do regime do Padroado Régio) promoviam a
vida religiosa da colônia.
A questão que propomos nesse momento trata da relação entre religiosidade externa e
religiosidade doméstica. Definimos como ‘religiosidade externa’ as devoções que são celebradas na
dimensão pública, sobretudo aquelas que possuem representações artísticas (imagens) circulando
em procissões. Já o termo ‘religiosidade doméstica’ o definimos com o sentido que temos utilizado
ao longo desse estudo, ou seja, o exercício da piedade católica (principalmente devocional) realizada
no âmbito doméstico e principalmente praticada diante do oratório.
[...] como a própria palavra a priori no indica, constitui uma experiência de cunho
essencialmente religioso, definida, muitas vezes, a partir da contraposição entre a vida
material, isto é, as preocupações e atividades inerentes aos cuidados com a sobrevivência,
e a vida espiritual, enquanto busca de algo que transcende o modo humano. No entanto,
esta busca, embora tendencialmente vivida numa perspectiva de distanciamento da
realidade visível, tem um caráter e um conteúdo intrinsecamente ligados ao ambiente
social e ao contexto histórico, mostrando-nos, através de suas manifestações, “como se
vive do Absoluto nas condições reais fixadas por uma situação cultural”.328
Sendo assim, “[...] vida espiritual e vida cultural se confundem e se fundem na experiência
pessoal, revelando, historicamente, a relação entre as crenças e valores religiosos e os valores e
327 Além das festividades do Corpo de Deus, outras celebrações litúrgicas e suas respectivas procissões contavam a
destacada participação das autoridades militares e administrativas da vila como, por exemplo, as festividades de Nossa
Senhora do Pilar (padroeira da Vila), Cinzas, Semana Santa e afins. Sobre a verificação de tais registros, indicamos o
compêndio documental organizado por Sebastião Oliveira Cintra na obra: Efemérides de São João del-Rei (volumes I – II).
328 CAES, André Luiz. As portas do inferno não prevalecerão: a espiritualidade católica como estratégia política
normas sociais”.329 Pensando a partir desse aspecto, é pertinente indagar o papel cultural que as
festividades (e o seu programa iconográfico difundido através das imagens) exerciam na
espiritualidade doméstica através dos oratórios. A memória familiar, o exercício piedoso e
principalmente a cultura iconográfica que pode indicar uma circularidade entre religiosidade pública
e privada são faces de uma mesma espiritualidade que não ocorre somente no passado que por ora
nos ocupamos, mas que também ecoa na contemporaneidade, como veremos a seguir.
Todo diálogo é eterno.330 A espiritualidade católica, fruto de uma religiosidade mediada pela
função pedagógica das imagens, ainda se mantém em nossos dias. O oratório doméstico, artefato
primordial de tal espiritualidade, continua de certa forma a dialogar com aqueles que o utilizam
para se comunicar com o sagrado. Tendo isso em mente, finalizamos essa parte do nosso estudo
com registros que se colocam mais próximos de nós. Temos visto, desde o início dessa pesquisa, o
papel central que o oratório doméstico teve na religiosidade privada dos cristãos nos séculos XVIII
e XIX no Brasil. Vimos que o oratório, desde a sua origem na Europa, tornou-se o artefato (e o
lugar, não esqueçamos) que pôde satisfazer o anseio de homens e mulheres em busca da conexão
com o divino fora dos limites institucionais da Igreja Católica.
João Francisco Marques, historiador português, assim fala dos oratórios em ambiente
lusitano:
O modus operandi que a devotio moderna veio, por assim dizer, revolucionar, e acabou
impondo, conduziu, no quotidiano dos leigos, à definição e conquista de um
compartimento intimista, pessoalizado, onde se confinava uma espiritualidade
individualizada, muito da feição do devoto e em que este se refugiava e satisfazia. [...]
Espaço de silêncio, convidava à reflexão e à devoção afectiva, à elevação do espirito na
contemplação das realidades transcendentes.331
Portugal. Vol. 2. Centro de Estudos de História Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Casais de Mem
Martins, Rio de Mouro: Círculo de Leitores AS, 2000, p. 605.
164
O oratório, que poderia ser “rico ou modestíssimo, variado no ornato e recheio”332 não é
somente um artefato do passado, mas também um objeto do presente, embora o seu sentido
original seja muito diferente da sua função atual. Não buscamos nesse tópico nos afastar do nosso
recorte temporal, porém, se o historiador se volta para o passado com um problema do presente,333
buscamos aqui elementos do nosso tempo que podem fazer referência à espiritualidade diante do
oratório doméstico que temos tentado compreender através das fontes.
Um de tais ‘ecos’ do passado em nosso tempo pode ser observado no oratório da família
Campos-Coelho [figura 66].
A família Campos Coelho possui relações genealógicas com Ana Eugênia Ribeiro Campos,
segunda esposa de Alexandre José da Silveira, o barão de Itaverava, proprietário do casarão
emblemático popularmente conhecido como o ‘Solar da Baronesa’ em São João del-Rei. Segundo
relatos orais, o referido oratório [figura 66] foi de propriedade da família Campos Coelho até a
década de 1950, quando foi doado à Venerável Ordem Terceira de São Francisco de Assis após a
morte dos irmãos Antônio Gonçalves Coelho e Ana Eugênia Campos da Cunha Coelho.334
Embora os dados documentais sobre o oratório não tenham chegado até nós, um relato oral
de um membro da família nos serve de testemunho. Para isso, consideramos pertinente utilizar a
história oral como ferramenta para compreender o relato como fonte histórica. Nesse sentido,
interessa-nos compreender “o que a narrativa dos que viveram ou presenciaram o tema pode
informar sobre o lugar que aquele tema ocupava (e ocupa) no contexto histórico e cultural”335 que
investigamos.
Esse oratório pertenceu à tia Nicota. Essa tia Nicota é a Ana Eugênia que você viu
naquela plaquinha dentro do oratório. Engraçado, ela tinha o mesmo nome da Baronesa,
aquela do solar. Escrevi um artigo sobre isso uma vez. Tenho certo parentesco com ela.
O oratório era um bem da família durante longos anos, sempre enorme na sala de estar
onde a tia Nicota rezava. Sempre rezou. [...] Quando da morte da tia Nicota, em 1956, o
oratório passou para a mão dos familiares mais próximos. Estes decidiram que, devido
ao apego afetivo que eu tinha para com ela, o oratório deveria ir para a casa de minha
mãe [...].336
Em primeiro lugar, notamos a carga afetiva que o familiar demonstra quando cita o oratório.
Atesta a sua presença em ambiente familiar e reforça a si mesmo como aparente ‘herdeiro’, o sendo
devido ao “apego afetivo” que tinha para com a tia, proprietária do oratório. A próxima fala é
notável:
Minha prima ouviu-me na ocasião [...] na realidade ouviu mais à minha irmã e minha mãe.
Não me lembro a data correta, lá na plaquinha está 1956, mas acho que foi na década de
80. O oratório estava pegando pó na casa e muita coisa estava sendo dispensada para a
venda. Mas o oratório era especial. Queriam ele lá em casa. Mas como colocar algo tão
grande em casa? [...] Era algo para ser visto, não queríamos romaria em casa! Sem solicitar
mais ninguém, a prima em questão doou o oratório para a Ordem Terceira de São
Francisco e lá está até hoje [...].337
Claro que a narrativa do familiar se trata de uma representação,338 porém é curioso notar que
para ele o oratório, mesmo “pegando pó na casa”, continua a ser um objeto “especial”. A
qualificação do oratório se mantém, mesmo estando entre os bens para serem vendidos, justamente
pela sua relação para com a memória da família, principalmente de sua última proprietária. Porém,
mesmo sendo um objeto “especial” o mesmo não é mais interpretado como um bem que deveria
se manter na residência da família, mas sim um artefato que “era algo para ser visto”. Nesse sentido,
o oratório adquire um status dúbio: primeiro, de peça de museu pois necessita ser exposto, ao
mesmo tempo mantém o caráter devocional, pois continua a ser um objeto essencialmente
religioso.
A sra. Ana Eugênia Campos da Cunha Coelho, última proprietária do oratório da família
Campos Coelho, ainda se encontra dentro do ‘recorte temporal’ que estudamos: o século XIX. Por
335 ALBERTI, Verena. Manual de História Oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2004, p. 30.
336 TIRADO, Abgar Campos. São João del-Rei, Minas Gerais - 01/05/2018. (Entrevista concedida).
337 TIRADO, Abgar Campos. São João del-Rei, Minas Gerais - 01/05/2018. (Entrevista concedida).
338 E aqui utilizamos a palavra ‘representação’ enquanto conceito formulado e desenvolvido sob a perspectiva do
historiador Roger Chartier em sua obra: História cultural, entre práticas e representações.
166
isso, as imagens do oratório, em sua iconografia, remetem à estética e à espiritualidade que temos
nos debruçado. Através do seu tempo de vida (1873-1956), percebemos a mudança da composição
da imaginária do oratório. Há imagens do século XVIII e XIX, com todo as características eruditas
que lhe são inerentes, assim como peças mais simples, sobretudo de gesso, o que marca a passagem
do tempo através da adição de outras imagens religiosas com materiais utilizados desde o princípio
do século XX.
O que importa dessa constatação é que o oratório, mesmo não pertencendo mais ao
ambiente doméstico, ainda consegue inspirar devoção e piedade naqueles que o contemplam na
contemporaneidade. É o caso do nosso segundo relato.
Fazendo parte desse rico acervo de imagens do oratório da família Campos Coelho, figuram
três imagens fortemente conectadas entre si: a Dormição, Assunção e Coroação de Nossa Senhora,
a iconografia da Boa Morte.340 Na parte inferior do oratório, há três nichos horizontais que contém
igualmente três imagens de terracota policromada, representando a dormição de Nossa Senhora (a
Boa Morte) [figura 67], a Assunção de Maria aos céus [figura 68], e a Coroação pela Santíssima
Trindade [figura 69]. O nosso segundo testemunho gira em torno dessa iconografia tão cara aos
são-joanenses.
339 COELHO, Beatriz (org.) Devoção e Arte, imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: Edusp, 2017, p.
241-273.
Coloco sob suspeita tal atribuição dupla. A talha certamente pode ser atribuída ao escultor Valentim Corrêa Paes, pois
a morfologia facial é coerente com outras peças documentadas do artista. Porém, coloco em dúvida a atribuição da
policromia ao pintor Joaquim José da Natividade, pois, embora o ‘caocete’ principal do pintor (a rosa tripla) seja vista
como uma clara citação ao artista, percebo que as intervenções posteriores (restauro) tenham sido prejudiciais. O
restauro, segundo fontes orais, fora realizado pelo restaurador-conservador são-joanense Carlos Magno de Araújo.
Uma peça sob suspeita. Ver o capítulo quarto do presente estudo estudo.
340 O estudo da iconografia da ‘Boa Morte’ se encontra no quinto capítulo do presente estudo.
167
Ah, normal. Eu cuido, limpo, vejo se não está faltando nada. Faz um tempo que faço
isso. Quando eu chego eu passo direto, vou no santíssimo, rezo, depois venho pra cá
nesse oratório e rezo. Aqui tem a Boa Morte né?
Mas o que tem a ver a Boa Morte?
Uai, sou devoto dela. Se ocê (sic) perceber, são as mesmas imagens da festa (da Boa
Morte). Eu não posso tá lá todo dia, então eu rezo pra ela todo dia aqui. É a mesma de
lá. Eu fico mais aqui na São Francisco, mas posso tá perto dela. 341
O mais emblemático do seu breve relato é a alusão que o mesmo faz às imagens da Festa da
Boa Morte, festa tão significativa do calendário religioso de São João del-Rei. A festa da Boa Morte
(liturgicamente, a festa da Assunção de Nossa Senhora) é composta por uma novena, a celebração
do dia do Trânsito (com a procissão do ‘enterro’ da Boa Morte) e a celebração solene do dia da
Assunção, que conta igualmente com uma procissão festiva cujos andores remetem justamente à
iconografia dos momentos da Assunção e Coroação de Nossa Senhora [figuras 70-71-72].
Por motivos pessoais, o referido funcionário solicitou anonimato, o que foi prontamente acatado.
169
É através da sua comparação que pudemos perceber esse diálogo entre religiosidade externa
(e aqui a entendemos como religiosidade institucional e de caráter público) e religiosidade interna
(de âmbito privado, particular). Nesse aspecto, a religiosidade externa e interna, dimensões de uma
mesma espiritualidade, não é descolada uma da outra, mas, complementares. Portanto, o que se
exerce coletivamente (o rito, a procissão) também é exercido, numa dimensão privada,
individualmente (a devoção no oratório doméstico e suas imagens). Isso se ajusta na perspectiva
assumida por François Lebrun quando afirma que a vivência dessa espiritualidade dicotômica é
contraditória na aparência, mas complementar na realidade.342
A tendência observada no século XVIII por Lebrun (como citado), muito pertinente no
enquadramento da espiritualidade praticada diante dos oratórios domésticos, ainda pode ser –
guardadas as proporções – observada na contemporaneidade. O oratório da família Campos
Coelho, um objeto datado, ainda consegue inspirar devoção e piedade num indivíduo
temporalmente distante do contexto religioso e devocional a que originalmente o oratório estudado
LEBRUN, François. As reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal in CHARTIER, Roger (org.) História
342
da Vida Privada. Da Renascença ao século das luzes. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 78.
170
pertence. Esse fato reforça as ‘permanências’, as heranças religiosas que se constituem como
elementos da cultura popular. Nesse sentido, a espiritualidade enquanto vivência religiosa é
“também experiência cultural”, visto que se insere no cotidiano dos indivíduos, movimentando a
vida interior e determinando, dinamicamente, “o modo e a intensidade” com que a própria vida é
compreendida.343
Tal aspecto é reforçado pela última fala do nosso entrevistado, quando é indagado se a
iconografia da Boa Morte lhe é especial:
Por tratar-se de um homem negro, fica patente a identificação com a sua ‘semana santa’,
posto que a devoção à Nossa Senhora da Boa Morte é identificada como devoção tradicional de
pardos e mulatos forros345 e a tradição oral corrente em São João del-Rei qualifica a festa da Boa
Morte como a ‘semana santa dos mulatos’.346 Não somente no período colonial, mas também na
contemporaneidade, é percebida a questão racial como dinâmica integrante do espectro amplo que
é o exercício da religiosidade católica nos oratórios domésticos de cunho devocional. Ecos do
passado, formas elementares de vivência religiosa que ainda demarcam presença em nossos dias,
cujo modo e representação – embora totalmente diferentes – podem ser observados diante dos
oratórios, objetos do passado, mas ainda muito atuais.
SEGUNDA PARTE
- Análise Formal –
172
173
Os objetos que compõem a nossa pesquisa nesta segunda parte, a Análise Formal, se referem
ao universo dos oratórios domésticos de uso devocional. Essa eleição se justifica, tendo em vista
que tais oratórios compõem integralmente o acervo por nós estudado. Antes de contextualizarmos
o acervo de oratórios elencados para o presente estudo, gostaríamos de definir alguns critérios de
interpretação, sendo: primeiro, nossa postura metodológica e segundo, nossos conceitos
‘operacionais’.
Para isso, nos utilizaremos nesse capítulo da primeira etapa do método iconológico,
defendido pelo historiador da arte alemão Erwin Panofsky (1892-1968). A primeira etapa do
método foi por ele designado como tema primário ou natural. Para Panofsky, o tema primário ou
natural é
[...] apreendido pela identificação das formas puras, ou seja: certas configurações de linha
e cor, ou determinados pedaços de bronze ou pedra de forma peculiar, como
representativos de objetos naturais tais que seres humanos, animais, plantas, casas,
ferramentas e assim por diante; pela identificação de suas relações mútuas como
acontecimentos; e pela percepção de algumas qualidades expressionais, como o caráter
pesaroso de uma pose ou gesto, ou a atmosfera caseira e pacífica de um interior. O
mundo das formas puras assim reconhecidas como portadoras de significados primários
347COLI, Jorge. O corpo da liberdade. São Paulo: Cosac Naify, 2010, p. 13.
Devemos salientar, porém, que a ‘leitura’ e o trato de fontes análogas aos nossos objetos artísticos não anulam (ou
inferiorizam) a postura do olhar direto (e fundador) na análise de obras de arte. Considero-as complementares. Ver a
Introdução do nosso estudo.
174
ou naturais pode ser chamado de mundo dos motivos artísticos. Uma enumeração desses
motivos constituiria uma descrição pré-iconográfica de uma obra de arte.348
Nesse ponto, a postura defendida por Panofsky vai de encontro ao que o historiador da arte
suíço Heinrich Wölfflin (1864-1945) defende, quando se atém primordialmente à forma e aos
elementos compositivos através do método formalista, a assim chamada teoria da visualidade
pura.349 É através do estudo da forma dos oratórios domésticos que compreendemos o seu
significado intrínseco, principalmente enquanto um artefato que se configura como objeto
catalisador da devoção e piedade católica através da talha que apresenta uma singular e expressiva
miniaturização de formas retabulares, sendo acomodado em ambiente doméstico como ecclesiae
domesticae (igreja doméstica) ou seja, um pequeno nicho que imita – simbolicamente e artisticamente
– o universo da retabulística europeia e ibero-americana com função de suporte para as imagens
sacras das igrejas, principalmente a adequação espacial dos retábulos de capela-mor onde se celebra
o sacrifício eucarístico, conforme veremos adiante.
A dimensão por nós explorada nesse momento se concentra na constituição imagética dos
oratórios domésticos como objeto dotado de uma linguagem tripla: a arquitetura, a escultura e a
pintura. Abarcada por uma estrutura arquitetônica, a escultura é disposta e suportada em pequenos
nichos ou peanhas que fazem parte da estrutura retabular, sendo complementadas por uma pintura
348 PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1979, p. 50.
349 WÖLFFLIN, Heinrich. Conceitos fundamentais da história da arte: o problema da evolução dos estilos na
arte mais recente. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
350 Sobre isso, ver o primeiro capítulo desse estudo.
351 BAZIN, Germain. Histoire del´art – de la préhistoire a nos jours. Paris: Garamond, 1953, p. 147.
175
Pela observação direta da curiosa composição visual dos oratórios, propomos interpretá-los
como uma ‘obra de arte total’. A ideia de ‘obra de arte total’, ou seja, a obra de arte que contempla
em sua composição as três belas artes (arquitetura, escultura e pintura), parte do conceito italiano
denominado bel composto.
O bel composto, enquanto conceito, fora definido pelo historiador da arte Gian Pietro Bellori
(1613-1696) que o considera como um “princípio de globalidade, uma obra de arte total”. 352 Esse
princípio de ‘globalidade’ se constitui a partir da harmoniosa junção das três belas artes, como
dissemos: arquitetura, escultura e pintura. O bel composto advém da criação artística do arquiteto e
escultor italiano Gian Lorenzo Bernini (1598-1680) que, nas palavras de Fillipo Baldinucci na
biografia de Bernini por ele escrita, assim registrou sua impressão pessoal: “É uma ideia muito
difundida a de que eu fui o primeiro que buscou unir a arquitetura com a escultura e a pintura de
tal maneira que todas formassem uma graciosa composição (bel composto)”.353 O filho do
proeminente escultor, Domenico Bernini, em outro escrito biográfico sobre a vida do pai, assim
também atestou:
Basta dizer que fora de opinião de todos, de que foi [Bernini] um dos primeiros nos
séculos passados, em ter sabido unir conjuntamente as belas artes da escultura, pintura e
arquitetura e ter feito delas uma maravilhosa composição, integrando-as de maneira
sublime. Tal perfeição fora alcançada mediante uma incansável aplicação, afastando-se as
vezes da regra [clássica], porém, sem transgredi-la jamais, sendo o seu lema o de que
quem não se sobrepõe às vezes à regra, nunca a supera.354
Talvez o exemplo mais notório e de execução formidável de um espaço artístico ‘global’ seja
a Capela Cornaro na Igreja de Santa Maria dela Vittoria em Roma.
352 SERRÃO, Vitor. A teoria de Gian Pietro Bellori e o conceito de bel composto. Curso de Metodologia de
História da Arte. Universidade de Lisboa, 2017. Disponível em: https://fenix.letras.ulisboa.pt/courses/mharte-
846873061495873/ver-artigo/a-teoria-de-gian-pietro-bellori-e-o-conceito-de-bel-composto. Acesso as 14/05/2020.
353 CEBALLOS, Alfonso Rodriguez G de. El “bel composto” berniniano a la española. Semata. Vol. 10, 1998, p. 267.
[interpretação nossa] “Es una idea muy difundida la de que él fue el primero que intentó unir la arquitectura con la escultura y la
pintura de tal manera que todas hiciesen una hermosa mezcla (bel composto)”.
354 CEBALLOS, Alfonso Rodriguez G de. op. cit. p. 267. [tradução e interpretação nossa] [grifo nosso] “Baste decir
que fue opinión universal la de que él fue de los primeros, en los siglos pasados, en haber hecho de ellas un maravilhoso compuesto, poseyéndolas
todas de manera eminente. A la cual perfección llegó mediante una incansable aplicación, saliendose a veces de la regla pero sin trangredirla
jamás, siendo sentencia suya la de que quien no se salta la regla nunca la sobrepasa”.
176
Figura 73. Gian Lorenzo Bernini. Capela Cornaro e Êxtase de Santa Teresa. 1647-1652. Santa Maria della Vittoria,
Roma. Fonte: KAIN, Arrie Ann. Um bel composto: the unification of the visual arts at the old sacristy of San
Lorenzo.
177
A Capela Cornaro, local que hospeda uma das obras mais importantes do barroco italiano –
o Êxtase de Santa Teresa – é o modelo de obra de arte total. Dentro do espaço arquitetônico, a
pintura do teto abobadado se funde aos arcos, com expressivo e bem-sucedido efeito ilusório
(trompe l´oeil) que sugestiona o olhar do observador a não perceber os limites exatos entre a pintura
e a arquitetura propriamente ditas. Tal efeito é realçado pelo efeito das nuvens, em sfumato, assim
como dos inúmeros putti alados escultóricos ou pintados que interagem entre si. Na utilização da
escultura e da pintura em conjunto com a arquitetura estrutural da própria capela, assim como do
retábulo marmóreo que hospeda a imagem de Santa Teresa de Jesus em êxtase, Bernini estabelece
um efeito essencialmente cênico, teatral e dramático, portanto, consideravelmente emocional. É
justamente o fator ‘emocional’ que, nas palavras do historiador da arte Ernst Gombrich, Bernini
buscou alcançar, suscitando no observador “aqueles sentimentos de fervorosa exultação e místico
enlevo, objetivo visado pelos artistas do barroco”.355
Figura 74. Gian Lorenzo Bernini. Detalhe. Capela Cornaro. 1647-1652. Santa Maria della Vittoria, Roma. Fonte:
MURDOCK, Collen. Rainsing the dead: Bernini, the bel composto, and theatricality in conter-reformation
Rome
Figura 75. Gian Lorenzo Bernini. Detalhe. Capela Cornaro. 1647-1652. Santa Maria della Vittoria, Roma. Fonte:
MURDOCK, Collen. Rainsing the dead: Bernini, the bel composto, and theatricality in conter-reformation
Rome
Figura 76. Gian Lorenzo Bernini. Retábulo com Êxtase de Santa Teresa. 1647-1652. Capela Cornaro, Santa Maria della
Vittoria, Roma. Fonte: MURDOCK, Collen. Rainsing the dead: Bernini, the bel composto, and theatricality in
conter-reformation Rome
179
O tratamento desse breve exemplo nos servirá de parâmetro para analisar os oratórios
domésticos a partir do conceito de bel composto, investigando-os como objetos artísticos dotados de
singularidade, ao passo que também se tratam de obras que transitam no universo do mobiliário e
da talha retabular com as suas respectivas expressões arquitetônico-ornamentais, pictórica e
escultural. Reiteramos, porém, que embora identifiquemos o oratório doméstico como obra de arte
total a partir do conceito belloriano, os nossos objetos possuem suas especificidades, não cabendo
aplicar generalizadamente o conceito aos oratórios. Portanto, o conceito de bel composto servirá para
a nossa análise como conceito operacional, não como modelo inflexível.
Sendo assim, a partir do modelo do bel composto, analisaremos nesse momento um acervo de
oratórios domésticos produzidos na Europa, com destaque para as obras portuguesas. A partir da
análise dos objetos reunidos neste capítulo, observaremos a origem e conexão formal dos oratórios
no universo dos retábulos em âmbito europeu, buscando compreender a morfologia complexa e
variada que foi introduzida em Minas Gerais a partir do século XVIII. Partindo dos antecedentes
europeus, buscaremos compreender o oratório doméstico a partir das suas três expressões
artísticas, sendo: o partido arquitetônico (que será analisado conjuntamente com a ornamentação),
a expressão pictórica e o uso da escultura, elementos constitutivos do corpus do oratório doméstico
enquanto obra de arte total. Compreender o mecanismo e os precedentes formais europeus dos
oratórios será vital para analisar o acervo mineiro, objetos do nosso estudo no próximo capítulo.
O retábulo medieval em estilo gótico, sobretudo tardio, consistia numa estrutura de três
painéis, cuja moldura poderia possuir vocabulário arquitetônico e/ou ornamental. O painel central,
de maiores dimensões, apresentava uma cena iconográfica, sendo ladeado pelos chamados
180
‘volantes’ que apresentavam outras cenas iconográficas que poderiam ou não estar relacionadas à
cena principal. Tais volantes também serviam de ‘portas’ que quando cerradas poderiam conter
decoração mais simples ou miniaturas: trata-se do modelo de ‘tríptico’356. Junto ao retábulo tríptico,
existiam também os denominados dípticos e polípticos, sendo subdivido o primeiro por duas e o
segundo por quatro partes ou mais.
356 ROQUE, Maria Isabel Rocha. Altar Cristão. Evolução até a reforma católica. Lisboa: Universidade Lusíada
Editora, 2004, p. 42.
357 ROQUE, Maria Isabel Rocha. op. cit. p. 42.
358 ROQUE, Maria Isabel Rocha. op. cit. p. 44.
181
A mesma estrutura tripartida do retábulo acima representado pode ser observada nos
pequenos retábulos adaptados como nichos devocionais, a exemplo dos retábulos em miniatura
típico da região dos Países Baixos:
182
Figura 81. Divisões estruturais. Anônimo. Altar portátil (oratório/retábulo) em miniatura com a Virgem em Glória, São Tiago
e São Domingos. Séc. XVI. Países Baixos. 10,9x7,7cm. The Metropolitan Museum of Art, Nova York.
183
Podemos observar que no altar em miniatura [figuras 79-80] o trabalho de talha em madeira
prevalece, assim como no retábulo da Assunção de Maria [figura 78]. Nessa observação, percebemos
imediatamente que, embora com funções diferentes, ambas são obras artísticas que procedem do
mesmo gênero produtivo, o da talha, como dissemos. Um outro modelo de retábulo também
importante de ser notado é aquele que possui como característica formal a utilização de pintura em
painel, como o retábulo da Virgem com o Menino [figura 82].
Figura 82. Mestre de Brabante. Retábulo da Virgem e o Menino ou ‘Verschlossener Gärten’ (O jardim fechado). Séc. XVI.
Museu Real de Belas Artes da Antuérpia, Bélgica.
narrativa da Paixão), se integram ao retábulo como quadros que se intercalam, o que nos aponta a
disposição formal do trabalho pictórico na formatação espacial dos oratórios domésticos. Tal
disposição quádrupla tornou-se mais tarde o modelo comum e usual na feitura de oratórios
domésticos e ‘altares portáteis’ (nichos de oração privados) principalmente na região dos Países
Baixos, Flandres (nos séculos XV e XVI) e logo em seguida em Portugal (séculos XVI, XVII,
XVIII e XIX), assim como na América Portuguesa (séculos XVIII e XIX) como veremos.
No último caso, percebemos o uso das portas laterais como painéis únicos para a pintura,
porém, a tendência de painéis quádruplos nas laterais se firma como tendência, como veremos
adiante. Tal aproximação, técnica e morfológica entre o retábulo e os altares portáteis, indica a
gênese do oratório doméstico no universo da retabulística através de sua composição tripartida e
185
consequentemente da mudança no campo das artes no período do gótico tardio. Essa mudança foi
observada pelo historiador da arte Arnold Hauser, quando observa que no século XV “a pintura
torna-se independente da arquitetura primeiro na forma de painel, e só como tal passa a fazer
parte do mobiliário portátil da residência da classe média”.359
Partindo desse contexto, a arte religiosa – aqui representada pelos retábulos e os nichos
portáteis – imersa como está na própria história cultural europeia, sofre uma mudança muito
importante e crucial para demarcar, de certa forma, o início da utilização dos nichos devocionais
em ambiente doméstico. Essa mudança ocorre justamente no gótico tardio, que demarcará
primordialmente a transição da feitura de obras artísticas “do canteiro de obras para a oficina do
mestre”.360 Nos explica Hauser:
Nesse aspecto, é coerente afirmar que o desejo cada vez mais intimista e personalizado de
obter retábulos para uso doméstico fora o fator predominante para a transformação e formalização
da forma, digamos, ‘canônica’, dos oratórios domésticos. Hauser prossegue:
[...] mas também nas esculturas monumentais, em pedra, do período; mas isso de maneira
nenhuma prova que o material não possa ter desempenhado um papel na determinação
do estilo – nada seria mais natural do que o estilo de escultura em madeira, numa era em
359HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 270. [grifo nosso]
360 HAUSER, Arnold. op. cit. p. 256.
O que de certa maneira também ocorreu na América Portuguesa, principalmente Minas Gerais. Concordamos com
Hauser quando este afirma que tal transição se afirma como elemento da crescente ‘modernidade’.
361 HAUSER, Arnold. op. cit. p. 256. [grifo nosso]
362 HAUSER, Arnold. op. cit. p. 256.
363 HAUSER, Arnold. op. cit. p. 256.
186
que esta predominava, ser transferido para a escultura em pedra. Seja como for, a
tendência artística revelada em obras de todos os tamanhos e materiais era para a graça,
a delicadeza e o refinamento.364
Justamente nos pequenos oratórios domésticos do período, vemos presente em sua talha o
aspecto primordial “das crescentes conquistas do moderno virtuosismo, da técnica adquirida com
excessiva facilidade”,365 principalmente por serem objetos cuja matéria-prima, a madeira, começa a
ser hipervalorizada. Portanto, os retábulos ‘pesados e maciços’ “são encontrados lado a lado com
obras de dimensões pequenas, formas delicadas, aspectos insólitos e curiosos”, 366 como os
oratórios. A arte desejada por essa burguesia crescente, que enriquecia do comércio e que desejava
se nobilitar, era justamente aquela que pudesse propiciar uma experiência religiosa (a oração pessoal
e individual) que também pudesse ser vivenciada como experiência estética. Esse desejo é
sustentado por imagens, pequenos retábulos e até mesmo miniaturas que fomentaram o espírito
religioso de caráter intimista, “misticismo e materialismo se combinam em uma constante
expressionista que será marcante por todo o século”.367
Um exemplo muito marcante desse gosto veemente e que “se inclinava mais para o refinado
do que para o grandioso”368 é observado nas delicadíssimas ‘contas de oração’, esferas de madeira
que possuíam imagens internas, verdadeiras miniaturas portáteis que auxiliavam a oração individual
e objeto do desejo cada vez mais exigente da burguesia369 [figuras 84-85].
1990.
187
Direcionando o nosso olhar para Portugal nesse mesmo período, o historiador da arte norte-
americano Robert Smith (1912-1975) nos indica que os “entalhadores do Norte, principalmente
flamengos, trouxeram primeiro à Espanha e, em seguida, a Portugal, as suas magníficas obras que,
como as pinturas e tapeçarias da Bélgica, rapidamente conquistaram a arte peninsular".370 Segundo
o mesmo autor, “na fase gótica, dominada por oficiais estrangeiros, a talha ibérica apresentava
muitas semelhanças nos dois países”,371 o que nos indica que nessa transposição do gótico nórdico
para Portugal a linguagem retabular também influenciou na feitura dos nichos devocionais.
Nesse contexto, os oratórios domésticos nesse período, designados como retábulo ou altar
portátil, ambos de uso doméstico e privado, se ligam diretamente aos retábulos góticos em questões
formais, como a semelhança aos trípticos e à ornamentação típica do gótico flamejante que em
Portugal é compreendido como o vibrante estilo Manuelino. Um exemplo desse tipo de oratório
doméstico certamente é o Tríptico da Natividade (já mencionado no primeiro capítulo deste estudo
na página 96, figura 21).
assume outras feições. Observamos que os pequenos oratórios domésticos, durante o período do
Renascimento italiano, não recebem a destacada atenção que possuía no outro lado dos Alpes.
Mesmo não possuindo a delicada e minuciosa expressividade dos diminutos oratórios góticos
(embora houvesse trocas de estilos entre a arte do Norte e do Sul), o ímpeto classicista do
Renascimento Italiano imprimiu um comedimento artístico aos nichos privados. Embora nos
Países Baixos (assim como no território que hoje compõe a Alemanha moderna) os nichos
devocionais tenham continuado a serem produzidos no estilo do Gótico Tardio de maneira
prolongada (até o final do cinquecento), as formas começaram a se mostrar mais modestas. Um
exemplo dessa mudança pode ser observado no expressivo Tríptico da Natividade, confeccionado na
segunda metade do século XVI em Flandres [figura 88].
elegância das linhas do panejamento (sobretudo no painel esquerdo nas vestimentas dos três Reis
Magos em adoração).
Figura 88. Anônimo. Tríptico ou oratório da Natividade. Flandres. c. segunda metade do século XVI. 88x67cm. Coleção
Pierre Bergé, França.
Figura 90. Oficina de Giovanni della Robbia. Tabernacolo delle Fonticine. 1522. Via Nazionale, Florença. Fonte:
Creative Commons
Construído pela oficina de Della Robbia, em 1522, o Tabernacolo delle Fonticine possui uma
estrutura arquitetônica feita em pietra serena (um arenito cinza muito popular em Florença durante
o Renascimento) e possui um baixo-relevo em terracota vidrada (da técnica de Lucca della Robbia)
MARCUCCI, Emilio. Ancora del tabernacolo delle Fontecine. In: Arte e Storia. Vol IV, 1885, p. 289-292.
373
MARQUAND, Allan. Giovanni della Robbia. Princeton: Princeton University Press; London: Humphrey
Milford; Oxford University Press, 1920, p. 156-157.
191
representando a Virgem com o Menino Jesus, São João Batista infante e outros santos. Um
monumento cívico dedicado aos “homens do Reino de Belieme”, talvez uma associação local.
Interessante notar que durante o quatrocento italiano, poucos são os exemplos de oratórios ou
nichos privados para uso doméstico. Tais artefatos parecem terem sofrido uma redução, ou talvez
tenham sofrido reformulação e sido transformados em monumentos de dimensões humanas e de
natureza pública, como os tabernacoli de Florença. Muitos dos trípticos e altares portáteis utilizados
em âmbito doméstico parecem terem sido importados dos países nórdicos, como podemos
observar no acervo do Museo degli Argenti, a antiga residência de verão da poderosa família Médici.
O antigo Palazzo Pitti possui uma espécie de ‘capela das relíquias’, local de vivência religiosa
doméstica dos Medici que possuíam vários objetos de manufatura germânica, como pequenos
trípticos utilizados como oratórios privados.374
Nesse sentido, a figura do artista como gênio e cuja autonomia e sucesso dependia
exclusivamente da superação do status de artista enquanto artesão (aquele que trabalha com as
mãos376), se separa quase que definitivamente das artes consideradas ‘menores’. Numa sociedade
em que os mecenas, das mais opulentas cortes, buscavam distinção e prestígio, dedicando-se a
“erigir magníficos edifícios, encomendar esplêndidos túmulos ou grandes ciclos de afrescos, ou
374 TRUONG, Alain. The treasure of the ´Chapel of Relics´in the Pitti Palace – Sacri Splendori. 2014. Disponível
em: https://alaintruong2014.wordpress.com/2014/08/07/the-treasure-of-the-chapel-of-relics-in-the-pitti-palace-
sacro-splendori/. Acesso aos 15/12/2019.
375 GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012, p. 287. [grifo nosso]
376 Durante a Antiguidade e Idade Média, com certa presença na Renascença, o artista possuía uma inferioridade social.
Isso se devia pela sua necessidade de trabalhar com as mãos. Os saberes eram compreendidos dentro da lógica do
Trivium e Quadrivium, as chamadas ‘Artes Liberais’: Lógica (ou dialética), Gramática e Retórica são as artes consideradas
‘superiores’, pois se utiliza o intelecto (intelectus) formando o Trivium. Já o Quadrivium é formado pelas chamadas ‘Artes
mecânicas’, sendo incorporadas pela Aritmética, Música, a Geometria e a Astronomia. Essa divisão fora, em grande
parte, responsável pela diferenciação dos saberes e alimentou o status social do artista como um trabalhador manual,
inferior ao sábio ou o poeta que trabalhava com o cérebro. O artista do quattrocento superou a barreira impondo-se na
sociedade: surge o artista moderno e o seu ‘gênio’.
192
oferecer uma pintura para o altar-mor de uma famosa igreja”,377 o artista da época poderia ditar os
seus termos e inverter os papéis sociais. Não mais o artista procuraria os favores de um senhor,
mas os senhores agora imploravam pelos favores do artista pois viam na arte o “modo seguro de
perpetuar o próprio nome e de adquirir um monumento para dignificar a existência terrena”.378
Essa importante mudança e considerável ‘virada’ no status do artista pode nos servir de
motivo para a ausência de trípticos e altares portáteis, pois o momento agora se destinava às grandes
obras e grandes feitos, empreendimentos faustosos que possibilitaram ao artista o poder da escolha,
não mais se submetendo aos caprichos de seus clientes. É certo, porém, que o vocabulário
classicista do Renascimento fora riquissimamente utilizado nas obras com função litúrgica, como
os retábulos. Em Portugal, o ímpeto renascentista também se fez sentir na retabulística lusa, porém,
o Maneirismo se impôs com maior clareza.
uma significação positiva (uma obra ‘amaneirada’, ou seja, possuindo ‘estilo’) como negativa (uma obra estilizada, uma
abstração do clássico). No findar do renascimento no século XVI, ao conceber uma obra segundo o cânone clássico,
o artista possuindo ‘estilo’ ao representar a natureza poderia ser tanto positivo (gosto pessoal, gracioso tratamento)
como negativo, reduzindo a ‘boa arte’ para uma “tendência deplorável” e a redução da arte ao puro estereótipo, a
maniera.
SHEARMAN, John. O maneirismo. São Paulo: Editora Cultrix/Editora da Universidade de São Paulo, 1967, p. 13-
49.
380 SHEARMAN, John. op. cit. p. 20.
193
As colunas sustentam igualmente dois suportes para vela e uma espécie de frontão estilizado
onde predomina um nicho cujo coroamento se configura numa concha (vieira) que serve de
sustentação para um diminuto campanário ou torre aberta acima. A formatação visual deste Altar
doméstico nos evoca um retábulo-mor, desde a sua base ao seu coroamento verticalizado. As
dimensões horizontais e verticais se harmonizam, formando um belo conjunto que denota um
precioso tratamento das proporções e da ornamentação. A fantasiosa ornamentação serpentinata
deste Altar doméstico possui a presença marcante do uso de grotescas (grotesque) como apoio para a
estrutura arquitetônica da peça. As grotescas, inspirada nas decorações da antiguidade romana
(como observado no antigo palácio romano, a Domus Aurea, descoberto no século XV), sobretudo
quando formam volutas laterais em consonância às colunas de sustentação, foram muito utilizadas
na ornamentação de palácios, igrejas e peças de mobiliário. Podemos observar nas fontes gravadas
[figuras 93-94] a estilização fantasiosa das volutas, formando verdadeiras serpentes marinhas
(geralmente golfinhos) ou grifos cujo corpo (a própria voluta) é formado por folhagens,
381 Mineral, variedade de calcita estalagmítica. Rocha branca, translúcida e semelhante ao mármore.
195
Figura 93. Lucan van Leyden. Ornamento com dois golfinhos. (1494-1533).
Bélgica. Gravura. Coleção Particular.
Figura 94. Jacques Androuet du Cerceau. Painel de grotescas. 1550. Gravura.
The Metropolitan Museum of Art. Nova York.
Figura 95. Detalhe. Androuet du Cerceau. Painel de grotescas. 1550.
Gravura. The Metropolitan Museum of Art. Nova York.
196
Acerca da ornamentação:
Dois tipos de ornamentação caracterizam retábulos e outras obras de talha dessa fase. O
primeiro é de caráter geométrico, relacionado não só com a disposição geométrica em
forma de xadrez da maior parte dos retábulos [...]. Há, em particular, uma relação entre
os rectângulos, círculos e losangos da talha e a repetição dessas formas nas madeiras e
marfins embutidos do mobiliário eclesiástico da época, como também nas bases, peanhas
e painéis de pedra. O ornato geométrico encontra-se sobretudo nas molduras dos nichos
ou vãos, e consta, basicamente, de entrelaços, guilochês, cadeias, discos, ziguezagues, etc,
de inspiração serliana. [...] O segundo, destacam-se os cachos de fruta gordos e pesados
[...] Peras, calabaças, romãs e uvas [...] Sobressai também o motivo da cabeça de anjo
[...].385
Tal disposição arquitetônica e ornamental (como exemplificado na [figura 96]) pode ser
observada no oratório português de vocabulário maneirista [figura 97] onde observamos a
linguagem retabulística representada com esmera execução na talha dourada.
382 RODRIGUES, José Carlos Meneses. Retábulos no Baixo Tâmega e no Vale do Souza: do Maneirismo ao
Neoclássico. III Congresso Internacional da APHA, 2006, p. 6.
383 SMITH, Robert apud RODRIGUES, José Carlos Meneses. op. cit. p. 7.
384 SMITH, Robert. A talha em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962, p. 50.
385 SMITH, Robert. op. cit. p. 50-51.
197
Figura 96. Anônimo. Dibujo del frontal de un retablo. Espanha. Séc. XVII.
Archivo Histórico de la Nobleza, Ministerio de Cultura y Deporte
Figura 97. Anônimo. Oratório doméstico. Séc. XVII. Portugal. Madeira
entalhada e dourada. 103x82x32cm. Coleção particular. Fonte:
BDCML/Portugal (fechado)
Esse oratório doméstico, singular, tendo em vista sua aproximação formal com os retábulos
de mesmo estilo, possui uma rica composição. O lado externo das portas possui um tratamento
escultórico em relevo, representando Santo Antônio e São Francisco de Assis, São Domingos e
São José, Santa Marta e São Tiago, São Pedro e São Paulo, São Miguel e São Jorge e São Martinho
e Santo Agostinho. Peça muito característica da arte seiscentista portuguesa, a ornamentação
tipicamente maneirista pode ser contemplada na base do oratório, onde elementos fitomórficos se
entrelaçam formando sinuosas volutas estilizadas. As duas colunas de fuste canelado possuem em
sua base a mesma ornamentação fitomórfica à la grotesca, sustentando a cimalha inferior que serve
de base para uma sanca que possui cabeças de putti alados. Já o interior do oratório [fig. 26] as
portas possuem a tradicional disposição quadrupla de pinturas, representando as cenas da
Adoração dos Reis Magos, a Visita de Maria a Isabel e abaixo de ambas, dois santos desconhecidos
que parecem vestir um hábito dominicano, que poderiam ser talvez São Domingos e Santa Catarina
de Siena (?).
198
Figura 98. Anônimo. Oratório doméstico. Séc. XVII. Portugal. Madeira entalhada e dourada. 103x82x32cm. Coleção
particular. Fonte: BDCML/Portugal (aberto)
Para além do maneirismo, no século XVII em Portugal (assim como no final do século XVI)
os oratórios domésticos se apresentam como objetos, em sua forma ornamental, principalmente,
dotados de características ‘globalizantes’, ou seja, de troca de influências artísticas muito peculiares
que estão imersas no contexto das navegações para as índias e no comércio indo-português.
RODRIGUES, José Carlos Meneses. Retábulos no Baixo Tâmega e no Vale do Souza: do Maneirismo ao
386
Segundo o historiador da arte Pedro Dias, o intercâmbio cultural entre Portugal e a Índia se deu,
desde o início do século XVI ao XIX, sobretudo no campo das artes decorativas.
Frutos desse rico intercâmbio são os oratórios indo-portugueses, que se configuram como
peças devocionais de caráter único. O intercâmbio cultural português e hindu ocorre
principalmente na ornamentação, onde o vocabulário arquitetônico europeu se mescla às cores
vivas e vibrantes do Oriente, ocorrendo adaptações decorativas de visível complexidade executiva.
Geralmente, os oratórios indo-portugueses constituem em sua estrutura arquitetônica a forma de
templete, à semelhança de retábulo, “com portas compostas por folhas articuladas, dispostas em
dois grupos laterais, unindo-se ao meio da face frontal”.388 No campo decorativo propriamente
dito, os oratórios indo-portugueses citavam, por vezes, elementos típicos da cultura oriental, como
serpentes (naginas), assim como o uso de materiais exóticos como conchas (búzios), madrepérolas
e esmaltes de cores soberbas. Um exemplo deste tipo de oratório pode ser observado nas figuras
99 e 100, onde a forma de templete e portas compostas por folhas articuladas foi contemplada.
387 DIAS, Pedro. A viagem das formas – estudos sobre as relações artísticas de Portugal com a Eurpa, a África,
o Oriente e as Américas. Lisboa: Editorial Estampa, 1995, p. 185-186-187.
388 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte: A construção histórica do acervo de
oratórios brasileiro – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Editora Alameda, 2014, p. 253.
200
Porém, será no tempo do Barroco390 que o oratório doméstico atinge, em sua forma
arquitetônica e ornamental, sua plenitude artística. O Concílio de Trento, realizado no século
antecessor das primeiras realizações tipicamente ‘barrocas’ na Itália, conferiu às imagens sacras uma
normativa clara e precisa (como o decreto da XXVª Sessão391), estabelecendo um ‘decoro’ nas
representações sagradas. Para a arquitetura, uma maior liberdade e dinamismo criativo se impõe
como elemento distintivo. Embora o ‘decoro’ fosse imprescindível nas representações
iconográficas, a concepção arquitetônica desse período era pensada como um “instrumento
essencial para o ensinamento, e, mais especificamente, para a divulgação dos dogmas da Igreja, para
auxílio ao encaminhamento dos serviços religiosos, para impressionar e conquistar”.392
É um momento da vida das formas, e sem dúvidas o mais livre. As formas esquecem ou
desvirtuam os princípios de composição básica, cuja inserção nos enquadramentos,
sobretudo da arquitetura, é um aspecto essencial; as formas vivem por si mesmas com
intensidade, propagam-se sem freio, proliferam como um monstro vegetal. As formas ao
crescerem se destacam, tentam invadir o espaço por todas as partes, a perfurá-lo, a
adaptarem-se a todas as possibilidades – e seria possível dizer que se comprazem nesta
invasão393.
389 Embora não caiba nesse estudo realizar uma ampla cobertura da produção portuguesa, não podemos deixar de citar
também outros artefatos fruto das relações Portugal-Oriente. No século XVI, há também os oratórios nambam, típicos
da presença portuguesa em Macau (na China) e no Japão, principalmente nas missões jesuíticas antes do banimento
que ocorreria no ano de 1640. Os oratórios nambam possuem como ornamentação o uso de elementos florais realizados
com esmaltes e laca, tipicamente japoneses, porém, com iconografia cristã. É possível que essa troca cultural possa ter
influenciado a forma do butsudan, o armário de uso religioso doméstico em forma de templo japonês, ou vice-versa.
Há um exemplar de oratório nambam no Museu da Santa Casa de Misericórdia do Sardoal, em Santarém, Portugal.
390 Aqui compreendido como um tempo dinâmico e de longa duração. Seicento, na Itália, França, setecento em Portugal
É a partir do aspecto do oratório como ‘igreja doméstica’ que o nosso objeto (durante e após
o tempo do Barroco) foi associado ao princípio da verossimilhança com o espaço real da igreja
barroca, em suma, uma miniatura. O oratório doméstico nunca perdeu, ao longo da história da arte
religiosa, a sua forma primordial e que define a sua essência: a de tríptico. Tal forma adquiriu ao
longo do século XVII a sua fixação como um armário de duas portas, modelo advindo dos trípticos.
No século XVIII, atinge sua forma plena e consagrada, convivendo com outros modelos (como o
nicho). Porém, o impulso barroco pela teatralidade e persuasão (tendo em vista o seu caráter
essencialmente religioso, como dito por Weisbach) pôde conferir ao oratório doméstico uma
qualidade de protótipo (até mesmo de maquete), ou seja, a miniaturização ideal de um espaço (ou
objeto) real.
Porém, um ponto deve ser esclarecido. Isso não quer dizer que o oratório doméstico perdeu
o seu sentido intrínseco, tornando-se uma outra espécie de arte. Pelo contrário, a miniatura – como
simples modelo ideal de um espaço ou objeto real a ser construído – por não possuir um significado
religioso, mas puramente técnico e representativo (até mesmo utilizado como modelo para
louvação dos comitentes395), passou por um processo de ressignificação de mera maquete para altar
doméstico, sendo utilizado como oratório no lar. Em suma, uma despretensiosa arte de
representação ideal de um espaço/objeto real torna-se objeto de devoção e piedade doméstica.
Esse fato significou um espetacular avanço na constituição arquitetônica e ornamental (assim como
pictórica e escultural) dos oratórios domésticos e temos um exemplo (que nos serve como
antecedente formal) disso já no século XVI em Portugal.
Notamos neste objeto ímpar uma ambientação cênica, quase teatral. Observemos como a
dimensão arquitetônica é representada através da imitação de uma capela-mor, evidenciada pelas
colunas em ordem coríntia que sustentam o arco-cruzeiro que parece separar uma nave imaginária
da capela-mor abobadada. O altar é localizado num presbitério cuja elevação é demarcada por dois
degraus e se encontra num nicho, servindo de suporte para a relíquia guardada no recipiente de
vidro onde normalmente deveria estar a imagem ou pintura do orago/devoção. Esse nicho, na
realidade, formará uma abside que pode ser bem observada no verso do relicário [figura 102] cuja
forma semicircular e o teto abobadado são mais pronunciados. O aspecto mais interessante dessa
peça são os pequenos ‘tijolos’, imitando o material de construção, que foram delicada e
minuciosamente inseridos um a um, o que denota o esmero empregado pelo artista e sua
capacidade de observação da arquitetura, sendo capaz de miniaturizá-la pormenorizadamente.
O modelo de altar acima ilustrado trata-se de uma réplica do retábulo-mor que se encontra na
Igreja Paroquial da Assunção, em Mühlviertel, na Áustria. Segundo a ficha catalográfica do
Liebieghaus Museum, o modelo de altar não serviu apenas como maquete para apreciação e aprovação
dos comitentes do retábulo real, mas também como altar doméstico (oratório), tendo em vista os
vestígios de cera nos castiçais396. Infelizmente, não é conhecida a extensão da obra do escultor,
muito menos sua biografia.
396Liebieghaus Museum – Modell eines Mariae-Himmelfahrt Altars, Franz Stadler (1735). Disponível em:
htpps://www.liebieghaus.de/de/renaissance-bis-klassizismus/modell-eines-mariae-himmelfahrt-altars. Acesso aos
23/05/2020.
205
Ao dirigirmos o nosso olhar para a Portugal Setecentista, uma obra do mesmo gênero foi
realizada: trata-se do Modelo da Capela de São João Batista, construído pelos artífices italianos Giuseppe
Palms (marceneiro), Giuseppe Fochetti e Giuseppe Voyet (pintura ornamental), Agostino Masucci
e o miniaturista Genaro Nicoletti em Roma, nos anos de 1744-1747 [figuras 106-107].
Figura 106. Giuseppe Palms e outros. Modelo da capela de São João Batista.
1744-1747. Roma. 140x93x86cm. Museu de São Roque, Lisboa
Figura 107. Detalhe. Giuseppe Palms e outros. Modelo da capela de São João
Batista. 1744-1747. Roma. 140x93x86cm. Museu de São Roque, Lisboa
O modelo miniaturizado da Capela de São João Batista foi apresentado como uma
representação tridimensional do projeto da capela, a fim de ser louvado pelo monarca D. João V
(1689-1750), mecenas da obra. Acerca do curioso objeto, sabe-se que:
O esplêndido modelo da Capela de São João Batista em São Roque constitui hoje um
precioso testemunho da introdução do modo acadêmico de conceber e planificar a obra
de arquitetura que João Francisco Ludovice absorveria em Roma, nos anos de sua
formação, se esforçaria por implantar em Portugal. [...] Com efeito, o atual modelo
sucederia a um primeiro, perdido, executado em 1743 pelo marceneiro Giacomo
Manaccioni, cuja elaboração ocorreria na esteira do próprio lançamento do
empreendimento da capela e a par dos designados desenhos de apresentação (como
eles se destinando, decerto, a obter a aprovação do encomendante – e a seduzi-lo
pelo respectivo luxo), efetivamente solicitados no próprio ato da encomenda, com
expressa recomendação de ilustrarem <<tudo miudamente, não só de claro-
206
escuro, mas pintando as cores dos mármores e bronzes dourados o mais próprio
que for possível>> [...].397
O exemplo do modelo da Capela de São João Batista, em consonância com as outras duas
miniaturas acima mencionadas, nos lança inquietações. Pelo que as obras mencionadas indicam, o
século XVIII parece ser a época do uso deliberado da miniaturização das formas arquitetônicas,
sendo utilizadas como maquetes para aprovação dos comitentes da obra ou como altar doméstico,
como vimos. Contudo, é fato que o século XVIII não inventou a tendência miniatural, pelo
contrário, já na Antiguidade é possível afirmar “a presença de modelos tridimensionais
arquitetônicos, em dimensões reduzidas, entre diferentes períodos das civilizações como uma
experiência que fazia parte do processo da criação”.398 Sobre esse aspecto, o Egito Antigo se torna
um exemplo dessa tendência. De acordo com Angela Brandão:
Sendo assim, a miniaturização do mobiliário, seja com fins religiosos (e isso é observado
desde a Antiguidade) ou até mesmo para fins lúdicos (como os próprios brinquedos infantis que
são adaptações dos objetos de uso dos adultos em uma escala diminuída) pode ser considerada
uma prática comum e corriqueira na produção das artes visuais. Na Antiguidade, o lararium
simbolizava o templo doméstico (em alusão à forma e função do templo real) e na Idade Média
(desde a arte Românica ao Gótico, sobretudo o Tardio) as grandes catedrais possuíam sua
representação, pelo menos externamente, nos objetos litúrgicos e de uso devocional privado. Não
foi diferente em épocas posteriores. Porém, no século XVIII, a produção miniatural obteve enorme
impulso e grandiosa vitalidade produtiva. Nesse aspecto, o Setecentos pode ser considerado uma
época em que os artesãos e artífices da madeira, verdadeiros artistas que em Portugal nesse século
possuíram distinção e status, eram dotados de um verdadeiro “saber fazer”.
397 PIMENTEL, António Filipe (cord.). A encomenda prodigiosa, da Patriarcal à Capela Real de São João
Batista. Museu Nacional de Arte Antiga/Museu de São Roque – Santa Casa de Misericórdia de Lisboa. Lisboa:
Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2013, p. 128. [grifo nosso].
398 ROZENSTRATEN, 2011 apud BRANDÃO, Angela. Móveis em miniatura: a demonstração de um saber fazer.
Anais do Museu Paulista. São Paulo: N. Sér. v. 25, n. 1. p. 169-197. Jan/Abril 2017, p. 170.
399 BRANDÃO, Angela. op. cit. p. 170.
207
A historiadora da arte Angela Brandão ainda nos coloca uma questão pertinente. Ao
apresentar o uso da miniatura no contexto da produção de brinquedos infantis, a autora nos diz
que:
A partir disso, quando observamos o Modelo da Capela de São João Batista [figuras 106-107]
podemos perceber uma certa (e rara) troca do modelo bidimensional da obra (a gravura, - ou o
debuxo - um meio tradicional de aprovação do encomendante da obra) pela obra miniaturizada, um
modelo tridimensional (uma maquete).401 O que nos interessa nessa questão é que a arte miniatural
foi um grande impulso, no século XVIII (e também no XIX) para a feitura dos oratórios
domésticos, em conjunção com a ideia de ecclesiae domesticae que também é inerente ao objeto.
Embora nem toda miniatura ou representação tridimensional de uma obra real tenha sido usada
como objeto devocional, a técnica certamente serviu como elemento constitutivo para a feitura dos
nossos objetos, verdadeiras igrejas e retábulos miniaturizados que atendiam ao anseio devocional
das pessoas.
O exemplar acima ilustrado pode ser considerado uma obra que representa, virtuosamente,
a perícia e harmoniosa execução da talha policromada. Uma peça de estilo híbrido, que se encontra
na linguagem do tardo-barroco português, ou o próprio Rococó (a policromia retabular nos indica
um gosto pelo Rococó) que abarcaria os estilos D. José I (1750-1777) ou D. Maria (1777-1816).
Apresenta uma notável representação de um altar-mor, onde a mesa do altar de formas curvas e
policromia faiscada (falso mármore) com douramento é anexa ao corpo do retábulo verticalizado.
Acima da cruz de madeira no altar, o nicho do orago com a imagem de Nossa Senhora do Carmo,
209
que se faz representar através de um pequeno registo de santo,402 é entronizado numa moldura
dourada, à moda da pintura a óleo nos retábulos. O coroamento do retábulo é rematado num
frontão interrompido em confluências de cimalhas dispostas em curvas e contracurvas sobrepostas
ao gosto rococó, tendo no seu centro o monograma da Virgem composto pelas letras ‘M’ e ‘A’. As
pilastras são rematadas com ombreiras douradas, que dão a tônica de harmonia à peça retabular.
402Ou Registro de Santo – pequena gravura (santinho) impressa, gravada em buril ou outra técnica que continha a
representação iconográfica de um santo católico. Objetos de devoção popular em Portugal. A Biblioteca Nacional
Portuguesa possui uma sessão dedicada a esses registros iconográficos.
210
Os oratórios domésticos, principalmente nos séculos XVII e XVIII, também foram objetos
que reproduziam as formas empregadas nas grandes obras, refletindo o vocabulário do Barroco
Italiano, sobretudo. Em Portugal, o emprego do modelo do Barroco Italiano teve vida proveitosa.
Sob o patrocínio de Dom João V (1689-1750), - grande responsável pela importação da arte italiana
em Portugal (arte que, por isso, ganharia a alcunha de ‘estilo joanino’) - o vocabulário italiano
desembarcaria em Lisboa já no século XVI com o arquiteto italiano Filippo Terzi (1520-1597) com
a maneirista Igreja de São Roque, sendo a capela de São João Batista, cuja idealização e construção
se deu pelas mãos dos arquitetos italianos Nicola Salvi (1697-1751) e Luigi Vanvitelli (1700-1773)
no século XVIII a obra mais emblemática do estilo joanino.
403O próprio arquiteto e teórico da arquitetura Christian Norberg-Schulz em sua obra Arquitetura Barroca afirmava que,
dentro do panorama da arquitetura e arte barroca, a imaginação levava o espectador, por meio das tramas persuasivas
das imagens e da própria configuração espacial, à participação dos mistérios da fé.
NORBERG-SCHULZ, Christian. Baroque Architecture. New York: Rizzoli International Publications; Milano:
Electa Edicitre, 1986.
211
Figura 111. Desconhecido. Vista isolada do Baldaquino de Bernini. Séc. XVII-XVIII. Gravura. Prancha n. 39 do álbum
‘Basilica di San Pietro in Vaticano’, edição de Giovanni Giacomo de Rossi, Roma. The Metropolitan Museum of
Art, Nova York
Figura 112. Anônimo. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Portugal. Ébano, metal dourado e bronze relevado e vazado.
135x110x46cm. Coleção particular. Fonte: BDCML/Portugal
Interessante notar a disposição das colunas torsas, onde as primeiras colunas fazem par às
outras que recuam, formando quase que exatamente a mesma visualidade proporcionada pela
disposição das colunas do baldaquino de Bernini, como vimos [figura 111]. Há um refinamento
primoroso no tratamento dessas colunas nesse exemplar, tornando o oratório uma peça ímpar em
termos estéticos. As colunas sustentam um frontão interrompido, como que uma lembrança dos
frontões ao gosto maneirista.
404 SOUZA, Cláudio Rafael Almeida de. Precedentes formais do oratório doméstico tipo baldaquino e seus derivados
na Bahia. 19&20. Rio de Janeiro, v. XIII, n. 2, Jul-Dez, 2018.
405 SOUZA, Cláudio Rafael Almeida de. Origens, tipos e estilística da ornamentação dos oratórios domésticos baianos
Figura 113. Anônimo. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Portugal. Pau santo
entalhado e filetes em pau rosa. 112x56x39cm. Coleção particular. Fonte:
BDCML/Portugal
Figura 114. Detalhe. Filippo Passarini. Prancha n. 6. Séc. XVII. The
Metropolitan Museum of Art, Nova York
Os oratórios de transição (final do século XVIII para o início do XIX) pelo contrário,
apresentam as volutas com maior independência, sendo formatadas como elementos bem
pronunciados no coroamento do oratório, como podemos observar abaixo.
214
As duas peças, - figuras 115 e 116 - produzidas na transição do século XVIII para o XIX,
apresentam um coroamento rematado por volutas (ou variações de voluta) que sustentam um
elemento decorativo, como pequenos pináculos, coruchéus ou formas esféricas. Tais oratórios
aludem à forma de baldaquino, tornando-se peças muito representativas da capacidade dos artesãos
da madeira em miniaturizar o vocabulário arquitetônico e ornamental. No século XIX, mesmo
estando em voga os princípios do Neoclássico, essa tipologia alcança um maior grau de
verossimilhança com o seu precedente formal, o baldaquino. Mesmo descaracterizado dos
elementos compositivos do baldaquino de Bernini (como os elementos decorativos e o uso da
coluna torsa, por exemplo), as volutas arrematadas com função de cúpula (mesmo que a sua função
seja meramente decorativa) ainda são utilizadas, adquirindo forma autônoma e tornando-se
elemento distintivo que caracterizou imediatamente a tipologia. A tipologia portuguesa [figura 117]
influenciou diretamente os oratórios baianos [figura 118] como podemos observar abaixo.
215
Por fim, e não menos importante, o período da arte joanina também imprimiu ao oratório
doméstico um uso cada vez mais intimista e personalizado. O oratório em Portugal não se limita
apenas à sua filiação à miniaturização das formas arquitetônicas e ornamentais, muito menos à sua
relação com o universo retabulístico. Insere-se, também, no universo do mobiliário de uso secular
e privado.
