A Produção Da Sociedade Pela Industria Cultural

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Adorno: Auto retrato, Arquivo Max-Horkheimer.

A PRODUÇÃO DA ‘SOCIEDADE’ PELA


INDÚSTRIA CULTURAL
Wolfgang Leo Maar*

Os interessados inclinam-se a dar uma explicação


tecnológica para a indústria cultural (...) Os (seus) padrões
teriam resultado originariamente das necessidades dos
1- (Horkheimer, 1997: 145;
consumidores (...) De fato, trata-se do círculo da manipu-
Adorno/Horkheimer, 1971: 109;
lação e das necessidades retroativas, no qual a unidade do
Adorno/Horkheimer, 1985: 114). A
sistema se torna cada vez mais coesa. Nesta ocasião silen-
primeira versão do livro Dialética do
cia-se quanto a que o solo em que a técnica adquire poder
sobre a sociedade é o poder do capital sobre a sociedade.
Esclarecimento, intitulada
Fragmentos Filosóficos, de 1944, Adorno/Horkheimer. Dialética do Esclarecimento1
seria "editada" pelos autores para a
publicação na Editora Querido da
Holanda em 1947. Basicamente há
duas alterações: uma reescrita da
terminologia marxista presente na
primeira edição, abrandando-a. Por
exemplo: "capital" se converte em
"poderio econômico" etc.. Além dis-
to, seria retirada a última parte do
No ensaio Crítica Cultural e Sociedade que abre o livro Prismas
segmento sobre a "Indústria Cultu-
ral", "O esquema da cultura de mas-
Adorno apresenta a amplitude dos efeitos do que ele e Horkheimer
sa". A muito competente tradução denominaram indústria cultural:
brasileira de Guido Antônio de Al-
Presumivelmente importam menos ao contexto social
meida (Rio: Zahar, 1985) se baseia na
dominante quais as doutrinações ideológicas específicas que um filme
versão de 1947. A versão de 1944
sugere a seus espectadores do que o fato de que estes, ao voltarem
com a terminologia original, mas
para casa, estarem mais interessados nos nomes dos atores e nos
sem o adendo final, está reprodu-
seus casamentos e casos amorosos (Adorno, 1977: 24; Adorno, 1986:
zida no volume 5 das obras de Max
87) 2.
Horkheimer. O adendo consta do
volume 3 das obras de Theodor W.
Na formação social atual, não são conteúdos ideológicos
Adorno; o restante do texto segue a
versão de 1947 (Adorno, 1981: 331). determinados que importam à reprodução do vigente, mas a oferta de
construções que, como efetivas experiências substitutivas, preenchem os

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espaços expropriados das experiências autênticas, vivas, da realidade
social e de suas contradições. A experiência viva dos nomes dos atores se
torna uma "necessidade" que impõe, junto a outras desta ordem, a
2- Todas as citações de textos em "sociedade" construída pela indústria cultural.
alemão contém a referência no origi- O assunto também seria tratado, por exemplo, na Teoria da
nal seguida, quando possível, da in-
Semiformação, que remete a uma "experiência substitutiva enganosa
dicação respectiva das boas tradu-
ções que já temos disponíveis. No (trügende Ersatzerfahrung) no lugar da experiência destruída" (Adorno,
caso de algumas traduções mais re- 1979: 118; Adorno, 1996 : 407). Decisivo não é o que se diz no filme, mas o
centes de livros de Adorno, optamos que o mesmo enquanto tal oferta como sendo a realidade social, enquanto
- não por decisão qualitativa, mas experiência alternativa. Esta é ilusória e enganadora, mas aceita por ser
unicamente por economia - por citar
"experiência" - ainda que "falsa" - em que se harmonizam e conciliam os
a partir de duas coletâneas (sempre
mais baratas!) de uso já consagrado ingredientes contraditórios da realidade social efetiva, objetivando
particularmente pelos estudiosos apresentar como viável o encaminhamento e a solução individuais e
discentes: as coletâneas das editoras personalizadas dos problemas efetivos. Por esta via se oculta sua base
Nova Cultural e Ática. As indicações
causal material-histórica, se obstrui a experiência viva da reificação da
das traduções são feitas para efeito
de localização e acompanhamento sociedade vigente. Na coletânea Educação e Emancipação, Adorno aplica
das obras. As citações não são neces- esse prisma à televisão, referindo-se a situações em que certos problemas
sariamente conforme as traduções seriam tratados aparentemente com atualidade, criando a aparência de
indicadas, mas são versões próprias
deste autor, decorrentes de seus es- haver soluções para todos estes problemas (...) dando aos
tudos quando não dispunha das tra- homens uma imagem falsa do que seja a vida de verdade e (...) que as
duções. Por vezes, o autor desviou- contradições presentes desde os primórdios de nossa sociedade
se levemente das respectivas tradu- poderiam ser superadas e solucionadas no plano das relações inter-
ções publicadas em português mo- humanas, na medida em que tudo dependeria das pessoas. (...) onde
vido apenas por seu próprio estilo. há vestígios de tal harmonização do mundo é preciso se contrapor e
(...) os intelectuais prestam um grande serviço (...) quando denunciam
embustes desta ordem (Adorno, 1995: 84).

Como cerne da questão, Adorno destaca que a experiência da


sociedade da fragmentação, da impotência real e da ausência de sentido é
obstruída para nós. Ao mesmo tempo, apresenta-se a experiência da
sociedade integrada, harmônica, socializada em torno ao bem-estar,
globalizada, interconectada como rede de sujeitos sem condição de
decisão acerca de seus destinos ou sua participação. É difícil não associar a
falsa socialização destacada por Adorno à esfera pública habermasiana,
com sua atividade comunicativa descarnada, "político-cultural" interativa,
contraposta conforme o melhor molde liberal ao plano da civilização e da
economia. Aqui opera a dimensão ideológica atual.

Não há mais ideologias no sentido da falsa consciência mas


tão somente a propaganda a favor do mundo mediante a sua
duplicação e a mentira provocadora (que não pretende ser acreditada)
(Adorno, 1995: 91).

Esta duplicação do mundo como construção que não pretende ser


acreditada, isto é, que se sabe falsa, mas que mesmo assim - ou por causa
disto - é aceita por oferecer algo no lugar do sentido que ela própria
arrasou, é a reconstrução "cultural" da sociedade pela indústria cultural.
"Ideologia significa hoje: a sociedade como aparência" (Adorno, 1977: 25;
Adorno, 1996: 87)3 Ou então: "A ideologia, a aparência socialmente

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necessária, é hoje a própria sociedade real" (Adorno, 1977: 26; Adorno,
1986: 88); há uma socialização que ilude com uma conciliação entre sujeito
e objeto, entre o existente e o vir a ser, contemporizando as contradições.
3- O termo original é "Erscheinung". Max Paddison fala do "mundo administrado" como um "travesti de
O sentido aqui é simultaneamente
verdadeira inteireza e ausência de alienação" (Paddison, 1993: 12).
de uma manifestação e de uma
aparência ilusória. Em inglês existe a Doravante as contradições devem ser procuradas não mais internamente
excelente versão "semblance" (no ao plano social, mas no âmbito em que se produz a própria "sociedade"
lugar de "appearance" ou como organização ideológica. A "educação" enquanto esclarecimento só se
"illusion"). O melhor título deste
referirá a esta questão se ultrapassar o plano da crítica às dimensões
artigo seria Culture Industry’s
Production of Society as Semblance
(culturais!) da racionalidade na sociedade, para atingir as instâncias de
(Kulturindustrielle Produktion der formação material da relação sujeito e objeto, da constituição prática, social
Gesellschaft als Erscheinung) - para- dos sujeitos. Na medida em que não se sustenta numa separação entre
fraseando a excelente coletânea or- cultura e civilização. Não basta a crítica da racionalidade instrumental ou
ganizada por Lambert Zuidervaart e
dos desvios da intersubjetividade; há que alcançar as relações sociais
Thomas Huhn The Semblance of
Subjectivity. Cambridge: MIT materiais concretas, a "atividade humana sensível, a práxis", como
Press, 1997. sustentava Marx em suas Teses sobre Feuerbach.
O que a Aufklärung a partir de Kant apreendia como intimamente
4- Para se contrapor a uma versão
conectado (Adorno, 1969: 100), civilização e cultura, acaba agora, com a
culturalista do nexo cultura-civili-
zação material, optamos pelas ex- crítica cultural alemã, não só separado em duas esferas, mas a esfera
4
pressões produção da consciência, "cultural" se torna determinante . À socialização cultural, construída, que
produção da sociedade. O mesmo se sabe falsa e "não pretende ser acreditada" - na medida em que não se
nexo poderia ser expresso pela pers-
refere ao "material" (Adorno, 1969: 92) - cabe oferecer o sentido que, assim,
pectiva cultural, por exemplo: a so-
ciedade como narrativa etc.
é negado à civilização material, desta forma perenizada em sua realidade
vigente.

A própria organização do mundo em que vivemos é a ideologia


dominante hoje muito pouco parecida com uma determinada visão de
mundo ou teoria ou seja, a organização do mundo converteu-se a si
mesma imediatamente em sua própria ideologia. Ela exerce uma
pressão tão imensa sobre as pessoas que supera toda a educação.
(...) (É preciso) levar em conta o peso imensurável do obscurecimento
da consciência pelo existente (Adorno, 1995: 143).

Kant em sua famosa resposta à pergunta acerca da Ilustração


utilizaria uma categoria dinâmica expressando um movimento
direcionado à formação no plano da vontade autônoma: não época "escla-
recida", mas "em esclarecimento". Tal formulação representa a articulação
entre cultura e civilização destacada por Rousseau em seu Segundo
Discurso, de modo que cultura passaria a ser na Ilustração a história (da
civilização) no plano da liberdade (ou da alienação). Precisamente este
movimento kantiano encontra-se obstruído: no lugar do esclarecimento,
nos deparamos com um obscurecimento, a ser considerado no âmbito deste
nexo entre cultura e sociedade "material" (civilização). Brandir a convicção
kantiana hoje, falar do mundo atual como época de esclarecimento

tornou-se altamente questionável em face da pressão


inimaginável exercida sobre as pessoas, seja simplesmente pela
própria organização do mundo, seja num sentido mais amplo, pelo
controle planificado até mesmo da realidade interior pela indústria
cultural (Adorno, 1995: 181).

