Equações Diofantinas Lineares A Duas e Três Variáveis

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Equações diofantinas lineares a duas e três variáveis

Eudes Antonio Costa1


Fabiano F. T. dos Santos2

Introdução

O objetivo deste artigo é apresentar a teoria básica envolvida nas equações


diofantinas lineares a duas e três incógnitas e mostrar algumas aplicações. Destacamos que
o estudo em três incógnitas é pouco explorado.

Nota histórica

Diofanto de Alexandria viveu provavelmente no século III d.C. Dele se conhecem


duas obras: Sobre números poligonais e Aritmética. Esta última, da qual restam seis livros
(segundo o prefácio o número total de livros seria treze), é a mais importante e original;
trata-se de uma coletânea de problemas, na maioria indeterminados, para cuja resolução
Diofanto usa sempre métodos algébricos, com o que se distingue substancialmente da
matemática grega clássica. Devido a essa sua utilização de métodos algébricos, hoje
recebem o nome de equações diofantinas todas as equações polinomiais com qualquer
número de incógnitas, com coeficientes inteiros e cujas soluções de interesse também são
inteiras.

Equações diofantinas a duas variáveis

Iniciaremos esta seção apresentando um problema que motiva o estudo das


equações diofantinas lineares a duas variáveis e em seguida apresentaremos resultados
básicos envolvendo a existência e a forma geral das soluções.

Problema 1: Escrever o número 100 como soma de dois números inteiros positivos, sendo
um deles divisível por sete e o outro divisível por onze.

Consideremos os números inteiros m e n, sendo m um múltiplo de 7, isto é, m = 7 x


e n um múltiplo de 11, isto é, n = 11 y , com x e y inteiros quaisquer. Sabemos que
m + n = 100 , dessa forma, temos que 7 x + 11y = 100 . Para resolver o problema devemos
encontrar pares de coordenadas inteiras (x, y ) que sejam soluções da equação
7 x + 11y = 100 .

1
UFT/Arraias. E-mail: [email protected]
2
UFG/IME. E-mail: [email protected]

1
O Problema 1 é clássico e encontra-se resolvido em [6]. Vejamos agora um
problema recente, que apareceu no último Exame Nacional de Desempenho Acadêmico
[ENADE 2014].

Problema 2 [ENADE 2014]: Considere que os ingressos de um cinema custam R$


9,00 para estudantes e R$ 15,00 para o público geral, e que, em certo dia, durante
determinado período, a arrecadação nas bilheterias desse cinema foi de R$ 246,00. Quantas
e quais são as possíveis soluções.
Consideremos os números inteiros m e n, sendo m a quantidade arrecada com
estudantes, isto é, m = 9 x e n a quantidade arrecadada com o público em geral, isto é,
n = 15 y , para x e y inteiros quaisquer, quantidade de estudantes e público geral
respectivamente. Sabemos que m + n = 246 , dessa forma, temos que 9 x + 15 y = 246 . Para
resolver o problema devemos encontrar pares de coordenadas inteiras (x, y ) que sejam
soluções da equação 9 x + 15 y = 246 .

Equações da forma a1 x1 + a 2 x2 = c , com a1 , a 2 , x1 e x2 inteiros são chamadas


equações diofantinas lineares a duas variáveis. De forma mais geral temos a seguinte
definição

Definição 1: As equações lineares com n incógnitas xi dadas por a1 x1 + × × × + an xn = c ,


sendo a1 ,..., a n e c números inteiros, são chamadas de equações diofantinas lineares a n
variáveis.

Uma solução de uma equação diofantina como a da Definição 1 é uma n-upla


( )
x ,..., xn0 de inteiros, tal que a1 x10 + × × × + a n x n0 = c . Veremos que, sob determinadas
0
1

condições, existem infinitas n-uplas. Denotaremos por S p = (x1 ,..., x n ) uma solução
0 0

particular da equação diofantina.

Exemplo 1: Considere a equação 2 x + 4 y = 8 . Veja que o par (2,1) é uma solução da


equação; além desse, (4,0 ) , (0,2 ) e (8,-2 ) também são soluções; na verdade esse é um
exemplo de equação que possui infinitas soluções. Já a equação 2 x + 4 y = 7 não possui
solução, pois o lado esquerdo da equação é necessariamente par e o lado direito é ímpar.