Podemos observar, de antemão, o vistoso oratório joanino, cujo nicho central abriga uma
estrutura retabular composta por dois nichos laterais (para imagens) que estão inseridos numa
espécie de antecâmara separada do nicho principal por um arco. O nicho central, onde geralmente
se localiza um crucificado ou uma imagem de vulto (tendo em vista as dimensões), possui uma
pintura de gênero religioso (que retrata geralmente um cenário urbano) que é abarcada por outro
arco, imprimindo à concepção arquitetônica do oratório a representação de um camarim de
retábulo. As duas portas possuem a tradicional disposição quádrupla das almofadas, constituindo
pequenos quadros retratando vasos com flores (geralmente onde se representam santos ou
narrativas) e o aspecto mais notável dessa peça certamente é o uso das chinoiseries (chinesices)
douradas sob fundo vermelho, destacando o contato com a ornamentação oriental.
216
Figura 119. Anônimo. Oratório embutido em cômoda (D. João V). 1706-1750. 222x136x68cm. Portugal. Fonte:
SANDÃO, Arthur de. O Móvel pintado em Portugal. Porto: Livraria Civilização, 1984, p. 208. Foto:
BDCML/Portugal (aberto)
O oratório se encontra sustentado sob uma cômoda, com pintura e ornamentação pictórica
igual à empregada no corpo do mesmo, tornando-se uma única peça (que também se une
estruturalmente). Quando fechado [figuras 120-121] o oratório se torna um mero armário com
portas almofadadas, podendo ser facilmente confundido com um item de mobiliário comum e
ordinário de uma residência.
No século XVIII, o mobiliário atinge um grau expressivo em termos formais, sendo também
empregado em sua feitura o vocabulário arquitetônico e ornamental (porém em menor escala). O
oratório doméstico, porém, recebe um tratamento especial pois, em sua feitura, o vocabulário
arquitetônico e ornamental é empregado de maneira mais expressiva e miniaturizada, tendo em
vista o seu significado religioso. Ao unir o oratório doméstico aos móveis de uso cotidiano,
podemos perceber não apenas uma mera reprodução dos modelos internacionais406, mas também
um sentido histórico, no caso, o uso de oratórios como elementos indissociáveis do cotidiano
doméstico, sendo tão incorporado à dinâmica familiar que pode até mesmo ser absorvido no
mobiliário comum e de uso não sagrado,407 com vimos nos capítulos anteriores do presente estudo.
O Rococó surge na França do século XVIII. É um estilo artístico onde a “tendência para o
monumental, o cerimonioso e o solene desaparece, dando lugar a uma arte de qualidade mais
delicada e mais íntima, muito refinada e essencialmente aristocrática”.408 Para o historiador da arte
Arnold Hauser, o Rococó é:
[...] uma arte que considera os critérios do agradável e do convencional como mais
decisivos do que os de espiritualidade e espontaneidade, uma arte em que a obra é
realizada de acordo com um padrão fixo, universalmente reconhecido e constantemente
repetido, e da qual nada é mais característico do que a técnica de execução magistral,
406 Nos referimos aqui aos modelos de mobiliário difundidos em gravuras, onde cômodas e papeleiras possuem
compartimentos que, pelo menos em Portugal, podem ser adaptados e utilizados como oratórios domésticos.
Geralmente, a maioria desses oratórios anexos a cômodas e papeleiras possuíam função litúrgica, possuindo pedra
d´ara (o que o habilitava como objeto para celebração da Missa) e servindo de local para guarda de alfaias e demais
objetos inerentes ao culto cristão. No caso de serem devocionais, o uso sagrado e o uso profano se confundem, tendo
em vista a liberdade inerente aos objetos de cunho devocional. Muitos artistas e mestres do mobiliário criaram modelos
gravados que se tornaram móveis, como Franz Xaber Habermann, em Augsburgo, e o mais notável: Thomas Chippendalle,
na Inglaterra. O último, inclusive, por meio da corte de Dom José I de Portugal, influenciou muitíssimo o mobiliário
no reino, como veremos adiante.
407 Isso, logicamente, quando se tratava de objetos de uso estritamente devocional, já que os oratórios de uso
essencialmente litúrgico deveriam ser, por força de decreto, separados “dos usos domésticos da casa”. RUSSO, Silveli
Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte: A construção história do acervo de oratórios brasileiro –
séculos XVIII e XIX. São Paulo: Editora Alameda, 2014, p. 101.
408 HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 2000, p. 497.
218
Retornando à formulação de Hauser, essa ‘diluição’ das formas do Barroco, que são
intrinsecamente arquitetônicas, geram formas soltas, quase sempre difusas e linearmente estilizadas
com elevado senso de refinamento. Nesse sentido, o ornamento e o gosto decorativo imperam na
constituição formal dos nossos objetos. Em termos semânticos, o vocábulo rocaille (rocalha) - que
advém da palavra roc, assim como o termo barocco - possui o sentido de designação para a “decoração
de jardins artificiais de rochas, formando grutas e fontes”412. Designa, formalmente, os conjuntos
ornamentais inspirados em conchas assimétricas e seus derivados. Seguindo a argumentação da
historiografia do Rococó – inaugurada por Fiske Kimball e reiterada pelo importantíssimo estudo
da historiadora da arte Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira – compreendemos o fenômeno do
Rococó como um estilo autônomo e desenvolvido em duas vertentes: o estilo Regência (1690-
1730) e o Rococó propriamente dito (1730-1770). Em nossa análise, dedicaremos especial atenção
ao Rococó propriamente dito, pois o elemento rocaille impôs ao oratório doméstico uma nova
forma e uma nova experiência estética.
A difusão do vocabulário rocaille ocorreu, principalmente, sob a divulgação das gravuras dos
ornamentistas franceses, sendo utilizado nas regiões nórdicas como a Alemanha (com destaque
para a Baviera e Augsburgo), a Áustria, Prússia e também a Inglaterra, Portugal e até mesmo se fez
presente no longínquo Império Russo sob o patrocínio das imperatrizes Isabel da Rússia (1709-
1762) e Catarina, a Grande (1729-1796) onde o Rococó pode ser observado no emblemático
palácio homônimo, residência de verão dos Czares e localizado a sudeste de São Petersburgo, na
cidade de Tsarskoye Selo. A gravura atinge, no Rococó, uma gigantesca importância, tendo em
vista a sua difusão que se estendeu através do comércio internacional entre as potências europeias.
[...] os principais agentes de divulgação do rococó internacional, tanto pela ação direta e
contínua assegurada pelo uso permanente nas oficinas, quanto pela abrangência do
mercado alcançado, chegando a regiões de grande afastamento geográfico como a colônia
brasileira. Essas fontes impressas incluem tanto os tratados teóricos e manuais técnicos
de arquitetura e ornamentação, quanto coleções de gravuras ornamentais avulsas de
todos os tipos, especialmente procuradas pelos artesãos do mobiliário e de outras
artes decorativas.417
Importante frisar que a utilização de gravuras - seja através dos tratados ou de números
avulsos - pelos artesãos do mobiliário significou a utilização do vocabulário rocaille nos oratórios
domésticos, pois sendo um objeto devocional vinculado estreitamente à arte da madeira e
configurado no século XVIII como peça de mobiliário, recebeu influência direta do estilo. O
Rococó, por se tratar de um estilo artístico intrinsecamente ligado ao gosto aristocrático, terminou
por ser assimilado na arte religiosa, entre outros motivos, principalmente através de sua adaptação
como moldura ou decoração em imagens da cultura sacra, como bem observado na composição
das pranchas do libreto Litania Lauretana, dos irmãos Klauber de Augsburgo [figuras 122-123].
416 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. op. cit. p. 45. [grifo nosso]
417 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. op. cit. p. 46. [grifo nosso]
221
Podemos observar nas duas pranchas a utilização da rocaille como parte integrante da imagem,
servindo ora como moldura de uma cena (como na invocação da Mater Christi, na figura 122) ou
como estrutura arquitetônica, como no caso da pequena representação do banquete das Bodas de
Caná, abaixo da moldura com a efígie da Virgem, em alusão à iconografia da invocação Virgo
Clemens [figura 123]. Tanto utilizada como moldura ou estrutura arquitetônica, a rocaille é
desenvolvida essencialmente como elemento ornamental, diluindo-se em formas onduladas, com
plena utilização de curvas e contracurvas e sendo progressivamente arrematadas em reentrâncias
concheadas.
Um último ponto que gostaríamos de abordar, mas não menos importante de ser
contemplado, é a questão do caráter do estilo em sua época. Na França pré-revolucionária, o século
(XVIII) será a centúria em que tanto a aristocracia como a alta burguesia possuem uma distinta
visão de mundo e modus vivendi. “Sociedade de gostos extremamente refinados, como o atesta o
novo tipo de decoração criado para as suas residências particulares, cenário requintado de uma
nova maneira de viver, que privilegia a vida privada sobre a vida pública”.418 O Rococó, nesse
aspecto, desenvolvido sob a égide do “prazer de ver” como bem nos coloca Myriam Ribeiro,
impulsiona, através de sua ornamentação luxuosa e requintada, a sua utilização como elemento
decorativo ou estrutural dos oratórios domésticos, fazendo com que seja uma obra em que as
“sensações agradáveis”, proporcionadas pela forma decorativa, esteja unida à iconografia religiosa,
configurando o exercício devocional como também uma experiência estética. Nesse caso, devoção
e arte se unem para agradar tanto a Deus (através das orações) como a si próprio, através do objeto
artístico utilizado. No Barroco, a arte se coloca como um meio para impressionar, conquistar e
moralizar, no Rococó, também, mas com uma suavidade muito mais pronunciada e um bon goût
flagrantemente desejado.
Engelbrecht (1684-1756) e até mesmo as dos já citados irmãos Klauber, possivelmente exercendo
influência na composição da talha do norte de Portugal, vide a ornamentação do Mosteiro de
Tibães onde, segundo o autor, os beneditinos lusitanos possuíam relações com os da Baviera, com
gravuras, plantas e modelos em ampla circulação interna nas bibliotecas da ordem, assim como
ocorria com os Jesuítas.420 Interessante notar o exemplo de uma rocalha, talhada como remate de
um espaldar de cadeira no Mosteiro de Tibães [figura 124] que apresenta uma notável semelhança
morfológica com um modelo gravado por Carl Pier [figura 125] em Augsburgo.
420 OLIVEIRA, Eduardo Pires de. André Soares e o Rococó no Minho. Vol. I. Tese de doutoramento em História
da Arte. Departamento de Ciências e Técnicas do Patrimônio da Faculdade de Letras da Universidade do Porto.
Portugal. 2011, p. 128.
A circulação interna de riscos, gravuras, plantas e modelos arquitetônicos, os últimos sobretudo, permitiam que as
ordens pudessem estabelecer um padrão arquitetônico-ornamental próprio, o que definia o ‘partido arquitetônico’
específico daquela ordem. Assim ocorreu com a Companhia de Jesus (SJ), com o denominado estilo jesuítico
(Maneirismo).
421 HAUSER, Arnold. op. cit. p. 526.
223
na concepção da talha dos oratórios, é reforçado no Rococó pois se aproxima ainda mais “do gosto
burguês pelas formas diminutivas”422 tão peculiar no século XVIII, sobretudo na França. A
tendência, nesse momento, é substituir o “maciço, estatuesco e realisticamente espaçoso barroco”
pela “arte decorativa altamente especializada”.423 Em suma, uma ‘arte pela arte’ em que os objetos
cotidianos possuíam igualmente o mesmo espírito delicado e refinado que as artes decorativas
alcançaram nesse século. No presente contexto, os objetos devocionais também passaram por uma
profunda transformação de sua morfologia, permitindo que o vocabulário ornamental se
transformasse em elemento estrutural. A estrutura arquitetônica miniaturizada como elemento
estrutural de objetos artísticos é uma constante na História da Arte, o vocabulário ornamental lhe
faz par, porém o Rococó eleva ao extremo a força do ornamento, transformando castiçais,
molduras de quadros e espelhos, candelabros, retábulos e também os oratórios domésticos em
objetos cuja forma demonstra uma progressiva diluição. Em suma, um ornamento (a rocaille
principalmente) que é adaptado e utilizado como estrutura: o Rococó alemão levou esse princípio
ao extremo.
424Em Portugal, o termo oratório é substituído por ‘maquineta’, sobretudo para oratórios de estilo Dom José I. A
maquineta possui um formato de caixa com moldura cuja ornamentação é expressiva. Na realidade, o limite conceitual
entre oratório e maquineta praticamente inexiste em termos formais, apenas separando modelos estilísticos.
225
Ao contrário dos oratórios de vocabulário Barroco, há nesses uma leveza muito clara. Na
composição, o refinamento das linhas e a profusão de dourados colocam em evidência os
elementos fitomórficos, e as volutas se transformam progressivamente em folhagens delicadas que
se entrelaçam em conchas e rocailles. Os fundos policromados em brancos e verdes realçam ainda
mais o trabalho de douramento e a primorosa talha decorativa. Podemos observar nesses dois
exemplos a utilização do ornamento em conjunção com uma estrutura arquitetônica que parece
diluir e ceder ao ímpeto dos elementos decorativos [figura 127] e logo em seguida o próprio
partido ornamental tomar destaque, tornando-se a própria estruturação do objeto [figura 128].
Essa diluição da forma arquitetônica para o ornamento não é distinção dos oratórios, a própria
arquitetura e a produção de retábulos também seguiu o mesmo ‘desvario’ compositivo. Nos
modelos retabulares, por exemplo, o mesmo delírio ornamental é desejado, evidenciando uma
verdadeira obsessão pela decoração e pela formatação de uma ‘obra de arte total’ (Gesamtkunstwerke)
onde, assim como no Barroco (com Bernini), “a arquitetura, pintura, escultura e demais elementos
ornamentais constituem uma unidade totalizante, na qual os efeitos do conjunto, têm função
primordial”.425
Nacional\MEC, 1979.
428
É importante frisar que o pau-santo (Zollemia paraenses Huber Caesalpiniaceae) trata-se de uma madeira brasileira muito
utilizada para móveis de luxo, carpintaria e artesanato justamente pela sua nobreza e maleável composição que facilita
a talha e o acabamento minucioso e delicado. Embora o oratório Dom José I seja exclusivo de Portugal, a madeira é
226
ser identificados como armários verticalizados e de formato trapezoidal, formando três faces onde
as duas laterais são lacradas com folhas de vidro plano e a central se configura como uma porta
com igual fechamento de vidro plano, geralmente contendo chave. Os elementos que os tipificam
são: o não uso de policromia no corpo do oratório (mantendo a cor original da madeira, recebendo,
no máximo, algum tipo de verniz lustroso), o forro interno adamascado e o rico coroamento
arrematado por uma variedade de elementos ornamentais como palmetas, ombreiras, folhagens de
todo tipo e com grande recorrência variações de rocailles.
Mesmo sendo esse o modelo mais utilizado na feitura dessa tipologia, caracterizando-a
plenamente, há outros modelos que, por meio de sua ornamentação, também se enquadram dentro
do estilo josefino. Sua variedade, comprovada através dos numerosos exemplos nos acervos
particulares e musealizados em Portugal, nos atesta a popularidade desses oratórios na época pois,
mesmo sendo riquissimamente ornados e dotados de fatura essencialmente erudita, podemos
imaginar a abrangência do gosto popular por tais oratórios, tendo em vista sua produção massiva.
Importante considerar que tais oratórios foram numerosamente importados da Metrópole para a
Colônia, podendo ser encontrados nos acervos particulares e musealizados nos estados do Rio de
Janeiro, São Paulo e Minas Gerais, com destaque para o acervo mineiro com peças desse estilo
podendo ser localizados nos Museus do Oratório e Inconfidência (Ouro Preto) e Museu de Arte
brasileira, o que nos indica a recorrente extração de matéria-prima da colônia para fins artísticos, assim como o já
consagrado pela Historiografia como o pau-brasil e os metais e pedras preciosas.
227
Sacra (São João del-Rei). Essa mesma tipologia influenciará diretamente a tipologia homônima
desenvolvida em Minas Gerais, como veremos adiante.
Figura 132. Detalhe. Thomas Chippeendale. Modelo para relógio. 1754. Gravura. Prancha de The Gentleman and
Cabinet-Maker´s Director. Fonte: Arquivo da Robarts, Universidade de Toronto
Por fim, no século XIX, o modo de produção dos oratórios domésticos em âmbito europeu
parece declinar. Em Portugal e Espanha, ainda são produzidos, tendo em vista a potência que a
religiosidade católica possuía historicamente no mundo ibérico. Porém, os oratórios novecentistas,
salvo exceções, não possuíam mais o ‘brilho’ artístico muito bem observado no século anterior. Na
arte europeia, após os desvarios do Rococó, o gosto classicista retoma o seu posto mais uma vez
na produção artística com o estilo Neoclássico, logo depois, o Romantismo. Um racionalismo pós-
revolução francesa se impõe no final do século XVIII e início do XIX: na pintura, os temas
históricos, sociais e heroicos se tornam interesses dos artistas e dos encomendantes. Jacques-Louis
David, Francisco de Goya, William Blake e Caspar David Friedrich são, certamente, os grandes
nomes. O século XIX, para Gombrich, é a centúria da revolução permanente na História da Arte,
onde a ‘ruptura na tradição’, a defesa de um conceito de arte com ‘A’ maiúsculo pela Academia e
229
O estilo Diretório possui vigência muito curta (final do XVIII e início do XIX na França) e
é classificado como um mobiliário cuja forma plástica se situa na transição do estilo Luis XVI (um
‘tardo-rococó’) para o estilo Império (em referência ao período de Napoleão Bonaparte) onde as
estruturas do mobiliário são mais depuradas, simples, de caráter linear (as curvas são discretas) e a
ornamentação se baseia no vocabulário da Antiguidade, como dissemos acima.431 O chamado ‘estilo
Império’ também se insere, de certa forma, no Neoclássico, com variações e ramificações que se
estenderam ao longo do século e que não são objeto de nossa discussão. A questão é que, ao longo
do século XIX, a arquitetura, por exemplo, alcança uma liberdade expressiva, contudo:
[...] esse período de ilimitada atividade em construção não possuía um estilo próprio. As
regras empíricas e os livros de modelos que tinham servido tão admiravelmente até o
período georgiano foram descartados, em geral, com demasiado simples e “inartísticos”.
[...] depois das outras especificações preenchidas, encarregava-se o arquiteto de
acrescentar uma fachada em estilo gótico, ou de converter o edifício num arremedo de
castelo normando, palácio renascentista ou mesmo mesquita oriental. 432
Essa ‘ilimitada atividade’ da arquitetura, na realidade uma ‘ausência estilística’, resultou num
notável ecletismo (ecletismo esse, aliás, fruto de um século historicista como foi o XIX) onde vários
estilos artísticos eram evocados e poderiam conviver. À guisa de encerramento desse tópico,
gostaríamos apenas de citar um certo desdobramento do oratório doméstico na arte do mobiliário.
429 Questões abordadas nos capítulos: ‘A ruptura na tradição’, ‘Revolução permanente’ e ‘Em busca de novos padrões’.
In: GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora LTC, 2012.
430 E a América Espanhola, em partes (principalmente com o Barroco Espanhol).
431 CALADO, Margarida, PAIS DA SILVA, Jorge Henrique. Dicionário de termos da arte e arquitectura. Lisboa:
Em Portugal, por exemplo, os oratórios domésticos e as tradicionais maquinetas irão seguir uma
estética mais sóbria e simples, retornando à velha forma do armário de duas portas. Porém,
destacamos o uso do house altar-cabinet, muito popular na Augsburgo novecentista433. O ‘gabinete e
altar doméstico’ é um móvel que se filia ao gênero das ‘cômodas-oratório’ ou ‘papeleira-oratório’,
sendo retomadas com um virtuosismo impecável na segunda metade do século XIX. Trata-se de
um móvel que concilia a função devocional e secular, sendo formatado como uma peça geralmente
escalonada, onde os partidos arquitetônico e ornamental se harmonizam de tal maneira que
podemos afirmar que formam uma síntese. Ao contrário dos séculos anteriores em que lidamos
com a árdua tarefa de encontrar, através de uma cuidadosa análise comparativa, as semelhanças e
diferenças entre as possíveis referências utilizadas das fontes gravadas para os objetos propriamente
ditos, os house altar-cabinet geralmente são feitos a partir de um desenho previamente definido (assim
como os retábulos em séculos anteriores) com poucas variações no resultado final. Um exemplo
curioso é o house altar-cabinet, de fatura alemã, representado na figura 133 com o seu respectivo
modelo gravado, representado na figura 134.
433Mais uma vez, os alemães! Em termos de ornamentação, decoração, arquitetura e principalmente mobiliário, a
presença do norte alemão é primordial na História da Arte.
231
Tal peça é apenas um dos inúmeros house altar-cabinet produzidos no território alemão na
segunda metade do século XIX. Podemos observar no exemplo representado acima uma obra de
síntese: primeiro, o modelo é concebido e materializado na gravura, depois reproduzido conforme
o ‘risco’, com alterações formais ou até mesmo iconográficas que poderiam partir do artista ou do
encomendante da obra. O gabinete (a parte inferior, com a presença de gavetas) cuja função era
guardar livros de oração,434 sustenta o nicho, que sem dúvida se apresenta como um primoroso e
riquíssimo trabalho de talha. O house altar propriamente dito se trata da parte externa (fachada) de
um templo que possui um vocabulário arquitetônico e ornamental renascentista, com inflexões
maneiristas, contando ainda com elementos da ornamentação barroca: trata-se de um prodigioso
pastiche.
Maneirismo
Grotescas, volutas estilizadas, elementos fitomórficos
Barroco
HACKENBROCK, Yvonne. Reinhold Vasters, Goldsmith. In: The Metropolitan Museum Journal. Vol. 20.
434
Nos dois oratórios portugueses produzidos no século XVIII acima reproduzidos, podemos
observar a curiosa composição da pintura ornamental. Mesmo estando sob vigência o vocabulário
rocaille (tendo em vista o aspecto ornamental da talha, sobretudo no exemplo da figura 135),
podemos notar que as formas das volutas de estrutura ‘gorda’, entrelaçadas em folhagens, formam
um emaranhado sinuoso, invocando a plástica das grotescas que, em Portugal, recebem a
denominação de brutesco. Tal plasticidade, porém, pode estar mais relacionada à ornamentação
Barroca e Rococó, como podemos observar nos modelos seiscentistas de Nicola Billy e Pietro
Cerini [figura 138] e setecentistas (com citações de rocaille) de Alexis Peyrotte [figura 139].435
435 Podemos observar também oratórios que possuem como ornamentação pictórica as rosas. Tais rosas podem ser
utilizadas sozinhas (e repetidas, como um ‘papel de parede’) ou em trio, sendo representadas num buquê. Na América
Portuguesa, especificamente a Capitania de Minas, o modelo foi utilizado à exaustão, sobretudo na mão do pintor
Joaquim José da Natividade.
234
Podemos ver na figura 140 o mesmo oratório, dessa vez com a imagem de Santa Maria
Madalena, onde as linhas que traçamos se adequam harmoniosamente ao corpo da imagem,
indicando a mesma como elemento central da peça. Nesse caso, a simetria da pintura ornamental
– com a imagem já posicionada – revela um efeito que se aproxima do emolduramento,
entronizando visualmente a imagem em perfeita harmonia com o fundo, efeito potencializado pela
policromia do panejamento da escultura que contém a mesma paleta de cores e ornamentação floral
que o fundo do oratório. Uma outra peça, também do Rococó português [figuras 141-142] possui
a mesma orientação ornamental para imagem central.
Os elementos florais do oratório – como podemos observar na figura 142 - são espelhados
a partir do vértice imaginário central onde se localiza o crucifixo, indicando visualmente a
centralidade do Crucificado na peça. Curioso notar que a ornamentação pictórica no fundo se
harmoniza linearmente com a imaginária, onde as proporções da cruz se ligam à disposição das
folhagens e demais elementos.
236
Tal aspecto da ornamentação dos oratórios nos indica algumas questões pertinentes de serem
colocadas. Primeiro, a produção de tais oratórios – pelo menos em Portugal – parece possuir uma
lógica não puramente artística, mas intrinsecamente religiosa. O artista, possivelmente,
compreendia exatamente o sentido de tais peças, onde o oratório não se constitui como mero
armário/nicho ou objeto de pouso/guarda de imagens religiosas, mas como obra religiosa em sua
inteireza. Até mesmo a ornamentação pictórica nos indica a centralidade do aspecto religioso. Essa
constatação vai de encontro à concepção de que a ornamentação possui um “movimento de
convergência para o centro”,436 ou seja, para o elemento central do objeto artístico do qual ela (a
ornamentação) faz parte.
[...] não é somente decoração. Este último é, de fato, um regime ético-estético que
determina a função da ornamentação, cujo objetivo é tornar o suporte agradável, atrair o
olhar para ele e tornar a forma adequada ao conteúdo, ou seja, para atingir uma beleza
adequada. Uma beleza apropriada confere à composição um movimento de convergência
em direção ao centro, ou seja, o sujeito, o essencial. [...] a beleza da forma é adequada
quando cumpre plenamente sua função decorativa, não enganando ou fingindo ser
essencial, sabendo não ultrapassar os limites do quadro, quando sabe ser discreta. Falo
da moldura de uma pintura porque é o próprio exemplo de ornamento decorativo: deve
ser belo o suficiente para atrair a vista, mas não muito para cativá-la. Uma ornamentação
excêntrica e excessiva, não relacionada ao tema ou ao suporte, não é decorativa e nem
adequada.437
Partindo da ideia de que o ornamento possui como função essencial ‘direcionar para o
assunto/tema’ (no caso dos oratórios, a devoção) a pintura ornamental - também unida à talha
decorativa - exerce papel primordial para a composição do oratório doméstico como obra de arte
total, onde talha e pintura, localizadas numa concepção arquitetônica, se unem à imaginária para
formarem um espaço harmônico, em que o sagrado é hospedado num ‘santuário portátil’ no qual
todos os elementos artísticos realçam e destacam um elemento sublime, perene. Nesse caso, a
imagem devocional. O espelhamento (assim como a repetição de elementos) das formas
decorativas na pintura ornamental dos oratórios parece nos indicar uma prática, uma forma de
organização compositiva que possui como característica a simetria. Mais uma vez, no aspecto
formal, podemos estabelecer um paralelo entre a composição dos oratórios domésticos e a
436 GOLSENNE, Thomas; DÜRFELD, Michael; ROQUE, Geoges; SCOTT, Katie; WARNCKE, Carsten-Peter.
L’ornemental : esthétique de la différence. In: Perspective. 1 | 2010, mis en ligne le 14 août 2013, consulté le 14 août
2019, p. 3. [tradução nossa]
437 GOLSENNE, Thomas. op. cit. p. 3-4. [tradução nossa]
237
composição dos retábulos que, em Portugal (nas palavras de Robert Smith) constituem uma mesma
arte.438
438 Robert Smith, ao enumerar os vários objetos que os artífices da madeira faziam em Portugal, cita os oratórios.
Sendo assim, por dedução lógica, o oratório pode ser também uma obra que poderia receber a influência formal da
composição arquitetônica, pictórica e escultural dos retábulos. SMITH, Robert. A talha em Portugal. Lisboa: Livros
Horizonte, 1962, p. 11-12.
439 A questão do espelhamento, da relação entre escultura e pintura, assim como os possíveis significados da pintura
ornamental nos oratórios domésticos foi melhor explorada no texto: RODRIGUES, Lucas. Decorar para indicar - A
ornamentação Rococó nos oratórios domésticos devocionais como elemento de indicação iconográfica: Portugal e
Minas Gerais - séculos XVIII-XIX. In: Rocalha. N. 1; v. 1; 1ª ed. 2020, pp. 352-373.
440 BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador: Editora UFBA, 2012, p. 119.
238
janela por onde o fiel pode contemplar uma cena sagrada, ser por ela convidado a orar, sentir
devoção, participar do sublime enlevo místico e desfrutar da perene companhia ali representada.
Já o oratório com um ‘cenário urbano’ representado, os temas são variados, porém, as cenas
da Paixão de Cristo ocorrem com frequência maior. Embora a cena da crucificação tenha ocorrido
no Calvário, um monte/montanha (também conhecido como ‘Caveira’), por vezes uma cidade é
representada, como vemos na figura 147.
Figura 147. Detalhe. Lorenz Luidl e oficina. Oratório/grupo escultórico da crucificação. Séc. XVII-XVIII. Alemanha.
Coleção particular. Fonte: Hampel Auctions Munick.
No altar aqui ilustrado,441 podemos observar que a cidade representada ao fundo (em alusão
à Jerusalém) possui uma clara função de ‘pano de fundo’ para a ação representada com vivacidade
pelo grupo escultórico. Alude à um palco, cujo cenário localiza e hierarquiza o plano do humano,
com a cidade ao fundo no mesmo nível dos personagens abaixo da cruz, e o plano divino, onde o
céu que circunda o crucificado possui uma tensão quase apocalíptica, com os astros à mostra, onde
um anjo consola o ‘bom ladrão’ à direita e um demônio atormenta o ‘mau ladrão’ à esquerda [figura
148].
441O grupo escultórico ilustrado nas imagens 147 e 148 foi classificado para exemplificar o uso do cenário urbano
pelas suas dimensões e estrutura de nicho, em comparação a outros grupos escultóricos da Paixão que possuem as
mesmas dimensões e estão guardadas dentro de caixas (oratórios). O selecionamos pela sua capacidade expressionista
de exemplificar o teatrum sacrum, elemento tão presente nos oratórios domésticos no tempo do Barroco. Dimensões do
referido nicho do grupo escultórico: 1,65cm de altura, 1,05cm de largura e 45cm de profundidade.
241
Figura 149. Detalhe do nicho central. Anônimo. Oratório embutido em cômoda (D. João V). 1706-1750. 222x136x68cm.
Portugal. Fonte: SANDÃO, Arthur de. O Móvel pintado em Portugal. Porto: Livraria Civilização, 1984, p. 208.
Foto: BDCML/Portugal
242
Isto posto, podemos considerar o teatrum sacrum dos oratórios domésticos como mais um
elemento da ecclesiae domesticae, onde a experiência devocional é vivida sob as formas harmoniosas e
diminutas do objeto. A cenografia, realizada na conjunção entre pintura e escultura, se torna mais
um aspecto confirmador da constituição do oratório doméstico como obra de arte total. As três
dimensões interagem, conversam, se fundem, tornando-se um só objeto, um só sentido.
442 BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador: Editora EDUFBA, 2012, p. 119.
243
O infante peregrino é acompanhado em viagem por sua mãe e seu pai que deixam sua casa
e partem. Abandonam para trás seus afazeres cotidianos para empreender o caminho traçado pelo
seu filho, fato percebido pela curiosa representação dos objetos cotidianos de Maria (ligados à
esfera doméstica) e de José (objetos ligados ao ofício da marcenaria) acima de suas respectivas
imagens nas portas laterais [figuras 151-152]. Percebemos, portanto, a narrativa imagética
244
Finalizando o estudo dos oratórios em âmbito europeu, tema deste capítulo, gostaríamos de
destacar separadamente o papel da escultura no oratório doméstico. O partido arquitetônico
delimita a forma, a estrutura, a tipologia inclusive. A pintura se torna elemento ornamental e
cenográfico, unindo-se à forma exterior do oratório e à imaginária. Porém, a escultura possui papel
importantíssimo pois é através dela que, necessariamente, a devoção existe. Em outra perspectiva,
é pelo fato de a escultura dos santos ser usada como objeto devocional é que muitas vezes o
oratório é feito, justamente para lhe servir de ‘templo’, de armário, de nicho, de guarda.
Para serem utilizadas dentro dos oratórios é que tais imagens possuem uma dimensão
própria. Geralmente, as imagens próprias para oratórios possuem dimensões que variam de 15cm
a quase 1,0m de altura. Por vezes ganham o título de ‘imagens de oratório’443, por possuírem tais
dimensões. As esculturas sacras no oratório doméstico podem ser organizadas em três
classificações:
São vários os autores que atribuem o título ‘imagem de oratório’ para delimitar uma tipologia às peças de imaginária
443
com dimensões diminutas. Ver: COELHO, Beatriz (org.). Devoção e arte – imaginária religiosa em Minas Gerais.
São Paulo: Edusp, 2005.
245
O primeiro grupo é constituído a partir de uma escolha iconográfica, escolha que parte –
geralmente – do encomendante. Constitui uma narrativa iconológica, representando um tema em
que a imaginária desempenha o papel de retratar. O oratório doméstico, de acordo com a
concepção de bel composto que temos utilizado para a sua leitura, pode abrigar esculturas devocionais
que, no programa narrativo, interagem com as imagens pintadas, como vimos. Porém, a imaginária
também pode exercer papel autônomo na representação iconográfica nos oratórios, representando
o que se deseja representar somente com a sua utilização, independendo do recurso pictórico.
Geralmente, podemos observar que tal solução formal pode ser encontrada em oratórios que
possuem somente a pintura ornamental, onde essa não possui papel devocional, ou até mesmo em
exemplares que não possuem nenhum tipo de ornamentação, cabendo o destaque somente às
esculturas ali depositadas.
Nos séculos XVIII e XIX em Portugal populariza-se o uso da gravura com fins devocionais,
os chamados ‘registos de santo’. Esses ‘registos’ eram, normalmente, utilizados em ambiente
doméstico como pequenos quadros emoldurados ou afixados em oratórios domésticos.444 Segundo
Luís Augusto de Lima:
Maiores que os santinhos atuais, porém raramente ultrapassando 20cm de altura, esses
registros, na sua maioria gravuras em metal executadas em buril [...] são impressos em
papel ordinário e de tal maneira copiados e às vezes deformados, que suas autorias, com
o passar do tempo, tornaram-se anônimas. No entanto, alguns autores [...] são
conhecidos, tanto portugueses natos, como Gaspar Frois Machado e Teotônio José de
Carvalho, como estrangeiros atuantes em Lisboa no século XVIII. Dentre estes, destaca-
se o grupo de gravadores franceses que trabalharam em Portugal no reinado de D. João
V, como Guilherme Francisco Lourenço Debrie, João Batista Miguel Le Bouteux e Pedro
Massar de Rochefort [...].445
O aspecto mais interessante do uso dos ‘registos’ é que, em Portugal, assim como na França
nesse mesmo período, “as gravuras eram usadas para reprodução de monumentos, cartografia,
cenas de costumes, retratos, ornamentos arquitetônicos e uma infinidade de usos”446, em suma, os
registos de santo ultrapassavam a sua função meramente devocional. Portanto, se há um gênero de
gravura que contribuiu imensamente para a composição arquitetônico-ornamental, assim como
pictórico-escultural dos oratórios domésticos em Portugal e na América Lusa, certamente os registos
444 JÚNIOR, Augusto de Lima. História de Nossa Senhora em Minas Gerais. Coleção Historiografia de Minas
Gerais. Belo Horizonte: Editora Autêntica/Editora PUCMinas, 2008, p. 27.
445 LIMA, Luís Augusto. Augusto de Lima Júnior e sua coleção de gravuras de Nossa Senhora. In: JÚNIOR, Augusto
figuram como os mais destacados.447 No caso específico das imagens de oratório, os registos
tiveram sua relevância.
Um exemplo dessa troca pode ser observado no oratório do retábulo-mor da Igreja de Nossa
Senhora dos Mártires, em Lisboa [figura 153]. O dito oratório, na realidade um nicho, possui uma
moldura arquitetônica dourada com ornamentação de vocabulário Rococó, com a imagem
articulada da Virgem tendo o Menino Jesus num dos braços e no outro uma palma, simbolizando
o martírio (por isso, Nossa Senhora dos Mártires). Curiosamente, há um registo de santo, gravado na
mesma época [figura 154] cuja iconografia remete a uma das invocações da litania lauretana em que
Nossa Senhora é invocada como Regina Martyrum, Rainha dos Mártires. A semelhança entre a
gravura e o nicho do retábulo é flagrantemente observável. Trata-se de uma autêntica replicação da
composição formal, com ligeiras modificações.
A questão que se apresenta após tal constatação permanece uma incógnita. Quem influenciou
quem? A gravura serviu de modelo para o nicho do retábulo ou o contrário? Tendo em vista o que
a historiografia da arte nos esclareceu acerca do vasto e intrigante universo das fontes gravadas,
podemos seguir a tese de que, majoritariamente, a gravura possuía um protagonismo na função de
servir como modelo para a produção da talha religiosa em Portugal (assim como na América
447 Além, é claro, das gravuras ornamentais do Rococó francês e germânico, como vimos anteriormente.
448 Na antiga Capitania de Minas, o peso de tais registos é evidente, sobretudo na composição dos forros das igrejas e
capelas. Vide o forro da nave da Matriz de Santa Bárbara, pintada por Manuel da Costa Ataíde, cujo tema – a Assunção
de Nossa Senhora – e composição formal é perfeita cópia (embora invertida) de um registo de santo de mesmo tema
que pertenceu à Coleção de Augusto de Lima Júnior, colecionador de gravuras no século XX, que atualmente se
encontra no Arquivo Público Mineiro, cuja ‘irmã’ (também do século XVIII) se encontra na Biblioteca Nacional
Portuguesa, sessão de Iconografia.
449 LIMA, Luís Augusto. op. cit. p. 24.
247
Portuguesa) como bem nos coloca os estudos dos historiadores Alex Bohrer e Áurea Pereira da
Silva, entre outros.450
Figura 153. Oratório/nicho de Nossa Senhora dos Mártires. Séc. XVIII. Lisboa.
Igreja de Nossa Senhora dos Mártires. Madeira entalhada e dourada. Foto:
Luis Montalvão
Figura 154. Silva e Carvalho. Regina Martyrum, ora pro nobis. Séc. XVIII.
Gravura. Coleção de Luis Montalvão. Foto: Luis Montalvão 451
Nesse sentido, consideramos que os registos de santo, além de serem objetos devocionais
propriamente ditos, também serviram (assim como as gravuras ornamentais) como modelo para a
feitura de oratórios e imagens. O registo, enquanto uma estampa, é composto por dois elementos: a
moldura e a imagem. A moldura possui ora um vocabulário arquitetônico, ora ornamental. Na talha
450 BOHRER, Alex Fernandes. Os diálogos de fênix: fontes iconográficas, mecenato e circularidade no Barroco
Mineiro. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2007 | SILVA, Áurea
Pereira da. “Notas sobre a influência da gravura flamenga na pintura colonial do Rio de Janeiro”. Barroco, Belo
Horizonte, n. 10, 1978/1979.
451 Agradeço ao Luis Montalvão, autor do blog ‘Velharias do Luis’ (Portugal) por nos ceder as imagens ilustradas nas
dos oratórios, a moldura do registo poderia servir de inspiração ou mesmo modelo, como vimos no
exemplo do nicho do retábulo-mor de Nossa Senhora dos Mártires na figura 153. No caso
específico da imaginária, é a imagem emoldurada que poderia servir de modelo para a talha das
esculturas no oratório.
Podemos ver na maquineta com a devoção ao tema da Natividade de Jesus Cristo, ilustrado
na figura 155, onde a composição gestual se assemelha com a do registo cuja devoção é apresentada
como sendo de Nossa Senhora Madre de Deus, hoje resguardado no acervo da Sociedade Martins
Sacramento.
452Peça de tecido branco, geralmente rendado, utilizado como ‘gravata’ e de uso popular no século XVIII.
Posteriormente, foi substituído pelo stock, dessa vez, uma tira de pano branco rígido.
251
A segunda modalidade de imagens que podem ser encontradas nos oratórios domésticos são
as ‘imagens solitárias’. São imagens que, geralmente, são feitas justamente para oratórios
domésticos (ou sendo incorporada a ele caso as proporções assim o permitam), tornando-se a
devoção principal. Até onde essa pesquisa pôde verificar, não há qualquer elemento em talha ou
em pintura que possua significação ou simbolismo à imagem de santos entronizados solitariamente
no oratório. A interação pintura/escultura, normalmente, só ocorre com as ‘grandes narrativas’, ou
seja, a iconografia da vida de Jesus Cristo e da Virgem Maria, possuindo o oratório doméstico um
status de biblia pauperum.
453 A historiadora da arte Angela Brandão, da Universidade Federal de São Paulo, aponta que os móveis em miniatura
quando usados como elementos constitutivos da iconografia das imagens sacras, possui não apenas um sentido prático,
mas também religioso. No nosso caso, o berço não possui apenas a função de acomodar a imagem do menino, mas é
também objeto sacro pois representa o cotidiano da Sagrada Família, humanizando a figura do Cristo que é “verdadeiro
Deus, verdadeiro homem”. | BRANDÃO, Angela. Móveis em miniatura: a demonstração de um saber fazer. Anais
do Museu Paulista. São Paulo. N. Sér. v.25. n.1. p. 169-197. jan.-abril 2017, p. 181.
454 As definições de termos que designam os oratórios domésticos podem ser consultadas no primeiro capítulo desta
dissertação.
252
imagens, em grande parte esculturas, dos santos de sua devoção, podendo ou não possuir relação
direta entre eles. Muitas composições podem ser observadas na miscelânea devocional: calvário
com vários santos que não fazem parte da narrativa da Paixão, calvário com personagens da
natividade de Cristo, várias representações de Cristo ou Nossa Senhora e muitos outros.
São, em suma, uma mistura por vezes não proposital, mas essencialmente espontânea. Em
Portugal em específico, os oratórios domésticos possuem, em maior ou menor grau, algum
‘programa iconográfico’, cuja narrativa pressupõe uma adequação pictórica e principalmente
escultural que represente o tema. Porém, a ideia de ‘corte celeste’, ou seja, a reunião de inúmeros
títulos cristológicos e marianos, além de vários santos do martirólogo cristão podem ser
encontrados, embora essa ‘miscelânea’ seja um aspecto abundante no grandioso acervo de oratórios
domésticos produzidos na América Portuguesa.
Tendo Portugal como modelo e como matriz da arte dos oratórios domésticos para outros
territórios, – sobretudo a América Portuguesa – faz-se necessário elencar as tipologias
desenvolvidas ao longo da história de sua manufatura. Por uma questão de recorte temporal,
elencamos aqui as tipologias que foram desenvolvidas ao longo dos séculos XVIII e XIX, séculos
em que o Barroco e o Rococó religioso (assim como as inflexões para o Neoclássico) tiveram ampla
aceitação na arte dos oratórios domésticos. Sendo assim, compreendemos como tipologia uma
forma específica de oratório doméstico que foi desenvolvido em certas épocas definidas
cronologicamente. Embora a delimitação temporal seja algo intrinsecamente arbitrário e artificial,
podendo até mesmo tornar a generalização um fator perigoso para a nossa análise, escolhemos
organizar as tipologias de acordo com o consenso da historiografia da arte: a vigência dos reinados.
A cronologia aqui utilizada é, pois, baseada na vulgarização, ou moda, dos modelos dos
móveis. As datas são mais reais, pois correspondem ao momento em que houve o grande
e geral uso de determinado ou determinados modelos. [...] é preciso considerar que não
só a morfologia e a decoração das peças podem indicar a época do uso de determinados
455 FLEXOR, Maria Helena Ochi. Mobiliário baiano. Brasília, DF: IPHAN/Programa Monumenta, 2009, p. 34.
253
Acerca dos materiais utilizados, Flexor indica que a identificação da datação do mobiliário –
e no nosso caso, dos oratórios – pode também ocorrer através da verificação do “uso constante de
madeiras diversas, tipos de ferragens, puxadores, madeiras folheadas, couro lavado, sola picada,
palinha, damasco, veludo, verniz, vidro, mármore, pintura branca ou colorida, douramentos etc”.457
Embora Flexor delimite tal procedimento metodológico para analisar o mobiliário baiano,
consideramos válida a postura metodológica para a análise dos oratórios domésticos em Portugal.
A tipologia Dom José I, também denominado ‘josefino’, foi desenvolvido sob o reinado do
monarca homônimo e representa o estilo Rococó em Portugal. Possui influência francesa, mas
também germânica, sendo a região do Entre-Douro e Minho (especificamente em Braga)
privilegiada com manifestações artísticas do Rococó português. O Rococó português, denominado
estilo josefino, manifesta-se nos oratórios domésticos através dos seguintes aspectos morfológicos:
estrutura predominantemente vertical, talha rebuscada com profusão de volutas estilizadas, rocailles,
cartelas assimétricas, plumagens e penachos, vieiras, elementos fitomórficos e – raramente –
antropomórficos, presença de vidro plano e caixa com caráter excessivamente ornamental. No
partido pictórico, prevalece a ornamentação com exuberante douramento, adamascados, elementos
florais, fitomorfismo profuso, utilização de cores suaves como brancos, azuis-cianos e verde
mingnonette.
A tipologia se desenvolveu sob o reinado da monarca Dona Maria I, que governou de 1777
a 1815 após o período de Dom José I, seu pai. A tipologia, em sua morfologia, é compreendida
como um estilo de transição, onde o Rococó exuberante do Josefino passa por um processo de
simplificação em direção ao Neoclássico. A tipologia D. Maria pode ser compreendida como um
estilo autônomo, que simboliza a transição de vocabulários. Nos oratórios domésticos, o estilo se
manifesta a partir dos seguintes aspectos morfológicos: talha com linhas simples, com curvas
sinuosas e uso de cimalha com linhas sobrepostas; ornamentação simples e elementos vazados em
douramento. No partido pictórico, pode apresentar adamascados, festões, fitas e guirlandas com
flores. Em peças da ‘fase inicial’, apresentam ornamentação e fatura com vocabulário josefino, com
ligeiras simplificações, a ‘fase intermediária’ apresenta uma composição mais sóbria, com irrestrita
simplificação ornamental, já a ‘fase final’ possui em sua morfologia arquitetônica e ornamental
aspectos do Neoclássico, servindo de ‘introdução’ para os oratórios de estilo neoclássico
propriamente ditos.
Figura 160.
Desconhecido. Oratório
doméstico em estilo D. João
V. Séc. XVIII. Portugal.
Pau santo. Coleção
particular. Fonte:
BDCML/Portugal
Figura 161.
Desconhecido. Oratório
doméstico/maquineta em
estilo D. José I. Séc. XVIII.
Portugal. Coleção
particular. Fonte:
BDCML/Portugal
Figura 162.
Desconhecido. Oratório
doméstico em estilo D. Maria
I. Séc. XVIII-XIX.
Portugal. Coleção
particular. Fonte:
BDCML/Portugal
Figura 163.
Desconhecido. Oratório
doméstico em estilo
neoclássico. Séc. XIX.
Portugal. Coleção
particular. Fonte:
BDCML/Portugal
256
257
458 A colecionadora Angela Gutierrez, fundadora e idealizadora do Museu do Oratório de Ouro Preto, já na década de
1990 alertava de que “Ainda não foi levantada – ou é desconhecida – uma história erudita da origem, propagação e
manufatura dos oratórios no Brasil”. | GUTIERREZ, Angela. Oratório: presença material da divindade. In: Objetos
da fé – oratórios brasileiros: coleção Angela Gutierrez. Minas Gerais, 1991, p. 6.
459 Há uma notável escassez de documentação manuscrita que possua elementos satisfatórios que possam elucidar o
‘decoro’ em sua feitura. Tal normatização era – via de regra – a mesma para os retábulos e demais obras de talha cuja
função era atender ao ofício litúrgico. No caso específico dos oratórios domésticos com função devocional, sua feitura
era livre.
461 Constituições Primeiras. p. 256. | BSF/DF
258
recinto do templo - principalmente nos retábulos - assim como nos oratórios com função de altar
nas residências rurais.
Tal liberdade teria sido, talvez, a grande força propulsora para a riqueza artística empregada
pelos entalhadores, escultores e demais oficiais da madeira na feitura dos oratórios domésticos. A
criatividade artística, impulsionada pelas formas difundidas em Minas Gerais (cujos antecedentes
são europeus, como vimos no capítulo anterior) pode ser considerado um fator primordial para a
composição dos oratórios com função devocional, criatividade tal que poderia partir do
encomendante, aquele que solicita a ‘forma’ e ‘conteúdo’ da obra, como principalmente do artista,
aquele que realiza na madeira a ‘forma’ e ‘conteúdo’ encomendado a partir da sua cultura visual e
repertório artístico. Partindo disso, buscamos nesse momento compreender a produção de tais
objetos à luz da historiografia da talha Luso-Brasileira, a fim de denotar a presença dos oratórios
domésticos no panorama geral da arte do mobiliário colonial e da talha religiosa.
A primeira questão patente de discussão é: quem foi o oficial mecânico responsável pela
feitura dos oratórios domésticos? À qual oficial/ofício mecânico a sua produção estava atrelada
nos séculos XVIII e XIX na América Portuguesa? Seria o marceneiro, o entalhador ou os populares
imaginários/santeiros os profissionais que o produziam? Artistas o faziam? Tendo em mente tais
questões, é crucial compreender o mecanismo dos ofícios mecânicos, principalmente aqueles que
possuíam a madeira como matéria-prima, a fim de localizar a produção dos oratórios domésticos e
estabelecer um panorama geral de sua manufatura.
462 Instituição ou agrupamento profissional que atuou por 450 anos em Lisboa como órgão que organizava os oficiais
mecânicos em Portugal. Era constituída pela reunião de dois oficias de cada área, constituindo uma congregação de
mestres que formavam a ‘Casa dos Vinte e Quatro’. Foi extinta em maio de 1834.
463 SMITH, Robert C. A talha em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962, p. 11.
259
Os imaginários, como indicava a palavra, eram escultores de imagens, que nos seus
exames deveriam esculpir crucifixos e imagens de Nossa Senhora. É provável que essas
imagens fossem também feitas por entalhadores, pois não há indicação nos contratos dos
retábulos de que não tinham sido inteiramente executadas por aqueles que arremataram
a empreitada.464
Portanto, os oficiais da talha em madeira, por mais que suas atividades laborais possuíssem
certa especificidade técnica, possuíam uma linha tênue e quase sempre exerciam dois ou mais
ofícios, dominando técnicas que os qualificavam como artífices de denotada polivalência. Aliás, tal
polivalência foi em Portugal uma característica muito peculiar dos oficiais da madeira, pois:
No caso específico dos entalhadores, justamente aqueles que dão a forma artística à matéria-
prima, Robert Smith afirma que no novo regimento do ofício outorgado pelo Senado da Câmara
de Lisboa em 1768, dentre os inúmeros trabalhos de talha autorizados de serem feitos pelos
entalhadores, figuram as maquinetas466, em suma, oratórios domésticos móveis e de cunho
essencialmente devocional.
revestidas de lona nas rachas maiores, quando não empregavam grampos de metal”.467 A técnica
dos pintores-douradores, segundo Smith, era que “polida a superfície, cobria-se de várias camadas
de gesso para receber umas demãos de bolo de uma terra vermelha própria para lhe dar a
elasticidade essencial ao processo de brunir o ouro, aplicado em folhas sobre esta base tão
cuidadosamente preparada.468
Essa complexa trama de distinção entre os oficiais da talha e da pintura possui, como pano
de fundo, a velha celeuma da divisão dos oficiais liberais e oficiais mecânicos. No caso específico
dos pintores, embora sendo oficias mecânicos (pois utilizam as mãos), estes possuíam para a época
a arte com ‘A’ maiúsculo, ou seja, pensavam e refletiam sobre o modo de execução do seu ofício,
equiparando-se aos demais artistas que possuíam o cérebro, e não as mãos, como ferramenta de
trabalho. Essa dicotomia entre os ‘ofícios mecânicos’ e ‘ofícios liberais’ remonta à Antiguidade e
sobretudo à Idade Média, onde a sociedade se dividia entre oratores, ou seja, aqueles que rezavam
(o clero), os bellatores, aqueles que guerreavam e defendiam, e por fim os laboratores, aqueles que
trabalhavam.471
Na Idade Moderna, esse modelo irá passar por remodelações e ressignificações (sobretudo
na divisão do trivium e quadrivium) porém, a mácula do oficial mecânico acompanhará não apenas
os artífices, mas também os artistas propriamente ditos, panorama que só viria a mudar com o
advento da Renascença Italiana, mas permanecendo em outros lugares da Europa, como Portugal
e principalmente no universo colonial, como a América Portuguesa. Além disso, a organização dos
saberes desses artífices se dava ainda pelo sistema de aprendizado direto com os mestres de ofício,
ficando sob ‘tutela’ e realizando pequenos trabalhos, até que fosse examinado por uma espécie de
‘banca’ composta pelos oficiais da área a que o aprendiz se dedicava, conforme estabelecia o
Regimento do Officio de Carpinteiro de Moveis e Samblage, de Lisboa de 1767, por exemplo.
Ora, esse panorama dos oficiais mecânicos e da arte da talha em madeira foi também
transplantado para a América Portuguesa, constituindo ‘escolas’ e ‘oficinas’ artísticas que, em
primeiro momento, geralmente se encontravam atreladas às Congregações Religiosas, como os
Beneditinos, Franciscanos, Carmelitas e Dominicanos, sobretudo nas regiões litorâneas.472
Na América Portuguesa, o mesmo panorama dos ofícios mecânicos que ocorria em Lisboa
também é percebido. Nos trópicos, o “defeito mecânico”, como nos aponta Caio Prado Júnior473,
ou seja, a necessidade de utilizar as mãos como meio de sobrevivência (em relação às ‘classes
abastadas’ que não precisavam utilizá-las), ainda é uma constante, sendo que tal “defeito” não é
apenas atribuído aos profissionais livres, mas também aos escravos. Porém, no campo específico
da produção artística dos oficiais mecânicos, os ofícios propriamente ditos não eram de todo
considerados inferiores. Segundo nos aponta Flexor, “os ofícios mecânicos não eram considerados
“vil” trabalho manual, próprio de escravos, pelo contrário, foi exercido – mantidas as devidas
proporções – pela maioria de brancos e alguns de “status social” de maior relevo como os militares
graduados”.474
No caso específico dos negros forros e mestiços, Maria Helena Flexor atenta para questão
de que
471 DIAS, Geraldo Coelho. A irmandade de S. Crispim e S. Crispianiano. Estudos em homenagem ao Professor
Doutor José Marques, Universidade do Porto, Portugal, vol. 2. 2006, p. 151.
472 Como demonstrado pelo arquiteto Benedito Lima de Toledo em sua obra de referência: TOLEDO, Benedito Lima
É importante lembrar que no período colonial existiam alguns ofícios mecânicos cujo
exercício era vedado aos negros escravos e mesmo aos negros e crioulos forros. Acredita-
se, no entanto, que os ofícios exercidos apenas por brancos comportavam vários escravos
e jornaleiros sem que estes fossem examinados na Câmara, devendo executar as tarefas
menos nobres de cada ofício, especialmente as que exigiam maior esforço físico, como o
transporte de madeiras, serramento, desbastamento, etc., mas em nada contribuíam na
elaboração final da obra. Para citar exemplos da condição social de alguns oficiais
mecânicos, tome-se os marceneiros entre os quais a quase totalidade era branca e vários
deles militares.475
Além disso, a polivalência dos artífices – ou seja, a capacidade de um oficial realizar trabalhos
que são próprios de outros ofícios – também foi fato notório no Brasil colônia, porém, não sem
celeumas e disputas jurídicas do mesmo gênero que ocorriam na Metrópole, como bem nos
apontou Francisco Noronha Santos em Um litígio entre Marceneiros e Entalhadores no Rio de Janeiro,
quando observamos o caso do entalhador Francisco Félix da Cruz que fora levado à juízo por
realizar obras de marcenaria, sendo que deveria realizar, essencialmente, obras de talha como
retábulos, oratórios, lanternas e demais obras congêneres.476 Porém, mesmo que houvesse disputas
e tentativas de separação, os oficiais eram, essencialmente, indivíduos polivalentes, pois o próprio
mecanismo de aprendizagem desses oficiais garantia um intercâmbio de conhecimentos técnicos
nos vários ofícios. Segundo Flexor, havia uma hierarquia na formação dos oficiais mecânicos, para
a autora:
[...] o oficial é todo aquele que exerce ofício; oficial examinado o que tem aprovação do
exame; mestre de tenda chama-se ao oficial examinado com estabelecimento próprio;
obreiro ao que trabalha numa tenda de outrem, sob as ordens do mestre, sem ter sido
examinado e recebendo salário.477
Sobre o aspecto da formação ‘sob a tenda de outrem’, o arquiteto Benedito Lima de Toledo
comenta que tal dado possui relevância, pois “vemos o profissional formando-se numa “tenda de
outrem”, executando tarefas até se tornar apto a executar uma peça relativamente complexa, como
um “retabolo” debaixo do “preceito da Arquitetura”478. Segundo o autor, quando comenta o Litígio
entre Marceneiros e Entalhadores no Rio de Janeiro, é notável que:
entalhadores, porque se valem deles para lhes fazerem as plantas, ou modelos em madeira
para as obras [...]”.479
Tal polivalência dos artífices, contudo, deve ser compreendida à luz do procedimento das
Câmaras Municipais que, sob os ‘Juízes de Ofício’ presidiam os exames de habilitação. De acordo
com Myriam Ribeiro,
O fato de no século XVIII não serem mais obrigados a exames de habilitação ou licenças
da Câmara para o exercício profissional, pode ser tomado como indício de sua
assimilação a uma classe diferente de profissionais, ligados às chamadas “artes liberais”
que desde o século XVII já incluíam em Portugal a poesia, o direito e a pintura,
equiparadas às sete artes da tradição medieval.482
Interessante, pois tais artífices do campo da talha, assim como da pintura, passaram a ser
considerados ‘artistas’. A mudança de status social conferido aos oficiais da talha garantiu a
assimilação e inserção na sociedade, com as devidas proporções. No caso dos negros forros e
Na antiga Capitania das Minas do Ouro, assim como em toda a América Portuguesa, o
artífice/artista não atuava em uma única atividade, sendo assim, se tratava de indivíduos dotados
da já corriqueira polivalência. Tal abrangência técnica nos possibilita refletir sobre a posição que os
oratórios domésticos possuíam no campo da produção da talha em Minas Gerais. No Dicionário de
Artistas e Artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais, de Judith Martins, temos a presença de
vários artistas polivalentes como, por exemplo: João Lopes Maciel, pintor atuante principalmente
em Mariana, que realizou obras de pintura em caixinhas de esmolas de irmandade, varas de pálio,
encarnação de imagens, douramento de peanhas e nichos, pintura de estantes de coro, prateamento
de crucifixos e afins485, o que denota o gênero variado de itens que os pintores arrematavam ou
tinham por encomenda para além da ‘pintura científica’, ou seja, dos tetos das igrejas, da pintura a
óleo sobre tela e sui generis. Assim também ocorria com os demais oficiais.
Os oratórios domésticos, como obra de talha, também passavam pelas mãos desses artistas.
Obras pertencentes ao predominante universo da madeira, os oficiais que participavam de sua
feitura eram marceneiros, entalhadores, imaginários (ou santeiros) e pintores. Tais objetos foram
numerosos e recorrentes nas moradias familiares dos centros urbanos, tendo em vista que em
Minas o grupo profissional da talha, no XVIII e XIX, se tornou o mais numeroso da Capitania,
tendo em vista a abundância de matéria-prima na região.486 Segundo Boschi,
483 BOSCHI, Caio César. O Barroco Mineiro: Artes e Trabalho. São Paulo: Editora Brasiliense, 1988, p. 15.
484 BOSCHI, Caio César. op. cit. p. 15.
485 MARTINS, Judith. Dicionário de Artistas e Artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas Gerais. Vol. II. N.
O oratório doméstico possui, via de regra, a mesma formatação executiva dos retábulos. Se
aplicarmos o modus operandi da feitura dos retábulos aos oratórios domésticos, podemos estabelecer
(por meio da analogia) o procedimento de sua produção. O retábulo, via de regra, seguia
(idealmente) um risco, traça ou debuxo, ou seja, um desenho previamente elaborado e aprovado
pelo encomendante.487 Já o oratório doméstico, pensamos que o procedimento seguia o mesmo
padrão, sobretudo nos oratórios cujas estruturas possuíam maior complexidade executiva, ao passo
que os oratórios pequenos e mais simples teriam suas ‘formas’ e ‘modelos’ decididos previamente
entre o artífice/artista e o encomendante.
Nas etapas de feitura do oratório, assim como na execução dos retábulos, podemos
conjecturar que vários oficiais estavam vinculados à sua produção: primeiro, havia o marceneiro,
que era o que lavrava a madeira destinada à confecção de móveis e que exigia, segundo Boschi,
uma “delicadeza”, em suma, aquele que tratava a madeira.488 Após o trabalho do marceneiro, o
entalhador era o responsável por dar a forma à matéria-prima. Executava trabalhos figurativos e
ornamentais na madeira, assim como montava a estrutura do oratório, unindo as partes para formar
o todo. Após o processo de entalhamento, o pintor finalizava a obra, executando trabalhos de
policromia na madeira, sobretudo nas partes internas, com pinturas figurativas (representando
figuras de temática sacra) ou ornamentais. O santeiro ou imaginário (aquele que confeccionava a
imaginária sacra) participava do processo de maneira ‘individualizada’ do processo de feitura do
oratório. É de se imaginar que o mesmo executasse a encomenda de uma imagem para oratório de
acordo com as proporções – dimensões – do mesmo, tornando a imagem adequada e harmoniosa
ao conjunto. Tais imagens, diferentes das ‘imagens de vulto’ (utilizadas nos retábulos) possuíam
dimensões mais modestas, quase sempre miniaturizadas, por isso, foram classificadas com a
alcunha ‘imagem de oratório’ por terem sido produzidas essencialmente para essa finalidade.
Jeaneth Xavier afirma que em Minas nessa época, “entre os artigos de primeira necessidade,
constavam os objetos de culto: imagens, oratórios, medalhas, estampas e tudo o que dissesse
respeito à vida católica”.489 Num contexto de expansão demográfica e ocupação do território
aurífero como se deu desde o início do século XVIII, o ‘mercado’ consumidor dos centros urbanos,
487 GÓIS, Antônio José Sapucaia de Faria. Fatores condicionantes na morfologia do retábulo. Tese de doutorado.
Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2005, p. 107-109.
488 BOSCHI, Caio César. op. cit. p. 17.
489 ARAÚJO, Jeaneth Xavier de. Os artífices do sagrado e a arte religiosa nas Minas Setecentistas – Trabalho e
Em 1753, foi contratado pelo bispado de Mariana, D. frei Manuel da Cruz, para a
realização de trabalhos de pintura no referido palácio, incluindo a pintura e douramento
do oratório pequeno, destinado à capela do bispado, cujo entalhe foi combinado com
José Coelho; ajustou ainda pintura do retábulo do altar da capela do palácio, realizado
pelo entalhador Félix Ferreira Jardim, totalizando as duas obras em cento e cinquenta e
nove oitavas de ouro.490
Vemos nesse exemplo o oratório doméstico como obra que possui uma dupla atribuição;
sendo a primeira de talha e a segunda de pintura e douramento. Um trabalho conjunto e unificado
e que tinha como encomendante uma autoridade religiosa. Em todos os casos, nunca é possível
estabelecer uma atribuição a um único artista, mas no mínimo, a dois. Disso, podemos deduzir que
os oratórios eram idealizados e manufaturados sob a marca técnica e formal de vários ofícios, várias
‘artes’, indicando também que poderiam ser objetos próprios da produção de uma oficina.