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"interior". Adorno abordaria a questão em seu
A organização social heterônoma trava a ensaio Sociedade:
expressão da autonomia no que ela teria de
Automaticamente e de maneira
contraditório com o existente; ou seja, obstrui a
planejada os sujeitos são impedidos de se
autonomia até enquanto vir a ser, enquanto ca- saberem como sujeitos. A oferta de merca-
tegoria dinâmica tal como pretendida por Kant. dorias que se abate qual avalanche sobre
Não é algum "entusiasmo" que se alastra na eles contribui para isto da mesma forma
que a indústria cultural e incontáveis meca-
cultura em prol da autonomia e que constitui a
nismos diretos e indiretos de controle
base da Aufklärung kantiana, mas a experiência espiritual. A indústria cultural surgiu a
do conflito do que deveria ser (cultura) com o partir da tendência de valorização
existente (civilização) constitui a saída da (Verwertungstendenz) do capital. Ela se de-
heteronomia "auto-inculpável'. A experiência da senvolveu sob a lei de mercado, sob a
obrigação de se adequar aos seus consu-
reificação, o "poder do negativo", a experiência midores, mas operou uma inflexão conver-
da contradição motiva a emancipação, cuja ocor- tendo-se na instância que fixa e fortalece a
rência depende da articulação entre cultura e consciência em suas formas existentes, o
civilização material pela mediação do trabalho status espiritual. A sociedade precisa da
perseverante duplicação da existência vi-
que forma.
gente, porque, de maneira diversa da oferta
A ausência desta experiência implica no do sempre igual, na medida em que ocorre
obscurecimento atual; uma diminuição das iniciativas de justificar
o existente pela própria existência vigente,
o motivo evidentemente é a os homens por fim acabam por se livrar do
contradição social; é que a organização existente (Adorno, 1979: 17/18).
social em que vivemos continua sendo
heterônoma, nenhuma pessoa pode viver Mediante os mecanismos da indústria
conforme suas próprias determinações (...) a
sociedade forma as pessoas mediante inú-
cultural, tudo, inclusive as formas da consciên-
meros canais e instâncias mediadoras de cia, "é submetido às malhas da socialização, nada
um modo tal que tudo absorvem, aceitam mais (é) natureza informe; a crueza desta, contu-
(destaque WLM) nos termos desta do, a velha inverdade (Unwahre) se conserva vi-
configuração heterônoma que se desviou de
va e se reproduz ampliada (reproduziert sich
si mesma em sua consciência. Isto atinge as
instituições e (...) a educação política. O erweitert) (Adorno, 1979: 93; Adorno, 1996: 389).
problema é (...) como a gente e quem é "a Eis aqui o núcleo argumentativo da teoria crítica
gente', eis uma questão a mais pode da sociedade a tematizar o processo de repro-
enfrentá-lo (Adorno, 1995: 182).
dução ampliada do domínio da formação vigen-
Hoje a configuração heterônoma não se te. O conceito marxista de reprodução ampliada
reflete em experiência da consciência, mas é adquire com esta focalização sua dimensão ple-
obstruída. Tal obstrução da experiência se forma na. Mais do que propor uma crítica da economia
em dois movimentos, compondo a reconstrução política no plano da indústria cultural, como
da formação social no que parece um dinamismo poderia parecer a alguns intérpretes (Cook, 1996:
autopropulsor, recompondo as condições da 27), Adorno integra a sua apreensão da indústria
própria manipulação no plano da indústria cul- cultural à crítica da economia política, revelando
indústria cultural e semiformação como
tural. Por seu intermédio se fecha o círculo numa
peças chave para compor adequadamente os
coesão progressiva. A manipulação pela inter- mecanismos pelos quais a acumulação
venção "exterior", intervindo na sociedade ao a- capitalista procura se tornar perene.
presentá-la como conjunto de "mercadorias" (so- Um dos maiores méritos de Adorno foi o
ciedade do consumo de massa) e a própria de integrar a questão da reificação em toda a sua
intervenção no plano das necessidades, a abrangência à Teoria do Valor. As primeiras for-
intervenção das mercadorias no âmbito mulações da reificação em História e Consciência

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de Classe, de Georg Lukács, se vinculavam à estrutura das mercadorias
apreendida sobretudo no plano do processo de sua circulação simples. No
âmbito da Teoria Crítica, Adorno seria o primeiro a situar a reificação no
5- A reprodução ampliada ou âmbito da reprodução ampliada de mercadorias, e, assim, caracterizar em
subsunção real ao capital é apresen- toda sua plenitude como fetiche a reificação, referida agora ao capital
tada por Marx em O Capital e par-
apreendido em sua totalidade.5 Por isto Adorno é um dos grandes conti-
ticularmente no Capítulo VI do
Livro I inédito. Para detalhes sobre nuadores da obra de Marx na apreensão da sociedade no âmbito do seu
a subsunção, ver Maar, Wolfgang processo material de reprodução. "Os economistas", diz Marx, "sabem co-
"Habermas e a questão do trabalho mo se produz no 'interior' da relação capitalista, mas não percebem como
social", in Lua Nova, 48, 1999 - pp. esta 'relação' é produzida" (Marx, 1969: 89; Marx, 1971: 106). Neste sentido
33- 60.
a teoria crítica adorniana seria "meta-economia": explica a economia
6- "Bedürfnisse" é traduzido por (Kager, 1988: 98).
necessidades, conforme um uso Adorno descobriu em suas análises das formações culturais da
consolidado e habitual. Igualmente
sociedade capitalista, no final dos anos trinta, que o valor de troca é objeto
corretas são as versões: carência ou 6
carecimento. Necessidade (sem o s) de necessidades sociais humanas , geradas com esta finalidade e que, por
significa "Notwendigkeit". Em in- sua vez, retroagem sobre o próprio processo social, reproduzindo o
glês teríamos "needs" para necessi- mesmo de modo centrado na produção de valor de troca. Tal processo de
dades e "necessity" para necessida-
intervenção na produção com o objetivo de sua auto-reprodução
de.
sistêmica, seja mediante a geração de necessidades mediante a
manipulação, seja pela retroatividade destas necessidades sobre os
sujeitos adequando-os a elas, seria investigada por Adorno e Horkheimer
inicialmente como "cultura de massa". Posteriormente, seria denominada
por eles indústria cultural, amálgama dos âmbitos da "civilização" -
produtora das mercadorias como necessidades - e da "cultura" - produtora
das consciên-cias que têm precisão destas necessidades. Por ela há uma
permanente re-criação do indivíduo (da sociedade de massa)
desumanizado pela retroati-vidade das necessidades no âmbito do
processo, para assegurar a con-tinuidade do sistema. Assim, embora
apoiando-se na investigação das questões culturais na formação social do
capitalismo tardo-desenvolvido, Adorno situou em toda sua abrangência
o processo de produção na sociedade contemporânea no plano da
reprodução do capital. Em outras palavras, Adorno mostraria como o
processo de acumulação neces-sariamente precisa ultrapassar o plano
estrito da chamada "economia", para abranger o que se poderia denominar
de "produção das condições sociais no caso, culturais-materiais - de
reprodução do capital". O capital reconstroi a sociedade com um todo à
sua própria imagem: todo ('Gesamttotalität') este que é falso, diria Adorno
em sua Dialética Negativa.
Adorno investigaria a indústria cultural como o processo de
reconstrução da sociedade nos termos da acumulação, isto é, nos termos da
realização do valor de troca, incluindo aí o sujeito da produção subordi-
nada à realização valor: o indivíduo da sociedade de massa. Em outras
palavras, o indivíduo como força produtiva submetida à realização do
valor. A formação continuada deste "sujeito" da produção, nos termos em
que a indústria cultural integra o processo de reconstrução social tendo
como objetivo a realização do valor, seria o que Adorno denomina de

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semiformação, assim complementar à indústria mado âmbito da cultura ao plano da repro-dução
cultural (Maar, 1998). ampliada, desvendando de maneira definitiva
As análises da indústria cultural, como opera a subsunção real da sociedade ao
portanto, constituem as análises da reificação capital, procurando recriar as condições da
iniciadas por Marx e desenvolvidas por Lukács, acumulação inclusive no plano da subjetividade.
conduzidas à sua plenitude no processo de A indústria cultural refere-se à parcela da
totalização "falsa" da sociedade capitalista avan- subjetividade no âmbito da circulação ampliada,
çada. O que está em causa é o processo de repro- da reprodução de um processo em que o capital
dução do capital, e, portanto, está em causa o se apresenta como "sujeito".
fetiche do capital. A indústria cultural é A indústria cultural tem justamente a
o fetiche do capital no curso de sua auto-repro- função corruptora de criar tais "falsos" sujeitos.
dução, na plena dimensão do vislumbrado por Os quais, com efeito, são "verdadeiros" sujeitos,
Marx. cuja sujeição portanto é voluntária. Mas são
Sujeito e objeto são apreendidos por "falsos" na medida em que representam uma
Adorno no processo de reprodução material-his- deficiente mediação entre o universal e o particu-
tórica da sociedade: eis o que significa a perspec- lar, pois apenas o universal se impõe ao particu-
tiva acima assinalada. O que chamaríamos de lar pelas necessidades geradas como mercadori-
crítica da ideologia agora seria uma crítica da as, obstruindo-se toda afirmação deste último a
organização do mundo; seu pressuposto seria fugir da estabilização dos moldes de genera-
nestes termos a apreensão desta (re)organização lização estabelecidos. Assim a indústria cultural,
do mundo. Nesta medida Adorno
desenvolve uma efetiva teoria crítica da
sociedade em que, por um lado, pensa a
sociedade em sua função subjetiva, como
"sujeito" e não apenas como "objeto", e, por
outro lado, se supera a perspectiva da
consciência, apre-endida agora no plano de
sua formação material real e não mais como
"subjeti-vidade" ou "intersubjetividade".
Estas duas últimas seriam também ambas
tributárias de um processo que, como a
racionalização formal e calculista, já
constitui dividendo da reorganização do
mundo conforme a estabilização do vigente.
A reprodução da sociedade pela
Manuscrito de Adorno - Teoria Estética. Arquivo Th. W. Adorno.

