Pellegrino - Pacto Edípico e Pacto Social
Pellegrino - Pacto Edípico e Pacto Social
Pellegrino - Pacto Edípico e Pacto Social
Hélio Pellegrino
Édipo conseguiu sair de Corinto, conseguiu desligar-se dos pais que o haviam
criado e amado e que, portanto, o haviam preparado para a aventura da liberdade.
No entanto ficou atado aos pais de Tebas, que o haviam votado a morte, e foi com
relação a eles que se consumou a tragédia. Recapitulemos a história de Édipo: filho
de Laio e Jocasta filhos reis de Tebas. Antes de seu nascimento ouviu Laio do
oráculo a predição de que teria um filho que o mataria e se casaria com a mãe. Ao
nascer Édipo não recebeu dos pais nenhum nome – o inominado, portanto - foi
condenado a morte por Laio e Jocasta. Esta entregou-o a um pastor, para que o
matasse. O pastor levou o recém-nascido ao monte Citerão e, apiedando-se dele,
ao invés de matá-lo furou-lhe os pés e o atou, com uma corda, a uma arvore. Fica,
aqui, simbolicamente, prefigurada uma das vertentes capitais do destino de Édipo.
A árvore é um clássico símbolo materno. Édipo por um lado, jamais conseguiu
desamarrar-se da mãe. Ele ficou atado a ela, agarrado à mãe, como um náufrago
se agarra à sua tábua de salvação. O desamor da mãe ao recém nascido
corresponde ao naufrago deste. Se sobrevive, embora odiando-a por um lado,
jamais se arrancará da mãe que o rejeitou.
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Publicado no Folhetim da Folha de São Paulo, setembro de 1983.
que o amarrava. Esse pastor desempenhou, em termos psicanalíticos, a função
maiêutica do pai. Ele cortou o cordão umbilical que o ligava a árvore-mãe. O pai
ajuda, de maneira decisiva, a partejar a subjetividade do filho, permitindo- lhe
desfusionar-se – diferenciar-se - da mãe.
Em Corinto, Édipo (oiden pous: o que tem os pés inchados) foi acolhido por
Mérope e Políbio, que não tinham filhos, e foi criado como filho legítimo, ignorando
a verdade sobre sua origem. Já adulto, ouviu num banquete, de um conviva bêbado
a notícia de que não era filho legitimo de Mércope e Políbio. Profundamente
torturado, consultou o oráculo e ouviu dele a predição terrível: seria assassino do
pai, casar-se-ia com a mãe e geraria uma prole nefanda.
Para fugir ao destino, Édipo abandonou Corinto. Ele conseguiu fazê-lo já que não
estava atado aos pais que respeitaram e amaram: o amor é condição necessária -
e suficiente – da liberdade. Em viagem, na tentativa de ser o inventor de seus
próprios caminhos, Édipo numa encruzilhada, tem violenta altercação com um
velho, acompanhado de escolta. Enfrenta-os e mata o ancião e alguns do seu grupo,
sem saber que consumara o parricídio. Seguindo estrada, nas proximidades de
Tebas tem notícias de que a Esfinge desafiava, com enigmas, os que por ela
passassem devorando os que os que não o decifravam. Édipo aceita o desafio,
enfrenta a esfinge e decifra o enigma que lhe havia sido proposto: “Qual é o animal
que, pela manhã, anda com quatro pés, ao meio dia dom dois e, à tarde, com três
pés?” “É o homem” – respondeu Édipo - “que na infância gatinha idade adulta anda
erguido e, na velhice se apóia num bastão.” A Esfinge roída de despeito, precipitou-
se despedaçada, no abismo. Édipo, por tê-la destruído, recebeu, como premio, a
mão de Jocasta, viúva de Laio, passando a reinar sobre Tebas.
É curioso notar que Édipo recebeu Jocasta como troféu, sem sequer conhecê-la.
Com isso fica caracterizado o vínculo arcaico que o liga a mãe, anterior a uma
verdadeira escolha de objeto. A destruição da Esfinge, por sua vez, corresponde à
derrota da imago da mãe má – rejeitadora, devoradora e filicida. Temos aí uma cisão
da figura materna – de Jocasta, portanto -, e a derrotada imago da mãe aterradora
e perseguidora. Foi graças a esse mecanismo de defesa que Édipo conseguiu
casar-se com Jocasta depois de ter matado Laio.
Aqui se levanta o problema crucial da relação do ser humano com a lei. É claro
que nos referimos à Lei primordial, que marca a passagem – o salto – da natureza
para a cultura. O modelo, contudo, tem validade geral, e pode ser aplicado aos
vários níveis institucionais em que transcorre a aventura humana. Não há duvida de
que a Lei, para ser respeitada, precisa ser temida. Nesse sentido, para resolução
do Édipo, é necessário o temor à castração, segundo a concepção freudiana. Uma
lei que não seja temida - que não tenha potencia de interdição e de punição – é uma
lei fajuta, de fancaria, impotente. No entanto, o temor à lei, sendo necessário, é
absolutamente insuficiente para fundar a relação do ser humano com a lei. Uma lei
que se imponha apenas pelo temor é uma lei perversa, espúria – lei do cão.
No pacto social, através do trabalho, pede-se ao ser humano que confirme a sua
renúncia pulsional primígena, através da aceitação do principio de realidade.
Trabalhar é inserir-se no tecido social por mediação de uma práxis aceitando a
ordem simbólica que o constitui. Trabalhar é disciplinar-se, é abrir mão da
onipotência e da arrogância primitivas, é poder assumir os valores da cultura com a
qual, pelo trabalho, nos articulamos organicamente. O pacto com a Lei do pai
prepara – e torna possível – o pacto social. Este exige renuncias, e uma função
simbolizadora, que só serão viáveis na medida em que uma interdição originária –
a proibição do incesto – lhes prepara o aposento.
Assim como a aceitação da Lei da Cultura tem que abrir, para a criança, a
possibilidade de ganhos fundamentais, assim também o pacto. social não pode
deixar de criar, para o trabalhador, direitos inalienáveis. Ofereço à sociedade minha
competência e minha renúncia ao princípio do prazer, sob forma do meu trabalho.
Esta oferta me foi exigida pela própria sociedade, para que eu fosse
aceito como sócio dela. Em nome do exercício do meu trabalho, tenho o direito
sagrado de receber o mínimo indispensável à preservação de minha integridade
física e psíquica. A dolorosa - e laboriosa aquisição da competência, enquanto
trabalhador, é a parte que me cabe, no pacto com a sociedade. O retorno - o dá cá,
resposta ao toma lá - compete à sociedade.
É mais honrado - e menos perverso - ser delinqüente fora da lei, do que sê-lo em
nome da lei, acobertado e protegido por ela. O acanalhamento da lei, a corrosão
dos ideais que justificam a vida, o aviltamento do trabalho humano, centro do
processo civilizatório a idolatria à segurança nacional.