Um exemplo muito curioso disso pode ser observado na segunda metade do século XIX em
Ouro Preto, com a oficina de talha do marceneiro e escultor Miguel Treguellas. Segundo Clara
Assunção Ferreira,
Entre os vários objetos de madeira, Miguel Treguellas e sua oficina produziam oratórios à
pronta entrega, além disso, realizavam trabalhos de talha e “tudo quanto é concernente à sua
arte”493. O caso do entalhador e sua oficina ouro-pretana demonstra, em primeiro lugar, o grau de
clientela que tal oficina deveria possuir, pois indica uma ‘produção em série’, quase fabril, o que
revela como se encontravam os oficiais mecânicos na segunda metade do século XIX, onde a lógica
do artesanal parecia ceder a uma lógica ‘proto-industrial’. Em segundo lugar, indica uma tendência
que, de certa forma, era também presente no século XVIII, onde a oficina ou aprendizes sob a
‘tenda de outrem’ produziam obras em duas ou mais mãos. A partir disso, o oratório doméstico
em Minas Gerais (o que pode ter sido, na realidade, tendência em toda América Portuguesa) pode
ser considerado uma obra cuja produção se dava essencialmente à duas mãos, fruto de oficinas
locais.
É o caso de um oratório devocional com dupla atribuição que, atualmente, se encontra sob
guarda do Museu do Oratório de Ouro Preto, representado na figura 164. A talha do oratório foi
atribuída ao escultor mineiro Antônio Francisco Lisboa, o Aleijadinho, com pintura de fundo
atribuída ao mestre Manuel da Costa Ataíde (1762-1830).
Figura 164. Desconhecido. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Minas Gerais. Madeira
recortada, entalhada e dourada. Pintura de fundo atribuída a Manuel da Costa Ataíde.
Museu do Oratório, Ouro Preto. Fonte: Museu do Oratório – coleção Angela
Gutierrez, p. 143.
Congonhas do Campo.494 O referido oratório [fig. 164] acima representado possui atribuição
discutível, sendo creditada a talha ao Aleijadinho a partir da análise do historiador Márcio Jardim
(UFMG) e referenciada na obra “Aleijadinho – Catálogo Geral da Obra” (2006)495. A análise
morfológica foi baseada na comparação da palmeta estilizada do coroamento da peça com o
penacho do elmo da estátua em pedra-sabão do Arcanjo São Miguel, localizada no nicho da portada
da Igreja de São Miguel e Almas no bairro Cabeças, de Ouro Preto. Tal aproximação estilística,
para nós, é exagerada, assim como muitas das atribuições realizadas por Márcio Jardim no referido
catálogo que, de certa forma, atribui ao artista obras que foram evidentemente produzidas pela sua
oficina e não pelo próprio escultor, como já defendeu a obra “O Aleijadinho e sua oficina – Catálogo
das esculturas devocionais” (2002) dos pesquisadores Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Olinto
Rodrigues dos Santos Filho e Antônio Fernando Batista dos Santos. Já a pintura de fundo, a
atribuição se deu por meio de análise morfológica realizada pelo Museu do Oratório, constando no
texto “A arte dos oratórios – artistas anônimos e atribuição de obras” da historiadora da arte Cristina Ávila
(UFMG).496
494 CAMPOS, Adalgisa Arantes (org.). Manoel da Costa Ataíde. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2005, p. 16-30.
495 JARDIM, Márcio. Aleijadinho – Catálogo Geral da Obra. Belo Horizonte: Editora RTKF, 2006, p. 63, 232.
496 ÁVILA, Cristina. A arte dos oratórios – Artistas anônimos e atribuição de obras in. GUTIERREZ, Angela (org.).
Museu do Oratório – Coleção Angela Gutierrez. Belo Horizonte: Conceito Editorial, 2013, p. 148-157.
270
variedade das composições, impacto do cromatismo e elevada qualidade das soluções plásticas”.497
A manufatura de tais maquinetas era inteiramente coletiva, cujos artífices, eram, na realidade,
mulheres. Tal fato é inusitado pois, a História da Arte colonial brasileira não conheceu, ainda em
seus estudos, a presença feminina no panorama da produção artística.
Figura 167. Oratório/maquineta conventual. Séc. XX. Bahia. Papelão, papel laminado e vidro plano. Fonte: MO/OP
497 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As maquinetas do recolhimento dos humildes: definição, notícias, iconografia e
tipologia. In GERALDO, Sheila Cabo & COSTA, Luiz Cláudio da (orgs.). Anais do Encontro da Associação
Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas [recurso eletrônico]. Rio de Janeiro, ANPAP, 2011, p. 1.
498 FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As maquinetas dos humildes: o maravilhoso delicado, diminuto e afetivo feminino,
In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26º, 2017, Campinas. Anais do 26º
Encontro da ANPAP. Campinas: Pontifícia Universidade Católica de Campinas, 2017, p. 4038.
499 GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: Editora LTC, 2012, p. 99.
271
Educandário Feminino de Nossa Senhora das Dores, em Diamantina, o que contribui para
evidenciar a mão feminina no panorama da arte sacra mineira tardia.500
Por último, mas não menos importante, gostaríamos de tratar sobre o material utilizado na
manufatura dos oratórios domésticos em Minas Gerais, pois, esse constitui aspecto fundamental
na análise histórica e formal. A partir dos materiais utilizados e das técnicas empregadas, podemos
identificar a origem, datação e local de produção. Sendo assim, identificar não apenas os estilemas
artísticos, mas também os materiais e técnicas são imprescindíveis para a compreensão global dos
oratórios domésticos com função devocional em Minas Gerais. Além da madeira, matéria-prima
indispensável na feitura dos oratórios, figura também o ferro, metal maleável e fartamente
empregado nas obras civis e religiosas no período colonial. Nos oratórios domésticos, foi utilizado
com a função de proteção e estrutura. Nos séculos XVIII e XIX, como proteção, pois eram de
ferro os ferrolhos, dobradiças, chaves, cravos e demais utensílios auxiliares à madeira. No século
XIX, o ferro também serviu como matéria-prima sobretudo em oratórios de fatura popular, como
alguns oratórios de esmoler e especialmente os oratórios de fatura negra, os ditos oratórios ‘afro-
brasileiros’. Segundo Adriano Ramos, “o ferro ou era fundido e moldado, ou batido na fornalha,
com o emprego do fole, da bigorna e do martelo. A união das partes podia ser conseguida através
de encaixes, dobradiças, soldas ou mesmo cravos”.501
500 Há um exemplar de maquineta (manufaturada por mãos femininas) recolhido no acervo do Museu do Diamante,
em Diamantina – MG.
501 RAMOS, Adriano. A criação: materiais e técnicas in GUTIERREZ, Angela. Oratórios – Relíquias do Barroco
O inventário post-mortem do pintor Venâncio José do Espírito Santo (1783-1879) também nos
oferece um vislumbre dos materiais e seus usos. Venâncio era militar, porém exercia o ofício da
pintura. A ele é atribuída a pintura do teto da Matriz de Nossa Senhora do Pilar de São João del-
Rei e, segundo o viajante John Luccock, se tratava de um promissor pintor da região na época,
embora o inglês não tenha gostado da pintura, pois registrou ironicamente que tal obra só mesmo
agradaria ao “bom gosto brasileiro”.506 Entre os vários bens arrolados no inventário post-mortem do
pintor, destacamos os seguintes itens:
Tintas óleo, verniz e mais antigas para officina de pintura. Vinte e duas grammas de
grinalda para sangue de imagens de Nosso Senhor J. Christo, Um kilo de bolo armenio
para dourar, Um kilo de verniz cofral fino, Des papeis de vermelhão da China, Dous
livros e 43 de Ouro do Porto, 3 livras Pratas, Tres kilos e 500 grammas de vermelhão de
sapateiro, Quatro kilos e 500 grammas de verde paris, Quatrocentos grammas de secante
vermelho, Tres kilos de cola da Bahia, Quinhentos grammas de verniz ferroso, Um kilo
e 500 grammas de verniz gordo (?), Óleo de naras (?), Dois kilos de óleo de linhaça,
Cinquenta grammas de azul ultramarino, Tres pares de olhos de vidro, Quarenta e cinco
kilos de gesso crê [...].507
Podemos observar na seleção de itens de pintura e policromia acima transcrita uma variedade
de materiais, indicando que o pintor se dedicava não somente à pintura “científica” (ou seja,
figurativa) mas também à policromia de imaginária. Além das tintas a óleo e outros itens básicos,
503 Robert Smith faz alusão ao uso do bolo armênio no século XVIII em Portugal como “massa de barro vermelho”
in SMITH, Robert. “Os pintores douradores”. In: A talha em Portugal. Lisboa: Livros Horizonte, 1962, pp. 13-15.
504 COELHO, Beatriz (org.). Devoção e arte – imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: EDUSP, 2017,
p. 239.
505 COELHO, Beatriz (org.). op. cit. p. 239.
506 LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. Belo Horizonte: Itatiaia; São
AIPHAN/SJDR
273
o inventário nos brinda com a citação a um curioso conjunto escultórico: “Um presépio antigo com
moldura de madeira dourada (do Egipto) – avaliado por vinte mil réis”.508 Tal “presépio antigo” parece fazer
alusão a uma peça muito singular da São João del-Rei Oitocentista, uma maquineta (oratório) cujo
fundo possui uma pintura com a paisagem da Vila de São João del-Rei atribuída ao pintor, pintura
essa que serve de cenário para o “presépio”, na realidade uma Fuga para o Egito (por isso, talvez a
citação ao “Egipto” entre parênteses). Tal peça nos indica o uso da pintura paisagística em oratórios
domésticos em Minas Gerais, mantendo a tradição formal que observamos nos oratórios de fatura
portuguesa.509
Outro ponto muito interessante de ser notado no inventário do pintor são os itens
devocionais. Entre rosários, pinturas e imagens de santos, aparecem “quatorze quadros pequenos com
estampas à mil e quinhentos cada um, vinte e um mil réis”, que podem aludir à presença de gravuras ou
registos de santo que serviam de modelo e repertório para os seus trabalhos de pintura, além de “um
caixão com moldes e outro com riscos, avaliados por seis mil réis”, podendo aludir a uma coleção ou depósito
de riscos e esboços de pintura ou, sendo mais provável, de edificações e talha, tendo em vista que
os pintores também traçavam desenhos para edificação de igrejas ou retábulos. No tocante à citação
de uma “officina” no inventário, é de se supor que Venâncio produzia em larga escala, tendo em
vista a citação a quadros, imagens e até ex-votos feitos pelo pintor. Tal suposição se mantém, tendo
em vista que o filho do pintor, Manoel Venâncio do Espírito Santo, herdara do pai quase todos os
materiais que diziam respeito ao ofício de pintor, assim como de dourador-policromador, como
consta no inventário já supracitado.
Num artigo datado de 1904, escrito por Artur Azevedo (1855-1908) para a Revista
Kosmos510, o crítico e dramaturgo da Academia Brasileira de Letras, em viagem à São João del-Rei,
pôde contar um pouco da trajetória artística de Venâncio José do Espírito Santo. Ao relacionar o
pintor à São João del-Rei, destaca:
Venâncio, que nasceu em 1783, era filho, não de São João d´Elrey, mas de uma localidade
próxima: Foi para ali criança, ali cresceu, ali se fez homem e adquiriu grande fama, não
como pintor de quadros, mas como encarnador de imagens, profissão em que se mostrou
exímio, e que lhe dava fartamente para viver numa terra de tantos oratórios, e tão
guarnecidos, que pode-se dizer, as casas particulares são ali outros tantos prolongamentos
das egrejas.511
508 Cx. 81 (pasta verde) – Inventário post-mortem de Venâncio José do Espírito Santo. São João del-Rei, 1879 |
AIPHAN/SJDR
509 Iremos analisar pormenorizadamente tal peça mais adiante.
510 Kosmos – Revista Artística, Scientífica e Literaria do Rio de Janeiro.
511 Revista Kosmos, Anno I, N. 2 – Fevereiro de 1904, s/p. | ABN/RJ
274
Curiosa constatação, pois, em 1904, muito antes da criação de museus de arte religiosa na
cidade, o autor pôde notar nas casas particulares a presença de “tantos oratórios”, sendo
considerados “prolongamentos” das igrejas. Num contexto urbano, é de se frisar que tais oratórios
possuíam função estritamente devocional, portanto, deveriam ser “guarnecidos” com objetos de
denotado cunho artístico, objetos aliás que, de acordo com o autor, o próprio Venâncio produziu
para os “tantos oratórios” nas casas particulares da São João del-Rei do século XIX. A passagem
também atesta a significativa presença dos oratórios de cunho doméstico na cidade, indicando a
permanência devocional que se mantém como elemento da cultura popular ainda no início do
século XX.
Por fim, tendo em vista o breve panorama geral da manufatura dos oratórios domésticos na
América Portuguesa, com especial destaque para a Capitania de Minas Gerais nos séculos XVIII e
XIX que buscamos apresentar, considerando o aspecto da produção e dos materiais utilizados, o
nosso estudo retoma nesse momento a análise do vocabulário morfológico. Em Minas Gerais, o
512 Destaco aqui a primorosa tese de doutoramento da historiadora da arte Kellen Cristina Silva, intitulada “O caminho
das flores: Estudo iconológico sobre a “Escola de Artes do Rio das Mortes” e o modelo intencional de encomenda – Minas Gerais (c. 1785
– c. 1841)” defendida em 2018 na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais
(UFMG). Destaco também o importantíssimo ensaio do pesquisador Olinto Rodrigues dos Santos Filho (IPHAN-
Tiradentes) “Características específicas e escultores identificados”, assim como “A escola mineira de imaginária e suas particularidades”
da historiadora da arte Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira (UFRJ), ambos presentes na obra “Devoção e arte, imaginária
religiosa em Minas Gerais” (2005) organizada pela restauradora-conservadora Beatriz Coelho (UFMG).
275
oratório doméstico de fatura erudita não se afasta das formas europeias, contudo, as
reinventa/transforma em algo ligeiramente novo, original, constituindo uma nova expressão. A
partir da análise da morfologia arquitetônica e ornamental, assim como da dimensão pictórica e
escultórica, veremos como o oratório ‘obra de arte total’ se manifestou na antiga Capitania.
Os oratórios domésticos com função devocional em Minas Gerais foram, num primeiro
momento, importados. Primeiro, pelos aventureiros de outros lugares do vasto território da colônia
que acorriam às Minas para a exploração do ouro recém-descoberto. Segundo, pelos potentados e
ricos senhores que se estabeleceram nos primeiros polos urbanos e que trouxeram, de Portugal,
seus oratórios. O primeiro instituiu, de certa forma, o oratório doméstico como elemento da cultura
popular mineira, já o segundo, providenciou indiretamente ‘modelos’ formais e de referência
artística para os artistas e artífices do mobiliário que em Minas começaram a se estabelecer e
produzir.513 A seguir, demonstraremos materialmente como isso se deu.
513 Não excluímos também como possibilidade a vinda de artistas e artífices portugueses, vindo principalmente da
região norte de Portugal, que também devem ter colaborado para a feitura dos oratórios domésticos. Infelizmente, o
rastreamento das ‘origens’ se trata de um campo nebuloso, por vezes, pantanoso.
514 ÁVILA, Affonso. Pequena iniciação ao Barroco Mineiro. In: ÁVILA, Affonso; GONTIJO, João Marcos Machado;
MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco Mineiro, Glossário de Arquitetura e Ornamentação. São Paulo:
Fundação João Pinheiro, Fundação Roberto Marinho, Companhia Editora Nacional, 1980, p. 7.
515 ARAÚJO, Jeaneth Xavier de. Os artífices do sagrado e arte religiosa nas Minas Setecentistas: trabalho e vida
durante as jornadas e por isso, desprovido de qualquer preciosismo artístico. Em suma, se tratava
de um objeto com função específica: prover espiritualmente o/os seu/seus usuário/os através da
representação cristã.
No exemplo acima ilustrado na figura 170, podemos observar a citação ao tríptico, com o
nicho central sendo ladeado por duas ‘portas’ que se assemelham a nichos de retábulos muito
simplificados e rústicos com suas respectivas peanha e guarda-pó. O emprego de peças de
imaginária nesse exemplar se dá através de um processo simples: a escultura é previamente
entalhada e policromada e posteriormente afixada com cola de origem animal em seus respectivos
lugares. A afixação das imagens se dá justamente pela questão do manuseio, onde a movimentação
brusca poderia danificar as peças no interior pois, tais oratórios eram, normalmente, transportados
“no lombo do cavalo ou da besta”.518 No exemplar acima ilustrado, embora o oratório seja
estruturalmente muito simples, a imaginária possui elaborada policromia e movimento, movimento
causado pelo complexo panejamento ricamente entalhado. Curioso notar no vasto acervo dos
oratórios-bala que tais objetos, quando executados pela mão de um santeiro popular, poderiam
conter os nichos e a imaginária numa única peça entalhada, ou seja, a imagem devocional fazia
parte do nicho a partir de uma só peça de madeira. Em suma, o santeiro providenciava três blocos
de madeira e delas entalhava os nichos e as imagens devocionais, sendo estas representadas com
maior ou menor volumetria, algumas até configuradas como um médio ou alto relevo, como
podemos observar no oratório de tropeiro representado na figura 171.
518RUGENDAS, Johan Moritz. Viagem pitoresca através do Brasil (1825-1830). São Paulo: Edusp/Biblioteca
Histórica Brasileira/Martins Editora, 1972, p. 177.
278
Figura 171. Oratório-bala. Séc. XVIII-XIX. Minas Gerais. Museu do Oratório, Ouro Preto. Foto do autor (2019)
Porém, embora a formatação dos oratórios-bala seja essencialmente simples, tendo em vista
que a sua feitura se enquadra na fatura popular,519 observamos que a tipologia obteve um maior
revivalismo das formas em termos formais quando sua produção teve início em Minas: o partido
arquitetônico e a ornamentação erudita começam a ser utilizados em sua feitura. Os motivos a essa
transformação formal podem ser vários, porém, temos algumas hipóteses. Em primeiro lugar, no
decorrer do século XVIII em Minas, com polos urbanos já consolidados até a segunda década da
centúria,520 a tipologia dos oratórios-bala, antes ligados essencialmente ao contexto da devoção
itinerante, se torna progressivamente uma tipologia ‘sedentarizada’, passando a ser usado como
oratório no âmbito da casa. Por esse motivo, tais oratórios puderam receber uma atenção artística
maior e com técnicas mais desenvolvidas segundo o estilo artístico em voga. Em segundo lugar,
em consequência da ‘sedentarização tipológica’, o oratório-bala extrapolou a sua função de
representar o sagrado e torna-lo presente no contexto itinerante, passando também a representar a
ecclesiae domesticae em sua forma, ou seja, replicando miniaturizadamente a estrutura retabular
utilizada no templo católico, tendência já observada nos oratórios domésticos na Metrópole.
519 No contexto dos oratórios itinerantes, há também os oratórios de algibeira, ou seja, pequenos nichos com a imagem
devocional que podiam caber no bolso do fiel ou na bolsa de viagem. Porém, não possuem expressividade arquitetônica
e por isso não estão citados nesse capítulo. O citamos com maior delonga no primeiro capítulo desse estudo.
520 As vilas na Capitania de Minas foram sendo criadas e elevadas em ciclos. O primeiro ciclo ocorreu entre 1711 e
1718, o segundo ciclo entre 1789 e 1798. OLIVEIRA, Pablo Menezes e. A formação de vilas no final do século
XVIII na Capitania de Minas Gerais. Monografia de Bacharelado. Universidade Federal de Ouro Preto – Mariana,
2003.
279
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Introdução ao Barroco mineiro: cultura barroca e manifestações do rococó em
521
sobretudo.522 Nesse pequeno oratório-bala de 21cm, temos uma base torneada e logo acima uma
curiosa composição. No nicho central, temos uma superfície dourada com a representação
pictórica da mesa do altar, ladeado por motivos florais, acima do altar um pequeno sacrário com
uma cruz e uma estante com um livro (possivelmente aludindo ao Missal Romano), ladeado por
dois castiçais com velas. Acima do sacrário, um nicho com uma pequena escultura de Santo
Antônio de Lisboa (ou de Pádua) que, juntamente com uma pequena efígie oval com a invocação
de Nossa Senhora das Dores acima do nicho, formam uma estrutura retabular. Nas portas, onde
normalmente se localizam os nichos com as ‘devoções auxiliares’, há uma curiosa massa escultórica
que se assemelha à formatação do espaço dos presépios napolitanos, composição essa muito
utilizada nas maquinetas portuguesas, como podemos observar nas figuras 177 e 178.
Figura 173. Oratório-bala em miniatura. Séc. XVIII. Figura 176. Detalhe. Oratório-bala em miniatura. Séc. XVIII.
(segunda metade). Minas Gerais. 21x8,3cm. Museu do (segunda metade). Minas Gerais. 21x8,3cm. Museu do
Oratório, Ouro Preto. Foto do autor (2019) Oratório, Ouro Preto. Foto do autor (2019)
522Além dos oratórios, os móveis em miniatura também possuem destacada produção em Minas, sobretudo na
produção de imaginária que possuía o móvel como elemento iconográfico, vide Sant´Ana mestra e seu trono: uma
cadeira de espaldar alto. Ver: BRANDÃO, Angela. Móveis em miniatura: a demonstração de um saber fazer. Anais
do Museu Paulista. São Paulo: N. Sér. v. 25, n. 1. Jan/Abril 2017, pp. 169-197.
281
Uma leitura iconográfica dessa curiosa peça nos permite compreender o sentido simbólico
ali representado. A massa escultórica (com um gosto flagrantemente napolitano) nos nichos laterais
remetem a um terreno rochoso, vagamente recordando pequenas grutas. Na porta esquerda, possui
aves brancas (pássaros), um livro aberto e um crânio (condizendo iconograficamente com a
composição tradicional da vanitas) e logo abaixo um homem com vestes urbanas (gibão, camisa,
culotte e chapéu) sentado em frente a um lago com um delicado pato, formando uma cena bucólica.
Na porta direita, em meio à confusa massa rochosa, há um camponês dormindo
despreocupadamente, tendo um dos braços a lhe apoiar a cabeça que pende para um lado, ladeado
por animais. Mais abaixo, um personagem que parece ser um penitente, colocando-se de joelhos
diante de um livro e uma cruz, com gestualidade e composição expressional que invoca a figura do
penitente, iconografia popular à São Francisco de Assis e principalmente à Santa Maria Madalena,
penitente. Logo abaixo, uma pequena casinha com um telhado a mostra, também com presença de
animais.523
Uma interpretação possível da cena que o artista desenvolveu na profusa massa escultórica é
a de que o mesmo buscou representar um cenário cotidiano, com personagens secundários que
visam participar do tema central. No caso desse oratório-bala miniaturizado, o ambiente ‘rural’ se
dirige ao nicho central, o altar, onde se celebra o sacrifício eucarístico. Embora uma decodificação
523A descrição acima realizada foi possível graças à observação direta do referido oratório, exposto no Museu do
Oratório em Ouro Preto – MG. Destacamos aqui a dificuldade em analisar e perceber tantos elementos na limitada
representabilidade das fotos, sendo necessário contemplá-lo in loco.
282
exata da significação dessa peça seja quase impraticável, tendo em vista a disparidade da obra em
termos iconográficos, o artista que o executou possivelmente conhecia modelos europeus, tendo
em vista que em Minas Gerais no século XVIII o modelo napolitano para a feitura de presépios
em maquinetas e oratórios miniaturais já era empregado, como podemos observar como exemplo
o presépio de técnica napolitana em maquineta, musealizado no Museu da Inconfidência de Ouro
Preto [figuras 179-180].
Sobre a concepção cenográfica dos presépios propriamente ditos, segundo Eliana Ambrósio:
A vastidão de personagens nos complexos levou o cenário a ser montado em uma ampla
cenografia, ambientada em uma paisagem repleta de montanhas, cascatas, ruínas,
elementos citadinos. Ao invés do esquema do início do século (XVIII), que contava
basicamente com os grupos da Natividade com a Adoração dos Pastores e Magos; da
Taberna; do Anúncio aos Pastores com o seu consequente deslocar em direção à
Natividade, as montagens passaram a articular concomitantemente esses diversos
episódios, sacros e profanos, em um único espaço. 524
O presépio se tornava uma grande massa escultórica, com “efeitos pictóricos, ilusionistas e
luminosos, com uma riqueza de pormenores, com figuras deslocadas em escala, conferindo grande
realismo”.525 De imediato, mesmo sendo um trabalho cuidadosamente elaborado, os presépios em
maquinetas tanto em Portugal como na América Portuguesa (em especial Minas Gerais) obedeciam
uma escala de proporções médias, variando a caixa da maquineta (que servia de suporte para o
524 AMBROSIO, Eliana. Recursos pictóricos e cenográficos para o ilusionismo espacial nos presépios napolitanos. In
MELLO, Magno Moraes (org.). A arquitetura do engano – perspectiva e percepção visual no tempo do barroco
entre a Europa e o Brasil. 1.ed. Belo Horizonte: Fino Traço, 2013, p. 95-96.
525 AMBROSIO, Eliana. op. cit. p. 96.
283
Porém, o virtuosismo técnico dos artistas da talha não se limita apenas nesse expressivo
exemplo que trouxemos. O oratório doméstico mais primoroso, em termos artísticos e técnicos,
que Minas Gerais pôde produzir foi executado pelas mãos de um artista português: Vieira Servas.
Francisco Vieira Servas (1720-1811) nasceu na freguesia de Sam Paio de Eira Vedra, Concelho de
Vieira no Arcebispado de Braga, Portugal.527 Foi o responsável por retábulos, esculturas e demais
obras de talha em Catas Altas do Mato Dentro, Mariana, Sabará, Nova Era, Caeté, Congonhas do
Campo e outras localidades de Minas. No Museu do Oratório, em Ouro Preto, há em seu acervo
um oratório-bala de denotada expressividade artística e singela forma atribuído ao escultor lusitano
[figura 181].
526 Como é o caso do presépio em maquineta musealizado no Museu da Inconfidência de Ouro Preto, MG: dimensões
– 71x58cm. Além desse exemplo, há um do mesmo gênero no acervo da Igreja de Nossa Senhora do Amparo, em
Diamantina, executado em 1797 e contendo 65,5x69cm, segundo registro fotográfico em: COELHO, Beatriz (org.).
Devoção e arte – Imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: EDUSP, 2017, p. 39-40.
527 OLIVEIRA, Eduardo Pires de. Minho e Minas Gerais no séc. XVIII. Braga: Artes Gráficas Ltda, 2016, p. 121-
157.
284
Sustentado por uma base circular de fino entalhamento, esse oratório-bala possui uma
primorosa representação de um retábulo em miniatura. O primeiro elemento de destaque é a mesa
do altar, arrematada em linhas sinuosas e curvas, com policromia em tons vermelhos e pastéis
imitando mármore (faiscado) e douramento, trata-se de uma miniatura tão peculiarmente
concebida que se assemelha a uma peça lúdica infantil. Adossado ao altar, a pequena e delicada
estrutura retabular de gosto Rococó ergue-se esguio e fidedignamente concebido como um
retábulo da época. Entre os vermelhos e azuis representados como falso mármore, duas colunas
de fuste estriado se sustentam sob volutas torneadas, cujos capitéis de ordem compósita sustentam
cimalhas sobrepostas que ora avançam, ora recuam no espaço arquitetônico. Ao centro, um nicho-
camarim com a imagem de Nossa Senhora Mãe dos Homens, com fundo pintado em motivos
florais. Acima do nicho, coroando-o, uma arbaleta sinuosa e arrematada em volutas forma o
baldaquino. Curiosa é a representação do sacrário, na realidade, um nicho formado por volutas e
coroado com uma palmeta, servindo de base para uma custódia prateada. As portas esquerda e
direita servem como nichos, com penha e guarda-pó para sustentação de imaginária, tendo vasos
com flores douradas. De fundo, assim como no nicho-camarim, a pintura decorativa com motivos
florais ornamenta as duas portas, equilibrando visualmente o conjunto.
Todos os elementos por nós descritos tornam esse oratório-bala uma obra completa,
harmônica e riquíssima em termos formais, fazendo com que seja uma peça muito significativa e,
talvez, a mais emblemática da tipologia. Vemos em sua composição um arguto senso de proporção,
espaço, domínio técnico das formas e perícia na miniaturização, além disso, indica-nos um elevado
senso de observação e adequação dos materiais e técnicas a modelos diminutos. Trata-se de uma
obra intrinsecamente arquitetônica, que, se não fosse um objeto devocional, seria com toda certeza
um modelo tridimensional de um retábulo com função de maquete.
Entre esses e outros elementos que estão associados ao ‘estilo pessoal’ de Vieira Servas, a
presença da arbaleta estilizada em volutas certamente é a marca distintiva de sua extensa produção
de obras de talha em Minas Gerais, como podemos observar nos detalhes ilustrados nas figuras
182, 183 e 184 na comparação entre o oratório e o retábulo do oratório da Prefeitura Municipal de
Sabará (antiga Casa da Câmara) e o retábulo do Santuário do Bom Jesus de Matozinhos em
Congonhas do Campo.
O oratório-bala analisado também adquire para nós – através de sua morfologia – o status de
ecclesiae domesticae, representando através de sua delicada forma diminuta o altar e retábulo de uma
igreja real. Embora de caráter essencialmente devocional, sem nenhuma função litúrgica, tal
oratório possui uma aura, no sentido expressado por Walter Benjamin quando afirma que os
objetos artísticos possuem uma essência única e autêntica pois foram concebidas artesanalmente,
ou seja, fora da era de sua “reprodutibilidade técnica”.528 A autenticidade da obra, para Benjamin,
advém da tradição, tradição essa que a origina e a singulariza.529 No caso do oratório doméstico
como objeto essencialmente religioso, o seu valor singular se encontra justamente na sua “função
ritual”530, que é a de guarnecer visualmente a oração do devoto que se posta diante do artefato para
exercer sua devoção particular. É interessante a colocação de Walter Benjamin quando afirma que
a contemplação da obra pelo espectador deve ocorrer num tempo lento, um tempo de
“contemplação”, pois só assim se poderia captar o que a obra manifesta. Partindo desse aspecto,
Georges Didi-Huberman caracteriza que o ato de contemplar uma obra de arte é também um
“exercício de crença”.531 Em uma interessante passagem de O que vemos, o que nos olha (1998) o autor
– quando analisa a arte funerária cristã, assim diz:
[...] o homem da crença verá sempre alguma outra coisa além do que vê, quando encontra
face a face com uma tumba. Uma grande construção fantasmagórica e consoladora faz
abrir seu olhar, como se abriria a cauda de um pavão, para liberar o leque de um mundo
estético (sublime ou temível) e também temporal (de esperança ou de temor). O que é
visto, aqui, sempre se prevê; e o que se prevê sempre está associado a um fim dos tempos;
um dia - um dia em que a noção de dia, como a de noite, terá caducado -, seremos salvos
do encerramento desesperador que o volume dos túmulos sugere. Um dia chegará para
que chegue tudo o que esperamos se acreditamos nesse dia, e tudo o que tememos se
não acreditamos nele. [...] O homem da crença prefere esvaziar os túmulos de suas carnes
putrescentes, desesperadamente informes, para enchê-los de imagens corporais sublimes,
depuradas, feitas para confortar e informar – ou seja, fixar – nossas memórias, nossos
temores e nossos desejos.532
528 BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Coleção L&PM Pocket. São Paulo:
L&PM, 2014.
529 Nesse caso, a tradição é europeia, como vimos no capítulo anterior. Tal tradição e seu longo e quase ininterrupto
533“Quero que duas ou três vezes por dia visiteis o santo Sacramento ou, se não podeis ir à Igreja, que vos recolheis a
vosso oratório a fim de fazer uma pequena prece e um pequeno exame”. Pe. Le Maistre em Pratiques de pieté. |LEBRUN,
François. As reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal. In: CHARTIER, Roger (org.). História da vida
privada – da Renascença ao século das Luzes. São Paulo: Companhia das Letras, 1986, p. 102.
288
Figura 187. Fragmento retabular interno de oratório doméstico. Séc. XVIII. Portugal. Madeira entalhada e dourada. Coleção
particular. Fonte: BDCML/Portugal
folhagens da ordem dórica. As duas colunas sustentam o coroamento em verga alteada, decorada
com um festão formado por lírios (?) sobrepostos, sendo duplicados a partir de uma variação de
rosácea sob uma pequena aduela central onde logo abaixo se forma um pequeno baldaquino
cortinado e treliçado ao gosto joanino.
Tal estrutura retabular tímida se torna recorrente nos oratórios domésticos mineiros, ainda
apegada à forma mobiliar do armariolum sacrum. Porém, a estrutura retabular interna seria
aprofundada e detalhadamente composta como um retábulo-mor. No oratório de fatura mineira
da coleção de Ary Casagrande Filho, representado na figura 191, podemos observar o nível de
mestria técnica ao representar pormenorizadamente a estrutura retabular. Externamente,
apresenta-se muito simples, com portas lisas de almofada em folha única retangular, sendo coroado
com uma cimalha escalonada que abriga um pequeno frontão semi-oval, decorado por um pequeno
290
O grande destaque desse oratório é o camarim, ao centro, com a imagem de Nossa Senhora
da Conceição, tendo abaixo um nicho que, num retábulo, teria a função de sacrário, com a imagem
de Santo Antônio. Acima do camarim, um dossel baldaquino com duplo cortinado, com empena
que se projeta para frente. A estrutura retabular é pronunciada pelas falsas colunas, pilastras
adossadas que possuem em sua única canelura central uma ‘coluna’ torsa. O Barroco joanino na
talha retabular interna dos oratórios domésticos teve, em Minas Gerais, até onde essa pesquisa
pôde alcançar, maior expressividade na Vila de São João del-Rei com o oratório-ermida (ou
oratório-armário) pertencente ao acervo do Museu Regional de São João del-Rei.535 Externamente
[figura 192] assemelha-se a um armário, com portas compostas por quatro almofadas retangulares
de execução simples, abaixo uma gaveta para guarda de objetos devocionais. A vitalidade do
joanino se faz representar no coroamento onde, sob uma cimalha escalonada, o frontão se projeta
como massa escultórica. Ao centro, uma cartela com a representação dos três cravos da Paixão de
Cristo ladeada por volutas e acima, como remate, uma tripla palmeta joanina. Sustentando a cartela,
um emaranhado de curvas e contracurvas auriculares e em ‘S’ indicam o uso de folhagens e
concheados, ornamentação típica do joanino.
534 A descrição externa foi possível mediante observação do referido oratório no catálogo da seguinte obra: RUSSO,
Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte. A construção histórica do acervo de oratórios
brasileiro – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Editora Alameda, 2014, p. 387.
535 Esse mesmo oratório foi brevemente descrito no primeiro capítulo da presente pesquisa, quando o analisamos sob
o ponto de vista do mobiliário com função religiosa e da presença da iconografia da Arma Christi. Nesse momento,
analisamos a sua morfologia.
291
Vimos até aqui que a riqueza dos oratórios domésticos da tipologia estudada se encontra
justamente no interior, ou seja, na parte de dentro do oratório. O foco demasiado na parte interna
do oratório possui, para nós, uma justificativa teológica. A imitação dos retábulos das igrejas a
partir da técnica de miniaturização, além do excessivo decorativismo e ênfase da talha no nicho
interior, demonstra que o primordial se encontrava dentro. O binômio ‘exterior-interior’ era uma
constante no pensamento, na mística e na vivência da religiosidade católica no século XVIII,
questão teológica e filosófica que acompanha a igreja desde a Devotio Moderna medieval. Embora o
debate acerca da interioridade possua antecedentes na Antiguidade Clássica (questão que não
abordaremos aqui), Santo Agostinho em suas Confissões já dizia que Deus “estavas dentro” e ele, o
homem, “fora”.536
Será no início da devotio que o monge Tomás de Kempis, sob as palavras do evangelista Lucas
que dizia que “O Reino de Deus está dentro de vós”, afirma:
Nessa passagem do primeiro capítulo do Livro II (Exortações à vida interior) que trata Da
vida interior, Kempis se vale das Escrituras para alertar o fiel que deseja ter uma vida interior a
desprezar tudo aquilo que é próprio do exterior, ou seja, abandonar o mundo e suas vicissitudes
para ter uma vida plenamente espiritual. Trata-se não apenas de uma recomendação, mas também
de uma metáfora, metáfora essa que acompanhará a religiosidade leiga nos séculos seguintes. 538
Durante a vigência do Barroco Europeu, o misticismo espanhol foi o que mais contribuiu para o
debate entre o dilema ‘exterior-interior’. São João da Cruz (1542-1591) místico e reformador da
536 SANTO AGOSTINHO. Confissões. Coleção Penguim. Tradução e prefácio de Lorenzo Mammi. São Paulo:
Companhia das Letras, 2017, p. 219
537 KEMPIS, Tomás de. Imitação de Cristo. Petrópolis: Vozes, 2012, p. 71.
538 É curiosa a metáfora do ‘fechar as portas’, pois se aplica ao nosso objeto.
294
Ordem Carmelita (em conjunto com a sua contemporânea Santa Teresa de Ávila), afirmava em sua
Subida do Monte Carmelo que a “alma” era o principal lugar da interioridade, pois era “mais decente
e mais próprio de Deus que nenhum lugar corporal”.539
No primoroso estudo de Jacir Junior sobre a Subida do Monte Carmelo de São João da Cruz,540
o autor aponta que o místico espanhol possuía um parecer a respeito das devoções praticadas em
oratórios, dizendo sem reservas que haveria grande diferença entre “alguém que se empenha na
oração a Deus e no recolhimento interior, encontrando nisso sua paz, e aqueles que se distraem
com gostos e apetites quanto à ornamentação do oratório, foco das inquietações”.541 Para o santo
espanhol:
A causa, pois, de porque alguns espirituais nunca acabam de entrar nos gozos verdadeiros
do espírito, é porque eles nunca acabam de alçar o apetite do gozo destas coisas exteriores
e visíveis. Advirtam estes tais que, ainda que o lugar decente e dedicado para a oração é
o tempo e oratório visível, e a imagem para motivo, que não há de ser de maneira que
empregue o jugo e sabor da alma no templo visível e motivo, e se esqueça de orar no
templo vivo, que é o recolhimento interior da alma.542
Nesse trecho, o místico reformador demonstra ser filho do seu tempo e ao mesmo tempo
herdeiro de uma tradição mística, nesse caso, da medieval devotio moderna, quase anacrônica no
tempo de transição do Maneirismo para o Barroco, justamente a época de São João da Cruz. Com
a pompa exterior das festas religiosas do seiscento, assim como a religiosidade doméstica nos
oratórios privados que começa a se tornar um fato nesse século, João da Cruz afirma que, mesmo
o oratório sendo o lugar ‘decente’ para a prática espiritual, o importante consistia nas práticas
interiores, ou seja, puramente espirituais. O reformador não nega ou mesmo condena a imagem
devocional, tema já consagrado com o Concílio de Trento ocorrido a partir do ano de 1545 (quando
o santo em questão ainda se tratava de uma criança)543 mas reitera que a devoção não necessita
necessariamente dos ‘estímulos exteriores’.
Por fim, o que desejamos considerar a partir do contexto acima tratado? Consideramos o
oratório doméstico (de tipologia ‘armário’ e ‘ermida’) a representação material do binômio
‘exterior-interior’. Ou seja, a parte exterior dos oratórios barrocos significam justamente o
despojamento do indivíduo, desprovido de ornatos, de decorações ao gosto do ‘apetite humano’,
539 JOÃO DA CRUZ (São). Subida ao Monte Carmelo. (III, 42,4). In: JOÃO DA CRUZ (São). Obras completas.
Tradução das Carmelitas Descalças do Convento de Santa Teresa (RJ). Petrópolis: Vozes, 1984, p. 133-435.
540 JUNIOR, Jacir Sílvio Sanson. Interioridade e exterioridade: um estudo da obra A subida do Monte Carmelo
ao passo que o interior é constituído pela riqueza artística, de preciosa forma e ornamentação
luxuriante. Mas, nas palavras do místico espanhol, não era justamente tais ornatos do material que
prejudicava o espiritual? No seu contexto (século XVI) sim, porém, a partir do século XVII a
questão muda de figura.
Tendo em vista a problemática exposta, o oratório doméstico pode ser considerado uma
obra de síntese do ‘modo de ver’ barroco. A ‘sensibilidade ótica’ do devoto mineiro, sobretudo das
classes mais abastadas (lembremos que os objetos aqui estudados foram obras de arte pertencentes
à elite) se encontra dividido entre o que é primordial (o interior) e o que é supérfluo (o exterior)
em termos de religiosidade. O homem barroco foi, primordialmente, um sujeito contraditório, e o
oratório doméstico nesse contexto – sendo uma obra de arte que é também artefato religioso desse
homem – é igualmente contraditório, tendo em sua morfologia composicional o ‘desapego’
exterior, representado pela sua aparência ordinária e comum de armário, e também o luxo interior,
representado pela sua estrutura retabular riquissimamente entalhada e ornada.
544 ZUCCARI, Federico Apud ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1971, p. 198.
545 ÁVILA, Affonso. O lúdico e as projeções do mundo barroco. São Paulo: Editora Perspectiva, 1971, p. 199.
296
o fechamento das portas e logo acima uma cimalha de frisos escalonados, em suma, um trabalho
de marcenaria muito simples e sem nenhum atrativo estético que se note.546
546Infelizmente não pudemos registrar fotograficamente a parte externa do oratório citado. A descrição que realizamos
acima foi possível graças à observação direta do referido oratório na exposição ‘Barroco Ardente e Sincrético’, de
curadoria de Emanoel Araújo em São Paulo, no Museu Afro-Brasil (2018).
297
grisaille) e com farto douramento, além de ampla citação à rocalha como elemento não apenas
decorativo, mas também representativo, como podemos observar na pintura das almofadas das
duas portas onde a rocalha possui a função de emoldurar os símbolos da Paixão de Cristo, a Arma
Christi. Em suma, um oratório muito representativo da dualidade ‘exterior-interior’, onde a parte
externa possui formatação simples e ordinária ao passo que a parte interna é ricamente concebida,
estruturada e executada com preciosismo.547
A partir disso, vemos que não é descabido pensar na forma simbólica das tipologias oratório-
armário de pousar e oratório-ermida nesse binômio contraditório pois, além do Barroco sê-lo,
Panofsky nos indica que, ao ‘lermos’ uma obra de arte, estamos lendo “o que vemos”, “de
conformidade com o modo pelo qual os objetos e fatos são expressos por formas que variam
segundo as condições históricas”548. O nosso ‘barroco mineiro’ Setecentista, imbuído da carga
teológica e simbólica de Trento e das nuances da religiosidade católica, teve no oratório doméstico
a sua síntese. Por ser um artefato pessoal ou familiar, pode ser considerado uma representação
dessa tensão entre ‘exterior-interior’, ‘público e privado’, não apenas nos testemunhos (muito
poucos por sinal) em fontes coevas, mas sobretudo através da sua forma. Nesse sentido, a análise
tipológica, estilística e morfológica da cultura material se torna primordial para a compreensão do
locus histórico, ou seja, “da maneira pela qual, sob diferentes condições históricas, as tendências
gerais e essenciais da mente humana foram expressas por temas específicos e conceitos” na obra
de arte.549
Retomando a Análise Formal, uma outra tipologia também nos oferece um importante
aspecto da História da Arte Brasileira a ser pensado: a circulação de modelos. Nesse aspecto, a
tipologia dos ‘oratórios-nicho’ são riquíssimos exemplos. Até o momento, pudemos observar que
o interior do oratório doméstico possui destacada importância, tendo em vista que o emprego de
técnicas e erudição artística era constante no nicho central em detrimento da parte externa,
547 A descrição realizada foi possível graças à observação direta do referido oratório com suas imagens através do
catálogo da obra: RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte. A construção histórica do
acervo de oratórios brasileiro – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Editora Alameda, 2014, p. 386.
548 PANOFSKY, Erwin. Significado nas Artes Visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 58.
549 PANOFSKY, Erwin. op. cit. p. 63.
Cabe ressaltar um ponto importante destacado por Panofsky: “O historiador da arte terá de aferir o que julga ser o
significado intrínseco da obra ou grupo de obras, a que devota sua atenção, com base no que pensa ser o significado
intrínseco de tantos outros documentos da civilização historicamente relacionados a esta obra ou grupo de obras
quantos conseguir: de documentos que testemunhem as tendências políticas, poéticas, religiosas, filosóficas e situações
sociais da personalidade, período ou país sob investigação. Nem é preciso dizer que, de modo inverso, o historiador
da vida política, poesia, religião, filosofia e situações sociais deveria fazer uso análogo das obras de arte. É na pesquisa
de significados intrínsecos ou conteúdo que as diversas disciplinas humanísticas se encontram num plano comum, em
vez de servirem apenas de criadas umas das outras. PANOFSKY, Erwin. op. cit. p. 63.
298
O partido arquitetônico possui nos oratórios domésticos maior destaque com as simulações
retabulares no interior dos mesmos, porém, nos oratórios-nicho ele se torna o elemento estrutural
da peça. Embora sejam poucos os exemplos, os já existentes fornecem questões importantes de
serem discutidas. O principal elemento arquitetônico que merece destaque é o coroamento do
oratório. Geralmente, o coroamento serve como elemento de fachada e de cobertura, formando
cúpulas ou até mesmo imitações de ‘telhados’. O mais característico em Minas foi o modelo de
frontão triangular (como fachada) e o de cúpula campaniforme (como cobertura).
Curioso notar ao lado uma pequena janela [figura 199], que não possui nenhuma função
estrutural no corpo do oratório, somente mimética, idealizando miniaturizadamente a estrutura
externa de uma igreja. Nos oratórios de fatura popular, entre eles os ditos ‘afro-brasileiros’,550 a
forma externa possui relevância na estrutura do oratório, levando a miniaturização das formas a
um nível de elevada qualidade, embora a técnica não fosse erudita, como veremos adiante.
550 No último tópico do quinto capítulo, trataremos especificamente dos oratórios ditos ‘afro-brasileiros’, pois a
tipologia merece um destaque devido à sua forma, conteúdo e simbolismo.
551 Apontamos os estudos de: Alex Bohrer, Myriam Andrade Ribeiro de Oliveira, Eduardo Pires de Oliveira, Kellen
- Quatro pilastras (colunas) arrematados em três arcos plenos (um ao centro e dois laterais);
- Forma trapezoidal;
552Infelizmente não pudemos localizar e registrar apenas um oratório do conjunto de cinco. No caderno iconográfico
desta dissertação, ilustraremos os quatro exemplares lado a lado. Para detalhes, ver: JARDIM, Márcio. Aleijadinho,
catálogo geral da obra. Belo Horizonte, RTKF, 2006.
301
Figura 204. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Minas Gerais. Cedro entalhado
e policromado. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: BDPT
Porém, não entraremos no mérito de creditar ou não ao ‘artista maior’ de Minas a feitura de
tais oratórios.554 O que nos interessa em tais exemplares é a evidência da circulação de modelos que
influenciaram diretamente na morfologia de tais oratórios. Abaixo podemos observar a mesma
553 Oratório I – CGO-350 (coleção particular): JARDIM, Márcio. Aleijadinho, catálogo geral da obra. Belo
Horizonte: RTKF, 2006, p. 304.
Oratório II – CGO-087 Acervo da Igreja de Nossa Senhora das Mercês e Perdões (Mercês de baixo) em Ouro Preto:
JARDIM, Márcio. op. cit. p. 82.
Oratório III – CGO-045 Museu de Arte Sacra da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Pilar em Ouro Preto: JARDIM,
Márcio. op. cit. p. 234.
Oratório IV – CGO-031 Acervo do Museu da Inconfidência em Ouro Preto: JARDIM, Márcio. op. cit. p. 231.
Oratório V – Acervo da Igreja de Nossa Senhora do Rosário em Ouro Preto: BOHRER, Alex. Os diálogos de fênix...
p. 144.
554 Tendo em vista os questionáveis critérios de análise defendidos pelo referido historiador no item 5 “Critérios de
rematado em rocalha ou em pluma, como podemos perceber nas imagens acima. A estrutura
predominantemente arquitetônica imprime à tipologia uma perceptível verticalidade e as
composições estilísticas variam entre uma ornamentação do estilo Joanino, com plumas, volutas
torneadas e folhagens, ao Rococó, com concheados e pintura de falso marmorizado. Na maioria
dos exemplares, o vidro plano é utilizado para o fechamento do nicho principal e das laterais. Além
disso, todos os oratórios acima representados foram concebidos para serem encostados numa
parede, pousando sobre um móvel. Tal funcionalidade pode ser observada através da brusca
interrupção da estrutura e da cúpula pela ‘parede’ do oratório, composta por uma placa de madeira
que, por vezes, possui uma pequena ‘porta’ para a colocação das imagens no interior da peça.
O elemento arquitetônico mais notável, a ‘cúpula campaniforme’, é para nós uma das marcas
distintivas da tipologia ‘oratório-nicho’ em Minas Gerais. O modelo, advindo de Portugal556,
encontrou na talha dos oratórios mineiros a sua adequação como elemento de cobertura da peça,
assim como nas torres das igrejas. Curioso notar que a ‘cúpula campaniforme não ocorre somente
na Igreja Matriz de Santo Antônio em Tiradentes, mas também na Matriz de São João Batista em
Barão de Cocais e na Igreja de Nossa Senhora da Boa Morte em Barbacena, o que nos permite
pensar na constante circulação de riscos e modelos arquitetônicos e ornamentais que não eram
rigidamente empregados no âmbito da edificação, mas também na morfologia do mobiliário, tendo
em vista que a linguagem arquitetônica (como já demonstramos no capítulo anterior) influenciava
diretamente a forma das demais artes, principalmente do mobiliário civil e religioso.
A questão da hierarquia entre as artes era muito sentida [...]. Como tal, é o primeiro
argumento enfrentado por Vasari no seu Proemio di tutta l´Opera, onde conclui que a
arquitetura é a “mais universal e mais necessária e útil aos homens”. Qualidades tais que a
distinguem como primeira entre todas as artes e justificam para Vasari a escolha de iniciar
As três artes do desenho pela Da Arquitetura.558
556 As cúpulas das torres do Mosteiro de Refojos em Cabeceira de Basto, região do Minho (Portugal) se trata de um
antecedente formal, já que, até onde essa pesquisa pôde alcançar, não há exemplos do tipo na produção de oratórios
portugueses. Citamos também, de maneira mais exemplar, a semelhança das cúpulas campaniformes dos oratórios
mineiros acima ilustrados com a cúpula da Capela de São Sebastião de Ericeira, em Mafra, Lisboa.
557 BALDINUCCI, Filippo apud BYNGTON, Elisa Lustosa. A arquitetura e as Vidas de Vasari no âmbito da
disputa entre as artes. A Vida de Bramante de Urbino: problemas de historiografia crítica. Dissertação de
Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas: Campinas, 2004, p. 23.
558 BYNGTON, Elisa Lustosa. op. cit. p. 25.
304
Figura 211. Leito em miniatura (estilo D. Maria I). Séc. XIX. Minas Gerais.
Museu Regional de São João del-Rei, São João del-Rei. Fonte: BDPT
Figura 212. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Minas Gerais. Museu do
Diamante, Diamantina. Foto: Luciana Giovaninni (2019)
Figura 213. Detalhe da fachada (óculo central). Igreja da Ordem Terceira de
São Francisco de Assis. Séc. XVIII-XIX. São João del-Rei – MG. Foto do
autor (2018)
559 BERTI, Luciano. L´Architettura Manieristica a Firenze e in Toscana, in Bollettino del Centro Studi
Internazionali A. Palladio. IX (1967), p. 213-214. Citado originalmente em: BYNGTON, Elisa Lustosa. op. cit. p.
31.
560 Destacamos também a cobertura em ‘cúpula-campaniforme’ presente na cadeirinha de arruar, executada no século
Coroando o corpo do oratório, a palma (ou palmeta de gosto Joanino mas com inflexões
para o Rococó) possui volumetria ‘gorda’, disposta centralmente e conectada a vazão da folhagem
que extrapola a cimalha escalonada, formando uma singela aduela meramente decorativa. Servindo
de pouso para a palma ao centro, a folhagem é finalizada em volutas, dando à estrutura do oratório
uma notável verticalidade. O mesmo elemento ornamental do coroamento também ocorre no
oratório-armário de pousar do acervo do Museu do Ouro, em Sabará [figura 216]. De acordo com
a ficha catalográfica do referido museu, o oratório fora produzido no segundo quartel do século
XVIII em Santa Bárbara (antigo Arraial de Santo Antônio do Ribeirão Santa Bárbara), o que pode
indicar que no local pode ter se desenvolvido o estilema, sendo repetido pelas demais localidades
da Capitania.561
561Levamos em consideração a procedência documentada (Santa Bárbara) por ser essa a única menção no conjunto
de oratórios dotados do mesmo estilema.
306
Figura 216. Oratório doméstico com São José de Botas. Séc. XVIII. Minas
Gerais. Museu do Ouro, Sabará. Foto: Daniel Mansur. Fonte:
BDPT
Figura 217. Detalhe do coroamento. Oratório doméstico com São José
de Botas. Séc. XVIII. Minas Gerais. Museu do Ouro, Sabará. Foto:
Daniel Mansur. Fonte: BDPT
e coroamento em palmeta (talvez de influência dos oratórios da região de Santa Bárbara) nos sugere
o intercâmbio de modelos e tipos ornamentais que faziam parte da cultura visual dos
artistas/artífices mineiros que, em sua maioria, circulavam toda a Capitania em busca de trabalho.
Embora tal panorama seja apenas uma hipótese (baseada na localidade documentada dos dois
grupos de oratórios acima estudados) as obras nos indicam um fato objetivo: a circulação de
modelos e a troca entre artistas de elementos registrados através da observação direta das obras e
por meio de riscos, ocorreu sistematicamente. Os dois grupos de oratórios acima trabalhados (da
‘escola’ ouro-pretana e da ‘escola’ de Santa Bárbara, podemos dizer assim) demonstram com
segurança através de sua forma a circularidade cultural e artística que ocorria entre os artistas e
artífices da talha em madeira na Minas Setecentista.
Contudo, as considerações que realizamos até o momento ainda podem ser compreendidas
como indícios. O campo da circulação de modelos, principalmente aqueles que podem ser
rastreados através de documentação manuscrita, ainda é um desafio constante na historiografia da
arte colonial mineira tendo em vista a escassez das fontes. 562 Porém, devemos confiar nas obras
presentes, pois indicam com maior segurança os problemas historiográficos que desejamos
solucionar. No entanto, não temos dúvida de que a existência de fontes primárias manuscritas
auxilia muitíssimo o nosso trabalho.
As obras acima ilustradas, por si só, já são indícios pontuais da circulação de modelos na
manufatura dos oratórios domésticos no Setecentos mineiro, porém, a obra a seguir trata-se de
uma verdadeira constatação material do que temos buscado compreender até então. Se a circulação
de modelos arquitetônicos e ornamentais para a feitura de oratórios domésticos é sugestionada
através dos elementos formais que nos apresentam semelhanças morfológicas, o oratório-nicho a
seguir se destaca por comprovar e confirmar absolutamente o que temos observado até o
momento: falamos aqui do oratório-nicho produzido pelo pintor Caetano Luiz de Miranda na
Diamantina (antigo Arraial do Tijuco) do século XIX, representando em destaque na figura 222.
O pintor diamantinense Caetano Luiz de Miranda é uma figura muitíssimo interessante para
o panorama da história da arte colonial mineira, tendo em vista o seu aporte teórico e cultural
comprovado através dos bens que dispunha em vida, como veremos a seguir. O sargento-mor
Caetano Luiz de Miranda (1759-1837) foi um importante pintor da Comarca do Serro do Frio,
atuando principalmente nas igrejas do antigo Arraial do Tijuco, atual Diamantina. Destaca-se pela
562Embora os estudos empreendidos na última década tenham contribuído para o panorama geral, como elencamos
nas páginas anteriores deste capítulo.
309
feitura da Carta Geographica da Capitania de Minas Gerais (1804)563 e os painéis da dita “Entrância” das
primeiras barras de ferro no Arraial do Tijuco vindas da Fábrica do Morro do Pilar em 1815. 564
Além disso, é reconhecido principalmente pelas pinturas da sacristia da igreja de São Francisco de
Assis (Diamantina) e Capela do Bom Jesus do Matozinhos (Serro), assim como na igreja Matriz de
Santana de Inhaí, próximo a Diamantina, onde o referido pintor colaborou na pintura do forro da
capela-mor, executada pelo pintor José Soares de Araújo.565
563 JUNIOR, Delson Aguinaldo de Araújo. Caetano Luiz de Miranda, um pintor rococó na Comarca do Serro do Frio.
Anais do XII Encontro de História da Arte da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2017, pp. 199-
209.
564 SERRO, Prefeitura Municipal do. Personagens da história do Serro Frio – Serranos ilustres. Item: Caetano
Monumenta/IPHAN, 2009.
Agradeço especialmente à pesquisadora Luciana Giovaninni, pela indicação das referidas obras.
566 Cartório do 2º Ofício, maço n. 175. Inventário post-mortem de Caetano Luiz de Miranda. 1837.| AHMD/Diamantina
567 A inscrição pode ser lida parcialmente no objeto. Após uma cuidadosa observação direta para a realização da
transcrição, buscamos referências em laudos técnicos que, por fontes pessoais, soubemos da existência. Por fim,
chegamos ao texto da especialista em Conservação e Restauração e Mestre e Doutora em Artes e Conservação pela
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), Lucienne Elias, que transcreveu ipsis literis a frase na base que
reproduzimos acima. Ver: ELIAS, Lucienne Maria de Almeida. Oratório de Diamantina: complexidade de materiais,
critérios e técnicas adotados no tratamento. Revista Imagem Brasileira. Belo Horizonte, v. 2, p. 185-188, 2003.
310
Figura 222. Caetano Luiz de Miranda. Oratório doméstico. 1821. Arraial do Tijuco (atual Diamantina – MG). Museu do
Diamante, Diamantina. Foto: Michel Bechelini. Fonte: BDPT
311
A própria transcrição da base nos indica a natureza da obra, como veremos. O oratório de
Caetano de Miranda, uma peça de talha, é apresentado como uma obra de arquitetura. E de fato o
é. Tendo 1,05cm de altura por 0,33cm de largura (e 0,68cm de profundidade) possui denotada
verticalidade. Sustentada por uma pesada base de madeira, o oratório é composto por uma estrutura
intrinsecamente arquitetônica: amparadas por quatro bases retangulares com almofada, temos
quatro colunas esbeltas e cilíndricas coroadas com capitéis de ordem coríntia. Tais capitéis possuem
esmerada representabilidade através de uma delicada e minuciosa talha dourada. Tais colunas, com
avanço e recuo na estrutura, sustentam blocos com cimalhas interrompidas, escalonadas em frisos
retilíneos que ladeiam o arco central. Adentrando na parte central, duas pilastras de canelura única
e coroadas com capitel coríntio sustentam um arco pleno igualmente decorado com uma única
canelura e ornamentado centralmente por uma aduela em voluta. Acima, sob uma cornija
escalonada, uma guirlanda decorada com folhagens e elementos rocaille. Dos lados direito e
esquerdo, duas pequenas esculturas (representando estátuas de santos) decoram o entablamento,
assim como delicadas volutas que ornamentam igualmente a ‘fachada’. Acima, sustentada por uma
cimalha escalonada e policromada com farto douramento, um frontão triangular que causa uma
impressão de profundidade, efeito provocado pelas linhas sobrepostas.
No nicho-camarim interno, possui como base um nicho que imita uma pequena gruta com
a imagem do Menino Jesus. Acima do nicho, um trono escalonado de formas onduladas que
sustenta uma massa escultórica tendo um crânio e tíbias ao centro, em alusão ao Calvário. Nessa
massa escultórica, uma cruz com o Cristo deveria se encontrar no lugar. Tanto abaixo (acima do
nicho) como dos lados da cruz (em duas peanhas) quatro imagens de santos formam o conjunto
escultórico da cena da Paixão. Decorando a parede do nicho-camarim, podemos observar a pintura
figurativa com a representação de nuvens algodoadas, cabeças aladas de anjos e um halo luminoso
que parece separar as nuvens, imitando a representação da ‘abertura para o céu’. Curioso notar nos
detalhes internos a presença de outras peanhas de sustentação para pequenas peças de imaginária,
não podendo serem contempladas frontalmente, além de pequenos óculos circulares fechados com
vidro plano, que parecem servir de iluminação ao nicho central e, logo abaixo, pequenos portais
igualmente fechados com vidro.
Por fim, trata-se de uma peça riquíssima e que contempla todos os elementos que temos
analisado pormenorizadamente neste estudo: circulação de modelos arquitetônicos, miniaturização
das formas retabulares, idealização de uma ecclesiae domesticae, a polivalência dos artistas e a
concepção de oratório como obra de arte total. Seguindo tais categorias ordenadamente, podemos
compreender tais aspectos a partir do próprio artista que executou o oratório.
312
568ELIAS, Lucienne Maria de Almeida. Oratório de Diamantina: complexidade de materiais, critérios e técnicas
adotados no tratamento. Revista Imagem Brasileira, Belo Horizonte, v. 2, 2003, p. 185.
De acordo com a autora, o mixtion era um “douramento feito com o uso de um verniz oleoso, o qual pode ser aplicado
sobre qualquer superfície; mas não necessita bolo, a aparência é uniforme e de menos brilho, não pode ser brunido e
o verniz deve ser pigmentado”: ELIAS, Lucienne Maria de Almeia. op. cit. p. 185.
Obs: “bolo” = bolo armênio.
313
ou melhor, de uma edificação, através dos tons pastéis, da imitação do marmorizado (a técnica do
faiscado) e do douramento abundante que realçou as linhas e demais ornamentos do gênero.
[...] em dois tipos de suporte: duas em cerâmica e 10 em pedra talco. Hoje, estão presentes apenas
7, representando: Nossa Senhora da Conceição, São José de Botas, São Francisco de Paula, São
Sebastião e o Menino Jesus (em pedra talco), localizadas na região interna do oratório, e as duas
imagens, representando São Pedro e São Paulo (em cerâmica), localizadas na região do
frontispício. São peças faltantes, no entanto, o Cristo Crucificado e mais outras 5, que ficariam
expostas na área interna.569
Porém, o aspecto técnico mais interessante de ser destacado é o modo de feitura da estrutura.
Segundo Elias, o oratório possui características estruturais semelhantes aos retábulos, possuindo
“um primeiro suporte composto por incontáveis blocos de madeira, de dimensões variadas, fixados
entre si por pregos e adesivos”.570 Além disso, o mais curioso: “em seguida, um segundo suporte,
o papel, que recebeu duas diferentes funções: a primeira, como revestimento, e a segunda como
modelador de formas”.