Voltemos nossa atenção para o caso n = 2 . Sejam a e b inteiros, ambos não nulos e
d = mdc(a, b ) . Usaremos a notação x | y para designar: “x divide y”. Os dois resultados
seguintes encontram-se demonstrados em vários livros de teoria dos números e serão
omitidos.

Proposição 1: Sejam a e b inteiros não ambos nulos e d = mdc(a, b ) . Então existem


inteiros r e s tais que ar + bs = d .

Lembremo-nos que os inteiros r e s que satisfazem a identidade ar + bs = d da


Proposição 1, não são univocamente determinados.

2
Teorema (Algoritmo de Euclides): Para quaisquer a , b Î Z , b > 0 , existe um único par de
inteiros q e r, de maneira que a = bq + r , onde 0 £ r < b .

A próxima proposição nos diz sob quais condições uma equação diofantina linear a
duas variáveis admite solução.

Proposição 2: A equação diofantina linear a duas variáveis ax + by = c em que a ¹ 0 e


b ¹ 0 admite solução, se e somente se, d | c .
Demonstração:
Se o par de inteiros ( x0 , y 0 ) é solução da equação ax + by = c , vale a igualdade
ax0 + by0 = c ; como d | a e d | b , então d | c = ax0 + by0 . Reciprocamente, sabemos que
d = ax0 + by0 , para um par conveniente de inteiros (x0 , y0 ) . Por hipótese, d | c ; logo
c = dt , para algum inteiro t. Assim, c = dt = (ax0 + by0 )t = a( x0 t ) + b( y 0 t ) , o que mostra
que o par (x0 t , y0 t ) é solução da equação considerada.

Exemplo 2: Considere a equação 3 x + 5 y = 1 . Temos que mdc(3,5) = 1 e como 1 | 1 , a


equação dada admite solução. Veja que pelo algoritmo de Euclides temos

5 = 1.3 + 2 Þ 5 - 1.3 = 2 (1)


3 = 1.2 + 1 Þ 3 - 1.2 = 1 (2)

De (1) e (2), temos

3 - 1.2 = 1 Þ 3 - 1.(5 - 1.3) = 1 Þ 3 - 1.5 + 1.3 = 1 Þ 2.3 - 1.5 = 1

Portanto, (2,-1) é uma solução particular da equação dada.

Exemplo 3: Considere a equação 2 x + 4 y = 7 . Como mdc(2,4 ) = 2 e 2 não é um divisor de


7, concluímos que a equação dada não admite solução.

O próximo resultado nos mostra a forma geral da solução de uma equação


diofantina linear a duas variáveis.

Proposição 3: Seja ( x0 , y 0 ) uma solução particular da equação diofantina ax + by = c ,


sendo a ¹ 0 e b ¹ 0 . Então essa equação admite infinitas soluções e o conjunto dessas
ìæ b a ö ü
soluções é S = íç x0 + t , y 0 - t ÷, t Î Z ý .
îè d d ø þ
Demonstração:

3
( )
Se indicarmos genericamente por x , y as soluções de ax + by = c , então
' '

( ) ( )
ax ' + by ' = c = ax0 + by0 o que equivale a a x ' - x0 = b y 0 - y ' . Daí, admitindo-se que
a = dr e b = ds, para algum par de inteiros r e s, vem r (x ' - x 0 ) = s (y 0 - y ' ) , sendo
mdc(r , s ) = 1 . Como r divide s (y 0 - y ' ), então r | ( y0 - y ' ), e portanto rt = y0 - y ' para
a
algum tÎZ Donde y ' = y0 - rt = y 0 - t . Observemos agora que
d
r (x ' - x0 ) = s( y 0 - y ' ) = srt , logo x ' = x 0 + st = x 0 + t .
b
d
Por outro lado, não existe dificuldade nenhuma em se verificar que, para todo t Î Z , o par
æ b a ö
ç x0 + t , y 0 - t ÷ é solução da equação dada. Isto conclui a demonstração.
è d d ø

Exemplo 4: A equação 2 x + 5 y = 1 tem como solução particular (- 2,1) = (x0 , y 0 ) . Portanto


o conjunto solução é dado por S = { (- 2 + 5t ,1 - 2t ), t Î Z } = {..., (- 2,1), (3,-1), (8,-3),...} .