semiformação promovida pela indústria


cultural: eis a dinâmica ideológica no âmbito
da atual sociedade de massa. Não há mais só
deformação mas falsa formação. A sujeição
do sujeito não é um não-sujeito, mas um
falso sujeito - o sujeito da adequação - que
constitui uma peça no processo de reprodu-
ção da sociedade vigente, adaptativa, conci-
liadora, ao bloquear a experiência viva efeti-
va das contradições da sociedade pela expe-
riência substitutiva de uma reconstrução
social. Adorno conduziu as análises do cha-

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decorrência disso, a imagem dialética não
longe de se referir meramente à chamada
seria deslocada à consciência como sonho,
"indústria do entretenimento" na sociedade, diz mas através da construção dialética o
respeito à situação onde este "entretenimento", sonho teria que ser exteriorizado e a ima-
mera aparência ilusória é constitutivo da nência da consciência teria que ser apre-
endida como uma constelação do real efe-
sociedade. Envolve a produção continuada de
tivo" (Adorno/Benjamin, 1994: 140; Adorno
sujeição, de sujeitos sujeitos nos termos da et al. , 1990: 111 destaque WLM).
semiformação.
Adorno não está "forçando" uma Antes de mais nada, caracterizemos aqui
aplicação da teoria do valor à esfera cultural, mas a motivação de Adorno: diferenciar duas apreen-
revelando como aquilo que chamamos cultura, o sões do caráter fetichista da mercadoria, utilizan-
que chamamos individualidade, o que chama- do-se para tanto do contexto representado pelo
mos formação ocorre hoje conforme a lógica da projeto "Arcades" desenvolvido por Benjamin
valorização. sob o título provisório Paris: a capital do século
Indústria cultural e semiformação, XIX. Por um lado o caráter fetichista da mer-
enquanto momentos que se correspondem no cadoria seria refletido como imagem, sonho, pela
âmbito da constelação da sociedade apreendida consciência pressuposta. Por outro lado, a posi-
como capital, necessariamente remetem uma à ção sustentada por Adorno - o caráter fetichista
outra. Cabe apreender cultura junto com da mercadoria é dialético - produz consciência
formação material social. A diferença entre a Dia- não pressuposta.
lética do Esclarecimento de Adorno/Horkheimer Cabe aqui adiantar uma advertência
e a Crítica da Razão Instrumental de Horkheimer formulada por Adorno mais à frente em sua
reside justamente em que aquela, além de mani- carta: é preciso evitar "galvanizar a 'consciência'
festar a crítica à racionalidade abstrata e instru- como correlato da mercadoria". Em outros
mentalizada, incide numa crítica às formas da termos, há que se relacionar à consciência na
subjetividade tal como tolhidas no processo imanência do real efetivo. Pelo prisma adornia-
material social de que resulta esta no, a imanência da consciência implica nesta
racionalização formalista. oportunidade caracterizar bem "o caráter feti-
chista da mercadoria": este não deve ser
A produção da consciência apreendido só como objeto a ser refletido pela
consciência. Ao fetichismo da mercadoria corres-
ponde uma ação formadora de "consciência"
(pela retroatividade das necessidades vinculadas
ao valor) que, por sua vez, "responde com vonta-
de e medo", os mesmos termos em que Kant
Em carta de 2 de agosto de 1935 a Walter caracterizava a "menoridade autoinculpável".
Benjamin, Adorno expôs sua apreensão do feti- Em suma, cabe apreender a reificação como su-
chismo da mercadoria. jeito e não somente como objeto reificado.
Com efeito, em 1938 Adorno explicitaria
O caráter fetichista da mercadoria
não é um fato da consciência mas é dialético
esta apreensão da reificação como sujeito num
no sentido eminente de que ele produz artigo da Revista de Pesquisa Social que já no
consciência. Mas isso quer dizer que a título contém esta configuração explicitada: "O
consciência ou inconsciência não pode fetichismo na música e a regressão da audição".
simplesmente refletí-lo como imagem, como
A mesma perspectiva conduziria Adorno mais
sonho, mas responde ao mesmo (caráter
fetichista) com vontade e medo (...) a própria tarde a vincular sua apreensão da indústria
imanência da consciência é, enquanto cultural à semiformação. O "sujeito" da argumen-
"intérieur", a imagem dialética do século tação de Adorno deixaria de ser a "consciência"
dezenove como alienação; (...) Portanto, em
que reflete (ou não), como em Benjamin, deslo-

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cando-se ao "caráter fetichista da mercadoria". ele não é igual desde sempre. A própria merca-
Mas, por sua vez, este caráter fetichista da merca- doria teria mudado. Qual seria esta mudança
doria precisa ser bem apreendido. senão a relativa à sua auto-reprodução como
Pela (re)construção dialética o real efetivo processo:
apresenta imanentemente, em uma de suas
constelações, uma "consciência" que se apresenta A mercadoria é, por um lado, o
como sonho, mas efetivamente constitui uma alienado, em que o valor de uso fenece; por
outro lado, o que sobrevive, que tornado
resposta à ação do caráter fetichista-mercantil; alienado sobrevive à imediatez. Nas merca-
embora efetivamente interaja com o mesmo no dorias e não diretamente para os homens,
sentido da reprodução da formação social que temos a promessa da imortalidade (...)
produz este caráter fetichista da mercadoria. Internamente à sociedade, isso
significa que o mero conceito de valor de uso
Produzindo a consciência o caráter fetichista da não basta para criticar o caráter mercantil,
mercadoria, parece ser efetivo "sujeito" do mas somente remete a um estágio anterior
processo, o que Marx designara como fetiche do pré-divisão do trabalho. Essa é minha
capital. ressalva em relação a Berta (Brecht, para
driblar a censura - WLM) (...) O caráter espe-
O ponto de partida é um real efetivo a
cífico da mercadoria no século XIX, isto é, a
sociedade capitalista do século XIX que produção industrial de mercadorias,
apresenta como sujeito uma consciência que "so- precisaria ser elaborado materialmente
nha", refletindo o caráter fetichista da mercadoria com muito mais acuidade. Afinal mercado-
quando, na verdade, a consciência que se exte- ria e alienação existiram desde o começo
do capitalismo (...); enquanto a 'unidade' da
rioriza no seu sonho já é produzida por este
era moderna desde então residiu no caráter
caráter fetichista da mercadoria. Ou, lendo pelo mercantil. Mas a 'pré-história' e ontologia
outro lado do fio da meada: o caráter fetichista da completa do século XIX pode ser estabe-
mercadoria produz a consciência que reflete lecida somente mediante uma definição
precisa da forma industrial da mercadoria
como sendo sonho o mesmo caráter fetichista. Se
como sendo claramente distinta historica-
apreendermos a 'consciência' formada no âmbito mente da forma mais antiga. Todas as
dos nexos da sociedade e das individualidades referências à forma mercadoria 'como tal'
para ultrapassarmos um enfoque meramente dão a esta pré-história um certo caráter
metafórico (Adorno/Benjamin, idem,
psicológico individualista, poderemos concluir
ibidem).
que a formulação de Adorno indica que, por
intermédio da mercadoria e seu caráter fetichista, A apreensão da mercadoria por Adorno é
se constrói a sociedade, se produz a formação notável, expressando em sua plenitude a transi-
social. ção da circulação simples de mercadorias à circu-
Ou seja: Adorno atenta para a produção lação ampliada, à constituição do capital. Com a
da reprodução da formação social em que a produção industrial como estágio atual da di-
mercadoria ocupa posição nuclear por intermé- visão do trabalho se totaliza a mercadoria, o que
dio do seu caráter fetichista. Evidentemente está significa que se constitui como núcleo estrutural
em questão aqui uma mercadoria especial que, da sociedade, a unidade da era 'moderna'; não
dominando o trabalho vivo, gera capital. Mas isto somente como núcleo constituído, mas núcleo
nos ocupará mais à frente. constituinte da unidade, formador da sociedade,
Adorno detecta claramente o mecanismo portanto; em outras palavras: capital. Nesta cir-
social de auto-reprodução no âmbito de um cunstância real efetiva é insuficiente contrapor
processo produtivo centrado na mercadoria em ao valor de troca, nesta sua universalidade, o
um contexto específico: a produção industrial do valor de uso objetivo, em sua imediatez. Trata-se
século XIX. O caráter fetichista da mercadoria de aprender o caráter específico da mercadoria
demanda portanto esta especificação histórica: em sua universalidade na sociedade real contem-