Nesses locais, chegamos a detectar uma variação de até treze camadas de papéis sobrepostos e
fixados entre si. É fato que o autor foi extremamente minucioso, utilizou papéis com inscrições
datadas de 1805 e chegou a utilizar filetes de papéis para dar forma a minúsculos detalhes, como,
por exemplo, as folhas de acanto presentes nos capitéis.571
século XIX em Maceió, Nazaré, Jaguaripe e Salvador. Dissertação de Mestrado. Escola de Belas Artes da
Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2012.
314
Levando em consideração que a arte dos retábulos se encontra intimamente conectada à arte
dos oratórios domésticos (por conta da denotada influência morfológica de um para o outro),
buscamos referências nos modelos gravados dos manuais e tratados arquitetônicos. Tais tratados
foram importantes não somente pelas inovações que traziam, mas também pela popularidade que
tiveram como modelo a ser replicado. Nesse aspecto, os cadernos de gravuras avulsas com
repertório diverso, livros devocionais e principalmente os tratados de arquitetura e ornamentação,
assim como de pintura, foram para os artistas mineiros fontes primordiais para a feitura das obras,
fazendo com que o repertório europeu circulasse no território aurífero. Sobre essa questão, aponta
Aziz Pedrosa:
574PEDROSA, Aziz José de Oliveira. A produção da talha joanina na Capitania de Minas Gerais – Retábulos,
entalhadores e oficinas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019, p. 85.
315
Minas. Para esse mesmo autor, em Portugal (no século XVIII) circulavam já muitos nomes da
tratadística como Leon Battista Alberti, Vicenzo Scamozzi, Sebastiano Serlio, Andrea Palladio,
Giacomo Vignola, Fillippo Passarini e vários modelos de obras executadas pelos mestres Gian
Lorenzo Bernini, Alessandro Algardi e Giovanni Paolo Schor.575 Porém, como afirma Aziz
Pedrosa, o maior destaque em contexto luso coube à obra do italiano e padre jesuíta Andrea Pozzo
(1642-1709), autor do afamado Perspectiva Pictorum et Architectorum (1717) em que se nota “uma
preponderante característica [...] delimitada pelo caráter arquitetural da estrutura retabular, em que
se notam fragmentos de frontões interrompidos, mísulas e outros elementos de cunho
arquitetônico integrados à composição”.576
Camila Santigado atentou para o inventário do pintor Caetano Luiz de Miranda, sugerindo
que os dois livros intitulados Perspectivas dos pintores in follio dois volumes tratam-se das edições
portuguesas do Perspectiva Pictorum do Padre Pozzo,577 o que confirmamos ao travarmos contato
direto com o referido documento. Ao analisarmos diretamente o inventário post-mortem do pintor
diamantinense, percebemos a presença de noventa (90) estampas gravadas, assim como trinta e
quatro (34) livros com temática de arte e religiosidade, possivelmente ilustrados,578 o que corrobora
a hipótese de que o referido pintor possuía um repertório visual considerável.
O vultuoso inventário post-mortem do pintor579 nos indica que Caetano Luiz de Miranda
possuía um expressivo acervo de fontes imagéticas que lhe serviam de repertório para o seu ofício
de pintor, seja através da expressiva coleção de estampas gravadas com temas sacros e profanos,
ou através dos livros de sua biblioteca pessoal. Destacamos o Emblemas de Alciato, um importante
livro com xilogravuras cujas representações imagéticas estavam associadas a uma iconografia de
temática sacra ou profana, tendo a mesma finalidade que o igualmente importante Iconologia de
Cesare Ripa. Destinado ao seu ofício particular, era natural o mesmo possuir os dois volumes de a
Arte da Tintura de Barthole, porém, o nosso interesse em particular se concentra na Perspectiva para
pintores in follio, em dois volumes, a versão portuguesa de Perspectiva Pictorum de Pozzo.
universo pictórico mineiro (1777-1830). Tese de Doutorado em História Social da Cultura. Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2009, p. 131 apud PEDROSA, Aziz
José de Oliveira. A produção da talha joanina na Capitania de Minas Gerais – Retábulos, entalhadores e
oficinas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2019, p. 177.
578 Cartório do 2º Ofício, maço n. 175. Inventário de Caetano Luiz de Miranda. 1837. 128 fólios. | AHMD/Diamantina
579 É digno de nota evidenciar que o Caetano Luiz de Miranda possuiu mais livros do que os acima citados. Além de
ser detentor de uma considerável biblioteca, era proprietário de móveis, vestuário, pinturas com molduras douradas
(em torno de 80) e uma expressiva fortuna em ouro e pedras preciosas entesouradas em joias de uso pessoal. Trata-se
de um pintor com vultuosa fortuna.
316
Semelhanças formais nos elementos, quase uma total replicação das proporções, da volumetria e do estilo de Andrea
Pozzo na talha do oratório. Caetano Luiz de Miranda interfere pouco nos modelos originais. Entre o pedestal da coluna
de Pozzo [figura 226] e de Caetano [figura 227] a semelhança é evidente no tratamento das formas, a dessemelhança
ocorre somente com a adição de uma almofada que o pintor diamantinense tratou de entalhar no bloco de base. Na
parte superior da base, os diminutos elementos composicionais da base (Plinto, Toro, Escócia) presentes no modelo
de Pozzo são fidedignamente replicados por Caetano de Miranda. O mesmo ocorre com o capitel de ordem Coríntia,
onde os elementos vegetalistas (folhas de acanto) estão presentes no oratório, ocorrendo poucas modificações
ornamentais (como o elemento central entre as duas volutas do capitel (Equino) [figuras 228-229]. Já o elemento de
arquitrave com cimalha interrompida com frisos retilíneos possui feitura mais simples no modelo de Pozzo, ao passo
que no oratório de Caetano o mesmo optou por triplicar o escalonamento, tornando-o mais ornamentado e profuso
[figuras 230-231].
No frontão triangular de Andrea Pozzo, representado na figura 12 do Perspectiva Pictorum, o escalonamento na cimalha
e nas empenas adquire através das linhas retilíneas esmerada profundidade. A herança da arquitetura Clássica se faz
sentir na concepção de arquitetura Barroca registrada por Pozzo. A mesma profundidade e o mesmíssimo tratamento
do escalonamento da cimalha e empenas fora realizado por Caetano no coroamento do oratório, onde a profundidade
foi alcançada devido ao efeito do douramento em relação ao tom ocre no centro do frontão [figuras 232-233]. O
elemento mais notável do oratório encontra-se também na lateral, com a disposição das colunas, a ligadura dos capitéis
com o entablamento e o posicionamento gradual de avanço e recuo da estrutura, efeito potencializado pelos blocos de
sustentação das colunas. A mesma disposição estrutural pode ser observada na figura 32 do Perspectiva Pictorum do padre
Pozzo. Trata-se de uma influência direta do artista italiano para o artista diamantinense, quase uma cópia caso Caetano
Luiz de Miranda não tivesse adicionado os elementos do portal e do óculo, além da supressão da estátua [figuras 234-
235].
O modelo gravado na figura 69 do tratado de Pozzo serviu de referência direta para a concepção estrutural do oratório
de Caetano Luiz de Miranda [figuras 236-237], porém, o pintor diamantinense alterou consideravelmente o plano
original. A semelhança entre o modelo gravado [figura 236] e o oratório [figura 237] ocorrem a partir dos seguintes
elementos: os blocos de base paras as colunas; a forma de base das colunas; colunas cilíndricas de capitel na ordem
coríntia; entablamento sustentado pelas colunas; recuo e avanço das colunas no espaço arquitetônico; arco pleno com
sustentação em pilastras com cimalha escalonada em frisos retilíneos; estátuas representando santos católicos
amparados pelas cimalhas frontais; volutas decorativas nos lados esquerdo e direito próximas às estátuas de santos,
dispostas frontalmente e concepção de ‘escadaria’ para o nicho-camarim, imitando a entrada do edifício concebido por
Pozzo na gravura. As dessemelhanças são percebidas através da supressão das estátuas inferiores (originalmente o
oratório possuía as outras duas estátuas superiores); supressão do frontão interrompido ornamentado com estátuas e
elementos arquitetônicos Clássicos; troca da decoração barroca do frontispício por ornamentação híbrida (com
elementos rocaille e neoclássicos); supressão da estrutura inferior para dar espaço à visualidade frontal do nicho-camarim
no centro com suas imagens.
319
Embora o modelo anterior, representado na figura 69 do tratado de Andrea Pozzo [figura 236] tenha servido de
referência estrutural para o oratório de Caetano de Miranda, a figura 60 possui elementos formais que também se
encontram presentes na obra mineira. Destacamos o frontão triangular presente no modelo, sendo apropriado pelo
pintor mineiro, tendo o mesmo suprimido a ornamentação em cartela com putti por guirlanda neoclássica com tímidos
elementos conchóides a la rocaille; destacamos também as aberturas laterais, portais (ou nichos) rematados em arcos
interrompidos, sendo apropriados pelo pintor mineiro como portas laterais do retábulo e fechados com vidro plano;
além disso, os óculos esféricos situados acima da cimalha também foram utilizados por Caetano de Miranda logo acima
do portal, sendo emoldurado por moldura circular escalonada e fechado com vidro plano.
pintor diamantinense nos indica que os modelos contidos no Perspectiva Pictorum não foram
cegamente assimilados e replicados, mas antes, observados e readequados, tornando a obra não
mera cópia, mas possuidora de autenticidade e originalidade. Nesse aspecto, o antecedente europeu
é interpretado como matriz, sendo readequado, reformulado e interpretado a fim de originar uma
obra essencialmente nova. Isso implica pensar em Caetano Luiz de Miranda, a partir do seu
oratório, como herdeiro da tradição barroca, valendo-se das realizações artísticas de seus
antecessores para contribuir originalmente em seu tempo e espaço. Ao considerarmos Caetano de
Miranda como ‘herdeiro da tradição’, sendo o seu oratório um potente exemplo disso, podemos
compará-lo à Gian Lorenzo Bernini quando afirmava que “quem não sai por vezes das regras
[Clássicas] nunca as ultrapassam”.580 No caso do extraordinário oratório que temos analisado,
podemos perceber em sua forma pura o peso da Tradição Clássica muito bem aproveitada pelo
Barroco, porém, reformulado e reorganizado através das mãos do nosso erudito pintor mineiro.
580 BALDINUCCI, Filippo. Vita del Cavaliere Gian Lorenzo Bernini, scultore, architetto e pittore. Firenze:
Stamperia di Vicenzio Vangelisti, 1682, p. 67 apud BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador:
EDUFBA – PPGAU, 2012, p. 121. [grifos meus].
581 Termo tomado de empréstimo da historiadora Angela Brandão, como citamos no capítulo anterior.
321
o que o confirma como uma peça artística concebida sob a marca da Tradição Barroca, qualidade
reforçada pelo seu modelo de inspiração formal: o tratado Perspectiva Pictorum do jesuíta Andrea
Pozzo. Em suma: o oratório de Caetano Luiz de Miranda é, para o presente estudo, uma obra de
síntese.
Por fim, encerrando este tópico, retomamos a tese inicial de que os oratórios domésticos em
Minas Gerais foram, num primeiro momento, importados. Destacamos a vinda de oratórios
portáteis oriundos da devoção privada dos transeuntes que acorriam paras as Minas em busca das
riquezas da terra. Tais oratórios portáteis posteriormente foram adaptados para o âmbito da casa,
transformando-se em elemento da cultura religiosa popular mineira e contribuindo para a
originalidade dos modelos e das tipologias que na Capitania encontraram vitalidade artística. Os
modelos europeus e locais introduzidos em Minas foram sendo reelaborados, tornando-se de fato
obras de um autêntico ‘Barroco Mineiro’.582 Ao lado desse contexto, afirmamos também que a elite
potentada também mandou trazer seus oratórios do além-mar, principalmente da Metrópole
Portuguesa para as Minas. Falamos aqui da tipologia Dom José I, o Rococó português. Assim como
abordamos no capítulo anterior, em Minas Gerais também ocorreu uma mudança considerável na
forma dos oratórios domésticos, cuja estrutura que era predominantemente arquitetônica pareceu
ceder à ornamentação.
582Não defendemos nesta pesquisa a ideia de um Barroco Mineiro como arte genuinamente concebida em Minas
Gerais, como defendiam os primeiros pesquisadores do Barroco Brasileiro em Minas Gerais no contexto da criação
do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico e da revalorização da arte colonial como identidade nacional pelo
Estado e pelo movimento Modernista. Porém, não negamos a originalidade e especificidade da arte desenvolvida em
Minas, contudo, reforçamos a ideia de continuidade com a tradição europeia (Portuguesa): seu antecedente direto.
322
A tipologia pode ser encontrada nas coleções particulares e privadas do Rio de Janeiro, São
Paulo e Minas Gerais. Os oratórios portugueses de estilo Dom José chegavam, provavelmente,
através dos portos do Rio de Janeiro, por isso, por vezes a tipologia é referenciada erroneamente
como oriunda da antiga sede da Corte. A autenticidade da procedência de tais oratórios pode ser
confirmada através de duas formas: a primeira, por meio de documentação comprobatória, a
segunda, via Análise Formal. Por motivações de inexistência ou imprecisão de fontes manuscritas,
a análise comparativa, estilística e morfológica se torna mais acertada para atribuição de
procedência.
583Maço 361 – Processo 6368. Inventário post-mortem de Maria de Jesus. Rio de Janeiro, 1808. | AN/DF
584Nem mesmo os bens anexos a oratórios, como peças de imaginária, revelam a origem e procedência do artefato
descrito, o que dificulta exponencialmente a análise caso essa dependa exclusivamente de documentos manuscritos.
323
Ao colocarmos lado a lado o oratório ‘mineiro’ [figura 240] com o de fatura portuguesa
[figura 241] podemos identificar, sem equívoco, que se trata da mesma tipologia, executados sob
as mesmas técnicas e concebidos sob o mesmo estilo, tendo poucas variações ornamentais entre
um e outro. Ao observarmos diretamente os dois exemplares, podemos até considerar previamente
que se tratam de oratórios feitos na mesma oficina, quase cópias um do outro. A partir da análise
comparativa, não temos dúvida de que o exemplar ‘mineiro’, na realidade, trata-se de um exemplar
português que fora importado da Metrópole e utilizado na Minas colonial.585 O mesmo equívoco
ocorre com outros oratórios de mesma tipologia no Museu do Oratório, sendo alguns
referenciados como procedentes do Rio de Janeiro.
585 Sobre a tipologia de oratórios Dom José I de fatura portuguesa, consultar o capítulo anterior.
324
Em São João del-Rei, há um fato atestado mediante tradição oral que pode ilustrar a presença
de tais oratórios de fatura portuguesa em uso na Minas colonial. Recolhido e exposto no acervo do
Museu de Arte Sacra, o oratório Dom José I de fatura portuguesa [figura 242] com imagens
também de origem portuguesa representando Cristo Crucificado, Nossa Senhora da Conceição e
São Joaquim, foi posse de um negro forro residente na Vila de São João del-Rei. Atestava o já
falecido pesquisador e musicólogo sanjoanense Aluízio José Viegas (1941-2015), respeitada
personalidade da cultura local, que o referido oratório pertenceu a um negro forro que havia sido
irmão da Arquiconfraria de Nossa Senhora das Mercês, o legando post-mortem para o acervo da
capela sede de sua padroeira de irmandade.586
Infelizmente, durante o levantamento de fontes manuscritas para esta pesquisa, não foi
possível comprovar a afirmação do referido pesquisador. Várias questões foram levantadas quanto
à veracidade da tradição oral em torno do oratório, desde o questionamento quanto à possibilidade
do proprietário, quanto a possível localização dos documentos comprobatórios da doação do
referido oratório para a capela de Nossa Senhora das Mercês. O fato objetivo em si é que o oratório
de fatura portuguesa pertence, de fato, ao acervo particular da Capela da Arquiconfraria de Nossa
586Tal tradição oral foi colhida através da pesquisa de campo no Museu de Arte Sacra de São João del-Rei durante o
levantamento das fontes tridimensionais para esta pesquisa.
325
Senhora das Mercês e atualmente se encontra exposto no Museu de Arte Sacra de São João del-Rei
sob regime de comodato, referenciando, portanto, a presença de oratórios portugueses em uso na
Minas colonial.587
A questão que nos interessa na presença de oratórios de fatura portuguesa em Minas Gerais
nesse período é de que a forma de tais oratórios foi responsável por introduzir novos elementos
ornamentais para emprego na manufatura local. Não foi somente a partir de fontes gravadas
(gravuras), tratados, estampas e livros de oração com gravuras que serviram de inspiração para
utilização de modelos ornamentais, mas também através da aquisição de objetos. Aziz Pedrosa
aponta que um outro veículo que favoreceu a divulgação de modelos ornamentais se deu também
através de “aquisições de peças de arte, imagens devocionais e objetos litúrgicos que guarneciam
os templos religiosos”, pois fomentavam a disseminação ornamental oriundas, comumente, do
Reino.588 Tais formas, de estilo Rococó, foram abundantemente empregadas na feitura de oratórios
domésticos em Minas Gerais, assim como de retábulos, mobiliário ordinário e até mesmo pinturas
ornamentais e figurativas nos forros das igrejas: o elemento rocaille entra em cena.589
587 A principal questão que busquei compreender, baseado apenas no questionável relato de tradição oral, se concentra
na possibilidade de um negro forro ser proprietário de um objeto relativamente caro para a época e destinado às
camadas privilegiadas do período colonial. Uma possibilidade, talvez a mais provável, é a de que o negro forro em
questão tenha herdado o referido oratório do seu antigo senhor ou de algum padrinho. A prática era comum, guardadas
as proporções. Uma outra possibilidade se encontra na possível ascensão econômica do dito negro forro, podendo
adquirir bens móveis, como o referido oratório português, que eram quase exclusivos aos brancos de elite, tendo em
vista o valor de objeto. Tal possibilidade não é descabida, sendo que em São João del-Rei, por exemplo, há exemplos
de ascensão econômica por parte de negros forros, como o caso das mulheres negras forras que ascenderam
economicamente através de suas atividades comerciais. Sobre esse aspecto, ver: PRIMO, Bárbara Deslandes. Aspectos
culturais e ascensão econômica de mulheres forras em São João del-Rey: séculos XVIII e XIX. Dissertação de
Mestrado. Instituto de Ciências Humanas e Filosofia da Universidade Federal Fluminense: Niterói, 2010.
588 PEDROSA, Aziz José de Oliveira. A produção da talha joanina na Capitania de Minas Gerais – retábulos, entalhadores e
Em Minas Gerais, as manifestações da rocaille foram mais sóbrias, porém merecem destaque
em nosso estudo. O rococó religioso, vigente na Capitania entre a segunda metade do século XVIII
e a primeira do XIX,590 emprestou à arte da talha maior dinamismo morfológico na ornamentação,
com formas assimétricas, linhas sinuosas, curva e contracurva, vazios, concheados, volutas
extravagantes e rocaille abundantes. Nos oratórios domésticos em específico, a rocaille possui o
papel de ornamentar e ocorre principalmente no campo pictórico, já na talha ocorre como
coroamento, principalmente.
Porém, na talha propriamente dita, a rocalha se manifesta sob a forma de uma rocaille-cartouche,
(cartela-rocalha) como podemos observar nos oratórios mineiros abaixo representados. Os dois
exemplares de oratório ilustrados [figuras 244-245], que se encontram dentro da tipologia de
‘oratório de salão’ eruditos, podem ser considerados os maiores exemplos da vitalidade da talha
rococó nos oratórios domésticos de fatura mineira. Ambos possuem a forma de uma cartela,
sustentada por delicados blocos curvos. A cartela possui a função de nicho, que na realidade se
trata de uma caixa que é acoplada à moldura frontal, servindo de abrigo para as imagens
devocionais. A moldura da cartela possui expressiva movimentação, cujo efeito é reforçado através
do douramento das linhas das curvas e contracurvas, além das formas conchóides que se fazem
representar em toda a moldura. Por fim, o remate do coroamento ocorre com a representação de
uma bela palmeta de gosto Joanino, elemento central que atribui à moldura uma notável
verticalidade.
590 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. Barroco e Rococó no Brasil. Belo Horizonte: Editora C/Arte, 2014.
327
Tal modelo, de cartela com moldura em rocalha, ocorre em formato bidimensional como em
frontispícios de livros, capas de compromissos de irmandade, pinturas parietais e de forro; assim
como tridimensionais em tarjas de retábulo, decoração parietal, remate de arcos e afins. No modelo
de cartela representado na figura 246 podemos observar a mesma disposição formal: cartela central
vazia (onde normalmente se encontra uma inscrição) que servirá como nicho no oratório, moldura
328
com rica ornamentação sendo sustentada por delicados pés em voluta (cachimbo) e coroamento
com elemento centralizando, conferindo verticalidade. O presente modelo, até onde esta pesquisa
pode verificar, só ocorre em dois exemplares que se encontram representados nas duas figuras
acima, o que denota a raridade tipológica, porém, cremos que deva existir outros exemplares que
ainda aguardam virem à luz para novas e futuras pesquisas.
591 Vale a pena citar a fala do historiador da arte português Eduardo Pires de Oliveira que, em seu texto “De Braga para
Minas Gerais, no século XVIII: Novos dados biográficos e artísticos sobre o arquitecto António Pereira de Souza Calheiros”, assim diz:
“O presépio que se guarda no pequeno museu de S. João d´El Rei tem um fundo pintado com uma representação da
cidade. Mas é tão pequeno que não permite qualquer leitura merecedora de confiança”. OLIVEIRA, Eduardo Pires
de. Minho e Minas Gerais no séc. XVIII. Braga: Edição do autor, 2016, p. 15-16.
Logicamente que, para o contexto do texto referenciado, claramente não havia serventia, porém, não concordamos
com a qualificação negativa da peça como “não merecedora de confiança”, pelo contrário, trata-se do oratório mais
potente em termos de Análise Formal pertencente ao acervo de oratórios mineiros.
592 Abordaremos a questão pictórica e escultural no próximo tópico e questão iconográfica no próximo capítulo desta
dissertação.
593 SILVA, Kellen Cristina. O caminho das flores: estudo iconológico sobre a “Escola de Artes do Rio das
Mortes” e o modelo intencional de encomenda – Minas Gerais (c. 1785-c. 1841). Tese de doutorado. Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2018, p. 318.
594 “Um presépio antigo com moldura de madeira dourada (do Egipto) – avaliado por vinte mil réis”. In: Cx. 81 (pasta verde) –
Inventário post-mortem de Venâncio José do Espírito Santo. São João del-Rei, 1879. | AIPHAN/SJDR
595
Embora concordemos com a tese de Kellen Silva (2018) de que a rocalha do referido oratório seja uma possível
influência visual do pintor Manoel Victor de Jesus, é necessário assinalarmos alguns pontos. Primeiro ponto, sobre a
nomenclatura ‘ rocalha flamejante’. Mesmo concordando com a nomenclatura dada pela autora a esse tipo de rocalha,
tendo em vista a alusão à forma de ‘chamas avermelhadas’, devemos salientar que esse termo se encontra
historicamente localizado na arte decorativa do Gótico tardio, chamado justamente de Gótico Flamejante (do francês,
flamboyant). Portanto, trata-se de um deslocamento conceitual anacrônico, anacronismo que assumimos, tendo em vista
a fluidez dos conceitos na História da Arte, como bem demonstrou o historiador Georges Didi-Huberman em sua
obra Diante do tempo, História da Arte e anacronismo das imagens (2015). Segundo ponto, a variedade de estilemas do pintor
Manoel Victor. O referido do pintor também possui outros estilemas, sendo eles ornamentais e antropomórficos. No
tocante aos estilemas ornamentais, Manoel Victor também possui rocalha mais ‘gordas’, vazadas e em tons mais
sóbrios. Além disso, a referida rocalha flamejante do oratório tratado possui antecedentes claríssimos nas rocalha
francesas e germânicas, portanto, embora concordemos com a tese da autora, frisamos que a forma da rocalha que
estamos tratando não é somente criação do pintor mineiro, mas inspirada sobretudo nas gravuras que circulavam no
330
Tal informação é para nós relevante pois exclui os oratórios domésticos do isolamento
hierárquico das ‘grandes artes’.597 Nos indica que as trocas de referências imagéticas (elementos
figurativos e ornamentais sobretudo) não ocorreram somente a partir de fontes estrangeiras, como
as gravuras e obras de fatura internacional, mas também entre os próprios artistas em escala
regional, o que reafirma o papel da oficina, até mesmo da “escola” quando constitui uma ‘cultura
visual’ distintiva de uma região específica (como vimos em exemplos anteriores). Por último, sobre
esse aspecto, a historiadora ainda nos indica uma questão ainda em aberto: a rocalha ‘flamejante’
teria sido uma marca do pintor Manoel Victor de Jesus legada ao seu aprendiz Venâncio José do
Espírito Santo? Tal questão possui uma resposta ainda não conclusiva, porém estimativa, de que
“a observação de um pelo outro, ou simplesmente pela convivência de atelier entre aprendiz e
mestre podem ser considerados pontos de interligação entre os dois pintores”.598
período. Sobre a questão do ‘anacronismo das imagens’, ver: DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante do tempo,
História da Arte e anacronismo das imagens. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2015.
596 SILVA, Kellen Cristina. op. cit. p. 317.
597 E ao afirmarmos isso, defendemos a importância e o valor dos oratórios domésticos como autênticas obras de arte,
não podendo serem considerados uma ‘obra menor’ em relação aos retábulos, às pinturas de forro, nem à própria
arquitetura. Assim como as demais artes, o oratório se encontra imerso no contexto das relações mestre-aprendiz,
circulação de modelos ornamentais, figurativos e arquitetônicos, técnicas eruditas de policromia e entalhamento, assim
como também pertencentes a rol da produção de artistas documentados, embora a imensa maioria dos oratórios
mineiros não possua autoria documentada.
598 SILVA, Kellen Cristina. op. cit. p. 319.
331
Porém, antes de seguirmos com a análise propriamente dita, gostaríamos de definir algumas
questões rapidamente. Assim como definimos no capítulo anterior, a pintura nos oratórios
domésticos possui como função ornamentar e representar. Nesse aspecto, dois gêneros pictóricos
podem ser encontrados: a pintura decorativa (onde se representam flores, folhagens, linhas,
damascos etc) e a pintura figurativa (onde se representam figuras de santos, paisagens e figuras
zoomórficas e antropomórficas).
599 Podemos observar na figura 250 a disposição centralizada e equilibrada dos buquês com flores, enquadradas
centralmente através de uma trama de linhas com folhas que se entrecruzam, com imagens, perceberíamos a
acomodação da imaginária. No segundo exemplo, representado na figura 251, o fundo pintado se assemelha ao ‘papel
de parede’, com pontos brancos (lantejoulado) e pequenos e delicados buquês com rosas que são dispostas num vértice
central e acima das imagens mantidas nas peanhas. O efeito é proposital.
333
600SILVA, Alcina Silva Santos. As flores na pintura da ‘Anunciação’ nos séculos XVI e XVII – A simbologia
cristã e a arte decorativa. Dissertação de Mestrado. Mestrado em História da Arte Portuguesa. Faculdade de Letras
da Universidade de Lisboa. Porto, 2011, p. 48.
334
Uma outra formatação ornamental ocorre também nas portas laterais. Geralmente
representam arranjos florais, vasos com flores e conchas rocaille. O modelo do vaso com flores é o
mais recorrente nos oratórios mineiros, e pode ser considerado um elemento tradicional e muito
empregado na decoração interna. Tal modelo também foi empregado em Portugal, principalmente
durante a vigência do Barroco Joanino, já no Rococó o modelo perderá sua vitalidade. Em Minas,
durante todo o século XVIII e boa parte do XIX, o modelo se consolida como elemento tradicional
dos oratórios, figurando também em armários do mobiliário ordinário comum. No Rococó, no
entanto, foi comum também em Minas a representação de uma rocalha nas almofadas internas das
portas, geralmente representadas nas cores vermelho, azul e ocre. A paleta poderia variar, desde os
tradicionais tons claros e suaves (típicos da visualidade rococó) a tons mais pesados e escuros.
601GOLSENNE, Thomas; DÜRFELD, Michael; ROQUE, Georges; SCOTT, Katie; WARNCKE, Carsten-Peter.
L´ornemental: esthétique de la difference. In: Perspective. 1 | 2010, mis en ligne le 14 août 2013, consulté le 14 août
2019, p. 3-4.
335
Uma questão muitíssimo interessante a ser destacada é a técnica empregada na pintura dos
oratórios mineiros. Num exemplar exposto no Museu do Diamante, em Diamantina, pudemos
observar nos vasos com flores pintados nas portas do oratório algumas linhas escuras, semelhantes
a um rabisco executado em grafite. Nas figuras 258 e 259 podemos perceber um traçado de linhas
escuras sobre o pedestal do vaso, na realidade, uma representação de peanha que serve de apoio
para o vaso em questão. Ao demorarmos o nosso olhar, não mais para o detalhe em si mas para a
obra em sua inteireza, percebemos que a pintura das peanhas não estava finalizada, o que
imediatamente nos despertou para o fato de que contemplávamos uma obra inacabada, e por esse
motivo, ainda era possível observar o modo de execução da pintura decorativa.
a superfície da madeira.602 A técnica foi empregada para que o desenho fosse livre de imperfeições,
como é notável em desenhos realizados à mão livre. Com esse exemplo, podemos perceber o uso
de técnicas eruditas para a pintura dos oratórios, reforçando a nossa tese de que os oratórios
domésticos também se encontravam no mesmo patamar das ‘grandes artes’, pois, a técnica do
spolvero era, normalmente, empregada nas pinturas de forro das igrejas, por exemplo.603
Outra técnica muito comum que também é costumeiramente empregada nos retábulos e
pinturas parietais, é a técnica denominada faiscado, ou, pintura de imitação de mármore. A técnica
consiste na preparação prévia da superfície com uma camada de tintura em cor ocre ou maltada, a
fim de imitar o tom leitoso do mármore branco. Logo depois, eram adicionadas as cores azul e
vermelho em tons suaves, paleta que predominava. O falso mármore bem executado conseguia
atingir o esperado trompe l´oeil, se passando por um verdadeiro acabamento na nobre pedra, porém,
os não tão bem executados atingiam formas estranhas e artificiais. Tal pintura de falso mármore
era utilizada na tentativa de enobrecer artificialmente o acabamento das obras, sendo empregada
comumente nas vergas, nas pilastras, nas almofadas de bases de colunas, em sancas e cimalhas
escalonadas. Nos oratórios domésticos, a técnica foi utilizada nas almofadas internas das portas,
nos frontões e nas cimalhas, o que realça a estrutura arquitetônica miniaturizada [figura 260].
602 PEREIRA, Danielle Manoel dos Santos. Pintura setecentista na igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do
Carmo em Mogi das Cruzes (SP – Brasil). Caiana – Revista de Historia del Arte y Cultura Visual del Centro
Argentino de Investigadores de Arte (CAIA). N. 8 | 1. Semestre 2016, p. 112.
603 Em uma visita técnica à capela de Nossa Senhora do Rosário dos Homens Pretos de Tiradentes, Minas Gerais,
pudemos observar de perto o uso da técnica do spolvero na pintura do teto da capela-mor da referida igreja. A traça em
carvão era perceptível, podendo ser vista ao lado do traço da pintura: tratava-se de um risco subjacente. A observação
foi possível graças aos andaimes instalados durante o processo de restauro a que a capela foi submetida no primeiro
semestre de 2019. Visita técnica realizada através do CEPHAP – UFSJ sob supervisão da pesquisadora Prof. Ma.
Luciana Giovaninni.
337
Junto ao faiscado, embora raramente seja encontrada, também era utilizada a pintura de
ornamentação dourada, vinculada ao tema da chinesice. O termo chinesice, tradução da palavra
francesa chinoiserie, é uma técnica ocidental de imitação da pintura ornamental chinesa, cujos temas
variam desde cenas bucólicas a representações de pagodes (edificação chinesa) a figuras
antropomórficas e zoomórficas. No pequeno e diminuto oratório-bala, pertencente ao acervo do
Museu do Oratório de Ouro Preto, podemos observar na sua base torneada a presença dos típicos
e representativos pássaros chineses, muito semelhantes aos pássaros dourados no conjunto de
chinoiseries do retábulo-mor da Capela de Nossa Senhora do Ó em Sabará (assim como no mobiliário
nambam). Trata-se de um exemplo raro, porém elucidativo em nos indicar o uso de técnicas eruditas
na fatura dos oratórios domésticos [figura 261].
Por fim, junto à pintura decorativa, a pintura figurativa possui como função básica
complementar iconograficamente a devoção (representada comumente na imaginária) a qual o
oratório é dedicado. Tal complementação ocorrerá através da representação da efigie do santo ou
de um cenário de fundo. A efigie da figura sagrada, o santo de devoção complementar, figurará na
parte interna das portas, ou, muito especialmente, no fundo. Essa última ocorre principalmente
com as representações das cenas do Calvário, onde a Virgem Maria e São João evangelista são
representados pictoricamente ao lado de um crucificado de imaginária.604 Além das efigies dos
santos, também podem ser representados pequenos putti alados, ou ainda representações
cenográficas, onde se busca representar paisagens citadinas ou campestres. As paisagens citadinas
estão, geralmente, relacionadas ao tema da crucificação de Jesus Cristo, tendo a cidade de Jerusalém
ou ruínas no fundo, já as paisagens campestres estão relacionadas aos temas iconográficos da
Virgem Maria ou da Natividade de Cristo. Além desses dois modelos, é comum a representação de
nuvens algodoadas, sobretudo na altura do Cristo Crucificado, representando um resplendor
luminoso em atenção ao tema da ‘abertura para o céu’.
604São raros e incomuns os santos de devoção que possuem sua efígie representada no fundo do oratório, pois,
normalmente a temática da paixão de Cristo costuma ser privilegiada nesse espaço. Porém, em Ouro Preto temos dois
exemplos: um no Museu do Oratório com a figura de São João evangelista e um no Museu da Inconfidência com a
imagem de São Luís Gonzaga, ambos retratados no fundo do oratório.
338
Figura 262. Oratório doméstico. Séc. XIX. Minas Gerais. Museu do Oratório, Ouro Preto. Foto do autor (2019)
A pintura cenográfica, contudo, atingiu enorme expressividade em São João del-Rei, sob o
esmerado pincel do pintor Venâncio José do Espírito Santo. Ao olharmos frontalmente o oratório-
maquineta com o tema da Fuga para o Egito, podemos observar em claros contornos a vila de São
João del-Rei.
340
Figura 266. Detalhe do fundo (perspectiva da Vila de São João del-Rei durante o Oitocentos). Venâncio José do
Espírito Santo. Oratório doméstico/maquineta com tema de ‘A fuga para o Egito’. Séc. XIX. São João del-Rei – MG. Madeira
recortada, dourada e policromada. Museu de Arte Sacra, São João del-Rei. Foto: Marcos Luan (2019)
A vila de São João del-Rei como cenário para a passagem da Sagrada Família em fuga pode
ser compreendida a partir do termo Gesichte, história. Conforme nos elucida George Gutlich, o
termo é empregado para identificar a representação pictórica de uma localidade específica, “como
uma vila ou uma cidade”, onde a paisagem citadina alcançava o status de narrativa ou história
ilustrada.608 Nesse aspecto, o fundo pintado do oratório se conecta de maneira ímpar à cena da
fuga, pois auxilia primordialmente no entendimento da cena iconográfica, fazendo com que o
605 “Depois que partiram, um anjo do Senhor apareceu em sonhos a José e lhe disse: - Levanta-te, pega o menino e a
mãe, foge para o Egito e fica aí até que eu te avise, porque Herodes vai procurar o menino para matá-lo. Levantou-se,
pegou o menino e a mãe, ainda de noite, e se refugiou no Egito, onde residiu até a morte de Herodes. Assim se cumpriu
o que o Senhor anunciou pelo profeta: Chamei o meu filho que estava no Egito. Mateus 2:13-15. SCHÖKEL, Luís Alonso.
Bíblia do Peregrino. São Paulo: Editora Paulus, 2011, p. 2321.
606 Utilizamos o termo tal qual definiu Mircea Eliade em Traité d´histoire des religions (1949) e O sagrado e profano: a natureza
da religião (1959).
607 GUTLICH, George Rembrandt. Arcádia nassoviana: natureza e imaginário no Brasil holandês. São Paulo:
aspecto pedagógico da imagem enquanto transmissão das verdades da fé seja mais efetiva e,
claramente, mais próxima, tendo em vista que os temas e ‘verdades’ da história sagrada não se
encontram distantes, muito pelo contrário, podem ocorrer próximos da vila que habitam.
Além disso, é necessário frisarmos que, embora o fundo represente a vila de São João del-
Rei, a natureza se encontra privilegiada no cenário. A natureza, ou melhor, a floresta, as árvores, o
campo, representava um lugar de salvação para a cultura pagã europeia, posteriormente
cristianizada.609 Se considerarmos tal arquétipo da natureza bucólica como local de salvação,
perceberemos que o destaque dado às arvores e ao campo por Venâncio José do Espírito Santo no
fundo do oratório, se adequará perfeitamente ao contexto da fuga da Sagrada Família para o Egito,
que busca se refugiar do perigo encarnado na ordem do Rei Herodes ao ordenar a matança de
todos os meninos recém-nascidos, por significarem ameaça direta ao seu reinado. Não sabemos se
Venâncio, pintor colonial, tivesse acesso em sua época a tais temas e debates no campo da pintura
europeia, porém, a inspiração pode ter ocasionalmente advindo de sua pequena coleção de
estampas gravadas (como demonstramos em seu inventário no início deste capítulo) tendo em vista
que se tratava de um mecanismo tradicional de divulgação de modelos artísticos, como pudemos
observar no caso do pintor Caetano Luiz de Miranda. De todo modo, nunca saberemos de fato a
inspiração (claramente erudita) de Venâncio, porém, o mistério ainda envolto em torno do oratório
sanjoanense o torna ainda mais fascinante para novas interpretações.
Essa influência [...] não se verifica nos escultores da Comarca do Rio das Mortes,
revelados [...] em trabalhos recentes de pesquisadores da região, que, em conjunto,
formam uma espécie de subescola regional da imaginária mineira, desenvolvida a partir
de São João del-Rei e Tiradentes, e com ramificações no Sul de Minas. 611
A escultura em terracota trata-se de uma raridade em Minas Gerais, onde predominou o uso
da madeira, como o cedro. Curiosamente, no oratório doméstico da família Campos Coelho, que
atualmente pertence ao acervo da igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de São João
del-Rei, há um conjunto de três imagens também em terracota policromada, com a mesma
morfologia do conjunto da Fuga para o Egito, representando o ciclo da Boa Morte: a Dormição,
Assunção e Coroação de Nossa Senhora pela Santíssima Trindade, porém, a semelhança entre os
dois conjuntos ocorre com as figuras femininas, como podemos observar abaixo:
Figura 267. Valentim Corrêa Paes (atribuição). Virgem com o menino a cavalo
(Nossa Senhora do Desterro/cena da Fuga para o Egito). Séc. XVIII. São João
del-Rei – MG. Terracota policromada. Pertencente à peça: Venâncio José
do Espírito Santo. Oratório doméstico com tema de ‘A fuga para o Egito’. Séc.
XIX. São João del-Rei – MG. Madeira recortada, dourada e policromada.
Museu de Arte Sacra, São João del-Rei. Foto: Marcos Luan (2019)
Figura 268. Valentim Corrêa Paes (atribuição). Assunção de Nossa Senhora
(Nossa Senhora da Assunção). Séc. XVIII. São João del-Rei – MG. Terracota
policromada. Pertencente à peça: Oratório doméstico da família Campos Coelho.
Séc. XVIII-XIX. Minas Gerais. São João del-Rei – MG. Acervo da Igreja
da Ordem Terceira de São Francisco de Assis, São João del-Rei. Foto:
Marcos Luan (2018)
344
Tais características são muito bem visíveis na figura da Virgem com Menino na Fuga para o
Egito, o que não ocorre com a outra escultura, tendo em vista a homogeneidade facial causada pelo
desastroso ‘restauro’ a que foi submetida. Porém, podemos comparar as feições da primeira com a
expressiva imagem de Nossa Senhora da Piedade, atribuída ao escultor Valentim Corrêa Paes e
pertencente ao oratório público de Nossa Senhora da Piedade do Museu de Arte Sacra de São João
del-Rei, representada na figura 269.
Figura 269. Detalhe. Valentim Corrêa Paes. Nossa Senhora da Piedade. Séc. XVIII. São João del-Rei – MG.
Pertencente ao oratório público da antiga Cadeia. Museu de Arte Sacra, São João del-Rei. Foto: Marcos Luan (2019)
Podemos observar na bela expressão facial da imagem de Nossa Senhora da Piedade, obra
atribuída ao escultor Valentim Corrêa Paes, a mesma configuração do rosto: face de formato oval,
nariz retilíneo, boca delineada e de lábios proeminentes, além das finas sobrancelhas decaídas e o
característico queixo arredondado e quase duplo. Embora as expressões de imagens de terracota
não possuam a mesma vivacidade que as feitas em madeira, tendo em vista o caráter homogêneo
conferido pela matéria-prima quando não bem modelada, os traços do rosto possuem semelhanças
notáveis, o que nos assegura em atribuir – provisoriamente – o conjunto escultórico da Fuga para
345
o Egito, assim como do ciclo iconográfico da Boa Morte (no oratório da família Campos Coelho)
como sendo de autoria do escultor Valentim Corrêa Paes.
Valentim Corrêa Paes (? – 1817), de acordo com Olinto Rodrigues, nasceu na vila de São
José do Rio das Mortes (atual Tiradentes), exercendo o ofício de escultor na vizinha São João del-
Rei onde estabeleceu residência, pertencendo a irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte onde
atuou como tesoureiro entre os anos de 1782-1783.612 Realizou duas obras documentadas sendo, a
expressiva imagem de roca de Nossa Senhora da Assunção pertencente à irmandade da Boa Morte
da Matriz do Pilar de São João del-Rei e outra imagem, de mesmo tema, pertencente a irmandade
homônima para a igreja da Boa Morte de Barbacena. Durante o processo de levantamento de fontes
para a presente pesquisa, identificamos, através de análise morfológica e estilística, dez imagens do
escultor,613 entre elas, a curiosa e imponente Sant´Ana mestra também pertencente ao conjunto do
oratório da família Campos Coelho [figura 270].
612 FILHO, Olinto Rodrigues dos Santos. Características específicas e escultores identificados. In: COELHO, Beatriz
(org.). Devoção e arte – imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: EDUSP, 2017, p. 144.
613 Sendo elas: Nossa Senhora da Assunção (Barbacena – igreja de Nossa Senhora da Boa Morte); Nossa Senhora das
Mercês (Barbacena – capela de Nossa Senhora do Carmo); Nossa Senhora da Assunção (São João del-Rei – Matriz de
Nossa Senhora do Pilar); Nossa Senhora da Glória (São João del-Rei – Matriz de Nossa Senhora do Pilar); Sant´Ana
mestra (São João del-Rei – em oratório pertencente a igreja de São Francisco de Assis); Nossa Senhora da Piedade,
Santa Rita de Cássia, São José de Botas e um Crucificado (São João del-Rei – Museu de Arte Sacra) e um São Sebastião
(Resende Costa – em oratório pertencente ao Museu de Arte Sacra da Paróquia de Nossa Senhora da Penha de França).
346
A imagem de Sant´Ana mestra, recolhida em oratório doméstico, nos oferece através do seu
deslumbrante panejamento um elemento primordial para refletirmos acerca do trabalho conjunto
entre pintores e escultores em São João del-Rei. Atribuída igualmente ao escultor Valentim Corrêa
Paes, tendo em vista o rosto característico (com os elementos que elencamos acima), em seu
panejamento dourado e policromado observamos na decoração de gosto Rococó a presença de um
triplo buquê, composto por uma rosa, uma dália e uma flor estilizada semelhante às demais.
Percebemos de imediato que se tratava de uma repintura, porém, em uma observação mais
demorada e aproximada da imagem, observamos que eram parecidas com as flores presentes no
panejamento da imagem de Nossa Senhora da Piedade [figura 272] com talha também de autoria
de Valentim Corrêa Paes. De imediato, tendo em vista que a imagem de N. S. da Piedade ainda
possui policromia original (e com poucas intervenções), percebemos a semelhança com o fundo
pintado do oratório-nicho pertencente ao acervo da igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora
do Carmo, atribuída ao pintor Joaquim José da Natividade (1771-1841), como ilustrado abaixo nas
figuras 273 e 274.
347
Figura 273. Oratório-nicho. Séc. XIX. São João del-Rei – MG. Acervo da
Igreja da Ordem Terceira de Nossa Senhora do Monte Carmelo, São João
del-Rei. Foto do autor (2019)
Figura 274. Detalhe da pintura de fundo. Oratório-nicho. Séc. XIX. São
João del-Rei – MG. Acervo da Igreja da Ordem Terceira de Nossa
Senhora do Monte Carmelo, São João del-Rei. Foto do autor (2019)
O buquê de flores triplas, contendo uma rosa, uma dália e uma flor estlizada (similar a uma
margarida de paleta diversa) foi um modelo comum e recorrentemente encontrado nos fundos de
oratórios domésticos, camarins de retábulos e pinturas de forro, porém, encontraram grande
representabilidade sob o pincel de Manuel da Costa Ataíde e Joaquim José da Natividade. Como
esse último, Natividade, exerceu seu ofício tanto em São João del-Rei e região, assim como em toda
Comarca do Rio das Mortes, pensamos que tal ocorrência do modelo floral seja devido à sua
influência, fazendo com que se torne um elemento da cultura visual local.
Tanto nas flores representadas no panejamento de Sant´ Ana (com reticências, pois o
desastroso restauro as descaracterizou) e de Nossa Senhora da Piedade, assim como do fundo
pintado do oratório da igreja de Nossa Senhora do Carmo que comparamos, podem ser
classificadas como sendo de autoria (ou de aprendizes) do pintor Joaquim José da Natividade em
sua fase de transição. Para a historiadora Kellen Silva, a trajetória do pintor pode ser compreendida
através de cinco fases estilísticas: aprendizado, fase de fixação, fase de transição, de maturação e
348
por fim, fase de plenitude: o momento de superação formal do artista.614 A visualidade das flores
do panejamento das imagens supracitadas e do fundo do oratório se assemelha à das flores
executadas por Natividade em sua fase de fixação, quando o artista realizará obras em São João
del-Rei e entorno. As flores executadas nessa fase, se comparadas àquelas produzidas durante a
fase de transição (quando pintou os retábulos da capela do Divino Espírito Santo de São Vicente
de Minas), ainda não possuem a vitalidade e representabilidade características de Natividade, no
entanto, podem ser atribuídas ao pintor através das seguintes características:
[...] flores, amplas e delineadas em uma composição triangular, onde quase sempre há a
presença de um miolo de cor azul pontilhado por pingos de tinta branca e preenchido
pela variação tonal do azul escuro ao claro com forma semelhante a escamas saltitantes.
Esse núcleo se destaca abaixo das pétalas brancas, preenchidas por uma variação tonal
que as transformam em pequenos conjuntos de coroas. [...] A mesma coisa acontece com
as flores vermelhas, que acompanham as azuis, tornando-se assim um de seus pares. Essa
composição dual apresenta variações de mais de dois tipos de reprodução floral. Um
pode ser identificada facilmente como uma rosa quase completamente desabrochada e a
outra, pode ser associada a um cravo ou a uma dália, que varia entre as cores azul e
vermelha [...].615
Por fim, independente dos vestígios florais nos panejamentos e no fundo pintado do oratório
da igreja do Carmo serem obras diretas ou não do pintor, o que podemos concluir é que são de
fato obras com influência direta da identidade visual de Natividade, o que nos indica o trabalho de
uma oficina que compartilhava modelos ornamentais, seja na pintura, seja no panejamento: eis o
panorama de uma ‘cultura visual’, ou seja, de um determinado gosto compartilhado em determinada
região, como apontado pela autora.
614 SILVA, Kellen Cristina. O caminho das flores: estudo iconológico sobre a “Escola de Artes do Rio das
Mortes” e o modelo intencional de encomenda – Minas Gerais (c. 1785-c. 1841). Tese de doutorado. Faculdade
de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2018, p. 190-193.
615 SILVA, Kellen Cristina. op. cit. p. 218.
349
Ao compararmos a figura de São João evangelista da porta do oratório [figura 278] com a
figura de mesma iconografia de autoria do próprio Manoel Victor de Jesus, executado na sacristia
da Irmandade do Santíssimo Sacramento da Matriz de Santo Antônio de Tiradentes, [figura 279]
pudemos observar com maior clareza as semelhanças e dessemelhanças entre os dois modelos.
onde a testa é alongada e livre de cabelos, como é costume em suas figuras humanas como podemos
verificar nos modelos faciais acima ilustrados nas figuras 280 e 281. Além disso, se observarmos a
volumetria corporal, podemos notar que o apóstolo possui um corpo alongado, porém sem as
características próprias de Manoel Victor, como o formato esguio do corpo, do panejamento
volumoso e esvoaçante, além do posicionamento dos pés que, comumente, sempre são
posicionados um a frente e outro atrás, indicando uma ideia de movimento, como podemos
observar no oratório de esmoler a ele atribuído com os anjos Custódio e Gabriel, o arcanjo [figura
282].
Figura 282. Manoel Victor de Jesus. Oratório de esmoler. Séc. XVIII. Vitoriano Veloso (atual Bichinho – MG). Acervo
da Capela de Nossa Senhora da Penha de França, Bichinho, Prados. Foto gentilmente cedida por Luciana
Giovaninni.
Diante disso, podemos atestar com toda certeza que o apóstolo representado na porta do
oratório analisado não é obra de Manoel Victor, porém, possui sua influência. Embora as
dessemelhanças sejam maiores em relação às semelhanças, a curiosa morfologia facial possui
denotada proximidade em relação às faces executadas pelo pintor, o que nos leva a supor que se
trata de um aprendiz que, mesmo não copiando inteiramente o pintor, replicou no rosto (um dos
elementos mais característicos de Manoel Victor) as características primordiais de seu mestre.
De acordo com Olinto Rodrigues, Manoel Victor de Jesus possuía a patente militar de alferes
e exercia o ofício de “professor de pintura”, além de ter trabalhado em São João del-Rei no passo
da Rua Direita, próximo a igreja do Carmo, tendo realizado obras de policromia de imagens para a
352
irmandade da Boa Morte da Matriz do Pilar.618 Tais informações solidificam, de certa forma, a
possível influência na visualidade dos artistas e artífices locais que pintavam e policromavam
oratórios domésticos na região, o que confirma a questão aqui já bem apresentada acerca da
formação de uma visualidade própria da região, a supracitada ‘cultura visual’ que teve em Manoel
Victor de Jesus, Joaquim José da Natividade e Venâncio José do Espírito Santo como
representantes da ‘escola de artes do Rio das Mortes’.
618 FILHO, Olinto Rodrigues dos Santos. Manoel Victor de Jesus, pintor mineiro do ciclo Rococó. In: Revista
Barroco, n. 12. Belo Horizonte: 1982, p. 232-235.
619 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A escola mineira de imaginária e suas particularidades. In: COELHO,
Beatriz (org.). Devoção e arte – imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: EDUSP, 2017, p. 25.
353
620 RODRIGUES, Lucas. Um conjunto singular: o oratório da família Campos Coelho e seus escultores como pista de
uma escola e de múltiplas oficinas – O caso do crucifixo central. In: Anais do VIII Encontro de Pesquisa em
História da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo Horizonte: 2019, p. 1584.
621 O estudo morfológico do referido crucificado poder ser consultado no artigo acima referenciado.
622 Como bem afirmou Jeaneth Xavier ao afirmar que os oratórios se encontravam entre os bens de primeira
necessidade para o exercício da religiosidade católica na Minas colônia: ARAÚJO, Jeaneth Xavier de. Os artífices do
sagrado e a arte religiosa nas Minas Setecentistas – Trabalho e vida cotidiana. São Paulo: Editora Annablume,
2013, p. 86.
623 Cx 360: Inventário de Joaquim Francisco de Assis Pereira. São João del-Rei, 1893. | AIPHAN/SJDR
624 FILHO, Olinto Rodrigues dos Santos. Características específicas e escultores identificados. In: COELHO, Beatriz.
presença de oficinas locais que, possivelmente, deveria ter acesso a modelos ornamentais e
figurativos em circulação na região de São João del-Rei.625
De todo modo, o que podemos apreender diante de todos os vestígios acima tratados é que,
a partir dos oratórios domésticos, pudemos perceber o intercâmbio de modelos ornamentais e
figurativos, além de notarmos o trabalho conjunto de artistas do campo da pintura e da talha, o
que nos aponta mais uma vez para a denotada polivalência técnica que tais artistas possuíam. Além
disso, através do destaque dado as obras produzidas na região de São João del-Rei e entorno,
pudemos observar através do acervo de oratórios a marca da cultura visual compartilhada, onde a
influência de um artista sobre o outro é perceptível, nesse sentido, reitera a tese da existência de
oficinas locais que, unidas sob a identidade estilística de artistas como Manoel Victor de Jesus e
Joaquim José da Natividade, além de obras compartilhadas com Valentim Corrêa Paes (e também
o referido Mestre do Cajuru) formaram na época uma ‘escola’ regional.
Tal ideia de ‘escola’, no entanto, não se refere somente ao contexto da produção conjunta
entre pintores e escultores na Comarca do Rio das Mortes, mas também a outras localidades de
Minas, como pudemos demonstrar com os oratórios oriundos de Ouro Preto e Santa Bárbara, o
que contribui para pensarmos a manufatura dos oratórios domésticos como pertencentes a uma
grande e heterogênea ‘escola mineira’ de oratórios, com variações regionais, como a do Rio das
Mortes. O exemplo mais característico de uma produção tipicamente mineira ocorreu com a
tipologia dos oratórios-lapinha, que abordamos a seguir.
625Os discípulos de Assis Pereira atingiram as primeiras décadas do século XX, o que explica atualmente a tradição
dos santeiros locais.
355
O segundo modelo é constituído por uma caixa retangular, emoldurada por uma estrutura
composta de madeira recortada e entalhada, contendo dois nichos (superior e inferior) e possuindo
também denotada verticalidade [figura 287]. A variante desse modelo é constituída por um
pequeno nicho, possuindo formas que variam da verticalidade para a horizontalidade [figuras 288-
289]. Tais modelos se relacionam com a tipologia portuguesa da maquineta, um oratório com faces
fechadas em vidro plano, com estrutura vertical ou horizontal e que se relacionam diretamente ao
estilo Dom José I.
356
Contudo, estilisticamente falando, o que os vincula ao corpus dos oratórios de estilo Dom
José I? Como afirmamos no decorrer do presente capítulo, circularam em Minas Gerais oratórios
advindos diretamente de Portugal. Tais oratórios eram pertencentes ao estilo Dom José I, o que
nos leva a considerar (como já afirmamos) que tais exemplares serviram de inspiração para a
replicação de modelos estruturais e ornamentais na fatura local. Ao confrontarmos estilisticamente
os oratórios do estilo Dom José de fatura portuguesa com os oratórios-lapinha, identificamos, ao
todo, quatro elementos formais: o primeiro, a forma trapezoidal; o segundo, o uso do vidro plano;
o terceiro, a utilização da tripla palmeta como elemento decorativo central e o quarto, a
ornamentação do coroamento (parte superior). Destacamos, porém, dois elementos primordiais: a
tripla palmeta e o uso do vidro plano.
357
Portugal, sendo fabricado artesanalmente em oficinas locais até meados do século XIX, como
aponta o interessante estudo do historiador José Amado Mendes em A história do vidro e do cristal em
Portugal (2002).626 Porém, na América Portuguesa, o vidro plano era raro e escasso, tanto na
arquitetura como no mobiliário. Quem nos aponta a problemática é a conservadora-restauradora
Maria Alice Castello Branco.
O modelo que deu origem à tipologia mineira foi, possivelmente (como apontamos) um
exemplar português, tendo em vista a sua concepção como maquineta, que, “como as vitrines, eram
envidraçadas”.628 A partir do modelo europeu, o artífice mineiro que desenvolveu a nova tipologia
também o concebeu, desde o princípio, com a presença do vidro plano, o que nos indica o acesso
relativamente fácil à matéria-prima, tendo em vista que a disponibilidade de vidro plano era
condição sine qua non para a produção em série dos oratórios-lapinha.629
A disposição do vidro plano nos oratórios-lapinha ocorreu de duas formas. No modelo com
três faces, o vidro era fixado com “massa à base de cera de abelha”, no outro (que possuía apenas
a face frontal única), o mesmo era fixado através de sulcos esculpidos no corpo do oratório.630 A
partir disso, é possível constatar a importância do vidro, tendo em vista que se tratava de um
elemento formal próprio da tipologia. O vidro plano no Brasil começa a ser importado do Reino
somente a partir da primeira década do século XIX, precisamente no final da década, no ano de
1808.631 Tal fato ocorre após a transferência da família Real e a corte portuguesa para o Rio de
Janeiro, ocasião em que se fez necessário modernizar a nova capital. Entre os artigos de luxo,
figurava o vidro plano. De acordo com Castello Branco, citando Pedro Telles, a primeira fábrica
de vidro no Brasil só será fundada em 1882,632 sendo assim, é possível afirmar que o vidro plano
626 MENDES, José Amado. A história do vidro e do cristal em Portugal. Lisboa: INAPA, 2002, p. 36-38.
627 CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. Os oratórios mineiros em estilo Dom José I e a utilização do
vidro plano no Brasil: a importância da análise dos materiais na datação das obras religiosas In: Revista Imagem
Brasileira, n. 5. Belo Horizonte, 2009, p. 304.
628 CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. op. cit. p. 304.
629 CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. op. cit. p. 305.
630 CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. op. cit. p. 304
631 CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. op. cit. p. 308.
632 TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia no Brasil, séculos XVI a XIX. Rio de Janeiro: Editora
LTC, 1984, p. 56 Apud CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. op. cit. p. 308.
359
Levando em consideração tal panorama, compartilhamos da tese defendida por Maria Alice
Castello Branco, e a reiteramos, de que os oratórios-lapinha não foram produzidos a partir da
segunda metade do século XVIII, como atestam muitos historiadores e fichas catalográficas de
museus, mas a partir do final da primeira década do século XIX alcançando data longeva, tendo
em vista que as condições materiais da época assim o permitiam.634 Contudo, mesmo assim, isso
não interfere na categorização estilística dos oratórios-lapinha. Continuam, portanto, sendo obras
vinculadas ao Rococó religioso, demonstrando inclusive a vitalidade e a intensidade do estilo na
Minas Oitocentista. Tal vitalidade e intensidade de sua manufatura pode ser demonstrada através
do levantamento realizado para a presente pesquisa.
633 Aqui, o exemplo do comércio mineiro com o Rio de Janeiro pode ser atestado através do caso específico de São
João del-Rei, porém, de acordo com o autor, o panorama encontrado na “Princesa do Oeste” também pode ser
aplicado – guardadas as proporções – as demais localidades de Minas Gerais. GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro.
A princesa do Oeste e o mito da decadência de Minas Gerais – São João del-Rei (1831-1888). São Paulo:
Annablume, 2002.
634 E aqui, parece que nos afastamos metodologicamente da História da Arte para averiguarmos a datação dos nossos
objetos. Por vezes se faz necessário desviar do ‘primado do olhar’ para interpretarmos historicamente da melhor
maneira possível a obra que temos diante de nós. Nesse aspecto, a análise dos materiais e técnicas utilizados auxiliam
muitíssimo a Análise Formal, situando as obras em um contexto historicamente verossímil. Não nos esqueçamos que
Erwin Panofsky, mesmo afirmando categoricamente que o uso de artifícios de análise química dos materiais, assim
como da verificação da matéria-prima utilizada, não faça parte das questões próprias da História da Arte, mesmo assim
elas são importantes, pois “permitem ao historiador da arte ver mais do que poderia fazê-lo sem eles”. Sendo assim, a
interdisciplinaridade é o caminho. Ver: PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Editora
Perspectiva, 1991, p. 35.
360
635Não os contabilizamos por motivações de dúvida acerca da procedência das peças, porém, ao longo dos três anos
de pesquisa, pudemos rastrear cerca de 30 oratórios em leilões nacionais e internacionais.
361
produção de natureza massiva, os oratórios-lapinha não são de todo iguais pois, ao confrontarmos
a série de exemplares lado a lado, pudemos observar diferenças sutis (e outras nem tanto) entre os
exemplares analisados. Tais diferenças ocorrem, por exemplo, na plástica da ornamentação
entalhada (que possui variações), na ornamentação pictórica com diferentes soluções formais, na
disparidade iconográfica e nos modos de representação das formas díspares. Isso indica que tais
oratórios, embora produzidos de maneira massiva, ainda foram concebidos sob a lógica do
artesanal e do processo individualizado. Nesse sentido, sua produção em série não pode ser
enquadrada dentro de uma lógica de reprodutibilidade técnica. No entanto, os modelos
desenvolvidos na tipologia nos oferecem ainda algumas outras possibilidades de leitura.
Se nos basearmos no que reza a tradição oral, podemos identificar através dos elementos
estruturais a identidade das duas escolas. Segundo relato oral, os oratórios produzidos em São João
del-Rei possuem na estrutura a coluna torsa como elemento de distinção. Como podemos observar
nas ilustrações abaixo, vemos nos vértices de separação das faces envidraçadas uma delicada coluna
torsa, muito semelhante às usadas nos retábulos, sendo unidas a uma continuação de coluna,
porém, cilíndrica e sem nenhuma forma ou ornamentação específica. Em São João del-Rei, há um
exemplar que contém a coluna torsa em sua composição estrutural, e muitos outros exemplares
636Olinto Rodrigues dos Santos Filho chegou a nos indicar os estilemas próprios de cada oficina regional, porém,
durante o processo de pesquisa bibliográfica e de campo para a presente pesquisa, não encontramos nenhuma
referência de época que sustente tal informação. Além de São João del-Rei e Santa Luzia, há também menção a Sabará
como polo produtor de tais oratórios.
A informação de que os oratórios-lapinhas são oriundos de Santa Luzia e Sabará, entre muitas publicações com a
informação, ver: IEPHA – MG. Dossiê para registro das Folias de Minas do estado de Minas Gerais. Belo
Horizonte, 2016, p. 42.
362
também o possuem. Porém, não há sequer nenhum indício formal ou documental que viabilize a
tese de que a ‘coluna torsa’ seja um elemento oriundo da ‘oficina sanjoanense’.