Solução do Problema 2. Na equação diofantina 9 x + 15 y = 246 temos mdc(9,15) = 3 ,


como 3 é um divisor de 246, assim existe solução para a equação. Temos que
9 × 2 + 15(-1) = 3 , assim obtemos que 9 ×164 + 15( -82) = 246 . Portanto uma solução
particular da equação é (164,-82 ) = ( x0 , y0 ) . Portanto o conjunto solução da equação é dado
por S = { (164 + 5t , - 82 - 3t ), t Î Z } = {..., (159,-79), (164,-82 ), (169,-85), ...}. Agora
devemos observar que o problema admite apenas solução positiva, ou seja, devemos ter
164 + 5t > 0 e - 82 - 3t > 0 . O qual tem solução positiva para - 32 £ t £ -28 . Logo existe
5 pares de solução para o problema, o qual listamos à seguir:

t Estudantes Público geral Total


- 32 4 14 18
- 31 9 11 20
- 30 14 8 22
- 29 19 5 24
- 28 24 2 26

Na próxima seção, estenderemos o nosso estudo para o caso n = 3 .

Equações diofantinas a três variáveis

Iniciaremos esta seção apresentando um problema que justifica o estudo das


equações diofantinas a três variáveis e depois exporemos resultados análogos aos da seção
anterior.

4
Problema 3: O senhor José deseja pagar uma conta no supermercado no valor de
R$237,00, usando tickets no valor de RS3,00, R$5,00 e R$7,00. Quantos tickets de cada
valor João deverá usar?
Sejam k, m e n números inteiros que representam as quantidades de tickets de três,
cinco e sete reais, respectivamente, utilizadas para pagar a dívida; assim k = 3 x , m = 5 y e
n = 7 z , com x, y e z inteiros.
Sabemos que k + m + n = 237 , daí temos que 5x + 7 y + 3z = 237 . Para resolver o
problema, devemos encontrar ternas de inteiros ( x, y, z ) que sejam soluções da equação
5 x + 7 y + 3 z = 237 .

Antes de começarmos a analisar as equações diofantinas a três variáveis, precisamos


do conceito a seguir.

Definição 2: Sejam a, b e c inteiros e d = mdc(a, b, c ) . O número d é dado por


d = mdc(d 1 , c ) , onde d 1 = mdc(a, b ) .

Buscaremos agora resultados análogos às proposições 1, 2 e 3.

Proposição 4: Sejam a, b e c inteiros e d = mdc(a, b, c ) , então existem inteiros r, s e t tais


que ar + bs + ct = d .
Demonstração:
Seja d 1 = mdc(a, b ) . Pela proposição 1, existem inteiros r1 e s1 tais que

ar1 + bs1 = d1 (3)

Como mdc(a, b, c ) = mdc(d 1 , c ) = d , novamente pela proposição 1, existem inteiros r2 e t


tais que

d 1 r2 + ct = d (4)

Substituindo (3) em (4), obtemos

(ar1 + bs1 )r2 + ct = d


Assim,

ar1 r2 + bs1 r2 + ct = d .

Fazendo r1 r2 = r e s1 r2 = s , obtemos ar + bs + ct = d . Isto completa a demonstração.

Os elementos r, s e t cuja existência é garantida pela proposição anterior não estão


univocamente determinados. Algumas vezes adotaremos a notação (a, b ) = mdc(a, b ) .

5
Proposição 5: A equação ax + by + cz = f em que a ¹ 0 , b ¹ 0 e c ¹ 0 admite solução, se
e somente se, mdc(a , b, c ) = d divide f.
Demonstração:
Se a terna de inteiros ( x0 , y 0 , z 0 ) é solução da equação ax + by + cz = f , então
ax0 + by0 + cz 0 = f . Como d | a , d | b e d | c , então d | f = ax0 + by0 + cz 0 .
Reciprocamente, como mdc(a, b, c ) = d , sabemos que f = ax0 + by0 + cz 0 , para uma terna
de inteiros conveniente ( x0 , y 0 , z 0 ) . Por hipótese d | f , segue que f = dt , para
algum t Î Z . Assim

f = dt = (ax0 + by0 + cz0 )t = a ( x0 t ) + b( y 0 t ) + c( z 0 t ) ,

o que mostra que a terna (x0 t , y0 t , z 0 t ) é solução da equação considerada.