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porânea, como mercadoria produtora de valor. A totalizada, nas condições da reprodução
investigação da mercadoria e da alienação preci- ampliada, o "valor de uso" usufrui a promessa da
sa agora também integrar-se a esta forma nova eternidade: não é "também" mercadoria, mas é
claramente distinta da mercadoria, do caráter "sempre" mercadoria. Uso é apreendido estrita-
fetichista da "mercadoria-capital", com que, nas mente como consumo. Há uma perenização da
palavras de Adorno, temos "a promessa da forma social mercadoria. Ela não deixa de existir,
imortalidade". pois seu valor é um valor que se apresenta como
Para Adorno a forma mercadoria confere de uso sem sê-lo - e assim jamais é satisfeito. A
unidade a um mundo que, ele próprio, é recons- sociedade real do capitalismo contemporâneo
trução do mundo nos termos da formação social tem como estrutura nuclear uma formação social
mercadoria. Estamos face a uma unidade pela que não pode ser caracterizada como valor de
mercadoria no plano da formação pelo valor de uso, mas que, pelo seu caráter fetichista, assume
troca, ou, pelo reverso: formação num mundo de esta forma, de que necessita para se reproduzir.
unidade perdida, mundo este formado, ou me- No parágrafo 146 da Minima Moralia, intitulado
lhor, reconstruído no curso da reprodução da "Lojinha de brinquedo", Adorno aborda o tema
sociedade capitalista justamente para se reverter com muita delicadeza no âmbito da atividade
em unidade pela forma mercado - na medida da econômica aquisitiva, que confisca todas as
possibilidade da unidade pela forma mercadoria. atividades como sendo seus meios, de modo que
A mercadoria oferece a saída para os problemas as qualidades das coisas deixam de ser sua
gerados pela mercadoria: os elementos de unida- essência, convertendo-se em aparência de seu
de são oferecidos juntamente com a causa de sua valor. Agora parece que o mundo real efetivo se
perda. converte em fantasia, mundo irreal (de
A argumentação de Adorno, como vimos, brincadeira!), por contraposição à efetividade
situa o caráter feitichista da mercadoria e com aparente da mercantilização total.
ele, as formas da dominação ideológica em plena
teoria do valor. Na sociedade reificada, o valor de A qualidade das coisas transforma-
se, de algo essencial, na manifestação con-
uso é subordinado aos ditames da realização do tingente de seu valor. (...) 'Valor de uso se
valor de troca. Adorno sublinha a apreensão torna forma de aparência de seu contrário,
desta realidade social para Benjamin: do valor' (Marx, Das Kapital, Vol. I, p.61).
Em sua ação gratuita (desprovida de
(...) Gostaria de uma vez mais enfatizar com intenções WLM), a criança se posiciona com
muita veemência a passagem acerca da uma finta do lado do valor de uso e contra o
'libertação das coisas das barreiras de se- valor de troca. Justamente na medida em
rem úteis' como um ponto de inflexão bri- que despoja as coisas com que se relaciona
lhante para a salvação dialética da merca- de sua utilidade mediatizada, procura
doria (Adorno et al., 1990: 119). resguardar a relação com estas mesmas
coisas pelo que elas representam de bom
A "salvação dialética da mercadoria" é a para as pessoas e não pelo que existe só
produção da consciência pelo seu caráter fetichis- com a intenção da troca que deforma tanto
ta; em suma, é o capital. Isto é, a produção de as coisas, como os homens (Adorno, 1978:
306; Adorno, 1993: 200).
valores de troca como valores de uso, e não a
mera substituição de valores de uso por valores Assim se pereniza a formação social vincu-
de troca e vice-versa. Este "valor de uso", nas lada à produção de mercadorias, exatamente por
circunstâncias da circulação simples de mercado- configurar um objeto próprio independente do
rias, "além" de ser objeto de uso é "também" mer- que seriam as necessidades humanas associadas
cadoria. Quando consumido, uma vez saciado o ao 'uso'.
consumidor, deixaria de ser mercadoria.
Os automóveis, as bombas e o cinema
Agora, no entanto, na sociedade capitalista
mantém coeso o todo (...) Liberal, o telefone

Revista Olhar - Ano 2 - Nº 3 - Junho/2000 10


formação destinada à estabilização cujo
âmbito é extra-econômico, âmbito que
será explicitado por Adorno como sendo
Montagem de Richard Hamilton. Reprodução: Susan Buck-Morss - The Dialectics of Seeing

o da própria reprodução da formação


social e não apenas do 'mercado', isto é,
abrange o plano da 'consciência'. Aqui
estamos no plano das questões expostas
por Lukács em História e Consciência de
Classe: a consciência de classe da
burguesia é necessária para possibilitar
a reprodu-ção do sistema. Consciência
neste sentido refere-se ao plano da
inflexão no curso natural-espontâneo,
objetivando precisamente a reprodução
do sistema. A apresentação desta
"consciência de classe" essencial à auto-
reprodução do capital constitui o
principal escopo de Adorno e o conceito
de indústria cul-tural seria elaborado
com este objetivo; com efeito, a indústria
cultural é o modo como aparece esta
consciência de classe na formação social
permitia que os participantes desempe- vigente.
nhassem o papel de sujeito (usando ou não
WLM). Democrático, o rádio transforma a A dinâmica do conflito de classes
todos igualmente em ouvintes, para entre- demanda uma intervenção consciente, isto é, que
gá-los autoritariamente aos programas interfira no curso 'natural', que assim é
(obrigatoriamente como consumidores apresentado como insuficiente para explicar a
WLM) (Adorno/Horkheimer, 1971: 109;
dinâmica da formação social, da sociedade
Adorno/Horkheimer, 1985: 114).
capitalista em questão.
Quando a mercadoria não se identifica ao
(...)o sistema produz o proletariado. Os
valor de uso do bem de consumo, a circulação homens se tornaram verdadeiramente em
passa a constituir momento da produção, produtos do sistema, graças a suas neces-
convertendo-se em elo que confere continuidade sidades e às exigências omnipresentes do
à reprodução do próprio modo de produção de sistema; como sua própria reificação apre-
endida, e não como crueza não apreendida
mercadorias. Ora: eis a circulação ampliada, pela
a desumanização se completa sob o mono-
qual trabalho se converte em capital, que, em pólio a partir dos civilizados, e mesmo coin-
contrapartida, aparece como se autoreprodu- cide com sua civilização (...)
zindo. Eis o que Marx denomina subsunção real A dominação migra para dentro dos
homens. Eles não precisam, tal como pen-
ao capital, que repõe suas próprias condições de sam os liberais por força de suas represen-
existência, tornando-se aparentemente indepen- tações de mercado, ser 'influenciados'. A
dente, autônomo; o capital; manifesta seu fetiche. cultura de massa apenas os torna mais
Isto depende de uma intervenção constante no uma vez tal como de todo modo já são sob a
imposição sistêmica, controla as brechas,
plano da indústria cultural, assim revelada como
impõe como moral pública à práxis o seu
peça nuclear no mecanismo da reprodução contrário, coloca à sua disposição modelos
ampliada. a serem imitados.(...) Desumanização não
Há uma produção da consciência, uma é um poder de fora, não é propaganda,

11 Revista Olhar - Ano 2 - Nº 3 - Junho/2000


qualquer que ela seja, não é exclusão da desenvolvido, isto é, à formação pelo valor, na
cultura. Ela é justamente a imanência no subsunção real ao capital. Para Pollock:
sistema dos oprimidos que alguma vez ao
menos pela miséria caíram fora do mesmo, Se o sistema de mercado precisa ser
enquanto hoje sua miséria está em que não substituído por alguma outra forma organi-
podem mais sair, que a verdade como pro- zacional, precisa preencher certas funções
paganda lhes é suspeita, enquanto assu- (...) entre três: um modo de definir as neces-
mem a cultura da propaganda, que se inver- sidades da sociedade em termos de bens de
te fetichizada no delírio da reflexão infinita consumo (...) (Pollock, 1997: 74).
de si próprios. Assim, porém, a desumani-
zação é simultaneamente seu contrário. Nos
As necessidades seriam estabelecidas de
homens reificados a reificação tem seu
limite (Adorno, 1979: 390/391). modo positivo, por exemplo vinculadas a bens
de consumo; não seriam problematizadas como
Conforme Adorno, o objetivo da Teoria em Adorno, fiel à sua apreensão do processo de
Crítica da Sociedade é facultar a experiência viva realização do valor e do consequente fetichismo
da reificação do indivíduo na formação social da mercadoria. No círculo americano dos
presente, que foi obstruída na sociedade vigente. frankfurtianos, a questão das necessidades
Fazer a experiência viva da reificação é apreender opunha Pollock e Adorno.
o indivíduo como mediação no processo de re- Conforme relato de uma discussão em
produção da sociedade em que os produtores julho de 1942, Pollock desconsiderou os desejos
perdem o controle na medida em que na reprodu- estéticos e culturais, tão importantes para
ção se apagam as contradições, se obstrui a expe- Adorno: "Do people really worry about higher
riência da reificação. Mas, para isto, há necessi- things so long as they are full?" (Será que as
dade de uma intervenção constante, pela indús- pessoas realmente se importam com coisas mais
tria cultural; há a continuidade de um mal uni- elevadas quando elas se encontram saciadas?)
versal. (Jarvis, 1998: 70). Adorno incluia tal visão no
Esta intervenção se dá interferindo no âmbito de uma antropologia positiva, uma teoria
plano da constituição das necessidades. Esta da natureza humana em que necessidades
produção de necessidades, de resto, seria a chave naturais aos homens podiam ser distinguidas de
para se apreender o mecanismo do fetichismo da necessidades meramente culturais, e portanto
mercadoria: a metamorfose do que é social como 'artificiais', 'falsas'. Mas nenhuma distinção
necessidade constituída no plano do trabalho poderia ser estabelecida entre natureza humana
social em coisa em necessidade constituída no e cultura humana.
processo de produção na medida em que este se A posição de Adorno seria explicitada em
desvincula das necessidades dos produtores, suas Teses sobre Necessidades:
para propor, como processo autonomizado,
As necessidades vigentes elas pró-
coisas como necessidades a estes produtores. prias são, em sua forma atual, produtos da
Nem todas as necessidades subjetiva- sociedade de classes (...) O risco de a do-
mente experienciadas podem ser endossadas co- minação se interiorizar nos homens por
mo necessidades verdadeiras. A produção capi- meio de suas necessidades monopolizadas
constitui (...) uma tendência real do capita-
talista mistifica todas as necessidades como se o
lismo tardio. Perigo este que não diz respei-
valor de troca fosse a sua medida; mas esta to à possibilidade da barbárie após a revo-
mistificação não pode ser superada por uma lução, mas sim à obstrução da revolução
distinção dogmática entre necessidades objetivas por intermédio da sociedade total (...)
(Adorno, 1979: 393).
e vontades subjetivas. Friedrich Pollock, o cria-
dor da formulação da concepção do "Capitalismo Adorno descobre a lógica imanente ao
de Estado", não atenta, como Adorno, ao poder processo de produção de mercadorias que
formador das mercadorias no capitalismo tardo- perpetua a mesma, a "obstrução da revolução"