‘Oficina sanjoanense’
‘Oficina luziense’
Em termos de devoção, uma última questão deve ser merecedora de nossa atenção: a
iconografia cristã representada através da imaginária. As belas e miniaturais imagens executadas em
pedra talco nos indicam uma tipificação iconográfica muito curiosa e digna de nota. Nos sessenta
e três exemplares observados para esta pesquisa (acima elencados) observamos uma curiosa
iconografia. Em destaque no centro, um Cristo crucificado, sendo ladeado, normalmente, por
Nossa Senhora da Conceição e São José de Botas. Logo abaixo, Sant´Ana mestra ao centro sendo
acompanhada nos lados direito e esquerdo por outros santos, comumente São Sebastião e São João
evangelista. Tais invocações ocorrem, via de regra, no nicho superior. Já no nicho inferior, a dita
lapinha, predomina o tema da Natividade.
A cena mais invocada é da visita dos Reis Magos ao Menino Jesus, com a presença de Maria
e José com os animais: uma típica cena de presépio. Imaginamos que, devida a essa predominância
do tema do nascimento de Cristo, é que tais oratórios receberam a alcunha de ‘lapinha’, termo
expressado nos Sermões do Padre Bartolomeu do Quental, da Congregação do Oratório, quando
diz: “Guiemonos por esta estrela, que a fé dos magos os guiou para a lapinha, está da lapinha nos chamando, vao
por todas as estrelas do mundo a hum canto, aonde está, e esta estrela até os magos, sendo do Céo, à sua vista parou:
Usque dum venies, staret supra ubi erat puer...”.638
637 Em outro texto de Maria Alice Castello Branco (anterior a sua tese de que os oratórios-lapinha eram obras próprias
do século XIX) afirma: “Embora não tenham sido encontrados, ou não existam, documentos e fontes diretas sobre os
locais e as circunstâncias de sua produção, sabe-se que eram próprios da região de Santa Luzia. O estudioso da arte
sacra brasileira Eduardo Etzel, entretanto, acrescentou outras regiões produtoras: Ouro Preto e Serro do Frio (atual
Serro). Tanto Etzel quanto o historiador Luiz Mott, ao mencionarem essa tipologia em ensaios sobre a arte sacra
brasileira, comentam sobre o enorme desenvolvimento da produção desses oratórios em Minas Gerais, que chegou a
exportá-los para outras capitanias, especialmente para a Bahia”.
A autora menciona o ensaio “Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu” de Luiz Mott e o livro “Imagem
Sacra brasileira” de Eduardo Etzel. Ver: CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. Oratórios mineiros D.
José I: o tema cristológico nos objetos de devoção familiar produzidos entre o fim do século XVIII e início do XIX.
In: Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano. 2008, p. 1056-1061.
638 Padre Bartolomeu do Quental. Sermoens do Padre Bertholomeu do Qvental, da Congregação do Oratorio,
pregador de sua majestade. Segunda parte. Lisboa: na Officina de Miguel Deslandes, anno de 1694, p. 90. |
BNP/PT
364
[...] nos lugares mais próximos de Jesus, estão Nossa Senhora da Conceição, São José de
Botas e Sant´Ana Mestra, ou seja, a Sagrada Parentela. Habitualmente a representação
plástica da Sagrada Parentela se refere à vida de Jesus menino. Entretanto, nos nichos
centrais dos nossos oratórios, esse tema está imbricado ao tema da crucificação e, por
isso, aparece de forma subliminar. Isto porque sempre que nos deparamos com as
imagens de Jesus, Maria, José e Sant´Ana reunidas em uma composição, independente
das invocações, imediatamente as associamos à Sagrada Família. 639
Supostamente, essa licença poética pode ser relacionada ao fato das representações nesses
oratórios não possuírem responsabilidade com a liturgia e, assim, poderem sintetizar dois
momentos da vida de Jesus Cristo extraídos de fontes diversas: um no Novo Testamento,
o outro dos Evangelhos apócrifos.640
639 CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. op. cit. p. 1058-1059.
640 CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. op. cit. p. 1059.
365
366
Nesse momento, por fim, é chegada a hora de nos afastarmos da forma e analisarmos o
conteúdo. Até o momento, buscamos compreender o desenvolvimento histórico e simbólico dos
oratórios domésticos devocionais em seu contexto social, assim como a manifestação das formas
artísticas e sua estética como base e suporte para as imagens cristãs ao longo de sua trajetória na
história da arte europeia e, especificamente, na Minas Gerais dos séculos XVIII e XIX. Sendo
assim, o nosso olhar se volta derradeiramente para a iconografia representada nos oratórios
mineiros, a fim de compreender o sentido simbólico expressado através da pintura e da imaginária
com a efígie da entidade ali venerada.
Sendo assim, se faz necessário estabelecer alguns critérios teóricos e metodológicos para
realizamos uma leitura mais acertada e historicamente plausível. Para tanto, ao analisarmos
iconograficamente as imagens ali representadas, elegemos como diretriz teórica básica e
imprescindível o denominado Método Iconológico, teorizado por Erwin Panofsky (1892-1968).
Como expressado nos capítulos anteriores, buscamos através do método iconológico compreender
os oratórios domésticos através de suas ‘camadas’ compositivas. Ao realizarmos uma leitura pré-
iconográfica, buscamos através da Análise Formal entender a manifestação e o uso das referências
estilísticas da arte europeia nos oratórios domésticos em Minas Gerais, identificando seu
desenvolvimento formal ao longo do tempo através da leitura dos “motivos artísticos”.641
641 PANOFSKY, Erwin. Significado nas artes visuais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1991, p. 50.
642 PANOFSKY, Erwin. op. cit. p. 52.
367
Partindo desse pressuposto teórico, utilizaremos o termo ‘corte celeste’, para nos referirmos
ao conjunto de imagens dispostas no corpo dos oratórios domésticos. Entendemos por ‘corte
celeste’ a reunião de imagens (pictóricas ou esculturais) que representam os principais personagens
da devoção católica como Jesus, Maria, os santos e anjos. Segundo Luiz Mott, foi comum na
América Portuguesa como um todo a prática do devoto montar, em seu nicho privado ou oratório
doméstico, sua ‘corte’ celeste pessoal, ou seja, as invocações sagradas de seus santos prediletos e
de proteção particular.643 Tal prática, fruto do pieguismo herdado de Portugal, se configurou como
uma prática devocional essencialmente pessoal e sentimental, com forte carga afetiva. Em Minas
Gerais especificamente, os princípios norteadores da relação entre o devoto e o sagrado
(representado através das imagens) se encontram no campo da “afetividade, da intimidade e da
troca”.644 A partir disso, podemos considerar que na Minas colonial e Imperial as devoções
cultuadas nos oratórios domésticos assumiram, de certa maneira, um duplo caráter: o primeiro, de
representação, onde funcionaram como manifestações das ‘identidades’ do ‘nacionalismo’
dinástico/monárquico português; já o segundo caráter, assume o aspecto da identificação dos
santos com as necessidades particulares dos indivíduos em seu contexto histórico.
Queremos com essa afirmação estabelecer que a interpretação aqui desenvolvida levará em
consideração a perspectiva da afetividade devocional em consonância com os anseios da vida
cotidiana dos devotos que projetavam nessas imagens, e no que elas representavam, uma ideia de
poder sobrenatural que poderia suprir a incessante busca por soluções e respostas imediatas para
as demandas materiais e espirituais que se apresentavam na vida do fiel. Tal perspectiva vai de
encontro ao que Alphonse Dupront defende quando diz que “em sua materialidade, a imagem
alcança um sentido duplo no tocante às práticas de devoção e piedade: por um lado, estabelece a
distância, logo recuo e veneração; por outro, acessível, ela se oferece ao contato, por meio de gesto
físico e sublimado de unidade”.645
643 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: NOVAIS, Fernando A.; MELLO E
SOUZA, Laura de (org.) História da vida privada no Brasil – Cotidiano e vida privada na América Portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 173.
644 MATTA, Sérgio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais,
Espaço doméstico, devoção e arte: A construção histórica do acervo de oratórios domésticos brasileiro –
séculos XVIII e XIX. São Paulo: Alameda, 2014, p. 199.
368
contexto muito anterior a Trento. Na Idade Média, o culto aos santos (e suas imagens) alcança
notoriedade no campo devocional cristão. No início do cristianismo medieval, o uso das imagens
(ícones) recebe uma justificativa teológica com base nas escrituras sagradas ao indicar que Deus ao
criar a humanidade o fizera à sua imagem e semelhança.646 A tese em defesa da imagem como
lembrança e também manifestação do sagrado (no contexto das disputas teológicas entre as igrejas
Ocidental e Oriental) foi, de acordo com Gombrich, essencialmente importante para a história da
arte.647
[...] as imagens não eram apenas úteis de um ponto de vista didático – as imagens eram,
acima de tudo, sagradas. Os argumentos com que procuraram justificar essa opinião eram
tão sutis quanto os usados pela parte contrária: “Se Deus, em sua misericórdia, pôde
revelar-se aos olhos dos mortais na natureza humana do Cristo”, argumentavam eles,
“por que não estaria também disposto a manifestar-se em imagens? Não adoramos as
imagens por si mesmas, como fazem os pagãos. Adoramos Deus e os santos através das
imagens ou além delas.”648
A Igreja, que possuía por séculos uma base já definida no que concerne à questão das
imagens, vê as representações sagradas mais uma vez ameaçadas por um novo iconoclasmo,
representado dessa vez pela Reforma Luterana. Em resposta, o concílio tridentino reafirma e
reforça a tradição das imagens, exortando claramente que:
[...] com as pinturas, e outras semelhanças se instrue, e confirma o povo, para se lembrar
e venerar com frequência os artigos da fé, e que também de todas as sagradas Imagens se
recebe grande fructo, não só por que se manifestão ao povo os benefícios, e mercês, que
Christo lhes concede, mas também por que se expõem aos olhos dos fiéis, os milagres,
que Deos obra pelos santos, e seus saudáveis exemplos: para que por estes dem graças a
646 “E Deus disse: Façamos o homem à nossa imagem e semelhança [...] E Deus criou o homem à sua imagem; à
imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. GÊNESIS 1, 26-27. SCHÖKEL, Luís Alonso. Bíblia do
Peregrino. São Paulo: Paulus, 2011, p. 17.
647 GOMBRICH, E. H. A história da arte. Rio de Janeiro: Editora LTC, 2012, p. 137-138.
648 GOMBRICH, E. H. op. cit. p. 138.
649 GOMBRICH, E. H. op. cit. p. 138.
650 HUIZINGA, Johan. O outono da Idade Média. São Paulo: Cosac & Naify, 2013, p. 247.
369
Deos, ordenem a sua vida, e costumes á imitação dos santos, e se excitem a adorar, e
amar a Deos, e exercitar piedade. [...]651
651 IGREJA CATÓLICA, Concílio de Trento, 1545-1563 – O Sacrosanto e Ecumênico Concilio de Trento em
Latim e Portuguez. Tradução e organização por Jean-Baptiste Reycend. Lisboa: Officina patriarca. De Francisco Luiz
Amendo, 1781, Tomo 2, p. 347-357.
652 NORBERG-SCHULZ, Christian. Baroque Architecture. Nova York: Rizzoli; Milão: Electa, 1986, p. 8. [tradução
nossa]
370
Figura 298. Jean Fouquet. La trinité et tous les saints. Heures d´Etienne Chevalier. Iluminura. Séc. XV. França. Museé
Condé, Chantilly
Podemos observar em destaque três homens de feições idênticas, sentados num trono-
cadeiral gótico, no lado direito, uma mulher representada em perfil, entronada e disposta quase no
mesmo nível das figuras masculinas. Todos se encontram emoldurados por uma claridade dourada,
circundados por figuras aladas representadas por diferentes cores. Nos lados direito e esquerdo
temos uma profusão de figuras masculinas e femininas, assentados em fileiras lineares e
ascendentes. Centralizando a cena, uma ‘multidão’ de homens contemplam os personagens em
destaque no halo dourado, em posições corporais que denotam sentidos de reverência, respeito e
contemplação.
Temos diante de nós uma cena apocalíptica, uma multidão de homens e mulheres, os santos
(bem-aventurados) que adoram ininterruptamente a Santíssima Trindade em destaque. O Deus
trino (Pai, Filho e Espírito Santo) é representado de maneira igualitária, sendo perceptível a
diferença entre as três pessoas da Trindade através do detalhe da hierarquização do posicionamento
das mãos que seguram o orbis terrarum. Estando presentes as quatro figuras do tetramorfo, a águia,
o leão, o touro e o anjo (significando respectivamente os evangelistas João, Marcos, Lucas e
Mateus), temos muito próxima à figura da Trindade a Virgem Maria, o que destaca a sua posição
em relação à hierarquia dos santos. Nas laterais, temos a presença das virgens, dos mártires, dos
371
doutores e membros do clero, dos profetas e apóstolos; no centro, a multidão de santos homens
entre os quais podemos identificar através das vestimentas São Francisco de Assis e Santo Antão.653
Diante dessa representação da ‘corte celeste’, podemos observar o esquema formal que
perdurará por séculos na imagética cristã. A hierarquização dos personagens nos indica a sua
importância, em posicionamento de grau ascendente em relação ao ser supremo representado pela
Trindade. Depois da figura de Deus Pai, Filho (Jesus Cristo) e o Espírito Santo, o personagem de
maior importância e destaque é a Virgem Maria. Logo depois temos as virgens, os mártires, os
doutores da Igreja e membros do clero, os apóstolos e profetas, assim como os demais santos.
Além desses, os anjos também figuram hierarquizados de acordo com a sua proximidade com
Deus: Arcanjos, Anjos, Querubins, Serafins, Potestades (embora a hierarquia não se encontre
totalmente representada na iluminura de Jean Fouquet).
No Barroco, a hierarquização da corte celeste nas representações ainda será mantida, porém
com maior diluição e liberdade formal em relação aos esquemas imagéticos mais rígidos como
observados nas imagens medievais e renascentistas. A obra de Peter Paul Rubens, A Virgem e o
menino entronizados com santos (1627-8) [figura 299] pode ser bem representativa ao demonstrar a
composição notadamente hierárquica dos personagens, contudo, o posicionamento dos mesmos
nos indicam a liberdade na representação do tema, ao fazer com que os santos circulem como
amigos em torno da figura da Virgem com o menino Jesus ao colo. A hierarquia é mantida, porém
outros personagens são realocados na escala de importância. Um exemplo dessa realocação de
importância ocorre com a figura de São José, esposo de Maria, relegado a um papel secundário
durante toda a Idade Média (sendo mencionado comumente nas cenas do ciclo da infância de
Jesus), sendo reabilitado em igual importância dentro da iconografia da sagrada parentela. Na obra
de Rubens, vemos São José ao lado da Virgem, em meio aos demais santos, como São João Batista,
Pedro e Paulo e outros.
653A referência imagética de tal cena possui como base a passagem do livro do Apocalipse de São João onde
observamos a seguinte descrição: “[...] Depois vi uma multidão enorme, que ninguém podia contar, de toda nação,
raça, povo e língua: estavam de pé diante do trono e do Cordeiro, vestidos com vestes brancas e com palmas na mão.
Gritavam com voz potente: A vitória ao nosso Deus, sentado no trono e ao Cordeiro. Todos os anjos se haviam posto
de pé ao redor do trono, dos anciãos e dos quatro seres vivos. Caíram de bruços diante do trono e adoraram, dizendo:
Amém, louvor e glória, saber e ação de graças, honra e força e poder ao nosso Deus pelos séculos dos séculos. Amém.”
APOCALIPSE 7, 9-12 In:. SCHÖKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2011, p. 2953-2954.
372
Figura 299. Peter Paul Rubens. A Virgem e o Menino entronizados com santos. 1627-8. Óleo sobre tela. 83,2x59,4cm.
Museum of Fine Arts, Boston
Tal liberdade de composição imagética adquirida pelo Barroco nas representações da ‘corte
celeste’ garantiu um maior dinamismo posicional das imagens, porém a hierarquização iconográfica
se manteve. Tal dinamismo formal e hierárquico pode ser encontrado nos oratórios domésticos
mineiros, por isso, analisaremos igualmente em ordem hierárquica: em primeiro lugar, a iconografia
cristológica, seguida pela iconografia mariana e por último, a iconografia dos santos. Para isso, nos
valeremos da primordial obra do historiador da arte Hector Schenone (1919-2014), Iconografia del
arte colonial. Organizada em tomos, Schenone nos indica que para identificarmos corretamente a
identidade dos santos, representados através da arte (pintura ou escultura), devemos reconhecer
primeiramente os seus atributos, os traços faciais e tipos físicos, a indumentária, a história das
ordens religiosas e seus símbolos heráldicos, além da própria biografia do santo identificado, sua
hagiografia. Tal procedimento de leitura iconográfica, deveras complexo, será um norteador para a
identificação e interpretação das imagens que se encontram nos oratórios domésticos, a fim de
compreendemos o simbolismo expressado pela imagem e sua possível relação com o meio social
que a originou.654
654Tal desvio, de uma história da arte para uma história social da arte, se faz necessário para compreendermos questões
de interpenetração entre a imagem e o homem (e o seu meio) que consome essa imagem enquanto objeto devocional.
373
Durante esta pesquisa, percebemos alguns exemplos que, de imediato, não podem ser
percebidos. Porém, com a pesquisa minuciosa das fontes tridimensionais concatenadas com
documentos - correlatos às obras estudadas - de todo gênero (como inventários, periódicos e
principalmente registros fotográficos) é que tais intervenções puderam ser identificadas. Antes de
demonstrarmos alguns exemplos, gostaríamos de salientar que tais intervenções, muitas vezes
condicionadas pelo ‘espírito da praticidade’ ou ainda da ‘maquiagem’ museológica (ou dos
caprichos do colecionador particular) foram uma constante durante o século XX, principalmente
nos acervos cujas obras são, majoritariamente, peças de arte sacra.
No entanto, a vertente que aqui prevalecerá se encontra consoante com a história da arte, com a análise iconográfica
aliada a Análise Formal.
374
As semelhanças entre as duas imagens de vestir são várias. Notamos a semelhança entre os
paramentos (exceto a sobrepeliz), a expressão facial, o modo de representação dos cabelos e o
posicionamento e volumetria do Menino Jesus: se trata da mesma imagem. Tal descoberta nos
inquietou e o caso nos instigou a compreender o processo de aquisição das peças de arte sacra por
parte do Museu Regional de São João del-Rei. Os oratórios domésticos (enquanto peças de
mobiliário sacro) foram sendo coletados ao longo do século XX. Retirados de seus locais originais,
foram sendo incorporados a coleções privadas ou institucionais, principalmente por museus
motivados pelo impulso da política de salvaguarda patrimonial, cujo interesse em objetos artísticos
do período colonial aumentou significativamente sobretudo com a criação do SPHAN - Secretaria
do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional - em 1937.
375
Assim como em Ouro Preto, Mariana e outras cidades do circuito histórico de Minas Gerais,
São João del-Rei possuiu um rico acervo original de oratórios domésticos. A maioria deles foram
deslocados e hoje se encontram em vários museus do Estado, principalmente em Ouro Preto, no
Museu da Inconfidência e Museu do Oratório. O acervo reunido no Museu Regional de São João
del-Rei foi fruto de intensa pesquisa in loco dos agentes do Patrimônio Histórico e Artístico
Nacional, sobretudo de Rodrigo Mello Franco de Andrade, o primeiro diretor do SPHAN. Com
sede no antigo casarão do Comendador João Antônio da Silva Mourão, o acervo é composto por
treze oratórios domésticos e dois fragmentos de oratório (portas laterais). Segundo nos aponta
Augusto Viegas, os oratórios foram coletados em São João del-Rei e adjacências a partir da década
de 1960 pelo próprio Rodrigo Mello Franco de Andrade, sendo auxiliado pelo Mons. José Maria
Fernandez.655
Hiato à parte, durante a realização da pesquisa acerca do histórico dos oratórios do Museu
Regional (assim como do Museu de Arte Sacra de São João del-Rei), encontramos alguns registros
fotográficos da época em que foram coletados na década de 1960. Uma fotografia nos chamou
atenção:
Podemos observar os oratórios domésticos e suas imagens depositadas sobre uma mesa.
Todos os oratórios se encontram vazios e as pequenas imagens misturadas. Tal registro fotográfico
655VIEGAS, Augusto. Notícia de São João del-Rei. Belo Horizonte: Edição do autor, 1969, p. 83.
Há de destacar também a atuação do Padre Raimundo Trindade, que se dedicou a coletar várias peças de arte sacra
produzidas em Minas Gerais para a formação do acervo do Museu da Inconfidência em Ouro Preto. No acervo do
referido museu, temos alguns exemplares de oratórios domésticos oriundos de São João del-Rei, o que nos leva a supor
que o supracitado sacerdote coletou peças artísticas na região. Acerca do contexto geral, ver: SANTOS, Luiz Cláudio
Alves dos. Raimundo Trindade: Igreja, política patrimonial e museografia em Minas, décadas 1920/1950.
Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Ouro Preto. Mariana,
2019.
376
pode nos induzir a pensarmos muitas questões, uma delas, até que ponto podemos confiar nos
oratórios domésticos e suas respectivas imagens como se encontram desde a época em que foram
coletados. O caso exemplar de São João del-Rei pode, guardadas as proporções, ser aplicado como
‘tendência geral’ para a maioria dos museus que possuem oratórios domésticos em seu acervo.
Sendo assim, há de se ter um zeloso cuidado por parte do historiador da arte em sempre questionar
as suas fontes, tendo em vista que podem ser descaracterizadas acidentalmente ou
intencionalmente.
O que quisemos evidenciar através das considerações acima realizadas é que o nosso estudo
iconográfico se pautará pelos conjuntos em que pudemos identificar uma originalidade formal. A
identificação foi possível mediante a consideração dos seguintes aspectos:
Os procedimentos acima elencados, no entanto, não deram conta da totalidade das imagens
pertencentes a oratórios, tendo em vista a disparidade iconográfica, de fatura e de datação. Sendo
assim, no que tange às imagens que não conseguimos identificar, levamos em consideração a
tipologia das imagens. As imagens próprias para uso doméstico e devocional são tipificadas como
‘imagens de oratório’, possuindo dimensões diminutas ou medianas. Em todo o caso, observamos
as proporções das imagens em relação às proporções dos oratórios que as guardavam, o que nos
levou a descartar alguns exemplares. Tal cautela, no entanto, não exclui de todo a possibilidade dos
‘falsos históricos’ ou ainda da troca, supressão ou adição de imagens aleatórias ao longo do tempo.
Porém, através do procedimento metodológico adotado por nós foi que pudemos observar as
devoções mais invocadas e mais populares no universo devocional mineiro através dos oratórios
domésticos. Nesse momento, dirigimos o nosso olhar para tais invocações e suas respectivas
iconografias, objetos de afetividade e devoção na Minas Setecentista e Oitocentista.
377
5.2. A dimensão da devoção em Minas Gerais demonstrada através da quantificação iconográfica nos oratórios
domésticos
Tabela 11. Invocações cultuadas em oratórios domésticos mineiros (séculos XVIII e XIX) –
Quantificação das representações pictóricas e esculturais.
NÚMERO DE
INVOCAÇÃO ICONOGRÁFICA
INVOCAÇÕES
01 Nossa Senhora da Conceição 69
02 Cristo Crucificado 67
03 Sant´Ana Mestra 46
04 São José de Botas 36
05 Santo Antônio de Pádua (ou de Lisboa) 33
06 São Sebastião 26
07 Natividade de Jesus Cristo (grupo escultórico) 18 (105 imagens)
08 São Pedro, apóstolo 14
09 Santa Rita de Cássia 14
10 São José 13
656Embora, para a presente pesquisa, tenhamos buscado registrar o maior número possível de oratórios domésticos
produzidos na Minas colonial nos acervos particulares e de museus, tanto no estado de Minas Gerais como em outros
estados, percebemos que seria inviável realizarmos um levantamento mais completo, tendo em vista a vastidão de
peças que não podem, por vários motivos, serem estudadas. Sendo assim, esse levantamento possui caráter provisório
até que novas pesquisas (e peças) venham a lume.
378
657 Os dados quantitativos podem ser consultados nos anexos desta dissertação, assim como na introdução (tabela 1).
658 Tendo em vista que o Martirólogo Cristão (o catálogo dos santos canonizados e honrados pela Igreja Católica ao
longo do calendário litúrgico) possui, atualmente, mais de 6.500 santos catalogados. Nos séculos XVIII e XIX, esse
número deveria se encontrar na casa dos 5.000 santos. Ver: CUNNINGHAM, Lawrence S. Uma breve história dos
santos. Rio de Janeiro: José Olympio editora, 2011.
659 OLIVEIRA, Myriam Andrade Ribeiro de. A escola mineira de imaginária e suas particularidades. In: COELHO,
Beatriz (org.) Devoção e arte, imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo: EDUSP, 2017, p. 19.
660 Com ocorreu em outras localidades, sobretudo na faixa litorânea. Ver: BOXER, Charles R. A idade de ouro do
O sintoma mais evidente é a base popular do catolicismo implantado na região das minas,
onde, em vez de a religião se difundir por meio das pregações oficiais dos missionários
ligados às diversas ordens religiosas, ela penetrou diretamente, como uma rotina da vida
cotidiana dos próprios povoadores. Em suma, a fé natural portuguesa, com seus santos
tradicionais [...].661
No entanto, embora a devoção mineira expressada nas imagens dos oratórios domésticos
possua um caráter popular (com raízes medievais), não é possível descolar tal religiosidade dos
ditames do Concílio de Trento, que se fizeram sentir mesmo à revelia da presença relativamente
frágil da Igreja no território. A devoção ao Cristo crucificado e aos temas da Paixão, embora com
raízes medievais, foi intensificada pelo Concílio, fruto da longa duração da devotio moderna na
Península Ibérica que encontrou, no tempo do Barroco, expansão sem precedentes, como
demonstraremos ao longo do presente capítulo. Além disso, a devoção a São José, sobretudo sob
a iconografia do homem viajante – São José de Botas – pode ser considerada uma devoção
essencialmente moderna, tendo quase nada de medieval. A figura de São José, durante toda a Idade
Média, teve um papel inferior dentro da Sagrada Parentela, sendo representado (dentro da
iconografia cristã) como um homem velho, desprovido de graça e sendo até mesmo alvo de
jocosidades nada edificantes, como nos indica Huizinga:
Característico nesse aspecto é o culto a São José [...]. Pode-se considera-lo como uma
consequência e uma reação ao apaixonado culto de Maria. É como se o interesse
desrespeitoso pelo padrasto fosse a outra face de todo o amor e glorificação dedicados à
virgem Mãe. À medida que Maria ascendia cada vez mais alto, José tornava-se uma
caricatura. As artes plásticas já lhe haviam dado uma forma que se aproximava
perigosamente de um camponês rude.662
De um “homem rude” e “pai de família maçante e deplorável”,663 São José atingirá grande
fama e ganhará novos contornos no Barroco da Contrarreforma. Um outro aspecto muito
importante é o caráter identitário das invocações em Minas. Figura, em primeiro lugar, com
sessenta e nove imagens (69), a devoção à Nossa Senhora da Conceição. Embora com raízes
medievais, a Virgem da Conceição fora amplamente divulgada após o Concílio de Trento e também
está intimamente relacionada ao Reino de Portugal, sendo sua padroeira e especial protetora,
sobretudo após o processo de restauração de 1640 que teve como maior difusor da devoção o rei
Eles [os santos] oferecem proteção, concedem graças, servem de veículo à identidade
de um grupo ou coletividade. Santos, enfim, que os fiéis tratam como se fosse um parente
664 DIAS, Geraldo J. A. Coelho. A devoção do povo português a Nossa Senhora nos tempos modernos. In: História:
Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n. 4, 2019, pp. 227-253.
665 ANDRADE, Leticia Martins de. Santana Mestra – A linguagem feminina da sabedoria, do Gótico europeu ao
Barroco Mineiro. In: Anais do Simpósio Nacional de Estudos Medievais da UFSJ, ano I, n. I, 2019, pp. 169-193.
666 MATA, Sérgio da. Chão de Deus: Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas Gerais,
Sobre isso, é notável observar no nosso levantamento a presença de Santo Antônio de Pádua
(ou de Lisboa) com trinta e três (33) imagens em oratórios, figurando como a primeira invocação
santoral fora da iconografia da Sagrada Parentela (Nossa Senhora, Cristo, Sant´Ana, São José) que
possui um relativo destaque. Santo Antônio fora considerado, na Minas colonial, um poderoso
santo que, além de oferecer sua divina ajuda na busca de um enlace matrimonial, encontrava
também os objetos perdidos. Sobre o último aspecto em particular, Santo Antônio fora
considerado um “santo de rico”, pois vinha (por exemplo) em auxílio dos senhores de escravos
que rogavam ao santo para achar ‘o negro fujão’.669 De acordo com Sérgio da Mata, embora a
religiosidade em Minas possua um caráter notadamente popular, os extratos sociais também se
faziam representar nas devoções,670 como demonstra o verso popular:
Tal verso demonstra a tenção social que, nas palavras de Sérgio da Mata, “reverberava no
plano religioso”.672 No âmbito do casamento, Santo Antônio é ainda castigado pelas moças que
não conseguem arranjar um ‘bom partido’, podendo até mesmo ser coagido pelo devoto.673 Tais
nuances são ricamente observáveis nos relatos dos viajantes estrangeiros em Minas e em fontes
manuscritas do período, assim como em testamentos que possuem – comumente – uma introdução
contendo a invocação dos onomásticos (o ‘santo de seu nome’), o que demonstra a vitalidade e a
força do culto aos santos do nascimento à morte do indivíduo. Diante disso, observar a recorrência
das invocações santorais nos oratórios domésticos nos possibilitou enxergar a vastidão e proporção
da devoção no âmbito privado. Essa, somada ao culto devocional público, constitui um patrimônio
cultural muito representativo da Minas colonial que constitui – no campo da religião – como Pierre
Bourdieu apontou em A economia das trocas simbólicas, “um sistema de práticas e representações
consagradas cuja estrutura reproduz sob uma forma transfigurada [...] a estrutura das relações
econômicas e sociais vigentes em uma determinada formação social”.674
Queremos com isso apontar que, embora as devoções cultuadas nos oratórios domésticos
estejam vinculadas, primordialmente, ao catolicismo doméstico e privado, elas também apontam
as dinâmicas sociais do período que estamos estudando. Nesse sentido, não apenas as devoções
mais cultuadas nos oratórios nos oferecem uma boa perspectiva de análise, mas também as
devoções menos cultuadas. Embora o conjunto elencado para essa pesquisa possua limitações (um
número ínfimo em relação ao que deveria existir até o início do século XX), percebemos que as
devoções menos cultuadas são aquelas relacionadas ao devocionismo negro, como as invocações
de São Benedito e Nossa Senhora do Rosário.
Tal ocorrência pode ser explicada através de dois fatores: o público consumidor de oratórios
domésticos na época e a recolha dos oratórios para a composição de acervos na
contemporaneidade. O primeiro fator é próprio da época que estudamos: os séculos XVIII e XIX.
Possuir um oratório doméstico, sobretudo se esse possuía uma forma que fazia referência a estilos
artísticos (o Barroco, o Rococó e o Neoclássico religioso), era uma forma simbólica de distinção,
além de ser um objeto de valor relativamente alto, como demonstramos no segundo capítulo desta
dissertação. Sendo assim, os oratórios eram, majoritariamente, objetos de uma elite. Portanto, é
explicável a rara presença de invocações relacionadas aos negros, um público majoritariamente
pobre e desprovido de bens (com exceções).
Tendo em vista o exposto acima, a partir dos números elencados na nossa tabela [Tabela
11] podemos concluir algumas considerações: o culto privado e doméstico exercido diante dos
oratórios domésticos foi intenso, o que constitui uma prática religiosa rica em elementos que,
enquanto representação de uma época e de uma sociedade, nos direciona para um universo que
tinha no sagrado a bússola para guiar o cotidiano. Por esse aspecto, é possível compreender o papel
674 BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007, p. 46.
384
No entanto, como estamos tratando de iconografia neste capítulo, esse tópico se apresenta
como um hiato necessário, tendo em vista a complexidade da obra que nos aventuramos estudar.
Para uma compreensão total do sentido religioso que lhe é inerente, o estudo da iconografia cristã
é para nós o elemento primordial pois, como imagem, nos possibilita ver os temas iconográficos e
suas respectivas representações, adaptações e ressignificações no mundo colonial. Por isso,
elencamos algumas representações iconográficas dentro da iconografia cristológica, mariana e
santoral, por se tratarem de temas importantes e muito significativos no campo da história da arte.
A tradicional Litania Lauretana, aprovada em 1587 pelo Papa Sisto V675, assim como a Litania
Sanctorum (a ladainha dos santos), expressam já em suas primeiras linhas as invocações de teor
cristológico, tais como Christe Eleyson e Fili Redemptor Mundi. O destaque ocorre devido a honra que
a imagem de Jesus (assim como das outras duas pessoas da Santíssima Trindade: o Pai e o Espírito
Santo) deve, via de regra, receber por se tratar da figura central e fundante da religião cristã. Sendo
assim, obtém maior destaque em relação às demais invocações santorais, pois, se trata do ‘próprio
Deus’. A Tradição e o Magistério da Igreja Católica estabeleceram a imagem de Cristo como uma
divindade reconhecida a partir de três características, sendo a primeira como o ‘Messias’ (Cristo), a
segunda como o ‘Filho de Deus’ e a terceira como ‘Senhor’ (Kyrios).676 Tais características foram
675 SULLIVAN, John F. The externals of the Catholic Church. Nova York: P.J Kenedy & Sons, 1918, p. 273-279.
[Recurso eletrônico]. Disponível em: htttp: www.awakentoprayer.org/litanies.htm. Acesso aos 10/08/2020.
676 DENZINGER, Henrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja
exploradas nas representações artísticas desde o início do cristianismo, cuja iconografia ‘primitiva’
remonta aos primórdios das catacumbas romanas. Desde as primeiras representações da figura
humana de Cristo, que se deram por volta do século IV d.c (um exemplo é o jovial e emblemático
Cristo com São Pedro e São Paulo executado como relevo em mármore por volta do ano de 389 d.c),677
percebemos a ênfase dada a dois momentos cruciais da história bíblica: o ciclo da infância e o ciclo
da paixão/morte de Cristo.
Explica Ribadeneyra que “Quando chegou aquela ditosa hora, e que havia se cumprido
(como disse São Paulo) a plenitude do tempo em que Deus havia determinado revestir-
se de nossa carne e se fazer homem, unindo-se a natureza humana por união hipostática,
e pessoal, veio para pagar os pecados da humanidade e, tendo antes amado tanto as coisas
que criou, num vínculo tão estreito e indissolúvel, Deus se fez homem, e Homem
Deus”.680
Tal ‘mistério’, o “verbo se fazer carne e habitar entre a humanidade”681, serviu de inspiração
para as imagens devocionais, tendo em vista que a imagem era instrumento pedagógico, ou seja,
servia para a piedade, para exercitar a fé e igualmente ensinar. Nos oratórios domésticos mineiros,
produzidos nos séculos XVIII e XIX, temos a presença das imagens que representam justamente
tal ‘mistério’, sendo elas o ‘Menino Jesus’ e o ‘Cristo crucificado’. Na iconografia do ciclo da
infância presente nos oratórios domésticos mineiros, o Menino Jesus pode ser representado como
um recém-nascido deitado sozinho ou acompanhado por Maria e José e outros personagens (tema
de presépio), ou ainda como ‘Jesus Infante’, representado em pé e com gestual expressivo.
[tradução nossa]
681 JOÃO 1, 14 In:. SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2546.
386
682 A aparência de gruta é possível graças à técnica escultórica denominada barreado. Acerca do termo técnico, ver o
quarto capítulo desta dissertação.
683 A observação da gestualidade do Menino Jesus ilustrado é dificultada pelo desgaste natural da peça.
387
Temos nessa tradicional maquineta (concebida como vitrine, bem ao gosto português), um
Menino Jesus deitado sobre uma concha aberta, com um dos braços e os olhos fitos para cima. Do
alto, seguindo a indicação do menino, temos um pequeno putti alado (um delicado anjo pueril)
trazendo em suas mãos uma cruz e um cálice. Logo acima da cabeça do menino, temos a presença
de alguns frutos vermelhos encimados por seis lâminas com escritos em latim e, na ponta superior
da concha, um pequeno brasão com as iniciais JHS encimadas por uma cruz. A curiosa composição
nos intrigou e nos despertou para a miscelânea de significados ali expressados, o que nos
condiciona a pensar separadamente cada elemento presente.
684 ELÍADE, Mircea. Imagens e símbolos. Lisboa: Editora Arcádia, 1979, p. 127.
685 ELÍADE, Mircea. op. cit. p. 128.
388
Já no simbolismo cristão, a concha (vieira) se assemelha com “mãos abertas com os dedos
estendidos”, significando “as boas obras nas quais todos devem prosperar”.686 Está vinculada
especialmente à iconografia de São Tiago, o Maior, que possui como atributos o sombreiro de
peregrino, a esclavina com as conchas (vieiras), capa (com a tradicional cruz vermelha de Santiago)
e o cajado com a cabaça,687 tornando-se um símbolo de peregrinação no mais famoso itinerário
cristão: o caminho de Santiago de Compostela, na Espanha.
Figura 307. Detalhe. Sandro Boticelli. Nascimento de Vênus. 1485. Têmpera sobre tela. Galleria degli Uffizi, Florença
Em todo o caso, o simbolismo pagão parece ser mais adequado ao tema, onde a vieira
significa vida e nascimento e ao mesmo tempo morte e ressurreição. Embora seja uma obra de
tema cristão, a presença da vieira e seu simbolismo pagão que se adequa convenientemente ao tema
do oratório nos sugere uma ‘sobrevivência’ da imagem. Entendemos por ‘sobrevivência’ da imagem
a curiosa manifestação de símbolos e formas da Antiguidade pagã em obras de tema essencialmente
cristão. Tal ‘sobrevivência’ trata-se, como definiu Aby Warburg, do Pathosformeln, ou seja, “fórmulas
usadas na tradição figurativa europeia” que são repassadas adiante e apropriadas ao longo do
tempo.688 Tais fórmulas imagéticas são, como indica Giorgio Agamben, “cristais de memória
histórica”, dotados de uma dupla dimensão: “originalidade e repetição”.689
686 RODRIGUEZ, Manuel Álvarez; CALVO, Laura Garcia. La concha del peregrino (pecten jacobaeus), símbolo del
Camino de Santiago. Ambiociencias – Revista de divulgación científica. Facultad de Ciencias Biológicas y
ambientales, Universidad de León, 2018, p. 16.
687 SCHENONE, Héctor H. op. cit. p. 708. [tradução nossa]
688 SETTIS, Salvatore. Pathos ed Ethos, morfologia e funzione. Moderna. Semestrale di Teoria e Critica della
Letteratura, 6 (2), 2004 Apud. TEIXEIRA, Felipe Charbel. Aby Warburg e a pós-vida das Pathosformeln antigas.
História da Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 3, n. 5, p. 134-
147, 13 set. 2010, p. 142.
689 AGAMBEN, Giorgio. Ninfas. São Paulo: Hedra, 2012, p. 29.
389
Nesse sentido:
No todo, a concha, segundo Elíade (como vimos anteriormente), também concentrava o seu
simbolismo na morte e na ressurreição.692 O tema expressado no oratório também aponta para esse
simbolismo através da presença do pequeno anjo que traz consigo uma cruz e um cálice nas mãos,
será nesse elemento que nos debruçaremos agora [figura 308]. A cena nos remete à iconografia
da agonia de Jesus no Monte das Oliveiras cuja inspiração se encontra nas passagens bíblicas dos
evangelhos sinópticos (Mateus, Marcos e Lucas), onde temos (em termos gerais) a seguinte
descrição:
Nas representações da Agonia no monte das Oliveiras, o anjo ora aparece com o cálice, ora
com a cruz. O anjo com o cálice atende à descrição bíblica (como citado acima), já o anjo com a
cruz antevê ao Cristo o destino que já estava previsto para o mesmo [figura 309]. O anjo do nosso
oratório concentra os dois elementos, portanto, foi concebido iconograficamente como o ‘anjo da
amargura’ [figura 310].
Portanto, através do elemento alusivo à Paixão de Cristo, podemos observar a junção dos
temas do ciclo da infância e do ciclo da paixão/morte, no entanto, a que iconografia específica a
cena representa? Pensamos que o conjunto escultórico faz alusão a uma iconografia curiosa e muito
rara nos oratórios domésticos de Minas Gerais: ‘o sonho do Menino Jesus’. O ‘sonho de Menino
Jesus’ se relaciona com a iconografia do ‘Menino Jesus dormindo sobre os instrumentos da Paixão’ [figura
311], sendo extremamente populares no Império Espanhol (incluso a América Espanhola). Juan
Interián de Ayala (1656-1730), historiador da arte e poeta espanhol, autor do importante tratado
El pintor Christiano: y erudito, ó Tratado de los errores que suelen cometerse frequentemente en pintar, y esculpir
las imágenes sagradas (1730),694 afirmava que tal iconografia não “pertencia tanto a história, porém
objeto de meditações piedosas”,695 sendo representado “dormindo sobre a cruz, tendo por
almofada um crânio ou caveira de um homem”.696
O tema do ‘sonho de Menino Jesus’ relacionado aos sofrimentos da Paixão, de acordo com
Schenone, aparece no século XVI, “em obras que mostram a Virgem velando o seu sono enquanto
anjos levam ao menino os objetos de tortura”.697 A iconografia obteve bases formais mais sólidas
no mesmo século com as visões da beata da ordem dominicana Osanna de Mântua, onde o Menino
Jesus carregava a cruz, embora o tema já tivesse sido representado no século XV, num livro de
horas no norte dos Países Baixos.698 Contudo, Schenone nos revela um fato notável em relação a
essa representação do divino infante, ao dizer que:
Porém, a relação direta entre o sonho [do Menino Jesus] e a Paixão foi estabelecida [...]
em uma gravura do bolonhês Giacomo Francia, e a partir desta lâmina se desenvolveu
múltiplas representações com diferentes modelos de composição, criando-se uma
694 Do latim, Pictor Christianus, traduzido para o espanhol em 1782 por D. Luis de Durán y de Bastéro.
695 AYALA, Interián de. Pictor Christianus, p. 236 apud SCHENONE, Héctor H. op .cit. p. 113. [tradução nossa]
696 AYALA; SCHENONE, Héctor H. op. cit. p. 113. [tradução nossa]
697 SCHENONE, Héctor H. op. cit. p. 113.
698 SCHENONE, Héctor H. op. cit. p. 113. [tradução nossa]
392
Tal colocação do autor quanto aos primórdios da iconografia do ‘sonho do Menino Jesus’ se
torna relevante, tendo em vista que não é descabido pensar nas apropriações e ressignificações de
elementos simbólicos e figurativos da Antiguidade Clássica, de cunho pagão, nas imagens de tema
cristão. Pelo contrário, as formas Antigas ‘sobrevivem’ nas novas formas iconográficas da arte
sacra, integrando essa última na cultura visual europeia. Sendo assim, como dissemos
anteriormente, a presença da vieira (simbolizando vida, morte e ressurreição) se adequa ao tema do
oratório que, através de um novo tema, aborda o arquétipo. Contudo, a cena do oratório ainda
possui elementos que o distinguem. Tendo em vista que o Menino Jesus não está dormindo, pelo
contrário, demonstra interagir com o ‘anjo da amargura’, faz-se necessário nos atentarmos para
outros elementos da composição.
Acima do menino, podemos observar seis lâminas com escritos em latim [figura 312] cujo
teor é oriundo dos textos bíblicos. Embora não tenhamos identificado todos os escritos,700 algumas
frases latinas grafadas nas lâminas se apresentam como dados bem peculiares, o que aumenta
significativamente o nível de complexidade da leitura iconográfica. Das seis lâminas foi possível
identificar três excertos:
O primeiro excerto, nolite peccare in puerum, em tradução livre significaria ‘não peque contra a
criança’. Porém, ao buscarmos a frase na Vulgata,701 identificamos a passagem corresponde no livro
do Gênesis 42, 22 onde buscamos a tradução portuguesa que diz: “Não vos dizia para não pecar
contra o vosso irmão? Mas não destes atenção. Agora nos pedem contas do sangue dele.”702 Tal
passagem, em seu contexto, faz alusão ao encontro de José do Egito com seus irmãos durante a
tentativa de compra de trigo para o sustento da família. Em outra tradução, a palavra puerum é
699 SCHENONE, Héctor H. op. cit. p. 114. [grifo nosso] [tradução nossa]
700 Infelizmente, não foi possível realizarmos a leitura integral das lâminas do referido oratório, tendo em vista a pouca
iluminação sobre a peça, fruto de um projeto expográfico não muito eficiente por parte do Museu da Inconfidência de
Ouro Preto, assim como a péssima qualidade das fotografias disponibilizadas pelo banco de dados do supracitado
museu na plataforma online do Projeto Tainacan.
701 Vulgata – Abreviação da Vulgata editio, vulgata versio ou vulgata lectio, a primeira tradução em língua latina da Bíblia,
realizada por São Jerônimo na transição do século IV para o V, por ordem do Papa Dâmaso I.
702 GÊNESIS 24, 22. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op .cit. p. 87.
393
traduzida como ‘menino’, o que torna adequada a citação em uma das lâminas do oratório. Não
sabemos a intenção do artista em registrar a frase do Antigo Testamento no oratório, porém, a
passagem parece aludir ao fato de que, por conta da agressão cometida contra o ‘menino’, cobrarão
o sangue daquele que o fez. Tal passagem com teor a la lei de talião (muito presente nos escritos
do Antigo Testamento) não parece fazer sentido em relação ao Menino Jesus, servindo talvez de
prefiguração à imagem de Cristo, como é comum na exegêse bíblica.
Figura 312. Detalhe das seis lâminas com inscrições latinas. Oratório doméstico/maquineta com Menino Jesus. Séc. XVIII.
Minas Gerais. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: BDPT
A segunda inscrição, flores mei fructus honoris, em tradução livre, ‘minhas flores e meus frutos
são honráveis’, encontra-se no livro do Eclesiástico 24, 17 que diz: “Brotei como videira formosa:
minhas flores e meus frutos são belos e abundantes”.703 Tal passagem de estrutura poética, também
pertencente ao Antigo Testamento, possui forte simbolismo pré-cristológico e pré-mariano. A frase
bíblica (assim como a passagem em sua inteireza) esteve relacionada à figura da Virgem Maria,
referendando-a como a ‘videira’ que gera ‘frutos belos e abundantes’. O XXIII sermão do Rosário,
proferido pelo Padre Antônio Vieira, assim o confirma:
Ouve o que diz, & promete a mesma Senhora a todos os devotos do Rosário: Flores mei,
fructus honoris, & honestatis. Queres honestidade? Queres honra? Queres vida? Pois tudo
isso te darão as minhas flores: Flores mei, fructus honoris, & honestatis. [...] As flores da Virgem
Santíssima, não há dúvida, que são as Rosas do seu Rosário, & por isso muito diferentes
das outras. As outras Rosas são flores que não dão fruto; porém as Rosas do Rosário,
não só dão frutos, mas são frutos: Flores mei, fructus. E que frutos? Frutos que sustentão a
vida, & frutos que conservam a honra, & a honestidade. 704
Tais frutos ‘belos e abundantes’ podem estar relacionados ao Menino Jesus, o salvador, fruto
de seu ventre, assim como os demais santos, além de estar atrelado também ao Rosário (uma coroa
de rosas) como relacionou Padre Antônio Vieira. Tal relação dos frutos tanto com o Menino Jesus
(o fruto belo) e os santos (flores ou frutos abundantes) também pode ser observada na
representativa gravura de Robert Audenaerd (1663-1743) representando a Virgem do Rosário
[figura 313] junto do Menino Jesus, Santa Catarina de Sena, São Domingos e Santa Rosa de Lima
entre anjos e outros santos, tendo em vista que os santos são também ‘frutos’ de sua maternidade
acolhedora.
Já a terceira frase por nós identificada, Ego domino cor meum vigilat, se encontra no livro dos
Cânticos dos Cânticos 5, 2 que diz: “Eu durmo, e o meu coração vela”.705 A passagem se encontra
num poema denominado ‘Noturno’, que retrata o encontro de dois amantes. Logicamente, é
perceptível o deslocamento da frase de seu contexto original, ressignificando-a ao tema do Menino
Jesus.706 Tal ressignificação contribuiria na composição da iconografia do ‘sonho do Menino Jesus’,
tendo em vista que a ação do sujeito da frase (dormia, mas com o coração vigilante) poderia ilustrar
o tema iconográfico do ‘sonho’. Contudo, como já percebemos, o Menino Jesus se encontra
acordado e interagindo com o anjo da amargura que lhe vem trazer os símbolos da sua futura
Paixão.
Figura 313. Robert Audenaerd. Madonna del Rosario. Séc. XVII-XVIII. Água-forte. Biblioteca Casanatense, Roma
705CÂNTICOS DOS CÂNTICOS 5, 2. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 1515.
706Tendo em vista que a passagem bíblica a qual o excerto pertence originalmente retrata uma cena romântica, quase
erótica.
395
707 MARQUES, João Francisco. Oração e devoções. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (org.) História religiosa de
Portugal. Vol. 2 – Humanismos e reformas. Centro de Estudos de história religiosa da Universidade Católica
Portuguesa. Casais de Mem de Sá, Rio de Mouro: Círculo de Leitores AS, 2000, p. 616.
708 MARQUES, João Francisco. op. cit. p. 617.
709 MARQUES, João Francisco. op. cit. p. 617.
710 MARQUES, João Francisco. op. cit. p. 618.
711 MOTT, Luiz. Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e o calundu. In: NOVAIS, Fernando A; MELLO E
SOUZA, Laura de (org.) História da vida privada no Brasil: cotidiano e vida privada na América Portuguesa.
São Paulo: Companhia das Letras, 1997, p. 186.
712 MOTT, Luiz. Escravidão, homossexualidade e demonologia, p. 96 apud MATTA, Sérgio da. op. cit. p. 118.
396
Em suma, a devoção ao Menino Jesus, tão íntima e tão próxima, não limitou as
representações do divino infante somente como uma inocente e doce criança, mas também como
o futuro ‘homem sofredor’. Por isso, a iconografia do Menino Jesus também esteve intimamente
relacionada ao tema da Paixão de Cristo, onde as representações do ciclo da infância se uniam as
do ciclo da paixão/morte. Além da iconografia do ‘sonho do Menino Jesus’ ou do ‘Menino Jesus
da Paixão’, uma outra representação também ocorreu nos oratórios domésticos mineiros: o Menino
Jesus como Salvator Mundi.
Nessa iconografia, o menino é representado como uma criança de um a dois anos de idade
aproximadamente, estando em pé e com gestos corporais expressivos. Pode segurar em uma das
mãos um globo encimado por uma cruz ou ter uma esfera sobre os pés. De acordo com Schenone,
tal representação é:
Tal iconografia, assim como a do Menino Jesus no oratório anterior, se encontra atrelada a
um tema predominantemente adulto: Christo salvator mundi. O Cristo ‘salvador do mundo’ possui
sua base iconográfica pautada através do título de ‘Salvador’, expressado no livro dos Atos dos
Apóstolos 5, 30-32 que diz:
Deve-se obedecer antes a Deus que aos homens. O Deus de nossos pais ressuscitou
Jesus, a quem vós executastes, pendurando-o num madeiro. Deus, porém, o exaltou à
sua direita, nomeando-o chefe e salvador, para oferecer a Israel o arrependimento e o
perdão dos pecados.714
transita entre a imponência, a severidade e ao mesmo tempo serenidade [figura 314]. O tema,
predominantemente adulto, também foi representado com a figura do Menino Jesus [figura 315],
reafirmando que o título de ‘salvador do mundo’ se encontra presente desde a infância do mesmo,
talvez com base nas palavras do anjo Gabriel quando afirmou na anunciação a Maria que ela seria
a “mãe do salvador”.716
Em Minas Gerais, nos oratórios domésticos por nós estudados, a recorrência do ‘Menino
Jesus Salvador do Mundo’ é rara, porém, ocorre. O modelo mais usual apresenta o divino infante
em pé, com o corpo desnudo e realizando o gesto da benção [figura 316], contudo, a representação
mais fiel à iconografia do salvator mundi por nós observada ocorreu num oratório em São João del-
Rei, ilustrado na figura 317. Podemos observar nessa escultura a presença da fatura popular que,
embora desprovida de policromia e formas anatômicas que denotem uma virtuose executiva,
demonstra-se singela e muito expressiva. É curiosa a representação dupla do globo, sendo
representado um aos seus pés e um em suas mãos. Pensamos que o artista, ao executar tal singela
escultura, reproduziu uma iconografia mais completa em relação às demais esculturas de mesmo
tema, representando o orbis terrarum aos pés e o globus cruciger nas mãos.
Tal iconografia destaca o poderio de Cristo sobre o mundo (que lhe serve de trono) e ao
mesmo tempo como salvador desse mesmo mundo (cujo orbe é encimado por uma cruz, símbolo
da salvação). Tal iconografia, embora representada no Barroco, possui antecedentes mais longevos,
especificamente na arte paleocristã. É invocado no singelo Menino Jesus Novecentista o imperial
Cristo Pantocrator, representado reinante e assentado sobre um globo (o mundo) que lhe serve de
trono, como podemos observar no colorido mosaico executado no século IV na Igreja (mausoléu)
de Santa Constanza, em Roma [figura 318].
Nesse caso, o globus cruciger foi colocado no lugar em que iconograficamente se encontra a
sagrada escritura na representação do Pantocrator. Com esse exemplo, podemos observar o
desenvolvimento iconográfico de Cristo, onde um tema sério e quase apocalíptico ganhou ares
mais suaves através do semblante infantil do Menino Jesus. Com tais representações, tanto o
solitário ‘Menino Jesus’ que parece sonhar com os símbolos da sua futura Paixão, assim como o
imponente ‘Menino Jesus Salvador do Mundo’, se tornam imagens muito representativas
simbolicamente, onde podemos observar o constante fluxo de significados que, embora diferentes,
se complementam, fazendo com que as imagens do Menino Jesus sejam consideradas uma síntese
biográfica (nesse caso, hagiográfica) do salvador da humanidade, tornando claro o seu papel
redentor àqueles que o veneram. Sendo assim, o tema da infância e da paixão se conectam, fazendo
com que as imagens do Menino Jesus indiquem o ponto nevrálgico da fé católica: a salvação da
alma através do sacrifício cruento de Cristo, um fato que deve ser sempre lembrado e venerado
piedosamente.
399
Uma outra representação do ‘Menino Jesus Salvador do Mundo’ ocorre num oratório-
lapinha pertencente ao Museu do Oratório, de Ouro Preto. Trata-se de uma variação iconográfica
muito peculiar do tema, cujo simbolismo extrapola o sentido quase ‘apocalíptico’ que a invocação
sugere. Nesse pequeno oratório, temos o Menino Jesus com o orbis terrarum em uma mão e com a
outra realiza o típico gesto da benção, no entanto, se encontra deitado. Ao redor do Menino, temos
uma profusão de flores, folhas e frutos, como podemos observar nas figuras 319, 320 e 321.
Figura 319. Oratório-lapinha com Menino Jesus Salvador do Mundo. Séc. XIX. Minas Gerais. Museu do Oratório, Ouro
Preto. Foto do autor (2019)
Figura 320. Detalhe. Oratório-lapinha com Menino Jesus Salvador do Mundo. Séc. XIX.
Minas Gerais. Museu do Oratório, Ouro Preto. Foto do autor (2019)
Figura 321. Detalhe. Oratório-lapinha com Menino Jesus Salvador do Mundo. Séc. XIX.
Minas Gerais. Museu do Oratório, Ouro Preto. Foto do autor (2019)
400
Tal representação pode ser observada, por exemplo, na obra do espanhol Antonio Palomino
(1655-1726) Niño Jesus dormido, e sobre tal obra, tomamos aqui uma licença poética: nos parece que
o Menino Jesus, inocentemente adormecido, pareceu sucumbir de cansaço diante do peso de sua
missão como ‘Salvador do Mundo’, tendo nas delicadas mãos o orbis terrarum e a pequena cruz, o
que nos indica sua precoce preocupação [figura 322]. O Menino Jesus do nosso oratório-lapinha
também pareceu sucumbir ao peso de seu ofício, contudo, mantém-se acordado e exerce sua
missão salvífica no conforto de sua pequena cama pois, afinal de contas, mesmo sendo o ‘Salvador
do Mundo’, não deixou ainda de ser uma criança.
Cabe destacar que a configuração do Menino Jesus dormindo, como vimos nos exemplos
acima, possui uma base iconográfica bem sólida, cujos antecedentes podem ser observados na arte
Antiga, precisamente na arte helenística. Os artistas helenísticos eram extremamente habilidosos
nas caracterizações humanas, sobretudo na escultura. O nosso ‘Menino Jesus’ adormecido,
401
entregue ao descanso pueril, pode ter sido inspirado no emblemático ‘Eros adormecido’ [figura
323]. É notável a influência, desde a gestualidade às proporções e volumetria corporal.
Figura 323. Eros dormindo. Séc. III A.C. Bronze. Grécia ou Roma. The Metropolitan Museum of Art, Nova York
Figura 324. Guido Reni. Putto dormiente. 1627. Afresco. 57x56cm. Galleria Nazionale d´Arte Antica, Roma. 718
717 Cabe lembrar que as obras de Guido Reni foram intensamente gravadas durante o Barroco, e, possivelmente,
pode ter chegado até Minas Gerais. Na Biblioteca Nacional, no Rio de Janeiro, há vários exemplares de obras de
Reni em gravura, pertencentes à coleção do arquivo.
718 Disponível em: https://it.wahooart.com/@@/8XZU6Z-Reni-Guido-(Le-Guide)-Dormire-Putto. Acesso aos
06/11/2020
402
Possivelmente, o artista (um santeiro popular, tendo em vista a fatura não erudita das imagens
do oratório) quis só e simplesmente decorar com flores, folhas e frutos o ‘Menino Jesus Salvador
do Mundo’ no seu nicho, no entanto, não podemos deixar de considerar o aspecto simbólico que
tal decoração poderia possuir na época em que tal composição iconográfica fora concebida. O que
podemos deduzir, no campo da simbologia cristã amparada nos escritos bíblicos, é que as flores,
folhas e frutos parecem aludir à passagem do livro do Eclesiástico 24, 17: “[...] minhas flores e meus
frutos são abundantes”.720 Assim como no oratório-maquineta que analisamos anteriormente
[figura 306], a passagem, mesmo possuindo na tradição da Igreja uma alusão preconizadora da
Virgem Maria, também pode ser aplicada ao tema do Menino Jesus. Nesse sentido, o divino infante
além de ser um fruto do ventre de Maria, é também detentor dos ‘frutos abundantes’, ou seja, suas
graças e suas mercês, tendo em vista que ele, enquanto ‘Salvador do Mundo’, possui “vida em
abundância” (João 10, 8) e “fardos leves e jugo suave” (Mateus 11, 28-30). Sendo assim, como
vimos até o momento, a imensa maioria das representações do Menino Jesus fazem referência aos
temas messiânicos e da sua futura Paixão.
Talvez a única representação plástica do Menino Jesus que não faça uma clara alusão ao tema
da Paixão seja a típica cena de presépio. A iconografia do presépio, com o recém-nascido sendo
719 KURY, Mário da Gama. Dicionário de Mitologia Grega e Romana. Rio de Janeiro: Jorge Zahar editora, 2009,
p. 46.
720 ECLESIÁSTICO 24, 17. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 1626.
403
contemplado pela Virgem Maria, São José e ocasionalmente pelos pastores e os Reis Magos,
superabundou nos oratórios domésticos em Minas Gerais em relação às outras iconografias que
tratamos anteriormente. Contudo, ironicamente, a cena do nascimento é acompanhada pela cena
da crucificação, o que reforça o caráter de síntese hagiográfica (e iconográfica). Tal ‘síntese’ ocorre
nos típicos oratórios mineiros, os ditos ‘oratórios-lapinha’.
A tradicional cena de presépio foi muito popular e é iconografia constitutiva da tipologia dos
oratórios-lapinha. A representação mais comum conta com o Menino Jesus recém-nascido no
centro e circundado por animais, sendo adorado pela Virgem Maria e São José. Na maioria das
representações da cena, se fazem presentes os Reis Magos, trazendo em suas mãos os presentes
que são posteriormente ofertados ao Menino-Deus. Em alguns raros exemplares, também podem
aparecer os pastores. A cena da Natividade pode ser encontrada nos evangelhos de Mateus (2, 1-
12) e Lucas (2, 8-20):
Jesus nasceu em Belém de Judá, quando Herodes reinava. Aconteceu que uns magos do
Oriente se apresentaram em Jerusalém, perguntando: - Onde está o rei dos judeus recém-
nascido? Vimos surgir seu astro e viemos render-lhe homenagem. Ao ouvir isso, o rei
Herodes começou a tremer, e toda Jerusalém com ele. Então, reunindo todos os sumos
sacerdotes e doutores do povo, perguntou-lhes onde deveria nascer o Messias.
404
Havia na região uns pastores que vigiavam por turnos o rebanho a céu aberto. Um anjo
do Senhor se lhes apresentou. A glória do Senhor os envolveu de resplendor e eles se
aterrorizaram. O anjo lhes disse: - Não temais. Vede: Dou-vos uma boa notícia, uma
alegria para todo o povo: Hoje nasceu para vós na cidade de Davi o Salvador, o Messias
e Senhor. Isto vos servirá de sinal: Encontrareis um menino envolto em panos e deitado
numa manjedoura. Nesse instante juntou-se ao anjo uma multidão do exército celeste,
que louvavam a Deus, dizendo: Glória a Deus no alto, e na terra paz aos homens que ele
ama! Quando os anjos partiram para o céu, os pastores diziam: - Atravessemos em
direção a Belém para ver o que aconteceu, o que o Senhor nos comunicou. Foram
apressadamente e encontraram Maria, José e o menino deitado na manjedoura. Ao ver
isso, contaram o que lhes haviam dito do menino. E todos os que ouviram isso
assombravam-se com o que os pastores contavam. Maria, porém, conservava isso e
meditava tudo em seu íntimo. Os pastores voltaram glorificando e louvando a Deus por
tudo o que ouviram e viram, tal como lhes havia sido anunciado. 722
As duas passagens foram utilizadas para a definição formal da iconografia do presépio. Por
vezes, nos oratórios-lapinha, a cena mais comum e recorrente no nicho inferior é o presépio com
a representação da sagrada família com os reis magos, como indicado na passagem do evangelista
Mateus. O presépio (cena da Natividade) trata-se de uma tradição cristã que remonta
aproximadamente ao século XV, em Nápoles.723 No contexto da origem do tradicional presépio
napolitano, a iconografia da Sagrada Família junto aos Reis Magos e Pastores alcançou elevada
representabilidade e fortuna nesse século, fruto do gosto da dinastia de Aragão.724 Sua origem e
difusão está atrelada também às novas ordens religiosas, surgidas no contexto da Contrarreforma
católica:
721 MATEUS 2, 1-12. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2320-2321.
722 LUCAS 2, 8-20. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2457-2458.
723 AMBRÓSIO, Eliana. Recursos pictóricos e cenográficos para o ilusionismo espacial nos presépios napolitanos In:.
MELLO, Magno Moraes (org.) A arquitetura do engano – perspectiva e percepção visual no tempo do barroco
entre a Europa e o Brasil. Belo Horizonte: Fino Traço editora, 2013, p. 89.