Exemplo 5: Considere a equação 8 x + 12 y + 6 z = 2 . Temos d 1 = mdc(8,12) = 4 ,


d = mdc(d 1 ,6 ) = mdc(4,6 ) = 2 e d | f = 2 . Portanto, a equação dada admite solução. Pelo
algoritmo de Euclides, temos

12 = 1.8 + 4 Þ 12 - 1.8 = 4 Þ 8(- 1) + 12.1 = 4 (5)


6 = 1.4 + 2 Þ 6 - 1.4 = 2 Þ 4.(- 1) + 6.1 = 2 (6)

Substituindo (5) em (6) obtemos

4(- 1) + 6.1 = 2 Þ [8.(- 1) + 12.1].(- 1) + 6.1 = 2 Þ 8.1 + 12.(- 1) + 6.1 = 2

Portanto a terna (1,-1,1) é uma solução particular do problema.

Nosso objetivo, a partir de agora, é encontrar uma solução geral da equação

a1 x1 + a 2 x 2 + a 3 x3 = c (7)

Denotaremos por d o máximo divisor comum entre a 1, a2 e a 3, ou seja,


d = mdc(a1 , a 2 , a3 ) . Vamos reduzir a equação anterior a uma equação com duas variáveis.
Suponhamos que todos os a i são não nulos e que d|c.

Façamos

x2 = au + bv e x3 = gu + dv , (8)

onde a , b , g , d são inteiros de tal forma que

6
ad - bg = 1 . (9)

Resolvendo o sistema em (8) para u e v, teremos

u = dx 2 - bx3 e v = ax3 - gx2 .

Se escolhermos

a3 a2
b= d =-
(a 2 , a3 ) e (a 2 , a 3 ) ,

então (b , d ) = 1 e assim, podemos resolver a equação (9) para a e g .


Voltando à equação (7) e utilizando a mudança de variáveis (8), encontramos a equação

a1 x1 + (a 2a + a3g )u = c

Que é uma equação diofantina a duas variáveis e cujas soluções já sabemos determinar.

Resolução do problema 3: Para resolver este problema, devemos encontrar ternas de


inteiros (x, y, z) que sejam soluções da equação

5x+7y+3z = 237 (10)

Como d = 1 e 1 | 237 , a equação (10) tem solução.


Temos a1 = 5, a 2 = 7 e a 3 = 3 . Assim,

a3 3 a2 7
b= = =3 e d =- = - = -7 .
(a2 , a3 ) 1 (a 2 , a3 ) 1

Logo, a equação (9) é dada por - 7a - 3g = 1 ; uma solução particular desta equação é
(a 0 , g 0 ) = (- 1, 2) . Portanto,
y = -u + 3v e z = 2u - 7v (11)

Assim a equação (10) reduz-se à equação de duas variáveis

5 x - u = 237 (12)

Como (5,1) = 1 e 1 | 237 , a equação (12) tem solução. Uma solução particular de (12) é
( x0 , y 0 ) = (40,-37) , logo a sua solução geral é (x, u ) = (40 - t ,-37 - 5t ) , para todo inteiro t.

7
- u - 37
Agora, u = -37 - 5t e então t = ; assim
5

237 + u
x= (13)
5

Portanto, de (11) e (13), concluímos que a solução geral da equação (10) é dada por

(x, y, z ) = æç 237 + u ,-u + 3v,2u - 7v ö÷


è 5 ø

com u Î {...,-2,3,8,...3 + 5k ,...}, v Î Z e k Î Z .

Referências

[1] DOMINGUES, H. H. Fundamentos de aritmética, São Paulo: Atual, 1991.

[2] HUNTER, J. Number theory, New York: Interscience Publishers INC, 1964.

[3] NIVEN, I., ZUCKERMAN, H. S. Introduccion a la teoria de los numeros, Editorial


Limusa-Wiley, S. A., 1969.

[4] PITOMBEIRA, J. B., ROCQUE, G. Uma equação diofantina e suas resoluções. In:
Revista do Professor de Matemática, no 19, 1991.

[5] SILVA, E. F. Equações diofantinas lineares. In: Revista da Olimpíada de Matemática


do Estado de Goiás, no 3, IME – UFG, 2002.

[6] SILVA, V. V. da. Números: construção e propriedades, Goiânia: Editora UFG, 2003.

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