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mediante a produção de "necessidades" no pró- da mercadoria nesta dimensão totalizante se
prio processo de produção. Deste mecanismo de apresenta a própria construção da sociedade.
produção de necessidades deriva uma consciên- Consciência e sociedade não são pressupostos,
cia no âmbito estrutural do próprio trabalho mas são produzidos na dinâmica do fetichismo
vivo. A dominação migrando para dentro dos da mercadoria. Em Sobre o caráter do fetichismo
homens significa a tendência crescente do au- na música e a regressão da audição, lemos com
mento do desequilíbrio na composição orgânica clareza:
do trabalho vivo, como ele se refere à questão em O conjunto da vida musical atual é
um parágrafo da Minima Moralia intitulado dominado pela forma mercadoria (...) Este
"Novissimum Organum" onde se evidencia a segredo (do caráter fetichista da
subsunção real da força de trabalho ao capital: mercadoria) é a verdade do sucesso. É
o mero reflexo daquilo que no mercado se
Os discursos habituais acerca da paga pelo produto: a rigor o consumidor
'mecanização' dos homens são enganosos, louva o dinheiro que ele próprio gastou para
porque o concebem como algo estático, que adquirir o ingresso para o concerto de
por 'influências' de fora, através de uma Toscanini. Literalmente ele "fez" o sucesso,
adaptação a condições de produção que lhe que ele reifica e aceita como critério objetivo,
são exteriores, sofre certas deformações. sem se reconhecer a si próprio nele. Mas ele
Mas não existe substrato algum destas o "fez" não na medida em que o concerto lhe
'deformações', nenhuma interioridade agradou, mas na medida em que comprou o
ôntica, sobre a qual mecanismos sociais ingresso. É certo que no âmbito dos bens de
atuariam de fora. A deformação não é cultura o valor de troca se impõe de modo
nenhuma enfermidade nos homens e sim especial. Pois este âmbito aparece no
uma enfermidade da sociedade, que (...) mundo das mercadorias justamente como
lhes impõe uma "carga hereditária". excluído do poder da troca, como sendo um
Apenas na medida em que o processo que âmbito de imediatez em relação aos bens, e
se instala com a transformação da força de justamente só a esta aparência os bens de
trabalho em mercadoria perpassa comple- cultura devem seu valor de troca. Simul-
tamente os homens e converte todas as taneamente caem inteiramente no mundo
suas manifestações em objetos e a priori das mercadorias, são feitos para o merca-
em comensuráveis, como uma dor e se orientam conforme o mercado (...) a
variante das relações de troca, aparência da imediatez se apropria do
apenas nesta medida é possível à mediatizado, do próprio valor de troca. Na
A indústria
vida cultural e a nova
reproduzir-se nosqualidade do
termos das medida em que a mercadoria se compõe de
fetichismo da mercadoria na
relações de produção dominantes (Adorno, valor de troca e de valor de uso, o valor de
1978: 308;sociedade de massa
Adorno, 1993: 201). uso puro, cuja ilusão os bens de cultura
precisam preservar na sociedade inteira-
mente tornada capitalista, é substituído
pelo puro valor de troca, que justamente
enquanto valor de troca assume enganosa-
mente a função do valor de uso. Nesse
quidproquo se constitui o caráter especí-
fico do fetichismo da mercadoria da músi-
ca: as relações que nos afetam dirigidas ao
valor de troca promovem a ilusão da
imediatez, e a ausência de relações com o
Retomemos aqui a advertência anterior, objeto simultaneamente desmentem esta
exposta na carta a Benjamin de 1935, pois a cita- imediatez (Adorno, 1973: 25; Adorno, 1999:
ção acima poderia nos remeter à falsa apreensão 78).

de 'sujeitos' a serem alienados. Sabemos já: para


Na segunda parte da citação, Adorno
Adorno os sujeitos são constituídos pela aliena-
explicitaria o mecanismo que motivara a inda-
ção; o fetichismo da mercadoria produz cons-
gação de Marx: "porque o valor se apresenta co-
ciências. Mais: pela caracterização do fetichismo
mo valor de uso?" Trata-se do mecanismo pelo

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qual o objeto de consumo efetivo é o valor de troca; reside em que este é
dotado, pelo fetichis-mo da mercadoria neste caso, cultura - da ime-diatez
que caracteriza o valor de uso. A possibili-dade desta conversão, desta
7- Marcel Proust escreveu um ensaio "substituição social", nas palavras de Adorno, caracteriza o bem cultural
sobre a função social da música - "O
na sociedade atual. Eis em resumo a contribuição de Adorno: a música,
elogio da música" má - em que
examina "o imenso" papel social da
quando situada na conste-lação da sociedade estruturada pela realização
música que desperta "sonhos e do valor, apresenta os ter-mos da possível conversão de valor de troca em
7
lágrimas" (...) "na história dos valor de uso: eis o seu fetiche.
sentidos no âmbito da comunidade Estabelece-se uma mudança de função no objeto 'mercadoria', pela
humana". É uma experiência no pla-
qual esta mercadoria, enquanto situada no plano da circulação, se vincula
no sensorial-empírico segundo a
mes-ma perspectiva da famosa ao plano da produção. "Os contrapontos de produção e consumo são
experiência da "madeleine" apresen- respectivamente estritamente referidos entre si, e somente quando
tada em A la recherche du temps isolados não são dependentes entre si" (Adorno, 1973: 33; Adorno, 1999:
perdu: Du coté de chez Swann, tão
88). Destarte se desenvolve em sua plenitude a auto-reprodução do modo
importante para Adorno. (Proust,
Marcel Tage der Freude, Frankfurt
de produção centrado na mercadoria, como uma formação social que se
a. M.: Ullstein, 1983. apresenta no plano do ser - donde a referência à ontologia. A indústria
cultural ainda referida como cultura de massa neste ensaio - constitui a
aparência necessária deste mecanismo de auto-reprodução: é uma forma
social do capital.

Quanto mais inexoravelmente o princípio do valor de troca subtrai


valores de uso aos homens, tanto mais o próprio valor de troca se
disfarça como objeto da fruição. Indagou-se pelo cimento que ainda
mantém unida a sociedade de mercadorias. (...) A aparência do valor
de troca nas mercadorias assumiu uma função específica de cimento.
A mulher que tem dinheiro para as compras se embriaga com o ato de
comprar.(...) A religião do automóvel converte todos os homens em
irmãos no instante sagrado da exclamação "este é um Rolls Royce"
(...) a garota que já só encontra satisfação em "parecer bem" junto com
seu companheiro: tudo isto se move conforme a mesma ordem (...) A
cultura de massa masoquista é a aparência necessária da todo
poderosa produção ela própria. (...) Também na superestrutura a
aparência não é apenas o encobrimento da essência, mas surge
obrigatoriamente da essência (Adorno, 1973: 25/26; Adorno, 1999:
79).

Wolfgang Haug destaca como o próprio valor de uso das


mercadorias se converte em uma aparência ilusória (Haug, 1996: 71). Na
Dialética do Esclarecimento se reafirmaria esta conversão de valor de uso
em valor, isto é, de que o valor de troca é o valor de uso:

O que se poderia chamar de valor de uso na recepção dos bens


culturais é substituído pelo valor de troca; ao invés do prazer, o que se
busca é assistir e e sair informado, o que se quer é conquistar prestígio
e não se tornar um conhecedor.
(...) Tudo só tem valor na medida em que se pode trocá-lo, não na
medida em que é algo em si mesmo. O valor de uso da arte, seu ser, é
considerado como um fetiche, e o fetiche, a avaliação social que é
erroneamente entendida como hierarquia das obras de arte torna-se
seu único valor de uso, a única qualidade que eles desfrutam. É assim
que o caráter mercantil da arte se desfaz ao se realizar comple-
tamente (Adorno, 1971: 142; Adorno, 1985: 148).

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Localizando no âmbito da teoria do valor alto), tal como seria uma "consciência produzi-
o processo de constituição social, o processo de da".
totalização do capital, Adorno apreende esta
As mercadorias culturais da indústria,
situação social histórica a partir das conforme destacaram Brecht e Suhrkamp
transformações que este processo de reificação há mais de 30 anos, se orientam pelo prin-
representa no âmbito interno das obras cípio da sua valorização, da sua realização
submetidas à fetichização, convertendo-se em de valor (Verwertung) e não pelo seu
conteúdo próprio e por sua configuração. A
bens culturais. O escopo final de seu intento práxis conjunta da indústria cultural
teórico seria justamente este: a crítica imanente, transmite o motivo do lucro sem qualquer
isto é, a localização da "história" deste processo disfarce, limpo, às configurações do
no âmbito do próprio objeto e de suas transfor- espírito. Desde que estas ganham a vida
para seus criadores no mercado, elas já
mações constitutivas.
tinham algo disto. Mas elas procuravam o
Indústria cultural foi o termo cunhado lucro apenas de maneira mediata, através
para caracterizar esta transformação. Não cabia de sua essência autônoma. Novo na
referir-se à cultura da mercadoria ou às mercado- indústria cultural é o primado imediato e
rias culturais. Havia algo de novo no âmbito do sem disfarce de seu efeito por sua vez
precisamente calculado em seus produtos
fetiche da mercadoria na sociedade integral-
mais típicos (Adorno, 1967: 61; Adorno,
mente capitalizada. Assim se expressa no ensaio 1986: 93).
A indústria cultural, onde resume suas considera-
ções duas décadas após a Dialética do Esclareci- Já na Dialética do Esclarecimento os auto-
mento: res haviam tratado da novidade:

Tudo indica que o termo indústria cultural O entretenimento e os elementos da


tenha sido utilizado pela primeira vez na indústria cultural já existiam muito tempo
antes dela (...)
Dialética do Esclarecimento. Em nossos
....................................................................
esboços usávamos 'cultura de massa'.
....................................................................
Substituímos a expressão por 'indústria
...........................
cultural' para eliminar desde o início a O novo não é o caráter mercantil da
interpretação, bem vista aos que advogam o obra de arte, mas o fato de que, hoje, ele se
tema, de que se trata de algo como uma declara deliberadamente como tal; e é o fato
cultura que se desenvolve espontanea- de que a arte renega a sua própria
mente a partir das massas, a figura atual autonomia, incluindo-se orgulhosamente
da arte popular. De uma tal cultura a entre os bens de consumo, que lhe confere o
indústria cultural se distingue de modo encanto da novidade. (...) As puras obras
radical. Ao juntar elementos de há muito de arte, que negam o caráter mercantil da
correntes, ela atribui-lhes uma nova sociedade pelo simples fato de seguirem
qualidade. Em todas os seus planos são sua própria lei, sempre foram ao mesmo
construídos de maneira mais ou menos tempo mercadorias. Os que sucumbem à
planejada produtos que são talhados para o ideologia são exatamente os que ocultam a
consumo pelas massas e que, em ampla contradição, em vez de acolhê-la na
medida, determinam por si mesmos este consciência de sua própria produção, como
consumo (...) Indústria cultural é a Beethoven (Adorno/Horkheimer, 1971: 121
integração deliberada, a partir do alto, e 141; Adorno/Horkheimer, 1985: 126 e
de seus consumidores." (Adorno, 1967: 147).
60; Adorno, 1986: 93 destaque WLM).
A novidade porém não se esgota no nova
Há uma nova qualidade do fetichismo da
qualidade do caráter mercantil. Consumo e
mercadoria cultura, ou da cultura como merca-
produção se articulam num todo. Junto a esta
doria, que já era costumeira. Qualidade nova que
novidade atinente ao consumo, opera-se uma
- uma expressão notável por ser à primeira vista
novidade social, pela qual a sociedade de classes
paradoxal vincula vontade com imposição (pelo
em que se opõe trabalho e capital dá lugar à

15 Revista Olhar - Ano 2 - Nº 3 - Junho/2000


sociedade de consumo de massas, à formação eles se influenciam a si próprios quando se
social dos consumidores totalmente integrados, situam no âmbito da socialização operada pela
presos sem resistência, à "integração deliberada nova qualidade do fetichismo da mercadoria da
dos consumidores pelo alto". sociedade integralmente, realmente, subsumida
Os consumidores são os trabalha- ao capital, onde o consumo constitui um
dores e os empregados, os lavradores e os momento do próprio processo reprodutivo do
pequeno-burgueses. A produção capitalista capital. A socialização produz necessidades, que
os mantém tão bem presos em corpo e alma
se destinam a perpetuar os meios para sua
que eles sucumbem sem resistência ao que
lhes é oferecido (Adorno/Horkheimer, 1971: satisfação, o modo de produção vigente. Adorno
120; Adorno/Horkheimer, 1985: 125). e Horkheimer fizeram suas investigações
influenciados sobretudo pela experiência dos
Nesta sociedade, os consumidores não
debates da época sobre o rádio e o cinema, mas na
tem referências fora da sua atividade consumido-
melhor tradição de Marx. Para este, a dinâmica
ra, nada que lhes confira identidade é necessário
do processo de trabalho não se distingue da
para consumir o que lhes é oferecido doravante:
lógica das necessidades a serem providas por
O prazer, para continuar a ser um meio do trabalho. Não há em Marx como existe
prazer, não deve mais exigir esforço e por em Hegel uma lógica do trabalho distinta e
isso tem de se mover rigorosamente nos subordinada à lógica das necessidades. Ao con-
trilhos gastos das associações habituais. O
espectador não deve ter necessidade de trário: no processo de trabalho se produzem as
nenhum pensamento próprio, o produto necessidades. A Dialética do Esclarecimento
prescreve toda reação: não por sua repe-tidamente focaliza esta questão das
estrutura temática que desmoronaria na necessidades produzidas no próprio processo de
medida em que exige pensamento mas
trabalho, como modo de perpetuar o próprio
através de sinais. Toda ligação lógica que
pressupunha um esfôrço intelectual é escru- processo de trabalho. Numa outra perspectiva,
pulosamente evitada. Os desenvolvimentos cabe aqui referir-se à produção da consciência -
devem resultar tanto quanto possível da no caso, consciência de classe burguesa como
situação imediatamente anterior e não da
modo de adequar o processo de produção às
idéia do todo (Adorno/Horkheimer, 1971:
122/ 123; Adorno/Horkheimer, 1985: necessidades produzidas, como modo de
128/129). efetivar a realização do valor.

Os "sujeitos" sequer organizam o que lhes é A demanda ainda não foi obedecida pela
oferecido, os seus "objetos", em uma unidade; simples obediência. A grande reorganiza-
ção do cinema pouco antes da I Guerra -
eles não se apreendem como estando em uma condição material de sua expansão - consis-
sociedade, a não ser pelo próprio consumo. Sua tiu exatamente na adaptação consciente às
atividade social, por excelência, passa a ser o necessidades do público registradas com
consumo; o valor de troca forma sua "sociedade" base nas bilheterias, necessidades que as
pessoas mal acreditavam ter que levar em
(...) as pessoas devem se orientar conta na época pioneira do cinema Ainda
pela unidade que caracteriza a produção. A hoje pensam assim os capitalistas da
função que o esquematismo kantiano ainda indústria cinematográfica (embora) se
atribuía ao sujeito, a saber, referir-se de baseiem mais nos êxitos
antemão à multiplicidade sensível aos finais do que na
conceitos fundamentais, é tomada ao sujei- sabedoria (...) A
to pela indústria cultural. É o primeiro verdade em tudo
serviço prestada por ela ao cliente isso é que o poder
(Adorno/Horkheimer, 1971: 112; da indústria
Adorno/Horkheimer, 1985: 117). cultural provém de
sua identificação
com a necessidade
Os consumidores não são influenciados,
produzida, não da

Revista Olhar - Ano 2 - Nº 3 - Junho/2000 16


mera oposição a ela. A diversão é o como cinefotografia ou emisssão radio-
prolongamento do trabalho sob o capita- fônica (Adorno/Horkheimer, 1971: 128;
lismo tardio. (...) Qualquer nexo lógico que Adorno/Horkheimer, 1985: 134).
pessuponha um esforço intelectual é
escrupulo-samente evitado O uso do valor de troca impõe ao con-
(Adorno/Horkheimer, 1971: 120; sumidor a falsa universalidade como referência
Adorno/Horkheimer, 1985: 128).
social concreta.
A satisfação das necessidades se (...) sua missão específica é desacostumá-
subordina à realização do valor e não à oferta do las (as pessoas) da subjetividade (...)
valor de uso. Por isto há necessidade de uma Mesmo quando o público se rebela contra a
indústria cultural, esta rebelião é o resul-
intervenção consciente. Ou, em outros termos:
tado lógico do desamparo para o qual ela
consciência é o que atribuimos à intervenção no própria o educou (Adorno/Horkheimer,
processo de produção quando este não deve 1971: 129; Adorno/Horkheimer, 1985:
para se reproduzir se desenvolver conforme um 135) .
curso "espontâneo- natural".
Os homens foram convertidos em massa,
A indústria cultural não cessa de lograr universal abstrato e equivalente, tal como o valor
seus consumidores quanto àquilo que está a de troca.
lhes prometer. A promissória sobre o prazer A indústria cultural realizou "maldosa-
é prorrogada indefinidamente (...)...Ao
mente o homem como ser genérico". Cada um só
desejo excitado por nomes e imagens o que
se serve é o simples ecômiodo cotidiano. A existe como aquele que pode substituir todos os
indústria cultural não sublima, mas outros: ele é substituível, fungível, um mero
reprime. Expondo repetidamente o objeto do exemplar; um nada. Ao mesmo tempo os homens
desejo, o busto no suéter, ela apenas excita
precisam se arranjar com o que lhes é oferecido.
o prazer preliminar não sublimado que o
hábito da renúncia há muito mutilou Eles reconhecem que devem sua sobrevivência à
(Adorno/Horkheimer, 1971: 125; barbárie
Adorno/Horkheimer, 1985: 130/131).
A cultura sempre contribuiu para domar os
Não há um "prazer preliminar" como algo instintos revolucionários, e não apenas os
bárbaros. A cultura industrializada faz algo
existente, ainda que não realizado, prévio à mais. Ela exercita o indivíduo no
mutilação; há uma mutilação, que é apresentada preenchimento da condição sob a qual ele
como prazer preliminar de um futuro que não está autorizado a levar essa vida inexorável
existe. "Servir aqui significa amputar." (Haug, (...) Ao serem reproduzidas, as situações
desesperadas que estão sempre a
1996: 79). O prazer preliminar aqui não é um
desgastar os espectadores com seu dia a
"prazer" preliminar, mas uma aparência ilusória, dia, tornam-se, não se sabe como, a
invertida, que efetivamente é suplício, mas seria promessa de que é possível continuar a
suportada por induzir uma contínua promessa viver (Adorno/Horkheimer, 1971: 137;
Adorno/Horkheimer, 1985: 143).
que nunca se realiza e em que todos se
identificam. O decisivo é não soltar o consumi- Em O esquema da cultura de massa, texto
dor, o que seria feito em dois movimentos que finalizava o segmento sobre a indústria
simultâneos: apresentar promessas aparente- cultural na edição original de 1944 e subtraído
mente realizáveis e obstruir qualquer autoapre- nas edições de 1947 e 1969, Adorno se detém
ensão do sujeito que não a de ser consumidor. particularmente na continuidade da formação
A fusão atual da cultura e do entretenimento pela indústria cultural, na necessidade da
não se realiza apenas como depravação da intervenção continuada com o objetivo de
cultura, mas igualmente como espiritua- garantir a reprodução da sociedade vigente.
lização forçada da diversão. (...) Só temos
acesso (à diversão) em suas reproduções, Os homens aceitam a cultura de massa