724 MIGLIACCIO, Luciano. O presépio napolitano do Museu de Arte Sacra de São Paulo. Revista Imagem
oratorianos de São Felipe Néri. [...] ao longo do século XVII o presépio era já uma prática
difundida em quase todas as igrejas e junto a muitas famílias particulares. 725
Já no século XVIII, o rei Bourbon Carlos III de Nápoles demonstrou ser um amante da arte
dos presépios. Nesse século, o efeito cenográfico e o uso da perspectiva ilusionista foram
empregados na elaboração dos presépios napolitanos, fruto do “espírito idealista e inclinado à
descrição dos costumes e da sociedade”.726 Junto desse contexto, em Portugal “o culto do Menino
Jesus e a liturgia do presépio, que desde a Itália se difundiu por todo o Ocidente europeu, contribuiu
para exaltar o amor da criança”.727 O modelo de presépio mais popular em ambiente luso (no século
XVIII principalmente) foi àquele concebido em miniatura e adequado na maquineta envidraçada,
como podemos observar na figura 328.
Inicialmente com influências italianas, a produção dos barristas, que moldavam no barro
as figuras de presépio, aos poucos assume características próprias, expressando aspectos
da realidade local. [...] a repercussão que obtiveram os presépios portugueses assemelha-
se a dos napolitanos, mas enquanto estes últimos eram influenciados pela teatralidade das
óperas, destacando-se pela suntuosidade e cenografia rebuscadas de grandes dimensões,
os portugueses “(...) inspiraram-se numa tradição mais naturalista, reflexo das romarias
populares e do pitoresco das suas cavalgadas e costumes”. [...] Embora concebidas para
o gosto duma devoção mais singela, alcançaram por vezes formas de requinte que
hierarquizavam a sua arte.728
Portugal. Vol. 2 – Humanismos e reformas. Centro de Estudos de história religiosa da Universidade Católica
Portuguesa. Casais de Mem de Sá, Rio de Mouro: Círculo de Leitores AS, 2000, p. 616.
728 LYRA, Joana da Costa. Os caminhos do presépio – Imagem devocional no catolicismo popular. Dissertação
de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro,
2006, p. 13.
406
729 DICIONÁRIO HISTÓRICO, de Portugal. Verbete: Machado de Castro (Joaquim). Disponível em: http:
arqnet.pt/dicionário/machadocastro.html. Acesso aos 19/08/2020 as 21h44.
730 LYRA, Joana da Costa. op. cit. p. 20.
407
Em primeiro lugar, devido à sua aparência andrógina, pensamos que se tratava de um dos
pastores, como descrito no Evangelho de Lucas. No entanto, o personagem - via de regra – sempre
é representado sozinho, além de não possuir nenhum elemento que o identifique, o que não condiz
com a descrição bíblica e muito menos com as representações imagéticas dos pastores. Ao
constatarmos que se tratava de um personagem feminino (após analisarmos o modo de
representabilidade dos gêneros masculino e feminino nas cenas de presépio dos oratórios-lapinha),
levamos em consideração dois aspectos para identificarmos a misteriosa personagem: a tradição
presepista portuguesa e a possível influência dos evangelhos apócrifos.
A tradição dos presépios barrocos em Portugal acompanhou pari passu a tradição napolitana,
que consistia na representação de personagens característicos da cultura local, ou seja, figuras do
povo. Entretanto, a personagem não possui nenhuma vestimenta anacrônica à cena (como ocorre
normalmente nos presépios portugueses e napolitanos), o que a situa como parte integrante da
narrativa da Natividade. Sendo assim, tendo em vista que nos relatos canônicos não há menção a
nenhuma personagem feminina senão à própria Virgem Maria, a possível inspiração poderia advir
dos textos apócrifos.
Além dos pastores, dos Reis Magos e dos próprios pais de Jesus, existiram outros
personagens na narrativa da Natividade, descritos no apócrifo Proto-evangelho de Tiago. Após
analisarmos a narrativa contida no proto-evangelho de Tiago, pensamos que a representação
feminina retratada nos nichos inferiores dos oratórios-lapinha pode se referir a duas personagens:
a parteira ou Salomé. Segundo a narrativa, ao perceber que Maria daria à luz, José aprontou-se para
buscar uma parteira, tendo a encontrado no caminho. Ao chegarem juntos no local onde Maria
estava, perceberam uma forte luz e o nascimento imaculado e miraculoso do Menino Jesus. A
parteira, na ocasião, exclama num grito: “Grande é para mim o dia de hoje, já que pude ver com
meus próprios olhos um novo milagre”.731 Provavelmente, o escultor desejou representar o
momento de adoração da parteira, junto de São José e da Virgem Maria. A cena apócrifa foi somada
à cena canônica, com os três reis magos já presentes na cena. Já a outra personagem, Salomé, fora
chamada pela parteira para testemunhar o nascimento miraculoso, tendo a mesma duvidado de que
fosse possível um parto de tal natureza.
- Salomé, Salomé – exclamou – Tenho de te contar uma maravilha nunca vista. Uma
virgem deu à luz, coisa que, como sabes, não permite a natureza humana. Salomé
replicou: - Pelo Senhor, meu Deus, não acreditarei em tal coisa, se não me for dado tocar
os dedos e examinar sua natureza. 732
731 PROTO-EVANGELHO DE TIAGO 19, 1-2. In: MORALDI, Luigi. Apocrifi del Nuovo Testamento. Torino:
Unione Tipografico Torinese, 1975, p. 83-84. [tradução nossa]
732 PROTO-EVANGELHO DE TIAGO, 19, 1-2. In: MORALDI, Luigi. op. cit. p. 83-84.
408
Além disso, devemos nos atentar para o fator histórico e religioso que desautorizava a
existência dessas imagens com inspiração apócrifa na época em que foram produzidas: o poder
regulador de Trento. O concílio tridentino, adaptado para os trópicos através das Constituições
Primeiras do Arcebispado da Bahia, coibiu ao máximo as representações plásticas de personagens
heterodoxos ou que não possuíam uma sólida base bíblica e teológica. Tais representações
poderiam induzir ao erro e o artista (assim como o encomendante da peça em questão) estaria
sujeito às mais duras reprimendas, como estabelecia o próprio cânon tridentino:
Mas se nestas santas e saudáveis práticas [em se ter imagens sacras], se houverem
deslizado alguns abusos; o santo Concílio deseja que sejam totalmente abolidos, de sorte
que não se exponha imagem alguma de falso dogma e que dê aos ignorantes ocasião de
perigoso erro.736
Em pleno século XIX, centúria em que foram produzidas tais imagens (próprias da tipologia
dos oratórios-lapinha), podemos observar a recorrência da pequena e delicada escultura com
representação apócrifa, sendo manufaturadas para os oratórios à revelia da proibição eclesiástica.
733 PROTO-EVANGELHO DE TIAGO, 19, 1-2-3. In: MORALDI, Luigi. op. cit. p. 84-85.
734 PROTO-EVANGELHO DE TIAGO, 19, 1-2-3. In: MORALDI, Luigi. op. cit. p. 84-85.
735 Um exemplo da força da tradição apócrifa como inspiração iconográfica pode ser observada nas várias
representações da Natividade da Virgem. Tal cena não é descrita nos textos bíblicos canônicos, mas nos apócrifos
(especificamente no já citado Proto-Evangelho de Tiago). Este é só um exemplo entre os vários que poderíamos
enumerar extensamente.
736 DENZINGER, Henrich. op. cit. p. 90
409
Tal fato denota a clara filiação de tais oratórios ao gosto popular, mesmo possuindo características
de referência artística eruditas. Demonstra também a sobrevivência das crenças populares que ainda
se manifestavam no campo afetivo da devoção, sendo recorrentemente revisitadas através de uma
pequena escultura em esteatita no oratório privado. Tal observação é pertinente pois nos permite
refletir até que ponto a Igreja Católica enquanto instituição conseguia controlar a religiosidade
popular. Como pudemos notar, seu controle não era de todo eficaz.
Ladeando o crucificado, temos no lado direito a Virgem Maria, representada sob o título de
Nossa Senhora da Conceição, e no lado esquerdo, São José de Botas carregando em seu colo o
Menino Jesus. Os três personagens se encontram no ‘patamar superior’ da cena. Já no ‘patamar
inferior’, temos no centro a imagem de Sant´Ana Mestra ladeada à direita e à esquerda por santos
410
de várias invocações, podendo ser São Sebastião e São Pedro, Santo Antônio e Santa Rita de Cássia,
ou ainda São Paulo e São João Batista.
Decerto a composição das imagens nos nichos expressa uma hierarquia que obedece aos
princípios clássicos do decoro e da verossimilhança. [...] Segundo a ordem da hierarquia
devocional nas representações plásticas, vemos que a imagem de Jesus crucificado está
sempre rodeada por Maria e José, respectivamente ao seu lado direito e esquerdo. É
curioso verificar que Maria é representada como Nossa Senhora da Conceição, invocação
que sublinha a pureza da mãe de Jesus Cristo. São José é sempre invocado como São José
de Botas, representação que exalta o pai zeloso que, após receber de um anjo o aviso do
perigo, salva a vida do filho pequeno, predestinado pela profecia divina a morrer
crucificado para a salvação da humanidade. [...] Aos pés da cruz, a imagem de Sant´Ana
Mestra, invocação que exalta a sua qualidade de guardiã da doutrina e das Sagradas
Escrituras [...].737
737 CASTELLO-BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. Oratórios Mineiros D. José I: O tema cristológico nos objetos
de devoção familiar produzidos entre o fim do século XVIII e início do XIX. In: Atas do IV Congresso
Internacional do Barroco Ibero-americano, p. 1058.
738 CASTELLO-BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. op. cit. p. 1058-1059.
411
Embora a iconografia dos oratórios-lapinha tenha sido desenvolvida sob o gosto popular,
com a união heterodoxa de fontes bíblicas e apócrifas, é notável que as representações santorais
nos indicam o público consumidor de tais oratórios. A própria representação muito recorrente de
Nossa Senhora da Conceição, devoção essencialmente lusitana (padroeira do Império Português e
739 CASTELLO-BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. Oratório Dom José I, Análises formal, estilística e
iconográfica. Boletim do CEIB, Belo Horizonte, vol. 7, n. 25, Jul/2003, p. 5.
740 CASTELLO-BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. op. cit. p. 5.
741 ÁVILA, Cristina; TRINDADE, Silvana Cançado. A geografia do sagrado na Minas colonial. In: GUTIERREZ,
Angela (org.) Objetos da fé, oratórios brasileiros. Belo-Horizonte: Editora Gráfica Formato, 1991, pp. 9-21
742 No estudo de Maria Alice Castello-Branco, na série de oratórios-lapinha analisados pela mesma, a pesquisadora
também percebeu a completa ausência dos santos negros ou de Nossa Senhora do Rosário nas representações plásticas.
O que corrobora a nossa afirmação acima desenvolvida.
412
posteriormente do Império do Brasil)743, assim como a forma erudita da talha dourada e do vidro
plano (artigo considerado de luxo para a época) podem ser considerados indícios fortes quanto ao
público consumidor de tais artefatos. Sobre esse aspecto, é interessante o ponto abordado por
Silveli Russo quanto à questão racial implicitamente envolvida no culto à Nossa Senhora da
Conceição. A autora afirma que:
[...] via de regra, quanto às imagens de Maria, os oratórios domésticos acolheram de forma
recorrente as representações da Senhora da Conceição, particularmente a Imaculada
Conceição, de pele branca, idealizada pelos portugueses [...]. Na observação geral das
invocações, acentuam-se as seguintes segmentações: a Virgem da Conceição, como
padroeira dos fiéis de origens diversas, e a do Rosário, como padroeira dos escravos e
também dos menos favorecidos, a corroborar, quiçá intolerantemente, no
estabelecimento da expressão “Puríssima” Conceição em relação à Virgem do Rosário. 744
Para nós, o oratório-lapinha é um objeto síntese e representa, para a nossa análise, o artefato
que simboliza a união entre o tema da infância e da morte. Sendo assim, faremos a transição do
ciclo da infância para o ciclo da paixão e morte de Cristo. Nesse aspecto, atingimos o ápice da
iconografia cristológica. No ciclo da infância, percebemos que a todo momento surgiam elementos
simbólicos que aludiam ao acontecimento derradeiro da vida do divino mestre, sua paixão e morte
na cruz. Ao direcionarmos o nosso olhar para a iconografia do ciclo da paixão e morte, percebemos
de imediato a recorrência dos símbolos de tortura, as cenas do calvário e principalmente a
743 Sendo substituída por Nossa Senhora da Conceição Aparecida na instauração da República.
744 RUSSO, Silveli Maria de Toledo. Espaço doméstico, devoção e arte: A construção histórica do acervo de
oratórios brasileiro – séculos XVIII e XIX. São Paulo: Alameda, 2014, p. 228-229.
745 “[...] e lhes ensinem que os Santos, que reinão juntamente com Christo, offerecem a Deos, por seu Filho Jesu Christo nosso Senhor, que
he o nosso único Redemptor, e Salvador. Sentem pois impiamente aquelles que dizem, que os Santos, que gozão de eterna felicidade no Céo
não devem ser invocados; e os que affirmão, ou que elles não oram pelos homens, ou que invocallos para que orem por cada hum de nós he
idolatria, ou que é oposto á palavra de deos, e contrário á honra do único Mediador de Deos, e dos homens Jesu Christo; ou que he estultícia
supplicar com palavras, ou com o pensamento as que reinão no Ceo [...]” IGREJA CATÓLICA, Concílio de Trento, 1545-1563.
O Sacrossanto e Ecumenico Concilio de Trento em Latim e Portuguez. Tradução e organização por Jean-
Baptiste Reycend. Lisboa: Officina patriarcal de Francisco Luiz Amendo, 1781, Tomo 2, p. 347-357. |BNP
413
esmagadora presença da imagem do Crucificado, o que nos indica a potência do tema no imaginário
devocional na Minas colonial.
746 MARQUES, João Francisco. A renovação das práticas devocionais. In: AZEVEDO, Carlos Moreira (org.). op. cit.
p. 570.
747 MARQUES, João Francisco. op. cit. p. 571.
748 MARQUES, João Francisco. op. cit. p. 571-572.
414
Sérgio da Mata, citando Eduardo França Paiva, nos indica que as descrições do mineiro João
Alves de Carvalho não são criações do mesmo, mas “formas que povoam o imaginário social”. 752
Tal imaginário era, possivelmente, alimentado pelas tradições orais, e também através da circulação
de impressos e manuais de oração com temas voltados para a meditação da Paixão de Cristo. É
possível afirmamos tal coisa tendo em vista que identificamos no inventário do pintor Caetano
Luiz de Miranda (1759-1837) um exemplar em língua francesa de Alma sobre o Calvário, o que nos
indica a presença de livros com a temática circulando na Minas colonial.753 Um outro exemplo da
‘popularidade’ da devoção a Paixão de Cristo, dessa vez material e ainda presente na
contemporaneidade, pode ser observado nos emblemáticos ‘passinhos’ de rua. Os passinhos são
pequenas capelas anexas ao casario colonial que possuem representações artísticas relacionadas aos
passos da Paixão (a via-sacra) e objeto de veneração quando abertas durante as festividades
quaresmais e pascais. Presentes em vários centros urbanos setecentistas, como São João del-Rei e
Vila Rica por exemplo, podem ser considerados testemunhos veementes da intensidade do culto à
Paixão na antiga Capitania.
No contexto da contrarreforma, talvez a obra que mais possa nos demonstrar a afetividade
devocional (e intrinsecamente Barroca) ao tema da Paixão seja o Tratado do amor de Deus (1616),
749 Como demonstrou Sérgio da Mata em sua obra: “Chão de Deus, catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em Minas
Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX”.
750 ALVES, Célio Macedo. Um estudo iconográfico. In: COELHO, Beatriz (org.) Devoção e arte, imaginária
escrito pelo bispo de Genebra (e doutor da Igreja) São Francisco de Sales (1567-1622). Numa
passagem da obra, presente no V Capítulo que versa acerca Do amor de condolência e de complacência
para com a paixão de Nosso Senhor, podemos observar o tom dramático do bispo francês ao meditar
sobre o tema da Paixão:
Quando vejo o meu Salvador no monte das Oliveiras com a sua alma triste até a morte,
ah! Meu Jesus, exclamo: quem pode suportar estas tristezas da morte na fonte da vida,
senão o amor que, excitando a comiseração, atraiu por esse meio as nossas misérias ao
vosso Coração soberano? Ora como pode a alma devota deixar de sentir uma dor
santamente apaixonada ao ver neste divino amante um tal abismo de amargura e de
aflição?754
Em uma outra passagem, o intimismo e o subjetivismo atingem um nível tal que podemos
visualizar um momentâneo êxtase espiritual:
As angústias do meu amado me mudaram a cor pois, como poderia uma fiel amante
considerar tantos tormentos naquele a quem ama, mais que a própria vida, sem ficar
trespassada, lívida e consumida de dor? [...] Eis como a beleza do amor se encontra na
fealdade da dor. Se a profunda mágoa que me causa a Paixão e morte do meu Rei me
definha e me consome, não posso deixar de sentir uma inefável suavidade ao ver o
excesso do seu amor no cúmulo das suas dores [...]. Oh! Eu vejo este querido amante,
como chama de amor ardendo numa sarça espinhosa de dor, exatamente como eu que
estou abrasada de amor no meio das silvas das minhas dores, contemplai também a beleza
de meus suaves amores.755
Tal descrição, feita por Francisco de Sales, remete-nos – num paralelo comparativo – aos
emblemáticos êxtases de Santa Teresa d´Ávila (1515-1582), fruto de sua união espiritual e íntima
com o ‘Amante’, nesse caso, o próprio Cristo. No tempo do Barroco, com as realistas imagens do
Crucificado, cuja expressividade dramática e persuasiva se tornava elemento primordial para a
contemplação e possível êxtase espiritual por parte do devoto, não é descabido pensar no efeito
que as representações plásticas causavam nos fiéis diante dos seus oratórios domésticos, recolhidos
no interior das residências. O teor do Tratado do amor de Deus de São Francisco de Sales serve-nos
de exemplo (e representação de uma época) em como a devoção a Paixão de Cristo atraía os
devotos e, por isso, como superabundou as imagens do Cristo crucificado e, em segundo plano, as
representações da Via Crucis e das Arma Christi nos oratórios domésticos em Minas Gerais.
A primeira representação que observamos nos oratórios domésticos com o tema da Paixão
de Cristo é a Via Crucis, também conhecida como Passio Domini, ou seja, a ‘estrada da cruz e os
passos do Senhor’ rumo à sua morte no Monte Calvário. A iconografia da Via Crucis possui base
754 SALES, Francisco de (São). Tratado do amor de Deus. Tradução sobre a edição crítica publicada pelas Religiosas
da Visitação D´Annecy. Porto: Livraria Apostolado do Impresso, 1958, p. 222.
755 SALES, Francisco de (São). op. cit. p. 222-223.
416
As cenas da Via Crucis são, comumente, representadas na parte interna das portas dos
oratórios domésticos, compondo a narrativa dos principais passos da Paixão de Cristo que
culminará na sua crucificação e morte, representada pelo crucificado em imaginária (podendo ser
acompanhado pelas imagens de Maria - com o título de Nossa Senhora da Soledade - e São João
Evangelista em imaginária ou pintura), como pudemos observar nos capítulos anteriores, assim
como nos exemplos abaixo ilustrados.
Tais cenas não fazem alusão somente a alguns momentos específicos da Via Crucis, mas se
tornaram imagens com forte carga afetiva que foram, ao longo do tempo, transformadas em
devoções específicas e autônomas como, por exemplo, o Senhor dos Passos (em alusão a Cristo
carregando a cruz), o Senhor da Cana Verde (cuja representação concentra o aspecto da tortura,
756Curioso notar que as seis cenas representadas nos oratórios domésticos são, também, comumente representadas
nos chamados ‘passinhos’ de rua, pequenas capelas adossadas à arquitetura urbana com representações escultóricas e
pictóricas da Paixão de Cristo, sendo abertas ao público durante os exercícios quaresmais.
417
do escárnio e do Ecce Homo), assim como o Senhor da Coluna (em relação ao momento da
flagelação de Cristo, que foi atado a uma coluna durante o ato).
A terceira cena nos apresenta a flagelação de Cristo, sendo este atado a uma coluna. Cristo é
representado seminu e intensamente ferido, com a presença viva do sangue em suas costas e pernas
chagadas. A iconografia possui base literária também nos evangelhos sinópticos (Mateus 27, 15-31,
Marcos 15, 6-20 e Lucas 23, 13-25) e no evangelista João (João 19, 1-16), no entanto, embora todos
os evangelistas afirmem que Pilatos o mandara açoitar, a cena não é descrita. Sendo assim, a
composição iconográfica foi desenvolvida segundo o imaginário dos castigos romanos, sendo
representada ao longo do tempo até atingir a dramaticidade típica do Barroco.
As três cenas acima descritas se encontram, normalmente, na parte interna da porta direita
dos oratórios domésticos, já na porta esquerda, temos outras três representações que dão
continuidade aos passos da Paixão. A quarta cena apresentada possui ligação direta com a anterior.
Nela, vemos Cristo sentado e intensamente ferido, tendo em sua cabeça uma coroa de espinhos e
nas mãos uma cana. Após a flagelação, Cristo recebeu uma série de insultos, sendo aclamado
jocosamente como rei dos judeus (Iesu Nazarenus Rex Iudeorum). A passagem se encontra nos
possuiu maior vitalidade e expressividade nas festividades da Semana Santa onde, até a contemporaneidade, se celebra
a procissão do ‘Cautivo’.
418
evangelhos sinópticos (Mateus 27, 15-31, Marcos 15, 6-20 e Lucas 23, 13-25) assim como em João
19, 2-4.
A quinta cena nos apresenta a figura do Ecce Homo, “eis o homem!”760 A representação
consiste em Cristo, após a flagelação, vestindo um manto púrpura e sendo apresentado ao povo
por Pilatos que profere a frase latina que nomeou a iconografia: Ecce Homo. A cena é decorrente da
anterior e é descrita nos sinópticos e no evangelho de João (19, 4-5) e possui um simbolismo já
preconizado nas linhas do Antigo Testamento, como nos aponta Luís Schökel:
A zombaria versa sobre o título de rei. A coroa é de material desprezível, com espinhos
como raios [...] A púrpura (violeta) era cor imperial. Jesus sofre em silêncio: “ofereci o
dorso aos que me batiam..., não cobri o rosto diante dos ultrajes e cuspidas” (Is. 50, 6-7).
A forma é a apresentação e aclamação do rei, segundo o modelo de Saul (1Sm 10, 24-25),
Salomão (1Rs 1, 38-40.46-47), Jeú (2Rs 9, 12-13), Joás (2Rs 11, 12-14). Só que aqui Jesus
aparece com outra indumentária régia e escuta como única aclamação ‘crucifica-o’. [...]
Pilatos declara pela segunda vez que Jesus é inocente. Na intenção de Pilatos, “homem”
poderia indicar desprezo ou pena. Na mente do narrador pode ser correlativo do título
“filho de Deus”.
A sexta e penúltima cena apresenta Cristo levando a cruz às costas, sendo, por vezes, açoitado
durante o caminho por centuriões romanos. Trata-se da iconografia mais emblemática e mais
difundida em Minas Gerais nos séculos XVIII e XIX, sendo comumente invocada sob o título de
‘Senhor dos Passos’. A cena possui base evangelística, tanto nos sinópticos (Mateus 27, 32-44,
Marcos 15, 21-32 e Lucas 23, 26-43) assim como em João 19, 17. Nas descrições, é narrado o
caminho tortuoso, sofrido e constrangedor de Cristo até o Monte Calvário, onde seria crucificado.
O apelo dramático da cena, muito típica do Barroco, aprofundou o caráter psicológico da
passagem, enriquecida pela descrição do evangelista Lucas que assim narra a cena:
Seguia-no grande multidão do povo e mulheres chorando e lamentando-se por ele. Jesus
voltou-se e lhes disse: - Moradoras de Jerusalém, não choreis por mim; chorais por vós e
por vossos filhos. Porque chegará um dia em que se dirá: Felizes as estéreis, os ventres
que não pariram, os peitos que não amamentaram! Então começarão a dizer aos montes:
Caí sobre nós; e às colinas: Sepultai-nos. Pois, se tratam assim a árvore viçosa, o que não
farão com a seca?761
A vivacidade da descrição bíblica (aspecto que somente o evangelho de Lucas possui nessa
passagem em específico) serviu de ímpeto criativo para o aspecto psicológico da cena, o que
contribuiu significativamente para os artistas explorarem composições imagéticas que denotassem
o aspecto humano do sofrimento de Cristo, visando impressionar e emocionar o fiel.
760 EVANGELHO DE JOÃO 19, 5. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2612.
761 EVANGELHO DE LUCAS 23, 28-31. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2535-2536.
419
A composição iconográfica das Arma Christi teve seu início nos primórdios da imagética
cristã, atingindo popularidade durante toda a Idade Média quando se tornou tema recorrente dos
livros de oração e saltérios, sendo também fartamente representado nas iluminuras de Livros de
Horas.762 Compõem as Arma Christi os seguintes símbolos:
- A cruz (onde Cristo foi crucificado, podendo ser representada sozinha ou acompanhada de
outras duas cruzes que correspondem ao do ‘Bom’ e ‘Mau’ ladrão, como visto na figura 336);
762EDSALL, Mary Agnes. Arma Christi Rolls or Textual Amulets? The Narrow Roll Format Manuscripts of “O
Vernicle”. Magic, Ritual, and Witchcraft Journal. University of Pennsylvania Press, 2014, pp. 178-209.
De acordo com Héctor Schenone, a Arma Christi também foi amplamente representada (sobretudo na pintura) no
período tardo-medieval (séculos XIV – XV), se tornando elemento indissociável da valorização do culto a humanidade
de Cristo, muito peculiar desse período.
420
- O cálice (popularmente chamado de Graal) onde José de Arimatéia, nas versões apócrifas,
coletou o sangue de Jesus durante a crucificação;
- Os dados, simbolizando o ‘jogo de sorte’ que os guardas tiraram para saber quem ficaria
com a túnica de Jesus;
Como podemos observar na gravura de Hironymus Wierix, [figura 338] a reunião desses
símbolos em uma única representação faz com que a imagem formada atinja um grau de síntese
iconográfica, proporcionando ao fiel uma leitura pormenorizada da Paixão de Cristo através dos
elementos representados. Tais símbolos foram representados, comumente, na parte interna das
portas dos oratórios (assim como as seis passagens da Via Crucis, como vimos), o que determina o
tema da peça. Através dos símbolos que compõem as Arma Christi, o devoto poderia meditar
pormenorizadamente o tema da Paixão, servindo de estímulo para o fervor em torno do sofrimento
de Cristo e de sua missão salvífica, indo de acordo com o ardor místico e sentimental expressado
nos tratados e escritos religiosos da época.
próprio Cristo na cruz acompanhado de Maria, sua mãe (concebida sob a invocação de Nossa
Senhora das Dores ou Nossa Senhora da Soledade, sendo essa última a mais comum) e o apóstolo
São João, o evangelista. Junto desses dois personagens, aparece, por vezes, a figura de Maria
Madalena, ajoelhada logo abaixo da cruz. Tal cena, representada pelo conjunto escultórico, possui
como base literária os evangelhos sinópticos (Mateus 27, 32-44; Marcos 15, 21-32 e Lucas 23, 26-
43) e no evangelho de João (19, 17-27).763
Figura 338. Hieronymus Wierix. Deus cordis mei... Séc. XVI. Flandres.
Gravura. Fine Arts Museum of San Francisco
Figura 339. Oratório doméstico com Arma Christi. Séc. XVIII. Minas Gerais.
Museu do Ouro, Sabará. Fonte: BDPT
763Junto à cruz de Jesus estavam sua mãe, a irmã de sua mãe, Maria de Cleófas e Maria Madalena. Jesus, vendo a mãe
e ao lado o discípulo predileto, diz à mãe: - Mulher, aí está o teu filho. Depois diz ao discípulo: - Aí está a tua mãe.
Desde esse momento o discípulo a levou para sua casa.
EVANGELHO DE JOÃO 19, 25-27. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2615.
422
Regional de São João del-Rei, cuja forma entrelaçada e sinuosa evoca a forma de uma árvore
espinhosa e com raízes, como podemos observar nos detalhes abaixo.
Schenone nos indica que a cruz foi associada à árvore desde os primórdios do cristianismo.
Na simbologia cristã, Cristo significava o fruto mais precioso dessa árvore. Além disso, a figura da
árvore fazia também alusão à árvore do Jardim do Éden – a árvore da vida – simbolizando a
redenção da humanidade que tivera as portas do paraíso fechadas desde Adão, o primeiro homem
a pecar (tendo legado à sua descendência o pecado original).764 Como observado por Schenone, o
hino Crux Fidelis (Cruz Fiel) de São Venâncio Fortunato (530-609)765 já estabelecia a relação entre
a cruz e a árvore:
Acerca desse simbolismo, Schenone nos apresenta uma correlação iconográfica muito
interessante:
Através dessa ligação entre a cruz e a árvore da vida, é estabelecida a relação entre Adão e
Cristo, significando respectivamente queda e ascensão, pecado e redenção, morte e vida: Cristo é,
para a tradição cristã, o ‘novo Adão’, como estabelecido em Romanos 5, 12-21:
Pois bem, por um homem penetrou o pecado no mundo e pelo pecado a morte, e assim
a morte se estendeu por toda a humanidade, já que todos pecaram. Antes de chegar a lei,
o pecado já estava no mundo; mas como não houvesse lei, o pecado não era levado em
conta. Contudo, a morte reinou desde Adão até Moisés, inclusive sobre os que não
haviam pecado imitando a desobediência de Adão – que é figura daquele que havia de
vir. – [...] Pois, se pelo pecado de um só reinou a morte através somente dele, com maior
razão, por meio de um só, Jesus Cristo, reinarão vivos os que recebem o favor abundante
de uma justiça gratuita.768
A relação entre Cristo e Adão na iconografia do crucificado será representada através do uso
do crânio e das tíbias aos pés da cruz. O crânio e as tíbias podem aludir, numa primeira análise, ao
monte Calvário, chamado também ‘monte da caveira’. A presença de Adão como uma caveira na
cena da crucificação já era representada desde a pintura flamenga do século XV, como podemos
765 Tal hino fora composto em 570 (d.c) na ocasião da procissão da relíquia da cruz que seria dada a Radegunda (518-
587), rainha dos francos. MOLINIER, Auguste. Les sources de l´histoire de France des origines aux guerres
d´Italie (1494). Edição de 1903 pertencente a Bibliothèque de l´École des chartes. Disponível em:
https://www.persee.fr/doc/bec_0373-6237_1903_num_64_1_461478. Acesso aos 01/09/2020.
766 Original em latim e tradução portuguesa retirada do Liber Cantualis, da Associação Cultural Nossa Senhora de
observar na Crucificação de Geertgen tot Sint Jans (c. 1490) [figura 343]. Numa curiosa e
interessante gravura de Hieronymus Wierix, a Alegoria da Redenção da Humanidade (c. 1563) [figura
344] podemos observar o deslocamento de significado, onde a caveira irá representar a morte (uma
associação muito comum).
Figura 343. Geertgen tot Sint Jans. Crucificação, com São Jerônimo e São
Domingos com cenas da Paixão. c. 1490. Óleo sobre painel. 24,4x18,4cm.
National Galleries of Scotdland, Escócia
Figura 344. Hieronymus Wierix. Alegoria da Redenção da Humanidade. c.
1563. Gravura. Rijksmuseum, Amsterdã
A gravura de Wierix nos apresenta uma iconografia de síntese que, por fim, encerra também
a nossa análise. Através do sacrifício de Cristo na cruz, a vida vence a morte (representada através
da caveira que jaz sob os pés do ressuscitado) e a humanidade alcança a tão esperada redenção,
redenção essa representada por Adão e Eva que são libertados de seus grilhões. Contudo, as
representações do crucificado sempre contarão com a presença do crânio e das tíbias em sua base,
uma tendência quase ‘hegemônica’ na imaginária colonial, como bem observou Héctor
Schenone.769 Portanto, a caveira e tíbias serão elementos de hipersignificado, simbolizando a morte
(vanitas), o memento mori (lembra-te que morrerás), fazendo alusão também à etimologia do Gólgota
ou Calvário (o monte da caveira) e também à Adão, o primeiro pecador, que possui base
iconográfica (de acordo com Schenone) numa antiga tradição que considera que
[...] tendo morrido Adão, seu filho Seth introduzira em sua boca uma semente, como
indicara o anjo da morte. A semente germinara e desta crescera uma árvore – que durou
até os tempos de Salomão – cuja madeira (no decorrer do tempo) fora utilizada para a
feitura da cruz na qual Cristo fora crucificado. Adão foi sepultado em um monte, que
alguns autores indicam como sendo o Calvário, e no lugar onde se colocou a cruz, seu
corpo (assim como dos demais santos, como cita Mateus), ressuscitou ao ter contato com
o sangue divino que escorria pelo madeiro. 770
Interessante ressaltar que o anjo da morte, representado por uma caveira (vanitas), alcançou
fortuna na arte sacra e religiosa da Idade Média, perdendo força iconográfica somente no findar do
século XIX.771 A brevidade da vida (memento mori) será sempre lembrada e evocada nas
representações plásticas. Nos oratórios domésticos mineiros, embora raros, o crânio e as tíbias
serão elementos de recordação dessa brevidade da vida, da morte que sempre está à espreita e,
principalmente, elemento visual que torna sempre vívido ao devoto o alto preço do sacrifício de
Cristo na cruz. Embora no tempo do Barroco, onde os nossos oratórios se encontram delimitados
estilisticamente, o memento mori seja citado somente como elemento auxiliar na iconografia
cristológica e dos santos, não podemos deixar de notar que a morte (como tema de meditação) já
serviu como iconografia central em nichos privados e oratórios portáteis no Renascimento e no
Maneirismo europeu, o que demonstra a perenidade do ícone como leitmotiv da iconografia cristã,
que faz referência – primordialmente – à vida futura.772
Embora o tema do triunfo de Cristo sobre a morte seja o assunto primordial da fé cristã, as
representações do ressuscitado não ganharam muita ênfase nos oratórios domésticos em Minas
Gerais. O Cristo crucificado terá grande destaque, em detrimento do Cristo ressuscitado que em
nossa pesquisa apareceu apenas uma única vez [figura 345], o que atesta a raridade da iconografia
nos oratórios mineiros. Ao lado do ressuscitado, uma outra composição iconográfica rara em
(1568-1588), atualmente sob custódia do Kunsthistorischesmuseum, em Viena. No nicho central, temos um esqueleto,
inspirado nas gravuras do tratado De humani corporis fabricae (1543) do anatomista flamengo Andrea Vesalius,
representando Adão (e ao mesmo tempo o ‘anjo da morte) meditando acerca da brevidade da vida. A leitura
iconográfica é possível graças a presença de símbolos de inspiração bíblica e profana, como a maçã (em alusão ao fruto
proibido), a ampulheta (símbolo de Cronos, o deus do tempo) e o arco e a flecha em alusão ao Deus cristão como juiz
justo e misericordioso. Segundo a ficha catalográfica do Kunsthistorischesmuseum, os espelhos embutidos nas portas do
oratório doméstico serviam como elemento facilitador da ‘imersão’ do devoto no tema do nicho, fazendo com que o
mesmo estivesse diretamente envolvido no assunto (talvez pelos espelhos refletirem o rosto do fiel, impulsionando-o
a contemplar o esqueleto e o próprio rosto, tornando o ‘lembra-te que morrerás’ um assunto mais dramático, com um
impacto psicológico sem precedentes). Disponível em: www.khm.at/de/object/9375e58c83/. Acesso aos
22/04/2020.
426
oratórios ocorrerá em Minas, o crucificado encimado pela figura de Deus Pai e o Espírito Santo
[figura 346] em alusão à Santíssima Trindade, cuja representabilidade (de antecedentes medievais)
fora eternizada no afresco de Masaccio (1401-1428) na igreja de Santa Maria Novella, em Florença
[figura 347]. Tal iconografia teve recepção num oratório da região de São João del-Rei, talvez pela
devoção à Santíssima Trindade que encontrou na vizinha vila de São José do Rio das Mortes (atual
Tiradentes) especial destaque, como atesta a presença de igreja homônima.
Jesus Cristo), portanto, a figura de maior destaque na iconografia cristã e que se projeta acima dos
santos e dos anjos, até mesmo (na religião popular) acima do próprio Deus, como veremos a seguir.
Maria, a mãe de Jesus, embora apareça muito pouco nas narrativas bíblicas, se tornou –
depois da cruz – o maior símbolo da cristandade. Maria, versão latina do nome hebraico ‘Miryam’
773
- Maryam - alcançou um patamar muitíssimo elevado no culto cristão, talvez com base na
saudação angélica que a qualifica como ‘detentora da graça’: ‘Ave Maria gratia plena’, Salve Maria,
cheia de graça’. Sobre essa saudação, fórmula inicial da oração mais difundida ao longo dos séculos,
nos diz o estudioso Jaroslav Pelikan:
“Ave Maria, cheia de graça: o Senhor é convosco” foi, de acordo com a Vulgata, a
saudação do anjo Gabriel a Maria. Reagindo contra a tradução e contra o sentido que lhe
foi imputado, considerou-se que “cheia de graça” significaria que Maria não era apenas
objeto e receptáculo da benevolência divina, mas que, possuindo toda a plenitude da
graça, teria todo o direito de concedê-la. [...]774
No todo, a primeira fórmula da Ave Maria (Ave Maria, cheia de graça: o Senhor é convosco. Bendita
sois vós, entre as mulheres, e bendito é o fruto do vosso ventre, Jesus) possui referência na saudação angélica,
como consta no evangelho de Lucas 1, 26-31. Já a segunda parte (Santa Maria, mãe de Deus. Rogai
por nós, pecadores, agora e na hora de nossa morte, amém), concorre para o título que a Igreja nascente lhe
atribuiu: a mãe de Deus.
Sua primeira sentença, como pontuada aqui, combina as duas saudações bíblicas da
Vulgata. A segunda é uma súplica que alia o título pós-bíblico, Theotokos, à doutrina
marista posterior, de acordo com a qual os santos nos céus intercedem pelos crentes da
terra e a fortiori que a Mãe de Deus, sendo ‘cheia de graça’ e portanto mediadora, pode
interceder por eles, os quais, por sua vez, têm o direito de pedir diretamente a ela.775
Não faremos aqui um estudo aprofundado acerca da origem e trajetória do culto (assim como
dos embates teológicos, que foram muitos) à Virgem Maria, no entanto, é pertinente observarmos
os títulos teológicos que influenciaram diretamente as suas representações artísticas que figuram,
desde os primórdios do cristianismo, no culto público e privado. Os principais títulos teológicos
773 RÈAU, Louis. Iconographie de l´art chrétien. Paris: Presses Universitaires de France, 1957, p. 53.
774 PELIKAN, Jaroslav. Maria através dos séculos – seu papel na história da cultura. São Paulo: Companhia das
Letras, 2000, p. 30.
775 PELIKAN, Jaroslav. op. cit. p. 31.
428
- A segunda Eva (ou a Nova Eva), em alusão à redenção da humanidade. Eva trouxera ao
mundo o pecado, tendo em vista a sua desobediência a Deus. Maria, ao contrário, resgatara a
humanidade através de sua obediência, trazendo ao mundo o Salvador.
- Virgem das Virgens (Virgo, Parthenos), em alusão à sua castidade perpétua antes, durante e
depois do parto. Mesmo sendo alvo de disputas eclesiásticas, prevalecera a ideia de que Maria
conservara sua virgindade antes, durante e depois do parto de Cristo, segundo a profecia de Isaías
que dizia que: “Uma virgem conceberá e dará à luz um filho, e será seu nome Emanuel”.776
- Mater dolorosa (Mãe das dores), em alusão às chamadas ‘sete dores de Maria’. A iconografia
da Mater dolorosa receberia grande apoio formal na célebre frase do profeta Simeão: “E uma espada
trespassará também a tua própria alma”.777 Assim como ‘o homem sofredor’ (Cristo), a
representação da ‘mãe das dores’ irá alcançar notoriedade na iconografia mariana, sendo muito
difundida no território mineiro.
776 ISAÍAS 7, 14. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. Bíblia do Peregrino. São Paulo: Paulus, 2011, p. 1701
777 EVANGELHO DE LUCAS 2, 35. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2458
429
que elencamos acima, tornando-se assim uma invocação de rico significado. A segunda invocação
(Boa Morte), foi escolhida por possuir um ciclo iconográfico muito interessante e, ao contrário da
Virgem da Conceição, figura como uma representação rara nos oratórios domésticos analisados.
Sendo assim, digna de uma atenção maior.
No entanto, o dogma possui sua base (embora a bula de promulgação dogmática não deixe
isso muito claro) na tradição apócrifa, especificamente na lenda da ‘Porta de Ouro’. O dogma
afirma categoricamente que Maria fora concebida (por Santa Ana) de forma imaculada (sem
intercurso sexual) e preservada “imune de toda mancha da culpa original no primeiro instante da
sua concepção por singular graça e privilégio de Deus onipotente”.778 A lenda (que se encontra no
Proto-evangelho de Tiago) narra que, embora Joaquim e Ana fossem felizes no matrimônio, eram
infelizes por sua incapacidade de gerar um filho. Certa vez, Ana recebera a recomendação de um
anjo para que fosse encontrar seu marido (Joaquim) na Porta de Ouro (em Jerusalém). 779 No
referido encontro entre Joaquim e Ana, ao se beijarem, Ana engravidara milagrosamente de
Maria.780 Dessa maneira, Maria fora preservada do pecado original e por isso escolhida para ser a
mãe do salvador, tendo em vista que “quem poderia tirar da impureza um ser puro? Ninguém!” 781
Essa tradição apócrifa (muito difundida pela Igreja Oriental, segundo Louis Rèau782) unida à crença
778 DENZINGER, Henrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral da Igreja
Católica. São Paulo: Loyola, 2006, p. 615.
779 RÈAU, Louis. op. cit. p. 79.
780 RÈAU, Louis. op. cit. p. 79.
781 JÓ 14, 4. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 1086.
Obs: O texto bíblico original (retirado da Bíblia do Peregrino) possui a seguinte versão: “Quem tirará pureza da impureza?
Ninguém! ” Readequamos o excerto para que se tornasse harmonioso com o nosso texto.
782 RÈAU, Louis. op. cit. p. 79.
430
de que Maria conservara a sua virgindade antes, durante e depois do parto, solidificou o título de
‘Puríssima’.
A representação da Virgem da Conceição que temos nos oratórios domésticos é aquela que
foi difundida e autorizada pelo Concílio de Trento, surgida após o processo de expurgo devocional
431
e iconográfico que se seguiu. A Virgem da Conceição que vimos nos exemplos acima ilustrados
[Figuras 348-349-350-351] fazem alusão ao seu segundo título, a de ‘Puríssima’, que se refere
justamente ao conteúdo que o dístico Tota pulchra exprime: a concepção imaculada e a virgindade
perpétua de Maria. Na iconografia medieval, a Virgem da Conceição é representada como a Tota
pulchra (Toda puríssima) que possuía como símbolos o espelho (significando a verdade, a justiça e
a castidade), o cipreste e a oliveira (esse último ocorrendo principalmente nas representações da
Anunciação), assim como o plátano e o cedro do Líbano (aludindo à eternidade), a palmeira, a rosa
e demais elementos simbólicos que enalteciam o qualitativo ‘Puríssima’.783
No entanto, o Concílio não viu uma base teológica nessas representações medievais,
suprimindo-as e buscando nos textos bíblicos a argumentação canônica que solidificaria o
programa iconográfico da Virgem da Conceição. A formação pós-tridentina da Virgem da
Conceição se plasma à figura da ‘mulher do apocalipse’, como descrito no Livro do Apocalipse 12,
1-2: “Um grande sinal apareceu no céu: uma mulher vestida do sol, a lua sob os pés e na cabeça
uma coroa de doze estrelas”.784 Entretanto, seriam acrescentados outros elementos à Virgem da
Conceição, como a serpente sendo pisada por um dos seus pés (a serpente – geralmente – possui
um fruto na boca), em alusão à passagem do Livro do Gênesis 3, 15: “[...] ponho hostilidade entre
ti e a mulher, entre a tua descendência e a dela: esta te ferirá tua cabeça quando tu ferires seu
calcanhar”.785
Contudo, tal programa iconográfico só atingiria bases mais sólidas na arte através da pintura
espanhola, como aponta Cristina Osswald:
[...] a Sevilha barroca foi sem dúvida um dos centros fundamentais para a afirmação deste
culto. Destaca-se neste contexto Bartolomé Estéban Murillo, que ficou conhecido na
história da arte como o pintor das Imaculadas. Murillo criou em meados do século XVII
a tipologia da Imaculada Conceição a esvoaçar nas nuvens. [...] Por outro lado, não
poderíamos deixar de referir um outro artista sevilhano, o pintor e escultor Juan Martinez
Montañez, que colaborou com Francisco de Pacheco na realização de várias
imaculadas.786
muito bela, com olhos amorosos e solenes, um nariz e uma boca perfeitos, faces rosadas,
e um cabelo o mais belo e longo.787
Sobre o panejamento:
Figura 352. João Nepomuceno Correia e Castro (atribuição). Imaculada Conceição. Séc.
XVIII. Minas Gerais. Óleo sobre tela. 2,16x112,7cm. Proveniente do Museu
Arquidiocesano de Mariana. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: Creative
Commons
Como pudemos observar, assim como nos modelos espanhóis, as representações de Nossa
Senhora da Conceição nos oratórios domésticos aqui analisados possuem, na maioria das vezes,
um tratamento não canônico dos símbolos iconográficos e dos panejamentos. Notamos que os
elementos são dispersos, sendo alguns acrescentados e outros suprimidos. Além disso, a
disparidade iconográfica não se ateve apenas aos elementos simbólicos, mas também às
vestimentas. Nesse último caso, a paleta predominante foi o azul e vermelho para o manto
[Figuras 348-349] assim como o farto douramento (próprio da estética Barroca) e a ornamentação
floral (típica do Rococó). Contudo, a questão simbólica nos é mais cara, pois a figura da Virgem da
Conceição se apresenta como uma síntese iconográfica de Maria, elevando-a num patamar de
importância tal que o seu papel na esfera devocional faz páreo ao de seu filho, Jesus Cristo.
789O papel de ‘corredentora’ da humanidade, atribuído a Maria, fez dela um dos principais personagens da fé cristã,
sendo – por vezes – mais invocada (e podemos dizer, até mais amada?) do que o próprio Cristo. É interessante notar
a importância que a teologia dispensa à figura da Virgem, como podemos observar no Catecismo da Igreja Católica.
Nos parágrafos 967-968 diz: “Maria é a Mãe da Igreja na ordem da graça. Ela aderiu totalmente à vontade do Pai, à
obra redentora de Jesus e à inspiração do Espírito Santo. Por isso ela é, para todo o povo de Deus, o modelo da fé e
da caridade. Entre todas as criaturas humanas, a Mãe de Jesus se destaca de maneira singular. Pela sua fé, obediência,
esperança e ardente caridade, ela foi a maior cooperadora do Salvador e, portanto, a Mãe que ajudou na salvação
de todos os seres humanos. Por isso ela se tornou Mãe da Igreja”. Num outro parágrafo (969-970) o CIC afirma
que: “No céu, Maria continua sendo Mãe da Igreja e sua intercessora junto de seu Filho. Sua missão materna não
diminui a obra salvadora de Jesus, mas dela depende”. Nesses parágrafos transcritos do Catecismo da Igreja
Católica, podemos perceber a importância de Maria no ‘plano de salvação’, dividindo com Cristo a responsabilidade
da redenção da humanidade, sendo, portanto, ‘co-redentora’. Ver: IGREJA CATÓLICA. Catecismo da Igreja
Católica. São Paulo: Loyola, 2000. [grifo nosso]
434
Figura 353. Oratório-capsular com Nossa Senhora da Conceição. Séc. XVIII-XIX. Rio de Janeiro. Alabastro, madeira, vidro
e conchas. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: BDPT
790 Aqui cabe um adendo: O oratório-capsular e ornamentado com conchas e escamas trata-se de uma tipologia
originada da cultura visual e artística de Santa Catarina (SC) e do Rio de Janeiro, que alcançou expressiva
representabilidade sob as mãos do escultor Francisco dos Santos Xavier, o dito ‘Xavier das Conchas’ (1739-1814). A
maioria desses oratórios-capsulares e ornamentado com conchas foram manufaturados no Rio de Janeiro (onde Xavier
das Conchas atuara grande parte da vida). Tanto no Museu da Inconfidência como no Museu do Oratório em Ouro
Preto, MG (que conta com quatro exemplares da tipologia em seu acervo) a presença desses oratórios (que foram
recolhidos nos diversos centros setecentistas de Minas durante o século XX) nos indica – preliminarmente – que os
mesmos eram importados do Rio de Janeiro para a Capitania das Minas (no século XVIII e início do XIX). Embora
estejamos, no presente estudo, analisando obras manufaturadas em Minas Gerais, não poderíamos deixar de analisar a
peça representada na figura 353, tendo em vista que se apresenta como uma ‘obra de síntese’ para a iconografia mariana
por nós analisada. Além disso, é importante ressaltar que o referido oratório (mesmo tendo sido manufaturado no Rio
de Janeiro) foi objeto de devoção na Minas colonial, portanto, podendo ser enquadrado como uma obra integrante do
acervo mineiro (assim como os oratórios em estilo Dom José I de fatura portuguesa). Para maiores informações acerca
do enigmático (e pouco estudado) Francisco dos Santos Xavier (Xavier das Conchas) e de sua obra (que contempla os
oratórios-capsulares), ver: MAKOWIECKY, Sandra. Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier
das Conchas e Xavier dos Pássaros. 19&20, Rio de Janeiro, v. XII, n. 2, jul-dez, 2017. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/sm_passeiopublico.htm. Acesso aos 20/09/2020.
435
maneira que somos persuadidos a venerar o mistério ali encenado. Em suma, possui um mecanismo
artístico intrinsecamente Barroco. Nesse diminuto palco de persuasão retórica, as toscas imagens
cativam o olhar não apenas pelo pitoresco das formas escultóricas, mas sobretudo pelo eloquente
discurso visual que ali observamos. Embora estáticas e quase hieráticas, as pequeninas esculturas
indicam movimento, movimento esse que confere à cena uma dramaticidade piegas e transmite ao
fiel (ambientado ao discurso religioso) uma mensagem muito clara: a Virgem é o antídoto para a
desgraça inerente ao gênero humano, o pecado original.
A atenção, no entanto, não é monopolizada pela fulgurante Virgem. Logo abaixo, figura um
conjunto escultórico muito expressivo. Um anjo (armado com uma espada flamejante em riste em
uma mão e na outra um escudo, vestindo couraça, elmo e botas à moda romana) parece expulsar
436
dois personagens seminus, um homem e uma mulher. Vestidos com tangas de folhas, seus
semblantes demonstram desesperança. Trata-se da cena da expulsão de Adão e Eva do paraíso,
sendo conduzidos por um anjo com a espada flamejante que aqui possui semelhança com São
Miguel, o arcanjo.
Na arte colonial, os anjos descritos no texto bíblico foram sintetizados na figura de São
Miguel, o arcanjo, portando a espada flamejante, como dissemos. Essa representação de Miguel (o
‘principe da milícia celeste’) foi intensamente representada na arte virreinal, atingindo elevada
representabilidade em toda a América Espanhola (ao contrário da América Portuguesa em que São
Miguel será representado – na maioria dos casos – portando uma lança ou bandeira com o dizer
latino ‘Quis ut Deus’ em uma mão e na outra a balança com as almas do purgatório). A partir da
iconografia medieval, os anjos que expulsam Adão e Eva do paraíso serão representados –
comumente – com a figura de um único anjo, desprovido de atributos militares e portando apenas
uma espada comum ou a referida ‘espada flamejante’, como podemos observar nas gravuras de
Dürer [Figura 359] e Hollar [Figura 360]. Já o anjo do nosso oratório, como vimos, se encontra
ornado com a vestimenta militar e porta a espada flamejante, o que nos indica que possivelmente
o artista tenha mesclado a iconografia de São Miguel com o anjo do Gênesis. A similitude da espada
flamejante de Miguel com a do anjo guardião do Éden talvez tenha sido o elemento que propiciou
a junção iconográfica.
Após a serpente ardilosa ter tentado Eva, a primeira mulher, a comer do fruto proibido,
tendo-o comido, deu-no também à Adão. Ao tomar ciência do fato, Deus os expulsara do paraíso,
para que tivessem uma vida repleta de dores, angustias e trabalhos extenuantes: em suma, uma vida
437
que em que não se gozaria das benesses do Éden. A passagem da expulsão é descrita no Gênesis
3, 22-24:
Pensamos que essa relação – que ‘factualmente’ não deveria existir – talvez tenha sido
estabelecida através da compreensão de que a Imaculada Conceição também seja uma
representação da ‘mulher do apocalipse’, como pudemos notar anteriormente. No livro do
apocalipse, logo após o ‘grande sinal no céu’ (a mulher) surgira outro sinal igualmente grande: um
dragão que desejava devorar o filho da mulher. A narrativa nos diz que:
Foi declarada guerra no céu: Miguel com seus anjos lutavam contra o dragão; o dragão
lutava ajudado por seus anjos, mas não vencia, e perderam seu lugar no céu. O dragão
gigante, a serpente primitiva, chamado Diabo e Satanás, que enganava o mundo inteiro,
foi arremessado na terra com todos os seus anjos. 792
791 GÊNESIS 3, 22-24. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 20-21.
792 APOCALIPSE 12, 7-9. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2960.
438
Figura 361. Miguel Cabrera. Virgen del Apocalipsis. 1750-1760. Óleo sobre tela. 352x340cm. Museo Nacional de Arte
de México, México
Pois bem. A presença da cena da expulsão de Adão e Eva do Paraíso estabelece, portanto, a
relação entre Eva e Maria. A primeira – a mãe de todos os viventes – trouxera o pecado ao mundo
através de sua desobediência, a segunda – a mãe de todos os viventes através de seu filho, Jesus
Em outras obras (cuja maioria é do gênero da pintura), executadas sobretudo no Vice-Reino da Nova Espanha
793
(México), há uma série de representações da Imaculada Conceição e ‘Virgens do Apocalipse’ acompanhadas de São
Miguel com a espada flamejante. Destaco aqui o Museo Nacional del Virreinato, em Tepozotlán, no México, que possui
em seu acervo interessantíssimas representações pictóricas do tema.
439
Cristo794 – trouxera a salvação ao mundo através do exato contrário de Eva, a sua obediência
irrestrita a Deus. Tal relação é acentuada através de um elemento curiosíssimo no conjunto
escultórico [Figuras 362-363]. Podemos observar um corpo feminino, representado pela metade,
e na outra metade um esqueleto humano. O corpo desfalecido segura um livro aberto que contém
em um lado a palavra ‘ENGANO’ tripartida, e no outro lado as palavras ‘EDS. DAV’.
Embora não tenhamos descoberto o que significam as iniciais ‘EDS. DAV’ (que podem ser
abreviações latinas), o termo ‘ENGANO’ parece aludir ao discurso moral da época. Nesse sentido,
não podemos deixar de relacioná-la ao manual setecentista Desengano dos Pecadores (1724), do jesuíta
Alexandre Périer.795 Manual da moralística religiosa lusitana, baseado nas vivências missionárias do
jesuíta no nordeste da América Portuguesa, o Desengano explora os sentidos “da vista, do gostar, do
olfato, do tato, da audição, da desesperação e da eternidade”796 para alertar os fiéis pecadores do
que os esperava na vida futura. O padre Périer cita, a todo momento, Eva, colocando-a como a
794 Maternidade justificada através da célebre passagem do evangelho de João: “Junto à cruz de Jesus estavam sua mãe,
a irmã de sua mãe, Maria de Cleófas e Maria Madalena. Jesus, vendo a mãe e ao lado o discípulo predileto, diz â mãe:
- Mulher, aí está o teu filho. Depois diz ao discípulo: - Aí está a tua mãe. Desde esse momento o discípulo a levou para
casa.” EVANGELHO DE JOÃO 19,25-27. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2615.
795 Em Cotidiano e vivência religiosa: entre a capela e calundu, texto do antropólogo Luiz Mott em História da vida privada no
Brasil – Cotidiano e vida privada na América Portuguesa (Companhia das Letras, 1997, p. 216), o autor o categoriza como
uma representação da ‘pedagogia do medo’. Num artigo de FLECK e DILLMANN (2017), os autores compartilham
da opinião de Mott. Segundo os autores, o Desengano dos pecadores do Padre Périer foi um manual espiritual que tinha
como propósito, através do seu texto e das estampas, explorar o medo dos fiéis, amedrontando-os acerca dos “terríveis
males do inferno”. É pertinente colocar que, embora o manual seja uma representação do medo do inferno (muito
próprio da religiosidade setecentista portuguesa) e uma tentativa de “melhor orientar o povo ignorante”, o livro fora
condenado pelas autoridades religiosas da época por ser demasiado ‘exagerado’ e difusor de “crença errônea”. Notamos
que as gravuras do referido livro não deixam a desejar ao gênero de terror mais dantesco, tendo em vista as horripilantes
representações demoníacas que, na época, deveriam causar o mais espantoso torpor psicológico. Ver: FLECK, Eliane
Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Condenados às fornalhas acesas do inferno: Sobre os tormentos do inferno
a que estavam sujeitos os pecadores (Desengano dos Pecadores, de Alexandre Périer SJ., 1724). Tempos Históricos,
vol. 21, 2017, pp. 292-322.
796 FLECK, Eliane Cristina Deckmann; DILLMANN, Mauro. Condenados às fornalhas acesas do inferno: Sobre os
tormentos do inferno a que estavam sujeitos os pecadores (Desengano dos Pecadores, de Alexandre Périer SJ., 1724).
Tempos Históricos, vol. 21, 2017, p. 296.
440
causa principal da existência do pecado no mundo. No sermão VI, dedicado ao Do tormento do Tacto,
temos a seguinte colocação:
Ah que não foy invenção, nem falsidade, nem menos engano; foy bem sim cautela
necessária, para fugir o perigo próximo; e foy huma prevenção consecutiva, conhecendo
muy bem, como tinha sciência infusa, que o mesmo era tocar o pomo, que comelo. Post
tactum venit ad actum. E quando Deos prohibe o peccar, prohibe também o perigo evidente,
e toda a disposição proxima, da qual procede infalivelmente o peccado. E por isto falou
Eva, como prudente, e acautelada, quando disse: Praecept nobis Deus, ne tangeremus illud.
Prouvera Deos, que tal cautela durarasse; que não padeceríamos agora tantas miserias, e
tentaçoes, nem tantos cahiriam nellas.797
O ‘engano’ de Eva fora a causa de sua ruína e de Adão, e com eles a ruína da humanidade.
A partir do ‘pecado original’ de Eva, a humanidade tornara-se escrava do pecado, e por conseguinte,
escravos da morte e do sofrimento, tendo em vista que “o salário do pecado é a morte”.798 Tal
contexto é representado na macabra figura de Eva, que carrega consigo a marca da morte,
simbolizada pelo esqueleto na outra metade do seu corpo. A gravura de Wenceslau Hollar que
ilustramos mais acima [Figura 360] demonstra muito bem o simbolismo do ‘salário do pecado’,
com a morte a comemorar com sua ‘dança macabra’ a saída de Adão e Eva do Paraíso.
Sendo assim, essa decadente e pecadora Eva, que levara Adão a comer do fruto proibido,
necessitou esperar sua redenção através do sacrifício de Cristo (o novo Adão), fato que só fora
possível através da obediência e pureza de uma Virgem (a nova Eva). É notável o que diz Padre
Antônio Vieira, no Sermão III da série Rosa Mystica acerca do tema da anunciação do anjo Gabriel
a Maria (Ave Maria gratia plena, dominus tecum!) quando estabelece que:
No princípio do mundo foi mandada a serpente pelo demônio, para que, pelos ouvidos
da mulher lhe infundisse na mente o veneno. E depois? Vede a elegância da
contraposição. [...] Eva ouviu, Maria ouviu: Eva ao demônio, Maria ao anjo; Eva recebeu
na mente o engano, e no ventre o fruto maldito; Maria concebeu na mente a verdade, e
no ventre o fruto bendito.799
797 PÉRIER, Alexandre SJ. DESENGANO DOS PECCADORES, Necessário a todo gênero de pessoas,
Utilíssimo aos Missionários, e aos Pregadores desenganados, que só desejão a salvação das almas. Obra
composta em discursos moraes pelo padre Alexandre Perier da Companhia de Jesus, missionário da Província do
Brasil. Em Roma, 1724. Na officina de Antonio Rossis na via do Seminário Romano, p. 136. | Biblioteca da
Universidade Complutense de Madri, Espanha. [grifo nosso]
798 CARTA AOS ROMANOS 6, 23. In: SCHÖKEL, Luís Alonso. op. cit. p. 2717.
799 VIEIRA, Padre Antônio. Sermão III – Maria Rosa Mística. In: Sermões escolhidos. V. 2. São Paulo: EDAMERIS,
assim pelos ouvidos da Virgem veio ao mundo o remédio e a vida”.800 Nesse sentido, parafraseando
a historiadora, a Virgem da Conceição – puríssima desde a concepção miraculosa no ventre de Ana
– é a justa contraposição de Eva, a pecadora: uma é o veneno, a outra o antídoto.
Como vimos, a iconografia de Nossa Senhora da Conceição801 figura como uma das mais
complexas entre as inúmeras representações marianas, cujo rico simbolismo sintetiza a imagem de
Maria como ‘Puríssima, Mãe Castíssima, Nova Eva e Virgem das Virgens’, como atesta a Litania Lauretana
em suas linhas laudatórias. Nesse momento, passando da invocação mais recorrente para a mais
rara, repousamos – à guisa de conclusão do presente tópico – na representação de Nossa Senhora
da Boa Morte, que ocupa uma posição modesta no ranking de devoções mais cultuadas nos
oratórios domésticos em Minas Gerais (tabela 11). Após a esmagadora presença da Virgem da
Conceição nos oratórios, figuraram outras invocações marianas. A segunda mais popular possui
vinculação direta com a Paixão de Cristo: Nossa Senhora da Soledade e Nossa Senhora das Dores,
o que explica também a popularidade do tema da Paixão em Minas que se estende à iconografia da
Virgem. Após essas, figuraram outras invocações populares como Nossa Senhora do Carmo, do
Rosário, do Bom Parto, da Piedade, da Purificação, do Amparo, das Mercês e da Penha de França,
figurando até mesmo devoções dos séculos XIX-XX como Nossa Senhora da Conceição
Aparecida e Imaculado Coração de Maria. Junto dessas invocações, figuraram representações
pictóricas e esculturais atreladas ao tema da ‘Dormição de Nossa Senhora’, com as imagens da
Dormição, Assunção e Coroação de Nossa Senhora, as três vinculadas ao tema da ‘Dormição’ que
encontra feliz síntese iconográfica na popular imagem de Nossa Senhora da Boa Morte.
800 GIOVANINNI, Luciana. Eva e Ave, o Veneno e o Antídoto: a iconografia da Anunciação da Capela do Rosário
dos Pretos da Vila de São José (c. 1820). Memento – Revista de Linguagem, Cultura e Discurso, UNINCOR, v.
08, n.2, jul-dez/2017, p. 20.
801 A Virgem da Conceição atravessará todo o imaginário colonial e imperial e se transformará, mais tarde, em símbolo
nacional com o advento da República Brasileira como Nossa Senhora da Conceição Aparecida. Antes lusitana e de
pele branca, alvorecerá na piedade popular através da negra imagem em terracota (de fatura seiscentista e possivelmente
de autoria – ou de sua oficina – de Frei Agostinho de Jesus), figurando como a padroeira do Brasil. Interessante
constatar que tal devoção, aportada em Minas e em toda a América Portuguesa através dos colonizadores portugueses,
continuou com vigor na devoção privada e pública, tornando-se símbolo nacional ressignificado. A ocupação do topo
máximo das devoções cultuadas nos oratórios domésticos em Minas é um indicativo parcial, mas muito significativo,
do impacto que a invocação teve no catolicismo popular, o que deve ser elucidado com estudos vindouros com esse
enfoque específico.
442
Constituição Munificentíssimus Deus, sob o papado de Pio XII. O texto da Constituição dogmática
nos oferece um entendimento básico acerca do tema:
[...] Sendo o nosso Redentor filho de Maria, como observador perfeitíssimo da divina lei
não podia deixar de honrar, depois do Eterno Pai, também a sua Mãe amantíssima. E
podendo ele adorná-la com tamanha honra que a preservasse da corrupção do sepulcro,
deve-se acreditar que realmente o fez.802
Por isso, sendo assim como a ressurreição gloriosa de Cristo constituiu parte essencial e
último troféu desta vitória, assim também a vitória de Maria Santíssima, comum com a
do seu Filho, devia terminar pela “glorificação” do seu corpo virginal. Pois, como diz
ainda o apóstolo, “quando este corpo mortal se revestir da imortalidade, então se
cumprirá o que está escrito: a morte foi absorvida na vitória”. 804
O termo ‘Assunção’, do latim Assumptio, se refere ao ato de ser assunta, ou seja, elevada. Ao
contrário de Cristo que ‘se elevara’, ou seja, ascendera ao céu pela própria vontade, Maria fora
elevada por força divina e não por ela mesma. Deste modo, Maria fora recebida no céu com um
corpo glorificado e “à semelhança do seu filho, vencida a morte [...]” refulgiu “como Rainha à
direita do seu Filho, Rei imortal dos séculos”.805
Figura 364. Oratório doméstico com Nossa Senhora da Boa Morte. Séc. XVIII-
XIX. São João del-Rei – MG. Museu de Arte Sacra, São João del-Rei.
Fonte: MAS/SJDR
Figura 365. Detalhe. Imagem de vestir de Nossa Senhora da Boa Morte.
Pertencente a oratório doméstico. Séc. XVIII. Museu de Arte Sacra, São
João del-Rei. Fonte: MAS/SJDR
806Em algumas imagens de maiores dimensões, é possível observar o leve semicerrar dos olhos, o que indica para o
observador que o momento da ‘morte’ ou ‘dormição’ de Maria ocorre naquele exato instante.
444
De todo modo, embora não tenhamos identificado ainda algum antecedente iconográfico
que elucide a presença do coração nas poucas e raras imagens da Senhora da Boa Morte nos nichos
inferiores dos oratórios-lapinha, temos uma vaga hipótese. Pensamos que o artista que esculpira
tais imagens tivera acesso a gravuras ou a algum conteúdo iconográfico que, pelo menos
445
minimamente, fizesse alguma alusão ao ‘coração’ no tema da dormição de Maria. Até onde essa
pesquisa pôde alcançar, identificamos na Legenda Áurea, de Jacopo de Varazze, a menção ao
‘coração’. Segundo a narrativa, Maria, anos após a morte e ressureição de Jesus, se viu um dia com
o “coração fortemente abrasado de saudade do seu filho”.807 Após sua passagem ter sido
confirmada pelo anjo, os Apóstolos – por força divina – foram reunidos na casa de Maria, a fim de
celebrarem junto dela as suas exéquias. No derradeiro momento, Jesus (acompanhado de toda a
corte celeste) chegara junto de sua mãe e lhe disse:
[...] “Venha, minha eleita, e eu a colocarei em meu trono porque desejo sua beleza.” Ela:
“Meu coração está preparado, Senhor, meu coração está preparado”. Então todos os
que tinham vindo com Jesus entoaram docemente estas palavras: “Aqui está quem
conservou seu leito sem mácula e por que isso receberá a recompensa que cabe às almas
santas”.808
Pensamos que o escultor das pequenas imagens de Nossa Senhora da Boa Morte,
encontradas nos nichos inferiores dos oratórios-lapinha, quis representar o momento da passagem
de Maria para a vida eterna, onde todo o amor, pureza, fervor e emoção do ‘coração abrasado’ da
Virgem estava simbolizado no pequeno coração vermelho sob o peito. Notamos que a Virgem –
mesmo desfalecida - o segura firmemente, como se o desse para o seu filho, por isso, pensamos
que o coração também simboliza a ‘alma’ da Virgem [Figura 371].
Tal elemento, caso não possua antecedentes iconográficos formais, deverá figurar como uma
representação muito rara e particular da tipologia dos oratórios-lapinha, quiçá de Minas. Pois bem.
Retornando à narrativa, após um diálogo entre Jesus e Maria (que se assemelha ao diálogo dos
807 VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vida dos santos. São Paulo: Companhia das Letras, 2003, p. 657. [grifo
nosso]
808 VARAZZE, Jacopo de. op. cit. p. 659-660.
446
amantes no livro bíblico dos Cânticos dos Cânticos), a alma de Maria ‘voara’ para os braços do seu
filho. Após sua ‘morte’, a Virgem fora levada num ataúde pelos apóstolos, sendo sepultada num
túmulo novo.809 Sob as ordens de Jesus, os apóstolos guardaram o túmulo de Nossa Senhora, até
que ele voltasse. Ao se manifestar, Jesus – consultando os apóstolos – ordenara que Maria se
levantasse do túmulo dizendo:
“Levante-se minha mãe, minha pomba, tabernáculo de glória, vaso de vida, templo
celeste, e da mesma forma que me gerou sem coito e sem mácula, também no sepulcro
manterá o corpo íntegro”. Imediatamente a alma de Maria aproximou-se do seu corpo,
que saiu glorioso do túmulo e foi alçado ao tálamo celeste, acompanhado por uma
multidão de anjos.810
Justamente esta cena serviria de inspiração para a iconografia de Nossa Senhora da Assunção,
onde Maria (com o corpo glorificado) ascende aos céus acompanhada de anjos. A cena da Assunção
também foi venerada nos oratórios domésticos em Minas, sendo representada sob nuvens
algodoadas e de braços abertos, indicando uma elevação em direção ao céu, como podemos
observar no exemplo abaixo [Figura 372].
Figura 372. Valentim Corrêa Paes (atribuição). Assunção de Nossa Senhora (Nossa Senhora da Assunção). Séc. XVIII-
XIX. Terracota policromada. Pertencente ao oratório da família Campos Coelho. Acervo da Igreja da Ordem
Terceira de São Francisco de Assis, São João del-Rei. Foto: Marcos Luan (2018)/CEPHAP/UFSJ
Figura 373. Oratório de esmoler com tema da Assunção de Nossa Senhora. Séc. XVIII. Minas Gerais. Madeira entalhada,
policromada, dourada e ferro batido. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: BDTP
De acordo com Sabrina Sant´Ana, em Minas fora comum nos retábulos dedicados a Nossa
Senhora da Assunção,811 sobretudo em igrejas matrizes, apresentarem o modelo do ‘trânsito’ de
Nossa Senhora em duas etapas. Na parte inferior do retábulo “é destinada ao corpo da santa, que
fica exposto em um esquife” enquanto que na parte superior “abriga a imagem de Nossa Senhora
da Assunção”.812 Para a autora, tal iconografia nos retábulos visava “uma eficiente doutrinação dos
fiéis – doutos ou iletrados – e evangelização dos incrédulos, à medida que oferecia uma espécie de
resumo teológico da promessa do cristianismo: os salvos terão a vida eterna com Cristo”.813
Por fim, a iconografia da Boa Morte atinge o seu ponto fulcral: a coroação de Nossa Senhora.
Após sua gloriosa assunção ao céu, Maria recebera as honras divinas, sendo coroada como Rainha
do céu e da terra. Tema originado na França medieval, precisamente no século XII,814 a base
811 O modelo é observado na Matriz do Pilar de São João del-Rei e na Matriz da Conceição de Antônio Dias, em Ouro
Preto.
812 SANT´ANA, Sabrina Mara. A Boa Morte e o Bem Morrer: culto, doutrina, iconografia e irmandades
mineiras (1721 a 1822). Dissertação de Mestrado. Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal
de Minas Gerais. Belo Horizonte, 2006, p. 37-38.
813 SANT´ANA, Sabrina Mara. op. cit. p. 38.
814 RÈAU, Louis. op. cit. p. 622. | Ao contrário do que comumente se pensa, o ‘ciclo’ iconográfico da Boa Morte não
fora concebido na ordem sequencial em que estudamos. A Dormição, a Assunção e a Coroação da Virgem foram
temas distintos e individualizados que, posteriormente, foram unidos em uma sequência factual. Segundo Louis Rèau,
a Dormição surgira em Bizâncio, a Assunção na Itália e a Coroação da Virgem na França, o que demonstra a conexão
entre as tradições do Oriente e do Ocidente na construção do ciclo iconográfico cuja representação seria intensamente
cultuada na Minas setecentista através de Portugal, sendo objeto de culto de negros e ‘mulatos’ forros através das
Irmandades da Boa Morte.
448
iconográfica da ‘Coroação’ fora inpirada no Antigo Testamento através das figuras de Betsabé
(rainha consorte de Israel) e Ester, principalmente esta última, por ter recebido a honra de ser
elevada a Rainha.815 De acordo com Louis Rèau, a iconografia da Coroação da Virgem passou por
um processo de evolução formal, partindo da representação onde a Virgem era coroada por um
anjo, depois pelo seu filho, Jesus, depois por Deus Pai e por fim, pela Trindade. Essa última
representação, sua coroação pela Santíssima Trindade, foi objeto de devoção na Minas colonial
através de duas maneiras: a primeira, de modo público, através da sua junção aos temas da
Dormição e Assunção (considerada a etapa final do grande tema da ‘Glorificação da Virgem’), e a
segunda, de modo privado, sendo igualmente incorporada à Dormição e Assunção mas também
cultuada como devoção própria, como podemos observar nos exemplos abaixo ilustrados
[Figuras 374-375].
Na Coroação da Virgem em terracota, atribuída a Valentim Corrêa Paes, a peça em questão faz
parte de um conjunto iconográfico, figurando como a terceira e última imagem do tema da
‘Glorificação da Virgem’ (ou ciclo da Boa Morte) composto pela Dormição, Assunção e Coroação
[Figura 374]. Já nessa outra ‘Coroação’, percebemos a ênfase no tema, servindo de invocação como
Nossa Senhora da Glória, onde é coroada pela Trindade, portanto, figurando como devoção
individualizada e desvinculada do tema da ‘Glorificação’[Figura 375].
catequético, representando as glórias divinas alcançadas pelo bom cristão após a morte, portanto,
servindo de incentivo ao devoto que se posta diante do oratório com tal imagem para meditar. O
fiel, ao contemplar tal cena, se compraz com o gozo celeste imaginado e se esperança em receber
também a sua coroa após a morte. Nesse sentido, o cristão espera levar uma boa vida para alcançar
– pela graça de Deus e a proteção da Virgem – uma boa e serena morte, a fim de que Cristo o
ressuscite no fim dos tempos e possa viver eternamente junto aos santos e plenamente glorificado
no céu.
Sant´Ana figura como a devoção mais invocada nos oratórios domésticos em Minas Gerais,
ocupando o primeiro lugar na iconografia santoral (tabela 11). Tal popularidade não é descabida,
tendo em vista que Sant´Ana ocupou (e ainda ocupa) grande importância para o povo mineiro. Tal
importância não é medida somente pela constelação de imagens manufaturadas para oratórios
domésticos e igrejas, mas também através da sua proteção maternal ao território, batizando a
toponímia mineira, como indica Leticia Andrade:
816 CUNNINGHAM, Laurence S. Uma breve história dos santos. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 2011, p.
18.
“Pois assim está escrito: Sedes santos, porque eu sou santo” | PRIMEIRA CARTA DE PEDRO 1, 16. In:
817
[...] a toponímia mineira setecentista não nos deixa dúvidas da popularidade da matriarca
deste lado do Atlântico espelhando o que acontecia na Europa desde o fim da Idade
Média, onde, sob proteção de Santana, encontravam-se então vilarejos e centros urbanos
de todos os portes e até regiões inteiras. [...] Santana das Lavras do funil (Lavras), Santana
do Garambéu, Santana dos Montes, Santana do Barroso (Barroso), Santana do Capivari
(Pouso Alto), Santana da Ressaca (Carandaí), Santana de Cebolas (Paraíba do Sul),
Santana do Livramento (Livramento), Santana do Deserto, Santana dos Ferros (Ferros),
Santana de Pirapama e Santana do Riacho.818
Sant´Ana, esposa de São Joaquim, mãe da Virgem Maria e avó de Jesus, encontrou grande
aceitação no campo da devoção em Minas, e suas imagens elevada fortuna artística nos altares das
igrejas e nos oratórios de culto doméstico e privado. Não à toa, Sant´Ana é a figura doméstica por
excelência, simbolizando a proteção materna e a sabedoria feminina. No entanto, embora tão
popular, Sant´Ana “carece de todo fundamento histórico e bíblico”,819 se tratando de “uma
magnífica construção da cristandade que atravessou o tempo e o espaço, desenvolvendo-se com a
ductilidade polissêmica de um deus pagão”.820 Não sendo citada em nenhum dos textos bíblicos
canônicos, Sant´Ana figurará apenas no já citado Proto-evangelho de Tiago, cuja lenda alcançará
expressiva representabilidade na Idade Média e sobreviverá ao rigor do Concílio de Trento.821
Entre as variantes iconográficas de Sant´Ana, a figura de Sant´Ana Mestra foi a mais invocada
nos oratórios domésticos. Acomodada num trono ou cadeira de espaldar alto, Sant´Ana Mestra é
representada – majoritariamente – como uma mulher idosa, portando em uma das mãos um livro
aberto diante dos olhos de Maria, representada como uma pequena jovem que lê atentamente. A
mão de Sant´Ana, indicando as palavras do livro aberto, parecem indicar autoridade ao ensinar.
Essa representação alude à figura da mãe que ensina, assim como a velhice (expressada na
fisionomia do rosto) expressam a sabedoria acumulada através do tempo, o que a qualificou como
“modelo da maternidade e ideal a ser imitado pelas mães e avós”.822 Sua proteção se estende ao
ambiente doméstico e às confrarias e irmandades religiosas, sendo padroeira – respectivamente –
dos casamentos, dos casais, protetora da gravidez e partos de risco, ampara as mães na falta do leite
materno e protege os bebês, assim como apadrinha corporações de ofício ligadas aos carpinteiros,
818 ANDRADE, Letícia Martins de. Santana Mestra – A linhagem feminina da sabedoria, do Gótico Europeu ao
Barroco Mineiro. Anais do Simpósio Nacional de Estudos Medievais da UFSJ, São João del-Rei, ano 1, n. 1, p.
169.
819 ANDRADE, Letícia Martins de. op. cit. p. 171.
820 ANDRADE, Letícia Martins de. op. cit. p. 171.
821 De acordo com Andrade (2019) Sant´Ana figura no igualmente apócrifo Evangelho de pseudo-Mateus, na História da
Natividade de Maria e Infância do Salvador, um desdobramento do Proto-evangelho de Tiago. | ANDRADE, Letícia Martins
de. op. cit. p. 172.
822 BOEPSFLUG, François. La Sainte Anne des peintres et des sculpteurs. Poitiers: Insitut géopolitique e culturel
Jacques Cartier, 2013 apud ANDRADE, Letícia Martins de. op. cit. p. 176.
451
Nos oratórios domésticos em Minas, foi comum Sant´Ana Mestra ser entronizada com
outros santos, participando de uma ‘corte celeste’, assim como sendo a devoção principal e única
em oratórios, como podemos observar nas ilustrações que seguem [Figuras 376-377]. Além disso,
foi também predominante na tipologia dos oratórios-lapinha, figurando como parte integrante da
‘sagrada parentela’ subliminar que ocorre com frequência nesses oratórios, sendo até mesmo tema
único de outras ‘lapinhas’, como vemos nas figuras 378 e 379.
A devoção à Sant´Ana Mestra não conheceu barreira social, sendo uma invocação
essencialmente popular e ‘democrática’, como atestam as faturas das imagens, desde as mais
eruditas às populares. Numa erudita Sant´Ana Mestra, dessa vez representada em uma das suas
variações, demonstra-nos a singeleza do símbolo materno [Figura 380]. Figurada em pé, Ana
parece ensinar à Maria as primeiras letras. Maria aparenta ter de dois a três anos de idade, e aponta
com o delicado indicador as palavras do livro, ao passo que Ana lhe lança um olhar terno e ao
mesmo tempo preocupado. Ana, nessa versão, também se encontra mais jovem, o que nos leva a
supor que as variações composicionais da iconografia da ‘Mestra’ nos contam uma passagem do
tempo: Ana em pé, mais jovem, carrega no colo uma Maria de – no máximo – três anos de idade,
ensinando-lhe precocemente os preceitos divinos. Mais tarde, Ana – curvada pela idade – senta-se
no seu trono bem mais velha, e ensina com maior rigidez e vigor uma Maria em plena puberdade.
A pintura interna de uma porta de oratório representando Sant´Ana Mestra demonstra muito bem
essa passagem do tempo [Figura 381]. O olhar melancólico de Ana que se encontra alheio ao livro
e a Maria parece nos indicar a preocupação, cada vez mais forte, dos desafios que a sua jovem filha
ainda teria de passar. Esse sentimento parece mais claro ao percebermos que um dos braços de
Ana se apoiam nos ombros de Maria, antecipando talvez um abraço materno.
Em segundo lugar, ocupando a posição dos santos mais invocados nos oratórios domésticos
mineiros, figura Santo Antônio. Nascido em Lisboa, provavelmente no ano de 1188 ou 1191,824
Santo Antônio fora – sem dúvida alguma – o ente celeste mais invocado, mais amado e também o
824SCHENONE, Héctor H. Iconografia del arte colonial – los santos. Vol. 1. Argentina: Fundación Tarea, 1992,
p. 156.
453
mais ‘castigado’ na piedade popular mineira, como pudemos demonstrar rapidamente no início
deste capítulo. De auxílio para as moças conseguirem um bom enlace matrimonial ao santo que
torna visível aquilo que estava perdido825, Santo Antônio fora também um santo intrinsecamente
barroco, no sentido de que a sua hagiografia contém passagens de experiências místicas (bem ao
gosto da Contrarreforma) que povoaram a piedade católica nos séculos XVII, XVIII e parte do
XIX.
Longe de ser um santo de feições meigas, atributo que a contemporaneidade lhe atribuiu
com os anos, o frade franciscano fora em vida um árduo pregador aos moldes medievais, sendo
considerado por muitos o ‘martelo dos hereges’, além de ser considerado o primeiro leitor de
teologia da Ordem Franciscana, o que influenciou diretamente na iconografia que representa Santo
Antônio vestido com esclavina e barrete doutoral, vestimentas universitárias da Itália medieval. 826
Aliás, o título de ‘martelo dos hereges’ (no sentido de derrota teológica contra os hereges do seu
tempo) fora, segundo sua hagiografia, dado pelo próprio Menino Jesus quando este, em aparição
mística, lhe dera uma pena e um martelo. A primeira, simbolizando as letras (sendo ele o primeiro
professor dos franciscanos) e o martelo, evidentemente, como a firmeza doutrinária contra as
heresias de seu tempo.827
825 Essa última ‘utilidade’ de Santo Antônio, no entanto, não soava tão lisonjeiro para uma camada da sociedade
colonial, tenho em vista que o santo era invocado especialmente pelos senhores de escravos para auxiliar na busca de
negros fugitivos, o que o tornou – na visão dos escravos – “um santo traidor”. Ver o tópico 5.2 deste capítulo.
826 SCHENONE, Héctor H. op. cit. p. 160.
827 SCHENONE, Héctor H. op. cit. p. 160.
828 SCHENONE, Héctor H. op. cit. p. 158.
454
Como dissemos anteriormente, a hagiografia de Santo Antônio nos oferece várias passagens
de caráter místico, sendo elas objeto de muita devoção no tempo do Barroco, tendo em vista o
caráter extraordinário e sobrenatural desses fatos que possuíam valores morais defendidos por
Trento, como a intransigente defesa do catolicismo romano, do papado e principalmente da defesa
da dignidade do Santíssimo Sacramento.829 Entre as experiências místicas vividas por Santo
Antônio, destacam-se aquelas em que participou o Menino Jesus. Numa dessas experiências, o
santo entrara numa cidade para pregar e, recolhendo-se na residência de um fidalgo, retirou-se para
orar. O fidalgo, curioso, ao espreitar pela porta, vira no colo do santo um maravilhoso menino.830
Santo Antônio recebera a visita do divino infante, que lhe aparecera gracioso e glorioso, sendo
afavelmente adorado pelo santo. Essa passagem em particular recebera uma representação toda
especial no mundo lusitano, tendo em vista a grande devoção ao Menino Jesus e ao grande santo
lisboeta que fizera sua fama na cidade italiana de Pádua e chegara a ser contemporâneo de outro
grande santo medieval e muito invocado durante o Barroco: São Francisco de Assis.
829 O chamado ‘milagre da mula’ é um exemplo disso. Se conta que um camponês (que em algumas versões tratava-se
de um judeu) não cria na presença real de Cristo na Eucaristia (o dogma da transubstanciação, o mistério central da fé
cristã católica). Um dia, desafiara Santo Antônio a comprovar a presença real de Cristo na hóstia consagrada,
prendendo uma mula e privando-a de alimento por três dias: caso a mula se ajoelhasse diante da hóstia, mesmo faminta,
ele creria. No dia do desafio, o santo saíra em procissão com a hóstia consagrada e, pondo-se de frente a mula, mesmo
lhe oferecendo fartos montes de capim, a mesma se ajoelhara diante do santo com a hóstia. Logo após o extraordinário
evento, o camponês se convertera. Na matriz de Santo Antônio da Vila de São José do Rio das Mortes (atual
Tiradentes), há um painel de grandes dimensões onde se representa o referido milagre, o que destaca a importância do
evento miraculoso como alegoria à presença real de Cristo na Eucaristia, ponto intensamente defendido pelo Concílio
de Trento.. SCHENONE, Héctor H. op. cit. p. 162.
830 LIVRO DOS MILAGRES ou FLORINHAS DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA (do manuscrito original
“Liber Miraculorum Sancti Antonii. In: Chronica XXIV Generalium Ordinis Fratrum Minorum). Trad. Frei Fernando Félix
Lopes OFM. Braga: Franciscana, 1996, p. 91.
455
A cena em questão retrata o êxtase de Santo Antônio, uma iconografia rara nos oratórios
domésticos de Minas Gerais. A passagem, repleta de um misticismo cândido e purista, evocava o
amor divino e prefigurava a relação ‘devoto-santo’, ou seja, o sentimento de que o fiel era eleito
pelo sagrado, interagindo com ele e tornando-se próximo da divindade. Nesse sentido, a devoção
a Santo Antônio também aludia a outra devoção imensamente popular do mundo luso: a do
Menino Jesus. Em suma, a cena evoca uma afetividade sem precedentes, o que tornava possível as
práticas nada ortodoxas por parte dos féis, como bem nos coloca a historiadora Vera Jurkevics:
“Com o objetivo de “obter a intercessão de Sant´Antoninho, como era carinhosamente evocado,
especialmente em demorados e difíceis casos amorosos, as devotas lhe tiravam o Divino Infante,
dos braços, só o restituindo depois de ser alcançada a graça”. 831
Enfim, devoções tais como Sant´Ana e Santo Antônio são bem reveladoras acerca do aspecto
da afetividade, intimidade e troca, sobretudo esse último, alvo das mais variadas injúrias por parte
831 JURKEVICS, Vera Irene. Os santos da Igreja e os santos do povo: devoções e manifestações de religiosidade
popular. Tese de Doutorado. Programa de Pós-Graduação em História, Setor de Ciências Humanas, Letras e Artes
da Universidade Federal do Paraná. Curitiba, 2004, p.33-34.
456
dos devotos. Esses santos, assim como muitos outros, figuravam como representação de um
mundo ideal, idílico, “um novo céu e uma nova terra”, como afirmava a Escritura. No desterro
cotidiano, esses santos ofereciam uma esperança, um auxílio e principalmente agiam como
mediadores com o ser supremo a fim de solucionar satisfatoriamente as demandas que apareciam
dia após dia. Tal caráter devocional, que beiraria – na visão das elites eclesiásticas, sobretudo – a
heresia ou a superstição, na realidade representa justamente o pensamento místico e quase mágico
de uma sociedade que possui o sagrado como um dos eixos norteadores das vivências e da
sociabilidade coloniais, que eram incessantemente impregnadas de representações sacras em meio
ao profano da vida.
Finalizando o presente capítulo e, por fim, este extenso estudo, não poderíamos deixar de
analisar, mesmo que rapidamente, os oratórios ditos ‘afro-brasileiros’, tendo em vista que são parte
constitutiva dessa cultura material religiosa e colonial que temos tentado compreender ao longo
desta pesquisa. Como apontamos em poucas linhas ao longo do presente estudo, a piedade católica
diante de nichos e oratórios domésticos também ocorreu entre os negros escravos e forros, seja
pela assimilação compulsória e forçada através de um processo catequético, seja através de uma
apropriação por parte desses escravos ou forros que os utilizavam como mecanismo de
dissimulação de suas crenças originais (ressignificação simbólica), seja também através de uma
assimilação devocional sincera.
aprofundarmos na cultura ‘africana’, sobretudo no que condiz à sua cultura material e visual. Nesse
ponto, ocorre a já conhecida armadilha da generalização. Obviamente que a África, sendo um
continente, abriga diversos países com culturas, expressões artísticas, línguas e religiosidade das
mais diversas, sendo assim, seria necessário de nossa parte apreender um pouco da produção
artística de cada região africana, o que seria para a presente pesquisa uma tarefa inviável. Sendo
assim, partindo de um conhecimento ainda em construção, realizaremos aqui um estudo de caráter
introdutório desses oratórios ‘afro’.
Ao reunirmos alguns dos oratórios ‘afro’ produzidos em Minas num pequeno conjunto,
percebemos que a ornamentação de ‘mão africana’ se mescla à ornamentação europeia,
constituindo uma visualidade essencialmente híbrida e mestiça. Essa ornamentação conjunta,
assimilada pelos negros escravos ou forros em Minas, nos sugere aquela síntese cuja visualidade
constituiu a chamada “tropicalidade do Barroco”, como nos indica Ricardo Averini em seu texto
clássico de título homônimo833:
832 Em artigo de MENEZES e CASTRO (2007), para o líder religioso africano Tierno Bokar, “a escrita é a fotografia
do saber, mas não o saber em si”. Para as autoras, a cultura africana é pautada pela oralidade, “pelo poder outorgado
à palavra falada”. Através dessa oralidade, os símbolos gráficos que possuem estrutura figurativa foram originados
dessa tradição oral. Essa tradição oral originará os elementos iconográficos que podem ser observados, segundo as
autoras, “na arquitetura e design africanos, nos objetos de uso cotidiano, ritualísticos ou mesmo decorativos, tendo a
função de transmitir conhecimento”. MENEZES, Marizilda dos Santos; CASTRO, Jacqueline Aparecida Gonçalves
Fernandes de. Culturas orais e linguagem gráfica. GRAPHICA, Curitiba, 2007, pp.1-10.
No entanto, há de mencionarmos aqui que vários países possuem seus sistemas de escrita, desde os hieróglifos egípcios
ao Tifinague na região do Magrebe e Saara, a escrita Ge´ez na região da Etiópia, o Nsibidi na região da Nigéria, assim
como o próprio alfabeto latino e árabe introduzidos na Idade Média. Ver: CISSE, Mamadou. Ecrits et ecriture en
Afrique de L´ouest. Revue electronique internationale de sciences du language sudlangues, Senegal, n. 6, 2006,
pp. 63-88.
833 Ao citarmos o texto “Tropicalidade do Barroco”, de Ricardo Averini, embora se trate de um texto clássico, há de se
problematizar o tom laudatório e quase nacionalista do autor ao tratar dos elementos autóctones do Barroco Brasileiro.
Isso se dá devido ao contexto de publicação do texto: os anos 1980. Publicado originalmente em 1983 na 12ª edição
458
Partindo da postura defendida por Averini, o que tentaremos aqui será uma breve e concisa
imersão ‘exegética’ nos oratórios ‘afro’, na tentativa de compreendê-los e lançar uma base
introdutória para estudos vindouros. De antemão, é necessário salientarmos a contribuição da ‘mão
negra’ na arte de natureza religiosa colonial. Numa pertinente colocação do conoisseur Eduardo
Etzel, “o negro aculturou-se certamente, mas também resistia tenazmente numa falsa
aculturação”.835 Essa resistência, no campo estrito da arte dos oratórios domésticos, é demonstrada
através dos elementos visuais da estética africana que se mesclam aos ornamentos de vocabulário
europeu, o Barroco e o Rococó, por vezes até se sobrepondo sobre esses últimos. Por outro lado,
os oratórios ‘afro’ possuem um ‘ritmo ornamental’, ou seja, um movimento decorativo que possui
ordem, que flui em direções diversas, mas que se unem num todo. A ornamentação desses oratórios
‘afro’ possuem multiplicidade e diversidade na unidade. Esse fato nos indica muitas questões
pertinentes, entre elas, uma que consideramos a mais importante: a constituição de uma solução
da Revista Barroco, dedicada ao Congresso do Barroco no Brasil ocorrido em setembro de 1981 em Ouro Preto,
organizado por Affonso Ávila, o texto vai de encontro à tentativa de afirmação e consolidação dos estudos do Barroco
brasileiro no âmbito da academia, um tema primordialmente dominado pelos pesquisadores quase amadores do Serviço
do Patrimônio Nacional (atual IPHAN) e por historiadores da arte estrangeiros (e fundamentais) como Germain Bazin,
John Bury e Robert C. Smith. A intenção de Averini em afirmar um ‘tropicalismo’ do Barroco (ou seja, o elemento
mestiço, já trabalhado pelos Modernistas décadas atrás) foi o de estabelecer um grau de igualdade e, quiçá, superioridade
do Barroco nacional em relação ao Barroco estrangeiro. Problematizamos o tom quase ‘nacionalista’ do texto, no
entanto, destacamos a abordagem mais acadêmica do tema, se configurando como um texto introdutório indispensável
para pensarmos a questão da presença autóctone no Barroco, seja através da mão indígena (principalmente em São
Paulo) seja através da mão negra (muito presente em Minas Gerais).
834 AVERINI, Ricardo. Tropicalidade do Barroco. In: ÁVILA, Affonso (org.). Revista Barroco, n. 12, 1983, p. 330.
| O artigo supracitado também foi republicado em: ARAÚJO, Emanoel (org.) O universo mágico do Barroco
Brasileiro. São Paulo: SESI, 1998, pp. 53-57.
835 ETZEL, Eduardo. Arte Sacra, berço da arte brasileira. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1894, p. 227. | No
tocante ao V Capítulo (O Negro) do referido livro do pesquisador paulista, Eduardo Etzel, cabe uma problematização
pertinente. Embora o conoisseur paulista seja para o campo da Arte Sacra um nome imprescindível, tendo em vista sua
prodigiosa contribuição no que concerne à arte sacra de cunho popular, o capítulo de Etzel acerca do negro é permeado
por um discurso flagrantemente reducionista e quiçá racista. Como filho do seu tempo, ignora e rechaça de maneira
muito clara e objetiva o elemento indígena na história, na cultura e na arte brasileira, assim como assume uma postura
paternalista em relação ao negro. A contribuição do negro na arte sacra foi evidenciada de modo pioneiro por Etzel,
no entanto, essa contribuição é constantemente considerada inferior em relação à estética lusitana. Destacamos aqui
sua postura nada ortodoxa ao escrever, em 1976, o polêmico A escravidão negra e branca, o passado através do presente (Editora
Global, 1976). Em suma, um autor que deve ser lido, tendo em vista sua inestimável contribuição para os estudos de
arte sacra, mas com um olhar cuidadoso e essencialmente criterioso.
459
formal original na arte dos oratórios domésticos, cuja singularidade – até o momento – pode ser
considerada própria da antiga Capitania de Minas. Pois bem, aos oratórios.
Para a nossa análise, selecionamos alguns oratórios ‘afro’ manufaturados em Minas Gerais
no século XIX que oferecem muitas possibilidades de leitura. Na primeira obra [Figura 386] temos
um oratório doméstico de salão, dotado externamente de um frontão ondulado que confere à
estrutura uma notável verticalidade, com portas almofadadas. Em seu interior, possui um nicho
central com pequenos suportes para imagens (peanhas) que representam Nossa Senhora do
Rosário, Santa Luzia, Nossa Senhora da Conceição e Santo Antônio. O elemento mais importante
que gostaríamos de destacar é a ornamentação do frontão. Podemos notar nas abas laterais do
frontão, que formam curvas ascendentes em direção ao topo do coroamento, um esmerado
trabalho de talha rasa. Notemos a marcação de finos sulcos lineares que se sobrepõem
ordenadamente, indicando a passagem da fina lâmina do formão. Os pequenos sulcos (ou riscos)
seguem uma organização regular e ritmada, realçando o avanço e recuo do frontão. No centro do
frontão, podemos observar a formação de uma ‘grelha’ de pequenos losangos verticais.
Já nesse segundo oratório, [Figura 387] assim como no primeiro, o frontão assume uma
importância destacada. Nessa obra, as cores da policromia imprimem vivacidade à peça. O frontão
triangular figura imponente, com uma delicada combinação de pintura e talha. No corpo do frontão
temos linhas finíssimas sobrepostas que se entrecruzam com outras linhas de semelhante
volumetria. Vindas de direções opostas, as linhas se entrecruzam formando uma delicada treliça.
460
No centro, temos uma espécie de ‘rosácea’836 ou flor, formada por seis pétalas laminadas. A
‘rosácea’ se projeta num ligeiro alto relevo, destacando-se do frontão. Emoldurando o frontão,
temos um recorte em curvas ascendentes de movimentação intercalada, sendo arrematadas numa
pequena lâmina vermelha no centro. Cabe ressaltar o esquematismo da policromia da parte externa
das portas desse oratório, [Figura 388] onde o contraste entre os pontos riscados em ‘X’ e a
coloração vermelha formam uma harmoniosa combinação geométrica.
836
Utilizamos aqui o termo ‘rosácea’, um termo relacionado sobretudo à arquitetura ocidental, especificamente a
Gótica, pois não encontramos palavra mais adequada para se referir ao elemento em questão. No entanto, estamos
cientes de que um vocabulário específico, e afrocentrado, seria o ideal para a análise descritiva dos oratórios ‘afro’.
461
Figura 393. Zinkpo. Séc. XIX (primeira metade). Benim. Museu Nacional da UFRJ, Rio de Janeiro. Fonte:
MN/UFRJ
Percebemos que a ornamentação dos oratórios domésticos ‘afro’ até aqui analisados possui
uma similitude com as obras africanas que vimos até o momento. A semelhança ocorre sobretudo
naquilo que denominados anteriormente de ‘ritmo ornamental’. Um ‘ritmo’ ordenado, sintético,
que parece ter um horror vacui ao buscar preencher os espaços e, ao mesmo tempo, possuindo uma
clareza e padronização que parece aludir ao mote clássico do ‘menos é mais’. Em suma, a decoração
‘afro’ parece nos indicar um ‘sentido de ordem’. E. Gombrich, em um estudo importantíssimo
acerca da chamada ‘arte decorativa’, nos oferece uma leitura interessante:
GOMBRICH, E. H. O sentido de ordem, um estudo sobre a psicologia da arte decorativa. Porto Alegre:
837
Bookman, 2012, p. 5.
463
838 Utilizamos aqui o termo ‘sincretismo’ apenas por questões de praticidade de entendimento. No entanto, o termo é
palco de embates teóricos e de polêmica. Entendemos por sincretismo a ‘fusão de culturas’, que configura uma relação
de equivalência simbólica entre divindades.
839 Para uma análise mais acurada acerca da representabilidade dos orixás, ver: MOURA, Carlos Eugênio Marcondes
de (org.). Culto aos orixás. Voduns e ancestrais nas religiões afro-brasileiras. Rio de Janeiro: Pallas, 2006.
464
Figura 395. Oratório ‘afro-brasileiro’, com destaque para o Divino Espírito Santo.
Séc. XIX. Minas Gerais. Museu do Oratório, Ouro Preto. Fonte: MO/OP
Figura 396. Bastão n. 2. Séc. XIX. Madeira. Quiôco (Tchokwe), Angola.
Museu Nacional da UFRJ, Rio de Janeiro. Fonte: MN/UFRJ
840De acordo com George Nelson Preston, a arte africana possui uma “tensão entre eixo virtual e real; tensão entre
simetria real e virtual; estancamento rítmico, empilhamento de uma forma geométrica primária ou confirmação de um
volume, plano, área espacial em negativo, em formas fechadas ou abertas; regularidade de um ritmo genérico em um
padrão interrompido por motivos aderentes, arranjados aleatoriamente [...]” PRESTON, 1987. In: ARAÚJO, Emanoel
(org.) Museu Afro Brasil: um conceito em perspectiva. Catálogo. São Paulo: Ipsis Gráfica e editora, 2006, p. 240.
465
Figura 397. Oratório ‘afro-brasileiro’. Séc. XIX. Minas Gerais (Norte). 94x54xx45cm. Museu do Oratório, Ouro Preto.
Fonte: Herança africana na arte sacra brasileira: oratórios, p. 37
SOUZA, Vanessa Raquel Lambert de. A supervivência das imagens: esculturas e marcas gráficas na arte afro-
841
brasileira – experiências poéticas e conhecimento visual. Tese de Doutorado. Instituto de Artes da Universidade
Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho” (UNESP), São Paulo, 2017, p. 84.
466
Os Adinkra também funcionavam, de acordo com a autora, como “um tipo de escrita e
representavam provérbios, acontecimentos importantes e conceitos moralizantes”.842 Por isso, é
possível que tal sistema gráfico tenha sido utilizado nos oratórios ‘afro’ na Minas do século XIX.
Tal hipótese se sustenta, tendo em vista a presença em Minas Gerais dos denominados ‘pretos
mina’, uma designação étnica relativa às pessoas que vieram da chamada ‘Costa da Mina’,
correspondendo justamente à atual região de Gana.843
No frontão do oratório, pensamos que os dois símbolos que se repetem podem ser
enquadrados no simbolismo adinkra. O primeiro, a rosácea ou flor, pode estar vinculada ao Ananse
Ntontan, simbolizando a criatividade e a sabedoria [Figura 399]. O segundo elemento, uma cruz
deitada, parece aludir ao Mmusuyidee (aquele que remove a má sorte), simbolizando a boa sorte, a
santidade [Figura 400]. Tais conceitos, sabedoria, boa sorte, santidade, expressados graficamente,
parecem se unir ao simbolismo da própria imaginária, fazendo com que forma e conteúdo se
integrem numa unidade de significado. Nesse sentido, os oratórios ‘afro’ destoam dos oratórios de
antecedentes europeus, onde a forma artística cumpre o papel principal de suporte para as imagens
sacras.
No caso específico da ‘rosácea’ com seis lâminas, como aquela no frontão do oratório
representado na figura 398, pensamos que talvez exista alguma relação simbólica com os orixás,
tendo em vista a presença da ‘rosácea’ com a mesma representabilidade no machado de Xangô,
como podemos observar na sua representação escultórica [Figura 401].
As questões que abordamos aqui possuem um caráter introdutório, sendo necessárias outras
abordagens com outros dados, outros objetos e outros pontos de vista. Além disso, um estudo
mais aprofundado dos oratórios ‘afro’ figura como necessidade, tendo em vista suas peculiaridades
formais e simbólicas instigantes. No entanto, quisemos com esse tópico em específico trazer à luz
algumas questões que ainda permanecem ausentes da historiografia da arte brasileira. Os oratórios
de antecedentes ‘afro’, assim como os de antecedentes europeus, possuem uma potencialidade
gigantesca de análise, o que demandaria ainda muitas páginas para além das que o presente trabalho
contém. Um mero ‘armário de duas portas’ se configura para nós como um objeto dotado de
extraordinárias possiblidades de leitura, sendo essa que finalizamos apenas uma entre muitas que
ainda devem vir à lume.
468
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Tendo em vista as várias questões até aqui abordadas, destacamos nesse momento (à guisa
de conclusão) alguns pontos que consideramos relevantes e que figuram como as principais
contribuições desta pesquisa.
Esse culto privado através dos oratórios, tendo em vista as soluções plásticas formais e as
representações iconográficas pesquisadas e apresentadas neste estudo, foi dinâmico, diverso e
heterogêneo. Dinâmico, pois, a fatura do oratório e as devoções cultuadas através das imagens em
escultura e pintura não conheceu barreiras e limites de classe social. Nesse aspecto,
compreendemos o oratório doméstico devocional como uma representação das dinâmicas da
religiosidade, onde a riqueza ou a simplicidade do oratório nos indica o lugar social do seu
proprietário, assim como as devoções cultuadas nos revelam certos aspectos da dinâmica familiar,
onde cada representação do santo indica-nos uma possível necessidade ordinária da família.
religioso) figura como elemento de poder e manutenção do status social numa sociedade específica,
no nosso caso, na Minas colonial e imperial. Por esse ponto de vista, ao analisarmos os oratórios
em conjunto com os testemunhos pertinentes, pudemos vislumbrar os meios e os fins de uma
cultura, sociabilidade e vivência religiosas nas Minas. Diante disso, compreendemos que a cultura
material (os oratórios) enquanto fonte histórica pode ser riquíssima para visualizarmos o passado,
pois figuram como potentes testemunhas de dinâmicas que não mais existem, ou em franco
desaparecimento. Por isso, compreender a religiosidade mineira através dos oratórios nos fez
observar sobretudo as permanências dessa religiosidade no tempo presente, ecos e resíduos de uma
dinâmica que ainda insiste em se manter como ‘tradição’.
Sendo assim, ao buscarmos estudar os oratórios domésticos devocionais através dos acervos
reunidos nas várias regiões da vasta Minas Gerais, pudemos compreender essa “geografia do
sagrado”, ou seja, a dimensão da religiosidade privada e doméstica. Concluímos que essa
religiosidade foi pujante, diversa e generalizada em praticamente todo o território das ‘Gerais’, o
que implica pensarmos no protagonismo dos leigos nas Minas, tendo em vista que os oratórios
domésticos de cunho devocional figuram como elementos próprios da vida urbana, assim como
os de cunho litúrgico, que quase sempre faziam as vezes das igrejas.
Nesse aspecto, dessa vez sob a ótica da História da Arte, consideramos que a sua
funcionalidade de ‘igreja doméstica’, ecclesiae domesticae, influenciou diretamente na forma artística
dos oratórios devocionais nas Minas. Em Minas Gerais, o termo ‘privatização da fé’ alcança enorme
fortuna, tendo em vista que os artistas e artífices locais, junto dos encomendantes de tais oratórios,
470
possivelmente tinham plena noção do significado de uma ‘igreja doméstica’. Por isso, as formas da
talha dos oratórios possuem ‘simulações retabulares’, sobretudo, ou ainda partes específicas de
retábulos, concebidas em miniatura. Isso nos mostra que havia um desejo em possuir um pequeno
retábulo em casa, ou ainda uma singela e expressiva igreja em miniatura, a fim de que a experiência
pessoal com o sagrado fosse essencialmente lúdica, ou seja, interativa. Nesse aspecto, os oratórios
poderiam instigar, através da dramaticidade cênica das formas (atreladas sobretudo ao ímpeto do
Barroco), sentimentos de pesar, temor, forte devoção e experiências místicas, assim como alegria,
felicidade, alívio, tranquilidade e principalmente oração fervorosa.
Por isso, a arte dos oratórios em Minas alcançou elevada erudição no campo da talha em
madeira. Na antiga capitania, os oratórios, através da sua forma bel composta, ou seja, de obra de arte
total, onde a conjunção do vocabulário arquitetônico (através das formas retabulares) com a pintura
figurativa e ornamental e a escultura (através da imaginária religiosa) miniaturizaram e privatizaram
o espaço primordial do sagrado (o templo) e o tornaram adequado ao ambiente doméstico. Os
maiores exemplos em Minas podem ser observados com as obras do escultor português Francisco
Vieira Servas e o ‘diamantinense’ Caetano Luiz de Miranda, que souberam sintetizar com o máximo
de erudição e destreza artística o sentido de ecclesiae domesticae.
Além disso, os oratórios, por serem ‘obras de arte totais’, foram catalisadores de várias
‘mãos’, ou seja, mais de um artista trabalhando na mesma peça. Nesta pesquisa, pudemos observar
a presença de várias oficinas, cujos oratórios possuem características muito próprias. Ao
agruparmos vários desses oratórios em conjuntos, reunidos sobretudo através de suas semelhanças
e atributos formais em comum, pudemos delinear a presença de pelo menos quatro oficinas em
Minas, a saber: a oficina ouro-pretana (com os oratórios de cúpula campaniforme, com possível
influência do Aleijadinho), a oficina sabarense (com os oratórios dotados de frontão com palmeta),
a oficina luziense (com os oratórios-lapinha) e a oficina sanjoanense (com os oratórios-lapinha
dotados de colunas torsas). Destacamos em particular a oficina sanjoanense, pois, além dos
oratórios-lapinha mencionados, atestamos a presença de vários artistas locais trabalhando em
471
oratórios domésticos na região central da Comarca do Rio das Mortes (São João del-Rei e
Tiradentes), como os pintores Manoel Victor de Jesus e ‘oficina’, Venâncio José do Espírito Santo,
Joaquim José da Natividade e ‘oficina’, assim como os escultores Valentim Corrêa Paes, Mestre do
Cajuru. Todos esses artistas, em suas respectivas épocas, deixaram suas marcas em oratórios
domésticos, o que delineia ainda mais a perspectiva da possível existência de uma ‘escola’ de artes
do Rio das Mortes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
ÁVILA, Affonso; GONTIJO, João Marcos Machado; MACHADO, Reinaldo Guedes. Barroco
Mineiro, Glossário de Arquitetura e Ornamentação. São Paulo: Fundação João Pinheiro;
Fundação Roberto Marinho, Companhia Editora Nacional, 1980
ÁVILA, Cristina. A palavra no espelho – Os reflexos da imagem no barroco mineiro. Belo
Horizonte: Instituto Cultural Amílcar Martins, 2016
AZEVEDO, Aluísio. O Mulato. (1881) São Paulo: Martins Editora/Instituto Nacional do
Livro/MEC, 1975
AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) História religiosa de Portugal. Centro de estudos de História
Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Vol. 1. Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, 2000
AZEVEDO, Carlos Moreira (dir.) História religiosa de Portugal. Centro de estudos de História
Religiosa da Universidade Católica Portuguesa. Vol. 2. Casais de Mem Martins, Rio de Mouro, 2000
AZEVEDO, Thales de. O catolicismo no Brasil, um campo para a pesquisa social. Bahia:
EDUFBA, 2002
BAETA, Rodrigo Espinha. Teoria do Barroco. Salvador: Edufba, 2012
BARDI, Pietro Maria. História da Arte Brasileira: pintura, escultura, arquitetura, outras
artes. São Paulo: Melhoramentos, 1975
BASTOS, Rodrigo Almeida. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura
religiosa de Vila Rica, Minas Gerais (1711-1822). Tese doutoral. Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo. São Paulo, 2009
BATES, Henry Walter. O naturalista no Rio Amazonas (1848-1859). Vol. 1. São Paulo:
Companhia Editora Nacional, 1944
BAZIN, Germain. Histoire de l´Art – de la préhistoire a nos jours. Paris: Garamond, 1953
BENJAMIN, Walter. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. Coleção L&PM
Pocket. São Paulo: L&PM, 2014
BERNINI. Domenico. The Life of Gian Lorenzo Bernini. Tradução crítica e comentada para a
língua inglesa por Franco Mormando. Pennsylvania: The Pennsylvania State University Press, 2011
BOHRER, Alex Fernandes. Os diálogos de fênix: fontes iconográficas, mecenato e
circularidade no Barroco Mineiro. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal de Minas
Gerais, Belo Horizonte, 2007
BOHRER, Alex Fernandes. Repertórios circulantes: utilização de modelos iconográficos e difusão
de processos criativos nas Minas Gerais setecentistas. In: OLIVEIRA, Carla Mary S; HONOR,
André Cabral. O Barroco na América Portuguesa: novos olhares. João Pessoa: Editora do
CCTA-UFPB; Sevilla: Universidad Pablo de Olavide/EnRedARS, 2019, p. 134-151
BOSCHI, Caio César. O Barroco Mineiro: Artes e Trabalho. São Paulo: Editora Brasiliense,
1988
BOSCHI, Caio César. Os leigos e o poder: Irmandades Leigas e Política Colonizadora em
Minas Gerais. São Paulo: Editora Ática, 1986
BOTELHO, Thiago de Pinho. Milagre que se fez... Um estudo dos 36 ex-votos ofertados ao
Senhor Bom Jesus de Matosinhos em Congonhas – MG. Dissertação de Mestrado. Programa
de Pós-Graduação em Artes. Escola de Belas da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo
Horizonte, 2013
474
BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2007
BOXER, Charles R. A idade de ouro do Brasil. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969.
BRANDÃO, Angela. Das pontes aos castiçais: a produção do mobiliário artístico em Minas Gerais
no século XVIII e os ofícios mecânicos. Revista Científica – FAP, Curitiba, v. 4, n. 2, jul/dez.
2009, pp. 50-66
BRANDÃO, Angela. Móveis em miniatura: a demonstração de um saber fazer. Anais do Museu
Paulista. São Paulo: N. Sér. v. 25, n. 1. Jan/Abril 2017. p. 169-197.
BRAUDEL, Fernand. Civilização material, economia e capitalismo, séculos XV- XVIII. Vol.
1. As estruturas do cotidiano: o possível e o impossível. São Paulo: Martins Fontes, 2005
BRÜGGER, Sílvia Maria Jardim. Minas Patriarcal: família e sociedade (São João del-Rei –
Séculos XVIII e XIX). São Paulo: Annablume, 2007
BURKE, Peter. Testemunha ocular. O uso de imagens como evidência histórica. São Paulo:
Unesp, 2016
BYNGTON, Elisa Lustosa. A arquitetura e as Vidas de Vasari no âmbito da disputa entre as
artes. A Vida de Bramante de Urbino: problemas de historiografia crítica. Dissertação de
Mestrado. Instituto de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas:
Campinas, 2004
CAES, André Luiz. As portas do inferno não prevalecerão: a espiritualidade católica como
estratégia política (1872-1916). Tese de doutorado. Departamento de História do Instituto de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Estadual de Campinas. Campinas, 2002
CALADO, Margarida, PAIS DA SILVA, Jorge Henrique. Dicionário de termos da arte e
arquitectura. Lisboa: Editorial Presença, 2005
CAMPOS, Adalgisa Arantes (org.). Manoel da Costa Ataíde. Belo Horizonte: Editora c/Arte,
2005
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Arte Sacra no Brasil Colonial. Belo Horizonte: Editora c/Arte,
2011.
CAMPOS, Adalgisa Arantes. As irmandades de São Miguel e as Almas do Purgatório: culto
e iconografia no Setecentos mineiro. Belo Horizonte: Editora c/Arte, 2013
CAMPOS, Adalgisa Arantes. Introdução ao Barroco mineiro: cultura barroca e manifestações
do rococó em Minas Gerais. Belo Horizonte: Crisálida, 2006
CANTI, Tilde. O móvel no Brasil: origens, evolução e características. Lisboa: Fundação
Ricardo do Espírito Santo Silva, Editora Agir, 1999
CARRARA, Angelo Alves. Amoedação e oferta monetária em Minas Gerais – as casas de Fundição
e Moeda de Villa Rica. VARIA HISTORIA, Belo Horizonte, vol. 26, n. 43, jan/jun 2010, pp. 217-
239.
CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. Oratórios mineiros D. José I: o tema
cristológico nos objetos de devoção familiar produzidos entre o fim do século XVIII e início do
XIX. In: Atas do IV Congresso Internacional do Barroco Íbero-Americano. 2008, pp. 1056-
1061
475
CASTELLO BRANCO, Maria Alice Honório Sanna. Os oratórios mineiros em estilo Dom José I
e a utilização do vidro plano no Brasil: a importância da análise dos materiais na datação das obras
religiosas. In: Revista Imagem Brasileira, n. 5. Belo Horizonte, 2009, pp. 303-312
CEBALLOS, Alfonso Rodriguez G de. El “bel composto” berniniano a la española. Semata. Vol.
10, 1998, pp. 265-279.
CHAHON, Sérgio. Os convidados para a Ceia do Senhor: as missas e a vivência leiga do
catolicismo na cidade do Rio de Janeiro e arredores (1750-1820). São Paulo: Edusp, 2008
CHARTIER, Roger. Textos, impressão, leituras. In: HUNT, Lynn. A nova história cultural. São
Paulo: Martins Fontes, 1992, pp. 121-139
CHAVES, Luis. Capelas, ermidas, oratórios e nichos dedicados ao culto dos santos, em Lisboa
Setecentista e seus arrabaldes. Separata do Boletim da Junta Distrital de Lisboa, n. 59-60, 1963
CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Vol. I. 2ª edição – Revista e
Aumentada. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1982
CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Vol. II. 2ª ed. Belo Horizonte:
Imprensa Oficial de Minas Gerais, 1982
CISSE, Mamadou. Ecrits et ecriture en Afrique de L´ouest. Revue electronique internationale
de sciences du language sudlangues, Senegal, n. 6, 2006, pp. 63-88
COELHO, Beatriz (org.) Devoção e arte – imaginária religiosa em Minas Gerais. São Paulo:
EDUSP, 2017
COLI, Jorge. O corpo da liberdade. São Paulo: Cosac Naify, 2010
CUNNINGHAM, Laurence S. Uma breve história dos santos. Rio de Janeiro: Editora José
Olympio, 2011
CURL, James S. A dictionary of Architecture and Landscape architecture. Oxford: Oxford
University Press, 2000
DAVIDSON, H. R. Ellis. Gods and Myths of Northern Europe. Londres: Penguin Books, 1998
DEBRET, Jean-Baptiste. Viagem Pitoresca e Histórica ao Brasil (1816-1839). Vol. 3. São Paulo:
Martins Editora, 1940
DENZINGER, Henrich. Compêndio dos símbolos, definições e declarações de fé e moral
da Igreja Católica. São Paulo: Loyola, 2006
DIAS, Geraldo J. A. Coelho. A irmandade de S. Crispim e S. Crispianiano. Estudos em
homenagem ao Professor Doutor José Marques, Universidade do Porto, Portugal. vol. 2. 2006, pp.
147-160
DIAS, Geraldo J. A. Coelho. A devoção do povo português a Nossa Senhora nos tempos
modernos. In: História: Revista da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, n. 4, 2019,
pp. 227-253
DIAS, Pedro. A viagem das formas – estudos sobre as relações artísticas de Portugal com a
Eurpa, a África, o Oriente e as Américas. Lisboa: Editorial Estampa, 1995
DIAS, Pedro. Mobiliário Indo-português. Moreira dos Cônegos: Imaginalis, 2013
DIDI-HUBERMAN, Georges. Diante da imagem – Questão colocada aos fins de uma
história da arte. São Paulo: Editora 34, 2013
476
FREIRE, Luiz Alberto Ribeiro. As maquinetas dos humildes: o maravilhoso delicado, diminuto e
afetivo feminino, In Encontro da Associação Nacional de Pesquisadores em Artes Plásticas, 26º,
2017, Campinas. Anais do 26º Encontro da ANPAP. Campinas: Pontifícia Universidade Católica
de Campinas, 2017, pp. 4024-4039
FREYRE, Gilberto. Casa Grande & Senzala: formação da família sob o regime da economia
patriarcal. Rio de Janeiro: José Olympio Editora, 1981
FURTADO, Júnia Ferreira. Desfilar: A procissão barroca. Revista Brasileira de História. São
Paulo. V. 17, nº 33. 1997, pp. 1-38
GIOVANINNI, Luciana Braga. Os mistérios do rosário – visão contemplação e invocação:
estudo iconológico das pinturas de forro da capela de Nossa Senhora do Rosário dos Pretos
da Vila de São José da Comarca do Rio das Mortes – 1750 a 1828. Dissertação de Mestrado.
Departamento de Ciências Sociais da Universidade Federal de São João del-Rei: São João del-Rei,
2017
GIOVANINNI, Luciana. Eva e Ave, o Veneno e o Antídoto: a iconografia da Anunciação da
Capela do Rosário dos Pretos da Vila de São José (c. 1820). Memento – Revista de Linguagem,
Cultura e Discurso, UNINCOR, v. 08, n.2, jul-dez/2017, pp. 1-22
GÓIS, Antônio José Sapucaia de Faria. Fatores condicionantes na morfologia do retábulo.
Tese de doutorado. Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da Universidade de São Paulo. São
Paulo, 2005
GOLSENNE, Thomas; DÜRFELD, Michael; ROQUE, Geoges; SCOTT, Katie; WARNCKE,
Carsten-Peter. L’ornemental : esthétique de la différence. In: Perspective. 1 | 2010, mis en ligne
le 14 août 2013, consulté le 14 août 2019, pp. 11-26
GOMBRICH, E. H. A História da Arte. Rio de Janeiro: LTC, 2012
GOMBRICH, E. H. O sentido de ordem, um estudo sobre a psicologia da arte decorativa.
Porto Alegre: Bookman, 2012
GRAÇA FILHO, Afonso de Alencastro. A princesa do Oeste e o mito da decadência de
Minas Gerais – São João del-Rei (1831-1888). São Paulo: Annablume, 2002
GRAMMONT, Guiomar de. Aleijadinho e o aeroplano: O paraíso barroco e a construção do
herói nacional. São Paulo: Editora José Olympio, 2012
GUIMARÃES, Geraldo. São João del-Rei – Século XVIII – História Sumária. São João del-
Rei, Edição do Autor, 1996
GUSMÃO, Eduardo. Uma religião sem caráter. Textos & Debates – Revista de Ciências
Humanas da Universidade Federal de Roraima. N. 6. Roraima, 2000, pp. 15-20
GUTIERREZ, Angela (org.). Museu do Oratório – Coleção Angela Gutierrez. Belo Horizonte:
Conceito Editorial, 2013
GUTIERREZ, Angela (org.) Objetos de fé, Oratórios brasileiros. 2 ed. Belo Horizonte:
Formato, 1994
GUTIERREZ, Angela; RAMOS, Adriano (orgs.). Francisco Vieira Servas e o ofício da
escultura na Capitania das Minas do Ouro. Belo Horizonte: Instituto Cultural Flávio Gutierrez,
2002
GUTLICH, George Rembrandt. Arcádia nassoviana: natureza e imaginário no Brasil
holandês. São Paulo: Annablume, 2005
478
LEBRUN, François. As reformas: devoções comunitárias e piedade pessoal. In: ROGER, Chartier
(org.) História da Vida Privada. Vol. 3. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, pp. 76-112
LEITE, Ilka Bonaventura. Antropologia da viagem – escravos e libertos em Minas Gerais no
século XIX. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1996
LÉSBIO, Antônio Marques (atrib.) Obras pertencentes ao Grupo de Mogi das Cruzes. 1730.
Edição de Paulo Castagna. Música Brasilis. Disponível em:
https://musicabrasilis.org.br/partituras/anonimo-obras-pertencentes-ao-grupo-de-mogi-das-
cruzes-matais-de-incendios Acesso em: 07/10/2019.
LÓPEZ, María del Pilar. El oratorio: espacio domestico en la casa urbana en Santa Fe durante los
siglos XVII y XVIII. Ensayos, Historia y Teoria del Arte, vol. 8, n. 8, 10 fotos, Bogotá D.C.,
2003, Universidad Nacional de Colombia, pp. 157-226
LUCCOCK, John. Notas sobre o Rio de Janeiro e partes meridionais do Brasil. 1808-1818.
São Paulo: Editora Itatiaia – Editora da USP, 1975
LYRA, Joana da Costa. Os caminhos do presépio – Imagem devocional no catolicismo
popular. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Artes Visuais da Universidade
Federal do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro, 2006
MACHADO, David Prado. A privatização da fé: Capelas domésticas nas Minas Gerais dos
séculos XVIII e XIX. Tese de doutorado. Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e
Urbanismo. Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal de Minas Gerais. Belo
Horizonte, 2019
MACHADO, Zeila Maria de Oliveira. Embrechado como representação de arte: repertório
religioso do século XIX em Maceió, Nazaré, Jaguaripe e Salvador. Dissertação de Mestrado.
Escola de Belas Artes da Universidade Federal da Bahia. Salvador, 2012
MAKOWIECKY, Sandra. Os primeiros espaços públicos de exposição no Brasil: Xavier das
Conchas e Xavier dos Pássaros. 19&20, Rio de Janeiro, v. XII, n. 2, jul-dez, 2017. Disponível em:
http://www.dezenovevinte.net/arte%20decorativa/sm_passeiopublico.htm. Acesso aos
20/09/2020.
MARAVALL, José Antonio. A cultura do barroco. São Paulo: Edusp, 2009
MARCUCCI, Emilio. Ancora del tabernacolo delle Fontecine. In: Arte e Storia. Vol IV, 1885, p.
289-292.