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porque sabem ou pressentem que aqui
aprenderão os hábitos de que necessitam
como bilhete de passagem na vida
monopolizada. Ele só tem validade quando
for pago com sangue, com a cessão de toda
a vida, com a obediência dotada de paixão
em contraponto com a imposição odiosa. É
por isto e não por causa do "emburreci-
mento" das massas, propalado pelos seus
inimigos e lastimado pelos seus amigos
filantropos, que a cultura de massa é tão
irresistível. Os mecanismos psicológicos são
secundários. A racionalidade do ajusta-
mento hoje progrediu tanto que só haveria

Tiller Girls, Berlim, República de Weimar, Foto de Stefan Lorant - Sieg Heil!.
necessidade de um mínimo de repulsa para
tornar consciente a sua irracionalidade.
Mediante a regressão se ratifica a recusa da
resistência. As massas tiram as consequên-
cias da impotência social completa frente à
monopolização, em que a miséria hoje se
expressa. Na adequação às forças produ-
tivas técnicas que o sistema lhes impõe
como progresso, os homens se convertem
em objetos que se deixam monopolizar sem
reclamar, regredindo assim para aquém da
potencialidade das forças produtivas
técnicas. Mas como, enquanto sujeitos,
constituem eles próprios ainda os limites da
reificação, a cultura de massa precisa
permanentemente submete-los em sua má
infinitude: o desesperançado esforço de sua
repetição é o único vestígio da esperança em
que a repetição é inútil, que os homens por
fim não podem ser dominados. (Adorno,
1981: 331)
instaura uma falsa experiência do trabalho vivo
A indústria cultural apresenta o esquema
como "objeto".
da identificação das massas como consumidores.
Adorno se refere enfaticamente a esta
No entanto o seu consumo, como vimos, é
relação entre ser social (sociedade vigente, onde
permanentemente contido. A má infinitude é
há o trabalho vivo) e indústria cultural que
justamente o coletivo “massa” em que a
reconstrói o trabalho vivo como objeto, sujeito
monopolização se expressa, a subtração ao uso,
sujeitado. Na Dialética Negativa, Adorno resume
convertido em promessa que não pode ser
exemplarmente a caracterização formativa da
satisfeita. A repetição da promessa é inútil, o
indústria cultural:
adiamento da fruição inevitável.
Na produção capitalista de mercadorias O espaço para uma ontologia filosoficamen-
se ocultava, como principal efeito ideológico do te legítima seria antes a construção da in-
dústria cultural, do que aquela do ser; bom
fetiche da mercadoria, que a força de trabalho dos
seria apenas aquilo que se subtrai à onto-
homens, o trabalho vivo, constituia efetivamente logia (Adorno, 1966: 128).
a fonte do valor. Na sociedade do capitalismo
avançado, há uma nova qualidade neste plano. Construção da indústria cultural caracte-
Não se oculta a efetiva fonte do valor, com o rizada negativamente em outra ocasião:
intuito de obnubilar o conflito de classes. Mas se O efeito conjunto da indústria cultural é o de

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um anti-esclarecimento: nela o esclareci- so produtivo de modo oposto ao vigente. Auto-
mento, como Horkheimer e eu o denominá- nomia que agora não seria vista com bons olhos
vamos, ou seja, o progressivo domínio técni-
co da natureza, se converte em logro das pela perspectiva da sociedade integrada. A semi-
massas (Massenbetrug), em meio para formação responde a esta demanda da sociedade
agrilhoar as consciências. (Adorno, 1967: integrada: por ela não se prove um confronto
69; Adorno, 1986, 99) com a formação, isto é , com a experiência da
Já não há uma ocultação do trabalho vivo, autono-mia, mas se inocula na mesma os ditames
mas uma construção do próprio "trabalho vivo" da indústria cultural. Tudo se passa como se o
nos termos de uma crescente composição valor constituísse o valor de uso, conforme já
orgânica do mesmo, destinada a realizar valor e repetidamente enfatizado. Assim a própria expe-
não formar valores de uso. O próprio processo de riência formativa, antes eventualmente
trabalho seria reconstruído nestes termos. A contraposta ao modo de produção, terminaria
relação formativa sustentada no trabalho por esta por ser integrada ao mesmo. Desenvolve-se uma
perspectiva seria examinada por Adorno nos formação pela semiformação, uma formação
termos da semiformação. A crítica à deformação alternativa, integrada porém ao objetivo da
pelo trabalho alienado se converte imediatamen- realização do valor. Apesar de aparentemente
te em socialização abstrata, em falsa formação. promovida pelo amplo acesso aos bens culturais
Não se trata de uma ausência de esclarecimento, a formação na verdade seria tolhida e
mas de um contra-esclarecimento; a indústria desfigurada.
cultural retoma o que era criticado pela Ilustra- Num adendo introdutório à Teoria da
ção, a autoridade religiosa, na medida em que semiformação, Adorno esclarece:
impede a formação da autonomia do sujeito.
(...) A formação por si própria nunca
garantiu ou conduziu a uma sociedade
(...) o mundo das representações
racional, como imaginava. Em seu ideal, em
tradicionais de cunho religioso foi
que a cultura é situada absolutamente, se
rispidamente rompido. E seria ocupado pelo
impõe o questionamento da própria cultura.
espírito da indústria cultural; contudo o 'a
(...) A consciência nos estratos superiores e
priori' do conceito de formação cultural
inferiores se iguala. Subjetivamente as
próprio da burguesia não teve tempo para
diferenças sociais são progressivamente
se formar. A consciência transita imedia-
dissolvidas. Através de inúmeros canais,
tamente de uma a outra heteronomia: no
as massas são supridas com bens culturais
lugar da autoridade da bíblia, a autoridade
e formativos antigamente reservados à
da televisão (Adorno, 1979: 99; Adorno,
elite. Contudo o pressuposto da formação
1996: 383).
cultural ela mesma, da experiência viva do
que entrementes se coagulou como bem
Na verdade, lembra Adorno, as condições cultural, permanece questionável. A partir
de produção material não toleram o tipo de dos processos de trabalho, de qualquer
experiência no qual se fundamentavam os con- modo, se desfaz aquele conceito de
teúdos tradicionais da formação cultural, como experiência, que suporta tudo aquilo que já
foi chamado de formação cultural. Este
ideais que se contrapunham à efetivação prática. desenvolvimento não é acidental, nem
Esta autonomização dos elementos da formação , também pode ser atribuído à má vontade
quando jogada contra a realidade vigente, funda dos que controlam a indústria cultural, mas
a perspectiva da crítica imanente: cobrar a se baseia objetivamente na tendência da
sociedade, e também não pode ser elimi-
efetivação de promessas que se mantinham
nado pela boa vontade." (Adorno, 1979:
estritamente no plano ideal. O principal dividen- 575)
do da crítica imanente era a autonomia dos sujei-
tos formados no plano desta cultura formativa. A vontade é travada pelo processo de
A possibilidade do desenvolvimento de uma trabalho em sua tendência atual, a reprodução
'consciência' que se proponha intervir no proces- ampliada. A sociedade reconstruída se impõe ao

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indivíduo. Subjetivamente, como consumidor,
sua impotência é oculta numa realidade
"próxima", imediata, que como a "reprivatização"
é uma reconstrução imposta. Aqui as relações de
poder se instalam como verdadeira relação de
classe existente entre os consumidores e os
produtores da indústria cultural. Relações
subjetivamente dissolvidas, mas presentes A sociedade totalmente administrada
objetivamente, no todo do conjunto integrado de não existe; seria uma utopia negativa dos
"pessoas", como impotência. frankfurtianos da primeira geração. Eis a crítica
mais freqüente aos moldes da teoria crítica
Onde as pessoas parecem ter um expostos na Dialética do Esclarecimento. Em
contato maior, mais próximo, como na resumo, a reprodução ampliada não seria uma
televisão, que se oferece em suas casas, a
proximidade é mediada pelo socialmente tendência como totalização do domínio do
distante, o poder concentrado. Nada capital.
poderia simbolizar mais enfaticamente que É possível até afirmar que Adorno deixou
a sua vida, que julgam possuir e manter, e "muito pouco claro que a negatividade da totali-
que consideram o que lhes é mais próximo e
real, em grande medida tem seu conteúdo
dade não é total" (Kager, 1988: 183). Mas a verda-
concreto outorgado a partir do alto. A de é que a própria apresentação da sociedade in-
existência humana individual, para além de tegrada como contínuo processo de "naturali-
qualquer imaginação, é apenas mera zação", geração permanente, deixa isto claro
reprivatização; o mais real a que os homens
conceitualmente. A reconstrução da sociedade
se prendem, é ao mesmo tempo algo irreal.
(...) procura se autonomizar pela indústria cultural,
Mas a integração vai além.(...) As ao se inserir no processo de reprodução, interfe-
pessoas, como triunfo da integração, se rindo no plano das necessidades retroagindo
identificam até seu âmago com aquilo que
lhes acontece (...) O processo se nutre do fato
sobre os sujeitos, mediante uma ação continuada.
de que os homens devem sua vida O mecanismo da indústria cultural, o esquema
exatamente àquilo que lhes é imposto. (...) o da cultura de massa é necessário justamente
cimento, como outrora funcionavam as nesta perseverante intervenção no plano do
ideologias, agora se converteu na próprias
"sujeito". O texto O esquema da cultura de massa
condições existentes em seu 'super-poder', e
na própria constituição psicológica das indica a possibilidade de haver uma interrupção
pessoas (Adorno, 1979: 18). nesta intervenção, ao se referir a uma "repetição
inútil", já que "os homens afinal não podem ser
Toda sociedade ainda é sociedade de capturados". Aqui os autores destacam que o
classes. Mesmo que subjetivamente as diferenças constructo social da indústria cultural, uma
sejam aplanadas na consciência em conseqüência "segunda natureza", não se contrapõe a uma
da experiência facultada pela socialização pro- "primeira natureza", mas a uma intervenção
movida pela indústria cultural, elas, as criativa e inovadora no curso "natural" que
diferen-ças, constituem o pressuposto caracterizaria justamente a subjetividade efetiva
A experiência
o b j e t i v o d a viva
p r ó pda
r i a reificação
continuada do trabalho vivo. Criatividade esta que ameaça a
intervenção social. Com a referência ao
e a crítica da sociedade falsa permanência do igual e, afinal, serve
"cimento", retornamos à nossa epígrafe historicamente de justificativa à tentativa de seu
inicial, a coesão progressiva pela controle pela intervenção no plano da
manipulação do "super-poder" e sua manipulação das necessidades. Esta, por sua vez,
retroatividade sobre a constituição psicológica resulta em uma socialização reconstruída como
das pessoas. âmbito do sempre igual, da paralisia da prática