MARQUAND, Allan. Giovanni della Robbia. Princeton: Princeton University Press; London:
Humphrey Milford; Oxford University Press, 1920
MARTINS, Judith. Dicionário de Artistas e Artífices dos séculos XVIII e XIX em Minas
Gerais. Vol. II. N. 27. Rio de Janeiro: IPHAN, 1974
MATA, Sérgio da. Chão de Deus – Catolicismo popular, espaço e proto-urbanização em
Minas Gerais, Brasil. Séculos XVIII-XIX. Berlin: Wiss, Verl. 2002
MATA, Sérgio da. Religionswissenschaften e crítica da Historiografia da Minas Colonial. Revista de
História. FFLCH-USP, 1997. n. 136, pp. 41-57
MENDES, José Amado. A história do vidro e do cristal em Portugal. Lisboa: INAPA, 2002
MENEZES, Marizilda dos Santos; CASTRO, Jacqueline Aparecida Gonçalves Fernandes de.
Culturas orais e linguagem gráfica. GRAPHICA, Curitiba, 2007, pp.1-10
480
SOUZA, Maria da Conceição Borges de; BASTOS, Celina. Normas de inventário: Mobiliário.
Instituto Português de Museus. Lisboa: IPM, 2004
SOUZA, Vanessa Raquel Lambert de. A supervivência das imagens: esculturas e marcas
gráficas na arte afro-brasileira – experiências poéticas e conhecimento visual. Tese de
Doutorado. Instituto de Artes da Universidade Estadual Paulista “Júlio de Mesquita Filho”
(UNESP), São Paulo, 2017
SULLIVAN, John F. The externals of the Catholic Church. Nova York: P.J Kenedy & Sons,
1918, p. 273-279. [Recurso eletrônico]. Disponível em: htttp:
www.awakentoprayer.org/litanies.htm. Acesso aos 10/08/2020.
TEIXEIRA, Felipe Charbel. Aby Warburg e a pós-vida das Pathosformeln antigas. História da
Historiografia: International Journal of Theory and History of Historiography, v. 3, n. 5, p.
134-147, 13 set. 2010, pp. 134-147
TELLES, Pedro Carlos da Silva. História da engenharia no Brasil, séculos XVI a XIX. Rio de
Janeiro: Editora LTC, 1984
TOLEDO, Benedito Lima de. Esplendor do Barroco Luso-Brasileiro. São Paulo: Ateliê
Editorial, 2012
TORRES, João Camilo de Oliveira. História das ideias religiosas no Brasil. São Paulo: Editora
Grijalbo, 1968
TORRES, João Camilo de Oliveira. O homem e a montanha – Introdução ao estudo das
influências da situação geográfica para a formação do espírito mineiro. Coleção
Historiografia de Minas Gerais, Série Alfarrábios. Belo Horizonte: Editora Autêntica, 2011
TRUONG, Alain. The treasure of the ´Chapel of Relics´in the Pitti Palace – Sacri Splendori.
2014. Disponível em: https://alaintruong2014.wordpress.com/2014/08/07/the-treasure-of-the-
chapel-of-relics-in-the-pitti-palace-sacro-splendori/. Acesso aos 15/12/2019
ULRICH, Roger. B. Roman Woodworking. Yale, Universiy Press, 2008
VAINFAS, Ronaldo. Moralidades Brasílicas: deleites sexuais e linguagem erótica na sociedade
escravista. In: NOVAIS, Fernando A; SOUZA, Laura de Mello e. História da vida privada no
Brasil: Cotidiano e vida privada na América Portuguesa. Vol. 1. São Paulo: Companhia das
Letras, 1997, pp. 222-273
VALENTE, Ana Lúcia Eduardo Farah. As irmandades de negros: resistência e repressão. Dossiê:
Religião e Cultura. Horizonte. Belo Horizonte, v. 9, n. 21, abr/jun. 2011, pp. 202-219.
VARAZZE, Jacopo de. Legenda Áurea: vida dos santos. São Paulo: Companhia das Letras,
2003
VASCONCELLOS, Diogo de. História da Civilização Mineira – Bispado de Mariana.
Coleção Historiografia de Minas Gerais: Série Alfarrábios. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2014
VIEGAS, Augusto. Notícia de São João del-Rei. Belo Horizonte: Edição do autor, 1969
VIEIRA, Antônio, pe. Sermão XIV (1633). Edição de referência: Sermões. Vol. V. Erechim:
EDELBRA, 1998
VIEIRA, Padre Antônio. Sermão III – Maria Rosa Mística. In: Sermões escolhidos. V. 2. São Paulo:
EDAMERIS, 1965
VILLARI, Rosário. O homem barroco. Lisboa: Editorial Presença, 1995
485
FONTES IMPRESSAS
1. Editadas
CÓDICE COSTA MATOSO. Coleção das notícias dos primeiros descobrimentos das Minas
na América que fez o doutor Caetano da Costa Matoso sendo ouvidor-geral das do Ouro
Preto, de que tomou posse em fevereiro de 1749, & vários papéis. Belo Horizonte: Fundação
João Pinheiro, Centro de Estudos Históricos e Culturais, 1999
LIVRO DOS MILAGRES ou FLORINHAS DE SANTO ANTÔNIO DE LISBOA (do
manuscrito original “Liber Miraculorum Sancti Antonii. In: Chronica XXIV Generalium Ordinis Fratrum
Minorum). Trad. Frei Fernando Félix Lopes OFM. Braga: Franciscana, 1996
MOLINIER, Auguste. Les sources de l´histoire de France des origines aux guerres d´Italie
(1494). Edição de 1903 pertencente a Bibliothèque de l´École des chartes. Disponível em:
https://www.persee.fr/doc/bec_0373-6237_1903_num_64_1_461478. Acesso aos 01/09/2020
VIDE, Monteiro da. Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia feitas, e ordenadas
pelo Illustrissimo, e Reverendissimo Senhor D. Sebastião Monteiro da Vide: propostas, e
aceitas em o Synodo Diocesano, que o dito Senhor celebrou em 12 de junho do anno de
1707. S. Paulo: Na Typographia 2 de Dezembro de Antonio Louzada Antunes, 1853.| Edições do
Senado
Henriqueta Maria de França, & Calificador no Sagrado Tribunal da Inquisição de Lisboa. Coimbra,
no Real Collegio das Artes da Companhia de Jesu, com todas as Licenças Necessárias. Ano Domini
1713
PEREIRA, Nuno Marques. Compêndio Narrativo do Peregrino da América em se tratam
varios Discursos Espirituais, e moraes, com muitas advertências, e documentos contra os
abusos, que se achao introduzidos pela malicia diabólica no Estado do Brasil. Dedicado à
Virgem da Vitoria, Emperatris do Ceo, Rainha do Mundo, e Senhora da Piedade, Mãy de
Deos. Autor Nuno Marques Pereira. Lisboa Occidental. Na Officina de Manoel Fernandes da
Costa, Impressor do Santo Officio. Ano de 1728. Com todas as Licenças Necessarias
POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorun Andrea Putei e Societate Jesu, Pars
Prima. In qua docetur modus expeditissimus delineandi optice omnia que pertinent ad
Architectorun. Romae, 1693, Nella Stamperia di Gio: Giacomo Komarek Boëmo all´Angelo
Custode
POZZO, Andrea. Perspectiva Pictorum et Architectorun Andrea Putei e Societate Jesu, Pars
Secunda. In qua docetur modus expeditissimus delineandi optice omnia que pertinent ad
Architectorun. Romae, 1693, Nella Stamperia di Gio: Giacomo Komarek Boëmo all´Angelo
Custode
Botica Preciosa e Thesouro Precioso da Lapa. Em que como em Botica, e Thesouro se achão
todos os remedios para o corpo, para a alma, e para toda a vida. E huma receita das vocaçoens dos
Santos para remedio de todas as enfermidades, e varios remedios, e milagres de N. Senhora da
Lapa, e muitas Novenas, e devoçoens, e avisos importantes para os pays de família ensinarem a
Doutrina Christã a seus filhos, e criados. Composta, e descoberto pelo Missionario Apostolico
Angelo de Sequeira. Protonotario Apostolico de S. Santidade, do habito de São Pedro, natural da
Cidade de S. Paulo. Dedicada e offerecido ao Serenissimo Rey D. Joseph I. Deste nome. Lisboa.
Na officina de Miguel Rodrigues, Impressor do Eminentissimo S. Card. Patriarca, 1754. Com todas
as licenças necessárias e privilegio Real.
IGREJA CATÓLICA, Concílio de Trento, 1545-1563 – O Sacrosanto e Ecumênico Concilio
de Trento em Latim e Portuguez. Tradução e organização por Jean-Baptiste Reycend. Lisboa:
Officina patriarca. De Francisco Luiz Amendo, 1781, Tomo 2.
Padre Bartolomeu do Quental. Sermoens do Padre Bertholomeu do Qvental, da Congregação
do Oratorio, pregador de sua majestade. Segunda parte. Lisboa: na Officina de Miguel
Deslandes, anno de 1694
VIEIRA, Antônio Pe. Maria Rosa Mystica, excelências, poderes, e maravilhas do seu
rosário: compendiadas em trinta sermõens ascéticos, e panegyricos, sobre os dous
Evangelhos desta solenidade, Novo, & Antigo: oferecidos à soberana majestade da mesma
Senhora, pelo Padre Antônio Vieira, da Companhia de Jesus... II parte. Lisboa: Na Impressão
Craesbeeckiana, a custa de Antonio Leyte Pereyra, Mercador de Livros, 1688.
487
BARREYRA, Isidoro (Fr.) Tratado das significaçoens das plantas, flores, e frutos, que se
referem na Sagrada Escritura: tiradas de divinas, e humanas letras, com suas breves
consideraçoens pelo Padre Fr. Isidoro de Barreyra. Lisboa: na officina de Manoel Lopes
Ferreyra & à sua custa, 1698.
RIPA, Cesare. Iconologia del cavaliere Cesare Ripa Perugino Notabilmente accresciuta
d´Immagini, di Annorazioni, e di Fatti dall´abate Cesare Orlandi patrizzio di citta´della pieve
Accademico Augusto. A sua eccellenza D. Raimondo di Sangro [...] Tomo Primo. In Perugia, 1764,
nella Stamperia di Piergiovanni Costantini, com licenza de superiori.
Disertacion Apologetica a favor del privilegio, que por costumbre introducida por la Bula
de la Santa Cruzada goza la nacion Española en el uso de los Oratorios Domesticos, leida
en la Real Academia de Buenas Letras de Sevilla, en 25 de Octubre de 1771. Por el Dr. D.
Francisco de Paula Baquero, Cura mas Antiguo de el Sagrario de la dicha Ciudad, Examinador
Synodal de su Arzobispado, Comisario, y Revisor de Libros del Santo Oficio, Academico
Numerario, y Censor de dicha Real Academia. La publica un amigo del autor. Con las licencias
necesarias. En Sevilla por D. Josef Patrino en calle Genova.
ERICE, Don Juan Josef de. Controversia Moral sobre el uso de los Oratorios domesticos.
Em atencion a los breves Pontifícios, y Bula de la Santa Cruzada. Escrita por Don Juan
Josef de Erice, Abad de la Iglesia Parroquial del Lugar de Larraya, Obispado de Pamplona.
Año de 1788. Com licencia: En Pamplona por Antonio Castilla, Impresor.
488
FONTES MANUSCRITAS
Inventário Museológico: Fichas – 187; 279; 280; 281; 282; 283; 284; 285; 286; 287; 288; 289; 292;
293, 295 e 296.
Cartório do 2º ofício, maço n. 175. Inventário post-mortem de Caetano Luiz de Miranda, 1837
Petição dos oficiais do Senado da Câmara de Vila Rica para ter oratório na sede da Câmara
Cx. 81, doc. 19. Conselho Ultramarino, Minas Gerais. 1763
Solicitação de regulação de cobrança das esmolas da Bula da Santa Cruzada em Minas Gerais
Cx 63, doc. 67. Conselho Ultramarino, Minas Gerais. 1753
489
Solicitação do procurador da Bula da Santa Cruzada de Minas para a não ‘inovação’ no despacho e bilhetagem na
alfândega do Rio de Janeiro para as bulas com destino às Minas
Cx 54, doc. 60. Conselho Ultramarino, Minas Gerais. 1749
Solicitação para o monarca para a manutenção dos privilégios dos tesoureiros e oficiais da Bula da Santa Cruzada
de Minas Gerais
Cx 08, doc. 07. Conselho Ultramarino, Minas Gerais. s/d
Capas
Capa. Detalhe. Oratório-lapinha. Séc. XIX. Museu de Arte Sacra, São João del-Rei. Foto: Marcos
Luan (2019)
Cap. 1. Detalhe. Cornelisz van Oostsanen. Anunciação. c. 1508. Óleo sobre madeira. Indianopolis
Museum of Art
Cap. 2. Detalhe. Venâncio José do Espírito Santo. Retrato do ermitão Jozé Carneiro Vieira. Consistório
da Irmandade da Santa Casa de Misericórdia de São João del-Rei. Foto: Taína Resende (2019)
Cap. 3. Detalhe. Altar doméstico. Séc. XVI. Rijksmuseum, Amsterdã
Cap. 4. Detalhe de porta de oratório doméstico. Rocalha. Museu Regional de São João del-Rei. Foto
do autor (2018)
Cap. 5. Detalhe. Oratório-lapinha. Séc. XIX. Museu do Diamante, Diamantina. Fonte: Projeto
Tainacan.
Caderno visual. Detalhe. Coroamento de oratório em concha. Séc. XVIII. Museu Regional de São
João del-Rei. Foto do autor (2018)
490
ANEXOS
491
ANEXO I
Tabelas temáticas
Obs: A tabela a seguir seguirá a numeração corrente. As demais poderão ser consultadas
devidamente contextualizadas nos capítulos.
TIPOLOGIA TOTAL
Oratório de salão 54
Oratório-lapinha 38
Oratório-nicho 22
Oratório-armário-de-pousar 21
Oratório-bala 19
Oratório de alcova 14
Oratório de esmoler 15
Oratório-ermida 13
Oratório Afro-brasileiro 13
Oratório de algibeira 10
Oratório de pousar 7
Oratório maquineta 7
Oratório-nicho de sacristia 6
Oratório capsular em vidro (das Conchas) 5
Oratório Dom José (fatura portuguesa) 5
Oratório de Convento 4
Oratório de viagem 3
Oratório de embutir 2
Oratório de pendurar 2
Oratório-papeleira 1
Oratório de cemitério 1
Oratório-pingente 1
Oratório-arca 1
Sem definição 1
TOTAL 265
ANEXO II
***
Referente à solicitação do dito Amaro dos Santos, repassada pelo vigário colado da Matriz de Nossa
Senhora do Pilar de São João del-Rei, para servir à capela de Nossa Senhora de Nazaré do Ribeiro
Fundo (atual Conceição da Barra de Minas) como ermitão. O processo é composto por cinco
documentos, sendo: a) Indicação do vigário colado da Matriz do Pilar, pe. João da Fé de S.
Jerônimo Gurgel do Amaral, ao bispado do Rio de Janeiro, das qualidades de Amaro dos Santos
para servir como ermitão de Nossa Senhora de Nazaré. Solicita autorização ao dito Amaro dos
Santos para exercer a ermitania; b) Endosso do próprio Amaro dos Santos, em anexo à indicação-
solicitação do vigário da Matriz do Pilar, onde expõe as motivações em ser ermitão; c) Autorização
passada por D. João da Cruz, bispo do Rio de Janeiro, a Amaro dos Santos para que exerça nas
Minas a ermitania da capela de Nossa Senhora de Nazaré do Ribeiro Fundo; d) Autorização passada
pelo monarca D. José I, rei de Portugal, a Amaro dos Santos para que circule livremente pelas
Minas com oratório de esmoler (caixinha) para esmolar em função da capela de Nossa Senhora de
Nazaré; e) Confirmação, de Amaro dos Santos, do recebimento dos privilégios das autoridades
referente à solicitação das provisões para exercício da ermitania.
Data: 1742-1759
Transcrição de 1874 para os anais da história da freguesia e distrito de Nossa Senhora de Nazaré,
para o Almank da Província de Minas do exercício de 1875.
493
a) O padre João da Fé de S. Jeronimo Gurgel do Amaral, vigário collado n´esta parochial igreja de N. S.
do Pilar de S. João d´El-Rey: Certifico que Amaro dos Santos é bem procedido e tão devoto de N. S. de
Nazareth collocada na capella do Ribeiro Fundo filial d´esta minha freguezia, que não só mostra desejos
de servir toda a sua vida senão também (conforme me informou) quer servir a N. S. na tal capella, e dar
para o serviço da mesma Senhora todos os bens da fortuna que possue: e como n´elle concorrem os
requisitos necessarios para ser ermitão e para isso quer fazer petição ao Illm. e Revm. Sr. Bispo pedindo-
me informações para o dito Sr., por lhe ter perdido outra petição que já fizera e deseja a brevidade, lhe
passo esta por mim feita e firmada e se necessário for o jurarei aos Santos Evangelhos.
S. João d´El-Rey, 25 de Maio de 1742. – O vigário João da Fé de S. Jeronimo Gurgel do Amaral. (sic)
b) Diz Amaro dos Santos que o supplicante, por razões espirituaes que o moveo, prometteo servir a N.
S. de Nazareth em sua capella do Ribeiro Fundo, oito leguas distante da villa de S. João d´El-Rey, districto
da mesma freguezia, e pela pobreza da dita capella tem no ornato d´ella gasto os bens que possuia, e
porque deseja servir a mesma Senhora por toda sua vida em habito de seu ermitão, e para o poder fazer
– P. a V. S. lhe faça mercê conceder licença para usar do dito habito em atenção ao referido. E. R. M. –
Passe provisão na forma costumada.
Rio, 8 de Fevereiro de 1746. – Dr. Moreira. (sic)
c) D. João da Cruz, por mercê de Deos e da Santa Sé Apostolica, bispo d´este bispado e do conselho de
Sua Magestade &. Aos que esta nossa provisão virem saúde e paz com todo amor, remedio e salvação.
Fazemos saber que, attendendo ao que por sua petição retro nos veio dizer Amaro dos Santos, havemos
por bem pela presente nossa provisão o pormos em a occupação de ermitão da capella de N. S. de
Nazareth do Ribeiro Fundo, oito leguas distante da freguezia de S. João d´El-Rey, emquanto não
mandarmos o contrario, e terá seo habito de ermitão tratando da dita capella com asseio, pelo que receberá
grande premio da mão de Deos Nosso Senhor e da mesma Senhora. Dada n´esta cidade do Rio de Janeiro
sob o sello da nossa diocese e signal do nosso Revd. Provisor e governador d´este bispado aos oito dias
do mez de Fevereiro de mil setecentos e quarenta e seis. Eu João Manoel Salgado escrivão da camara
ecclesiastica a subscrevi. – Dr. Henrique Moreira da Conceição. (sic)
d) D. José, por Graça de Deos, Rei de Portugal e dos Algarves, d´aquem e d´alem mar em Africa e Senhor
da Guiné &. Faço saber aos que esta minha provisão virem, que por parte de Amaro dos Santos, ermitão
da capella de N. S de Nazareth, sita na freguezia de São João d´El-Rey, comarca do Rio das Mortes, se
Me representou que elle suplicante, tendo alguns bens temporaes, fizera d´elles doação a dita capella com
voto de servir a mesma Senhora toda a sua vida, como o tem feito no decurso de varios anos com todo
zelo e fervor como se comprova da justificação que offerece; e porque da mesma se mostrava não poder
subsistir a dita capella com a devida decencia e nem continuar-se n´ella a celebrar-se o Culto Divino sem
o concurso das esmolas, sendo alias tão precisa dos moradores d´aquelle continente, que por ser distante
do povoado frequentavão ali os Sacramentos: recorria a Mim para que fosse servido prorogar-lhe a licença
que já tinha para poder pedir nas Minas para a dita capella com caixinha da mesma Senhora, Me pedia lhe
fizesse mercê mandar passar provisão pelo tempo que Eu fosse servido. E attendendo ao seo
requerimento, Hei por bem conceder licença ao supplicante para pedir esmolas na capitania das Minas
pelo tempo de sua vida. Pelo que manda ao Meo governador e capitão general da capitania das Minas
Geraes, mais ministros e pessoas a quem tocar cumprirão e guardem esta provisão e a fação cumprir
cumprir e guardar como n´ella se contem sem duvida alguma, a qual valerá como carta sem embargo da
ordenação do livro 2.° titulo 1.° em contrario, e se passe por duas vias uma só haverá effeito, e não pagou
novo direito por não dever por ser para esmolas, com constou por certidão dos officiais da chancellaria.
El-Rey Nosso Senhor Mandou pelos conselheiros do seo conselho ultramarino abaixo assignados. –
494
Antonio Ferreira de Azevedo a fez em Lisboa a 27 de Janeiro de 1757. – O secretario Joaquim [...] a fez
escrever. – Alexandre Mettelo de Souza. – Antonio Ferreira de Andrade. – Cumpra-se como Sua
Magestade manda, sendo primeiro registrada.
Rio, 1° de Fevereiro de 1759. – José Antonio de Aveiros. – Cumpra-se. S. João, 9 de Junho de 1759. –
Silva. – Registrada & &: seguem-se as notas do registro. (sic)
e) Exm. e Revm. Sr. – Diz Amaro dos Santos ermitão por voto perpetuo da capella de Nazareth, filial da
matriz de S. João d´El-Rey, comarca do Rio das Mortes, que o supplicante alcançou licença pela provisão
junta de Sua Magestade para haver e poder pedir esmolas pelos fieis, afim de conseguir e finalisar as obras
da mesma capella e assistir a conservação della, em razão dos mesmos seos applicados não poder fazer
pela sua pobreza, como tudo consta das atestações do Revd. Parocho, e porque o supplicante para poder
usar da dita licença com habito e caixinha necessita de V. Exc. Revm.ª – P. a V. Exc. Revm.ª lhe faça
mercê por serviço da mesma Senhora conceder-lhe a licença, a vista do referido. E. R. M. – Concedemos
ao supplicante a licença que pede.
Marianna, 20 de Março de 1759. – Rubrica. – Visto. Villa de S. João. 9 de Junho de 1759. – Sobral. (sic)
Botica Preciosa e Thesouro Precioso da Lapa. Em que como em Botica, e Thesouro se achão
todos os remedios para o corpo, para a alma, e para toda a vida. E huma receita das vocaçoens dos
Santos para remedio de todas as enfermidades, e varios remedios, e milagres de N. Senhora da
Lapa, e muitas Novenas, e devoçoens, e avisos importantes para os pays de família ensinarem a
Doutrina Christã a seus filhos, e criados. Composta, e descoberto pelo Missionario Apostolico
Angelo de Sequeira. Protonotario Apostolico de S. Santidade, do habito de São Pedro, natural da
Cidade de S. Paulo. Dedicada e offerecido ao Serenissimo Rey D. Joseph I. Deste nome. Lisboa.
Na officina de Miguel Rodrigues, Impressor do Eminentissimo S. Card. Patriarca, 1754. Com todas
as licenças necessárias e privilegio Real.
[...] De manhã na Igreja, ou no teu Oratório, ou em tua casa diante de alguma imagem de JESUS Chisto,
ou de Nossa Senhora, ou de alguma Cruz reza com a tua família a córos, ou só, o primeiro Terço do
Rosário da Mãy de Deos. Depois faze meya hora, ou hum quarto de oração mental. Entre dia, e noite
observa o eercicio da presença de Deos, e em cada dia faze de mais alguma mortificação interior. Não te
embaraçando a obrigação do teu estado, ouve Missa todos os dias, e lê, ou ouve ler em algum livro
espiritual o espaço de meya hora. Em fim em cada dia assenta comtigo, que he o ultimo, que Deos te
concede de vida, para viveres mais fervoroso no santo temor, e amor de Deos, e do próximo, no exercício
das virtudes, e obrigação do teu estado.
De noite, se não tiveres rezado os dous últimos Terços do Rosário da Mãy de Deos, o farás com a tua
família a coros, ou como melhor poderes. Depois faze meya hora , ou hum quarto de oração mental, e no
fim reza a Ladainha de Nossa Senhora. Em cada dia antes de jantares e ceares, ou ao menos à noite, gasta
algum tempo em fazeres diligentemente exame de consciência sobre os peccados de comissão, e homissão,
e defeitos, em que cabiste neste dia, ponderando de vagar o que nelle fizeste contra teu Deos, Pay, e
Redemptor, e contra tua alma, e depois faze vivos actos de contrição, e propósitos de emenda. Na manhã
seguinte repete o exame, e actos de contrição, e attrição, e propósitos de te emendares nesse dia,
especialmente de não cometteres as culpas, que fizeste no dia antecedente, e evitares os defeitos, em que
cabiste. Este exercício melhor te será fazello diante de alguma imagem de JESUS Christo crucificado,
como quem se confessa espiritualmente ao mesmo Senhor. No fim reza, e como em penitência dada pelo
mesmo Senhor, huma estação pelas santas almas do Purgatório. [...] (sic)
495
496
Anexo III
Caderno Visual
Este caderno visual foi concebido como um atlas formal e iconográfico, trazendo referências
figurativas que dialogam entre si e com as imagens que trouxemos ilustradas no corpo do texto da
presente dissertação. Além disso, este caderno visual foi pensado no sentido de ilustrar certas
referências iconográficas que citamos ao longo deste trabalho e que não puderam ser devidamente
inseridas. As imagens falam por si mesmas, portanto, são elas o texto primordial deste caderno. No
entanto, a fim de melhor contextualizá-las e inseri-las nas discussões que travamos ao longo deste
estudo, poderão ser lidas junto às legendas das respectivas imagens pequenas notas explicativas ou
textos/explicações que consideramos fundamentais.
Figura 5. Altares domésticos dedicados à deusa Nehalennia. 1715. Gravura. Fonte: Rijksmuseum, Amsterdã
499
Figura 6. Cornelisz van Oostsanen. Anunciação. c. 1508. Óleo sobre madeira. Indianopolis Museum of Art. Fonte:
Creative Commons.
Destaque para o altar e nicho de vocabulário Gótico, servindo como altar/oratório doméstico para as orações da
Virgem. As cenas de Anunciação, tema primordial da iconografia mariana, foram as mais privilegiadas representações
onde se pode observar a disposição do imaginário medieval – especialmente flamengo – em torno do ato orante, assim
como da organização do espaço doméstico e dos espaços voltados especialmente para a oração cotidiana.
501
Figura 7. Horae ad usum Rothomagensen. 1401-1500. França. Manuscrito iluminado. Bibliothèque nationale de
France. Destaque para a cena da Anunciação, com o altar doméstico instalado como tríptico.
502
Figura 8. Pieter Pourbus. Anunciação. 1552. Óleo sobre painel. 117x112cm. Bruges (Flandres Ocidental). Museum
Gouda, Países Baixos. Fonte: Creative Commons.
Como foi dito anteriormente, as cenas de Anunciação (um dos temas mais populares da iconografia mariana) foram,
sobretudo no âmbito da pintura, as representações mais interessantes no que concerne ao tema da religiosidade
doméstica no período medieval tardio (séculos XIV-XV). A pintura flamenga, nesse aspecto, é merecedora dos maiores
louros nesse sentido. Podemos encarar tais obras pictóricas (é há um bom número delas) como retratos peculiares e
muito significativos de uma época onde a burguesia mercantil e a nobreza viviam o auge da devotio moderna, concebendo
espaços físicos e intimistas ou ao menos dignificando a casa com objetos voltados para as práticas devocionais, a oração
e a leitura de livros de espiritualidade. No entanto, obviamente, não podemos considerar tais obras como espelhos
cristalinos da vida privada flamenga, tendo em vista as concepções estéticas, a poética, e sobretudo as motivações
pessoais do artista e dos comitentes que afetavam significativamente o programa iconográfico, formal e compositivo
da obra. Contudo, também seria ingênuo desmerecer a qualidade do artista e a potencialidade da obra analisada em
virtude de tais questões, questões essas que qualquer historiador bem formado já considera de antemão ao analisar
uma obra de arte (problematizações que são feitas – indubitavelmente – diante de qualquer documento histórico, seja
503
uma pintura, seja um manuscrito). Consideramos a Anunciação de Pieter Pourbus (1523-1584) acima ilustrada uma obra
extremamente significativa acerca do contexto do uso de oratórios domésticos devocionais concebidos ainda em sua
forma embrionária, a de um tríptico gótico (aqui representado como pintura em painel de madeira, com volantes).
A composição é riquíssima. No interior de um quarto de dormir, aparentemente, temos o exato momento da chegada
do arcanjo Gabriel no recinto, anunciando à Virgem que a mesma conceberia e daria à luz um filho. Maria, representada
em uma lânguida surpresa, recebe sobre si a fecundação divina através do Espírito Santo, iconograficamente concebida
como a pomba branca. Deixando de lado os aspectos iconográficos, a nossa atenção é direcionada para a ambientação
doméstica. É uma casa nobre, dotada de rico mobiliário de vocabulário clássico, evidenciando a presença do
renascimento das formas clássicas na arquitetura (as colunas, os capitéis e a própria ornamentação em grotesca) e no
mobiliário. O contexto da devotio moderna pode ser lido através de dois elementos: o genuflexório com suporte para a
leitura de livros piedosos e o tríptico gótico ao fundo, aparado sobre um armário. Ambos se encontram no íntimo de
um quarto de dormir, considerado também o espaço privilegiado da casa para a vivência religiosa doméstica e privada.
Para além da leitura iconográfica tradicional da passagem em si, a cena representada no tríptico complementa o próprio
simbolismo dos personagens principais. No tríptico doméstico temos Eva como protagonista, colhendo da árvore o
fruto proibido para logo em seguida ofertá-lo a Adão. Trata-se de uma contraposição. Temos na imagem dois discursos,
duas retóricas opostas, que se complementam. Por uma mulher o pecado veio ao mundo e através de sua desobediência
a morte jaz entre a humanidade. Por outra, a salvação foi possível aos homens e através de sua obediência a morte já
não era vitoriosa. O oratório ali, silencioso, se torna um lembrete e um convite para a meditação. Um mistério perene
a ser contemplado e, obviamente, regulador de comportamentos.
Nesse sentido, o oratório ali representado como um tríptico doméstico se apresenta como um objeto detentor de uma
mensagem, de um sentido, de uma forma que direciona o olhar do fiel ao mistério que o ilustra. É lembrete, é discurso,
é estímulo visual, e direcionador de práticas. Não era mais necessário ir ao templo para refletir sobre questões morais
e espirituais, podia-se isso fazer dentro da própria habitação, tornando o ambiente doméstico o próprio templo, a
ecclesiae domesticae. Na realidade, não substituía o templo, mas o complementava.
A pintura de Pourbus está inserida numa cultura visual muito própria do universo da arte tardo-medieval e renascentista
flamenga. Como referenciado no primeiro capitulo deste estudo, podemos verificar a mesma composição em outras
Anunciações, como as já ilustradas obras de Frei Carlos e Joos Van Cleve. O quarto de dormir, a cama com dossel
cortinado e a presença de um tríptico ou nicho devocional se trata de um modelo compositivo, de uma fórmula de
representação que se tornou tradicional nas cenas de Anunciação. No caso específico da obra de Pieter Pourbus, assim
como do próprio Van Cleve (figura 8 do primeiro capítulo) há uma pintura que pode ter servido de modelo direto
para a Anunciação em análise. Trata-se de uma Anunciação de um artista anônimo, referenciado como do círculo da
‘escola de Bruges’.
A obra (acima ilustrada na figura 9) possui as mesmas características de composição no que concerne ao aspecto
interior do quarto de dormir. Sem dúvida é uma obra anterior à Anunciação de Pourbus, cujo vocabulário clássico é
mais acentuado. Na obra do anônimo, temos a mesmíssima configuração do espaço e de disposição dos objetos, com
leves mudanças de posicionamento dos mesmos assim como das formas do mobiliário e do próprio nicho doméstico
que, nessa representação em particular, se assemelha aos nichos de estilo maneirista.
Por fim, obras que, somadas às já analisadas neste estudo, se configuram como representações do alvorecer das práticas
devocionais em torno dos oratórios domésticos, ou melhor, dos trípticos adaptados às formas diminutas e vinculados
ao mobiliário, protótipos dos oratórios domésticos propriamente ditos cujo auge e esplendor artístico se encontram
no assim chamado tempo do Barroco e do Rococó religioso.
Figuras 10-11. Paul Reichel. Oratório doméstico com Vanitas/Adão refletindo (Tödlein-Schrein). c. 1580.
Kunsthistorisches Museum, Viena.
O tema da morte, embora pareça de imediato um assunto pouco lisonjeiro para ocupar um espaço num oratório
devocional, também teve o seu lugar na religiosidade doméstica. A vanitas, a figura da morte ou a mera menção ao
memento mori tornaram-se elementos recorrentes nos nichos devocionais, embora tais representações sejam raras. Em
muitos casos, a figura da morte estará também vinculada à figura de Adão ou Eva, em alusão à queda dos primeiros
viventes e o reino da morte sobre os homens. No entanto, nas raras manifestações da iconografia da vanitas em oratórios
domésticos (o tema é usual e comum na arte da pintura) a mesma se apresenta como uma tentativa da espiritualidade
privada de também contemplar, através das artes visuais, o tema da brevidade da vida e do destino certo. Urge viver
bem para morrer bem. É o caso do nicho/oratório devocional executado pelo escultor Paul Reichel em 1580, onde a
morte, representada como um esqueleto humano, encontra-se meditando diante de uma ampulheta. Junto à figura da
505
morte, que também é interpretada como sendo um melancólico Adão, temos uma profusão de elementos
iconográficos, tais como os frutos (semelhantes a maçãs) em alusão aos frutos proibidos do Éden, a ampulheta, em
relação à brevidade da vida e do tempo e o dardo e o arco, instrumentos ceifadores da vida mortal dos homens (a foice
também cumpre com a mesma função na iconografia).
Curiosamente, o escultor, ao modelar o esqueleto humano, recorreu a um modelo contemporâneo: as estampas do
tratado de anatomia De humani corporis fabricae (1543) de Andrea Vesalius. No contexto, é possível observar o impacto
dos estudos científicos na elaboração das obras artísticas, sobretudo no que tange ao avanço da anatomia e sua
complexa morfologia, contribuindo significativamente na plástica e modelação dos corpos humanos na pintura e na
escultura. O modelo no tratado de Vesalius foi inteiramente copiado no esqueleto do oratório de Reichel, onde
podemos notar as mesmas características composicionais como a expressiva postura melancólica e contemplativa, o
posicionamento das mãos e braços, o cruzar das pernas e o leve repouso diante de um balcão.
A figura, ressignificada em um Adão pensativo ou a morte melancólica, torna-se um lembrete do destino inexorável e
sempre próximo. Os próprios espelhos nas portas laterais do oratório potencializam a experiência contemplativa do
espectador, tornando aterrador o momento da oração ao encarar o próprio rosto nos espelhos junto à própria figura
da morte: “lembra-te que morrerás, do pó vieste e a ele deves retornar”.
Figura 12. Andreas Vesalius. Prancha da página 164 do tratado ‘De Humani Corporis Fabricae. 1543. Universidade
de Évora, Portugal
506
Figura 13. Ex-voto. 1753. São João del-Rei, Minas Gerais. Óleo sobre madeira. Museu Regional de São João del-Rei,
São João del-Rei. Foto do autor (2018).
Destaque para a presença de altar doméstico, possivelmente com função litúrgica, em ambiente urbano. Como
estabelecido pela literatura historiográfica, os ex-votos (tábuas votivas) podem ser interpretados como testemunhos da
vida privada e cotidiana na América Portuguesa, assim como na América Espanhola e Europa. No ex-voto acima
ilustrado, pertencente ao acervo do Museu Regional de São João del-Rei, podemos observar a mesa do altar, provida
de castiçais com velas e um crucificado ao centro. A ornamentação frontal e superior, assim como a toalha branca,
pode indicar o seu uso para ações litúrgicas. Seguindo a ambientação da cena, parece ser uma sala ou quarto, não um
oratório apartado das dependências usuais da casa, como era exigido pelas Constituições Primeiras do Arcebispado da Bahia,
o que nos leva a pensar que se trata de uma cena ambientada numa residência urbana. Leva-nos também a pensar que,
caso seja de fato uma residência urbana, o altar estaria então vinculado ao privilégio da Bula da Santa Cruzada. Além
disso, também evidencia o pouco asseio do proprietário do altar ao misturá-lo às demais áreas da casa (no caso no
quarto do moribundo em questão) e certa conivência da autoridade eclesiástica, já que temos a presença de um
sacerdote na cena.
TRANSCRIÇÃO LITERAL:
“Mercê que fez N. Sra. do Monte do Carmo ao seu indigno filho Antonio Alveres Villa que estando muito mal Sacramentado cungido
(sic) deitando por espasso de bastantes dores e grande copia de sangue pella boca. E já desconfiado dos asistentes (sic). Nos últimos da vida
se correo (sic) com grande afflição a sua Santissima Mãy que lhe valleu e por mercê da Sra. ficou livre. Aos 23 de Janeiro de 1753.
507
Figura 14. Ex-voto. 1896. São João del-Rei. Óleo sobre madeira. Museu de Arte Sacra de São João del-Rei. Fonte:
MAS/SJDR.
Já nesse segundo ex-voto, temos a presença do oratório devocional. A cena se passa no final da última década do
século XIX. É um ambiente austero, muito simples e vazio de mobilía. Num quanto do quarto, temos um moribumdo
acamado. De acordo com a legenda, é o senhor Antônio Carlos de Resende, com pneumonia. Aos seus pés, uma moça
lhe pranteia desconsolada e, ao lado, um homem lhe observa. O milagre lhe vem através de uma hierofania, com o
Senhor Bom Jesus de Matozinhos a lhe envolver num halo luminoso. Curiosamente, ao lado da cama do enfermo e
aparado sobre uma tosca mesa, temos um oratório devocional. É o oratório de alcova, do quarto de dormir, elemento
primordial das orações cotidianas no mais íntimo dos aposentos da casa. Companheiro das práticas devocionais,
sobretudo em momentos dramáticos como a da cena do ex-voto.
TRANSCRIÇÃO LITERAL:
“Antônio Carlos de Resende sofreu uma grande pneumonia, que o Senhor Bom Jesus de Mattosinho (sic) o salvou por um milagre. No
anno de 1896. J.E.A.F (?)
508
Figura 15. Detalhe. Robert Campim. A Natividade. 1420-1425. Museu de Belas Artes, Dijon – França. Fonte:
Creative Commons
Um detalhe da obra A Natividade, de Robert Campim, nos chama a atenção. Logo a frente de Maria e do Menino Jesus
ao chão, temos duas mulheres: uma em pé e de frente para o espectador e outra ajoelhada, de costas. As duas
personagens podem ser identificadas através dos pergaminhos com seus respectivos nomes, Salomé (a que está em pé
de frente) e Zelemi (ajoelhada e de costas). As duas personagens não são referenciadas nas escrituras canônicas,
aparecendo somente nos evangelhos apócrifos. Ambas são descritas no Proto-evangelho de Tiago, como tratamos no
quinto capítulo do presente estudo.
Possivelmente, uma das duas parteiras (Salomé ou Zelemi) é comumente representada no nicho inferior dos oratórios-
lapinha mineiros. Nessa cena, temos a união das fontes bíblicas canônicas e apócrifas. É interessante pensar o modo
como tais tradições apócrifas, sobreviventes após a ‘limpeza’ realizada pelo Concílio de Trento, puderam atravessar o
além-mar e serem invocadas plasticamente nos oratórios-lapinhas na Minas do século XIX.
509
Figura 16. Oratório doméstico. Séc. XVIII-XIX. Minas Gerais. Museu da Inconfidência, Ouro Preto – MG. Fonte:
Banco de dados Projeto Tainacan.
As cenas da Paixão de Cristo foram as mais difundidas e populares em Minas Gerais, assim como em toda a América
Portuguesa e todo o orbe católico. A narrativa da paixão, morte e ressurreição de Cristo figuram como as iconografias
centrais da cultura visual cristã, possuindo variações das mais ricas. No ambiente doméstico, a iconografia da Paixão
encontrou nos oratórios grande fortuna. Para além da recorrente presença do crucificado em imaginária, o programa
iconográfico da Paixão se serviu de seis passagens retiradas da narrativa da Via-Crucis, sendo elas: (1) A Agonia de
Cristo no Horto das Oliveiras; (2) Cristo Cativo; (3) Cristo da Coluna; (4) Cristo da Cana Verde, (5) Ecce Homo e (6)
Senhor dos Passos. As passagens representadas nessa iconografia tornaram-se devoções individualizadas e, nos
oratórios, receberam nas portas laterais o seu lugar em três pequenos quadros pictóricos envoltos em molduras de
linhas retas, de rocalhas coloridas ou ainda em quadros cujas divisões foram feitas em madeira nas próprias portas. Tal
disposição compositiva foi organizada de modo que cumprisse com a função de narrar, resumidamente, os passos de
Cristo até sua morte na cruz. Atingiu, para nós atualmente, um aspecto de ‘história em quadrinhos’, podendo ser lida
nas portas até o ponto central, a cruz no nicho.
No oratório acima ilustrado na figura 16, a composição não fora organizada como uma ‘história em quadrinhos’, mas,
se assemelha muitíssimo à organização das iluminuras medievais. Embora seja um painel poluído, tanto no visual como
no tema, a narrativa pode ser lida quando os olhos estão atentos à composição do mesmo. A história deve ser lida de
baixo para cima, da esquerda para a direita e vice-versa. Temos um mesmo Cristo em diferentes momentos, todos eles
lado a lado. Vivamente, acompanhamos a trajetória de Jesus desde sua agonia no Horto das Oliveiras até sua morte na
cruz. Junto à narrativa, temos a presença dos instrumentos de tortura, as Arma Christi, assim como os elementos
narrativos como o galo (da negação de Pedro) e a apócrifa Verônica com o Sudário. Tal relevo de talha é deveras raro
em oratórios domésticos.
Já os seis quadros pictóricos dispostos em três nas duas portas dos oratórios, a leitura também segue uma composição
narrativa semelhante. Geralmente, os quadros podem ser lidos de cima para baixo e da porta esquerda para a direita,
começando pela Agonia de Cristo no Horto das Oliveiras até o carregar da cruz (Senhor dos Passos), culminando
sempre na contemplação da Morte de Cristo na cruz no nicho central, representado por um crucificado em imaginária.
510
Figuras 17-18-19-20-21-22. (1) Agonia de Jesus no Horto das Oliveiras; (2) Cristo Cativo; (3) Cristo atado à coluna; (4) Cristo
da Cana Verde; (5) Ecce Homo, (6) Senhor dos Passos. Detalhes das portas esquerda e direita. Oratório doméstico. Séc. XIX.
Minas Gerais. Museu Regional de São João del-Rei, Minas Gerais. Foto do autor (2018).
“ - Pai, se é possível, que se afaste de mim esta taça. Mas não se faça a minha vontade, e sim a tua”. (Mateus 26, 39)
“Então se aproximaram, agarraram Jesus e o prenderam”. (Mateus 26, 50) “Então soltou-lhes Barrabás, mandou açoitar
Jesus e o entregou para que o crucificassem”. (Mateus 27, 26). “Então os soldados do governador conduziram Jesus
ao pretório e reuniram em torno dele toda a companhia. Tiraram-lhe a roupa, envolveram-no num manto escarlate,
trançaram uma coroa de espinhos e a puseram em sua cabeça, e um caniço na mão direita. Depois, zombando,
ajoelhavam-se diante dele e diziam: - Salve, rei ds judeus! Cuspiam-lhe, pegavam o caniço e batiam com ele em sua
cabeça”. (Mateus 27, 27-31) “Saiu então Jesus com a coroa de espinhos e o manto de púrpura. Pilatos lhes diz: - Aqui
tendes o homem”. (João 19, 6) “Jesus saiu carregando ele próprio a cruz para um lugar chamado caveira (em hebraico
Gólgota)”. (João 19, 17)
Trechos retirados da Bíblia do Peregino, traduzida por Luís Alonso Schökel. Editora Paulus, 2011.
511
Figuras 23-24-25. Venâncio José do Espírito Santo. (1) Retrato do irmão Jozé Carneiro Vieira; (2) Retrato do irmão Manoel
de Jesus Fortes, (3) Retrato do irmão Francisco Moreira da Rocha. Séc. XIX. São João del-Rei. Acervo do consistório da
Irmandade da Misericórdia. Santa Casa de Misericórdia de São João del-Rei, Minas Gerais. Fotos: Taína Resende.
Os ermitães são homens “[...] geralmente revestidos de uma espécie de samarra, preta, marrom ou azul, de grosso e
rústico burel, atada com uma corda à cintura à franciscana, calçados de sandálias de couro ou simplesmente descalços.
Cobrem-se com rústicos chapéus desabados e se arrimam com bordões robustos, para as longas caminhadas no
sertão”. Pende-lhes ao pescoço “[...] uma pequena caixa, com relicário envidraçado, contendo uma imagem do santo
de sua devoção, que os fieis beijam piedosamente, tirando o chapéu ou dobrando o joelho [...] E quando recebem os
óbolos – dinheiro, alimento, donativos em espécie, etc – destinados à obra pia a que estão devotados, quase sempre
por força de uma promessa. Essas promessas resultam de uma conversão, de uma cura milagrosa, de um obséquio
alcançado”.
Extraído da obra de João Camilo de Oliveira Torres, História das ideias religiosas no Brasil, Editora Grijalbo, edição de
1968, páginas 91 e 92.
512
Figura 26. Anônimo. Estudo de nicho ou oratório, com duas variantes. 1805. Arquivo digital da Biblioteca Nacional, Rio de
Janeiro.
Destacamos aqui a aproximação formal entre a concepção retabulística e os oratórios. Provavelmente, o referido estudo
para oratório pode estar vinculado ao retábulo de um oratório particular de habitação rural, à moda de pequena capela
e anexa à arquitetura da casa. Nesse sentido, por serem altares de fato (e conterem pedra d´ara consagrada) o modelo
é mais cuidadoso, especialmente concebido e pomposamente ornamentado, tendo em vista os preceitos de decoro e
513
decência que são aplicados na fábrica retabular. No caso específico dos oratórios devocionais, embora não estejam
relacionados diretamente ao contexto da fábrica dos oratórios orientados para a liturgia, os mesmos possuem o
mesmíssimo tratamento artístico, sendo eles: a aproximação às formas retabulares, a aplicação do vocabulário
arquitetônico e ornamental em vigência e a aplicação da semântica do espaço sagrado nas formas miniaturizadas.
Destaque para a arbaleta, elemento característico de Vieira Servas enquanto projetista e entalhador de retábulos. A
arbaleta coroa o retábulo em miniatura no oratório-bala. Embora o risco ilustrado acima não se refira ao retábulo em
miniatura no oratório-bala analisado, podemos observar a replicação de muitos elementos estruturais e ornamentais.
Mesmo se tratando de uma peça devocional, portanto, sem nenhum compromisso com o culto divino, o expressivo
oratório-bala possui em seu retábulo miniatural a presença do decoro, da decência, da composição das partes para
união num todo e, em seu ‘corpo’ diminuto, adquire uma piedade conveniente para os exercícios de contemplação.
O oratório da sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Carmo de Ouro Preto possui o esplendor digno de um retábulo
coevo (figura 29). Composto de sólida armação arquitetônica, o oratório possui duas sólidas colunas, com fuste
estriado e canelado. Ambas sustentam uma pesada cimalha escalonada em frisos retilíneos e com ombreiras recortadas
e escalonadas onde se sustentam pequenos putti. A talha arquitetônica é atribuída a Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho, no entanto, a pintura é documentada, sendo obra do pintor Manoel da Costa Atayde. Nesse oratório
podemos observar, em síntese, a obra de arte total (o bel composto), com pintura e escultura unidas harmoniosamente na
estrutura arquitetônica.
BASTOS, Rodrigo. A maravilhosa fábrica de virtudes: o decoro na arquitetura religiosa de Vila Rica, Minas
Gerais (1711-1822). São Paulo: Edusp, 2013, p. 181.
Figuras 30-31. Detalhe. Planche 174. ROGER-MILÉS. Anthologie des arts decoratifs – Architecture, decoration
et ameublement... Paris: Édouard Rouveyre, Éditeur, 1904.
O oratório doméstico, no âmbito da forma, não se atém somente ao vocabulário da Arquitetura, mas também (e
principalmente) ao do mobiliário secular. A gravura francesa e alemã (sobretudo de Paris e Augsburgo) contribuiu
intensamente na constituição plástica da ornamentação e estruturação dos oratórios domésticos, tanto na Europa como
na América Portuguesa através de sua metrópole nos séculos XVIII e XIX. Destaca-se também a importante
contribuição dos ingleses, sobretudo do marceneiro Thomas Chippendale, pela constituição de elementos ornamentais
e estruturais de mobiliário que foram usados em oratórios mineiros. Nunca se constituiu mera cópia dos modelos
gravados e obras coevas, mas os artífices locais utilizavam muitos dos elementos observados e os interpretavam
livremente em surto criativo.
No modelo de relógio acima ilustrado, podemos observar a estrutura chapada, os pés em ‘cachimbo’ e o coroamento
ondulado, muito típico dos oratórios em estilo barroco e principalmente rococó (em especial os oratórios-lapinha de
515
Minas Gerais). Importante notar, ao nos referirmos aos oratórios-lapinha mineiros, a palmeta concheada no
coroamento do relógio (detalhe – figura 31), elemento muito peculiar e distintivo da tipologia mineira. De fato, um
ornamento cujos antecedentes europeus são claros e, em ambiente mineiro, apropriado e aclimatado aos maneirismos
das oficinas locais.
Figuras 32-33. (1) Oratório doméstico. Séc. XIX. Minas Gerais. Museu Regional do Serro ‘Casa dos Ottoni’, Serro –
Minas Gerais. Fonte: Banco de dados Projeto Tainacan. (2) Trono em miniatura pertencente a oratório doméstico. Séc. XIX.
Fonte: Banco de dados Projeto Tainacan
No entanto, embora por vezes a morfologia do mobiliário seja preponderante nos oratórios domésticos em Minas,
algum ou outro aspecto arquitetônico ou retabular sempre irá ser citado. No oratório doméstico acima ilustrado (figura
32) temos a presença, em seu nicho interno central, de um trono em miniatura (figura 33), muitíssimo semelhante aos
tronos escalonados dos retábulos-mor das igrejas luso-mineiras.
Com esses exemplos, podemos considerar que os oratórios domésticos, tendo em vista o seu significado intrínseco,
sempre possuirão uma forma complexa em termos de composição. São estruturas arquitetônicas, com pintura e
escultura formando uma obra de arte total (bel composto), ao passo que serão também peças de mobiliário com função
religiosa, e também pequenos retábulos em miniatura, ou todas essas expressões formais juntas. Todas elas a serviço
de uma única função: a de formar a ecclesiae domesticae.
AS OFICINAS REGIONAIS
A ‘ESCOLA’ MINEIRA DE ORATÓRIOS DOMÉSTICOS DEVOCIONAIS
Como já foi tratado por nós no presente estudo, aqui estabelecemos preliminarmente aquilo que identificamos como
a ‘escola mineira de oratórios domésticos devocionais’. Em primeiro lugar, o termo ‘escola’ se refere a uma cultura
visual comum, uma identidade artística compartilhada e formada por ‘oficinas regionais’. Essas oficinas regionais
possuem vital importância, pois foram elas que, na escala local, criaram elementos formais próprios em oratórios
domésticos capazes de os identificar. Esses elementos formais locais, reunidos em conjunto, formam assim a ‘escola
mineira’. Tais elementos, que são em maioria elementos de ornamentação de talha em madeira, são responsáveis pela
fortuna artística dos oratórios de Minas, sendo a tipologia dos oratórios-lapinha o mais expressivo resultado dessas
oficinas locais. Cremos que, assim como pudemos observar em Minas Gerais, assim se deu o desenvolvimento formal
dos oratórios devocionais em toda a América Portuguesa, ou seja, cremos que exista uma ‘escola baiana’, uma ‘escola
fluminense’ ou uma ‘escola paulista’ de oratórios ainda a serem descobertas e estudadas, escolas tais formadas pela
516
vitalidade das oficinas locais. Essas oficinas locais, como pudemos verificar na Capitania de Minas, eram formadas por
escultores, entalhadores e pintores, todos eles em torno de um líder ou formando um coletivo de artistas e artífices
que compartilhavam obras em comum. Essas obras em comum, os oratórios, por serem dotados de mais de uma
expressão artística (arquitetura – pintura – escultura), eram manufaturados por mais de uma mão.
Embora tenhamos apresentado a nossa argumentação através dos vestígios documentais e das próprias obras
remanescentes, não é demais observar o modo de funcionamento dessas oficinas. São João del-Rei, antiga cabeça da
Comarca do Rio das Mortes da Capitania das Minas do Ouro, serve-nos de exemplo. O excerto a seguir foi extraído
das Efemérides de São João del-Rei de Sebastião de Oliveira Cintra:
1854 – Nasceu em São João del-Rei, Maestro, Pintor, Santeiro e Escultor Luís Batista
Lopes, filho do musicista e professor Ireno Batista Lopes e de Rita Maria de Jesus Lopes
[...]. Estudou 1ªs letras com seu pai e com o professor Carlos Copsey, iniciando-se na
música com o maestro Francisco Camilo Vitor. Praticou pintura e escultura com
Joaquim Francisco de Assis Pereira e com Venâncio José do Espírito Santo.
Substituiu o maestro Carlos José Alves na direção da Orquestra Lira Sanjoanense;
permaneceu no posto durante 25 anos. Deixou numerosas composições musicais.
Faleceu a 28-03-1907, sendo sepultado no Cemitério das Mercês. Consignou-se
Monsenhor Gustavo, sobre ele, às fls 9 do livro de óbitos da Paróquia do Pilar: “provecto
músico, honra de sua terra, imaginário, artista de gosto e sempre pobre...”. Seu nome foi
dado a 16-08-1938 à Rua das Flores.
CINTRA, Sebastião de Oliveira. Efemérides de São João del-Rei. Volume II. Belo
Horizonte: Imprensa Oficial, 1982, p. 352. (grifo nosso)
Do excerto acima transcrito, sabemos que Luís Batista Lopes (com obras na Arquiconfraria das Mercês de São João
del-Rei e particulares em Resende Costa, MG) aprendeu o ofício de pintor e escultor com ninguém menos que Joaquim
Francisco de Assis Pereira e Venâncio José do Espírito Santo, dois dos maiores nomes da arte religiosa em São João
del-Rei no século XIX. O excerto confirma a existência dessa oficina, com artífices em formação informal junto de
artistas já plenamente estabelecidos no ‘mercado de arte’ local.
Em toda a Capitania, essas oficinas foram as responsáveis pela feitura de oratórios domésticos que, no contexto
estudado, possuiam um considerável (senão gigantesco) público consumidor, tendo em vista o considerável acervo
remanescente. A partir daqui, ilustramos algumas obras – reunidas em conjunto – dessas oficinas que constituem a
assim chamada ‘escola mineira’ de oratórios domésticos devocionais.
Os oratórios domésticos devocionais produzidos pela ‘oficina ouro-pretana’ podem, em sua maioria, serem
enquadrados na tipologia dos oratórios de salão e na subtipologia dos oratórios-nicho. São nichos verticalizados,
compostos por quatro pilastras lisas ou caneladas, de fundo chapado para ser encostado em paredes. Possui no
coroamento uma cúpula campaniforme, cuja forma se assemelha a coberturas de torres sineiras. A cúpula
campaniforme é o elemento central desses oratórios, e é através dela que podem ser identificadas como obras dessa
oficina, ou ainda, ‘estilo’ ouro-pretano.
Possivelmente, a forma embrionária desses oratórios foi concebida pelo escultor Antônio Francisco Lisboa, o
Aleijadinho, em Vila Rica no século XVIII. Chegamos a essa conclusão tendo em vista a identificação de cinco
oratórios domésticos com as mesmas características formais, sendo atribuídas como da lavra de Aleijadinho em Vila
Rica. Além disso, a cúpula campaniforme, cuja forma pode ser observada em Portugal e Alemanha, é uma das marcas
do Aleijadinho ‘arquiteto’, estando presente na torre sineira da Igreja da Ordem Terceira de São Francisco de Assis de
São João del-Rei, cujo famoso risco se encontra na igreja homônima e com uma cópia nos arquivos do Museu da
Inconfidência, em Ouro Preto. A cúpula campaniforme da torre sineira, no caso, foi aproveitada na fábrica da Matriz
de Santo Antônio, em Tiradentes.
Pensamos que a forma de tais oratórios-nicho, ou mesmo o elemento da cúpula campaniforme, tenha sido difundido
por Aleijadinho a partir de Vila Rica (Ouro Preto), podendo ser encontrada em outras localidades da Capitania.
517
Figura 34. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Ouro Preto. Igreja de Nossa Senhora do Rosário, Caquende. Foto: Êmeri
Guimarães. Fonte: BOHRER, Alex. Os diálogos de fênix, p. 144 | Figura 35. Oratório doméstico. c. 1771-1780. Minas
Gerais. Cedro entalhado e policromado. 88cm. Coleção particular. Fonte: JARDIM, Márcio. Aleijadinho, uma
síntese histórica. Belo Horizonte: Stellarum, 1995, p. 145. Foto: Onze dinheiros, leilão | Figura 36. Oratório doméstico.
Séc. XVIII. Minas Gerais. Cedro entalhado e policromado. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: BDPT
A obra indiciária.
Destacamos a presença do Aleijadinho através da imagem de Nossa
Senhora das Mercês, feita especialmente para o oratório, tendo em vista
as dimensões harmoniosas num todo, de acordo com estudo realizado
por Beatriz Coelho, Maria Regina Emery Quites e Helena David.
Figura 37. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Ouro Preto. Igreja de Nossa
Senhoras das Mercês e Misericórdia. Foto: Beatriz Coelho. Fonte: Revista
Imagem Brasileira, n. 2, 2003, p. 113
518
Figura 37. Oratório doméstico. Séc. XVIII-XIX. Minas Gerais. Museu Mineiro, Belo Horizonte. Fonte: CEIB|Figura
38. Oratório doméstico. Séc. XVIII-XIX. Minas Gerais. São João del-Rei – MG. Acervo da Igreja de São Francisco de
Assis, São João del-Rei. Foto do autor (2018)|Figura 39. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Minas Gerais. São João del-
Rei – MG. Museu Regional de São João del-Rei, São João del-Rei. Fonte: BDPT
Figura 40. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Minas Gerais. Coleção Casagrande. Fonte: Oratórios barrocos: arte e
devoção na coleção Casagrande. Acervo ‘Barroco Memória Via’ – UNESP. Disponível em:
http://acervodigital.unesp.br/handle/unesp/33759. Acesso aos 25/08/2020.|Figura 41. Oratório doméstico. Séc. XIX.
Minas Gerais. São João del-Rei – MG. Museu de Arte Sacra de São João del-Rei. Foto: Marcos Luan (2019)|Figura
42. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Minas Gerais. Museu de Arte Sacra da Matriz de Nossa Senhora da Penha de França,
Resende Costa. Foto do autor (2018)
519
Figura 43. Oratório doméstico. Séc. XVIII-XIX. Minas Gerais. Museu da Inconfidência, Ouro Preto – Minas Gerais.
Fonte: Banco de dados Projeto Tainacan. Figura 44. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Minas Gerais. Museu de Arte Sacra
de São Paulo, São Paulo – SP. Fonte: MAS-SP
Figura 45. Arcaz com oratórios domésticos e imagens de santos. S/D. Couto de Magalhães de Minas, Minas Gerais. Interior
da Igreja do Bom Jesus de Matozinhos. Fonte: Arquivo do Ministério Público de Minas Gerais.
Podemos notar nos dois oratórios sobre o arcaz a predominância do estilo ouro-pretano: a cúpula campaniforme e a
estrutura verticalizada com quatro pilastras/colunas e fundo chapado.
520
Figura 46. Ermida (capela) de São Sebastião. Ericeira, Portugal. Foto: Creative Commons
Um antecedente europeu da cúpula campaniforme usada por Aleijadinho no risco da igreja de São Francisco de Assis
de São João del-Rei pode ser visualizado na ermida de São Sebastião, em Ericeira, Portugal. A cúpula, em forma de
sino (campânula) além dos oratórios, foi muito utilizada em várias igrejas de Minas.
Os oratórios da ‘oficina barbarense’ podem ser classificados como da tipologia dos oratórios de pousar ou de salão, e
subclassificados na subtipologia dos oratórios-nicho e oratório-armário. São verticalizados, vinculados ao gosto
ornamental do Rococó e possuem duas características principais e que identificam a oficina, ou ‘estilo’ barbarense: arco
trilobado (ou trilobulado) no camarim (nicho central) e o coroamento com uma palmeta de volumetria ‘gorda’ e de
formas semi-conchóides, que estravassa a cimalha superior. Podem assumir a forma de um nicho aberto ou de um
armário com duas portas. Através do levantamento realizado, foi possível identificar que um desses oratórios foi
produzido originalmente em Santa Bárbara e, dessa região, sendo produzido ou copiado em outras localidades da
Capitania.
Figura 49. Oratório doméstico com grupo escultórico da Paixão de Cristo. Séc. XVIII. Minas Gerais. Coleção Ladi Biezuz. Foto:
Denise Andrade. Fonte: RUSSO, Silveli. Espaço doméstico, devoção e arte... Tese de doutorado, 2010, p.
172|Figura 50. Oratório doméstico com Nossa Senhora do Rosário. Séc. XVIII. Minas Gerais. 116,0x65cm. Museu do
Oratório, Ouro Preto. Foto do autor (2019) |Figura 51. Oratório doméstico. Séc. XVIII. Minas Gerais. Museu da
Inconfidência, Ouro Preto – MG. Fonte: BDPT
Figura 52. Oratório doméstico com Cristo crucificado. Séc. XVIII. Minas Gerais. Igreja de Nossa Senhora do Carmo,
Mariana. Foto do autor (2019)
522
Possivelmente vinculada à produção dos oratórios-lapinha. A forma ‘luziense’ pode ser definida através do sintetismo
formal das lapinhas. Predominam as formas retilíneas e verticalizadas, com a parte frontal chapada
Figura 53. Oratório-lapinha. Séc. XIX. Minas Gerais. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: BDPT|Figura 54.
Oratório-lapinha. Séc. XIX. Minas Gerais. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: BDPT|Figura 55. Oratório-
lapinha. Séc. XIX. Minas Gerais. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: BDPT|Figura 56. Oratório-lapinha. Séc.
XIX. Museu do Oratório, Ouro Preto. Foto do autor (2019)
Possivelmente vinculada à produção de oratórios-lapinha. A forma ‘sanjoanense’ apresenta uma talha mais elaborada
em relação à oficina ‘luziense’, possuindo tratamento erudito do vocabulário arquitetônico-ornamental. Distingue-se
através da presença da coluna torsa, assim como da profusão decorativa e maior espaçamento interno com a
configuração triface.
Figuras 59-60. Oratório-lapinha. Séc. XIX. Minas Gerais. Museu da Inconfidência, Ouro Preto. Fonte: BDPT
524