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transformadora. diferenciar verdadeiras e falsas necessidades.
Outro intérprete usualmente arguto se Esta diferença precisa ser "vista", destaca
perde ao, conforme exemplo de Habermas em Marcuse, isto é, passa pelo plano da subjetivi-
sua apreensão da esfera pública, imaginar a dade concreta sensível ( Maar, 1999). A
proposição adorniana também como idealização sociedade reconstruída é real mas "ilusória",
de uma determinada situação histórica: o modelo "falsa", no sen-tido de ser constituída por valores
"fordista" da produção em série. Este modelo da de uso que são aparências ilusórias, se impõe
indústria cultural impediria a apreensão do como "objetos". A sociedade efetiva se sustenta
novo, da criatividade. Aqui também se questiona em uma consti-tuição material, no plano da
a perenização do capital, confrontando-a com realidade sensível prática, que se contrapõe
uma "evolução" histórica no âmbito da produção. claramente a esta realização espiritualizada da
Seria a conceituação da indústria cultural incapaz socialização global. Adorno, insiste porém, que
de acompanhar as mudanças ocorridas desde a distinção entre necessidades verdadeiras e
então? falsas não se constitui a partir de uma realidade
(...) o conceito de indústria cultural
humana a priori, mas é gerada no próprio plano
parece excessivamente rígido e inflexível. A social material. A própria reflexão imanente no
teoria pós-modernista ofereceu uma nova âmbito das for-mas da sociedade ofereceria os
matriz para a esfera cultural. De acordo com critérios para que se distingam as necessidades.
a qual as flexibilidade do pós-modernismo é
caracterizada pelo uso radical da fantasia Os problemas normativos erguem-
e da ficção. O material é substituído pelo se a partir de constelações históricas, que
imaterial (dinheiro) e pelas imagens fictícias de igual maneira exigem silenciosa e
do capital. No lugar da organização estrita 'objetivamente' a partir de si próprias sua
de técnicas de produção e de mercados de transformação. (...) Não seria possível, por
trabalho, encontramos oportunidade e exemplo, decretar abstratamente que todos
adaptabilidade rápida. As ideologias pós- os homens precisam ter o que comer
modernas com sua celebração explícita da enquanto as forças produtivas não fossem
descentralização, múltiplos padrões de con- suficientes para a satisfação das neces-
sumo e ausência de origens, necessaria- sidades primitivas de todos. Contudo,
mente desafiam o modelo cultural do capita- quando, numa sociedade (...) aqui e agora,
lismo fordista (...) (Hohendahl, 1986: 145). em face da abundância de bens existentes
(....) da mesma maneira existe a fome, então
Ora, a novidade criativa do trabalho vivo, isto exige a abolição da fome pela interven-
contudo, é controlada na sociedade vigente em ção nas relações de produção. Esta exigên-
seu ímpeto transformador por uma experiência cia brota da situação, de sua análise em
todas as dimensões, sem que para isto se
substitutiva de "falsa" criatividade e não
precisasse da universalidade e da neces-
simplesmente obstruída. Há uma produtividade sidade de uma representação de valor
do falso, uma criação de necessidades de (Adorno, 1999: 182/183).
consumo de valor de troca que representa o
"novo" domesticado na indústria cultural, o Deborah Cook, ao comentar a citação,
sujeito como "objeto" da sociedade. É o que ocorre afirma: "A 'essência' contra a qual a 'aparência' é
com a aparente produção flexível do neo-fordis- julgada é imanente à própria sociedade (Cook,
mo, que corrobora os moldes explicativos da 1996: 99). O novo aqui se refere à intervenção no
indústria cultural em um plano mais complexo, plano das relações de produção, à mudança no
onde se forjam "diferenças" a partir do "idêntico". plano social, à verdadeira efetivação do sujeito; e
Há uma intervenção no plano das necessidades não é relativo à produção, como objetos, de novas
"humanas" que é até realçada por estas formas de necessidades e de suas satisfações por novos
produção. métodos na formação social vigente.
O que está em causa é a existência de uma Nos mesmos termos da situação acima,
teoria das necessidades pela qual se possa seria possível no âmbito da socialização pela

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indústria cultural a existência de uma percepção sujeitos sujeitados, do mesmo modo o processo
da imposição pela indústria cultural. Há uma de formação social pelo ponto de vista do
"satisfação substitutiva" que não satisfaz trabalho vivo "integra a partir de baixo", isto é, a
(Schweppenhäuser, 1996: 158) e com ela a partir de necessidades "verdadeiras", que tem a
possibilidade de desenvolver "hostilidade em ver com o momento da sociedade como sujeito.
relação à fruição de necessidades" enquanto Tais necessidades são liberadas, como exposto
fruição abstrata promovida no plano da por Adorno acima, na medida em que se
reprodução sistêmica. Haug refere-se à questão interrompe o "circuito coeso da manipulação e da
como "satisfação repressiva" (Haug, 1996: 80), em necessidade retroativa", que é a socialização pela
que o sujeito se apreende como mero objeto. indústria cultural. É preciso assim favorecer
Neste sentido, a própria permanência no âmbitos em que tais necessida-des possam
plano da sociedade integrada reconstruída pela exercitar seu papel de socialização. Oskar Negt e
industria cultural passaria por uma decisão uma Alexander Kluge propõem tal possibilidade de
aceitação do trabalho vivo, condicionada, no experiência de si, coletiva do trabalho vivo, como
limite, pelo estreitamente das condições de pre- "esferas públicas proletá-rias", "contra-
servação do trabalho vivo. Müller-Dohm refere- organizações" públicas da expe-riência social
se a um "suicídio" da espécie humana, para que coletiva. (Negt/Kluge, 1977: 106)
teriam que se decidir" (Müller-Dohm, 1994: 216). A crítica é, por um lado, denúncia trans-
Ou a que teriam que se cendente, a partir do
opor, optando pela e x t e r i o r , d a
possi-bilidade do novo unilateralidade, da
em termos de universalidade
socialização. abstrata da sociedade
A sociedade socializada nos termos
reconstruída pela da indústria cultural
indústria cultural é em que não se tolera o
falsa porque não é novo efetivo (o "falso"
"sujeito" social e novo é promovido!) e
coletivo. É uma a satisfação é aparente
s o c i a l i z a ç ã o e ilusória .
equivalente, que se Por outro lado,
pretende trocada pela há a crítica imanente,
sociedade real, Ruínas do Reichstag, Berlim, 1945, Foto de Gerhard Kiersch et al. ima-nência, contudo,
material, de conflitos que requer uma
de classes. O novo não se apresenta no âmbito da caracterização. A crítica da reconstrução social
sociedade reconstruída pela industria cultural, no plano da indústria cultural se desenvolve,
mas em relação a esta reconstrução da segundo Ador-no, conforme os moldes da
sociedade a partir da formação material formação alegórica que adota a partir de
efetiva. É exatamente por isto que se impõe Benjamin (Lunn, 1982: 278). Ele recusa os termos
considerar indústria cultural e semiforma-ção no da representação simbólica, positiva, do
plano da expe-riência social como um todo, absoluto em que Lukács, por exemplo, baseava o
incluindo aqui nexos sujeito-objeto formados no papel emancipador da cultura como sendo
plano ma-terial, ou seja, no âmbi-to do trabalho depositária dos ideais de harmonização e
vivo. universalidade, os quais teriam se perdi-do na
Assim como a reprodução ampliada se mercantilização. Isto porque agora, com a
pauta por necessida-des que integram "a partir produção da cons-ciência nos termos as-
de cima" seus consumidores, como objetos, sinalados, os próprios "ideais" seriam tam-bém

Revista Olhar - Ano 2 - Nº 3 - Junho/2000 22


manipulados no processo de reprodução
ampliada, na satisfação de necessidades
produzidas.
Assim não cabe procurar "por trás" da
reconstrução pela indústria cultural, recupe-
rando a autenticidade para assim promover a
crítica imanente. Mas cabe desenvolver configu-
rações críticas da sociedade a partir do que já
existe - e contra o que existe - mesmo que esta
existência vigente negue as mesmas. O trabalho
crítico consiste na "revelação da erosão" (Lunn,
1986: 293) que, exposta, possibilita a crítica
imanente. Os moldes não são mais de conciliação
por se realizar mas que não foi realizada - como

no sujeito-objeto idêntico de Lukács - mas o contrário. Rearranjos em que os


elementos da reconstrução social conservadora são desco-nectados de sua
posição no âmbito vigente, des-providos de sua situação "natural-social", para se
rearticularem possibilitando a experiência viva da reificação.
Assim, por exemplo, Negt e Kluge sugerem que, a partir de um
desarranjo da esfera pública burguesa, onde a própria opinião pública obstrui as
experiências da sociedade de classes, se articulem esferas públicas proletárias
em que as experiências de auto-determinação possam se desenvolver.

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